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VOLUME 1
1
ÍNDICE
2
3. Rede de Colaboração Solidária ................................................................ 93
4. Rede Solidariedade................................................................................... 96
Perspectivas ................................................................................................. 97
MOEDA SOCIAL E A CIRCULAÇÃO DAS RIQUEZAS NA ECONOMIA
SOLIDÁRIA ...................................................................................................... 98
Apresentação................................................................................................ 98
Breve retrospecto do uso do dinheiro ......................................................... 100
As moedas alternativas............................................................................... 102
A moeda livre nos anos 1930 .................................................................. 103
A moeda livre dos anos 1980 .................................................................. 104
Moedas Paralelas ....................................................................................... 106
A moeda social da Rede Global de Troca................................................... 109
Considerações Finais.................................................................................. 114
Referências Bibliográficas........................................................................... 116
UMA CONTRIBUIÇÃO CRÍTICA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS DE APOIO À
ECONOMIA SOLIDÁRIA ................................................................................ 118
Duas experiências em políticas públicas de apoio à economia solidária .... 118
1. O Rio Grande do Sul............................................................................... 118
2. O Município de São Paulo ...................................................................... 121
Estado e economia solidária ....................................................................... 122
Duas visões sobre um mesmo problema .................................................... 124
Duas estratégias incompletas ..................................................................... 126
Elementos para uma estratégia eficaz de política pública em economia
solidária....................................................................................................... 128
Os Objetivos Perseguidos........................................................................... 128
Um Método Adequado ................................................................................ 129
A demanda a ser atendida e sua “construção” ........................................... 130
As Agências Executoras ............................................................................. 131
Uma Metodologia Apurada ......................................................................... 132
O Financiamento do Programa ................................................................... 133
As Ações Políticas de Institucionais de Apoio............................................. 134
As Avaliações ............................................................................................. 134
Conclusão ................................................................................................... 135
Referências Bibliográficas........................................................................... 136
3
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SEU
APARECIMENTO NO BRASIL1
Introdução
Segundo Pierre Bourdieu, para não sermos objeto dos problemas que
escolhemos como objeto de estudo, “é preciso fazer a história social da
emergência desses problemas, da sua constituição progressiva, quer dizer, do
trabalho coletivo – freqüentemente realizado na concorrência e na luta – o qual
foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como
problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos, oficiais” (Bourdieu,
2000:37). Este autor nos alerta também, sobre o perigo que o sociólogo corre
de ser apenas “instrumento do que ele quer pensar” (idem, 36) e propõe como
remédio, como instrumento para romper com essa situação fazer a história “do
trabalho social de construção de instrumentos de construção da realidade
social” (ibidem). Ou seja, quais são nossos pressupostos, nosso quadro
conceitual e teórico, como estamos construindo os conceitos de economia
solidária, de incubadora tecnológica de cooperativas populares, etc.
1
Palestra proferida na UNICAMP por ocasião do II Seminário de incubadoras tecnológicas de
cooperativas populares dia 20/03/2002.
2
Professora de Antropologia na UNIJUI (RS). Doutoranda em Ciências Sociais, IFCH –
UNICAMP. Orientadora, Professora Doutora Maria Suely Kofes. noel@unijui.tche.br
4
As diversas ondas de economia solidária na Europa
3
Para Lévesque, Malo e Girard, trata-se dos anos 1840-1850.
4
Na França, a lei Le Chapelier, de 1791, destruiu as antigas corporações.
5
produtores. Na França, as associações foram reconhecidas pela lei de 19015,
mas foram restritas a trocas não monetárias, a menos que estivessem ligadas
à ação dos poderes públicos (Laville, Roustang, 1999).
A partir dessa nova onda de economia social, surgiu nos anos 80, uma “nova
literatura”6 a seu respeito na Europa, na América do Norte, mas também na
América Latina e, em particular no Chile, onde se desenvolveu sobretudo
graças a Luís Razeto.
5
No ano de 2001, celebrou-se com muita pompa em toda França o centenário do nascimento
das associações com fins não lucrativos.
6
A este respeito ler Boudet que, em 1985, publicou um balanço das pesquisas sobre a vida
associativa na revista RECMA (Revue des études coopératives, mutualistes et associatives,
fundada em 1921 e que tem por subtítulo: Revue internationale de l’économie sociale); Guélin,
1998; Lévesque e outros, 1997.
6
uma série de economistas norte americanos, mas também do mundo inteiro,
passou por lá. Esses economistas ficaram entusiasmados não somente pelo
movimento operário que transformava as empresas falidas em empresas
autogeridas, mas também pela formação de inúmeras cooperativas de
trabalho. No entanto, segundo Defourny (2001),
7
numerosas iniciativas da sociedade civil que não se encaixam na trilogia
legalizada na França das cooperativas, mutualidades7 e associações. Mas os
autores alertam que o termo não é a expressão do que seria desejável fazer.
Ele visa muito mais a problematizar práticas sociais implantadas localmente.
A proliferação das apelações é explicada por Chaves Ávila a partir do fato que
o objeto de estudo foi ampliando-se progressivamente, introduzindo ao lado
das cooperativas, das mutualidades e do associativismo –trilogia da economia
social tradicional- toda forma de associações que contestam a lógica do
desenvolvimento capitalista. Desta maneira, o grau de heterogeneidade deste
setor foi crescendo e diluindo progressivamente suas fronteiras históricas com
7
Associações de ajuda mútua, principalmente na área da saúde e da previdência social.
8
Este conceito já foi bastante discutido e recebeu críticas contundentes; ver, por exemplo: A
chamada economia popular em debate. Cadernos do CEAS, n. 153, p. 59-69, set./out. 1994. E
Singer, 2000b: 143-147.
9
Pelo que conhecemos, com algumas ressalvas para Razeto, José Luis Coraggio e Orlando
Núñez, na América Latina o termo economia solidária equivale a economia social.
10
Que é muito problemática e não é bem aceita.
8
as do setor público, capitalista e de economia doméstica. Além do mais, novas
tradições científicas entraram no estudo destes campos científicos
redescobertos. Para este autor, há muitos anos a delimitação do objeto de
estudo da economia social suscita um debate acalorado e esta é uma questão
essencial, pois possui implicações teóricas a nível explicativo e preditivo. De
fato, as elaborações teóricas que podem ser construídas sobre as cooperativas
de trabalho associado, base do que se considera setor autogestionário ou
cooperativo, diferem daquelas que podem ser realizadas sobre as fundações e
outras organizações voluntárias ou sem fins lucrativos.
11
Diretor do Centre d’Études Sociales em Liège, Bélgica.
9
estas duas economias podem ser consideradas como complementares e que
seus méritos respectivos poderiam fortalercer-se mutuamente.
No Brasil, para a economia solidária tornar-se uma problemática, ela teve que
aparecer como um setor próprio e digno de interesse específico. Essa decisão
é, a nosso ver, de ordem teórico-político-ideológica. O que hoje é denominado
de economia solidária ficou por décadas imerso, e ainda o é em muitos casos,
no que a literatura científica chama de autogestão, cooperativismo, economia
informal ou economia popular. Uma prova disto é a polêmica, ainda existente, a
respeito do atributo popular acrescido à economia solidária ou ao
cooperativismo, denominados então de economia popular solidária, ou
cooperativismo popular.
10
persistência e crescimento. No entanto, como aponta Fields (Apud Moretto,
2001: 104), este setor não pode ser corretamente representado por um setor
ou por um continuum, mas por setores qualitativamente distintos. Entre estes
setores podemos identificar alguns como o setor da economia familiar, ou o
setor dos micronegócios e, nestes, associações de trabalhadores para a
produção ou prestação de serviços realizada com pouquíssimo ou até sem
capital e com a qualidade de haver solidariedade entre seus membros. Ou seja,
intelectuais brasileiros retiraram destes conjuntos amplos e heterogêneos que
são a economia popular e a economia informal, empreendimentos econômicos
que foram colocados em evidência por possuírem algumas características
específicas que podem ser resumidas pela qualidade da solidariedade
existente entre seus sócios, com a sociedade e com a natureza à sua volta.
Se for certo, e isto já foi amplamente demonstrado por vários autores, que as
categorias de economia popular (Cadernos do CEAS, 1994; Singer, 2000) e de
economia informal (Tokman, 1987; Morrisson, 1995; Cacciamali, 1999) são
categorias mal definidas e problemáticas, o que nos importa aqui é o
estabelecimento de um novo recorte entre as diversas formas econômicas de
geração de emprego e renda já conhecidas; recorte este que vai adquirir aos
poucos o reconhecimento das políticas públicas e da academia. É esse
processo de construção e legitimação de um novo objeto de estudo acadêmico,
de novos agentes sóciopolíticos que é preciso compreender. Ou seja, como se
agenciam os processos político-pedagógicos e acadêmicos para a
identificação, nomeação e estruturação de um novo campo de ação e
teorização.
uma formulação teórica de nível científico, elaborada a partir e para dar conta de
conjuntos significativos de experiências econômicas -...-, que compartilham
alguns traços constitutivos e essenciais de solidariedade, mutualismo,
cooperação e autogestão comunitária, que definem uma racionalidade especial,
diferente de outras racionalidades econômicas. (Razeto, 1993: 40).
Por sua vez, o termo terceiro setor é divulgado em 1994 com a publicação de
Fernandes. Privado, porém público. Mas devemos esperar até 1995 para que
brasileiros escrevam sobre economia solidária referindo-se a ela desta
maneira.
11
de Autogestão e Participação Acionária - ANTEAG -, que teve lugar em São
Paulo nos dias 30 e 31 de maio de 1996.
Por sua vez, no III Encontro da ANTEAG não se usou o termo economia
solidária, mas no prefácio do livro que apresenta as intervenções dos
participantes, redigido em 1998, Paul Singer escreve: “No bojo da crise do
trabalho começou a surgir a solução. (...) Algum milagre? Não, mas grande
vontade de lutar, muita disposição ao sacrifício e sobretudo muita
solidariedade. É deste modo que a economia solidária ressurge no meio da
crise do trabalho e se revela uma solução surpreendentemente efetiva” (Singer,
1998: XXXI). Essa proposta de Paul Singer já tinha sido formulada
publicamente por ele em julho de 1996 na Folha de São Paulo sob o título
Economia solidária contra o desemprego, bem como constava no programa de
governo do Partido dos Trabalhadores por ocasião das eleições municipais na
cidade de São Paulo no mesmo ano13. Segundo Mance, propostas similares
também tinham sido defendidas pela oposição democrática popular em Curitiba
em 1992 e em 1988 (?) na cidade de Piraquara, Paraná (Mance, 1999: 163).
12
“Necessidade de qualificar tecnicamente para tocar empreendimentos numa economia
centrada na produtividade e na concorrência.” (Gaiger, 1996: 109).
13
A proposta era de Paul Singer, mas foi Aloísio Mercadante que a batizou com o nome de
economia solidária (Singer 2001).
12
O PACS realizou , de 1 a 6 de dezembro de 1997 em Bertioga (SP) o encontro
internacional da Aliança para um Mundo Responsável e Unido. Os
participantes vieram de cinqüenta países diferentes e, aproximadamente,
duzentas pessoas, em quatro outros continentes, participaram da reunião de
Bertioga através de redes eletrônicas de comunicação. Eles redigiram a
Mensagem de São Paulo (da Aliança para um Mundo Responsável e
Solidário). O PACS criou também um Canteiro de Socioeconomia Solidária que
organizou vários novos encontros como em 1998 em Porto Alegre e de 11 a 18
de junho 2000 em Mendes, Rio de Janeiro (Encontro de Cultura e
Socioeconomia Solidária). Segundo seu boletim, este último encontro foi fruto
de um “conjunto de encontros internacionais sobre experiências de autogestão
e economia popular solidária [que aconteceram] entre 1988 e 1998” e foi o
berço da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária – RBSES. Na
coordenação dos trabalhos destes encontros encontramos, entre outros,
Marcos Arruda e na rede também Euclídes Mance.
14
A primeira iniciativa foi da FIOCRUZ, para montar uma cooperativa de limpeza com
trabalhadores dos morros de Manguinhos, a COOTRAM.
15
Tese: Autogestão, Participação e Estrutura Organizacional, (EAESP-FGV) 1989.
Dissertação: Autogestão e Condições Modernas de Produção (PUC-SP)1983.
16
A ANTEAG foi fundada em São Paulo em 1994 e seus fundadores são oriundos em grande
parte da militância por um sindicalismo alternativo no final da década de 70 e início da década
de 80, e em particular da Secretaria de Formação do Sindicato dos Químicos de São Paulo. Na
ANTEAG destaca-se seu diretor técnico, o economista e administrador de empresas Aparecido
Farias; a casa dele foi a primeira sede e naquela época os técnicos não tinham qualquer tipo
de remuneração.
13
de pesquisas e estudos da UNESP. Mais tarde ele e a professora Marilena
Nakato, integrante do grupo, atuaram junto à ANTEAG, Singer no Conselho
Nacional e Nakato no apoio técnico e educacional.
17
Hoje, Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o trabalho.
14
aqui, vocês e eu, para participar desta construção. Muito obrigada a todas e a
todos.
Referências Bibliográficas
15
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em: abr. 2001.
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16
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TOKMAN, V. El setor informal: quince años después. El Trimestre Economico,
México, v. LIV , n. 3, p. 513-536, jul./sep. 1987.
17
A ECONOMIA SOLIDÁRIA DIANTE DO MODO DE PRODUÇÃO
CAPITALISTA
18
Doutor em Sociologia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Aplicadas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (e-mail: gaiger@helios.unisinos.br). Esse
trabalho é fruto de pesquisa em parceria com a Cáritas Brasileira – Regional RS, a Secretaria
Municipal de Produção, Indústria e Comércio, de Porto Alegre, e a Secretaria Estadual de
Desenvolvimento e Assuntos Internacionais, com apoio do CNPq e da FAPERGS.
18
mudança social e em sua visão estratégica de construção socialista19. Vendo-a
seja como um campo de trabalho institucional, seja um alvo de políticas
públicas de contenção da pobreza, seja ainda uma nova frente de lutas de
caráter estratégico, visões, conceitos e práticas cruzam-se intensamente,
interpelando-se e promovendo a economia solidária como uma alternativa
para... os excluídos, os trabalhadores, um modelo de desenvolvimento
comprometido com os interesses populares, etc.; uma alternativa, ao
aprofundamento das iniqüidades, às políticas de corte neoliberal, ... ao próprio
capitalismo.
19
Um debate a respeito está tendo lugar no Partido dos Trabalhadores. Ver, por exemplo,
Singer & Machado, 2000.
19
Naturalmente, inúmeros fatos avalizam uma visão politicamente otimista sobre
o papel da economia solidária. Não há dúvidas de que o concreto real,
manifesto em tais acontecimentos “é o verdadeiro ponto de partida (do
pensamento) e, em conseqüência, o ponto de partida também da intuição e da
representação” (Gorender, 1978: 39). Todavia, para ultrapassar esse ponto de
partida e aceder ao concreto pensado, que reproduz racionalmente o real, o
pensamento necessita de um trabalho de elaboração que transforma intuições
e representações – aqui, do senso comum militante – em conceitos. Entre os
acontecimentos e a teoria há uma lacuna a ser preenchida, não num salto, mas
percorrendo um caminho de ida e volta. Um meticuloso vai-e-vem, em que os
dados empíricos e as formulações abstratas se esclarecem e vêm adequar-se
mutuamente, tornando inteligível a realidade, sob forma de proposições, que
não são simples reedição da teoria, tampouco uma reprodução pura do real -
na primeira alternativa, estaríamos cristalizando a teoria e encerrando-nos em
grades interpretativas aprioristas e não questionadoras; na segunda, ocultando
involuntariamente nossos conceitos e premissas implícitas20.
20
“A realidade histórica – como toda realidade – existe puramente, independentemente de que
a conheçamos. Nisso consiste sua objetividade. Mas, desde que a queiramos conhecer, sua
existência perde a pureza e se torna referencial ao sujeito de conhecimento. Por isso, o “dado
puro” é uma ficção, uma ilogicidade.” (Gorender, 1978: 43).
21
Na conferência proferida no X Congresso Brasileiro de Sociologia (Fortaleza, 09/2001),
intitulada “Sociologia e sociedade; heranças e perspectivas”, Gabriel Cohn salientou que Marx
possui todos os ingredientes para uma reflexão organizada sobre o problema do tempo; do
tempo das transições, acrescentaria.
22
Essas reflexões foram estimuladas por pesquisas sucessivas desde 1993, divulgadas pela
Internet no endereço www.ecosol.org.br. Agradeço o apoio e a interlocução crítica de Ana
Mercedes Sarria, Marinês Besson, Alberi Petersen, Raquel Kirsch e Carmem Lúcia Paz.
20
as principais determinações que configuram as diferentes formações históricas.
Essas determinações encontram-se para Marx no modo como os indivíduos, de
uma dada sociedade, organizam-se no que tange à produção, à distribuição e
ao consumo dos bens materiais necessários à sua subsistência; mais
precisamente, na forma que assumem as relações sociais de produção, em
correspondência com um estado histórico de desenvolvimento das forças
produtivas.
21
O conceito de modo de produção diz respeito à totalidade histórica, dada pelo
conjunto de relações que vinculam os indivíduos e grupos ao processo de
produção, no sentido amplo de suas condições materiais de existência,
compreendendo igualmente a circulação e troca dos bens materiais (Godelier,
1981: 174-5). Representa a forma estruturante de cada sociedade, pela qual
são providas as suas necessidades materiais, em um dado estágio do seu
desenvolvimento. Em seu cerne, como elemento distintivo, comporta um
mecanismo social específico de criação, controle e apropriação do excedente
social gerado pelo trabalho, o que lhe atribui uma lógica e traços próprios,
imanentes à sua reprodução e ao padrão dinâmico de sua evolução histórica
(Shanin, 1980: 61).
23
“As chamadas relações de distribuição correspondem e devem sua origem a formas
especificamente sociais , historicamente determinadas, do processo de produção e das
relações que os homens estabelecem entre si no processo de reprodução da vida. O caráter
histórico dessas relações de distribuição é o caráter histórico das relações de produção das
quais expressam apenas uma face.” (Marx, 1976: 1011).
24
As relações sociais de produção, por sua vez, são definidas pelo tipo de acesso e controle
dos indivíduos sobre os meios de produção, o papel que desempenham no processo de
trabalho e os benefícios por eles auferidos na distribuição do produto social.
22
fundiários, na qualidade de donos dos fatores responsáveis pelos custos da
produção de mercadorias.” (Giannotti, 1976: 164).
“É somente para evitar que se coloque num mesmo nível de realidade o modo de
produção capitalista e os modos de produção subsidiários, que se torna então
conveniente reservar a categoria de modo de produção para designar o
movimento objetivo de reposição que integra, num mesmo processo autônomo, a
produção, a distribuição, a troca e o consumo, deixando outros nomes para as
formas produtivas subsidiárias, que o modo de produção capitalista exige no seu
processo de efetivação.” (1976: 167).
23
Por certo, inúmeras formas secundárias podem surgir, expandir-se e
desaparecer durante a vigência de um modo de produção, como bem
demonstra, na história, a vitalidade das formas não dominantes de vida
material. Sempre existiram margens de liberdade entre esses níveis de
organização das práticas sociais e econômicas, sendo a economia capitalista,
em verdade, pródiga em exemplos. A questão está em saber como o
capitalismo atua ao fundo da cena, como tais formas existem e perduram,
submetendo-se ou reduzindo sua vulnerabilidade diante do modo de produção.
Ou ainda, como tais formas, a partir de seu lugar subalterno ou periférico,
podem encetar movimentos de alargamento do seu próprio campo e da sua
lógica interna, subtraindo-se, em alguma medida, ao controle do capital.
Para isso, é necessário saber se tais formas são típicas ou atípicas para o
modo de produção vigente. A questão conduz a uma terceira categoria,
implícita nos textos de Marx e decorrente de sua preocupação em distinguir a
aparência da estrutura interna de toda relação social. A estrutura nuclear de um
modo de produção, seu caráter distintivo, repousa no conjunto de propriedades
de que se reveste o processo de apropriação da natureza, nas relações mútuas
que nele se engendram entre os indivíduos, conforme sua posição diante das
condições e dos resultados dos diversos processos de trabalho e segundo as
funções que desempenham. Ou seja, tal estrutura está determinada pelas
relações sociais de produção que lhe correspondem, por uma forma social de
produção25, mediante a qual é extorquido o sobre-trabalho do produtor direto.
25
Godelier chama a atenção para o fato de que, em Marx, o conceito de forma não é descritivo
ou pouco discriminante, mas contém o que hoje se entende por estrutura, ou seja, o que é
essencial numa relação, o que encadeia os elementos que a compõem e garante sua força e
singularidade histórica (1981: 173).
26
Literalmente, sistema de suor ou transpiração.
24
meados do séc. XIX (Fohlen, 1974: 47). Mais tarde, a evolução do maquinismo
culmina com o regime fordista e taylorista, estabelecendo-se o limiar para a
plena exploração do trabalho assalariado, sob forma de mais-valia relativa. As
estratégias adotadas pelo atual capitalismo avançado, de segmentação do
processo produtivo, emprego de operários polivalentes e adoção de contratos
de trabalho precários, nada mais são do que variações jurídico-formais da
relação assalariada, com fim na continuidade da acumulação27.
27
“Em termos mais concretos, o grau de fordismo e modernismo, ou de flexibilidade ou pós-
modernismo, varia de época para época e de lugar para lugar, a depender de qual
configuração é lucrativa e qual não é.” (Harvey, 1993: 308).
25
empreendimento está presa à comunidade de trabalho, que organiza o
processo produtivo, opera as estratégias econômicas e dispõe sobre o destino
do excedente produzido (Verano, 2001). Em suma, há uma unidade entre a
posse e o uso dos meios de produção.
28
O fenômeno foi observado há mais tempo, antes da atual crise do mercado de trabalho
provocada pela reestruturação produtiva do capitalismo: “O nível de demissões nas empresas
autogeridas é praticamente invariante a curto prazo e certamente menos variável que nas
empresas capitalistas. “(Vanek, 1977: 266, apud Coutrot, 1999: 109).
26
não suficientes, para uma experiência integral de vida laboral e ascende a um
novo patamar de satisfação, de atendimento a aspirações não apenas
materiais ou monetárias. Por conseguinte, as relações de produção dos
empreendimentos solidários não são apenas atípicas para o modo de produção
capitalista, mas contrárias à forma social de produção assalariada: nesta, o
capital emprega o trabalho; naqueles, os trabalhadores empregam o capital.
29
Convém advertir, por outro lado, que o polimorfismo característico das diversas iniciativas
populares, incluídas no rol da economia solidária, não impede que se opere uma redução desta
morfologia a seus traços essenciais, como se faz aqui, para identificar a estrutura interna de
suas relações constituintes, posto que nessas reside a sua lógica de desenvolvimento, mesmo
em estado de potência.
27
trabalho, quando em graus avançados, rompe com a lógica e a tradição da
pequena produção familiar e introduz vínculos de outra natureza entre os
“trabalhadores rurais” (agora, assim chamados). Modifica-se, portanto, a forma
social de produção. Contudo, na grande maioria dos casos, a base técnica,
derivada do estado das forças produtivas, permanece intocada ou
superficialmente alterada, ao menos por um certo tempo; o modo material de
produção não difere daquele empregado antes pela economia familiar,
sobretudo quando essa já incorporara uma parcela razoável das inovações
tecnológicas promovidas pelo capitalismo. Do mesmo modo, é com os agentes
deste que os assentados transacionam, é diante de suas instituições que
devem reafirmar os seus interesses. Da porteira para fora, dizem eles, o que
conta é a lei dos capitalistas.
30
A começar pelo fato trivial de que todo agente econômico, para angariar algum
reconhecimento, é forçado a apresentar-se como empresário de um ramo qualquer, seja-o ou
não.
28
Uma conseqüência imediata reside em que a transição ancora-se em
processos de longa duração e, como tal, constitui um momento incomum, de
excepcional importância na vida das sociedades, uma virada histórica em que
se condensa e manifesta intensamente o movimento das coletividades
humanas (Godelier, 1981: 162). Ela requer deficiências estruturais críticas,
insolúveis no quadro do sistema existente, aliada a uma nova reunião de
elementos, formando um todo coerente, capaz de se reproduzir e de impor a
sua lógica reprodutiva ao sistema social. Enquanto isso não estiver
demonstrado, não há razão em defender a hipótese de que estamos nessa
perspectiva, ou nesse quadro31. Numa linguagem lapidar, não basta
desejarmos ter a sorte de sermos protagonistas ou testemunhas oculares
desse grande momento, tampouco repetirmos vaticínios pessimistas ou
catastróficos sobre a ordem presente, esperando com isso apressar a sua
ruína. Importa saber se, no horizonte, está selada a derrocada do capitalismo,
ceifado que estaria por forças endógenas autodestrutivas, ou exposto a
choques exteriores, com suficiente capacidade de abalo e substituição.
31
A insistência quase compulsiva em colocar o debate nesses termos, perceptível nos meios
intelectuais de esquerda supostamente incumbidos de esclarecer as consciências, apenas
prejudica a compreensão das reais dimensões do problema e o coloca numa nebulosa, em que
os argumentos valem por sua afinidade com ânimos pessoais e preferências ideológicas.
29
desenvolvimento do comércio e da vida urbana; segundo ele, o crescimento de
uma economia de trocas não impõe o fim de qualquer sistema servil, mas isso
aconteceu no caso particular do feudalismo medieval, devido, entre outros, à
revogação paulatina de alguns atributos das obrigações servis, por iniciativa do
próprio estamento senhorial. Ambos autores reconhecem o concurso de todos
esses fatores, restando em questão o seu peso específico32. Da sua conjunção,
decorreu o lento enfraquecimento do sistema feudal, o que deixou livre curso
para o florescimento de novas práticas econômicas, cuja expansão as levou a
choques com os limites da ordem instituída, a entrarem em contradição com
ela e, por fim, a suplantá-la. O epílogo, patrocinado pelas revoluções
burguesas, selou a destruição daquele ordenamento, cuja força inercial,
todavia, se fez sentir décadas a dentro do séc. XIX.
32
Sobre esse debate, consultar também Hilton et al., 1977.
30
totalidade social, segundo os estágios e modos de subsunção33 que se
instauram entre elas.
33
O termo subsunção (de subsumir) é de natureza teórica abstrata: refere-se ao movimento
contraditório de recobrimento, pelo qual um conjunto de relações sociais (uma forma social) é
incluída e redefinida no interior de outro conjunto, conforme a lógica que preside esse último.
Os termos submissão e subordinação assinalam mecanismos concretos que integram o
processo de subsunção.
31
acontecido nos primórdios do capitalismo. Trata-se de uma subunção formal
inversa, que deixa as formas sociais atípicas em situação de instabilidade, mas
não as descredencia de todo a sobreviverem no interior do modo de produção
capitalista.
Dessa reconstituição histórica, vale sublinhar dois fatos: a) a nova forma social
de produção capitalista, originalmente, aproveitou o modo material de produção
já existente; b) uma vez que seu desempenho mostrou-se superior, diante da
demanda criada pela expansão da economia mercantil, as relações de
produção capitalistas, então emergentes, provocaram um novo
desenvolvimento da base material, havendo sido elas, por conseguinte, a
condição necessária, embora não suficiente, dos novos avanços tecnológicos.
Em futuras transições, os fatos obviamente não precisam ocorrer nessa ordem.
Importa, no entanto, registrar o seu caráter dialético, em que forças ainda por
vir insinuam-se como episódios a seu tempo laterais e pouco significantes,
através de quase imperceptíveis mutações, sem virem, senão ao cabo de um
longo período histórico, a suprimir as estruturas de vida social às quais
tenderão a sobrepor-se, em prazo mais curto, mas igualmente indeterminado.
32
social de produção própria ou, ainda, alcançando desenvolver, paulatinamente,
forças produtivas específicas e apropriadas à consolidação dessa última; b)
cotejar-se com os empreendimentos capitalistas, dando provas de
superioridade do trabalho associado perante as relações assalariadas, à
medida que impulsionam, em seu interior, uma dialética positiva entre relações
de produção e forças produtivas; c) resistir às pressões do ambiente
econômico, por meio de mecanismos de proteção e da externalização da sua
lógica cooperativa às relações de intercâmbio e de troca. Se isto vier a ocorrer,
estaremos presenciando uma experiência econômica genuinamente sob a ótica
do trabalho, fundada em relações nas quais as práticas de solidariedade e
reciprocidade não são meros dispositivos compensatórios, mas fatores
operantes no cerne da produção da vida material e social.
33
sociais decorrentes34. Por sua vez, nas cooperativas e empresas
autogestionárias, em que os ganhos são socializados de per se, o mesmo se
admite mais facilmente com as perdas. O incremento unilateral da jornada de
trabalho, ou sua redução e conseqüente abatimento das retiradas individuais,
como estratégias de ajuste às flutuações do mercado, uma vez aprovadas de
forma democrática e transparência, em boa lógica são a melhor garantia contra
o desemprego para os cooperados. De certo modo, a empresa associativa está
dotada de maleabilidade similar a dos autônomos e profissionais liberais, com a
faculdade adicional de diluir custos fixos, assumidos individualmente nos
demais casos, e de poder ampliar mais facilmente sua planta produtiva ou de
serviços (Sorbille, 2000: 131)35.
34
Manchete recente dos jornais, a tentativa frustrada da Wolkswagen, em São Paulo, de
demitir 3000 operários por conta da renovação tecnológica em curso na empresa, ilustra
cabalmente esse fato.
35
Sem dúvida esse é o motivo da proliferação de cooperativas entre profissionais
tradicionalmente vistos como independentes, tais como terapeutas, contabilistas, consultores e
outros.
36
Reconhecê-lo significa relativizar em boa medida a tese da ação racional individualmente
orientada, lembrando contudo que a adesão a uma comunidade de valores decorre igualmente
das garantias e vantagens materiais que a mesma proporciona, tanto quanto pode ser cultivada
a partir de uma colaboração durável motivada originalmente por razões utilitárias. De tal sorte,
contrariamente à maioria das teorias socialistas, a autogestão produtiva “não pressupõe uma
transformação radical da natureza humana, o ‘homem novo’.” (Coutrot, 1999: 68-9, 111).
34
autogestão. A esse propósito, vale recordar que administrar uma empresa é
função de competências adquiridas no lidar com problemas concretos, dadas
antes pela experiência prática socialmente compartilhada e subsidiariamente
informadas pelo saber científico; este, não necessita estar plenamente
sistematizado e revestido de autoridade hierárquica para ter vigência e ser
chamado a intervir, tanto mais se a experiência a ele referida encontra-se
favorecida pelo interesse mútuo e pelo aprendizado coletivo (Singer, 2000: 19-
22). A formação dos recursos humanos – seja escolar, técnico-profissional ou
geral, visando ao desenvolvimento de uma cultura autogestionária e ao
aperfeiçoamento permanente – é favorecida pelo compromisso de todos com a
empresa e pelo papel decisivo exercido pelo fator trabalho; valoriza-se mais o
“potencial de competência interna” (Peixoto, 2000: 55). Ora, educar
simultaneamente para a participação e para o labor produtivo equivale a formar
trabalhadores-gestores e a suplantar a divisão típica da empresa capitalista.
Desenham-se as bases de uma nova cultura profissional, dada pelo conjunto
de competências produtivas, pelo envolvimento mútuo com o futuro do
empreendimento e, conforme é próprio a todo métier (Coutrot, 1999: 73), por
uma deontologia referida a uma comunidade de pares.
Vista de modo mais amplo, a questão incide sobre a criação de novas forças
produtivas – nesse caso, intelectuais – impulsionada por uma nova forma social
de produção, a exemplo do ocorrido na aurora do capitalismo. Instaurada
socialmente aquela demanda, pela presença da nova forma, introduz-se o
processo inovador e criativo de desenvolvimento das faculdades humanas, cuja
soluções, por seu turno, são suscetíveis de retroalimentar a demanda, em
ciclos sucessivos. Além de o trabalho associado como tal equiparar-se a uma
força produtiva específica da maior importância, é factível nos
empreendimentos autogestionários que o avanço das capacidades subjetivas
tome o passo da renovação dos processos materiais de produção, forçando a
que esses venham a reconstituir-se progressivamente sobre outras bases.
Desta feita, então, a nova forma social de produção não estaria criando uma
nova base técnica em sentido estrito (inovações tecnológicas, instrumentos,
etc.), mas sim em vias de absorver soluções já disponíveis (inclusive as
chamadas tecnologias alternativas), convertendo-as à sua lógica própria.
Considerados os impasses de nossa atual marcha civilizacional, a supremacia
a ser alcançada no futuro por formas de produção superiores, diante dos
padrões ímpares de produtividade e eficiência do capitalismo, provavelmente
repouse em parâmetros de outra ordem, relacionados à racionalidade social e
à sustentabilidade.
35
Em seu cerne, coloca-se a possibilidade de reversão daquele processo vital
ocorrido nos primórdios do capitalismo, de separação entre o trabalhador, os
meios de trabalho e o seu produto, separação na qual se assentam, segundo
K. Marx, a alienação e a submissão ideológica do proletariado. As experiências
concretas de solidarismo econômico teriam a faculdade de arrancar os
trabalhadores de um contexto prático de reiteração da consciência alienada,
quer no agir, quer nos fins que elege. São reais as chances para que se
recupere e se reintegre às pessoas a riqueza dos conteúdos do trabalho e da
vida coletiva em geral, de modo que interajam por suas qualidades, não “na
pobreza e na homogeneidade das suas carências” (Razeto, 1997: 94). Disto
pode advir, na expressão de A. Gramsci, a tomada de consciência de sua
personalidade histórica.
Sob o prisma das relações que cultivam entre si e com os demais agentes
econômicos, as iniciativas solidárias vivem um momento de profusão, ao
mesmo tempo que de debilidade. A todo instante, surgem novas organizações
de crédito, troca e consumo solidário, além de notícias de avanços nas que já
existiam, gerando um ambiente de emulação pródigo em encontros e projetos:
cooperativas de crédito, bancos populares, moedas sociais, redes de troca, etc.
Entretanto, salvo poucas iniciativas de maior porte ou relativa maturidade,
esses mecanismos são experimentais: valem por seu significado intrínseco,
não pelo seu impacto. Para assegurar sua reprodução, os empreendimentos
solidários precisam lidar adaptativamente com as externalidades capitalistas.
As tentativas de romper o círculo, ao entrarem em contato, reforçam-se moral e
politicamente, mas carecem por hora de práticas efetivas de intercâmbio
econômico, tanto mais quando envolvem segmentos e atores sociais
diferentes37.
Não obstante, é possível sumariar elementos com razoável potencial para que
circuitos de economia solidária prosperem38. De um lado, o forte enraizamento
local da economia solidária favorece a que possa apoiar-se no que está à mão
- trabalho, saberes populares, energias morais, recursos políticos e
institucionais – realimentando sinergias e explorando matrizes econômico-
produtivas dotadas de alta racionalidade social. Ela contribui para “dinamizar o
enorme potencial de recursos humanos e materiais que jaz em repouso nas
‘esferas’ não-mercantis e mercantis da sociedade” (Franco, 1996: 12). Está
apta a inserir-se em um padrão de desenvolvimento sustentável, estação final
da lógica predatória da economia meramente concorrencial. Por outro lado,
contrariando a idéia de que o espaço econômico esteja tomado completamente
pelo capitalismo global, as empresas solidárias tendem a ocupar nichos de
mercado, parcialmente protegidos da grande concorrência, e a estabelecerem
práticas de troca favorecidas pelos laços de confiança conquistados junto aos
seus clientes. Tais relações de proximidade, cuja ausência onera
formidavelmente a grande empresa com estratégias de marketing, são na
37
O que não é um demérito, posto que inexiste provavelmente outra maneira de começar.
Mesmo no sul do país, região considerada solidariamente à frente, não se constata uma
integração sistêmica, mas sim a coexistência de experiências modelares, em linha de
convergência ou de desencontro, direcionadas a setores sociais distintos, em cuja órbita gravita
um certo número de atores e organizações (Gaiger, 2000b; 2001).
38
Para uma defesa, teórica e política, das redes solidárias, ver Mance, 2001.
36
verdade um patrimônio da economia popular, ou do andar de baixo da
civilização, como diria F. Braudel. Por fim, as experiências de intercooperação
de maior vulto, ao se expandirem e multiplicarem, vêm a revitalizar formas de
vida econômica diversas, igualmente atípicas diante do capitalismo, das quais
dependem frações importantes de trabalhadores. Elas estimulam e sustentam
expressões de uma economia do trabalho, atenuando sua vulnerabilidade às
imposições do capital.39
∗ ∗ ∗
39
Vale a respeito ter em conta a CRESOL, a mais abrangente e comprovada experiência de
crédito a produtores rurais, operante nos três Estados do sul do país, por seu impacto positivo
sobre a pequena produção familiar (Cf. Singer & Souza, 2000). Sobre a importância do
desenvolvimento local e regional, ver Coraggio, 2001.
37
Entretanto, o rigor da análise torna insuficiente afirmar a força da solidariedade,
uma vez esteja introjetada como princípio do agir. Antes, cabe admitir que a
adesão dos trabalhadores às práticas de cooperação e reciprocidade não se
mantém porque os mesmos se vêem instados moralmente a fazê-lo, mas
primordialmente por verificarem, por eles próprios, que desse modo satisfazem
mais plenamente os seus interesses individuais, que obviamente não
necessitam ser apenas utilitários, embora em certa medida não possam deixar
de sê-lo. Reside nesse ponto a importância decisiva de demonstrar a
superioridade da forma social de produção solidária diante de outras
alternativas postas ao trabalhador.
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40
INCUBADORA DE COOPERATIVAS POPULARES: UMA ALTERNATIVA À
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO.
Resumo: O presente artigo tem por objetivo contribuir para a análise do estudo
do mercado de trabalho brasileiro e sua relação com o aumento na
precarização dos postos de trabalho. Parte-se do pressuposto que o processo
histórico-social do país conduziu à configuração de um cenário de crescimento
sem precedentes de exclusão social de uma população carente e com
dificuldades de inserção na sociedade. O artigo propõe como forma de
organização alternativa de inserção social, geração de renda e trabalho, a
formação e desenvolvimento de cooperativas populares de trabalho a partir de
uma Incubadora de Cooperativas Populares do interior do Estado de São
Paulo.
Palavras Chaves: precarização do trabalho, exclusão social e cooperativismo.
1. Introdução
41
A proposta de criação de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares, vinculadas à Rede UNITRABALHO, vem numa perspectiva de ação
sócio-política inovadora e muito ao gosto do que o saudoso mestre (Florestan
Fernandes) julgava ser adequado como missão socialmente relevante da
academia em contraposição às condutas empresariais que, por tradicionais ou
modernas, demonstram ser refratárias à qualquer processo de absorção da
força de trabalho que preserve e amplie a dignidade e a cidadania do
trabalhador.
40
- Entendendo-se valor social como uma condição em que há alguma coisa presente,
constituída parcialmente na sociedade e que no entanto não se desenvolve por não ser
socialmente viável e por não possuir condições histórico-sociais para que ela ocorra. Com a
criação dessas condições juntamente com a viabilidade social é que esse valor social se
transforma em força social e tem êxito de implementação.
42
Para MATTOSO (1999), ao longo do século XX e, principalmente após 1945, o
Brasil transformou-se em uma economia urbana, industrial e com elevada
geração de empregos formais. A partir de 1980 houve uma alteração na
dinâmica do mercado de trabalho acentuando o desemprego urbano e a
deterioração das condições de trabalho. Contudo, ainda foram preservadas as
estruturas industrial e produtiva caracterizando o desemprego e a precarização
de acordo com os ciclos econômicos.
A crise econômica que está em curso desde o início dos anos de 1970 tem
abalado a conformação socioeconômica construída anos anteriores, entre
1950-1970, que tinha como eixo a industrialização e o Estado como atores
básicos na regulação das relações internas e externas da economia nacional.
“O grande problema, nas condições estruturais do Brasil, é que ao fraco
crescimento do emprego industrial conjugou-se uma sensível redução dos
investimentos e uma estagnação da produção deste setor” (SINGER, 1999b, p.
93). O resultado disto foi o aumento da precarização dos postos de trabalho
com as perdas dos direitos trabalhistas e sociais dos trabalhadores
demonstrando a deterioração do mercado de trabalho. O quadro 1 a seguir
coloca os dados a respeito do nível de desemprego que o Brasil está
enfrentando.
Quadro 1
Perfil do desemprego na RMSP, 1989, 1996 e 2000* (em %)
Itens 1989 1996 2000
Tipo de desemprego
Desemprego Aberto Brasil (IBGE) ** 3,4 4,6 8,4
Total 6,7 14,2 18,2
Aberto*** 5,0 9,2 11,8
Oculto**** 1,7 5,0 6,9
Precário 1,1 3,7 4,9
Desalento 0,6 1,3 2,0
Idade
10 a 14 anos 25,3 40,3 46,4
15 a 17 anos 15,8 39,8 47,1
18 a 24 anos 9,0 19,7 27,2
25 a 39 anos 5,3 11,1 14,9
Mais de 40 anos 2,8 8,0 11,5
Sexo
Homem 5,7 12,5 15,9
Mulher 8,3 16,4 22,3
Fonte: adaptado de POCHMANN, 1999, p. 105, MATTOSO, 1999, p. 12 e Fundação Seade e
Dieese.
RMSP = Região Metropolitana de São Paulo
* Os dados para o ano de 2000 referem-se acumulado no ano até o mês de Maio.
**Este dado foi coletado no IBGE, mas considera o desemprego aberto com período de
referência de 30 dias anterior ao da semana da entrevista.
***Desemprego Aberto: engloba todas as pessoas de 10 anos e mais que não têm trabalho e
que efetivamente procuraram emprego ou negócio nos 30 dias anteriores ao dia da entrevista.
****Desemprego Oculto pelo Trabalho Precário: pessoas que, em simultâneo à procura de
trabalho, realizaram algum tipo de atividade descontínua e irregular. Desemprego Oculto pelo
Desalento: pessoas que, desencorajadas pelas condições do mercado de trabalho ou por
razões circunstanciais, interromperam a procura, embora ainda queiram trabalhar.
43
Pode-se afirmar que um dos principais determinantes da pobreza foi o padrão
de geração de emprego e de renda do país, associado ao seu estilo de
desenvolvimento. Duas questões básicas podem explicar esse fenômeno: a
primeira está voltada para a estrutura agrária concentrada em grandes
propriedades e no atraso produtivo; e a segunda resposta encontra-se no tipo
de geração de emprego e renda urbana (BALTAR, DEDECCA & HENRIQUE,
1996).
44
Na década de 1990, os impactos de uma mudança radical na condução da
política econômica, viabilizada pelas alterações no cenário financeiro
internacional, sobre a estrutura de produção do setor industrial, manteve o
baixo nível de emprego (BALTAR & PRONI, 1996). Por um lado, a abertura da
economia e a modernização do aparelho produtivo gerou ganhos de
produtividade. Por outro, uma queda brusca da inflação rebaixou as margens
de lucro, criou um movimento de desverticalização com a terceirização de
diversas atividades industriais.
45
conta própria, composto por (ex)desempregados. Esta pode ocorrer através da
“expansão das iniciativas populares de geração de trabalho e renda, baseados
na livre associação de trabalhadores e nos princípios de autogestão e
cooperação” (GAIGER, 1999, p. 29).
A cooperativa deve ser entendida como uma empresa que tem em um dos
seus princípios a autogestão, mas que necessita de lucro, ser eficiente,
atualizada e vocacionada para se expandir no tempo (GUTIERREZ, 1997).
Além disso, para o maior sucesso da cooperativa é necessário o engajamento
efetivo de seus integrantes, que as eleições internas sejam maduras e bastante
debatidas para definirem a atuação da mesma.
46
Em 1844 um pequeno número de trabalhadores fundou em Rochdale uma
cooperativa de consumo partidários dos princípios de Owen. A cooperativa
cresceu muito alcançando dezenas de milhares de sócios e representou um
importante mercado consumidor. Os seus fundadores ficaram conhecidos
como os “Pioneiros de Rochdale” e criaram diversas outras cooperativas de
produção, como a de fiação, tecelagem, habitação etc. O exemplo de
Rochdale, considerada a mãe de todas as cooperativas, se difundiu pela
Inglaterra e outros países. Em 1895 foi fundada a Aliança Cooperativa
Internacional (ACI) que, desde então, congrega as entidades cooperativas de
todo o mundo.
47
XVII. As primeiras cooperativas implantadas no Brasil foram as de consumo,
cujo objetivo é distribuir produtos/serviços aos seus sócios, buscando as
melhores condições de preços e de qualidade.
Em 16/12/1971 com a lei 5.764, ainda em vigor, ficou definido o regime jurídico,
a constituição e o funcionamento do sistema de representação das
cooperativas e os organismos de apoio. Segundo RECH (1995), em 1995 havia
um total de 3681 cooperativas com cerca de 3 milhões de sócios. A partir de
1990, com a crise configurada no cenário industrial, o cooperativismo entra em
discussão novamente, com mais força e com uma proposta alternativa ao
modelo de indústria instalada e consolidada no Brasil. Em 1999, havia 5.600
cooperativas registradas na Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB)
com 5,5 milhões de cooperados registrados (vide quadro 2).
Quadro 2
Cooperativas, cooperados e empregados por ramo de negócio
Ramo Cooperativas Cooperados Empregados
Agropecuário 1.437 856.202 106.753
Consumo 191 1.473.038 7.952
Crédito 920 1.407.089 16.908
Educacional 210 48.403 2.505
48
produção ou comercialização; cooperativas agropecuárias formadas pelo
Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); cooperativas de
trabalho e de serviços, formadas por Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares; cooperativas de serviços de diversos tamanhos, boa
parte agrupadas nas Federações de Cooperativas de Trabalho estaduais. Para
este autor, um dos maiores obstáculos à difusão do cooperativismo é a falta de
cultura cooperativista entre os trabalhadores, pois estes não possuem a
habilidade da autogestão.
49
Dessa maneira, é necessário formar um conjunto de conceitos mais adequados
à questão do cooperativismo como alternativa à precarização do trabalho, tais
como empregar palavras trabalho, ocupação e renda do que emprego e salário.
Estas últimas têm uma conotação descolada das organizações cooperativistas
populares, onde se pressupõe a inexistência de trabalho assalariado,
característica do sistema capitalista. Na realidade, o que se necessita é de
ocupação e não de emprego porque, conforme análise de SINGER (1999b, p.
14) “ocupação compreende toda atividade que proporciona sustento a quem a
exerce”.
A exclusão social tem uma das origens na precarização do trabalho que não
está confinada ao Primeiro Mundo. Desde a década passada ele se estende a
países periféricos que têm legislação trabalhista e fazem observar os direitos
legais dos trabalhadores. A precarização do trabalho inclui tanta a exclusão de
uma crescente massa de trabalhadores do gozo de seus direitos legais como a
consolidação de um ponderável exército de reserva e o agravamento de suas
condições.
Para Singer (1999b) é preciso algo para reverter essa mudança estrutural,
assim como: criar novas empresas, fora do circuito do setor público (que está
em crise e sendo privatizado) e do circuito do setor privado capitalista, cujo
50
dinamismo insuficiente é a razão principal do seu esvaziamento. O desafio
essencial está no campo institucional: como gerar as formas de organização
adequadas dos produtores, para que estes possam ativar sua capacidade de
produção e colocar no mercado produtos que possam ser vendidos por preços
que permitam saldar todas as despesas e proporcionem aos produtores, no
mínimo, mais do que o seu ganho atual. Todas as formas de organização são
válidas, de empresas privadas isoladas, franqueadas, associadas etc. a
empresas coletivas, como cooperativas, comunidades de produção e o que
mais puder ser experimentado.
51
varia a cada caso, adquira autonomia para atuar no mercado
independentemente da incubadora.
52
científico , a população que organiza as cooperativas incubadas também deve
o tempo todo realizar atividades que sejam afirmativas de seus conhecimentos,
fortalecendo-a na cultura de autonomia e auto-gerenciamento do próprio
trabalho. Por isso, é necessário que os cooperados participem ativamente de
todo o planejamento , controlando todas as fases do processo que dará
concretude às suas aspirações de reinserção no mundo do trabalho.
53
questão do trabalho mas que não se esgotava nela. A comunidade externa
estabeleceu-se, portanto, não apenas como referência de aglutinação do
saber formal, mas foi mostrando suas aspirações e seus potenciais que
assinalaram os caminhos que o grupo de pesquisadores e participantes
deveriam construir juntos.
54
Dessa forma, a preocupação com a participação de todas as pessoas
envolvidas em cada etapa possibilitou a efetiva contribuição das mesmas. Essa
relação de troca entre a UFSCar e a comunidade permitiu estabelecer uma
nova postura por parte de ambos, já que houve um entendimento, pela
academia, da realidade sócio-econômica cheia de restrições e, pela população,
um entendimento de uma proposta acadêmica para suplantá-la. Na medida em
que esse exercício de transformação social vem se concretizando, percebe-se
que o mesmo tem potencial de difusão na comunidade, alterando o conjunto
das relações do bairro, extrapolando e atingindo esferas mais amplas do poder
local. Ou seja, nem a academia nem a população se relacionam por
mimetismo. Um não requer do outro que se copie as suas condutas e a sua
forma de pensar, mas que ambos agregem novos elementos de reflexão aos
que já têm e, da sinergia entre os velhos e os novos elementos, pensem em
novas posturas que extrapolassem, eventualmente, a órbita do trabalho.
55
acalentava. O grupo universitário, com o qual a população se fundia, colocou
honestamente a sua inexperiência em promover essa iniciativa, o que, ao
invés de produzir temores por parte das trabalhadoras do bairro, produziu seu
inverso, que foi o aprendizado conjunto acerca desta forma de organização do
trabalho e o exercício de resgate da cidadania.
56
4. 2. Demais atuações da Incubadora e suas perspectivas
57
Pelo exposto, podemos perceber a extensão da atuação da Incubadora, seja
junto a demandas espontâneas de grupos específicos, seja em parceria com
outros órgãos e entidades. Mas é preciso enfatizar a possibilidade das
Incubadoras em fomentar um trabalho junto a comunidades em situação de
pobreza, para a qual a apresentação de uma possibilidade de gestão
cooperativa do trabalho possa se colocar como alternativa à situação de
exclusão, como foi a experiência piloto da UFSCar.
5. Considerações finais
Como um tema que foi resgatado e avaliado a partir dos autores clássicos do
socialismo o cooperativismo têm muito pela frente. Além de ser exaustivamente
analisado é necessário um forte engajamento com a implementação das
cooperativas de trabalho. No caso da incubadora regional de cooperativas
populares isso vem ocorrendo intensivamente a partir do trabalho dos
docentes, técnicos e estudantes envolvidos com a questão.
Por tudo o que aqui se relatou, pode-se afirmar que a Incubadora Regional de
Cooperativas Populares da UFSCar se coloca como uma forma de intervenção
acadêmica, orientada para a construção cooperada de alternativas ao
problema do desemprego e da exclusão social. Portanto, se concretiza
politicamente ao lado das causas populares ao buscar retirar os trabalhadores
em risco de exclusão da situação de anomia em que hoje se encontram face à
desregulamentação irrestrita da economia.
58
O que se pretende com esse projeto é que a Incubadora viabilize a mudança
social num sentido determinado. Embora o sistema social envolvente
permaneça o mesmo em relação aos mecanismos de apartação, talvez ainda
mais recrudescidos na presente década, as cooperativas incubadas poderão
mudar a forma como se responde à ele de modo a permitir a recuperação da
dignidade, da criticidade, repondo, assim, a possibilidade de desdobramentos
inovadores do ponto de vista sócio-político.
Muito trabalho há pela frente na busca de uma sociedade cuja tônica seja a
inclusão social, econômica e política de uma ampla camada da população
excluída do processo de modernização da economia.
Referências bibliográficas
59
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problemas. In: VIEITEZ, C.G. (org.) A empresa sem patrão. Marília: UNESP,
1997.
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Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, 1994.
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precarização no final do século. São Paulo: Contexto, 1999.
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1980.
SINGER, P. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Rio de Janeiro:
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Solidária. Dez.1999a, p. 23-28.
SINGER, P. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. 3ed. São
Paulo, Contexto, 1999b.
60
AUTOGESTÃO NO BRASIL: A VIABILIDADE ECONÔMICA DE EMPRESAS
GERIDAS POR TRABALHADORES42
Introdução
42
Artigo selecionado pela SEP (Sociedade Brasileira de Economia Política) para ser
apresentado no VII Encontro Nacional de Economia Política e II Colóquio Latino-Americano de
Economistas Políticos no dia 30 de maio de 2002, em Curitiba.
43
Professor titular do IE/UFRJ.
44
Analista de Projetos do BRDE. Economista pela UFRGS e Mestre em Economia pelo
CAEN/UFC.
61
Num movimento dialético, a crescente quantidade de empresas autogeridas
associadas à ANTEAG (Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas
de Autogestão e Participação Acionária), entidade precursora do movimento de
autogestão urbana no país, é um legado da década de 90, período em que as
mais ortodoxas políticas neoliberais foram aplicadas no Brasil (e em muitos
outros países em desenvolvimento). Tolerar ou mesmo estimular a formação
de empreendimentos alternativos aos padrões capitalistas normalmente
aceitos, tais como cooperativas autogeridas é, objetivamente falando, uma
forma de reduzir o passivo corrente que se materializa em ondas de crescentes
desemprego e falências (ver SANTOS, 2002).
A autogestão, apesar de não ser uma idéia nova, pode ser vista hoje, como
uma radicalização deste processo de devolver ao trabalhador parte daquilo que
o capitalismo lhe foi tomando ao longo de séculos. Ao se recuperar
coletivamente o saber produtivo, por exemplo, se está dando um passo na
direção de reduzir ou mesmo, no limite, superar o que Marx chamou de
subsunção real do trabalho; ao criar formas de propriedade coletiva do capital
está se propondo a superação da subsunção formal do trabalho e quiçá, no
limite, do próprio capitalismo.
62
de patrimônio faz com que a empresa nasça com uma estrutura de capital
deficiente e que freqüentemente a necessidade de capital de giro seja superior
à sua capacidade de financiá-lo. Outro problema está relacionado à falta de
instrução formal dos cooperativados e, particularmente, daqueles que ocupam
os cargos de direção. Não obstante o conhecimento prático e tácito que estes
trabalhadores tenham do processo produtivo em si, a sua carência de
conhecimentos técnicos e de experiência em questões mercadológicas, bem
como macro-institucionais, agrava as dificuldades naturais para se construir um
quadro de administradores com competência adequada àquelas novas (e
inovadoras) situações..
63
produção sejam descartadas. Ao contrário, tais aspectos, apesar de fugirem ao
escopo do artigo proposto, servem de importante pano de fundo sobre o qual
este se desenrola. Afinal, não se entende construir uma autêntica economia
solidária sem empreendimentos autogeridos e sustentáveis; deste modo a
questão colocada é como, quando e por que viabilizá-los45.
Políticas públicas que têm por objetivo concretizar estas vantagens potenciais
começam a surgir nas esferas municipal e estadual. Tais políticas enfatizam
aspectos como o trabalho em rede, incentivos ao comércio solidário, formação
e capacitação técnica dos trabalhadores e crédito. Falta, todavia, um
conhecimento mais aprofundado da realidade que vivem estas empresas e
faltam também mecanismos legais e institucionais que tornem estas políticas
mais efetivas.
45
Às vésperas da conclusão deste, o professor Luís Argemiro Brum da UNIJUÍ, publicou um
breve artigo sobre o assunto na Gazeta Mercantil de 13/3/2001 “Economia Solidária: elementos
para compreensão”. Apesar das semelhanças no tratamento de algumas questões, vale notar
que os trabalhos foram produzidos de forma totalmente independente.
46
O patrimônio líquido é a conta no balanço patrimonial que, situada do lado da origem dos
recursos, aponta qual o volume de recursos da empresa vem de fontes próprias. Estas fontes
são, basicamente, o capital social integralizado pelos sócios no início do negócio mais os
resultados (lucros ou prejuízos) acumulados ao longo da vida da empresa. O patrimônio líquido
é uma importante conta na análise da estrutura patrimonial das empresas, já que, em
comparação com outras contas, indica o grau de autonomia da mesma.
64
financiamento de suas atividades, com limitações para investir, defasado
tecnologicamente, sem capital de giro próprio, restrições no acesso ao sistema
financeiro e muitas outras dificuldades decorrentes desta situação. Assim, no
que diz respeito aos meios de produção, a situação que normalmente ocorre é
a disponibilidade farta de mão-de-obra mas sem acesso ao capital para tocar o
negócio adiante.
65
capital de giro, teoricamente, são aqueles que excedem o capital imobilizado. É
recomendável, portanto, que uma parte do capital de giro seja financiada por
recursos de longo prazo, próprios ou de terceiros (MATARAZZO, 1998). Aqui é
que os empreendimentos autogeridos encontram as maiores dificuldades.
Não raro essa situação é superada pelo comprometimento pessoal dos novos
administradores ou através do auxílio explícito da sociedade. Infelizmente, no
entanto, é comum ser esta dificuldade superada sem recurso ao espírito da
solidariedade, através da simples prestação de - mais - serviços. Como a
empresa só dispõe de máquinas e de pessoal, produz com a matéria-prima e a
marca de terceiros. Apesar de a empresa ser democrática internamente, os
trabalhadores continuam sendo explorados por uma empresa externa que não
tem nenhuma obrigação legal com trabalhadores além da relação comercial
com a empresa autogerida (e que lhes pertence).
“Na perspectiva de ser dono do negócio, surgia a dúvida: o que é mais importante,
ter o controle da gestão ou o controle dos meios de produção? (...) Existem casos
de os trabalhadores gostarem tanto da gestão empresarial que assumem o
controle da empresa como gestores empresariais e se recusam a responder
enquanto verdadeiros donos coletivos da empresa. O caminho é educar os
proprietários coletivos para que assumam o controle da gestão. Não é por outra
razão que a Anteag investe 70% da sua força na educação dos gestores. Não
adianta ter o controle da empresa se não se tem controle da gestão”. (ANTEAG,
2000; p. 22)
Aqui parece que o recurso fundamental para que uma empresa autogerida
obtenha sucesso é a gestão do negócio. Sob uma ótica socialista, o
aprendizado dos trabalhadores em gerir empresas pode ser entendido como
uma finalidade em si já que, neste caso, a classe trabalhadora teria que
assumir coletivamente a operação da produção (SINGER & MACHADO, 2000).
Os operários sabem produzir mas este conhecimento existe de forma
66
fragmentada dentro de uma fábrica. Quem possui uma visão integral é o
gerente ou o proprietário. Para permitir a democratização da gestão é
necessária a apropriação coletiva desse conhecimento, daquilo que a ANTEAG
chama de saber coletivo dos trabalhadores (ANTEAG, 1998).
Assim, a capacidade de gerir o negócio por parte dos trabalhadores tem sido
uma preocupação fundamental tanto das instituições oriundas do movimento
social quanto das políticas públicas da área de economia popular solidária.
Como já mencionamos, as dificuldades encontradas aqui também são muitas.
Não custa enumerar aqui algumas das principais: o baixo grau de instrução
formal dos trabalhadores, o caráter inovador desta forma de gestão, a
fragmentação do conhecimento e o seu caráter tácito. Este último aspecto é,
talvez, a maior dificuldade dos técnicos que assessoram tais empreendimentos.
Nem sempre é possível se fazer compreender pelos trabalhadores ou
conseguir apontar precisamente os problemas e soluções que viabilizarão o
projeto. Há uma barreira cultural pregressa, promovida pela lógica capitalista
de produzir na qual os trabalhadores, enquanto assalariados, estavam
subsumidos e que tem se revelado difícil de superar.
67
Eficiência Econômica das Empresas de Autogestão
Se eficiência diz respeito aos efeitos esperados, temos então que encontrar
uma forma de incluir nestes efeitos esperados pelas indústrias não apenas
mercadorias para a sociedade e lucro para o proprietário, mas também postos
de trabalho, qualidade de vida, preservação ambiental e valorização do ser
humano. Tais questões não podem ser colocadas como sendo juízos de valor,
fora do escopo do estudo das Ciências Econômicas. Deste modo, a discussão
sobre o conceito de eficiência econômica envolve um debate que diz respeito
não somente à rentabilidade das empresas mas também aos benefícios sociais
47
O que não deixa de ser interessante dada a origem positivista da escola neoclássica.
48
O conceito de recurso natural não-renovável não inclui a água potável, por exemplo, mas há
um debate mundial sobre a escassez desta.
68
por elas gerados, sendo aceitável que o poder público as subsidie, de alguma
forma, para que possam competir no mercado.
Esse foi o caso de uma empresa do setor têxtil que formou uma cooperativa
com cerca de 100 trabalhadores que perderam o emprego no processo de
falência. Esta empresa conseguiu, em menos de 3 anos, acumular recursos
próprios de tal ordem que permitiram que a cooperativa comprasse a planta
industrial da massa falida através de um leilão judicial. A diferença foi apenas
de gestão, como em muitos outros casos fica a dúvida se a antiga direção era
fraudulenta ou apenas incompetente. Este não é um caso isolado de sucesso
e pode-se enumerar exemplos de setores econômicos variados como o
calçadista, o metal-mecânico, o alimentício e outros. Apesar dos fatores que
determinaram o sucesso de empresas autogeridas onde outras fracassaram
ainda merecerem melhor aprofundamento, já é possível identificar alguns
deles. O primeiro é que, como já indicado acima, a legislação tributária e a
legislação trabalhista facilitam as fraudes e a má fé e, em especial, a legislação
comercial e a lei de falências dificultam a comprovação de fraudes que
dilapidam o negócio. Bancos públicos também costumam fazer negócios
duvidosos com empresas às vésperas de fechar suas portas. Assim, quando
uma empresa fecha, os principais credores freqüentemente são os
trabalhadores, o erário e as instituições financeiras públicas. Quando uma
empresa autogerida consegue arrendar na justiça uma dessas planta, além de
manter os postos de trabalho e o patrimônio da massa falida, o fato em si
também costuma representar uma dificuldade a mais para os fraudadores.
69
objetivo de flexibilizar a produção deve ser mantida, mas sem precarização,
com baixa rotatividade e manutenção do número e da qualidade dos postos de
trabalho, diferentemente do que vem ocorrendo tradicionalmente no setor
produtivo.Apesar dos muitos exemplos de sucesso, não existe uma
sistematização sobre quais são as condições que o favorecem. Por ora, só é
possível concluir o aspecto eficiência econômica da autogestão com a
enumeração de condições sob as quais esta forma de organização da
produção apresentou desempenho especialmente satisfatório. As empresas de
autogestão têm sido mais eficientes quando se trata de coibir gestões
empresariais incompetentes, fraudulentas e gananciosas (no sentido de
proprietários que estabelecem sua própria remuneração em patamares
incompatíveis com a capacidade da empresa, extraindo uma mais valia
excessiva). Ainda outro aspecto interessante e digno de nota, é a capacidade
que a autogestão teve de introduzir maior flexibilidade em fábricas com gestão
e equipamentos antigos; em diversos casos, fábricas praticamente obsoletas
apresentam indicadores econômicos superiores a suas concorrentes
convencionais com equipamentos melhores.
No caso específico das falências, muitas delas estão associadas a dívidas que
se acumularam a longo de anos e que acabam por impor um custo financeiro
insuportável. Quando os trabalhadores assumem a planta, geralmente o fazem
através de arrendamento, sem assumir as dívidas, o que é um bom negócio
para todos já que, além de preservar postos de trabalho, reduz
significativamente os custos da massa falida e valoriza o patrimônio,
beneficiando os credores (entre os quais os próprios trabalhadores). É evidente
que estas observações ainda carecem de maior sistematização; porém, dado o
acúmulo existente e a oportunidade (e a necessidade) de divulgá-las, parece
ser a avaliação possível neste momento.
70
não ter empregados em número superior a 10% ao do total de associados e ter
mais de 5 sócios (RIO GRANDE DO SUL, 2001a).
Os instrumentos criados por estas políticas públicas ainda são incipientes, mas
começam a ganhar força e objetividade. Pode-se dividir os instrumentos
existentes ou em elaboração em 5 eixos, como no programa gaúcho (RIO
GRANDE DO SUL, 2001b):
71
agricultores costumam receber, com taxas de juros bastante mais reduzidas, às
vezes negativas, até mesmo para capital de giro.
72
entanto, freqüentemente estes mecanismos carecem de uma coordenação
mais apurada entre si.
Conclusões
73
Referências Bibliográficas
74
RIO GRANDE DO SUL. SECRETARIA DO DESENVOLVIMENTO E DOS
ASSUNTOS INTERNACIONAIS. Programa de economia popular solidária.
Porto Alegre: mimeo, 2001. (b)
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SANTOS. Boaventura de Sousa. Produzir para viver, Civilização Brasileira, Rio
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Tempo, n. 320, fev./mar. 2001. p. 5-7.
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TEECE, David J. Technological change and the nature of the firm. In: DOSI,
Giovanni et alli (org.). Technical change and economic theory. Londres:
Frances Pinter, 1988. p. 256-281
75
ECONOMIA POPULAR , SOLIDÁRIA E AUTOGESTÃO: O PAPEL DA
EDUCAÇÃO DE ADULTOS NESTE NOVO CENÁRIO (TENDO COMO
PERSPECTIVA A ATUAÇÃO DA UFRGS)
A Educação de Jovens e Adultos (EJA), nesta última década, tem sido alvo de
reflexões/ações que colocam em xeque concepções e abordagens, algumas
igênuas outras mecanicistas/utilitárias, até então dominantes nos cursos,
projetos, mutirões em torno da escolarização (alfabetização) de jovens e
adultos.
A falta de políticas públicas específicas para esta área e este público foi
certamente um dos pontos que levaram à proliferação de iniciativas totalmentes
desprovidas de um caráter crítico/reflexivo que contribuísse para que
trabalhadore/as alunos/as se autorizassem a realizarem ações mais concretas
em busca de uma melhor qualidade de vida sua, dos seus e da comunidade
onde estão inseridos50.
76
Isto tem levado os setores populares a desenvolverem as mais variadas
formas/atividades como alternativas de geração de renda e trabalho52. Estas
formas/alternativas têm sido constantemente identificadas como parte da
economia popular, mas nem sempre solidária.
Conforme TIRIBA (1998), nem toda economia popular é solidária e nem toda
economia solidária é popular. É necessario refletir sobre qual o conceito/prática
de economia popular e solidária que queremos construir.
77
necessário averiguar de qual solidariedade estamos falando/agindo. O sentido
do termo solidariedade que temos trabalhado, não se mescla ao paternalismo,
caridade ou filantropia, mas sim, com comprometimento do trabalho coletivo,
cooperativo, comunitário, comprometimento este que perpassa por uma nova
ética nas relações humanas, nova ética nas relações de trabalho, econômicas
e comerciais.
E vai mais adiante, ao afirmar que é necessário ter uma identidade, para que
se possa construir a Economia Solidária, e essa identidade não deve ficar
restrita a área econômica, pois:
Isto é, a Economia Solidária não pode ser vista apenas como um movimento
econômico, é necessário que estaja ligado a outros movimentos sociais que
buscam a melhoria de qualidade de vida da população em geral.
Paul Singer entende a Economia Solidária como mais uma estratégia de luta
do movimento popular e operário contra o desemprego e a exclusão social:
54
Gonçalo Guimarães é Coordenador Nacional da Rede de Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares de Universidades Brasileiras, ligado a Rede da Unitrabalho, rede que
congrega mais de 82 Universidades Brasileiras. O referido autor é, também Coordenador da
COOPE/UFRJ, e possui vários livros e artigos publicados sobre este tema.
78
consumo de bens materiais ou no sentido mais genérico da arte de bem
administrar um estabelecimento qualquer...", não abarca todo o processo que
envolve este fenômeno, isto é, a dita economia de solidariedade não pode ficar
atrelada apenas aos indicadores ou as razões econômicas, de gerarem "novos
postos de emprego", de reintegração de trabalhadores/as ao mercado formal
de trabalho, de incentivar empreendimentos populares e solidários
(autogestionários ou não) com vistas apenas a virem competir na economia do
mercado capitalista, da distribuição de renda. Também nesse sentido, propõe o
que ele chama de "Colaboração Solidária", que envolve estes procedimentos
acima citados, mas que vai além:
79
negócios solidários entre os mesmos (sem descartar o mercado capitalista
formal), isto é, fomentar as redes de colaboração solidária. Desta forma a
atenção a expressão utilizada por Mance é essencial, pois além de negociar,
os empreendimentos de economia solidária necessitam também de trocar
conhecimentos, tecnologias e experiências. Nesse sentido a atenção vai para
além dos fatores econômicos, pois necessariamente deve-se incentivar todo
um conjunto de ações solidárias, entre elas a do consumo ético e solidário.
Assim, um empreendimento que disponibiliza sua produção para uma
determinada rede, precisa também se dispor a consumir produtos oferecidos
por outros empreendimentos na mesma rede, não só pode consumir mas
também trocar informações, soluções e ou problemas enfrentados. Mance
conceitua redes solidárias como sendo:
Neste panorama o consumo deve ser discutido criticamente pois, tudo que
consumimos está envolto em um processo produtivo e a um determinado
conceito de sociedade:
"...o consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita não
apenas considerando o nosso bem-viver pessoal, mas igualmente o bem-viver
coletivo. Esse tipo de conduta somente se torna possível quando as pessoas
compreendem que a produção encontra a sua finalidade – ou seu acabamento –
no consumo e que ele tem o impacto sobre todo o ecosistema e sobre a
sociedade em geral..."
(Ibidem, p.29).
Isto é, todo o produto produzido ou serviço prestado tem algum tipo de trabalho
humano (e consumido por nós) e pode Ter sido explorado pelo capital
possibilitando ao dono do empreendimento acumular mais capital, tendo como
base a expropriação da mais valia absoluta, relativa e extra. Sem falarmos da
devastação ambiental e da poluição que poderá estar causando determinado
processo produtivo.
Autogestão
80
como exemplo clássico o "Fordismo"57. Citarei aqui três enfoques que Taylor
considerava como os principais na organização dos processos de trabalho:
Entre outros tantos motivos que levaram a uma possível decadência deste
modelo, ficaremos aqui apenas com os que nos interessam neste momento:
inibição do potencial humano devido ao seu enclausuramento em
especializações/divisões do trabalho; fragmentação dos processos,
esquadrinhamento e homogeneização do tempo e de horários; alienação e
estranhamento ao produto final e aos meio de produção; destruição dos
recursos naturais do planeta e poluição avassaladora.
Mas é preciso ter claro que, as novas formas de organização dos processos de
trabalho elaboradas nas mesas das gerências (qualidade total, círculos de
controle de qualidade, reengenharia, entre outras), por mais que tendam a
cooptar e induzir os trabalhdores/as a participarem das decisões sobre
determinadas diretrizes nos processos de produção ou organização do
trabalho, as decisões de o que produzir, como produzir, para quem
produzir e como gestar a produção e organização dos processos
continuam nas mãos dos Executivos, Gerentes ou Patrões. Ricardo
Antunes (1995) nos mostra que estas iniciativas são imbrionárias do modelo
japonês (toyotismo):
Diante disto, recorremos a Karel Kosik (1976), que nos alerta para o mundo da
pseudoconcreticidade:
57
Ricardo Antunes trabalho este tema no livro: Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as
metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho.
81
"...o mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O
seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao
mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de
modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos..."(KOSIK,
1995 p.11).
Isto é, por um lado o toyotismo (uma das expressões utilizadas para identificar
estes processos de transformação do capital) trabalha com promessas que
parecem apontar para o desaparecimento do trabalho alienado, brutalizado,
especializado e desmotivante, mas o que continua por detrás desta
reorganização é a extração da mais valia absoluta, relativa e parcial.
Mas, é preciso ter claro que o processo de autogestão não pode ficar restrito as
atividades econômicas e sim, deve deslocar-se para as outras esferas e
atividades que envolve nossa vida, como a política, a sociedade e a cultura.
58
Conforme o Comitê pró Central de Cooperativas Autogestionárias de Economia Solidária do
Rio Grande do Sul, um empreendimento para ser considerado autogestionário deve seguir os
seguintes princípios: 1)Decisão coletiva, todos os associados tem a oportunidade de opinar e
decidir os rumos do empreendimento, em pé de igualdade; 2) Participação efetiva, são os
associados que participam da construção da Cooperativa ou Associação; 3)Participação nos
resultados, de forma proporcional ao esforço de cada associado, não há exploração e 4)
formação integral, os empreendimentos devem ter o compromisso de proporcionar a
qualificação/formação dos cooperados e dos seus.
82
para geração de renda ou trabalho permeadas pela autogestão, com os
processos educacionais, principalmente com a Educação de Adultos. Ninguém
acorda ou acordará de um dia para o outro "autogestionário", se faz necessário
um processo de reflexão crítica, concomitante com o desenvolvimento dos
processos de trabalho, sobre esta possibilidade concreta de rompermos com a
alienação e estranhamento na organização e elaboração dos processos do
trabalho e da organização da sociedade como um todo.
Educação de Adultos
Torna-se imperativo avançar este debate, pois existe uma certa fragmentação
quando falamos em Educação de Adultos e Educação para qualificação ou
desenvolvimento/aperfeiçoamento técnico, para trabalhadores/as ou
desempregados/as.
A Educação Básica de adultos59, ainda que nos pareça apontar apenas para o
domínio do alfabeto, da grafia e da leitura, obrigatoriamente nos leva para uma
outra instância: aquela que vai mais além da atividade ligada à língua mas,
também às relações de ordem social, econômica, política e cultural à qual
pertencemos60.
59
A Educação Básica de Adultos deve ser uma política pública do Estado e dos Municípios.
60
12. Esta reflexão é aprofundada no artigo: Corporeidade no Ensino Fundamental de Jovens
e Adultos: como área de conhecimento e como linguagem, de minha autoria, Revista do
Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos Trabalhadores da UFRGS/1997.
61
O Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos Trabalhadores (PEFJAT) –
Prêmio MEC/UNICEF (1998) : Educação para o trabalho, é uma ação conjunta da Pró-Reitoria
de Recursos Humanos (PRORH) e da Faculdade de Educação ( FACED), com apoio da Pró-
Reitoria de extensão (PROREXT) e Pró-Reitoria de Graduação ( PROGRAD), e tem por
objetivo geral escolarização de 1º grau para trabalhadores que não ingressaram ou não
completaram essa etapa. Esta ação caracteriza-se como proposta de construção de
alternativas nas áreas de Educação de Jovens e Adultos . Inicialmente constituído por
atividades relativas ao domínio da leitura e da escrita ( alfabetização ), o curso expandiu-se a
partir de 1990, passando a atender também a demanda em termos de 2ª a 4 ª séries e
posteriormente 5º a 8ª séries. O curso também tem se constituído em campo de pesquisas e
de práticas pedagógicas para alunos e professores do curso de Pedagogia e de curso de Pós -
Graduação, desenvolvidos pela FACED e por outras licenciaturas da Universidade. Além disso,
tem servido para proporcionar a integração entre Ensino, Pesquisa e Extensão na área de
83
básica se fundamenta numa proposta de educação libertadora, reflexiva,
problematizante, dialógica, considerando-se a complexidade humana. Devido
ao seu caráter de experiência pedagógica e tendo em vista esta filosofia
fundamental, desenvolve-se atividades que diferem das propostas do ensino
regular e dos manuais de alfabetização, tão divulgados nestes últimos anos.
84
conceito de trabalho ultrapassa a forma pela qual o sistema capitalista o
transformou: emprego/trabalho assalariado, senão vejamos o que diz Kosik:
Temos trabalhado com a perspectiva de que a economia popular pode vir a ser
solidária, de que a autogestão é a alternativa concreta de autonomia dos
trabalhadores/as, de que a Educação de Adultos (tanto básica/fundamental
como para qualificação técnica, administrativa, tecnologica ou
aperfeiçoamento) que tenha o trabalho como princípio educativo, pode vir a ser
um elemento de extrema importância no desenvolvimento e fortalecimento
destas iniciativas e de que a organização comunitária é uma das bases do
desenvolvimento de iniciativas coletivas (muitas vezes solidárias) que tenham
como objetivo a resolução de problemas comuns.
Atuação da UFRGS
63
"Organização Comunitária: a possibilidade da construção com participação da Comunidade
Universitária", inédito, deste autor.
85
gestão do trabalho através do trabalho cooperado e autogestão. Alguns autores
têm enfatizado a necessidade de uma transformação cultural nas relações de
trabalho para que os trabalhadores/as consigam assumir a gestão de seus
empreendimentos, entendendo o trabalho cooperado como alternativa ao
trabalho competitivo, uma vez que os trabalhadores/as não competem entre si
e quebram a hierarquia administrativa. Este processo de transfomação cultural
deve fundamentalmente passar pela Educação de Adultos; novas relações de
trabalho através do trabalho coletivo. O trabalho coletivo pressupõe a
eliminação da lienação nas relações de trabalho, possível através de um
processo contínuo de Educação crítica e reflexiva que desmistifique as várias
etapas dos processo de produção, gestão e comercialização; novas relações
humanas através do trabalho solidário que pressupõe uma nova ética nas
relações humanas, econômicas e comerciais; relação direta entre trabalho e
educação continuada, seja educação básica, seja de qualificação ou
aprimoramento; melhor qualidade de vida para todos os cooperados, não tendo
como objetivo final o acúmulo de capital e ou bens.
64
O Projeto Convivência é desenvolvido pela Pró-Reitoria de ExtensãoUFRGS.
86
Desenvolvimento Econômico, Redes de Cooperação, Relações Sociais e
humanas, entre outras demandas.
65
É importante salientar que implantamos o software desenvolvido pelo Euclides Mance, para
que possamos traduzir mais fielmente a participação destes produtos no rancho mensal das
comunidades bem como maiores informaçoes sobre indicadores econômicos.
87
Assuntos Internacionais) sobre a confecção de um caderno Educativo/
informativo sobre os processos e tramites legais para o registro de
Cooperativas. Este caderno terá ainda conceitos de Economia Solidária,
Cooperativismo, entre outros.
Por isso se faz necessário repensar, de modo geral, a EJA que vem sendo
desenvolvida "por aí". Sabemos, para que possamos repensar os processos de
trabalho necessitamos repensar também, os processos educativos. Essa nova
ética das relações humanas precisa também estar na ética das escolas. Uma
EJA só tem validade quando os sujeitos com e a partir dela, se inserem na
sociedade/comunidade, como interventores do/no processo
político/social/econômico/cultural. Seres atuantes, autônomos e, ao mesmo
tempo, solidários, que participem dos movimentos de sua comunidade:
associações de moradores, clube de mães, participem do Orçamento
Participativo, etc.
Referências Bibliográficas
88
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação, crise do trabalho assalariado e do
desenvolvimento:teorias em conflito, in Educação e crise do trabalho:
Perspectivas de final de século. Petrópolis, RJ : Vozes, 1998.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre as Metamorfoses e a
Centralidade do mundo do trabalho. Campinas, SP : Cortez, 1995
ARRUDA, Marcos. Globalização e sociedade civil: repensando o
cooperativismo no contexto da cidadania ativa. Ed. PACS, Rio de Janeiro,
1996.
GUIMARÃES, Gonçalo. Ossos do Ofício. Rio de Janeiro, 1998.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São
Paulo: Contexto, 2000.
SINGER, Paul. Utopia Militante. São Paulo: Vozes, 1998.
MANCE, Euclides André. A revolução das Redes: a colaboração solidária como
uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis, RJ: Vozes,
1999.
CORRÊA, Luís Oscar Ramos. Organização popular:: uma possibilidade de
construção com participação da comunidade universitária. Porto Alegre,
xerox, 1997.
89
ECONOMIA SOLIDÁRIA – RELATO DE EXPERIÊNCIAS NO PARANÁ66
Introdução
1. Rede Sol
66
Seminário Catarinense de Economia Solidária. Florianópolis, maio de 2000.
www.milenio.com.br/mance/balanco1999.htm
67
No campo da economia informal urbana percebe-se que certa parte de empreendimentos,
que poderia ser incluída na esfera da economia solidária, tem um comportamento bastante
similar ao dos movimentos populares. São fruto de uma organização coletiva com vistas a
atender demandas imediatas por trabalho e consumo, têm uma rotatividade grande de seus
participantes, emergem e refluem periodicamente, conforme as conjunturas de crise
econômica, mantendo relações similares de autonomia ou dependência frente a organizações
religiosas e civis ou frente ao Estado, tendo pouco ou nenhuma informação das organizações
precedentes que atuavam nessa mesma esfera, seus acertos e erros. Muitas vezes acabam
sucumbindo por repetir os mesmos erros anteriormente cometidos por outros empreendimentos
similares.
90
somente aos sábados e na rua, exposta a chuvas, ventos e outras intempéries.
Após alguns meses de funcionamento as dificuldades foram se alargando.
Alguns feirantes tinham pouco apoio da família. Outros não queriam montar
barracas para aqueles que chegavam mais tarde, e assim, aos poucos o
número de feirantes foi diminuindo. Por fim, restaram doze. Estes, então,
decidiram estruturar um ponto permanente de comercialização.
2. Feira da Solidariedade
Uma das primeiras iniciativas foi a de organizar uma feira que permitisse
aglutinar um maior número de empreendedores que atuam na economia
informal e com isso ampliar o conjunto de participantes.
91
Assim, ocorreu no mês de abril a primeira Feira da Solidariedade com a
participação de aproximadamente 90 grupos de produtores e prestadores de
serviços, tendo o número de inscritos ultrapassado a 100.
O Ginásio de Esportes da vila São Pedro, onde foi realizada a feira, ficou lotado
com as bancas que foram organizadas em setores: alimentação, confecções,
artesanatos e serviços.
92
A Feira tinha um duplo caráter. Tanto era possível comprar e vender os
produtos e serviços, quanto oferecê-los em troca por outros produtos e
serviços. Ao final da feira, como as vendas foram fracas, as trocas se
intensificaram.
93
O projeto básico de uma Rede de Colaboração Solidária é o seguinte. Os
participantes praticam o consumo solidário, dando preferência aos produtos e
serviços da rede (onde não há exploração dos trabalhadores e busca-se
proteger o meio ambiente), possibilitando que os empreendimentos obtenham
excedentes, parte dos quais deve ser reinvestida coletivamente, gerando
outras cooperativas ou microempresas, remontando solidariamente a cadeia
produtiva dos bens comercializados, evitando-se que a rede compre insumos e
produtos finais no mercado.
Na seção compras, é possível conhecer a loja da Rede Sol, navegar por suas
seções através de várias fotografias, conhecendo produtos e serviços. Nos
próximos meses iniciaremos a comercialização via Internet dos produtos e
serviços. Compras acima de R$ 15,00 poderão ser entregues na residência do
comprador em até 24hs após realizado o pedido. O pagamento será feito no
ato da entrega. Os scripts de compra on line já estão sendo programados. As
94
compras também poderão ser feitas por telefone, como nos sistema de disque-
pizza, com o cliente tendo uma lista dos produtos disponíveis.
95
agrupado nessas seções abre muitos outros, permitindo uma ampla pesquisa
sobre diversas práticas, conceitos e princípios de economia solidária.
4. Rede Solidariedade
96
nesse sistema, podendo igualmente comprar os remédios com 30% de
descontos. Este serviço já está operando, tendo iniciado nesse mês de maio.
"A entrega do medicamento é feita 48 horas após o recebimento do dinheiro ou
do aviso do crédito em conta". e) Força de Vendas e Rede de Distribuição -
formada por demitidos e aposentados, opera em sistema de teletrabalho, em
sistemas on line ou por telefone. A Rede está preparando um curso de
capacitação para as primeiras turmas que atuarão nesse setor. f) Centrais de
Comercialização de produtos Agropecuários e de Prestação de Serviços. Esta
propostas ainda está em debate. O objetivo é comercializar através da Rede
tanto produtos agropecuários quanto produtos caseiros e serviços profissionais
urbanos, elaborados sob os critérios da economia solidária, integrando à Rede
os produtores rurais e conferindo maior capilaridade urbana na comercialização
da Rede. h) Moradia Popular. Trata-se da construção de moradias populares
para os trabalhadores sindicalizados e participantes das associações
integradas à Rede. Algumas linhas de financiamento pesquisadas podem ser
acionadas, e já há duas cooperativas populares de construção civil operando,
uma em Curitiba e outra em Ponta Grossa. "A cooperativa dos trabalhadores
bancários realizará as tarefas de administração; a dos trabalhadores
engenheiros fará os projetos e plantas, bem como gerenciará as obras; e os
trabalhadores da construção civil e dos telefônicos realizarão as tarefas
necessárias para as obras de construção material das moradias". Até agora,
contudo, não há imóveis sendo construídos pela Rede Solidariedade.
Perspectivas
Essas Redes, que estão sendo organizadas há apenas 3 meses, dão sinais de
um potencial grande de crescimento. Tudo dependerá da percepção que os
demais segmentos organizados tenham da sua importância, difundindo a
prática do consumo solidário.
97
MOEDA SOCIAL E A CIRCULAÇÃO DAS RIQUEZAS NA ECONOMIA
SOLIDÁRIA68
Fábio Luiz Búrigo69
Apresentação
68
Texto apresentado como um dos requisitos para a conclusão da disciplina Análise Sócio-
Política do Sistema Financeiro no Capitalismo Contemporâneo, oferecido no semestre 2000.02,
pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (CFH - UFSC). O autor agradece as
sugestões e comentários efetuados pelo colega Jacques Mick.
69
Fábio Luiz Búrigo é Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agroecossistemas (Centro de
Ciências Agrárias - UFSC) e coordenador técnico do Centro de Estudos e Promoção da
Agricultura de Grupo - Cepagro. Caixa Postal 6073, Cep 88036 971- Florianópolis SC. Fone/fax
048 2333176. e-mail: burigo@mbox1.ufsc.br.
98
Além do mais, as incertezas e perplexidades, que rondam o padrão monetário
"convencional" estimulam o surgimento e a expansão de formas alternativas de
organização financeira. Um rápido olhar sobre parte desses movimentos, não
obstante as suas diferenças operacionais, indicam que eles apareceram com o
objetivo de combater o processo de concentração econômica e ampliar a força
dos excluídos do circuito financeiro tradicional.
99
Breve retrospecto do uso do dinheiro
100
Nos estudos sociológicos de Simmel, o dinheiro era constantemente
referenciado como sendo uma instituição fundamental no desenvolvimento das
relações econômicas. Simmel concordava com a visão de Marx sobre o papel
alienante do dinheiro nas sociedades capitalistas, mas enfatizava que a moeda
proporcionou maior liberdade pessoal nos negócios e facilitou as transações
econômicas. Ela tornou-se um instrumento de interação de caráter anônimo e
menos sujeito às obrigações sociais (Mizruchi e Stearns 1994).
70
Ver Cedac (1981).
101
inserido. Quando representa o poder de comprar bens e serviços à família, tem
um sentido "doméstico", que é diferente do dinheiro "institucional", utilizado
como capital (fundos de crédito e políticas do Estado), e que, por sua vez, é
distinto do dinheiro "moral", oriundo de fontes religiosas ou de caridade. Em
cada caso, ele assume um caráter simbólico específico e tem uma lógica
própria de utilização71(4).
O referido autor ressalta ainda que o papel político do dinheiro faz dele um
facilitador poderoso da reprodução de assimetrias de riqueza, poder, renda e
propriedade na sociedade (Dodd, 1997). Além do mais, como o sistema
monetário atual favorece o desvio de dinheiro dos países pobres para os ricos,
aqueles sofrem escassez de dinheiro para investimentos e padecem de
desorganização. Pois esta desnecessária e artificial carência de dinheiro
impede [a sociedade] de atrair e organizar os talentos das pessoas (Strohalm,
2000).
As moedas alternativas
Apesar da imposição das moedas nacionais ter sido uma das estratégias mais
evidentes do sistema capitalista, ao longo dos últimos três séculos, alguns
exemplos de uso de moedas alternativas foram registrados nesse período72.
Uma das experiências mais interessantes nesse sentido refere-se à aplicação
da teoria da "oxidação da moeda" Para essa teoria, as moedas deveriam
71
É mister ressaltar que durante boa parte do século XX as investigações de natureza
sociológica em torno do dinheiro e de seu uso foram relegadas a segundo plano. Certamente,
essa carência dificulta a compreensão em torno das implicações sócio-culturais do uso de
moedas nacionais únicas e de moedas de circulação internacional (como é o caso do dólar).
De acordo com Mizruchi e Stearns (1994) os estudos sobre dinheiro, bancos e finanças ficaram
distantes dos sociólogos por décadas, prevalecendo principalmente pesquisas com enfoque
econômico. Para esses autores, somente nos anos 1970 os cientistas sociais voltaram a
produzir significativamente análises em torno do tema.
72
O uso de moedas alternativas à moeda oficial é uma prática relativamente pouco conhecida
depois da independência no Brasil, muito embora existam exemplos em que esta medida foi
utilizada, mesmo depois de ter sido estabelecida uma moeda nacional única. Sabe-se do uso
de moedas alternativas em Blumenau (1898), Porto Alegre (na década de 1950), em Campina
do Monte Alegre - SP (nos anos 1980).
102
perder o seu valor de troca com o passar do tempo. Sem tornar-se inflacionário
(pois a desvalorização é controlada), o sistema de redução programada do
valor da moeda foi uma das teses mais defendidas pelo economista Silvio
Gesell73. Ele acreditava que a poupança desestimula a circulação monetária,
gerando problemas como a recessão e a concentração de renda.
A tese da circulação máxima da moeda foi testada pelo menos em dois países
europeus durante o século XX. No ano de 1930, em Schwanenkirchen na
região da Baviera (Alemanha), um proprietário de uma mina de carvão
endividado propôs pagar seus empregados com um bônus chamado de "Wära"
(Wäre significava mercado) (Laacher, 2000). Porém, esse bônus perdia seu
valor ao longo do tempo, o que obrigava o seu portador a utilizá-lo
imediatamente. Os comerciantes acabaram aceitando tais bônus dos
trabalhadores, devido à carência de Marcos (moeda oficial) na cidade. Com o
bônus nas mãos, os comerciantes começaram a convencer os seus
fornecedores a aceitá-los, fazendo crescer rapidamente o espaço de circulação
do Wära. Em 1931, quando cerca de 2000 empresas já participavam do
circuito, o Banco Central alemão interditou o sistema, alegando o seu
monopólio na emissão de moeda (Lietaer, 2000).
73 O austro-alemão Silvio Gesell (1862 - 1930) viveu muitos anos na Argentina, onde através
de sua atividade de comerciante pode perceber o impacto do sistema monetário capitalista,
especialmente em tempos de crise. Nesses períodos, a moeda oficial torna-se escassa
gerando grandes dificuldades para os setores empobrecidos e criando sérios empecilhos para
se fortalecer a economia. Uma de suas idéias foi estabelecer um "mercado sem capitalismo"
Seu modelo de economia livre defendia a idéia de se "oxidar a moeda", criando estímulos à
circulação do dinheiro, através de taxas de juros negativas e fortalecendo, conseqüentemente,
a economia local. Suas idéias principais a respeito do tema, consideradas impraticáveis por
muitos economistas de sua época, estão descritas na obra "A Ordem Econômica Natural", e
foram colocadas em prática na Áustria, França, Alemanha, Espanha, Suíça e nos Estados
Unidos (Trueque, 1999). Keynes, em sua obra Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda,
muito embora não acreditando na praticidade de se etiquetar as moedas com carimbos de
desvalorização, se interessou em comentar com respeito as concepções de Gesell.
103
No ano de 1933, o relato da experiência de Worgl, efetuado por um professor
da Universidade Yale (Irving Fischer), impressionou cerca de 400 vilas norte-
americanas, que resolverem criar suas "moedas de emergência", como forma
de combater a recessão econômica. A idéia desencadeou um movimento em
defesa da expansão desse tipo de moeda para todo o território dos Estados
Unidos, envolvendo, inclusive, parlamentares e técnicos do governo.
74
Pode-se argüir no sentido contrário, afirmando que as experiências aqui relatadas foram
abortadas em tão curto espaço de tempo, que não permitiram prever todas as conseqüências
positivas que o sistema poderia trazer ao tecido social.
104
Os Lets se configuram como um clube de troca, onde o dinheiro oficial é
substituído por uma moeda própria. Os Lets auxiliam também no combate à
falta de poder aquisitivo da população, causado pelas políticas monetárias
restritivas, impostas pelo sistema oficial:
Un Club de Trueque es una asociación de personas desempleadas o
subempleadas, es decir, que tienen potencial productivo desaprovechado por falta
de demanda y necesidades insatisfechas por falta de dinero. En el Club se crea la
demanda faltante y, al mismo tiempo, las personas satisfacen sus necesidades
comprándose productos unas a otras. Se trata de un huevo de Colón, cuyo
secreto está en la emisión de una moneda propia del Club, que genera la
demanda al monetarizar las necesidades insatisfechas de los miembros (Singer,
1999).
No Reino Unido a idéia do Lets surgiu em 1985, sendo que uma década depois
já somavam 400 grupos, envolvendo cerca de 20.000 aderentes (Singer, 1999).
Os Lets ingleses obtiveram, também, certo apoio de autoridades locais.
105
defendiam uma utopia socialista e revolucionária como Marx, Fourrier,
Proudhon, Owel e Gesell. Esses autores viam o dinheiro como uma arma a
favor do poder capitalista e que por isso devia ser "domesticado". Ou seja, para
se alcançar às necessidades fundamentais da população é imperativo controlar
o dinheiro e o mercado e não o inverso, em que os setores financeiros
controlam a sociedade e a economia.
Moedas Paralelas
Esse tópico procura sintetizar dois textos de Jeròme Blanc a respeito do uso de
moedas paralelas76. Nos textos, o autor descreve uma pesquisa sobre o uso de
moedas paralelas em todo o mundo. Sua investigação, mesmo limitada ao
período de 1988 a 1996, apontou uma gama muito grande de crises monetárias
e de acontecimentos ligados ao tema. Na sua coleta, o autor detectou 465
exemplos de uso de instrumentos monetários paralelos, em 136 estados
nacionais (Blanc, s/d). Para Blanc, o termo moedas paralelas pode ser definido
como:
75
Para estimular o contato pessoal, nos SEL não são feitas trocas por telefones. Além disso,
são organizadas festas, assembléias, passeios etc. como forma de aumentar a convivência do
grupo.
76
Ver bibliografia.
106
a moeda central e que são emitidas sob um certo controle da autoridade monetária
nacional (Blanc, s/d).
107
Quadro 1 - Tipologia dos instrumentos monetários
Instrumentos
monetários
Instrumentos Desses 29% são
(empregados Instrumentos monetários derivados de
monetários considerados
em cobranças e uma coletividade territorial (58%)
paralelos paramoedas
nos
pagamentos).
Instrumentos monetários derivados de
uma organização administrativa (7%)
Instrumentos monetários derivados de
coletividades de pessoas, com
vocação não comercial (10%).
Instrumentos de origem não
especificamente monetários (25%)
Fonte: Blanc (s/d) - adaptado pelo autor.
Além do mais, o autor afirma que para se compreender melhor esse paradoxo
é necessário investigar as concepções teóricas sobre a utilidade da moeda na
economia. Uma corrente entende que as moedas paralelas são o resultado de
reforma da organização monetária da sociedade, já a outra aborda os
fenômenos específicos referentes à substituição das moedas e à hiperinflação.
Blanc destaca dentro da primeira corrente as idéias de Silvio Gesell, frisando
que ele pregava o aumento da circulação monetária através da depreciação
organizada do valor da moeda, sem afetar os preços nominais dos bens. O
pesquisador comenta também que as tentativas de colocar em prática as idéias
de Gesell acabaram levando ao surgimento de moedas paralelas, criadas pelas
comunidades interessadas em testar suas propostas (Blanc, s/d).
77
Uma moeda nacional tradicionalmente assume as seguintes características: Única: responde
apenas a uma autoridade monetária; Exclusiva: é a única que possui o poder generalizado de
compra e; Propriedade do Estado: confere poder do Estado dentro de seu território (Blanc, s/d).
108
reforçam a percepção de que as análises tradicionais não englobam
suficientemente as manifestações das comunidades; 3) como o fenômeno é
permanente e generalizado merece ser incorporado. Não pode ser visto
apenas de forma marginal pelas teorias monetárias e; 4) as interrogações em
torno da fungibilidade da moeda.
A experiência dos clubes de trocas que empregam a sua própria moeda vem
ganhando destaque nos últimos anos, especialmente na Argentina. O uso do
dinheiro próprio nos clubes de trocas vem fortalecendo a idéia da moeda social,
na qual são incorporados elementos de natureza social e de criação de
relações econômicas sob bases solidárias.
Nos clubes, a moeda é social porque é uma unidade de medida que favorece
as trocas solidárias e os pagamentos, mas não vira reserva de valor, pois não
gera mais dinheiro através da aplicação de taxas de juros. Um grupo brasileiro,
que vem desenvolvendo uma experiência similar aos clubes argentinos, explica
sua idéia de moeda social:
78
Para a organização não governamental holandesa Strohalm, no futuro as moedas nacionais
perderão sua importância, ou seja:
na era de informação, a moeda nacional será apenas o meio de cálculo para que
possamos designar o valor de bens e serviços. Está previsto que, fazendo uso da
internet, se desenvolverá uma competição para definir quem colocará em
circulação o meio de troca mais aceito [...] Atualmente, grande parte do comércio
internacional é efetuado sem a utilização de dólares ou euros, e sim através de
transações eletrônicas que definem relações de troca. (Strohalm, 2000).
109
que venham responder às nossas necessidades Esta moeda será sempre um
meio, nunca um fim. Não será inflacionária nem jamais poderá ser usada como
especulação (Mutirão Abopuru, 2000).
110
Durante o primeiro ano, o Clube foi crescendo pouco a pouco, intercambiando
frutas, verduras, comidas preparadas, roupas, tecidos e artesanatos. Além
disso, o clube incorpora as idéias de A. Toffler, de se criar "prossumidores", o
que significa incorporar na mesma pessoa, o ser consumidor e o ser produtor.
Assim, para que os reais propósitos do Clube fossem atingidos todos os
membros deveriam produzir e consumir ao mesmo tempo.
80
Informações prestadas ao autor pelos líderes do movimento argentino, durante a realização
de uma oficina de trabalho do Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre de 25 a 30 de
Janeiro de 2001.
111
Primavera indica algumas características que possibilitaram aos clubes de
trocas alcançarem grande expressão na Argentina: 1) a criação da moeda
(social) incrementou as trocas e motivou a participação de novos membros; 2)
a convivência experimentada pelos integrantes dos grupos, através de feiras
semanais, consolidou a coesão e o sentimento de pertencimento entre os seus
membros; 3) a organização da articulação entre os diversos clubes (Rede
Global de Trocas) multiplicou as possibilidades das transações e; 4) a
preservação da autonomia garantiu o funcionamento dinâmico e sem o
estabelecimento de hierarquias entre os nós (clubes).
Por outro lado, o processo de criação e de regulação dos clubes gerou também
ensinamentos, que podem ser sintetizados em alguns princípios. Esses
princípios têm orientado a gestão dos clubes e da Rede Global de Trocas:
1. Os clubes não devem ser muito grandes (60 a 80 pessoas é o ideal), para
fortalecer os laços de solidariedade e convivência entre os grupos;
4. Os erros ocorrem sempre, mas eles devem ser aceitos, pois não há receitas
em projetos de constituição de redes de clube de trocas;
112
9. Aceitar que "as mudanças também mudam" reforça a idéia da
transformação permanente e da necessidade de se refletir sobre o papel
dos prossumidores nas novas organizações81.
Note-se ainda que em outro artigo, Singer faz alguns comentários sobre os
clubes de trocas. Assinala que os clubes podem ser considerados
empreendimentos de economia solidária somente quando se preocupam em
estabelecer novas relações sociais, favorecendo o crescimento solidário de
seus membros. A economia solidária pretende transformar as relações
econômicas baseado em princípios e postulados da cooperação, solidariedade
e de inclusão, estabelecendo novas relações sociais de produção. Lembra
ainda que é preciso criar mecanismos que restrinjam a competição interna -
evitando o surgimento de vencedores e perdedores - e desenvolver novas
ações, com potencial transformador significativo para a sociedade como um
todo (Singer, 1999).
81
Cabe aqui citar dois exemplos de inovações que estão sendo testados pelos "nós". Um clube
está colocando em prática um programa de microcrédito em moeda social. Nesse programa
dois grupos de cinco prossumidores receberam um empréstimo solidário (em moedas do
clube), com o objetivo de incentivar novos empreendimentos. Com o pagamento dos créditos
pretende-se criar um Fundo Rotativo, para apoiar novos beneficiários. Outro exemplo refere-se
à criação de normas para se evitar a "poupança" nos clubes, como defendia Silvio Gesell.
Foram estabelecidas penalidades para quem acumular moedas, dentro de certo período. Até
aquele momento, nenhum membro tinha sido penalizado (Trueque, 1999).
82
As redes de Mercado Justo defendem um novo modelo comercial intencional, no qual o valor
do trabalho necessário para manter os produtores seja reconhecido e incorporado nos preços
das mercadorias. Seguindo o exemplo do que ocorre atualmente com os produtos orgânicos,
em vários países europeus, dos Estados Unidos e do Japão há um número expressivo de
consumidores dispostos a pagar um pouco mais por esses produtos, como forma de apoiar o
movimento. Para isso são efetuados contratos entre grupos de pequenos produtores de países
produtores (América Latina e África principalmente) e as organizações das nações
compradores (normalmente ONGs interessadas na difusão desse tipo de "mercado").
Atualmente os produtos mais comercializados nesse esquema são o café, frutas, sucos e
artesanato em geral. Segundo um técnico de uma ONG alemã que atua no setor, o Mercado
113
De forma resumida, pode-se indicar os elementos chaves a respeito da
experiência dos clubes de trocas da Argentina:
Considerações Finais
Justo ocupa atualmente 1% do mercado europeu de alimentos. Mas poderia alcançar até 7%
em pouco tempo, desde que seja incrementado o trabalho de divulgação e de distribuição dos
produtos.
114
temerosas com a possibilidade de expansão da proposta de uma "economia
livre".
Mais tarde, notadamente depois dos anos 1980, pode-se constatar o (re)
aparecimento de uma grande variedade de novas moedas, que funcionam de
forma paralela às moedas nacionais. A maioria dessas moedas, conforme se
viu, atuam de forma complementar à moeda oficial, sendo emitida até mesmo
pelo próprio Estado (mas que não as reconhece com tal). Várias moedas
paralelas são resultado de estratégias oriundas da própria dinâmica capitalista,
formuladas para facilitar a realização de transações de bens, de serviços e de
outras atividades comerciais.
115
Com efeito, isso leva a pensar também na necessidade de novas investigações
relacionadas às implicações sócio-culturais e a visão subjetiva que o dinheiro
(cada vez mais circulando de forma eletrônica) vem adquirindo nas sociedades
capitalistas avançadas.
A idéia dos clubes de trocas e da moeda social pode ser incorporada nas
metodologias de animação de programas de desenvolvimento local, pois
reforça os laços de confiança e estimula a circulação de bens e serviços entre
as comunidades. Os "novos pobres" argentinos vêm demonstrando ser
possível organizar formas inéditas de auto-ajuda, que associam o caráter
empreendedor - pois resgatam a possibilidade das pessoas oferecerem seus
produtos e serviços - com a criação de um novo mercado, que não se confunde
com o mercado capitalista.
Referências Bibliográficas
116
Singer, Paul. Clubes de Trueques y Economia Solidaria Trueque. Buenos
Aires, Nodo Obelisco-Red Global de Trueque. n.3, ano 2. 1999.
Strohalm.In: Seminário Internacional - Trabalho e Economia Solidária: políticas
públicas para o desenvolvimento.Porto Alegre, Governo do Estado –RS,
2000.
Tavernier, Michel. Moneda Oxidable: O cuando se es profeta en su tierra...
Trueque. Buenos Aires, Nodo Obelisco-Red Global de Trueque. n.3, ano 2.
1999
Trueque. Buenos Aires, Nodo Obelisco-Red Global de Trueque. n.3, ano 2.
1999
117
UMA CONTRIBUIÇÃO CRÍTICA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS DE APOIO À
ECONOMIA SOLIDÁRIA83
Antônio Cruz84
Cabe ressaltar, que ambas são experiências dirigidas pelo Partido dos
Trabalhadores e que outras experiências nessa área vêm se realizando no
Brasil. A escolha desses dois governos se justifica pelo impacto sócio-político
dos dois conjuntos e por nossa especial familiaridade com ambos. Um conjunto
de outras iniciativas institucionais – como a ação de ONG’s, sindicatos e
universidades – mereceriam igualmente uma análise detida, mas vamos nos
abster disso, desta vez, postergando sua análise, se bem que nossas principais
vivências são originadas do Programa de Economia Solidária da Rede
Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho – a Rede Unitrabalho,
onde se desenvolve o Programa “Rede de Incubadoras Universitárias de
Cooperativas Populares”. Por fim, este artigo constitui ainda um esboço de
pesquisa e se destina a colher a crítica preliminar de professores e colegas em
torno da questão.
83
Este artigo foi produzido originalmente como trabalho de conclusão da disciplina “Economia
Solidária”, oferecida pelo PPG em Economia da FEA-USP, em 2001/II, sob a responsabilidade
do Prof. Dr. Paul Singer.
84
Professor Adjunto e Pesquisador (licenciado) da Universidade Católica de Pelotas, membro
do Núcleo Unitrabalho e da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares. Doutorando
em Economia Aplicada do Instituto de Economia – Unicamp, membro da Comissão Executiva
da ITCP Unicamp.
118
serviços e de produção, redes de pequenos proprietários de comércio e
serviços, e cooperativas oriundas de antigas indústrias que faliram e cujo
espólio foi assumido pelos antigos funcionários.
O primeiro grande passo para sua estruturação, foi um convênio firmado entre
a Ecopopsol/SEDAI e a Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas
de Autogestão e Participação Acionária (ANTEAG). O convênio SEDAI-
ANTEAG foi criticado por muitos setores aliados do governo, que trabalhavam
na área da economia solidária – ONG’s, CUT, Cáritas – em virtude da
exclusividade da contratação, realizada sem consulta e sem aproveitar o
acúmulo militante de um número expressivo de entidades ligadas à economia
solidária.
85
Sistema Nacional de Empregos – programa guarda-chuva do Ministério do Trabalho, que
procura estruturar e articular vários programas de combate ao desemprego e que é
administrado nos Estados pelas secretarias estaduais; no caso do Rio Grande do Sul, pela
Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (STCAS).
119
Entretanto, à medida que cresciam as demandas, tornava-se cada vez mais
difícil aos monitores responderem concretamente a elas. Avolumavam-se as
solicitações de auxílio, de assessoria, de formação, de consultoria etc.
2. Por esta época, também, a Anteag iniciou uma série de cursos para
multiplicadores de iniciativas de economia solidária, realizados em Porto
Alegre, contando com o apoio da Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No final de 2001, porém, e por fim, ante a pressão das entidades “excluídas” da
política da SEDAI e da desestabilização governamental produzida pela “CPI do
Jogo Bicho” na Assembléia Legislativa do RS, o convênio SEDAI-ANTEAG foi
cancelado, com o conseqüente desmonte da estrutura construída pela Anteag,
86
Organização das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul, filiada ao sistema oficial
OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras.
120
o que significou a demissão de dezenas de técnicos e monitores87. Decidiu-se
por recompor o programa, com a participação de um grupo plural de entidades,
o que, entretanto, levou a uma paralisação completa do programa, já que as
dificuldades de articulação de conceitos, métodos e formas de ação diferentes
precisam ser ainda resolvidas.
Além disso, a idéia de estender o convênio da Anteag com a UCPel para outras
universidades regionais não vingou. Houve uma reunião em Pelotas em
setembro de 2000 com esse objetivo, mas a idéia não foi levada adiante. A
experiência com a Intecoop-UCPel continuou isolada e seus resultados ainda
estão por ser avaliados.
121
O essencial do programa consiste na massificação de cursos de capacitação
para gestão cooperativa e de qualificação profissional, que são ofertados aos
usuários dos demais programas e executados por entidades com experiência
neste tipo de ação – Anteag, Sescoop88, Incubadora da USP, Cáritas
Arquidiocesana, ADS-CUT89 e várias outras. Uma vez consolidado o interesse
de treinandos em formar iniciativas de economia solidária, os grupos são
encaminhados ao Programa São Paulo Confia, cuja análise de viabilidade
econômica e assistência técnica poderá garantir o crédito necessário ao início
do empreendimento.
88
O Serviço Social das Cooperativas (Sescoop) é o correspondente do “Sistema S” (Senai,
Senac, Senar, Sebrae) das cooperativas. É vinculado formal e factualmente à OCB.
89
Agência de Desenvolvimento Solidário – ong fundada, mantida e dirigida pela Central Única
dos Trabalhadores.
90
O debate sobre o caráter social, político e econômico da economia solidária está apenas
iniciando. Optamos aqui por uma concepção unilateral do fenômeno, sem enfrentar de fato a
discussão, já que não é o nosso objetivo principal.
122
nem pelos atores sociais: (a) as cooperativas tradicionais, com ampla utilização
do trabalho assalariado e (b) as cooperativas de fachada, formações
empresariais oriundas, de modo geral, do esforço de terceirização de empresas
“tradicionais”91 ou gestores públicos, cujo objetivo é driblar a legislação – cada
vez mais escassa – que protege os direitos dos trabalhadores em relação ao
capital.
Mas não há contradição desde que uma esfera não se subordine à outra. A
dependência das iniciativas de economia solidária em relação ao Estado pode
institucionalizar as empresas, tornando-as ao mesmo tempo um peso para o
Estado e uma bomba relógio para as iniciativas. A idéia de substituir firmas
“terceirizadas” em serviços prestados a governos (prefeituras, secretarias,
hospitais públicos – por exemplo), por cooperativas, sem uma concorrência
regulada de forma igual, tende a criar um ambiente artificial e uma dependência
prejudicial às iniciativas solidárias. Por outro lado, garantir condições especiais
para a estruturação das iniciativas corresponde a uma política compensatória
positiva, já que a condição de acesso ao mercado por essas empresas é
91
Utilizaremos a denominação de “empresas tradicionais” em distinção às da economia
solidária, ou seja, aquelas em que prevalecem as formas de relação assalariadas, individuais
ou patriarcais de trabalho.
123
notoriamente inferior àquelas que já nascem de um capital previamente
acumulado.
92
O Fórum reúne um leque amplo, plural e heterogêneo de iniciativas de economia solidária e
de agências de apoio e fomento e tornou-se o centro político do programa da Prefeitura.
93
O mesmo ocorre, com mais nitidez ainda, na ação da Prefeitura Municipal de Campinas, que
não está em foco neste trabalho.
94
Conforme caderno “Oportunidade Solidária”, material de divulgação publicitária do programa
da SDTS-PMSP.
124
economia solidária e da ação política da esquerda nesse âmbito, na conjuntura
atual. Aliás, mais claramente, denotam perspectivas diferentes em relação ao
papel do Estado e de suas políticas econômicas na conjuntura específica de
desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Não nos deteremos aqui sobre esta questão. Até porque este tema, é claro,
não está tratado nos documentos oficiais das secretarias, e precisaríamos
recorrer à análise de discurso para sustentar nossa afirmação. Nos
contentaremos apenas, então, em apontar a existência das diferenças, em
hipótese.
Mas, enfim, a importância dessa afirmação tem a ver com o formato dos
programas em execução. Explicaremos.
125
Duas estratégias incompletas
Ocorre que o público alvo dos programas é composto pelo extrato populacional
mais frágil sob todos os pontos de vista: são os deserdados do capital, do
conhecimento e do poder. São pessoas que precisam resolver o problema da
sua alimentação no dia seguinte, sempre. Que têm muito pouca familiaridade
com lápis e papel, que dirá com textos e livros. E cuja capacidade de
aprendizagem está diretamente ligada à experiência prática imediata dos
conhecimentos adquiridos. Mas ainda não é só: sua cultura é a cultura da
subordinação, do clientelismo, do assalariamento, da desproteção, do
individualismo. Não é a cultura da coletividade, da solidariedade. Por fim: as
condições de alienação em que se produz e reproduz seu cotidiano, está longe
de permitir-lhe a compreensão dos adversários externos que terá de enfrentar:
a concorrência selvagem do mercado, a perseguição das instituições
controladas e/ou condicionadas pelo grande capital, a ausência de apoios
institucionais eficazes etc. etc.
Vale aqui a máxima construída pela experiência das incubadoras que diz haver
dois pilares fundamentais da construção de iniciativas de economia solidária:
viabilidade econômica e solidariedade interna. A primeira é construída a partir
de condições concretas: viabilidade de mercado, conhecimento técnico
profissional adequado em produção, gestão e comercialização, acesso a
crédito etc. A segunda é resultado de uma complexa construção subjetiva, que
envolve confiança mútua, emulação permanente, espírito comunitário,
construção coletiva de planos futuros, repartição dos sonhos etc.
126
3. para além de tudo previsto na letra “c”, o governo propicia, aos agricultores,
formas coletivas de organização, que potencializem a escala de sua
produção e sua competitividade no mercado.
127
estabelecimento de uma iniciativa, a abstração da sala de aula, quando
colocada em funcionamento prático – por mais preciso que tenha sido a
utilização dos métodos da educação popular e de jovens e adultos –, necessita
de ajustes, de correções, de ações concretas a partir de conhecimento técnico
com mais acúmulo e mais experiência.
Infelizmente, uma discussão como a proposta pelo título desta seção não
deveria ser objeto de umas poucas páginas de um “esboço de artigo”. Menos
ainda, sem realizarmos a estratégica discussão sobre os limites e as
possibilidades da economia solidária na conjuntura atual. Ainda assim, não
poderíamos nos furtar de pontuar alguns elementos que permitam uma reflexão
mais apurada do tema, que permitam explicitar hipóteses, e assim permitam ao
leitor do texto uma posição crítica em relação às nossas observações.
Os Objetivos Perseguidos
128
economia solidária (recordando: ação coletiva, abolição do assalariamento,
autogestão e inserção cidadã).
Além disso, é sempre preciso não perder de vista a tipologia do público a que
se destina a política pública e garantir um processo de avaliação permanente
por todos os atores envolvidos: grupos das iniciativas (público alvo), agentes
governamentais, movimentos sociais, agentes executores. A experiência do
Fórum de Economia Solidária, incorporada pelo Comitê de Gestão da SDTS de
São Paulo, é um ótimo exemplo disso.
Um Método Adequado
Justamente por isto, o modelo dos programas deveria estar mais próximo
daquele das incubadoras de empresas, que dos cursos de qualificação
profissional. Em outras palavras, é necessário construir incubadoras de
cooperativas e não programas de formação. A incubadora é o próprio programa
95
No caso dos programas da SDTS-SP, todos os programas de formação garantem bolsas em
dinheiro (de valores um pouco superiores ao salário mínimo) aos participantes.
129
de formação, diferenciado e adequado para esse caso. Poder-se-ia questionar
se isto não tornaria inviável financeiramente o programa, mas procuraremos
demonstrar, logo abaixo, que não apenas não oneraria os cofres públicos, mas
garantiria uma eficácia muito superior ao programa, mesmo para uma política
de massificação de sua execução.
130
O trabalho da Anteag no Rio Grande do Sul era fundamentalmente distinto. Ao
receber demandas, os monitores tratavam de construir um processo de
familiarização entre os grupos demandantes e a idéia da economia solidária,
avaliando as reais possibilidades do grupo em torno de sua auto-organização:
coesão interna, existência de lideranças ativas, espaço democrático de
discussão etc. Havia uma intervenção que insistia na relação entre benefícios e
riscos de um empreendimento, buscando preparar os grupos para as
vicissitudes do processo.
As Agências Executoras
96
Talvez não fosse mesmo desejável isto, uma vez que a dinâmica do programa exige um tipo
de postura desalienada que nem sempre é compatível com a estrutura burocrática do
funcionalismo público. Ainda assim, isto deve ser objeto de avaliação dos dirigentes.
131
2. possua a diversificação técnica necessária para capacitar os cooperados
aos fundamentos nas áreas de conhecimento necessárias para o
funcionamento de iniciativas de economia solidária: gestão democrática e
participativa; dinâmicas de grupo fundadas na solidariedade; direito do
trabalho, comercial e civil; administração e engenharia de produção;
contabilidade; fluxo de comunicação interna; propaganda e marketing;
conhecimentos especializados no ramo específico de trabalho da iniciativa;
formação política; elevação da escolaridade formal; aperfeiçoamento
tecnológico do empreendimento.
97
A Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho – Unitrabalho, abriga o
Programa “Rede de Incubadoras Universitárias de Cooperativas Populares”, da qual fazem
parte 15 incubadoras de universidades do Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil. Os resultados
mais expressivos, em número de incubações, são da UFRJ, USP, UFC e Unisinos. Além disso,
como já foi citado, a incubadora da UCPel realiza um projeto piloto em parceria com a Anteag.
Entretanto, não há uma metodologia unificada, há problemas de articulação interna e os
resultados são dispares entre as incubadoras.
132
2. na primeira fase (aproximação), a incubadora avalia as condições subjetivas
de funcionamento do grupo e a viabilidade econômica dos negócios
sugeridos, além de trabalhar internamente o grupo em função dos limites e
das possibilidades das iniciativas;
O Financiamento do Programa
Não nos parece, porém, que a alteração de método proposta possa redundar
diretamente em acréscimo de custos no programa, embora certamente seus
resultados fossem superiores. Cada equipe de técnicos (6 a 8), se bem
coordenada e atendendo empreendimentos geograficamente próximos, pode
atender de 5 a 7 cooperativas, atuando em jornada de dois turnos.
98
No caso das incubadoras universitárias, a composição desse corpo de técnicos varia
conforme cada incubadora. Em algumas, ele é formado por técnicos contratados pelo projeto e
em outras é composto por estudantes-estagiários. As equipes da UCPel, por exemplo, são
compostas por estudantes dos cursos de administração, contabilidade, direito, relações
públicas, serviço social, psicologia, pedagogia e da área técnica do ramo da cooperativa
(ecologia, ou engenharia, ou farmácia e bioquímica etc.).
133
Mas o mais importante é compararmos os custos de um programa hipotético
como este em relação aos investimentos e resultados de programas como o
Planfor/FAT, que despende cerca de R$ 500 milhões por ano em treinamentos
e que tem sido objeto de crítica permanente de todos os avaliadores
responsáveis.
As Avaliações
134
Por fim, a dinâmica de avaliação dos programas deve ser repensada longe da
metodologia de avaliação que vem sendo empregada recorrentemente pelos
governos da União Européia e adotados como modelo pelo Brasil após o
advento do atual governo.
Conclusão
Por fim, é sempre necessário lembrar que tudo é processo, que tudo é
aprendizado e que o melhor debate é aquele em que todos ganham.
“Que os meus ideais sejam tanto mais fortes quanto maiores forem os desafios, mesmo
que precise transpor obstáculos aparentemente instransponíveis. Porque metade de mim é
feita de sonhos e a outra metade é de lutas.”
V.M
135
Referências Bibliográficas
136
ECONOMIA SOLIDÁRIA
VOLUME 2
ÍNDICE
Paul Singer
1.1. O que é?
A empresa solidária nega a separação entre trabalho e posse dos meios de produção,
que é reconhecidamente a base do capitalismo. A empresa capitalista pertence aos
investidores, aos que forneceram o dinheiro para adquirir os meios de produção e é por
isso que sua única finalidade é dar lucro a eles, o maior lucro possível em relação ao
capital investido. O poder de mando, na empresa capitalista, está concentrado
totalmente (ao menos em termos ideais) nas mãos dos capitalistas ou dos gerentes por
eles contratados.
O capital da empresa solidária é possuído pelos que nela trabalham e apenas por eles.
Trabalho e capital estão fundidos porque todos os que trabalham são proprietários da
empresa e não há proprietários que não trabalhem na empresa. E a propriedade da
empresa é dividida por igual entre todos os trabalhadores, para que todos tenham o
mesmo poder de decisão sobre ela. Empresas solidárias são, em geral, administradas
por sócios eleitos para a função e que se pautam pelas diretrizes aprovadas em
assembléias gerais ou, quando a empresa é grande demais, em conselhos de
delegados eleitos por todos os trabalhadores.
Muitas empresas que nasceram como solidárias acabam por se adaptar ao capitalismo
e por isso deixam de ser solidárias. O caso mais notório foi o das cooperativas de
consumo, que alcançaram grande importância na Europa, e que optaram por assalariar
os seus trabalhadores e administradores. Esta decisão provocou viva resistência por
parte dos cooperadores mais antigos. O conflito foi travado em relação às cooperativas
de produção criadas pelas cooperativas de consumo e sobretudo pela grande central
cooperativa atacadista inglesa, que abastecia as demais. Os trabalhadores destas
indústrias cooperativas tinham participação no capital, nas sobras e nas instâncias
diretivas, além de dificilmente perderem o trabalho, mesmo em épocas de crise. Aos
olhos dos demais trabalhadores, associados das cooperativas de consumo e portanto
«donos» das cooperativas de produção, os que trabalhavam nelas estavam sendo
privilegiados em relação à condição deles, de meros assalariados (Cole, 1944: Cap.
IX).
A equipe que melhor desenvolve esta tecnologia tem sua origem na antiga Secretaria
de Formação do Sindicato dos Químicos de São Paulo, onde tinha por missão agir
dentro das empresas «conscientizando os trabalhadores, avaliando a sociedade em
seu conjunto e os políticos, a partir do que representavam do ponto de vista dos
interesses da classe dominante nacional e internacional» (Anteag, 2000: 15). Em 1991,
muda a diretoria do Sindicato dos Químicos e a Secretaria de Formação é fechada.
Por surpreendente que seja, a grande maioria das tentativas de transformar firmas
meio ou inteiramente falidas em empresas solidárias tem tido sucesso. Ele se explica
em primeiro lugar pelos sacrifícios feitos pelos cooperadores, que se dispõem a
trabalhar durante meses por ganhos mínimos, algumas vezes apenas em troca de
cestas básicas (conjunto padronizado de alimentos que devem suprir as necessidades
essenciais duma família por determinado período). Mas também pela enorme
dedicação e amor ao trabalho não mais alienado, do que resultam aumentos
inesperados de produtividade e grande redução de perdas e desperdícios. E finalmente
pelo aprendizado por parte dos novos administradores das técnicas e manhas da
gestão de comprar e vender, de receber e dar crédito, de inovar produtos e processos
e de tecer relações solidárias com outras autogestões.
Estes sindicatos foram o dos Metalúrgicos do ABC e dos Químicos do ABC. O dos
Metalúrgicos é o mais poderoso, pois representa os trabalhadores da indústria
automobilística, que até recentemente concentrava a maioria das montadoras em São
Bernardo do Campo, com numerosas fábricas de componentes localizadas nos
municípios vizinhos. Foi o Sindicato de Metalúrgicos que organizou em 1978, em pleno
regime militar, uma greve com ocupação da fábrica que surpreendentemente acabou
não sendo reprimida, o que foi o sinal de que a partir de então o direito de greve
voltava a ter vigência no Brasil. O que desencadeou enorme vaga de greves que
atingiu o país inteiro e deu fama nacional ao chamado «novo sindicalismo», do qual
Lula se tornou a figura emblemática.
Enquanto se davam estes avanços no plano macro, a crise na Conforja, a maior forjaria
do país, localizada em Diadema, ensejaria, a partir de 1996, o envolvimento direto do
sindicato numa grande operação de resgate de postos de trabalho. Em seguida, o
sindicato se engajaria em outras operações semelhantes: a transformação da Nichiden
em Coopertronic, da Cervin em Uniwídia, da formação da Cootrame pelos
trabalhadores demitidos da Nordon, a transformação da Olan - uma empresa têxtil,
portanto não pertencente à categoria metalúrgica - em Cooperautex e da KWCA em
Metalcooper e Fibercoop.
Na medida que o sindicato foi dando apoio a todas estas cooperativas, a complexidade
da tarefa se tornou patente. Em Fevereiro de 1998, um seminário interno realizado pelo
sindicato concluiu que era necessário proporcionar aos novos cooperadores
informação, formação e capacitação para a condução do negócio. Esta necessidade
advém também do fato de que, nas referidas cooperativas, a maioria dos trabalhadores
cooperativados é constituída de ex-operários, de baixa ou média qualificação e
portanto com menores possibilidades de recolocação no mercado de trabalho. Ao
contrário, os profissionais que atuaram em cargos de chefia ou administração, nas
antigas empresas fechadas/falidas, buscam a sua recolocação no mercado de trabalho
ou a criação de outros negócios independentes, em vez de participar nestas
cooperativas (Oda, 2000: 98).
O que não deveria surpreender, pois técnicos e gerentes constituíam a elite dirigente
das empresas que fecharam ou faliram e é apenas natural que a maioria deles descreia
da autogestão, convicta que apenas formas autoritárias e hierárquicas de gestão
podem ser eficientes. Para eles, entrar numa cooperativa eqüivale a renunciar a poder,
status e privilégios para se igualar aos demais cooperadores, apesar destes terem
muito menos «méritos» do que eles. Não obstante, há casos (como por ex. no da
Conforja, como veremos) em que engenheiros e ex-diretores não apenas aderem a
cooperativas como incorporam os valores da autogestão e se empenham em torná-los
realidade. Assumem posições de liderança e se frustram pela persistência da
mentalidade de «empregados» entre muitos sócios menos qualificados da cooperativa.
Uma peça-chave no projeto do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em relação às
cooperativas, tendo como referência as experiências internacionais, é a constituição de
uma associação a União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo
(Unisol Cooperativas). Esta entidade, que foi politicamente lançada durante o
encerramento do 3º Congresso dos Metalúrgicos do ABC, tem fortes vínculos com o
movimento sindical, com partidos políticos e com outras entidades da sociedade civil
(Oda, 2000: 102).
É interessante observar que o curto período (cerca de 2 anos) em que funcionou a co-
gestão foi decisivo para convencer a liderança dos trabalhadores de que uma
cooperativa de produção que sucedesse a Conforja teria reais possibilidades de
reabilitá-la. A co-gestão cumpriu um papel importante, pois o acesso às informações
possibilitou que os trabalhadores que integravam a ex-Assecon passassem a
compreender os processos administrativos, financeiros, comerciais e produtivos, além
de angariarem dos demais trabalhadores o respeito como potenciais líderes.
Apesar da maioria dos trabalhadores ser favorável à fundação duma cooperativa, tendo
lançado manifesto neste sentido em Outubro de 1997, ela não ocorreu então porque
era demasiado o receio de romper o vínculo empregatício e renunciar ao direito a
salário, aposentadoria, férias, 13º salário, etc. ainda que estes benefícios não
estivessem sendo pagos integralmente. O manifesto proclamava a confiança dos
trabalhadores de serem «capazes de conduzir uma empresa de tal forma que o parque
fabril da Conforja não encerre suas atividades: os prédios não fechem, as máquinas
não parem» (Oda, 2001: 77). Mas, a confiança não era naquele momento suficiente
para que os empregados da empresa se dispusessem a atravessar o Rubicon e se
tornassem cooperadores.
A crise da empresa prosseguiu durante mais alguns meses, até que um setor da
fábrica, o de tratamento térmico conseguiu romper a inércia. Este setor contava com
uma clientela externa para os seus serviços, tornando-o financeiramente independente
da crise na produção de forjados, laminados, tubos e conexões. Um grupo de ex-
integrantes da Assecon preparou a formação da cooperativa, inclusive consultando os
clientes se continuariam comprando serviços depois da passagem da gestão aos
trabalhadores. Como o resultado da consulta foi positivo, as últimas dúvidas puderam
ser superadas, embora com muita dificuldade.
A Coopertratt assumiu a gestão dos negócios a seu cargo e obteve muito rapidamente
bons resultados econômicos, refletidos na retirada dos sócios, que já no segundo mês
foi «cheia», ou seja, o fluxo de caixa permitiu que os trabalhadores recebessem
integralmente a remuneração média, que tinham antes da crise da empresa. Quando
estes fatos se tornaram conhecidos pelos outros trabalhadores, eles também criaram
ânimo para fundar suas cooperativas. Os integrantes da ex-Assecon planejaram formar
mais três cooperativas de produção, a partir das unidades de negócios da empresa, e
duas que prestariam serviços às de produção: uma de engenharia, manutenção e
ferramentaria e outra de logística e comercial. Mas somente as primeiras três foram
formadas (entre Março e Abril de 1998): Cooperlafe (Laminação de Anéis e Forjados
Especiais); Coopercon (Conexões Tubulares) e Cooperfor (Forjaria).
Mas nem todos os empregados administrativos e técnicos fizeram esta opção. Vários
entraram em cooperativas por afinidade com suas lideranças, porque sua atividade
estava ligada a uma delas ou para suprir alguma lacuna, etc.. Em Maio de 1998,
quando as 4 cooperativas tomaram o lugar da Conforja, esta última tinha 449
empregados, dos quais 269 se tornaram cooperadores. Os 180 restantes (40% do
total) preferiram deixar o empreendimento. Os primeiros eram os «demitidos internos»
e os últimos, os «demitidos externos».
Com a formação das 4 cooperativas, todo capital físico da Conforja é arrendado, o que
exige um novo contrato. Do faturamento líquido, por faixa de valores, haveria as
seguintes deduções: de 3,5% a 4,5% para a conta da Conforja; 3,5% para as verbas
rescisórias dos demitidos internos e de 5,5% a 7,5% para os demitidos externos.
Mesmo os sócios das cooperativas mantêm seus direitos a créditos individualmente
diferenciados, o que significa que uma parcela de 3,5% da receita gerada por todos os
cooperados se destina a pagar direitos proporcionais à antigüidade e outras
circunstâncias da atividade passada, realizada por cada um na Conforja. E uma parcela
quase duas vezes maior da mesma receita se destina a pagar os direitos dos
trabalhadores que optaram por deixar a empresa.
De uma forma geral, o desempenho econômico das cooperativas em 1998 e 1999 foi
bom, dando esperança que a crise poderia ser superada. A receita operacional bruta foi
de 5,4 milhões de reais em 1998 e 9,6 milhões em 1999, sendo o custo com
cooperadores de 1,5 milhão em 1998 e 2,9 milhões em 1999. É preciso lembrar que o
exercício de 1998 não cobre todo o ano. Finalmente, as sobras das 4 cooperativas
foram de 300 mil reais em 1998 e 209 mil reais em 1999. A este respeito o
desempenho das cooperativas foi bastante diferente: as sobras da Coopertratt
dobraram, passando de 131,5 mil reais em 1998 para 260,4 mil reais em 1999, a
Cooperlafe sofreu pequena diminuição das sobras (116,8 mil em 1998 e 97,9 mil em
1999) ao passo que as outras duas tiveram prejuízos em 1999, a Coopercon de 39,5
mil reais e a Cooperfor de 109,8 mil reais.
Apesar das óbvias dificuldades que algumas das cooperativas enfrentam, os sócios
têm atingido o seu objetivo imediato, qual seja preservar seus postos de trabalho e
alcançar remunerações compatíveis com o trabalho que realizam. A informação
disponível a este respeito refere-se à Cooperlaf, onde a retirada média em Julho de
2000 era de R$ 1.094,86, que se compara favoravelmente com o salário médio do
metalúrgico do ABC que era então de R$ 1.051,63. (Oda, 2001: 111) Considerando-se
a situação desesperadora da Conforja, que levou afinal a sua falência, é provável que o
desempenho econômico das cooperativas deva ser considerado uma melhora, que
com o passar do tempo deverá se acentuar.
Apesar dos sinais de que a autogestão é uma realidade, em alguma medida, são os
coordenadores que se queixam da falta de participação e de iniciativa dos sócios.
Segundo o coordenador de qualidade da Cooperlafe, «não conseguimos mudar a
mentalidade dos trabalhadores, [pois] eles ainda são muito dependentes de um
patrão». O presidente da Cooperfor acha que «muitos sócios se acostumaram e
continuam trabalhando como ex-empregados». Para o coordenador geral da
Coopertratt, «a ‘mudança de filosofia’ [...] só ocorrerá mediante a participação deles em
cursos técnicos e em cursos sobre cooperativismo». Para este coordenador, estes
cursos proporcionariam «uma maior autonomia para a tomada de decisões sobre a
produção, além de possibilitar aos sócios pensarem no negócio estrategicamente e não
no curto prazo» (Oda, 2001: 116).
A luta pela terra não é nova no Brasil. Fortemente reprimida durante grande parte do
regime militar, ela é gradualmente retomada quando se dá a abertura do regime.
Começam de novo ocupações de terras de latifúndios e destas experiências surge o
MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). De acordo com o próprio
movimento, em sua fase inicial (1979-84),
Pela primeira vez formulam-se linhas políticas para a organização dos assentados e
para a organização da produção. [...] Surge o desafio de fazer uma produção que
envolvesse a subsistência e o mercado. O problema da produção passava a ser tão
importante como ocupar. [...] Percebeu-se que os pequenos coletivos e as grandes
associações não conseguiam fazer avançar a produção, ora porque eram muito
pequenas, ora por não se guiarem por critérios econômicos (CONCRAB, 1998: 29).
A CPA foi inspirada no modelo de Cuba, em que a cooperativa tinha pouca autonomia
face ao Partido-Estado e se enquadrava no planejamento nacional. Em poucos anos
ficou claro que, no Brasil, este tipo de cooperativa não era compatível com as
aspirações da grande maioria dos assentados. Somente uma minoria politicamente
convicta aderiu com entusiasmo às CPAs e persiste nelas. Já em 1993, o seu fracasso
ficou evidente e começou a ser reconhecido. Em várias CPAs registraram-se conflitos
seguidos de abandono por grande parte dos cooperadores.
A CPA, não obstante a crise pela qual passa, se mostra, enquanto forma de organizar
a economia nos assentamentos, superior à pequena propriedade:
Nas CPAs, criaram-se creches, refeitórios coletivos, possibilitando a participação das
mulheres na produção. [...] A integração com grandes agroindústrias, opção e
condição de algumas cooperativas, possibilitou o acesso ao capital e ao
conhecimento e qualificação da mão de obra dos agricultores. A capitalização das
CPAs leva os assentados das CPAs estarem em média com renda maior que os
individuais e a capitalização é em média 10% superior. O padrão de vida é superior
na maioria dos lugares ao de muitas famílias que vivem empregadas na cidade,
considerando a produção e renda monetária. É em média também superior aos
posseiros, meeiros e até grande parcela de pequenos agricultores que ainda resistem
no campo (CONCRAB, 1999: 24-25).
As CPAs revelaram de início graves deficiências administrativas e técnicas, dada a
pouca formação nestas matérias dos assentados. Para remediar esta carência, criou-
se o Curso Técnico em Administração de Cooperativas, em Veranópolis (RS), tendo-se
iniciado a primeira turma em Junho de 1993. Seis anos depois já tinham se formado
500 técnicos em cooperativismo, em nível de segundo grau. Tudo leva a crer que, com
a paulatina incorporação destes técnicos nas cooperativas de produção e de
comercialização, o desempenho administrativo e técnico deve estar melhorando.
O fracasso das CPAs foi causado possivelmente porque a maioria dos assentados
prefere a pequena produção de mercadorias, mesmo que ela resulte em menor padrão
de vida e maior risco, dada a grande oscilação dos preços dos produtos agrícolas. Nas
cooperativas que se formam a partir da crise de empresas industriais, os associados
sempre trabalharam coletivamente sob o comando do capital, o que os deixou
conscientes de que dividir o empreendimento em pequenas oficinas individuais seria
pouco factível e uma receita segura de fracasso econômico. Além disso, não têm
dificuldade de avaliar a contribuição de cada um ao produto e portanto de definir regras
de repartição entre eles do rendimento obtido.
Mas o MST procura evitar que o assentamento se divida entre os que são associados
de CPAs ou CPSs e os que trabalham isoladamente em seus lotes. O Sistema
Cooperativista dos Assentados [SCA] pretende abranger todos os assentados,
inclusive os individuais. Através dele, o MST procura dar aos assentamentos uma
estruturação democrática, em que a economia solidária possa avançar na medida em
que mais e mais assentados percebam que a cooperação vale a pena e oferece menos
riscos que a atividade individual isolada.
Para o MST o que importa é que todos os assentados participem de uma experiência
de cooperação, rompendo assim com o isolamento. Pois a cooperação tem como
objetivo principal o desenvolvimento da produção. Ela visa contribuir com o avanço da
organização da produção em vista da melhoria da qualidade de vida das famílias
assentadas. Uns podem apenas trocar dias de serviço. Outros podem comercializar em
conjunto. Outros podem ter uma associação de máquinas. Outros podem ter alguma
linha de produção em comum. Outros podem estar em grupos coletivos. Outros podem
estar ligados a uma cooperativa. Outros estão em uma cooperativa totalmente coletiva
(CONCRAB, 1998: 50).
3.1. Abapan
Três assentamentos diferentes foram estudados por Maria Antônia de Souza (1999):
Abapan, Novo Paraíso e Santa Maria. O primeiro é o mais antigo, surgiu em 1985 e
nele a posse da terra é totalmente individual. As famílias são provenientes do norte e
do oeste do Paraná. O MST sugeriu que elas se organizassem por grupos da mesma
procedência. Há três associações.
O presidente de uma das associações nos relata que a segunda associação surgiu a
partir de divergências no interior da primeira, pois os trabalhadores tinham objetivos
diferentes, tanto em termos do tempo a ser destinado ao trabalho, quanto ao tipo de
produto e o número de membros da família a se envolver nas atividades. Um outro
grupo de pessoas que não estava organizado, tendo observado o trabalho das outras
duas associações, decidiu formar uma terceira, onde o objetivo é sempre a venda de
produtos em conjunto, assim como a elaboração de projetos para obtenção de créditos
agrícolas (Souza, 1999: 140).
Em Abapan, o trabalho é realizado pela família em seu lote individual, o que permite
conservar a divisão tradicional de trabalho e de autoridade entre os sexos. A autoridade
paterna tende a predominar. Mas, como pequenos agricultores autônomos, os
assentados ficam inferiorizados na venda de seus produtos e impossibilitados de
conseguir créditos e de adquirir equipamentos de maior porte e valor. Para superar
estes óbices, procuram se associar, mas isso implica um preço: perda de autonomia,
necessidade de coordenar o tempo de trabalho em tarefas comuns e que tipo de
produto as famílias vão produzir, além de conciliar o trabalho de membros das famílias
para a associação com o realizado em suas unidades individuais. As divergências a
respeito destes assuntos levaram à cisão da primeira associação e o desejo de
preservar alguma autonomia induziu à formação duma terceira. Cada associação tem
em média 13 famílias, um número pequeno que debilita as vantagens da associação
mas provavelmente exprime o máximo de renúncia à autonomia a que os assentados
se dispõem.
Era muita mudança de uma vez só, sobretudo se proposta de cima para baixo e de fora
para dentro. Na fundação da cooperativa estavam presentes, além dos associados de
dois assentamentos, representantes do Partido dos Trabalhadores, vereadores e
deputado estadual, sindicato de trabalhadores rurais de Castro e membros da direção
estadual do MST. Discursaram representantes da Central Cooperativista dos
Assentamentos, do MST e o agrônomo da região, que conduziu a assembléia. O
primeiro enfatizou que «serão os ‘pequenos’ que irão dar direção à cooperativa». O
agrônomo, entre outras considerações, achou que devia advertir que a cooperativa
«não vai enriquecer ninguém, não vai melhorar se o grupo não quiser» (Souza, 1999:
141-142). A impressão que o relato dá é que a cooperativa é uma idéia dos assessores
e apoiadores externos, que, com as melhores intenções, propõem a reorganização total
do assentamento visando a avanços técnicos e econômicos. Só que a proposta ignora
a enorme dificuldade das famílias assentadas de se associarem e empreenderem
atividades em comum. O fato da cooperativa não ter saído do papel pode muito bem
ser devido à resistência passiva dos principais interessados, que sem ousar discordar
abertamente, resolveram «ficar esperando pelas decisões da direção».
O segundo assentamento estudado por Souza (1999) é o de Novo Paraíso, cuja área
era grilada. Sabendo disso, o MST encaminhou uma carta ao assentamento Ouro
Verde no município de Cantagalo, onde um grande número de famílias ocupava uma
área demasiado pequena, convocando pessoas para a referida área irregular, que
formava o imóvel Tigre. 15 famílias se deslocaram para lá e encontraram outras 27
famílias vindas de Inácio Martins e que já haviam formado a Cooproserp (Cooperativa
de Produção e Serviços de Pitanga). A junção dos dois grupos resultou num total de 42
famílias associadas à cooperativa.
O período entre 1989 e 1992 representou três anos de acampamento na área, vivendo
sob condições precárias e com constantes ameaças de despejo, doenças e escassez
de alimentos. Ainda em 1989, cinco famílias desistem da proposta de coletivização e
abandonam o acampamento. [...] Em 1990, 18 famílias abandonam a proposta da
COOPROSERP e se mudam para outro local, ainda dentro do mesmo assentamento e,
em seguida, realizam a divisão de sua parte do assentamento em lotes individuais,
organizando o trabalho a partir da unidade familiar (Sizanoski, 1998: 48).
De uma forma geral, os depoimentos colhidos pelas duas pesquisas junto a assentados
que permaneceram na cooperativa e junto aos que a deixaram deixam entrever três
motivações principais para o abandono: 1. O magro retorno econômico a um esforço de
investimento relativamente grande. Muitos depoimentos falam da frustração com o
ganho insuficiente mas reconhecem o imediatismo dos que desistem, pois é preciso
mais tempo para colher os frutos. 2. O descontentamento com a falta de incentivos aos
que trabalham mais e produzem melhor. As retiradas são calculadas pelo número de
horas trabalhadas, sem distinguir diferenças de esforço nem de resultado. Isso leva
alguns a «amolecer o corpo» primeiro e depois optar pelo lote individual, onde esforço
e produtividade não são compartilhados e nem os ganhos uniformizados pela média. 3.
Insatisfação com o papel do trabalho familiar no coletivo: só adultos são sócios e
ganham de modo que as famílias com filhos pequenos têm de sustentá-los à sua
própria custa; além disso, o pai perde o seu poder de «chefe» da família e esta perde o
poder de decidir sobre sua produção e seu trabalho.
As moradias são organizadas em agrovila, onde cada família possui um lote individual
de 12 x 30 m. Em alguns há hortas e pequenos animais, como galinhas e perus. A
construção das casas assim como alguma melhoria ou reforma, é de responsabilidade
do associado [...] As casas são todas de madeira, a maioria sem forro e algumas sem
assoalho. Contam com energia elétrica e rede de esgoto, mas em apenas uma delas
existe banheiro. A maioria das famílias tem televisão, rádio, geladeira e fogão a gás,
embora o fogão a lenha seja mais utilizado; em apenas uma casa há antena parabólica
e em duas chuveiro elétrico. Apesar de serem ainda rústicas, em geral as casas são
limpas e bem arrumadas (Sizanoski, 1998: 51-52).
Para as 16 crianças de até 6 anos há uma creche, dirigida por duas mães, que
recebem um salário da prefeitura. As 10 crianças de 7 a 14 anos freqüentam uma
escola municipal, perto da cooperativa, que atende também as crianças da
ASTROAGRI. O posto de saúde mais próximo fica em Pitanga, a cerca de 30 km.
Doenças corriqueiras são tratadas com plantas medicinais. «Todas as crianças são
saudáveis e bem alimentadas» (Sizanoski, 1998: 51) Em 1997, a cooperativa distribuiu
R$ 38.000,00 a seus sócios, o que dá em média cerca de um salário mínimo por mês.
O propósito dos cooperadores era tanto econômico quanto político. O regimento interno
Copavi determina como seus objetivos ser uma cooperativa de produção,
comercialização e industrialização em vistas de organizar o trabalho dos seus sócios,
liberar mão de obra para contribuir ao MST e SCA, ser uma organização social de
reivindicação e de luta em favor da reforma agrária e de interesse de seu quadro social,
dar exemplo através dos resultados econômicos e social de que a reforma agrária dá
certo; especialização da mão de obra, garantir a participação nas decisões, execução,
controle e divisão das sobras através da gestão democrática (Souza, 1999: 149).
A deficiência técnica, que parece ter sido geral nas CPAs, tornou-se um impedimento
para a industrialização dos produtos agropecuários. É provável que a qualificação
profissional da nova geração permita superar este problema. Mas, por enquanto,
ressurge o «imediatismo», a impaciência com o retorno dos investimentos, que neste
depoimento adquire conotação política: o ganho modesto pode dar a impressão que o
experimento fracassou, o que seria grave para uma cooperativa que colocou entre seus
objetivos «dar exemplo através dos resultados econômicos e social de que a reforma
agrária dá certo».
Desde a fundação até 1999, 10 das 25 famílias fundadoras deixaram a Copavi. Todos
vieram com o objetivo e a certeza de que o coletivo seria a melhor maneira de
organizar o assentamento. Entretanto, após 6 anos, cerca de 40% das famílias
desistiram do coletivo, optando por formas individuais de trabalho e associativas no
momento da comercialização e compra de equipamentos e insumos agrícolas (Souza,
1999: 150).
Uma maneira encontrada pelo MST para facilitar a integração das famílias no coletivo é
sua organização em «núcleos de família», formados por vizinhos. A agrovila é formada
por fileiras de casas, cada uma dando origem a um núcleo. Este desenvolve leituras,
discute os problemas vivenciados, a prestação de contas, o planejamento das
atividades. «Outro espaço para discussão é o restaurante coletivo. Durante o horário
do café da manhã fazem se consultas às pessoas, encaminhamentos e informes».
Estas modalidades de integração suprem as deficiências das assembléias, feitas
mensalmente, pois, conforme afirma o presidente da cooperativa, «a participação das
pessoas não é o que deveria ser, elas têm dificuldades para discutir, opinar» (Souza,
1999: 149).
3.4. Conclusões
Os três estudos de caso evidenciam as dificuldades de implantar formas avançadas de
cooperação, nos assentamentos orientados pelo MST, tanto por questões culturais - a
preferência da maioria dos assentados pela agricultura familiar, em moldes tradicionais
- como por questões econômicas. As famílias se deixaram convencer da superioridade
das cooperativas de produção pela sua maior facilidade em adquirir equipamentos e
máquinas portadoras de tecnologia avançada. Esperavam que o «sacrifício» de seus
recursos do Procera, cedidos ao fundo comum, resultasse em receitas abundantes, o
que em nenhum dos dois casos - Cooproserpe e Copavi - aconteceu, ao menos nos
primeiros anos de vida das cooperativas. A frustração destas expectativas talvez tenha
sido o mais importante dos motivos para a desistência das famílias que optaram pela
produção individual e comercialização associada.
No interior do MST, a proposta de tais coletivos surge tendo como objetivo central a
mudança da sociedade e do sistema capitalista. [...] No entanto, as formas
idealizadas de coletivos (totalmente coletivos) não estão sendo reproduzidas nos
assentamentos, enquanto que as associações de produção e de comercialização
estão se proliferando. O interessante é questionar o porquê desta ocorrência e qual a
influência do processo de socialização política vivenciada no momento do
acampamento, pela maioria dos assentados. De um lado, conforme depoimentos dos
assentados, estes sentem maior liberdade nos seus lotes individuais, embora saibam
que, para sobreviver, no lote, é necessário estar agrupado. Por outro lado, destacam-
se os fatores sociais e culturais, como influenciadores desta resistência ao coletivo.
Por exemplo, enquanto no coletivo todos trabalham ‘igualmente’, sendo organizados
em setores e coordenações de grupos, nos lotes individuais, quem orienta o trabalho
e as ordens geralmente é o marido ou um filho mais velho ou ainda a esposa, em
alguns casos. No coletivo, a divisão do trabalho e a repartição das sobras é
semelhante ao que ocorre numa empresa e as normas de funcionamento são
aplicadas de acordo com o previsto no regimento interno. Ou seja, os coletivos
exigem uma ruptura sócio-cultural de um paradigma anterior de trabalho e de família.
O ‘novo’ é tido como algo muito diferente do vivido anteriormente, principalmente para
os ex-pequenos agricultores. Geralmente é bastante aceito entre os jovens, cujo
interesse é trabalhar com maquinários e industrialização de produtos. [ênfase minha]
(Souza, 1999: 163-164).
A frase final sublinhada abre a perspectiva de que a aceitação do coletivo por parcela
crescente dos assentados seja só uma questão de tempo.
A Cáritas Brasileira é uma instituição da Igreja Católica, sendo parte da rede de Cáritas
Internacional. Ela tem por fim dar sustentação à ação social da Igreja e está
orgânicamente ligada à CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Tem um
secretariado nacional em Brasília, que coordena uma rede de Cáritas Diocesanas e
Regionais. A Cáritas desenvolve suas atividades com fundos gerados no Brasil pela
Campanha de Solidariedade, que é permanente, e com fundos doados pelas Cáritas e
outras instituições confessionais do 1º Mundo voltadas para a cooperação internacional.
Há que se distinguir nas ações da Cáritas três grandes ênfases [...]: a ênfase
assistencial, a promocional e a da solidariedade libertadora. A ênfase assistencial data
de 1956 [...] a Cáritas encarregou-se de articular as obras sociais de inspiração católica
para promover a distribuição dos donativos e alimentos, especialmente o leite em pó
americano. [...] A ênfase promocional tem início em 1966. As inquietações advindas
das contradições do programa de distribuição de alimentos no contexto do regime
militar instaurado resultam em processo de mudança [...] O lema ‘ensinar a pescar’
contrapunha-se ao ‘dar o peixe’, próprio da fase anterior. Experiências diversificadas de
ações comunitárias do tipo das comunidades eclesiais de base, das associações de
desenvolvimento comunitário, do cooperativismo, dão sustentação prática à reflexão
sobre o desenvolvimento.
Este relato sintetiza a imensa evolução da Igreja Católica duma ação meramente
assistencial a uma postura de crítica ao capitalismo, com a proposição de que a
solidariedade liberta. Ela implica numa tese ousada: a de que os trabalhadores, desde
que se organizem e granjeiem apoio, podem por si só superar a miséria. Uma das
implicações desta tese é que este apoio não tem de ser do Estado, pressuposto geral
de todas as correntes de esquerda até então. A Cáritas passou a apoiar milhares de
Projetos Alternativos Comunitários (PACs) por todo Brasil, desde 1984, contando com
a ajuda da Cáritas Suiça, Miserior, Cebemo, Entraide e Fraternité e Cáritas Alemã.
Esta conclusão deixa patente que um certo número de PACs produtivos urbanos
vingou, inseriu-se na economia urbana e se volta ao mercado em busca de meios para
se tornar competitivo, disputando compradores às empresas capitalistas comparáveis.
É para isso que se sentem desafiados a se capacitar gerencialmente, criar economia
de escala e assim por diante. A tese de que a solidariedade liberta começou a se
comprovar na prática.
A mobilização lograda pela Ação foi desde o seu início muito grande. Em Agosto de
1993, estimava-se que a ACCMV contava com 200 comitês espalhados por todo país.
Este número pulou para mais de 3.000 no mês de Outubro do mesmo ano. (...) A
Campanha toma conta do Brasil: realizam-se espetáculos ao ar livre ou em estádios e
ginásios, com grandes nomes da música popular, objetivando a arrecadação de
alimentos para o Natal (Gohn, 1996: 33).
Nesta região, em que se localiza a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), moram 35 mil
pessoas, parte das quais em 10 favelas formando o Complexo de Manguinhos.
Estando a população favelada em grande parte desempregada, pobre e carente, o
maior empregador dos jovens acabava sendo o narcotráfico. Em 1994, estourou a luta
pelos pontos de tráfico de drogas e de armas e as balas perdidas dos tiroteios
acabaram atingindo a Fiocruz, sobretudo a Escola Nacional de Saúde Público (ENSP),
cujas janelas blindadas até hoje dão um mudo testemunho da ameaça à integridade
física a que alunos e professores estavam expostos.
Esta situação mobilizou os corpos docente e discente da ENSP, que decidiram abrir-se
à comunidade, procurando entender o que ocorria e contribuir para o seu
equacionamento. [...] Uma ampla reunião, reunindo cerca de 80 representantes das
comunidades do Complexo de Manguinhos, selou um acordo de enfrentamento
compartilhado da situação. [...] A primeira iniciativa implementada foi, então, o fomento
à constituição de uma Cooperativa de Trabalho (denominada COOTRAM), no final de
1994, visando colaborar no enfrentamento do desemprego e da pobreza. [...]
Participando desde o seu início do Comitê de Entidades no Combate à Fome e Pela
Vida (COEP), a Fiocruz solicitou o apoio das entidades integrantes do movimento e
recebeu o imediato suporte da Gerência de Cooperativismo do Banco do Brasil para
desenvolver a capacitação em cooperativismo, o que foi realizado pelo Instituto
Superior de Cooperativismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É
relevante se destacar como as condições materiais e de projeto social compartilhado
pelas entidades componentes do COEP foram importantes para impulsionar a iniciativa
da Fiocruz (Buss, 2000).
A Cootram foi contratada pela Fiocruz, que reune uma quantidade ponderável de
instituições de ensino, pesquisa e manufatura de vacinas, para reciclar o lixo e prestar
serviços de jardinagem e limpeza dos prédios do campus de Manguinhos. Além disso,
a Cootram também montou uma oficina de costureiras.
Atingidos frontalmente pela crise do mundo do trabalho, que varre o país na década
dos 90, os sindicatos começam a reagir pontualmente, já que sua prioridade inicial era
proteger os direitos trabalhistas, ameaçados de revogação ou «flexibilização» pelo
governo Collor e seus sucessores. Em todos casos de transformação de empresas
falidas ou em vias de falir em autogestões, o sindicato teve de assumir a liderança do
processo, freqüentemente ao lado da ANTEAG. O êxito de diversas cooperativas
formadas assim, possibilitando a preservação de numerosos postos de trabalho, levou
cada vez mais sindicatos a se empenharem na luta pela criação de novas empresas
solidárias.
A discussão sobre a economia solidária avançou, como visto acima, nos sindicatos do
ABC paulista e também na CUT, a maior e mais combativa central sindical do Brasil.
No final de 1998, a executiva nacional da CUT aprovou a criação dum grupo de
trabalho que iria iniciar as discussões sobre a política da CUT para a economia
solidária. Deste GT foi elaborado um projeto que está sendo desenvolvido em parceria
com a Organização Intereclesiástica para a Cooperação e o Desenvolvimento (ICCO)
da Holanda, a Fundação Unitrabalho e o Departamento Intersindical de Estudos
Sócioeconômicos (DIEESE). Assim foi construído o Projeto de Desenvolvimento
Solidário da CUT. Em linhas gerais, este projeto desencadeou um processo de
discussões em todo o país, culminando em 1999 com um seminário internacional, cujo
objetivo principal foi debater e lançar a Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT
(Magalhães e Todeschini, 2000: 138).
Isso não quer dizer que a resistência à economia solidária no seio da CUT tenha
cessado, mas a maioria tem se manifestado consistentemente a favor duma atuação
cada vez maior da central no apoio aos empreendimentos solidários que trabalhadores
vêm criando pelo Brasil afora. A ADS (Agência de Desenvolvimento Solidário) vem se
dedicando a preencher uma lacuna que é a falta dum sistema de financiamento às
cooperativas autogestionárias. Em colaboração com o Rabobank, um grande banco
holandês possuído e controlado por cooperativas de crédito, e o BNDES, a ADS
desenvolveu um projeto de rede de crédito solidário, formado por numerosas
cooperativas de crédito e por um banco cooperativo, com fôlego para financiar
investimentos de vulto por parte de cooperativas de produção. A realização deste
projeto representará um imenso salto de qualidade no desenvolvimento da economia
solidária em nosso país.
6. Conclusões
O que impele a economia solidária a se difundir com força cada vez maior já não é
mais a demanda das vítimas da crise mas a expansão do conhecimento do que é e a
tecnologia social, econômica e jurídica de implementação da economia solidária.
Centenas de iniciativas, que tendiam antes a ficar isoladas e por isso debilitadas, a
partir dos últimos anos passam a receber a atenção e o apoio de instituições
especializadas como a ANTEAG, MST, Incubadoras, Unisol, ADS e Cáritas, entre
outras. O que este breve relato deixou claro é que a economia solidária já firmou sua
identidade e por causa disso está em condições de se estruturar, em nível local,
regional e nacional.
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AS COOPERATIVAS E A EMANCIPAÇÃO DOS MARGINALIZADOS: ESTUDOS DE
CASO DE DUAS CIDADES NA ÍNDIA
Sharit Bhowmik
Introdução
O ponto de vista de alguns dos primeiros promotores das cooperativas, como Robert
Owen, eram criticados porque, uma vez que viam as cooperativas como uma fonte de
transformação social, acreditavam que o movimento teria sucesso se o capital e o
trabalho cooperassem nesta transformação. Karl Marx, especialmente, era um pouco
crítico em relação a este ponto de vista. Contudo, o próprio Karl Marx não estava
contra a formação de cooperativas de trabalhadores. Com efeito, ele defendia que os
trabalhadores cooperativos podiam desempenhar um importante papel na
emancipação da classe trabalhadora, em relação ao capitalismo, desde que fossem
aliados do movimento trabalhista. A principal contribuição destas instituições reside na
sua habilidade para demonstrar de forma prática que os trabalhadores são capazes de
controlar e gerir os meios de produção. Nas suas instruções aos delegados presentes
no I Congresso da Associação Internacional de Trabalhadores em Genebra, em
Setembro de 1866, ele referiu
existe para colocar pessoas comuns no efectivo controlo dos mecanismos da vida
económica moderna [...] ela tem de dar ao indivíduo, muitas vezes reduzido a um
papel insignificante nessa máquina, uma oportunidade de se manifestar, ser uma voz
nos negócios e destinos da sua cooperativa e ter liberdade para exprimir a sua
opinião» (NCUI, 1969: 20).
A cooperação, nos seus melhores propósitos, vai além da promoção dos interesses
dos membros enquanto indivíduos... pelo contrário, o seu objecto é promover o
progresso e bem estar da humanidade. É este objectivo que torna a sociedade
cooperativa algo diferente de um normal empreendimento económico e justifica estar
a ser testada, não só do ponto de vista dos seus valores morais e sociais que elevam
a vida humana acima do meramente material» (ibidem:10).
Uma parte da população de todas as metrópoles ganha a vida a reciclar o lixo. A estas
pessoas é atribuído o estatuto mais baixo entre os pobres urbanos e economicamente
são os mais pobres entre os pobres. Muitos destes colectores de lixo são mulheres e
crianças. Eles deambulam pelas ruas a pé, procurando lixo, que colocam dentro de
sacos que transportam. Deixam as suas casas ao amanhecer, andando vários
quilómetros todos os dias, para poderem completar a sua recolha ao fim da tarde. Os
seus instrumentos de trabalho compreendem um saco para a recolha e uma vara para
espetar e remexer o lixo. No trabalho correm vários riscos: ficam com cortes e
ferimentos de objectos cortantes e bocados de vidro ou adquirem no lixo alergias na
pele causadas por lixos químicos. Depois de terminada a recolha do dia, os colectores
separam os materiais e vendem-nos aos comerciantes. O que recebem como
pagamento pela recolha é muito pouco, vivendo estas pessoas no limiar da pobreza. A
condição dos colectores nas cidades indianas parece ser pior do que nas suas
homólogas da Colômbia, que se deslocam em carroças puxadas por animais enquanto
procuram lixo reciclável.
Estes colectores de lixo estão de facto a servir as necessidade dos cidadãos pois
enquanto trabalham para sobreviver, estão a limpar o lixo das ruas. Infelizmente, a
polícia e as autoridades municipais não os vêem desta forma. São perseguidos pelas
autoridades urbanas, enfrentam frequentes ameaças e sofrem mesmo agressões por
parte das autoridades. Os sectores mais ricos da cidade consideram-nos um
aborrecimento público e, frequentemente, apresentam queixa contra eles.
Umas das primeiras actividades da SEWA enquanto sindicato foi a organização dos
colectores de lixo. A SEWA sindicalizou estas mulheres para que elas pudessem ser
protegidas da perseguição das autoridades municipais. O sindicato proporcionava aos
seus membros aventais, luvas, sapatos e sacos para a recolha do lixo. No início, foram
recolhidos donativos para fornecer estes artigos. Os aventais e sacos são azuis e têm
escrito SEWA em letras brancas. Essencialmente, esta tornou-se a sua identidade
enquanto membros do sindicato, embora também fossem portadoras do cartão de
membros. Depois de formarem o sindicato, os colectores de lixo passaram a ser menos
perseguidos. Passaram a ter acesso a diversas ruas, onde anteriormente eram
impedidos de estar. A sua identificação como membros da SEWA é a grande
responsável por esta mudança de atitude, uma vez que agora são considerados como
parte de um colectivo.
O passo seguinte por parte dos sindicatos foi encontrar oportunidades alternativas de
emprego, ou salários regulares para estas mulheres. Se uma parte delas pudesse
subsistir com outro tipo de trabalho, os restantes rendimentos subiriam à medida que
as suas recolhas aumentassem. Estas novas actividades podiam ser empreendidas
formando cooperativas entre as mulheres.
Em 1983, a SEWA iniciou a formação de uma cooperativa cuja actividade era limpar
escritórios e aí recolher papel. Esta cooperativa chamava-se Cooperativa Saundariya
Mahila SEWA. Actualmente, esta cooperativa tem cerca de 500 membros e possui
contratos para limpar um grande número de escritórios, instituições académicas e
outros edifícios públicos. Ao mesmo tempo, a cooperativa aceita contratos para
remover o papel velho dos escritórios. A cooperativa paga a estes gabinetes um
montante fixo para que autorizem a recolha de papel.
Cerca de 200 membros da cooperativa estão envolvidos nestas actividades. Estes
membros têm um salário regular pelo seu trabalho. Os lucros da cooperativa são
distribuídos entre todos os seus membros. Mais tarde, em 1999, as cooperativas
enfrentaram alguns problemas porque o governo estatal não renovou os contratos para
a recolha do papel velho dos seus gabinetes. Este facto é mencionado no relatório
anual de 1999 da SEWA. O relatório realça igualmente que a Cooperativa Saundariya
estava optimista relativamente à renovação do seu contrato com os gabinetes
governamentais, num futuro próximo. Isto veio a acontecer após o sindicato e a
cooperativa convencerem, em conjunto, os dirigentes do governo estatal que o acordo
era benéfico para ambas as partes.
Alguns dos colectores de lixo tinham experiência suficiente para cozinharem diferentes
tipos de comida. O sindicato tentou ajudá-los a desenvolverem as suas qualificações
para que pudessem iniciar um empreendimento comercial. Em meados de 1992, um
grupo destas mulheres, patrocinadas pelo Integrated Child Developmente Scheme
(ICDS), começou a fornecer comida para o governo. Este projecto foi iniciado para
ajudar os pobres em áreas urbanas e rurais. O ICDS proporciona mais instrução a
crianças em idade pré-escolar. Ao meio-dia, é dada uma refeição a estas crianças. O
grupo começou a aceitar contratos para catering em recepções. Em 1994, o grupo
formou uma cooperativa, a Sociedade Cooperativa Trupi Nasta Mahila SEWA. A
cooperativa tinha 130 membros, todos antigos colectores de lixo. Os membros
celebraram contratos para fornecer e servir comida em casamentos, recepções
públicas e outros eventos. Ocasionalmente, apenas são contratados para servir a
comida ou para preparar as sobremesas para as recepções. Para além destas
actividades, a cooperativa conseguiu contratos para abrir cantinas e salas de chá em
edifícios de escritórios.
É também de notar que, na Índia, a sociedade se baseia em grupos sociais que estão
posicionados na base da hierarquia. Estes são conhecidos como castas.
Acidentalmente, a palavra casta tem a sua origem na palavra portuguesa casta. A
pertença a uma casta é baseada no nascimento, tal como a posição hierárquica da
casta, que é fixada de acordo com o estatuto da casta em que cada um nasceu. Assim,
mesmo que o estatuto profissional de um indivíduo se modifique, o seu estatuto social
mantêm-se inalterado. Em muitos casos, os colectores de lixo pertencem a castas que
estão mal posicionadas. A natureza do seu trabalho, que inclui recolher lixo reciclável
das ruas e de caixotes do lixo, é olhado como uma ocupação suja pelas castas mais
altas. Estas pessoas desempenham esta actividade porque são muito pobres e não
têm outro meio de subsistência. Deste modo, são social e economicamente oprimidos e
tratados como proscritos pelos habitantes das cidades.
Calcutá foi outrora uma famosa e vibrante metrópole industrial, conhecida pelas suas
fiações e fábricas de construção de máquinas. A partir do final da década de 60, o
cenário modificou-se claramente. A cidade foi testemunha do encerramento de um
grande número de unidades industriais. Durante os anos 80, cerca de 1.500 unidades
industriais cessaram as suas funções. Isto fez com que 1.580.000 trabalhadores se
tornassem excedentários. Várias outras indústrias estão à beira do encerramento.
No meio deste cenário deprimente, encontramos uma ténue esperança num razoável
número de cooperativas de trabalhadores. Identificámos cerca de 20 unidades em
Calcutá e arredores. Basicamente, são pequenas ou médias empresas que possuem
entre 20 e um pouco mais de 100 trabalhadores cada. Quatro destes casos serão
objecto da nossa atenção.
É necessário referir alguns elementos relacionados com estes casos, de modo a
possuirmos sobre eles um maior conhecimento. Calcutá é a capital do Estado de
Bengal Oeste, situado na parte Este da Índia. Este Estado é governado por uma
coligação comunista e partidos de esquerda, conhecidos como Letf Front. O maior e
dominante partido político da coligação é o Communist Party of India (Marxist)
(CPI(M)). Esta coligação foi eleita em 1997 e manteve-se no poder até à presente data
(Março de 2001). O maior sindicato do Estado é o Center for Indian Trade Unions
(CITU), que é considerado o sindicato do CPI(M). Em todas as cooperativas de
trabalhadores de Calcutá, incluindo os quatro casos apresentados neste capítulo, os
sindicatos são filiados no CITU.
Situada na área de Cossipure, em Calcutá, a East Bengal River Steam Service and
Enginneering Workers' Industrial Co-operative Society Limited foi criada em 1979. A
companhia original era uma empresa criada nos finais do século XIX. Ela adquiriu uma
empresa naval de sucesso e mais tarde a construção de navios tornou-se uma das
suas maiores actividades. A partir de 1965, por diversas razões, a companhia
evidenciou uma quebra. Alguns dos factores foram externos, relacionados
principalmente com as restrições aos negócios com a então Paquistão Este (agora
Bangladesh), outros devido à gestão interna da companhia. A empresa conseguiu
sobreviver até 1969. As folhas de balanço de 1968-1969 mostravam lucro. A partir daí,
a empresa começou a registar perdas significativas. Em Setembro de 1976, os
proprietários fecharam a empresa, uma vez que as dívidas já não eram contabilizáveis.
A sua mão-de-obra, que em tempos era de 1000 trabalhadores, ficou reduzida a 91
trabalhadores, pois muitos deles saíram para procurarem outro emprego. Os credores
requereram no Tribunal Superior de Calcutá a recuperação da empresa.
Após a eleição da Left Front, o sindicato propôs ao governo estatal que declarasse a
empresa em situação económica difícil e assumisse a sua administração. Em 1978, o
governo estatal enviou uma proposta ao governo central para que este assumisse o
controlo da empresa, mas esta foi rejeitada. Então, o sindicato requereu ao governo
central autorização para gerir a empresa. O pedido foi aceite pelo governo e este
aconselhou o sindicato a formar uma cooperativa de trabalhadores para estes gerirem
a empresa. O Departamento Governamental para a Reconstrução Industrial ajudaria a
financiar o empreendimento. A cooperativa foi registada em Novembro de 1979. Todos
os 91 trabalhadores se tornaram membros. Os líderes locais do CPI(M) e do CITU
auxiliaram os trabalhadores no empreendimento. O secretariado do comité local do
CPI(M) foi o principal apoiante deste empreendimento. O governo estatal aceitou a
proposta do sindicato, principalmente porque o sindicato era filiado no CITU e por
causa do apoio político do CPI(M). Com base na garantia dada pelo governo, a
cooperativa recorreu ao Tribunal Superior, de modo a ser reconhecida a compra da
empresa. O Tribunal concordou e ordenou que um funcionário avaliasse a empresa.
Consequentemente, o preço foi fixado e a cooperativa tomou posse da empresa a 30
de Outubro de 1980. A escritura de venda foi efectuada em 1981. O governo estatal
concordou em conceder um empréstimo à cooperativa para comprar a empresa. A
produção teve início em Dezembro de 1981. Uma garantia de 3.000.000 Rs foi dada
por um banco nacionalizado (depois do governo estatal concordar em ser fiador) e
400,00 Rs foram concedidos para a contratação de recursos humanos. Este montante
era bastante reduzido e não foi possível aos trabalhadores modernizar o equipamento
existente. A cooperativa esperava conseguir um empréstimo de uma instituição
bancária. Com essa finalidade, solicitaram uma garantia ao governo estatal.
Infelizmente, quando abordaram o governo, este recusou-se a honrar o compromisso
efectuado.
A situação era idêntica quando visitei a cooperativa em Junho de 2000. A sua situação
económica era ligeiramente melhor e os trabalhadores recebiam salários mais
elevados. O consultor ajudou-os a conquistarem novos negócios. A amargura gerada
pela falta de apoio do governo aumentou. Contudo, tanto o sindicato como o CPI(M)
apoiavam a cooperativa a nível local. Esta foi a principal razão pela qual os membros
permaneceram no sindicato, apesar das reclamações em relação ao governo liderado
pelo CPI(M). A principal consequência desta situação foi tornar os trabalhadores mais
auto-confiantes. Já não dependiam de entidades externas para resolverem os seus
problemas. Esta foi a maior contribuição da cooperativa -o crescimento da auto-
confiança dos trabalhadores.
A Eastern Type Foundry and Oriental Printing Works Employees' Industrial Cooperative
Society Limited iniciou o seu funcionamento em 1987. A cooperativa tem 42 membros-
trabalhadores. A cooperativa tem no total 51 trabalhadores, dos quais 7 são
trabalhadores administrativos e os restantes operários.
Esta empresa, conhecida como Eastern Type Foundry and Oriental Printing Works, foi
fundada em 1890 e, em 1912, foi constituída como sociedade anónima. A empresa
manufacturava material de impressão para a imprensa escrita. A partir da altura em
que foram introduzidas as impressoras off-set, em muitas partes do mundo, esta
técnica tornou-se obsoleta. Anteriormente, a empresa era uma das melhores do país
nesta área. Os seus produtos difundiram-se por toda a Índia e eram exportados para
outros países, incluindo a China, o Nepal e a as Ilhas Maurícias. Na altura, a sua mão-
de-obra rondava os 500 trabalhadores. Apesar das modificações na tecnologia de
impressão, a empresa conseguiu manter a sua posição, por ser a única nesta área cujo
material era manufacturado. A imprensa escrita do país dependia dela para a obtenção
de lucros. As impressoras eram também conhecidas pela sua alta qualidade e
recebiam encomendas dos editores líderes do mercado.
O governo financiou a iniciativa do sindicato para formar uma cooperativa e esta foi
registada em 1987. Nessa altura, o Tribunal Superior ordenou que a empresa fosse
leiloada, de modo a liquidar as dívidas. O governo estatal comprou a empresa e, em 2
de Dezembro de 1989, esta transformou-se numa cooperativa. O governo contraiu
empréstimos e forneceu matéria-prima para iniciar a produção. Além disso, actuou
como fiador nos empréstimos bancários superiores a 45.000.00 Rs. O State Electricity
Board, um empreendimento do governo estatal, alargou o apoio prestado, trocando
encomendas por equipamento. Na altura de assumir o controlo da cooperativa, os seus
membros descobriram que as máquinas e o equipamento da fábrica estavam
danificados. A cooperativa despendeu uma grande quantia na sua reparação e
manutenção. A produção só teve inicio em 1990, depois de 7 anos de encerramento.
No primeiro ano, a cooperativa registou perdas de 60.000.000 e um rendimento líquido
de 750.000 Rs. A cooperativa conseguiu empregar 300 dos trabalhadores demitidos no
primeiro ano e a outros 100 no segundo ano. O que é notável é que os trabalhadores
puderam regressar à empresa 18 meses depois dos trabalhadores terem assumido o
controlo da cooperativa.
Assim, o capital foi congelado, não sendo possível aceitar mais encomendas e a sua
força de trabalho estava exausta. Simultaneamente, os juros dos empréstimos
contraídos aumentaram. Tal como noutros casos, o governo estatal, que inicialmente
tinha concordado ser o fiador dos empréstimos bancários, recuou. Finalmente, em
1997, a produção foi suspensa, uma vez que não foi possível conseguir mão-de-obra
para executar as encomendas. Os recursos financeiros estavam esgotados e não foi
possível pagar os salários. Muitos dos seus membros abandonaram a cooperativa para
procurarem trabalho noutros locais. A cooperativa ficou com 150 trabalhadores.
Em 1975, a companhia fechou a fábrica, pois não podia pagar os salários aos
trabalhadores. Os 290 trabalhadores ficaram sem trabalho. O seu sindicato tentou que
os proprietários reabrissem a fábrica, ou pagassem aos trabalhadores as
indemnizações devidas, mas não tiveram sucesso. Esta situação manteve-se nos três
anos seguintes. Alguns dos trabalhadores deixaram a empresa em busca de trabalho
noutros sítios. Finalmente, em 1978, os proprietários apelaram ao Tribunal Superior
para obterem permissão para liquidar a companhia.
Inicialmente, os trabalhadores ficaram chocados ao ouvir as notícias. O líder do
sindicato também estava envolvido e sugeriu que os trabalhadores deveriam tentar
gerir a fábrica, formando uma cooperativa. Esta seria uma medida temporária, dado
que o sindicato tentaria persuadir o recém eleito governo da Left Front para assumir o
controlo da companhia. Os 95 trabalhadores que apoiaram o sindicato durante os três
anos em que a companhia esteve encerrada formaram, em conjunto, a cooperativa.
Após registarem a organização, os trabalhadores apelaram ao Tribunal Superior, para
que, ao invés de leiloar a companhia, fosse dada à cooperativa a oportunidade de a
gerir. Ela estava disposta a arrendar a fábrica e a alugar as suas máquinas. Assim, a
cooperativa podia aceitar trabalho, proporcionando alguns rendimentos aos seus
membros empobrecidos. O tribunal concordou com este acordo, realçando, no entanto,
que este estaria sujeito a uma renovação anual. Além disso, esta situação só se
prolongaria até ser encontrada uma alternativa para dispor dos bens da companhia. A
cooperativa funcionou desta forma durante alguns anos.
A única saída que restava à cooperativa era comprar a companhia, mas não possuía
meios para o fazer. Após algumas discussões entre os trabalhadores e os líderes
sindicais locais, chegou-se um consenso, a cooperativa devia comprar a companhia.
Os trabalhadores estavam determinados em reunir o montante necessário para o fazer.
A 2 de Junho de 1985, foi efectuado um requerimento ao Tribunal Superior, solicitando
que os bens da companhia fossem leiloados e fosse dada à cooperativa uma
oportunidade justa para licitar. A cooperativa solicitou que, se a sua licitação fosse
aceite, dever-lhe-ia ser permitido pagar esse montante em instalações. Com base
neste pedido, o Tribunal Superior marcou um leilão para 24 de Janeiro de 1986. Os
membros da cooperativa tentaram economizar o máximo que lhes foi possível, de
modo a conseguirem comprar a cooperativa. Reduziram os seus salários e fizeram
trabalho extra para as poupanças aumentarem. O custo total da compra foi fixado em
Rs. 1.450.000, um montante demasiado alto para a cooperativa. Todavia, o Tribunal
decidiu que se a cooperativa tinha interesse em comprar a companhia, deveria
depositar inicialmente Rs. 463.000, a título de sinal, e o valor total poderia ser pago em
6 meses. O sinal tinha de ser pago duas semanas antes a partir da data do leilão. O
maior problema da cooperativa foi recolher o dinheiro para o sinal. Quando os
membros trabalhadores recorreram ao Tribunal Superior para comprar a companhia,
pensaram que seriam autorizados a pagar o montante total em instalações, a pagar
durante vários anos. Eles não podiam imaginar que o Tribunal ordenaria que o
comprador pagasse uma soma tão elevada. Os fundos da cooperativa estavam
bastante abaixo do montante exigido. No entanto, os trabalhadores estavam
determinados em comprar a companhia e começaram a reunir o dinheiro para o
pagamento do sinal recorrendo a todas as fontes. Eles recorreram também ao Tribunal
para prorrogar o prazo em alguns meses. Os trabalhadores começaram, então, a fazer
um balanço da situação. As economias da cooperativa perfaziam menos de um quarto
do dinheiro do sinal. Os trabalhadores decidiram abdicar dos seus salários durante
alguns dos meses seguintes e com eles contribuírem para o fundo. Quando esta
medida se revelou ineficaz, os trabalhadores decidiram contribuir individualmente com
tudo o que podiam. Houve trabalhadores que contraíram empréstimos pessoais; outros
que empenharam as jóias das suas esposas e alguns que venderam os seus bens
pessoais. Depois de terem juntado, com dificuldade, tudo o que podiam, os
trabalhadores conseguiram finalmente obter uma quantia, que depositaram junto do
Tribunal Superior. Pouco tempo depois, foi permitido à cooperativa tomar conta da
fábrica, com a condição suplementar do montante total ser pago no prazo de 6 meses.
Felizmente, este problema foi resolvido, pois o banco concordou em conceder o
restante montante a título de empréstimo. Deste modo, em Maio de 1986, a
cooperativa tornou-se a proprietária da fábrica.
Os sacrifícios dos trabalhadores, e a sua visão, produziram frutos pouco tempo depois.
A cooperativa cresceu rapidamente. No início de 1992, o número de trabalhadores
cresceu para 110, devido ao aumento do volume de trabalho. O seu volume de
negócios cresceu 10 vezes. Os salários dos trabalhadores também cresceram 3 vezes
durante esse período. Em 2000, ganhavam mais do que os trabalhadores de outras
fábricas dessa área.
Após o apoio inicial, o governo estatal mostrou-se indiferente face ao destino das
cooperativas. Isto resultou das mudanças nas orientações do governo da Left Front.
Em 1977, quando esta foi eleita pela primeira vez, adoptou uma política pro-laboral. A
partir de 1987, quando foi eleita pela terceira vez, a sua postura alterou-se. Então, o
governo tentou criar no Estado uma atmosfera propícia ao investimento estrangeiro.
Neste processo, os interesses do trabalho foram postos de lado. Os trabalhadores das
cooperativas foram vítimas das novas políticas governamentais. Isto criou um
sentimento de amargura entre os trabalhadores, bem como entre os líderes locais dos
sindicatos que apoiavam as cooperativas nesta área. Como foi referido anteriormente,
os sindicatos, dos quais os trabalhadores são membros, são filiados na CITU e os seus
líderes são também líderes locais do CPI(M). Estes líderes foram a maior fonte de
encorajamento dos trabalhadores, apesar da falta de apoio que o CPI(M) prestava ao
governo da Left Front.
Para além do apoio do sindicato, outro factor importante para o funcionamento destas
cooperativas foi a sua democracia interna. Nas cooperativas iniciadas pela SEWA, a
democracia não se restringia à eleição dos líderes. O sindicato organizou programas
para os membros das cooperativas, com o objectivo de os treinar para o assumir do
controlo da organização. Posteriormente, descobrimos que os membros ordinários das
duas cooperativas estavam conscientes do funcionamento das suas cooperativas. Eles
participavam activamente nas reuniões regulares realizadas pelo sindicato para
analisar os problemas das cooperativas. O aspecto mais importante destas discussões
é que os pontos de vista dos membros ordinários eram levados a sério e os membros
ordinários eram encorajados a serem críticos quando expressavam a sua opinião ou
apresentavam sugestões.
A corrupção poderia ter sido neutralizada se o sindicato (CITU) tivesse tomado, a nível
estatal, uma posição de resistência a estas práticas. O sindicato assegurou que estas
cooperativas obtinham a preferência prometida pelos governos estatais e pressionou o
Estado para efectuar os pagamentos às cooperativas de forma célere. Infelizmente,
isso não se verificou. Há uma diferença entre o apoio dos líderes locais do CITU às
suas cooperativas e a posição do CITU a nível estatal. De facto, nem o CITU nem o
CPI(M) realçaram as realizações destas cooperativas nas conferências do Estado ou
nos seus relatórios anuais. A sua abordagem surgia como: os trabalhadores
cooperativos podiam ser tolerados, mas não tinham qualquer valor. Esta abordagem é
inoportuna porque, embora o CITU e o CPI(M) proclamassem serem organizações
marxistas, pareciam não ter consciência dos pontos de vista positivos de Marx em
relação aos trabalhadores cooperativos. Por outro lado, o relatório anual da SEWA faz
uma referência especial às realizações e aos problemas das cooperativas que ela
apoiou.
Referências Bibliográficas
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Workers. Deli: Vikas Publishing House.
Bhowmik, Sharit K. (1992), «Worker Co-operatives in the Plantation System: A Study Of
Tribal Tea Plantation Workers in Eastern India», Labour, Capital and Society 25(2).
Montreal.
Bhowmik Sharit K. (1994), «Worker Co-operatives in the Unorganised Sector: An
Alternative Strategy» Sarath Davala (org.), Unprotected Labour in India. Deli:
Fundação Friedrich Ebert.
Marx, K e Engels, F. (1976), Select Works, Primeiro Volume. Moscovo: Progress
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International Co-operative Alliance. Delhi: National Co-operative Union of India.
Rose, Kalima (1995), Where Women are Leaders. Deli: Sage Publications.
SEWA (1999), Self Employyed Womens´s Association 1999. Ahmedabad: Shri Mahila
SEWA Trust.
COMUNIDADE, PROPRIEDADE E GARANTIAS NA ÁFRICA DO SUL RURAL:
OPORTUNIDADES EMANCIPATÓRIAS OU ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
MARGINALIZADAS?2
Heinz Klug
Introdução
2
Texto não editado.
Mesmo que continue a ser tristemente verdade que o mais nítido indicador de pobreza
na África do Sul da viragem do milénio fosse o ser-se negro, mulher e habitante de uma
área rural, o programa de reforma agrária deu origem a algumas oportunidades
interessantes para a criação de vias alternativas para a produção e construção de
comunidades viáveis. Apesar de uma anunciada mudança política, na qual o governo
decidiu contemplar os produtores agricultores negros, em vez das comunidades rurais
empobrecidas, como beneficiários de uma reforma agrária contínua (Karouik, 2000), a
luta pelo acesso à terra tem persistido, forçando o governo a prometer uma reforma
ainda mais ampla e rápida (Mbeki, 2001). Este estudo irá centrar-se no conflito em
torno da dimensão política e institucional destas reformas, em particular sobre a criação
de uma forma legal para o reconhecimento da propriedade comunal que
simultaneamente garanta os direitos de propriedade dos participantes e exija que os
membros desta nova instituição detentora da propriedade adopte formas de
governação internas que sejam, por um lado, democráticas em termos de
procedimentos e, por outro, baseadas nas noções formais de igualdade social e de
sexo.
Apesar dos acordos de posse de terras e dos estatutos das comunidades revelarem
uma grande variação, desde os anteriores bantustões ou áreas comunais até às
quintas comerciais e empresariais, em zonas climáticas e agrícolas muito
diferenciadas, as possibilidades de escolha para a grande maioria dos beneficiários da
reforma agrária mantêm-se extremamente reduzidas. Para a larga maioria de sul-
africanos rurais, a oportunidade imediata é obterem alguma forma de segurança no
direito de posse e, assim, esperarem aceder a uma quantidade de terra suficiente para
poderem adoptar uma estratégia exequível com diferentes patamares, de produção
agrícola, de criação de animais e de emprego não-agrícola, de modo a assegurarem o
seu sustento e a reerguerem-se gradualmente, após a destruição e rejeição que
caracterizaram o apartheid que se seguiu a um século de expropriação colonial.
Mesmo o acesso à terra pode não ser suficiente. Baseando-se no seu estudo acerca
da produção de meios de subsistência e classe social em KwaZulu-Natal, Michael
Carter e Julian May concluem que, entre outras limitações como sejam o regresso
limitado ao trabalho não qualificado e o esforço de procurar água e combustíveis,
encontram-se «restrições financeiras que limitam a capacidade de os pobres utilizarem
eficazmente os recursos produtivos e as doações (por exemplo, a terra) que realmente
possuem» (Carter e May, 1999: 16). Estes autores sugerem que uma estratégia política
eficaz seria a busca de formas de levantar «os constrangimentos que limitam a eficácia
com a qual os pobres das zonas rurais conseguem utilizar os bens e doações limitados
que possuem», através da promoção de instituições financeiras locais de micro-crédito
e do fornecimento de serviços essenciais, em especial a água e a energia (1999: 16).
As implicações para a reforma agrária são claras: para além de facultar o acesso ao
recurso básico, a terra, existe uma necessidade de promover pelo menos um grau
mínimo de desenvolvimento rural que permita às famílias e comunidades pobres
empregarem quaisquer novos recursos a que ganhem acesso.
Quando a Communal Property Association Act foi introduzida, foi proclamada como «a
legislação mais progressista formulada pelo governo até à data», uma vez que «envia
uma mensagem clara às organizações não-governamentais, às autoridades locais,
para-estatais e à sociedade em geral sobre aquilo que o governo entende pelo conceito
de controle democrático» (Streek, 1996). Embora a Lei CPA fosse adoptada para lidar
com uma série de dificuldades associadas à restituição e redistribuição de terras, a sua
adopção na elaboração da constituição, enquanto meio de resolução destes
problemas, reflecte o poder do paradigma constitucionalista na nova África do Sul. Esta
lei requer que os beneficiários quer de reclamações de terra colectiva, quer de
programas governamentais de reforma agrária escolham uma «estrutura
constitucional» através da qual se possam constituir enquanto comunidade e possuir e
controlar colectivamente o seu recurso primário — a terra. Entre as dificuldades
imediatas levantadas pelos diferentes programas para a devolução e redistribuição de
terras, estava a questão de saber como os beneficiários destes programas seriam
identificados e como possuiriam legalmente a terra que recebessem. Embora tenha
sido feito um apelo à nacionalização da terra, cedo desacreditado durante a transição
democrática, houve uma pressão inicial por parte do antigo regime durante a transição
— que se reflectiu na aprovação da Lei de Actualização dos Direitos de Posse — para
salientar a livre titularidade individual como a opção preferível (Cross e Haines, 1988).
Todavia, o reconhecimento de que os requerentes rurais continuaram a buscar alguma
forma de controle ou posse comunitária voltou a chamar a atenção para as formas
«tradicionais» ou «consuetudinárias» de posse da terra que permanecem, de algum
modo, tanto a prática quanto a aspiração de muitas comunidades africanas (Small e
Winkler, 1992; Cross, 1992). Porém, as dificuldades são enormes. A adopção de
formas «consuetudinárias» de posse da terra coloca questões sobre a natureza e as
fontes da «lei consuetudinária», incluindo o papel dos chefes e o estatuto das mulheres
e dos comuns em tais comunidades (Holomisa, 2000). Apesar de a natureza exacta da
posse «tradicional» ou «indígena» ser posta em dúvida pela romantização de alguns e
por questões acerca da sua manipulação durante o período colonial, a possibilidade de
fornecer um mecanismo processual para a criação de formas comunitárias de posse
parecia, à primeira vista, satisfazer quer os admiradores da tradição, quer aqueles que
estão empenhados na participação democrática.
Estas vitórias não foram uni-lineares. Apesar destes avanços numa sociedade, em
todos os outros aspectos, profundamente sexista, e apesar do efeito encantatório no
nível popular da visão do movimento democrático de uma África do Sul «não-racial e
não-sexista», as mulheres com participação activa no processo de negociação tiveram
que se defender de um desafio directo resultante das reivindicações dos líderes
tradicionais e das suas exigências pelo reconhecimento do direito indígena.
Inicialmente, os líderes tradicionais representados no processo de elaboração da
Constituição procuraram proteger o direito consuetudinário dos preceitos de igualdade
previstos na Constituição. Seguindo o modelo do Zimbabué, estes líderes propuseram
uma constitucionalização do sistema legal duplo existente, de tal forma que o direito
consuetudinário e o direito geral sul-africano constituissem sistemas legais paralelos,
não possuindo nenhum deles o poder de interferir com o outro (Currie, 1998: 36-3).
Estas reivindicações pelo reconhecimento da cultura indígena levaram a uma tentativa
de incluir na carta de direitos provisória preceitos que reconhecessem o «direito
consuetudinário» e regulassem as contradições entre o direito indígena e outros
«direitos fundamentais». Embora tenha sido rejeitada, uma proposta provisória de carta
de direitos apresentada garantiu a «qualquer tribunal que aplique um sistema de direito
consuetudinário» o poder de determinar a extensão até à qual o direito consuetudinário
pode sobrepor-se ao preceito de igualdade e de decidir quando e em que extensão
estas regras - mesmo nos casos em que discriminam as mulheres - devem estar em
conformidade com a exigência de igualdade prevista na Constituição. No entanto, em
termos finais e, sobretudo, em consequência da firmeza das mulheres do ANC, a
Constituição provisória veio colocar-se a favor da igualdade de sexos, tornando o
direito indígena «sujeito a regulação pela Lei», implicando assim a sua subordinação
aos direitos fundamentais contidos na Constituição, particularmente no que toca à
igualdade dos sexos.
Em consequência, a igualdade dos sexos foi formalmente reconhecida pela carta de
direitos provisória e a Constituição provisória incluiu provisões específicas para o
estabelecimento de uma Comissão para a Igualdade dos Sexos «para aconselhar e
emitir recomendações ao Parlamento ou a qualquer outra entidade legislativa,
respeitantes a quaisquer leis ou propostas de lei que afectem a igualdade de sexo e o
estatuto da mulher». Para além disso, inserida na tentativa geral efectuada pelo
governo de de Klerk para dominar as negociações, a África do Sul ratificou a
Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
conta as Mulheres, em Janeiro de 1993, vinculando o Estado Sul-africano a obrigações
particulares internacionais nesta área. Assim, a inclusão eficaz do princípio de
igualdade dos sexos na Constituição provisória de 1993 e na sua redacção «final» de
1996 foi produto da interacção da mobilização local das mulheres contra a
discriminação sexual e o aumento do reconhecimento da igualdade dos sexos como
uma norma dos direitos humanos e do constitucionalismo aceite internacionalmente.
Para além disso, para muitas comunidades que foram fisicamente destruídas e se
dispersaram com o processo da remoção forçada, este acto constitutivo seria baseado
na a própria definição de quem deveria ser incluído como beneficiário da restituição.
Outras comunidades que ainda mantinham uma pequena posição na terra seriam
deixadas livres para decidir a forma como o seu recurso deveria ser utilizado e os seus
benefícios distribuídos entre os membros reconhecidos. Como consequência, o
governo, ao reconhecer que a terra deveria ser transferida para grupos de pessoas,
mal-definidos, conflituosos ou simplesmente detentores de recursos muito escassos, foi
forçado a pelo menos esboçar um processo através do qual estas comunidades se
pudessem constituir. Assim, tal facto impulsionou a forma que a lei CPA veio a ter.
Apesar de a Lei CPA assumir que as comunidades vão elaborar as suas próprias
constituições através de um processo de intensa participação democrática, marcada
pelo empoderamento dos indivíduos e grupos anteriormente marginalizados por uma
combinação de «tradição» e domínio do apartheid, a prática veio a revelar-se mais
ambígua. Esta ambiguidade é notória nas constituições de 100 das aproximadamente
150 CPA’s registadas nos primeiros três anos. Destas 100 constituições, 60 são
versões praticamente idênticas de dois modelos particulares. Enquanto que 40 destas
60 são réplicas aproximadas do que pode ser definido como «modelo Gugulethu», as
restantes 20 são versões quase iguais de um modelo que parece ter sido desenvolvido
e aplicado numa região particular, a província de Free State. As restantes 40 das
primeiras 100 CPA’s registadas incluem exemplos que variam entre algumas que
evidenciam claramente uma influência popular específica - particularmente na
identificação das violações disciplinares - e outras que foram claramente o produto de
educação e de programas de treino intensivos conduzidos por equipas de ONGs e
organizações de apoio jurídico.
Apesar destas variações, as preocupações acerca do controlo e da estabilidade futura
destas novas comunidades de proprietários da terra está largamente patente nos
preceitos adoptados pela comunidade para a governação comunal. Embora a Lei e a
constituição «modelo» promovidos por várias ONGs envolvidas no apoio à elaboração
de constituições pelas comunidades salientem os procedimentos democráticos, quer
nas variações do modelo, quer nos exemplos mais particulares, a tónica é colocada no
controlo da composição e dos poderes do corpo dirigente. Um dos métodos mais
explícitos adoptados pelo modelo dominante é o de determinar o número de
representantes que podem ser eleitos para o comité dirigente a partir de diferentes
grupos de interesse ou blocos de poder possíveis dentro da comunidade. O «modelo»
Gugulethu dominante especifica que: 75 por cento do comité deve ser composto por
membros da associação; os representantes dos líderes tradicionais não devem exceder
os 40 por cento do comité; pelo menos 50 por cento do comité deve residir
permanentemente na comunidade; e pelo menos 40 por cento dos membros do comité
devem ser mulheres. Esta explícita partição das influências dentro do comité reflecte
uma forte percepção das tendências particulares. Em primeiro lugar, há uma
preocupação clara de refrear a influência dos não-membros e dos não-residentes, que
no caso das viúvas ao abrigo da lei consuetudinária podem incluir parentes masculinos
afastados. Em segundo lugar, o critério de residência também limita a influência de
membros migrantes da comunidade que podem «normalmente» viver numa área
urbana mas manter um contacto e influência significativos na comunidade rural. Ainda
mais significativa, contudo, é a tentativa de limitar a influência da liderança tradicional
(num caso, afirmando que 60 por cento dos membros que estão ao serviço não podem
ser membros da família do chefe (#4)), bem como a tentativa de melhorar a
participação das mulheres na tomada de decisão, exigindo que 40 por cento do comité
seja feminino(#92). De igual interesse, é o facto de que em muitos dos casos em que o
modelo foi adoptado, a única modificação foi na constituição do comité dirigente. Aqui,
a questão da representação dos sexos está manifestamente em questão.
Num número cada vez maior de casos, incluindo o caso da comunidade Gugulethu,
cuja proposta de constituição veio a servir de modelo de constituição de CPA, os
conflitos entre as autoridades tradicionais e os elementos empenhados em formar a
CPA levaram frequentemente a um impasse, no qual a tentativa de estabelecer uma
CPA falhou. No caso da área comunal de Tshezi, documentado por Lungisile Ntsebeza,
a tentativa de estabelecer uma CPA acabou por ser abandonada, face à resistência
oferecida pelos chefes locais «sob a influência de autoridades tradicionais chave em
Contralesa [The Congress of Traditional Leaders of South Africa] e da Eastern Cape
House of Traditional Leaders. Isto a despeito do facto de tal vir a atrasar e,
possivelmente, frustrar um projecto de desenvolvimento desesperadamente necessário
iniciado pelo Departamento de Comércio e Indústria para impulsionar o turismo local
(2000: 299).
A tensão criada por estes critérios tornou-se ainda mais intensa quando o governo
distribuiu uma proposta de Lei dos Direitos sobre a Terra, no início de 1999. A proposta
de lei, concebido para contemplar a segurança do direito de posse da terra nas áreas
comunais - os antigos bantustões, onde a terra «tribal» oficialmente possuída pelo
Estado permanecia sob o controlo das autoridades tradicionais -, incluía o mesmo
conjunto de critérios. Justificando-se como uma tentativa de resolver a degeneração da
administração da terra nestas áreas, bem como o cumprimento do imperativo
constitucional de promoção da segurança no direito de posse, a proposta de lei
apresenta um sistema de gestão descentralizada dos direitos sobre a terra, os quais
estariam nas mãos das pessoas que pudessem estabelecer ocupação, uso ou direitos
de acesso à terra; pessoas que, consequentemente, não poderiam ser despojadas de
tais direitos sem o seu consentimento ou a perda deles através da aceitação de uma
compensação. Além disso, a proposta de lei propunha a criação de um sistema de
gestão dos direitos da terra que iria incluir: (1) «estruturas de titulares de direitos sobre
a terra»; (2) comissões para os direitos sobre da terra - compostos pelos líderes
tradicionais, conselheiros municipais e líderes respeitados da comunidade - a nível do
concelho distrital e (3) um funcionário público dos direitos sobre a terra, empregado do
Departamento dos Assuntos da Terra, ao nível distrital, o qual representaria o Ministro
dos Assuntos da Terra, que continua a ser o proprietário nominal (Sibanda, 2000: 308).
As comissões para os direitos da terra iriam, de acordo com a proposta de lei, «actuar
como um vigilante, rever as questões que afectam o estatuto protegido dos titulares
locais de direitos e, nos casos em que seja necessário, encaminhar as decisões para
consideração do representante ministerial» (Sibanda, 2000: 308). Os funcionários dos
direitos sobre a terra teriam poder para «investigar as infracções à lei, notificar,
preparar os casos e instituir os procedimentos junto do tribunal judicial para obter
qualquer reparação para os titulares de direitos» (Sibanda, 2000: 308).
Apesar de o abandono da proposta de Lei para os Direitos sobre a Terra parecer uma
vitória das mesmas autoridades tradicionais que receavam perder a jurisdição sobre os
assuntos da terra, o debate não está de maneira nenhuma encerrado. Embora o novo
ministro parecesse preocupado em apaziguar as autoridades tradicionais, a
continuação da crise em torno da gestão da terra rural e o seu impacto no
desenvolvimento rural, particularmente em consequência da falta de segurança nos
direitos à terra, trouxe estes assuntos de volta à agenda governamental (Mayende,
2001). Embora alguns críticos receassem que o governo estivesse a ponto de
abandonar as políticas que evidenciavam uma preocupação com o empoderamento
dos pobres rurais voltando-se, em vez disso, para uma confiança nas forças de
mercado, não parece que se tenha verificado tal mudança dramática. Em vez disso, o
Departamento dos Assuntos da Terra está, mais uma vez, a explorar a forma de
abordar a questão da segurança da posse da terra nas áreas comunais, reflectindo
sobre a melhor forma de envolver os líderes tradicionais num debate que venha a
permitir alcançar estes objectivos.
6. Promessas e perigos
Referências Bibliográficas
Cézar Rodriguez
Nos últimos anos - após quase três décadas de profunda intensificação do fluxo de
bens, serviços, capitais e pessoas através das fronteiras nacionais - o trabalho de
milhares de pessoas e organizações em todo o mundo que têm vindo a denunciar os
efeitos excludentes da globalização neoliberal começou a ter um impacto importante
nas discussões políticas e académicas acerca do rumo da economia mundial. Com
efeito, particularmente após os protestos de Seattle, em finais de 1999, a visibilidade e
influência da crítica contra a globalização têm aumentado de forma tão expressiva que
hoje as organizações internacionais promotoras do processo de globalização viram-se
obrigadas a reconhecer, pelo menos nas declarações oficiais, os efeitos perversos do
referido processo, como o demonstraram as recentes cimeiras do Banco Mundial.
Desta forma, parece estar a emergir um consenso que - sem pôr ainda em perigo o
consenso hegemónico, isto é, o denominado «Consenso de Washington»- torna visível
o facto de que a globalização neoliberal está alicerçada em e reproduz condições
políticas, sociais e económicas que tendem a acentuar a desigualdade em todas as
escalas geográficas: na escala global, entre o Norte e o Sul (Galbraith et al., 1998); na
escala nacional, entre classes sociais e entre regiões no interior de cada país, como o
põe de relevo o aumento da desigualdade nos países da América Latina nas últimas
duas décadas (CEPAL, 1998).
Para os efeitos deste artigo, cujo estudo prático incide sobre uma iniciativa popular de
organização económica em Bogotá e noutras cidades da Colômbia - a luta colectiva
dos recicladores de lixo para melhorar as suas condições de vida -, é especialmente
importante ressaltar as iniciativas empreendidas pelas classes populares - isto é, a
maioria da população urbana, formada pelos sectores pobres de assalariados,
trabalhadores informais e desempregados. Trata-se dos habitantes da cidade para os
quais a «rebusca» é a estratégia diária de sobrevivência. Entre eles encontram-se os
trabalhadores que ganham apenas o salário mínimo, os vendedores ambulantes, os
recicladores de lixo, as empregadas domésticas, os indigentes de todas as idades e os
milhares de pessoas que prestam todo o tipo de serviço nas ruas. Quer como
compradores, quer como produtores ou vendedores, os membros das classes
populares alimentam uma economia urbana de baixo custo que lhes permite aceder a
bens e serviços indispensáveis para a sobrevivência. Neste sentido, estas «economias
populares» (Burbach et al., 1997) constituem uma forma, ainda que precária, de
resistência, porque são mecanismos mediante os quais as classes populares criam e
exploram um nicho económico para sobreviverem. Porém, quando consideradas dentro
do conjunto da economia urbana, torna-se evidente que as economias populares estão
longe de serem autónomas e, por si mesmas, emancipadoras. Por exemplo, a
economia informal está plenamente articulada com a economia formal, como evidencia
o caso dos recicladores de lixo independentes que vendem os seus produtos a
intermediários que, por sua vez, os vendem às grandes companhias produtoras de
papel. O caso dos recicladores mostra ainda que as formas económicas populares são
fonte de produtos, serviços e mão de obra barata para o sector moderno da economia.
Daí que este tipo de actividade possa, por isso mesmo, facilitar, mais do que impedir, a
exploração das classes populares.
Contra este pano de fundo, a pergunta central que guia este capítulo é: em que
condições podem surgir e consolidar-se organizações económicas populares não
capitalistas que ao mesmo tempo facilitem a luta pela inclusão das classes populares e
sejam viáveis num mercado globalizado? Para contribuir para a reflexão sobre esta
pergunta, apresento um estudo prático sobre a formação e desenvolvimento de
cooperativas de recicladores de lixo na Colômbia a partir de finais da década de 80.
Baseei-se num trabalho de campo de oito meses na Colômbia que compreendeu o
estudo geral da evolução da rede de 94 cooperativas de recicladores, apoiado em
análise documental e entrevistas, e a análise detalhada - mediante observação
participativa inspirada na metodologia de investigação-acção participativa (Fals Borda,
1998) - do funcionamento de uma das cooperativas mais consolidadas - a Cooperativa
«Rescatar» -, fundada em 1987 e cuja sede se encontra em Bogotá.
Quatro razões fazem com que este estudo prático seja especialmente relevante para
os propósitos deste artigo. Em primeiro lugar, os recicladores de lixo são um dos
grupos cuja presença nas grandes cidades de todo o mundo mostra com maior clareza
o carácter global da exclusão social a que anteriormente fiz referência. Longe de ser
um fenómeno que se limite à Colômbia ou à América Latina, a existência de milhares
de pessoas que sobrevivem recuperando materiais recicláveis nas ruas ou nas lixeiras
é comum nas cidades da semiperiferia e na periferia e até, ainda que em menor
proporção, nas cidades do centro. Por exemplo, estima-se que na Colômbia cerca de
300.000 pessoas - isto é, cerca de 1% da população - vivam da recuperação de
materiais recicláveis nas cidades (Hower, 1997). No México e no Egipto, a população
recicladora é ainda mais elevada em termos percentuais (2% do total nacional) (Hoyos,
2000). Em Manila, Filipinas, cerca de 12.000 pessoas dependem directamente da
reciclagem. (New York Times, 07/23/2000). Em Beijing, aproximadamente 82.000
camponeses imigrantes trabalham como recicladores informais (New York Times,
02/11/2000). Em segundo lugar, a exclusão social da qual são vítimas os recicladores é
especialmente perversa e dramática. Dada a generalizada rejeição social relativamente
à sua forma de vida - que com frequência implica viver na rua - e ao seu ofício - que
requer estar em contacto permanente com o lixo -, os recicladores são vítimas do mais
elevado grau de exclusão e estão relegados às zonas mais selvagens da cartografia
urbana - isto é, as lixeiras, as ruas e os guetos onde vendem os seus produtos a
intermediários e onde em ocasiões inclusivamente habitam. Na Colômbia, o grau de
exclusão dos recicladores reflecte-se claramente na expressão insultuosa -
«descartáveis» - que boa parte da população emprega, referindo-se-lhes. O reciclador
é excluído ao ponto de ser considerado redundante, eliminável, de igual modo que o é
o lixo no qual procura materiais recicláveis, como o mostram as operações de «limpeza
social» nas quais os recicladores e outros habitantes das ruas são eliminados por
grupos armados de base fascista, por vezes com a colaboração ou a conivência da
força pública. Em terceiro lugar, os recicladores colombianos associam-se em volta de
formas não capitalistas de produção económica, nomeadamente cooperativas de
trabalhadores. Neste sentido, as consideráveis conquistas obtidas e as limitações desta
experiência são úteis para responder à pergunta que orienta este estudo. Finalmente,
as cooperativas de recicladores tiveram de enfrentar as condições do mercado
colombiano e internacional em tempos de abertura económica e de globalização. As
cooperativas surgiram em finais dos anos 80 e começos dos anos 90, precisamente na
altura em que a política económica na Colômbia dava uma nítida viragem para a
internacionalização e o neoliberalismo. É por esta razão que a análise do
funcionamento das cooperativas de recicladores pode fornecer informações úteis
acerca do potencial emancipador deste tipo de organização no contexto do mercado
globalizado. Na secção seguinte exponho em detalhe os resultados deste estudo
prático. E faço-o tentando pôr em diálogo os resultados do trabalho empírico com as
discussões e a bibliografia sobre desenvolvimento alternativo e cooperativismo. É por
isso que ressalto neste estudo a forma como as cooperativas se viram afectadas e
responderam ao impacto da globalização. Como já mencionei anteriormente, esta
reflexão sobre o global está geralmente ausente da literatura sobre alternativas
económicas na semiperiferia e na periferia. Neste sentido, a exposição que apresento
nas páginas seguintes constitui um estudo prático alargado (Van Velsen, 1967), dado
que a análise do caso concreto das cooperativas de recicladores se faz no intuito de
contribuir para a teorização e as discussões gerais sobre alternativas económicas
emancipadoras. Após o desenvolvimento do estudo prático, na terceira e última parte
do artigo ofereço algumas conclusões.
2.2. Os recicladores
Quem são esses milhares de pessoas que percorrem as ruas e habitam nas lixeiras
das cidades da Colômbia à procura de materiais recicláveis? Os dados fragmentados
existentes sobre o tema, completados pelo trabalho de campo levado a efeito para este
estudo, demonstram que o ofício da reciclagem é exercido por homens e mulheres em
idêntica proporção. Embora predominando os recicladores cuja faixa etária se situa
entre os 20 e os 40 anos, velhos e crianças foram encontrados também a trabalhar. Os
recicladores dedicam-se ao ofício geralmente em família, não de maneira individual. O
estudo etnográfico entre os recicladores da «Cooperativa Rescatar» de Bogotá (daqui
em diante a «Cooperativa») nas suas zonas de recolha na rua, mostrou, por exemplo,
que as tarefas necessárias para a recuperação do material - por exemplo, rebusca nos
sacos e contentores do lixo, selecção e acondicionamento dos materiais, condução do
veículo usado para o transporte - são repartidas entre membros do agregado familiar
de quatro ou mais pessoas. É habitual que os recicladores levem os filhos menores nos
carrinhos em que transportam o material. O comentário de Heidy, de 17 anos e sócia
da «Cooperativa» («sou recicladora desde que nasci, porque a minha mãe metia-me
numa caixa e levava-me no carro enquanto trabalhava como recicladora») é elucidativo
da situação de vários dos recicladores.
A maior parte deles tem um baixo nível de escolaridade. Um estudo recente feito em
Bogotá mostra que nas localidades escolhidas 73% dos recicladores não completou a
primária e 15% são analfabetos (Corporación Raíces, 1998). A pesquisa etnográfica na
«Cooperativa» proporcionou idênticos resultados. Muitos dos sócios da «Cooperativa»
começaram a trabalhar como recicladores desde muito novos e abandonaram os
estudos pela necessidade de dedicarem mais tempo ao trabalho ou porque, como
aconteceu no caso da Heidy, «não havia dinheiro para estudar mais». Porém, é notória
a crescente chegada ao ofício em geral, e à «Cooperativa» em particular, de pessoas
com instrução secundária e até com estudos superiores, devido ao alastramento do
desemprego na Colômbia. O caso de um dos novos sócios da «Cooperativa» - Henry,
de 50 anos, que começou a trabalhar como reciclador quando perdeu o emprego de
maquinista após a liquidação da empresa estatal dos caminhos de ferro onde
trabalhava - é representativo desta nova tendência.
Nesta modalidade o trabalho dura mais de oito horas e implica atravessar a cidade de
ponta a ponta, começando nos bairros populares legais ou nos de ocupação nos quais
moram os recicladores, continuando nas zonas opulentas da cidade onde se encontra
o lixo mais precioso e acabando de novo nas zonas populares, onde estão os
armazéns das cooperativas ou dos intermediários e aonde os recicladores se retiram
para descansar. Eles são, assim, um dos poucos grupos que ultrapassam diariamente
as fronteiras da cartografia urbana. A segunda modalidade prende-se com a
recuperação de materiais nas lixeiras e nos aterros sanitários. Trata-se de uma
actividade de homens, mulheres e crianças que trabalham longas horas em condições
de extrema insalubridade nesses lugares - e, com frequência, moram nos arredores em
casas de cartão e alumínio - seleccionando material à medida que os camiões das
empresas de limpeza o descarregam. Por último, a modalidade de trabalho favorável
para o reciclador é a recuperação na fonte, isto é, nos próprios edifícios residenciais ou
de escritórios. Porém, a imagem generalizada do reciclador como indigente perigoso -
como «descartável»- torna o acesso às fontes numa prática muito difícil.
Apesar das duras condições de trabalho, os baixos rendimentos e o estigma social que
o acompanha, o ofício de reciclador, em regra geral, não é uma ocupação temporária.
São muito frequentes os casos de recicladores que desempenham a profissão durante
boa parte ou toda a sua vida. Nas conversas com os membros da «Cooperativa»
durante os horários de trabalho na rua ou no armazém de depósito, as respostas
recorrentes obtidas foram semelhantes às da Elisa, de 30 anos, que afirmou ser
recicladora «desde criancinha» ou às da Darly, de 25 anos, que é «recicladora desde
os 13 anos, quando a minha mãe começou a trazer-me para a Cooperativa». São
frequentes os casos de pessoas que trabalhavam noutros empregos informais, como
Concepción - uns 40 anos - que antes de ser recicladora dedicava-se a fazer
«trabalhos domésticos, na imprensa [a vender jornais na rua] e numa espécie de
telheiro de olaria [depósito de argila onde se fazem tijolos]». Um fenómeno em
aumento - e bem visível na «Cooperativa» - é a entrada no ofício de bacharéis e outros
profissionais que ficaram desempregados.
Poucos anos depois, os recicladores, mediante a acção colectiva, viriam a desafiar esta
trágica conclusão de Birkbeck. Como acontece em tantas ocasiões, os actores sociais
objecto da exploração encontraram caminhos de emancipação que o analista não
logrou perceber. Na secção seguinte passo a expor a forma como um sector dos
recicladores colombianos se associou em cooperativas de trabalhadores
encaminhadas justamente para lutar contra limitações estruturais que pareciam
inamovíveis.
Até aos começos de 1999, a «Fundación Social» prestou apoio financeiro e técnico a
boa parte das cooperativas e redes. Durante os 12 anos que durou o apoio da
«Fundación Social», as virtudes e dificuldades características da intervenção de uma
organização facilitadora externa foram evidentes. Por um lado, a «Fundación Social»
forneceu capital e serviços indispensáveis para a descolagem das cooperativas e das
redes, que os recicladores muito possivelmente não teriam podido encontrar em
bancos e entidades privadas, especialmente após a falência na Colômbia do sector
financeiro solidário em meados dos anos 90. Mas, por outro lado, a possibilidade de a
«Fundación Social» intervir directamente na gestão das cooperativas afim de as tornar
rentáveis gerou uma reacção negativa entre os recicladores organizados, que
insistiram na sua autonomia e na suas capacidades de autogestão.
A referência ao balanço social é muito comum tanto nos documentos produzidos pelas
cooperativas e as suas redes como nas reuniões dos membros das mesmas. Em
«Rescatar», por exemplo, uma das conquistas centrais que os directivos apresentaram
aos 37 recicladores sócios presentes na Assembleia Geral do ano 2000 foi o facto de a
cooperativa ter produzido uma utilidade económica próxima dos 10 milhões de pesos
(por volta de 5.000 dólares norte-americanos) em 1999 e, sobretudo, de a sua
«utilidade social» - isto é, o nome utilizado pelo gerente da cooperativa na assembleia
para se referir à soma investida no bem-estar do seus sócios (cerca de 25.000 dólares
no mesmo ano) - ter sido elevada e de, portanto, o seu balanço social ter sido positivo.
A que se refere este balanço social? Trata-se de uma série de benefícios individuais e
colectivos - alguns materiais, mas outros intangíveis - que, embora aparentemente
muito pequenos, implicam uma transformação fundamental das condições de vida dos
recicladores da cooperativa. A cooperativa promoveu o acesso gradual dos membros
aos benefícios anexos a uma ocupação no sector formal da economia. Assim, os
recicladores sócios foram filiados em entidades de segurança social (saúde e reformas)
e nas caixas de previdência familiar. Desfrutaram também, pela primeira vez, dos
benefícios de prémios e de desemprego. Enfim, acederam pela primeira vez a regalias
próprias da cidadania social, isto é, a bens e serviços que asseguram o seu bem-estar
material mínimo apesar dos baixos rendimentos. Isto tem criado situações claramente
excepcionais no contexto da sociedade colombiana, caracterizada por uma forte
separação de classes. Por exemplo, os passeios de integração dos recicladores sócios
da cooperativa «Rescatar» nos clubes de férias das caixas de compensação familiar
deram lugar a uma inusitada convivência, pelo menos por um dia, entre os recicladores
e os membros das classes médias nas piscinas e zonas verdes dos referidos clubes.
Além das regalias típicas de um emprego formal, o trabalho nas cooperativas
desencadeia mudanças consideráveis nos recicladores em relação à sua conduta
diária, às suas condições de trabalho, à comunidade com a qual convivem e à
sociedade em geral. No que se refere à conduta individual, a cooperativa exerce uma
pressão subtil, geralmente através de mecanismos informais - comentários em
reuniões, actividades de integração -, contra hábitos comuns entre a população
recicladora não organizada, tais como a violência dentro do agregado familiar, o
recurso às drogas e o descuido no vestuário. De facto, boa parte dos cursos de
indução que se oferecem periodicamente aos novos membros da «Rescastar» ocupa-
se de aspectos como o cuidado com o corpo, o respeito pelos outros e a necessidade
de levar uma vida familiar pacífica e responsável. Por exemplo, num desses cursos, em
finais de Julho de 2000, o gerente da cooperativa exortava os novos sócios «a se
capacitarem... mas não há diferença só porque em termos académicos um sabe mais
do que o outro. A equidade está em que quem tem mais conhecimentos tem uma
dívida social para quem não os tem e deve compartilhá-los». Na mesma conversa,
instava os novos membros a respeitarem as esposas, dado ser bastante comum
recorrer à violência contra as próprias mulheres entre a população recicladora: «Somos
nós a estabelecermos os padrões de beleza. Vocês sabem qual é o protótipo de mulher
bela? O da mulher que cada um de vocês escolheu como esposa... Atenção aos maus
tratos. Temos de aprender a resolver os nossos conflitos». Do que se trata, pois, é de
converter a pertença à cooperativa num veículo para a transformação gradual dos
hábitos que impedem o progresso dos recicladores como indivíduos, família e
comunidade. Embora sendo frequentes os problemas na cooperativa graças à
persistência de algumas destas condutas, o facto de nenhum dos seus 50 membros
viver na rua e de vários deles terem inclusivamente reingressado em instituições de
ensino secundário e técnico, a partir da nova experiência de vida na cooperativa,
mostra claramente o elevado potencial transformador desta.
É claro que o trabalho cooperativo também gera múltiplas dificuldades que foram
evidentes no trabalho de campo. Os benefícios sociais vêm acompanhados de custos
sociais que não existem no trabalho individual. Por exemplo, os processos deliberativos
de decisão no interior da cooperativa dão lugar a constantes desavenças e conflitos
entre os sócios que acabam por afectar o seu funcionamento, às vezes de forma grave.
Os conflitos mais frequentes que vêm à tona nas reuniões formais e nas conversas
informais têm a ver com a falta de confiança e o ressentimento mútuos entre os sócios
que ocupam cargos administrativos de responsabilidade na cooperativa, por um lado, e
os que realizam trabalhos manuais nas ruas ou no armazém, por outro. Os sócios da
cooperativa também exprimem o seu descontentamento com as frequentes reuniões,
que implicam uma carga adicional no trabalho e muitas responsabilidades domésticas.
Mas enquanto as fricções típicas dos processos deliberativos são comuns a todas as
cooperativas, uma dificuldade adicional está relacionada com as características
próprias da população recicladora, especificamente com o seu baixo grau de
escolaridade. O facto de a maioria dos sócios não ter estudos secundários impede uma
participação plena destes nos cargos de eleição e nas decisões da cooperativa que
requerem um conhecimento especializado. A opinião de Concepción, uma das sócias
da cooperativa citada em parágrafos anteriores, acerca das suas limitações para
participar nas reuniões - «não compreendo muitas das coisas que lá se dizem e é a
minha filha que tem que me explicar» - é representativa desta dificuldade. Neste
sentido, conforme o atesta Ana Beatriz - uma das sócias fundadoras, de cerca de 70
anos -, é evidente a divisão na cooperativa entre «os chefes e nós, os operários», isto
é, entre os directivos e quem trabalha como reciclador. Embora o gerente fosse
reciclador antes de entrar na cooperativa - o que acontece em muitas outras
cooperativas e nas redes -, a sua transição da rua para os escritórios da cooperativa e
eventualmente para a gerência é excepcional quando se compara com a história da
grande maioria dos recicladores, que, como o exprimiu um outro dos directivos da
cooperativa, «não estão para aqui virados [e] só querem saber dos seus vidros, dos
papéis e do cartão e de mais nada». É por esta razão que vários dos cargos
administrativos da cooperativa são ocupados por pessoas que nunca foram
recicladores e, embora algumas não tenham sequer estudos secundários, têm sim uma
motivação e uma capacidade de aprendizagem excepcionais em comparação com o
sócio médio da cooperativa. A divisão entre directivos e recicladores, que é
constantemente referida por uns e outros, impede a existência de relações horizontais
que facilitem o trabalho cooperativo e deliberativo e tende a reproduzir na cooperativa a
hierarquia das empresas capitalistas - isto é, entre «chefes» e «operários». As
dificuldades para subir de categoria dentro da cooperativa e a atracção pelo retorno a
um trabalho por conta própria ajudam a explicar a relativa falta de estabilidade do grupo
de sócios e, embora esta cooperativa tenha habitualmente entre 40 e 50 membros, são
frequentes os abandonos temporários ou definitivos.
Finalmente, o balanço social e político das redes de cooperativas revela que estas
conseguiram converter-se num mecanismo de relação dos recicladores organizados
com os governos locais, regionais e nacional. Porém, as redes, contrariamente às
cooperativas, não dispõem de fontes de rendimento próprias e, após o afastamento da
«Fundación Social», dependem de novas fontes de apoio externo. Por isso as
conquistas das redes têm sido limitadas. Por exemplo, um dos projectos mais atraentes
da ANR, a aprovação de uma lei que formalizasse a actividade dos recicladores, deu
lugar a uma lei (Lei 511/99) cujo conteúdo é predominantemente simbólico, como o
demonstra o facto de que a única disposição de imediato cumprimento tenha sido a
criação do Dia Nacional do Reciclador.
Quais foram até agora as conquistas das cooperativas nas tentativas de transformação
da estrutura do mercado da reciclagem em favor dos recicladores? As conquistas
económicas notáveis de cooperativas como a «Rescatar», a «El Porvenir» e a
«Recuperar» foram mencionadas anteriormente. Actualmente estas e outras
cooperativas por esse país fora contam com um capital de trabalho importante que
abrange armazéns, camiões, maquinaria e equipamento de escritório. Uma visita ao
armazém da «Rescatar», por exemplo, pode surpreender o observador habituado à
extrema pobreza dos recicladores na rua. Os dois camiões e o tractor propriedade da
cooperativa encontram-se à entrada de um armazém cheio de materiais recicláveis e
de maquinaria pesada para embalagem e posterior entrega. Várias cooperativas, em
conjunto ou de forma isolada, conseguiram participar no processo de transformação
dos materiais reciclados e na prestação de serviços de limpeza e manuseamento
integral de resíduos através de empresas de serviços públicos como ECOASEO
criadas para o efeito. Neste sentido, várias cooperativas conseguiram gerar um
processo incipiente de acumulação de capital que lhes permite permanecer no
mercado e até se expandir para novos nichos económicos.
Apesar destas limitações, a história das cooperativas de recicladores mostra que estas
podem sobreviver e inclusivamente progredir lentamente nas actuais condições do
mercado da reciclagem. Porém, estas condições estão rapidamente a mudar como
resultado da privatização e modernização dos serviços de limpeza e reciclagem nas
principais cidades colombianas. Isto, por sua vez, acentua as dificuldades surgidas pela
falta de integração das cooperativas em redes e em alianças com o Estado e o sector
privado. Na secção seguinte porei fim ao estudo prático com uma análise sobre o futuro
das cooperativas de recicladores nas cambiantes condições do mercado.
3. Conclusões
O resultado da promoção destes tipos de redes de apoio mútuo é uma economia plural,
na qual coexistem o Estado, as empresas solidárias e as empresas capitalistas no
contexto de um mercado regulado. Neste sentido, a promessa cooperativista
decepciona tanto os defensores de propostas neoliberais - cuja economia ideal está
baseada exclusivamente em empresas capitalistas que concorrem num mercado livre -
como os defensores de um colectivismo estatal - que gostariam de ver o mercado
eliminado e substituído pelo planeamento económico centralizado. Não se trata da
utopia da sociedade de mercado criticada acertadamente por Polanyi (1957), nem da
utopia colectivista. É uma utopia real (Wright, 1998), porque é suficientemente radical
para não se conformar com a regulamentação do mercado sem alterar a divisão entre
capital e trabalho, e suficientemente real para ser viável nas condições do mercado
contemporâneo. E, na medida em que tem vocação global - dado que um dos
princípios do cooperativismo é o da colaboração entre cooperativas de todo o mundo -
pode vir a ser uma forma de globalização contra-hegemónica. Porém, para atingirem
isto, as empresas cooperativas, dentro e fora dos sectores populares, no centro, na
semiperiferia e na periferia, têm ainda um longo caminho a percorrer.
Referências Bibliográficas
Jean-Loup Motchane3
O que há em comum entre o Crédit Agricole, banco que gera cerca de um trilhão de
francos, via 15,5 milhões de contas, e o Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, com
um elenco de 49 pessoas? Nada, a não ser pertencerem a um mesmo campo, o da
"economia social".
3
Traduzido por Tereza Van Acker (Professora na Universidade de Paris VII).
Inversamente, Louis Blanc, em sua obra L'Organisation du travail, publicada em 1839,
descreve uma sociedade renovada, fundada na criação de cooperativas, o Estado
responsável em generalizar esse sistema para o conjunto da produção.
Uma outra grande fonte de inspiração da economia social foi o cristianismo social,
corrente de pensamento reformista representada, na França, por Frédéric Le Play
(1806-1882) e Armand de Melun (1807-1877).
Quanto às exigências sociais, elas impõem que as empresas do terceiro setor não
somente respeitem as leis trabalhistas mas também contribuam, através de sua
organização eqüitativa, para o desenvolvimento, educação e formação de todos os que
ali trabalham, assalariados ou voluntários. Enfim, as empresas da economia social
pretendem não ser como as outras. A realidade, no entanto, é outra.
Estima-se que, dos 370 milhões de habitantes da União Européia, uma média de 25
milhões pertença a uma cooperativa, a uma mutualidade ou a uma associação.
Levando em conta o fato de que uma mesma pessoa pode estar ligada a várias delas,
mais de 30% da população são membros de uma organização ou empresa de
economia social. Segundo um estudo publicado pela Comissão Européia em 1997, o
conjunto de seus componentes representava, em 1990, de 6 a 6,5% das empresas, ou
seja 5,3 % do emprego privado, e até 6,3%, segundo outras abordagens.
A era da liberalização
Longe de ser marginal, o setor da economia social e solidária, que aliás não pára de
crescer - ainda que formalmente, como demonstra a recente transformação de Fundos
de Poupança em mutualidades -, é pelo menos um dos "carros-chefes da economia"
européia, segundo a expressão de Thierry Jeantet, membro do Comitê de Assessoria à
Economia Social. Sua visibilidade para os cidadãos e para os poderes públicos não
corresponde à sua importância. Entretanto, a nomeação recente de um secretário de
Estado da Economia Solidária, Guy Hascoët, traduz o interesse político que o setor
suscita na França, ainda que o orçamento concedido ao novo ministro seja muito
limitado.
O projeto de Hascoët tem três objetivos: a votação de uma lei sobre a economia social
e solidária no início de 2001; a inserção de uma cláusula referente à poupança solidária
no futuro Projeto de Lei sobre a poupança salarial; e a reforma, prevista para julho, do
Código da mutualidade no marco da difícil unificação da legislação francesa com as
diretrizes européias de 1992 sobre seguros. Essas diretrizes, marcadas pelo
liberalismo, recusam-se a distinguir as mutualidades - que não produzem lucro, uma
vez que seus clientes são considerados como sócios - das companhias de seguros,
cuja primeira vocação é realizar lucros.
Uma lei sobre o terceiro setor poderia definir, através de selo de garantia, um "setor da
economia social e solidária" e criar um estatuto de "empresa com finalidade social".
Isso permitiria levar em conta missões de interesse geral da economia solidária
aprofundando o relatório do deputado europeu pelo Partido Verde, Alain Lipietz. Seria
ainda necessário que o conceito de interesse geral fosse introduzido no Direito
Comunitário, inteiramente baseado na noção de concorrência...
É claro que contribuem com uma sustentação discreta, porém real, a empresas de
economia solidária, militantes e inventivas, porém essa ajuda aparece mais como uma
"boa ação" humanitária do que como uma vontade de opor um outro modelo à
economia de mercado. Elas divulgam seu vínculo a ideais comuns, mas ainda têm
muito a fazer para calar seus opositores e melhorar sua compreensão.
Os desafios postos pela existência desse vasto setor são profundamente políticos,
porém os dirigentes dessas grandes instituições evitam defini-los nesses termos.
Enquanto guardam suas bandeiras no bolso, reclamam de falta de visibilidade: "Sou
apenas um banqueiro, não um pensador", desculpa-se Jean-Claude Detilleux,
presidente do banco Crédit Coopératif, bastante engajado, no entanto, em dar
sustentação à economia solidária. Os militantes de base também são modestos. Para
eles, o que conta é a luta cotidiana contra a exclusão. Deixam aos políticos a
preocupação de inventar um outro modelo de sociedade. "A economia social permite
amortecer as crises que surgem nas nossas sociedades. Mas não será ela que
questionará a sociedade do mercado", explica Claude Alphandéry, presidente do
Conselho Nacional da Inserção pela Atividade Econômica.
As coisas parecem mudar, como atesta a nomeação de Guy Hascouët, ainda que a
proximidade das eleições majoritárias possa ter sua influência... O estatuto da
economia social e solidária, todavia, permanece ambíguo. Para alguns, é uma prótese
social eficaz, que permite a uma sociedade de mercado amortecer os desgastes da
globalização, desemprego e exclusão. Para outros, é álibi para um liberalismo que
tolera, no momento, que 6 a 11% de sua economia escape da ditadura dos mercados.
Poderia ela constituir um protótipo eficaz de empresas que concebessem outra forma
de relações entre a economia e a sociedade? Ela terá que escolher seu campo e
mudar seu discurso, ou ficar marginal e fundir-se na economia liberal.