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ECONOMIA SOLIDÁRIA

VOLUME 1

1
ÍNDICE

AS RAÍZES HISTÓRICAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SEU


APARECIMENTO NO BRASIL........................................................................... 4
Introdução ....................................................................................................... 4
As diversas ondas de economia solidária na Europa ..................................... 5
A origem dos conceitos. Quais as terminologias usadas? .............................. 7
Origem do pensamento sobre a economia solidária no Brasil ...................... 10
Referências Bibliográficas............................................................................. 15
A ECONOMIA SOLIDÁRIA DIANTE DO MODO DE PRODUÇÃO
CAPITALISTA................................................................................................... 18
Um Debate Teórico e Político ....................................................................... 18
As Grandes Categorias Econômicas de K. Marx .......................................... 20
Uma Forma Social Solidária de Produção? .................................................. 25
A Temporalidade Longa das Transições....................................................... 28
Uma Economia do Trabalho em Perspectiva................................................ 32
Referências Bibliográficas............................................................................. 38
INCUBADORA DE COOPERATIVAS POPULARES: UMA ALTERNATIVA À
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO................................................................... 41
1. Introdução ................................................................................................. 41
2. Mercado de trabalho excludente e a formação de cooperativas ............... 42
3. Origem do cooperativismo: internacional e nacional................................. 46
4. Criação e implementação das cooperativas populares como alternativa à
precarização do trabalho............................................................................... 49
4.1. Estruturação de uma cooperativa popular na periferia de São Carlos: a
Cooperativa de Limpeza do Jardim Gonzaga - CoopLimp ........................ 53
4. 2. Demais atuações da Incubadora e suas perspectivas ...................... 57
5. Considerações finais................................................................................. 58
Referências bibliográficas ............................................................................. 59
AUTOGESTÃO NO BRASIL: A VIABILIDADE ECONÔMICA DE EMPRESAS
GERIDAS POR TRABALHADORES ................................................................ 61
Introdução ..................................................................................................... 61
Experiências de Autogestão no Brasil Contemporâneo : Teoria e Prática.... 64
Eficiência Econômica das Empresas de Autogestão .................................... 68
Políticas Públicas Brasileiras para Economia Popular Solidária ................... 70
Conclusões ................................................................................................... 73
Referências Bibliográficas............................................................................. 74
ECONOMIA POPULAR , SOLIDÁRIA E AUTOGESTÃO: O PAPEL DA
EDUCAÇÃO DE ADULTOS NESTE NOVO CENÁRIO (TENDO COMO
PERSPECTIVA A ATUAÇÃO DA UFRGS) ...................................................... 76
Economia Popular e Solidária....................................................................... 77
Autogestão.................................................................................................... 80
Educação de Adultos .................................................................................... 83
Atuação da UFRGS ...................................................................................... 85
Reflexões sobre este Caminho ..................................................................... 88
Referências Bibliográficas............................................................................. 88
ECONOMIA SOLIDÁRIA – RELATO DE EXPERIÊNCIAS NO PARANÁ ........ 90
Introdução ..................................................................................................... 90
1. Rede Sol ................................................................................................... 90
2. Feira da Solidariedade .............................................................................. 91

2
3. Rede de Colaboração Solidária ................................................................ 93
4. Rede Solidariedade................................................................................... 96
Perspectivas ................................................................................................. 97
MOEDA SOCIAL E A CIRCULAÇÃO DAS RIQUEZAS NA ECONOMIA
SOLIDÁRIA ...................................................................................................... 98
Apresentação................................................................................................ 98
Breve retrospecto do uso do dinheiro ......................................................... 100
As moedas alternativas............................................................................... 102
A moeda livre nos anos 1930 .................................................................. 103
A moeda livre dos anos 1980 .................................................................. 104
Moedas Paralelas ....................................................................................... 106
A moeda social da Rede Global de Troca................................................... 109
Considerações Finais.................................................................................. 114
Referências Bibliográficas........................................................................... 116
UMA CONTRIBUIÇÃO CRÍTICA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS DE APOIO À
ECONOMIA SOLIDÁRIA ................................................................................ 118
Duas experiências em políticas públicas de apoio à economia solidária .... 118
1. O Rio Grande do Sul............................................................................... 118
2. O Município de São Paulo ...................................................................... 121
Estado e economia solidária ....................................................................... 122
Duas visões sobre um mesmo problema .................................................... 124
Duas estratégias incompletas ..................................................................... 126
Elementos para uma estratégia eficaz de política pública em economia
solidária....................................................................................................... 128
Os Objetivos Perseguidos........................................................................... 128
Um Método Adequado ................................................................................ 129
A demanda a ser atendida e sua “construção” ........................................... 130
As Agências Executoras ............................................................................. 131
Uma Metodologia Apurada ......................................................................... 132
O Financiamento do Programa ................................................................... 133
As Ações Políticas de Institucionais de Apoio............................................. 134
As Avaliações ............................................................................................. 134
Conclusão ................................................................................................... 135
Referências Bibliográficas........................................................................... 136

3
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SEU
APARECIMENTO NO BRASIL1

Noëlle Marie Paule Lechat2

Introdução

A antropologia ensina que a história das origens é sempre mitológica. O que


vou apresentar aqui hoje vai ser mais uma versão, bastante limitada, do mito
de origem da economia solidária e espero que vocês vão trazer outros dados,
uma outra maneira de ver esta questão, todos eles, sem dúvida importantes e
enriquecedores. Para falar das origens, gosto de usar a metáfora das buscas
da nascente do rio Nilo que, no século XIX, envolveu exploradores e geógrafos
numa famosa polêmica, retratada de maneira romanesca pelo filme Montanhas
da Lua de Bob Rafelson (1990). De fato o rio Nilo não possui uma nascente,
mas várias, e algumas surgem nos lagos o que torna ainda mais difícil a sua
localização. Assim também são os fenômenos sociais; além do mais, uma
visão processual e dialética da história, não permite falar do surgimento de uma
nova realidade com início datado e registrado, pois os processos são
demorados e o que nós chamamos de novo recobre, em geral, fenômenos
antigos reinterpretados, modificados pelas novas condições sócio-históricas e
que, em determinado momento, começam a tornar-se significativos para um
grande número de pessoas, sendo objeto de uma ação consciente articulada e
atraindo financiamentos, pesquisa e divulgação através da mídia. Tudo isto
concorrendo para o reconhecimento público, político e, finalmente, às vezes,
legal, da problemática em questão.

Segundo Pierre Bourdieu, para não sermos objeto dos problemas que
escolhemos como objeto de estudo, “é preciso fazer a história social da
emergência desses problemas, da sua constituição progressiva, quer dizer, do
trabalho coletivo – freqüentemente realizado na concorrência e na luta – o qual
foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como
problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos, oficiais” (Bourdieu,
2000:37). Este autor nos alerta também, sobre o perigo que o sociólogo corre
de ser apenas “instrumento do que ele quer pensar” (idem, 36) e propõe como
remédio, como instrumento para romper com essa situação fazer a história “do
trabalho social de construção de instrumentos de construção da realidade
social” (ibidem). Ou seja, quais são nossos pressupostos, nosso quadro
conceitual e teórico, como estamos construindo os conceitos de economia
solidária, de incubadora tecnológica de cooperativas populares, etc.

Nesse sentido, pretendo resgatar as origens da economia solidária e de seus


conceitos além mar para depois apresentar como esse tema vai aparecer na
literatura brasileira e os passos dados em várias regiões do país, por
intelectuais que, na maioria das vezes, não tinham conhecimento do que
acontecia em outros lugares.

1
Palestra proferida na UNICAMP por ocasião do II Seminário de incubadoras tecnológicas de
cooperativas populares dia 20/03/2002.
2
Professora de Antropologia na UNIJUI (RS). Doutoranda em Ciências Sociais, IFCH –
UNICAMP. Orientadora, Professora Doutora Maria Suely Kofes. noel@unijui.tche.br

4
As diversas ondas de economia solidária na Europa

Na Europa, os primeiros idealizadores do que Paul Singer (2001) chamou de


cooperativismo revolucionário foram os socialistas utópicos, assim nomeados
por Karl Marx para diferenciá-los dos socialistas científicos. Segundo Martin
Buber, esses lutavam “pelo máximo de autonomia comunitária possível, dentro
de uma reestruturação da sociedade” (Buber, 1945: 27). Buber apresenta três
pares de pensadores divididos em gerações históricas, o primeiro Saint-Simon
e Fourier que nasceram antes da revolução francesa e faleceram antes de
1848, o segundo Owen e Proudhon que morreram entre 1848 e 1870 e
finalmente Kropotkin e Landauer nascidos após 1870 e falecidos pouco depois
da primeira guerra mundial. Para Buber, na primeira fase cada pensador
contribuiu com um único pensamento construtivo, Proudhon e seus sucessores
realizaram a ampla síntese.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos várias comunidades ou aldeias


cooperativas foram criadas no século XIX, mas não conseguiram manter-se por
mais de alguns anos, as numerosas experiências de cooperativas operárias
lideradas pelo movimento sindical inglês, após vários êxitos e avanços
democráticos, foram extintas pela feroz reação da classe patronal e pela
declarada hostilidade do governo. A mais famosa cooperativa de consumo, a
cooperativa dos Pioneiros Eqüitativos de Rochedale, estabeleceu uma carta de
princípios que até hoje inspira o cooperativismo e sua legislação a nível
mundial. Não vou falar aqui deste passado heróico do qual há muitas lições a
se tirar. Há livros sobre este assunto e a recente publicação de Paulo Singer
Introdução à economia vai neste sentido. Mas quero chamar a atenção sobre o
fato que os empreendimentos de economia social surgem geralmente em
cachos, sob o impulso de uma dinâmica sócio-econômica fruto de uma grande
crise econômica (Lévesque, Malo e Girard).

Como as crises não são idênticas e os atores e promotores também diferem de


uma geração para outra, as diversas ondas de economia social têm
personalidades diversas. Na antiga economia social européia destacam-se três
momentos.

As décadas de 30 e 403 do século XIX, marcadas por um novo tipo de


regulação do trabalho que de corporativo4 transformou-se em concorrencial,
viram nascer sociedades de socorro mútuo, balcões alimentícios e
cooperativas de produção. Criadas por operários ou por artesãos que se
negavam a tornar-se proletários essas iniciativas tentavam amenizar os
sofrimentos trazidos pelos acidentes, pelas doenças e pela morte. A partir de
1848, no entanto, a repressão se abateu sobre estas associações.

A grande crise dos anos 1873-1895 leva à modernização e a investimentos


pesados na agricultura e nos recursos naturais. As cooperativas agrícolas e de
poupança foram as soluções de sobrevivência encontradas pelos pequenos

3
Para Lévesque, Malo e Girard, trata-se dos anos 1840-1850.
4
Na França, a lei Le Chapelier, de 1791, destruiu as antigas corporações.

5
produtores. Na França, as associações foram reconhecidas pela lei de 19015,
mas foram restritas a trocas não monetárias, a menos que estivessem ligadas
à ação dos poderes públicos (Laville, Roustang, 1999).

A depressão econômica dos anos 1929-32, provocada por uma crise da


regulação concorrencial, após a Segunda Guerra mundial levou a uma
intervenção do Estado, dentro das propostas keynesianas, implantando
políticas econômicas e sociais. Mas antes disto as cooperativas de consumo e
de habitação se constituíram numa das soluções trazidas pelos operários.

Após a Segunda Guerra mundial, a economia não monetária (doméstica e de


reciprocidade) tinha ficado marginalizada pela expansão do mercado e pela
estatização das iniciativas associativas mais dinâmicas. Segundo Laville e
Roustang, houve separação entre o social, o econômico e o político. A reação
contra os efeitos nefastos do capitalismo só pôde acontecer dentro de
subconjuntos distintos, uns pertencentes à economia de mercado e outros à
economia de não mercado.

Mas este quadro mudou a partir da segunda metade da década de 70 do


século XX. Uma nova crise do sistema capitalista trouxe por conseqüências, o
desemprego e o fechamento de empresas e criou-se um quadro dramático
para a classe trabalhadora. Floresceu então, a partir de 1977 e até 84, uma
série de iniciativas para salvar ou criar empregos, através de empresas
autogeridas pelos próprios trabalhadores e isto com o apoio de alguns
sindicatos progressistas. Entre 1980 e 85 foram criadas em massa
cooperativas de trabalhadores em toda a Europa (Defourny, 2001). Por outro
lado, os inúmeros movimentos sociais e étnicos trouxeram uma nova visão do
social, da sua relação com o econômico e da relação do homem com o meio
ambiente. A queda do muro de Berlim, símbolo do fim de uma utopia, levou à
produção de novas utopias compostas por comunitarismo, ecologismo,
solidariedade e voluntarismo.

A partir dessa nova onda de economia social, surgiu nos anos 80, uma “nova
literatura”6 a seu respeito na Europa, na América do Norte, mas também na
América Latina e, em particular no Chile, onde se desenvolveu sobretudo
graças a Luís Razeto.

Numerosos pesquisadores, principalmente economistas e sociólogos,


entusiasmados com esta realidade, produziram novas teorias para estudar
estes fenômenos. Uma série de economistas passou pela escola de Cornell
nos Estados Unidos e para alguns foi lá que tudo começou. Nesta escola,
Yaroslav Vaneck, um pensador checo imigrado nos Estados Unidos, tinha
desenvolvido uma teoria econômica da autogestão. Vindo da Universidade de
Harvard, ele tinha muito crédito e fez escola. Ao longo da década de setenta

5
No ano de 2001, celebrou-se com muita pompa em toda França o centenário do nascimento
das associações com fins não lucrativos.
6
A este respeito ler Boudet que, em 1985, publicou um balanço das pesquisas sobre a vida
associativa na revista RECMA (Revue des études coopératives, mutualistes et associatives,
fundada em 1921 e que tem por subtítulo: Revue internationale de l’économie sociale); Guélin,
1998; Lévesque e outros, 1997.

6
uma série de economistas norte americanos, mas também do mundo inteiro,
passou por lá. Esses economistas ficaram entusiasmados não somente pelo
movimento operário que transformava as empresas falidas em empresas
autogeridas, mas também pela formação de inúmeras cooperativas de
trabalho. No entanto, segundo Defourny (2001),

“quando esse movimento começou a decrescer, realizou-se em toda a Europa,


mais ou menos ao mesmo tempo, que mesmo se esta realidade é muito
importante, ela fica quantitativamente restrita. Então, uma série de
pesquisadores pensou em alargar seu campo de estudo ao associacionismo.
Pois havia muita coisa em comum entre as cooperativas de trabalho
autogestionadas e as associações. Então estes economistas descobrem que as
associações não pertencem unicamente à esfera sócio-cultural, mas fazem
também parte da economia de não mercado. E para unir essas duas realidades,
o termo economia social era muito apropriado”.

A origem dos conceitos. Quais as terminologias usadas?

Na França, segundo André Guélin, o rótulo de “économie sociale” é difícil de


definir, pois durante um século e meio já serviu para referir-se a diversas
realidades. É notável que, no século XIX, todas as tendências políticas
embarcaram nesta nova proposta. Tanto socialistas (Pecqueur, Vidal, Malon)
como social-cristãos (Le Play) e mesmo liberais (Dunoyer), sensibilizados com
o custo humano da revolução industrial, criticaram a ciência econômica por não
integrar a dimensão social.

Quanto à definição atual da Economia Social, segundo o mesmo autor, “ela é


composta de organismos produtores de bens e serviços, colocados em
condições jurídicas diversas no seio das quais, porém, a participação dos
homens resulta de sua livre vontade, onde o poder não tem por origem a
detenção do capital e onde a detenção do capital não fundamenta a aplicação
dos lucros” (Guélin, 1998: 13).

Em 1994, Laville caracterizava a economia solidária como um conjunto de


atividades econômicas cuja lógica é distinta tanto da lógica do mercado
capitalista quanto da lógica do Estado. Ao contrário da economia capitalista,
centrada sobre o capital a ser acumulado e que funciona a partir de relações
competitivas cujo objetivo é o alcance de interesses individuais, a economia
solidária organiza-se a partir de fatores humanos, favorecendo as relações
onde o laço social é valorizado através da reciprocidade e adota formas
comunitárias de propriedade. Ela se distingue também da economia estatal que
supõe uma autoridade central e formas de propriedade institucional. (Laville,
1994: 211). Mas ele nos previne que o deslocamento destas manifestações no
tempo e no espaço -a primeira manifestação era pré-keynesiana e a atual
corresponde à crise do compromisso keynesiano- aponta para os limites de
uma conceitualização da economia solidária em termos de terceiro setor.

Para Laville e Roustang (1999), o conceito de economia solidária proporciona


uma ênfase sobre o desejo primeiro da economia social na sua origem de
evitar o fosso entre o econômico, o social e o político, pois é na articulação
destas três dimensões que se situa o essencial da economia social ou
solidária. O termo, segundo esses autores, tenta dar conta da originalidade de

7
numerosas iniciativas da sociedade civil que não se encaixam na trilogia
legalizada na França das cooperativas, mutualidades7 e associações. Mas os
autores alertam que o termo não é a expressão do que seria desejável fazer.
Ele visa muito mais a problematizar práticas sociais implantadas localmente.

Para realidades como as dos países em desenvolvimento da África e da


América Latina, diferentes das que existem nos países do norte, o termo
economia popular8 é preferido por autores como Nyssens (1994 e 1996) e
Larrachea que, neste caso, buscaram inspiração em Luís Razeto. Segundo tais
autores, com referência ao caso de Santiago do Chile, este setor da economia
é constituído pelo conjunto das atividades econômicas cujos atores fazem parte
da população mais pobre da cidade. (Larrachea, 1994: 181).

Defourny, Develtere e Fonteneau (1999) resumem assim as várias


terminologias. A expressão terceiro setor, mesmo que imperfeita, é a que
recebe a nível internacional o maior consenso. Como prova disto, citam a
associação International Society for Third Sector Research, criada em 1992.
Mas se olharmos para regiões geográficas específicas, observam eles, outros
termos são preferidos. Assim nos EUA fala-se em non-profit sector ou
independent sector, que corresponde à apelação inglesa de voluntary
organizations. O termo economia solidária e a apelação organizaciones de
economía popular, são mais comuns na América Latina9. Segundo Defourny
(2001), na Alemanha usa-se a palavra Gemeinwirtschaft 10 e na Suécia,
folkrörelse ou association ideel.

A concepção de economia social é mais ampla do que non-profit sector pois,


ao lado das associações sem fins lucrativos, ela inclui um tipo de empresa, as
cooperativas que, difundidas no mundo inteiro, encarnam, muitas vezes há
mais de 150 anos, a busca de uma terceira via entre o capitalismo e o
centralismo de Estado. Além disto, incorpora um outro tipo de organização, as
mutualidades que, também muito presentes em vários países, desempenham
ou vão desempenhar um papel central na organização da saúde e da
previdência social. Assim, resumindo, o terceiro setor pode ser apresentado
como constituído por três grandes componentes, as cooperativas, as
organizações mutualistas e as organizações sem fins lucrativos
(essencialmente associações).

A proliferação das apelações é explicada por Chaves Ávila a partir do fato que
o objeto de estudo foi ampliando-se progressivamente, introduzindo ao lado
das cooperativas, das mutualidades e do associativismo –trilogia da economia
social tradicional- toda forma de associações que contestam a lógica do
desenvolvimento capitalista. Desta maneira, o grau de heterogeneidade deste
setor foi crescendo e diluindo progressivamente suas fronteiras históricas com

7
Associações de ajuda mútua, principalmente na área da saúde e da previdência social.
8
Este conceito já foi bastante discutido e recebeu críticas contundentes; ver, por exemplo: A
chamada economia popular em debate. Cadernos do CEAS, n. 153, p. 59-69, set./out. 1994. E
Singer, 2000b: 143-147.
9
Pelo que conhecemos, com algumas ressalvas para Razeto, José Luis Coraggio e Orlando
Núñez, na América Latina o termo economia solidária equivale a economia social.
10
Que é muito problemática e não é bem aceita.

8
as do setor público, capitalista e de economia doméstica. Além do mais, novas
tradições científicas entraram no estudo destes campos científicos
redescobertos. Para este autor, há muitos anos a delimitação do objeto de
estudo da economia social suscita um debate acalorado e esta é uma questão
essencial, pois possui implicações teóricas a nível explicativo e preditivo. De
fato, as elaborações teóricas que podem ser construídas sobre as cooperativas
de trabalho associado, base do que se considera setor autogestionário ou
cooperativo, diferem daquelas que podem ser realizadas sobre as fundações e
outras organizações voluntárias ou sem fins lucrativos.

Numa entrevista (2001) a respeito da terminologia usada em diversos países,


Jacques Defourny11 confirmou de maneira concreta as afirmações de Chaves
sobre a ampliação do objeto de estudo e as novas disciplinas que dirigiram
suas pesquisas para a economia social ou o terceiro setor. Ele não pareceu
preocupado, no entanto, com a discussão conceitual. Para ele, estando
disponível o termo economia social e não se conhecendo outro na Bélgica, é
este mesmo que foi utilizado e, mais tarde, ao surgirem outras apelações, um
ponto de vista pragmático levou os estudiosos desta área a manterem o termo
histórico de economia social mesmo se estão falando do que outros podem
chamar de economia solidária. Ele e Monzón, no entanto, tomaram a iniciativa
de publicar em 1992, um livro bilingüe francês-inglês onde o termo economia
social foi traduzido por third sector (terceiro setor).

A Revista RECMA, no seu editorial de janeiro 2001 intitulado A solidariedade


em questão, estabelece uma nítida diferença entre economia social e economia
solidária. Inicialmente, a solidariedade é problematizada. Etimologicamente, o
termo é uma deformação da palavra latina solidum que, entre os jurisconsultos
romanos, servia para designar a obrigação que pesava sobre os devedores
quando cada um era responsável pelo todo (in solidum). A solidariedade é um
fato antes de ser um valor e designa uma dependência recíproca. Esta
concepção faz da solidariedade uma realidade possível de constatar como a
definia Durkheim nas suas modalidades mecânica e orgânica. Uma outra
concepção, normativa desta vez, faz da solidariedade um dever moral de
assistência como já o preconizava o solidarismo de Charles Gide no fim do
século XIX. Como fato ou como dever, a solidariedade supõe um laço recíproco
(e nisso se opõe à caridade, concebida como um dever unilateral). O dever
moral de assistência, mas não a solidariedade como fato, supõe uma situação
de desigualdade. Deste ponto de vista, a economia solidária apóia-se numa
economia de sujeitos desiguais, enquanto que a economia social é, pelos seus
princípios e regras, uma economia de iguais. Se a economia solidária é
econômica e socialmente necessária, não é suficiente para definir a sociedade
igualitária à qual aspira. Por outro lado, a economia social não parece estar em
condições de trazer um remédio para o crescimento das desigualdades; mas
define experiências de sociedades igualitárias e, sob este ângulo, aparece
como o horizonte possível ou provável da economia solidária, uma forma de
permitir aos “beneficiários” da solidariedade de assumirem sua economia de
maneira voluntária e não dependente. E o editorial termina colocando que

11
Diretor do Centre d’Études Sociales em Liège, Bélgica.

9
estas duas economias podem ser consideradas como complementares e que
seus méritos respectivos poderiam fortalercer-se mutuamente.

O termo solidariedade pode também ser decomposto a partir de suas formas,


que Hegner (Apud Sobottka, 2001) define como de reciprocidade, lealdade e
altruísmo. Só nos dois primeiros casos temos uma dependência recíproca de
fato. Neles não se comprova a desigualdade entre os pares. A solidariedade só
indica que, no momento de sua aplicação, há desigualdade de situação entre
aquele que dá e aquele que recebe, mas não indica uma desigualdade
intrínseca. Como vou mostrar a seguir, é esse sentido que o adjetivo “solidária”
assume na literatura brasileira.

Origem do pensamento sobre a economia solidária no Brasil

Para encontrar as origens da economia solidária no Brasil, podemos partir do


quadro das condições socioeconômicas e políticas das últimas décadas,
podemos falar dos embates da sociedade civil frente à crise e ao desemprego
estrutural, do terreno onde vão brotar as experiências de economia solidária ou
podemos fazer o caminho no sentido contrário. Partir do que temos hoje no
campo da economia solidária e voltar para trás para ver em que condições,
onde, por que e como os passos foram dados. Os dois procedimentos têm
suas vantagens e inconvenientes, o melhor então é mesclá-los.

Neste Seminário, que faz a junção entre o mundo da academia e o mundo do


trabalho, devemos resgatar o processo de surgimento de experiências
autogestionárias e solidárias, a atuação de movimentos sociais, sindicatos,
ONGs, Igrejas, prefeituras e governos de esquerda que lhes deram e dão
suporte e promovem sua organização em fóruns, feiras, redes e tantas outras
iniciativas, mas também fazer a história da ação dos intelectuais para nomear e
pesquisar este campo. Vou deter-me mais nesta segunda história, sem
depreciar a outra, pois a pesquisa acadêmica para ter algum sentido deve
nutrir-se da realidade concreta que ela vai tentar compreender e analisar e,
além do mais, muitas vezes vamos encontrar o mesmo agente em ambas as
realidades servindo de mediador cultural entre essas duas esferas.

No Brasil, para a economia solidária tornar-se uma problemática, ela teve que
aparecer como um setor próprio e digno de interesse específico. Essa decisão
é, a nosso ver, de ordem teórico-político-ideológica. O que hoje é denominado
de economia solidária ficou por décadas imerso, e ainda o é em muitos casos,
no que a literatura científica chama de autogestão, cooperativismo, economia
informal ou economia popular. Uma prova disto é a polêmica, ainda existente, a
respeito do atributo popular acrescido à economia solidária ou ao
cooperativismo, denominados então de economia popular solidária, ou
cooperativismo popular.

Quanto à economia informal, termo que foi criado na década de 60 no âmbito


do Programa Mundial de Emprego da Organização Internacional do Trabalho –
OIT, se outrora os analistas a consideravam como um fenômeno transitório
ligado ao subdesenvolvimento dos países dependentes, hoje é uma questão
que se impôs aos cientistas sociais, políticos e econômicos pela sua

10
persistência e crescimento. No entanto, como aponta Fields (Apud Moretto,
2001: 104), este setor não pode ser corretamente representado por um setor
ou por um continuum, mas por setores qualitativamente distintos. Entre estes
setores podemos identificar alguns como o setor da economia familiar, ou o
setor dos micronegócios e, nestes, associações de trabalhadores para a
produção ou prestação de serviços realizada com pouquíssimo ou até sem
capital e com a qualidade de haver solidariedade entre seus membros. Ou seja,
intelectuais brasileiros retiraram destes conjuntos amplos e heterogêneos que
são a economia popular e a economia informal, empreendimentos econômicos
que foram colocados em evidência por possuírem algumas características
específicas que podem ser resumidas pela qualidade da solidariedade
existente entre seus sócios, com a sociedade e com a natureza à sua volta.

Se for certo, e isto já foi amplamente demonstrado por vários autores, que as
categorias de economia popular (Cadernos do CEAS, 1994; Singer, 2000) e de
economia informal (Tokman, 1987; Morrisson, 1995; Cacciamali, 1999) são
categorias mal definidas e problemáticas, o que nos importa aqui é o
estabelecimento de um novo recorte entre as diversas formas econômicas de
geração de emprego e renda já conhecidas; recorte este que vai adquirir aos
poucos o reconhecimento das políticas públicas e da academia. É esse
processo de construção e legitimação de um novo objeto de estudo acadêmico,
de novos agentes sóciopolíticos que é preciso compreender. Ou seja, como se
agenciam os processos político-pedagógicos e acadêmicos para a
identificação, nomeação e estruturação de um novo campo de ação e
teorização.

Procurei identificar na literatura brasileira os primeiros aparecimentos dos


conceitos ligados à economia solidária. O conceito economia de solidariedade
aparece pela primeira vez no Brasil em 1993 no livro Economia de
solidariedade e organização popular, organizado por Gadotti, onde o autor
chileno Luis Razeto o concebe como: (eu cito)

uma formulação teórica de nível científico, elaborada a partir e para dar conta de
conjuntos significativos de experiências econômicas -...-, que compartilham
alguns traços constitutivos e essenciais de solidariedade, mutualismo,
cooperação e autogestão comunitária, que definem uma racionalidade especial,
diferente de outras racionalidades econômicas. (Razeto, 1993: 40).

Por sua vez, o termo terceiro setor é divulgado em 1994 com a publicação de
Fernandes. Privado, porém público. Mas devemos esperar até 1995 para que
brasileiros escrevam sobre economia solidária referindo-se a ela desta
maneira.

Alguns encontros vão constituir um marco para a construção de um


pensamento e/ou movimento social em prol da economia solidária no Brasil;
apresentarei uns seis conjuntos, mas não são os únicos. O primeiro aconteceu
por ocasião de uma mesa redonda sobre o tema Formas de combate e de
resistência à pobreza realizada em setembro de 1995 durante o 7º Congresso
Nacional da Sociedade Brasileira de Sociologia e o segundo ocorreu no III
Encontro Nacional da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas

11
de Autogestão e Participação Acionária - ANTEAG -, que teve lugar em São
Paulo nos dias 30 e 31 de maio de 1996.

Os trabalhos apresentados na mesa redonda do 7º encontro foram organizados


em coletânea por Luiz Inácio Gaiger e publicados em 1996. Na apresentação,
ele escreve: “A comparação entre essas diversas experiências permite
identificar, como tipo promissor e como alternativa viável para a economia
popular, os empreendimentos solidários que reúnem, de forma inovadora,
características do espírito empresarial moderno12 e princípios do solidarismo e
da cooperação econômica apoiados na vivência comunitária” (Gaiger, 1996:
11). No caso de sua pesquisa, as experiências avaliadas eram projetos
alternativos comunitários da Cáritas Brasileira.

Por sua vez, no III Encontro da ANTEAG não se usou o termo economia
solidária, mas no prefácio do livro que apresenta as intervenções dos
participantes, redigido em 1998, Paul Singer escreve: “No bojo da crise do
trabalho começou a surgir a solução. (...) Algum milagre? Não, mas grande
vontade de lutar, muita disposição ao sacrifício e sobretudo muita
solidariedade. É deste modo que a economia solidária ressurge no meio da
crise do trabalho e se revela uma solução surpreendentemente efetiva” (Singer,
1998: XXXI). Essa proposta de Paul Singer já tinha sido formulada
publicamente por ele em julho de 1996 na Folha de São Paulo sob o título
Economia solidária contra o desemprego, bem como constava no programa de
governo do Partido dos Trabalhadores por ocasião das eleições municipais na
cidade de São Paulo no mesmo ano13. Segundo Mance, propostas similares
também tinham sido defendidas pela oposição democrática popular em Curitiba
em 1992 e em 1988 (?) na cidade de Piraquara, Paraná (Mance, 1999: 163).

Marcos Arruda trabalha há mais tempo a proposta da autogestão. Em agosto


de 1993, o Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e outras
entidades articularam o primeiro seminário sobre autogestão em Criciúma (SC).
Em 1994, estas entidades realizaram em Porto Alegre o seminário sobre
“Autogestão, realização de um sonho”. E, em dezembro de 1996, Arruda
apresentou o texto Globalização e sociedade civil: repensando o
cooperativismo no contexto da cidadania ativa, para a Conferência sobre
Globalização e Cidadania, organizada pelo Instituto de pesquisa da ONU para
o desenvolvimento social. Neste texto ele apresenta o cooperativismo
autogestionário e solidário como proposta para um desenvolvimento que
“reconstrua o global a partir da diversidade do local e do nacional” (Arruda,
1996: 27).

É nesse processo que ganha enorme importância a práxis de um cooperativismo


autônomo, autogestionário e solidário, que inova no espaço da empresa-
comunidade humana e também na relação de troca entre os diversos agentes; (...)
o associativismo e o cooperativismo autogestionários, transformados em projeto
estratégico, podem ser os meios mais adequados para a reestruturação da sócio-
economia na nova era que se anuncia (Arruda, 1996: 4).

12
“Necessidade de qualificar tecnicamente para tocar empreendimentos numa economia
centrada na produtividade e na concorrência.” (Gaiger, 1996: 109).
13
A proposta era de Paul Singer, mas foi Aloísio Mercadante que a batizou com o nome de
economia solidária (Singer 2001).

12
O PACS realizou , de 1 a 6 de dezembro de 1997 em Bertioga (SP) o encontro
internacional da Aliança para um Mundo Responsável e Unido. Os
participantes vieram de cinqüenta países diferentes e, aproximadamente,
duzentas pessoas, em quatro outros continentes, participaram da reunião de
Bertioga através de redes eletrônicas de comunicação. Eles redigiram a
Mensagem de São Paulo (da Aliança para um Mundo Responsável e
Solidário). O PACS criou também um Canteiro de Socioeconomia Solidária que
organizou vários novos encontros como em 1998 em Porto Alegre e de 11 a 18
de junho 2000 em Mendes, Rio de Janeiro (Encontro de Cultura e
Socioeconomia Solidária). Segundo seu boletim, este último encontro foi fruto
de um “conjunto de encontros internacionais sobre experiências de autogestão
e economia popular solidária [que aconteceram] entre 1988 e 1998” e foi o
berço da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária – RBSES. Na
coordenação dos trabalhos destes encontros encontramos, entre outros,
Marcos Arruda e na rede também Euclídes Mance.

No Rio de Janeiro temos, além do PACS, a universidade Federal do Rio de


Janeiro – UFRJ, onde professores e técnicos do Centro de Pós-graduação de
Engenharia (Coppe) atenderam aos pedidos de formação de cooperativas de
trabalho14. Em meados de 1995, criaram a Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares (ITCP). Além da ajuda da Ação pela Cidadania,
ganharam apoio financeiro da FINEP e do Banco do Brasil. A partir daí várias
universidades vão implantar incubadoras tecnológicas de cooperativas
populares e a Rede Universitária das incubadoras vai ser formada. Mas vou
deixar os próprios autores nos contarem esta história sexta-feira.

O primeiro grupo de professores pesquisadores sobre a temática da economia


solidária se forma na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de
Marília em 1996(?) com o nome de “Organizações e Democracia” e é
coordenado por Cândido Vieitez e Neusa Dal Ri. Fazia parte deste grupo
também Gustavo Gutierrez que pesquisava desde o início da década de 80
questões ligadas à autogestão, tema de sua dissertação de mestrado, tese de
doutorado e pós-doutorado15 e a Mariza Galvão, coordenadora deste
Seminário. A primeira publicação do grupo, A empresa sem patrão, é resultado
do Iº Simpósio realizado em junho de 1996. Em novembro de 1998 realiza-se o
IIº Simpósio Nacional Universidade-Empresa sobre Autogestão e Participação.
Destes Simpósios participaram representantes de entidades organizativas de
empresas autogeridas e cooperativas. O grupo teve contatos com o MST, com
a CONCRAB, mas foi com a ANTEAG16 que a colaboração mais avançou. Por
ocasião do segundo Simpósio, o professor Singer da USP juntou-se ao grupo

14
A primeira iniciativa foi da FIOCRUZ, para montar uma cooperativa de limpeza com
trabalhadores dos morros de Manguinhos, a COOTRAM.
15
Tese: Autogestão, Participação e Estrutura Organizacional, (EAESP-FGV) 1989.
Dissertação: Autogestão e Condições Modernas de Produção (PUC-SP)1983.
16
A ANTEAG foi fundada em São Paulo em 1994 e seus fundadores são oriundos em grande
parte da militância por um sindicalismo alternativo no final da década de 70 e início da década
de 80, e em particular da Secretaria de Formação do Sindicato dos Químicos de São Paulo. Na
ANTEAG destaca-se seu diretor técnico, o economista e administrador de empresas Aparecido
Farias; a casa dele foi a primeira sede e naquela época os técnicos não tinham qualquer tipo
de remuneração.

13
de pesquisas e estudos da UNESP. Mais tarde ele e a professora Marilena
Nakato, integrante do grupo, atuaram junto à ANTEAG, Singer no Conselho
Nacional e Nakato no apoio técnico e educacional.

Os empreendimentos são extremamente variados e dispersos pelo Brasil, mas


o fato deles terem ligações com movimentos ou instituições com visibilidade e
contatos a nível macro permitiram-lhes aflorar para a consciência social do
momento. Em 1997, a Fundação Unitrabalho17 toma a decisão de criar um
grupo de trabalho de economia solidária. A coordenação foi feita pelos
professores Cândido Vieitez, da UNESP, Newton Brian da UNICAMP e Paul
Singer da USP. Foram chamados pesquisadores universitários de todo Brasil
para participar do grupo. Até que em janeiro de 1999, após a realização de
vários seminários, foi elaborado um projeto de pesquisa de âmbito nacional
intitulado Economia solidária e autogestionária em vista de um amplo
levantamento desta realidade no Brasil.

As três propostas, elencadas acima, que identifiquei a partir de Gaiger, Singer


e Arruda, com suas especificidades e divergências, vão ser reunidas pela
primeira vez em 1999, na Universidade Católica de Salvador, por ocasião do
seminário Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia e
foram publicadas num livro com o mesmo título. Após isto, Paul Singer
organizou, com André de Souza, a obra intitulada A economia solidária no
Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego, onde mais uma vez os três
autores foram reunidos. Muitos outros acadêmicos e atores estão neste campo
e outros virão; gostaria, por exemplo, de sublinhar a importante produção
intelectual de Armando Lisboa e de Euclides Mance, mas estou ainda no início
de minhas pesquisas e não posso apresentar a todos. Isto não significa de
minha parte desconsideração, mas expressa as minhas limitações.

Além de investigar como as experiências de autogestão e associações


voluntárias tornaram-se objeto de estudo e pesquisas, e foram batizadas com
os conceitos de economia solidária, socioeconomia solidária, economia popular
autogestionária e solidária etc. e quais as fronteiras que os autores
estabelecem entre estes termos e a economia social ou ainda com o terceiro
setor. Devemos também questionar como “ganhou receptividade a tese que ...
vê [os empreendimentos econômicos solidários] como uma base fundamental
para a reconstrução do meio social em que vivem as classes populares”
(Gaiger: 1999 a), ou para a construção de um novo modo de produção não
capitalista (Singer, 2000, Tiriba, 1997), o que é, se não me engano, uma visão
especificamente latino-americana. Fora do Brasil, temos na Nicarágua Orlando
Nuñez (1998) que fala de um Projeto Comunitário, para ele a economia
solidária é parte da tomada do poder político, parte da revolução, parte da
transição e da construção do socialismo (1997/98) e Verano Paez (2001)
fundador da COLACOT, que fala em Socialismo autogestionário.

Ao que tudo indica, o final do século XX viu nascer um novo paradigma


socioeconômico, político e cultural fundamentado na solidariedade. Estamos

17
Hoje, Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o trabalho.

14
aqui, vocês e eu, para participar desta construção. Muito obrigada a todas e a
todos.

Referências Bibliográficas

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15
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16
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17
A ECONOMIA SOLIDÁRIA DIANTE DO MODO DE PRODUÇÃO
CAPITALISTA

Luiz Inácio Gaiger18

A literatura atual sobre a economia solidária converge em afirmar o caráter


alternativo das novas experiências populares de autogestão e cooperação
econômica: dada a ruptura que introduzem nas relações de produção
capitalistas, elas representariam a emergência de um novo modo de
organização do trabalho e das atividades econômicas em geral. O trabalho
discute o tema, retomando a teoria marxista da transição e analisando, sob
esse prisma, dados de pesquisas empíricas recentes sobre os
empreendimentos solidários. Delimitando a tese anterior, conclui estarmos
diante da germinação de uma nova “forma social de produção”, cuja tendência
é abrigar-se, contraditoriamente, sob o modo de produção capitalista. Extrai,
por fim, as conseqüências teóricas e políticas desse entendimento, posto que
repõe, em termos não antagônicos, a presença de relações sociais atípicas, no
interior do capitalismo.

Um Debate Teórico e Político

O aparecimento, em escala crescente, de empreendimentos populares


baseados na livre associação, no trabalho cooperativo e na autogestão, é hoje
fato indiscutível em nossa paisagem social, ademais de ser um fenômeno
observado em muitos países, há pelo menos uma década (Laville, 1994).
Essas iniciativas econômicas representam uma opção ponderável para os
segmentos sociais de baixa renda, fortemente atingidos pelo quadro de
desocupação estrutural e pelo empobrecimento. Estudos a respeito, em
diferentes contextos nacionais, indicam que tais iniciativas, de tímida reação à
perda do trabalho e a condições extremas de subalternidade, estão
convertendo-se em um eficiente mecanismo gerador de trabalho e renda, por
vezes alcançando níveis de desempenho que as habilitam a permaneceram no
mercado, com razoáveis perspectivas de sobrevivência (Nyssens, 1996; Gaiger
et al., 1999).

Esse quadro promissor, além de carrear rapidamente o apoio de ativistas,


agências dotadas de programas sociais e órgãos públicos, suscitou o interesse
dos estudiosos para o problema da viabilidade desses empreendimentos a
longo prazo, bem como para a natureza e o significado contido nos seus traços
sociais peculiares, de socialização dos bens de produção e do trabalho.
Setores da esquerda, reconhecendo ali uma nova expressão dos ideais
históricos das lutas operárias e dos movimentos populares, passaram a
integrar a economia solidária em seus debates, em seus programas de

18
Doutor em Sociologia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Aplicadas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (e-mail: gaiger@helios.unisinos.br). Esse
trabalho é fruto de pesquisa em parceria com a Cáritas Brasileira – Regional RS, a Secretaria
Municipal de Produção, Indústria e Comércio, de Porto Alegre, e a Secretaria Estadual de
Desenvolvimento e Assuntos Internacionais, com apoio do CNPq e da FAPERGS.

18
mudança social e em sua visão estratégica de construção socialista19. Vendo-a
seja como um campo de trabalho institucional, seja um alvo de políticas
públicas de contenção da pobreza, seja ainda uma nova frente de lutas de
caráter estratégico, visões, conceitos e práticas cruzam-se intensamente,
interpelando-se e promovendo a economia solidária como uma alternativa
para... os excluídos, os trabalhadores, um modelo de desenvolvimento
comprometido com os interesses populares, etc.; uma alternativa, ao
aprofundamento das iniqüidades, às políticas de corte neoliberal, ... ao próprio
capitalismo.

A questão tornou-se objeto de intensa discussão, na qual se manejam com


freqüência teses e categorias da economia política marxista - leito de
navegação tradicional do pensamento da esquerda - sustentando
argumentações e respostas de natureza, sobretudo, ideológica e programática.
Nesse contexto, as tentativas de teorizar o tema, com os cuidados que a tarefa
requer, correm o risco de serem apreciadas diretamente por seu impacto
político, por seus efeitos de legitimação sobre as elaborações discursivas
politicamente em confronto, dotadas de elevado grau de finalismo, ou de
importantes ingredientes teleológicos, próprios das ideologias. O fato é
suscetível de ocorrer sobretudo com as formulações mais audaciosas, que
associam a economia solidária a um novo modo de produção, não-capitalista
(Tiriba, 1997; Singer, 2000; Verano, 2001), quer pela insuficiente explicitação
conceptual das mesmas, quer porque tendem a não serem vistas como
problematizações do tema, ou hipóteses revisáveis, mas sim como respostas
seguras, chancelando tomadas de posição e juízos definitivos.

Assim, convém ir devagar com o andor. Tomada como uma sentença


afirmativa, a tese em tela possui conseqüências amplas e profundas, pois
resolve de vez com a questão principal acerca do caráter alternativo da
economia solidária: o advento de um novo modo de produção, como buscarei
demonstrar, representa in limine a superação do modo de produção capitalista
e das formações sociais que lhe correspondem, a instauração de algum tipo de
sociedade pós-capitalista, cujas características tornar-se-iam historicamente
predominantes. Interpretações ligeiras dessa importante questão podem, em
verdade, manifestar uma pressa de encontrar respostas tranqüilizadoras, por
sua aparente eficácia política (à condição, simplesmente, que estejam à
esquerda das idéias dominantes e pretendam dar conta da totalidade histórica),
pressa de que parecem ressentir-se os grupos de mediação, desorientados
com a regressão da agenda social, a falência dos modelos de transição ao
socialismo e a carência de teorias credíveis que respaldem uma nova (ou
apenas retocada) estratégia de intervenção. Como assinala José de Souza
Martins, há anos instalou-se uma crise na intelectualidade de esquerda, por
sua dificuldade em produzir uma teoria da prática atual e real das classes
subalternas (1989: 135). O fato talvez revele um fenômeno cíclico, posto que
esse desencontro entre teoria e prática, a primeira estando em descompasso,
registrou-se em outros momentos da nossa história política (Souza, 2000).

19
Um debate a respeito está tendo lugar no Partido dos Trabalhadores. Ver, por exemplo,
Singer & Machado, 2000.

19
Naturalmente, inúmeros fatos avalizam uma visão politicamente otimista sobre
o papel da economia solidária. Não há dúvidas de que o concreto real,
manifesto em tais acontecimentos “é o verdadeiro ponto de partida (do
pensamento) e, em conseqüência, o ponto de partida também da intuição e da
representação” (Gorender, 1978: 39). Todavia, para ultrapassar esse ponto de
partida e aceder ao concreto pensado, que reproduz racionalmente o real, o
pensamento necessita de um trabalho de elaboração que transforma intuições
e representações – aqui, do senso comum militante – em conceitos. Entre os
acontecimentos e a teoria há uma lacuna a ser preenchida, não num salto, mas
percorrendo um caminho de ida e volta. Um meticuloso vai-e-vem, em que os
dados empíricos e as formulações abstratas se esclarecem e vêm adequar-se
mutuamente, tornando inteligível a realidade, sob forma de proposições, que
não são simples reedição da teoria, tampouco uma reprodução pura do real -
na primeira alternativa, estaríamos cristalizando a teoria e encerrando-nos em
grades interpretativas aprioristas e não questionadoras; na segunda, ocultando
involuntariamente nossos conceitos e premissas implícitas20.

A intenção desse trabalho é estabelecer esse movimento, a partir da teoria em


que se situa originalmente a categoria modo de produção. Passos nessa
direção foram dados em ocasiões anteriores, inicialmente com objetivo de
sugerir a adequação e o valor interpretativo da teoria de Marx, acerca da
produção e da reprodução das grandes formações históricas (Gaiger, 1998);
mais adiante, buscando evidências empíricas, analisadas com aquela teoria de
fundo, de modo a verificar o seu poder elucidativo e articulador das conclusões
alcançadas (Gaiger, 1999). A tarefa que proponho, agora, impõe um tratamento
sistemático das categorias e da teoria da transição em Marx, para seu
confronto com os resultados apurados em pesquisas e com suas respectivas
interpretações. Há um agudo senso de filigranas, uma riqueza pouco conhecida
na teoria da transição de Marx21, que a vulgarização nos meios intelectuais e
militantes tratou de eliminar, fixando-a em regras gerais supra-históricas,
desprovidas de qualquer capacidade heurística. O texto é uma tentativa de
explorar essa riqueza. Suas conclusões matizam e contradizem parcialmente a
tese do novo modo de produção, antes evocada; espero que sejam
apreendidas, também elas, em sua função teórica primordial, de ponto de
partida estimulante ao seguimento do nosso trabalho intelectual22.

As Grandes Categorias Econômicas de K. Marx

Não seria novidade dizer que modo de produção é a categoria mais


fundamental e englobante, cunhada por Marx, para expressar sinteticamente

20
“A realidade histórica – como toda realidade – existe puramente, independentemente de que
a conheçamos. Nisso consiste sua objetividade. Mas, desde que a queiramos conhecer, sua
existência perde a pureza e se torna referencial ao sujeito de conhecimento. Por isso, o “dado
puro” é uma ficção, uma ilogicidade.” (Gorender, 1978: 43).
21
Na conferência proferida no X Congresso Brasileiro de Sociologia (Fortaleza, 09/2001),
intitulada “Sociologia e sociedade; heranças e perspectivas”, Gabriel Cohn salientou que Marx
possui todos os ingredientes para uma reflexão organizada sobre o problema do tempo; do
tempo das transições, acrescentaria.
22
Essas reflexões foram estimuladas por pesquisas sucessivas desde 1993, divulgadas pela
Internet no endereço www.ecosol.org.br. Agradeço o apoio e a interlocução crítica de Ana
Mercedes Sarria, Marinês Besson, Alberi Petersen, Raquel Kirsch e Carmem Lúcia Paz.

20
as principais determinações que configuram as diferentes formações históricas.
Essas determinações encontram-se para Marx no modo como os indivíduos, de
uma dada sociedade, organizam-se no que tange à produção, à distribuição e
ao consumo dos bens materiais necessários à sua subsistência; mais
precisamente, na forma que assumem as relações sociais de produção, em
correspondência com um estado histórico de desenvolvimento das forças
produtivas.

O emprego do termo modo de produção, nos textos de Marx, todavia não é


unívoco. O fato ocasionou apreensões diferenciadas, tipologias
complementares (modos de produção secundários, periféricos, etc.) e tipos
incompletos, como o modo de produção simples, em que o trabalhador é o
proprietário dos meios de produção, os põe em movimento, individualmente ou
em diminutas unidades de produção, geralmente familiares, e negocia seu
produto em condições que fogem à sua lógica e domínio. Tomando por base a
exegese cuidadosa realizada por autores dedicados ao assunto, tais
entendimentos ficariam sem guarida, sendo por outro lado necessário
reconhecer, ao menos, um outro uso comum nos escritos de Marx, em que
modo de produção possui um caráter meramente descritivo, referindo-se a uma
certa forma concreta de produzir (artesanato, manufatura) ou, mais
amplamente, a um estágio geral de desenvolvimento tecnológico (grande
indústria, maquinismo).

A distinção, como veremos adiante, tem interesse. Segundo M. Godelier, em


seus estudos sobre assunto, nesse caso Marx está designando um (ou mais)
modo material de produção, isto é, “os elementos e as formas materiais dos
diversos processos de trabalho, pelos quais os membros de uma sociedade
agem sobre a natureza que os cerca para extrairem os meios materiais
necessários às suas necessidades, produzirem e reproduzirem as condições
materiais de sua existência social.” (1981: 169). Esses elementos materiais
compreendem as matérias-primas, os meios de trabalho utilizados, as
capacidades físicas e intelectuais requeridas, as operações e procedimentos,
bem como as combinações entre esses elementos, do que resultam variadas
formas de apropriação da natureza. Produzindo bens semelhantes, modos
materiais de produção podem repousar, ou não, sobre a mesma base técnica,
como se nota ao comparar o artesanato têxtil à indústria do vestuário. Visto em
seu sentido mais elementar, de introdução da linha de montagem e da esteira
rolante, o Fordismo representou um novo modo material de produção. O
exemplo serve para demonstrar que um modo material de produção não existe
jamais isolado dos arranjos sociais do processo de trabalho, as quais
corresponde um acionamento determinado das forças produtivas ao alcance
dos agentes econômicos. Vice-versa, a instauração plena de um modo de
produção exige engendrar previamente um novo modo material de produção,
que lhe seja próprio e apropriado, pois isso é o que lhe faculta dominar o
conjunto do processo de produção social e subverter as instituições que, contra
as suas necessidades de desenvolvimento, ainda sustentam a ordem social. A
alteração profunda do modo de apropriação da natureza é, ao mesmo tempo,
requisito e vetor de toda nova formação social (Godelier, 1981: 177-8).

21
O conceito de modo de produção diz respeito à totalidade histórica, dada pelo
conjunto de relações que vinculam os indivíduos e grupos ao processo de
produção, no sentido amplo de suas condições materiais de existência,
compreendendo igualmente a circulação e troca dos bens materiais (Godelier,
1981: 174-5). Representa a forma estruturante de cada sociedade, pela qual
são providas as suas necessidades materiais, em um dado estágio do seu
desenvolvimento. Em seu cerne, como elemento distintivo, comporta um
mecanismo social específico de criação, controle e apropriação do excedente
social gerado pelo trabalho, o que lhe atribui uma lógica e traços próprios,
imanentes à sua reprodução e ao padrão dinâmico de sua evolução histórica
(Shanin, 1980: 61).

Embora o modo de produção constitua “uma totalidade orgânica e um processo


reiterado de produção, distribuição, circulação e consumo de bens materiais,
todas elas fases distintas e, ao mesmo tempo, interpenetradas no fluir de um
processo único... é à produção que pertencem a determinação fundamental e o
ponto recorrente.” (Gorender, 1978: 23). A esse primado da produção sobre as
demais esferas da vida econômica23, segue-se a hipótese de investigação,
metodologicamente materialista, anunciada no Prefácio (Marx: 1974: 22-3),
postulando uma hierarquia invariante entre as funções sociais, na qual a função
de produção da vida material detém um poder explicativo precedente sobre as
demais, ou seja, o poder de explicar, em última instância, a organização e a
dinâmica geral da sociedade. No âmago da base material desta, as
contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção24,
ambas constituintes do modo de produção, fazem mover a sociedade e
terminam por alterar a sua forma.

O modo de produção capitalista nasce da reunião de quatro características da


vida econômica, até então separadas: a) um regime de produção de
mercadorias, de produtos que não visam senão ao mercado; b) a separação
entre os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores, desprovidos
e objetivamente apartados daqueles meios; c) a conversão da força-de-
trabalho igualmente em mercadoria, sob forma de trabalho assalariado; d) a
extração da mais-valia, sobre o trabalho assim cedido ao detentor dos meios
de produção, como meio para a ampliação incessante do valor investido na
produção; a mais-valia é a finalidade direta e o móvel determinante da
produção, cabendo à circulação garantir a realização do lucro e a reposição
ampliada do capital. O capitalismo, portanto, está fundado numa relação social,
entre indivíduos desigualmente posicionados face aos meios de produção e às
condições de posta em valor de sua capacidade de trabalho. Uma relação
classista, que se efetua, “através de uma colaboração ilusória, mas não menos
real, das três classes básicas, os assalariados, os capitalistas e os proprietários

23
“As chamadas relações de distribuição correspondem e devem sua origem a formas
especificamente sociais , historicamente determinadas, do processo de produção e das
relações que os homens estabelecem entre si no processo de reprodução da vida. O caráter
histórico dessas relações de distribuição é o caráter histórico das relações de produção das
quais expressam apenas uma face.” (Marx, 1976: 1011).
24
As relações sociais de produção, por sua vez, são definidas pelo tipo de acesso e controle
dos indivíduos sobre os meios de produção, o papel que desempenham no processo de
trabalho e os benefícios por eles auferidos na distribuição do produto social.

22
fundiários, na qualidade de donos dos fatores responsáveis pelos custos da
produção de mercadorias.” (Giannotti, 1976: 164).

No curso do seu desenvolvimento, o capitalismo provocou uma contínua


transformação da base técnica em que se assenta, mediante enorme impulsão
das forças produtivas. Como recorda Singer, “As revoluções industriais
tornaram-se economicamente viáveis porque a concentração do capital
possibilitou o emprego de vastas somas na atividade inventiva e na fabricação
de novos meios de produção e distribuição.” (2000: 12). Sob esse ângulo, o
Fordismo pode ser considerado não somente um modo material de produção,
superior para as finalidades do capitalismo, mas a própria base, ao longo do
último século, do capitalismo avançado, dirigido à produção em massa e
tendendo a operar em escala mundial.

Criando sua base própria, renovando-a continuamente segundo suas


necessidades, o capitalismo realiza o que mais importa num modo de
produção: instaura o processo que vem a repor a sua própria realidade, a
reproduzi-la historicamente. Por isso mesmo, formas econômicas desprovidas
de uma estrutura político-econômica relativamente auto-suficiente, capaz de
reconstituir continuamente as relações de expropriação e acumulação de
excedentes próprias daquelas formas, não remeteriam ao modo de produção
como unidade de análise, sob pena de retirar dessa categoria “seus insights
analíticos mais importantes.” (Shanin, 1980: 65). É o caso da economia
camponesa, ou da produção simples de mercadoria, a menos que sejam vistas
como formas incompletas, remanescentes de modos de produção outrora
dominantes, como o tributário. De todo o modo, como assinala Giannotti:

“É somente para evitar que se coloque num mesmo nível de realidade o modo de
produção capitalista e os modos de produção subsidiários, que se torna então
conveniente reservar a categoria de modo de produção para designar o
movimento objetivo de reposição que integra, num mesmo processo autônomo, a
produção, a distribuição, a troca e o consumo, deixando outros nomes para as
formas produtivas subsidiárias, que o modo de produção capitalista exige no seu
processo de efetivação.” (1976: 167).

No presente caso, como é sabido, tais formas passam ordinariamente a


funcionar como momentos do ciclo de acumulação do capital, muito embora
possam dispor de margens de autonomia apreciáveis, ao ocuparem os
interstícios do processo capitalista. Desde seus primórdios, o capitalismo valeu-
se de formas de organização do trabalho que escapam às estritas condições
de assalariamento e de extração de mais-valia. No séc. XIX, por exemplo, a
substituição do sistema doméstico pelo sistema fabril foi longa e percorreu
diferentes caminhos, havendo o maquinismo, em certos casos, surtido um
efeito multiplicador do trabalho a domicílio, já em plena era industrial (Fohlen,
1974). Os tempos atuais, de acumulação flexível, possuem como
característica, justamente, o emprego de formas variadas de organização do
trabalho, em que as relações de produção adquirem uma natureza aparente
diversa, sendo todavia partes de uma mesma estratégia de acumulação
(Harvey, 1993), livre ademais da obrigação de tolerar a resistência de coletivos
de trabalho estáveis.

23
Por certo, inúmeras formas secundárias podem surgir, expandir-se e
desaparecer durante a vigência de um modo de produção, como bem
demonstra, na história, a vitalidade das formas não dominantes de vida
material. Sempre existiram margens de liberdade entre esses níveis de
organização das práticas sociais e econômicas, sendo a economia capitalista,
em verdade, pródiga em exemplos. A questão está em saber como o
capitalismo atua ao fundo da cena, como tais formas existem e perduram,
submetendo-se ou reduzindo sua vulnerabilidade diante do modo de produção.
Ou ainda, como tais formas, a partir de seu lugar subalterno ou periférico,
podem encetar movimentos de alargamento do seu próprio campo e da sua
lógica interna, subtraindo-se, em alguma medida, ao controle do capital.

Para isso, é necessário saber se tais formas são típicas ou atípicas para o
modo de produção vigente. A questão conduz a uma terceira categoria,
implícita nos textos de Marx e decorrente de sua preocupação em distinguir a
aparência da estrutura interna de toda relação social. A estrutura nuclear de um
modo de produção, seu caráter distintivo, repousa no conjunto de propriedades
de que se reveste o processo de apropriação da natureza, nas relações mútuas
que nele se engendram entre os indivíduos, conforme sua posição diante das
condições e dos resultados dos diversos processos de trabalho e segundo as
funções que desempenham. Ou seja, tal estrutura está determinada pelas
relações sociais de produção que lhe correspondem, por uma forma social de
produção25, mediante a qual é extorquido o sobre-trabalho do produtor direto.

Cada modo de produção é caracterizado por uma forma social de produção


específica. Nas sociedades tribais primitivas, pelas relações de parentesco,
que ordenavam a apropriação do território, chave para garantir os meios de
subsistência; no feudalismo, pela manumissão das obrigações servis, exercida
pelos senhores da terra sobre quem nela trabalhava; no capitalismo, pelas
relações assalariadas, entre os vendedores da força-de-trabalho – o
proletariado – e os detentores dos meios de produção – a burguesia. Mais do
que um contrato jurídico, o vínculo salarial é o mecanismo que permite a
apropriação do trabalho excedente no interior do processo produtivo, sob forma
de mais-valia, conduzindo subseqüentemente a um patamar superior desta, por
meio do incremento da produtividade do trabalho e do excedente extraído,
contra os quais ao trabalhador indefeso pouco resta fazer.

Por isso, o trabalho doméstico, integrado na Idade Média ao regime dominial


da economia agrícola e artesanal (Neers, 1965), mudou radicalmente de
sentido com o aparecimento do empresário burguês, cuja finalidade de ganhos
crescentes, nas relações com os trabalhadores que aos poucos foi
subordinando, redundou na proletarização destes e na sua destituição
progressiva do domínio objetivo e subjetivo de seu próprio trabalho. A
introdução dessa nova lógica teve variantes regressivas, como o sweating-
system26, empregado em cidades como Nova Yorque e Londres, ainda em

25
Godelier chama a atenção para o fato de que, em Marx, o conceito de forma não é descritivo
ou pouco discriminante, mas contém o que hoje se entende por estrutura, ou seja, o que é
essencial numa relação, o que encadeia os elementos que a compõem e garante sua força e
singularidade histórica (1981: 173).
26
Literalmente, sistema de suor ou transpiração.

24
meados do séc. XIX (Fohlen, 1974: 47). Mais tarde, a evolução do maquinismo
culmina com o regime fordista e taylorista, estabelecendo-se o limiar para a
plena exploração do trabalho assalariado, sob forma de mais-valia relativa. As
estratégias adotadas pelo atual capitalismo avançado, de segmentação do
processo produtivo, emprego de operários polivalentes e adoção de contratos
de trabalho precários, nada mais são do que variações jurídico-formais da
relação assalariada, com fim na continuidade da acumulação27.

A chamada economia camponesa é um caso ilustrativo das formas sociais de


produção capazes de adaptarem-se a modos de produção das quais são
atípicas. Seu traço peculiar, comum às suas diversas aparições históricas, é o
fato de as relações de produção repousarem na unidade familiar (nuclear ou
estendida) e na posse parcelar da terra. A família define a existência e a
racionalidade do campesinato, rege sua organização interna e suas interações
com o meio circundante. O cálculo econômico, a aprendizagem ocupacional, os
laços de parentesco, os princípios de respeito e obediência, as regras de
sucessão, eis alguns sinais impressos pela dinâmica familiar sobre o cotidiano
camponês. O fato de que esse cotidiano transcende a materialidade econômica
e compreende a vida social e cultural, inflexionada a partir da matriz familiar,
nos previne contra uma interpretação economicista da teoria de Marx, pois se
trata de compreender, a partir da lógica social que preside a organização da
vida material, as diferentes formas da existência humana.

O campesinato reproduz-se a si mesmo, mas não à sociedade inteira. Além


disso, os sistemas externos de exploração do excedente, com os quais se
relaciona, são via de regra mais significativos do que os mecanismos próprios
ao seu modo de vida. Não é possível compreender o funcionamento das
unidades de produção camponesa sem o seu contexto societário. Nessas
totalidades históricas, eles aparecem com as suas singularidades, por vezes
inerradicáveis, ao mesmo tempo que adquirem feições introjetadas desde a
estrutura social mais ampla. Eles transitam entre modos de produção; para isso
adaptam-se, acomodam-se e, também, rebelam-se.

Uma Forma Social Solidária de Produção?

O fenômeno da economia solidária guarda semelhanças com a economia


camponesa. Em primeiro lugar, porque as relações sociais de produção
desenvolvidas nos empreendimentos econômicos solidários são distintas da
forma assalariada. Muito embora, também aqui, os formatos jurídicos e os
graus de inovação no conteúdo das relações sejam variáveis e sujeitos à
reversão, as práticas de autogestão e cooperação dão a esses
empreendimentos uma natureza singular, pois modificam o princípio e a
finalidade da extração do trabalho excedente. Assim, aquelas práticas: a)
funcionam com base na propriedade social dos meios de produção, vedando a
apropriação individual desses meios ou sua alienação particular; b) o controle
do empreendimento e o poder de decisão pertencem à sociedade de
trabalhadores, em regime de paridade de direitos; c) a gestão do

27
“Em termos mais concretos, o grau de fordismo e modernismo, ou de flexibilidade ou pós-
modernismo, varia de época para época e de lugar para lugar, a depender de qual
configuração é lucrativa e qual não é.” (Harvey, 1993: 308).

25
empreendimento está presa à comunidade de trabalho, que organiza o
processo produtivo, opera as estratégias econômicas e dispõe sobre o destino
do excedente produzido (Verano, 2001). Em suma, há uma unidade entre a
posse e o uso dos meios de produção.

De outra parte, o solidarismo mostra-se capaz de converter-se no elemento


básico de uma nova racionalidade econômica, apta a sustentar os
empreendimentos através de resultados materiais efetivos e de ganhos extra-
econômicos. Pesquisas empíricas vêm apontando que a cooperação na gestão
e no trabalho, no lugar de contrapor-se aos imperativos de eficiência, atua
como vetor de racionalização do processo produtivo, com efeitos tangíveis e
vantagens reais, comparativamente ao trabalho individual e à cooperação,
entre os assalariados, induzida pela empresa capitalista (Gaiger et al., 1999;
Peixoto, 2000). O trabalho consorciado age em favor dos próprios produtores e
confere à noção de eficiência uma conotação bem mais ampla, referida
igualmente à qualidade de vida dos trabalhadores e à satisfação de objetivos
culturais e ético-morais. Esse espírito distingue-se da racionalidade capitalista
– que não é solidária e tampouco inclusiva – e da solidariedade popular
comunitária – desprovida dos instrumentos adequados a um desempenho
sócio-econômico que não seja circunscrito e marginal.

A densidade do vínculo solidário certamente é variável, por vezes restringindo-


se a meros dispositivos funcionais para economias de base individual ou
familiar, por vezes alcançando a socialização plena dos meios de produção e
sobrepondo, aos interesses de cada um, a sorte de um empreendimento
associativo plenamente autogestionário. O êxito desse último, quando se
verifica, decorre decisivamente dos efeitos positivos do seu caráter cooperativo
(Gaiger, 1999). Ademais, o trabalho exerce um papel nitidamente central, por
ser fator preponderante, senão exclusivo, em favor do empreendimento. Nessa
condição, determina uma racionalidade em que a proteção àqueles que detêm
a capacidade de trabalho torna-se vital28. Ao propiciar uma experiência efetiva
de dignidade e eqüidade, o labor produtivo é enriquecido do ponto de vista
cognitivo e humano. O maior interesse e motivação dos associados, o
emprego, mutuamente acordado, da maior capacidade de trabalho disponível,
a divisão dos benefícios segundo o aporte em trabalho, são fatos relacionados
com a cooperação, no sentido de acionar o favorecer um maior rendimento do
trabalho associado.

À medida que essas características acentuam-se, provocam uma reversão do


processo ocorrido nos primórdios do capitalismo, quando o trabalhador foi
separado dos objetos por ele produzidos e converteu-se em propriedade de
outrem, em mercadoria adquirida e destinada ao uso do capital. A autogestão e
a cooperação são acompanhadas por uma reconciliação entre o trabalhador e
as forças produtivas que ele detém e utiliza. Não sendo mais um elemento
descartável e não estando mais separado do produto do seu trabalho, agora
sob seu domínio, o trabalhador recupera as condições necessárias, mesmo se

28
O fenômeno foi observado há mais tempo, antes da atual crise do mercado de trabalho
provocada pela reestruturação produtiva do capitalismo: “O nível de demissões nas empresas
autogeridas é praticamente invariante a curto prazo e certamente menos variável que nas
empresas capitalistas. “(Vanek, 1977: 266, apud Coutrot, 1999: 109).

26
não suficientes, para uma experiência integral de vida laboral e ascende a um
novo patamar de satisfação, de atendimento a aspirações não apenas
materiais ou monetárias. Por conseguinte, as relações de produção dos
empreendimentos solidários não são apenas atípicas para o modo de produção
capitalista, mas contrárias à forma social de produção assalariada: nesta, o
capital emprega o trabalho; naqueles, os trabalhadores empregam o capital.

A crítica marxista do capitalismo está centrada na análise das relações de


produção. Por conseguinte, a defesa de uma alternativa econômica deve
sustentar-se em evidências de que, no modelo alternativo proposto, tais
relações adquirem outro caráter e possuem chances reais de vigência histórica,
ou seja, refletem interesses subjetivos dos trabalhadores e respondem a
condições objetivas de viabilidade e perduração. A exigência não se deve,
então, a um gosto ou viés economicista, mas a uma necessidade metodológica
prioritária (Gorender, 1978: 25)29.

O resultado desse tratamento leva a entender os empreendimentos solidários


como expressão de uma forma social de produção específica, contraposta à
forma típica do capitalismo e, no entanto, com ela devendo conviver, para
subsistir em formações históricas ditadas pelo modo de produção capitalista.
No dias atuais, as inovações principais que a nova forma traz e mostra-se
capaz de reproduzir concentram-se no âmbito das relações internas, dos
vínculos mútuos que definem o processo social imediato de trabalho e de
produção dos empreendimentos solidários. A economia solidária não reproduz
em seu interior as relações capitalistas, no melhor dos casos as substitui por
outras, mas tampouco elimina ou ameaça a reprodução da forma tipicamente
capitalista, ao menos no horizonte por ora apreensível pelo conhecimento.
Iniciativas de grande interesse estão aparecendo, como as redes e clubes de
troca, as cooperativas de crédito e outras, alternativamente à lógica mercantil
do dinheiro e das trocas em geral, porém de modo ainda experimental,
suplementar e subsidiário em muitos casos. Os argumentos de Singer, em
defesa da profundidade da mudança contida na economia solidária,
considerando a necessidade do aprendizado de um novo modelo econômico
pelos trabalhadores, a melhora significativa nas condições de vida, advinda do
trabalho numa empresa autogestionária, e o fortalecimento que tais fatos
representam para a luta geral dos trabalhadores contra a exploração capitalista
(2000: 18), em verdade dimensionam a transformação social a longo prazo, o
que retira de perspectiva, por um outro caminho, entender a alternativa
solidária, em si mesma, como a posta em marcha de um novo modo de
produção, no sentido abrangente e profundo que o termo contém.

É esclarecedor observar o que se passa com um exemplo importante de


autogestão e cooperação, praticada nos coletivos de produção que se
multiplicam nos assentamentos rurais, sob forma de cooperativas
agropecuárias e outros formatos associativos. A socialização da terra e do

29
Convém advertir, por outro lado, que o polimorfismo característico das diversas iniciativas
populares, incluídas no rol da economia solidária, não impede que se opere uma redução desta
morfologia a seus traços essenciais, como se faz aqui, para identificar a estrutura interna de
suas relações constituintes, posto que nessas reside a sua lógica de desenvolvimento, mesmo
em estado de potência.

27
trabalho, quando em graus avançados, rompe com a lógica e a tradição da
pequena produção familiar e introduz vínculos de outra natureza entre os
“trabalhadores rurais” (agora, assim chamados). Modifica-se, portanto, a forma
social de produção. Contudo, na grande maioria dos casos, a base técnica,
derivada do estado das forças produtivas, permanece intocada ou
superficialmente alterada, ao menos por um certo tempo; o modo material de
produção não difere daquele empregado antes pela economia familiar,
sobretudo quando essa já incorporara uma parcela razoável das inovações
tecnológicas promovidas pelo capitalismo. Do mesmo modo, é com os agentes
deste que os assentados transacionam, é diante de suas instituições que
devem reafirmar os seus interesses. Da porteira para fora, dizem eles, o que
conta é a lei dos capitalistas.

Poderíamos igualmente pensar nas empresas autogestionárias presas a


cadeias produtivas ou a contratos de terceirização, para concluir que esse
déficit de autonomia atesta o caráter incompleto da emancipação do trabalho
solidário diante do predomínio do capital, seja na esfera da circulação e
distribuição, seja na renovação contínua das forças produtivas. Como assimilar
a base técnica da economia moderna, especialmente naqueles setores de
maior densidade tecnológica e complexidade organizacional, sem fazer
“compra casada” com o conteúdo social, introduzido pela lógica produtiva
capitalista nos respectivos processos de trabalho? Não obstante, como dizia
Marx, é no seio da velha sociedade que se geram as novas condições
materiais de existência. Não é necessário que a mesma esteja exaurida para
dar curso à dialética entre as forças produtivas e as relações de produção.
Pode ocorrer, ainda, que formas essencialmente não capitalistas sejam
representadas como se o fossem, pelo efeito de dominação ideológica do
modo de produção dominante30. Donde resta a questão de descobrir as
possibilidades, latentes ou encobertas, para que esses novos agenciamentos
do processo de trabalho e dos fatores produtivos, inseminados por novas
relações entre os trabalhadores, encontrem caminhos propulsores, rumo a uma
função ativa nos próximos ciclos históricos.

A Temporalidade Longa das Transições

Nos termos da teoria proposta, a transição significa uma passagem, de uma


sociedade estruturada sobre um modo de produção determinado, incapaz de
se reproduzir, a uma outra sociedade, definida por outro modo de produção.
Não se resume, portanto, a mudanças momentâneas ou setoriais, mesmo as
de caráter evolutivo, cujo efeito ordinário é um novo acomodamento à ordem
vigente, por meio da subordinação de lógicas sociais específicas à lógica geral
dominante. Apenas em circunstâncias especiais, tais mudanças podem criar
gradualmente as condições de superação daquela ordem, na medida em que
sua resultante global seja o incremento dos óbices, internos ou externos, à
reprodução do sistema econômico que sustenta aquela ordem, combinado ao
aparecimento de bases substitutivas, geradoras de uma nova formação social.

30
A começar pelo fato trivial de que todo agente econômico, para angariar algum
reconhecimento, é forçado a apresentar-se como empresário de um ramo qualquer, seja-o ou
não.

28
Uma conseqüência imediata reside em que a transição ancora-se em
processos de longa duração e, como tal, constitui um momento incomum, de
excepcional importância na vida das sociedades, uma virada histórica em que
se condensa e manifesta intensamente o movimento das coletividades
humanas (Godelier, 1981: 162). Ela requer deficiências estruturais críticas,
insolúveis no quadro do sistema existente, aliada a uma nova reunião de
elementos, formando um todo coerente, capaz de se reproduzir e de impor a
sua lógica reprodutiva ao sistema social. Enquanto isso não estiver
demonstrado, não há razão em defender a hipótese de que estamos nessa
perspectiva, ou nesse quadro31. Numa linguagem lapidar, não basta
desejarmos ter a sorte de sermos protagonistas ou testemunhas oculares
desse grande momento, tampouco repetirmos vaticínios pessimistas ou
catastróficos sobre a ordem presente, esperando com isso apressar a sua
ruína. Importa saber se, no horizonte, está selada a derrocada do capitalismo,
ceifado que estaria por forças endógenas autodestrutivas, ou exposto a
choques exteriores, com suficiente capacidade de abalo e substituição.

De outro lado, considerando o extraordinário avanço das forças produtivas já


alcançado e a bagagem de conhecimentos sobre a história e a dinâmica social
com que contamos hoje, é plausível admitir que a passagem a um modo de
produção pós-capitalista resulte de uma ação deliberada, que provoque a
dissolução da ordem vigente, pela introdução voluntária de novas relações
sociais de produção. A presença destas induziria uma reorientação das
energias humanas disponíveis na sociedade, redirecionando o
desenvolvimento das forças produtivas, de modo a corresponderem àquelas
relações e a estabelecer-se, efetivamente, um novo modo de produção
(Houtart, 1981). O risco, teórico e prático, está em supervalorizar o peso da
vontade política, a ponto de recair numa visão voluntarista, como aliás se
verificou, em boa medida, nas malogradas tentativas de construção do
socialismo no séc. XX. Vale a respeito recordar o critério proposto por Morin &
Kern (1995), ao apontarem a necessidade de identificarmos, a cada momento
histórico, as coerções intransponíveis, que descartam certas possibilidades,
dos fatores cujo efeito coagente depende do protagonismo dos atores sociais.

A transição estudada por Marx, do feudalismo ao capitalismo, exigiu uma


análise acurada sobre o aparecimento das condições históricas que deram
pleno curso à lógica do capital – na fase da sua “acumulação primitiva”. Tais
condições, por sucederam à crise do feudalismo, a explicam parcialmente, mas
não foram sua causa. Quanto a isto, é útil lembrar a controvérsia sobre a
preponderância dos fatores internos ou externos ao modo de produção feudal,
fatores que minaram as suas bases e o deixaram vulnerável a processos
subseqüentes de dissolução. Para M. Dobb (1987), foi a insuficiência do
feudalismo como sistema de produção, em contraste com as necessidades
crescentes de renda da nobreza, o que motivou em primeiro lugar a crise do
sistema feudal; razões intrínsecas teriam provocado a disfuncionalidade deste.
Para P. Sweezy (1977), o feudalismo caiu principalmente devido ao

31
A insistência quase compulsiva em colocar o debate nesses termos, perceptível nos meios
intelectuais de esquerda supostamente incumbidos de esclarecer as consciências, apenas
prejudica a compreensão das reais dimensões do problema e o coloca numa nebulosa, em que
os argumentos valem por sua afinidade com ânimos pessoais e preferências ideológicas.

29
desenvolvimento do comércio e da vida urbana; segundo ele, o crescimento de
uma economia de trocas não impõe o fim de qualquer sistema servil, mas isso
aconteceu no caso particular do feudalismo medieval, devido, entre outros, à
revogação paulatina de alguns atributos das obrigações servis, por iniciativa do
próprio estamento senhorial. Ambos autores reconhecem o concurso de todos
esses fatores, restando em questão o seu peso específico32. Da sua conjunção,
decorreu o lento enfraquecimento do sistema feudal, o que deixou livre curso
para o florescimento de novas práticas econômicas, cuja expansão as levou a
choques com os limites da ordem instituída, a entrarem em contradição com
ela e, por fim, a suplantá-la. O epílogo, patrocinado pelas revoluções
burguesas, selou a destruição daquele ordenamento, cuja força inercial,
todavia, se fez sentir décadas a dentro do séc. XIX.

A história traz algumas lições. Primeiramente, a forma capitalista de produção,


durante sua gestação, foi mostrando-se historicamente superior, por ser
propícia à e beneficiada pela expansão da atividade mercantil, ensejada de
modo irreversível com a crise do feudalismo. Desse ponto de vista, colocado
nos termos da transição pós-capitalista, não basta identificar as insuficiências
do capitalismo, sua irracionalidade, as necessidades sociais prementes que
não satisfaz, etc. É necessário apontar uma nova lógica de desenvolvimento,
impulsionada sob o capitalismo – ainda que não por ele - que seria melhor
correspondida por relações sociais de um novo tipo, no caso, as baseadas no
labor associado dos trabalhadores. Cabe identificar as propriedades daquela
nova lógica, caracterizar a sua força e sua capacidade de expandir-se para a
toda a sociedade, alcançar paridade com a forma social de produção capitalista
ou mesmo fazê-la recuar. Assim sendo, esta nova forma social estaria mais
apta a impulsionar o desenvolvimento das (de outras) forças produtivas,
renovando o modo material de produção e gerando as bases para a
supremacia de um novo sistema. Esse desafio intelectual nem sempre pode
encontrar, em sua época, as evidências de que necessita. Não obstante, como
veremos, há esforços parcialmente bem sucedidos e razões para tanto.

Uma segunda lição consiste na necessidade de deixar patente como as


contradições inerentes às relações capitalistas as tornam inaptas para
corresponderem àquela nova lógica, vindo então a dissolverem-se, por sua
incapacidade de reprodução. Contradições não faltam ao capitalismo, mas isso
tampouco significa que esteja em colapso, ou que haja fatores que impeçam
sua entrada em uma crise agônica, reiterativa (Kurz, 1992), incapaz de dar
lugar, por um largo tempo, para outras formas promissoras, livres daquelas
contradições.

Em situações históricas afastadas de momentos culminantes, não é tarefa fácil


discernir os prenúncios de contradições fatais, insuperáveis sem uma
recomposição profunda da ordem social. Em todo o caso, nos meandros dos
processos de maturação do novo modo de produção capitalista, Marx captou
algumas sutilezas, de elevado interesse heurístico. Suas constatações dão
conta de diferentes articulações entre as formas econômicas singulares e a

32
Sobre esse debate, consultar também Hilton et al., 1977.

30
totalidade social, segundo os estágios e modos de subsunção33 que se
instauram entre elas.

Assim, num primeiro momento, a forma de produção capitalista nascente,


introduzida com o recrutamento e o subseqüente despojamento dos mesmos
trabalhadores das oficinas artesanais domésticas, empregou o modo material
de produção então existente, com isso havendo iniciado a subordinação do
processo de trabalho. Alterou-se a forma, mas nada mudou nas forças
produtivas, materiais e intelectuais, e no processo de transformação material.
Essa apropriação do trabalho pelo capital, nas condições técnicas herdadas de
formas sociais anteriores, configurou uma situação de subunção formal, não
restando então ao capital, para incremento da captação do trabalho excedente,
senão recorrer ao alongamento da jornada de trabalho, ou a intensificar o seu
ritmo físico, extraindo assim a mais-valia absoluta. A base técnica inicialmente
subsumida pela nova forma capitalista não foi um produto do seu próprio
desenvolvimento, mas uma base temporária para o mesmo.

A seguir, o imperativo da acumulação capitalista estimulou uma, a princípio


lenta, renovação da base material, mediante aprimoramento da manufatura,
maior divisão do trabalho e uso de novas ferramentas manuais. O sucesso das
primeiras máquinas abriu a temporada de invenções sucessivas, precipitando a
Revolução Industrial. Com o maquinismo e a grande indústria, o capitalismo
finalmente passou a contar com sua própria base, com um modo material
adequado, que seguiu sendo extraordinariamente impulsionado. As leis do
valor capitalista realizam-se doravante em plenitude. As forças produtivas
pertencem inteiramente ao capital, a extração do excedente se vale da mais-
valia relativa, o trabalho encontra-se numa condição de subunção real,
sobreposta aos mecanismos de subordinação anteriores, que persistem como
expressão da forma geral de produção capitalista e são reativados sempre que
o aumento do excedente, pelo caminho da produtividade, revela-se ineficaz ou
insuficiente (Godelier, 1981). Assim, a nova forma social de produção é quem
deu o impulso definitivo à transformação da base material. Essas não se
modificaram em razão de alguma inexorabilidade histórica, mas em resposta a
uma nova lógica social, concretamente posta em marcha na sociedade.
Resultou então uma correspondência, ensejando o domínio da forma capitalista
sobre outras formas de vida econômica precedentes, e a plena maturação do
modo de produção de mercadorias.

À medida que avança, o capitalismo dissolve, submete ou mantém reclusas


outras formas sociais de produção. Para essas, às vezes, a única saída é
adotar a base material moderna, oferecida como mercadoria, e curvar-se ao
capital comercial e financeiro, do que temos um exemplo cabal nos pequenos
produtores rurais integrados à agroindústria. Nesse caso, a forma de produção
familiar se reproduz sobre uma base nova, que ela não consegue desenvolver
por si própria, sendo então por essa base subsumida, ao contrário do

33
O termo subsunção (de subsumir) é de natureza teórica abstrata: refere-se ao movimento
contraditório de recobrimento, pelo qual um conjunto de relações sociais (uma forma social) é
incluída e redefinida no interior de outro conjunto, conforme a lógica que preside esse último.
Os termos submissão e subordinação assinalam mecanismos concretos que integram o
processo de subsunção.

31
acontecido nos primórdios do capitalismo. Trata-se de uma subunção formal
inversa, que deixa as formas sociais atípicas em situação de instabilidade, mas
não as descredencia de todo a sobreviverem no interior do modo de produção
capitalista.

Dessa reconstituição histórica, vale sublinhar dois fatos: a) a nova forma social
de produção capitalista, originalmente, aproveitou o modo material de produção
já existente; b) uma vez que seu desempenho mostrou-se superior, diante da
demanda criada pela expansão da economia mercantil, as relações de
produção capitalistas, então emergentes, provocaram um novo
desenvolvimento da base material, havendo sido elas, por conseguinte, a
condição necessária, embora não suficiente, dos novos avanços tecnológicos.
Em futuras transições, os fatos obviamente não precisam ocorrer nessa ordem.
Importa, no entanto, registrar o seu caráter dialético, em que forças ainda por
vir insinuam-se como episódios a seu tempo laterais e pouco significantes,
através de quase imperceptíveis mutações, sem virem, senão ao cabo de um
longo período histórico, a suprimir as estruturas de vida social às quais
tenderão a sobrepor-se, em prazo mais curto, mas igualmente indeterminado.

Nota final de extrema importância nesse tópico, observando a transição sobre


outro ângulo: o conceito de forças produtivas compreende igualmente os
recursos e faculdades intelectuais, o estado geral de conhecimento, sua
difusão na população, a adoção e manuseio das técnicas, a capacidade de
organização do processo produtivo, etc. É justo falar de uma transição cultural,
significando descompasso e novo acomodamento entre infra e superestrutura
(Houtart, 1981), ou entre possibilidades objetivas e capacidades subjetivas de
utilizá-las. A transição, sob esse prisma, requer a socialização de novas
práticas, sua extensão ao conjunto da sociedade, ou a grupos e classes
sociais; práticas que correspondem a novos modelos de conduta, a novas
representações, legitimadas e instituintes (Houtart & Lemercinier, 1990).

Uma Economia do Trabalho em Perspectiva

Nas condições atuais, os empreendimentos cooperativos autogestionários


experimentam uma dupla subsunção à economia capitalista: de um lado, estão
sujeitos aos efeitos da lógica de acumulação e às regras de intercâmbio
impostas ao conjunto dos agentes econômicos, de conteúdo eminentemente
utilitário; de outro, como forma de responder à premissa de produtividade
competitiva, estão compelidos a adotar a base técnica do capitalismo, os
processos materiais de produção por ele introduzidos continuamente,
configurando-se com isso uma subsunção formal inversa, de uma base sobre
uma forma, similarmente ao caso da economia camponesa. Essas coerções,
naturalmente, cerceam a lógica econômica solidária, pois a obrigam a conviver
com tensionamentos e a conceder em seus princípios; se fossem adotadas
sem restrição, terminariam por descaracterizar o que há de específico no
solidarismo econômico.

Que exigências apresentam-se aos empreendimentos solidários, para que


mantenham os seus traços distintivos? Penso serem três: a) assumir a base
técnica herdada do capitalismo, dela retirando benefícios para a sua forma

32
social de produção própria ou, ainda, alcançando desenvolver, paulatinamente,
forças produtivas específicas e apropriadas à consolidação dessa última; b)
cotejar-se com os empreendimentos capitalistas, dando provas de
superioridade do trabalho associado perante as relações assalariadas, à
medida que impulsionam, em seu interior, uma dialética positiva entre relações
de produção e forças produtivas; c) resistir às pressões do ambiente
econômico, por meio de mecanismos de proteção e da externalização da sua
lógica cooperativa às relações de intercâmbio e de troca. Se isto vier a ocorrer,
estaremos presenciando uma experiência econômica genuinamente sob a ótica
do trabalho, fundada em relações nas quais as práticas de solidariedade e
reciprocidade não são meros dispositivos compensatórios, mas fatores
operantes no cerne da produção da vida material e social.

No atual ponto de partida, sejam quais forem os desdobramentos futuros,


importa ter em vista o critério fundamental da práxis: apenas uma nova prática
– aquela de uma nova inserção no mundo do trabalho e da economia – pode
gerar uma nova consciência e provocar, sucessivamente, novas mudanças na
prática. Esse é o requisito básico, posto nas experiências de economia
solidária atualmente em curso, que motiva a ir em busca das possibilidades de
cumprimento daquelas exigências. Vale frisar, uma vez mais, que o êxito em tal
cumprimento não significará que os empreendimentos solidários estejam em
vias de sobrepujar as empresas capitalistas, tornando-se disfuncionais ao
sistema econômico para, a seguir, colocar em risco o próprio capitalismo. O
papel possível da economia solidária, a ser inquirido, é o de dar a prova
palpável de que a autogestão não é inferior à gestão capitalista no
desenvolvimento das forças produtivas (Singer, 2000: 28), por dispor de
vantagens comparativas, decorrentes da sua forma social de produção
específica.

Passando em revista os trunfos de que objetivamente dispõem os


empreendimentos autogestionários, uma de suas características tangíveis é a
eliminação da parcela do excedente antes apropriada pelo estamento patronal
para fins privados, pois sua destinação, agora, fica ao arbítrio dos
trabalhadores, quer somando-se à remuneração do trabalho, quer sendo
reinvertida na empresa. A coexistência de proprietários abastados, empresas
insolventes e folhas de pagamento irrisórias, deixa de ter lugar. A supressão
das relações assalariadas e do antagonismo entre o capital e o trabalho a elas
intrínseco, desonera a empresa igualmente por diminuir custos com estruturas
de controle e supervisão, com estímulos pecuniários à fidelidade e eficiência
dos que ocupam funções no topo da hierarquia, com programas destinados a
conquistar a adesão dos trabalhadores aos objetivos da empresa; em suma,
com estratégias as mais diversas da empresa capitalista, fadadas a recompor
continuamente o espírito corporativo, sempre que situações críticas deixam a
nu as contradições de classe que inescapavelmente a atravessam.

Além do mais, a empresa capitalista, a partir de certos limites, apenas pode


flexibilizar os seus custos econômicos assumindo em contrapartida os custos

33
sociais decorrentes34. Por sua vez, nas cooperativas e empresas
autogestionárias, em que os ganhos são socializados de per se, o mesmo se
admite mais facilmente com as perdas. O incremento unilateral da jornada de
trabalho, ou sua redução e conseqüente abatimento das retiradas individuais,
como estratégias de ajuste às flutuações do mercado, uma vez aprovadas de
forma democrática e transparência, em boa lógica são a melhor garantia contra
o desemprego para os cooperados. De certo modo, a empresa associativa está
dotada de maleabilidade similar a dos autônomos e profissionais liberais, com a
faculdade adicional de diluir custos fixos, assumidos individualmente nos
demais casos, e de poder ampliar mais facilmente sua planta produtiva ou de
serviços (Sorbille, 2000: 131)35.

Aduzindo um terceiro argumento, sendo o zelo e a atitude de colaboração dos


trabalhadores, comprovadamente, indispensáveis a qualquer empresa e
geralmente mais eficazes do que as estratégias patronais de convencimento ou
coação (Coutrot, 1999), com maior razão há de verificar-se quando existe um
vínculo imediato entre a performance do empreendimento e os benefícios
individuais auferidos, ao lado de menor rotatividade da força-de-trabalho e da
partilha dos valores e objetivos da organização. O interesse dos trabalhadores
em garantir o sucesso do empreendimento estimula maior empenho com o
aprimoramento do processo produtivo, a eliminação de desperdícios e de
tempos ociosos, a qualidade do produto ou dos serviços, além de inibir o
absenteísmo e a negligência. Efeitos como esses, sublinhados pela literatura
especializada (Defourny, 1988; Carpi, 1997) e conferidos em estudos empíricos
(Gaiger, 1999), ao derivarem da natureza associada e cooperativa do trabalho
e das características participativas dos empreendimentos36, lhes conferem uma
racionalidade própria, virtualmente superior a das empresas capitalistas que
acionam os mesmos fatores materiais de produção.

Do ponto de vista dos fatores humanos, os fundamentos democráticos da


autogestão vêm precisamente ao encontro dos requisitos de envolvimento e
participação dos trabalhadores, preconizados pelos métodos de gestão
modernos. Células de produção, grupos de trabalho e postos multifuncionais, a
par outras técnicas de gerenciamento horizontal e responsabilização do
trabalhador, típicas das normas de gestão de qualidade em voga, acomodam-
se com naturalidade à estrutura participativa dos empreendimentos solidários.
Resta como problema a freqüente inexistência de um gerenciamento
profissional, dotado do cabedal específico de conhecimentos desse campo e,
sobretudo, apropriado metodologicamente a um contexto organizacional de

34
Manchete recente dos jornais, a tentativa frustrada da Wolkswagen, em São Paulo, de
demitir 3000 operários por conta da renovação tecnológica em curso na empresa, ilustra
cabalmente esse fato.
35
Sem dúvida esse é o motivo da proliferação de cooperativas entre profissionais
tradicionalmente vistos como independentes, tais como terapeutas, contabilistas, consultores e
outros.
36
Reconhecê-lo significa relativizar em boa medida a tese da ação racional individualmente
orientada, lembrando contudo que a adesão a uma comunidade de valores decorre igualmente
das garantias e vantagens materiais que a mesma proporciona, tanto quanto pode ser cultivada
a partir de uma colaboração durável motivada originalmente por razões utilitárias. De tal sorte,
contrariamente à maioria das teorias socialistas, a autogestão produtiva “não pressupõe uma
transformação radical da natureza humana, o ‘homem novo’.” (Coutrot, 1999: 68-9, 111).

34
autogestão. A esse propósito, vale recordar que administrar uma empresa é
função de competências adquiridas no lidar com problemas concretos, dadas
antes pela experiência prática socialmente compartilhada e subsidiariamente
informadas pelo saber científico; este, não necessita estar plenamente
sistematizado e revestido de autoridade hierárquica para ter vigência e ser
chamado a intervir, tanto mais se a experiência a ele referida encontra-se
favorecida pelo interesse mútuo e pelo aprendizado coletivo (Singer, 2000: 19-
22). A formação dos recursos humanos – seja escolar, técnico-profissional ou
geral, visando ao desenvolvimento de uma cultura autogestionária e ao
aperfeiçoamento permanente – é favorecida pelo compromisso de todos com a
empresa e pelo papel decisivo exercido pelo fator trabalho; valoriza-se mais o
“potencial de competência interna” (Peixoto, 2000: 55). Ora, educar
simultaneamente para a participação e para o labor produtivo equivale a formar
trabalhadores-gestores e a suplantar a divisão típica da empresa capitalista.
Desenham-se as bases de uma nova cultura profissional, dada pelo conjunto
de competências produtivas, pelo envolvimento mútuo com o futuro do
empreendimento e, conforme é próprio a todo métier (Coutrot, 1999: 73), por
uma deontologia referida a uma comunidade de pares.

Vista de modo mais amplo, a questão incide sobre a criação de novas forças
produtivas – nesse caso, intelectuais – impulsionada por uma nova forma social
de produção, a exemplo do ocorrido na aurora do capitalismo. Instaurada
socialmente aquela demanda, pela presença da nova forma, introduz-se o
processo inovador e criativo de desenvolvimento das faculdades humanas, cuja
soluções, por seu turno, são suscetíveis de retroalimentar a demanda, em
ciclos sucessivos. Além de o trabalho associado como tal equiparar-se a uma
força produtiva específica da maior importância, é factível nos
empreendimentos autogestionários que o avanço das capacidades subjetivas
tome o passo da renovação dos processos materiais de produção, forçando a
que esses venham a reconstituir-se progressivamente sobre outras bases.
Desta feita, então, a nova forma social de produção não estaria criando uma
nova base técnica em sentido estrito (inovações tecnológicas, instrumentos,
etc.), mas sim em vias de absorver soluções já disponíveis (inclusive as
chamadas tecnologias alternativas), convertendo-as à sua lógica própria.
Considerados os impasses de nossa atual marcha civilizacional, a supremacia
a ser alcançada no futuro por formas de produção superiores, diante dos
padrões ímpares de produtividade e eficiência do capitalismo, provavelmente
repouse em parâmetros de outra ordem, relacionados à racionalidade social e
à sustentabilidade.

Seja como for, a introdução de novas forças produtivas, em antítese às que


sustentam o modo material de produção predominante, é um processo
eminentemente social, sujeito a descontinuidades e a reveses, não um fruto
instantâneo da materialidade. Novos arranjos sociais lhe são imprescindíveis
para que ponha em xeque, por contraposição e substituição, as relações de
produção com ela incompatíveis, assim reafirmando, ao longo do tempo, a sua
forma social específica. Desdobrada em repetidos vais-e-vens, em capítulos de
desenlace incerto, a essa dialética os fatos levam a crer que estamos
presenciando.

35
Em seu cerne, coloca-se a possibilidade de reversão daquele processo vital
ocorrido nos primórdios do capitalismo, de separação entre o trabalhador, os
meios de trabalho e o seu produto, separação na qual se assentam, segundo
K. Marx, a alienação e a submissão ideológica do proletariado. As experiências
concretas de solidarismo econômico teriam a faculdade de arrancar os
trabalhadores de um contexto prático de reiteração da consciência alienada,
quer no agir, quer nos fins que elege. São reais as chances para que se
recupere e se reintegre às pessoas a riqueza dos conteúdos do trabalho e da
vida coletiva em geral, de modo que interajam por suas qualidades, não “na
pobreza e na homogeneidade das suas carências” (Razeto, 1997: 94). Disto
pode advir, na expressão de A. Gramsci, a tomada de consciência de sua
personalidade histórica.

Sob o prisma das relações que cultivam entre si e com os demais agentes
econômicos, as iniciativas solidárias vivem um momento de profusão, ao
mesmo tempo que de debilidade. A todo instante, surgem novas organizações
de crédito, troca e consumo solidário, além de notícias de avanços nas que já
existiam, gerando um ambiente de emulação pródigo em encontros e projetos:
cooperativas de crédito, bancos populares, moedas sociais, redes de troca, etc.
Entretanto, salvo poucas iniciativas de maior porte ou relativa maturidade,
esses mecanismos são experimentais: valem por seu significado intrínseco,
não pelo seu impacto. Para assegurar sua reprodução, os empreendimentos
solidários precisam lidar adaptativamente com as externalidades capitalistas.
As tentativas de romper o círculo, ao entrarem em contato, reforçam-se moral e
politicamente, mas carecem por hora de práticas efetivas de intercâmbio
econômico, tanto mais quando envolvem segmentos e atores sociais
diferentes37.

Não obstante, é possível sumariar elementos com razoável potencial para que
circuitos de economia solidária prosperem38. De um lado, o forte enraizamento
local da economia solidária favorece a que possa apoiar-se no que está à mão
- trabalho, saberes populares, energias morais, recursos políticos e
institucionais – realimentando sinergias e explorando matrizes econômico-
produtivas dotadas de alta racionalidade social. Ela contribui para “dinamizar o
enorme potencial de recursos humanos e materiais que jaz em repouso nas
‘esferas’ não-mercantis e mercantis da sociedade” (Franco, 1996: 12). Está
apta a inserir-se em um padrão de desenvolvimento sustentável, estação final
da lógica predatória da economia meramente concorrencial. Por outro lado,
contrariando a idéia de que o espaço econômico esteja tomado completamente
pelo capitalismo global, as empresas solidárias tendem a ocupar nichos de
mercado, parcialmente protegidos da grande concorrência, e a estabelecerem
práticas de troca favorecidas pelos laços de confiança conquistados junto aos
seus clientes. Tais relações de proximidade, cuja ausência onera
formidavelmente a grande empresa com estratégias de marketing, são na

37
O que não é um demérito, posto que inexiste provavelmente outra maneira de começar.
Mesmo no sul do país, região considerada solidariamente à frente, não se constata uma
integração sistêmica, mas sim a coexistência de experiências modelares, em linha de
convergência ou de desencontro, direcionadas a setores sociais distintos, em cuja órbita gravita
um certo número de atores e organizações (Gaiger, 2000b; 2001).
38
Para uma defesa, teórica e política, das redes solidárias, ver Mance, 2001.

36
verdade um patrimônio da economia popular, ou do andar de baixo da
civilização, como diria F. Braudel. Por fim, as experiências de intercooperação
de maior vulto, ao se expandirem e multiplicarem, vêm a revitalizar formas de
vida econômica diversas, igualmente atípicas diante do capitalismo, das quais
dependem frações importantes de trabalhadores. Elas estimulam e sustentam
expressões de uma economia do trabalho, atenuando sua vulnerabilidade às
imposições do capital.39

Vem de longe o debate sobre a eficiência das empresas autogeridas, em


confronto com aquelas de iniciativa privada. A força dos argumentos em prol da
superioridade das primeiras – dos quais evidenciamos, acima, apenas os
aspectos mais visíveis à luz de análises empíricas recentes – não permite
desconhecer que a sorte da economia solidária depende igualmente de um
novo sistema de regulação, capaz de ordenar dinamicamente as regras do jogo
econômico, de modo a generalizar as práticas de autogestão para o conjunto
da sociedade e viabilizar uma transposição de escala das iniciativas que
proliferam em pequena dimensão. Uma questão política, portanto, de escolha
entre sistemas econômicos alternativos, conforme se deseje fazer prevalecer
os interesses individuais ou coletivos. Um combate, ao mesmo tempo, contra
os efeitos negativos da economia de mercado e de sua extensão à vida
cotidiana, e em defesa das formas de vida econômica dotadas de outros
fundamentos.

∗ ∗ ∗

Uma dificuldade das teorizações politicamente motivadas é escapar de


formulações genéricas, habitualmente dotadas de alguma dose de
voluntarismo, o que as faz recaírem, sob aparência de ciência crítica, numa
filosofia da história marcada por apriorismos e teleologias. Fugindo às
armadilhas da predição, cabe à teoria, firmemente apoiada na análise histórica,
elucidar as condições para que determinados processos de mudança social
tenham lugar. A cada passo da análise, importa dar conta do escopo dos
processos históricos, distinguindo suas respectivas causações e
temporalidades. Em caso de desacordo, deve-se demonstrar, também
teoricamente, que tais requisitos são infundados ou já encontram-se atendidos.

O exercício a que nos livramos deixa estremecida a noção de que a economia


solidária constitui uma alternativa ao capitalismo, ao evidenciar a complexidade
dos fatores em jogo. De outra parte, não alimenta as teses mais reticentes, ao
concluir que os empreendimentos solidários estão aptos a credenciarem-se
como formas consistentes de vida econômica, sem forçosamente cingirem-se
por limites próprios ou por externalidades que os condenariam a um
solidarismo de casamata ou a serem um fenômeno sazonal, reativo às
flutuações da economia de mercado.

39
Vale a respeito ter em conta a CRESOL, a mais abrangente e comprovada experiência de
crédito a produtores rurais, operante nos três Estados do sul do país, por seu impacto positivo
sobre a pequena produção familiar (Cf. Singer & Souza, 2000). Sobre a importância do
desenvolvimento local e regional, ver Coraggio, 2001.

37
Entretanto, o rigor da análise torna insuficiente afirmar a força da solidariedade,
uma vez esteja introjetada como princípio do agir. Antes, cabe admitir que a
adesão dos trabalhadores às práticas de cooperação e reciprocidade não se
mantém porque os mesmos se vêem instados moralmente a fazê-lo, mas
primordialmente por verificarem, por eles próprios, que desse modo satisfazem
mais plenamente os seus interesses individuais, que obviamente não
necessitam ser apenas utilitários, embora em certa medida não possam deixar
de sê-lo. Reside nesse ponto a importância decisiva de demonstrar a
superioridade da forma social de produção solidária diante de outras
alternativas postas ao trabalhador.

Da percepção dessa simbiose entre interesses próprios e alheios, nasce o


interesse comum, base da ação de classe, entre indivíduos similarmente
situados no processo de produção da vida material. Quando uma nova forma
de vida econômica corporifica-se, projeta consigo novos grupos, compelindo-
os, segundo as circunstâncias, a lutarem por sua afirmação. Na transição para
o capitalismo, os alvos da burguesia nascente foram as corporações de ofício e
tudo mais que entravava a livre iniciativa. A lógica objetiva das transformações
históricas, posta em exergue nessas páginas, definirá o seu curso à medida
que os atores em cena incidam sobre as condições que encontram, e na
proporção em que essas sustentem, por sua vez, aqueles protagonismos.

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Santa Maria: Cesma Edições.

40
INCUBADORA DE COOPERATIVAS POPULARES: UMA ALTERNATIVA À
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO.

Ana Rita Gallo Norma Felicidade L. da Silva Valêncio


argallo@bol.com.br norma@zaz.com.br

Regina Yoneko Dakuzaku Ioshiaqui Shimbo


ryd@power.ufscar.br shimbo@power.ufscar.br

Farid Eid Carlos César Mascio


farid@power.ufscar.br incoop@power.ufscar.br

Resumo: O presente artigo tem por objetivo contribuir para a análise do estudo
do mercado de trabalho brasileiro e sua relação com o aumento na
precarização dos postos de trabalho. Parte-se do pressuposto que o processo
histórico-social do país conduziu à configuração de um cenário de crescimento
sem precedentes de exclusão social de uma população carente e com
dificuldades de inserção na sociedade. O artigo propõe como forma de
organização alternativa de inserção social, geração de renda e trabalho, a
formação e desenvolvimento de cooperativas populares de trabalho a partir de
uma Incubadora de Cooperativas Populares do interior do Estado de São
Paulo.
Palavras Chaves: precarização do trabalho, exclusão social e cooperativismo.

1. Introdução

O contexto econômico, social e político do Brasil no final dos anos 90 possui


um cenário preocupante, pois apresenta os níveis mais altos de desemprego, o
aumento da diferença na distribuição da renda e, consequentemente,
desigualdade e exclusão social sem solução a curto prazo. A parcela da
população que mais sofre com estas conseqüências é a mais carente, tanto
economicamente quanto em termos educacionais. São pessoas que perderam
seus empregos dentro da reestruturação produtiva que precariza cada vez
mais as condições de trabalho, não gerando novos postos de ocupação, não
tendo chances de desenvolvimento social e cultural dentro de uma sociedade
desigual.

Este cenário gerou não só a exclusão social, mas também o desemprego


tornou-se tecnológico e estrutural. Assim, a geração de renda e de trabalho no
país pode ter como alternativa a formação de cooperativas populares que
atendam as necessidades da população mais carente e formem um conjunto
de empreendimentos variados que, juntos poderão formar um setor econômico
viável e eficiente, na perspectiva de construção da Economia Solidária. É
nesse sentido que se coloca o papel social da Incubadora Regional de
Cooperativas Populares na motivação, na formação e no desenvolvimento das
cooperativas populares de trabalho. Ao se lançar como uma iniciativa
universitária - pioneiramente encabeçada pela COPPE/UFRJ há três anos atrás
(1997), congregando atualmente treze universidades públicas.

41
A proposta de criação de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares, vinculadas à Rede UNITRABALHO, vem numa perspectiva de ação
sócio-política inovadora e muito ao gosto do que o saudoso mestre (Florestan
Fernandes) julgava ser adequado como missão socialmente relevante da
academia em contraposição às condutas empresariais que, por tradicionais ou
modernas, demonstram ser refratárias à qualquer processo de absorção da
força de trabalho que preserve e amplie a dignidade e a cidadania do
trabalhador.

A Incubadora não apenas se apresenta como uma ação sincrônica ao grande


problema do desemprego crescente que assola o país, mas também
emancipadora, sobretudo se vista como uma resposta superadora no debate
acerca das condições de empregabilidade da população economicamente
ativa. Atualmente, vigora uma 'flexibilização das relações de trabalho' que mal
acoberta a apartação social pura e simples. Emerge, assim, a Incubadora,
como resposta que agrega aqueles que se encontram excluídos da vida social
– exclusão manifesta tanto no que diz respeito à produção material como na
ótica do consumo –, e emerge como possibilidade de constituição de um
conhecimento interdisciplinar, tendo em vista a transdisciplinaridade. Ou seja, a
Incubadora surge nos dias de hoje como um fator extra-econômico, mas que
tende a influenciar diretamente o processo de desenvolvimento do país.
Algumas condições a tornam uma iniciativa realmente importante, tais como
permitir a transformação da própria sociedade brasileira no sentido de torná-la
algo socialmente viável, ou seja, um processo pelo qual Florestam Fernandes
denominou de passagem do valor social para a força social.40

2. Mercado de trabalho excludente e a formação de cooperativas

Para entender o mercado de trabalho brasileiro é necessário conhecer o


processo histórico da industrialização ao longo do século XX. Segundo
MOTOYAMA (1994), a industrialização brasileira tem pelo menos três vertentes
explicativas. A primeira é encabeçada por Roberto Simonsen considerando a
industrialização como resultado das dificuldades no setor externo da economia.
A segunda vertente é descrita por W. Dean, advogando a idéia que a
industrialização brasileira foi resultado direto da expansão do setor exportador
brasileiro, em particular o Estado de São Paulo. A terceira vertente é a do
capitalismo tardio, cujo crescimento industrial seria resultado da acumulação de
capital no setor agrícola exportador que começara a adquirir uma tonalidade
capitalista no final do século XIX. Dessa forma, o setor industrial é considerado
parte do complexo exportador cafeeiro com um aumento da proteção do
mercado interno por parte do Estado brasileiro. Dentro deste contexto, o
desenvolvimento industrial foi limitado às empresas produtoras de bens de
consumo que durou até os anos de 1950, quando foi necessário importar
maquinário e insumos básicos à industria de bens de capital.

40
- Entendendo-se valor social como uma condição em que há alguma coisa presente,
constituída parcialmente na sociedade e que no entanto não se desenvolve por não ser
socialmente viável e por não possuir condições histórico-sociais para que ela ocorra. Com a
criação dessas condições juntamente com a viabilidade social é que esse valor social se
transforma em força social e tem êxito de implementação.

42
Para MATTOSO (1999), ao longo do século XX e, principalmente após 1945, o
Brasil transformou-se em uma economia urbana, industrial e com elevada
geração de empregos formais. A partir de 1980 houve uma alteração na
dinâmica do mercado de trabalho acentuando o desemprego urbano e a
deterioração das condições de trabalho. Contudo, ainda foram preservadas as
estruturas industrial e produtiva caracterizando o desemprego e a precarização
de acordo com os ciclos econômicos.

A crise econômica que está em curso desde o início dos anos de 1970 tem
abalado a conformação socioeconômica construída anos anteriores, entre
1950-1970, que tinha como eixo a industrialização e o Estado como atores
básicos na regulação das relações internas e externas da economia nacional.
“O grande problema, nas condições estruturais do Brasil, é que ao fraco
crescimento do emprego industrial conjugou-se uma sensível redução dos
investimentos e uma estagnação da produção deste setor” (SINGER, 1999b, p.
93). O resultado disto foi o aumento da precarização dos postos de trabalho
com as perdas dos direitos trabalhistas e sociais dos trabalhadores
demonstrando a deterioração do mercado de trabalho. O quadro 1 a seguir
coloca os dados a respeito do nível de desemprego que o Brasil está
enfrentando.

Quadro 1
Perfil do desemprego na RMSP, 1989, 1996 e 2000* (em %)
Itens 1989 1996 2000
Tipo de desemprego
Desemprego Aberto Brasil (IBGE) ** 3,4 4,6 8,4
Total 6,7 14,2 18,2
Aberto*** 5,0 9,2 11,8
Oculto**** 1,7 5,0 6,9
Precário 1,1 3,7 4,9
Desalento 0,6 1,3 2,0
Idade
10 a 14 anos 25,3 40,3 46,4
15 a 17 anos 15,8 39,8 47,1
18 a 24 anos 9,0 19,7 27,2
25 a 39 anos 5,3 11,1 14,9
Mais de 40 anos 2,8 8,0 11,5
Sexo
Homem 5,7 12,5 15,9
Mulher 8,3 16,4 22,3
Fonte: adaptado de POCHMANN, 1999, p. 105, MATTOSO, 1999, p. 12 e Fundação Seade e
Dieese.
RMSP = Região Metropolitana de São Paulo
* Os dados para o ano de 2000 referem-se acumulado no ano até o mês de Maio.
**Este dado foi coletado no IBGE, mas considera o desemprego aberto com período de
referência de 30 dias anterior ao da semana da entrevista.
***Desemprego Aberto: engloba todas as pessoas de 10 anos e mais que não têm trabalho e
que efetivamente procuraram emprego ou negócio nos 30 dias anteriores ao dia da entrevista.
****Desemprego Oculto pelo Trabalho Precário: pessoas que, em simultâneo à procura de
trabalho, realizaram algum tipo de atividade descontínua e irregular. Desemprego Oculto pelo
Desalento: pessoas que, desencorajadas pelas condições do mercado de trabalho ou por
razões circunstanciais, interromperam a procura, embora ainda queiram trabalhar.

43
Pode-se afirmar que um dos principais determinantes da pobreza foi o padrão
de geração de emprego e de renda do país, associado ao seu estilo de
desenvolvimento. Duas questões básicas podem explicar esse fenômeno: a
primeira está voltada para a estrutura agrária concentrada em grandes
propriedades e no atraso produtivo; e a segunda resposta encontra-se no tipo
de geração de emprego e renda urbana (BALTAR, DEDECCA & HENRIQUE,
1996).

Para POCHMAN (1999), a evolução histórica do processo de exclusão social


apresenta-se da seguinte forma:

1. A destruição de formas de produção pré-capitalistas gerou exclusão,


implicando na formação de um mercado de trabalho necessário à
acumulação de capital;

2. Segunda metade do século XIX: a exclusão era resultado da crise e do


processo de concentração de capital restrita a poucos países;

3. Oligopolização, constituição dos Estados nacionais e o desenvolvimento de


normas de regulação das relações de trabalho formaram uma base
institucional que sustentou no século XX e possibilitou a reincorporação dos
excluídos ao universo produtivo. Houve crescimento do emprego neste
período que durou até os anos 1970;

4. A crise atual tem origem no movimento destruidor da reorganização


produtiva e na racionalização econômica através da terceirização, da
incorporação de novas tecnologias e métodos organizacionais, destruindo
as perspectivas de recomposição do nível de emprego. A crise tem origem
também no grau de industrialização e na difusão de padrões de consumo.

Para o autor, isto gerou a heterogeneidade nas relações de trabalho e a perda


do “standard employment relationship” acompanhada pelo crescimento de
empregos precários (sem negociações coletivas). Confirmando esse processo,
MATTOSO (1999) escreveu que nos últimos anos da década de 1990 o
desempenho produtivo não foi apenas medíocre e resultante de efeitos de
oscilações do ciclo econômico sobre o mercado de trabalho. A geração de
emprego sofreu as conseqüências do processo de retração das atividades
produtivas. “O desemprego disparou” compondo taxas que não têm paralelo na
história do país.

Dessa forma, o movimento de centralização do capital produtivo em nível


mundial gerou duas conseqüências: surtos intensos de reorganização e
redução de custos, com efeitos negativos sobre o emprego e a redução do
volume de ações no mercado. “O capitalismo restaurado em suas formas
essenciais, cada vez mais entregue à operação espontânea de suas leis de
movimento, parece falhar com grande escândalo em sua capacidade de gerar
empregos, de oferecer segurança aos que consegue empregar ou de alentar
os empregados com as perspectivas de melhores salários” (BELLUZZO, 1996,
p. 13).

44
Na década de 1990, os impactos de uma mudança radical na condução da
política econômica, viabilizada pelas alterações no cenário financeiro
internacional, sobre a estrutura de produção do setor industrial, manteve o
baixo nível de emprego (BALTAR & PRONI, 1996). Por um lado, a abertura da
economia e a modernização do aparelho produtivo gerou ganhos de
produtividade. Por outro, uma queda brusca da inflação rebaixou as margens
de lucro, criou um movimento de desverticalização com a terceirização de
diversas atividades industriais.

De fato, é relevante compreender a lógica da empresa capitalista implantada


nas últimas décadas do século XX. A partir das mudanças no processo
produtivo, conhecida como a reestruturação produtiva do parque industrial e
apresentada como um modelo global, gerou-se diversos elementos que
minaram a organização dos trabalhadores. Houve diminuição dos postos de
trabalho, aumento da precarização das condições de trabalho para aqueles
que permaneceram no mercado e que não tinham qualificação profissional
suficiente para acompanhar este processo. Estes são conhecidos como o
núcleo periférico da força de trabalho estando muito vulneráveis a qualquer
mudança que gere desemprego. Compondo este cenário existe o núcleo
qualificado da força de trabalho, mais estável que o primeiro e com melhores
condições de trabalho e remuneração. Além destes dois principais grupos há o
contingente de desempregados fruto de parte da reestruturação produtiva
ocorrida nos anos anteriores e que ainda está em curso na história do país
(EID, 2000). Como uma consequência grave deste processo, os trabalhadores
que permaneceram dentro do mercado de trabalho estão sendo obrigados a
aceitarem a situação de muita insegurança gerada nos últimos anos.

Com este cenário, o problema do desemprego assume nova configuração


tornando-se alto e prolongado. Cada vez mais utiliza-se a subcontratação e a
precarização dos postos de trabalho. Contudo, o aumento de emprego no
comércio e nos serviços não foi suficiente para compensar a perda dos
empregos industriais. Configura-se, então, um núcleo pequeno de
trabalhadores com emprego estável e uma grande massa de empregos
instáveis e mal remunerados.

Em síntese, ao longo do processo de industrialização brasileira configurou-se


um mercado de trabalho excludente. Em conjunto com isto, políticas comerciais
aumentaram a discrepância na distribuição da renda per capita nacional
gerando um enorme contingente de pessoas desempregadas.

Por outro lado, as cooperativas populares, tanto no contexto rural como no


urbano, apresentam propostas de inclusão social dos atores que foram
excluídos do mercado de trabalho e configuram um tipo de organização
estratégica condizente com as mudanças organizacionais no final do século XX
e início do século XXI.

O desenvolvimento da organização cooperativista popular, de economia


solidária, ressurge como uma nova alternativa ao desemprego a partir de um
novo setor econômico, formado por pequenas empresas e trabalhadores por

45
conta própria, composto por (ex)desempregados. Esta pode ocorrer através da
“expansão das iniciativas populares de geração de trabalho e renda, baseados
na livre associação de trabalhadores e nos princípios de autogestão e
cooperação” (GAIGER, 1999, p. 29).

Algumas experiências demonstram que é possível organizar economias locais


de razoável complexidade a partir da competição e da cooperação de grande
número de pequenas empresas, como demonstram os ‘distritos industriais’
prósperos na Itália, Espanha, Alemanha, etc. Eles têm a capacidade de
crescimento e “... a virtude de não adotarem a lógica capitalista, que
equaciona eficiência e competitividade com lucro e confere poder supremo de
decisão a respeito da existência ou não a empresa nas mãos dos possuidores
do capital” (SINGER, 1999b, p. 121). Os distritos industriais agem
cooperativamente suplantando as deficiências das empresas isoladas. O lucro
é repartido entre os empresários que também comercializam entre si, criando
um círculo virtuoso.

A cooperativa deve ser entendida como uma empresa que tem em um dos
seus princípios a autogestão, mas que necessita de lucro, ser eficiente,
atualizada e vocacionada para se expandir no tempo (GUTIERREZ, 1997).
Além disso, para o maior sucesso da cooperativa é necessário o engajamento
efetivo de seus integrantes, que as eleições internas sejam maduras e bastante
debatidas para definirem a atuação da mesma.

Os maiores desafios para as cooperativas é que elas estão inseridas em uma


sociedade de cultura contraditória, herdeira de deficiências educacionais, tendo
de lidar com comportamentos individuais formados em contextos autoritários,
preconceituosos e burocráticos e uma cultura individualista, precisando
enfrentá-los de forma pragmática e amadurecendo seus conhecimentos. Para
isto, é necessário adequar-se a cultura de grupo, ter envolvimento total dos
integrantes, superar as formas autoritárias e burocráticas de poder, obter bom
senso nas técnicas de gestão e reciclarem-se sobre conhecimentos técnicos e
novas formas organizacionais estratégicas. Com isso, pode-se configurar um
futuro melhor para quem esteja organizado sob a forma de cooperativista
popular.

3. Origem do cooperativismo: internacional e nacional

As principais idéias cooperativistas surgiram na Inglaterra como um movimento


de reação a acumulação do capital associada a Primeira Revolução Industrial,
no final do século XVIII. Com isso, muitos artesãos ficaram sem trabalho a
partir da construção das fábricas e implantação gradual das máquinas no lugar
de homens. Com esse cenário configurado surgiram as idéias de Robert Owen
um dos pais do socialismo, pregando que a indústria em si é benéfica mas
deveria estar sob o controle dos trabalhadores e os resultados deveriam ser
repartidos igualmente entre eles. Owen propôs a criação de aldeias
cooperativas ao redor das fábricas onde os meios de produção seriam
possuídos e geridos coletivamente. Diversas cooperativas foram criadas, mas
houve reações capitalistas contra essa organização dos trabalhadores e muitas
encerraram forçosamente suas atividades (RECH, 1995; SINGER, 1999a).

46
Em 1844 um pequeno número de trabalhadores fundou em Rochdale uma
cooperativa de consumo partidários dos princípios de Owen. A cooperativa
cresceu muito alcançando dezenas de milhares de sócios e representou um
importante mercado consumidor. Os seus fundadores ficaram conhecidos
como os “Pioneiros de Rochdale” e criaram diversas outras cooperativas de
produção, como a de fiação, tecelagem, habitação etc. O exemplo de
Rochdale, considerada a mãe de todas as cooperativas, se difundiu pela
Inglaterra e outros países. Em 1895 foi fundada a Aliança Cooperativa
Internacional (ACI) que, desde então, congrega as entidades cooperativas de
todo o mundo.

A organização cooperativa desenvolveu-se sob diversos tipos, tais como: de


consumo, de comercialização, produção agropecuária, industrial e de serviços.
Embora haja diferenças nestes tipos todas se regem pelos mesmos princípios,
herdados de Rochdale, adaptados e enriquecidos pela ACI. Os associados da
cooperativa são proprietários e trabalhadores ao mesmo tempo. Não têm os
direitos que a legislação do trabalho assegura aos empregados.

A flexibilização dos direitos do trabalho para os cooperados, via alteração


recente na Legislação do Trabalho, cria oportunidade a abusos por parte de
empregadores inescrupulosos que demitem seus trabalhadores e os
recontratam na forma cooperativa para não pagarem os encargos trabalhistas.
Este fenômeno é conhecido como coopergato ou cooperativa fraudulenta, pois
fere os princípios cooperativistas e explora cada vez mais o trabalhador. Se
vem ocorrendo o crescimento de abertura/fechamento/reabertura de falsas
cooperativas, não obstante a fiscalização de sindicatos autênticos, observamos
também o crescimento de cooperativas autênticas preocupadas em melhorar a
qualidade de vida e de trabalho para os associados cooperados. Uma
cooperativa autêntica inclui em seus custos de serviços a serem prestados, na
forma de fundos legais, as taxas equivalentes aos direitos trabalhistas
inexistentes para os trabalhadores cooperados (férias, 13’ salário, FGTS,
licença gestante, afastamento remunerado em caso de acidentes de trabalho e
outros).

A partir da década de 1970 e com a Terceira Revolução Industrial em curso o


desemprego voltou a crescer. Na década de 1990, com a globalização
financeira e comercial houve mais perdas trabalhistas e precarização das
condições de trabalho (trabalho assalariado sem carteira, contrato de trabalho
por tempo determinado, parcial ou por conta própria, ausência de contribuição
à Previdência Social sem direito à aposentadoria). Tudo isso provocou o
renascimento do cooperativismo na Europa, na América Latina e, mais
recentemente, no Brasil. Atualmente, o cooperativismo tem como caráter
ideológico o combate ao neoliberalismo, a crise nas relações de trabalho, a
exclusão social, entre outros. Por outro lado, defende a democracia, a geração
de trabalho e renda, uma sociedade mais justa e igualitária dentro do conceito
de Economia Solidária.

No caso do Brasil, o cooperativismo teve uma forma inicial “primitiva” quando


os jesuítas se uniram no trabalho coletivo voltado para a “persuasão” de povos
indígenas nas práticas do amor e auxílio mútuo cristãos em meados do século

47
XVII. As primeiras cooperativas implantadas no Brasil foram as de consumo,
cujo objetivo é distribuir produtos/serviços aos seus sócios, buscando as
melhores condições de preços e de qualidade.

Em 1847, no Oeste do Paraná, um grupo de europeus criou a Colônia Tereza


Cristina organizada em bases cooperativas com curto período de existência,
até 1850 quando a Lei de Terras foi implantada entrando em declínio a partir de
então (EID, 1998). Posteriormente a esse fenômeno, somente no final do
século XIX e início do século XX retomou-se a criação de cooperativas de
consumo. As primeiras foram na região Sudeste e depois na região Sul do
país. No entanto, a partir da década de 1960, as cooperativas de consumo
entraram em crise.

Concomitante as cooperativas de consumo, foram criadas também as


cooperativas agropecuárias e de crédito rural principalmente na região Sul do
país. Ao longos dos anos, outros tipos de cooperativas foram sendo criadas
como as de produção, de trabalho e educacionais.

Em 16/12/1971 com a lei 5.764, ainda em vigor, ficou definido o regime jurídico,
a constituição e o funcionamento do sistema de representação das
cooperativas e os organismos de apoio. Segundo RECH (1995), em 1995 havia
um total de 3681 cooperativas com cerca de 3 milhões de sócios. A partir de
1990, com a crise configurada no cenário industrial, o cooperativismo entra em
discussão novamente, com mais força e com uma proposta alternativa ao
modelo de indústria instalada e consolidada no Brasil. Em 1999, havia 5.600
cooperativas registradas na Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB)
com 5,5 milhões de cooperados registrados (vide quadro 2).

Quadro 2
Cooperativas, cooperados e empregados por ramo de negócio
Ramo Cooperativas Cooperados Empregados
Agropecuário 1.437 856.202 106.753
Consumo 191 1.473.038 7.952
Crédito 920 1.407.089 16.908
Educacional 210 48.403 2.505

Energia e Telecomunicação 184 551.799 5.355


Especial 4 25.484 14
Habitacional 216 53.011 2.063
Mineração 21 1.899 28
Outros 2 40 0
Produção 107 6.011 38
Saúde 698 297.521 19.340
Serviço 1 20 0
Trabalho 1.661 293.499 6.422
Total 5.652 5.014.016 167.378
Fonte: Núcleo de Banco de Dados da OCB – dez/99.

Para Singer (1999a) o novo cooperativismo no Brasil toma formas diferentes:


empresas autogeridas; pequenas e médias associações ou cooperativas de

48
produção ou comercialização; cooperativas agropecuárias formadas pelo
Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); cooperativas de
trabalho e de serviços, formadas por Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares; cooperativas de serviços de diversos tamanhos, boa
parte agrupadas nas Federações de Cooperativas de Trabalho estaduais. Para
este autor, um dos maiores obstáculos à difusão do cooperativismo é a falta de
cultura cooperativista entre os trabalhadores, pois estes não possuem a
habilidade da autogestão.

Adquirir essas habilidades da autogestão remete a importância do aprendizado


e prática continuada em pelo menos três níveis distintos, mas interligados –
técnico, como fazer e ensinar outros a atividade fim com competência;
administrativo, como gerir com eficiência e democracia os negócios da
empresa autogestionária; político, como introjetar os valores históricos do
cooperativismo e a perspectiva de construção da Economia Solidária.

Observamos que instituições legalizadas como o MST, as Incubadoras, as


ONGs, entre outras, estão encarregadas da promoção destas habilidades as
quais são consideradas fundamentais para que não se reproduza a prática das
cooperativas tradicionais, descoladas desses valores inovadores que estão
sendo construídos nesse últimos anos..

4. Criação e implementação das cooperativas populares como


alternativa à precarização do trabalho

Configurada a questão do cooperativismo como alternativa à precarização do


trabalho na sociedade capitalista, faz-se necessário demonstrar como está
ocorrendo a criação e implementação das cooperativas populares de trabalho.
Parte-se do pressuposto de que a deterioração das relações do mercado de
trabalho gerou um nível de desemprego insustentável e, conseqüentemente o
aumento da exclusão social dos trabalhadores que perderam seus postos de
trabalho.

Entendemos que a relação de emprego resulta de um contrato social pelo qual


o empregador compra, durante a jornada diária de trabalho, a força de trabalho
ou a capacidade de trabalho do empregado, através do regime de
assalariamento. No entanto, com as modificações que vêm ocorrendo na
economia brasileira e mundial com o crescimento da precarização do trabalho
e do desemprego é pertinente estudá-lo profundamente com o objetivo de
buscar alternativas à situação existente.

O contexto de abertura comercial e financeira, da reestruturação produtiva e o


movimento de queda no desenvolvimento econômico do Brasil fez com que as
empresas vendessem menos, produzissem menos e empregassem menos.
“Os desempregados, que outrora eram denominados de exército industrial de
reserva, desempenham o mesmo papel que as mercadorias que sobram nas
prateleiras: eles evitam que os salários subam” (SINGER, 1999b, p. 13). Assim,
os desempregados que desempenhavam um papel estabilizador da economia,
atualmente, desequilibram cada vez mais e geram pressões sociais muitas
vezes insustentáveis.

49
Dessa maneira, é necessário formar um conjunto de conceitos mais adequados
à questão do cooperativismo como alternativa à precarização do trabalho, tais
como empregar palavras trabalho, ocupação e renda do que emprego e salário.
Estas últimas têm uma conotação descolada das organizações cooperativistas
populares, onde se pressupõe a inexistência de trabalho assalariado,
característica do sistema capitalista. Na realidade, o que se necessita é de
ocupação e não de emprego porque, conforme análise de SINGER (1999b, p.
14) “ocupação compreende toda atividade que proporciona sustento a quem a
exerce”.

Como alternativa ao desemprego e a geração da exclusão social muitas


atividades desconectadas do grande capital monopolista passaram a ser
exercidas por pequenos empresários, trabalhadores autônomos e cooperativas
de produção. Isto transformou um certo número de postos de trabalho, de
“empregos formais” em “empregos informais”, que deixam de oferecer as
garantias legais e os direitos habituais e de carregar os custos
correspondentes, precarizando as relações de trabalho. Houve, em 1999, uma
diminuição de 8 mil postos de trabalho e os 418 mil novos postos de trabalho
criados se distribuíram entre os segmentos dos trabalhadores sem carteira
assinada e dos trabalhadores por conta própria (MTb; IPEA, 2000, p. 22).

Uma das causas da precarização dos postos de trabalho é a globalização da


economia como um processo de reorganização da divisão internacional do
trabalho, acionada em parte pelas diferenças de produtividade e de custos de
produção entre países. A incessante busca pelo acréscimo de exportações cria
novas ocupações; o acréscimo de importações elimina os postos de trabalho,
que são transferidos aos países de onde provêm os produtos importados,
gerando o desemprego estrutural, ou seja, a eliminação dos postos de trabalho
substituídos por novas tecnologias que não requerem mão-de-obra para
funcionarem.

Este desemprego estrutural ocorre porque os que são vítimas da


desindustrialização em geral não têm pronto acesso aos novos postos de
trabalho. “O desemprego estrutural, causado pela globalização, é semelhante
em seus efeitos ao desemprego tecnológico: ele não aumenta
necessariamente o número total de pessoas sem trabalho, mas contribui para
deteriorar o mercado de trabalho para quem precisa vender sua capacidade de
produzir” (SINGER, 1999b, p. 23).

A exclusão social tem uma das origens na precarização do trabalho que não
está confinada ao Primeiro Mundo. Desde a década passada ele se estende a
países periféricos que têm legislação trabalhista e fazem observar os direitos
legais dos trabalhadores. A precarização do trabalho inclui tanta a exclusão de
uma crescente massa de trabalhadores do gozo de seus direitos legais como a
consolidação de um ponderável exército de reserva e o agravamento de suas
condições.

Para Singer (1999b) é preciso algo para reverter essa mudança estrutural,
assim como: criar novas empresas, fora do circuito do setor público (que está
em crise e sendo privatizado) e do circuito do setor privado capitalista, cujo

50
dinamismo insuficiente é a razão principal do seu esvaziamento. O desafio
essencial está no campo institucional: como gerar as formas de organização
adequadas dos produtores, para que estes possam ativar sua capacidade de
produção e colocar no mercado produtos que possam ser vendidos por preços
que permitam saldar todas as despesas e proporcionem aos produtores, no
mínimo, mais do que o seu ganho atual. Todas as formas de organização são
válidas, de empresas privadas isoladas, franqueadas, associadas etc. a
empresas coletivas, como cooperativas, comunidades de produção e o que
mais puder ser experimentado.

O mais difícil não é provavelmente encontrar uma fórmula organizacional ideal,


mas mobilizar a iniciativa da grande massa de inativos e marginalizados, para
que se disponham a empreender e desta forma gerirem diversas fórmulas
organizacionais a serem testadas na prática, o que remete à importância de se
trabalhar continuamente com o desenvolvimento das potencialidades
profissionais, da valorização da auto-estima e da decodificação do tecnicismo,
numa linguagem simples e objetiva, com menor dificuldade à apropriação dos
conhecimentos pelos trabalhadores.

A partir desta conjuntura histórica e econômica da exclusão social é que se


pretende estudar a criação, a formação e o desenvolvimento de cooperativas
populares como alternativa ao processo de precarização dos postos de
trabalho dentro da sociedade capitalista.

Quando se fala da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares


enquanto um fator importante na sociedade contemporânea, tem-se como pano
de fundo a sociedade urbana e seus problemas, uma vez que a mesma se
apresenta como uma força alternativa de sobrevivência de um contigente
humano que foi excluído gradativamente no processo histórico de urbanização
do país . Ao inserirmos a urbanização na discussão, se torna imprescindível
agregar a análise de Paul Singer sobre este processo. Para ele, a urbanização
não deve ser vista apenas dentro do contexto do desenvolvimento de uma
nação, mas é preciso que se adote um enfoque globalizador41. No processo de
urbanização ocorre uma transformação na estrutura de classes em prol da
consolidação dos capitais em crescente concentração. Neste sentido, a
Incubadora se constitui numa ação política que acaba se propondo a atender
uma classe social que é desprovida dos meios de produção e pode, pelos
princípios da Economia Solidária, vir a redefinir, numa certa dimensão, essa
mesma estrutura. A efetivação da organização do trabalho calcado no
cooperativismo demonstra ser possível viver e produzir dentro de outro modelo
de produção material e de partilha do resultado do trabalho.

A incubadora tem o papel fundamental de prestar assessoria técnica aos


cooperados durante o seu período de incubação. Ou seja, a cooperativa nasce
a partir da incubadora, em trabalho conjunto com as pessoas excluídas
socialmente e interessadas na formação de uma cooperativa e esta,
permanece vinculada a ela, pretendendo-se que, num determinado tempo que
41
- Paul Singer (1980) quer dizer com o enfoque globalizador que a problemática urbana só
pode ser analisada como parte de um processo mais amplo de mudança estrutural que afeta
tanto a cidade como o campo e não se esgota em seus aspectos ecológicos e demográficos.

51
varia a cada caso, adquira autonomia para atuar no mercado
independentemente da incubadora.

Para isso, existe um grupo de docentes e pesquisadores que atua em diversas


áreas de conhecimento em uma universidade do interior paulista, e que
participa da incubadora de cooperativas populares com a preocupação sobre a
questão da desigualdade, da exclusão social e da precarização do trabalho.
Este grupo identifica que uma das alternativas apresentadas para a solução
destes problemas apresentados é o desenvolvimento e a consolidação cada
vez maior de cooperativas populares.

Entende-se por cooperativa “uma associação de pessoas que se uniram


voluntariamente para realizar um objetivo comum, através da formação de uma
organização administrada e controlada democraticamente, realizando
contribuições eqüitativas para o capital necessário e aceitando assumir de
forma igualitária os riscos e benefícios do empreendimento no qual os sócios
participam ativamente” (RECH, 1995, p. 25).

A partir desta definição, esse grupo preocupa-se com a criação, a formação e o


desenvolvimento das cooperativas em um processo denominado incubação. O
estudo exaustivo de seus princípios como crenças e valores organizacionais e
o desenvolvimento de atitudes coerentes com esses princípios, podem ser o
alicerce do desenvolvimento necessário para essas cooperativas.

Detalhando o processo de incubação, pode-se distinguir a participação da


incubadora no que se refere a motivação para o cooperativismo, a discussão
sobre o modelo de organização cooperativista, estruturação do grupo quanto à
participação e coesão entre as pessoas, discussão e elaboração de estatuto,
realização de assembléias, processo de escolha da diretoria, discussão e
escolha da atividade econômica, análise de mercado, legalização da
cooperativa, orientação e encaminhamentos para a capacitação técnica na
realização da atividade econômica escolhida, acompanhamento nos aspectos
administrativos e contábeis internos e externos. Esses aspectos não
necessariamente se constituem etapas sucessivas, mas muitas vezes aspectos
simultâneos durante o processo de incubação. Vale ressaltar que os aspectos
relativos a gestão democrática e os princípios cooperativos são discutidos e
retomados ao longo do processo, pois são questões que o permeiam e são
necessárias serem incorporadas pelo grupo nas suas atividades cotidianas de
vivência coletiva.

Busca-se facilitar o processo do grupo em sua organização como cooperativa,


sempre partindo da realidade e interesse das próprias pessoas objetivando ao
final do processo de incubação, a própria “desincubação”, isto é, como dito
acima, a obtenção de uma autonomia da cooperativa desenvolvendo a
autogestão plena tanto de sua atividade econômica como do seu processo
coletivo, em uma gestão democrática. Considera-se assim, tanto o aspecto
social quanto o econômico, na avaliação do sucesso da cooperativa.

Da mesma forma que se espera que o grupo acadêmico envolvido na proposta


de incubação deva agir dentro dos princípios de socialização do conhecimento

52
científico , a população que organiza as cooperativas incubadas também deve
o tempo todo realizar atividades que sejam afirmativas de seus conhecimentos,
fortalecendo-a na cultura de autonomia e auto-gerenciamento do próprio
trabalho. Por isso, é necessário que os cooperados participem ativamente de
todo o planejamento , controlando todas as fases do processo que dará
concretude às suas aspirações de reinserção no mundo do trabalho.

4.1. Estruturação de uma cooperativa popular na periferia de


São Carlos: a Cooperativa de Limpeza do Jardim Gonzaga -
CoopLimp

Em termos institucionais, quando a proposta de incubação de cooperativas


populares emergiu na Universidade Federal de São Carlos, como iniciativa dos
Núcleos de Extensão Município, Sindicato e Cidadania, logo foi defrontada
com três problemas relativamente simultâneos para a sua efetivação: o
primeiro, o de disseminar essa proposta para toda a comunidade acadêmica,
o que implicaria em um esforço de constituição de um grupo multidisciplinar
para o qual seria necessário 'traduzir' uma concepção de pesquisa-ação cujo
marco teórico era fundamentalmente econômico; o segundo, extrapolar dessa
fase, isto é, da necessidade de uma formação teórica comum, para a
ausência de exigência de formação científica por parte dos participantes que
viessem a organizar as cooperativas a serem incubadas; e terceiro, o de
estabelecer critérios de escolha da primeira área ou grupo social com o qual a
academia iria interagir .

Em relação à primeira e segunda questões, viu-se logo a necessidade de, intra


e extra muros universitários, construir-se coletivamente um outro saber,
redefinidor de novas formas de ação universitária de caráter social. Intra muros,
a Incubadora se colocava como uma ação planejada coletivamente para
responder à necessidade de obtenção de renda por um grupo sob risco de
exclusão que, embora centrada nos princípios da Economia Solidária, não
poderia prescindir dos saberes especializados que os docentes e discentes
interessados em aglutinar-se traziam. Discussões, lideradas sobretudo por
economistas, foram empreendidas para garantir um mínimo de unicidade na
compreensão dos postulados da Economia Solidária e princípios do
Cooperativismo, conhecimento esse acumulado, na atividade de assessoria de
organização do trabalho em cooperativas de reforma agrária, vinculadas ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Mas, para o
afloramento de uma ação eminentemente multidisciplinar, a comunidade
externa com a qual a Universidade viria a relacionar-se teria importância
crucial, pois veio dela a referência das privações vividas, da hierarquia na
resolução das necessidades e das potencialidades que a Universidade tinha
para ajudar a supri-las.

À medida em que os problemas da comunidade eram colocados em toda a


sua multidimensionalidade, os docentes dos Departamentos de Engenharia de
Produção, Engenharia Civil, Enfermagem, Letras, Ciências Sociais, Terapia
Ocupacional, Biblioteconomia, Ciência da Informação, Psicologia, Biologia,
entre outros, foram encontrando um espaço de atuação que começava na

53
questão do trabalho mas que não se esgotava nela. A comunidade externa
estabeleceu-se, portanto, não apenas como referência de aglutinação do
saber formal, mas foi mostrando suas aspirações e seus potenciais que
assinalaram os caminhos que o grupo de pesquisadores e participantes
deveriam construir juntos.

Fica claro, assim, que a terceira questão, relativa a escolha da comunidade


para a ação piloto da Incubadora, permeia as questões anteriores. Desde
1994, o Núcleo de Pesquisa e Documentação do Departamento de Ciências
Sociais da UFSCar vinha empreendendo a pesquisa 'Condições de vida e
pobreza em São Carlos: uma abordagem multidisciplinar’, que indicava, a
partir de cinco variáveis - renda, inserção no mercado de trabalho, moradia,
escolaridade e saúde - quais os bairros mais carentes do município de São
Carlos. Dentre os quais figurava o Jardim Gonzaga, o que já apontava para a
necessidade de que projetos extensionistas voltados para populações
empobrecidas pudessem ser realizados ali.

Em meados de 1998, a liderança comunitária do referido bairro convidou a


Coordenação dos Núcleos de Extensão Município e Cidadania e demais
interessados da comunidade acadêmica para participar das reuniões da
associação de moradores. Inicialmente, as discussões centraram-se nas
condições de moradia e escolaridade da população. Uma postura
reivindicativa da associação, por um lado, e de acolhimento do grupo
universitário, por outro, foi determinante para a escolha desse bairro como
base do projeto piloto de formação de cooperativa popular a ser incubada pela
UFSCar.

As primeiras discussões estabelecidas entre o grupo da Incubadora e a


população local permitiram constatar que a ausência de oportunidades de
trabalho antecedia à questão da precariedade de moradia. Todavia, a baixa
escolarização colocava-se como o fator anterior de inacessibilidade ao
mercado de trabalho, razão pela qual uma proposta de ação voltada para a
busca de alternativas de obtenção de renda só seria sustentável no longo
prazo com o enfrentamento das restrições ao mundo da escrita e, por este, de
acesso ao conhecimento mais técnico dentro das várias habilidades
profissionais.

Enquanto intra-institucionalmente a equipe da UFSCar avaliava que introduzir o


grupo aos conhecimentos sobre gestão cooperada seria prioritário, a interação
com a comunidade fez ver que a ordem dos problemas era outra. A situação
encontrada demonstrava que a busca dos rudimentos que instrumentalizavam
o resgate da cidadania se colocava como objeto primeiro para a nossa ação,
razão pela qual o grupo buscou estruturar cursos de alfabetização de adultos,
de desenvolvimento sustentável em conjunto aos que tratavam de relações
interpessoais, motivação para o cooperativismo, auto-gestão, autonomia para
ampliar a discussão de renda para uma discussão mais abrangente sobre
dignidade e cidadania, buscando, com isso, elucidar as relações que movem
política, legal e economicamente o conjunto da sociedade.

54
Dessa forma, a preocupação com a participação de todas as pessoas
envolvidas em cada etapa possibilitou a efetiva contribuição das mesmas. Essa
relação de troca entre a UFSCar e a comunidade permitiu estabelecer uma
nova postura por parte de ambos, já que houve um entendimento, pela
academia, da realidade sócio-econômica cheia de restrições e, pela população,
um entendimento de uma proposta acadêmica para suplantá-la. Na medida em
que esse exercício de transformação social vem se concretizando, percebe-se
que o mesmo tem potencial de difusão na comunidade, alterando o conjunto
das relações do bairro, extrapolando e atingindo esferas mais amplas do poder
local. Ou seja, nem a academia nem a população se relacionam por
mimetismo. Um não requer do outro que se copie as suas condutas e a sua
forma de pensar, mas que ambos agregem novos elementos de reflexão aos
que já têm e, da sinergia entre os velhos e os novos elementos, pensem em
novas posturas que extrapolassem, eventualmente, a órbita do trabalho.

Assim, a iniciativa do trabalho cooperativo supera as razões apenas


econômicas e traz à tona toda a discussão das estruturas onde estão
alicerçadas a sociedade. O simples ato da legalização da cooperativa exigia
que os cooperados tivessem seus documentos pessoais em ordem , o que não
era o caso de muitos deles que sequer detinham um registro geral. Obter esse
documento (o RG) foi significativo, não apenas para a finalidade do trabalho,
mas como um passo no processo de resgate da dignidade e da cidadania dos
cooperados. O conjunto das ações em busca dos direitos e o acesso a novas
oportunidades é que garantem a saída definitiva da situação de exclusão; em
relação ao trabalho, por exemplo, isso se efetiva quando o trabalhador não se
satisfaz mais em vivenciar a condição passiva e dependente da relação
trabalhista tradicional e aspira por uma relação onde possa dividir
democraticamente direitos e deveres. Por isso, é papel da Incubadora
incentivar que as análises contextualizadas no bojo do modelo de gestão
cooperativa não sejam apenas internas aos cooperados, mas estendam-se ao
bairro, que é a unidade espacial onde grande parte dessas cooperativas
estão surgindo, refletindo-se em ações organizadas que procuram interferir
sobre a realidade de tal modo a promover mudanças para superar a situação
de exclusão e promover a adesão de outros segmentos.

Para se concretizar essa expectativa, inicialmente realizadas no bairro, as


reuniões abertas a toda a comunidade - convidada através de divulgação por
carro de som, cartazes e com a participação de lideranças - elucidavam que o
caráter da proposta de envolvimento com a Universidade era o de conhecer os
problemas relacionados ao desemprego, elucidar, quando possível, os vários
aspectos da situação, ouvir as aspirações e as sugestões para a reversão da
situação, ampliando a relação de troca para um exercício de resgate da
cidadania e desenvolvimento da maturidade das relações trabalhistas.

O grupo do bairro, majoritariamente constituído de trabalhadoras


desempregadas, mostrou não ser ignorante de que haviam fatores estruturais
que o levavam àquela situação e que, portanto, era necessário elaborar não
apenas uma nova massa de conhecimento para superá-la, mas uma nova
forma de relacionamento social na esfera do trabalho. Daí emergiu a simpatia
pela proposta de se formar uma cooperativa cuja incubação a Universidade

55
acalentava. O grupo universitário, com o qual a população se fundia, colocou
honestamente a sua inexperiência em promover essa iniciativa, o que, ao
invés de produzir temores por parte das trabalhadoras do bairro, produziu seu
inverso, que foi o aprendizado conjunto acerca desta forma de organização do
trabalho e o exercício de resgate da cidadania.

Da interação inicial até a formação definitiva da cooperativa de limpeza, muitas


técnicas foram utilizadas. As entrevistas semi-estruturadas deram suporte aos
primeiros diagnósticos acerca das aspirações profissionais e perfil escolar dos
moradores. O mapeamento de representações indicou lideranças e
responsáveis para cada uma das tarefas a serem cumpridas. A apresentação
e a discussão do vídeo com depoimentos dos representantes de cooperativas
populares do Rio de Janeiro no bairro permitiu ao grupo estabelecer um
processo de identificação e reconhecimento de seu potencial para efetivação
da cooperativa como alternativa de trabalho.

Todo o processo de constituição da cooperativa de limpeza do Jardim Gonzaga


se mostrou como uma ação da qual o propósito de pesquisa não pode ser
desconsiderado no fazer da extensão. Não poderiam os docentes envolvidos
simplesmente induzir a montagem de uma estrutura organizacional e afastar-
se das etapas constitutivas, posto que o conhecimento envolvido no processo
se mostrava de uma complexidade que, a um só tempo, necessitava do apoio
do saber formal e necessitava ser acompanhado e avaliado por este mesmo
saber a fim de que os quadros de referência teórica fossem revisados à luz da
experiência em acontecimento. Um exemplo foi a elaboração do Estatuto, no
qual a discussão aprofundada e exaustiva durante oito reuniões com o coletivo
do bairro, sobre direitos e deveres, escolha da direção, democracia interna
entre as futuras cooperadas deveria ser norteado pela legislação vigente -
nisso tendo o suporte de profissional da área de Direito -, tendo sempre como
base de discussão o contexto associativo, isto é, exigindo a participação ativa
de todos os envolvidos, num exercício de decisão democrática que mesmo a
academia, envolta no respeito excessivo às competências específicas, não tem
mais por hábito realizar.

Num certo sentido, mais do que um Estatuto bem elaborado, o principal


objetivo da constituição participativa de todas as futuras cooperadas era retirá-
las aos poucos da situação de anomia em que estavam vivendo, permitindo
que as mesmas se entendessem como partícipes na construção de um futuro
mais promissor, rompendo as amarras do assistencialismo fácil, já que para
agir em direção à formação da cooperativa era preciso dedicar-se ao estudo e
discussão acerca do funcionamento dessa estrutura. Não raro, as futuras
cooperadas previam obrigações ou aspiravam a direitos que estavam
escudados nas relações assalariadas de trabalho, isto é, pautadas num
vínculo de submissão inexistente numa estrutura cooperada, de empresa
autogestionária, o que exigia constante retomada das discussões a fim de que
os novos conceitos fossem adequadamente apreendidos, o que também
consolidou o conjunto de informações a que a parcela universitária do grupo
deveria dominar para bem orientar aos demais. Desta forma, cresceram
ambos.

56
4. 2. Demais atuações da Incubadora e suas perspectivas

Através da divulgação das atividades da Incubadora, outras demandas têm


surgido, principalmente junto a Prefeituras Municipais e Associações de classe.
As Prefeituras Municipais normalmente chegam à Incubadora tendo em pauta a
questão da geração de trabalho e renda, buscando discutir o cooperativismo
como alternativa para às suas comunidades. Algumas delas apresentam
demanda específica, vislumbrando a cooperativa de trabalho como alternativa,
por exemplo, a grupos de trabalhadores desempregados, mulheres
interessadas em alguma atividade específica (costura, produção de doces
caseiros, por exemplo).

Primeiramente, é fundamental que se discuta com as Prefeituras o modelo de


cooperativismo com o qual trabalhamos e a metodologia utilizada pela
Incubadora para a atuação junto aos grupos, ressaltando sempre a gestão
democrática existente neste modelo proposto, desde a questão da livre
adesão, passando pela discussão e decisão da atividade fim da cooperativa,
até os demais processos gestionários. Feito esses esclarecimentos e
discussões, e a partir das questões apresentadas pelas Prefeituras Municipais,
a Incubadora desenvolverá com eles a discussão sobre definição de público
alvo - seja a partir do perfil sócio-econômico do município, seja identificando
grupos potenciais - ou desenvolverá propostas de atuação junto a grupos
específicos desde a apresentação e discussão da gestão cooperativista até o
desenvolvimento do processo de incubação propriamente dito.

Também as Associações de classe como Sindicatos de Trabalhadores,


Federações e Confederações, têm-se constituído em demandas potenciais à
Incubadora. Estes chegam trazendo a necessidade de sua categoria, seja com
trabalhadores ocupados ou desempregados, ou mesmo trabalhadores sem
vínculo com estes sindicatos, mas atendidos em alguns dos programas
oferecidos por estes. A preocupação é a de oferecer a esses trabalhadores a
capacitação na gestão cooperativista, entendendo que esta possa ser uma
alternativa de geração de trabalho e renda, visto que nem sempre uma
qualificação, requalificação ou uma aquisição de uma melhor formação básica
têm garantido condições de inserção no mercado de trabalho. Dessa forma,
parcerias estão sendo feitas no sentido de a Incubadora contribuir no
oferecimento de capacitação desses trabalhadores para o modelo de gestão
cooperativista bem como na possibilidade de formarmos multiplicadores para
dar continuidade a esse trabalho, com o objetivo de oferecer acompanhamento
aos grupos que venham a se consolidar como cooperativas de trabalho, a partir
da capacitação recebida.

Outra demanda que vale mencionar provem de grupos que espontaneamente


têm buscado a Incubadora, tendo em vista a opção dos mesmos para se
consolidarem como cooperativas de trabalho, buscando maior esclarecimento
para as suas questões tanto sobre o processo necessário à formação de
cooperativas como sobre o modelo de gestão democrática intrínseco a esse
modelo.

57
Pelo exposto, podemos perceber a extensão da atuação da Incubadora, seja
junto a demandas espontâneas de grupos específicos, seja em parceria com
outros órgãos e entidades. Mas é preciso enfatizar a possibilidade das
Incubadoras em fomentar um trabalho junto a comunidades em situação de
pobreza, para a qual a apresentação de uma possibilidade de gestão
cooperativa do trabalho possa se colocar como alternativa à situação de
exclusão, como foi a experiência piloto da UFSCar.

Como a preocupação de não apenas ser uma alternativa de trabalho, mas


também de buscar a não precarização do mesmo, é importante que se garanta
que as cooperativas se posicionem sobre a importância ou não da existência
de fundos para situações de uso de direitos trabalhistas, inexistentes para
cooperados, como décimo terceiro (abono natalício), férias (descanso
remunerado), licenças e outros. É importante também que, em um contrato de
trabalho – cooperativa e cliente - sejam discutidos os valores da
produção/produto ou serviço da cooperativa chegando-se a valores
competitivos mas, sem ter como pressuposto, ser obrigado a ganhar a
concorrência a partir de uma renda irrisória aos seus cooperados. Organizar a
cooperativa significa buscar a autonomia no próprio empreendimento para que
cada vez mais os cooperados tenham o domínio dos meios de produção na
realização da atividade exercida e maior qualidade de vida no trabalho.

5. Considerações finais

Como um tema que foi resgatado e avaliado a partir dos autores clássicos do
socialismo o cooperativismo têm muito pela frente. Além de ser exaustivamente
analisado é necessário um forte engajamento com a implementação das
cooperativas de trabalho. No caso da incubadora regional de cooperativas
populares isso vem ocorrendo intensivamente a partir do trabalho dos
docentes, técnicos e estudantes envolvidos com a questão.

O projeto da incubadora de cooperativas preocupa-se com a inserção social


dos trabalhadores que estão fora da realidade econômica e política do país.
Acredita-se que o papel social da incubadora não se restringe a capacitar
cooperativas para a sua formação e funcionamento, mas também desenvolver
uma alternativa às relações de trabalho definidas no contexto do capitalismo.
Estimula-se a discussão sobre relações sociais no trabalho de forma solidária e
coletiva em contraponto às relações de trabalho empregador-empregado
competitivas e individualistas, buscando resgatar a cidadania para cada
cooperado e para o grupo como um todo.

Por tudo o que aqui se relatou, pode-se afirmar que a Incubadora Regional de
Cooperativas Populares da UFSCar se coloca como uma forma de intervenção
acadêmica, orientada para a construção cooperada de alternativas ao
problema do desemprego e da exclusão social. Portanto, se concretiza
politicamente ao lado das causas populares ao buscar retirar os trabalhadores
em risco de exclusão da situação de anomia em que hoje se encontram face à
desregulamentação irrestrita da economia.

58
O que se pretende com esse projeto é que a Incubadora viabilize a mudança
social num sentido determinado. Embora o sistema social envolvente
permaneça o mesmo em relação aos mecanismos de apartação, talvez ainda
mais recrudescidos na presente década, as cooperativas incubadas poderão
mudar a forma como se responde à ele de modo a permitir a recuperação da
dignidade, da criticidade, repondo, assim, a possibilidade de desdobramentos
inovadores do ponto de vista sócio-político.

Enfim, das mais favoráveis conseqüências da implantação da Incubadora


está a maior integração da Universidade com os segmentos sociais apartados
da sociedade. À frente desta iniciativa, os cientistas não podem se absterem da
função política que lhes cabe nesta atividade, qual seja, a de produzir
compartilhadamente conhecimento e, por esta via, caminhar para uma
sociedade mais igualitária.

Nessa mesma concepção, incentiva-se a interrelação entre essas organizações


que se concretiza na formação de uma rede de cooperativas. Assim, o papel da
incubadora não se constitui em uma atuação pontual, mas de uma ação
articulada, engajada na realidade social, envolvendo vários atores sejam eles
pessoas, grupos, cooperativas, parceiros ou a comunidade como um todo,
buscando impactar nas condições existentes de desemprego, precarização do
trabalho e exclusão social.

Muito trabalho há pela frente na busca de uma sociedade cuja tônica seja a
inclusão social, econômica e política de uma ampla camada da população
excluída do processo de modernização da economia.

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59
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60
AUTOGESTÃO NO BRASIL: A VIABILIDADE ECONÔMICA DE EMPRESAS
GERIDAS POR TRABALHADORES42

José Ricardo Tauile43


Eduardo Scotti Debaco44

Resumo: A economia popular solidária é, ao mesmo tempo, um segmento


produtivo e um movimento social. Os empreendimentos que dele participam
organizam-se sob a forma de sociedades comerciais ou civis autogeridas. A
autogestão vêm trazendo importantes benefícios para sociedade brasileira mas
nem sempre recebe dela e do poder público a devida atenção. Não obstante,
muitos avanços vêm sendo obtidos tanto na maturidade dos trabalhadores para
administrarem negócios coletivos quanto dos governos em apoiá-los. O
aprofundamento deste processo depende de um maior envolvimento da
sociedade como um todo no sentido de caracterizar melhor as dificuldades
encontradas, propor soluções e coordenar esforços.

Introdução

Ao mesmo tempo que a atual revolução tecnológica traz um aumento da


eficiência e da capacidade produtivas, observa-se o crescimento dos índices de
desemprego, subemprego e informalidade. Resulta daí que setores da
sociedade para os quais não se tinha políticas públicas que fossem além da
assistência social, começam a encontrar na economia popular solidária e na
autogestão uma possibilidade para melhorar sua qualidade de vida.

Apesar da multiplicidade de conceitos, por ora podemos caracterizar economia


popular solidária como o conjunto de empreendimentos produtivos de iniciativa
coletiva, com um certo grau de democracia interna e que remuneram o trabalho
de forma privilegiada em relação ao capital, seja no campo ou na cidade. Já a
autogestão, da forma que costuma ser utilizada na ainda incipiente literatura,
aparece mais como um ideal de democracia econômica e gestão coletiva a ser
perseguido do que como uma possibilidade prática. Assim, costuma-se chamar
de empresa de autogestão àquela que tem iniciativas concretas neste sentido e
situa-se dentro de um patamar mínimo de organização. Neste texto trataremos
principalmente de empreendimentos autogeridos cuja atividade econômica faça
parte da indústria de transformação. Em qualquer dos casos, é fundamental
diferenciar este movimento social do cooperativismo tradicional. Enquanto o
segundo, no Brasil, tem sido uma forma de precarização das relações de
trabalho, o primeiro é uma reação mais ou menos organizada a este processo.
Essa forma de organização pode ser uma alternativa efetiva ao trabalho
precário encontrada tanto por pequenos grupos quanto pelo conjunto de
trabalhadores de uma fábrica de médio ou grande porte e, às vezes, por toda
uma comunidade ou município.

42
Artigo selecionado pela SEP (Sociedade Brasileira de Economia Política) para ser
apresentado no VII Encontro Nacional de Economia Política e II Colóquio Latino-Americano de
Economistas Políticos no dia 30 de maio de 2002, em Curitiba.
43
Professor titular do IE/UFRJ.
44
Analista de Projetos do BRDE. Economista pela UFRGS e Mestre em Economia pelo
CAEN/UFC.

61
Num movimento dialético, a crescente quantidade de empresas autogeridas
associadas à ANTEAG (Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas
de Autogestão e Participação Acionária), entidade precursora do movimento de
autogestão urbana no país, é um legado da década de 90, período em que as
mais ortodoxas políticas neoliberais foram aplicadas no Brasil (e em muitos
outros países em desenvolvimento). Tolerar ou mesmo estimular a formação
de empreendimentos alternativos aos padrões capitalistas normalmente
aceitos, tais como cooperativas autogeridas é, objetivamente falando, uma
forma de reduzir o passivo corrente que se materializa em ondas de crescentes
desemprego e falências (ver SANTOS, 2002).

Tais empreendimentos encontram potencialmente no trabalho coletivo e na


motivação dos trabalhadores que os compõem, uma importante fonte de
competitividade reconhecida no capitalismo contemporâneo. Enquanto no
fordismo a competitividade é obtida através das economias de escala e de uma
crescente divisão e alienação do trabalho associadas a linhas produtivas
rígidas – automatizadas ou não -, na nova base técnica que está se
configurando, uma importante fonte de eficiência é a flexibilização. O chamado
modelo japonês, estabeleceu os novos e bem sucedidos padrões de
organização (social) da produção no o capitalismo contemporâneo. Nele,
busca-se recuperar a motivação e a participação, devolvendo, em certo
sentido, ao trabalhador uma parte do conhecimento sobre a produção que lhe
vinha sendo expropriado desde o início do capitalismo produtivo – e moderno
(TAUILE, 2001-b).

A autogestão, apesar de não ser uma idéia nova, pode ser vista hoje, como
uma radicalização deste processo de devolver ao trabalhador parte daquilo que
o capitalismo lhe foi tomando ao longo de séculos. Ao se recuperar
coletivamente o saber produtivo, por exemplo, se está dando um passo na
direção de reduzir ou mesmo, no limite, superar o que Marx chamou de
subsunção real do trabalho; ao criar formas de propriedade coletiva do capital
está se propondo a superação da subsunção formal do trabalho e quiçá, no
limite, do próprio capitalismo.

Na prática, porém, a autogestão no Brasil, ainda em estágios iniciais, enfrenta


todo tipo de dificuldades. Muitas delas são bastante diferentes daquelas com
que se deparam as empresas convencionais. A rigor, entretanto, não se pode
dizer a priori, que as chances de sucesso das empresas de autogestão sejam
menores ou maiores. Muitas delas venceram em terrenos onde as empresas
tradicionais fracassaram. Este mérito, porém, nem sempre é devidamente
reconhecido. A verdade é que ainda quando a autogestão mostra-se mais
eficiente, enfrenta-se uma série de preconceitos, inclusive por parte de órgãos
públicos.

São inegáveis os problemas decorrentes de trabalhar com os “restos do


capitalismo”. As empresas de autogestão são formadas por pessoas que não
possuem grande patrimônio pessoal e, normalmente, têm um reduzido grau de
instrução. Mesmo quando estas empresas têm à disposição equipamentos
para trabalhar, estes costumam ser antigos e, muitas vezes, obsoletos. A falta

62
de patrimônio faz com que a empresa nasça com uma estrutura de capital
deficiente e que freqüentemente a necessidade de capital de giro seja superior
à sua capacidade de financiá-lo. Outro problema está relacionado à falta de
instrução formal dos cooperativados e, particularmente, daqueles que ocupam
os cargos de direção. Não obstante o conhecimento prático e tácito que estes
trabalhadores tenham do processo produtivo em si, a sua carência de
conhecimentos técnicos e de experiência em questões mercadológicas, bem
como macro-institucionais, agrava as dificuldades naturais para se construir um
quadro de administradores com competência adequada àquelas novas (e
inovadoras) situações..

Pelo lado positivo, a autogestão traz potencialmente uma série de vantagens e


protege o negócio de certos riscos que as empresas convencionais correm.
Estar trabalhando num negócio que é seu e do qual o trabalhador participa das
decisões permite uma motivação maior apesar das adversidades. Por serem
proprietários, mas somente quando começam a sentir-se como tal (o que não é
trivial), os trabalhadores buscam conhecer melhor o negócio, com reflexos
positivos sobre suas atividades.

Outra fonte de eficiência nada desprezível diz respeito à transparência na


gestão, pois ela reduz as possibilidades de fraudes contra a empresa e de
desleixo pelos administradores; não custa ressaltar que comportamentos
destes tipos causam falências de sólidos negócios, muito mais freqüentemente
do que se possa imaginar. Resulta por sinal mais um benefício para sociedade,
além da geração, direta e indireta, de trabalho e rendajá que, muitas vezes, o
plano de auferir vantagens pessoais beneficiando-se do direito comercial e da
lei de falências, por parte de empresários, é frustrada devido à ação dos
trabalhadores inspirados pela autogestão.

Na experiência brasileira, as empresas autogeridas apresentam graus bastante


diversos de eficiência. Mesmo que apenas um grupo restrito possa apresentar
desempenho econômico-financeiro excelente, estes empreendimentos têm o
mérito de gerar ou preservar postos de trabalho e renda a um custo bastante
reduzido. Assim, há questões que parecem importantes de suscitar sobre a
viabilidade econômica destes empreendimentos:

1. O que deve-se entender por eficiência econômica analisando-se para além


da simples questão do lucro no curto prazo?
2. Até que ponto a sociedade deve apoiar estes empreendimentos, ou quando
deve-se julgar que eles sejam necessários? Que instrumentos usar ?
3. Podem as empresas de autogestão ser eficientes independentemente da
ação do Estado? Seria possível determinar condições necessárias para
isso?
4. Em que casos a ação do Estado seria desejável? Como políticas públicas
voltadas para estes empreendimentos podem viabilizar iniciativas que, de
outra forma, não sobreviveriam?

A proposta apresentada aqui é de discutir a validade das experiências de


autogestão a partir de aspectos internos à firma. Isto não quer dizer que as
questões referentes à economia solidária como forma social de organização da

63
produção sejam descartadas. Ao contrário, tais aspectos, apesar de fugirem ao
escopo do artigo proposto, servem de importante pano de fundo sobre o qual
este se desenrola. Afinal, não se entende construir uma autêntica economia
solidária sem empreendimentos autogeridos e sustentáveis; deste modo a
questão colocada é como, quando e por que viabilizá-los45.

O objetivo deste artigo é apontar linhas de pesquisa que propiciem o


entendimento de como as políticas públicas podem melhorar as oportunidades
de sucesso dos empreendimentos brasileiros de autogestão? A partir disso,
espera-se que seja possível desenhar ferramentas com as quais estas
empresas possam enfrentar de forma mais precisa e eficaz suas dificuldades.
Como, então, redefinir tais instrumentos (por exemplo, linhas específicas de
financiamento e fundos de aval), dotando-os de características que permitam
ampliar sua abrangência e impacto sociais. Outro aspecto importante a
destacar é a expectativa de que a disponibilização e a sistematização de
informações permitam superar o preconceito contra estas empresas por parte
de fornecedores e instituições financeiras.

Políticas públicas que têm por objetivo concretizar estas vantagens potenciais
começam a surgir nas esferas municipal e estadual. Tais políticas enfatizam
aspectos como o trabalho em rede, incentivos ao comércio solidário, formação
e capacitação técnica dos trabalhadores e crédito. Falta, todavia, um
conhecimento mais aprofundado da realidade que vivem estas empresas e
faltam também mecanismos legais e institucionais que tornem estas políticas
mais efetivas.

Experiências de Autogestão no Brasil Contemporâneo : Teoria e


Prática

A ANTEAG define a autogestão como o controle dos meios de produção e da


gestão pelos trabalhadores (ANTEAG, 2000). Dado o grau de instrução formal
geralmente baixo dos operários, a gestão democrática do negócio está no
centro das preocupações pois estes têm, via de regra, habilidade para produzir
mas encontram fortes dificuldades em gerir seus negócios. Já o aspecto
controle dos meios de produção também apresenta dificuldades significativas
de ordem legal e financeira. Neste caso, os trabalhadores enfrentam uma
dificuldade crônica: a falta de recursos próprios (ANTEAG, 1998).

Sem dispor de patrimônio pessoal que permita a integralização de capital social


significativo, o patrimônio líquido46 da empresa inicia com valores praticamente
simbólicos. O negócio começa, portanto, com fortes dificuldades de

45
Às vésperas da conclusão deste, o professor Luís Argemiro Brum da UNIJUÍ, publicou um
breve artigo sobre o assunto na Gazeta Mercantil de 13/3/2001 “Economia Solidária: elementos
para compreensão”. Apesar das semelhanças no tratamento de algumas questões, vale notar
que os trabalhos foram produzidos de forma totalmente independente.
46
O patrimônio líquido é a conta no balanço patrimonial que, situada do lado da origem dos
recursos, aponta qual o volume de recursos da empresa vem de fontes próprias. Estas fontes
são, basicamente, o capital social integralizado pelos sócios no início do negócio mais os
resultados (lucros ou prejuízos) acumulados ao longo da vida da empresa. O patrimônio líquido
é uma importante conta na análise da estrutura patrimonial das empresas, já que, em
comparação com outras contas, indica o grau de autonomia da mesma.

64
financiamento de suas atividades, com limitações para investir, defasado
tecnologicamente, sem capital de giro próprio, restrições no acesso ao sistema
financeiro e muitas outras dificuldades decorrentes desta situação. Assim, no
que diz respeito aos meios de produção, a situação que normalmente ocorre é
a disponibilidade farta de mão-de-obra mas sem acesso ao capital para tocar o
negócio adiante.

No caso dos ativos fixos, diversas saídas foram encontradas pelos


trabalhadores para superar sua escassez, havendo atualmente uma série de
mecanismos públicos que permitem este acesso. Existe uma facilidade maior
em disponibilizar equipamentos e prédios para os trabalhadores já que, se o
resultado não for positivo, ainda restarão bens materiais como fruto do projeto
fracassado. As empresas autogeridas têm acesso a estes recursos através de
doações ou empréstimos do poder público, ONGs e igrejas, ou através do
arrendamento de plantas industriais diretamente de seus proprietários ou ainda
via judicial no caso de falências.

O arrendamento de plantas industriais é o principal mecanismo utilizado pelas


empresas ligadas à ANTEAG. Essa situação geralmente ocorre quando há
uma falência ou a eminência de que isso ocorra. É importante fazer um
parêntese neste aspecto, já que as empresas, muito antes de falir, costumam
criar passivos várias vezes superiores aos seus ativos. Na realidade, devido a
uma série de expedientes usualmente praticados, esta situação prejudica muito
menos os parceiros privados do que aos empregados e ao poder público. Por
vezes, mesmo o setor público não parece se sensibilizar com as causas em
questão. Esse é o caso de um curtume em Santo Ângelo/RS onde as dívidas
com fornecedores foram praticamente zeradas; restaram uma dívida de R$ 15
milhões com o Banco Santander, herdada do Meridional, outra de R$ 5 milhões
com o Banco do Brasil e mais R$ 2 milhões de dívidas trabalhistas. Apesar de
o Banco do Brasil ser o síndico da massa falida, impôs diversas dificuldades
que acabaram por impedir o arrendamento da planta.

Os maiores empreendimentos autogeridos no país tiveram origem a partir de


processos como esse, tendo porém soluções mais bem sucedidas. A
Cooperminas, antiga CBCA, hoje com 400 sócios, situada em Criciúma/SC e
que desde 1917 produz carvão, vem sendo administrada desde 1987 pelos
trabalhadores permitindo uma série de avanços sociais para os mineiros além
da continuidade dos postos de trabalho até hoje (ANTEAG, 2000). O caso é
semelhante ao de muitas outras empresas, de tamanhos diversos, chegando a
gerar 4.000 postos de trabalho, num único empreendimento. Para citar um
exemplo recente de sucesso, dos cerca de 600 trabalhadores que perderam os
empregos em outubro de 2001 decorrentes da falência da Companhia Geral de
Fogões S.A., em Guaíba/RS, 150 estão voltando a trabalhar neste mês de
março de 2002, graças a um acordo na justiça possiblitado por a um
financiamento de R$ 600 mil reais concedido pelo Banrisul.

Ainda no ponto sobre o controle dos meios de produção, uma situação


recorrentemente difícil de contornar têm sido a falta de capital de giro. Como o
ativo fixo, o capital de giro pode ser financiado por recursos próprios ou por
recursos de terceiros. Os recursos próprios destinados ao financiamento do

65
capital de giro, teoricamente, são aqueles que excedem o capital imobilizado. É
recomendável, portanto, que uma parte do capital de giro seja financiada por
recursos de longo prazo, próprios ou de terceiros (MATARAZZO, 1998). Aqui é
que os empreendimentos autogeridos encontram as maiores dificuldades.

Como já foi visto, os recursos próprios são bastante escassos. Financiamento


de longo prazo para capital de giro para indústria, no Brasil, é usualmente difícil
de se obter. O principal mecanismo é o capital de giro associado a
investimentos fixos oriundo de recursos do PROGER e do BNDES. No entanto,
como o nome já indica, estes recursos representam uma fração do empréstimo
destinado a investimento fixo e as empresas nem sempre têm condições de
acessá-los ou necessidades imediatas de novos equipamentos. Já os recursos
de curto prazo exclusivamente destinados para financiamento do giro, vêm da
carteira comercial das instituições financeiras (com taxas de juro exorbitantes)
ou do crédito concedido pelos fornecedores. Ambos são difíceis de se obter,
especialmente no início do funcionamento dos empreendimentos autogeridos,
devido aos indicadores financeiros deficientes e agravado pelo fato de que, no
caso de falências, muitas vezes os fornecedores levaram calote ou por pouco
escaparam de ser caloteados pelo antigo dono. Com isso, demora algum
tempo para que se restabeleça a confiança do mercado quanto às chances de
sucesso do empreendimento.

Não raro essa situação é superada pelo comprometimento pessoal dos novos
administradores ou através do auxílio explícito da sociedade. Infelizmente, no
entanto, é comum ser esta dificuldade superada sem recurso ao espírito da
solidariedade, através da simples prestação de - mais - serviços. Como a
empresa só dispõe de máquinas e de pessoal, produz com a matéria-prima e a
marca de terceiros. Apesar de a empresa ser democrática internamente, os
trabalhadores continuam sendo explorados por uma empresa externa que não
tem nenhuma obrigação legal com trabalhadores além da relação comercial
com a empresa autogerida (e que lhes pertence).

O outro lado do problema, ou seja, a educação e a organização dos


trabalhadores para gerir, de forma democrática, o seu negócio é o que tem
recebido maior atenção do movimento social e dos intelectuais a ele ligados.

“Na perspectiva de ser dono do negócio, surgia a dúvida: o que é mais importante,
ter o controle da gestão ou o controle dos meios de produção? (...) Existem casos
de os trabalhadores gostarem tanto da gestão empresarial que assumem o
controle da empresa como gestores empresariais e se recusam a responder
enquanto verdadeiros donos coletivos da empresa. O caminho é educar os
proprietários coletivos para que assumam o controle da gestão. Não é por outra
razão que a Anteag investe 70% da sua força na educação dos gestores. Não
adianta ter o controle da empresa se não se tem controle da gestão”. (ANTEAG,
2000; p. 22)

Aqui parece que o recurso fundamental para que uma empresa autogerida
obtenha sucesso é a gestão do negócio. Sob uma ótica socialista, o
aprendizado dos trabalhadores em gerir empresas pode ser entendido como
uma finalidade em si já que, neste caso, a classe trabalhadora teria que
assumir coletivamente a operação da produção (SINGER & MACHADO, 2000).
Os operários sabem produzir mas este conhecimento existe de forma

66
fragmentada dentro de uma fábrica. Quem possui uma visão integral é o
gerente ou o proprietário. Para permitir a democratização da gestão é
necessária a apropriação coletiva desse conhecimento, daquilo que a ANTEAG
chama de saber coletivo dos trabalhadores (ANTEAG, 1998).

A confiança é fundamental neste processo. Numa empresa convencional, o


que garante o emprego, muitas vezes, é o caráter tácito das habilidades do
trabalhador. Já numa empresa autogerida, o que irá garantir a sua
sobrevivência será a capacidade dos novos proprietários reunirem um conjunto
de informações dispersas e delas fazerem sentido segundo seu interesse.. Ou
seja, não havendo concorrência entre os trabalhadores é seu interesse, se
educarem uns aos outros naquilo que conhecem e, especialmente, naquilo em
que se complementam. Para uma fábrica funcionar é necessário muito mais do
que saber operar máquinas; é preciso conhecer o mercado, organizar
documentos, cumprir exigências legais, estabelecer parcerias comerciais e
institucionais.

A confiança, repetimos, é um ativo intangível dos mais importantes neste


processo. É ilustrativo o episódio de uma fábrica do setor sucroalcooleiro no sul
do país que, enquanto empresa convencional, nunca havia atingido sequer
50% de ocupação da capacidade instalada. Sua produção depende da matéria-
prima produzida por pequenos agricultores no entorno da planta industrial.
Devido aos desmandos dos antigos proprietários, os produtores rurais não
plantavam tudo o que podiam. A empresa faliu e os agricultores assumiram a
usina junto com os ex-funcionários. A gestão austera e a confiança adquirida
em meio a importante mobilização social (toda a comunidade depende, direta
ou indiretamente, daquele negócio) permitiram que a taxa de ocupação viesse
batendo recordes históricos até ultrapassar os 60% na última safra. Para a
próxima, já está garantido que este recorde será superado novamente, devido
à área plantada.

Assim, a capacidade de gerir o negócio por parte dos trabalhadores tem sido
uma preocupação fundamental tanto das instituições oriundas do movimento
social quanto das políticas públicas da área de economia popular solidária.
Como já mencionamos, as dificuldades encontradas aqui também são muitas.
Não custa enumerar aqui algumas das principais: o baixo grau de instrução
formal dos trabalhadores, o caráter inovador desta forma de gestão, a
fragmentação do conhecimento e o seu caráter tácito. Este último aspecto é,
talvez, a maior dificuldade dos técnicos que assessoram tais empreendimentos.
Nem sempre é possível se fazer compreender pelos trabalhadores ou
conseguir apontar precisamente os problemas e soluções que viabilizarão o
projeto. Há uma barreira cultural pregressa, promovida pela lógica capitalista
de produzir na qual os trabalhadores, enquanto assalariados, estavam
subsumidos e que tem se revelado difícil de superar.

67
Eficiência Econômica das Empresas de Autogestão

Eficiência pode ser considerada uma medida da capacidade que agentes ou


mecanismos têm de melhor atingir seus objetivos, de produzir o efeito deles
esperados, em função dos recursos utilizados. O conceito ortodoxo, expresso
pelo ótimo de Paretto, vê como eficiente uma condição onde os agentes
maximizam suas funções objetivo. Segundo ele, é eficiente, para a firma,
maximizar o lucro ou minimizar os custos de produção e, para o consumidor,
maximizar a satisfação ou minimizar as despesas. (MILLER, 1981) Estes
conceitos, da forma como vem sendo apresentados na teoria econômica,
dependem de funções objetivo contínuas e “bem comportadas”.

A crítica mais contundente a este conceito de eficiência econômica não vem


dos economistas, mas da natureza47. O que dizer a respeito de eficiência
econômica e satisfação dos consumidores quando o que está em jogo são
recursos não renováveis?48 As propostas decorrentes das análises ortodoxas
sobre a questão recomendam que se impute um custo social para a poluição a
ser pago, sob a forma de uma taxa, pelas indústrias responsáveis pela mesma
(BAUMOL & OATES, 1988). Se, por um lado, a taxação para emissão de
efluentes é cara demais para que os países desenvolvidos aceitem, por outro
lado é insuficiente para responder aos problemas hoje colocados. Senão, o que
dizer a respeito do que seria um imposto satisfatório para permitir que grandes
empresas acabem com as reservas de água potável do mundo?

Neste sentido, cabe notar que as associações de recicladores de resíduos


sólidos apresentam um exemplo importantíssimo. No conceito de eficiência
tradicional, ou seja, da relação entre insumo e produto, estes empreendimentos
são um grande fracasso. O produto resultante do processo de coleta e triagem
do lixo é muito inferior aos custos de produção, só sendo viável devido aos
importantes subsídios públicos, sob a forma de coleta e entrega dos resíduos
nos galpões. No entanto, esta é hoje uma política pública com aprovação
praticamente unânime na sociedade. O caso é que, além do plástico, do papel,
do vidro e dos metais, estes galpões produzem emprego, renda, qualidade de
vida, diminuição do volume de lixo em aterros sanitários, redução no
desmatamento, menos lixo nos arroios, reaproveitamento de recursos que
demorariam séculos para serem biodegradados, etc. Os benefícios sociais daí
resultantes não são remunerados pelo mecanismo de mercado.

Se eficiência diz respeito aos efeitos esperados, temos então que encontrar
uma forma de incluir nestes efeitos esperados pelas indústrias não apenas
mercadorias para a sociedade e lucro para o proprietário, mas também postos
de trabalho, qualidade de vida, preservação ambiental e valorização do ser
humano. Tais questões não podem ser colocadas como sendo juízos de valor,
fora do escopo do estudo das Ciências Econômicas. Deste modo, a discussão
sobre o conceito de eficiência econômica envolve um debate que diz respeito
não somente à rentabilidade das empresas mas também aos benefícios sociais

47
O que não deixa de ser interessante dada a origem positivista da escola neoclássica.
48
O conceito de recurso natural não-renovável não inclui a água potável, por exemplo, mas há
um debate mundial sobre a escassez desta.

68
por elas gerados, sendo aceitável que o poder público as subsidie, de alguma
forma, para que possam competir no mercado.

Nem todas as empresas autogeridas, porém, dependem de subsídios para


competir. Muitos são os casos em que estas foram capazes de ser mais
rentáveis do que empresas convencionais que as antecederam, mesmo sob
condições mais adversas. Essa situação fica mais evidente num contexto de
falência, onde a gestão tradicional levou a empresa ao fracasso e, quando
arrendada por iniciativa dos ex-funcionários, conseguiram se reerguer.

Esse foi o caso de uma empresa do setor têxtil que formou uma cooperativa
com cerca de 100 trabalhadores que perderam o emprego no processo de
falência. Esta empresa conseguiu, em menos de 3 anos, acumular recursos
próprios de tal ordem que permitiram que a cooperativa comprasse a planta
industrial da massa falida através de um leilão judicial. A diferença foi apenas
de gestão, como em muitos outros casos fica a dúvida se a antiga direção era
fraudulenta ou apenas incompetente. Este não é um caso isolado de sucesso
e pode-se enumerar exemplos de setores econômicos variados como o
calçadista, o metal-mecânico, o alimentício e outros. Apesar dos fatores que
determinaram o sucesso de empresas autogeridas onde outras fracassaram
ainda merecerem melhor aprofundamento, já é possível identificar alguns
deles. O primeiro é que, como já indicado acima, a legislação tributária e a
legislação trabalhista facilitam as fraudes e a má fé e, em especial, a legislação
comercial e a lei de falências dificultam a comprovação de fraudes que
dilapidam o negócio. Bancos públicos também costumam fazer negócios
duvidosos com empresas às vésperas de fechar suas portas. Assim, quando
uma empresa fecha, os principais credores freqüentemente são os
trabalhadores, o erário e as instituições financeiras públicas. Quando uma
empresa autogerida consegue arrendar na justiça uma dessas planta, além de
manter os postos de trabalho e o patrimônio da massa falida, o fato em si
também costuma representar uma dificuldade a mais para os fraudadores.

De fato, os determinantes para a obtenção do sucesso comercial são bastante


diversos. Um deles é que, como donos, os trabalhadores têm diversos motivos
a mais para se empenhar em seu trabalho. É fato que as pequenas melhorias,
ou inovações, feitas no cotidiano da fábrica, melhorando a qualidade, a
produtividade e reduzindo o desperdício são fontes importantes de
competitividade nos dias de hoje (TAUILE, 2001a). Se estas melhorias
revertem de fato em favor dos trabalhadores, estes têm muito mais interesse
em realizá-las. Outro fator é que a remuneração e a própria manutenção dos
postos de trabalho dependem do desempenho destes trabalhadores no sentido
de aumentar competitividade.

No Brasil, a utilização da força de trabalho vem ocorrendo de maneira


predatória. O mercado de trabalho não valoriza devidamente a qualificação dos
trabalhadores, a rotatividade é mantida em níveis absurdamente altos como
forma de disciplinar os trabalhadores e os salários são bastante baixos se
comparados com a maioria dos países em desenvolvimento. Assim, a
flexibilização do trabalho tem sido entendida por aqui como precarização das
relações de trabalho (CARVALHO, 1994). Nas empresas de autogestão, o

69
objetivo de flexibilizar a produção deve ser mantida, mas sem precarização,
com baixa rotatividade e manutenção do número e da qualidade dos postos de
trabalho, diferentemente do que vem ocorrendo tradicionalmente no setor
produtivo.Apesar dos muitos exemplos de sucesso, não existe uma
sistematização sobre quais são as condições que o favorecem. Por ora, só é
possível concluir o aspecto eficiência econômica da autogestão com a
enumeração de condições sob as quais esta forma de organização da
produção apresentou desempenho especialmente satisfatório. As empresas de
autogestão têm sido mais eficientes quando se trata de coibir gestões
empresariais incompetentes, fraudulentas e gananciosas (no sentido de
proprietários que estabelecem sua própria remuneração em patamares
incompatíveis com a capacidade da empresa, extraindo uma mais valia
excessiva). Ainda outro aspecto interessante e digno de nota, é a capacidade
que a autogestão teve de introduzir maior flexibilidade em fábricas com gestão
e equipamentos antigos; em diversos casos, fábricas praticamente obsoletas
apresentam indicadores econômicos superiores a suas concorrentes
convencionais com equipamentos melhores.

No caso específico das falências, muitas delas estão associadas a dívidas que
se acumularam a longo de anos e que acabam por impor um custo financeiro
insuportável. Quando os trabalhadores assumem a planta, geralmente o fazem
através de arrendamento, sem assumir as dívidas, o que é um bom negócio
para todos já que, além de preservar postos de trabalho, reduz
significativamente os custos da massa falida e valoriza o patrimônio,
beneficiando os credores (entre os quais os próprios trabalhadores). É evidente
que estas observações ainda carecem de maior sistematização; porém, dado o
acúmulo existente e a oportunidade (e a necessidade) de divulgá-las, parece
ser a avaliação possível neste momento.

Políticas Públicas Brasileiras para Economia Popular Solidária

Se a autogestão tem de fato tamanho potencial de beneficiar a sociedade


brasileira, parece evidente a necessidade de o poder público fomentá-la,
suprindo as deficiências que ela apresenta em seus estágios iniciais no Brasil.
Entre as experiências mais importantes de políticas públicas para a economia
popular solidária no meio urbano pode-se citar o Programa Economia Popular
Solidária (EPS) do Estado do Rio Grande do Sul, os programas de algumas
prefeituras brasileiras e as incubadoras de cooperativas populares existentes
em diversas universidades públicas e privadas.

O programa gaúcho é o mais abrangente em número de empresas e


trabalhadores envolvidos. Também é o mais ambicioso em termos de objetivos
propostos. O Programa EPS, ligado à Secretaria do Desenvolvimento e dos
Assuntos Internacionais (SEDAI), foi constituído através de decreto do
Governador. Para participar do programa, as empresas devem se constituir sob
a forma de cooperativa, sociedade por cotas, associações ou sociedades
anônimas de capital fechado. Também podem participar grupos em processo
de formalização. Outras exigências são: a democracia na gestão e na
propriedade, remunerar o trabalho de forma privilegiada em relação ao capital,

70
não ter empregados em número superior a 10% ao do total de associados e ter
mais de 5 sócios (RIO GRANDE DO SUL, 2001a).

Os instrumentos criados por estas políticas públicas ainda são incipientes, mas
começam a ganhar força e objetividade. Pode-se dividir os instrumentos
existentes ou em elaboração em 5 eixos, como no programa gaúcho (RIO
GRANDE DO SUL, 2001b):

• Formação e educação em autogestão;


• Capacitação do processo produtivo;
• Financiamento;
• Comercialização;
• Incubadoras de economia popular solidária.

Os eixos de formação e educação em autogestão e capacitação do processo


produtivo, que o Governo gaúcho achou por bem distinguir, são tratados
conjuntamente pela maioria das políticas públicas e ONGs da área. Assim é
que a ANTEAG foi chamada a contribuir com a SEDAI por possuir um
programa de educação entre os mais reconhecidos, contando com 10 cadernos
que abordam problemas técnicos de maneira simples e do ponto de vista da
autogestão. A exemplo da ANTEAG, as incubadoras ligadas às universidades
também oferecem assessoria técnica específica e cursos por empresa , o
mesmo acontecendo com as Prefeituras. Esse é, portanto, o eixo mais
disseminado e busca suprir a deficiente educação formal e a falta de
experiência em administrar por parte dos trabalhadores envolvidos.

No Rio Grande do Sul, o que aqui é chamado de capacitação do processo


produtivo, foi delegado a técnicos ligados a diferentes universidades, com
formação nas áreas de Economia, Administração, Contabilidade e Engenharia.
Estes técnicos prestam assessoria técnica para a gestão dos negócios e
elaboração de projetos de financiamento, em colaboração com os monitores
técnicos, pessoal com experiências diretamente relacionadas à autogestão.

No aspecto de financiamento, existem diversas ONGs que oferecem fundos


para pequenos projetos, sendo a Cáritas uma das mais importantes. Também
vêm crescendo as instituições de microcrédito com apoio de diversas
Prefeituras Municipais e participação do BNDES. A questão é que estes
recursos são mais voltados para empreendimentos familiares ou de serviços e
dificilmente resolvem problemas de plantas industriais. Técnicos do BNDES
têm buscado formas de oferecer crédito para estas empresas mas esbarram na
dificuldade de adequar às exigências legais e às normas internas daquele
banco de investimento, os procedimentos e os indicadores de desempenho
econômico relativos às (entidades e) empresas solicitantes. Vale destacar que,
igualmente, o Banrisul e a SEDAI/RS criaram linhas de crédito especiais para o
setor, além de disponibilizar técnicos para elaboração do projeto e
acompanhamento da execução. Tais esforços trouxeram avanços significativos
mas ainda existem algumas dificuldades na questão das garantias reais e da
disponibilidade de capital de giro. Assim é que este crédito é oferecido às
empresas com capacidade de pagamento, ou seja, com rentabilidade positiva.
O setor industrial (ainda) não conta com subsídios semelhantes aos que os

71
agricultores costumam receber, com taxas de juros bastante mais reduzidas, às
vezes negativas, até mesmo para capital de giro.

O aspecto comercialização ainda é o mais frágil, ao menos, no setor urbano da


economia popular solidária. No setor rural, menos complexo em termos do
número de processos envolvidos, existem redes que conseguem levar do
produtor ao consumidor, passando por uma agroindústria solidária, sem
intermediários. No setor de serviços, algumas incubadoras conseguiram abrir
as portas das universidades na prestação de serviços terceirizados. Já para as
iniciativas autogeridas da indústria de transformação, excluindo o setor de
alimentos, ainda não se tem resultados satisfatórios.

É neste contexto que se carece de estímulo para a constituição de redes de


comunicação que, através espaço cibernético, unam as empresas
autogestionárias, permitindo que não só aufiram economias de escala no que
tange a compras e vendas (dentro e fora da rede) como também desenvolvam
economias de solidariedade que viabilizem complementar competências e
suprir deficiências deste subconjunto expressivo da chamada economia
solidária no Brasil. A política de constituição de redes pode cobrir diversos
aspectos além do comercial, articulações entre empresas e instituições podem
ser úteis na difusão de tecnologias e apoio político-institucional para o setor.
Estes últimos são especialmente importantes para empresas situadas em
pontos mais avançados de cadeias produtivas complexas, ou seja, que
produzem bens intermediários e bens de capital. Para estas, a economia
popular solidária não apresenta (ainda) uma densidade comercial significativa
mas o apoio de instituições como o judiciário e o poder público municipal e a
troca de informações com outras empresas são questões fundamentais.

As incubadoras de economia popular solidária talvez sejam a política pública


mais difundida. As incubadoras, normalmente criadas pela comunidade
universitária, oferecem formação, acompanhamento e alguma estrutura física
para que as empresas iniciem. A ênfase destes projetos também é naqueles
serviços mais populares, tendo alguma dificuldade para oferecer assessoria a
empreendimentos industriais.

Como pode-se notar, apesar de nem sempre serem suficientes, existem


iniciativas do poder público que mostram preocupação com as principais
dificuldades apresentadas pelos empreendimentos autogeridos. Todavia, ainda
falta muito para que as políticas públicas consigam extrair todo o potencial
econômico e social deste movimento. É fundamental que estas políticas partam
de análises mais aprofundadas da realidade vivida pelos empreendimentos,
que tenham mais agilidade para responder aos problemas no momento que
estão ocorrendo e que sejam mais disseminadas pelo país. Não obstante os
pertinentes mas breves exemplos aqui anotados, para que os instrumentos de
intervenção ganhem em qualidade, é necessário que as principais dificuldades
sejam melhor catalogadas, classificadas e explicadas de modo que se possa
criar ou encontrar meios de ação mais apropriados para que o poder público
possa agir direta e eficientemente sobre suas causas. Avançou-se muito nos
últimos anos e existem muitas soluções disponíveis na esfera institucional, no

72
entanto, freqüentemente estes mecanismos carecem de uma coordenação
mais apurada entre si.

Conclusões

À luz do exposto a questão central parece ser discussão sobre a viabilidade da


expansão desta forma social de organização da produção no ambiente do
capitalismo contemporâneo. Diante da importância do tema, a carência de
informações e a deficiência de análises apontadas justificam a atenção e o
esforço de trabalhos posteriores. Muitas são as dificuldades enfrentadas por
estes empreendimentos, conhecê-las melhor é fundamental para se aumentar
as possibilidades de superá-las.

É necessário aprofundar o debate em duas direções, a primeira diz respeito às


condições sistêmicas para o crescimento da economia popular solidária. A
outra direção é estudar as questões internas às firmas, suas particularidades e
como gerí-las de forma que o sucesso econômico não acabe em fracasso da
autogestão e vice-versa. Em outras palavras, não é suficiente para as
empresas de autogestão, do ponto de vista de seus sócios-trabalhadores, que
estas apresentem rentabilidade excelente; este objetivo deve ser alcançado
sob uma gestão democrática, com a manutenção e criação de postos de
trabalho e com qualidade de vida para aqueles que participam do projeto.

Também é necessário construir modelos que permitam compreender melhor


este movimento e que sirvam para orientar o poder público sobre como atuar.
As políticas para o setor surgem de forma um tanto espontânea como
decorrência das dificuldades em obter os recursos necessários e a partir da
pressão exercida pelos setores da sociedade ligados a este tema. É preciso
desenhar melhor os instrumentos e combiná-los de forma adequada pois,
muitas vezes, a demora em oferecê-los dificulta a obtenção das sinergias
planejadas. A solução certa no momento errado pode não resolver o problema
a que se propõe e, às vezes, pode até agravá-lo.

Apesar de tudo, os resultados positivos que vêm sendo acumulados pelos


trabalhadores nesse processo não são nada desprezíveis. Esta é, ainda, uma
das formas mais baratas de gerar/manter postos de trabalho, especialmente no
setor industrial. Os exemplos citados aqui representam apenas uma pequena
amostra dos frutos que vêm sendo - e ainda podem ser -colhidos, dado que
este é um processo em estágio ainda inicial. O objetivo daqueles que
participam deste esforço é ver o dia em que pessoas, máquinas e prédios não
fiquem desempregados por razões jurídicas ou falhas nos mercados. Num país
subdesenvolvido como o Brasil, imaginar que fábricas possam ficar paradas
por questões jurídicas ou que pessoas motivadas e qualificadas não tenham
trabalho por falta de apoio institucional é lamentável; mas não podem ser
desanimador.

73
Referências Bibliográficas

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75
ECONOMIA POPULAR , SOLIDÁRIA E AUTOGESTÃO: O PAPEL DA
EDUCAÇÃO DE ADULTOS NESTE NOVO CENÁRIO (TENDO COMO
PERSPECTIVA A ATUAÇÃO DA UFRGS)

Luís Oscar Ramos Corrêa49

A Educação de Jovens e Adultos (EJA), nesta última década, tem sido alvo de
reflexões/ações que colocam em xeque concepções e abordagens, algumas
igênuas outras mecanicistas/utilitárias, até então dominantes nos cursos,
projetos, mutirões em torno da escolarização (alfabetização) de jovens e
adultos.

A falta de políticas públicas específicas para esta área e este público foi
certamente um dos pontos que levaram à proliferação de iniciativas totalmentes
desprovidas de um caráter crítico/reflexivo que contribuísse para que
trabalhadore/as alunos/as se autorizassem a realizarem ações mais concretas
em busca de uma melhor qualidade de vida sua, dos seus e da comunidade
onde estão inseridos50.

Por outro lado, com a reestruturação dos meios/modos de produção tendo


como pano de fundo as políticas econômicas (neo liberais) adotadas neste
últimos 15 anos, houve uma forte redução sistemática do emprego/trabalho.
Poderíamos citar aqui algumas destas modificações no sistema de produção
capitalista: o forte investimento em novas tecnologias de ponta: informática,
micro eletrônica, micro mecânica, robótica, biotecnologia, etc. (É bom
lembrarmos que estas tecnologias – na sua grande maioria - têm sido
patrocionadas e elaboradas pelas próprias empresas capitalistas e seus
laboratórios); novas formas de gestão: qualidade total, círculos de controle de
qualidade, reengenharia, etc. (Na sua grande maioria, estas formas foram
importadas do modelo japonês – entenda-se o Toyotismo ); flexibilização
financeira e das relações de trabalho (na sua grande maioria financiadas e
idealizadas pelo Banco Mundial, FMI, BIRD, etc.).

Também é preciso levar em consideração que as políticas econômicas


adotadas tendo como objetivo a estabilização dos preços (contenção da
inflação), levam consequentemente a criação de um exército de reserva (tanto
industrial quanto terciário), que tem um papel fundamental de estabilizador na
atual economia51.
49
Técnico da Pró-Reitoria de Extensão/Depto. De Educação e Desenvolvimento Social
membro da Coordenação dos Núcleos de Economia Popular e Solidária e de Ensino, Pesquisa
e Extensão em Educação de Jovens e Adultos/UFRGS.
50
Algumas iniciativas pioneiras, desenvolvidas por Prefeituras, foram fundamentais para
suscitar esta discussão, tais como: MOVA/SP na gestão de Paulo Freire na Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo, MOVA/RS desenvolvido a mais de 5 anos pela
Prefeitura do Município de Porto Alegre e Programa de Ensino Fundamental para Jovens e
Adultos Trabalhdores/as da UFRGS, prêmio MEC de qualidade no Trabalho/1998.
51
Paul Singer no livro Globalização e desemprego – diágnostico e Alternativas, nos mostra os
caminhos pelos quais a política Econômica adotada, a de contenção da inflação, pode diminuir
a produção de bens, diminuindo nesse sentido o emprego, influindo no não aumento de
salários (nessa prática, cria-se um exército de reserva tanto industrial como de prestação de
serviços) diminuindo também o consumo, portanto diminui a demanda, equilibra a oferta,
contendo à inflação. Do outro lado desta estabilidade econômica está o caos social a qual

76
Isto tem levado os setores populares a desenvolverem as mais variadas
formas/atividades como alternativas de geração de renda e trabalho52. Estas
formas/alternativas têm sido constantemente identificadas como parte da
economia popular, mas nem sempre solidária.

Economia Popular e Solidária

Conforme TIRIBA (1998), nem toda economia popular é solidária e nem toda
economia solidária é popular. É necessario refletir sobre qual o conceito/prática
de economia popular e solidária que queremos construir.

A autora53 compreende a economia popular como sendo composta,


basicamente por cinco tipos de atividades e empreendimentos, explicitando a
diversidade e complexidade que permeiam estas relações: soluções
assistenciais e filantrópicas (mendigância, Programas Oficiais de assistência,
etc); atividades ilegais e pequenos delitos (venda de drogas, prostituição,
pequenos furtos, etc); iniciativas individuais não estabelecidas e informais
(vendedores em geral, camelôs, etc); microempresas e pequenas oficinas e
negócios de caráter familiar, individual ou de dois ou três sócios (as mais
diversas formas de associativismo); organizações econômicas coletivas,
populares e solidárias, como as Cooperativas.

Diante desta perspectiva, podemos perceber que nem todas as atividades


desenvolvidas na economia popular tem o caráter solidário. Seu principal
objetivo é o de possibilitar a subsistência dos que a praticam e dos seus.

Também na dita economia solidária, podemos perceber que nem todas as


iniciativas são populares ou coletivas. Tiriba (1998) nos alerta para
possibilidade de encontrarmos elementos de solidariedade em relações de
outros extratos sociais, que não populares.

A necessidade desta diferenciação é fundamental pois, a tendência a


generalização destes conceitos pode levar-nos a equívocos de análise de
determinadas iniciativas econômicas, principalmente na elaboração de políticas
públicas para este setor, o da economia popular e solidária.

Quando nos referimos a economia popular, estamos nos referindo a um


determinado público, que abrange desde desempregados/as qualificados ou
não, aos totalmente excluídos dos processos de desenvolvimento de
tecnologias, dos programas sociais oficiais (saúde, habitação, educação,
aposentadoria, etc), da distribuição de renda e do sistema econômico oficial. E
se esta economia popular, de iniciativa popular, deseja ser solidária, é

estas políticas econômicas parecem estar dissociadas. Nesta lógica, o desemprego é um


resultado de uma política pensada estrategicamente e não apenas consequência isolada da
reordenação dos meios de produção.
52
Autores como TIRIBA (1998), FRIGOTTO (1998), ARRUDA (1998), GUIMARÃES (1998),
MANCE (1999) e principalmente Paul Singer, entre outros, tem acirrado esta discussão.
53
Texto da Professora Lia Vargas Tiriba - Economia Popular e Produção de uma Nova Cultura
do Trabalho: contradições e desafios frente à crise do trabalho assalariado, in Educação e crise
do trabalho: Perspectivas de final de século, Org. Gaudêncio Frigotto.

77
necessário averiguar de qual solidariedade estamos falando/agindo. O sentido
do termo solidariedade que temos trabalhado, não se mescla ao paternalismo,
caridade ou filantropia, mas sim, com comprometimento do trabalho coletivo,
cooperativo, comunitário, comprometimento este que perpassa por uma nova
ética nas relações humanas, nova ética nas relações de trabalho, econômicas
e comerciais.

Gonçalo Guimarães54 em entrevista recente, (Jornal da UFRGS, p.6/julho-


2000) entende que não existe um movimento de Economia Solidária, mas sim
movimentos de resistência:

"Estes movimentos estão tomando corpo, estão trabalhando na linha da


sobrevivência e estão tendo respostas. Não contam com o apoio financeiro. Não
conheço nenhum que tenha tido injeção de dinheiro, todos surgem de economia
altamente popular. Essa economia solidária é, na realidade, uma possibilidade."
(GUIMARÃES, 2000).

E vai mais adiante, ao afirmar que é necessário ter uma identidade, para que
se possa construir a Economia Solidária, e essa identidade não deve ficar
restrita a área econômica, pois:

"não há empreendimento sem sociedade. Eu não posso imaginar uma forma de


produção se não imaginar um tipo de sociedade. Estudam-se as sociedades
anteriores pela forma de produção. Uma é conseqüência da outra. A
Industrialização não surge sem mudar a cidade, sem mudar a relação de poder.
Não é possível uma produção capitalista numa sociedade solialista e vice-versa.
Se estamos pensando numa outra forma de produção, não consigo ver esta outra
forma de produção sem estar inserida numa forma de sociedade. A sociedade é
uma organização muito maior do que a produção. Só dá para entender economia
solidária como um projeto politico em sociedade (idem).

Isto é, a Economia Solidária não pode ser vista apenas como um movimento
econômico, é necessário que estaja ligado a outros movimentos sociais que
buscam a melhoria de qualidade de vida da população em geral.

Paul Singer entende a Economia Solidária como mais uma estratégia de luta
do movimento popular e operário contra o desemprego e a exclusão social:

"A construção da economia solidária é uma destas outras estratégias. Ela


aproveita a mudança nas relações de produção provocada pelo grande capital
para lançar os alicerces de novas formas de organização da produção, à base de
uma lógica oposta àquela que rege o mercado capitalista. Tudo leva a acreditar
que a economia solidária permitirá, ao cabo de alguns anos, dar a muitos, que
esperam em vão um novo emprego, a oportunidade de se reintegrar à produção
por conta própria individual ou coletivamente..."(SINGER, 2000 p. 138).

Ampliando e qualificando a discussão, Euclides Mance (1999 p.178) tensiona


no sentido de irmos para além do conceito de "economia solidária", refletindo
que a noção, no seu sentido mais específico, de "economia" como "... ciência
que trata dos fenômenos relativos à produção, distribuição, acumulação e

54
Gonçalo Guimarães é Coordenador Nacional da Rede de Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares de Universidades Brasileiras, ligado a Rede da Unitrabalho, rede que
congrega mais de 82 Universidades Brasileiras. O referido autor é, também Coordenador da
COOPE/UFRJ, e possui vários livros e artigos publicados sobre este tema.

78
consumo de bens materiais ou no sentido mais genérico da arte de bem
administrar um estabelecimento qualquer...", não abarca todo o processo que
envolve este fenômeno, isto é, a dita economia de solidariedade não pode ficar
atrelada apenas aos indicadores ou as razões econômicas, de gerarem "novos
postos de emprego", de reintegração de trabalhadores/as ao mercado formal
de trabalho, de incentivar empreendimentos populares e solidários
(autogestionários ou não) com vistas apenas a virem competir na economia do
mercado capitalista, da distribuição de renda. Também nesse sentido, propõe o
que ele chama de "Colaboração Solidária", que envolve estes procedimentos
acima citados, mas que vai além:

"...ao considerarmos a colaboração solidária como um trabalho e consumo


compartilhados cujo vínculo recíproco entre as pessoas advém, primeiramente, de
um sentido moral de corresponsabilidade pelo bem-viver de todos e de cada um
em particular, buscando ampliar-se o máximo possível o exercício concreto da
liberdade pessoal e pública, introduzimos no cerne desta definição o exercício
humano da liberdade..." (Ibidem, p.178).

Mance enfatiza o fator da co-resposabilidade, de uma nova ética nas relações


econômicas, sociais, culturais e políticas no conceito de colaboração solidária:

"...O objetivo da colaboração solidária, entretanto, é garantir a todas as pessoas


as melhores condições materiais, políticas, educativas e informacionais para o
exercício de sua liberdade, promovendo assim o bem-viver de todos e de cada um
...mais do que isso, trata-se de uma compreensão filosófica da existência humana
Segunda a qual o exercício da liberdade privada só é legítimo quando deseja
liberdade pública, quando deseja que cada outro possa viver eticamente a sua
singularidade dispondo das mediações que lhe sejam necessárias para realizar –
nas melhores condições possíveis – a sua humanidade, exercendo a sua própria
liberdade. Igualmente, sob esta mesma compreensão, a liberdade pública
somente é exercida de modo ético quando promove a ética realizaçào da
liberdade privada..."(Ibidem, p.179).

Esta discussão levanta uma das questões cruciais da economia (ou


colaboração) solidária: a de que as várias formas de empreendimentos
populares e solidários, que tem sido incubados, formados, assessorados por
diversas organizações, públicas estatais ou não, e por agentes sociais das
mais variadas áreas, dificilmente irão proposperar na economia capitalista, se
não estiverem conectados a redes de consumo ético e solidário. Aqui a
colaboração do livro de Mance torna-se fundamental, pois podemos perceber,
pelos vários autores que citamos acima e pela nossa própria experiência55, que
os empreendimentos solidários não podem se tornar "ilha da fantasia"56, algo
que por si só superaria as desigualdades econômicas / políticas /sociais e
culturais.

Se faz necessário, nessa concepção, articular os empreendimentos populares


e solidários de forma que estes possam ter a possibilidade de realizarem
55
Sou integrante do Núcleo de Economia Popular e Solidária da PROREXT/UFRGS. Temos
assessorado, incubado uma série de iniciativas/empreendimentos populares e solidários, mas
sempre procurando integrá-los a uma rede de economia (colaboração?) solidária, que é
desenvolvida pela Cooperativa Compras Coletivas, que foi incubada e é assessorada pelo
Núcleo/UFRGS.
56
Este termo se refere a um seriado antigo da TV em que determinados convidados ficam
hospedados em uma ilha onde tudos os desejos podem vir acontecer, idealisticamente.

79
negócios solidários entre os mesmos (sem descartar o mercado capitalista
formal), isto é, fomentar as redes de colaboração solidária. Desta forma a
atenção a expressão utilizada por Mance é essencial, pois além de negociar,
os empreendimentos de economia solidária necessitam também de trocar
conhecimentos, tecnologias e experiências. Nesse sentido a atenção vai para
além dos fatores econômicos, pois necessariamente deve-se incentivar todo
um conjunto de ações solidárias, entre elas a do consumo ético e solidário.
Assim, um empreendimento que disponibiliza sua produção para uma
determinada rede, precisa também se dispor a consumir produtos oferecidos
por outros empreendimentos na mesma rede, não só pode consumir mas
também trocar informações, soluções e ou problemas enfrentados. Mance
conceitua redes solidárias como sendo:

"...uma articulação entre diversas unidades que, através de certas ligações,


trocam elementos entre si, fortalecendo-se reciprocamente, e que podem se
multiplicar em novas unidades, as quais, por sua vez, fortalecem todo o conjunto
na medida em que são fortalecidas por ele, permitindo-lhe expandir-se em novas
unidades ou manter-se em equilíbrio sustentável. Cada nódulo da rede representa
uma unidade e cada fio um canal por onde essas unidades se articulam através de
diversos fluxos. Um príncipio básico dessa noção de rede é que ela funciona como
um sistema que se auto-reproduz, isto é, como um sistema autopoiético..."
(Ibidem, p.24).

Neste panorama o consumo deve ser discutido criticamente pois, tudo que
consumimos está envolto em um processo produtivo e a um determinado
conceito de sociedade:

"...o consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita não
apenas considerando o nosso bem-viver pessoal, mas igualmente o bem-viver
coletivo. Esse tipo de conduta somente se torna possível quando as pessoas
compreendem que a produção encontra a sua finalidade – ou seu acabamento –
no consumo e que ele tem o impacto sobre todo o ecosistema e sobre a
sociedade em geral..."
(Ibidem, p.29).

Isto é, todo o produto produzido ou serviço prestado tem algum tipo de trabalho
humano (e consumido por nós) e pode Ter sido explorado pelo capital
possibilitando ao dono do empreendimento acumular mais capital, tendo como
base a expropriação da mais valia absoluta, relativa e extra. Sem falarmos da
devastação ambiental e da poluição que poderá estar causando determinado
processo produtivo.

Longe de esgotarmos a polêmica ou o assunto, nos parece que a


complexidade do conceito de economia popular e solidária pôde ser aqui, de
certa forma, discutida e ampliada a partir das concepções dos vários autores
referenciados, o que adicionado a nossa experiência, delinea nossa
perspectiva de visão e atuação.

Autogestão

Até a década de 70, as organizações (empresas, instituições, fábricas,


empreendimentos econômicos em geral) tinham como pano de fundo em suas
gestões administrativas e de recursos humanos o modelo de Taylor, tendo

80
como exemplo clássico o "Fordismo"57. Citarei aqui três enfoques que Taylor
considerava como os principais na organização dos processos de trabalho:

O primeiro princípio é o da dissociação do processo de trabalho das


especialidades do trabalhador/a. O administrador/a asssume o cargo de reunir
todo o conhecimento tradicional que no passado foi possuído pelos
trabalhadores/as e, ainda de classificar, tabular e reduzir este conhecimento a
regras, leis e fórmulas. O processo de trabalho não deve depender da
capacidade dos trabalhadores/as, mas das políticas gerenciais; o segundo
princípio é de que todo possível trabalho cerebral deve ser banido da oficina e
centrado no departamento de controle ou projeto. Pode-se chamar este o
princípio da separação de concepção/execução; e, o terceiro princípio, o
monopólio do conhecimento para controlar cada fase do trabalho e seu modo
de execução. Taylor enfatiza a necessidade de realização de planejamento e
pré-cálculo de todos os passos e elementos do processo de trabalho, já que
não existe como processo na imaginação do trabalhador/a, mas tão somente
como um processo na mente da equipe de gerência.

Entre outros tantos motivos que levaram a uma possível decadência deste
modelo, ficaremos aqui apenas com os que nos interessam neste momento:
inibição do potencial humano devido ao seu enclausuramento em
especializações/divisões do trabalho; fragmentação dos processos,
esquadrinhamento e homogeneização do tempo e de horários; alienação e
estranhamento ao produto final e aos meio de produção; destruição dos
recursos naturais do planeta e poluição avassaladora.

Mas é preciso ter claro que, as novas formas de organização dos processos de
trabalho elaboradas nas mesas das gerências (qualidade total, círculos de
controle de qualidade, reengenharia, entre outras), por mais que tendam a
cooptar e induzir os trabalhdores/as a participarem das decisões sobre
determinadas diretrizes nos processos de produção ou organização do
trabalho, as decisões de o que produzir, como produzir, para quem
produzir e como gestar a produção e organização dos processos
continuam nas mãos dos Executivos, Gerentes ou Patrões. Ricardo
Antunes (1995) nos mostra que estas iniciativas são imbrionárias do modelo
japonês (toyotismo):

"...O estranhamento próprio do toyotismo é aquele dado pelo "envolvimento


cooptado", que possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do trabalho.
Este, na lógica da integração toyotista, deve pensar e agir para o capital, para a
produtividade, sob a aparência da eliminação efetiva do fosso existente entre
elaboração e execução no processo de trabalho. Aparência porque a concepção
efetiva dos produtos, a decisão do que e de como produzir não pertence aos
trabalhadores. O resultado do processo de trabalho corporificado no produto
permanece alheio e estranho ao produtor, preservando, sob todos os aspectos, o
fetichismo da mercadoria..." (ANTUNES, 1995 p.34).

Diante disto, recorremos a Karel Kosik (1976), que nos alerta para o mundo da
pseudoconcreticidade:

57
Ricardo Antunes trabalho este tema no livro: Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as
metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho.

81
"...o mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O
seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao
mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de
modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos..."(KOSIK,
1995 p.11).

Isto é, por um lado o toyotismo (uma das expressões utilizadas para identificar
estes processos de transformação do capital) trabalha com promessas que
parecem apontar para o desaparecimento do trabalho alienado, brutalizado,
especializado e desmotivante, mas o que continua por detrás desta
reorganização é a extração da mais valia absoluta, relativa e parcial.

Mas, o que tem direcionado a organização e gestão do trabalho nos


empreendimentos populares e solidários é a Autogestão58. Autogerir não é uma
tentativa de democratizar a economia capitalista ou a forma de gestão dos
empreendimentos capitalistas, mas mudar seus fundamentos. A autogestão
pressupõe a participação de todos/as os envolvidos/as no empreendimento, a
discutirem e realizarem todos os processos que envolvem a organização e
produção do trabalho (seja prestação de serviços ou produção de bens), nos
conduzindo a um outro patamar: não somos mais apenas empregados/as ou
trabalhadores/as assalariados, mas gestores/as de nossos empreendimentos.

É necessário recuperar o saber acumulado dos trabalhadores/as,


resignificando os processos de trabalho que até então estavam/estão nas mãos
dos gerentes e, agora, sob outra ótica: a do trabalho coletivo, cooperado e
solidário. Neste sentido a autogestão pode vir a ser um elemento fundamental
para uma nova forma de organizar os processos de trabalho, podendo quebrar
com: alienação do processo de trabalho (com a autogestão todos/as os
envolvidos no empreendimento devem/podem participar das discussões e
decisões a virem ser tomadas); feitiche do conhecimento (com a participação
de todos, num processo de educação continuada, o conhecimento poderá ser
reconstruido com a participação de todos, não sendo um privilégio de apenas
alguns); a estrutura hierarquizada e vertical (com a autogestão não temos
distribuição de poder, mas sim de responsabilidades, onde todas tem sua
devida importância nas varias interfaces que se entrelaçam).

Mas, é preciso ter claro que o processo de autogestão não pode ficar restrito as
atividades econômicas e sim, deve deslocar-se para as outras esferas e
atividades que envolve nossa vida, como a política, a sociedade e a cultura.

É exatamente aí que começamos a perceber a importância de articularmos


estas novas iniciativas/alternativas econômicas coletivas, populares e solidárias

58
Conforme o Comitê pró Central de Cooperativas Autogestionárias de Economia Solidária do
Rio Grande do Sul, um empreendimento para ser considerado autogestionário deve seguir os
seguintes princípios: 1)Decisão coletiva, todos os associados tem a oportunidade de opinar e
decidir os rumos do empreendimento, em pé de igualdade; 2) Participação efetiva, são os
associados que participam da construção da Cooperativa ou Associação; 3)Participação nos
resultados, de forma proporcional ao esforço de cada associado, não há exploração e 4)
formação integral, os empreendimentos devem ter o compromisso de proporcionar a
qualificação/formação dos cooperados e dos seus.

82
para geração de renda ou trabalho permeadas pela autogestão, com os
processos educacionais, principalmente com a Educação de Adultos. Ninguém
acorda ou acordará de um dia para o outro "autogestionário", se faz necessário
um processo de reflexão crítica, concomitante com o desenvolvimento dos
processos de trabalho, sobre esta possibilidade concreta de rompermos com a
alienação e estranhamento na organização e elaboração dos processos do
trabalho e da organização da sociedade como um todo.

Educação de Adultos

Qual então seria o papel da Educação de Jovens e Adultos, junto a esta


possibilidade de construção da autogestão/novas relações de trabalho que
estes empreendimentos populares e solidários para geração de renda e
trabalho vêm desenvolvendo?

Torna-se imperativo avançar este debate, pois existe uma certa fragmentação
quando falamos em Educação de Adultos e Educação para qualificação ou
desenvolvimento/aperfeiçoamento técnico, para trabalhadores/as ou
desempregados/as.

Muitos ainda percebem a Educação de Adultos como sendo simplesmente


alfabetização, isto é, domínio da leitura e da escrita. Sabemos da importâcia
crucial desta etapa, mas necessariamente a Educação de Adultos envolve
outras áreas do conhecimento (da tecnologia, das ciências, da comunicação,
da corporeidade, da política, etc) e outras linguagens (linguagem corporal, do
teatro, da física/química, da informática, da televisão, etc.).

A Educação Básica de adultos59, ainda que nos pareça apontar apenas para o
domínio do alfabeto, da grafia e da leitura, obrigatoriamente nos leva para uma
outra instância: aquela que vai mais além da atividade ligada à língua mas,
também às relações de ordem social, econômica, política e cultural à qual
pertencemos60.

Tomamos como base para nossa discussão, o Programa de Ensino


Fundamental para Jovens e Adultos Trabalhadores da UFRGS61, sua filosofia

59
A Educação Básica de Adultos deve ser uma política pública do Estado e dos Municípios.
60
12. Esta reflexão é aprofundada no artigo: Corporeidade no Ensino Fundamental de Jovens
e Adultos: como área de conhecimento e como linguagem, de minha autoria, Revista do
Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos Trabalhadores da UFRGS/1997.
61
O Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos Trabalhadores (PEFJAT) –
Prêmio MEC/UNICEF (1998) : Educação para o trabalho, é uma ação conjunta da Pró-Reitoria
de Recursos Humanos (PRORH) e da Faculdade de Educação ( FACED), com apoio da Pró-
Reitoria de extensão (PROREXT) e Pró-Reitoria de Graduação ( PROGRAD), e tem por
objetivo geral escolarização de 1º grau para trabalhadores que não ingressaram ou não
completaram essa etapa. Esta ação caracteriza-se como proposta de construção de
alternativas nas áreas de Educação de Jovens e Adultos . Inicialmente constituído por
atividades relativas ao domínio da leitura e da escrita ( alfabetização ), o curso expandiu-se a
partir de 1990, passando a atender também a demanda em termos de 2ª a 4 ª séries e
posteriormente 5º a 8ª séries. O curso também tem se constituído em campo de pesquisas e
de práticas pedagógicas para alunos e professores do curso de Pedagogia e de curso de Pós -
Graduação, desenvolvidos pela FACED e por outras licenciaturas da Universidade. Além disso,
tem servido para proporcionar a integração entre Ensino, Pesquisa e Extensão na área de

83
básica se fundamenta numa proposta de educação libertadora, reflexiva,
problematizante, dialógica, considerando-se a complexidade humana. Devido
ao seu caráter de experiência pedagógica e tendo em vista esta filosofia
fundamental, desenvolve-se atividades que diferem das propostas do ensino
regular e dos manuais de alfabetização, tão divulgados nestes últimos anos.

O Curso se destaca pela ousadia de romper com os métodos tradicionais da


Educação Regular e dos manuais de alfabetização funcional ou utilitária62,
abrindo a discussão e a possibilidade de, no processo de ensino
aprendizagem, os/as alunos/as e educadores/as poderem vivenciar outras
possibilidades na re-leitura de suas realidades (específicas) e de lançarem
outros olhares sobre a realidade social / cultural / política / comunitária a qual
estão inseridos. Faz-se necessário discutirmos políticas públicas para
Educação de Adultos, tendo como norte algumas questões: qual Educação que
queremos? Para que e para quem servirá esta Educação? Qual público da
EJA? Qual concepção de EJA estamos trabalhando?

Por outro lado a Educação técnica, de qualificação ou de aperfeiçoamento não


deve ficar restrita ao domínio de manuais ou simplesmente práticas, onde o
tecnicismo torna-se o ponto fundamental, isto é, onde o domínio de
determinadas técnicas ou instrumentos ou equipamentos acaba sendo o
fundamento educativo que permeia estes processos. Como nos alerta Frigotto
não se trata de destruir a educação técnica, trata-se isto sim de "...mudar sua
perspectiva de gestão e de concepção-política pedagógica..."(FRIGOTTO,
1995:205). É necessário refletir sobre a validade destes cursos, isolados na
sua grande maioria de um processo mais crítico/reflexivo de Educação de/para
Adultos. Outro engodo sobre a Educação técnica, de qualificação ou de
aperfeiçoamento, é de ela por si só seria capaz de reintegrar os
trabalhadores/as as mercado de trabalho/emprego, Gaudêncio Frigotto nos
alerta para uma falsa idéia de que:

"...se o sistema educacional investir em uma determinada educação, visando o


desenvolvimento de determinadas competências, aqueles que adquirirem essas
competências terão emprego. Esta é uma ilusão brutal. Não negamos a
importância da educação, que é crucial e fundamental, mas não por esse
caminho...isolada não tem o poder de transformar a realidade social, cultural,
política e econômica de uma sociedade marcada pelo estigma escravocrata e pela
servil subordinação ao grande capital..." (FRIGOTTO, 1999:100).

Ao propormos uma intervenção radical da EJA no que diz respeito a este


movimento, Economia (ou Colaboração) Solidária, estamos propondo que o
trabalho seja o princípio educativo deste processo. Aqui cabe salientar que o

Educação de Jovens e adultos e a concretização do compromisso social da Universidade com


seus próprios servidores, favorecendo um desenvolvimento social, cultural, político e
profissional . Em 1995, após verificação da Comissão de Ensino Supletivo do conselho
Estadual de Educação do Rio Grande do Sul, garantiu-se a possibilidade de certificar os alunos
a nível de 1º Grau.
62
Segundo Vião Frago, alfabetização funcional teria como um de seus significados a tentativa
de inserção ao mercado de trabalho do antigos analfabetos. A alfabetização utilitária teria como
um de seus significados o preenchimento de formulários ( independente do tipo ) o que poderia
facilitar a vida dos antigos analfabetos no trabalho e no comércio em geral (Bancos, lojas, etc.).

84
conceito de trabalho ultrapassa a forma pela qual o sistema capitalista o
transformou: emprego/trabalho assalariado, senão vejamos o que diz Kosik:

"...O trabalho, na sua essência e generalidade, não é atividade laborativa ou


emprego que o homem desempenha e que, de retorno, exerce uma influencia
sobre a sua psique, o seu habitus e o seu pensamento, isto é, sobre esferas
parciais do ser humano. O trabalho é um processo que permeia todo o ser do
homem e constitui a sua especificidade..." (KOSIK, 1976 p.180).

O trabalho, entendido como produção da vida, seria a essência da existência


humana :

"...O trabalho mostra-se como momento fundante de realização do ser social,


condição para sua existência; é o ponto de partida para a humanização do ser
social e o motor decisivo do processo de humanização do homem..." (ANTUNES,
1995 p.123).

O processo desencadeiado pela autogestão requer o resgate do saber


acumulado pelos trabalhadores/as, resignificando-o agora sob a ótica dos
trabalhadores/as, ou como nos diz Antunes, o trabalho como centralidade da
existência humana.

Temos trabalhado com a perspectiva de que a economia popular pode vir a ser
solidária, de que a autogestão é a alternativa concreta de autonomia dos
trabalhadores/as, de que a Educação de Adultos (tanto básica/fundamental
como para qualificação técnica, administrativa, tecnologica ou
aperfeiçoamento) que tenha o trabalho como princípio educativo, pode vir a ser
um elemento de extrema importância no desenvolvimento e fortalecimento
destas iniciativas e de que a organização comunitária é uma das bases do
desenvolvimento de iniciativas coletivas (muitas vezes solidárias) que tenham
como objetivo a resolução de problemas comuns.

Atuação da UFRGS

É com esta compreensão que o Núcleo de Educação de Jovens e Adultos e o


Núcleo de Economia Popular e Solidária, da Pró-Reitoria de Extensão, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul vêm, já há alguns anos
trabalhando com Organização Comunitária63, com o apoio a iniciativas
populares e solidárias para geração de renda e de trabalho e com formação,
pesquisa e reflexão/crítica em Educação de Adultos. Mais especificamente, o
Núcleo de Economia Popular e Solidária tem como um dos seus objetivos o de
acompanhar as iniciativas populares que tenham o cunho COOPERATIVO,
COLETIVO e SOLIDÁRIO, isto é, Cooperativas ou Associações populares para
geração de renda e trabalho.

Nossa proposta não é permeada apenas pela possibilidade de inserir estes


trabalhadores/as novamente no mercado de trabalho, mas, principalmente,
pelas possibilidades que este tipo de empreendimento, as Cooperativas
populares e solidárias possam proporcionar, tais como: novas formas de

63
"Organização Comunitária: a possibilidade da construção com participação da Comunidade
Universitária", inédito, deste autor.

85
gestão do trabalho através do trabalho cooperado e autogestão. Alguns autores
têm enfatizado a necessidade de uma transformação cultural nas relações de
trabalho para que os trabalhadores/as consigam assumir a gestão de seus
empreendimentos, entendendo o trabalho cooperado como alternativa ao
trabalho competitivo, uma vez que os trabalhadores/as não competem entre si
e quebram a hierarquia administrativa. Este processo de transfomação cultural
deve fundamentalmente passar pela Educação de Adultos; novas relações de
trabalho através do trabalho coletivo. O trabalho coletivo pressupõe a
eliminação da lienação nas relações de trabalho, possível através de um
processo contínuo de Educação crítica e reflexiva que desmistifique as várias
etapas dos processo de produção, gestão e comercialização; novas relações
humanas através do trabalho solidário que pressupõe uma nova ética nas
relações humanas, econômicas e comerciais; relação direta entre trabalho e
educação continuada, seja educação básica, seja de qualificação ou
aprimoramento; melhor qualidade de vida para todos os cooperados, não tendo
como objetivo final o acúmulo de capital e ou bens.

Foi levando em consideração estes fundamentos que concretizamos nossa


primeira parceria para o desenvolvimento do Projeto Convivência Urbana/9964,
com a Comunidade de Belém Novo, junto com a Coordenação do Projeto "
Acredite Belém Novo Pode Mais" , a Prefeitura de Porto Alegre (através da
SMAM – Programa Guaíba Vive, DEMHAB e Gabinete do Prefeito) e ICLEI
(International Council for Local Environmental Initiatives ) uma Organização não
Governamental Canadense.

Uma das demandas desse Projeto era a formação de uma Cooperativa de


Pescadores. No decorrer do Projeto, nossa equipe/UFRGS realizou uma
pesquisa junto ao cadastro de pescadores que iriam formar a Cooperativa. A
pesquisa mostrou que seria inviável um investimento tão alto para a formação
de uma cooperativa constituída somente de Pescadores. Discutiu-se os dados
conjuntamente com os parceiros e chegou-se à conclusão que deveríamos
ampliar a abrangência da Cooperativa, abarcando outras categorias de
desempregados na Região do Extremo Sul, tais como: trabalhadores em
Construção Civil, trabalhadores em Serviços Gerais, Artesanato e Alimentação.

Durante 4 meses (setembro, outubro, novembro e dezembro/99), discutimos,


conjuntamente com os interessados (aproximadamente 40 pessoas), a
formulação do Estatuto e os fundamentos do cooperativismo solidário e
democrático.

Finalmente, no dia 02 de dezembro de 1999 em Belém Novo, realizamos a


Assembléia Geral onde foi aprovado o Estatuto da Cooperativa Mista de
Trabalho do Extremo Sul. Ainda se faz necessário todo um apoio e
assessoramento no que diz respeito a: discussões e realização de oficinas e
cursos sobre: novas formas de gestão do trabalho – autogestão, ética nas
relações humanas/e de trabalho, rotinas contábeis, Cooperativismo Solidário,
Legislação de Cooperativas, estratégia de viabilidade econômica, Modelos de

64
O Projeto Convivência é desenvolvido pela Pró-Reitoria de ExtensãoUFRGS.

86
Desenvolvimento Econômico, Redes de Cooperação, Relações Sociais e
humanas, entre outras demandas.

É importante salientar que o Estatuto aprovado tem duas iniciativas inovadoras:

A não renovação de nenhum Coordenador/a na próxima eleição, após dois


anos, privilegiando o pensamento do rodízio na Coordenação para evitar a
criação de castas, e permitir a formação de novos quadros, comprometendo os
cooperados com a responsabilidade de gestar a Cooperativa.

A criação de um Conselho Comunitário, que terá como integrantes (além dos


nove eleitos para a Coordenação Geral): um representante da Prefeitura, um
representante da UFRGS, um representante do Orçamento Participativo da
Região, um representante do Comércio local e três representantes da
comunidade que não sejam associados a Cooperativa. Este conselho terá
como uma de suas principais atribuições, discutir as linhas políticas,
econômicas, sociais, administrativas e educativas adotadas ou não pela
Cooperativa.

Concomitante a este processo desencadeamos uma parceria com as


comunidades organizadas e com a Coordenação do Programa Compras
Coletivas. Este programa foi desenvolvido durante aproximadamente 7 anos
pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Devido ao acúmulo de problemas
acarretados durante este período (problemas de licitação, de atravessadores,
inadimplência, falhas administrativas, etc) as comunidades envolvidas e a
Coordenação do Programa começaram a discussão sobre a possibilidade de
formarem uma Cooperativas Popular de Consumo. Durante 3 meses discutiu-
se nas mais diversas comunidades de Porto Alegre o que é Cooperativismo
Popular e Autogestionário, Estatuto e estratégias de ação. Esta Cooperativa já
está formada e tem como objetivo principal a organização do consumo e dos
consumidores. São aproximadamente 11 comunidades (pois está em
expansão), 40 grupos, mais de 2000 pessoas envolvidas no Programa. Foi
firmado um convênio entre a UFRGS e esta Cooperativa para assessoramento,
transferência de tecnologia, projetos de educação continuada entre outras
demandas. Esta Cooperativa já atua como base de uma rede de negócios
solidários, isto é, vários produtos e ou serviços, de outros empreendimentos
populares e solidários já estão sendo disponibilizados para as comunidades
através de listas compostas por produtos que irão compor o rancho mensal das
familias associadas. De um total de 70 itens, 26 já são produtos oriundos de
empreendimentos populares e solidários, e que tem apresentado boa
receptividade junto as comunidades. No primeiro mês, a cooperativa vendeu 14
mil quilos de alimentos, sendo que a diferença nos preços dos produtos pode
chegar a 71,42%. Estamos desenvolvendo estudos para melhorarmos as
informações sobre estes dados65.

Nossas parcerias se ampliaram, estamos em fase final de um convênio com o


Governo do Estado do RS (SEDAI – Secretaria de Desenvolvimento e

65
É importante salientar que implantamos o software desenvolvido pelo Euclides Mance, para
que possamos traduzir mais fielmente a participação destes produtos no rancho mensal das
comunidades bem como maiores informaçoes sobre indicadores econômicos.

87
Assuntos Internacionais) sobre a confecção de um caderno Educativo/
informativo sobre os processos e tramites legais para o registro de
Cooperativas. Este caderno terá ainda conceitos de Economia Solidária,
Cooperativismo, entre outros.

Reflexões sobre este Caminho

Estas experiências mostram que não existem receitas. A peculiaridade da


realidade de cada comunidade, instituição, grupo é o que deve ser levado em
consideração no desenvolvimento destas iniciativas. O desemprego, a
precarização do trabalho, a flexibilização das relações de trabalho são
problemas estruturais, atingem a muitos, mas as formas de abordá-los e buscar
soluções não podem ser resumidas a saídas que procurem apenas suplantar a
crise do sistema produtivo capitalista. Deve ter como horizonte a possibilidade
de trabalharmos uma nova ética das relações humanas, a vinculação da
educação com os processos de trabalho e as novas relações e (auto)gestão do
trabalho, tendo como objetivo final não exclusivamente o lucro, mas sim, o ser
humano.

Por isso se faz necessário repensar, de modo geral, a EJA que vem sendo
desenvolvida "por aí". Sabemos, para que possamos repensar os processos de
trabalho necessitamos repensar também, os processos educativos. Essa nova
ética das relações humanas precisa também estar na ética das escolas. Uma
EJA só tem validade quando os sujeitos com e a partir dela, se inserem na
sociedade/comunidade, como interventores do/no processo
político/social/econômico/cultural. Seres atuantes, autônomos e, ao mesmo
tempo, solidários, que participem dos movimentos de sua comunidade:
associações de moradores, clube de mães, participem do Orçamento
Participativo, etc.

A EJA, partindo dessa filosofia e desencadeadora dos processo educativos


pode contribuir para a qualificação cidadã desses sujeitos: críticos,
interventores, autônomos e solidários, e para que realmente possa cumprir seu
papel nesse novo cenário.
Mas continuamos com algumas questões de fundo que só o tempo poderá nos
responder: como desbrutalizar, remotivar, dar criatividade ao trabalho dito
manual, sem fetichizar ou reificar o dito trabalho intelectual? E este trabalho,
trabalho como produção da vida, como resignifica-lo com o ideal coletivo e
solidário? Quais serão as melhores alternativas para tornarmos a autogestão
uma estratégia de vida em sociedade?

Referências Bibliográficas

Revista do Programa de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos das


UFRGS. Diversos Autores. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1997.
TIRIBA, Lia Vargas. Economia Popular e Produção de uma Nova Cultura do
Trabalho: contradições e desafios frente à crise do trabalho assalariado, in
Educação e crise do Trabalho: Perspectivas de final de século, Org.
Gaudêncio Frigotto – Petrópolis, RJ : Vozes, 1998.

88
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação, crise do trabalho assalariado e do
desenvolvimento:teorias em conflito, in Educação e crise do trabalho:
Perspectivas de final de século. Petrópolis, RJ : Vozes, 1998.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre as Metamorfoses e a
Centralidade do mundo do trabalho. Campinas, SP : Cortez, 1995
ARRUDA, Marcos. Globalização e sociedade civil: repensando o
cooperativismo no contexto da cidadania ativa. Ed. PACS, Rio de Janeiro,
1996.
GUIMARÃES, Gonçalo. Ossos do Ofício. Rio de Janeiro, 1998.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São
Paulo: Contexto, 2000.
SINGER, Paul. Utopia Militante. São Paulo: Vozes, 1998.
MANCE, Euclides André. A revolução das Redes: a colaboração solidária como
uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis, RJ: Vozes,
1999.
CORRÊA, Luís Oscar Ramos. Organização popular:: uma possibilidade de
construção com participação da comunidade universitária. Porto Alegre,
xerox, 1997.

89
ECONOMIA SOLIDÁRIA – RELATO DE EXPERIÊNCIAS NO PARANÁ66

Euclides André Mance


IFiL, maio de 2000

Introdução

Dependendo do que se defina como economia solidária, podemos elencar


práticas diferentes neste relato de experiências. O próprio significado da
expressão solidariedade não é unívoco, embora parte destes empreendimentos
reivindique a solidariedade como uma das suas características peculiares.
Adotando princípios e conceitos distintos, elas difundem, em graus variados, a
participação, autogestão, democracia, igualitarismo, cooperação, auto-
sustentação, desenvolvimento humano, responsabilidade social e a
preservação do equilíbrio dos ecossistemas. Algumas delas integram-se em
redes locais e internacionais, obtendo êxito na criação de postos de trabalho e
na elevação da renda dos participantes, apontando novas perspectivas de
desenvolvimento com transformação social.

Não há, todavia, um levantamento acessível e sistematizado do conjunto dos


empreendimentos solidários no Paraná. As ONGs, em particular, não dispõem
de informações precisas e atualizadas sobre os empreendimentos que se
enquadrariam nesse campo67. Selecionar as experiências a serem
apresentadas supõe, assim, um recorte de compreensão do que seja economia
solidária e do que seja mais relevante compartilhar no quadro das informações
que se tem disponível.

Neste relato de experiências daremos preferência a quatro práticas atuais de


economia solidária em Curitiba e Região Metropolitana. São elas a Rede Sol,
Feira da Solidariedade, a Rede de Colaboração Solidária e a Rede
Solidariedade.

1. Rede Sol

Em agosto de 1999, foi organizada no Bairro Novo, periferia sul de Curitiba, a


Feira dos Produtores, com aproximadamente 60 feirantes, tendo apoio da
Associação de Moradores local, com a finalidade de comercializar diretamente
os seus produtos. Todos buscavam comprar os produtos uns dos outros,
contribuindo assim para garantir as vendas de cada um. A feira funcionava

66
Seminário Catarinense de Economia Solidária. Florianópolis, maio de 2000.
www.milenio.com.br/mance/balanco1999.htm
67
No campo da economia informal urbana percebe-se que certa parte de empreendimentos,
que poderia ser incluída na esfera da economia solidária, tem um comportamento bastante
similar ao dos movimentos populares. São fruto de uma organização coletiva com vistas a
atender demandas imediatas por trabalho e consumo, têm uma rotatividade grande de seus
participantes, emergem e refluem periodicamente, conforme as conjunturas de crise
econômica, mantendo relações similares de autonomia ou dependência frente a organizações
religiosas e civis ou frente ao Estado, tendo pouco ou nenhuma informação das organizações
precedentes que atuavam nessa mesma esfera, seus acertos e erros. Muitas vezes acabam
sucumbindo por repetir os mesmos erros anteriormente cometidos por outros empreendimentos
similares.

90
somente aos sábados e na rua, exposta a chuvas, ventos e outras intempéries.
Após alguns meses de funcionamento as dificuldades foram se alargando.
Alguns feirantes tinham pouco apoio da família. Outros não queriam montar
barracas para aqueles que chegavam mais tarde, e assim, aos poucos o
número de feirantes foi diminuindo. Por fim, restaram doze. Estes, então,
decidiram estruturar um ponto permanente de comercialização.

Assim, em março de 2000, convidaram outros produtores, alugaram um


conjunto comercial no Bairro Novo e montaram a Rede Sol, atuando nas áreas
de confecções, artesanato, utilidades domésticas, armarinhos, conveniências,
alimentação, plantas, ornamentação e aviário.

Participam do empreendimento cerca de 20 produtores ou comerciantes. Cada


qual contribui com uma taxa mensal de 20 reais que cobre despesas fixas
(aluguel, eletricidade, água, telefone, etc).

Há uma escala de revezamento na loja, com cada um dos produtores atuando


alguns dias por mês como vendedores.

O espaço tem sido divulgado nas comunidades da região e o volume de


vendas vem aumentando aos poucos. O faturamento do empreendimento vem
crescendo a cada mês. Em março, mês da inauguração, a receita foi de R$
900,00; em abril saltou par R$ 1.600,00 e na primeira quinzena de maio já
alcançou R$ 1.000,00 com a previsão de atingir o final do mês com um
faturamento superior a R$ 2.000,00.

Alguns produtores (no setor de alimentação e confecções) têm um faturamento


que lhes permite manter-se no ponto. Outros três - um que produzia bolsas e
outros dois que trabalhavam com artesanato -, tendo um volume menor de
vendas, preferiram sair do empreendimento, uma vez que os custos compostos
pela taxa, deslocamento e alimentação (nos dia de permanência) chegavam a
quarenta reais.

Alguns dos participantes estão integrados em outros espaços de economia


solidária e participam de cursos de formação para qualificar a sua atuação
como empreendedores em uma perspectiva de economia solidária.

2. Feira da Solidariedade

Após um curso realizado no segundo semestre de 1999 pelo Instituto de


Filosofia da Libertação e Centro de Formação Irmã Araújo para grupos
comunitários de produção e cooperativas, os participantes, aproximadamente
vinte pessoas, decidiram constituir uma Rede de Colaboração Solidária.
Realizou-se um seminário convidando-se diversas entidades sindicais,
populares, pastorais e ONG's para debater e difundir a proposta.

Uma das primeiras iniciativas foi a de organizar uma feira que permitisse
aglutinar um maior número de empreendedores que atuam na economia
informal e com isso ampliar o conjunto de participantes.

91
Assim, ocorreu no mês de abril a primeira Feira da Solidariedade com a
participação de aproximadamente 90 grupos de produtores e prestadores de
serviços, tendo o número de inscritos ultrapassado a 100.

O Ginásio de Esportes da vila São Pedro, onde foi realizada a feira, ficou lotado
com as bancas que foram organizadas em setores: alimentação, confecções,
artesanatos e serviços.

Organizou-se um banco de dados e durante a Feira foram distribuídas listas


com a relação de cada produtor, telefone de contato, produtos e serviços que
oferece.

Entre os empreendimentos presentes, elenca-se: Setor de Alimentação:


Padarias comunitárias, pão de fubá, pão doce, chinequinho, bolacha, pão de
centeio, de fibra, caseiro, broa, broa de milho, pão de batata-doce, biscoito,
bolos, cuque, pão de queijo; cueca virada; cooperativas agrícolas do MST,
pepino em conserva; picles em conserva e feijão, chá aromático, doce de leite;
melaço; rapadura, chimarrão (erva mate socada e triturada para tererê); chá
tipo exportação; geléias variadas, cestas de Páscoa, sanduíches naturais,
salgadinhos em geral (fritos e assados), empadão, docinhos para festas, torta;
pães recheados; mini-pizza; biscoitos caseiros (beijo baiano); produção de
lanches, espetinhos, queijos, doces, aves e ovos caipira, macarrão, queijos,
bombons caseiros; ovos de páscoa. Setor de Higiene e Limpeza: detergente
ecológico, sabão, sabonetes de glicerina e cosméticos. Setor de Confecções:
confecções em geral, infantil, adulto, cama, mesa e banho, malhas, lingerie,
moletons, fraldas, pijamas, oficina de costura, confecções de bolsas, porchetes,
carteiras, porta moedas, mochilas, peças em tricô e crochê, kit de cozinha,
enxovais, guardanapos, reformas de roupas. Setor de Artesanato: artesanatos
em geral, bordados, panos de prato, macramê, fantoches, bijuteria, colares;
brincos; pulseiras; anéis, bolsas, pano de prato; avental, tapetes, chinelo;
arranjos; arranjos florais; bisqüi (enfeites de conchas do mar); pinturas e
decorações; restauração de móveis em madeira; pintura especializada, enfeites
para geladeira, cestas de páscoa; velas decorativas, peças de gesso; trabalho
em madeira; arranjos. Setor de Serviços: Quem TV Produções, filmagens;
edições em vídeo; cobertura de eventos; produções de audio-visuais,
Cooperativa da Construção Civil - Cotracon, serviços de informática, aulas de
informática; desenvolvimento/manutenção de software; páginas de internet,
produção de panfletos e cartões, carretos, serviços de psicologia, decorações e
fantasias para festas, massoterapia, funilaria, estampas, mecânica, serigrafia
em camisetas, bonés, bandeiras; serviços de contabilidade, assessoria jurídica,
assessoria de custos e formação de preços; assessoria econômica e
financeira; Imposto de Renda de pessoa física, curso de artesanatos,
paisagismo, ikebana, aconselhamento e conciliação familiar, serviços de
assessorias a organizações sociais, cursos de formação, curso pré-vestibular.
Outros: artigos religiosos; terços, livros e subsídios de formação, revenda de
medicamentos de uso contínuo; marcenaria, produção de armários, cadeiras,
guarda-roupas, mesas; etc O evento contou com atividades culturais de um
grupo de Hip Hop.

92
A Feira tinha um duplo caráter. Tanto era possível comprar e vender os
produtos e serviços, quanto oferecê-los em troca por outros produtos e
serviços. Ao final da feira, como as vendas foram fracas, as trocas se
intensificaram.

Durante o dia o intercâmbio de informações entre as pessoas foi um dos


aspectos positivos, compartilhando-se algumas informações sobre como
produzir melhor e estabelecendo-se contatos para possíveis trabalhos em
parcerias.

Embora a divulgação tenha sido ampla, inclusive com entrevistas na CBN


sobre o evento, e com releases enviados para os diversos veículos de
comunicação da cidade, o público consumidor ficou abaixo do esperado.
Alguns produtores, especialmente de artesanato, venderam pouco. O caráter
agressivo de algumas músicas do Hip Hop também não foi muito bem aceito
por outros.

As despesas da organização e divulgação da feira foram cobertas com a


contribuição dos participantes e de outros colaboradores.

Na reunião de avaliação que se seguiu, uma semana depois, compareceram


cerca de 70 pessoas. Embora considerando que as vendas tivessem ficado
abaixo do esperado (talvez porque a data da feira tivesse sido antes do dia do
pagamento ou porque tivesse sido feita em local fechado), a maioria destacou
que foi uma grata surpresa o número dos participantes, a variedade e
qualidade dos produtos, alguns chegando a afirmar que não precisamos de
patrão e de hipermercado para viver, uma vez que boa parte do que
consumimos podia ser encontrado na feira ou elaborado por outros produtores,
reafirmando a importância de dar continuidade a atividades conjuntas.

Entre as propostas aprovadas estão:

♣ realizar a feira a cada quinze dias


♣ fazer compras em conjunto dos insumos, para reduzir custos;
♣ organizar compras comunitárias para o conjunto das famílias que estão
participando da feira
♣ divulgar a lista de produtos e serviços
♣ reunir os empreendimentos por setor para definir ações possíveis
♣ montar pontos permanentes de venda, similares ao da Rede Sol
♣ avançar na organização de uma Rede de Colaboração Solidária
♣ elegeu-se uma comissão para negociar junto aos órgãos públicos a
concessão de espaços para feira ou pontos permanentes de
comercialização.

3. Rede de Colaboração Solidária

A proposta da Rede que integrava, em dezembro passado, aproximadamente


dez grupos, hoje aglutina mais de 70 grupos de produtores, comerciantes e
prestadores de serviços.

93
O projeto básico de uma Rede de Colaboração Solidária é o seguinte. Os
participantes praticam o consumo solidário, dando preferência aos produtos e
serviços da rede (onde não há exploração dos trabalhadores e busca-se
proteger o meio ambiente), possibilitando que os empreendimentos obtenham
excedentes, parte dos quais deve ser reinvestida coletivamente, gerando
outras cooperativas ou microempresas, remontando solidariamente a cadeia
produtiva dos bens comercializados, evitando-se que a rede compre insumos e
produtos finais no mercado.

Assim, cria-se novos postos de trabalho, aumentam-se a riqueza produzida na


rede, o consumo produtivo de insumos, materiais de manutenção, etc, em seu
interior e o consumo de produtos finais, uma vez que os trabalhadores
anteriormente desempregados, que passam a trabalhar nesses novos
empreendimentos, incrementam o consumo solidário no interior da rede. Desse
modo, os fluxos materiais e de valores passam estrategicamente a realimentar
a Rede ao invés de realimentar o mercado capitalista. O projeto, portanto, visa
a transformação e integração desses empreendimentos que estão se
articulando a partir da feira, possibilitando a expansão de relações de consumo
e produção que não sejam capitalistas.

Avançando neste projeto algumas ações estão em curso.

As listas de compras das famílias e as listas de aquisição de insumos e


materiais de manutenção dos produtores estão sendo preenchidas. Uma
parcela dos participantes já começou a devolver os questionários que serão
agora tabulados permitindo totalizar as demandas permanentes e reorientar o
processo de produção para atendê-las.

Cursos de formação solidária estão sendo organizados. O primeiro deles sobre


Como Organizar um Microempreendimento foi realizado em Maio, pelo IFiL.
Neste curso tratou-se não apenas da estrutura de investimentos, custos e
formação de preços, como também analisou-se o processo de acumulação de
mais valia sobre a lógica capitalista e o processo solidário de reinvestimento
dos excedentes em uma rede de colaboração. O próximo curso no mês de
junho será sobre Relações Capitalistas de Produção e Redes de Colaboração
Solidária.

Outra área de atuação é a manutenção de um site na Internet sobre as Redes


de Colaboração Solidária em www.ifil.org\rcs, que possui várias seções.

Na seção Produtos e Serviços encontra-se uma relação de produtores e


prestadores de serviços que participam da feira, telefones, contatos e a lista
dos produtos e serviços por eles oferecidos, facilitando a sua comercialização.

Na seção compras, é possível conhecer a loja da Rede Sol, navegar por suas
seções através de várias fotografias, conhecendo produtos e serviços. Nos
próximos meses iniciaremos a comercialização via Internet dos produtos e
serviços. Compras acima de R$ 15,00 poderão ser entregues na residência do
comprador em até 24hs após realizado o pedido. O pagamento será feito no
ato da entrega. Os scripts de compra on line já estão sendo programados. As

94
compras também poderão ser feitas por telefone, como nos sistema de disque-
pizza, com o cliente tendo uma lista dos produtos disponíveis.

Na seção software estará sendo distribuído, em breve, o programa Rede


Solidária, cuja primeira versão para testes já está pronta com dados advindos
do SEBRAE e da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios. O objetivo
do programa é dar suporte à organização de Redes de Colaboração Solidária.
Ele permite, com facilidade, realizar diagnósticos de empreendimentos
conectados em rede, levantando demandas por insumos e produtos finais,
visualizar as cadeias produtivas e gerar listas de toda a produção final e
projetar o crescimento sustentável da rede, valendo-se de um banco de
projetos de micro-empreendimentos. Assim, após totalizar um volume de
demandas dos empreendimentos da rede que ainda é atendido pelo mercado
capitalista, o programa analisa, no banco de projetos, se há algum
empreendimento que possa atender aquele demanda e se o faturamento
mínimo para a auto-sustentação do empreendimento corresponde ao que é
dispendido pela rede ao adquirir aquele insumo ou produto final no mercado.
Caso algum projeto corresponda aos parâmetros requeridos, o programa
propõe a sua efetivação, isto é, a criação de um novo empreendimento para
atender aquela demanda, apresentando diversos detalhes: o investimento
inicial, o investimento fixo, o capital de giro, a despesa fixa, quantos
trabalhadores podem ser incorporados, tipo de trabalho a ser executado, tipo e
quantidade do produto final a ser produzido, o potencial produtivo da unidade,
custo por unidade produzida, preço final por unidade, valor de reposição, valor
excedente, demandas que atende, insumos que necessita (o que e quanto
consome da rede solidária, o que e quanto consome do mercado capitalista),
etc. Os diagnósticos permitem assim corrigir fluxos de valor, visando
realimentar a produção e o consumo dentro das redes. Atualmente estamos
começando a realizar o diagnóstico de unidades que estão participando da
Rede para introduzir os dados neste programa.

A Rede de Colaboração Solidária está mantendo também uma lista de


discussão na Internet. Nessa lista há várias propostas levantadas, entre elas a
elaboração de um projeto de lei federal que dê suporte às Redes de
Colaboração Solidária, alternativas para dar visibilidade e integrar os
empreendimentos, incluindo-se a construção de um Portal de Economia
Solidária em que todos os empreendimentos poderiam apresentar produtos e
serviços e remontar, progressivamente, as cadeias produtivas em laços de
realimentação solidária.

Encontram-se também neste site links para as mais diversas práticas de


economia solidária praticadas no mundo agrupados nas seguintes seções :
Redes de Colaboração Solidária, Agência de Desenvolvimento Solidário - CUT,
Rede Global de Trocas, Economia Solidária, Consumo Crítico e Solidário,
Grupos e Redes de Compras Solidárias, Movimentos de Boicote, Comércio
Équo e Solidário, Organizações de Marca, LetSystem, SEL, SEC e Outros,
Empresas Autogeridas por Trabalhadores, Economia de Comunhão,
Microcrédito, Crédito Recíproco e Sistemas Locais de Moedas Alternativas,
Desenvolvimento Sustentável, Software Livre e Acesso a Redes de
Informação, Linux, Terceiro Setor, Clique Solidário e Outros. Cada link

95
agrupado nessas seções abre muitos outros, permitindo uma ampla pesquisa
sobre diversas práticas, conceitos e princípios de economia solidária.

4. Rede Solidariedade

No final de 1999, o Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região Metropolitana,


o Sindicato dos Engenheiros do Paraná e o Sindicato dos Telefônicos do
Paraná, deram apoio na montagem de uma empresa denominada Associação
Rede de Benefícios Solidariedade, que tem como nome de fantasia Rede
Solidariedade. Em abril de 2000 a essa empresa foi legalizada, sendo
registrada em cartório. Atualmente essa Rede já está operando.

Entre os objetivos da Rede estão: a) "estruturar legal e operacionalmente num


sistema integrado: produção comercialização e consumo de diversos produtos
e serviços"; b) "criar e desenvolver uma política concreta de geração de
trabalho e renda, para os trabalhadores paranaenses demitidos ou
aposentados, alicerçada na estruturação de uma Plataforma de Cooperativas
de Produção e Consumo, organizadas e mantidas pelas entidades sindicais,
incubadas pela UFPR, para desenvolverem conhecimento e tecnologia, e
orientadas ideologicamente pela Agência de Desenvolvimento Solidário da
CUT"; c) "produzir recursos financeiros alternativos para a entidades sindicais e
associativas associadas; e benefícios e vantagens para os filiados e
associados dessas entidades".

O projeto visa fidelizar a participação de mais de um milhão de consumidores à


Rede, a partir dos 300 mil trabalhadores sindicalizados e seus dependentes em
todo o Estado. Segundo o projeto, "este grande e diversificado nicho de
mercado, possibilita às empresas, mantenedoras de convênios e parcerias; e
aos produtores solidários, prestadores de serviços, viabilizarem políticas
vitoriosas de vendas de seus produtos e serviços, de suas ofertas de
benefícios e vantagens, como também a produção de recursos financeiros
alternativos para as entidades associadas à Rede, e a geração de trabalho e
renda para os excluídos, etc."

Entre os elementos mediadores da proposta estão: a) a CooperAção -


Cooperativa de Trabalho e Serviços, que está em fase de formação e
legalização, formada por bancários que foram demitidos e aposentados. b) o
Cartão Solidariedade - utilizado como instrumento de marketing, apresentado
na compra de produtos e serviços, permitindo ao associado obter benefícios e
vantagens fornecidas pela Rede - futuramente será um cartão de crédito da
Rede. c) Guia Rede Solidariedade - é uma revista-catálogo, com uma "...
publicação bimestral, e que tem como objetivo principal divulgar
publicitariamente empresas, cooperativas, convênios e parcerias, contratados
com a Rede." - sendo responsabilidade dos sindicatos e associações distribuí-
la entre seus associados. A primeira edição está sendo finalizada e será
lançada em junho. d) CentralMed - Central de Repasse de Medicamentos, cujo
objetivo é "repassar remédios de uso contínuos com descontos de 30% para
sindicalizados e associados das entidades associadas à Rede". Funciona
através de tele-atendimento, tendo um pequeno espaço de loja para a entrega
direta dos remédios. Os produtores da Feira da Solidariedade estão integrados

96
nesse sistema, podendo igualmente comprar os remédios com 30% de
descontos. Este serviço já está operando, tendo iniciado nesse mês de maio.
"A entrega do medicamento é feita 48 horas após o recebimento do dinheiro ou
do aviso do crédito em conta". e) Força de Vendas e Rede de Distribuição -
formada por demitidos e aposentados, opera em sistema de teletrabalho, em
sistemas on line ou por telefone. A Rede está preparando um curso de
capacitação para as primeiras turmas que atuarão nesse setor. f) Centrais de
Comercialização de produtos Agropecuários e de Prestação de Serviços. Esta
propostas ainda está em debate. O objetivo é comercializar através da Rede
tanto produtos agropecuários quanto produtos caseiros e serviços profissionais
urbanos, elaborados sob os critérios da economia solidária, integrando à Rede
os produtores rurais e conferindo maior capilaridade urbana na comercialização
da Rede. h) Moradia Popular. Trata-se da construção de moradias populares
para os trabalhadores sindicalizados e participantes das associações
integradas à Rede. Algumas linhas de financiamento pesquisadas podem ser
acionadas, e já há duas cooperativas populares de construção civil operando,
uma em Curitiba e outra em Ponta Grossa. "A cooperativa dos trabalhadores
bancários realizará as tarefas de administração; a dos trabalhadores
engenheiros fará os projetos e plantas, bem como gerenciará as obras; e os
trabalhadores da construção civil e dos telefônicos realizarão as tarefas
necessárias para as obras de construção material das moradias". Até agora,
contudo, não há imóveis sendo construídos pela Rede Solidariedade.

Perspectivas

As perspectivas são de integração de todas essas atividades entre si e com


outras já existentes, como por exemplo, as atividades de uma ONG em Curitiba
chamada ADITEPP que articula mais de 100 famílias em sistemas de compras
comunitárias permitindo, em certos itens, uma economia de até 40% em
comparação aos preços praticados nos supermercados.

Essas Redes, que estão sendo organizadas há apenas 3 meses, dão sinais de
um potencial grande de crescimento. Tudo dependerá da percepção que os
demais segmentos organizados tenham da sua importância, difundindo a
prática do consumo solidário.

97
MOEDA SOCIAL E A CIRCULAÇÃO DAS RIQUEZAS NA ECONOMIA
SOLIDÁRIA68
Fábio Luiz Búrigo69

Se a gente compreendesse realmente o


nosso sistema bancário e monetário
creio que amanhã de manhã haveria
uma revolução aqui (Henry Ford Junior)

Apresentação

O sistema financeiro internacional assumiu papel central nas estratégias de


expansão das sociedades capitalistas contemporâneas. Controlado
hegemonicamente por grupos e conglomerados empresariais de caráter
financeiro, a dinâmica do sistema repercute cada vez mais nas grandes
decisões econômicas mundiais.

Não obstante a sua importância política, social e econômica, o funcionamento


do sistema financeiro (com suas constantes inovações) parece ainda pouco
compreendido pela maioria das pessoas e pelas organizações da sociedade
civil. A magnitude e complexidade exigem um grande esforço investigatório aos
que desejam desvendar as crises sistêmicas que rondam periodicamente o
mercado financeiro, e criam enormes desafios para quem discute mecanismos
efetivos de controle social ao setor. Ressalte-se que essas dificuldades são
geradas tanto pelas inovações tecnológicas (obtidas principalmente com o
apoio da telemática) quanto pelas novas formas de articulação dos agentes
que atuam no circuito financeiro (redes transcorporativas envolvendo atores
governamentais, agentes multilaterais e órgãos privados). Além do mais, o
sistema monetário atual é engenhosamente baseado no artifício da carência
crônica e epidêmica de dinheiro. O objetivo desta política, efetuado por
governos e bancos é o de proteger o valor do dinheiro (dos ricos) (Strohalm,
2000).

Em função desse quadro ganha força o debate sobre os impactos sociais e


econômicos resultantes do processo de globalização do capital financeiro.
Acentuam-se as críticas dos que afirmam que a homogeneização das finanças
mundiais (tendo o dólar como ícone), além de corroborar para o aumento das
diferenças entre os ricos e os pobres e entre as nações centrais e as
periféricas, vem colaborando para a geração de crises globais do setor e
mostrando as dificuldades de se estabelecer marcos regulatórios eficazes, sob
o ponto de vista democrático.

68
Texto apresentado como um dos requisitos para a conclusão da disciplina Análise Sócio-
Política do Sistema Financeiro no Capitalismo Contemporâneo, oferecido no semestre 2000.02,
pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (CFH - UFSC). O autor agradece as
sugestões e comentários efetuados pelo colega Jacques Mick.
69
Fábio Luiz Búrigo é Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agroecossistemas (Centro de
Ciências Agrárias - UFSC) e coordenador técnico do Centro de Estudos e Promoção da
Agricultura de Grupo - Cepagro. Caixa Postal 6073, Cep 88036 971- Florianópolis SC. Fone/fax
048 2333176. e-mail: burigo@mbox1.ufsc.br.

98
Além do mais, as incertezas e perplexidades, que rondam o padrão monetário
"convencional" estimulam o surgimento e a expansão de formas alternativas de
organização financeira. Um rápido olhar sobre parte desses movimentos, não
obstante as suas diferenças operacionais, indicam que eles apareceram com o
objetivo de combater o processo de concentração econômica e ampliar a força
dos excluídos do circuito financeiro tradicional.

Certas experiências alternativas estruturam-se como instituições bancárias,


mas orientando suas políticas para o desenvolvimento de programas de
microfinanças solidária (como o Grameen Bank de Bangladesh); algumas
defendem formas de gestão cooperada, como as cooperativas de crédito;
outras preferem, por sua vez, criar organizações civis especializadas em
produtos financeiros direcionados às camadas mais pobres da população,
como os "bancos do povo". Merece registro também os sistemas de crédito
gerenciados comunitariamente, como é o caso do "Palmcard" (cartão de crédito
criado por uma associação de bairro, na cidade de Fortaleza).

Mais recentemente ganha expressão outra experiência nessa área. Trata-se


dos clubes de trocas, em que circulam moedas cunhadas pelos próprios
participantes. Esses clubes já existem, sob diferentes formas, em diversos
países desenvolvidos como: Canadá, Estados Unidos, Japão, Austrália, Nova
Zelândia, Holanda, França, Espanha, Inglaterra; e em países periféricos, tais
como: México, Colômbia, Chile, Equador, Tailândia, Indonésia, Uruguai, Brasil
e Argentina. No Brasil tem-se conhecimento da existência de clubes de trocas
que utilizam moedas próprias nas cidades de São Paulo (cinco grupos), Rio de
Janeiro, Fortaleza, Florianópolis e Porto Alegre.

Em cada uma dessas experiências a moeda adotada assume nome e regras


próprias. Alguns grupos começam a denominar suas moedas de "sociais",
justamente por elas terem sido criados por movimentos interessados no
funcionamento de circuitos de trocas e de novos instrumentos monetários, a
serviço de uma economia diferente daquela que impera na ordem capitalista.

Cabe frisar que, longe de representar um instrumento "neutro" de


funcionamento da economia, o dinheiro sempre carregou dentro de si uma
dose de simbolismo vinculado ao círculo do poder. Para autores como Dodd, o
dinheiro sempre e onde quer que seja usado, não se define por suas
propriedades como objeto material, mas pelas qualidades simbólicas
genericamente vinculadas ao ideal de outorga irrestrita de poder (Dodd,1997)

O intuito do presente artigo é discutir o ressurgimento do debate e do uso


alternativo da moeda. Inicialmente procura-se resgatar brevemente o papel do
dinheiro e do sistema monetário único na sociedade capitalista. O tópico
seguinte destaca experiências de criação de instrumentos monetários
alternativos, sendo complementado com o relato sobre as moedas paralelas,
uma vez que elas se constituem num fenômeno bastante comum, mesmo nos
dias atuais. Dar-se-á especial destaque, na última parte, aos clubes de troca da
Argentina, que vem empregando a chamada moeda social.

99
Breve retrospecto do uso do dinheiro

Ao longo da História, as sociedades humanas desenvolveram inúmeras


fórmulas para efetivar as trocas de produtos e bens. Em algumas zonas, as
trocas se baseavam em padrões monetários de valor material, empregando
produtos de origem animal, vegetal ou mineral; em outras, as comunidades
concretizavam suas relações comerciais através da troca de objetos de valor
simbólico e cultural, sem uma utilidade prática, tais como adereços, conchas,
etc. Essas trocas estimularam o desenvolvimento de feiras, alcançando grande
importância econômica (e social) em diversas regiões, por exemplo, na Ásia,
Europa Mediterrânea, no Oriente Médio e Norte da África. Esses mercados
livres demonstraram que o comércio e as trocas já eram uma vocação de
diversas sociedades humanas, muito antes do surgimento do sistema
capitalista e das moedas nacionais.

Sabe-se que a construção e manutenção do poder político na sociedade


moderna passava, e ainda passa, pela criação de um processo de legitimação
simbólica e jurídica da moeda única. Geralmente, a consolidação de uma
moeda oficial única em determinado território ocorre somente após se
conseguir eliminar outras moedas que estão em circulação. Além disso, as
autoridades estão sempre em alerta, procurando evitar o surgimento de
moedas emitidas por setores descontentes com a moeda existente. Por outro
lado, em certos momentos, tanto em períodos de guerra como de paz, as
autoridades determinam a substituição da(s) moeda(s) corrente(s), como forma
de impor ou recuperar seu status político ou financeiro. Muitas vezes, as
moedas colocadas em desuso carregam consigo obrigações e dívidas que os
governantes não desejam, ou não podem mais honrar (Braudel, 1995).

A partir da consolidação dos estados nacionais e das relações de produção


capitalista, o dinheiro passou a incorporar novas funções, tornando-se sinônimo
de riqueza e de poder coletivo e pessoal, como frisou Goethe: o poder do
dinheiro é o meu poder (citado em Marx, 1989). Não é por outra razão que os
autores clássicos (Marx, Weber e Simmel) davam grande destaque ao papel do
dinheiro (e ao capitalismo financeiro), ao analisarem o funcionamento dos
sistemas econômicos e, em especial do sistema capitalista. Marx discutiu como
o dinheiro se transforma em capital e os conceitos de valor de uso e valor de
troca das mercadorias no capitalismo. Assinalou, também, o papel de alienação
exercido pelo dinheiro no capitalismo, característica vital para a perpetuação
dos processos de dominação e controle social.

O poder de perversão e de inversão de todas as qualidades humanas e naturais, a


capacidade de entre coisas incompatíveis estabelecer a fraternidade, a força
divina do dinheiro, reside no seu caráter como ser genérico alienado e auto-
alienante. Ele é o poder alienado da humanidade (Marx, 1989).

Weber estudou o papel do dinheiro nas sociedades ocidentais modernas, a sua


importância para a racionalização da vida social e a definição dos preços dos
bens e serviços. Ele classificava o sistema financeiro como um caso especial
de poder, preocupava-se com o controle do dinheiro e o poder das instituições
financeiras e do Estado (Mizruchi e Stearns 1994).

100
Nos estudos sociológicos de Simmel, o dinheiro era constantemente
referenciado como sendo uma instituição fundamental no desenvolvimento das
relações econômicas. Simmel concordava com a visão de Marx sobre o papel
alienante do dinheiro nas sociedades capitalistas, mas enfatizava que a moeda
proporcionou maior liberdade pessoal nos negócios e facilitou as transações
econômicas. Ela tornou-se um instrumento de interação de caráter anônimo e
menos sujeito às obrigações sociais (Mizruchi e Stearns 1994).

Embora o interesse principal do presente trabalho não seja o de analisar as


funções do dinheiro pode-se recorrer a uma síntese estabelecida pelo Cedac70,
para se entender melhor o seu papel no sistema capitalista contemporâneo.
Segundo o referido trabalho, o dinheiro assume as seguintes funções:

O dinheiro é o equivalente geral - ou seja, pode ser trocado por qualquer


mercadoria.

O dinheiro é medida de valor - todos os bens e serviços em circulação num


território podem ser medidos em dinheiro, o que permite quantificar o seu valor
e relacioná-los com outras mercadorias. Por outro lado, como ressaltam
Mizruchi e Stearns (1994) somente quando os membros de uma sociedade
concordam em definir o dinheiro como válido é que ele realmente adquire valor.
A essa ressalva pode-se acrescentar também uma observação da teoria
marxista, na qual o valor das mercadorias é igual à quantidade de trabalho
gasto para produzi-las, e os preços são estabelecidos somando-se o valor das
mercadorias mais o lucro que o produtor deseja receber (gerando nesse
processo a "mais valia").

O dinheiro é um instrumento da circulação das mercadorias – o valor de troca


das mercadorias no sistema capitalista é expresso em moedas, através dos
preços. O dinheiro serve como unidade de medida para se efetuar essas
trocas. Desse modo, o dinheiro é empregado para efetivar a mediação entre a
compra e a venda, que sem a sua existência precisaria ser realizada
diretamente. O dinheiro permite que as trocas de mercadorias possam ser
indiretas, pois não precisam ocorrer ao mesmo tempo e nem entre as mesmas
pessoas, como ocorriam nas feiras dos primórdios da civilização ou no
escambo.

O dinheiro é um meio de pagamento - O dinheiro assume aqui sua função de


viabilizar o pagamento futuro de uma mercadoria. Funciona como forma de
operacionalizar o sistema de crédito.

O dinheiro é reserva de valor - Através da poupança o dinheiro serve para dar


origem à acumulação. Dentro da sociedade capitalista a poupança acumulada
serve para viabilizar a realização de investimentos, através de financiamentos.
Deve-se salientar ainda que a moeda pode assumir outras características,
quando analisada sobre prismas distintos daquele de caráter técnico-
econômico. Mizruchi e Stearns (1994), citando Zelizer, destacam que o dinheiro
adquire múltiplo significado, de acordo com o contexto social em que está

70
Ver Cedac (1981).

101
inserido. Quando representa o poder de comprar bens e serviços à família, tem
um sentido "doméstico", que é diferente do dinheiro "institucional", utilizado
como capital (fundos de crédito e políticas do Estado), e que, por sua vez, é
distinto do dinheiro "moral", oriundo de fontes religiosas ou de caridade. Em
cada caso, ele assume um caráter simbólico específico e tem uma lógica
própria de utilização71(4).

Num trecho admirável, as conseqüências sócio-culturais do uso do dinheiro são


assim resumidas por Dodd:

...o ideal de outorga irrestrita de poder, de liberdade total de agir e incorporar à


vontade, se encontra no cerne da conceituação do dinheiro em geral como meio
simbólico transparente. É essa a base do desejo de possuir dinheiro, do próprio
conceito do dinheiro que é essencial em qualquer decisão de aceitá-lo em
pagamento, de trabalhar por ele, e economizá-lo ou entesourá-lo, de sentir ao
mesmo tempo repulsa e fascínio por aquilo que o dinheiro parece habilitar as
pessoas e instituições a fazer (Dodd, 1997).

O referido autor ressalta ainda que o papel político do dinheiro faz dele um
facilitador poderoso da reprodução de assimetrias de riqueza, poder, renda e
propriedade na sociedade (Dodd, 1997). Além do mais, como o sistema
monetário atual favorece o desvio de dinheiro dos países pobres para os ricos,
aqueles sofrem escassez de dinheiro para investimentos e padecem de
desorganização. Pois esta desnecessária e artificial carência de dinheiro
impede [a sociedade] de atrair e organizar os talentos das pessoas (Strohalm,
2000).

No entanto, é preciso ter em conta que, ao lado da sofisticação dos


instrumentos monetários modernos, algumas formas alternativas de trocas (re)
surgiram no século XX, em várias partes do mundo. Como se verá a seguir, as
moedas alternativas aparecem como contraponto das políticas monetárias
adotadas pela maioria dos países capitalistas.

As moedas alternativas

Apesar da imposição das moedas nacionais ter sido uma das estratégias mais
evidentes do sistema capitalista, ao longo dos últimos três séculos, alguns
exemplos de uso de moedas alternativas foram registrados nesse período72.
Uma das experiências mais interessantes nesse sentido refere-se à aplicação
da teoria da "oxidação da moeda" Para essa teoria, as moedas deveriam
71
É mister ressaltar que durante boa parte do século XX as investigações de natureza
sociológica em torno do dinheiro e de seu uso foram relegadas a segundo plano. Certamente,
essa carência dificulta a compreensão em torno das implicações sócio-culturais do uso de
moedas nacionais únicas e de moedas de circulação internacional (como é o caso do dólar).
De acordo com Mizruchi e Stearns (1994) os estudos sobre dinheiro, bancos e finanças ficaram
distantes dos sociólogos por décadas, prevalecendo principalmente pesquisas com enfoque
econômico. Para esses autores, somente nos anos 1970 os cientistas sociais voltaram a
produzir significativamente análises em torno do tema.
72
O uso de moedas alternativas à moeda oficial é uma prática relativamente pouco conhecida
depois da independência no Brasil, muito embora existam exemplos em que esta medida foi
utilizada, mesmo depois de ter sido estabelecida uma moeda nacional única. Sabe-se do uso
de moedas alternativas em Blumenau (1898), Porto Alegre (na década de 1950), em Campina
do Monte Alegre - SP (nos anos 1980).

102
perder o seu valor de troca com o passar do tempo. Sem tornar-se inflacionário
(pois a desvalorização é controlada), o sistema de redução programada do
valor da moeda foi uma das teses mais defendidas pelo economista Silvio
Gesell73. Ele acreditava que a poupança desestimula a circulação monetária,
gerando problemas como a recessão e a concentração de renda.

A moeda livre nos anos 1930

A tese da circulação máxima da moeda foi testada pelo menos em dois países
europeus durante o século XX. No ano de 1930, em Schwanenkirchen na
região da Baviera (Alemanha), um proprietário de uma mina de carvão
endividado propôs pagar seus empregados com um bônus chamado de "Wära"
(Wäre significava mercado) (Laacher, 2000). Porém, esse bônus perdia seu
valor ao longo do tempo, o que obrigava o seu portador a utilizá-lo
imediatamente. Os comerciantes acabaram aceitando tais bônus dos
trabalhadores, devido à carência de Marcos (moeda oficial) na cidade. Com o
bônus nas mãos, os comerciantes começaram a convencer os seus
fornecedores a aceitá-los, fazendo crescer rapidamente o espaço de circulação
do Wära. Em 1931, quando cerca de 2000 empresas já participavam do
circuito, o Banco Central alemão interditou o sistema, alegando o seu
monopólio na emissão de moeda (Lietaer, 2000).

Uma experiência semelhante ocorreu em 1932, na vizinha Áustria, onde o


prefeito da pequena comunidade de Worgl (4.300 habitantes), enfrentando uma
taxa de desemprego de 35%, resolveu imprimir bilhetes bancários especiais.
Esses bilhetes possuíam timbres que perdiam 1% de seu valor, a cada mês. O
valor dos bilhetes era lastreado por somas equivalentes depositadas num
banco local. Dois anos mais tarde, Worgl era a primeira vila austríaca a
reencontrar o pleno emprego. Com o uso dos bilhetes, a Prefeitura viabilizou a
realização de diversos trabalhos de infra-estrutura na cidade (serviços de água,
estradas, reflorescimento...). Constatou-se que os bilhetes circulavam cerca de
quarenta vezes mais rápido que a moeda oficial, em virtude da taxa de juros
negativa. Com isso, mais de duzentas comunidades vizinhas resolveram seguir
o exemplo de Worgl. Quando a experiência estava virando um centro de
referência para os economistas, o Banco Central austríaco resolveu interditar o
sistema. Apesar dos protestos dos moradores a experiência não pode
prosseguir, pois a Corte Suprema rejeitou os recursos efetuados pela
comunidade (Lietaer, 2000).

73 O austro-alemão Silvio Gesell (1862 - 1930) viveu muitos anos na Argentina, onde através
de sua atividade de comerciante pode perceber o impacto do sistema monetário capitalista,
especialmente em tempos de crise. Nesses períodos, a moeda oficial torna-se escassa
gerando grandes dificuldades para os setores empobrecidos e criando sérios empecilhos para
se fortalecer a economia. Uma de suas idéias foi estabelecer um "mercado sem capitalismo"
Seu modelo de economia livre defendia a idéia de se "oxidar a moeda", criando estímulos à
circulação do dinheiro, através de taxas de juros negativas e fortalecendo, conseqüentemente,
a economia local. Suas idéias principais a respeito do tema, consideradas impraticáveis por
muitos economistas de sua época, estão descritas na obra "A Ordem Econômica Natural", e
foram colocadas em prática na Áustria, França, Alemanha, Espanha, Suíça e nos Estados
Unidos (Trueque, 1999). Keynes, em sua obra Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda,
muito embora não acreditando na praticidade de se etiquetar as moedas com carimbos de
desvalorização, se interessou em comentar com respeito as concepções de Gesell.

103
No ano de 1933, o relato da experiência de Worgl, efetuado por um professor
da Universidade Yale (Irving Fischer), impressionou cerca de 400 vilas norte-
americanas, que resolverem criar suas "moedas de emergência", como forma
de combater a recessão econômica. A idéia desencadeou um movimento em
defesa da expansão desse tipo de moeda para todo o território dos Estados
Unidos, envolvendo, inclusive, parlamentares e técnicos do governo.

No entanto, as moedas livres foram abandonadas não por serem inviáveis


tecnicamente, mas por pressupor uma forte política de descentralização e
enfraquecimento do poder federal, o que entraria em choque com os novos
ideais de centralizar e controlar a economia, trazidos por Roosevelt através do
New Deal (Lietaer, 2000).

É preciso indicar, nesse passo, que durante a Grande Depressão norte-


americana espalharam-se redes de trocas sem moedas, abarcando em certo
momento mais de um milhão de pessoas. Contudo, estas redes de trocas
foram desbaratadas pelo início da Guerra e no momento em que as políticas de
bem estar passaram a ser responsabilidade do estado federal (Singer, 1999).
Outras experiências semelhantes, porém de menor porte, foram observadas na
França durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1933 foi criada uma "moeda
auxiliar" na cidade de Nice, a fim de estancar a concentração das riquezas e
ajudar as novas atividades econômicas. Depois em Cher (1956) e em Marans
(1958) são impressas as moedas livres, que também duram apenas um ano
por pressão dos serviços fiscais (Lietaer, 2000).

Segundo Laacher (2000) pode-se observar que as experiências de criar


moedas francas foram geralmente bloqueadas seja pelos governos federais,
seja pelos bancos centrais ou pelos fiscais locais. Elas nasceram em territórios
demarcados e normalmente desprovidos de desenvolvimento, de trabalho e
onde o dinheiro oficial andava escasso. Muitas dessas propostas eram
inspiradas nas teorias de Gesell. Laacher, no entanto, sustenta que o sistema
beneficiou mais diretamente grupos profissionais como os comerciantes,
artesões e agricultores que se encontravam em dificuldades econômicas, mas
não modificou diretamente a realidade dos trabalhadores e das pessoas em
situação de exclusão74.

A moeda livre dos anos 1980

A proposta de se criar uma moeda alternativa volta à tona durante os anos


1980, numa vila próxima da cidade de Vancouver, no Canadá. Michael Linton,
um analista de sistemas colocou em vigor o Lets (Local exchange trading
system), quando o poder aquisitivo local decaiu, em razão da recessão
econômica advinda com a crise na indústria madeireira e a transferência de
uma base aérea dos EUA para outra província (Singer, 1999).

74
Pode-se argüir no sentido contrário, afirmando que as experiências aqui relatadas foram
abortadas em tão curto espaço de tempo, que não permitiram prever todas as conseqüências
positivas que o sistema poderia trazer ao tecido social.

104
Os Lets se configuram como um clube de troca, onde o dinheiro oficial é
substituído por uma moeda própria. Os Lets auxiliam também no combate à
falta de poder aquisitivo da população, causado pelas políticas monetárias
restritivas, impostas pelo sistema oficial:
Un Club de Trueque es una asociación de personas desempleadas o
subempleadas, es decir, que tienen potencial productivo desaprovechado por falta
de demanda y necesidades insatisfechas por falta de dinero. En el Club se crea la
demanda faltante y, al mismo tiempo, las personas satisfacen sus necesidades
comprándose productos unas a otras. Se trata de un huevo de Colón, cuyo
secreto está en la emisión de una moneda propia del Club, que genera la
demanda al monetarizar las necesidades insatisfechas de los miembros (Singer,
1999).

Embora existam inúmeras variações operacionais em cada Lets, todos os


clubes respeitam certas regras, tais como: em suas transações não se obtêm
ganhos através de juros; todas as trocas são acordadas diretamente entre as
duas partes e; as contas de cada integrante do grupo estão disponíveis à
verificação de todos. Tomando como base as observações de E. Bowring,
Singer ressalta que existem dois tipos de Lets: os que enfatizam o papel
econômico dos intercâmbios, promovendo o máximo crescimento dos clubes
através do envolvimento com empresas dispostas a comercializar seus
produtos via moeda comunitária, e os que priorizam seu papel social,
procurando criar mercados comunitários em que participam apenas os
produtores autônomos locais. Esses últimos preocupam-se em estimular as
práticas solidárias e evitar as tendências concentradoras dos mercados "puros"
(Singer, 1999). De 1983 até 1988 foram criados cerca de vinte Lets no Canadá,
muitos dos quais não prosperaram pela perda de confiança entre seus
membros. Porém, no mesmo período, outros Lets surgiram e se espalharam
por vários países do mundo (Laacher, 2000).

Na Nova Zelândia os Lets apareceram em 1986, tendo conseguido eleger


deputados, a partir dos grupos existentes. Na Austrália, os Lets surgiram em
1987 adotando o nome de "Dinheiro Verde" (Mutirão Aboporu, 2000). Os
clubes australianos contaram, inclusive, com o apoio do governo, que se
mostrou interessado em ajudar na sua consolidação e expansão. Em 1994, um
só grupo australiano, integrado por cerca de 2000 membros, movimentava o
equivalente a U$ 40.000 por mês.

No Reino Unido a idéia do Lets surgiu em 1985, sendo que uma década depois
já somavam 400 grupos, envolvendo cerca de 20.000 aderentes (Singer, 1999).
Os Lets ingleses obtiveram, também, certo apoio de autoridades locais.

Os Lets cresceram rapidamente, podendo-se estimar a existência de,


aproximadamente, 1500 sistemas semelhantes espalhados pelo mundo. Na
Europa eles já aglutinam cerca de 100.000 pessoas (Blanc, 2000). Na França,
a experiência adotou o nome de SEL (Systèmes d’Echange Locaux). As trocas
no SEL funcionam via um bônus intransferível, que permite aos aderentes
adquirir bens e serviços existentes num catálogo gerado pelos membros.

De acordo com Laacher (2000), as experiências francesas foram inspiradas em


duas vertentes. De um lado, elas são ligadas às correntes de autores que

105
defendiam uma utopia socialista e revolucionária como Marx, Fourrier,
Proudhon, Owel e Gesell. Esses autores viam o dinheiro como uma arma a
favor do poder capitalista e que por isso devia ser "domesticado". Ou seja, para
se alcançar às necessidades fundamentais da população é imperativo controlar
o dinheiro e o mercado e não o inverso, em que os setores financeiros
controlam a sociedade e a economia.

De outro lado, os SEL cresceram a partir das experiências de criação de


moedas francas, surgidas na primeira metade do século passado (conforme foi
citado anteriormente).

Laacher (2000) argumenta ainda que, diferentemente das utopias socialistas


que pretendiam ser universais e integradoras, os integrantes dos SEL estão
mais preocupados na inserção local. Buscando discutir com as esferas locais
as estratégias do desenvolvimento do seu território, os SEL pretendem
estabelecer trocas equitáveis de bens e serviços e criar um ambiente de
solidariedade e conhecimento recíproco entre os membros75. Os SEL não
utilizam mecanismos financeiros clássicos (bancos, poupança, investimentos)
como forma de combater a exclusão. Diferentemente de quem defendem, a
inserção dos excluídos na economia capitalista, os SEL procuram estabelecer
uma ruptura com o mercado existente, criando uma espécie de circuito próprio
de comercialização, que funciona em forma de rede. Visa também restabelecer
a confiança como valor essencial e permitir que as pessoas tenham acesso as
trocas independentemente de seu status social. Com isso, os SEL pretendem
obrigar o Estado a refletir sobre os limites do padrão econômico atual, na área
da produção, avaliação e redistribuição das riquezas.

Como se viu, o uso (ou as tentativas de) de instrumentos monetários distintos


do oficial é um fenômeno freqüente. Porém, ele torna-se ainda mais comum
quando se adota como referência o conceito de moedas paralelas. É o que se
verá a seguir.

Moedas Paralelas

Esse tópico procura sintetizar dois textos de Jeròme Blanc a respeito do uso de
moedas paralelas76. Nos textos, o autor descreve uma pesquisa sobre o uso de
moedas paralelas em todo o mundo. Sua investigação, mesmo limitada ao
período de 1988 a 1996, apontou uma gama muito grande de crises monetárias
e de acontecimentos ligados ao tema. Na sua coleta, o autor detectou 465
exemplos de uso de instrumentos monetários paralelos, em 136 estados
nacionais (Blanc, s/d). Para Blanc, o termo moedas paralelas pode ser definido
como:

Unidades de cobrança diferentes das unidades de cobrança nacional, ou também


como meios de pagamentos que diferem dos meios nacionais, mas que dispõe de
um poder de liberação legal, que dispõe de uma garantia de convertibilidade com

75
Para estimular o contato pessoal, nos SEL não são feitas trocas por telefones. Além disso,
são organizadas festas, assembléias, passeios etc. como forma de aumentar a convivência do
grupo.
76
Ver bibliografia.

106
a moeda central e que são emitidas sob um certo controle da autoridade monetária
nacional (Blanc, s/d).

O autor enfatiza que as moedas nacionais de países mais fortes


economicamente são consideradas como as únicas que circulam de forma
paralela às moedas oficiais (como é o caso do dólar, na maioria dos países
periféricos). Todavia, esse entendimento está equivocado, pois em todos os
países as moedas estrangeiras são apenas parte de uma vasta lista de
instrumentos monetários paralelos e que fazem a economia funcionar.
Segundo o autor, esses instrumentos paralelos podem ser divididos em quatro
grupos (ver Quadro 1):

Derivados de uma coletividade territorial - São aqueles criados dentro de um


território, por uma coletividade que pode ser o Estado, tais como os bônus de
privatização ou moedas antigas ainda em uso. Esse tipo de moedas totalizou
58% dos instrumentos pesquisados. Aqui está incluído também a URV, uma
moeda paralela criada pelo governo brasileiro, no início do Plano Real, em
1994. Ela agiu na forma de indexador, facilitando a transição para a nova
moeda e para estancar a hiperinflação. As moedas estrangeiras são as mais
importantes desse grupo, pois totalizam cerca de 33% dos instrumentos
monetários censados (sendo o dólar a moeda mais empregada). Cabe frisar
que as moedas estrangeiras são, muitas vezes, as mais assumidas como
instrumentos monetários de valor reconhecido, especialmente em momentos
de crise.

Derivados de organizações de tipo comercial ou administrativo - São os


instrumentos emitidos por empresas, bancos ou outras organizações de caráter
privado. Nesse grupo estão os programas de milhagens e de fidelização dos
clientes, os bônus de compra com validade limitada, os ticktes restaurantes etc.
Essas moedas normalmente possuem aceitação restrita a certos
estabelecimentos ou condições de uso e são reguladas pela legislação. Nesse
grupo foram censados 7% dos instrumentos monetários pesquisados.

Derivados de coletividades de pessoas com vocação não comercial - São as


moedas criadas pelas pessoas de um determinado coletivo sem uma intenção
comercial, ou intervenção do Estado. Cerca de 10% dos instrumentos
encontrados estão classificados neste grupo. Seguem uma lógica comunitária
de trocas de bens e serviços e são, muitas vezes, empregadas em regiões
onde as moedas nacionais não penetraram muito. Incluem-se aqui os sistemas
de trocas baseados em unidades de cobrança acordados oralmente, como os
clubes de trocas. Nesse grupo estão inseridos também os antigos sistemas de
escambos (dádiva contra dádiva) ainda existentes em sociedades onde
prevalecem as paramoedas.

De origem não especificamente monetários - São aqueles que não possuem


originalmente uma vocação monetária, mas que acabam assumindo tal papel,
tais como ativos e bens físicos. Pode-se citar aqui os pagamentos feitos em
produtos agrícolas (ex. milho, soja, boi vivo etc.).

107
Quadro 1 - Tipologia dos instrumentos monetários
Instrumentos
monetários
Instrumentos Desses 29% são
(empregados Instrumentos monetários derivados de
monetários considerados
em cobranças e uma coletividade territorial (58%)
paralelos paramoedas
nos
pagamentos).
Instrumentos monetários derivados de
uma organização administrativa (7%)
Instrumentos monetários derivados de
coletividades de pessoas, com
vocação não comercial (10%).
Instrumentos de origem não
especificamente monetários (25%)
Fonte: Blanc (s/d) - adaptado pelo autor.

Blanc ordena também as moedas paralelas de forma transversal à


classificação anterior, denominando esse novo agrupamento de paramoedas.
Assinala que as paramoedas não têm vocação de substituir as moedas
nacionais, mas acabam questionando as teorias monetárias atuais, pois
funcionam, em vários casos, como uma moeda "normal" com o poder de
compra generalizado. Geralmente as paramoedas não são vistas como
concorrentes pelas autoridades monetárias, pois não são entendidas como
algo com valor monetário77. Mas essa percepção, segundo o autor, não tem
respaldo na realidade, pois as moedas paralelas estão presentes por todos os
lados, mesmo em momentos em que não há crise financeira.

Além do mais, o autor afirma que para se compreender melhor esse paradoxo
é necessário investigar as concepções teóricas sobre a utilidade da moeda na
economia. Uma corrente entende que as moedas paralelas são o resultado de
reforma da organização monetária da sociedade, já a outra aborda os
fenômenos específicos referentes à substituição das moedas e à hiperinflação.
Blanc destaca dentro da primeira corrente as idéias de Silvio Gesell, frisando
que ele pregava o aumento da circulação monetária através da depreciação
organizada do valor da moeda, sem afetar os preços nominais dos bens. O
pesquisador comenta também que as tentativas de colocar em prática as idéias
de Gesell acabaram levando ao surgimento de moedas paralelas, criadas pelas
comunidades interessadas em testar suas propostas (Blanc, s/d).

Mas o argumento central de Blanc é que ao invés de se combater as moedas


paralelas seria mais interessante incorporá-las numa nova conceituação da
moeda. Essa tese baseia-se nos seguintes elementos: 1) a moeda paralela
pode ser um importante instrumento de política monetária. Cita os exemplos do
Zaire e de outros países, onde quase não existe uma rede bancária e se
adotam práticas monetárias diferentes das ocidentais; 2) o uso das moedas
paralelas levanta interrogações sobre os valores sociais e antropológicos das
moedas nacionais e do sistema econômica predominante. As diversas
experiências de trocas locais e a criação de sistemas de microfinanciamento

77
Uma moeda nacional tradicionalmente assume as seguintes características: Única: responde
apenas a uma autoridade monetária; Exclusiva: é a única que possui o poder generalizado de
compra e; Propriedade do Estado: confere poder do Estado dentro de seu território (Blanc, s/d).

108
reforçam a percepção de que as análises tradicionais não englobam
suficientemente as manifestações das comunidades; 3) como o fenômeno é
permanente e generalizado merece ser incorporado. Não pode ser visto
apenas de forma marginal pelas teorias monetárias e; 4) as interrogações em
torno da fungibilidade da moeda.

Na sua parte final, o artigo de Blanc trata da integração social da moeda.


Discute como se organizam os diferentes níveis hierárquicos, estabelecidos
entre uma comunidade de pagamento (atores que se identificam com o sistema
monetário nacional) e os grupos monetários (que são os conjuntos de atores
com práticas homogêneas inseridas dentro da comunidade de pagamento).
Deve-se salientar que em cada grupo, não se empregam todos os instrumentos
da moeda nacional e se empregam alguns instrumentos paralelos.
Em resumo, além de dados interessantes a respeito da magnitude do
fenômeno das moedas paralelas, o autor defende no texto que as teorias
monetárias clássicas precisam ser revistas, pois quase sempre ignoram o
fenômeno das moedas paralelas78. Entretanto, o que não fica muito claro na
abordagem é o grau de importância que autor deposita nas experiências das
moedas sociais, que andam na "contramão" do capitalismo, como se verá no
próximo tópico.

A moeda social da Rede Global de Troca

A experiência dos clubes de trocas que empregam a sua própria moeda vem
ganhando destaque nos últimos anos, especialmente na Argentina. O uso do
dinheiro próprio nos clubes de trocas vem fortalecendo a idéia da moeda social,
na qual são incorporados elementos de natureza social e de criação de
relações econômicas sob bases solidárias.

Nos clubes, a moeda é social porque é uma unidade de medida que favorece
as trocas solidárias e os pagamentos, mas não vira reserva de valor, pois não
gera mais dinheiro através da aplicação de taxas de juros. Um grupo brasileiro,
que vem desenvolvendo uma experiência similar aos clubes argentinos, explica
sua idéia de moeda social:

(...) não é um sistema alternativo e sim complementar à economia. Ela é


produzida, distribuída e controlada pelos seus usuários. Por isso, o valor dela não
está nela própria, mas no trabalho que vamos fazer para produzir bens, serviços,
saberes e depois trocar com o resultado do trabalho dos outros. A moeda
enquanto tal não tem valor, até que comecemos a trocar trabalho com trabalho. Aí
então, ela vai servir de mediadora dessas trocas. Ela é diferente também porque a
ela não está ligada nenhuma taxa de juros. Por isso não interessa a ninguém
guardá-la, entesourá-la. Interessa, sim trocá-la continuamente por bens e serviços

78
Para a organização não governamental holandesa Strohalm, no futuro as moedas nacionais
perderão sua importância, ou seja:
na era de informação, a moeda nacional será apenas o meio de cálculo para que
possamos designar o valor de bens e serviços. Está previsto que, fazendo uso da
internet, se desenvolverá uma competição para definir quem colocará em
circulação o meio de troca mais aceito [...] Atualmente, grande parte do comércio
internacional é efetuado sem a utilização de dólares ou euros, e sim através de
transações eletrônicas que definem relações de troca. (Strohalm, 2000).

109
que venham responder às nossas necessidades Esta moeda será sempre um
meio, nunca um fim. Não será inflacionária nem jamais poderá ser usada como
especulação (Mutirão Abopuru, 2000).

É difícil precisar as verdadeiras causas para o (re) surgimento da moeda social.


Para compreender as razões para tal fenômeno são necessários estudos de
maior envergadura, que fogem das possibilidades do presente trabalho. No
entanto, é possível enfatizar alguns aspectos, que podem servir como "pistas"
explicativas para o seu aparecimento: i) a hegemonia das políticas neoliberais,
que defendem o ajuste estrutural do Estado, e acarretam novas ondas de
desemprego, de recessão econômica e de redução das políticas de bem estar;
ii) a crítica crescente à "sociedade de mercado", na qual o dinheiro enquanto
reserva de valor é visto como um de seus maiores mitos; iii) os riscos advindos
com a globalização dos circuitos financeiros, em que o dinheiro volátil torna-se
sinônimo de especulação e de incerteza, em escala planetária; iv) o aumento
da miséria em países periféricos e dos bolsões de pobreza nas nações
centrais; v) a expansão dos movimentos de resistência ao poder do capitalismo
financeiro, que se cristaliza em várias partes do mundo e; vi) as moedas sociais
aparecem como exemplos de constituição de redes de sócio-economia
solidária.

Além do mais, as moedas sociais anulam, ainda que em pequena escala, a


concentração monetária estabelecida pelas autoridades e levam ao
crescimento da demanda efetiva. Como frisa Singer, a demanda efetiva é
mantida baixa por políticas que impedem a monetarização de todas as
necessidades(...), [uma vez que] o Banco Central impede os bancos de
emprestarem dinheiro à todos os que o solicitam para comprar bens de
consumo ou de produção (Singer, 1999).

Para se conhecer um pouco melhor a relação entre os clubes de troca e a


moeda social tomar-se-á como subsídio as publicações dos próprios clubes
argentinos e um texto escrito de Heloísa Primavera, brasileira que vive na
Argentina e que é uma das principais animadoras da experiência79.

Em seu trabalho, a autora aborda inicialmente a agonia do estado de "bem


estar" na Argentina, vivido nos últimos 20 anos. Esse processo acabou gerando
altas taxas de desemprego, motivado pelas políticas de ajuste estrutural e pelo
fenômeno da globalização financeira. Trouxe também um quadro de incertezas
e de vulnerabilidade ao país, que era considerado o mais rico da região.

O primeiro clube de trocas da Argentina surgiu em 1995, na cidade de Benal,


localizada a 30 quilômetros de Buenos Aires. Foi fundado por um grupo de 20
vizinhos, com ideais ecologistas e vontade de construir um novo "estado de
bem estar" (pelo menos em sua comunidade). Inicialmente, o grupo reunia-se
uma vez por semana, para trocar bens e serviços como forma de melhorar a
sua qualidade de vida e combater o desemprego.
79
O texto: La moneda social de la red global de trueque en Argentina: barajar y dar de nuevo
en el juego social, foi apresentado originalmente pela autora durante o Seminário Internacional
"Globalisation of Financial Markets and its Effects on the Emerging Countries", organizado pelo
Instituto Internacional Jacques Maritain, Cepal e Governo do Chile. O evento ocorreu na cidade
de Santiago, de 29 a 31 de março de 1999.

110
Durante o primeiro ano, o Clube foi crescendo pouco a pouco, intercambiando
frutas, verduras, comidas preparadas, roupas, tecidos e artesanatos. Além
disso, o clube incorpora as idéias de A. Toffler, de se criar "prossumidores", o
que significa incorporar na mesma pessoa, o ser consumidor e o ser produtor.
Assim, para que os reais propósitos do Clube fossem atingidos todos os
membros deveriam produzir e consumir ao mesmo tempo.

Para efetuar os controles foi inicialmente empregado um livro caixa, no qual se


registravam todos os movimentos contábeis do Clube. Depois de certo tempo,
o Clube passou a utilizar um computador, para auxiliar no gerenciamento das
operações. Mas ele foi logo rejeitado, pois todos entenderam que isto
centralizava demais as informações do grupo. Então, o Clube tentou seguir o
exemplo dos SEL franceses, adotando o esquema dos bônus intransferíveis.
No entanto, já durante a primeira feira os bônus intransferíveis passaram a ser
considerados transferíveis, pois os seus portadores começaram a endossar e
passá-los adiante. O mecanismo de livre circulação de bônus significou uma
grande transformação qualitativa para o grupo, e o fez diferente da experiência
francesa, que depois de muitos anos continuava adotando o esquema dos
bônus intransferíveis. Na prática, o clube de Benal criou uma nova moeda, que
foi chamada de "crédito", por espelhar os laços de confiança existentes entre
os membros do grupo.

A proposta de trabalhar com o bônus transferível proporcionou um incremento


imediato das trocas dentro do Clube, gerado pelas facilidades criadas pela
moeda. A circulação livre de uma moeda permitiu que o grupo iniciasse uma
experiência semelhante àquela defendida por Silvio Gesell. Embora o "crédito"
não perdesse seu valor com o tempo, ficou claro para o grupo que o que
importava era incentivar as trocas e assim gerar benefícios a todos. Acabava-
se com a idéia da poupança, pois aqueles "papeizinhos" tinham utilidade
somente dentro do grupo.

A experiência de Benal ganhou grande visibilidade nos anos seguintes,


estimulando o surgimento de centenas de outros grupos, em toda a Argentina.
Segundo Primavera (1999), os meios de comunicação e diversos governos
municipais (Buenos Aires, Quilmes, Córdoba, Mendoza, Miramar Almirante
Browm, entre outros) apoiaram a idéia. Até setores do mercado formal, como
alguns comerciantes viram vantagens com a proposta dos clubes de troca, uma
vez que os seus integrantes acabavam economizando seu dinheiro "oficial"
(pesos), e gastando-os posteriormente, para adquirir itens não disponíveis nas
feiras. Em 1999, os clubes de trocas argentinos (nós) já movimentavam em
torno de 400 mil dólares anuais. No final de 2000, o número de clubes de
trocas argentinos ultrapassava 700 e envolvia mais de 400 mil pessoas. Em
dezembro de 2000, o governo federal argentino, reconhecendo a sua
importância social, declarou os clubes de trocas como organismos de utilidade
pública80.

80
Informações prestadas ao autor pelos líderes do movimento argentino, durante a realização
de uma oficina de trabalho do Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre de 25 a 30 de
Janeiro de 2001.

111
Primavera indica algumas características que possibilitaram aos clubes de
trocas alcançarem grande expressão na Argentina: 1) a criação da moeda
(social) incrementou as trocas e motivou a participação de novos membros; 2)
a convivência experimentada pelos integrantes dos grupos, através de feiras
semanais, consolidou a coesão e o sentimento de pertencimento entre os seus
membros; 3) a organização da articulação entre os diversos clubes (Rede
Global de Trocas) multiplicou as possibilidades das transações e; 4) a
preservação da autonomia garantiu o funcionamento dinâmico e sem o
estabelecimento de hierarquias entre os nós (clubes).

Por outro lado, o processo de criação e de regulação dos clubes gerou também
ensinamentos, que podem ser sintetizados em alguns princípios. Esses
princípios têm orientado a gestão dos clubes e da Rede Global de Trocas:

1. Os clubes não devem ser muito grandes (60 a 80 pessoas é o ideal), para
fortalecer os laços de solidariedade e convivência entre os grupos;

2. É preciso estabelecer controles desde baixo, facilitando a gestão e a


autonomia de cada nó;

3. Deve-se crescer em partes, enfatizando temas e aspectos particulares que


podem ser relevantes para certos grupos;

4. Os erros ocorrem sempre, mas eles devem ser aceitos, pois não há receitas
em projetos de constituição de redes de clube de trocas;

5. Cultivar retornos crescentes significa estimular as trocas dentro do clube de


forma a multiplicar o estado de ânimo e de participação dos membros;

6. Perseguir metas múltiplas, criando maior riqueza de atividades dentro do


grupo, pois sua existência extrapola a simples troca de bens e serviços. O
que se deseja é, sempre, ampliar a qualidade de vida dos integrantes do
clube;

7. Maximizar o "marginal" indica que é preciso valorizar as novas idéias.


Muitas vezes as boas idéias aparecem como "desvios", que parecem não
ter importância para o crescimento dos clubes. Essas idéias podem
significar saltos de qualidade para o funcionamento de uma rede (como foi o
caso da transformação dos bônus de intransferíveis em transferíveis);

8. Buscar um desequilíbrio de forma persistente mostra que é necessário


romper com as idéias que defendem um (falso) controle dos clubes. Dentro
da rede deve-se cultivar um clima em que a incerteza faça parte do
processo. Isso é vital no gerenciamento de mudanças evolutivas, permitindo
a criação de um futuro distinto;

112
9. Aceitar que "as mudanças também mudam" reforça a idéia da
transformação permanente e da necessidade de se refletir sobre o papel
dos prossumidores nas novas organizações81.

A autora insiste ainda na necessidade de se visualizar os clubes com a


complexidade e a heterogeneidade existente em qualquer organização social.
Mesmo assim, Primavera demonstra grande otimismo quanto às possibilidades
de criação de clubes de trocas em outros países, bem como com as conexões
com outros processos similares.A autora cita, a propósito, os comentários
positivos sobre as ações dos clubes, efetuados por Muhamad Yunus (criador
do Grameen Bank) e por Paul Singer (economista brasileiro que estuda
atualmente as experiências de economia solidária).

Note-se ainda que em outro artigo, Singer faz alguns comentários sobre os
clubes de trocas. Assinala que os clubes podem ser considerados
empreendimentos de economia solidária somente quando se preocupam em
estabelecer novas relações sociais, favorecendo o crescimento solidário de
seus membros. A economia solidária pretende transformar as relações
econômicas baseado em princípios e postulados da cooperação, solidariedade
e de inclusão, estabelecendo novas relações sociais de produção. Lembra
ainda que é preciso criar mecanismos que restrinjam a competição interna -
evitando o surgimento de vencedores e perdedores - e desenvolver novas
ações, com potencial transformador significativo para a sociedade como um
todo (Singer, 1999).

Em seu artigo, Primavera comenta as conclusões de um Seminário realizado


na Finlândia, em que foi observado que as experiências de trocas solidárias,
que utilizam moedas complementares em papel, têm crescido mais
rapidamente que as demais, embora o uso das moedas não garanta o sucesso
dos grupos. É necessário reforçar as atividades de capacitação e de promoção
do desenvolvimento local. No referido Encontro foi proposto também que se
estenda a idéia dos clubes para escolas, hospitais e novos espaços, bem como
se estabeleça maior integração com os grupos que desenvolvem ações ligadas
ao "comércio justo"82.

81
Cabe aqui citar dois exemplos de inovações que estão sendo testados pelos "nós". Um clube
está colocando em prática um programa de microcrédito em moeda social. Nesse programa
dois grupos de cinco prossumidores receberam um empréstimo solidário (em moedas do
clube), com o objetivo de incentivar novos empreendimentos. Com o pagamento dos créditos
pretende-se criar um Fundo Rotativo, para apoiar novos beneficiários. Outro exemplo refere-se
à criação de normas para se evitar a "poupança" nos clubes, como defendia Silvio Gesell.
Foram estabelecidas penalidades para quem acumular moedas, dentro de certo período. Até
aquele momento, nenhum membro tinha sido penalizado (Trueque, 1999).
82
As redes de Mercado Justo defendem um novo modelo comercial intencional, no qual o valor
do trabalho necessário para manter os produtores seja reconhecido e incorporado nos preços
das mercadorias. Seguindo o exemplo do que ocorre atualmente com os produtos orgânicos,
em vários países europeus, dos Estados Unidos e do Japão há um número expressivo de
consumidores dispostos a pagar um pouco mais por esses produtos, como forma de apoiar o
movimento. Para isso são efetuados contratos entre grupos de pequenos produtores de países
produtores (América Latina e África principalmente) e as organizações das nações
compradores (normalmente ONGs interessadas na difusão desse tipo de "mercado").
Atualmente os produtos mais comercializados nesse esquema são o café, frutas, sucos e
artesanato em geral. Segundo um técnico de uma ONG alemã que atua no setor, o Mercado

113
De forma resumida, pode-se indicar os elementos chaves a respeito da
experiência dos clubes de trocas da Argentina:

1. A experiência congregou alguns dos chamados "novos pobres", gerados


pela crise econômica vivida pela Argentina nas últimas décadas. Muitas
dessas pessoas possuíam um certo grau de escolaridade e uma visão
"ecologista";

2. Apoio do setor governamental foi importante para a expansão e


consolidação dos clubes em várias cidades do país;

3. Os clubes representam um esforço de militância de um número


considerável de argentinos (400 mil pessoas, em mais de 700 "nós");

4. Apesar do surgimento de "desvios" em algumas ocasiões, tais como


falsificações, tentativa de controle centralizada do dinheiro, emissão em
excesso de dinheiro, a criação da moeda (bônus transferível) foi uma
inovação notável e que consolidou a experiência. Para Heloísa Primavera a
moeda facilitou a participação dos interessados e acelerou a expansão da
Rede Global de Troca;

5. É necessário investir fortemente nos processos de capacitação dentro dos


clubes, adotando abordagens holísticas, em que se trabalha a formação dos
membros como protagonistas e a integração das diferenças. Os eventos de
capacitação estimulam a noção de solidariedade, a capacidade
empreendedora e a ação democrática e;

6. A flexibilidade estabelecida dentro da Rede Global permitiu o ajuste de


visões diferenciadas, não burocratizando e engessando a experiência. O
ritual de criação de novas regras parece ter atingindo o equilíbrio entre a
necessidade de fortalecer certos procedimentos gerais, para dar um certo
grau de coesão à rede, com a noção de autonomia e liberdade, dando
vasão à criatividade em cada nó.

Primavera acredita que os clubes de troca propõem uma transformação radical


do padrão e de consumo atual, pois é preciso reinventar a vida reinventando o
mercado, através da confiança e da reciprocidade (Primavera, 1999).

Considerações Finais

O fenômeno das moedas alternativas e dos circuitos de trocas sem o uso do


dinheiro esteve presente principalmente na época da recessão econômica, que
assolou a Europa e os EUA durante as décadas de 1920 e 1930. Fomentou-se,
nesse período, a experimentação de novas teorias monetárias, como a
experiência do Wära e do bônus da pequena vila de Worgl. Infelizmente a
maioria dessas iniciativas foi abortada pelas autoridades monetárias,

Justo ocupa atualmente 1% do mercado europeu de alimentos. Mas poderia alcançar até 7%
em pouco tempo, desde que seja incrementado o trabalho de divulgação e de distribuição dos
produtos.

114
temerosas com a possibilidade de expansão da proposta de uma "economia
livre".

Mais tarde, notadamente depois dos anos 1980, pode-se constatar o (re)
aparecimento de uma grande variedade de novas moedas, que funcionam de
forma paralela às moedas nacionais. A maioria dessas moedas, conforme se
viu, atuam de forma complementar à moeda oficial, sendo emitida até mesmo
pelo próprio Estado (mas que não as reconhece com tal). Várias moedas
paralelas são resultado de estratégias oriundas da própria dinâmica capitalista,
formuladas para facilitar a realização de transações de bens, de serviços e de
outras atividades comerciais.

Mas, esse processo de monetização paralela não é resultado apenas de


inovações tecnológicas e operacionais endógenas ao capitalismo. Foi possível
observar também que as novas moedas podem assumir um caráter mais
radical, funcionando como um instrumento educativo para quem assume uma
postura contrária ao sistema sócio-econômico e financeiro vigente. Nesses
casos, moedas alternativas são emitidas por grupos e coletividades,
interessadas em reinventar uma nova forma de transação (e de convivência)
entre as pessoas. Para seus idealizadores, esses novos instrumentos
monetários representam um sinal de resistência ao predomínio das moedas
oficiais, por entender que estas levam ao surgimento de desertos monetários
onde muito potencial produtivo permanece inútil apenas devido à escassez do
meio de ativá-lo: dinheiro (Strohalm, 2000). Ou seja, a baixa circulação da
moeda colabora para a ampliação da concentração financeira das pequenas
localidades e de setores empobrecidos, dificultando os planos de
desenvolvimento.

Diversas tentativas de (re) criação de dinheiro "livre" estão adotando a


terminologia de moeda social. Fica claro que essa adjetivação da moeda deriva
da intenção de se casar uma nova forma de circulação monetária, com a
implantação de iniciativas de caráter social. Isto é, busca-se, através da moeda
social, fortalecer a organização comunitária, incentivar à criação de circuitos
econômicos e culturais includentes, combater a concentração financeira e
inverter a lógica da desertificação monetária.

Ressalte-se que as moedas sociais aparecem também em movimentos


organizados por cidadãos de países de economia capitalista avançada. Nos
países periféricos, ao lado da criação da moeda é necessário articular outras
estratégias de inserção sócio-econômica. Somente com essa articulação, a
moeda social poderá atingir grandes camadas carentes da população.

Conclui-se que a expansão dos clubes de trocas, e de outras experiências de


empregos da moeda social, pode estimular a sociedade a discutir a relação
entre valor e preço, permitindo a formulação de preços mais justos a partir de
uma nova visão do valor (inclusive do valor social do trabalho). Vale ressaltar
também que os clubes servem para quebrar o "fetiche" do dinheiro, oferecendo
às pessoas uma noção mais acurada do papel da moeda na sociedade
capitalista.

115
Com efeito, isso leva a pensar também na necessidade de novas investigações
relacionadas às implicações sócio-culturais e a visão subjetiva que o dinheiro
(cada vez mais circulando de forma eletrônica) vem adquirindo nas sociedades
capitalistas avançadas.

A idéia dos clubes de trocas e da moeda social pode ser incorporada nas
metodologias de animação de programas de desenvolvimento local, pois
reforça os laços de confiança e estimula a circulação de bens e serviços entre
as comunidades. Os "novos pobres" argentinos vêm demonstrando ser
possível organizar formas inéditas de auto-ajuda, que associam o caráter
empreendedor - pois resgatam a possibilidade das pessoas oferecerem seus
produtos e serviços - com a criação de um novo mercado, que não se confunde
com o mercado capitalista.

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1999

117
UMA CONTRIBUIÇÃO CRÍTICA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS DE APOIO À
ECONOMIA SOLIDÁRIA83

Antônio Cruz84

Duas experiências em políticas públicas de apoio à economia


solidária

O presente trabalho procura enfocar criticamente, de forma essencialmente


contributiva, duas experiências de políticas públicas de apoio à economia
solidária: a do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em vigor desde 1999,
e do Município de São Paulo, cujo projeto encontra-se ainda em sua fase
inicial.

Cabe ressaltar, que ambas são experiências dirigidas pelo Partido dos
Trabalhadores e que outras experiências nessa área vêm se realizando no
Brasil. A escolha desses dois governos se justifica pelo impacto sócio-político
dos dois conjuntos e por nossa especial familiaridade com ambos. Um conjunto
de outras iniciativas institucionais – como a ação de ONG’s, sindicatos e
universidades – mereceriam igualmente uma análise detida, mas vamos nos
abster disso, desta vez, postergando sua análise, se bem que nossas principais
vivências são originadas do Programa de Economia Solidária da Rede
Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho – a Rede Unitrabalho,
onde se desenvolve o Programa “Rede de Incubadoras Universitárias de
Cooperativas Populares”. Por fim, este artigo constitui ainda um esboço de
pesquisa e se destina a colher a crítica preliminar de professores e colegas em
torno da questão.

1. O Rio Grande do Sul

O Programa de Economia Popular e Solidária, dirigido pela Coordenação de


Economia Popular e Solidária (Ecopopsol) da Secretaria do Desenvolvimento e
Assuntos Internacionais (SEDAI) do Estado do Rio Grande do Sul vem
operando de fato desde meados do primeiro semestre de 1999. Seus
resultados são expressivos: mais de 120 cooperativas foram criadas e
desenvolvidas nesse período, orientadas por princípios autogestionários e
estruturadas nos mais diversos ramos da produção e dos serviços. Em número
de unidades e em número de trabalhadores, o grosso dessa construção
encontra-se na região metropolitana de Porto Alegre, que agrega o “Vale dos
Sinos”, tradicional região de indústria de calçados. Porém, tais progressos não
se restringem a essa região: distribui-se de forma bastante descentralizada e
diversificada por todo o Estado, incorporando cooperativas de pequenos
produtores e agricultores, de assentados do MST, cooperativas urbanas de

83
Este artigo foi produzido originalmente como trabalho de conclusão da disciplina “Economia
Solidária”, oferecida pelo PPG em Economia da FEA-USP, em 2001/II, sob a responsabilidade
do Prof. Dr. Paul Singer.
84
Professor Adjunto e Pesquisador (licenciado) da Universidade Católica de Pelotas, membro
do Núcleo Unitrabalho e da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares. Doutorando
em Economia Aplicada do Instituto de Economia – Unicamp, membro da Comissão Executiva
da ITCP Unicamp.

118
serviços e de produção, redes de pequenos proprietários de comércio e
serviços, e cooperativas oriundas de antigas indústrias que faliram e cujo
espólio foi assumido pelos antigos funcionários.

Os sub-programas da Ecopopsol foram estruturados a partir de um conjunto de


seminários de diagnóstico da economia gaúcha, realizados pela SEDAI no
primeiro semestre de 1999. Os seminários definiram prioridades e formas de
integração entre os vários programas, que foram sendo modificados à medida
que seus primeiros resultados eram avaliados e de acordo com a destinação
orçamentária da Secretaria.

O primeiro grande passo para sua estruturação, foi um convênio firmado entre
a Ecopopsol/SEDAI e a Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas
de Autogestão e Participação Acionária (ANTEAG). O convênio SEDAI-
ANTEAG foi criticado por muitos setores aliados do governo, que trabalhavam
na área da economia solidária – ONG’s, CUT, Cáritas – em virtude da
exclusividade da contratação, realizada sem consulta e sem aproveitar o
acúmulo militante de um número expressivo de entidades ligadas à economia
solidária.

Os resultados do convênio, ainda assim, foram bastante positivos. A partir do


convênio, a Anteag estruturou um amplo plano de ação, que combinava
estruturas próprias e governamentais, e parceiros sociais. Foram contratados,
já de início, 22 monitores regionais, distribuídos nos 22 “COREDE´s”
(Conselhos Regionais de Desenvolvimento) que têm funcionamento importante
e constituem praticamente subdivisões administrativas do governo do Estado.
A missão dos monitores era atender a demanda social organizada que
procurava os órgãos públicos estaduais das diversas secretarias –
coordenadorias regionais da Agricultura, do Trabalho, do Desenvolvimento etc.
– e que buscavam fundamentalmente apoio a iniciativas cujo objetivo era
superar o desemprego de forma autônoma e coletiva, sem depender do
mercado formal de trabalho.

A ação dos monitores da Anteag – que embora originados da SEDAI acabaram


locados fisicamente nas agências do Sine-STCAS 85 – deram resultados
rapidamente. As demandas diferenciadas que acorriam aos coordenadores das
agências do Sine eram repassadas aos monitores da Anteag, que entravam
diretamente em contato com os grupos, procurando organizá-los, discutindo a
idéia das cooperativas autogestionárias, suas possibilidades e limites, e
avaliando as potencialidades de cada grupo. Ao contrário de outras regiões do
Brasil, os termos “cooperativa” e “cooperativismo”, no Rio Grande do Sul, além
de razoavelmente conhecidos, contam com uma significação positiva,
simpática, ligada a sucesso que resulta de união.

85
Sistema Nacional de Empregos – programa guarda-chuva do Ministério do Trabalho, que
procura estruturar e articular vários programas de combate ao desemprego e que é
administrado nos Estados pelas secretarias estaduais; no caso do Rio Grande do Sul, pela
Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (STCAS).

119
Entretanto, à medida que cresciam as demandas, tornava-se cada vez mais
difícil aos monitores responderem concretamente a elas. Avolumavam-se as
solicitações de auxílio, de assessoria, de formação, de consultoria etc.

A resposta da Anteag e da Ecopopsol compreendeu algumas iniciativas:

1. em junho de 2000, a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da


Universidade Católica de Pelotas (Intecoop-UCPel) foi contratada em
caráter de projeto-piloto que buscava experimentar uma parceria
universidade-Governo-comunidades. No caso específico de Pelotas e
região, em que a demanda era maior que a capacidade de atendimento, as
iniciativas a serem incubadas seriam selecionadas por um Comitê de
Projeto formado por representantes da Intecoop, da Anteag e da Sedai. A
idéia era – a partir desta “pilotagem” – estender este tipo de convênio a
outras universidades regionais, que, estruturando suas incubadoras,
atendessem tecnicamente as demandas estruturadas pela ação da Anteag-
Ecopopsol.

2. Por esta época, também, a Anteag iniciou uma série de cursos para
multiplicadores de iniciativas de economia solidária, realizados em Porto
Alegre, contando com o apoio da Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

3. Em meados de 2000, a Anteag ampliou sua estrutura, duplicando o número


de técnicos atuando nas regionais.

4. No ano seguinte, ainda, a Anteag ampliou sua estrutura central em Porto


Alegre, contratando uma equipe grande e qualificada de técnicos que
pretendia multiplicar os formadores/capacitadores através de um audacioso
programa de formação. Esta ação, na verdade, visava amplificar ainda mais
a ação da equipe que operava em Porto Alegre desde o ano anterior.

As ações e demandas, mais uma vez, se multiplicaram. No início de 2001 o


Programa de Economia Solidária foi definido como uma das prioridades da
SEDAI, passando a ser coordenada pelo Secretário Adjunto da Secretaria, e
começou a ser citada recorrentemente nos discursos do Governador do
Estado. Na edição do Orçamento Participativo de 2001, que definiu o
orçamento para 2002, e da qual participaram cerca de 300 mil pessoas em
todo Estado, a Economia Solidária foi considerada a segunda prioridade de
investimento, vencendo a agricultura (1ª no ano anterior) e perdendo apenas
para a educação. A formação da Central de Cooperativas Populares, ainda em
2000, paralela à OCERGS86, com 134 iniciativas presentes, nos dá também um
sinal das mudanças.

No final de 2001, porém, e por fim, ante a pressão das entidades “excluídas” da
política da SEDAI e da desestabilização governamental produzida pela “CPI do
Jogo Bicho” na Assembléia Legislativa do RS, o convênio SEDAI-ANTEAG foi
cancelado, com o conseqüente desmonte da estrutura construída pela Anteag,
86
Organização das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul, filiada ao sistema oficial
OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras.

120
o que significou a demissão de dezenas de técnicos e monitores87. Decidiu-se
por recompor o programa, com a participação de um grupo plural de entidades,
o que, entretanto, levou a uma paralisação completa do programa, já que as
dificuldades de articulação de conceitos, métodos e formas de ação diferentes
precisam ser ainda resolvidas.

Além disso, a idéia de estender o convênio da Anteag com a UCPel para outras
universidades regionais não vingou. Houve uma reunião em Pelotas em
setembro de 2000 com esse objetivo, mas a idéia não foi levada adiante. A
experiência com a Intecoop-UCPel continuou isolada e seus resultados ainda
estão por ser avaliados.

Da mesma forma, não há dados ainda mais concretos sobre o conjunto da


experiência. A rigor, seria necessário um investimento da SEDAI num projeto
de avaliação de política pública que permitisse quantificar e analisar qualitativa
e criticamente os resultados obtidos pelo programa até aqui. Sobretudo no que
isto significou em matéria de geração de emprego e renda, de desenvolvimento
para a economia gaúcha e de avanços na consciência política dos
trabalhadores (este era um objetivo igualmente manifesto e prioritário do
programa).

2. O Município de São Paulo

O Programa Oportunidade Solidária, da Secretaria do Desenvolvimento,


Trabalho e Solidariedade (SDTS), foi iniciado já em 2001, primeiro ano da
segunda administração petista na cidade.

Ele se insere num conjunto integrado de políticas de redistribuição de renda e


de qualificação profissional destinados a diferentes faixas etárias – que
caracterizam diferentes formas de desocupação. Enquanto os programas de
“renda mínima” e “bolsa trabalho” se destinam elevar o grau de escolaridade da
população mais pobre e mais jovem e ao mesmo evitar o ingresso prematuro
desses contingentes no mercado de trabalho, os programas de “capacitação
ocupacional”, “começar de novo” e “ação coletiva de trabalho” buscam
qualificar os trabalhadores desempregados e em situação de trabalho precário,
procurando ampliar suas possibilidades de ingresso / reingresso no mercado
de trabalho.

“Oportunidade solidária” e “São Paulo Confia” (“banco do povo”) são programas


que visam sustentar iniciativas de empreendimentos originados pela ação dos
demais programas, sejam eles na forma de micro ou pequenas
empresas/iniciativas ou ainda de cooperativas populares.

Ao contrário da SEDAI-RS, a SDTS-MSP optou por compor um programa


estruturado a partir de um comitê plural que envolve entidades empresariais,
sindicatos de trabalhadores, ong’s, todos os níveis de governo e instituições
universitárias e de pesquisa, compondo um leque bastante heterogêneo em
termos de princípios, metodologias e formas de ação.
87
Uma boa parte destes agentes foi recontratada pelo novo projeto da Sedai, coordenado pela
ITCP UFRJ.

121
O essencial do programa consiste na massificação de cursos de capacitação
para gestão cooperativa e de qualificação profissional, que são ofertados aos
usuários dos demais programas e executados por entidades com experiência
neste tipo de ação – Anteag, Sescoop88, Incubadora da USP, Cáritas
Arquidiocesana, ADS-CUT89 e várias outras. Uma vez consolidado o interesse
de treinandos em formar iniciativas de economia solidária, os grupos são
encaminhados ao Programa São Paulo Confia, cuja análise de viabilidade
econômica e assistência técnica poderá garantir o crédito necessário ao início
do empreendimento.

O programa foi iniciado em meados do segundo semestre de 2001 e conta com


poucos meses de ação. A participação nos cursos tem sido massiva e já há um
grande número de iniciativas de cooperativas em andamento. Entretanto, uma
avaliação concreta do programa ainda não é possível.

Nossas observações, portanto, nesse caso, deverão se restringir à proposta de


projeto em execução.

Estado e economia solidária

Avaliar políticas públicas constitui sempre um risco. No nosso caso, os


problemas são evidentemente maiores, porém menos “responsáveis”: nosso
texto não é uma “avaliação institucional”, mas apenas um esboço de análise,
um “colocar as idéias no lugar”. Trata-se, apenas, de um esboço de ensaio
crítico.

Começaremos pela análise da relação entre Estado e economia solidária.

Estamos considerando aqui como “economia solidária”90 toda iniciativa


econômica que incorpora trabalhadores(as) associados(as) em torno dos
seguintes objetivos/características: (1) caráter coletivo das experiências (não
são portanto, formas de produção e consumo individuais, típicas da “economia
informal” em seu sentido estrito), (2) generalização de relações de trabalho não
assalariadas, (3) exercício do controle coletivo do empreendimento (de suas
informações, fluxos, rendimentos etc.), e (4) “inserção cidadã” das iniciativas:
respeito ao consumidor e ao meio ambiente, participação ativa na comunidade
em que está inserida, articulação política com as outras iniciativas de economia
solidária, denúncia de mecanismos antiéticos de mercado etc.

Assim ficam de fora, de antemão, determinados tipos de cooperativas que


poderiam ser confundidas com “iniciativas de economia solidária”, mas que não
se reivindicam como tal e nem são assim consideradas, nem pelos estudiosos,

88
O Serviço Social das Cooperativas (Sescoop) é o correspondente do “Sistema S” (Senai,
Senac, Senar, Sebrae) das cooperativas. É vinculado formal e factualmente à OCB.
89
Agência de Desenvolvimento Solidário – ong fundada, mantida e dirigida pela Central Única
dos Trabalhadores.
90
O debate sobre o caráter social, político e econômico da economia solidária está apenas
iniciando. Optamos aqui por uma concepção unilateral do fenômeno, sem enfrentar de fato a
discussão, já que não é o nosso objetivo principal.

122
nem pelos atores sociais: (a) as cooperativas tradicionais, com ampla utilização
do trabalho assalariado e (b) as cooperativas de fachada, formações
empresariais oriundas, de modo geral, do esforço de terceirização de empresas
“tradicionais”91 ou gestores públicos, cujo objetivo é driblar a legislação – cada
vez mais escassa – que protege os direitos dos trabalhadores em relação ao
capital.

Porém, a economia solidária não é apenas um fenômeno econômico resultante


das condições e tendências históricas do mercado de trabalho brasileiro. Ela
também é resultado do acúmulo do movimento popular dos anos 70 e 80.
Basta recolher as histórias de vida de suas lideranças e agentes principais:
antigos líderes comunitários ou sindicais, gente ligada a partidos de esquerda,
ou à Igreja progressista; iniciativas articuladas pelo MST – tanto no campo
quanto na periferia das grandes cidades etc. Enfim, a economia solidária é ao
mesmo tempo um fenômeno econômico e um movimento social.

Cria-se aí uma imbricação complexa entre aqueles que participam das


iniciativas e outros agentes, às vezes tão importantes quanto estes, que são as
pessoas que dão suporte efetivo à sua sustentação e crescimento. Redes de
solidariedade pessoal e política que remontam tempos anteriores ou que foram
recém constituídas; interesses extra-econômicos relativos à inserção política
dos trabalhadores das iniciativas econômicas; avaliações de eficácia
instrumental – por governos/contratantes e lideranças – de agências de apoio e
formação etc. etc. Enfim, políticas de apoio à economia solidária não são
políticas públicas em seu sentido estrito, envolvendo o atendimento a
indivíduos e ponto. De alguma forma, equivalem, por exemplo, à política do
Ministério do Trabalho em relação aos sindicatos, ou como políticas de
exportação voltadas para certos segmentos industriais cujo resultado é a
geração de empregos e elevação da renda. Isto é: um misto de política
econômica e de política social.

Neste sentido, a presença do Estado pode ser um fator potencializador destas


formas de ação. Assim como nos Orçamentos Participativos, trata-se aqui de
uma simbiose entre movimento social e governo democratizante. A estrutura do
Estado potencializa a ação dos movimentos e vice-versa. Não há contradição.

Mas não há contradição desde que uma esfera não se subordine à outra. A
dependência das iniciativas de economia solidária em relação ao Estado pode
institucionalizar as empresas, tornando-as ao mesmo tempo um peso para o
Estado e uma bomba relógio para as iniciativas. A idéia de substituir firmas
“terceirizadas” em serviços prestados a governos (prefeituras, secretarias,
hospitais públicos – por exemplo), por cooperativas, sem uma concorrência
regulada de forma igual, tende a criar um ambiente artificial e uma dependência
prejudicial às iniciativas solidárias. Por outro lado, garantir condições especiais
para a estruturação das iniciativas corresponde a uma política compensatória
positiva, já que a condição de acesso ao mercado por essas empresas é

91
Utilizaremos a denominação de “empresas tradicionais” em distinção às da economia
solidária, ou seja, aquelas em que prevalecem as formas de relação assalariadas, individuais
ou patriarcais de trabalho.

123
notoriamente inferior àquelas que já nascem de um capital previamente
acumulado.

Além disso, o tratamento dado às agências de apoio e fomento pode facilmente


criar um ambiente de disputa política prejudicial às empresas solidárias.

Para todas as observações, as duas experiências em foco propiciaram


exemplos diferentes.

No RS, não houve qualquer incorporação de trabalho das cooperativas a


órgãos e serviços públicos. Em São Paulo, um debate iniciado no “Fórum de
Economia Solidária”92 sobre a contratação de cooperativas de catadores para a
coleta seletiva do lixo, abriu a possibilidade de que o poder público acabasse
abrigando “paternalmente” as iniciativas,93 o que acabou sendo descartado –
pelo menos a princípio.

Em relação à contratação das agências de apoio, as experiências gaúcha e


paulistana diferiram. No primeiro caso, a contratação de um único executor
para o programa gerou desgaste político do governo com os aliados que lidam
com a área, além de dificultar a construção de uma estrutura de ação suficiente
para dar conta de uma demanda em crescimento, embora tenha resultado num
programa mais homogêneo. Em São Paulo, a heterogeneidade das agências
pode produzir disparidades importantes na execução do programa, embora sua
massificação seja facilitada por um arco mais poderoso de estruturas de ação,
e ao mesmo tempo procura apontar para uma unificação dos princípios e
formas de ação das várias agências.

Duas visões sobre um mesmo problema

Os objetivos dos programas coincidem no geral e diferem no particular.

No RS, a SEDAI espera que a economia solidária, além de combater o


desemprego, torne-se uma alternativa real de desenvolvimento econômico. Em
São Paulo, a SDTS espera que a economia solidária, ao dar um tratamento
mais adequado ao problema do desemprego, contribua para o
desenvolvimento.

O “Programa de Economia Popular e Solidária” (RS) pretende criar uma nova


cultura – autogestionária – entre os trabalhadores; o “Programa Oportunidade
Solidária” (Pref. SP) busca “a difusão da capacitação empreendedora e de
apoio técnico na constituição de planos de negócios”94.

Destas nuances em relação aos objetivos, transparecem as diferentes análises


que os dirigentes dessas secretarias têm a respeito das potencialidades da

92
O Fórum reúne um leque amplo, plural e heterogêneo de iniciativas de economia solidária e
de agências de apoio e fomento e tornou-se o centro político do programa da Prefeitura.
93
O mesmo ocorre, com mais nitidez ainda, na ação da Prefeitura Municipal de Campinas, que
não está em foco neste trabalho.
94
Conforme caderno “Oportunidade Solidária”, material de divulgação publicitária do programa
da SDTS-PMSP.

124
economia solidária e da ação política da esquerda nesse âmbito, na conjuntura
atual. Aliás, mais claramente, denotam perspectivas diferentes em relação ao
papel do Estado e de suas políticas econômicas na conjuntura específica de
desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

Não nos deteremos aqui sobre esta questão. Até porque este tema, é claro,
não está tratado nos documentos oficiais das secretarias, e precisaríamos
recorrer à análise de discurso para sustentar nossa afirmação. Nos
contentaremos apenas, então, em apontar a existência das diferenças, em
hipótese.

Mas, enfim, a importância dessa afirmação tem a ver com o formato dos
programas em execução. Explicaremos.

O fato do programa de economia solidária, no Rio Grande do Sul, estar locado


na Secretaria de Desenvolvimento, e não na Secretaria do Trabalho, não é
mero acaso. A ação da Secretaria do Trabalho, no RS, ficou restrita às políticas
compensatórias, fundamentalmente à administração dos programas estaduais
correspondentes do Ministério do Trabalho. À SEDAI, ao contrário, coube um
papel central de enfrentamento do modelo de desenvolvimento econômico do
Estado, desde sempre anunciado pelo projeto do PT gaúcho. Nele, as políticas
voltadas ao apoio à pequena e média empresa e propriedade rural tiveram
sempre prioridade, acabando por serem substituídas em função do caráter
político-pedagógico privilegiado da economia solidária, na visão dos dirigentes
partidários e governamentais. Em outras palavras, o governo do RS parece
priorizar a qualidade do resultado de seu programa ao invés da quantidade.

O programa de economia solidária, na Prefeitura de São Paulo, ao contrário,


busca fundir uma política de combate ao desemprego com uma política de
desenvolvimento econômico ancorada na ação alavancadora do Estado. A
economia solidária é um componente, apenas, dessa ação, cujo sentido
fundamental é re-inserir no mercado um contingente populacional dele
excluído, ampliando a base de consumo da economia formal, alavancando o
crescimento econômico e fazendo girar com mais força – e menos
desigualdade – a roda da economia.

Trocando em miúdos: enquanto um governo quer reformar a política do Estado


em favor de uma transformação qualitativa das relações econômicas, o outro
governo quer reformar a política do Estado em favor da potencialização de sua
eficácia na administração de políticas distributivas. Para uns, a economia
solidária é uma estratégia de transformação; para outros, uma política
emergencial em meio a uma situação econômica conjunturalmente
desfavorável.

O resultado, por conseguinte, é que enquanto um programa aposta na


organização político-econômica das iniciativas, o outro aposta na capacitação
técnica-operativa dos trabalhadores.

125
Duas estratégias incompletas

A construção desses objetivos diferentes redunda essencialmente, como


dissemos mais acima, da interpretação que os dirigentes fazem a respeito da
sociedade e da economia brasileira atual – tema que, como já dissemos,
vamos nos abster de tratar aqui.

Mesmo assim, continuamos afirmando que, no geral, os objetivos dos


programas coincidem, qual seja: oferecer formas de eficácia econômica às
iniciativas de economia solidária. E nos parece que este é o calcanhar de
Aquiles de ambos.

Ocorre que o público alvo dos programas é composto pelo extrato populacional
mais frágil sob todos os pontos de vista: são os deserdados do capital, do
conhecimento e do poder. São pessoas que precisam resolver o problema da
sua alimentação no dia seguinte, sempre. Que têm muito pouca familiaridade
com lápis e papel, que dirá com textos e livros. E cuja capacidade de
aprendizagem está diretamente ligada à experiência prática imediata dos
conhecimentos adquiridos. Mas ainda não é só: sua cultura é a cultura da
subordinação, do clientelismo, do assalariamento, da desproteção, do
individualismo. Não é a cultura da coletividade, da solidariedade. Por fim: as
condições de alienação em que se produz e reproduz seu cotidiano, está longe
de permitir-lhe a compreensão dos adversários externos que terá de enfrentar:
a concorrência selvagem do mercado, a perseguição das instituições
controladas e/ou condicionadas pelo grande capital, a ausência de apoios
institucionais eficazes etc. etc.

Vale aqui a máxima construída pela experiência das incubadoras que diz haver
dois pilares fundamentais da construção de iniciativas de economia solidária:
viabilidade econômica e solidariedade interna. A primeira é construída a partir
de condições concretas: viabilidade de mercado, conhecimento técnico
profissional adequado em produção, gestão e comercialização, acesso a
crédito etc. A segunda é resultado de uma complexa construção subjetiva, que
envolve confiança mútua, emulação permanente, espírito comunitário,
construção coletiva de planos futuros, repartição dos sonhos etc.

Tomemos como exemplo as políticas de infra-estrutura da agricultura e dos


assentamentos de reforma agrária. Consideremos quatro situações distintas:

1. o governo desapropria terras e as entrega aos trabalhadores rurais, pura e


simplesmente; o governo desapropria terras, garante o crédito necessário
ao investimento e financia cursos de qualificação no período inicial de
assentamento, abandonando os agricultores à própria sorte, após;

2. o governo desapropria terras, garante o crédito e, em seqüência, um serviço


de extensão rural capaz de acompanhar tecnicamente os empreendimentos
por um largo tempo até que os agricultores possam tocar sozinhos seus
negócios;

126
3. para além de tudo previsto na letra “c”, o governo propicia, aos agricultores,
formas coletivas de organização, que potencializem a escala de sua
produção e sua competitividade no mercado.

Claro está que em cada uma dessas situações, a chance de sobrevivência do


empreendimento agrícola é totalmente diferente. E tudo isto vale para as
iniciativas de economia solidária, tomadas (cada uma) na comparação com
uma unidade produtiva de uma família de agricultores. Em outras palavras:

1. organizar os trabalhadores, social e politicamente para a economia


solidária, sem lhes oferecer os recursos materiais e técnicos necessários
aos seus empreendimentos, é como lhes oferecer um quinhão de terra e
mais nada;

2. da mesma forma, oferecer conhecimento técnico e crédito sem um


acompanhamento permanente das iniciativas, capaz de dar concretude
àquilo que os trabalhadores “aprenderam” nos cursos, significa abandona-
los à própria sorte, tão logo recebam suas ferramentas, sobre as quais mal
foram informados sobre suas possibilidades de uso;

3. oferecer a esses trabalhadores instrumentos técnicos, sem revoluciona-los


culturalmente, no sentido da solidariedade, significa apenas mostrar-lhes
possibilidades intangíveis para suas condições concretas;

4. ajudar a constituir iniciativas sem alertá-las da necessidade de se


organizarem politicamente para os enfrentamentos a que estarão sujeitas, é
permitir que o peso da institucionalidade e do mercado atuais possam cair
sobre elas sem qualquer impeditivo, sem qualquer anteparo que lhes
permita resistir ao moinho satânico da “livre economia”.

Outra vez, trocando em miúdos.

O programa gaúcho, no nosso entender, não foi capaz, nesses anos, de


oferecer condições técnicas adequadas para o crescimento das iniciativas
apoiadas. O trabalho de articulação e organização dos grupos, feitos a partir de
demandas organizadas nas próprias comunidades, e potencializados pela ação
política dos monitores da Anteag, permitiu a formação de laços concretos de
solidariedade entre os trabalhadores das iniciativas. Foi esta ação que levou à
sua auto-organização, inclusive, na busca de uma central de cooperativas
populares. Entretanto, sua ação formativa foi tardia e insuficiente, e neste
momento enfrenta gravíssimos problemas em meio à transição de um formato
a outro.

O programa paulistano, por outro lado, padece de fragilidades tão ou mais


perceptíveis. Em primeiro lugar, suas iniciativas não nascem de grupos
constituídos a partir de identidades subjetivas, de solidariedade previamente
construída. São apenas agrupamentos de pessoas atendidas pelos demais
programas e que, perseguindo o objetivo comum de escapar do desemprego,
encontram-se sob um mesmo teto, numa sala de curso. Em segundo lugar,
ainda que esses agrupamentos obtenham coesão suficiente para o

127
estabelecimento de uma iniciativa, a abstração da sala de aula, quando
colocada em funcionamento prático – por mais preciso que tenha sido a
utilização dos métodos da educação popular e de jovens e adultos –, necessita
de ajustes, de correções, de ações concretas a partir de conhecimento técnico
com mais acúmulo e mais experiência.

O programa gaúcho parece ser eficaz na política e insuficiente na técnica. O


programa paulistano, infelizmente, parece insuficiente em ambos.

Elementos para uma estratégia eficaz de política pública em


economia solidária

Infelizmente, uma discussão como a proposta pelo título desta seção não
deveria ser objeto de umas poucas páginas de um “esboço de artigo”. Menos
ainda, sem realizarmos a estratégica discussão sobre os limites e as
possibilidades da economia solidária na conjuntura atual. Ainda assim, não
poderíamos nos furtar de pontuar alguns elementos que permitam uma reflexão
mais apurada do tema, que permitam explicitar hipóteses, e assim permitam ao
leitor do texto uma posição crítica em relação às nossas observações.

Em primeiro lugar, queremos reafirmar os elementos que – nas condições


atuais – são sine qua non para a consolidação de iniciativas de economia
solidária, a saber: viabilidade econômica e solidariedade interna.

Políticas públicas nessa área, portanto, devem potencializar esses elementos


no interior das iniciativas. Antes de mais, portanto, independente da avaliação
que se faça do papel da economia solidária, deve-se considerar que suas
condições de sucesso são tão improváveis (dado o ambiente hostil do
mercado) que, ou o seu programa se constitui num complexo de subprogramas
que levam água ao seu moinho, ou ele está fadado a um mero ensaio de
política de apoio.

É preciso dar um tratamento adequado, então, aos elementos que compõe a


estratégia de ação. Também é sempre bom lembrar que os recursos públicos
não são infinitos, e portanto não é possível imaginar formas de ação ancoradas
em gastos públicos cujo recurso não existe e nem existirá.

Então, partiremos de um conjunto de observações que buscam articular, na


medida do possível, os “acertos” presumidos em ambos os programas,
procurando reduzir as “margens de erro” (igualmente presumidas, é claro).

Os Objetivos Perseguidos

Certamente, quaisquer que sejam os objetivos estratégicos e/ou de longo


prazo, de uma política pública para a economia solidária, a sobrevivência das
iniciativas coloca-se como prioridade número 1.

Se tomarmos os pilares já sugeridos de construção de iniciativas (a saber:


viabilidade econômica e solidariedade interna) parece claro que todo o
programa deverá ser orientado a partir destes pilares e dos princípios da

128
economia solidária (recordando: ação coletiva, abolição do assalariamento,
autogestão e inserção cidadã).

Além disso, é sempre preciso não perder de vista a tipologia do público a que
se destina a política pública e garantir um processo de avaliação permanente
por todos os atores envolvidos: grupos das iniciativas (público alvo), agentes
governamentais, movimentos sociais, agentes executores. A experiência do
Fórum de Economia Solidária, incorporada pelo Comitê de Gestão da SDTS de
São Paulo, é um ótimo exemplo disso.

Finalmente, o objetivo do programa deve ser, parece então, a capacitação


técnica adequada ao conjunto dos trabalhadores cooperados para o exercício
profissional e da gestão coletiva dos empreendimentos.

Um Método Adequado

O método de treinamento de trabalhadores desempregados e desescolarizados


a partir de cursos constituídos especialmente para esse fim não parece, de
fato, o mais adequado. Tal afirmação parte das experiências das incubadoras
tecnológicas ou universitárias de cooperativas populares (ITCP´s), bem como
do acúmulo de discussões de avaliação dos programas de formação
profissional que são executados a partir do Plano Nacional de Qualificação
Profissional (Planfor) do Ministério do Trabalho e Emprego e do Fundo de
Amparo ao Trabalhador.

Ainda que os cursos sejam operados a partir de metodologias de educação


popular de jovens e de adultos (o que, aliás, nem sempre é o caso), a
separação tradicional da escola entre teoria e prática é ineficaz neste ambiente.
Os níveis de capacidade de abstração são muito heterogêneos e ainda que a
metodologia aplicada possa construir relações coletivas de construção do
conhecimento, à medida que os trabalhadores enfrentam problemas concretos
sua tendência é repetir mecanicamente os ensinamentos, uma vez que – por
conta de sua baixa escolarização – tendem a absorver as técnicas de
procedimento, ao invés dos conceitos que as instrumentalizam.

A existência de uma remuneração compensatória durante o curso95, sem


dúvida, ajuda a reduzir minimamente a evasão, mas pode também se constituir
em fator de desagregação se um grupo significativo de alunos passar a
freqüentar as aulas apenas em função da bolsa.

Por isto, o acompanhamento continuado das experiências é essencial para que


o modus operandi da economia solidária – tanto da produção econômica,
quanto da autogestão – sejam incorporados pelos trabalhadores.

Justamente por isto, o modelo dos programas deveria estar mais próximo
daquele das incubadoras de empresas, que dos cursos de qualificação
profissional. Em outras palavras, é necessário construir incubadoras de
cooperativas e não programas de formação. A incubadora é o próprio programa
95
No caso dos programas da SDTS-SP, todos os programas de formação garantem bolsas em
dinheiro (de valores um pouco superiores ao salário mínimo) aos participantes.

129
de formação, diferenciado e adequado para esse caso. Poder-se-ia questionar
se isto não tornaria inviável financeiramente o programa, mas procuraremos
demonstrar, logo abaixo, que não apenas não oneraria os cofres públicos, mas
garantiria uma eficácia muito superior ao programa, mesmo para uma política
de massificação de sua execução.

A incubação das cooperativas, deste modo, deveria ser tecnicamente separada


do processo de organização da demanda, uma vez que constituem etapas
distantes (se bem que não estanques) do processo.

Tanto no caso do Rio Grande do Sul como da Prefeitura de São Paulo, os


métodos dos programas trabalham com uma unidade entre “construção da
demanda” e “atendimento da demanda”. Não vemos nenhum problema nisso,
desde que as entidades envolvidas no processo tenham uma clara percepção
do que isso representa e estejam devidamente preparadas e experimentadas
para ambos os tipos de procedimentos. Em outras palavras, algumas
experiências têm sido temerosas quando entidades sindicais se encarregam,
por exemplo, de estruturar programas de educação profissional, ou mesmo
universidades se arrogam o dever de organizar comunidades politicamente...

Por outro lado, o encaminhamento de trabalhadores que buscam outros


programas compensatórios do Estado para programas de economia solidária,
pode ser positivo desde que se compreenda (e se explique) que a demanda
deve ser apresentada coletivamente – como grupo – e não individualmente.

A demanda a ser atendida e sua “construção”

A economia solidária, como já afirmamos, exige um alto grau de coesão interna


nas iniciativas, o que demanda uma longa e paciente construção da unidade
intersubjetiva de seus partícipes. Se eles compartilham (compartilharam) o
mesmo ambiente de trabalho, meses e anos a fio (como no caso das empresas
atendidas pela Anteag), ou se são vizinhos e compartilham os mesmos
problemas em relação ao atendimento dos serviços públicos e se organizam
em torno dessas lutas, ou mesmo se constituem uma célula religiosa comum,
há uma construção prévia dessa relação intersubjetiva que pode (pode!)
garantir a solidariedade interna necessária à consecução da demanda. Parece
claro, entretanto, que o que solidifica as relações é a construção concreta de
um objetivo unitário, que se materializa na relação recíproca: um trabalho, uma
ação coletiva, um mutirão etc. A sala de aula poder ser esse espaço, mas
certamente não é o mais privilegiado: de alguma forma ela representa um
espaço social abstraído das demais relações cotidianas, sobretudo para o
público alvo das políticas públicas de economia solidária.

Neste caso, não há uma distinção entre “construção” e “atendimento” da


demanda. É o método adotado até aqui pela Prefeitura de São Paulo. Ou seja:
a existência de um espaço de “preparação para o trabalho” já significa a
formação de uma expectativa do demandante em relação ao seu atendente:
“depois do curso, poderei (ou não) me empregar”.

130
O trabalho da Anteag no Rio Grande do Sul era fundamentalmente distinto. Ao
receber demandas, os monitores tratavam de construir um processo de
familiarização entre os grupos demandantes e a idéia da economia solidária,
avaliando as reais possibilidades do grupo em torno de sua auto-organização:
coesão interna, existência de lideranças ativas, espaço democrático de
discussão etc. Havia uma intervenção que insistia na relação entre benefícios e
riscos de um empreendimento, buscando preparar os grupos para as
vicissitudes do processo.

Esse processo de “construção da demanda”, portanto, se bem articulado, é –


antes de qualquer coisa – um fruto da auto-organização das comunidades e
dos trabalhadores. Ele é mais demorado, mas não menos massivo; corre-se o
risco de ter uma demanda manipulada por interesses políticos de lideranças
comunitárias, mas reforça-se por outro lado o papel das entidades já
organizadas, tensionando a relação entre comunidade e dirigentes corruptos e
reforçando a unidade entre representantes efetivos; por fim, permite-se a ação
concreta das agências governamentais e não-governamentais em torno de sua
relação com as comunidades. Daí a demanda passa a ser uma canalização
das organizações populares, ao invés de uma construção ex-ante do poder
público em relação às comunidades.

Objetivamente, estamos falando em impulsionar a apresentação de demandas


a partir das organizações sociais, e não a partir da simples apresentação
individual, como acontece por exemplo, nos programas do Ministério do
Trabalho/FAT.

Além disso, é essencial – repetimos sempre! – que as iniciativas tenham


condições de viabilizar-se economicamente. Isto significa a necessidade de
uma consecução técnica em relação aos grupos formados. Isto é: a partir da
identificação de potencialidades subjetivas nos grupos a serem atendidos, é
necessário avaliar as potencialidades econômicas do grupo em função das
possibilidades de empreendimento: facilidades de acesso ao mercado,
capacitação/experiência profissional anterior por parte de seus componentes,
viabilidade de realização do produto etc. etc.

É neste momento que se inicia a transição do trabalho político de “construção


da demanda” para o trabalho técnico de “incubação do empreendimento”.

As Agências Executoras

Se não é viável ao poder público a contratação de um corpo numeroso de


servidores públicos para o atendimento do programa96, é essencial que as
agências executoras tenham as condições técnicas e políticas necessárias
para o desenvolvimento do processo de incubação. Isto significa que estas
agências devem possuir um corpo técnico que:

1. esteja comprometido com os princípios da economia solidária;

96
Talvez não fosse mesmo desejável isto, uma vez que a dinâmica do programa exige um tipo
de postura desalienada que nem sempre é compatível com a estrutura burocrática do
funcionalismo público. Ainda assim, isto deve ser objeto de avaliação dos dirigentes.

131
2. possua a diversificação técnica necessária para capacitar os cooperados
aos fundamentos nas áreas de conhecimento necessárias para o
funcionamento de iniciativas de economia solidária: gestão democrática e
participativa; dinâmicas de grupo fundadas na solidariedade; direito do
trabalho, comercial e civil; administração e engenharia de produção;
contabilidade; fluxo de comunicação interna; propaganda e marketing;
conhecimentos especializados no ramo específico de trabalho da iniciativa;
formação política; elevação da escolaridade formal; aperfeiçoamento
tecnológico do empreendimento.

É claro que este conjunto de conhecimentos oferece níveis distintos de


aprofundamento. Chamamos atenção para o termo “fundamentos”. O que
queremos dizer é que qualquer empresário tem noção de que o sucesso do
seu empreendimento depende do domínio que ele e seu corpo técnico tiverem
sobre esses conhecimentos. Numa cooperativa popular é necessário que cada
trabalhador perceba a totalidade das áreas necessárias ao bom funcionamento
da empresa; compreenda a necessidade da especialização do trabalho sem
perder a noção e a clareza do todo e saiba que é preciso buscar o
conhecimento alheio ao empreendimento sempre que for necessário.

Não são apenas as universidades as instituições capazes de atender a tais


exigências. Muitas das agências ligadas à economia solidária – Anteag, ADS-
CUT, Cáritas etc. – já há tempo compreenderam esta necessidade e
compuseram seus corpos técnicos para atender suas demandas específicas. E
todas elas, certamente, tiveram alguma inspiração do MST, que fez isto ainda
na década de 80.

Uma Metodologia Apurada

A metodologia de incubação de cooperativas populares, por outro lado, já é


algo experimentado tecnicamente por várias universidades97 e por algumas
incubadoras de prefeituras municipais, como é o caso de Santo André.

Entretanto, os resultados mais expressivos foram alcançados a partir de uma


metodologia que (1) estabelece fases diferenciadas de incubação, (2) trata o
processo como ação continuada e (3) incorpora em seu modo de operação os
princípios e métodos da educação popular de jovens e adultos. As
características principais dessa metodologia específica, e que consideramos a
mais adequada, são as seguintes:

1. a ação de incubação ocorre no lugar de origem da cooperativa, desde o


início até o final;

97
A Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho – Unitrabalho, abriga o
Programa “Rede de Incubadoras Universitárias de Cooperativas Populares”, da qual fazem
parte 15 incubadoras de universidades do Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil. Os resultados
mais expressivos, em número de incubações, são da UFRJ, USP, UFC e Unisinos. Além disso,
como já foi citado, a incubadora da UCPel realiza um projeto piloto em parceria com a Anteag.
Entretanto, não há uma metodologia unificada, há problemas de articulação interna e os
resultados são dispares entre as incubadoras.

132
2. na primeira fase (aproximação), a incubadora avalia as condições subjetivas
de funcionamento do grupo e a viabilidade econômica dos negócios
sugeridos, além de trabalhar internamente o grupo em função dos limites e
das possibilidades das iniciativas;

3. na segunda fase (estruturação), um corpo de técnicos da incubadora98


trabalha diretamente junto ao empreendimento, prestando assessoria nas
áreas necessárias à sua regularização e início de funcionamento;

4. na terceira fase (formação), o mesmo corpo de técnicos organiza cursos em


que as áreas de conhecimento envolvidas na incubação são objeto de
discussão em seus conceitos e procedimentos;

5. na quarta fase (desincubação), os técnicos se distanciam paulatinamente


do empreendimento, prestando apenas consultorias pontuais para os
empreendimentos, até sua definitiva “graduação”;

6. as áreas de conhecimento envolvidas no processo são as mesmas citadas


mais acima (ver “As agências executoras”).

O Financiamento do Programa

Logicamente, a contratação de equipes técnicas por parte das entidades


executoras exige dispêndio em recursos humanos e no seu treinamento. Além
disso, o sistema de bolsas oferecidas aos treinandos, utilizado pela SDTS/SP,
por exemplo, significa um aporte importante de recursos, sobretudo quando os
empreendimentos ainda não estão estruturados e seus participantes
necessitam subsistir enquanto realizam sua preparação.

Não nos parece, porém, que a alteração de método proposta possa redundar
diretamente em acréscimo de custos no programa, embora certamente seus
resultados fossem superiores. Cada equipe de técnicos (6 a 8), se bem
coordenada e atendendo empreendimentos geograficamente próximos, pode
atender de 5 a 7 cooperativas, atuando em jornada de dois turnos.

Seria possível que os próprios rendimentos das cooperativas participassem,


em alguma medida, do financiamento da incubação a partir de alguma das
fases propostas, e à medida que uma determinada margem de faturamento
permita. Isto só é possível, é claro, às iniciativas que já houverem concluído
sua incubação e que possam contribuir com o programa sem afetar seu ponto
de equilíbrio econômico.

98
No caso das incubadoras universitárias, a composição desse corpo de técnicos varia
conforme cada incubadora. Em algumas, ele é formado por técnicos contratados pelo projeto e
em outras é composto por estudantes-estagiários. As equipes da UCPel, por exemplo, são
compostas por estudantes dos cursos de administração, contabilidade, direito, relações
públicas, serviço social, psicologia, pedagogia e da área técnica do ramo da cooperativa
(ecologia, ou engenharia, ou farmácia e bioquímica etc.).

133
Mas o mais importante é compararmos os custos de um programa hipotético
como este em relação aos investimentos e resultados de programas como o
Planfor/FAT, que despende cerca de R$ 500 milhões por ano em treinamentos
e que tem sido objeto de crítica permanente de todos os avaliadores
responsáveis.

Da mesma forma, podemos comparar os custos de incubação de cooperativas


com os custos das incubadoras de empresas, cujas empresas, segundo os
dados da própria Anprotec (Associação Nacional de Programas de Incubação
Tecnológica de Empresas), geram em média 4 (quatro) empregos.

Os recursos para um programa de incubação em escala efetiva só podem ser


considerados “caros” se não se levar em consideração seus resultados em
comparação a outros programas de combate ao desemprego. Ou, em outras
palavras: isto depende da coragem dos governos em afirmar a economia
solidária como alternativa real e válida para o desemprego.

As Ações Políticas de Institucionais de Apoio

Um conjunto de subprogramas pode e deve ser agregado ao programa-eixo de


incubação, multiplicando as potencialidades de sucesso. Algumas sugestões:

1. Espaço físico de incubação – é possível, dependendo das características


dos empreendimentos, que um mesmo galpão possa abrigar várias
cooperativas; o mais importante, porém, é que se dê acesso a um endereço
fixo para as cooperativas a fim de que possam operar legal e regularmente,
o que pode ser obtido a partir de uma simples salinha num espaço comum
qualquer.

2. Escritório unitário de apoio e fomento – é possível também a estruturação


de escritórios comuns que tratem da infra-estrutura mais pesada de
funcionamento das cooperativas: acesso a crédito, estrutura de vendas,
marketing, encaminhamento de projetos de pesquisa tecnológica a
universidades, instituições de pesquisa etc.

3. Redes e espaços físicos de comercialização – “lojas” ou “shoppings” da


economia solidária, como o de Santa Maria (RS).

4. Articulação econômica das iniciativas – organização de clusters e de redes


de negócio, articulação de compras coletivas intercooperativas; formação
de cluster e encadeamento de cadeias produtivas; informatização das
iniciativas; instituição de “selos de qualidade” e de autenticidade dos
produtos da economia solidária; contatos para exportação etc. etc.

5. Ações institucionais combinadas entre governo e iniciativas – no sentido de


produzir alterações legislativas e de estrutura do executivo em relação à
economia solidária.

As Avaliações

134
Por fim, a dinâmica de avaliação dos programas deve ser repensada longe da
metodologia de avaliação que vem sendo empregada recorrentemente pelos
governos da União Européia e adotados como modelo pelo Brasil após o
advento do atual governo.

A existência de um comitê gestor, como o empregado pela SDTS/SP pode


alterar esse quadro, à medida que seus vários segmentos obtenham os
recursos necessários para a realização de vários projetos de avaliação,
enfocados conforme suas expectativas em relação ao programa e que sirvam
exclusivamente como dados auxiliares, já que a avaliação do programa deve
ser essencialmente política, realizada permanentemente pelos gestores.

Conclusão

Políticas públicas de apoio à economia solidária são fundamentais. Elas são


uma conquista do movimento social da economia solidária, que é a outra face
do fenômeno econômico.

As experiências realizadas até o momento são de excepcional valia, mas já


não são inovadoras e eventualmente cometem erros que poderiam ser evitados
se o debate sobre o tema não fosse tão severamente discriminado no interior
de governos, sindicatos e universidades.

Independentemente do caráter estratégico de cada programa, as iniciativas –


que são em si as pessoas que as compõem – merecem a chance de
sobreviver, elevando a qualidade de vida de seus participantes. Portanto, as
políticas públicas para o setor devem ser compostas com a seriedade técnica e
os recursos necessários que a situação exige, igualando os programas de
governo que são “realmente levados a sério”, como por exemplo programas de
exportação, de qualidade empresarial ou de incubadoras empresariais.

Se o que falta aos empreendimentos de economia solidária – além da


necessária estrutura de capital, é claro – é qualificação técnica, esta deve ser
pensada a partir da situação específica do seu público alvo, que é distinta da
cultura da escola formal, que é típica das classes sociais abastadas.
Experiências a esse respeito já existem. Várias aliás. Mas precisam ser
difundidas, avaliadas e implementadas adaptadamente a cada realidade.

Por fim, é sempre necessário lembrar que tudo é processo, que tudo é
aprendizado e que o melhor debate é aquele em que todos ganham.

Como inspiração final, podemos dizer que na conjuntura em que vivemos, as


palavras de Vladimir Maiakovski podem soar quase como um hino para todos
aqueles que apostam na economia solidária:

“Que os meus ideais sejam tanto mais fortes quanto maiores forem os desafios, mesmo
que precise transpor obstáculos aparentemente instransponíveis. Porque metade de mim é
feita de sonhos e a outra metade é de lutas.”
V.M

135
Referências Bibliográficas

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Trabalhadores, 1999.
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SAUL, Ana Maria et alii. Avaliação do PLANFOR: uma Política Pública de
Educação Profissional em Debate. SP: Unitrabalho, 1999.

136
ECONOMIA SOLIDÁRIA

VOLUME 2
ÍNDICE

A RECENTE RESSURREIÇÃO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL....................4


1. Breve introdução conceitual.....................................................................................4
1.1. O que é?............................................................................................................4
1.2. A inserção econômica e política da economia solidária ....................................5
2. A economia solidária no Brasil de hoje ....................................................................7
2.1. Autogestão a partir da falência ou crise de empresas - a Anteag .....................7
2.2. A Unisol, uma iniciativa de sindicatos operários..............................................10
2.3. Um estudo de caso: a metamorfose da Conforja ............................................13
2.4. Autogestão a partir da Reforma Agrária - o MST ............................................19
3. Estudos de caso: assentamentos de reforma agrária no Paraná ..........................22
3.1. Abapan ............................................................................................................22
3.2. Novo Paraíso...................................................................................................23
3.3. Santa Maria .....................................................................................................26
3.4. Conclusões......................................................................................................27
4. Autogestão como arma na luta contra a pobreza - cáritas, ação da cidadania e
incubadoras de cooperativas. ....................................................................................28
4.1. A Cáritas..........................................................................................................29
4.2. A Ação pela Cidadania Contra a Miséria e pela Vida......................................31
4.3. Incubadoras de Cooperativas..........................................................................33
5. Os sindicatos assumem a economia solidária .......................................................35
6. Conclusões ............................................................................................................36
Referências Bibliográficas .........................................................................................37
AS COOPERATIVAS E A EMANCIPAÇÃO DOS MARGINALIZADOS: ESTUDOS DE
CASO DE DUAS CIDADES NA ÍNDIA ..........................................................................39
Introdução ..................................................................................................................39
1. As Cooperativas e os trabalhadores marginalizados .............................................40
2. Os colectores de lixo em Ahmedabad ...................................................................42
2.1. Sindicalizar os colectores de lixo.....................................................................43
2.2. A formação de cooperativas............................................................................44
2.3. Recuperar o respeito próprio...........................................................................45
3. As cooperativas de trabalhadores em Calcutá.......................................................46
3.1. A cooperativa de construção naval .................................................................47
3.2. A cooperativa tipográfica .................................................................................50
3.3. Cabos e condutores de alumínio.....................................................................51
3.4. A cooperativa de maquinaria de arame...........................................................53
4. Conclusão: as cooperativas e a emancipação social.............................................58
4.1. O apoio dos sindicatos ....................................................................................58
4.2. O funcionamento democrático.........................................................................59
4.3. O papel do Estado...........................................................................................60
Referências Bibliográficas .........................................................................................61
COMUNIDADE, PROPRIEDADE E GARANTIAS NA ÁFRICA DO SUL RURAL:
OPORTUNIDADES EMANCIPATÓRIAS OU ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
MARGINALIZADAS?.....................................................................................................63
Introdução ..................................................................................................................63
1. A opressão da pobreza estrutural ..........................................................................64
2. Desenvolvimento, propriedade e formas alternativas para a posse da terra .........65
3. Reforma da posse e a criação de um espaço institucional contestado..................67
4. A Lei sobre a Associação de Propriedade Comunitária (CPA) ..............................70
5. Governando os comuns da comunidade: constituições das CPA e controle da terra
...................................................................................................................................72
6. Promessas e perigos .............................................................................................79
Apêndice: CPAs registadas com data de registo (citadas no texto pelo número)......79
Referências Bibliográficas .........................................................................................80
À PROCURA DE ALTERNATIVAS ECONÔMICAS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO:
O CASO DAS COOPERATIVAS DE RECICLADORES DE LIXO NA COLÔMBIA .......83
1. Globalização, desigualdade e exclusão.................................................................83
1.1. As cooperativas de trabalhadores no contexto da globalização......................85
1.2. Plano e metodologia de estudo .......................................................................88
2. De «descartáveis» a empresários solidários: a luta dos recicladores de lixo na
Colômbia....................................................................................................................89
2.1. O mercado da reciclagem ...............................................................................89
2.2. Os recicladores ...............................................................................................91
2.3. Os dois problemas fulcrais ..............................................................................92
2.4. As cooperativas de recicladores......................................................................93
2.5. O balanço social das cooperativas ..................................................................98
2.6. O balanço económico das cooperativas........................................................102
2.7. Podem sobreviver as cooperativas? .............................................................103
3. Conclusões ..........................................................................................................105
Referências Bibliográficas .......................................................................................107
ECONOMIA SOCIAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ÁLIBI OU ALTERNATIVA AO
NEOLIBERALISMO?...................................................................................................111
Primeiras teorias e experiências ..............................................................................111
No interesse mútuo dos associados ........................................................................112
Desenvolvimento, educação e formação .................................................................112
A era da liberalização ..............................................................................................112
Nasce a economia solidária .....................................................................................113
Cooperativas de solidariedade social ......................................................................113
Um dos "carros-chefes" da economia......................................................................114
O conceito de interesse geral ..................................................................................114
O dossiê da unificação européia..............................................................................115
Uma "boa ação" humanitária? .................................................................................115
Relações complexas com a esquerda .....................................................................116
A RECENTE RESSURREIÇÃO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL1

Paul Singer

1. Breve introdução conceitual

1.1. O que é?

A economia solidária foi inventada por operários, nos primórdios do capitalismo


industrial, como resposta à pobreza e ao desemprego resultantes da difusão
«desregulamentada» das máquinas-ferramenta e do motor a vapor, no início do século
XIX. As cooperativas eram tentativas por parte de trabalhadores de recuperar trabalho
e autonomia econômica, aproveitando as novas forças produtivas. Sua estruturação
obedecia aos valores básicos do movimento operário de igualdade e democracia,
sintetizados na ideologia do socialismo. A primeira grande vaga do cooperativismo de
produção foi contemporânea, na Grã Bretanha, da expansão dos sindicatos e da luta
pelo sufrágio universal.

A empresa solidária nega a separação entre trabalho e posse dos meios de produção,
que é reconhecidamente a base do capitalismo. A empresa capitalista pertence aos
investidores, aos que forneceram o dinheiro para adquirir os meios de produção e é por
isso que sua única finalidade é dar lucro a eles, o maior lucro possível em relação ao
capital investido. O poder de mando, na empresa capitalista, está concentrado
totalmente (ao menos em termos ideais) nas mãos dos capitalistas ou dos gerentes por
eles contratados.

O capital da empresa solidária é possuído pelos que nela trabalham e apenas por eles.
Trabalho e capital estão fundidos porque todos os que trabalham são proprietários da
empresa e não há proprietários que não trabalhem na empresa. E a propriedade da
empresa é dividida por igual entre todos os trabalhadores, para que todos tenham o
mesmo poder de decisão sobre ela. Empresas solidárias são, em geral, administradas
por sócios eleitos para a função e que se pautam pelas diretrizes aprovadas em
assembléias gerais ou, quando a empresa é grande demais, em conselhos de
delegados eleitos por todos os trabalhadores.

A empresa solidária é basicamente de trabalhadores, que apenas secundariamente


são seus proprietários. Por isso, sua finalidade básica não é maximizar lucro mas a
quantidade e a qualidade do trabalho. Na realidade, na empresa solidária não há lucro
porque nenhuma parte de sua receita é distribuída em proporção às cotas de capital.
Ela pode tomar empréstimos dos próprios sócios ou de terceiros e procura pagar os
menores juros do mercado aos credores (internos ou externos).

O excedente anual - chamado «sobras» nas cooperativas - tem a sua destinação


decidida pelos trabalhadores. Uma parte, em geral, destina-se ao reinvestimento e
pode ser colocada num fundo «indivisível», que não pertence aos sócios
1
Texto não editado.
individualmente mas apenas ao coletivo deles. Outra parte, também reinvestida, pode
acrescer o valor das cotas dos sócios, que têm o direito de sacá-las quando se retiram
da empresa. O restante das sobras é em geral destinado a um fundo de educação, a
outros fundos «sociais» (de cultura, de saúde, etc.) e eventualmente à repartição entre
os sócios, por critérios aprovados por eles. Portanto, o capital da empresa solidária não
é remunerado, sob qualquer pretexto, e por isso não há «lucro» pois este é tanto
jurídica como economicamente o rendimento proporcionado pelo investimento de
capital.

A cooperativa de produção é a modalidade básica da economia solidária e as relações


sociais de produção que a definem são as delineadas acima. Outra é a cooperativa de
comercialização, composta por produtores autônomos, individuais ou familiares
(camponeses, taxistas, profissionais liberais, artesãos, etc.) que fazem suas compras
em comum e, quando cabe, também suas vendas. Sendo a produção individual, o
ganho também é e as sobras das operações comerciais são em geral distribuídas entre
os cooperadores em proporção ao montante comprado e vendido por cada um através
da cooperativa.

Outra modalidade de empresa solidária é a cooperativa de consumo, que é possuída


pelos que consomem seus produtos ou serviços. A finalidade dela é proporcionar a
máxima satisfação ao menor custo aos cooperadores. Mas, para ser empresa solidária,
não pode haver separação entre trabalho e capital. Muitas cooperativas de consumo
empregam trabalho assalariado, o que enseja lutas de classe em seu interior. Por isso
não fazem parte da economia solidária. Só pertencem a ela as cooperativas de
consumo que tornam seus trabalhadores membros plenos. Alguns a denominam por
isso de cooperativas mistas.

O mesmo se aplica às cooperativas de crédito. Estas são empresas de intermediação


financeira possuídas pelos depositantes. Para que sejam solidárias, é preciso que os
trabalhadores que as operam profissionalmente sejam sócios delas. As cooperativas de
crédito comunitárias, formadas por moradores da mesma cidade ou membros do
mesmo sindicato, etc. aplicam os depósitos em empréstimos pessoais aos
cooperadores. Isso se chama crédito rotativo e resgata gente pobre das garras da
agiotagem, já que os bancos comerciais estão quase sempre fechados para ela. As
empresas solidárias tendem a se federar, formando associações locais, regionais,
nacionais e internacionais. O que impulsiona esta tendência é o mesmo conjunto de
fatores que produz a centralização dos capitais em grandes empresas multinacionais e
conglomerados: os ganhos de escala que permitem reduzir custos; a necessidade de
juntar recursos para desenvolver nova tecnologia e difundir a melhor tecnologia, além
de outros empreendimentos de alto custo e alto risco.

1.2. A inserção econômica e política da economia solidária

Muitas empresas que nasceram como solidárias acabam por se adaptar ao capitalismo
e por isso deixam de ser solidárias. O caso mais notório foi o das cooperativas de
consumo, que alcançaram grande importância na Europa, e que optaram por assalariar
os seus trabalhadores e administradores. Esta decisão provocou viva resistência por
parte dos cooperadores mais antigos. O conflito foi travado em relação às cooperativas
de produção criadas pelas cooperativas de consumo e sobretudo pela grande central
cooperativa atacadista inglesa, que abastecia as demais. Os trabalhadores destas
indústrias cooperativas tinham participação no capital, nas sobras e nas instâncias
diretivas, além de dificilmente perderem o trabalho, mesmo em épocas de crise. Aos
olhos dos demais trabalhadores, associados das cooperativas de consumo e portanto
«donos» das cooperativas de produção, os que trabalhavam nelas estavam sendo
privilegiados em relação à condição deles, de meros assalariados (Cole, 1944: Cap.
IX).

O abandono da autogestão nas empresas criadas por cooperativas de consumo foi


posteriormente imitado pelas de comercialização. Ela representou na prática uma
ruptura jamais admitida com os seus princípios. O que não impediu que o movimento
cooperativista, representado em plano mundial pela ACI (Aliança Cooperativa
Internacional), continuasse sustentando os princípios de Rochdale, que definem a
cooperativa como democrática e igualitária. Assim, em tese, as cooperativas continuam
sendo autogestionárias, mas na prática muitas assalariam os que a operam.

Devido à veneração dos valores da economia solidária no cooperativismo, parte


importante do mesmo procura praticá-los, aproximando-se em menor ou maior grau do
perfil da empresa solidária. Muitas cooperativas provavelmente passaram por períodos
em que eram empresas solidárias e outros em que se assemelhavam mais a empresas
capitalistas. Estas oscilações se devem à inserção econômica e social de cada
cooperativa - muitas surgem a partir de lutas operárias ou camponesas - e ao «espírito
da época», que impregna os cooperadores ora de valores solidários e democráticos,
ora de individualismo e culto à competição.

A economia solidária se compõe das empresas que efetivamente praticam os princípios


do cooperativismo, ou seja, a autogestão. Ela faz parte portanto da economia
cooperativa ou social, sem no entanto se confundir com as cooperativas que
empregam assalariados. Na realidade, a grande maioria das empresas apresenta
graus muito variados de autogestão, não apenas de cooperativa para cooperativa, mas
para a mesma cooperativa em diferentes momentos.

A economia solidária constitui um modo de produção que, ao lado de diversos outros


modos de produção - o capitalismo, a pequena produção de mercadorias, a produção
estatal de bens e serviços, a produção privada sem fins de lucro -, compõe a formação
social capitalista, que é capitalista porque o capitalismo não só é o maior dos modos de
produção mas molda a superestrutura legal e institucional de acordo com os seus
valores e interesses.

Mesmo sendo hegemônico, o capitalismo não impede o desenvolvimento de outros


modos de produção porque é incapaz de inserir dentro de si toda população
economicamente ativa. A economia solidária cresce em função das crises sociais que a
competição cega dos capitais privados ocasiona periodicamente em cada país. Mas ela
só se viabiliza e se torna uma alternativa real ao capitalismo quando a maioria da
sociedade, que não é proprietária de capital, se conscientiza de que é de seu interesse
organizar a produção de um modo em que os meios de produção sejam de todos os
que os utilizam para gerar o produto social.

2. A economia solidária no Brasil de hoje

2.1. Autogestão a partir da falência ou crise de empresas - a Anteag

A economia solidária surge no Brasil, nesta etapa histórica, provavelmente como


resposta à grande crise de 1981/83, quando muitas indústrias, inclusive de grande
porte, pedem concordata e entram em processo falimentar. É desta época a formação
das cooperativas que assumem a indústria Wallig de fogões, em Porto Alegre, a
Cooperminas, que explora uma mina de carvão falida em Criciúma (Santa Catarina) e
as cooperativas que operam as fábricas (em Recife e em S.José dos Campos) da
antiga Tecelagem Parahyba de cobertores. Todas elas continuam em operação até
hoje.

O fechamento de empresas e a demissão de numerosos trabalhadores prosseguem


durante os anos 80 e 90, as duas décadas perdidas. Pouco a pouco se desenvolve
uma tecnologia para aproveitar as oportunidades, oferecidas pela legislação aos
trabalhadores, de arrendar ou adquirir a massa falida ou o patrimônio dos antigos
empregadores e assim preservar seus postos de trabalho. O sindicato, como
representante legal dos trabalhadores, intervém perante a justiça e promove a
formação duma associação dos empregados da firma em vias de desaparecer que
depois dá lugar eventualmente a uma cooperativa.

A questão crucial do processo está em levar aos trabalhadores os princípios da


economia solidária, convencendo-os a se unirem numa empresa em que todos são
donos por igual, cada um com direito a um voto, empenhados solidariamente em
transformar um patrimônio sucateado num novo empreendimento solvável. A
alternativa convencional seria criar uma outra empresa capitalista, controlada não por
todos os trabalhadores mas pelos mais antigos e melhor remunerados, detentores dos
maiores créditos trabalhistas e portanto possuidores das maiores cotas de capital.

A equipe que melhor desenvolve esta tecnologia tem sua origem na antiga Secretaria
de Formação do Sindicato dos Químicos de São Paulo, onde tinha por missão agir
dentro das empresas «conscientizando os trabalhadores, avaliando a sociedade em
seu conjunto e os políticos, a partir do que representavam do ponto de vista dos
interesses da classe dominante nacional e internacional» (Anteag, 2000: 15). Em 1991,
muda a diretoria do Sindicato dos Químicos e a Secretaria de Formação é fechada.

No mesmo ano, em função da abertura do mercado interno às importações, entra em


crise uma grande fábrica de sapatos, a Makerly de Franca (SP), que empregava então
482 trabalhadores. O Sindicato dos Sapateiros se empenha em impedir que tantos
trabalhadores percam seus empregos e chama um dos integrantes da antiga equipe
dos Químicos, Cido Faria, então no DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos
Estatísticos Sociais e Econômicos) para transformar a empresa em vias de falir numa
«fábrica de trabalhadores». O DIEESE, uma antiga e prestigiosa entidade de apoio aos
sindicatos, não só cedeu o seu funcionário mas contribuiu com literatura sobre os
«ESOPs» («Employee Stock Ownership Plans»), que são planos de participação dos
empregados no capital acionário das empresas, nos Estados Unidos, onde recebem
incentivos por lei e tem se difundido bastante. Naquele momento, em S. Paulo, não se
conhecia qualquer modelo de passagem da posse duma empresa capitalista às mãos
de seus antigos empregados organizados em associação.

Os trabalhadores encamparam a idéia do sindicato e se propuseram a adquirir o


maquinário dos donos da Makerly por 600000 dólares. Para conseguir o crédito
correspondente do Banespa (Banco do Estado de São Paulo, banco oficial do Estado
de São Paulo, hoje vendido ao Santander) foi necessária intensa luta política, que
culminou com a ocupação da sede do Banespa em Franca. Após 91 dias de pressão e
negociações, assinou-se um acordo pelo qual, como garantia do empréstimo, 49% das
ações da empresa ficaram com o banco. Por esse acordo, a Makerly teve de continuar
sendo uma sociedade anônima e não uma cooperativa. Controlada pelos
trabalhadores, a empresa funcionou nos anos seguintes com êxito, até que em Março
de 1995 o governo federal interveio no Banespa e suspendeu a linha de crédito à
Makerly, o que impôs o encerramento de suas atividades.

A experiência da Makerly foi a base que permitiu desenvolver uma metodologia de


transferência de empresas capitalistas a seus empregados. «Gente de todo o país,
sindicalistas, políticos, trabalhadores, imprensa, todos iam até Franca para conhecer a
experiência que eles denominaram ‘fábrica de trabalhador’» (Anteag, 2000: 56). Outras
empresas, em geral grandes e antigas, entraram em crise e acabaram se tornando
autogestionárias: Cobertores Parahyba, Facit, Hidro-Phoenix, etc. Em 1994, foi
realizado em São Paulo o 1º Encontro dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão,
em que participaram representantes de seis empresas. Neste encontro decidiu-se criar
a Anteag (Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e
Participação Acionária). A Anteag surge não só para ajudar a luta dos trabalhadores
pela preservação dos seus postos de trabalho e ao mesmo tempo pelo fim de sua
subordinação ao capital, mas também para assessorar as novas empresas solidárias.

Os projetos precisavam ser coordenados porque, mesmo que inicialmente


pressionados pelo desemprego, quando os trabalhadores assumiam as empresas
tinham de enfrentar inúmeras questões, novas para eles, dentre elas aquelas relativas
ao mercado e à comercialização dos produtos, ao acesso a crédito e controle
orçamentário da empresa, à organização do trabalho e da produção, à tecnologia, à
legislação. Se, por um lado, as relações de solidariedade entre trabalhadores, o apoio
de alguns sindicatos às suas iniciativas eram fundamentais, por outro não eram
suficientes. Havia necessidade de articular pessoas e instituições, democratizar
informações, criar um espaço para o debate e produção de alternativas. Enfim, havia a
necessidade de uma entidade que assumisse esses papéis. Era o começo da Anteag
(Nakano, 2000: 68).
No processo de transformação duma empresa falida ou em vias de falir numa empresa
solidária, há uma série de etapas cruciais. A primeira é ganhar a anuência dos próprios
trabalhadores, que precisam se propor a trocar seus créditos trabalhistas por cotas de
capital da «sua» nova empresa, o que só acontece se eles acreditarem de que são
capazes de assumir coletivamente a gestão da empresa em crise e reabilitá-la. A
alternativa é deixar que a empresa seja fechada pela justiça e assim fique até que vá a
leilão, quando do valor arrecadado eles receberão uma fração de seus créditos. Em
geral passam-se anos entre o lacramento da planta e o seu leilão e neste período
instalações e maquinário sofrem desvalorização quase total. Logo, nesta opção, grande
dos créditos rescisórios se perdem, ao passo que se forem investidos numa
cooperativa, sempre há a possibilidade de que preservem seu valor e até de que este
aumente.

São vários os fatores que levam trabalhadores a assumir o risco de se apossar do


patrimônio da empresa ou pelo contrário a preferir procurar outro emprego assalariado:
o seu grau de coesão e confiança mútua, o apoio externo ao projeto autogestionário, a
maior ou menor probabilidade de encontrar outro emprego com remuneração e
condições de trabalho satisfatórias, etc. Em geral, nos casos em que a refundação da
empresa nas mãos dos trabalhadores dá certo, o operariado se divide entre uma
maioria que se engaja na proposta e uma minoria que se recusa. O fato da massa
falida ser mantida em funcionamento pela nova firma preserva o seu valor, o que é
vantagem de todos os credores, inclusive dos trabalhadores que não querem integrá-la,
pois estes também acabam recebendo uma fração maior dos seus créditos
trabalhistas.

A segunda etapa é conseguir que o patrimônio da firma passe para os trabalhadores


associados, o que muitas vezes requer um crédito, cuja garantia é o próprio patrimônio
transacionado. Em geral, crédito volumoso de prazo longo só pode ser obtido em
bancos oficiais, o que depende de uma decisão política de sua direção. «Arrancar» tal
decisão exige em geral forte mobilização e intensa pressão sobre ela, que no caso da
Makerly (como vimos) tomou a forma de ocupação da sede do banco. O sindicato
conta em geral com a solidariedade de outros sindicatos e de sua central e, se o
número de trabalhadores for grande, consegue conquistar o apoio da mídia, de partidos
de esquerda e seus parlamentares, da Igreja, eventualmente do prefeito e governador.
Tudo isso conta como meio para viabilizar a futura cooperativa que, para seguir
operando, tem que continuar com o apoio tanto da justiça, como do banco.

A terceira etapa consiste na viabilização da nova empresa mediante a recuperação da


clientela, dos fornecedores e dos créditos da antiga empresa. Os primeiros tempos são
muito duros pois os trabalhadores têm de acumular capital de giro, o que significa que
durante certo período eles não vão ter a retirada «cheia» (nível almejado de ganho
mensal, em geral igual ao que tinham quando empregados) mas muito menos. É o
chamado «período heróico», que pode durar meses, em que os trabalhadores às vezes
não conseguem sequer um rendimento de subsistência.
Uma vez superado o período crítico, grande parte da antiga clientela volta e nova é
atraída, os fornecedores ganham confiança na cooperativa e a retirada se torna cada
vez mais cheia. É só a partir deste momento que a empresa solidária entra em sua
normalidade. Os trabalhadores escolhidos para exercer funções gerenciais fazem
cursos e vão adquirindo habilidades novas. O hábito de realizar assembléias vai se
consolidando e os trabalhadores que continuam nas linhas de produção se acostumam
a tomar conhecimento das dificuldades sofridas e dos êxitos obtidos e a decidir em
conjunto a condução da empresa.

Por surpreendente que seja, a grande maioria das tentativas de transformar firmas
meio ou inteiramente falidas em empresas solidárias tem tido sucesso. Ele se explica
em primeiro lugar pelos sacrifícios feitos pelos cooperadores, que se dispõem a
trabalhar durante meses por ganhos mínimos, algumas vezes apenas em troca de
cestas básicas (conjunto padronizado de alimentos que devem suprir as necessidades
essenciais duma família por determinado período). Mas também pela enorme
dedicação e amor ao trabalho não mais alienado, do que resultam aumentos
inesperados de produtividade e grande redução de perdas e desperdícios. E finalmente
pelo aprendizado por parte dos novos administradores das técnicas e manhas da
gestão de comprar e vender, de receber e dar crédito, de inovar produtos e processos
e de tecer relações solidárias com outras autogestões.

A Anteag foi crescendo ininterruptamente. Com o êxito das primeiras empresas


solidárias, foram se multiplicando as iniciativas de sindicatos e trabalhadores no
mesmo sentido e para viabilizá-las solicitavam a assistência dos técnicos e formadores
da Anteag. A partir de 2000, a Anteag começou a ser contratada também por governos
que decidiram dar prioridade à economia solidária. O governo do Rio Grande do Sul de
Olívio Dutra fez um convênio com a Anteag que provocou a ampliação de seus quadros
no Estado para poder atuar em todas suas regiões e os resultados não se fizeram
esperar: em um ano surgiu algo como uma centena de novas cooperativas,
possibilitando a preservação de dezenas de milhares de postos de trabalho.

Outros governos estaduais também já mostraram interesse de contratar a Anteag e em


2001 um bom número dos novos prefeitos estão fazendo o mesmo. Em Janeiro de
2001, estavam recebendo a assessoria da Anteag cerca de 160 empresas solidárias
em todo o Brasil, inclusive a maior de todas, a Usina Catende, que cobre 5 municípios
em Pernambuco, em que trabalham 3.200 famílias. A Catende faliu em 1995 e desde
então funciona como empresa autogestionária, contando com o apoio dos sindicatos de
trabalhadores rurais, da Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT, do governo de
Cuba (que fornece agrônomos especialistas no cultivo de cana) e da Anteag.

2.2. A Unisol, uma iniciativa de sindicatos operários

Conforme vimos, a história da Anteag deixa claro que a transformação de empresas


em crise ou falidas em cooperativas de produção exige a intervenção ativa do sindicato
da categoria. A Anteag se origina do movimento sindical e acabou se transformando
numa organização de apoio, independente do sindicalismo mas permanentemente
envolvida em parcerias com sindicatos empenhados na conversão de empresas
capitalistas em solidárias. Vamos agora tratar duma outra organização, com objetivos
análogos, formada mais recentemente por dois sindicatos do ABC, conjunto de
municípios industriais da Grande São Paulo, famoso pelo seu sindicalismo combativo.

Estes sindicatos foram o dos Metalúrgicos do ABC e dos Químicos do ABC. O dos
Metalúrgicos é o mais poderoso, pois representa os trabalhadores da indústria
automobilística, que até recentemente concentrava a maioria das montadoras em São
Bernardo do Campo, com numerosas fábricas de componentes localizadas nos
municípios vizinhos. Foi o Sindicato de Metalúrgicos que organizou em 1978, em pleno
regime militar, uma greve com ocupação da fábrica que surpreendentemente acabou
não sendo reprimida, o que foi o sinal de que a partir de então o direito de greve
voltava a ter vigência no Brasil. O que desencadeou enorme vaga de greves que
atingiu o país inteiro e deu fama nacional ao chamado «novo sindicalismo», do qual
Lula se tornou a figura emblemática.

O Sindicato dos Metalúrgicos tomou várias iniciativas de repercussão nacional contra a


eliminação em massa de postos de trabalho pela indústria. A mais celebre foi o acordo
negociado em câmara setorial, que trocou certa renúncia fiscal do Estado, salarial dos
trabalhadores e de lucratividade das empresas, traduzidas em baixa dos preços, por
forte aumento das vendas de veículos e correspondente aumento da produção, com
plena manutenção do emprego. Os ganhos de escala compensaram as renúncias.
Acordos análogos foram negociados em outras cadeias produtivas.

É no contexto de «um sindicalismo propositivo, que formula propostas de intervenção


nas políticas públicas, nas políticas industriais e setoriais e nas mudanças conduzidas
nas fábricas» (Oda, 2000: 94) que dá para entender que o Sindicato dos Metalúrgicos
também tenha se engajado, relativamente cedo, no movimento da economia solidária.
Já em seu 2º Congresso, em 1996, o sindicato resolveu discutir com os trabalhadores a
formação de cooperativas, autogestão, etc. como meios de garantir a manutenção de
postos de trabalho. O Congresso resolveu que poderiam ser sócios do sindicato todos
os trabalhadores da categoria (inclusive cooperadores) e não apenas assalariados
formais, como era a regra praticamente geral no Brasil até então.

«Com o intuito de ampliar os conhecimentos acerca de sistemas cooperativos, o


sindicato estabeleceu, em 1998, um protocolo de intenções para a troca de
informações a partir das experiências ocorridas na região da Emilia Romagna, Itália»
(Oda, 2000: 97). O protocolo teve a participação de várias entidades sindicais italianas
e da Lega delle Cooperative, que é a maior federação de cooperativas da península.
Dele resultou a visita de delegações brasileiras à Itália e de dirigentes da Lega e outras
entidades italianas ao Brasil, dando lugar a diálogos fecundos que continuam se
desenvolvendo.

Enquanto se davam estes avanços no plano macro, a crise na Conforja, a maior forjaria
do país, localizada em Diadema, ensejaria, a partir de 1996, o envolvimento direto do
sindicato numa grande operação de resgate de postos de trabalho. Em seguida, o
sindicato se engajaria em outras operações semelhantes: a transformação da Nichiden
em Coopertronic, da Cervin em Uniwídia, da formação da Cootrame pelos
trabalhadores demitidos da Nordon, a transformação da Olan - uma empresa têxtil,
portanto não pertencente à categoria metalúrgica - em Cooperautex e da KWCA em
Metalcooper e Fibercoop.

Na medida que o sindicato foi dando apoio a todas estas cooperativas, a complexidade
da tarefa se tornou patente. Em Fevereiro de 1998, um seminário interno realizado pelo
sindicato concluiu que era necessário proporcionar aos novos cooperadores
informação, formação e capacitação para a condução do negócio. Esta necessidade
advém também do fato de que, nas referidas cooperativas, a maioria dos trabalhadores
cooperativados é constituída de ex-operários, de baixa ou média qualificação e
portanto com menores possibilidades de recolocação no mercado de trabalho. Ao
contrário, os profissionais que atuaram em cargos de chefia ou administração, nas
antigas empresas fechadas/falidas, buscam a sua recolocação no mercado de trabalho
ou a criação de outros negócios independentes, em vez de participar nestas
cooperativas (Oda, 2000: 98).

O que não deveria surpreender, pois técnicos e gerentes constituíam a elite dirigente
das empresas que fecharam ou faliram e é apenas natural que a maioria deles descreia
da autogestão, convicta que apenas formas autoritárias e hierárquicas de gestão
podem ser eficientes. Para eles, entrar numa cooperativa eqüivale a renunciar a poder,
status e privilégios para se igualar aos demais cooperadores, apesar destes terem
muito menos «méritos» do que eles. Não obstante, há casos (como por ex. no da
Conforja, como veremos) em que engenheiros e ex-diretores não apenas aderem a
cooperativas como incorporam os valores da autogestão e se empenham em torná-los
realidade. Assumem posições de liderança e se frustram pela persistência da
mentalidade de «empregados» entre muitos sócios menos qualificados da cooperativa.
Uma peça-chave no projeto do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em relação às
cooperativas, tendo como referência as experiências internacionais, é a constituição de
uma associação a União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo
(Unisol Cooperativas). Esta entidade, que foi politicamente lançada durante o
encerramento do 3º Congresso dos Metalúrgicos do ABC, tem fortes vínculos com o
movimento sindical, com partidos políticos e com outras entidades da sociedade civil
(Oda, 2000: 102).

A Unisol surge em 1999, como possível rival da Anteag: propõe-se os mesmos


objetivos e inevitavelmente acabará desenvolvendo atividades semelhantes.
Formalmente, constitui também uma associação de cooperativas, que embora por
enquanto se localizam todas no ABC paulista, pretende abranger entidades de todo o
Estado de S. Paulo.

A Unisol conta com uma Incubadora de Cooperativas Populares, suportada pela


Prefeitura de Santo André e ligada à Fundação Santo André (instituição municipal de
ensino superior). As cooperativas criadas e amparadas pela Incubadora possivelmente
se integrarão à Unisol, que tenderá a se expandir, impulsionada pelos mesmos fatores
que explicam o grande crescimento da Anteag: o desemprego em massa, a
intensificação da concorrência que leva empresas antigas e de envergadura à crise e
eventualmente à falência; o êxito das cooperativas de produção que sucederam a
empresas que fecharam possivelmente reforça a confiança dos trabalhadores de que
em suas mãos elas têm grandes chances de ressuscitar.

2.3. Um estudo de caso: a metamorfose da Conforja

A Conforja era uma empresa metalúrgica que se estabeleceu em Diadema, em 1968,


para produzir conexões de aço forjado e tubulações. Convém registrar que 1968 marca
o início do «Milagre Econômico» brasileiro, quando o crescimento econômico e
particularmente industrial atinge ritmo extraordinário, sustentado por cerca de 9 anos. A
Conforja torna-se fornecedora única da Petrobrás, o monopólio estatal de petróleo, que
se empenha nos anos 1970 a explorar grandes jazidas submarinas, descobertas na
costa brasileiras. Entre 1974 e 1976, o número de empregados da Conforja passa de
550 a 1.170 e o seu faturamento, em dólares, sobe de 8,4 a 28,2 milhões. Nos anos 80,
a Conforja diversifica sua atividade, transformando-se numa multi-empresa que fabrica
máquinas, rolamentos, plásticos, transacionando frutos e cereais, minérios e madeiras,
etc.

A situação da empresa muda quando, em 1990, o governo de Fernando Collor decide


abrir o mercado interno às importações. A Conforja liderava um oligopólio, dominando
70% do mercado de forjados, que subitamente é invadido por fornecedores
estrangeiros competindo com preços menores. Deste ano em diante, a Conforja passa
a ter prejuízos, reduz o número de empregados e atrasa freqüentemente o pagamento
dos salários, o que provoca naturalmente protestos, greves abertas ou dissimuladas,
com grande prejuízo da produção. Em 1994, o principal acionista da Conforja, para
salvar a firma, propõe ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC transformá-la numa co-
gestão, o que provoca intenso debate entre os trabalhadores. Em 1995, restam na
Conforja apenas 630 empregados, menos da metade do contingente de 1989, mas
ainda assim um número significativo de postos de trabalho, que valeria a pena salvar.

O sindicato e a maioria dos trabalhadores concordam com a proposta do empresário e


em Agosto de 1995 é assinado um protocolo de intenções de co-gestão entre a
empresa e seus empregados, representados pelo sindicato. Em seguida os
trabalhadores formam uma associação denominada Assecon, para assumir a metade
da gestão da empresa mediante a aquisição de 45% das ações da mesma. A Anteag é
convocada para assessorar o sindicato e a Comissão de Fábrica, nesta experiência, de
certo modo inédita para todos os participantes.

Para ajudar a reabilitar a empresa, os trabalhadores haviam aceito uma redução da


jornada semanal de trabalho de 44 para 40 horas com redução proporcional dos
salários (o que até então sempre fora recusado pelos sindicatos). Apesar do sacrifício e
das propostas dos representantes dos empregados na direção da Conforja, a crise
prosseguia. O faturamento continuava a diminuir, provocando atrasos no pagamento de
salários, férias, 13º Salário, etc. Além disso, «as definições adotadas no âmbito da co-
gestão não eram efetivamente implantadas, resultando no descrédito dos membros da
Assecon, da comissão de fábrica e do sindicato junto aos trabalhadores» (Oda, 2001:
73).
Ao que parece, o poder real de direção da Conforja continuava com os antigos
diretores, alguns dos quais não se submetiam às decisões da co-gestão. Em Julho de
1997, o sindicato realizou um plebiscito entre os trabalhadores da Conforja. A maioria
manifestou-se pela dissolução da Assecon, pelo rompimento do acordo de co-gestão e
pela destituição da comissão de fábrica. A empresa voltava a ficar sob a
responsabilidade apenas dos proprietários e perdia o apoio do sindicato nas
negociações com os governos municipal e estadual, que permitiam a continuidade das
operações apesar da falta de pagamento de impostos e taxas e das contas de água e
eletricidade.

A partir do momento em que o sindicato assumiu a tarefa de preservar os 630 postos


de trabalho, ele (em conjunto com a Assecon) passou a pressionar as administrações
públicas para obter uma moratória dos débitos já incorridos, na expectativa de que a
Conforja em pouco tempo se reabilitaria financeiramente. Com a ruptura do acordo de
co-gestão, a empresa perdeu este apoio que, naquelas circunstâncias, era essencial à
sua sobrevivência. Em pouco tempo, a bancarrota da empresa seria decretada. Diante
desta perspectiva, o filho do fundador da empresa, que estava na sua direção,
percebeu que a melhor alternativa para ele era entregar a gestão a uma cooperativa
formada pelos empregados. «a possibilidade de arrendar aos trabalhadores as
máquinas, equipamentos e instalações se mostrava mais vantajosa para a Conforja e
seu herdeiro, do que simplesmente ter a empresa lacrada e o patrimônio da família
transformado em ‘massa falida’» (Oda, 2001: 77).

A dificuldade maior para transformar a Conforja numa autogestão era convencer os


trabalhadores, pois teriam de ser demitidos de seus empregos para se tornarem os
novos donos do empreendimento. Uma parte deles, liderada por um diretor dissidente
do sindicato, optou por continuar sendo assalariada, o que significava não se envolver
em qualquer tentativa de salvar a empresa e esperar que, com a venda da massa
falida, pudesse receber uma parte de seus direitos rescisórios, além dos salários
atrasados. Os demais, liderados pelos dirigentes da ex-Assecon, iniciaram discussões
sobre a formação duma cooperativa que pudesse assumir a empresa e superar a crise
em que estava imersa.

É interessante observar que o curto período (cerca de 2 anos) em que funcionou a co-
gestão foi decisivo para convencer a liderança dos trabalhadores de que uma
cooperativa de produção que sucedesse a Conforja teria reais possibilidades de
reabilitá-la. A co-gestão cumpriu um papel importante, pois o acesso às informações
possibilitou que os trabalhadores que integravam a ex-Assecon passassem a
compreender os processos administrativos, financeiros, comerciais e produtivos, além
de angariarem dos demais trabalhadores o respeito como potenciais líderes.

A passagem da co-gestão à formação duma cooperativa só foi possível de ser


concretizada devido: ao acesso aos dados relativos à empresa - a relação de clientes,
os custos de produção e administração, entre outros; ao aprendizado em relação ao
funcionamento da fábrica - a junção dos conhecimentos da operação com a
administração e a gestão dos negócios da fábrica; às discussões em torno das
alternativas que haviam sido elaboradas pelos trabalhadores durante o período da co-
gestão; e à liderança concretizada junto aos demais trabalhadores (Oda, 2001: 74-75).

Apesar da maioria dos trabalhadores ser favorável à fundação duma cooperativa, tendo
lançado manifesto neste sentido em Outubro de 1997, ela não ocorreu então porque
era demasiado o receio de romper o vínculo empregatício e renunciar ao direito a
salário, aposentadoria, férias, 13º salário, etc. ainda que estes benefícios não
estivessem sendo pagos integralmente. O manifesto proclamava a confiança dos
trabalhadores de serem «capazes de conduzir uma empresa de tal forma que o parque
fabril da Conforja não encerre suas atividades: os prédios não fechem, as máquinas
não parem» (Oda, 2001: 77). Mas, a confiança não era naquele momento suficiente
para que os empregados da empresa se dispusessem a atravessar o Rubicon e se
tornassem cooperadores.

A crise da empresa prosseguiu durante mais alguns meses, até que um setor da
fábrica, o de tratamento térmico conseguiu romper a inércia. Este setor contava com
uma clientela externa para os seus serviços, tornando-o financeiramente independente
da crise na produção de forjados, laminados, tubos e conexões. Um grupo de ex-
integrantes da Assecon preparou a formação da cooperativa, inclusive consultando os
clientes se continuariam comprando serviços depois da passagem da gestão aos
trabalhadores. Como o resultado da consulta foi positivo, as últimas dúvidas puderam
ser superadas, embora com muita dificuldade.

Os trabalhadores só conheciam dois papeis possíveis na economia: ou se era patrão


ou empregado. O auto-emprego coletivo era um enigma e a auto-gestão era ignorada.
Mesmo para as lideranças que conduziam o processo de formação da cooperativa,
esta era uma experiência nova. Assim, temas como a gestão da cooperativa, a
organização do processo produtivo e de trabalho e, principalmente, da participação dos
sócios-trabalhadores na condução dos negócios da cooperativa não ocuparam um
lugar de destaque nos debates realizados com os trabalhadores (Oda, 2001: 80).

Em 14 de Dezembro de 1997, a assembléia de fundação da Coopertratt - Cooperativa


Industrial de Trabalhadores em Tratamento Térmico e Transformação de Metais teve
lugar na sede regional de Diadema do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Em Março
do ano seguinte Conforja e Coopertratt assinavam um contrato de arrendamento,
prestação de serviços «e outras avenças», pelo qual a segunda poderia usar prédios,
máquinas e equipamentos da primeira em troca da prestação de serviços de
tratamento térmico pela segunda à primeira, além de percentuais sobre o faturamento
da cooperativa com clientes externos. O contrato era bastante complexo, com
percentuais progressivos para a Conforja conforme aumentasse a receita externa da
Coopertratt.
Um detalhe revelador do contrato é que a Conforja não só deixava de ser responsável
pela remuneração dos trabalhadores sócios da cooperativa, mas esta passou a
responder inclusive pelo pagamento das obrigações rescisórias dos mesmos. Em
outras palavras, os trabalhadores do setor de tratamento térmico foram todos demitidos
pela Conforja, sendo que os que resolveram se associar à cooperativa ficaram
responsáveis por gerar suas próprias verbas rescisórias. Aos trabalhadores que não
quiseram aderir à cooperativa, a responsabilidade pelo pagamento destes direitos
continuava sendo da Conforja.

A Coopertratt assumiu a gestão dos negócios a seu cargo e obteve muito rapidamente
bons resultados econômicos, refletidos na retirada dos sócios, que já no segundo mês
foi «cheia», ou seja, o fluxo de caixa permitiu que os trabalhadores recebessem
integralmente a remuneração média, que tinham antes da crise da empresa. Quando
estes fatos se tornaram conhecidos pelos outros trabalhadores, eles também criaram
ânimo para fundar suas cooperativas. Os integrantes da ex-Assecon planejaram formar
mais três cooperativas de produção, a partir das unidades de negócios da empresa, e
duas que prestariam serviços às de produção: uma de engenharia, manutenção e
ferramentaria e outra de logística e comercial. Mas somente as primeiras três foram
formadas (entre Março e Abril de 1998): Cooperlafe (Laminação de Anéis e Forjados
Especiais); Coopercon (Conexões Tubulares) e Cooperfor (Forjaria).

As cooperativas de serviço não vingaram porque não houve quem convencesse os


empregados dos setores técnico e administrativo a dar o salto mortal e se tornarem
patrões de si mesmos. Os principais líderes que haviam integrado a Assecon já
estavam nas cooperativas de produção. Além disso, tecnocratas e burocratas são mais
apegados a hierarquia, já que ocupam nela posições privilegiadas. É entendível que
em sua maioria tivessem optado por enfrentar as agruras dum mercado de trabalho
com excesso de oferta em vez de se igualar aos trabalhadores manuais num arranjo
autogestionário que ainda não havia comprovado sua «eficiência».

Mas nem todos os empregados administrativos e técnicos fizeram esta opção. Vários
entraram em cooperativas por afinidade com suas lideranças, porque sua atividade
estava ligada a uma delas ou para suprir alguma lacuna, etc.. Em Maio de 1998,
quando as 4 cooperativas tomaram o lugar da Conforja, esta última tinha 449
empregados, dos quais 269 se tornaram cooperadores. Os 180 restantes (40% do
total) preferiram deixar o empreendimento. Os primeiros eram os «demitidos internos»
e os últimos, os «demitidos externos».

Com a formação das 4 cooperativas, todo capital físico da Conforja é arrendado, o que
exige um novo contrato. Do faturamento líquido, por faixa de valores, haveria as
seguintes deduções: de 3,5% a 4,5% para a conta da Conforja; 3,5% para as verbas
rescisórias dos demitidos internos e de 5,5% a 7,5% para os demitidos externos.
Mesmo os sócios das cooperativas mantêm seus direitos a créditos individualmente
diferenciados, o que significa que uma parcela de 3,5% da receita gerada por todos os
cooperados se destina a pagar direitos proporcionais à antigüidade e outras
circunstâncias da atividade passada, realizada por cada um na Conforja. E uma parcela
quase duas vezes maior da mesma receita se destina a pagar os direitos dos
trabalhadores que optaram por deixar a empresa.

Estes dispositivos contratuais mostram o enorme apego dos trabalhadores a seus


direitos trabalhistas, que seriam em sua maior parte perdidos se não fosse a
recuperação da empresa pelas cooperativas de produção. Os demitidos internos
concordaram em trabalhar para assegurar os direitos dos demitidos externos porque
«segundo o ex-presidente da Coopertratt, o risco dos ‘demitidos externos’ abrirem um
processo trabalhista reivindicando que as cooperativas pagassem seus direitos, antes
da decretação da falência da Conforja, era muito grande» (Oda, 2001: 85).

As quatro cooperativas contrataram o proprietário da Conforja para prestar serviços de


assessoria em gestão empresarial contra o pagamento de 1,5% do faturamento líquido.
Desta forma, os interesses de todas as partes envolvidas na crise da empresa se viram
contemplados. Mas, apesar do desempenho razoável das cooperativas, a falência da
Conforja não pôde ser evitada, sendo decretada em Março de 1999. Este ato
transformou o patrimônio arrendado pelas cooperativas em massa falida, de
propriedade, em princípio, dos credores da empresa. Mas o interesse destes últimos
continuava sendo pela manutenção em atividade do empreendimento, de modo que um
novo contrato de arrendamento foi assinado junto ao juiz do processo falimentar.

De uma forma geral, o desempenho econômico das cooperativas em 1998 e 1999 foi
bom, dando esperança que a crise poderia ser superada. A receita operacional bruta foi
de 5,4 milhões de reais em 1998 e 9,6 milhões em 1999, sendo o custo com
cooperadores de 1,5 milhão em 1998 e 2,9 milhões em 1999. É preciso lembrar que o
exercício de 1998 não cobre todo o ano. Finalmente, as sobras das 4 cooperativas
foram de 300 mil reais em 1998 e 209 mil reais em 1999. A este respeito o
desempenho das cooperativas foi bastante diferente: as sobras da Coopertratt
dobraram, passando de 131,5 mil reais em 1998 para 260,4 mil reais em 1999, a
Cooperlafe sofreu pequena diminuição das sobras (116,8 mil em 1998 e 97,9 mil em
1999) ao passo que as outras duas tiveram prejuízos em 1999, a Coopercon de 39,5
mil reais e a Cooperfor de 109,8 mil reais.

Os dados disponíveis não permitem uma avaliação efetiva do desempenho de cada


uma das cooperativas. Mas, as dificuldades econômicas motivaram duas mudanças na
direção da Coopercon. A 1 de Dezembro de 1998, cinco dos seis integrantes do
Conselho de Administração da cooperativa foram substituídos por causa do
descontentamento dos trabalhadores com suas retiradas, que estavam muito menores
que a retirada cheia, que eles consideram como uma espécie de direito adquirido.

No início do seu mandato, o segundo presidente eleito optou por pagar as


remunerações dos sócios-trabalhadores, em detrimento da situação econômico-
financeira da cooperativa. (...) Em 26 de Agosto de 1999, também por meio de
assembléia geral extraordinária, a Coopercon promoveu a substituição do seu
presidente e do coordenador geral da cooperativa. O desequilíbrio nas contas da
cooperativa ocasionado pelo baixo volume de faturamento, pela necessidade de
recursos para a compra de matérias-primas e insumos e pela própria pressão dos
trabalhadores no pagamento das retiradas - que uma vez mais voltou a ser inferior à
‘retirada cheia’ - levaram as demais cooperativas a se manifestarem quanto à
necessidade de uma ‘intervenção branca’ na Coopercon (Oda, 2001: 93-94).

Apesar das óbvias dificuldades que algumas das cooperativas enfrentam, os sócios
têm atingido o seu objetivo imediato, qual seja preservar seus postos de trabalho e
alcançar remunerações compatíveis com o trabalho que realizam. A informação
disponível a este respeito refere-se à Cooperlaf, onde a retirada média em Julho de
2000 era de R$ 1.094,86, que se compara favoravelmente com o salário médio do
metalúrgico do ABC que era então de R$ 1.051,63. (Oda, 2001: 111) Considerando-se
a situação desesperadora da Conforja, que levou afinal a sua falência, é provável que o
desempenho econômico das cooperativas deva ser considerado uma melhora, que
com o passar do tempo deverá se acentuar.

De uma forma geral, a prática da autogestão tornou-se habitual nas quatro


cooperativas. Em cada uma delas, além do Conselho Administrativo estatutário, há um
coordenador geral que de fato exerce a chefia. São pessoas que já exerciam posição
de liderança na Conforja, sendo todos ex-chefes ou engenheiros e ex-integrantes da
Assecon. Cabe-lhes articular os processos produtivos e supervisionar os demais
sócios, estando entre suas funções «indicação para aumento de
retiradas/enquadramentos de funções/cargos, definição e cumprimento de
sobrejornadas quando necessárias, definição de prioridades da produção para
atendimento de clientes/interesses financeiros da cooperativa, entre outros» (Oda,
2001: 89).

Embora os coordenadores disponham de grande poder, suas decisões em geral são


submetidas às assembléias gerais, que costumam ser numerosas. Entre Março de
1998 e Fevereiro de 2000, as 4 cooperativas realizaram nada menos de 120
assembléias, com um comparecimento médio que varia entre 70,4% na Coopertratt e
77,8% na Coopercon. É interessante notar que as duas cooperativas com pior
desempenho (Cooperfor e Coopercon) são as que registram maiores índices de
comparecimento, o que parece indicar que a participação dos sócios é mais intensa
exatamente porque os problemas a serem enfrentados são mais graves. As
assembléias dão ampla oportunidade aos sócios de inserir itens na agenda e de se
manifestar.

Apesar dos sinais de que a autogestão é uma realidade, em alguma medida, são os
coordenadores que se queixam da falta de participação e de iniciativa dos sócios.
Segundo o coordenador de qualidade da Cooperlafe, «não conseguimos mudar a
mentalidade dos trabalhadores, [pois] eles ainda são muito dependentes de um
patrão». O presidente da Cooperfor acha que «muitos sócios se acostumaram e
continuam trabalhando como ex-empregados». Para o coordenador geral da
Coopertratt, «a ‘mudança de filosofia’ [...] só ocorrerá mediante a participação deles em
cursos técnicos e em cursos sobre cooperativismo». Para este coordenador, estes
cursos proporcionariam «uma maior autonomia para a tomada de decisões sobre a
produção, além de possibilitar aos sócios pensarem no negócio estrategicamente e não
no curto prazo» (Oda, 2001: 116).

O caso da Conforja é muito revelador das potencialidades que a transformação de


empresas capitalistas em crise em cooperativas de produção encerra. Uma grande
parte das hesitações e resistências dos trabalhadores a se lançar em tal aventura se
deve ao seu ineditismo. Com o tempo e a experiência acumulada em cooperativas e
entidades de apoio, como a Anteag e a Unisol, é de se esperar que a percepção das
vantagens para os trabalhadores de passar da condição de assalariados subalternos a
sócios com plenos direitos de participação nas decisões se generalize. É curioso que
outros atores, como os detentores do capital ou de direitos sobre a massa falida, sejam
mais rápidos em perceber as vantagens para eles em transferir aos ex-empregados os
direitos e responsabilidades sobre o capital físico, pelo simples fato de que só sua
utilização contínua garante sua manutenção material e portanto a preservação de seu
valor.

2.4. Autogestão a partir da Reforma Agrária - o MST

A luta pela terra não é nova no Brasil. Fortemente reprimida durante grande parte do
regime militar, ela é gradualmente retomada quando se dá a abertura do regime.
Começam de novo ocupações de terras de latifúndios e destas experiências surge o
MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). De acordo com o próprio
movimento, em sua fase inicial (1979-84),

a conquista da terra é o eixo central. O MST queria resolver o problema da terra do


ponto de vista individual. (...) O sem-terra pegava a terra e virava um pequeno
proprietário. (...) A produção estava voltada basicamente para o autosustento (para o
mercado ia o excedente). O nível de cooperação que existe era o espontâneo:
mutirão e troca de dias de serviço (CONCRAB, 1998: 28-29).

A agricultura de subsistência praticada em pequenas propriedades familiares não


consegue melhorar o padrão de vida dos camponeses e alguns são obrigados a
entregar a terra. A partir de 1986, começa a discussão de como organizar os
assentados, com o I Encontro Nacional de Assentados, em que estiveram
representados 76 assentamentos de 11 estados. Apesar da resistência inicial ao
cooperativismo «pelas experiências negativas do modelo tradicional do cooperativismo,
caracterizado como grandes empresas agro-industriais que desenvolveram uma
política de exploração econômica dos agricultores» (CONCRAB, 1999: 6), a discussão
evoluiu a favor do cooperativismo, em termos que hoje diríamos serem os da economia
solidária.

Durante a Nova República (1985-89), multiplicaram-se associações nos


assentamentos, estimulados pelos órgãos governamentais de extensão rural,
especialmente a Emater. A aceitação do cooperativismo se dá gradualmente. Em 1988
foi organizado um «Manual de Cooperação Agrícola» do MST. Em 1989, o MST passa
a tentar organizar a produção nos assentamentos através de Laboratórios
Organizacionais, metodologia desenvolvida por Clodomir de Morais a partir da
experiência das Ligas Camponesas e que visa a formação de cooperativas de
produção autogestionárias. Criam-se ainda em 1989 as primeiras CPAs (Cooperativas
de Produção Agropecuária) no Rio Grande do Sul: a COOPANOR e a COOPTIL. Nesta
fase, a motivação para organizar a cooperação passa a ser econômica (acumular
capital) e política (liberar quadros e procurar sustentar o MST) (CONCRAB, 1998: 31).
Os documentos do próprio movimento registram que houve uma ruptura em 1989:

Pela primeira vez formulam-se linhas políticas para a organização dos assentados e
para a organização da produção. [...] Surge o desafio de fazer uma produção que
envolvesse a subsistência e o mercado. O problema da produção passava a ser tão
importante como ocupar. [...] Percebeu-se que os pequenos coletivos e as grandes
associações não conseguiam fazer avançar a produção, ora porque eram muito
pequenas, ora por não se guiarem por critérios econômicos (CONCRAB, 1998: 29).

A política do MST em relação aos seus assentamentos se consolida em 1991/2 com a


criação do Sistema Cooperativista dos Assentados, formado em cada assentamento
por Cooperativas Agro Pecuárias, Cooperativas de Comercialização Regionais, Grupos
Coletivos e Associações; em nível estadual, estabeleceram-se Cooperativas Centrais
de Reforma Agrária e em nível nacional criou-se a CONCRAB (Confederação das
Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda.), em 15 de Maio de 1992, em Curitiba.
As CPAs unificam os lotes de terra dos membros e trabalham o conjunto deles de
acordo com um plano de produção. Sendo esta coletiva, a repartição do produto em
natura e em dinheiro tinha de se orientar pela contribuição de cada um, avaliada de
alguma maneira. Passou-se assim dum modelo bastante individualista, em que o
pequeno agricultor tem toda a autonomia e se expõe a todos os riscos, para um modelo
totalmente coletivista, em que cada cooperador participa num trabalho socializado, de
acordo com uma divisão de trabalho previamente planejada.

A CPA foi inspirada no modelo de Cuba, em que a cooperativa tinha pouca autonomia
face ao Partido-Estado e se enquadrava no planejamento nacional. Em poucos anos
ficou claro que, no Brasil, este tipo de cooperativa não era compatível com as
aspirações da grande maioria dos assentados. Somente uma minoria politicamente
convicta aderiu com entusiasmo às CPAs e persiste nelas. Já em 1993, o seu fracasso
ficou evidente e começou a ser reconhecido. Em várias CPAs registraram-se conflitos
seguidos de abandono por grande parte dos cooperadores.

A CPA, não obstante a crise pela qual passa, se mostra, enquanto forma de organizar
a economia nos assentamentos, superior à pequena propriedade:
Nas CPAs, criaram-se creches, refeitórios coletivos, possibilitando a participação das
mulheres na produção. [...] A integração com grandes agroindústrias, opção e
condição de algumas cooperativas, possibilitou o acesso ao capital e ao
conhecimento e qualificação da mão de obra dos agricultores. A capitalização das
CPAs leva os assentados das CPAs estarem em média com renda maior que os
individuais e a capitalização é em média 10% superior. O padrão de vida é superior
na maioria dos lugares ao de muitas famílias que vivem empregadas na cidade,
considerando a produção e renda monetária. É em média também superior aos
posseiros, meeiros e até grande parcela de pequenos agricultores que ainda resistem
no campo (CONCRAB, 1999: 24-25).
As CPAs revelaram de início graves deficiências administrativas e técnicas, dada a
pouca formação nestas matérias dos assentados. Para remediar esta carência, criou-
se o Curso Técnico em Administração de Cooperativas, em Veranópolis (RS), tendo-se
iniciado a primeira turma em Junho de 1993. Seis anos depois já tinham se formado
500 técnicos em cooperativismo, em nível de segundo grau. Tudo leva a crer que, com
a paulatina incorporação destes técnicos nas cooperativas de produção e de
comercialização, o desempenho administrativo e técnico deve estar melhorando.

O fracasso das CPAs foi causado possivelmente porque a maioria dos assentados
prefere a pequena produção de mercadorias, mesmo que ela resulte em menor padrão
de vida e maior risco, dada a grande oscilação dos preços dos produtos agrícolas. Nas
cooperativas que se formam a partir da crise de empresas industriais, os associados
sempre trabalharam coletivamente sob o comando do capital, o que os deixou
conscientes de que dividir o empreendimento em pequenas oficinas individuais seria
pouco factível e uma receita segura de fracasso econômico. Além disso, não têm
dificuldade de avaliar a contribuição de cada um ao produto e portanto de definir regras
de repartição entre eles do rendimento obtido.

A situação dos trabalhadores rurais é, neste sentido, completamente diferente. O


trabalho agrícola é feito geralmente em pequenas unidades, mesmo quando se realiza
sobre terra alheia, arrendada, cedida ou ocupada. São poucas, no agro brasileiro, as
empresas agrícolas integradas análogas às fábricas. Além disso, cada assentado é
dono dum lote individual que recebe do Incra. Portanto, a alternativa de trabalhar
autonomamente é factível, além de ser o modelo «natural» no campo brasileiro. Não
deve surpreender portanto que a primeira tentativa de implantar a economia solidária
mediante a reforma agrária tenha fracassado em parte.

Não obstante, o MST continua empenhado em desenvolver uma agricultura moderna


nos assentamentos que conquistou e sabe que esta meta exige um grau avançado de
cooperação entre os agricultores. Reconhecendo que a CPA não é desejada pela
maioria dos assentados, o movimento fez um recuo tático: em vez de priorizar a CPA
unicamente, ele passou a desenvolver outras formas de cooperação, como as
cooperativas de comercialização, que preservam a individualidade do camponês, mas
permitem organizar compras e vendas em comum, com palpáveis vantagens para
todos em termos de preços. Além disso, estas cooperativas (apelidadas de CPSs:
Cooperativas de Prestação de Serviços) ajudam a mecanizar a agricultura mediante a
compra em comum de equipamentos caros como tratores, colheitadeiras e permitem o
desenvolvimento de agroindústrias .

Mas o MST procura evitar que o assentamento se divida entre os que são associados
de CPAs ou CPSs e os que trabalham isoladamente em seus lotes. O Sistema
Cooperativista dos Assentados [SCA] pretende abranger todos os assentados,
inclusive os individuais. Através dele, o MST procura dar aos assentamentos uma
estruturação democrática, em que a economia solidária possa avançar na medida em
que mais e mais assentados percebam que a cooperação vale a pena e oferece menos
riscos que a atividade individual isolada.

Para o MST o que importa é que todos os assentados participem de uma experiência
de cooperação, rompendo assim com o isolamento. Pois a cooperação tem como
objetivo principal o desenvolvimento da produção. Ela visa contribuir com o avanço da
organização da produção em vista da melhoria da qualidade de vida das famílias
assentadas. Uns podem apenas trocar dias de serviço. Outros podem comercializar em
conjunto. Outros podem ter uma associação de máquinas. Outros podem ter alguma
linha de produção em comum. Outros podem estar em grupos coletivos. Outros podem
estar ligados a uma cooperativa. Outros estão em uma cooperativa totalmente coletiva
(CONCRAB, 1998: 50).

O contínuo de solidariedade, construído desta forma, é um modelo que o movimento


popular poderá desenvolver nas cidades. Cada modalidade de cooperação combina
em graus diferentes autonomia individual com trabalho coletivo e depende tanto da
vontade dos membros como das características da produção. Na agricultura mesmo há
ramos de produção como o cultivo de morangos ou a criação de pequenos animais em
que o trabalho individual ou familiar tende a ser mais eficaz que o trabalho coletivo em
grande escala, que por sua vez é provavelmente superior nas plantações de cereais
altamente mecanizadas e quimificadas.

3. Estudos de caso: assentamentos de reforma agrária no Paraná

3.1. Abapan

Três assentamentos diferentes foram estudados por Maria Antônia de Souza (1999):
Abapan, Novo Paraíso e Santa Maria. O primeiro é o mais antigo, surgiu em 1985 e
nele a posse da terra é totalmente individual. As famílias são provenientes do norte e
do oeste do Paraná. O MST sugeriu que elas se organizassem por grupos da mesma
procedência. Há três associações.

O presidente de uma das associações nos relata que a segunda associação surgiu a
partir de divergências no interior da primeira, pois os trabalhadores tinham objetivos
diferentes, tanto em termos do tempo a ser destinado ao trabalho, quanto ao tipo de
produto e o número de membros da família a se envolver nas atividades. Um outro
grupo de pessoas que não estava organizado, tendo observado o trabalho das outras
duas associações, decidiu formar uma terceira, onde o objetivo é sempre a venda de
produtos em conjunto, assim como a elaboração de projetos para obtenção de créditos
agrícolas (Souza, 1999: 140).

Em Abapan, o trabalho é realizado pela família em seu lote individual, o que permite
conservar a divisão tradicional de trabalho e de autoridade entre os sexos. A autoridade
paterna tende a predominar. Mas, como pequenos agricultores autônomos, os
assentados ficam inferiorizados na venda de seus produtos e impossibilitados de
conseguir créditos e de adquirir equipamentos de maior porte e valor. Para superar
estes óbices, procuram se associar, mas isso implica um preço: perda de autonomia,
necessidade de coordenar o tempo de trabalho em tarefas comuns e que tipo de
produto as famílias vão produzir, além de conciliar o trabalho de membros das famílias
para a associação com o realizado em suas unidades individuais. As divergências a
respeito destes assuntos levaram à cisão da primeira associação e o desejo de
preservar alguma autonomia induziu à formação duma terceira. Cada associação tem
em média 13 famílias, um número pequeno que debilita as vantagens da associação
mas provavelmente exprime o máximo de renúncia à autonomia a que os assentados
se dispõem.

Finalmente, em 1997, doze anos após o início do assentamento, conseguiu-se reunir


as associações na Cooperativa de Comercialização COTRAMIC, que pretende vender
em conjunto a produção de todos os assentamentos do município de Castro, para
alcançar melhores preços e menores despesas de transação por unidade. Só que por
ocasião da pesquisa, «a cooperativa estava inativa devido a própria ação dos sócios,
‘que acabam esperando pelas decisões da direção [...] Não vêem que eles também
podem decidir’» (Souza, 1999: 140). A explicação da inatividade talvez esteja no fato
de que o estatuto da cooperativa prevê que cada sócio deve estar organizado em
grupos com dez famílias, o que motiva/obriga os trabalhadores a se organizarem e a
(re)elaborarem saberes do tipo prático [...], técnico (por exemplo o trabalho manual
passa a ser realizado com maquinários, dentre eles o trator), familiar (por exemplo,
num grupo, as decisões não são tomadas pelo ‘chefe’ da família, mas pelo grupo cujos
membros devem entrar em acordo) (Souza, 1999: 142).

Era muita mudança de uma vez só, sobretudo se proposta de cima para baixo e de fora
para dentro. Na fundação da cooperativa estavam presentes, além dos associados de
dois assentamentos, representantes do Partido dos Trabalhadores, vereadores e
deputado estadual, sindicato de trabalhadores rurais de Castro e membros da direção
estadual do MST. Discursaram representantes da Central Cooperativista dos
Assentamentos, do MST e o agrônomo da região, que conduziu a assembléia. O
primeiro enfatizou que «serão os ‘pequenos’ que irão dar direção à cooperativa». O
agrônomo, entre outras considerações, achou que devia advertir que a cooperativa
«não vai enriquecer ninguém, não vai melhorar se o grupo não quiser» (Souza, 1999:
141-142). A impressão que o relato dá é que a cooperativa é uma idéia dos assessores
e apoiadores externos, que, com as melhores intenções, propõem a reorganização total
do assentamento visando a avanços técnicos e econômicos. Só que a proposta ignora
a enorme dificuldade das famílias assentadas de se associarem e empreenderem
atividades em comum. O fato da cooperativa não ter saído do papel pode muito bem
ser devido à resistência passiva dos principais interessados, que sem ousar discordar
abertamente, resolveram «ficar esperando pelas decisões da direção».

3.2. Novo Paraíso

O segundo assentamento estudado por Souza (1999) é o de Novo Paraíso, cuja área
era grilada. Sabendo disso, o MST encaminhou uma carta ao assentamento Ouro
Verde no município de Cantagalo, onde um grande número de famílias ocupava uma
área demasiado pequena, convocando pessoas para a referida área irregular, que
formava o imóvel Tigre. 15 famílias se deslocaram para lá e encontraram outras 27
famílias vindas de Inácio Martins e que já haviam formado a Cooproserp (Cooperativa
de Produção e Serviços de Pitanga). A junção dos dois grupos resultou num total de 42
famílias associadas à cooperativa.

Os desdobramentos deste passo inicial podem ser melhor acompanhados através do


estudo desta cooperativa realizada por Raquel Sizanoski (1998). A cooperativa foi
fundada em 24 de Agosto de 1989, mas o assentamento só foi oficializado em 1992 e
neste intervalo não contou com linhas de crédito. Além disso, a Cooproserp foi a
primeira cooperativa inteiramente coletiva, em que os lotes das famílias foram
combinadas numa unidade única de produção. Não havia experiência anterior, os
únicos conhecimentos de que dispunham os cooperadores sobre a operação duma
cooperativa coletiva foram os adquiridos em Laboratório Organizacional de Campo, o
método de capacitação criado por Clodomir de Moraes.

O período entre 1989 e 1992 representou três anos de acampamento na área, vivendo
sob condições precárias e com constantes ameaças de despejo, doenças e escassez
de alimentos. Ainda em 1989, cinco famílias desistem da proposta de coletivização e
abandonam o acampamento. [...] Em 1990, 18 famílias abandonam a proposta da
COOPROSERP e se mudam para outro local, ainda dentro do mesmo assentamento e,
em seguida, realizam a divisão de sua parte do assentamento em lotes individuais,
organizando o trabalho a partir da unidade familiar (Sizanoski, 1998: 48).

Em 1992, quando da oficialização do assentamento, representantes do MST e Instituto


Ambiental do Paraná decidem que só poderiam permanecer na área aqueles que
continuassem a experiência coletiva. Após esta delimitação, das 18 famílias que
haviam optado pelo trabalho individual, quatro voltam para a COOPROSERP e as
outras constituem a ASTROAGRI, que possui uma forma de organização mais simples,
com maior autonomia dos assentados em relação à produção para o autoconsumo e
um volume de investimentos menor que a COOPROSERP. [...] Por divergirem da
coletivização, 16 famílias desistem do projeto. No final de 1992, 15 famílias
permanecem na COOPROSERP e 11 se fixam na ASTROAGRI (Sizanoski, 1998: 49).
As mudanças contudo não cessam. Em 1993, nove famílias abandonam a cooperativa,
mudando para o assentamento de Nova Cantu, de onde vêm 10 famílias para a
cooperativa. Em 1996, duas famílias deixam a cooperativa e se mudam para o
Assentamento Araguaí. No ano seguinte, duas famílias entram na COOPROSERP. A
autora observa a respeito:

Estas famílias que se retiraram da cooperativa abriram mão de suas propriedades, ou


seja, a propriedade individual, de cada família, após sua saída, fica em poder da
cooperativa. [...] Por que estas famílias, depois de muito sacrifício, das lutas no MST,
dos períodos de acampamento [...]decidem abandonar a cooperativa e deixar a terra
que conquistaram ? O abandono da cooperativa constitui-se no problema central
desta pesquisa (Sizanoski, 1998: 50).
Convém observar de início que todas as famílias que saem da cooperativa recebem
terras, seja no próprio assentamento Novo Paraíso, seja em outros assentamentos. O
que mostra que o MST aceita que as famílias abandonem o primeiro experimento de
cooperativismo coletivo, o que permite supor que para o próprio movimento esta
modalidade de organização social não poderia ser imposta a todos assentados. Maria
Antônia de Souza (1999: 144-145) observa em relação à ASTROGRI (Associação dos
Trabalhadores Organizados na Agricultura) que ela resulta da recusa à coletivização:
«fazem a tentativa de trabalho individual, onde não obtiveram resultados, sendo
obrigados a novamente retomar o coletivo, na forma de associação».

De uma forma geral, os depoimentos colhidos pelas duas pesquisas junto a assentados
que permaneceram na cooperativa e junto aos que a deixaram deixam entrever três
motivações principais para o abandono: 1. O magro retorno econômico a um esforço de
investimento relativamente grande. Muitos depoimentos falam da frustração com o
ganho insuficiente mas reconhecem o imediatismo dos que desistem, pois é preciso
mais tempo para colher os frutos. 2. O descontentamento com a falta de incentivos aos
que trabalham mais e produzem melhor. As retiradas são calculadas pelo número de
horas trabalhadas, sem distinguir diferenças de esforço nem de resultado. Isso leva
alguns a «amolecer o corpo» primeiro e depois optar pelo lote individual, onde esforço
e produtividade não são compartilhados e nem os ganhos uniformizados pela média. 3.
Insatisfação com o papel do trabalho familiar no coletivo: só adultos são sócios e
ganham de modo que as famílias com filhos pequenos têm de sustentá-los à sua
própria custa; além disso, o pai perde o seu poder de «chefe» da família e esta perde o
poder de decidir sobre sua produção e seu trabalho.

As condições de vida (presumivelmente em 1997, quando Raquel Sizanoski conduziu


sua pesquisa) das famílias associadas à COPROSERP eram razoáveis. Pertenciam à
cooperativa 16 famílias, 11 casais e 5 solteiros, com 26 crianças, 8 adolescentes e 29
adultos, num total de 63 pessoas.

As moradias são organizadas em agrovila, onde cada família possui um lote individual
de 12 x 30 m. Em alguns há hortas e pequenos animais, como galinhas e perus. A
construção das casas assim como alguma melhoria ou reforma, é de responsabilidade
do associado [...] As casas são todas de madeira, a maioria sem forro e algumas sem
assoalho. Contam com energia elétrica e rede de esgoto, mas em apenas uma delas
existe banheiro. A maioria das famílias tem televisão, rádio, geladeira e fogão a gás,
embora o fogão a lenha seja mais utilizado; em apenas uma casa há antena parabólica
e em duas chuveiro elétrico. Apesar de serem ainda rústicas, em geral as casas são
limpas e bem arrumadas (Sizanoski, 1998: 51-52).

Para as 16 crianças de até 6 anos há uma creche, dirigida por duas mães, que
recebem um salário da prefeitura. As 10 crianças de 7 a 14 anos freqüentam uma
escola municipal, perto da cooperativa, que atende também as crianças da
ASTROAGRI. O posto de saúde mais próximo fica em Pitanga, a cerca de 30 km.
Doenças corriqueiras são tratadas com plantas medicinais. «Todas as crianças são
saudáveis e bem alimentadas» (Sizanoski, 1998: 51) Em 1997, a cooperativa distribuiu
R$ 38.000,00 a seus sócios, o que dá em média cerca de um salário mínimo por mês.

A pesquisadora apresenta como conclusão sua que fazendo algumas comparações


externas, como por exemplo, entre favelados urbanos e esses assentados, podemos
afirmar que sua condição de sobrevivência é superior as dos primeiros, pois se
alimentam bem, têm casa, boa saúde, trabalho. Não possuem um padrão de vida ideal,
mas estão muito distantes da miserabilidade das favelas (Sizanoski, 1998: 55).

Maria Antônia de Souza apresenta avaliação idêntica: «Com relação ao funcionamento


da cooperativa e aos avanços obtidos no assentamento, é notória a melhoria na
qualidade de vida das famílias, da construção das casas, da infra-estrutura e dos
setores de produção» (Souza, 1999: 145).

3.3. Santa Maria

Formado por grupos excedentes de assentamentos no oeste e centro-oeste do Paraná,


o assentamento de Santa Maria teve início em 1992, mas sua regularização final só
ocorreu em 1994. É o mais recente dos três assentamentos estudados. As famílias já
vieram ao assentamento com o propósito «de fundar uma cooperativa e trabalhar
coletivo». A Copavi (Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória) foi fundada por 25
famílias, que haviam sido arrendatárias. Por ocasião da pesquisa de Maria Antônia de
Souza, havia 19 famílias, «sendo que 4 em processo de experiência - constitui uma
espécie de estágio no coletivo, onde a família insere-se num setor de produção e na
organização do assentamento como um todo, passando a conhecer as normas da
cooperativa» (Souza, 1999: 148). Esta é uma prática nos assentamentos do MST: «Os
lugares deixados pelas famílias desistentes são ocupados por outras famílias, que se
interessam pelo coletivo e que passam por um ano de experiência no assentamento»
(Souza, 1999: 146).

O propósito dos cooperadores era tanto econômico quanto político. O regimento interno
Copavi determina como seus objetivos ser uma cooperativa de produção,
comercialização e industrialização em vistas de organizar o trabalho dos seus sócios,
liberar mão de obra para contribuir ao MST e SCA, ser uma organização social de
reivindicação e de luta em favor da reforma agrária e de interesse de seu quadro social,
dar exemplo através dos resultados econômicos e social de que a reforma agrária dá
certo; especialização da mão de obra, garantir a participação nas decisões, execução,
controle e divisão das sobras através da gestão democrática (Souza, 1999: 149).

A cooperativa pretendia se dedicar a pecuária, lavoura, horta e indústria. A atividade


mais lucrativa é a horta, cuja produção é comercializada em Parancity e no município
vizinho de Cruzeiro. Em volume, a maior produção é a do leite, que pretendiam
industrializar. Entretanto, chegaram à conclusão que ‘não sabiam fazer, por exemplo,
pinga, trabalhar com os derivados do leite, etc.’ Por outro lado, agora que conseguiram
uma qualidade na produção, esbarram no mercado, por exemplo, na questão da
legalização do leite. [Um dos sócios] afirma que o leite deve ser o ‘carro chefe’ e que há
muitos investimentos, por exemplo na área de suínos e de frangos, e pouco lucro, ou
seja, os investimentos altos e o baixo retorno econômico ‘repercutem politicamente,
pois começam a mostrar o que não deu certo’ (Souza, 1999: 149-150).

A deficiência técnica, que parece ter sido geral nas CPAs, tornou-se um impedimento
para a industrialização dos produtos agropecuários. É provável que a qualificação
profissional da nova geração permita superar este problema. Mas, por enquanto,
ressurge o «imediatismo», a impaciência com o retorno dos investimentos, que neste
depoimento adquire conotação política: o ganho modesto pode dar a impressão que o
experimento fracassou, o que seria grave para uma cooperativa que colocou entre seus
objetivos «dar exemplo através dos resultados econômicos e social de que a reforma
agrária dá certo».

Desde a fundação até 1999, 10 das 25 famílias fundadoras deixaram a Copavi. Todos
vieram com o objetivo e a certeza de que o coletivo seria a melhor maneira de
organizar o assentamento. Entretanto, após 6 anos, cerca de 40% das famílias
desistiram do coletivo, optando por formas individuais de trabalho e associativas no
momento da comercialização e compra de equipamentos e insumos agrícolas (Souza,
1999: 150).

Os motivos da desistência das famílias da proposta de constituir uma comunidade


coletivista são basicamente os mesmos já vistos no caso de Novo Paraíso:
«mentalidade das pessoas, convivência em grupos; retorno econômico; decisões, mas
principalmente a questão do econômico» (Souza, 1999: 149).

Uma maneira encontrada pelo MST para facilitar a integração das famílias no coletivo é
sua organização em «núcleos de família», formados por vizinhos. A agrovila é formada
por fileiras de casas, cada uma dando origem a um núcleo. Este desenvolve leituras,
discute os problemas vivenciados, a prestação de contas, o planejamento das
atividades. «Outro espaço para discussão é o restaurante coletivo. Durante o horário
do café da manhã fazem se consultas às pessoas, encaminhamentos e informes».
Estas modalidades de integração suprem as deficiências das assembléias, feitas
mensalmente, pois, conforme afirma o presidente da cooperativa, «a participação das
pessoas não é o que deveria ser, elas têm dificuldades para discutir, opinar» (Souza,
1999: 149).

Esta parece ser uma dificuldade em muitos empreendimentos solidários, não só em


cooperativas rurais do MST. Camponeses e operários são pessoas humildes, que se
intimidam diante dum auditório maior e por isso raramente ou nunca falam em
assembléias. Mas tentam manifestar seus pontos de vista através de companheiros
mais desinibidos, com os quais confabulam em grupos menores. Daí a importância dos
núcleos de família e da confabulação informal durante o café da manhã, no refeitório.

3.4. Conclusões
Os três estudos de caso evidenciam as dificuldades de implantar formas avançadas de
cooperação, nos assentamentos orientados pelo MST, tanto por questões culturais - a
preferência da maioria dos assentados pela agricultura familiar, em moldes tradicionais
- como por questões econômicas. As famílias se deixaram convencer da superioridade
das cooperativas de produção pela sua maior facilidade em adquirir equipamentos e
máquinas portadoras de tecnologia avançada. Esperavam que o «sacrifício» de seus
recursos do Procera, cedidos ao fundo comum, resultasse em receitas abundantes, o
que em nenhum dos dois casos - Cooproserpe e Copavi - aconteceu, ao menos nos
primeiros anos de vida das cooperativas. A frustração destas expectativas talvez tenha
sido o mais importante dos motivos para a desistência das famílias que optaram pela
produção individual e comercialização associada.

O I Censo da Reforma Agrária - 1997 mostra o predomínio nos assentamentos da


produção individual: 93,96% contra apenas 1,21% de produção coletiva e 4,82% de
forma mista (Souza, 1999: 150). Os estudos de caso dão uma idéia da dinâmica que
levou a esta situação. O mesmo censo dá outra informação relevante: a origem social
dos assentados. 66,13% eram agricultores ou camponeses, 5,67% trabalhadores
rurais, «sendo o restante distribuído entre outras atividades rurais, boia-fria, motorista,
mecânico, pedreiro e carpinteiro» (Souza, 1999: 152-153).

Talvez as seguintes considerações da pesquisadora sirvam de conclusão:

No interior do MST, a proposta de tais coletivos surge tendo como objetivo central a
mudança da sociedade e do sistema capitalista. [...] No entanto, as formas
idealizadas de coletivos (totalmente coletivos) não estão sendo reproduzidas nos
assentamentos, enquanto que as associações de produção e de comercialização
estão se proliferando. O interessante é questionar o porquê desta ocorrência e qual a
influência do processo de socialização política vivenciada no momento do
acampamento, pela maioria dos assentados. De um lado, conforme depoimentos dos
assentados, estes sentem maior liberdade nos seus lotes individuais, embora saibam
que, para sobreviver, no lote, é necessário estar agrupado. Por outro lado, destacam-
se os fatores sociais e culturais, como influenciadores desta resistência ao coletivo.
Por exemplo, enquanto no coletivo todos trabalham ‘igualmente’, sendo organizados
em setores e coordenações de grupos, nos lotes individuais, quem orienta o trabalho
e as ordens geralmente é o marido ou um filho mais velho ou ainda a esposa, em
alguns casos. No coletivo, a divisão do trabalho e a repartição das sobras é
semelhante ao que ocorre numa empresa e as normas de funcionamento são
aplicadas de acordo com o previsto no regimento interno. Ou seja, os coletivos
exigem uma ruptura sócio-cultural de um paradigma anterior de trabalho e de família.
O ‘novo’ é tido como algo muito diferente do vivido anteriormente, principalmente para
os ex-pequenos agricultores. Geralmente é bastante aceito entre os jovens, cujo
interesse é trabalhar com maquinários e industrialização de produtos. [ênfase minha]
(Souza, 1999: 163-164).

A frase final sublinhada abre a perspectiva de que a aceitação do coletivo por parcela
crescente dos assentados seja só uma questão de tempo.

4. Autogestão como arma na luta contra a pobreza - cáritas, ação da


cidadania e incubadoras de cooperativas.
4.1. A Cáritas

A Cáritas Brasileira é uma instituição da Igreja Católica, sendo parte da rede de Cáritas
Internacional. Ela tem por fim dar sustentação à ação social da Igreja e está
orgânicamente ligada à CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Tem um
secretariado nacional em Brasília, que coordena uma rede de Cáritas Diocesanas e
Regionais. A Cáritas desenvolve suas atividades com fundos gerados no Brasil pela
Campanha de Solidariedade, que é permanente, e com fundos doados pelas Cáritas e
outras instituições confessionais do 1º Mundo voltadas para a cooperação internacional.

Há que se distinguir nas ações da Cáritas três grandes ênfases [...]: a ênfase
assistencial, a promocional e a da solidariedade libertadora. A ênfase assistencial data
de 1956 [...] a Cáritas encarregou-se de articular as obras sociais de inspiração católica
para promover a distribuição dos donativos e alimentos, especialmente o leite em pó
americano. [...] A ênfase promocional tem início em 1966. As inquietações advindas
das contradições do programa de distribuição de alimentos no contexto do regime
militar instaurado resultam em processo de mudança [...] O lema ‘ensinar a pescar’
contrapunha-se ao ‘dar o peixe’, próprio da fase anterior. Experiências diversificadas de
ações comunitárias do tipo das comunidades eclesiais de base, das associações de
desenvolvimento comunitário, do cooperativismo, dão sustentação prática à reflexão
sobre o desenvolvimento.

[...] A ênfase à solidariedade libertadora, atual fase da Cáritas, privilegia um enfoque,


um ponto de partida sobre o qual atua seja nas situações de emergência, seja no apoio
às iniciativas comunitárias ou associativistas, seja no apoio às mobilizações populares
[...] A premência para implementar ações através de projetos que respondessem às
reais necessidades da comunidade levou à opção pela linha de apoio aos Projetos
Alternativos Comunitários (PACs) como expressão de compromisso social com o povo
e como uma demonstração visível de que os trabalhadores organizados e apoiados
têm uma saída para suas condições de miséria (Bertucci, 1996: 60-62).

Este relato sintetiza a imensa evolução da Igreja Católica duma ação meramente
assistencial a uma postura de crítica ao capitalismo, com a proposição de que a
solidariedade liberta. Ela implica numa tese ousada: a de que os trabalhadores, desde
que se organizem e granjeiem apoio, podem por si só superar a miséria. Uma das
implicações desta tese é que este apoio não tem de ser do Estado, pressuposto geral
de todas as correntes de esquerda até então. A Cáritas passou a apoiar milhares de
Projetos Alternativos Comunitários (PACs) por todo Brasil, desde 1984, contando com
a ajuda da Cáritas Suiça, Miserior, Cebemo, Entraide e Fraternité e Cáritas Alemã.

A estratégia de vida dos milhões de excluídos passou a ser considerada como


‘alternativa de sobrevivência’. Alternativos foram também os novos movimentos sociais
que emergiram como forças sociais capazes de se confrontar com o autoritarismo
presente. [...] Alternativos foram ainda os novos partidos políticos oriundos dos
movimentos sociais. Como foram também alternativas as Comunidades Eclesiais de
Base [...]. Aos excluídos cabia a busca de soluções para seus problemas de forma
alternativa àqueles tradicionais tentadas até então. Nem o assistencialismo, nem o
clientelismo, nem as soluções vindas de cima para baixo. Nesse contexto, nasce a
proposta dos PACs, na busca de soluções criativas e autônomas para os problemas
dos excluídos (Bertucci, 1996: 63).

O sentido revolucionário emprestado à palavra «alternativo» testemunha a notável


guinada da Igreja provocada pela opção preferencial pelos pobres, isto é, pelos não
possuidores de meios de produção. A nova postura de início não tinha um programa
claro de como os trabalhadores podem sair da miséria pelas suas próprias forças. Por
isso ela convoca as próprias comunidades a encontrar as saídas, pela aplicação do
antigo mas ainda hoje indispensável método de ensaio e erro, através duma vasta
multiplicação de diferentes «experiências».

Os PACs foram classificados em 4 categorias: «comunitários», subdivididos em


produtivos e de prestação de serviços, de apoio a «movimentos populares», à «ação
sindical» e projetos de «assistência e promoção social». Foram estudados 252 PACs
implantados entre 1989 e 1992, que correspondem a 25% do total apoiado pela
Cáritas, que estima-se ter sido até 1992 de aproximadamente mil. A metade dos PACs
estudados eram comunitários, 82% deles de atividades de ocupação e renda. Isso
significa que cerca de 100 dos 252 PACs eram associações ou cooperativas solidárias.
Uma das conclusões do estudo é que os PACs tendem a ser cada vez mais projetos
produtivos, desejados como meios de melhorar a renda de forma associativa. Grande
parte deles é rural e coincide com a experiência do MST, vista acima.

Dadas as dificuldades existentes, os projetos urbanos representam maior desafio.


Estão voltados inteiramente para a realidade do mercado, devem superar as limitações
tecnológicas, desenvolver metodologias de capacitação gerencial para o
desenvolvimento de habilidades empreendedoras, criar economia de escala através de
rede de pequenos produtores e de apoio à cadeia produtiva (Bertucci, 1996: 80).

Esta conclusão deixa patente que um certo número de PACs produtivos urbanos
vingou, inseriu-se na economia urbana e se volta ao mercado em busca de meios para
se tornar competitivo, disputando compradores às empresas capitalistas comparáveis.
É para isso que se sentem desafiados a se capacitar gerencialmente, criar economia
de escala e assim por diante. A tese de que a solidariedade liberta começou a se
comprovar na prática.

Da grande variedade de experiências representadas pelas PACs, a que já em meados


dos anos 90 revelou maior potencial libertador era dos projetos comunitários
produtivos, tanto no campo como na cidade. No campo, boa quantidade dos PACs
foram desenvolvidos em assentamentos do MST. Nas cidades, surgiram a partir da
ação da Cáritas, cooperativas e grupos de produção associada que serviram para
reinserir à produção pessoas socialmente excluídas e empobrecidas. Não espanta que,
como escreveu Bertucci (em 1996), «mais recentemente os PACs passaram a ser
sinônimos de projetos produtivos».
Por ai se entende que, feita esta avaliação, os PACs produtivos tenham se
multiplicado. Referindo-se apenas ao Rio Grande do Sul, Gaiger (1996: 271) diz:
«Estima-se hoje [1999] que a Cáritas tenha promovido perto de 750 projetos
comunitários, atingindo diretamente cerca de 17 mil pessoas» (1996: 269). E mais
adiante:

Os projetos alternativos, em sua maioria, são recentes na história da Cáritas - e do


Estado, vale acrescentar - e denotam uma aproximação maior entre as pastorais
sociais, organizações não governamentais e movimentos populares, fato que se deu no
curso da última década e que foi penetrando lentamente nos diversos ambientes da
Igreja Católica. De certo modo, como concepção e foco principal da ação, os últimos 15
anos desse trabalho assistiram a uma sucessão temporal entre os projetos
assistenciais, de promoção humana e alternativos (1996: 271).

4.2. A Acção pela Cidadania Contra a Miséria e pela Vida

O desenvolvimento de experiências de economia solidária sofreu forte aceleração em


1994, quando a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida [ACCMV] resolveu
mudar sua tática e, em vez de apenas distribuir alimentos, passou também a fomentar
a geração de trabalho e renda. Ela completou em dois anos a mesma evolução que a
Cáritas havia feito em quinze, ao passar duma ação assistencial à «solidariedade
libertadora».

A atividade da Cáritas, apesar de sua amplitude territorial, era desconhecida do grande


público, ficando de certo modo restrita à Igreja e às comunidades mobilizadas por ela.
A ACCMV era um amplo movimento de massas, o maior do Brasil desde a luta pelas
eleições diretas, em 1985, no ocaso da ditadura militar. É curioso notar que de sua
Secretaria Executiva Nacional tomou parte a Cáritas (representando a CNBB), ao lado
da OAB, da CUT, do INESC, COFECON e da ANDIFES, o que leva a crer que a
atividade da Cáritas no campo da economia solidária tenha influído na guinada da Ação
a favor dela.

A mobilização lograda pela Ação foi desde o seu início muito grande. Em Agosto de
1993, estimava-se que a ACCMV contava com 200 comitês espalhados por todo país.
Este número pulou para mais de 3.000 no mês de Outubro do mesmo ano. (...) A
Campanha toma conta do Brasil: realizam-se espetáculos ao ar livre ou em estádios e
ginásios, com grandes nomes da música popular, objetivando a arrecadação de
alimentos para o Natal (Gohn, 1996: 33).

A questão da geração de empregos foi uma bandeira acionada ainda em Novembro de


1993, durante reunião de Betinho com vários secretários da pasta do Trabalho para
discutir o problema do desemprego no país. Também a Prefeitura Petista de Santos,
naquele mês deu início a uma campanha de geração de empregos em sintonia com a
Campanha. A opção pela questão do emprego foi estratégica. Ela visava, dum lado,
responder às críticas ao assistencialismo associado à distribuição de cestas e, de
outro, dar um sentido novo à mobilização, de forma que os comitês continuassem
mobilizados após o Natal (Gohn, 1996: 34).

Os resultados da opção pelo emprego por parte de Betinho e da Ação da Cidadania, ao


que sabemos, não foram objeto de qualquer levantamento. Cumpre notar que a
Campanha era naturalmente descentralizada e não há registro de tudo o que se fez por
sua iniciativa. Mas, pelo menos uma ocorrência importante e prenhe de conseqüências
pode ser destacada: a formação da Cooperativa de Manguinhos, no Rio de Janeiro.

Nesta região, em que se localiza a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), moram 35 mil
pessoas, parte das quais em 10 favelas formando o Complexo de Manguinhos.
Estando a população favelada em grande parte desempregada, pobre e carente, o
maior empregador dos jovens acabava sendo o narcotráfico. Em 1994, estourou a luta
pelos pontos de tráfico de drogas e de armas e as balas perdidas dos tiroteios
acabaram atingindo a Fiocruz, sobretudo a Escola Nacional de Saúde Público (ENSP),
cujas janelas blindadas até hoje dão um mudo testemunho da ameaça à integridade
física a que alunos e professores estavam expostos.

Esta situação mobilizou os corpos docente e discente da ENSP, que decidiram abrir-se
à comunidade, procurando entender o que ocorria e contribuir para o seu
equacionamento. [...] Uma ampla reunião, reunindo cerca de 80 representantes das
comunidades do Complexo de Manguinhos, selou um acordo de enfrentamento
compartilhado da situação. [...] A primeira iniciativa implementada foi, então, o fomento
à constituição de uma Cooperativa de Trabalho (denominada COOTRAM), no final de
1994, visando colaborar no enfrentamento do desemprego e da pobreza. [...]
Participando desde o seu início do Comitê de Entidades no Combate à Fome e Pela
Vida (COEP), a Fiocruz solicitou o apoio das entidades integrantes do movimento e
recebeu o imediato suporte da Gerência de Cooperativismo do Banco do Brasil para
desenvolver a capacitação em cooperativismo, o que foi realizado pelo Instituto
Superior de Cooperativismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É
relevante se destacar como as condições materiais e de projeto social compartilhado
pelas entidades componentes do COEP foram importantes para impulsionar a iniciativa
da Fiocruz (Buss, 2000).

A Cootram foi contratada pela Fiocruz, que reune uma quantidade ponderável de
instituições de ensino, pesquisa e manufatura de vacinas, para reciclar o lixo e prestar
serviços de jardinagem e limpeza dos prédios do campus de Manguinhos. Além disso,
a Cootram também montou uma oficina de costureiras.

A redução de gastos da Fiocruz com as atividades de limpeza e jardinagem foi de


cerca de 15% e cada cooperativado passou a receber o dobro do que recebiam os
trabalhadores contratados das antigas empresas privadas lucrativas prestadoras
daqueles serviços. Tal resultado decorreu da subtração do lucro antes privatizado e
sua apropriação pela empresa privada, mas de posse coletiva (a cooperativa) e pelo
tomador dos serviços da mesma (a Fiocruz). [...] Iniciado com 200 integrantes, a
Cootram fechou o ano de 1999 com cerca de 1.200 trabalhadores cooperativados,
atuando em áreas de trabalho de baixa densidade tecnológica (...) e, de forma
independente das relações com a Fiocruz, a produção de material de construção e as
oficinas de corte e costura. [...] O material de construção produzido tem qualidade
equivalente e preço significativamente mais baixo, sendo utilizado para a melhoria das
habitações populares e da infra-estrutura urbana. Os recursos financeiros nascem e
circulam na própria comunidade. Trata-se, segundo muitos analistas, de uma das mais
exitosas experiências de cooperativas populares de trabalho do país (Buss, 2000: 120-
128).

O caso da Cooperativa de Trabalho de Manguinhos é emblemático sob vários


aspectos. Em primeiro lugar, porque nasce duma iniciativa da Fiocruz enquanto
integrante da Campanha contra a fome, exatamente quando esta prioriza a opção pela
economia solidária como meio de combate à miséria. Em seus desdobramentos, a
COEP continuará participando ativamente, como será visto a seguir.

Em segundo lugar, o grande êxito da Cootram se deveu à abertura do mercado de


serviços da Fiocruz. Tudo leva a crer que estes mesmos serviços já eram feitos pelos
moradores das favelas, na condição de assalariados das empresas privadas
prestadores dos mesmos. Mas, ao substituir a empresa capitalista pela solidária, a
Fiocruz pôde fazer uma bela economia, enquanto os cooperadores tiveram o seu
ganho dobrado. Não resta dúvida que na prestação de serviços de baixa densidade
tecnológica, a cooperativa de trabalho, ao menos em Manguinhos, é mais competitiva
do que qualquer empresa capitalista análoga.

4.3. Incubadoras de Cooperativas

Em terceiro lugar, o processo de formação da Cootram envolveu pela primeira vez


universidades, no caso a ENSP e a UFSM. Uma parte da elite científica e educacional
do Brasil resolveu engajar-se para ajudar a construir a economia solidária. O passo
seguinte foi padronizar esta ajuda na forma das Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares. A primeira ICTP foi criada, em 1995, na COPPE/UFRJ, o
centro de pós-graduação de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
mediante convênio da COPPE com a FINEP e a Fundação Banco do Brasil, sendo as
duas últimas financiadoras da nova entidade. No segundo semestre de 1995, a
Incubadora apoiou a implantação da Cootram, juntamente com a Fio Cruz e a
Universidade Federal de Santa Maria. A partir de 1996, ela iniciou a formação de
cooperativas na Baixada Fluminense e nas favelas cariocas.

A Incubadora de Cooperativas Populares veio preencher uma lacuna vital no processo


de formação de cooperativas e grupos de produção associada, iniciada pela Cáritas e
expandida pela ACCMV: a de prestar assessoria contínua aos empreendimentos
solidários, divulgando os princípios do cooperativismo entre grupos interessados,
ajudando-os a organizar atividades produtivas ou a prestação de serviços, a apurar as
técnicas empregadas, a legalizar as cooperativas, a buscar mercados e financiamento,
etc. Além disso, a própria Universidade pode contratar cooperativas para a prestação
de serviços de limpeza e congêneres, com proveito próprio além de viabilizá-las e
melhorar o rendimento dos trabalhadores. A COPPE e em seguida outras unidades da
UFRJ e o Hospital Pedro Ernesto da UERJ fizeram o isso (ITCP, s/d: 20-26).

Uma vez reconhecido o sucesso da ITCP do Rio de Janeiro, as entidades


patrocinadoras - FINEP, COEP (Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e
pela Vida), a Fundação Banco do Brasil e a COPPE - resolvem ampliar o número de
incubadoras em universidades, lançando em 1998 o Programa Nacional de
Incubadoras de Cooperativas (PRONINC). A FINEP e a Fundação Banco do Brasil se
propõem através deste Programa a financiar a formação de mais cinco incubadoras.
Naquele momento já estava formada uma incubadora na Universidade Federal do
Ceará, de modo que o apoio destas entidades se estenderia a mais quatro novas
incubadoras, criadas nas Universidades Federal de Juiz de Fora, Federal Rural de
Pernambuco, Estadual da Bahia e de S. Paulo.

As novas incubadoras recebem sua formação tecnológica inicial da do Rio de Janeiro.


As equipes, formadas por professores, técnicos e estudantes de graduação e pós-
graduação, organizam seminários conduzidos por Gonçalo Guimarães e colegas
daquela incubadora, onde a filosofia da incubação e os princípios do cooperativismo
popular (idênticos aos da economia solidária) são transmitidos e discutidos. Mas o
número de universidades interessadas em criar incubadoras ultrapassa o fixado pelo
PRONINC. Assim, surgem novas incubadoras nos últimos dois anos nas Universidades
Federal do Paraná, de Santa Catarina, do Pará, do Amazonas, Regional de Blumenau
(SC), do Vale do Rio dos Sinos (RS), Católica de Pelotas (RS), Fundação São João del
Rei (MG), Fundação Santo André (SP), Ponta Grossa (PR), Londrina (PR) e Maringá
(PR).

As Incubadoras Universitárias decidem integrar uma rede para a troca de experiências


e a ajuda mútua tendo em vista estabelecer em cada universidade não só um centro de
extensão (em que se enquadra a incubação) mas também de ensino e pesquisa. O
ensino é necessário para formar quadros para as próprias cooperativas e para
entidades de apoio à economia solidária que continuam se multiplicando, como
veremos adiante. A pesquisa é indispensável para se conhecer a realidade da
economia solidária no Brasil e também no exterior, de modo a sistematizar a análise e
avaliação das experiências para gerar proposições teóricas que sirvam para tornar a
economia solidária mais autêntica e mais efetiva.

A rede de incubadoras, formada em 1999, decide aceitar o convite da Fundação


Unitrabalho de se integrar a ela como um dos seus programas permanentes. À
Unitrabalho estão filiadas mais de 80 universidades de todo o Brasil, sendo sua
finalidade colocar os serviços das universidades à disposição dos trabalhadores e suas
organizações de classe. Todas as universidades que têm incubadoras estão na
Unitrabalho e muitas outras filiadas estão interessadas em criar suas incubadoras. A
expansão da rede de incubadoras universitárias se dá na mesma medida em que
empreendimentos solidários vão se multiplicando por todas as partes do Brasil.
5. Os sindicatos assumem a economia solidária

Atingidos frontalmente pela crise do mundo do trabalho, que varre o país na década
dos 90, os sindicatos começam a reagir pontualmente, já que sua prioridade inicial era
proteger os direitos trabalhistas, ameaçados de revogação ou «flexibilização» pelo
governo Collor e seus sucessores. Em todos casos de transformação de empresas
falidas ou em vias de falir em autogestões, o sindicato teve de assumir a liderança do
processo, freqüentemente ao lado da ANTEAG. O êxito de diversas cooperativas
formadas assim, possibilitando a preservação de numerosos postos de trabalho, levou
cada vez mais sindicatos a se empenharem na luta pela criação de novas empresas
solidárias.

Mas, o apoio a cooperativas autogestionárias formadas por ex-assalariados sofreu


resistência de sindicalistas, que identificavam o processo com a terciarização da mão-
de-obra, que se realizava cada vez mais mediante a formação de pseudo cooperativas,
com a única finalidade de roubar dos trabalhadores os seus direitos trabalhistas. Como
esta identificação (de cooperativas autênticas com as falsas) é absurda, a questão
pôde ser esclarecida através do melhor conhecimento da natureza das cooperativas
autênticas. Surgiu, no entanto, uma outra oposição à economia solidária, de natureza
ideológica, que apontava a necessidade de reforçar o trabalho assalariado por ser a
base social dos sindicatos e porque só a classe operária assalariada teria por missão
histórica derrubar o capitalismo e instaurar o socialismo. As cooperativas eliminariam o
caráter de classe dos trabalhadores, tornando-os patrões e operários ao mesmo tempo.
Também esta argumentação se baseia na ignorância do que é a economia solidária. As
cooperativas de produção e de trabalho são chamadas de «operária» - «worker
cooperatives» - por causa de sua ligação orgânica ao movimento operário. A ANTEAG,
a UNISOL e o MST não são menos operários e socialistas do que os sindicatos mais
militantes. Além disso, os membros do sindicato que formam cooperativas operárias
devem continuar a pertencer ao sindicato, que deveria abrir suas portas a todos os
trabalhadores que não exploram trabalho alheio e queiram se filiar. O fato de no Brasil
a lei definir o sindicato como representante de trabalhadores assalariados não deveria
ser impedimento para que sindicatos ampliem sua abrangência, passando a
representar o conjunto dos que dependem de seu próprio trabalho para subsistir.

A discussão sobre a economia solidária avançou, como visto acima, nos sindicatos do
ABC paulista e também na CUT, a maior e mais combativa central sindical do Brasil.
No final de 1998, a executiva nacional da CUT aprovou a criação dum grupo de
trabalho que iria iniciar as discussões sobre a política da CUT para a economia
solidária. Deste GT foi elaborado um projeto que está sendo desenvolvido em parceria
com a Organização Intereclesiástica para a Cooperação e o Desenvolvimento (ICCO)
da Holanda, a Fundação Unitrabalho e o Departamento Intersindical de Estudos
Sócioeconômicos (DIEESE). Assim foi construído o Projeto de Desenvolvimento
Solidário da CUT. Em linhas gerais, este projeto desencadeou um processo de
discussões em todo o país, culminando em 1999 com um seminário internacional, cujo
objetivo principal foi debater e lançar a Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT
(Magalhães e Todeschini, 2000: 138).
Isso não quer dizer que a resistência à economia solidária no seio da CUT tenha
cessado, mas a maioria tem se manifestado consistentemente a favor duma atuação
cada vez maior da central no apoio aos empreendimentos solidários que trabalhadores
vêm criando pelo Brasil afora. A ADS (Agência de Desenvolvimento Solidário) vem se
dedicando a preencher uma lacuna que é a falta dum sistema de financiamento às
cooperativas autogestionárias. Em colaboração com o Rabobank, um grande banco
holandês possuído e controlado por cooperativas de crédito, e o BNDES, a ADS
desenvolveu um projeto de rede de crédito solidário, formado por numerosas
cooperativas de crédito e por um banco cooperativo, com fôlego para financiar
investimentos de vulto por parte de cooperativas de produção. A realização deste
projeto representará um imenso salto de qualidade no desenvolvimento da economia
solidária em nosso país.

Vale a pena registrar o surgimento duma rede de cooperativas de crédito no sul, o


sistema Cresol, que veio a atender a necessidade de fontes próprias de financiamento
dos agricultores familiares do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As
cooperativas de crédito do sistema tradicional são todas ligadas a cooperativas
agrícolas dominadas em geral pelo capital. As Cresol são independentes,
autogestionárias.

Os princípios e objetivos orientadores das Cresol são: interação solidária,


democratização e ampliação do acesso ao crédito e aos serviços bancários pelos
agricultores familiares, descentralização e horizontalização, profissionalização do
crédito, transparência e contribuição para o desenvolvimento sustentável (social,
econômico e ambiental). [...] Em Dezembro de 1999, ao completar quatro anos de
funcionamento, o Sistema Cresol era formado por 28 cooperativas [...] além de mais
duas da Cresol esperando liberação pelo Banco Central. Está presente diretamente em
mais de cem municípios [...]. O número de associados chega a 10.500 famílias de
agricultores. [...] As cooperativas são criadas e compostas por agricultores familiares,
sendo fortalecida por sindicatos, associações e outras formas de organização dos
agricultores familiares da região onde atuam (Bittencourt, 2000: 197-199).

6. Conclusões

Este balanço já nasce desatualizado, pois se baseia em dados de há um ou dois anos


atrás. A economia solidária se desenvolve tão rapidamente no Brasil, que qualquer
balanço tem de ser considerado provisório. O que impulsiona este desenvolvimento
não é mais apenas o agravamento do desemprego em massa e da exclusão social.
Este foi muito provavelmente o principal fator nos anos 80 e início dos 90, quando a
Cáritas e alguns sindicatos começaram a apoiar sistematicamente os esforços de
trabalhadores e famílias marginalizadas de se libertar da pobreza através da
solidariedade. Depois surgiram a ANTEAG, a Campanha contra a Fome, as
Incubadoras de Cooperativas Populares, a Agência de Desenvolvimento Solidário.
Faltaria referir ainda a formação dos Fóruns Estaduais de Cooperativas, no Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, o crescente desenvolvimento de cursos de
diferentes formatos de economia solidária e assim por diante.

O que impele a economia solidária a se difundir com força cada vez maior já não é
mais a demanda das vítimas da crise mas a expansão do conhecimento do que é e a
tecnologia social, econômica e jurídica de implementação da economia solidária.
Centenas de iniciativas, que tendiam antes a ficar isoladas e por isso debilitadas, a
partir dos últimos anos passam a receber a atenção e o apoio de instituições
especializadas como a ANTEAG, MST, Incubadoras, Unisol, ADS e Cáritas, entre
outras. O que este breve relato deixou claro é que a economia solidária já firmou sua
identidade e por causa disso está em condições de se estruturar, em nível local,
regional e nacional.

A construção dum modo de produção alternativo ao capitalismo no Brasil ainda está no


começo, mas passos cruciais já foram dados, etapas vitais foram vencidas. Suas
dimensões ainda são modestas diante do tamanho do país e de sua população.
Mesmo assim, não há como olvidar que dezenas de milhares já se libertaram pela
solidariedade. O resgate da dignidade humana, do auto-respeito e da cidadania destas
mulheres e destes homens já justifica todo esforço investido na economia solidária. É
por isso que ela desperta entusiasmo.

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UNICAMP.
AS COOPERATIVAS E A EMANCIPAÇÃO DOS MARGINALIZADOS: ESTUDOS DE
CASO DE DUAS CIDADES NA ÍNDIA

Sharit Bhowmik

Introdução

Este capítulo procura analisar o papel dos trabalhadores cooperativos no


empoderamento de sectores marginalizados da classe trabalhadora. Exemplificaremos
esta situação com a ajuda de dois estudos efectuados em duas diferentes metrópoles
na Índia. Estas são Ahmedabad, na Índia Ocidental, e Calcutá, na Índia Oriental.
Estudaremos as cooperativas formadas por colectores de lixo em Ahmedabad e
cooperativas de trabalhadores em Calcutá. Estes casos mostram-nos como os
trabalhadores marginalizados pela sociedade tentam, através da acção colectiva,
proteger o seu direito a um emprego lucrativo.

O processo de globalização, através dos ajustamentos estruturais, afectou


desfavoravelmente a classe trabalhadora em todo o mundo. O trabalho em muitos dos
países desenvolvidos ressentiu-se, uma vez que a reestruturação da indústria
conduziu, invariavelmente, ao desemprego, originado pelo encerramento das unidades
industriais «não lucrativas». Na Índia, a Declaração sobre Políticas Industriais,
efectuada no Parlamento a 24 de Julho de 1981, estava em sintonia com o processo
global de ajustamento estrutural. Duas características evidentes desta política são: em
primeiro lugar, minar o sector público e, em segundo lugar, a redução do emprego no
sector organizado e formal. Em geral, os sindicatos opuseram-se a esta política e
organizaram greves nacionais, o encerramento de fábricas e comícios. Tudo isto teve
um impacto nulo ou reduzido nas decisões do governo.

Os principais problemas são enfrentados pelos trabalhadores das pequenas e médias


indústrias, onde as disposições legais respeitantes à segurança no emprego e à
segurança social não são aplicadas com o mesmo rigor. Estes trabalhadores
constituem o grosso da mão-de-obra da indústria do país. É nestas áreas que são
necessários meios alternativos de produção. O governo mostrou algum interesse em
encorajar o controlo das empresas por parte dos trabalhadores. O parágrafo 16 da
Declaração sobre Políticas Industriais estabelece: «a participação dos trabalhadores na
administração será incentivada. Os trabalhadores das cooperativas serão encorajados
a participar em programas concebidos para regressarem às empresas em dificuldades
económicas». Até agora, isto parece pouco credível, dado o governo não ter tomado
qualquer posição para encorajar estas cooperativas. Simultaneamente, existem
algumas cooperativas que surgiram através da luta dos trabalhadores para manter o
emprego e a produção. Há alguns exemplos de cooperativas de trabalhadores em
plantações de chá, minas e unidades industriais. Os trabalhadores da Sonali Tea
Estate, uma plantação de chá que emprega cerca de 500 trabalhadores no distrito de
Jalpaiguri no estado de Bengal Oeste, formaram, em 1974, a primeira cooperativa de
trabalhadores da indústria do chá. Em Tripura, um Estado no Nordeste da Índia, cinco
plantações de chá são gerida com sucesso, desde 1980, por estes trabalhadores
(Bhowmik, 1992). Em Dali Rajhara, próximo da Plantação Bhilai Steel Plant, no Estado
de Chattisgarth, na Índia Central, existem seis cooperativas de trabalhadores que
trabalham no ferro fundido ou na extracção de minério (Bhowmik, 1994). Desde o início
da década de 80, existem em Calcutá, a capital do estado de Bengal Oeste, pelo
menos 20 unidades industriais que são geridas por trabalhadores cooperativos. Todas
estas cooperativas sobrevivem com pouco ou nenhum auxílio financeiro por parte do
governo. O facto de estas cooperativas terem sobrevivido sem ajuda externa durante
quase duas décadas, ou mais, é por si só uma prova do seu sucesso. Neste capítulo
tentamos estudar algumas destas cooperativas.

A par do desemprego causado pelo encerramento de indústrias, há um número cada


vez mais elevado de pessoas que se deslocam para as áreas urbanas, especialmente
as metrópoles, em busca de trabalho. Estas pessoas saem das áreas rurais, ou
pequenas cidades, devido à falta de qualquer meio de sobrevivência. Possuem poucas
qualificações que lhes permitam competir no mercado de trabalho e procuram qualquer
tipo de trabalho que afaste a fome. Estas são as formas mais degradantes de trabalho
por conta própria e abrangem a maioria dos pobres urbanos. Contudo, podemos
observar, tal como sucede no caso das mulheres colectoras de lixo em Ahamedabad,
que eles também podem melhorar as suas condições de vida através da acção
colectiva. Porém, antes de discutirmos estes casos, analisaremos o papel das
cooperativas na ajuda aos marginalizados.

1. As Cooperativas e os trabalhadores marginalizados

As origens da cooperação, enquanto movimento para a modificação e melhoria das


condições económicas e sociais de sectores menos desenvolvidos da sociedade,
podem ser encontradas, na primeira metade do século XIX, na filosofia de Robert
Owen. A primeira cooperativa nasceu na Inglaterra, em 1844; foi criada uma loja
cooperativa por iniciativa dos tecelões desempregados de Toad Lane, em Rochdele. O
grupo ficou conhecido como Equitable Pionneers of Rochdale e o seu objectivo era
fornecer, a preços justos, produtos de consumo aos trabalhadores. Os Pioneiros de
Rochdale entendiam as cooperativas como um primeiro passo para atingir maiores
objectivos, nomeadamente uma sociedade socialista baseada na democracia
económica. Rochdale serviu de modelo para muitas outras cooperativas em Inglaterra,
nos Estados Unidos da América e na Europa. Os princípios básicos de funcionamento
destas cooperativas foram adoptados pelo movimento cooperativo em todo o mundo.
Os princípios são: um voto por cada membro (e não de acordo com o número de
acções, como sucede nas sociedades anónimas); as vendas são efectuadas de acordo
com os preços do mercado; a distribuição dos lucros entre os accionistas tem como
base as acções detidas; e a existência de um número limitado de acções por pessoa.
O movimento cooperativo nasceu da necessidade de alterar a sociedade existente
através de uma ideologia baseada no igualitarismo. Os primeiros cooperadores, como
os Pioneiros de Rochdale e Robert Owen na Inglaterra, Schultz e F. W. Raiffeinsein na
Alemanha, propagaram o movimento cooperativo como uma alternativa à natureza
exploradora da sociedade capitalista do século XIX na Europa. Para eles, a cooperação
era um veículo através do qual a exploração capitalista podia ser substituída por uma
sociedade justa e igualitária constituindo as cooperativas um instrumento de
transformação dessas sociedades. Assim, os objectivos das cooperativas diferiam não
só dos objectivos das empresas privadas, mas também das formas tradicionais de
troca e relações interpessoais.

O ponto de vista de alguns dos primeiros promotores das cooperativas, como Robert
Owen, eram criticados porque, uma vez que viam as cooperativas como uma fonte de
transformação social, acreditavam que o movimento teria sucesso se o capital e o
trabalho cooperassem nesta transformação. Karl Marx, especialmente, era um pouco
crítico em relação a este ponto de vista. Contudo, o próprio Karl Marx não estava
contra a formação de cooperativas de trabalhadores. Com efeito, ele defendia que os
trabalhadores cooperativos podiam desempenhar um importante papel na
emancipação da classe trabalhadora, em relação ao capitalismo, desde que fossem
aliados do movimento trabalhista. A principal contribuição destas instituições reside na
sua habilidade para demonstrar de forma prática que os trabalhadores são capazes de
controlar e gerir os meios de produção. Nas suas instruções aos delegados presentes
no I Congresso da Associação Internacional de Trabalhadores em Genebra, em
Setembro de 1866, ele referiu

Nós reconhecemos o movimento cooperativo como uma das forças transformadoras


da presente sociedade baseada no antagonismo das classes. O seu grande mérito é
mostrar, em termos práticos, que o presente sistema depauperado e déspota da
subordinação do trabalho ao capital pode ser suplantado pelo sistema republicano e
beneficente da associação de produtores livres e iguais» (Marx e Engels, 1976: 81).

Assim, Marx via as cooperativas como uma forma de emancipação para os


trabalhadores oprimidos. As cooperativas transmitiam maior confiança ao trabalhador
comum quando este tomava consciência que podia transformar as relações sócio-
económicas prevalecentes através da acção colectiva. O Comité sobre Princípios
Cooperativos, nomeado, em 1965, pela Interbational Co-operative Alliance (ICA), tinha
uma visão idêntica. Uma cooperativa, referiam eles,

existe para colocar pessoas comuns no efectivo controlo dos mecanismos da vida
económica moderna [...] ela tem de dar ao indivíduo, muitas vezes reduzido a um
papel insignificante nessa máquina, uma oportunidade de se manifestar, ser uma voz
nos negócios e destinos da sua cooperativa e ter liberdade para exprimir a sua
opinião» (NCUI, 1969: 20).

Deste modo, as cooperativas, se forem geridas democraticamente, podem ajudar a


reduzir a alienação entre os trabalhadores. Assim, não é esperado que as cooperativas
funcionem como sociedades de benefícios mútuos. Para além disso, elas possuem
obrigações sociais que estão traduzidas nos princípios da cooperação. Quando se
debruçou sobre este aspecto, a Comissão sobre Princípios Cooperativos referiu:

A cooperação, nos seus melhores propósitos, vai além da promoção dos interesses
dos membros enquanto indivíduos... pelo contrário, o seu objecto é promover o
progresso e bem estar da humanidade. É este objectivo que torna a sociedade
cooperativa algo diferente de um normal empreendimento económico e justifica estar
a ser testada, não só do ponto de vista dos seus valores morais e sociais que elevam
a vida humana acima do meramente material» (ibidem:10).

Nós precisamos de ter presentes estes objectivos enquanto analisamos a contribuição


das cooperativas. É o que tentaremos fazer na próxima secção.

2. Os colectores de lixo em Ahmedabad

Uma parte da população de todas as metrópoles ganha a vida a reciclar o lixo. A estas
pessoas é atribuído o estatuto mais baixo entre os pobres urbanos e economicamente
são os mais pobres entre os pobres. Muitos destes colectores de lixo são mulheres e
crianças. Eles deambulam pelas ruas a pé, procurando lixo, que colocam dentro de
sacos que transportam. Deixam as suas casas ao amanhecer, andando vários
quilómetros todos os dias, para poderem completar a sua recolha ao fim da tarde. Os
seus instrumentos de trabalho compreendem um saco para a recolha e uma vara para
espetar e remexer o lixo. No trabalho correm vários riscos: ficam com cortes e
ferimentos de objectos cortantes e bocados de vidro ou adquirem no lixo alergias na
pele causadas por lixos químicos. Depois de terminada a recolha do dia, os colectores
separam os materiais e vendem-nos aos comerciantes. O que recebem como
pagamento pela recolha é muito pouco, vivendo estas pessoas no limiar da pobreza. A
condição dos colectores nas cidades indianas parece ser pior do que nas suas
homólogas da Colômbia, que se deslocam em carroças puxadas por animais enquanto
procuram lixo reciclável.

Estes colectores de lixo estão de facto a servir as necessidade dos cidadãos pois
enquanto trabalham para sobreviver, estão a limpar o lixo das ruas. Infelizmente, a
polícia e as autoridades municipais não os vêem desta forma. São perseguidos pelas
autoridades urbanas, enfrentam frequentes ameaças e sofrem mesmo agressões por
parte das autoridades. Os sectores mais ricos da cidade consideram-nos um
aborrecimento público e, frequentemente, apresentam queixa contra eles.

A cidade de Ahamedabad é a capital de Gujarat, um dos Estados mais prósperos do


país. Esta cidade possuía um grande número de indústrias, mas era especialmente
conhecida por ser um centro de produção têxtil. Agora, o cenário é muito diferente. Nos
últimos quinze anos, sensivelmente, muitas fiações da cidade fecharam, ficando muitos
dos trabalhadores sem emprego. Muitas mulheres e filhos destes trabalhadores foram
forçados a «ir para as ruas apanhar lixo» (SEWA, 1999: 56). Tal como outras grandes
cidades, também Ahamedabad possui uma quantidade de colectores de lixo que
dependem da reciclagem para a sua existência. De há vinte e cinco anos para cá, uma
das actividades da Self-employed Women´s Association (SEWA), sediada em
Ahmedabad, é organizar as mulheres que apanham o lixo (ibidem). Iremos analisar
algumas das actividades deste sindicato na ajuda a este sector da classe trabalhadora.
As origens da SEWA encontram-se na Textile Labour Association (TLA). Este sindicato
foi criado por Mahatma Gandhi, em 1918, e tornou-se mais tarde o principal sindicato
de trabalhadores de Ahmedabd. Em 1968, o TLA decidiu impulsionar a Women´s Wing
do sindicato e convidou Ela Bhatt para a dirigir (Rose, 1992: 41). A principal actividade
desta Ala consistia em ministrar programas de formação, de modo a melhorar as
qualificações das mulheres pobres, para poderem ter meios de sobrevivência. O
aumento das qualificações significa, sobretudo, ensinar as mulheres a costurar à
máquina, encorajando-as a dedicarem-se a actividades como imprimir em tecidos e
peças de roupa a partir de moldes, tingir roupas e etc.. O seu trabalho era, quanto à
sua natureza, mais próximo do de serviço social. Depois de se ocuparem nestas
actividades por algum tempo, os organizadores perceberam que o tipo de actividade a
que elas se dedicavam só poderia proporcionar a estas mulheres marginalizadas um
auxílio parcial. O que elas precisavam era de uma organização que as pudesse reunir
em lutas colectivas pelos seus direitos básicos, como o salário mínimo, a saúde, a
educação, etc.

Em 1972, ao abrigo da Lei Sindical de 1926, a Women’s Wing decidiu transformar-se


num sindicato. Isto era mais fácil de dizer do que de concretizar. Apesar das
trabalhadoras estarem convencidas de que podiam formar um sindicato, o sindicato
Registrar pensava o contrário. A principal objecção era que não existia numa
associação de trabalhadores por conta própria uma relação entre empregado e
empregador. Foram precisos dez meses para convencer o Registrar que uma
associação desta natureza podia ser um sindicato (Bhat, 1997: 214). Actualmente, a
SEWA, com um total de quase 250.000 membros, é o maior sindicato do Estado.
Inicialmente, a SEWA possuía relações estreitas com a TLA, mas estas acabaram em
1981.

2.1. Sindicalizar os colectores de lixo

Para além de organizar as trabalhadoras por conta própria em sindicatos, a SEWA


promove cooperativas entre os seus membros para cobrir a variedade de serviços e
também para ajudar a proporcionar oportunidades alternativas de emprego. Em 2000, a
SEWA patrocinou mais de 80 destas cooperativas, cobrindo uma grande variedade de
áreas. Estas incluíam cooperativas industriais e de produtores e cooperativas de
serviços. Depois da formação de uma cooperativa, o sindicato presta assistência aos
seus membros, desenvolvendo as suas capacidades financeiras e de gestão: para
além de as ensinarem a ler e a escrever, organizam aulas para adultos onde estas
mulheres aprendem a fazer cálculos, sendo-lhes também ensinados, entre outras
coisas, os objectivos das cooperativas. Estas actividades ajudam a conferir o poder aos
seus membros para gerirem as cooperativas pelos seus próprios recursos, em vez de
dependerem de estranhos.

Umas das primeiras actividades da SEWA enquanto sindicato foi a organização dos
colectores de lixo. A SEWA sindicalizou estas mulheres para que elas pudessem ser
protegidas da perseguição das autoridades municipais. O sindicato proporcionava aos
seus membros aventais, luvas, sapatos e sacos para a recolha do lixo. No início, foram
recolhidos donativos para fornecer estes artigos. Os aventais e sacos são azuis e têm
escrito SEWA em letras brancas. Essencialmente, esta tornou-se a sua identidade
enquanto membros do sindicato, embora também fossem portadoras do cartão de
membros. Depois de formarem o sindicato, os colectores de lixo passaram a ser menos
perseguidos. Passaram a ter acesso a diversas ruas, onde anteriormente eram
impedidos de estar. A sua identificação como membros da SEWA é a grande
responsável por esta mudança de atitude, uma vez que agora são considerados como
parte de um colectivo.

A perseguição e a obstrução na realização das suas actividades não são as únicas


formas de exploração que estes trabalhadores enfrentam. Os comerciantes, a quem
vendem a recolha diária, exploram-nos pagando-lhes preços bastante baixos. As
mulheres são muito pobres e aceitam qualquer preço que os comerciantes lhes
paguem, pois este é o único meio de subsistência para elas e para as suas famílias.
Não há qualquer hipótese de negociarem melhores preços com os comerciantes. No
caso dos comerciantes se recusarem a aceitar as suas mercadorias, elas passarão
fome nesse dia.

Os activistas sindicais da SEWA estudaram o mercado da reciclagem do lixo e


descobriram que a procura de papel deitado fora flutuava ao longo do ano: crescia
nalgumas alturas do ano e decrescia noutras. Os comerciantes aumentavam os seus
lucros armazenando o papel deitado fora quando a procura era baixa e vendendo-o
quando a procura era alta. Depois de estudar as flutuações do mercado, os activistas
sindicais descobriram que as mulheres podiam praticamente duplicar os preços quando
a procura era alta. No entanto, estas mulheres não tinham nem espaço para
armazenarem o que recolhiam, nem a capacidade para armazenarem as suas
mercadorias durante um longo período de tempo. A sua condição económica obrigava-
as a vender o que recolhiam cada dia. Assim sendo, a SEWA decidiu então construir
um armazém para guardar a recolha diária efectuada pelos seus membros. Eles seriam
pagos diariamente pela sua recolha a um preço fixo. Esta seria vendida em leilão
quando os preços subissem. Qualquer lucro proveniente da venda seria distribuído
entre as mulheres como um bónus. Este esquema teve bastante sucesso e
rapidamente mais armazéns foram construídos noutras partes da cidade.

2.2. A formação de cooperativas

O passo seguinte por parte dos sindicatos foi encontrar oportunidades alternativas de
emprego, ou salários regulares para estas mulheres. Se uma parte delas pudesse
subsistir com outro tipo de trabalho, os restantes rendimentos subiriam à medida que
as suas recolhas aumentassem. Estas novas actividades podiam ser empreendidas
formando cooperativas entre as mulheres.

Em 1983, a SEWA iniciou a formação de uma cooperativa cuja actividade era limpar
escritórios e aí recolher papel. Esta cooperativa chamava-se Cooperativa Saundariya
Mahila SEWA. Actualmente, esta cooperativa tem cerca de 500 membros e possui
contratos para limpar um grande número de escritórios, instituições académicas e
outros edifícios públicos. Ao mesmo tempo, a cooperativa aceita contratos para
remover o papel velho dos escritórios. A cooperativa paga a estes gabinetes um
montante fixo para que autorizem a recolha de papel.
Cerca de 200 membros da cooperativa estão envolvidos nestas actividades. Estes
membros têm um salário regular pelo seu trabalho. Os lucros da cooperativa são
distribuídos entre todos os seus membros. Mais tarde, em 1999, as cooperativas
enfrentaram alguns problemas porque o governo estatal não renovou os contratos para
a recolha do papel velho dos seus gabinetes. Este facto é mencionado no relatório
anual de 1999 da SEWA. O relatório realça igualmente que a Cooperativa Saundariya
estava optimista relativamente à renovação do seu contrato com os gabinetes
governamentais, num futuro próximo. Isto veio a acontecer após o sindicato e a
cooperativa convencerem, em conjunto, os dirigentes do governo estatal que o acordo
era benéfico para ambas as partes.

Alguns dos colectores de lixo tinham experiência suficiente para cozinharem diferentes
tipos de comida. O sindicato tentou ajudá-los a desenvolverem as suas qualificações
para que pudessem iniciar um empreendimento comercial. Em meados de 1992, um
grupo destas mulheres, patrocinadas pelo Integrated Child Developmente Scheme
(ICDS), começou a fornecer comida para o governo. Este projecto foi iniciado para
ajudar os pobres em áreas urbanas e rurais. O ICDS proporciona mais instrução a
crianças em idade pré-escolar. Ao meio-dia, é dada uma refeição a estas crianças. O
grupo começou a aceitar contratos para catering em recepções. Em 1994, o grupo
formou uma cooperativa, a Sociedade Cooperativa Trupi Nasta Mahila SEWA. A
cooperativa tinha 130 membros, todos antigos colectores de lixo. Os membros
celebraram contratos para fornecer e servir comida em casamentos, recepções
públicas e outros eventos. Ocasionalmente, apenas são contratados para servir a
comida ou para preparar as sobremesas para as recepções. Para além destas
actividades, a cooperativa conseguiu contratos para abrir cantinas e salas de chá em
edifícios de escritórios.

A cooperativa organiza programas de formação para os seus membros, incidindo em


vários aspectos da gestão alimentar, incluindo a nutrição, realizando também
programas sobre educação cooperativa e alfabetização. A Trupi Nasta é um dos
empreendimentos cooperativos de maior sucesso patrocinados pela SEWA. Tem
obtido lucros e os seus clientes apreciam a comida por ser saborosa,
comparativamente menos dispendiosa e servida apropriadamente. A cooperativa
costumava operar a partir da sede da SEWA, em Ahmedabad. Agora adquiriu o seu
próprio espaço de trabalho na cidade (SEWA, 1999: 50).

A SEWA tem organizado algumas actividades económicas, em tempo parcial, para as


mulheres que recolhem o lixo, de forma a aumentar os seus rendimentos. Uma parte
dos seus membros ocupa-se a descascar ervilhas e legumes de manhã e a recolher
papel à tarde. Outros grupos dedicam-se a fazer sacos de papel e material em papel
para escritório.

2.3. Recuperar o respeito próprio

O sucesso das duas cooperativas de recolha de lixo em Ahmedabad deve-se


sobretudo aos seus fortes laços com o sindicato, especialmente com a SEWA. Em
primeiro lugar, o sindicato ajudou-os a ganhar respeito próprio, enquanto trabalhadores
por conta própria. Em segundo lugar, os membros do sindicato foram capazes de criar
projectos alternativos de emprego através das cooperativas, que têm aumento as suas
escolhas.

É também de notar que, na Índia, a sociedade se baseia em grupos sociais que estão
posicionados na base da hierarquia. Estes são conhecidos como castas.
Acidentalmente, a palavra casta tem a sua origem na palavra portuguesa casta. A
pertença a uma casta é baseada no nascimento, tal como a posição hierárquica da
casta, que é fixada de acordo com o estatuto da casta em que cada um nasceu. Assim,
mesmo que o estatuto profissional de um indivíduo se modifique, o seu estatuto social
mantêm-se inalterado. Em muitos casos, os colectores de lixo pertencem a castas que
estão mal posicionadas. A natureza do seu trabalho, que inclui recolher lixo reciclável
das ruas e de caixotes do lixo, é olhado como uma ocupação suja pelas castas mais
altas. Estas pessoas desempenham esta actividade porque são muito pobres e não
têm outro meio de subsistência. Deste modo, são social e economicamente oprimidos e
tratados como proscritos pelos habitantes das cidades.

A formação de cooperativas ajudou estas mulheres a melhorar a sua condição, mas o


factor crucial é estarem ligadas ao seu sindicato. A vontade de melhorarem as suas
condições de trabalho adveio da acção colectiva após a sua sindicalização. Isto deu-
lhes confiança nas suas próprias capacidades. Elas estavam aptas a aumentar as suas
capacidades com a ajuda das cooperativas. Assim sendo, podemos ver que a
interligação entre os sindicatos e as cooperativas se pode tornar um meio efectivo para
a emancipação dos pobres e socialmente oprimidos.

De seguida, centraremos a nossa atenção noutro tipo de cooperativas e analisaremos


como estas contribuem para a emancipação de outro sector da classe trabalhadora. Na
secção seguinte, estudaremos o funcionamento das cooperativas de trabalhadores na
cidade de Calcutá.

3. As cooperativas de trabalhadores em Calcutá

Calcutá foi outrora uma famosa e vibrante metrópole industrial, conhecida pelas suas
fiações e fábricas de construção de máquinas. A partir do final da década de 60, o
cenário modificou-se claramente. A cidade foi testemunha do encerramento de um
grande número de unidades industriais. Durante os anos 80, cerca de 1.500 unidades
industriais cessaram as suas funções. Isto fez com que 1.580.000 trabalhadores se
tornassem excedentários. Várias outras indústrias estão à beira do encerramento.

No meio deste cenário deprimente, encontramos uma ténue esperança num razoável
número de cooperativas de trabalhadores. Identificámos cerca de 20 unidades em
Calcutá e arredores. Basicamente, são pequenas ou médias empresas que possuem
entre 20 e um pouco mais de 100 trabalhadores cada. Quatro destes casos serão
objecto da nossa atenção.
É necessário referir alguns elementos relacionados com estes casos, de modo a
possuirmos sobre eles um maior conhecimento. Calcutá é a capital do Estado de
Bengal Oeste, situado na parte Este da Índia. Este Estado é governado por uma
coligação comunista e partidos de esquerda, conhecidos como Letf Front. O maior e
dominante partido político da coligação é o Communist Party of India (Marxist)
(CPI(M)). Esta coligação foi eleita em 1997 e manteve-se no poder até à presente data
(Março de 2001). O maior sindicato do Estado é o Center for Indian Trade Unions
(CITU), que é considerado o sindicato do CPI(M). Em todas as cooperativas de
trabalhadores de Calcutá, incluindo os quatro casos apresentados neste capítulo, os
sindicatos são filiados no CITU.

As quatro cooperativas foram seleccionadas depois de terem sido observadas 18 delas


(duas das cooperativas cessaram funções). Estas incluíram uma unidade de
construção naval, uma fábrica de cabos de alumínio e condutores eléctricos, uma
unidade de tipografia e uma unidade que fabrica maquinaria de arame. Até certa altura,
cada uma destas unidades estava a funcionar muito bem e eram consideradas
melhores na sua respectiva área de produção. Tentámos examinar as razões que
levaram ao seu declínio e como os trabalhadores tentaram recuperá-las.

3.1. A cooperativa de construção naval

Situada na área de Cossipure, em Calcutá, a East Bengal River Steam Service and
Enginneering Workers' Industrial Co-operative Society Limited foi criada em 1979. A
companhia original era uma empresa criada nos finais do século XIX. Ela adquiriu uma
empresa naval de sucesso e mais tarde a construção de navios tornou-se uma das
suas maiores actividades. A partir de 1965, por diversas razões, a companhia
evidenciou uma quebra. Alguns dos factores foram externos, relacionados
principalmente com as restrições aos negócios com a então Paquistão Este (agora
Bangladesh), outros devido à gestão interna da companhia. A empresa conseguiu
sobreviver até 1969. As folhas de balanço de 1968-1969 mostravam lucro. A partir daí,
a empresa começou a registar perdas significativas. Em Setembro de 1976, os
proprietários fecharam a empresa, uma vez que as dívidas já não eram contabilizáveis.
A sua mão-de-obra, que em tempos era de 1000 trabalhadores, ficou reduzida a 91
trabalhadores, pois muitos deles saíram para procurarem outro emprego. Os credores
requereram no Tribunal Superior de Calcutá a recuperação da empresa.

Após a eleição da Left Front, o sindicato propôs ao governo estatal que declarasse a
empresa em situação económica difícil e assumisse a sua administração. Em 1978, o
governo estatal enviou uma proposta ao governo central para que este assumisse o
controlo da empresa, mas esta foi rejeitada. Então, o sindicato requereu ao governo
central autorização para gerir a empresa. O pedido foi aceite pelo governo e este
aconselhou o sindicato a formar uma cooperativa de trabalhadores para estes gerirem
a empresa. O Departamento Governamental para a Reconstrução Industrial ajudaria a
financiar o empreendimento. A cooperativa foi registada em Novembro de 1979. Todos
os 91 trabalhadores se tornaram membros. Os líderes locais do CPI(M) e do CITU
auxiliaram os trabalhadores no empreendimento. O secretariado do comité local do
CPI(M) foi o principal apoiante deste empreendimento. O governo estatal aceitou a
proposta do sindicato, principalmente porque o sindicato era filiado no CITU e por
causa do apoio político do CPI(M). Com base na garantia dada pelo governo, a
cooperativa recorreu ao Tribunal Superior, de modo a ser reconhecida a compra da
empresa. O Tribunal concordou e ordenou que um funcionário avaliasse a empresa.
Consequentemente, o preço foi fixado e a cooperativa tomou posse da empresa a 30
de Outubro de 1980. A escritura de venda foi efectuada em 1981. O governo estatal
concordou em conceder um empréstimo à cooperativa para comprar a empresa. A
produção teve início em Dezembro de 1981. Uma garantia de 3.000.000 Rs foi dada
por um banco nacionalizado (depois do governo estatal concordar em ser fiador) e
400,00 Rs foram concedidos para a contratação de recursos humanos. Este montante
era bastante reduzido e não foi possível aos trabalhadores modernizar o equipamento
existente. A cooperativa esperava conseguir um empréstimo de uma instituição
bancária. Com essa finalidade, solicitaram uma garantia ao governo estatal.
Infelizmente, quando abordaram o governo, este recusou-se a honrar o compromisso
efectuado.

Esta decisão foi um choque para os trabalhadores. Anteriormente, na altura da


formação da cooperativa, o Ministro das Finanças deu a entender aos trabalhadores
que esta situação era temporária, até o governo estatal assumir a gestão da empresa.
Só nesta altura é que os trabalhadores se aperceberam de que o governo não
assumiria o controlo do estaleiro, nem ajudaria a cooperativa a desenvolvê-lo. Após
várias reuniões, em que os líderes locais do CPI(M) também participaram, os
trabalhadores decidiram que teriam de gerir sozinhos a empresa. Duas grandes
decisões foram tomadas. Em primeiro lugar, decidiram congelar os salários até que a
situação financeira melhorasse. Em segundo lugar, decidiram aumentar a
produtividade, na medida em que isso contivesse os custos de produção. A cooperativa
decidiu encarregar-se do trabalho (outsourcing) de outras empresas, principalmente na
reparação de navios. Este esforço valeu a pena, uma vez que as empresas que
efectuaram encomendas ficaram satisfeitas com o resultado. Algumas delas, estavam
dispostos a fornecer a matéria-prima necessária para o trabalho de recuperação e, por
vezes, até adiantar dinheiro. Em 1991, a cooperativa tinha acumulado cerca de
1.400.000 Rs de lucros, que poderia usar em recursos humanos. Nessa altura, os
órgãos gerais da cooperativa tomaram a importante decisão de não aumentarem os
salários, apesar dos lucros registados. Os trabalhadores compreenderam que o seu
futuro só poderia estar seguro se a cooperativa possuísse fundos suficientes.

Em 1991 a situação alterou-se. Nessa altura, o Ministério dos Transportes Terrestres


estava na expectativa de conseguir um grande lote de terreno para construir uma
garagem e uma oficina para uma das suas sociedades, a North Bengel State Transport
Corporation (NBSTC). O governo estatal sugeriu que a cooperativa desistisse de uma
parte dos terrenos que possuía a NBTC detinha. Isto poderia formar um acordo global
para reabilitar a cooperativa. A NBSTC pagaria 10.000.00 Rs. A Inland Water Transport
Corporation do governo estatal assumiria o controlo da cooperativa e modernizaria o
estaleiro e a oficina. A cooperativa teria de reduzir a sua mão-de-obra para 50
trabalhadores. Apenas trabalhadores com menos de 55 anos poderiam ser mantidos,
recebendo os restantes uma compensação adequada. A cooperativa concordou com
esta proposta.

A partir da altura em que asseguraram aos trabalhadores que o controlo da empresa


seria assumido pelo governo estatal, estes decidiram ser extravantes com o lucro que
tinham acumulado. Pagaram um elevado bónus aos membros, construíram
alojamentos para o pessoal de segurança e gastaram grandes quantias em festas.

Em 1992, realizaram-se as eleições para a assembleia de Estado. O governo da Left


Front foi novamente eleito, mas o Ministro dos Transportes Terrestres foi substituído. O
novo ministro quis rever o projecto e colocou várias objecções à localização dos
terrenos e ao custo da sua aquisição. Assim, o negócio foi cancelado. Os trabalhadores
sofreram um sério prejuízo. Eles estavam agora em piores condições do que
anteriormente, uma vez que não possuíam mão-de-obra para executar as
encomendas. No entanto, este incidente fortaleceu a decisão de dependerem das suas
próprias forças e não de outros. Só podiam depender da boa vontade que tinham
conquistado anteriormente. Lentamente, começaram a receber encomendas e,
gradualmente, a melhorar a sua posição.

Visitei esta cooperativa em meados de 1998. Os trabalhadores pareciam determinados


a fazer do empreendimento um sucesso. Muitos deles eram idosos. Os seus uniformes
estavam amarrotados e gastos. Contudo, havia determinação nos seus rostos quando
trabalhavam continuamente. Quando falaram comigo, não me deram nenhum indício
de desânimo ou incapacidade. Os empregados de escritório eram mais críticos em
relação à situação. Eles estavam amargurados, porque o governo que tinham apoiado,
e especialmente o CPI(M), lhes voltou as costas. Estas pessoas ainda tinham
esperança que o governo assumisse o controlo da empresa. O líder local do CPI(M),
que proporcionou a liderança externa desta tentativa, tornou-se um crítico desta atitude
do governo. Todas estas pessoas acreditavam que o cancelamento da proposta
anterior do governo se ficou a dever à corrupção. Foi-me dito que o negócio não trazia
nenhuma vantagem a quem estava no poder, daí ter sido abandonado.

A falta de dinheiro impediu a cooperativa de contratar pessoal técnico. Tinha um


consultor que era engenheiro naval. Esse indivíduo foi, em tempos, administrador geral
da empresa e mais tarde ajudou os trabalhadores a geri-la. Trabalhava alternadamente
durante a tarde, oferecendo o seu conhecimento técnico. Não cobrava honorários pelos
seus serviços, pois era um simpatizante do CPI(M) e os seus rendimentos provinham
da consultoria realizada noutras empresas. A presença deste consultor, e do líder local
do CPI(M), aumentou a confiança dos trabalhadores que sentiam que mesmo nestes
tempos conturbados não estavam sozinhos.

A situação era idêntica quando visitei a cooperativa em Junho de 2000. A sua situação
económica era ligeiramente melhor e os trabalhadores recebiam salários mais
elevados. O consultor ajudou-os a conquistarem novos negócios. A amargura gerada
pela falta de apoio do governo aumentou. Contudo, tanto o sindicato como o CPI(M)
apoiavam a cooperativa a nível local. Esta foi a principal razão pela qual os membros
permaneceram no sindicato, apesar das reclamações em relação ao governo liderado
pelo CPI(M). A principal consequência desta situação foi tornar os trabalhadores mais
auto-confiantes. Já não dependiam de entidades externas para resolverem os seus
problemas. Esta foi a maior contribuição da cooperativa -o crescimento da auto-
confiança dos trabalhadores.

3.2. A cooperativa tipográfica

A Eastern Type Foundry and Oriental Printing Works Employees' Industrial Cooperative
Society Limited iniciou o seu funcionamento em 1987. A cooperativa tem 42 membros-
trabalhadores. A cooperativa tem no total 51 trabalhadores, dos quais 7 são
trabalhadores administrativos e os restantes operários.

Esta empresa, conhecida como Eastern Type Foundry and Oriental Printing Works, foi
fundada em 1890 e, em 1912, foi constituída como sociedade anónima. A empresa
manufacturava material de impressão para a imprensa escrita. A partir da altura em
que foram introduzidas as impressoras off-set, em muitas partes do mundo, esta
técnica tornou-se obsoleta. Anteriormente, a empresa era uma das melhores do país
nesta área. Os seus produtos difundiram-se por toda a Índia e eram exportados para
outros países, incluindo a China, o Nepal e a as Ilhas Maurícias. Na altura, a sua mão-
de-obra rondava os 500 trabalhadores. Apesar das modificações na tecnologia de
impressão, a empresa conseguiu manter a sua posição, por ser a única nesta área cujo
material era manufacturado. A imprensa escrita do país dependia dela para a obtenção
de lucros. As impressoras eram também conhecidas pela sua alta qualidade e
recebiam encomendas dos editores líderes do mercado.

Os problemas da empresa começaram nos anos 60, sobretudo devido às disputas


entre os membros da família fundadora da empresa. No seu conjunto, eles possuíam a
maioria das acções da empresa. Nos anos 70, o sindicato apontou várias
irregularidades na sua gestão. Embora os trabalhadores recebessem os salários
habituais, foi descoberto que os descontos destinados à segurança social não eram
entregues aos organismos competentes. Estes organismos requereram a recuperação
das quantias em tribunal. A gerência não foi capaz de as pagar e, em 1980, finalmente,
a cessou o funcionamento da empresa, encerrando a fábrica. A situação arrastou-se
durante 7 anos, ao longo dos quais muitos trabalhadores saíram para procurar outros
empregos. O sindicato sugeriu que os trabalhadores deviam formar uma cooperativa,
que poderia assumir o controlo da empresa, com a ajuda do governo. Assim, a
cooperativa foi fundada em 1987, com 30 trabalhadores, que tiveram de continuar a
lutar pelos seus direitos. Entretanto, a empresa entrou em liquidação e a cooperativa,
com o apoio financeiro inicial do governo estatal, conseguiu comprar a empresa.

A cooperativa iniciou o seu funcionamento em 1989. Embora fosse proprietária da


empresa, não possuía muita mão-de-obra. Apesar disso, conseguiu obter encomendas
para impressão e fundição. Os negócios melhoraram gradualmente e a cooperativa
necessitou de mais trabalhadores. De acordo com a Recomendação do Comité Local
do CPI(M), foram contratados a prazo 15 trabalhadores. Eles tornaram-se efectivos
após 1 ano e 12 deles tornaram-se accionistas. Pouco tempo depois, em 1994,
começaram os problemas. Os trabalhadores mais antigos eram idosos, enquanto os
mais novos eram jovens. Estes últimos exigiram que os mais velhos se aposentassem
e abrissem caminho a pessoas mais novas. Além disso, o Comité Local do CPI(M)
exigiu que o partido fosse autorizado a usar um dos edifícios como seu escritório. Os
trabalhadores mais antigos, e que também eram apoiantes do CPI(M), opuseram-se a
este pedido, uma vez que sentiam que isso encorajaria o comité local a assumir a
posse do edifício. Isto conduziu a relações tensas entre o CPI(M) e estes
trabalhadores.

Os problemas internos da cooperativa foram criados pelos líderes locais do CPI(M). Os


membros mais antigos apoiaram o CPI(M) e, inicialmente, confiaram nos seus líderes
locais. Depois destes acontecimentos, eles tornaram-se mais críticos em relação ao
funcionamento do partido. Suspeitavam que o comité local os queria dispensar para aí
colocar a sua própria gente. Ao mesmo tempo, estes trabalhadores não se voltaram
contra o CPI(M) enquanto partido. Votaram nos seus candidatos nas eleições e até
faziam campanha pelo partido. Os seus problemas eram sobretudo com os líderes
locais do CPI(M). Por insistência dos jovens trabalhadores, na reunião anual geral da
organização, em 1997, o governo indicou um director administrativo que suprimiu
temporariamente as funções do comité de gestão.

A cooperativa ainda está a funcionar, consegue pagar os salários dos trabalhadores e


pode melhorar a sua posição se conseguir encomendas para a fundição. No entanto,
há falta de mão-de-obra. As prensas funcionam bem, mas a tensão entre os
trabalhadores mais velhos e mais novos tem afectado a sua eficiência.

3.3. Cabos e condutores de alumínio

Esta cooperativa é conhecida como Alcond Employees' Industrial Co-operative Society


Limited e foi formada por trabalhadores da Aluminum Cables and Conductors Private
Limited em 1987. Em 2000, possuía 150 trabalhadores, dos quais 35 eram
administrativos e os restantes operários. A cooperativa era uma sociedade de 265
pessoas, todas trabalhadoras da empresa, mas mais tarde algumas saíram da
empresa para trabalhar noutros locais.

A empresa fabrica condutores de energia e cabos de alumínio. Antigamente, era


bastante conhecida neste ramo de produção e considerada um empreendimento
rentável. A procura dos seus produtos cresceu a partir da altura em que o Estado
passou a controlar as corporações eléctricas e decidiu optar por fios de alumínio de alta
tensão, em vez de cabos de cobre. A empresa tinha cerca de 500 trabalhadores e, até
à década de 70, foi uma empresa rentável. Tanto na Índia como no estrangeiro possuía
muitos clientes. A sua fábrica situa-se em Hyde Road, onde estão situadas muitas
unidades industriais.

A partir de 1978, a Alcond começou a registar grandes prejuízos. Os trabalhadores


acreditavam que este facto se devia a um desvio dos recursos financeiros da empresa
para outros investimentos. Em 1983 a fábrica fechou. Os trabalhadores do sindicato
tinham influência em todos os quadrantes do governo, usarando todo o tipo de
pressões sobre os administradores para reabrirem a fábrica. Em 1986, ao fim de 3
anos de uma luta feroz, os trabalhadores conseguiram forçar a administração a reabrir
a fábrica. Passados 15 dias, a fábrica encerrou novamente, desta vez por causa da
instituição financeira ter requerido ao tribunal a sua liquidação para recuperar os
débitos em atraso. Assim, o sindicato decidiu organizar os trabalhadores numa
cooperativa para gerirem a fábrica.

O governo financiou a iniciativa do sindicato para formar uma cooperativa e esta foi
registada em 1987. Nessa altura, o Tribunal Superior ordenou que a empresa fosse
leiloada, de modo a liquidar as dívidas. O governo estatal comprou a empresa e, em 2
de Dezembro de 1989, esta transformou-se numa cooperativa. O governo contraiu
empréstimos e forneceu matéria-prima para iniciar a produção. Além disso, actuou
como fiador nos empréstimos bancários superiores a 45.000.00 Rs. O State Electricity
Board, um empreendimento do governo estatal, alargou o apoio prestado, trocando
encomendas por equipamento. Na altura de assumir o controlo da cooperativa, os seus
membros descobriram que as máquinas e o equipamento da fábrica estavam
danificados. A cooperativa despendeu uma grande quantia na sua reparação e
manutenção. A produção só teve inicio em 1990, depois de 7 anos de encerramento.
No primeiro ano, a cooperativa registou perdas de 60.000.000 e um rendimento líquido
de 750.000 Rs. A cooperativa conseguiu empregar 300 dos trabalhadores demitidos no
primeiro ano e a outros 100 no segundo ano. O que é notável é que os trabalhadores
puderam regressar à empresa 18 meses depois dos trabalhadores terem assumido o
controlo da cooperativa.

Os problemas da cooperativa começaram nos anos seguintes. Para executar as


encomendas, a cooperativa contraiu empréstimos junto de uma instituição bancária,
dando como garantia as suas acções. A maior parte dos contratos celebrados pela
cooperativa era com empresas públicas, como o Electricity Boards da West Bengal e
Uttar Pradesh. Os pagamentos efectuados por estas entidades eram feitos com um
considerável atraso, entre 12 a 18 meses após a entrega.

Assim, o capital foi congelado, não sendo possível aceitar mais encomendas e a sua
força de trabalho estava exausta. Simultaneamente, os juros dos empréstimos
contraídos aumentaram. Tal como noutros casos, o governo estatal, que inicialmente
tinha concordado ser o fiador dos empréstimos bancários, recuou. Finalmente, em
1997, a produção foi suspensa, uma vez que não foi possível conseguir mão-de-obra
para executar as encomendas. Os recursos financeiros estavam esgotados e não foi
possível pagar os salários. Muitos dos seus membros abandonaram a cooperativa para
procurarem trabalho noutros locais. A cooperativa ficou com 150 trabalhadores.

Em Junho de 1998, depois de recuperar alguns dos créditos pendentes, a cooperativa


conseguiu recomeçar a sua actividade. Foi decidido não aceitarem trabalhos
independentes, baseados na proposta mais alta. Pelo contrário, começaram a aceitar
encomendas de outras unidades industriais, o que proporcionou alguns lucros. Em
Maio de 2000, a sua condição financeira melhorou, mas as experiências passadas
deixaram um sentimento de amargura em relação à atitude do governo. Neste aspecto,
os problemas são idênticos aos da cooperativa de construção naval. A perda de
contratos ficou a dever-se à incapacidade da cooperativa para oferecer subornos às
autoridades envolvidas. Da mesma forma, a recuperação de créditos devidos pelas
comissões de electricidade foi retardada pela mesma razão. Os trabalhadores estavam
amargurados porque, apesar das suas ligações políticas ao CPI(M), tiveram de
enfrentar este problema.

3.4. A cooperativa de maquinaria de arame

A Wire Machinery Employees Industrial Co-operative Society Limited localiza-se na


área de Panihati, no distrito de Parganas, no norte de Calcutá. A fábrica tem 106
trabalhadores, dos quais 90 trabalhavam nas várias fábricas, seis trabalham no
escritório e seis são seguranças. Há também dois engenheiros e dois desenhadores. A
cooperativa indicou um director executivo para supervisionar o total funcionamento da
cooperativa, mas em 1997 este demitiu-se. A gestão da cooperativa é feita por um
comité de gestão eleito e inclui um presidente, um secretário e sete membros do
comité. O presidente é um membro da organização e o secretário é um trabalhador. A
cooperativa tem 95 membros e foi registada a 10 de Setembro de 1980.

A cooperativa produz arame de diversas medidas para guindastes e outros


equipamentos de reboque. A fábrica manufactura material de fundição de tamanho
pequeno e médio que é necessário a grandes unidades industriais.

A Wire Machinery Manufactoring Cooporation Limited, como era inicialmente conhecida


a unidade, foi criada em 1962 e possuía um grande mercado para os seus produtos.
Em 1970, quando Calcutá enfrentou graves cortes de energia, os problemas
começaram. A fábrica requeria um fornecimento regular de energia para fazer trabalhar
os seus potentes motores e os frequentes cortes de energia acabaram com a
produção. Assim, a cooperativa não foi capaz de responder às encomendas pendentes
e, gradualmente, o seu mercado decaiu. A companhia poderia criar a sua unidade de
energia própria, superando a escassez existente, mas os seus proprietários não
estavam interessados em ter despesas adicionais. Entre os membros da família
proprietária da fábrica existiam graves conflitos que contribuíam para a crise, uma vez
que não podiam ser tomadas decisões de investimento a longo prazo.

Em 1975, a companhia fechou a fábrica, pois não podia pagar os salários aos
trabalhadores. Os 290 trabalhadores ficaram sem trabalho. O seu sindicato tentou que
os proprietários reabrissem a fábrica, ou pagassem aos trabalhadores as
indemnizações devidas, mas não tiveram sucesso. Esta situação manteve-se nos três
anos seguintes. Alguns dos trabalhadores deixaram a empresa em busca de trabalho
noutros sítios. Finalmente, em 1978, os proprietários apelaram ao Tribunal Superior
para obterem permissão para liquidar a companhia.
Inicialmente, os trabalhadores ficaram chocados ao ouvir as notícias. O líder do
sindicato também estava envolvido e sugeriu que os trabalhadores deveriam tentar
gerir a fábrica, formando uma cooperativa. Esta seria uma medida temporária, dado
que o sindicato tentaria persuadir o recém eleito governo da Left Front para assumir o
controlo da companhia. Os 95 trabalhadores que apoiaram o sindicato durante os três
anos em que a companhia esteve encerrada formaram, em conjunto, a cooperativa.
Após registarem a organização, os trabalhadores apelaram ao Tribunal Superior, para
que, ao invés de leiloar a companhia, fosse dada à cooperativa a oportunidade de a
gerir. Ela estava disposta a arrendar a fábrica e a alugar as suas máquinas. Assim, a
cooperativa podia aceitar trabalho, proporcionando alguns rendimentos aos seus
membros empobrecidos. O tribunal concordou com este acordo, realçando, no entanto,
que este estaria sujeito a uma renovação anual. Além disso, esta situação só se
prolongaria até ser encontrada uma alternativa para dispor dos bens da companhia. A
cooperativa funcionou desta forma durante alguns anos.

Inicialmente, o negócio não correu muito bem e os trabalhadores obtiveram escassos


rendimentos para a sua sobrevivência. Em cerca de um ano, ou seja, a partir da altura
em que a cooperativa foi capaz de obter outras encomendas regulares, a situação
melhorou. Em 1985, a cooperativa conseguiu alguma estabilidade e os seus membros
auferiam salários mais elevados. Assim, os membros começaram a discutir o aumento
dos seus salários, sobretudo porque começaram a fabricar os seus próprios produtos,
em vez de trabalharem para outros. Porém, a sua concretização não era fácil. De modo
a iniciar a fabricação dos seus produtos, a cooperativa necessitava de reparar alguma
da maquinaria e actualizar outra. Isto não era possível porque a cooperativa não era
proprietária das máquinas. O Tribunal Superior apenas tinha concedido o aluguer da
sua propriedade, por isso, a cooperativa não podia modificar ou substituir qualquer
parte do bem alugado. A cooperativa podia recorrer ao Tribunal Superior e procurar
obter a permissão para actualizar a maquinaria, mas de onde viria o financiamento para
este empreendimento? Os contactos efectuados pelos líderes sindicais revelaram que
nenhuma instituição estava disposta a conceder empréstimos para este
empreendimento, uma vez que a cooperativa não era titular da propriedade.

A única saída que restava à cooperativa era comprar a companhia, mas não possuía
meios para o fazer. Após algumas discussões entre os trabalhadores e os líderes
sindicais locais, chegou-se um consenso, a cooperativa devia comprar a companhia.
Os trabalhadores estavam determinados em reunir o montante necessário para o fazer.
A 2 de Junho de 1985, foi efectuado um requerimento ao Tribunal Superior, solicitando
que os bens da companhia fossem leiloados e fosse dada à cooperativa uma
oportunidade justa para licitar. A cooperativa solicitou que, se a sua licitação fosse
aceite, dever-lhe-ia ser permitido pagar esse montante em instalações. Com base
neste pedido, o Tribunal Superior marcou um leilão para 24 de Janeiro de 1986. Os
membros da cooperativa tentaram economizar o máximo que lhes foi possível, de
modo a conseguirem comprar a cooperativa. Reduziram os seus salários e fizeram
trabalho extra para as poupanças aumentarem. O custo total da compra foi fixado em
Rs. 1.450.000, um montante demasiado alto para a cooperativa. Todavia, o Tribunal
decidiu que se a cooperativa tinha interesse em comprar a companhia, deveria
depositar inicialmente Rs. 463.000, a título de sinal, e o valor total poderia ser pago em
6 meses. O sinal tinha de ser pago duas semanas antes a partir da data do leilão. O
maior problema da cooperativa foi recolher o dinheiro para o sinal. Quando os
membros trabalhadores recorreram ao Tribunal Superior para comprar a companhia,
pensaram que seriam autorizados a pagar o montante total em instalações, a pagar
durante vários anos. Eles não podiam imaginar que o Tribunal ordenaria que o
comprador pagasse uma soma tão elevada. Os fundos da cooperativa estavam
bastante abaixo do montante exigido. No entanto, os trabalhadores estavam
determinados em comprar a companhia e começaram a reunir o dinheiro para o
pagamento do sinal recorrendo a todas as fontes. Eles recorreram também ao Tribunal
para prorrogar o prazo em alguns meses. Os trabalhadores começaram, então, a fazer
um balanço da situação. As economias da cooperativa perfaziam menos de um quarto
do dinheiro do sinal. Os trabalhadores decidiram abdicar dos seus salários durante
alguns dos meses seguintes e com eles contribuírem para o fundo. Quando esta
medida se revelou ineficaz, os trabalhadores decidiram contribuir individualmente com
tudo o que podiam. Houve trabalhadores que contraíram empréstimos pessoais; outros
que empenharam as jóias das suas esposas e alguns que venderam os seus bens
pessoais. Depois de terem juntado, com dificuldade, tudo o que podiam, os
trabalhadores conseguiram finalmente obter uma quantia, que depositaram junto do
Tribunal Superior. Pouco tempo depois, foi permitido à cooperativa tomar conta da
fábrica, com a condição suplementar do montante total ser pago no prazo de 6 meses.
Felizmente, este problema foi resolvido, pois o banco concordou em conceder o
restante montante a título de empréstimo. Deste modo, em Maio de 1986, a
cooperativa tornou-se a proprietária da fábrica.

Na altura de assumir o controlo, a cooperativa tinha 69 membros. O salário médio era


de Rs. 450 por mês, o que era muito pouco. Os salários poderiam ter sido aumentados
depois da cooperativa se ter tornado proprietária, mas os seus membros decidiram que
o principal objectivo era o melhorar a maquinaria e aumentar da produção. Tais
procedimentos assegurariam a estabilidade da a longo prazo. Nas reuniões realizadas
sobre esta matéria, os trabalhadores adoptaram posições divergentes. Alguns (uma
minoria) defenderam que os seus recursos pessoais estavam esgotados e que a
quantia devia ser aumentada para que pudessem melhorar a sua esgotada capacidade
económica. Outros sustentaram que era mais importante melhorar as condições da
fábrica. Os trabalhadores tinham feito sacrifícios e enfrentado provações durante vários
meses. Assim sendo, podiam continuar a fazê-lo durante mais alguns, até a situação
melhorar. Finalmente, os trabalhadores decidiram que a necessidade imediata era
melhorar a fábrica e concordaram não aumentar ainda mais as despesas através dos
salários.

Outro aspecto que os trabalhadores sentiam ser igualmente importante, era a


necessidade de contratarem pessoal qualificado e tecnicamente competente. Eles
podiam melhorar a maquinaria, mas poderiam encarregar-se dos aspectos técnicos da
renovada fábrica? Todos os seus esforços seriam em vão se, depois de terem
contraído empréstimos para arranjar a maquinaria existente, fossem incapazes de
atingir uma produção óptima. Precisavam de pessoal técnico especializado, mas que
gestor técnico estaria disposto a juntar-se a um empreendimento economicamente
debilitado? Os trabalhadores decidiram que pagariam um salário mais elevado a quem
se oferecesse para os ajudar a construir o seu empreendimento. O então secretário do
comité de gestão, um trabalhador, disse-me

Nós decidimos que precisávamos de gente boa. Precisávamos de um engenheiro que


fosse capaz de gerir a fábrica e outro que promovesse as vendas. Nós somos
trabalhadores qualificados. Nós podemos trabalhar na fábrica e produzir bens, mas
não podemos ir às grandes empresas e pedir-lhes que os comprem. Quem é que
falaria connosco? Então, decidimos que mesmo que nós ganhássemos Rs. 500 por
mês, pagaríamos aos nossos gestores Rs. 5.000 por mês, se fosse necessário. O
futuro desta fábrica é o nosso futuro. Tínhamos de fazer com que ela tivesse sucesso.

Assim, eles nomearam dois administradores, um dos quais estava encarregado da


produção, do planeamento e das finanças e outro da gestão. Ambos se tornaram
membros da cooperativa e um deles, o gestor de produção, foi mais tarde eleito seu
presidente.

Os sacrifícios dos trabalhadores, e a sua visão, produziram frutos pouco tempo depois.
A cooperativa cresceu rapidamente. No início de 1992, o número de trabalhadores
cresceu para 110, devido ao aumento do volume de trabalho. O seu volume de
negócios cresceu 10 vezes. Os salários dos trabalhadores também cresceram 3 vezes
durante esse período. Em 2000, ganhavam mais do que os trabalhadores de outras
fábricas dessa área.

Para além do aumento dos salários, os trabalhadores recuperaram também outros


benefícios. Estavam abrangidos pela Employees State Insurance Scheme (para
doença e acidentes). Este esquema já tinha estado em vigor, pois era obrigatório para
empreendimentos deste tamanho, mas tinha sido suspenso no período em que a
fábrica esteve fechada. O Fundo de Previdência também tinha sido suspenso, o que
afectaria os benefícios de reforma dos trabalhadores. A cooperativa decidiu reiniciar o
esquema e ainda pagar as contribuições em dívida. Outros esquemas relacionados
com a segurança social, como o Group Gratuity Scheme, foram implementados com
efeitos retroactivos a partir de 1982, liquidando as contribuições em atraso.

Os gastos da cooperativa aumentaram, pois foi necessário reparar a fábrica e melhorar


as suas infra-estruturas. O governo estatal concedeu-lhe um empréstimo sem juros de
Rs. 300.000. Desse montante, Rs. 200.000 foram usados para reparar o edifício da
fábrica. A cooperativa comprou também um gerador de 81 KWA para fazer face às
falhas de energia. A primeira administração, que era financeiramente sólida, tinha-se
recusado a instalar uma unidade de energia cativa por considerá-la demasiado
dispendiosa. Estes trabalhadores fizeram-no porque se aperceberam que uma fábrica
bem gerida seria mais lucrativa. A maior parte do custo do gerador foi suportado pelos
recursos da própria cooperativa. Além disso, pagou em 4 anos o empréstimo ao
governo estatal. O empréstimo ao banco foi pago em 1992.

Embora a cooperativa tenha progredido significativamente, ela enfrentou problemas


que posteriormente afectaram o seu desenvolvimento. Um dos maiores problemas que
enfrentaram foi o da mão-de-obra adequada. Os membros do comité de gestão
disseram-me que a unidade poderia produzir muito mais se tivessem mais mão-de-
obra. Esta situação permitiria à cooperativa comprar matéria-prima para executar as
encomendas. A sua falta traduzia-se na incapacidade de expandir os seus negócios
por não poderem aceitar mais encomendas.

A falta de mão-de-obra deve-se principalmente ao facto da cooperativa ter vindo a ser


incapaz de obter crédito junto de instituições bancárias e do governo estatal. Pouco
tempo depois de terem pago o empréstimo ao banco pela compra da unidade, o banco
concedeu à cooperativa outro empréstimo para contratar mão-de-obra, que foi pago no
prazo estipulado. Depois disso, e apesar do seu bom registo no pagamento do
empréstimo, a cooperativa não conseguiu obter mais nenhum empréstimo do banco.
Nós descobrimos que o banco pretendia garantias para conceder empréstimos. Os
empréstimos que a cooperativa contraiu anteriormente foram concedidos com base em
garantias dadas pelo governo estatal. Infelizmente, tal como noutros casos, o governo
estatal recusou-se a ser fiador. A cooperativa confrontou-se, então, com uma situação
em que poderia expandir os seus negócios, mas em que faltava mão-de-obra para o
fazer. Esta situação afectou seriamente a sua rentabilidade. A cooperativa teve de
utilizar os seus próprios recursos para adquirir matérias primas, para reparar e
actualizar a sua maquinaria e para as outras despesas imediatas.

A corrupção na obtenção de encomendas e a dificuldade na cobrança de dívidas é


também outro grande problema para a cooperativa. Isto manifestava-se, sobretudo,
quando conseguiam encomendas do governo e os seus principais clientes eram os
governos estatais. Foi-me referido que, mesmo depois de serem conseguidas as
encomendas com base na oferta, era esperado que a cooperativa pagasse subornos
para acelerar o processo. Os pagamentos também eram atrasados se o dinheiro não
mudasse de mãos. Este era um problema com que se deparavam muitas das
cooperativas analisadas neste capítulo, que estavam dependentes de encomendas do
governo ou dos municípios. Finalmente, a cooperativa decidiu superar estes
problemas, aceitando encomendas através de agentes. Neste caso, os seus
rendimentos eram menores já que tinham de pagar uma comissão aos agentes, mas
assim o problema da corrupção deixava de ser seu. Os agentes cuidavam deste
assunto. As encomendas efectuadas pelos governos estatais foram tratadas por
agentes. A cooperativa também exporta os seus produtos para países do Médio
Oriente e também estas são tratadas por agentes, já que é necessário subornar
funcionários ligados ao meio com ligações às exportações.

Nalguns casos, a cooperativa negociava directamente as encomendas, principalmente


em outsourcing para empreendimentos maiores. Por exemplo, a maquinaria pesada
fabricada para o transporte de carvão é feita para uma companhia de engenharia em
grande escala do sector privado. Esta companhia proporcionou um adiantamento
monetário, para permitir à cooperativa fabricar o equipamento. A cooperativa podia
obviamente não fabricar o equipamento, dado que não possui o capital necessário para
organizar a produção e publicitar os produtos. Ambos os aspectos exigem elevados
investimentos financeiros mais elevados. Daí nós podermos considerar que a falta de
crédito e a corrupção são os principais obstáculos que impedem a cooperativa de
melhorar o seu desempenho.

4. Conclusão: as cooperativas e a emancipação social

4.1. O apoio dos sindicatos

Na secção anterior analisámos dois tipos de cooperativas situadas em duas cidades


diferentes. Apesar das diferenças, estas cooperativas têm alguns traços comuns. Em
primeiro lugar, todas elas foram iniciadas pelos seus sindicatos. Este aspecto foi muito
importante para a formação das cooperativas. A cooperativa de colectores de
Ahmedabad foi iniciada pela SEWA, como parte das actividades do seu sindicato. A
SEWA possuía uma clara estratégia de promoção de cooperativas como parte da
actividade do seu sindicato.

Em Calcutá, as cooperativas foram também começadas pelos sindicatos, mas existe


uma diferença em relação à estratégia utilizada pela SEWA. Os líderes do sindicato
propuseram que os trabalhadores assumissem o controlo das unidades depois dos
administradores as terem encerrado. Ao mesmo tempo, a posição inicial dos sindicatos
era ambivalente, ao contrário da abordagem positiva da SWEA. Tinham apoiado a ideia
da formação das cooperativas e assumiram o controlo da produção, como uma medida
imediata de auxílio. Em primeiro lugar, os líderes sindicais tentaram suster o problema
do desemprego, resultante do encerramento da companhia, mas também acreditaram
que era um prelúdio para o assumir do controlo por parte do governo estatal. Os
trabalhadores também acreditaram nisso.

Após o apoio inicial, o governo estatal mostrou-se indiferente face ao destino das
cooperativas. Isto resultou das mudanças nas orientações do governo da Left Front.
Em 1977, quando esta foi eleita pela primeira vez, adoptou uma política pro-laboral. A
partir de 1987, quando foi eleita pela terceira vez, a sua postura alterou-se. Então, o
governo tentou criar no Estado uma atmosfera propícia ao investimento estrangeiro.
Neste processo, os interesses do trabalho foram postos de lado. Os trabalhadores das
cooperativas foram vítimas das novas políticas governamentais. Isto criou um
sentimento de amargura entre os trabalhadores, bem como entre os líderes locais dos
sindicatos que apoiavam as cooperativas nesta área. Como foi referido anteriormente,
os sindicatos, dos quais os trabalhadores são membros, são filiados na CITU e os seus
líderes são também líderes locais do CPI(M). Estes líderes foram a maior fonte de
encorajamento dos trabalhadores, apesar da falta de apoio que o CPI(M) prestava ao
governo da Left Front.

Uma consequência positiva desta situação é que as cooperativas aprenderam a


depender da sua própria força para sobreviverem, em vez que dependerem de ajuda
externa, nomeadamente da do governo estatal. Apesar das adversidades, estas
cooperativas continuaram a existir. É o caso não só das quatro cooperativas estudadas
neste capítulo, mas também das restantes cooperativas de trabalhadores de Bengel
Oeste. Das restantes 20 cooperativas existentes em Calcutá, no final dos anos 70 e
início dos anos 80, até agora só duas foram dissolvidas.

A cooperativa tipográfica é uma excepção. Neste caso, os líderes locais do CPI(M)


tentaram desmantelar o funcionamento da cooperativa. Os membros originários da
cooperativa afirmam que os líderes locais do CPI(M)/CITU ajudaram a formar a
cooperativa, mas posteriormente alteraram a sua posição, quando descobriram que os
membros-trabalhadores se opuseram à cedência de um edifício para aí instalarem os
gabinetes do partido. Por isso, tentaram criar divisões entre os membros, instigando os
mais novos contra os mais antigos. Estes últimos também eram membros do CITU,
sindicato em que eram filiados, mas depois dos conflitos com os novos membros,
iniciados pelos líderes sindicais, ficaram desiludidos com o sindicato e deixaram de ser
membros. Na observação inicial que realizámos na cidade acerca das cooperativas de
trabalhadores na cidade encontrámos dois casos idênticos. Nestes casos, os líderes do
CPI(M), que iniciaram as cooperativas, viam-nas como fontes de financiamento do
partido e como oportunidade para empregar os seus quadros.

4.2. O funcionamento democrático

Para além do apoio do sindicato, outro factor importante para o funcionamento destas
cooperativas foi a sua democracia interna. Nas cooperativas iniciadas pela SEWA, a
democracia não se restringia à eleição dos líderes. O sindicato organizou programas
para os membros das cooperativas, com o objectivo de os treinar para o assumir do
controlo da organização. Posteriormente, descobrimos que os membros ordinários das
duas cooperativas estavam conscientes do funcionamento das suas cooperativas. Eles
participavam activamente nas reuniões regulares realizadas pelo sindicato para
analisar os problemas das cooperativas. O aspecto mais importante destas discussões
é que os pontos de vista dos membros ordinários eram levados a sério e os membros
ordinários eram encorajados a serem críticos quando expressavam a sua opinião ou
apresentavam sugestões.

Em Calcutá, as cooperativas possuíam uma democracia interna e os líderes sindicais


desempenharam um papel positivo na sua promoção, com excepção da cooperativa
tipográfica. Os líderes encontravam-se frequentemente com os trabalhadores e
explicavam-lhes os problemas. A disseminação da informação é a base da democracia
interna. Nas três cooperativas, os líderes tentaram manter os membros informados em
relação a todos os aspectos das cooperativas. As actividades do dia-a-dia e os
assuntos políticos eram resolvidos por consenso. Este facto garantiu que todos os
trabalhadores participassem activamente no funcionamento da cooperativa.

Na cooperativa, a democracia foi praticada através de meios formais e informais. Os


meios formais incluíam as Assembleias dos Órgãos Gerais da cooperativa, onde os
relatórios eram apresentados para discussão e as políticas eram determinadas.
Existiam regularmente eleições para o Comité de Gestão (Conselho de Directores). O
resultado das eleições na cooperativa de construção naval era sempre unânime. O
número de membros era reduzido, sendo possível aos líderes tentarem chegar a um
consenso sobre os lugares no Conselho de Gerência.

A cooperativa de cabos de alumínio tinha, comparativamente, um maior número de


trabalhadores e as eleições eram disputadas, apesar dos seus estatutos preverem que
só os que se dedicassem ao empreendimento podiam contestar as eleições. Apesar de
puderem votar, os membros que não trabalhassem na cooperativa não podiam
contestar as eleições. Em todas as cooperativas, os membros do Comité de Gestão
eram substituídos por intermédio da realização de eleições, dando assim oportunidade
a um maior número de membros de tomar parte no processo de decisão. Os métodos
informais incluíam manter discussões e agendar reuniões com os sindicatos, com o
objectivo de explicar aos trabalhadores o funcionamento da cooperativa. Este método
possibilitou uma maior compreensão dos problemas da cooperativa. Os trabalhadores
também podiam dar sugestões sobre a melhor forma de gerir a cooperativa.

A democracia interna estava bem implantada na cooperativa de maquinaria de arame.


As decisões políticas eram tomadas pelo Comité de Gestão. Neste Comité, existia um
pequeno grupo que parecia dominar o processo de decisão. Inicialmente, este facto
deu a impressão que este grupo de cinco membros estava a tomar todas as decisões
em nome da cooperativa. No entanto, posteriormente, descobrimos que este grupo
consultava os trabalhadores antes de tomar as decisões mais importantes, ou mantinha
os trabalhadores informados acerca de todas as decisões.

O funcionamento democrático tornou-se um problema na cooperativa de tipografia,


uma vez que os seus membros estavam divididos. As reuniões dos órgãos gerais desta
cooperativa terminavam invariavelmente num caos, uma vez que as posições entre os
dois grupos estavam claramente demarcadas. Na altura em que efectuámos este
estudo, os novos membros, com a ajuda da influência política dos líderes locais do
CPM, conseguiram que o Departamento Cooperativo nomeasse um administrador para
a cooperativa, uma vez que o Comité de Gestão era incapaz de tomar qualquer
decisão ou aprovar qualquer resolução. Assim sendo, a situação interna da cooperativa
enfraqueceu o seu funcionamento democrático.

4.3. O papel do Estado

Outro aspecto importante é o papel do Estado. No caso das cooperativas de colectores


de lixo, o Estado nem ajudou nem impediu a sua formação. Ao mesmo tempo, existiam
outras situações, como a perseguição por parte das autoridades locais e o termo dos
contratos para recolher papel velho dos gabinetes governamentais, que podem ser
consideradas aspectos negativos da interferência do Estado. As cooperativas foram
capazes de ultrapassar estes problemas através da acção do sindicato. Enquanto
sindicato, a influência da SEWA vai para além da filiação dos colectores de lixo e,
assim, o seu peso colectivo é elevado. Por isso, o apoio da SEWA como sindicato foi
em grande parte responsável pelo aligeirar das situações adversas enfrentadas pelas
mulheres colectoras de lixo.
A situação dos trabalhadores cooperativos em Calcutá era mais complexa. A
intervenção do Estado era necessária para a sua formação. O apoio do Estado adveio
sobretudo do apoio político de que gozavam os seus sindicatos. No entanto, depois das
cooperativas serem formadas, o apoio do Estado foi retirado. Os trabalhadores tiveram
que se defender a eles próprios. Outra característica que sobressai é a da corrupção.
Para além de não obterem as garantias prometidas para contraírem empréstimos, as
cooperativas descobriram que tinham de pagar subornos a diversas agências
governamentais para obterem as encomendas e cobrarem as dívidas. Isto apesar do
facto do governo estatal ter uma regra em que se deve dar às cooperativas preferência
na obtenção encomendas.

A corrupção poderia ter sido neutralizada se o sindicato (CITU) tivesse tomado, a nível
estatal, uma posição de resistência a estas práticas. O sindicato assegurou que estas
cooperativas obtinham a preferência prometida pelos governos estatais e pressionou o
Estado para efectuar os pagamentos às cooperativas de forma célere. Infelizmente,
isso não se verificou. Há uma diferença entre o apoio dos líderes locais do CITU às
suas cooperativas e a posição do CITU a nível estatal. De facto, nem o CITU nem o
CPI(M) realçaram as realizações destas cooperativas nas conferências do Estado ou
nos seus relatórios anuais. A sua abordagem surgia como: os trabalhadores
cooperativos podiam ser tolerados, mas não tinham qualquer valor. Esta abordagem é
inoportuna porque, embora o CITU e o CPI(M) proclamassem serem organizações
marxistas, pareciam não ter consciência dos pontos de vista positivos de Marx em
relação aos trabalhadores cooperativos. Por outro lado, o relatório anual da SEWA faz
uma referência especial às realizações e aos problemas das cooperativas que ela
apoiou.

Em conclusão, podemos afirmar que, apesar de todos os problemas e deficiências,


estas cooperativas demonstraram que, se lhes for dada a essa oportunidade,
trabalhadores comuns são capazes de assumir o controlo dos meios de produção. Os
trabalhadores cooperativos em Calcutá tentaram, dentro das suas limitadas, proteger
os postos de trabalho e a produção através do seu esforço colectivo. A sua
determinação, que ficou demonstrada pelo seu esforço, e pode ser aferida no facto da
cooperativa ter existido durante vários anos, apesar das contrariedades verificadas. Os
colectores de lixo, organizados pela SEWA em Ahmedabad, demonstraram que os
sectores mais pobres e socialmente marginalizados podem melhorar a sua condição
económica e social através do movimento cooperativo.

Referências Bibliográficas

Bhatt, Ella (1997), «SEWA as a movement», R. Dutt (org.), Organising the Unorganised
Workers. Deli: Vikas Publishing House.
Bhowmik, Sharit K. (1992), «Worker Co-operatives in the Plantation System: A Study Of
Tribal Tea Plantation Workers in Eastern India», Labour, Capital and Society 25(2).
Montreal.
Bhowmik Sharit K. (1994), «Worker Co-operatives in the Unorganised Sector: An
Alternative Strategy» Sarath Davala (org.), Unprotected Labour in India. Deli:
Fundação Friedrich Ebert.
Marx, K e Engels, F. (1976), Select Works, Primeiro Volume. Moscovo: Progress
Publishers.
NCUI (1969), Report of the Committee on Principles of Co-operation formed by the
International Co-operative Alliance. Delhi: National Co-operative Union of India.
Rose, Kalima (1995), Where Women are Leaders. Deli: Sage Publications.
SEWA (1999), Self Employyed Womens´s Association 1999. Ahmedabad: Shri Mahila
SEWA Trust.
COMUNIDADE, PROPRIEDADE E GARANTIAS NA ÁFRICA DO SUL RURAL:
OPORTUNIDADES EMANCIPATÓRIAS OU ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
MARGINALIZADAS?2

Heinz Klug

Introdução

Para uma grande parte da humanidade, a oportunidade de produzir depende da sua


capacidade de conseguir acesso à terra. Apesar da urbanização e dos imperativos da
economia de mercado é a capacidade de cultivar pelo menos uma pequena quantidade
de géneros - milho, feijão, arroz - como suplemento de outras formas de rendimento,
como salários, subsídios ou pensões, o que, para inúmeras famílias, marca a diferença
entre a capacidade de manterem uma parca subsistência ou a sua lenta desintegração.
Qualquer projecto que procure reinventar a emancipação social, especialmente através
da busca de formas alternativas de produção, tem que abordar esta realidade.
Confrontados com o sub-emprego crónico e com as vastas desigualdades na posse da
terra, os activistas e os políticos de muitas regiões do mundo viraram-se, ao longo do
século XX, para a reforma agrária. Apesar das enormes dificuldades políticas e
institucionais, a reforma agrária e a sua promessa de tornar seguro o acesso a um dos
recursos de produção primários constitui ainda uma parte importante de qualquer
agenda progressista fora dos países mais desenvolvidos. Mas, mesmo nestes, os
padrões de discriminação e de insegurança na posse da terra são ainda elementos
centrais nas vidas de comunidades profundamente empobrecidas.

Após sete anos de governo democrático, o debate em torno do programa de reforma


agrária na África do Sul é frequentemente reduzido a uma discussão sobre se o copo
está meio cheio ou meio vazio (DLA, 1998 e Cliffe, 2000: 273-286). Embora a
promessa contida no manifesto eleitoral do Congresso Nacional Africano (ANC) de
1994 - a transferência de 30% da terra - não tenha sido cumprida nos primeiros cinco
anos do governo, milhares de famílias e indivíduos pertencentes aos sectores mais
marginalizados da sociedade beneficiaram da nova estratégia tripla de reforma agrária
elaborada pelo governo: restituição da terra, redistribuição da terra e reforma do direito
de posse da terra. Mais de 12.000 agregados familiares receberam acima de 266.000
hectares de terra ao abrigo do programa de restituição (Brand, 2000), enquanto que
quase um quarto de milhão de pessoas envolvidas em 279 projectos receberam terra
através do programa de redistribuição (Hanekom, 1998). No entanto, no ano 2000, com
o abandono, por parte do governo, da sua proposta de Lei dos Direitos sobre a Terra,
bem como com outras alterações na política, tornou-se claro que o programa estava a
vacilar, particularmente na área da reforma do regime de posse da terra (Mayende,
2001), a qual prometia segurança no direito de posse da terra aos milhões que viviam
nas zonas mais empobrecidas e subdesenvolvidas do país - os antigos «bantustões»
negros.

2
Texto não editado.
Mesmo que continue a ser tristemente verdade que o mais nítido indicador de pobreza
na África do Sul da viragem do milénio fosse o ser-se negro, mulher e habitante de uma
área rural, o programa de reforma agrária deu origem a algumas oportunidades
interessantes para a criação de vias alternativas para a produção e construção de
comunidades viáveis. Apesar de uma anunciada mudança política, na qual o governo
decidiu contemplar os produtores agricultores negros, em vez das comunidades rurais
empobrecidas, como beneficiários de uma reforma agrária contínua (Karouik, 2000), a
luta pelo acesso à terra tem persistido, forçando o governo a prometer uma reforma
ainda mais ampla e rápida (Mbeki, 2001). Este estudo irá centrar-se no conflito em
torno da dimensão política e institucional destas reformas, em particular sobre a criação
de uma forma legal para o reconhecimento da propriedade comunal que
simultaneamente garanta os direitos de propriedade dos participantes e exija que os
membros desta nova instituição detentora da propriedade adopte formas de
governação internas que sejam, por um lado, democráticas em termos de
procedimentos e, por outro, baseadas nas noções formais de igualdade social e de
sexo.

1. A opressão da pobreza estrutural

Um dos maiores desafios na avaliação destas alternativas e do seu potencial


emancipatório é clarificar a natureza do objectivo emancipatório em consideração.
Dados os fracassos de um século de desenvolvimento capitalista em África, e em
particular na África do Sul rural, quero, neste contexto, restringir o objectivo de
emancipação à simples libertação relativamente à opressão da pobreza estrutural.
Partindo deste ponto de vista, a dependência, ou a falta de autonomia e de auto-
determinação no seu sentido mais amplo, é a característica central da opressão sob
condições de democracia formal. Assim, em vez de se centrar somente na natureza do
processo de produção, este estudo tem como objectivo considerar o potencial de uma
concepção ampla de emancipação relativamente à dependência social, económica e
política enquanto alternativa aos sistemas actuais de produção na África do Sul rural.
Isto, no mínimo, pode implicar uma série de liberdades simples: poder trabalhar sem
coerção; estar liberto da fome e doença regulares; e poder participar na tomada de
decisões que têm um impacto directo sobre a vida das pessoas e da comunidade. No
máximo, isto poderia fornecer, potencialmente, um espaço onde as comunidades se
poderiam lançar no mercado com uma posição de relativa auto-suficiência,
simultaneamente confrontando algumas das questões internas de sexo e de autoridade
que limitam as possibilidades de uma emancipação interna, intra-comunitária ou
individual.

Apesar dos acordos de posse de terras e dos estatutos das comunidades revelarem
uma grande variação, desde os anteriores bantustões ou áreas comunais até às
quintas comerciais e empresariais, em zonas climáticas e agrícolas muito
diferenciadas, as possibilidades de escolha para a grande maioria dos beneficiários da
reforma agrária mantêm-se extremamente reduzidas. Para a larga maioria de sul-
africanos rurais, a oportunidade imediata é obterem alguma forma de segurança no
direito de posse e, assim, esperarem aceder a uma quantidade de terra suficiente para
poderem adoptar uma estratégia exequível com diferentes patamares, de produção
agrícola, de criação de animais e de emprego não-agrícola, de modo a assegurarem o
seu sustento e a reerguerem-se gradualmente, após a destruição e rejeição que
caracterizaram o apartheid que se seguiu a um século de expropriação colonial.

2. Desenvolvimento, propriedade e formas alternativas para a posse da


terra

Mesmo o acesso à terra pode não ser suficiente. Baseando-se no seu estudo acerca
da produção de meios de subsistência e classe social em KwaZulu-Natal, Michael
Carter e Julian May concluem que, entre outras limitações como sejam o regresso
limitado ao trabalho não qualificado e o esforço de procurar água e combustíveis,
encontram-se «restrições financeiras que limitam a capacidade de os pobres utilizarem
eficazmente os recursos produtivos e as doações (por exemplo, a terra) que realmente
possuem» (Carter e May, 1999: 16). Estes autores sugerem que uma estratégia política
eficaz seria a busca de formas de levantar «os constrangimentos que limitam a eficácia
com a qual os pobres das zonas rurais conseguem utilizar os bens e doações limitados
que possuem», através da promoção de instituições financeiras locais de micro-crédito
e do fornecimento de serviços essenciais, em especial a água e a energia (1999: 16).
As implicações para a reforma agrária são claras: para além de facultar o acesso ao
recurso básico, a terra, existe uma necessidade de promover pelo menos um grau
mínimo de desenvolvimento rural que permita às famílias e comunidades pobres
empregarem quaisquer novos recursos a que ganhem acesso.

O desenvolvimento rural é ainda um dos maiores desafios que se coloca à África do


Sul e o perigo de grandes sectores da sociedade «poderem ficar presos numa
armadilha estrutural de pobreza crónica» (Carter e May, 2000) é mais do que mero
pessimismo. É neste contexto que o debate em torno da reforma agrária e do direito de
posse, incluindo o debate entre a propriedade comunal e a propriedade privada,
permanece no centro das discussões acerca dos meios, mecanismos e instituições
necessários à promoção do desenvolvimento rural. Apesar da relação entre as áreas
rurais «negras» empobrecidas e as metrópoles urbanas «brancas» altamente
desenvolvidas ter sido analisada, de há muito tempo a esta parte, em termos do papel
que as áreas rurais desempenham como reservas de trabalho e no apoio à reprodução
da força de trabalho, o papel da posse comunitária da terra e da estrutura de
governação (seja ela a autoridade tradicional ou o governo local democrático) nestas
áreas aparece agora como questão central na reflexão sobre o futuro.

Embora a origem do subdesenvolvimento de África permaneça polémica, as recentes


tentativas de promoção do desenvolvimento têm-se centrado na questão dos direitos
de propriedade privada. As instituições económicas internacionais, tais como o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, não só têm enfatizado a privatização
dos bens estatais, como têm crescentemente transferido o seu enfoque para o futuro
do regime de posse da terra, quer através da garantia dos direitos de propriedade
existentes, quer através da divisão e privatização dos bens comuns africanos — «de
modo a promover o investimento do capital e a encorajar uma produtividade mais
elevada» (Krueckberg, 1999: 105). Paralelamente, contudo, estudos acerca dos
esquemas de registos e títulos indicaram que enquanto que «a concessão de títulos
pelo Estado é importante para os futuros investidores» que, sob os sistemas indígenas,
não têm exigências de terra legítimas, «as inspecções e concessões de títulos são
geralmente um meio através do qual as elites e os grupos étnicos dominantes
despojam os criadores de gado e outros utilizadores não-intensivos ou sazonais dos
recursos de que, no entanto, necessitam» (Bruce et al, 1994: 260).

Em resposta, os críticos da privatização viraram-se frequentemente para a ideia de um


regime de posse comunal como sendo o legado histórico da África pré-colonial e uma
alternativa possível à propriedade privada. No entanto, já não é possível confiar apenas
nas regras de posse da terra consuetudinárias ou tradicionais, presumindo que «as
sociedades pré-industriais devem a sua coesão a valores livremente aceites e
igualmente partilhados» (Hopkins, 1973: 27). Um tal romantismo «falha na
compreensão de que a solidariedade pode ser resultado da obrigatoriedade» (idem).
Para além disso, a noção de que o simples reconhecimento das formas de posse da
terra indígenas irá reflectir as exigências e as necessidades das comunidades rurais
não consegue reconhecer o impacto do colonialismo sobre a própria elaboração da lei
consuetudinária. Esta situação, por sua vez, levanta a questão do papel das
«autoridades tradicionais» nas sociedades pós-coloniais, particularmente à luz do
reconhecimento simultâneo, em muitas constituições pós-coloniais, de autoridades
tradicionais, do direito indígena e de vários princípios universais de igualdade e de
participação democrática.

Na África do Sul, o reconhecimento do direito indígena nas Constituições do pós-


apartheid leva a um confronto entre estas diferentes concepções, particularmente no
contexto do regime de posse da terra «indígena». Por forma a responder à exigência
dos habitantes das zonas rurais relativamente a formas colectivas de propriedade da
terra, o governo vê-se confrontado com a dificuldade de desentrelaçar os direitos
indígenas sobre a terra do legado colonial de administração indirecta, de acordo com o
qual a soberania política e a propriedade da terra se encontravam interligadas (Klug,
1995 e Mamdami, 1996). O resultado deste entrelaçamento colonial de soberania com
direitos da terra foi o aprisionamento dos direitos de propriedade dos indivíduos, grupos
familiares e comunidades vivendo sob sistemas comunitários de posse da terra num
modelo administrativo de direito consuetudinário (Chanock, 1991: 76). A administração
indirecta estabelece a atribuição de pequenos lotes de terra no seio de uma
comunidade como um «acto administrativo oficial» dos líderes tradicionais (Bennett,
1995: 133). Tal veio impor um sistema de apadrinhamento e dependência política
simultaneamente minando a governação comunitária e reformulando o papel das
autoridades tradicionais no processo político. Depois de as autoridades coloniais terem
construído uma visão dos direitos de posse da terra africanos em termos do «direito
consuetudinário», segundo a qual os direitos mais importantes - a distribuição, a
alienação e a reaquisição - eram atribuídos exclusivamente à autoridade política, na
pessoa do chefe, foi pequeno o passo até à declaração de que a perda dos poderes de
soberania deste para a autoridade colonial fazia com que os direitos à terra africana
ficassem sujeitos à autoridade administrativa.
O colapso dos direitos de propriedade para o domínio da autoridade superior teve
consequências igualmente debilitantes para os direitos políticos dos Africanos.
Baseada nas práticas da «administração indirecta», defendida pela primeira vez por
Theophilus Shepstone e modificada por Lord Lugard, a «preservação» de «terras
nativas e de autoridades tradicionais» converteu-se na justificação para a exclusão dos
Africanos de uma participação política mais ampla (Ashforth, 1990: 35-37). Estas
consequências políticas levam Martin Chanock a concluir que precisamos pensar
acerca dos direitos sobre a terra «como sendo centrais à natureza da política africana
moderna», bem como ao papel e o domínio do direito nos Estados africanos. Em
resultado, estes importantes direitos económicos e, em última instância, políticos,
permanecem inseguros dado estarem subordinados a um regime administrativo que
não garante aos proprietários de terras quaisquer direitos face ao Estado (Chanock,
1991: 82).

Este resultado histórico levanta questões sérias acerca do reconhecimento do direito


indígena da terra no contexto pós-apartheid. Para sustentar o espírito da nova
constituição e, simultaneamente, revitalizar o direito indígena, o novo Estado tem que
assegurar que as comunidades e indivíduos que desejem continuar a possuir terra no
quadro de uma ética indígena da terra possam determinar os contornos dessa forma de
posse sem interferência administrativa baseada nas noções colonialmente construídas
acerca do conteúdo da posse indígena da terra. As comunidades podem então re-
injectar na posse indígena práticas e normas comunitárias, em vez de ficarem
dependentes de autorizações administrativas. Este processo contém o potencial de
libertar os conceitos e as regras legais «consuetudinários» das suas amarras coloniais
e de colocar noções legais formais de posse indígena, a par com as mais recentes
interpretações em ciências sociais. São de particular importância os trabalhos recentes
em história e antropologia jurídica (Maddock, 1996) a enfatizam até que ponto o quadro
legal da «posse consuetudinária» é moldado pela sua construção num contexto
dominado por noções legais particulares, e culturalmente específicas, de propriedade e
de posse, e o modo como os imperativos coloniais moldaram o conteúdo particular
atribuído à posse consuetudinária (Berry, 1993; Mann e Roberts, 1991).

3. Reforma da posse e a criação de um espaço institucional contestado

Quando a Communal Property Association Act foi introduzida, foi proclamada como «a
legislação mais progressista formulada pelo governo até à data», uma vez que «envia
uma mensagem clara às organizações não-governamentais, às autoridades locais,
para-estatais e à sociedade em geral sobre aquilo que o governo entende pelo conceito
de controle democrático» (Streek, 1996). Embora a Lei CPA fosse adoptada para lidar
com uma série de dificuldades associadas à restituição e redistribuição de terras, a sua
adopção na elaboração da constituição, enquanto meio de resolução destes
problemas, reflecte o poder do paradigma constitucionalista na nova África do Sul. Esta
lei requer que os beneficiários quer de reclamações de terra colectiva, quer de
programas governamentais de reforma agrária escolham uma «estrutura
constitucional» através da qual se possam constituir enquanto comunidade e possuir e
controlar colectivamente o seu recurso primário — a terra. Entre as dificuldades
imediatas levantadas pelos diferentes programas para a devolução e redistribuição de
terras, estava a questão de saber como os beneficiários destes programas seriam
identificados e como possuiriam legalmente a terra que recebessem. Embora tenha
sido feito um apelo à nacionalização da terra, cedo desacreditado durante a transição
democrática, houve uma pressão inicial por parte do antigo regime durante a transição
— que se reflectiu na aprovação da Lei de Actualização dos Direitos de Posse — para
salientar a livre titularidade individual como a opção preferível (Cross e Haines, 1988).
Todavia, o reconhecimento de que os requerentes rurais continuaram a buscar alguma
forma de controle ou posse comunitária voltou a chamar a atenção para as formas
«tradicionais» ou «consuetudinárias» de posse da terra que permanecem, de algum
modo, tanto a prática quanto a aspiração de muitas comunidades africanas (Small e
Winkler, 1992; Cross, 1992). Porém, as dificuldades são enormes. A adopção de
formas «consuetudinárias» de posse da terra coloca questões sobre a natureza e as
fontes da «lei consuetudinária», incluindo o papel dos chefes e o estatuto das mulheres
e dos comuns em tais comunidades (Holomisa, 2000). Apesar de a natureza exacta da
posse «tradicional» ou «indígena» ser posta em dúvida pela romantização de alguns e
por questões acerca da sua manipulação durante o período colonial, a possibilidade de
fornecer um mecanismo processual para a criação de formas comunitárias de posse
parecia, à primeira vista, satisfazer quer os admiradores da tradição, quer aqueles que
estão empenhados na participação democrática.

Apesar de os que lutaram pelo reconhecimento dos direitos de propriedade na


Constituição Sul Africana poderem ter concebido estes direitos em termos universais
enquanto, primeiro que tudo, direitos individuais para proteger os indivíduos de um
Estado predatório, a cláusula final acerca da proprieade refere-se explicitamente aos
direitos das comunidades sobre a terra, reconhecendo assim os direitos de propriedade
comunal como uma forma de propriedade constitucionalmente legítima. Quando lida à
luz do reconhecimento do direito consuetudinário e dos líderes tradicionais, por parte
da Constituição, a perspectiva da posse da terra comunal e a sua ligação a formas de
governação «tradicional» cria um contexto particular no seio do qual são imediatamente
trazidos à baila conflitos em torno da definição de comunidade e da governação local.
Tal como indicam as discussões acerca dos poderes do chefe sobre a terra, existe um
leque bastante amplo de opiniões sobre dos tipos, extensão e natureza do poder do
chefe sobre a terra ao abrigo do direito consuetudinário; no entanto, a relação entre
governação e terra é afirmada claramente (Kerr, 1990: 29-43). Simultaneamente, a
promessa de restituição por parte da Constituição, incluindo a devolução de terra a
comunidades despojadas, veio imediatamente levantar o problema da identificação - a
quem é atribuído o controlo sobre estas terras e quem deve ter o poder de tomar
decisões acerca do seu uso e desenvolvimento futuros. Dada a existência de um
contexto em que muitos agregados familiares são, na prática, chefiados por mulheres,
esta revela-se uma questão muito delicada.

Embora a luta anti-apartheid se tenha fundado em reivindicações de democracia e


igualdade - de igualdade racial, em particular - o relativo sucesso da exigência de
igualdade de sexo não foi de todo previsto. Apesar de muitos movimentos anticoloniais
terem adoptado um papel igual para as mulheres durante as suas lutas, em muitos
casos, o Estado pós-colonial ou falhou em manter esta promessa, ou reafirmou
activamente noções mais particularistas das relações entre os sexos no período pós-
independência. Foi esta preocupação que levou mulheres Sul Africanas de todos os
quadrantes do espectro político a unir-se na multipartidária «Women’s National
Coalition». Enquanto que este corpo fornecia uma base para a afirmação e relativo
sucesso das reivindicações quanto ao sexo na elaboração da Constituição provisória
de 1993, a «Liga das Mulheres do ANC», ao levar a cabo um «sit-in» no local das
negociações, fez valer a exigência de que em cada delegação presente nas
negociações um dos dois representantes do concelho de negociação fosse uma
mulher. Em consequência, a África do Sul representa o primeiro caso em que o corpo
de elaboração da Constituição foi formalmente constituído por um igual número de
homens e mulheres. Ao mesmo tempo, a «Liga das Mulheres» continuou a exercer
pressão no sentido de ganhar uma maior participação no seio do ANC, obtendo uma
recomendação do comité nacional de trabalho do ANC no sentido de um terço de todos
os candidatos do ANC às eleições de Abril de 1994 serem mulheres (Saturday Star, 16
de Outubro de 1993: 6).

Estas vitórias não foram uni-lineares. Apesar destes avanços numa sociedade, em
todos os outros aspectos, profundamente sexista, e apesar do efeito encantatório no
nível popular da visão do movimento democrático de uma África do Sul «não-racial e
não-sexista», as mulheres com participação activa no processo de negociação tiveram
que se defender de um desafio directo resultante das reivindicações dos líderes
tradicionais e das suas exigências pelo reconhecimento do direito indígena.
Inicialmente, os líderes tradicionais representados no processo de elaboração da
Constituição procuraram proteger o direito consuetudinário dos preceitos de igualdade
previstos na Constituição. Seguindo o modelo do Zimbabué, estes líderes propuseram
uma constitucionalização do sistema legal duplo existente, de tal forma que o direito
consuetudinário e o direito geral sul-africano constituissem sistemas legais paralelos,
não possuindo nenhum deles o poder de interferir com o outro (Currie, 1998: 36-3).
Estas reivindicações pelo reconhecimento da cultura indígena levaram a uma tentativa
de incluir na carta de direitos provisória preceitos que reconhecessem o «direito
consuetudinário» e regulassem as contradições entre o direito indígena e outros
«direitos fundamentais». Embora tenha sido rejeitada, uma proposta provisória de carta
de direitos apresentada garantiu a «qualquer tribunal que aplique um sistema de direito
consuetudinário» o poder de determinar a extensão até à qual o direito consuetudinário
pode sobrepor-se ao preceito de igualdade e de decidir quando e em que extensão
estas regras - mesmo nos casos em que discriminam as mulheres - devem estar em
conformidade com a exigência de igualdade prevista na Constituição. No entanto, em
termos finais e, sobretudo, em consequência da firmeza das mulheres do ANC, a
Constituição provisória veio colocar-se a favor da igualdade de sexos, tornando o
direito indígena «sujeito a regulação pela Lei», implicando assim a sua subordinação
aos direitos fundamentais contidos na Constituição, particularmente no que toca à
igualdade dos sexos.
Em consequência, a igualdade dos sexos foi formalmente reconhecida pela carta de
direitos provisória e a Constituição provisória incluiu provisões específicas para o
estabelecimento de uma Comissão para a Igualdade dos Sexos «para aconselhar e
emitir recomendações ao Parlamento ou a qualquer outra entidade legislativa,
respeitantes a quaisquer leis ou propostas de lei que afectem a igualdade de sexo e o
estatuto da mulher». Para além disso, inserida na tentativa geral efectuada pelo
governo de de Klerk para dominar as negociações, a África do Sul ratificou a
Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
conta as Mulheres, em Janeiro de 1993, vinculando o Estado Sul-africano a obrigações
particulares internacionais nesta área. Assim, a inclusão eficaz do princípio de
igualdade dos sexos na Constituição provisória de 1993 e na sua redacção «final» de
1996 foi produto da interacção da mobilização local das mulheres contra a
discriminação sexual e o aumento do reconhecimento da igualdade dos sexos como
uma norma dos direitos humanos e do constitucionalismo aceite internacionalmente.

Consequentemente, enquanto que a Constituição celebra, por um lado, o


reconhecimento dos líderes tradicionais e do seu papel no contexto do direito
consuetudinário, por outro lado, faz com que o papel da liderança tradicional e o direito
consuetudinário fiquem sujeitos à Constituição. Assim, apesar do reconhecimento
histórico do estatuto de igualdade entre o direito indígena e o direito anglo-saxónico
colonial herdado, tal apenas foi alcançado através da sua subjugação mútua aos
valores universais da Constituição. A vitória legal da igualdade sobre a «tradição»
deve, contudo, ser entendida no contexto de um processo político contínuo, no qual o
estatuto dos líderes tradicionais permanece fluido. Por exemplo, quando um helicóptero
aterrou na cerimónia de tomada de posse do Chefe Patikile Holomisa, em Abril de
1999, e fez sair o Ministro dos Assuntos Constitucionais, Valli Moosa, o Ministro da
Segurança Interna, Sidney Mafumadi e o Presidente Mandela, o que se afirmava ser
meramente a cerimónia de tomada de posse de um chefe local foi transformado num
momento de grande importancia constitucional e política, indicando um novo nível de
reconhecimento da liderança tradicional. Este é então o contexto em a Lei sobre a
Associação de Propriedade Comunitária (CPA) e, em particular a sua exigência de
igualdade dos sexos, foi concebida e está a ser implementada. Por um lado, tem sido
cada vez maior o reconhecimento da importância política das autoridades tradicionais e
do direito indígena, por outro lado, tem-se verificado o triunfo formal do universalismo.

4. A Lei sobre a Associação de Propriedade Comunitária (CPA)

O reconhecimento constitucional dos direitos de propriedade, o direito consuetudinário


e a autoridade tradicional, tal como a propriedade comunal e a igualdade entre os
sexos, definiram o terreno em que o governo de Mandela prosseguiu os seus
objectivos de restituição e redistribuição de terra. A importância política e simbólica
destes objectivos está reflectida no facto de a primeira lei aprovada pelo novo
Parlamento democrático ter sido a Lei de Restituição dos Direitos da Terra. Tendo
assegurado o reconhecimento das reclamações de terra e um processo para a
restituição da mesma, o governo enfrenta agora um problema de definição das vias e
instituições através dos quais serão constituídas as comunidades que herdarão a terra.
Embora seja essencial reconhecer que a expropriação colonial e o apartheid tiveram
consequências dramáticas para as comunidades rurais e para as formas «tradicionais»
de ocupação da terra, é igualmente importante reconhecer o impacto da resistência e
da mobilização destas comunidades em resposta à opressão colonial. Muitas destas
comunidades responderam activamente à emergência dos mercados coloniais e, até à
sua exclusão, competiram em condições vantajosas contra os agricultores brancos no
mercado (Bundy, 1979). Muitas outras comunidades e grupos familiares individuais
agarraram-se à terra durante os períodos colonial e do apartheid, resistindo
frequentemente à expulsão ou adoptando estratégias de aparente concordância com a
nova configuração da posse da terra, de modo a poderem nela permanecer (van
Olselen, 1995). É esta tenacidade, reflectida mais claramente nas lutas das
comunidades que resistiram às remoções forçadas (Platzky e Walker, 1985) ou dos
trabalhadores que ocupavam as terras e que a elas se agarraram (Trac, 1988), que
deve acabar com a ideia de que as pessoas não valorizam ou não querem ter acesso à
terra. Mais do que isto, ficou agora claramente demonstrado que o acesso à terra e aos
recursos naturais mantém o seu importante valor económico para os modos de vida
rural (May, 2000) até mesmo naqueles antigos bantustões onde a degradação do solo
e a sobrepopulação reduziram em muito a capacidade agrícola (Shackleton,
Schakleton e Cousins, 2000). O dilema é, portanto, imaginar uma configuração
institucional que tenha quer o potencial de permitir aos habitantes rurais uma forma de
posse mais segura, quer a capacidade de fornecer um meio através do qual as
comunidades rurais possam proteger os seus recursos de serem despojados pelas
elites políticas ou por outros interesses externos permanecendo, simultaneamente,
suficientemente dinâmico para permitir a resolução democrática de tensões intra-
comunitárias importantes e frequentemente conflituosas.

Para além disso, para muitas comunidades que foram fisicamente destruídas e se
dispersaram com o processo da remoção forçada, este acto constitutivo seria baseado
na a própria definição de quem deveria ser incluído como beneficiário da restituição.
Outras comunidades que ainda mantinham uma pequena posição na terra seriam
deixadas livres para decidir a forma como o seu recurso deveria ser utilizado e os seus
benefícios distribuídos entre os membros reconhecidos. Como consequência, o
governo, ao reconhecer que a terra deveria ser transferida para grupos de pessoas,
mal-definidos, conflituosos ou simplesmente detentores de recursos muito escassos, foi
forçado a pelo menos esboçar um processo através do qual estas comunidades se
pudessem constituir. Assim, tal facto impulsionou a forma que a lei CPA veio a ter.

A característica central da Lei CPA é a exigência de que os beneficiários da restituição


ou da reforma agrária adoptem uma constituição, auto-definindo-se e definindo os
meios através dos quais tencionam gerir o seu «novo» recurso. Simultaneamente, a Lei
impõe um conjunto de requisitos universais através da inclusão de princípios
constitucionais e de um plano geral dos assuntos que devem ser considerados numa
constituição, até que esteja pronta a ser registada. O estatuto exige quer um processo
específico de procedimentos, incluindo os processos de proposta, adopção e registo,
quer cláusulas substantivas para futura monitorização, regulação, aplicação e até
mesmo apoio na resolução de conflitos, por parte do governo. O conjunto de princípios
constitucionais incluídos na Lei fornece uma orientação específica para a formulação e
adopção de cinco princípios «universais»: (a) processos de tomada de decisão justos e
abrangentes; (b) igualdade no acesso à qualidade de membro; (c) processos
democráticos; (d) acesso justo à propriedade das associações; e (e) responsabilização
e transparência. Para além disto, a lei prevê que, para poder ser registada, a
constituição deve abordar uma lista de matérias incluídas num apêndice da Lei, onde
estão, principalmente, cláusulas para definição: (1) da qualidade de membro da
comunidade; (2) dos direitos de propriedade dos membros; (3) da forma como os
membros serão representados nos processos de tomada de decisão da comunidade;
(4) dos métodos para o abandono da comunidade, incluindo as disposições relativas
aos direitos de propriedade em casos de expulsão, saída ou morte; e (5) a forma como
a constituição pode ser alterada e/ou a associação dissolvida e os seus bens
distribuídos. Por fim, a constituição deve incluir mecanismos tanto para a resolução de
conflitos quanto para a definição e aplicação de medidas disciplinares contra os
membros da comunidade. São, em particular, estes últimos requisitos que unem a linha
divisória entre o que pode ser entendido, em algumas circunstâncias, como um mero
acordo contratual para a gestão da propriedade conjunta — tal como um trust ou um
acordo de titularidade sectorial — e um sistema constitucional de governação, dentro
do qual são criados, definidos e limitados os poderes.

É esta distinção entre, por um lado, um mecanismo legal para a co-gestão da


propriedade conjunta e, por outro, a criação de um sistema de governação colectiva do
recurso produtivo primário de uma comunidade, que sugere quer o potencial
emancipatório existente na forma da Associação de Propriedade Comunitária, quer a
fonte da resistência a esta mesma forma, oriunda particularmente das autoridades
tradicionais.

5. Governando os comuns da comunidade: constituições das CPA e


controle da terra

Apesar de a Lei CPA assumir que as comunidades vão elaborar as suas próprias
constituições através de um processo de intensa participação democrática, marcada
pelo empoderamento dos indivíduos e grupos anteriormente marginalizados por uma
combinação de «tradição» e domínio do apartheid, a prática veio a revelar-se mais
ambígua. Esta ambiguidade é notória nas constituições de 100 das aproximadamente
150 CPA’s registadas nos primeiros três anos. Destas 100 constituições, 60 são
versões praticamente idênticas de dois modelos particulares. Enquanto que 40 destas
60 são réplicas aproximadas do que pode ser definido como «modelo Gugulethu», as
restantes 20 são versões quase iguais de um modelo que parece ter sido desenvolvido
e aplicado numa região particular, a província de Free State. As restantes 40 das
primeiras 100 CPA’s registadas incluem exemplos que variam entre algumas que
evidenciam claramente uma influência popular específica - particularmente na
identificação das violações disciplinares - e outras que foram claramente o produto de
educação e de programas de treino intensivos conduzidos por equipas de ONGs e
organizações de apoio jurídico.
Apesar destas variações, as preocupações acerca do controlo e da estabilidade futura
destas novas comunidades de proprietários da terra está largamente patente nos
preceitos adoptados pela comunidade para a governação comunal. Embora a Lei e a
constituição «modelo» promovidos por várias ONGs envolvidas no apoio à elaboração
de constituições pelas comunidades salientem os procedimentos democráticos, quer
nas variações do modelo, quer nos exemplos mais particulares, a tónica é colocada no
controlo da composição e dos poderes do corpo dirigente. Um dos métodos mais
explícitos adoptados pelo modelo dominante é o de determinar o número de
representantes que podem ser eleitos para o comité dirigente a partir de diferentes
grupos de interesse ou blocos de poder possíveis dentro da comunidade. O «modelo»
Gugulethu dominante especifica que: 75 por cento do comité deve ser composto por
membros da associação; os representantes dos líderes tradicionais não devem exceder
os 40 por cento do comité; pelo menos 50 por cento do comité deve residir
permanentemente na comunidade; e pelo menos 40 por cento dos membros do comité
devem ser mulheres. Esta explícita partição das influências dentro do comité reflecte
uma forte percepção das tendências particulares. Em primeiro lugar, há uma
preocupação clara de refrear a influência dos não-membros e dos não-residentes, que
no caso das viúvas ao abrigo da lei consuetudinária podem incluir parentes masculinos
afastados. Em segundo lugar, o critério de residência também limita a influência de
membros migrantes da comunidade que podem «normalmente» viver numa área
urbana mas manter um contacto e influência significativos na comunidade rural. Ainda
mais significativa, contudo, é a tentativa de limitar a influência da liderança tradicional
(num caso, afirmando que 60 por cento dos membros que estão ao serviço não podem
ser membros da família do chefe (#4)), bem como a tentativa de melhorar a
participação das mulheres na tomada de decisão, exigindo que 40 por cento do comité
seja feminino(#92). De igual interesse, é o facto de que em muitos dos casos em que o
modelo foi adoptado, a única modificação foi na constituição do comité dirigente. Aqui,
a questão da representação dos sexos está manifestamente em questão.

O aspecto mais marcante destas modificações particulares ao modelo padrão é o facto


de ocorrerem nos casos em que a única modificação no formato-padrão reside na
questão da composição do comité dirigente e, em todos os casos, a modificação mais
significativa relaciona-se com a garantia de uma determinada percentagem de
mulheres no comité. Enquanto que, em alguns casos a percentagem é meramente
reduzida - apesar de, num exemplo, a redução para 20 por cento ter sido
acompanhada por um aumento simultâneo na percentagem, exigindo que 90 por cento
do comité fosse constituido por requerentes de terra (#21) - na maior parte dos casos, a
especificação das percentagens é completamente abandonada. Ao invés, há uma
afirmação genérica que a associação «terá um comité que será equilibrado em termos
de sexo», (#71; #6; #22; #12; #18; #3; #92) ou, ainda menos específico, «todos os
encontros futuros de membros do comité serão realizados com devida consideração
pelos princípios de representação tal como afirmado na Lei» (#15; #16; #10; #95). O
que se torna claro neste casos é que os participantes no processo de elaboração da
constituição têm estado preparados para aceitar o quadro geral das constituições-
modelo, mas perceberam claramente a importância das cláusulas que definiam
percentagens específicas para representação no comité dirigente. Neste contexto,
agiram para modificar o modelo-padrão de forma a controlar as influências exteriores -
com percentagens crescentes do comité a serem constituídas por membros da
associação - e, ao mesmo tempo, reduzir ou extinguir por completo a representação
garantida de mulheres no comité em percentagens específicas. Assim, apesar de haver
pouca evidência de que estas comunidades tenham participado activamente no
processo de auto-construção ou auto-definição durante a redacção da constituição, há
uma clara indicação de que onde o modelo desafiou as relações existentes entre
sexos, este desafio foi notado e explicitamente diluído. Porém, o que é relevante é o
facto de, ao aceitar o modelo CPA e os seus critérios de igualdade formal entre os
membros, estas mesmas comunidades podem ter introduzido nas suas estruturas de
governação as sementes de desafios futuros em torno de questões de participação e
de representação dos sexos.

Apesar da estrutura da CPA definida legislativamente e da sua implementação terem


implicado uma tentativa de mediação entre as estruturas de poder existentes —
incluindo as autoridades tradicionais — e exigências de formas mais «universais» de
representação democrática, incluindo igual participação de mulheres, essa continua a
ser, claramente, uma área de difícil negociação. Apesar da confiança, por parte de
alguns funcionários do Department of Land Affairs, por exemplo, de que os líderes
tradicionais, estão a ser acomodados através da inclusão de cláusulas que
«reconhecem» o seu papel na comunidade — acompanhadas pela declaração que,
como é claro, os chefes não «possuem» a terra historicamente, tal como alguns
alegaram -, há provas que demonstram que será muito mais difícil reduzir a influência
das autoridades tradicionais em muitas comunidades. Algumas constituições incluem
agora, nos seus preâmbulos, um reconhecimento da existência e do papel dos líderes
tradicionais na comunidade. Embora reconheçam o papel da autoridade tradicional,
continuam a auto-definir-se e a definir o funcionamento dos seus comités governativos
na forma democrática determinada pela Lei.

Exprimindo as preocupações da comunidade acerca da introdução destas novas


entidades legais, James Ngcobo, um representante da comunidade do KwaZulu-Natal,
defendeu que as «administrações de terras que somos obrigados a estabelecer de
modo a aceder à terra, têm o efeito de caos institucional nas comunidades. A maior
parte das comunidades fracassam na identificação da posição e dos objectivos destas
estruturas em relação às estruturas existentes. Os Amakhosi [líderes tradicionais] estão
a desafiar o estabelecimento destas entidades legais criadas para administrar os
assuntos da terra em áreas tribais, e argumentam que a função de propriedade e
administração da terra é sua. (...) Os conselhos tribais em áreas tribais receiam o seu
futuro caso estas estruturas sejam bem-sucedidas na ususpação das suas funções e
papéis, que lhes conferiram um grau de respeito por parte dos seus subordinados»
(Ngcobo, 1997: 8).

Mesmo nos pontos onde a constituição limita especificamente a presença de


representantes dos líderes tradicionais nos comités dirigentes existe uma certa
preocupação de que a sua influência ofusque os restantes. Mais uma vez, James
Ngcobo refere que «o estatuto ex-oficio dos Amakhosi nos trusts da terra é vago,
porque, uma vez estão nesses trusts, tomarão parte no processo de decisão e a sua
palavra será definitiva. O Inkosi [chefe] terá o direito de influenciar as decisões dos
trusts? Se assim for, então este estatuto não é ex-oficio, e a posse da terra não é
independente. Caso contrário, quais são então os seus poderes? Mesmo que o Inkosi
compreenda e aceite o seu estatuto ex-oficio, ele tem o direito de aprovar as decisões
dos trusts da terra antes de serem implementadas? E se ele disser, ‘Não, não podem
fazer isso?’ Terão os trusts de o levar a tribunal? Concordem comigo — o papel dos
Amakhosi ainda é pouco claro» (Ngcobo, 1997: 9). Outro representante governamental,
comentando o papel desempenhado pelos Amakhosi no que respeita a uma reforma
agrária em geral, defende que «aprendemos durante o processo de implementação
que seria completamente imprudente evitar os Amakhosi. Confrontá-los, tranquilizá-los,
abandoná-los, acompanhando-os nas dificuldades — sim —, só não podemos ignorá-
los. Quer nos estejamos a referir eufemisticamente aos membros das tribos, ou
associações comunitárias, ou algo semelhante, a nossa realidade é que a
implementação da reforma agrária tem um enorme impacto na instituição dos
Ubukhosi, e estes têm um impacto muito profundo na implementação do nosso
programa. Em KwaZulu-Natal, a maioria das iniciativas respeitantes à reforma agrária
são suportadas pelos Amakhosi ou pelos Izinduna [chefes] (Clacey, 1997: 6).

Num número cada vez maior de casos, incluindo o caso da comunidade Gugulethu,
cuja proposta de constituição veio a servir de modelo de constituição de CPA, os
conflitos entre as autoridades tradicionais e os elementos empenhados em formar a
CPA levaram frequentemente a um impasse, no qual a tentativa de estabelecer uma
CPA falhou. No caso da área comunal de Tshezi, documentado por Lungisile Ntsebeza,
a tentativa de estabelecer uma CPA acabou por ser abandonada, face à resistência
oferecida pelos chefes locais «sob a influência de autoridades tradicionais chave em
Contralesa [The Congress of Traditional Leaders of South Africa] e da Eastern Cape
House of Traditional Leaders. Isto a despeito do facto de tal vir a atrasar e,
possivelmente, frustrar um projecto de desenvolvimento desesperadamente necessário
iniciado pelo Departamento de Comércio e Indústria para impulsionar o turismo local
(2000: 299).

De facto, a resistência colocada pelas autoridades tradicionais nas várias partes do


país obstruiu de uma forma eficaz a disseminação das CPA’s. Em KwaZulu-Natal, onde
numerosos trusts da terra criados como um meio de proteger a propriedade
comunitária no período anterior a 1994 foram reconhecidos como entidades similares
ao abrigo da Lei CPA, o conflito em torno da natureza da tomada de decisão e da
autoridade no seio destas comunidades é ainda elevado. Como resultado, foram muito
poucas as novas CPA’s formadas em KwaZulu-Natal. A pesquisa levada a cabo pelo
Legal Entity Assessment Programme (LEAP), no distrito Muden de KwaZulu no Natal,
demonstra algumas das dificuldades de governação encaradas pelas comunidades em
situações idênticas às comunidades CPA. As três comunidades referidas -- a
Comunidade Emsi Lonsdale, a Comunidade Vukile/Impala e a Ntabenzima Trust
(quinta Whitecliff) - enfrentam, todas elas, um conjunto de problemas que serão muito
provavelmente bastante usuais. Apesar de ter existido uma organização comunitária
bastante coerente na luta pelo acesso à terra, sob a forma de Comité Muden Land, os
diferentes trusts comunitários, estabelecidos desde que a terra foi assegurada,
revelaram muitas experiências desiguais, e em grande medida, não tiveram capacidade
para criar, nem uma administração eficaz, nem as iniciativas de desenvolvimento
esperadas pelos beneficiários. Embora no caso de Vukile o espírito do acordo
comunitário pareça bem vivo, também persistiu uma grande confusão acerca dos
termos exactos dos trusts ou das constituições adoptadas pelas comunidades.
Algumas destas dificuldades estavam relacionadas com o problema da linguagem - as
constituições não foram traduzidas para Zulu -, mas também há indicações de que
apesar das disposições constitucionais ou de trusts, que reconhecem a autoridade do
comité eleito, muitos destes assuntos eram primeiro levados às autoridades
tradicionais, as quais permanecem o efectivo poder na zona. Embora as ONG de
desenvolvimento local - a «Zibambeleni Community Development Organization» - seja
uma fonte de capacidade organizacional, a comunicação entre a Zibambeleni e os
comités dirigentes constituídos pelos trusts é bastante frágil. Pelo contrário, a
Zibambeleni trabalha de perto com as Autoridades Tribais e relaciona-se directamente
com as comunidades e não através das suas estruturas dirigentes formais. Esta
fragilidade na governação comunitária reflecte-se nas avaliações que concluem que
deve ser realizada uma reestruturação dos trusts e definido de forma clara o papel dos
«Comités Muden Land». De facto, é a Zibambelani que está representada no conselho
regional, e não os representantes das comunidades, enquanto o poder local
permanece nas mãos das autoridades tradicionais, que nesta zona parecem deter um
elevado grau de legitimidade.

Em algumas áreas, as dificuldades relativas à governação foram exacerbadas pelo


conflito acerca do governo local, particularmente no que toca ao direito das autoridades
tradicionais de participarem ex-oficio em órgãos de governo local e à definição dos
limites do governo local. As autoridades tradicionais opuseram-se especialmente a
qualquer tentativa de definir limites que não coincidiam com as suas próprias
jurisdições. Significativamente, apesar de alguns defenderem que as CPAs não têm
que se imiscuir nem assumir as funções ou o papel do governo local, e que os comités
dirigentes estão lá meramente para administrar a terra possuída colectivamente, os
activos comités dirigentes CPA irão naturalmente ver-se envolvidos na planificação do
desenvolvimento e no fornecimento de serviços. Contudo, esta função está limitada
pela Lei CPA (s12) que requer uma maioria de votos dos membros, antes do comité
poder exercer algum poder significativo sobre o principal recurso da associação - a
terra. Antes do comité poder vender, hipotecar ou de qualquer modo afectar os direitos
da comunidade sobre a terra, tem que obter autorização da comunidade através de
uma assembleia geral ou extraordinária - algumas comunidades vão para além do
requisito legal, especificando que uma assembleia extraordinária necessita de um
quorum de 65% dos membros, ou tem que obter uma maioria qualificada para ser
aprovada qualquer decisão desta natureza.

Agora, após vários anos de experiência durante os quais foram identificados


variadíssimos problemas, muitos sugerem que as leis relativas às CPA’s necessitam de
algumas adendas, de forma a conceder poder ao Estado para administrar mais
directamente as instituições permeáveis (Piennar, 2000: 323). Estas sugestões, no
entanto, não chegam a reconhecer que o potencial das CPAs reside menos na sua
capacidade imediata para conduzir o desenvolvimento rural local e mais no espaço que
rodeiam para a participação contínua nos conflitos sociais e políticos que cercam a
tentativa de criar regimes de propriedade comunal viáveis (um processo que se tem
que reconhecer como sendo moroso, confuso e constestado no seu carácter) (Cousins,
1995). A este respeito, é importante reconhecer que diversas soluções legais estão
disponíveis «nas constituições das entidades, na Lei CPA, nas provisões do direito
consuetudinário e do direito estatal que regula a conduta dos trusts e associações
voluntárias, para além das soluções contratuais vulgares das condenações civis e e
das sanções ao abrigo do direito penal» (Pienaar 2000: 323). Apesar dos problemas no
acesso aos recursos legais poderem constituir parte da explicação, o fracasso no
recurso a estas múltiplas soluções legais sugere que as dificuldades enfrentadas por
estas novas entidades legais vai para além das questões de tecnologia legal. Em vez
disso, é a confrontação provocada pelo próprio potencial emancipatório desta forma
que gerou o grau de tensão que acompanhou a sua implementação.

Apesar das numerosas tentativas para aplacar as autoridades tradicionais, através do


seu reconhecimento em preâmbulos ou da sua inclusão nos comités dirigentes, os
chefes permaneceram extremamente cautelosos relativamente à Lei CPA. Esta
oposição tornou-se evidente em vários encontros entre os chefes e o Departamento de
Assuntos da Terra. Por exemplo, numa reunião realizada no dia 24 de Março de 1998
entre os líderes e o Dr. Sipho Sibanda do Directorate for Tenure Reform do
Departamento dos Assuntos da Terra, os chefes afirmaram que «viam a CPA como
uma forma de enfraquecer os seus poderes e como um instrumento concebido para
dividir a tribo. Queriam saber porque é que a terra tinha que ser transferida através da
CPA...» (Nzuza, 1998; 16). Em resposta, Sibanda declarou aos chefes que existiam
três critérios considerados pelo governo como «fundamentais e não negociáveis para o
reconhecimento de uma autoridade tradicional: (1) igualdade em termos sexuais e
direitos constitucionais da mulher; (2) democracia e (3) o decurso dos processos em
termos normais» (Nzuza, 1998: 16).

A tensão criada por estes critérios tornou-se ainda mais intensa quando o governo
distribuiu uma proposta de Lei dos Direitos sobre a Terra, no início de 1999. A proposta
de lei, concebido para contemplar a segurança do direito de posse da terra nas áreas
comunais - os antigos bantustões, onde a terra «tribal» oficialmente possuída pelo
Estado permanecia sob o controlo das autoridades tradicionais -, incluía o mesmo
conjunto de critérios. Justificando-se como uma tentativa de resolver a degeneração da
administração da terra nestas áreas, bem como o cumprimento do imperativo
constitucional de promoção da segurança no direito de posse, a proposta de lei
apresenta um sistema de gestão descentralizada dos direitos sobre a terra, os quais
estariam nas mãos das pessoas que pudessem estabelecer ocupação, uso ou direitos
de acesso à terra; pessoas que, consequentemente, não poderiam ser despojadas de
tais direitos sem o seu consentimento ou a perda deles através da aceitação de uma
compensação. Além disso, a proposta de lei propunha a criação de um sistema de
gestão dos direitos da terra que iria incluir: (1) «estruturas de titulares de direitos sobre
a terra»; (2) comissões para os direitos sobre da terra - compostos pelos líderes
tradicionais, conselheiros municipais e líderes respeitados da comunidade - a nível do
concelho distrital e (3) um funcionário público dos direitos sobre a terra, empregado do
Departamento dos Assuntos da Terra, ao nível distrital, o qual representaria o Ministro
dos Assuntos da Terra, que continua a ser o proprietário nominal (Sibanda, 2000: 308).
As comissões para os direitos da terra iriam, de acordo com a proposta de lei, «actuar
como um vigilante, rever as questões que afectam o estatuto protegido dos titulares
locais de direitos e, nos casos em que seja necessário, encaminhar as decisões para
consideração do representante ministerial» (Sibanda, 2000: 308). Os funcionários dos
direitos sobre a terra teriam poder para «investigar as infracções à lei, notificar,
preparar os casos e instituir os procedimentos junto do tribunal judicial para obter
qualquer reparação para os titulares de direitos» (Sibanda, 2000: 308).

Apesar do argumento de Sipho Sibanda de que a proposta de lei não colocava


qualquer ameaça aos líderes tradicionais, uma vez que os titulares dos direitos da terra
tinham o poder de, se assim o desejassem, escolher as autoridades tradicionais para
gerir quotidianamente os seus direitos, de facto, a proposta de lei visava alterar
fundamentalmente a relação de facto entre os líderes tradicionais e os seus súbditos no
que toca ao controlo sobre a terra. Enquanto que os líderes tradicionais estão
preocupados em manter os seus poderes de distribuição de terra, decisão sobre
conflitos sobre a terra e influência na gestão dos recursos de terra comunitária, a
proposta de lei concede poder aos titulares de direitos para escolher qual a forma de
autoridade que desejam aceitar para a supervisão da gestão da terra e implica que, em
caso de conflito, os titulares de direitos sobre a terra veriam os seus direitos
sentenciados pelo magistrado local após intervenção do funcionário dos direitos sobre
a terra, que seria o representante governamental ao nível local. Assim, embora o
governo afirmasse que os líderes tradicionais nada tinham a recear na proposta de lei,
a reacção daqueles foi violenta. No espaço de meses, o governo retirou publicamente a
proposta de lei e o recém nomeado Ministro dos Assuntos da Terra começou a falar do
papel da tribos e, consequentemente, das autoridades tradicionais na gestão da terra,
indo longe ao ponto de sugerir que a terra poderia ser transferida do Estado para as
«tribos, comunidades ou outras pessoas que são ocupantes de longo prazo da terra do
Estado» (Merten, 2000).

Apesar de o abandono da proposta de Lei para os Direitos sobre a Terra parecer uma
vitória das mesmas autoridades tradicionais que receavam perder a jurisdição sobre os
assuntos da terra, o debate não está de maneira nenhuma encerrado. Embora o novo
ministro parecesse preocupado em apaziguar as autoridades tradicionais, a
continuação da crise em torno da gestão da terra rural e o seu impacto no
desenvolvimento rural, particularmente em consequência da falta de segurança nos
direitos à terra, trouxe estes assuntos de volta à agenda governamental (Mayende,
2001). Embora alguns críticos receassem que o governo estivesse a ponto de
abandonar as políticas que evidenciavam uma preocupação com o empoderamento
dos pobres rurais voltando-se, em vez disso, para uma confiança nas forças de
mercado, não parece que se tenha verificado tal mudança dramática. Em vez disso, o
Departamento dos Assuntos da Terra está, mais uma vez, a explorar a forma de
abordar a questão da segurança da posse da terra nas áreas comunais, reflectindo
sobre a melhor forma de envolver os líderes tradicionais num debate que venha a
permitir alcançar estes objectivos.

6. Promessas e perigos

Apesar dos promissores resultados do compromisso inicial entre os sem-terra e os


proprietários, por um lado, e entre as reivindicações de igualdade e a defesa da
autoridade tradicional, por outro, o futuro das comunidades rurais - especialmente as
suas relações sociais internas e o acesso aos recursos necessários para ultrapassar
uma história de pobreza estrutural - continua em debate. Apesar de algumas
comunidades terem ganho o acesso à terra e as oportunidades institucionais existam
para estabelecer novas formas de governação comunal, a necessidade de criar
capacidade local e o peso das fontes de poder existentes são ainda grandes
obstáculos. Apesar das autoridades tradicionais, que conservam a sua legitimidade
entre as comunidades rurais, poderem de facto ter um papel positivo a desempenhar
na governação local, o seu maior empoderamento através da sugestão de que a terra
podesse ser colocada nas mãos das tribos em vez de nas mãos de entidades legais
autónomas, bem como a retirada da proposta de Lei dos Direitos sobre a Terra, levanta
importantes questões acerca da segurança da posse da terra, dos direitos das
mulheres e do futuro da participação democrática nas comunidades rurais. Neste
contexto, a existência de CPAs, ainda que em número restrito e sob ameaça de serem
revistas a partir de cima ou de desaparecerem devido à oposição das autoridades
tradicionais, fornece um espaço institucional no seio do qual se podem desenvolver
lutas e, com o tempo, seguir estratégias para alargar os objectivos emancipatórios
pelos quais tantos sul-africanos combateram. De contrário, se estas jovens instituições
forem abandonadas, pode-se verificar que o direito não é mais do que uma elaborada
fachada para cobrir uma versão pós-colonial da reserva, criando pontos geográficos a
partir dos quais a maioria dos cidadãos sul-africanos mais marginalizados irá continuar
a empreender campanhas multi-estratégicas de sobrevivência - alguns animais, uma
pequena leira de milho, um espaço para a colheita de recursos naturais limitados, um
abrigo e um lugar a partir do qual se aventuram para confrontar as injustiças da vida
nas periferias urbanas.

Apêndice: CPAs registadas com data de registo (citadas no texto pelo


número).

3) The Monyamane Communal Property Association, 29 Abril, 1997.


4) The Skeifontein Communal Property Association, 3 Junho, 1997.
6) The Lwalanemeetse Communal Property Association, 21 Julho, 1997.
10) The Katjebane Communal Property Association, 27 Agosto, 1997.
12) The Sizanani Farmers Communal Property Association, 26 Setembro, 1997.
15) The Bethania Communal Property Association, 23 Dezembro, 1997.
16) The Mtintloni Communal Property Association, 23 Dezembro, 1997.
18) The Mahlambandlovu Communal Property Association, 10 Fevereiro, 1998.
21) The Diratsagae Communal Property Association, 4 Março, 1998.
22) The Baroka Communal Property Association, 12 Março, 1998.
71) The Selowe Communal Property Association, 7 Julho, 1998.
92) The Bedrog Communal Property Association, 15 Outubro, 1998.
94) The Thusanang Communal Property Association, 4 Novembro,1998.
95) The Masikule Community Property Association, 4 Novembro, 1998.
98) The Rietkuil Agri-Village Communal Property Association, 6 Janeiro, 1999.

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À PROCURA DE ALTERNATIVAS ECONÔMICAS EM TEMPOS DE
GLOBALIZAÇÃO: O CASO DAS COOPERATIVAS DE RECICLADORES DE LIXO
NA COLÔMBIA

Cézar Rodriguez

1. Globalização, desigualdade e exclusão

Nos últimos anos - após quase três décadas de profunda intensificação do fluxo de
bens, serviços, capitais e pessoas através das fronteiras nacionais - o trabalho de
milhares de pessoas e organizações em todo o mundo que têm vindo a denunciar os
efeitos excludentes da globalização neoliberal começou a ter um impacto importante
nas discussões políticas e académicas acerca do rumo da economia mundial. Com
efeito, particularmente após os protestos de Seattle, em finais de 1999, a visibilidade e
influência da crítica contra a globalização têm aumentado de forma tão expressiva que
hoje as organizações internacionais promotoras do processo de globalização viram-se
obrigadas a reconhecer, pelo menos nas declarações oficiais, os efeitos perversos do
referido processo, como o demonstraram as recentes cimeiras do Banco Mundial.
Desta forma, parece estar a emergir um consenso que - sem pôr ainda em perigo o
consenso hegemónico, isto é, o denominado «Consenso de Washington»- torna visível
o facto de que a globalização neoliberal está alicerçada em e reproduz condições
políticas, sociais e económicas que tendem a acentuar a desigualdade em todas as
escalas geográficas: na escala global, entre o Norte e o Sul (Galbraith et al., 1998); na
escala nacional, entre classes sociais e entre regiões no interior de cada país, como o
põe de relevo o aumento da desigualdade nos países da América Latina nas últimas
duas décadas (CEPAL, 1998).

Na escala urbana, o fosso crescente entre ricos e pobres é especialmente patente.


Como bem o demonstra uma das vertentes mais interessantes dos estudos sobre a
globalização - as análises sobre o aparecimento das «cidades globais» (Nova Iorque,
Tóquio e Londres no centro; São Paulo, Cidade do México e Bogotá na semiperiferia
latino-americana) enquanto centros de controlo no sistema económico global -, a
economia e a sociedade das grandes cidades contemporâneas são caracterizadas por
um evidente dualismo (Sassen, 1991; Friedmann, 1995). Nas cidades da semiperiferia
e da periferia do sistema mundial, este dualismo manifesta-se na diferença crescente
entre os rendimentos e as condições de vida de um pequeno número de trabalhadores
qualificados contratados por empresas do sector moderno da economia, e os de um
sector, maioritário e em expansão, de pessoas qualificadas e não qualificadas que têm
empregos precários (temporários ou com baixos salários), estão desempregadas ou
trabalham informalmente. O incremento notável do sector informal na semiperiferia e na
periferia é especialmente significativo para os efeitos deste nosso trabalho, não só
porque constitui a expressão mais visível da precariedade no trabalho nas grandes
cidades, mas porque uma das suas manifestações mais chocantes - a existência de um
número massivo e crescente de pessoas à beira da indigência que sobrevive
esquadrinhando contentores e lixeiras à procura de materiais recicláveis para a venda -
é o tema do estudo prático que apresento mais adiante. Em Bogotá, a cidade na qual
se centra o estudo, o sector informal tem vindo a aumentar consideravelmente nos
últimos anos ao ponto de, no momento presente, a maioria da população
economicamente activa (55%) trabalhar no sector informal (Uribe, 1997: 397). Este
fenómeno é comum a todas as grandes cidades da América Latina. De facto, a
economia informal é a fonte da maior parte dos empregos criados na década de 90
(CEPAL, 1998) e a sua expansão está intimamente relacionada com as medidas de
ajuste estrutural adoptadas na região durante as últimas décadas (Vilas, 1999).

Um dos efeitos centrais do incremento acentuado da desigualdade em todas as


escalas é a tendência para a exclusão efectiva de grandes sectores da população
mundial do processo de acumulação global de capital. O facto de a economia global
contemporânea ter atingido níveis de crescimento sem precedentes ao mesmo tempo
que há um aumento no número de pessoas condenadas a viver nas suas margens - os
desempregados permanentes ou de longa duração, os camponeses sem terra ou os
pequenos proprietários rurais que praticam uma agricultura de subsistência, e os
sectores populares urbanos dedicados às actividades informais de sobrevivência - leva
a pensar, como aponta Friedmann (1992: 14), que «o capitalismo contemporâneo pode
viver [sem essas pessoas]», de tal forma que «a mensagem que se envia a estes
sectores é bem explícita: para todos os efeitos práticos, passaram a ser redundantes
na acumulação global de capital»: redundantes como produtores, na medida em que
desempenham actividades de baixa produtividade e reduzido valor acrescentado;
redundantes como consumidores, na medida em que o seu poder aquisitivo é tão
sumamente reduzido que, como refere com ironia Moody (1997), a sua participação na
sociedade de consumo consiste fundamentalmente em sair à rua para «ver montras».
Do ponto de vista espacial, a exclusão de grandes sectores da população é
especialmente visível nas grandes cidades, divididas em zonas claramente
demarcadas que separam ricos de pobres. Como Santos (1999: 22) evidencia, «esta
segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana dividida em zonas
selvagens [onde impera o estado de natureza hobbesiano] e zonas civilizadas [onde
opera o contrato social]» constitui um verdadeiro «fascismo de apartheid social».

Contudo, o processo de exclusão social não avança sem encontrar resistência. Os


excluídos resistem diariamente através de acções individuais e colectivas muito
diversas, que vão desde estratégias de sobrevivência a projectos nacionais e globais
de oposição, passando por um inúmero de iniciativas locais. Na América Latina, por
exemplo, como mostrou Hirschman (1984) numa sondagem sobre iniciativas
económicas populares, os projectos, propostas e organizações de base vão desde os
esforços de camponeses pobres para controlarem a comercialização dos seus
produtos através de cooperativas de venda até ao trabalho conjunto dos habitantes de
bairros de ocupação para acederem à propriedade dos lotes e construírem habitações
adequadas, passando pela luta travada pelos pequenos artesãos para impedirem,
através de cooperativas de trabalhadores, o desaparecimento dos seus ofícios perante
a concorrência de empresas dedicadas ao fabrico maciço de artesanato. Como aponta
Hirschman, o que todas estas experiências têm em comum é o facto de através delas,
grupos marginalizados se organizarem para «seguir em frente» mediante estratégias
económicas colectivas. De igual forma, uma ampla gama de movimentos sociais têm
surgido ou persistido na América Latina em tempos de globalização. Entre estes,
incluem-se movimentos de negros, trabalhadores, indígenas, camponeses sem terra e
mulheres (Álvarez et al., 1998).

Para os efeitos deste artigo, cujo estudo prático incide sobre uma iniciativa popular de
organização económica em Bogotá e noutras cidades da Colômbia - a luta colectiva
dos recicladores de lixo para melhorar as suas condições de vida -, é especialmente
importante ressaltar as iniciativas empreendidas pelas classes populares - isto é, a
maioria da população urbana, formada pelos sectores pobres de assalariados,
trabalhadores informais e desempregados. Trata-se dos habitantes da cidade para os
quais a «rebusca» é a estratégia diária de sobrevivência. Entre eles encontram-se os
trabalhadores que ganham apenas o salário mínimo, os vendedores ambulantes, os
recicladores de lixo, as empregadas domésticas, os indigentes de todas as idades e os
milhares de pessoas que prestam todo o tipo de serviço nas ruas. Quer como
compradores, quer como produtores ou vendedores, os membros das classes
populares alimentam uma economia urbana de baixo custo que lhes permite aceder a
bens e serviços indispensáveis para a sobrevivência. Neste sentido, estas «economias
populares» (Burbach et al., 1997) constituem uma forma, ainda que precária, de
resistência, porque são mecanismos mediante os quais as classes populares criam e
exploram um nicho económico para sobreviverem. Porém, quando consideradas dentro
do conjunto da economia urbana, torna-se evidente que as economias populares estão
longe de serem autónomas e, por si mesmas, emancipadoras. Por exemplo, a
economia informal está plenamente articulada com a economia formal, como evidencia
o caso dos recicladores de lixo independentes que vendem os seus produtos a
intermediários que, por sua vez, os vendem às grandes companhias produtoras de
papel. O caso dos recicladores mostra ainda que as formas económicas populares são
fonte de produtos, serviços e mão de obra barata para o sector moderno da economia.
Daí que este tipo de actividade possa, por isso mesmo, facilitar, mais do que impedir, a
exploração das classes populares.

Tendo pois em conta a ambivalência do papel desempenhado pelas economias


populares, a questão fulcral num estudo que, como este, esteja interessado em
determinar o potencial emancipador das referidas economias, será a seguinte: que
estratégias de organização e de acção colectiva logram mitigar ou eliminar a
exploração dos actores económicos populares e liberar o potencial emancipador deste
tipo de economias em tempos de globalização? Ao longo deste trabalho sustento que
as cooperativas e empresas solidárias populares capazes de sobreviverem num
mercado crescentemente global representam uma estratégia particularmente
promissora. Na secção seguinte esboço os elementos desta estratégia, cujo alcance e
limitações podem ser apreciados em detalhe no estudo prático das cooperativas de
recicladores de lixo na Colômbia que exponho mais à frente.

1.1. As cooperativas de trabalhadores no contexto da globalização

A procura de alternativas face aos efeitos excludentes do capitalismo inspirada nas


teorias e experiências baseadas na associação económica entre iguais e na
propriedade solidária não é uma descoberta actual. O pensamento e prática
cooperativista modernos são tão antigos como o capitalismo industrial. De facto, as
primeiras cooperativas surgiram por volta de 1826 em Inglaterra como reacção contra o
empobrecimento provocado pela conversão massiva de camponeses e pequenos
produtores em operários das fábricas pioneiras do capitalismo industrial (Birchall, 1997:
3). Como teoria social, o associativismo assenta em dois postulados: por um lado, na
defesa de uma economia de mercado baseada em princípios não capitalistas de
cooperação e mutualidade, e, por outro, na crítica ao Estado centralizado e a sua
predilecção por formas de organização política pluralistas e federalistas que confiram
um papel central à sociedade civil (Hirst, 1994: 15). Como prática económica, o
cooperativismo inspira-se nos valores de autonomia, democracia participativa,
igualdade, equidade e solidariedade (Birchall, 1997: 65). Estes valores estão
plasmados por princípios não capitalistas de organização empresarial. De acordo com
os princípios que regem as cooperativas de trabalhadores, por exemplo, os
trabalhadores são proprietários da empresa e participam directamente e em condições
de igualdade nas decisões fundamentais da mesma, independentemente do montante
da sua participação no capital (Birchall, 1997: 65). Neste sentido, as cooperativas de
trabalhadores visam superar a divisão entre capital e trabalho - e o esquema de
propriedade individual e a administração hierárquica que a acompanham -
característica das empresas convencionais.

Muito embora, por um lado, o número de cooperativas se tenha multiplicado com


celeridade e tenha dado origem a um movimento cooperativista internacional e, por
outro, a teoria associativa tenha sido retomada ocasionalmente por movimentos e
teorias sociais, nem a prática cooperativa nem o pensamento associativo que lhe serve
de base tem chegado a ser predominante. «O associativismo nunca amadureceu ao
ponto de se converter numa ideologia coerente» (Hirst, 1994: 17), capaz de resistir aos
ataques provenientes tanto das teorias socialistas de teor colectivista como do
liberalismo individualista. O cooperativismo deu origem a experiências exemplares de
economia solidária - como o complexo cooperativo de Mondragón, Espanha-, mas não
conseguiu converter-se numa alternativa importante face ao sector capitalista da
economia nacional e mundial. Neste sentido, o cooperativismo, que já desde os seus
inícios teve uma clara vocação internacional, continua a ser hoje um projecto não
concluído de globalização contra-hegemónica, baseado em princípios de solidariedade
e democracia participativa.

A teoria e as práticas cooperativas têm suscitado um renovado interesse nos últimos


anos. Perante o fracasso das economias centralizadas e o avanço do capitalismo de
corte neoliberal, organizações e governos progressistas em todo o mundo recorrem
cada vez mais à tradição de pensamento associativo e à forma cooperativa de
organização económica que surgiu precisamente em oposição tanto ao colectivismo
como ao individualismo liberal. Embora estejam regidas por valores e princípios não
capitalistas - isto é, contrários à separação entre capital e trabalho e à subordinação
deste àquele -, as cooperativas são sempre concebidas e operam como unidades
produtivas que concorrem no mercado. O interesse recente pelas cooperativas e pelo
pensamento associativo é evidente nos países centrais, onde proliferam as análises
teóricas sobre a democracia associativa e o cooperativismo (Hirst, 1994; Le Grand e
Estrin, 1989; Bowles e Gintis, 1998) e os estudos práticos sobre experiências de
cooperativas de trabalhadores com sucesso (Whyte e Whyte, 1988) ou frustradas
(Russel, 1985). O interesse é também notório na semiperiferia e na periferia, onde
algumas das iniciativas e discussões mais interessantes têm estado associadas ao
debate sobre o «desenvolvimento alternativo», que começou nos anos 70 e recebeu
novo fôlego por parte de autores e organizações que «ressaltam o papel dos
movimentos de base, o conhecimento local e o poder popular na transformação do
desenvolvimento» (Escobar, 1995: 15). Os debates sobre o desenvolvimento
alternativo em geral, e sobre o cooperativismo em particular, procuram teorizar e tornar
viáveis formas de organização económica cujos princípios democráticos e efeitos
igualitários contrastam com o despotismo que caracteriza o funcionamento interno das
empresas capitalistas e os efeitos desiguais do tipo de desenvolvimento económico
baseado nestas (Singer e Souza, 2000). Além disso, em condições de desemprego
massivo como as que imperam em boa parte do Sul global, a promoção de
cooperativas apresenta-se como uma alternativa às políticas de emprego
convencionais, tal como o ilustram as recentes experiências de fundação de
cooperativas por parte de habitantes de favelas e camponeses sem terra no Brasil
(Singer, 2000; Almeida, 2000) e de trabalhadores na Índia que têm assumido o controlo
das fábricas nas quais trabalhavam para evitarem a falência (Bhowmik, 2000).

Apesar do seu contributo decisivo para a crítica dos efeitos excludentes do


desenvolvimento capitalista, os estudos sobre o desenvolvimento alternativo e
cooperativismo na semiperiferia e na periferia - mais concretamente na América Latina
- têm vindo a centrar-se exclusivamente no âmbito local. Esta tendência a idealizar o
local em contraste com o nacional e o global é evidente nos mais recentes trabalhos
sobre o tema, como o demonstram os estudos de Burbach sobre as economias
populares na América Latina (Burbach et al., 1997; Burbach, 1997). Para Burbach
estas economias proliferam «nas partes do mundo que o capitalismo rejeitou» e
constituem um «novo modo de produção» dedicado às actividades económicas já sem
interesse para as empresas transnacionais (por exemplo, a venda ambulante de artigos
de baixa qualidade e a recolha de lixos nos aterros sanitários e nas lixeiras) (Burbach,
1997: 18). É por isso que «estas economias não concorrem e não podem concorrer
com o capital transnacional no processo de globalização» e daí o seu campo de acção
ficar limitado a um âmbito exclusivamente local (Burbach, 1997: 19).

O problema neste aspecto é que - e assim o manifestam as cooperativas de


recicladores de lixo na Colômbia e experiências similares noutros países (Cruz e Silva,
2000) - as organizações económicas populares se defrontam cada vez mais com a
necessidade de concorrer com o capital transnacional para sobreviverem e atingirem
os seus objectivos emancipadores. Enquanto permanecerem nas margens da
economia, as referidas organizações continuarão a ser, na maioria dos casos, meios de
sobrevivência e de reafirmação da subordinação dos seus membros, e não de melhoria
das condições de vida dos sectores populares (Singer e Souza, 2000). As margens, de
resto, são cada vez mais estreitas e cheias de riscos. Como o evidencia o estudo
prático que apresento adiante, a situação que se está a verificar na semiperiferia e na
periferia é, justamente, contrária à descrita por Burbach, isto é, o processo de
colonização por parte do capitalismo global estende-se a actividades económicas (por
exemplo, a reciclagem de lixos) e a zonas geográficas que até ao momento tinham
permanecido nas suas margens. Nestas condições, a articulação das organizações
económicas com o Estado e entidades nacionais e internacionais apresenta-se como
uma estratégia essencial para que essas organizações possam inserir-se gradualmente
no mercado nacional e global e no processo político. Por esta razão, as propostas e
teorias económicas progressistas, entre elas as de desenvolvimento alternativo, devem
ir mais além do local e estabelecer vínculos entre as iniciativas económicas locais,
nacionais e globais. Como enfatiza Harvey (2000), só este tipo de estratégia
emancipadora, capaz de movimentar-se com fluidez entre as diferentes escalas, desde
o local até ao global e vice-versa, representa uma alternativa fiável frente à
globalização neoliberal. É nesta estratégia que se encontra a possibilidade de gerar
formas contra-hegemónicas de globalização (Santos, 1995).

1.2. Plano e metodologia de estudo

Contra este pano de fundo, a pergunta central que guia este capítulo é: em que
condições podem surgir e consolidar-se organizações económicas populares não
capitalistas que ao mesmo tempo facilitem a luta pela inclusão das classes populares e
sejam viáveis num mercado globalizado? Para contribuir para a reflexão sobre esta
pergunta, apresento um estudo prático sobre a formação e desenvolvimento de
cooperativas de recicladores de lixo na Colômbia a partir de finais da década de 80.
Baseei-se num trabalho de campo de oito meses na Colômbia que compreendeu o
estudo geral da evolução da rede de 94 cooperativas de recicladores, apoiado em
análise documental e entrevistas, e a análise detalhada - mediante observação
participativa inspirada na metodologia de investigação-acção participativa (Fals Borda,
1998) - do funcionamento de uma das cooperativas mais consolidadas - a Cooperativa
«Rescatar» -, fundada em 1987 e cuja sede se encontra em Bogotá.

Quatro razões fazem com que este estudo prático seja especialmente relevante para
os propósitos deste artigo. Em primeiro lugar, os recicladores de lixo são um dos
grupos cuja presença nas grandes cidades de todo o mundo mostra com maior clareza
o carácter global da exclusão social a que anteriormente fiz referência. Longe de ser
um fenómeno que se limite à Colômbia ou à América Latina, a existência de milhares
de pessoas que sobrevivem recuperando materiais recicláveis nas ruas ou nas lixeiras
é comum nas cidades da semiperiferia e na periferia e até, ainda que em menor
proporção, nas cidades do centro. Por exemplo, estima-se que na Colômbia cerca de
300.000 pessoas - isto é, cerca de 1% da população - vivam da recuperação de
materiais recicláveis nas cidades (Hower, 1997). No México e no Egipto, a população
recicladora é ainda mais elevada em termos percentuais (2% do total nacional) (Hoyos,
2000). Em Manila, Filipinas, cerca de 12.000 pessoas dependem directamente da
reciclagem. (New York Times, 07/23/2000). Em Beijing, aproximadamente 82.000
camponeses imigrantes trabalham como recicladores informais (New York Times,
02/11/2000). Em segundo lugar, a exclusão social da qual são vítimas os recicladores é
especialmente perversa e dramática. Dada a generalizada rejeição social relativamente
à sua forma de vida - que com frequência implica viver na rua - e ao seu ofício - que
requer estar em contacto permanente com o lixo -, os recicladores são vítimas do mais
elevado grau de exclusão e estão relegados às zonas mais selvagens da cartografia
urbana - isto é, as lixeiras, as ruas e os guetos onde vendem os seus produtos a
intermediários e onde em ocasiões inclusivamente habitam. Na Colômbia, o grau de
exclusão dos recicladores reflecte-se claramente na expressão insultuosa -
«descartáveis» - que boa parte da população emprega, referindo-se-lhes. O reciclador
é excluído ao ponto de ser considerado redundante, eliminável, de igual modo que o é
o lixo no qual procura materiais recicláveis, como o mostram as operações de «limpeza
social» nas quais os recicladores e outros habitantes das ruas são eliminados por
grupos armados de base fascista, por vezes com a colaboração ou a conivência da
força pública. Em terceiro lugar, os recicladores colombianos associam-se em volta de
formas não capitalistas de produção económica, nomeadamente cooperativas de
trabalhadores. Neste sentido, as consideráveis conquistas obtidas e as limitações desta
experiência são úteis para responder à pergunta que orienta este estudo. Finalmente,
as cooperativas de recicladores tiveram de enfrentar as condições do mercado
colombiano e internacional em tempos de abertura económica e de globalização. As
cooperativas surgiram em finais dos anos 80 e começos dos anos 90, precisamente na
altura em que a política económica na Colômbia dava uma nítida viragem para a
internacionalização e o neoliberalismo. É por esta razão que a análise do
funcionamento das cooperativas de recicladores pode fornecer informações úteis
acerca do potencial emancipador deste tipo de organização no contexto do mercado
globalizado. Na secção seguinte exponho em detalhe os resultados deste estudo
prático. E faço-o tentando pôr em diálogo os resultados do trabalho empírico com as
discussões e a bibliografia sobre desenvolvimento alternativo e cooperativismo. É por
isso que ressalto neste estudo a forma como as cooperativas se viram afectadas e
responderam ao impacto da globalização. Como já mencionei anteriormente, esta
reflexão sobre o global está geralmente ausente da literatura sobre alternativas
económicas na semiperiferia e na periferia. Neste sentido, a exposição que apresento
nas páginas seguintes constitui um estudo prático alargado (Van Velsen, 1967), dado
que a análise do caso concreto das cooperativas de recicladores se faz no intuito de
contribuir para a teorização e as discussões gerais sobre alternativas económicas
emancipadoras. Após o desenvolvimento do estudo prático, na terceira e última parte
do artigo ofereço algumas conclusões.

2. De «descartáveis» a empresários solidários: a luta dos recicladores de


lixo na Colômbia

2.1. O mercado da reciclagem

A reciclagem de resíduos sólidos recuperáveis ou reutilizáveis - como o papel, o cartão,


o vidro, o plástico e o alumínio - é um passo fundamental no ciclo produtivo de
numerosas indústrias, nomeadamente em sectores como o da produção de papel, de
embalagens e cartão. De facto, boa parte das matérias primas utilizadas por estas
indústrias provêm da reciclagem. O uso de materiais reciclados na indústria tem efeitos
económicos e ambientais decisivos. A reciclagem é uma actividade econômica
considerável na Colômbia. Em 1990, o montante gerado pelo conjunto de actividades
que compõe o circuito de reciclagem - isto é, a recolha, a transformação e o transporte
dos materiais - foi de 22 milhões de dólares (Fundación Social, 1990: 45). Do ponto de
vista ambiental, a reciclagem tem efeitos igualmente importantes. Na Colômbia, dado
que cada ano se reciclam cerca de 300.000 toneladas de papel e cartão, a reciclagem
preserva anualmente seis milhões de árvores (ANR, 2000; Fundación Social, 1998).

As quantias agregadas sobre o tamanho e o impacto do mercado da reciclagem não


reflectem, porém, a dinâmica altamente exploradora em que alicerça o seu
funcionamento e que evidencia de forma vívida os efeitos do processo de exclusão
social nas cidades a que me referi na introdução. Com efeito, tal e como se pratica na
Colômbia, a actividade de reciclagem é possível através da combinação de um
processo de urbanização acelerado e desordenado - cujo um dos sintomas é um
sistema de recolha e disposição de lixos inadequado e a falta de cultura cidadã acerca
da reciclagem no lar - e uma marcada fragmentação social e espacial que dá origem à
coexistência, por um lado, de um pequeno sector da população com poder de compra
que nos seus lares e lugares de trabalho produz a maior parte do lixo e detritos
recicláveis da cidade e, por outro, de uma população massiva de desempregados ou
subempregados, alguns dos quais encontram na recuperação e venda desses
materiais o seu meio de sobrevivência.

Neste pano de fundo é possível entender a estrutura e o funcionamento do mercado da


reciclagem que está dividido em três componentes. A primeira é a recuperação dos
materiais por parte dos recicladores. Trata-se de uma actividade altamente
concorrencial: nela participam cerca de 300.000 recicladores informais no total das
cidades colombianas, dos quais aproximadamente 50.000 estão só em Bogotá (Hower,
1997). A segunda componente são os intermediários formais ou informais que
compram os materiais aos recuperadores e vendem-nos para as indústrias. Por vezes,
os intermediários têm vínculos próximos das indústrias compradoras (ou
inclusivamente são financiados por elas). A componente final do mercado são as
indústrias que adquirem o material recuperado, transformam-no e reutilizam-no nos
seus processos produtivos. Diferentemente do que acontece com a recuperação de
materiais, a compra dos mesmos está altamente concentrada. O mercado da
reciclagem é um oligopsónio: um reduzido número de empresas consome os materiais
recicláveis e impõe as condições e os preços aos recicladores (Fundación Social:
1998).

Dada a estrutura do mercado, não surpreende que os compradores e, em menor


medida, os intermediários formais ou informais, se apropriem dos consideráveis
benefícios económicos derivados da reciclagem, enquanto que os recicladores
recebem rendimentos que, em regra geral, são inferiores ao salário mínimo nacional
(isto é, 120 dólares americanos) e que, portanto, os mantêm na miséria. A estrutura e
dinâmica do mercado da reciclagem também revela a íntima conexão e relação de
exploração entre a economia popular informal e a economia formal. Com efeito, como
evidenciou Birkbeck (1978) no seu estudo sobre a reciclagem em Cali, os recicladores
são de facto, embora não se reconhecendo nem sendo reconhecidos como tais,
empregados desse grupo de indústrias que utilizam materiais reciclados como matéria
prima.

2.2. Os recicladores

Quem são esses milhares de pessoas que percorrem as ruas e habitam nas lixeiras
das cidades da Colômbia à procura de materiais recicláveis? Os dados fragmentados
existentes sobre o tema, completados pelo trabalho de campo levado a efeito para este
estudo, demonstram que o ofício da reciclagem é exercido por homens e mulheres em
idêntica proporção. Embora predominando os recicladores cuja faixa etária se situa
entre os 20 e os 40 anos, velhos e crianças foram encontrados também a trabalhar. Os
recicladores dedicam-se ao ofício geralmente em família, não de maneira individual. O
estudo etnográfico entre os recicladores da «Cooperativa Rescatar» de Bogotá (daqui
em diante a «Cooperativa») nas suas zonas de recolha na rua, mostrou, por exemplo,
que as tarefas necessárias para a recuperação do material - por exemplo, rebusca nos
sacos e contentores do lixo, selecção e acondicionamento dos materiais, condução do
veículo usado para o transporte - são repartidas entre membros do agregado familiar
de quatro ou mais pessoas. É habitual que os recicladores levem os filhos menores nos
carrinhos em que transportam o material. O comentário de Heidy, de 17 anos e sócia
da «Cooperativa» («sou recicladora desde que nasci, porque a minha mãe metia-me
numa caixa e levava-me no carro enquanto trabalhava como recicladora») é elucidativo
da situação de vários dos recicladores.

A maior parte deles tem um baixo nível de escolaridade. Um estudo recente feito em
Bogotá mostra que nas localidades escolhidas 73% dos recicladores não completou a
primária e 15% são analfabetos (Corporación Raíces, 1998). A pesquisa etnográfica na
«Cooperativa» proporcionou idênticos resultados. Muitos dos sócios da «Cooperativa»
começaram a trabalhar como recicladores desde muito novos e abandonaram os
estudos pela necessidade de dedicarem mais tempo ao trabalho ou porque, como
aconteceu no caso da Heidy, «não havia dinheiro para estudar mais». Porém, é notória
a crescente chegada ao ofício em geral, e à «Cooperativa» em particular, de pessoas
com instrução secundária e até com estudos superiores, devido ao alastramento do
desemprego na Colômbia. O caso de um dos novos sócios da «Cooperativa» - Henry,
de 50 anos, que começou a trabalhar como reciclador quando perdeu o emprego de
maquinista após a liquidação da empresa estatal dos caminhos de ferro onde
trabalhava - é representativo desta nova tendência.

Os recicladores exercem a actividade de três formas diferentes. O sector mais visível


da população recicladora trabalha nas ruas, recolhendo num pacote grande, em
carrinhos de mão ou numa carrinha, qualquer dos materiais que retiram dos
contentores e sacos de lixo.

Nesta modalidade o trabalho dura mais de oito horas e implica atravessar a cidade de
ponta a ponta, começando nos bairros populares legais ou nos de ocupação nos quais
moram os recicladores, continuando nas zonas opulentas da cidade onde se encontra
o lixo mais precioso e acabando de novo nas zonas populares, onde estão os
armazéns das cooperativas ou dos intermediários e aonde os recicladores se retiram
para descansar. Eles são, assim, um dos poucos grupos que ultrapassam diariamente
as fronteiras da cartografia urbana. A segunda modalidade prende-se com a
recuperação de materiais nas lixeiras e nos aterros sanitários. Trata-se de uma
actividade de homens, mulheres e crianças que trabalham longas horas em condições
de extrema insalubridade nesses lugares - e, com frequência, moram nos arredores em
casas de cartão e alumínio - seleccionando material à medida que os camiões das
empresas de limpeza o descarregam. Por último, a modalidade de trabalho favorável
para o reciclador é a recuperação na fonte, isto é, nos próprios edifícios residenciais ou
de escritórios. Porém, a imagem generalizada do reciclador como indigente perigoso -
como «descartável»- torna o acesso às fontes numa prática muito difícil.

Apesar das duras condições de trabalho, os baixos rendimentos e o estigma social que
o acompanha, o ofício de reciclador, em regra geral, não é uma ocupação temporária.
São muito frequentes os casos de recicladores que desempenham a profissão durante
boa parte ou toda a sua vida. Nas conversas com os membros da «Cooperativa»
durante os horários de trabalho na rua ou no armazém de depósito, as respostas
recorrentes obtidas foram semelhantes às da Elisa, de 30 anos, que afirmou ser
recicladora «desde criancinha» ou às da Darly, de 25 anos, que é «recicladora desde
os 13 anos, quando a minha mãe começou a trazer-me para a Cooperativa». São
frequentes os casos de pessoas que trabalhavam noutros empregos informais, como
Concepción - uns 40 anos - que antes de ser recicladora dedicava-se a fazer
«trabalhos domésticos, na imprensa [a vender jornais na rua] e numa espécie de
telheiro de olaria [depósito de argila onde se fazem tijolos]». Um fenómeno em
aumento - e bem visível na «Cooperativa» - é a entrada no ofício de bacharéis e outros
profissionais que ficaram desempregados.

Vários são os motivos que explicam a permanência dos recicladores no ofício. A


reciclagem é uma das poucas opções laborais para pessoas com escassos anos de
escolaridade. Além disso, o ofício apresenta um atractivo não económico apreciado por
quem o desempenha, isto é, a independência e a liberdade de quem trabalha por conta
própria. Assim se exprimia numa das nossas conversas Jairo, com cerca de 50 anos e
membro da «Cooperativa» durante vários anos: «eu sempre gostei de trabalhar por
minha conta [...] não gosto que mandem em mim». De facto, o valor supremo da
liberdade na cultura dos recicladores - «é melhor a liberdade de cada um [...], aconteça
o que acontecer», nas palavras de Diana, de 25 anos - contribui para uma conduta
individualista e concorrencial que perpetua a estrutura exploradora do mercado da
reciclagem, e tornam especialmente difíceis - meritórios - os esforços desenvolvidos
para organizar a população recicladora em relação aos valores da cooperação e
solidariedade.

2.3. Os dois problemas fulcrais

Como se reproduz a marginalização extrema de que são vítimas os recicladores? Que


factores explicam a estabilidade das estruturas sociais e económicas das quais se
alimenta o mercado da reciclagem e que mantêm os recicladores informais nas
margens deste, «apanhados na camada mais baixa do capitalismo, onde o sistema
mostra a sua face mais brutal e antagónica?» (Birkbeck, 1978). Dois factores,
evidentes na descrição anterior, constituem, em minha opinião, o círculo vicioso que
perpetua o processo de empobrecimento dos recicladores. Trata-se da exploração
económica derivada da estrutura do mercado da reciclagem e da conduta dos seus
actores dominantes (isto é, a grande indústria e os intermediários), por um lado, e a
dramática exclusão social de que são objecto os recicladores, por outro. Por outras
palavras, os efeitos económicos da estrutura do mercado da reciclagem atrás
explicados são ainda acentuados pelo estigma e pela exclusão dos recicladores. No
imaginário social urbano na Colômbia os recicladores são colocados nas camadas
mais baixas e marginalizadas, juntamente com os indigentes, os pedintes, os ladrões e
outros habitantes da rua com os quais são associados pelo facto de trabalharem na via
pública e nas lixeiras, em contacto permanente com o lixo. Os recicladores são com
frequência inclusivamente excluídos pelos sectores populares e são vítimas de
operações de «limpeza social». De facto, um dos episódios que provocou a fundação
das redes de cooperativas de recicladores foi o assassinato em Barranquilla, em 1992,
de 11 recicladores cujos corpos foram depois utilizados para levar a cabo experiências
médicas num centro universitário. Em síntese, a exploração económica cria as
condições de indigência que provocam a exclusão social dos recicladores, exclusão
que, por sua vez, confina os recicladores a espaços urbanos e a nichos económicos
que permitem que o mercado explorador se perpetue.

Atendendo a este círculo vicioso, os poucos estudos sobre os recicladores tendem a


terminar com uma conclusão sem esperança. Neste sentido são representativas as
conclusões de Birkbeck (1978, 1979) nas suas pesquisas sobre os recicladores de Cali.
Para Birkbeck, as dificuldades que enfrentam os recicladores são virtualmente
insuperáveis, dada a estrutura do mercado e a necessidade de manter os preços dos
materiais recicláveis abaixo do custo da matéria prima nova. Não há, pois, nada que o
analista possa propor para melhorar as condições dos recicladores:

Não podemos propor que se incremente de forma substancial a participação [dos


recicladores] nas utilidades geradas pela recuperação de materiais devido às
limitações estruturais que operam na determinação das referidas utilidades. O
reciclador de lixo pode trabalhar duramente, pode ter bom olho para escolher
materiais valiosos, pode buscar e rebuscar até encontrar o comprador adequado;
enfim, pode ser o exemplo perfeito do indivíduo empreendedor. Porém, nada disto o
levará longe (Birkbeck, 1979: 182).

Poucos anos depois, os recicladores, mediante a acção colectiva, viriam a desafiar esta
trágica conclusão de Birkbeck. Como acontece em tantas ocasiões, os actores sociais
objecto da exploração encontraram caminhos de emancipação que o analista não
logrou perceber. Na secção seguinte passo a expor a forma como um sector dos
recicladores colombianos se associou em cooperativas de trabalhadores
encaminhadas justamente para lutar contra limitações estruturais que pareciam
inamovíveis.

2.4. As cooperativas de recicladores


A solução para os problemas apontados implica uma dupla estratégia. Por um lado,
requer a transformação das condições de mercado em favor dos recicladores através
da luta contra a dispersão e a concorrência frontal entre eles. O mecanismo natural
para atingir este objectivo é a concentração da oferta de materiais recicláveis em
poucas organizações de recicladores capazes de recuperarem uma quantidade
considerável de material que lhes permita terem uma participação importante no
mercado e, portanto, negociarem os preços e as condições com as indústrias
compradoras. Por outro lado, dado o estigma e a marginalização social que afectam os
recicladores serem um obstáculo importante para a luta contra as condições de
mercado, é indispensável que as referidas organizações económicas assumam
funções sociais, políticas e culturais diversas que contrabalancem a exclusão de que
estes são vítimas. Entre elas encontram-se a promoção do acesso dos recicladores a
bens e serviços básicos cuja carência reforça o seu isolamento e miséria, tais como
educação básica e secundária e atendimento médico adequado; a constituição de
mecanismos de representação dos interesses dos recicladores relativamente à
sociedade e ao governo e a organização de actividades de integração entre a
população recicladora que ajudem a desenvolver os laços de solidariedade necessários
para a acção colectiva. Como vieram demonstrar as iniciativas económicas populares
emancipadoras na América Latina (Wasserstrom, 1985; Hirschman, 1984), a luta pela
melhoria das condições materiais de vida dos membros dos sectores populares está
intrinsecamente relacionada com a luta pelos direitos de cidadania destes sectores. No
caso concreto dos recicladores, o progresso económico e a luta pela inclusão são duas
caras da mesma moeda. Sem uma estratégia económica viável, os recicladores estão
condenados à pobreza ou, na melhor das hipóteses, a dependerem indefinidamente da
caridade de organizações não governamentais, de benfeitores individuais ou de
entidades governamentais isoladas. Sem uma estratégia social, os ganhos económicos
derivados da transformação do mercado da reciclagem não alteram as condições de
exclusão dos recicladores no seu conjunto.

A necessidade de uma estratégia económica e social foi claramente percebida pelos


líderes dentro da comunidade recicladora e por algumas organizações não
governamentais e entidades governamentais que, em começos da década de 80,
iniciaram os primeiros passos de organização dos recicladores. As lições destas
experiências pioneiras foram recolhidas por um grupo de perto de 200 recicladores em
Manizales em 1986 que, em estreita colaboração com a entidade estatal encarregada
naquela altura de promover o cooperativismo na Colômbia (DANCOOP), a agência
estatal de promoção da educação técnica (SENA) e as Empresas Públicas de
Manizales, fundaram a «Precooperativa Prosperar» e obtiveram o apoio da «Fundación
Social», organização de assistência privada financiada por um conglomerado
económico propriedade da comunidade dos jesuítas na Colômbia (Hower, 1997). A
«Fundación Social» viria a influenciar decisivamente o processo de organização dos
recicladores na Colômbia. Com efeito, a «Fundación Social» jogaria o papel catalisador
externo - do «animador social»- que está sempre presente nas experiências de
organização económica de comunidades marginalizadas. Inicialmente em colaboração
com a DANCOOP e posteriormente por sua própria conta, a «Fundación Social» entrou
em contacto com as comunidades de recicladores e os seus líderes e apoiou-os na
fundação e consolidação das primeiras cooperativas e redes de cooperativas.

O esforço conjunto de grupos de recicladores, a «Fundación Social» e algumas


entidades governamentais nacionais e locais deu origem à rápida proliferação de
cooperativas em finais da década de 80 e começos dos anos 90. Uma das primeiras
cooperativas fundada desta forma (1987) foi a «Rescatar», com sede em Bogotá. Em
1989 nasceu a «Porvenir», uma das cooperativas de maior sucesso em Bogotá.
Iniciativas semelhantes foram empreendidas nas grandes e médias cidades do país, e
em 1990 o seu número elevava-se já a cerca de 50, entre as quais a «Fundación
Social» apoiava 20 (Fundación Social, 1990). Surgiu então a necessidade de articular
os esforços das cooperativas emergentes através de redes regionais e de uma rede
nacional. À escala regional foram criadas, por exemplo, a Associação de Recicladores
de Bogotá (ARB), em 1990, e a Associação de Recicladores da Costa Norte (ARCON),
em 1992; esta última nascia como resposta ao assassinato de 11 recicladores e
indigentes em Barranquilla nesse mesmo ano. À escala nacional, a «Fundación Social»
patrocinou o Primeiro Encontro Nacional de Recicladores em 1990, que originou a
proposta de criação da Associação Nacional de Recicladores (ANR) que entrou em
funcionamento em 1991.

A criação de redes regionais e da rede nacional de cooperativas teve lugar no preciso


momento em que o Governo colombiano dava uma viragem decisiva para a abertura e
desregulamentação da economia, com base em políticas públicas de todo o tipo -
fiscais, monetárias, laborais, sociais, etc.- próximas do modelo neoliberal. Uma
componente essencial destas políticas foi o impulso para a privatização da prestação
de serviços públicos. Um dos primeiros sectores em que esta última estratégia foi
utilizada foi o do serviço de recolha de lixo em Bogotá. Em 1990, a Câmara Municipal
de Bogotá iniciou o processo de privatização do serviço e outorgou licenças a
consórcios criados por empresários colombianos e multinacionais estrangeiras para a
recolha de lixos em 60% da cidade. A privatização evidenciou os efeitos ambíguos da
abertura e do processo de globalização económica, de que esta faz parte, sobre a
população recicladora em geral e sobre as cooperativas e redes em particular. Por um
lado, a privatização do mercado da recolha de lixo e da reciclagem cria uma
oportunidade para as cooperativas, isto é, a prestação de um serviço antes reservado
às empresas estatais de saneamento. Por outro, dado que as privatizações são feitas
através de procedimentos em que apenas participam as empresas que reúnem os
requisitos financeiros e tecnológicos nas licitações, e estes estão fora do alcance das
cooperativas, os recicladores são excluídos à partida da definição do futuro mercado e
enfrentam o risco de desaparecimento do nicho de mercado do qual dependem, se as
empresas privadas que passam a prestar o serviço - como acontece cada vez com
mais frequência - se encarregarem não apenas da recolha do lixo como também da
recuperação do material reciclável nele contido. Este risco foi justamente um dos
motivos que levou os recicladores a organizarem redes regionais e nacionais que
funcionassem como grémios e representassem os seus interesses.
A primeira experiência das cooperativas no processo de privatização reflectiu tanto a
oportunidade como a séria ameaça que pairava sobre elas. Quando, em 1992, a
empresa estatal de saneamento de Bogotá que detinha ainda toda a responsabilidade
da recolha de lixos em 40% da cidade entrou em crise e provocou uma emergência
sanitária, a ARB e a «Fundación Social» propuseram ao governo da cidade que as
cooperativas de recicladores se encarregassem do serviço nas zonas onde a empresa
estatal costumava prestá-lo. A proposta foi aceite e a Câmara contratou a «Fundación
Social» - que, por sua vez, subcontratou a ARB - para resolver a emergência sanitária.
Porém, após os recicladores organizados terem resolvido com sucesso a emergência,
o governo local exigiu, para continuarem com o contrato, que fosse a «Fundación
Social» - e não a ARB - quem continuasse a ser o empreiteiro directo, dada a
desconfiança do governo na capacidade de gestão dos recicladores, facto que
manifesta claramente o clima de receio generalizado perante a população recicladora.
Como a «Fundación Social» não podia legalmente assumir essa responsabilidade, o
governo decidiu então abandonar esta possibilidade e privatizou 40% do restante
serviço através de uma licitação adjudicada a um consórcio internacional.

Ao longo da década de 90 multiplicaram-se as cooperativas e os esforços no sentido


de estabelecer alianças entre elas para serem criadas empresas de limpeza e
saneamento e manuseamento de resíduos capazes de entrar em concorrência com
empresas convencionais à medida que o processo de privatização do serviço fosse
avançando pelo país fora. O exemplo mais notável deste tipo de aliança é a empresa
«Ecología y Aseo» (ECOASEO), cujos accionistas são cooperativas de recicladores e
redes de diversas regiões. A ECOASEO apresentou uma proposta alternativa de
prestação de serviços de limpeza e reciclagem que denominou «gestão ambiental de
resíduos sólidos com participação comunitária» e que pretende prestar um serviço
eficiente e melhorar as condições de vida das comunidades de recicladores
organizados (Rivas, 1997). A ECOASEO em termos de capital e tecnologia colocava-se
em desvantagem em relação às grandes empresas de limpeza, daí os seus progressos
terem sido lentos. Porém, na actualidade presta o serviço de limpeza em três
municípios e está em processo de expansão para cidades intermádias. Além disso, as
empresas de serviços públicos de tipo cooperativo criadas pelos recicladores tiveram
sucesso a nível autárquico, tal como o evidencia a experiência de organização de
recicladores de San Gil - um município mediano no nordeste da Colômbia -, que presta
o serviço de limpeza e reciclagem em 55% da autarquia.

De resto, um número importante de cooperativas fez avanços económicos muito


consideráveis. As cooperativas de maior sucesso têm vindo a diversificar as suas
actividades económicas. Incluem não apenas o serviço de limpeza e reciclagem de
lixos domiciliários e industriais - e até em zonas extensas das grandes cidades - como
também se ocupam da transformação dos materiais reciclados, a actividade de maior
valor acrescentado. Além disso, as cooperativas e redes têm tentado ainda
comercializar directamente os materiais que recolhem através de cooperativas de
venda.
Ao longo dos anos 90 multiplicou-se o número de cooperativas em todo o país, ao
ponto de actualmente existirem 94, das quais 88 formam parte da ANR e agrupam
cerca de 10% do total da população recicladora do país (ANR, 2000). As cooperativas
são muito diversas. Enquanto algumas foram criadas há poucos anos e têm uma base
social muito instável, uma capitalização mínima e estão em risco permanente de
desaparecerem, outras, como a «Rescatar» e a «El Porvenir» em Bogotá e a
«Recuperar» em Medellín, conseguiram consolidar-se e encontrar nichos económicos
que lhes permitem manterem-se com vida e inclusivamente reinvestirem na aquisição
de bens de capital e diversificarem as suas actividades.

O desenvolvimento das cooperativas tem sido paralelo ao processo de consolidação


das redes regionais e da rede nacional. A ANR, que em Março de 2000 celebrou a VIII
Assembleia Geral de Recicladores, tem-se estabelecido como a entidade de
representação do grémio dos recicladores, articulada com as cooperativas através das
9 redes regionais. Estas vão-se consolidando e empreendendo projectos diversos em
favor das cooperativas que formam parte dela.

Até aos começos de 1999, a «Fundación Social» prestou apoio financeiro e técnico a
boa parte das cooperativas e redes. Durante os 12 anos que durou o apoio da
«Fundación Social», as virtudes e dificuldades características da intervenção de uma
organização facilitadora externa foram evidentes. Por um lado, a «Fundación Social»
forneceu capital e serviços indispensáveis para a descolagem das cooperativas e das
redes, que os recicladores muito possivelmente não teriam podido encontrar em
bancos e entidades privadas, especialmente após a falência na Colômbia do sector
financeiro solidário em meados dos anos 90. Mas, por outro lado, a possibilidade de a
«Fundación Social» intervir directamente na gestão das cooperativas afim de as tornar
rentáveis gerou uma reacção negativa entre os recicladores organizados, que
insistiram na sua autonomia e na suas capacidades de autogestão.

Em consequência, actualmente, as cooperativas e redes estão a atravessar um período


crítico em que a sua capacidade de desenvolvimento autónomo está para ser
comprovada. O facto de a entidade facilitadora que as vinha acompanhando e
financiando se ter retirado, veio criar um clima de insegurança de que as redes estão a
recuperar, enquanto as cooperativas estão a enfrentar, ainda por cima, os efeitos do
aprofundamento do processo de privatização dos serviços de limpeza e reciclagem,
que cria, como temos visto, tanto oportunidades como ameaças para os recicladores
organizados. O exemplo paradigmático desta situação é a iminente entrada em
vigência do denominado Plano Mestre de Lixos em Bogotá, um programa camarário
alargado que visa resolver nos próximos anos os problemas da recolha e disposição
dos resíduos sólidos que passaria para as mãos de empresas privadas de limpeza a
responsabilidade de recuperar e separar directamente os materiais recicláveis. No caso
de as organizações de recicladores não conseguirem criar alianças para participar e
influenciar este processo, é possível que o nicho económico do qual dependem os
cerca de 50.000 recicladores de Bogotá desapareça.
Qual é pois o balanço geral da história das cooperativas e das redes de recicladores na
Colômbia? Na minha opinião, trata-se de uma história que mostra ao mesmo tempo o
imenso potencial emancipador das iniciativas económicas populares articuladas
através de formas não capitalistas de produção - o que ficou plasmado, por exemplo,
em prémios internacionais de importância outorgados às organizações de recicladores
da Colômbia pela sua gestão social e ambiental - e as extremas dificuldades pelas
quais atravessa uma população altamente marginalizada dentro de um ambiente
económico e político desfavorável. Na secção seguinte trato de responder à questão e
ofereço uma síntese das conquistas, limitações e desafios que se colocam às
cooperativas na actualidade. Ao debruçar-me sobre isto, considerarei não apenas o
balanço económico destas experiências - isto é, se são ou não rentáveis e capazes de
manter-se com vida no mercado - como também o balanço social - isto é, os efeitos
que tiveram sobre as condições de vida dos recicladores. Dado que estes efeitos só
podem ser apreciados com clareza a nível micro-económico, isto é, na vida diária das
cooperativas e dos seus membros, na secção seguinte concentrar-me-ei na informação
recolhida na investigação etnográfica realizada com os membros da cooperativa
«Rescatar» durante os seus horários de trabalho nas ruas de Bogotá e na sede da
cooperativa.

2.5. O balanço social das cooperativas

A referência ao balanço social é muito comum tanto nos documentos produzidos pelas
cooperativas e as suas redes como nas reuniões dos membros das mesmas. Em
«Rescatar», por exemplo, uma das conquistas centrais que os directivos apresentaram
aos 37 recicladores sócios presentes na Assembleia Geral do ano 2000 foi o facto de a
cooperativa ter produzido uma utilidade económica próxima dos 10 milhões de pesos
(por volta de 5.000 dólares norte-americanos) em 1999 e, sobretudo, de a sua
«utilidade social» - isto é, o nome utilizado pelo gerente da cooperativa na assembleia
para se referir à soma investida no bem-estar do seus sócios (cerca de 25.000 dólares
no mesmo ano) - ter sido elevada e de, portanto, o seu balanço social ter sido positivo.
A que se refere este balanço social? Trata-se de uma série de benefícios individuais e
colectivos - alguns materiais, mas outros intangíveis - que, embora aparentemente
muito pequenos, implicam uma transformação fundamental das condições de vida dos
recicladores da cooperativa. A cooperativa promoveu o acesso gradual dos membros
aos benefícios anexos a uma ocupação no sector formal da economia. Assim, os
recicladores sócios foram filiados em entidades de segurança social (saúde e reformas)
e nas caixas de previdência familiar. Desfrutaram também, pela primeira vez, dos
benefícios de prémios e de desemprego. Enfim, acederam pela primeira vez a regalias
próprias da cidadania social, isto é, a bens e serviços que asseguram o seu bem-estar
material mínimo apesar dos baixos rendimentos. Isto tem criado situações claramente
excepcionais no contexto da sociedade colombiana, caracterizada por uma forte
separação de classes. Por exemplo, os passeios de integração dos recicladores sócios
da cooperativa «Rescatar» nos clubes de férias das caixas de compensação familiar
deram lugar a uma inusitada convivência, pelo menos por um dia, entre os recicladores
e os membros das classes médias nas piscinas e zonas verdes dos referidos clubes.
Além das regalias típicas de um emprego formal, o trabalho nas cooperativas
desencadeia mudanças consideráveis nos recicladores em relação à sua conduta
diária, às suas condições de trabalho, à comunidade com a qual convivem e à
sociedade em geral. No que se refere à conduta individual, a cooperativa exerce uma
pressão subtil, geralmente através de mecanismos informais - comentários em
reuniões, actividades de integração -, contra hábitos comuns entre a população
recicladora não organizada, tais como a violência dentro do agregado familiar, o
recurso às drogas e o descuido no vestuário. De facto, boa parte dos cursos de
indução que se oferecem periodicamente aos novos membros da «Rescastar» ocupa-
se de aspectos como o cuidado com o corpo, o respeito pelos outros e a necessidade
de levar uma vida familiar pacífica e responsável. Por exemplo, num desses cursos, em
finais de Julho de 2000, o gerente da cooperativa exortava os novos sócios «a se
capacitarem... mas não há diferença só porque em termos académicos um sabe mais
do que o outro. A equidade está em que quem tem mais conhecimentos tem uma
dívida social para quem não os tem e deve compartilhá-los». Na mesma conversa,
instava os novos membros a respeitarem as esposas, dado ser bastante comum
recorrer à violência contra as próprias mulheres entre a população recicladora: «Somos
nós a estabelecermos os padrões de beleza. Vocês sabem qual é o protótipo de mulher
bela? O da mulher que cada um de vocês escolheu como esposa... Atenção aos maus
tratos. Temos de aprender a resolver os nossos conflitos». Do que se trata, pois, é de
converter a pertença à cooperativa num veículo para a transformação gradual dos
hábitos que impedem o progresso dos recicladores como indivíduos, família e
comunidade. Embora sendo frequentes os problemas na cooperativa graças à
persistência de algumas destas condutas, o facto de nenhum dos seus 50 membros
viver na rua e de vários deles terem inclusivamente reingressado em instituições de
ensino secundário e técnico, a partir da nova experiência de vida na cooperativa,
mostra claramente o elevado potencial transformador desta.

No que se refere às condições de trabalho, o facto de formarem parte da cooperativa


produz um efeito positivo decisivo. E por razões distintas. Por um lado, a cooperativa
torna possível o acesso às fontes de aprovisionamento (isto é, a residências, edifícios e
indústrias que lhe contratam directamente o serviço de recuperação de materiais
recicláveis). Isto implica que o reciclador pode trabalhar directamente na fonte e deixar
de fazer percursos esgotantes através da cidade ou de recuperar materiais nas lixeiras.
Por outro lado, o facto de pertencer à cooperativa tem efeitos simbólicos muito
importantes que melhoram substancialmente a atitude da polícia e da sociedade em
geral face aos membros das cooperativas. As conversas mantidas e o trabalho com os
membros mostrou que o facto de poderem trabalhar usando as fardas da cooperativa
gerava mudanças notórias nas suas condições de trabalho. O uniforme, semelhante ao
dos empregados das empresas de limpeza convencionais, proporciona ao reciclador
um estatuto de trabalhador que geralmente lhe é negado quando circula pela cidade
vestindo roupas humildes. Neste sentido é elucidativo o comentário de Cristóvão, 25
anos, segundo o qual desde que leva a farda da cooperativa «a polícia não se mete
comigo, nem as pessoas que antes me tratavam como ladrão». Henry, o novo sócio da
cooperativa já citado anteriormente, referiu do seguinte modo a mudança que implicou
deixar de trabalhar por conta própria e entrar na cooperativa: «quando eu trabalhava
por conta própria as coisas corriam mais ou menos, mas realmente não tinha as
mesmas garantias que temos cá [na cooperativa]. Por exemplo, a estabilidade, ainda
por cima aqui a gente vai bem fardada, está bem assessorada, o carrinho em boas
condições; bom, há milhares de pequenas coisas que a gente não tem quando trabalha
por conta própria».

No que se refere ao trabalho comunitário com o resto dos membros da cooperativa, a


participação nos seus diversos órgãos - a assembleia geral, o conselho de
administração e o de vigilância, que têm poder decisório e aos quais estão
subordinados os membros directivos da cooperativa - foi possivelmente a primeira
experiência de participação democrática substancial para muitos dos seus membros,
dada a apatia política da população recicladora, consequência directa da sua exclusão
dos benefícios da cidadania. De igual forma, o trabalho colectivo na cooperativa tende
a gerar laços de solidariedade que mitigam a falta de confiança nos companheiros e no
resto das pessoas alheias ao círculo familiar que caracteriza os recicladores.
Diferentemente do que referia Birkbeck (1978) do seu estudo sobre o relacionamento
entre recicladores desorganizados e intermediários na lixeira de Cali, na qual constatou
que uns e outros se serviam de todo o tipo de artimanhas (por exemplo, balanças
alteradas ou pedras nos sacos de materiais) para se aldrabarem mutuamente acerca
do peso do material, a minha experiência como acompanhante dos condutores dos
camiões da cooperativa que recolhem e pesam os materiais recuperados pelos
recicladores sócios mostrou que estes confiavam plenamente nas pesagens feitas
pelos companheiros encarregados de fazerem as recolhas. Esta mútua confiança tem
efeitos positivos não apenas na convivência dos sócios da cooperativa, como também
na sua eficiência porque permite acelerar as operações do processo de reciclagem
(i.e., a recolha e pesagem do material) que usualmente são lentas ou conflituosas no
circuito informal da reciclagem.

Em síntese, as regalias sociais da cooperativa são parte essencial do seu


funcionamento e do seu atractivo para os recicladores. De facto, nalguns casos são até
a única razão pela qual os recicladores permanecem nela. Nas conversas e no
acompanhamento do trabalho diário foram recorrentes os comentários acerca da maior
conveniência económica imediata de trabalhar por conta própria e vender a
intermediários. Venderem à cooperativa o material recolhido pode ser desvantajoso de
um ponto de vista estritamente económico, já que implica a perda da opção de venda
ao intermediário que pagar o melhor preço e receber deste adiantamentos ou
empréstimos. Nestes casos, então, a permanência do reciclador na cooperativa pode
ser explicada apenas pelas inúmeras regalias de que beneficia pelo facto de ser
membro dela. Por último, é importante ter em conta que as cooperativas de
recicladores - de acordo com os princípios do cooperativismo e com a finalidade de
fortalecer a sua base social e económica - buscam activamente novos sócios entre os
recicladores desorganizados que trabalham nas ruas. Portanto, os benefícios sociais
que proporcionam são potencialmente extensíveis à população recicladora em geral.

É claro que o trabalho cooperativo também gera múltiplas dificuldades que foram
evidentes no trabalho de campo. Os benefícios sociais vêm acompanhados de custos
sociais que não existem no trabalho individual. Por exemplo, os processos deliberativos
de decisão no interior da cooperativa dão lugar a constantes desavenças e conflitos
entre os sócios que acabam por afectar o seu funcionamento, às vezes de forma grave.
Os conflitos mais frequentes que vêm à tona nas reuniões formais e nas conversas
informais têm a ver com a falta de confiança e o ressentimento mútuos entre os sócios
que ocupam cargos administrativos de responsabilidade na cooperativa, por um lado, e
os que realizam trabalhos manuais nas ruas ou no armazém, por outro. Os sócios da
cooperativa também exprimem o seu descontentamento com as frequentes reuniões,
que implicam uma carga adicional no trabalho e muitas responsabilidades domésticas.
Mas enquanto as fricções típicas dos processos deliberativos são comuns a todas as
cooperativas, uma dificuldade adicional está relacionada com as características
próprias da população recicladora, especificamente com o seu baixo grau de
escolaridade. O facto de a maioria dos sócios não ter estudos secundários impede uma
participação plena destes nos cargos de eleição e nas decisões da cooperativa que
requerem um conhecimento especializado. A opinião de Concepción, uma das sócias
da cooperativa citada em parágrafos anteriores, acerca das suas limitações para
participar nas reuniões - «não compreendo muitas das coisas que lá se dizem e é a
minha filha que tem que me explicar» - é representativa desta dificuldade. Neste
sentido, conforme o atesta Ana Beatriz - uma das sócias fundadoras, de cerca de 70
anos -, é evidente a divisão na cooperativa entre «os chefes e nós, os operários», isto
é, entre os directivos e quem trabalha como reciclador. Embora o gerente fosse
reciclador antes de entrar na cooperativa - o que acontece em muitas outras
cooperativas e nas redes -, a sua transição da rua para os escritórios da cooperativa e
eventualmente para a gerência é excepcional quando se compara com a história da
grande maioria dos recicladores, que, como o exprimiu um outro dos directivos da
cooperativa, «não estão para aqui virados [e] só querem saber dos seus vidros, dos
papéis e do cartão e de mais nada». É por esta razão que vários dos cargos
administrativos da cooperativa são ocupados por pessoas que nunca foram
recicladores e, embora algumas não tenham sequer estudos secundários, têm sim uma
motivação e uma capacidade de aprendizagem excepcionais em comparação com o
sócio médio da cooperativa. A divisão entre directivos e recicladores, que é
constantemente referida por uns e outros, impede a existência de relações horizontais
que facilitem o trabalho cooperativo e deliberativo e tende a reproduzir na cooperativa a
hierarquia das empresas capitalistas - isto é, entre «chefes» e «operários». As
dificuldades para subir de categoria dentro da cooperativa e a atracção pelo retorno a
um trabalho por conta própria ajudam a explicar a relativa falta de estabilidade do grupo
de sócios e, embora esta cooperativa tenha habitualmente entre 40 e 50 membros, são
frequentes os abandonos temporários ou definitivos.

Finalmente, o balanço social e político das redes de cooperativas revela que estas
conseguiram converter-se num mecanismo de relação dos recicladores organizados
com os governos locais, regionais e nacional. Porém, as redes, contrariamente às
cooperativas, não dispõem de fontes de rendimento próprias e, após o afastamento da
«Fundación Social», dependem de novas fontes de apoio externo. Por isso as
conquistas das redes têm sido limitadas. Por exemplo, um dos projectos mais atraentes
da ANR, a aprovação de uma lei que formalizasse a actividade dos recicladores, deu
lugar a uma lei (Lei 511/99) cujo conteúdo é predominantemente simbólico, como o
demonstra o facto de que a única disposição de imediato cumprimento tenha sido a
criação do Dia Nacional do Reciclador.

2.6. O balanço económico das cooperativas

Quais foram até agora as conquistas das cooperativas nas tentativas de transformação
da estrutura do mercado da reciclagem em favor dos recicladores? As conquistas
económicas notáveis de cooperativas como a «Rescatar», a «El Porvenir» e a
«Recuperar» foram mencionadas anteriormente. Actualmente estas e outras
cooperativas por esse país fora contam com um capital de trabalho importante que
abrange armazéns, camiões, maquinaria e equipamento de escritório. Uma visita ao
armazém da «Rescatar», por exemplo, pode surpreender o observador habituado à
extrema pobreza dos recicladores na rua. Os dois camiões e o tractor propriedade da
cooperativa encontram-se à entrada de um armazém cheio de materiais recicláveis e
de maquinaria pesada para embalagem e posterior entrega. Várias cooperativas, em
conjunto ou de forma isolada, conseguiram participar no processo de transformação
dos materiais reciclados e na prestação de serviços de limpeza e manuseamento
integral de resíduos através de empresas de serviços públicos como ECOASEO
criadas para o efeito. Neste sentido, várias cooperativas conseguiram gerar um
processo incipiente de acumulação de capital que lhes permite permanecer no
mercado e até se expandir para novos nichos económicos.

Porém, é também evidente que o mercado da reciclagem continua dominado pelos


intermediários e pelas indústrias compradoras e que os rendimentos dos recicladores
associados às cooperativas são muito baixos. No que se refere ao primeiro aspecto, o
facto de só cerca de 10% dos recicladores estarem associados implica que a oferta de
materiais reciclados continua fundamentalmente na mão de recicladores
desorganizados que concorrem entre eles e contra as cooperativas, o que perpetua
condições favoráveis para os intermediários e compradores. Dada a cultura
individualista da população recicladora e o facto das cooperativas estarem apenas na
sua fase de nascimento ou consolidação, os esforços destas em concentrar a oferta e
alterar a estrutura de preços tiveram um impacto modesto. No que se refere a
rendimentos dos recicladores organizados, as conversas com os sócios da cooperativa
referem que continuam a ser com frequência inferiores ao salário mínimo. E além
disso, dado que o acesso aos benefícios da segurança social é gradual e concedido
apenas aos sócios mais estáveis, boa parte dos recicladores organizados ficam
excluídos destas regalias.

Que razões explicam as dificuldades das cooperativas em modificar a estrutura do


mercado? Alguns dos factores que limitam o sucesso das cooperativas estão fora do
seu alcance, como, por exemplo, o predomínio da cultura individualista que impede a
integração de mais recicladores informais. Contudo, outros factores estão dentro do
quadro de acção das cooperativas e não foram até ao momento suficientemente
considerados por estas. Dois destes factores são de importância crucial - como o
demonstra a experiência de Mondragón em Espanha (Whyte e Whyte, 1988) - para a
sobrevivência das cooperativas nas condições mutáveis do mercado. Em primeiro
lugar, as cooperativas de recicladores emergiram e desenvolveram-se como unidades
relativamente independentes. As redes que constituíram à escala regional e nacional
cumprem funções políticas gremiais e não de coordenação económica, de assessoria
ou financiamento como o fazem as entidades de segundo e terceiro nível no complexo
de Mondragón. A «Fundación Social» fornecia recursos e assessoria a cooperativas
isoladas, mas não servia como instância de planeamento ou coordenação das
cooperativas no seu conjunto. Após o afastamento da «Fundación Social», até este tipo
de assessoria e apoio tem vindo a desaparecer. Em síntese, as cooperativas não
conseguiram integrar-se numa rede económica de ajuda mútua. O seu isolamento vê-
se agravado pelo facto de na Colômbia o sector cooperativo ser bastante débil,
especialmente após a falência da maioria das entidades financeiras cooperativas em
meados dos anos 90 (Valencia, 2000). Em segundo lugar, as cooperativas não foram
capazes de estabelecer vínculos duradoiros com entidades estatais e empresas
privadas convencionais. O relacionamento das cooperativas e das redes com o Estado
é intermitente e variável. Não existe, em geral, uma política estatal de apoio aos
recicladores, mas sim esforços ocasionais e isolados de algumas entidades para lançar
projectos benéficos para as cooperativas. Embora existam casos excepcionais - como
a associação da «Rescatar» com uma empresa de tamanho médio para produzirem
lâminas de alta resistência feitas com materiais reciclados -, em geral as cooperativas
não conseguiram estabelecer relações de colaboração com empresas privadas. A
ausência de vínculos entre as próprias cooperativas, e entre estas e o Estado e o
sector capitalista, impede o aparecimento de uma economia cooperativa da reciclagem
que, como mostra o caso de Mondragón, constituiria a condição necessária para a
prosperidade das cooperativas individuais a longo prazo.

Apesar destas limitações, a história das cooperativas de recicladores mostra que estas
podem sobreviver e inclusivamente progredir lentamente nas actuais condições do
mercado da reciclagem. Porém, estas condições estão rapidamente a mudar como
resultado da privatização e modernização dos serviços de limpeza e reciclagem nas
principais cidades colombianas. Isto, por sua vez, acentua as dificuldades surgidas pela
falta de integração das cooperativas em redes e em alianças com o Estado e o sector
privado. Na secção seguinte porei fim ao estudo prático com uma análise sobre o futuro
das cooperativas de recicladores nas cambiantes condições do mercado.

2.7. Podem sobreviver as cooperativas?

Duas mudanças fundamentais - representativas das transformações da economia


colombiana após a abertura económica em começos dos anos 90 - estão a produzir-se
no mercado da reciclagem. Em primeiro lugar, as indústrias compradoras estão a levar
a cabo rápidos processos de fusão para fazer face à concorrência de indústrias
estrangeiras produtoras de papel, vidro, plástico e outros materiais que utilizam matéria
prima reciclada. Com a concentração extrema da procura - de facto, alguns destes
mercados passaram de oligopsónios para monopsónios - acentua-se o controlo do
mercado por parte dos compradores. Esta evolução foi claramente percebida pelos
líderes da comunidade recicladora, como o evidencia a intervenção de Rodrigo
Ramírez, gerente da «Rescatar», na assembleia anual da ANR em Março de 2000, à
qual assistiram 79 líderes em representação de 44 cooperativas de todo o país:

O que é que se está a passar no sector do papel? A «Cartón de Colombia» [a maior


empresa produtora de papel da Colômbia] é praticamente a dona das fábricas
nacionais produtoras de papel no país. A única concorrência séria era a da
«Papelsa». Que aconteceu? Comprou-a... [De forma similar] estão-se a repartir o
mercado da sucata entre as duas únicas siderurgias com que contamos na Colômbia
e vejam como acabaram por deprimi-lo, como o reduziram ao nada, desceram os
preços... De tal maneira que nós os recicladores começamos a ficar nas mãos de um
comprador único. Por outras palavras: nas mãos do monopólio.

Em segundo lugar, o processo de privatização do serviço de recolha de lixo estendeu-


se a todo o país. Em vista da insuficiência dos sistemas actuais de recolha de lixo, os
governos locais, nomeadamente nas principais cidades, projectaram planos
abrangentes - como o Plano Mestre de Lixos de Bogotá - para outorgarem a empresas
privadas não apenas o serviço de limpeza (que já está nas mãos de consórcios
multinacionais em boa parte das cidades) mas também o da reciclagem. A
superioridade destes consórcios em termos de capital e tecnologia sobre as
cooperativas, põe em causa a sobrevivência dos recicladores organizados - e até a dos
desorganizados - que depende de as cooperativas começarem a implementar a curto
prazo estratégias que lhes permitam oferecer serviços de limpeza e reciclagem
competitivos. Por outras palavras, devido ao tecnicismo crescente dos serviços que
prestam essas empresas, é improvável que a médio e a longo prazo os recicladores
possam continuar a desenvolver uma actividade artesanal, nem sequer à margem do
mercado. Este grave risco já foi percebido com lucidez pelos representantes dos
recicladores organizados, como o mostram, de novo, as palavras do gerente da
«Rescatar» na assembleia da ANR:

Vejam o que acontece na Colômbia e no mundo. Isto é uma economia globalizada, é


universal. As mesmas privatizações que estão a produzir-se na Colômbia, estão a ser
feitas na Venezuela, no Equador, no Peru. Estamos no século XXI e nós, os
recicladores, continuamos a trabalhar com ferramentas de 1900. Temos 100 anos de
atraso! Estamos a competir em desigualdade de condições, com os nossos carrinhos
de rolamentos!, enquanto a empresa operadora de serviços de limpeza tem um
veículo americano ou europeu de duzentos milhões de pesos. Assim não se pode
concorrer. Temos de aprender a desenvolver projectos.

A necessidade de capitalização para modernizar os equipamentos tem criado nas


organizações de recicladores um dilema típico das empresas cooperativas. Dado que
os sócios não têm capacidade económica pessoal para obterem capitais, as
cooperativas precisam de investidores externos para a sua modernização. Além disso,
devido ao facto do sector financeiro cooperativo estar a sair de uma severa crise na
Colômbia, não existem fontes de financiamento favoráveis para as cooperativas de
recicladores. Nestas condições, as cooperativas passaram a depender ou da sua
precária capacidade de acumulação de capital ou de doações ocasionais feitas por
entidades governamentais, por fundações ou por governos estrangeiros para a compra
de bens de capital.
Que estratégias podem evitar pois o desaparecimento das cooperativas de recicladores
e manter o seu potencial emancipador para a população recicladora em geral? A
resposta à pergunta remete para os desafios que enfrentam um grande número de
cooperativas e organizações económicas populares na semiperiferia e na periferia em
tempos de ajustes estruturais e de globalização. A seguir, e em jeito de conclusão,
ocupo-me desta pergunta e tento deixar explícitos os elementos de análise que podem
derivar do estudo prático que apresentei ao longo deste trabalho.

3. Conclusões

O estudo prático ilustra o potencial e as dificuldades das cooperativas de trabalhadores


na actualidade, nomeadamente daquelas que surgem em condições de grande
marginalidade e que afectam um número crescente de pessoas nos países pobres. O
contributo central do estudo prático para as discussões acerca de formas alternativas
de organização e de desenvolvimento económicos e para a prática das cooperativas de
trabalhadores é a evidente necessidade de superarem o isolamento que
frequentemente caracteriza à escala local esta linha de pensamento e de acção. No
caso concreto das cooperativas de trabalhadores, é nítido que a sua sobrevivência nas
condições de mercado volátil e aberto à concorrência estrangeira depende da sua
inserção em redes de apoio com outras cooperativas, com entidades estatais e com
empresas capitalistas a nível local, regional, nacional e internacional. Esta parece ser a
conclusão «em que todos os estudiosos das cooperativas de trabalhadores estão de
acordo: as possibilidades de sucesso a longo prazo de uma cooperativa que trate de
sobreviver num mar de empresas privadas são muito baixas» (Whyte e Whyte, 1988:
277). A integração em redes - que explica o êxito das iniciativas cooperativistas mais
prósperas como Mondragón e de outros projectos de desenvolvimento local
cooperativos (Melo, 2000) - é especialmente importante quando se trata de
organizações económicas solidárias de sectores que, como o dos recicladores, vivem
na pobreza e trabalham em condições que dificultam a sua mobilização colectiva.

A integração com outras empresas nacionais e estrangeiras do sector solidário -


cooperativas de trabalhadores, cooperativas de consumidores, entidades financeiras
cooperativas, mutualidades, etc. - é uma estratégia natural para as cooperativas, dado
que a colaboração entre elas é um dos suportes básicos da filosofia cooperativista. Do
que se trata é de formar um verdadeiro sector solidário da economia baseado na
coordenação e a colaboração entre empresas solidárias que realizem actividades
complementares. No caso das cooperativas de recicladores, é evidente a necessidade
de gerar alianças produtivas com cooperativas similares em todo o país. No
estrangeiro, o meio natural para a consecução deste empenho é a colaboração com
cooperativas de recicladores e cooperativas de trabalhadores que utilizem matérias
primas recicladas no exterior. Esta é possivelmente a estratégia mais difícil de
empreender para as cooperativas de recicladores. As cooperativas de maior sucesso
apenas estão a começar a experimentar as vantagens das telecomunicações e não
contam com os meios nem com o pessoal necessário para iniciarem contactos deste
tipo. As barreiras tecnológicas e culturais (a língua, por exemplo) são de momento
difíceis de superar para as cooperativas. Nestas condições, o apoio proveniente do
estrangeiro continua a consistir em doações de entidades de promoção social ou de
governos amigos, e não em laços de cooperação económica duradouros.

As dificuldades em estabelecer alianças com outras cooperativas nacionais e


estrangeiras não são, porém, exclusivas das empresas de recicladores. Na Colômbia,
em geral, no âmbito das alianças entre empresas cooperativas está tudo por fazer e,
dado que o sector solidário foi fortemente abalado pelos efeitos da abertura económica
e do abandono estatal a que o sector foi deixado, a falência do sector financeiro
cooperativo, o mais dinâmico da incipiente economia solidária do país, era inevitável.
Não obstante, existem no país numerosas experiências isoladas que mantêm viva, a
médio e longo prazo, a promessa de consolidação de uma economia solidária. Alguns
exemplos são as cooperativas de trabalhadores de sucesso como a Colanta, fabricante
de derivados lácteos. De igual forma, comunidades de camponeses com o apoio de
organizações não governamentais e organizações estatais empreenderam um esforço
ambicioso de fundação de economias cooperativas regionais precisamente nas zonas
mais afectadas pelo conflito armado (Valencia, 2000). Do progresso destas iniciativas
locais e regionais e da sua articulação numa economia solidária nacional e
internacional depende a viabilidade destas formas alternativas de organização
económica no país.

A integração das cooperativas populares de trabalhadores com organismos estatais


encarregados de funções de promoção económica e social é também igualmente
importante, como já advertia Friedmann (1992: 7): «embora um desenvolvimento
alternativo tenha de começar localmente, não pode deter-se aí. Queiramos ou não, o
Estado continua a ser um actor protagonista». A tradicional reserva que as teorias e
iniciativas económicas de base apresentam face ao Estado têm o mérito de evitar a sua
cooptação e a criação de relações de dependência dos actores económicos populares
frente ao Estado. Porém, é improvável - tal como perceberam os recicladores na
Colômbia quando formaram redes de representação política - que sem o apoio estatal
se possam gerar as condições necessárias para que prospere uma economia solidária.
Isto implica um desafio considerável para o Estado e, nomeadamente, para quem
dentro dele é responsável pelas políticas económicas e sociais. Como, de uma forma
dramática, o evidencia a guerra civil na Colômbia, adiar a solução dos problemas de
distribuição da riqueza e de exclusão da maior parte da população da vida económica e
política tem efeitos explosivos. Não é por acaso, neste sentido, que a situação de
violência no país piorou após se verem frustrados os projectos redistributivos contidos
na Constituição de 1991 - que inclui normas específicas, mas nunca aplicadas, visando
promover o acesso dos trabalhadores à propriedade das empresas - e que o tema da
promoção deste sector da economia seja um dos que com maior frequência surge nas
discussões sobre uma agenda de paz (Valencia, 2000); como também não é por acaso
que o problema de redistribuição da terra seja uma parte essencial dos pactos
constitucionais que em países como a África do Sul permitiram a transição para a paz
(Klug, 2000).

Também as alianças com empresas capitalistas são necessárias num ambiente


económico caracterizado pelas fusões entre empresas com a finalidade de enfrentarem
a concorrência global. Como o demonstra o caso de Mondragón, este tipo de alianças
é possível sem vir a pôr em perigo a própria estrutura e os princípios das cooperativas
de trabalhadores, nos casos em que as empresas cooperativas são sólidas. Porém,
quando se trata de cooperativas menos estabelecidas, é necessário estipular as
condições de aliança com as empresas capitalistas, de maneira a evitar a
desnaturalização das cooperativas. O caso das cooperativas de recicladores ilustra
bem a necessidade e os riscos desta estratégia. Apenas se conseguirem unir-se em
parceria - num consórcio de empresas de limpeza e reciclagem com empresas
privadas convencionais e, deste modo, conseguirem os capitais e a tecnologia para
participarem nos processos de privatização - deixarão de correr o risco de
desaparecerem. Mas, ao mesmo tempo, se a aliança se estabelecer em termos que
ponham em perigo a estrutura cooperativa das organizações de recicladores, será
muito possível que acabem sendo absorvidas pelas empresas capitalistas com que se
associem ou que percam o seu carácter cooperativo.

O resultado da promoção destes tipos de redes de apoio mútuo é uma economia plural,
na qual coexistem o Estado, as empresas solidárias e as empresas capitalistas no
contexto de um mercado regulado. Neste sentido, a promessa cooperativista
decepciona tanto os defensores de propostas neoliberais - cuja economia ideal está
baseada exclusivamente em empresas capitalistas que concorrem num mercado livre -
como os defensores de um colectivismo estatal - que gostariam de ver o mercado
eliminado e substituído pelo planeamento económico centralizado. Não se trata da
utopia da sociedade de mercado criticada acertadamente por Polanyi (1957), nem da
utopia colectivista. É uma utopia real (Wright, 1998), porque é suficientemente radical
para não se conformar com a regulamentação do mercado sem alterar a divisão entre
capital e trabalho, e suficientemente real para ser viável nas condições do mercado
contemporâneo. E, na medida em que tem vocação global - dado que um dos
princípios do cooperativismo é o da colaboração entre cooperativas de todo o mundo -
pode vir a ser uma forma de globalização contra-hegemónica. Porém, para atingirem
isto, as empresas cooperativas, dentro e fora dos sectores populares, no centro, na
semiperiferia e na periferia, têm ainda um longo caminho a percorrer.

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ECONOMIA SOCIAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA: ÁLIBI OU ALTERNATIVA AO
NEOLIBERALISMO?

Jean-Loup Motchane3

Vistas como um objeto não identificado na sociedade capitalista, financiadoras de


ações militantes mas adaptadas ao sistema, as grandes empresas da economia social
estão diante de um impasse. Ou se integram na construção de um projeto alternativo
ou tendem a se diluir na economia de mercado.

O que há em comum entre o Crédit Agricole, banco que gera cerca de um trilhão de
francos, via 15,5 milhões de contas, e o Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, com
um elenco de 49 pessoas? Nada, a não ser pertencerem a um mesmo campo, o da
"economia social".

A economia social tem raízes profundas, na Idade Média. As guildas, confrarias e


corporações de ofício e compagnonnages (associações de solidariedade entre
trabalhadores) constituem seus longínquos ancestrais. Originárias do século XIII, as
associações de artesãos permaneceram, sob o Antigo Regime, a principal forma de
organização dos operários profissionais franceses e sobrevivem até hoje. No entanto,
os filósofos iluministas iriam considerar as corporações um entrave à liberdade
individual e a Revolução Francesa rejeitaria qualquer legitimidade a corpos
intermediários entre indi- víduo e nação. Dessa forma, a lei Le Chapelier, de 1791,
proíbe qualquer agrupamento voluntário de base pro- fissional. Somente em 1884, por
iniciativa de Waldeck Rousseau, será concedida a liberdade de se constituírem
sindicatos profissionais. Em 1898, a lei que funda a mutualidade seria votada, e depois,
em 1901, outra autorizando a liberdade de associação.

Primeiras teorias e experiências

Os primeiros teóricos e as experiências iniciais da economia social aparecem no início


do século XIX, em reação à brutalidade da revolução industrial. Diante do pensamento
liberal, o socialismo utópico de Saint-Simon (1760-1825) esboça a visão de um sistema
industrial cujo objetivo seria buscar o melhor bem-estar possível às classes
trabalhadoras unidas em associações de cidadãos, e a redistribuição eqüitativa das
riquezas seria competência do Estado. À mesma época, Charles Fourier (1772-1837)
inventaria o falanstério, onde a repartição dos bens se dá segundo o trabalho entregue,
o capital empregado e o talento.

Pierre Proudhon (1809-1865), crítico radical da propriedade privada, será o precursor


de um sistema de círculos de ajuda mútua no qual o dinheiro é substituído por
"certificados de circulação", e no qual as sociedades trocam serviços. Como pensador
anarquista, no entanto, recusa qualquer intervenção do Estado.

3
Traduzido por Tereza Van Acker (Professora na Universidade de Paris VII).
Inversamente, Louis Blanc, em sua obra L'Organisation du travail, publicada em 1839,
descreve uma sociedade renovada, fundada na criação de cooperativas, o Estado
responsável em generalizar esse sistema para o conjunto da produção.

No interesse mútuo dos associados

Uma outra grande fonte de inspiração da economia social foi o cristianismo social,
corrente de pensamento reformista representada, na França, por Frédéric Le Play
(1806-1882) e Armand de Melun (1807-1877).

Inseparável da história do movimento operário, de suas divisões e da resistência à


construção de uma sociedade fundada sobre o lucro, a economia social, ou "terceiro
setor", reúne estruturas muito diferentes quanto ao tamanho e à natureza de suas
atividades. Quer tenham a forma de mutualidades, de coopera- tivas, de associações
ou de fundações, na França, na Itália, na Espanha e na Alemanha, ou organizações de
auto-ajuda, de instituições de caridade, de organizações voluntárias não lucrativas na
Grã-Bretanha, todas essas instituições afirmam compartilhar cinco princípios sagrados,
um objetivo fundamental e exigências sociais: a independência em relação ao Estado,
a filiação voluntária dos sócios, a estrutura democrática de poder (uma pessoa, um
voto), o caráter inalienável e coletivo do capital da empresa e a ausência de
remuneração do capital, eis os princípios. O objetivo fundamental define-se pelo
fornecimento de bens e serviços, ao melhor custo, de forma a servir ao interesse mútuo
dos associados ou, mais amplamente, assegurar um serviço de interesse geral que o
Estado não quer ou não pode assumir.

Desenvolvimento, educação e formação

Quanto às exigências sociais, elas impõem que as empresas do terceiro setor não
somente respeitem as leis trabalhistas mas também contribuam, através de sua
organização eqüitativa, para o desenvolvimento, educação e formação de todos os que
ali trabalham, assalariados ou voluntários. Enfim, as empresas da economia social
pretendem não ser como as outras. A realidade, no entanto, é outra.

Estima-se que, dos 370 milhões de habitantes da União Européia, uma média de 25
milhões pertença a uma cooperativa, a uma mutualidade ou a uma associação.
Levando em conta o fato de que uma mesma pessoa pode estar ligada a várias delas,
mais de 30% da população são membros de uma organização ou empresa de
economia social. Segundo um estudo publicado pela Comissão Européia em 1997, o
conjunto de seus componentes representava, em 1990, de 6 a 6,5% das empresas, ou
seja 5,3 % do emprego privado, e até 6,3%, segundo outras abordagens.

A era da liberalização

No campo bancário e de seguros, seu desempenho administrativo é considerado,


freqüentemente, superior ao das empresas capitalistas tradicionais. E isso mesmo sem
que elas tenham acesso ao financiamento do mercado de ações e possam ter
dificuldade em dispor de fundos próprios suficientes. Ora, com depósitos de mais de
um trilhão de euros, aproximadamente 900 milhões de euros de crédito, 36 milhões de
associados e 601 milhões de clientes, os bancos cooperativos detêm 17% do mercado.
Para as mutualidades e cooperativas de seguros, a porcentagem correspondia, em
1995, a 29,2% na Europa Ocidental, 30,8% no Japão e 31,9% nos Estados Unidos.

As relações entre as instituições da economia social e os poderes públicos


modificaram-se profundamente na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Depois
do primeiro choque do petróleo, a crise econômica e o aumento do desemprego
contribuíram para reforçar, em toda parte, seu papel, assumindo diferentes
modalidades, de acordo com os países. Na Grã-Bretanha, certas atividades sociais
foram retomadas pelo setor privado devido à política de redução das despesas públicas
conduzida por Margaret Thatcher. Na Espanha, as restrições orçamentárias levaram as
coletividades a privatizar parte de seus serviços sociais. As empresas de mercado
apoderaram-se da parte lucrativa da demanda, deixando às associações o setor
insolvente. Na França, e na Itália, por outro lado, não foi constatado o
descomprometimento financeiro do Estado.

Nasce a economia solidária

A Comissão Européia enumerava, em 1995, mais de um milhão de associações na


Europa, reunindo de 30% a 50% da população segundo o país. As despesas dessas
associações representam, em média, 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). A França,
com 3,3% do PIB, está próxima da média da comunidade. Suas 730 mil associações
empregam 1.274.000 de assalariados equivalendo a recursos da ordem de 220 bilhões
de francos, 60% provenientes dos fundos públicos.

O crescimento do desemprego e da pobreza na Europa na década de 80 provocou o


surgimento de novas empresas sociais. Instrumentos de luta contra a exclusão, vetores
de inovação, elas representam, quase sempre, uma resposta a novas necessidades
diante da incapacidade das administrações e das coletividades locais e regionais para
imaginar e pôr em prática soluções eficazes. Devido à carência parcial dos poderes
públicos e aos recuos do Estado-Previdência face à escalada liberal, o terreno ficou
livre e nasceu uma nova forma de economia social: a economia solidária.

Cooperativas de solidariedade social

Essa nova economia, no sentido autêntico do termo, retoma algumas características da


tradição da luta do movimento operário contra a miséria. É nesse meio que
encontramos as organizações mais militantes, porém também as mais frágeis:
empreendimentos de inserção, comitês de cidadãos nos bairros, com poder de
decisão, que se preocupam com a melhoria da qualidade de vida e do ambiente,
associações intermediárias que empregam pessoas em dificuldades para garantir
tarefas que o setor privado tradicional não leva em conta, pequenas cooperativas
garantindo pequenos serviços à coletividade; reparos, entrega de refeições a domicílio
para pessoas dependentes, serviços domésticos, como passar roupa, limpeza, costura.
Na Itália, a lei de 1991 consolidou a existência do que constitui uma das mais
interessantes inovações dessa economia solidária, as cooperativas de solidariedade
social, bem como seu agrupamento em estruturas de segundo nível: os consórcios. Na
França, na perspectiva da descentralização, o Estado e as coletividades delegaram
uma parte da ação social e do esforço de inserção a instituições locais de economia
solidária, mantendo, entretanto, o auxílio financeiro.

Um dos "carros-chefes" da economia

Se uma parte da economia solidária financiada através de fundos privados representa


uma mina impressionante de militância, de iniciativas e de inovação, seu peso
econômico é fraco, comparado ao dos mamutes da economia social: mutualidades de
seguros, bancos, cooperativas, grandes associações financiadas pelo Estado. E então,
economia social e economia solidária pertencem a dois mundos que se ignoram? Não
exatamente: a primeira é muitas vezes solidária com a segunda, no que diz respeito ao
início, acompanhamento e financiamento de projetos. Além da ação das fundações
criadas por grandes bancos cooperativos e pelas mutualidades, que financiam, cada
uma, uns 20 projetos por ano, instituições financeiras propõem a particulares
investimentos éticos e investimentos de parceria.

Tais investimentos, atualmente avaliados em 400 milhões de euros, representam uma


gota d'água do oceano, se comparados ao estoque de poupança salarial, avaliada em
38 bilhões de euros. Mais de quatro mil empresas e 20 mil empregos foram gerados
por esse tipo de ajuda. Dispositivos análogos existem em outros lugares da Europa.

Longe de ser marginal, o setor da economia social e solidária, que aliás não pára de
crescer - ainda que formalmente, como demonstra a recente transformação de Fundos
de Poupança em mutualidades -, é pelo menos um dos "carros-chefes da economia"
européia, segundo a expressão de Thierry Jeantet, membro do Comitê de Assessoria à
Economia Social. Sua visibilidade para os cidadãos e para os poderes públicos não
corresponde à sua importância. Entretanto, a nomeação recente de um secretário de
Estado da Economia Solidária, Guy Hascoët, traduz o interesse político que o setor
suscita na França, ainda que o orçamento concedido ao novo ministro seja muito
limitado.

O conceito de interesse geral

O projeto de Hascoët tem três objetivos: a votação de uma lei sobre a economia social
e solidária no início de 2001; a inserção de uma cláusula referente à poupança solidária
no futuro Projeto de Lei sobre a poupança salarial; e a reforma, prevista para julho, do
Código da mutualidade no marco da difícil unificação da legislação francesa com as
diretrizes européias de 1992 sobre seguros. Essas diretrizes, marcadas pelo
liberalismo, recusam-se a distinguir as mutualidades - que não produzem lucro, uma
vez que seus clientes são considerados como sócios - das companhias de seguros,
cuja primeira vocação é realizar lucros.
Uma lei sobre o terceiro setor poderia definir, através de selo de garantia, um "setor da
economia social e solidária" e criar um estatuto de "empresa com finalidade social".
Isso permitiria levar em conta missões de interesse geral da economia solidária
aprofundando o relatório do deputado europeu pelo Partido Verde, Alain Lipietz. Seria
ainda necessário que o conceito de interesse geral fosse introduzido no Direito
Comunitário, inteiramente baseado na noção de concorrência...

O dossiê da unificação européia

O explosivo dossiê da poupança salarial, ou seja, da poupança de longo prazo


proveniente de um salário depositado pela empresa como reembolso de um
empréstimo, utilizado ou não na aposentadoria, não deveria circular apenas no campo
balizado pelos partidos de direita e pelo Movimento dos Empresários da França
(Medef). A verdadeira pergunta a ser feita é quem - assalariados, empregadores ou
uma estrutura técnica - deve gerir o que não passa, efetivamente, de um salário
reembolsado, segundo quais modalidades e com qual finalidade. O que traz novamente
à tona o problema fundamental da apropriação coletiva dos meios de produção e da
troca no seio da sociedade capitalista.

Quanto ao dossiê da unificação européia, ele ilustra um dos aspectos do confronto


entre a economia solidária e a lógica liberal impulsionada pela Comissão Européia, de
Bruxelas. Conforme esclarece o relatório Mission mutualiste et droit communautaire,
feito por Michel Rocard, deputado europeu, ao primeiro-ministro, as grandes
federações de mutualidades francesas gostariam que a proibição de coletar
informações médicas para fins de estabelecer preços e qualquer tratamento
preferencial em relação a um associado fosse imposta ao conjunto das companhias de
seguros européias, inclusive àquelas voltadas para o mercado. Elas reivindicam,
igualmente, o poder de gerir, dentro da própria estrutura mutualista, estabelecimentos
de saúde que fazem parte do serviço público, ou seja, poder utilizar atividades
lucrativas para equilibrar os serviços deficitários.

Uma "boa ação" humanitária?

A economia social e solidária constitui, no interior da sociedade capitalista, uma


espécie de objeto não identificado. Ela acumula paradoxos. Suas grandes instituições
proclamam-se diferentes de suas homólogas capitalistas, porém disso nem sempre há
prova explícita ou convincente. Os grandes bancos e as sociedades mutualistas de
seguros, bem como as cooperativas, têm estatutos incompatíveis com a lógica do
mercado. No entanto, elas moldam-se ao sistema liberal a ponto de não poderem ser
facilmente diferenciadas das empresas comuns.

É claro que contribuem com uma sustentação discreta, porém real, a empresas de
economia solidária, militantes e inventivas, porém essa ajuda aparece mais como uma
"boa ação" humanitária do que como uma vontade de opor um outro modelo à
economia de mercado. Elas divulgam seu vínculo a ideais comuns, mas ainda têm
muito a fazer para calar seus opositores e melhorar sua compreensão.

Relações complexas com a esquerda

Os desafios postos pela existência desse vasto setor são profundamente políticos,
porém os dirigentes dessas grandes instituições evitam defini-los nesses termos.
Enquanto guardam suas bandeiras no bolso, reclamam de falta de visibilidade: "Sou
apenas um banqueiro, não um pensador", desculpa-se Jean-Claude Detilleux,
presidente do banco Crédit Coopératif, bastante engajado, no entanto, em dar
sustentação à economia solidária. Os militantes de base também são modestos. Para
eles, o que conta é a luta cotidiana contra a exclusão. Deixam aos políticos a
preocupação de inventar um outro modelo de sociedade. "A economia social permite
amortecer as crises que surgem nas nossas sociedades. Mas não será ela que
questionará a sociedade do mercado", explica Claude Alphandéry, presidente do
Conselho Nacional da Inserção pela Atividade Econômica.

A economia social mantém relações complexas com os partidos de esquerda e as


organizações sindicais, e é aí que se encontram muitos de seus executivos ou futuros
executivos. Na Europa, a força dos partidos social-democratas, e também democratas-
cristãos, teve tradicionalmente por base suas relações com os sindicatos, cooperativas
e mutualidades. "Entretanto - observa Jean-Christophe Le Duigou, secretário da CGT -,
os sindicatos e os partidos políticos de esquerda não fazem da economia social uma
proposta de sociedade." Na França, apenas os Verdes manifestam até agora um
interesse real por esse setor.

As coisas parecem mudar, como atesta a nomeação de Guy Hascouët, ainda que a
proximidade das eleições majoritárias possa ter sua influência... O estatuto da
economia social e solidária, todavia, permanece ambíguo. Para alguns, é uma prótese
social eficaz, que permite a uma sociedade de mercado amortecer os desgastes da
globalização, desemprego e exclusão. Para outros, é álibi para um liberalismo que
tolera, no momento, que 6 a 11% de sua economia escape da ditadura dos mercados.
Poderia ela constituir um protótipo eficaz de empresas que concebessem outra forma
de relações entre a economia e a sociedade? Ela terá que escolher seu campo e
mudar seu discurso, ou ficar marginal e fundir-se na economia liberal.

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