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Tribunais da Consciência

Inquisidores, Confessores, Missionários

Adriano Prosperi
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,.tl•, ljlll' ll'l'll''l'lll.l\,I , lllll 1.d111l' IHl', ll l"(lf";\-
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minic, L' ahllrd,llla atra\'L'S da an;ílise de três
tÍj'llS lk pn.'SL'n½·as institu(ionais da Igreja: a
lt11.1uisi½·,10 romana, primeiro tribunal (en-
tr;di:allo da penín:-.ula entendido (omo po-
lkr p\lli(tal e repressi\'o; as no,·as formas de
l·\lnfi:-.s;'io, (omo a intl'n'L'l1l;·,10 persuasi,·a e
ll()(L', de ,dí\"io das nms(i0n(ias; a pregação
ll()S mission,írios nus cunpos e em meio
i1:-. (lasses populares (antes das missúes ex-
traeur(1peias), (omo instrumento de anima-
½·,1u e (onqu ista (li !tu ral.
Este li\To abriga 11111 texto importante - tal-
\'e: se possa falar j.í de um "jo\'em dássiro" -,
(\ 111Stituindo uma base fundamental para
\lriL·nur, temattca e metodologicamente,
estud\ls futuros que SL' abram a uma maior
(ompll'xillade da rda\·úo hist(·1rica entre os
aspel'tos destacados, isto 0, aqueles rdati\'os
;'1 1nq11isi1;;10, ;'1 cons(i0tKia e ;'1 ação missio-
ni1ria, na primeira L'poc1 moderna. Não se-
cunlbriamente, nL·ssa trajet1'1ria podem se
L'n(1 lntrar rastros esse1Ki,1is para entender,
.,km lias (onsequentes e no\'as peniliarida-
lk:-. do (ontexto europeu, a constituição e
,h c.1r;1(terísricas de (údigos que, necessaria-
mL·ntl', foram sendo modificados at0 permi-
Tir ,1 1mpkmL·nta,:10 lia pl·r:-.pl'L°ti\'a e da base
,k um L'nl°()ntfll cllm a di\'l'rsidadl' cultural,
l'íllll'":-.ll L'lhLTlll11 lk t~1rma l'Xausri,·a ao lon-
g,, lk t( >ll.1 L',:-.a L'p1 ll ,l hi,t1.lrICa.
''l )l,r.1 .1hnc1", prllt11111.l.1 l' ncamente teci-
ll.1 ,k 111"l'lr.1,·1·1e,, 'L'llll' IHes, pro,·(ll°a,·úes,
11, ,, .,, hip,.,tL",L':-., ap11nc111d( 1 para possí\'l'Ís
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TRIBUNAIS
DA CONSCIÊNCIA
[§JJ UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor João Grandino Rodas


Vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente Plinio Martins Filho

COMISSÃO EDITORIAL
Presidente Rubens Ricupero
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Antonio Penteado Mendonça
Chester Luiz Galvão Cesar
Ivan Gilberto Sandoval Falleiros
Mary Macedo de Camargo Neves Lafer
Sedi Hirano

Editora-assistente Carla Fernanda Fontana


Chefe Téc. Div. Editorial Cristiane Silvestrin
ADRIANO PROSPERI

TRIBUNAIS
DA CONSCIÊNCIA
Inquisidores, Confessores, Missionários

Tradução de
Homero Freitas de Andrade

Apresentação de
Adone Agnolin
Copyright ~ 1996 Giulio Einauldi editore s. p.a., Torino

Titulo origi nal cm italiano: Tribwnali iulla Co,citnta. lnqwuitori, Con-


fasori, MiSlionari

Ficha car.alogrMica elaborada pelo Ocparta=to Ttcníc-o du SisttmA


Integrado de Bibhotce# d:i USP. Adaptt1da conforme Nt'rma., Ja Eduap.

Prosperi, Adriano .
Tribunais da consc,~noa inquisidores., confessores, mission6rios /
Adriano Pr01rcri; traduçto de Homero F~itas de Andrade. - SAo Paulo:
Editora da U nivcrs,dndr Je SAo Paulo. 2013.
70<4 p .; 26 cm.

Titulo original : Tnbunah ddla coscit:nvi. /nqk úl ton, amfeuqri, miuionari .


Inclui índice de lupr.
Inclui ind~ onomástico.
ISBN 978-85.314-1370-4

1. lnqu isiçio. 2. Contrarrcfo nna - Itália . J . Co ncílio. 1. Andrade,


Ho mero FN"1 tas de. li. T1rulo. Ili. T itulo: Inquisidores, confessores, mis-
sionári os.

CDD 272.2

Direitos em língua portuguesa reservados à

EJusp - Editora da Universidade de São Paulo


Rua da Praça do Relógio, 109-A, Cidade Universitária
05508-050 - Butantã - São Paulo - SP - Brasil
Divisão Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150
www.edusp.com.br - e-mail: edusp@usp.br

Printed in Brazil 2013

Foi feito o Jepósito legal


Para Anna
SUMÁRIO

BREVE APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DA OBRA PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA


(Adone Agnohn)....... ...................................................................................... 13
PREFÁCIO........................ ..... .. ...... ..... ......... .............................. ..... .................... . 21
PREMISSA . . . . . .. . . . .. . . .. . . .. . .. . .. . . . .. . .. .. . . . . . .. . . . . .. . .. . . .. . .. . . . . . . . .. . . . . . . . .. .. ..... ... ..... .. . .. .. . .. . . . . . . . . . 43
LISTA DAS ABREVIAÇÕES........... ............ ...... ........................... .............................. 55
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES ....... .............. ... .............. ...... .... ......... ......... ..... ............. 57

PRIMEIRA PARTE: A INQUISIÇÃO

PRÓLOGO - A EXPERIÊNCIA CALABRESA .................. .. ..... .... ... .... ........... ............. 61
I - A FÉ ITALIANA .............................................................................................. ... 71
II - O NASCIMENTO DA NOVA INQUISIÇÃO ...... ..... .. ..... .... ....... ........... .. ... . ......... 87
III - INQUISIÇÃO ROMANA E ESTADOS ITALIANOS .. ... ...... ... ................. .. ... ........ 105

1. Milão e Nápoles. A Alternativa da Inquisição Espanhola na Itália...................... 111


2. Florença........................................................................................ ........................ 120
3. Veneza...................... .... ................ .. ................ ......... ............................................. 127
4. Poderes Flexíveis: A Diplomacia, as Cartas........ ....... .................. ........ ................. 144
IV - CONCÍLIO OU "GUERRA ESPIRITUAL" ........ ........ ........... .... .. . . .... ..... ..... . .. ..... 157

1. O Processo Conciliar de Gionanni Grimani.. .. ....... ...... ... ... .... ....... .. ........ ..... ... .... 167
2. O Caso de Agostino Centurione..... .. ..................... ........................................ ...... 169
V - 0 DESENVOLVIMENTO DA CONGREGAÇÃO DO SANTO OFÍCIO ................. 173

VI - A CRUEL INQUISIÇÃO ........... .................. ..... ...... ... .. ............ ............ ..... .... .... 189

,\ \ VII - O ÂMBITO INQUISITORIAL: OS FUNCIONÁRIOS ... ........ ............. ..... ........... 213

\. , • [ VIII - O ÂMBITO INQUISITORIAL: AS REGRAS ............. .... ........................... ..... ... 225
10

SEGUNDA PARTE: A CONFISSÃO

PREMISSA - QUESTÕES DE CONSCIÊNCIA .............. .... ......... ... ... ... ...... ........ ......... 241
IX - INQUISIDORES E CONFESSORES: PRESCRIÇÕES .. .. ....... ......... ... ...... ......... ... . 247
X - INQUISIDORES E CONFESSORES: DESCRIÇÕES .. .. .. .... ...... .. .. ... ... ... ..... .......... . 269

XI - A CONFISSÃO NO CONCÍLIO DE TRENTO ... ........ .... ... ...... ........ ......... ........... 281

XII - BISPOS E INQUISIDORES PARA UMA SOCIEDADE CRISTÃ ......................... . 299

Xlll - RITOS DE PASSAGEM , PASSAGENS OBRIGATÓRIAS .. ......... ... ... ............. ....... 309

XIV - INSTRUMENTOS E OBSTÁCULOS: 0 CLERO DOS CONVENTOS


E DAS PARÓQUIAS .. .. .... ... ... ...... .. .. .... ....... ..... ...... .. ......... .............. .... ..... ... .... ..... ..... 319

XV - CONTROLE DAS CONSCIÊNCIAS E CONTROLE DO TERRITÓRIO:


REDES EPISCOPAIS E REDES INQUISITORIAIS ................. ........... .... .... ... .. .... ... ... ... 331

XVI - BISPOS E INQUISIDORES: SOBREPOSIÇÕES E CONFLITOS .. .... .... ................ 349

1. O Teatro ..... .................... ...................... ... ................ ........ .. ................... .. ............ .. 354
2. A Blasfêmia . .................... ... ........ .................................. ... ........... .... ........ ....... .. .... 360
XVII - CRER EM BRUXAS: BISPOS E INQUISIDORES DIANTE DA "SUPERSTIÇÃO" 377

XVIII - PEDAGOGIA INQUISITORIAL ......................................... ..... ... ..... .... .. ......... 405

XIX - UMA INQUISIÇÃO "PASTORAL"? ...................... ... ........... ..... .. ...... ... .. ..... .. ..... 415

XX - INQUISIDORES E EXORCISTAS ........................... ...... ....... .. .. ..... ..... ... ... ........... 421

XXI - SANTIDADE VERDADEIRA E FALSA .................. ... ............... .... ..... .. .. ............. 433

XXII - OBRIGAR À CONFISSÃO, CONTROLAR OS CONFESSORES .......... ......... ..... 463

XXIII - FORO INTERIOR, FORO EXTERIOR ............ ........ ................ ..... ...... .. ...... .. ... 473

XXIV - CONFISSÃO COMO CONSOLAÇÃO E AUXÍLIO. A OBRA DOS JESUÍTAS .. . 481

XXV - INQUISIDORES E CONFESSORES: A S0LLICITATI0 AD TURPIA .... ...... .. ... ... 501

XXVI - CONFESSORES E MULHERES ....................... .... .. .. ..................... ............ .. .. . 511

XXVII - "ACREDITAR COM O CORAÇÃO" ........................................................ ... . 531

TERCEIRA PARTE: OS MISSIONÁRIOS

XXVIII - AS NOSSAS ÍNDIAS ........................................................ .............. .... .. ...... 539

1. Silvestre Landini e a Descoberta do "Exótico Interior" .. ....................... .............. 539


2. Apóstolos e Missionários .......... .... .... ............ .. ............................ ...... ............ ...... .. 548
3. A Defesa da Fé: O Missionário entre Bispos e Inquisidores ...... .......... ....... ..... ..... 553
4. lndipetae: Mitos Exóticos e Propaganda ... ............ .... ................. .. ............... ... ...... .. 568

Tri b una is da Consciê ncia


11

XXIX - 0 MÉTODO MISSIONÁRIO ......................................... ............................... 581

1. Cartas de Países Distantes .. ....... .................... ................. .................................. .... 581


2. Cultura ... ... ................ ..... ............................. ......................................... ............... . 587
3. Civilização.. .... ....... ...... ........... .. ..... ...................................... ......... ............. ........... 613
4. Comunhão e Comunidade: As Pazes........... ...................................... .............. .... 616
XXX - RITOS DE PASSAGEM ... .......... ................ ..... .............. ............ ....................... 623
1. O Matrimônio ............................................ ..... ... ... ............. ................. ....... .......... 623
2. Nascimento e Morte .............. .... ........... .... ...... ............ ... ................ ....... ..... .... ...... . 631
3. A Confissão .. ............. ....... .. ... ................................ ......... ....... .. ............. ... ...... ....... 637
XXXI - A VIAGEM DO PEREGRINO, A PROCISSÃO DO MISSIONÁRIO ...... ...... .. .... 649
ÍNDICE DOS LUGARES ................. ............... .. .... ... ....................... ......... ... .. .. ..... ..... . 653

ÍNDICE ONOMÁSTICO .................................................. .. ............... ........ ... ......... .... 659

Sumário
BREVE APRESENTACÃO
, DO
AUTOR E DA OBRA PARA
A EDICÃO
, BRASILEIRA

A presentar -:'"dri~no Prosperi e_~ livro em questão para o público brasileiro é tarefa de
.f""\.grande sat1sfaçao e responsabilidade, mas não, exatamente, árdua. Isto porque, apesar
de tratar-se de autor de importantes textos historiográficos cuja densidade foi-lhes sempre
intrínseca, sua capacidade analítica e sua escrita (cristalinas e, ao mesmo tempo, elegantes)
sempre tiveram o privilégio de conseguir na empreitada sem fazer emergir ou pesar, em
seus trabalhos, a profunda complexidade histórica e historiográfica enfrentadas. O fato é
que a elegância da respiração literária, que tece as análises propostas, representa sempre
a garantia e a dádiva de uma leitura prazerosa, além de nos oferecer a ímpar riqueza de
sua própria interpretação historiográfica. Não é por acaso que o autor ganhou, também,
com sua obra, vários concursos nacionais de literatura, na Itália, como o Prêmio Nacional
Literário, em Pisa, em 1997, e o Prêmio Literário Viareggio, em 2009, na Seção Ensaios,
além de ser membro da importante Accademia Nazionale dei Lincei.
Por consequência, se nos trabalhos do historiador emerge sempre uma extra-
ordinária erudição, esta, surpreendentemente, pode ser acompanhada com um passo
de leitura solto, leve, prazeroso, apesar, muitas vezes, da complexidade dos percursos
historiográficos confrontados ou propostos: estes, enfim, encontram, em sua escrita,
o feliz e equilibrado conúbio entre profundidade da análise e extraordinária agilização
do acesso para o leitor: um verdadeiro convite à leitura!
Por tudo isso, se a apresentação do autor não se configura como incumbência
árdua, todavia assume as características de uma tarefa de grande responsabilidade. E
isto porque se trata de um percurso e de uma obra bastante consistentes e relevantes
no panorama historiográfico contemporâneo: justamente por isso, causa certo estra-
nhamento o fato paradoxal que um historiador como Adriano Prosperi precise, ainda,
de uma apresentação para o leitor e historiador brasileiro. Ainda bem que, pelo me-
nos, junto a esta edição de Tribunais da Consciência, o esforço editorial brasileiro está
começando a corrigir o descompasso, abrindo algum espaço para outras importantes
obras do autor, a começar pela edição de Dar a Alma 1 e pela publicação do capítulo:
"As Missões no Brasil Vistas de Roma", no livro Contextos Missionários : Religião e Poder

1. Original: Dare l'Anima: Storia di un Infanticídio, Torino, Giulio Einaudi editor, 2005. Edição brasileira: São
Paulo, Companhia das Letras, 2010.
14

no Império Português 2• Isto depois da anterior publicação de outro brilhante capítulo


de livro, "O Missionário", que se encontra na obra O Homem Barroco 3 , organizada por
Rosario Villari.
Nesse breve espaço, não poderemos nos deter em uma análise nem mesmo geral
a respeito do autor e de sua riquíssima obra, todavia tentaremos apontar, pelo menos
algumas de suas características gerais, a fim de contextualizar minimamente o presente'
trabalho. Tendo em vista esse objetivo, finalmente, além da responsabilidade, temos
que manifestar a enorme satisfação de ver realizada a tradução portuguesa para o Brasil
desta específica obra à qual se destina essa breve apresentação.
Adriano Prosperi completou seus estudos junto à Scuola Normale Superiore di Pisa,
tendo sido discípulo de Delio Cantimori e Armando Saitta, durante os mesmos anos de
Carlo Ginzburg (autor bem conhecido no Brasil), com o qual Prosperi manteve sempre
uma estreita relação de consideração profissional e de autêntica amizade, não somente
intelectual. Já professor de História Moderna junto à Universidade da Calábria, de Bolo-
nha e de Pisa, desde 2002, finalmente, foi professor de História da Idade da Reforma e da
Contrarreforma junto à Normale Superiore di Pisa e é hoje professor emérito da mesma
Universidade. Destaca-se, sobretudo, por sua atuação como historiador da Inquisição e das
problemáticas ligadas ao Evangelismo e à Contrarreforma na Europa da primeira Idade
Moderna. De qualquer maneira, é difícil limitar-se a esses núcleos, sem dúvidas centrais,
da pesquisa do autor, para definir, de algum modo, seus interesses de investigação.
Em termos gerais, podemos dizer que, no amplo panorama de estudos nos quais
enveredou a riquíssima obra de Prosperi destaca-se uma peculiaridade que lhe é própria:
isto é, uma cura e atenção aos detalhes, em relação à sua pesquisa e às análises propos-
tas, que, todavia, não se resolve exclusivamente em algum tipo de "micro-história". Ao
contrário, esta atenção especial lhe permite encaminhar-se para um percurso analítico
constituído por ricas, complexas e originais interpretações do panorama histórico mais
geral e de seus mais ricos desdobramentos historiográficos, para os quais o autor sempre
manifestou uma atentíssima e cuidadosa dedicação.
É o caso, por exemplo, do livro L'Eresia del Libra Grande: Storia di Giorgio Siculo e
della sua Setta4, a partir da figura central do monge beneditino Giorgio Sículo, que viveu
na primeira metade do século XVI e foi executado como herético em Ferrara: trata-se,
nesse caso, da reconstrução, realizada pelo historiador, do processo de cancelamento
de uma memória histórica, relativa à improvisada e breve, mas densa, celebridade al-
cançada, ao redor de 1550, por esse monge e por sua maior e mais controvertida obra
literária, o livro grande, de fato.

2. Livro publicado pela Hucitec/Fapesp, São Paulo, 2011, resultado das contribuições apresentadas por ocasião do
Congresso Internacional - do qual participou o próprio Adriano Prosperi - organizado pelo Núcleo "Religião
e Evangelização", no interior do Projeto Temático "Dimensões do Império Português", do Departamento de
História e da Cátedra "Jaime Cortesão" FFLCH-USP, projeto apoiado pela Fapesp.
3. Publicada na Itália pela editora Laterza, Roma/Bari, 1991, e traduzida em língua portuguesa pela editora
Presença (Lisboa, 1995).
4. Milano, Feltrinelli, 2000.

Tri bunais da Consciência


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É O caso, ainda, de uma obra como Dare l'Anima: Storia di un Infanticídio (Prêmio
Nacional Literário, Pisa 1997)5, à qual o autor, segundo quanto nos revelou, dedicou
quase duas décadas de indagações, partindo de documentos de arquivo relativos a
um processo por infanticídio, intentado em Bolonha, em dezembro de 1709, contra
a jovem e pobre mãe Lucia Cremonini: além da atenção para com a protagonista
central do processo, a indagação proposta pela obra busca realizar a ambição de uma
tentativa de compreensão histórica que possa, de algum modo, superar o limite do
olhar de um único observador, até procurar entender o que é possível conhecer de
quem (como a protagonista) permaneça às margens de uma sociedade ou, ainda, de
quem ingressa no tempo da vida pelo brevíssimo espaço de um nascimento, subita-
mente seguido pela morte (o filho, vítima do infanticídio): e, neste caso, o trabalho
envereda, entre outros percursos, numa extraordinária análise relativa às doutrinas das
Igrejas - remetendo, muitas vezes, para além delas, até a Antiguidade - com relação
à alma, às disputas surgidas a seu redor entre diferentes contraposições religiosas ,
particularmente durante a Idade Moderna e no âmbito do surgimento e da afirmação
de sua nova concepção científica.
É o caso, finalmente, de um dos últimos trabalhos, Giustizia Bendata. Percorsi
Storici di un'lmmagine (prêmio Viareggio, em 2009, no âmbito Ensaios)6, mais uma
indagação historiográfica que procura alcançar, num outro plano, a proposta de tecer
a novidade de uma investigação que escape do objetivo tradicional de desenvolver-se
ao redor de um personagem central, mas, neste específico caso, possa efetivar-se, pelo
contrário, numa profunda análise das imagens da justiça, que, nessa viagem, manifesta
toda sua capacidade de sintetizar emblematicamente um rico patrimônio de emoções e
de valores, tanto dos indivíduos quanto das sociedades: um duplo emblema, aquele de
uma justiça vendada ou, ao contrário, caracterizada por um olhar agudo e previdente,
sintetiza os vários percursos e representações que a projetam e a expressam eviden-
ciando, em diversos momentos históricos, ora sua loucura, ora sua imparcialidade.
E a plasticidade da simbologia em questão pode ser colhida, justamente, na falta de
uma unilateralidade ou correspondência imediata entre as características que lhe são
atribuídas e os símbolos através dos quais se pretende representar essa justiça em suas
várias imagens, ao redor das duas representações guias, estreitamente necessárias con-
forme as diferentes abordagens interpretativas de sua função: a imparcialidade de uma
cegueira, da justiça vendada, e o olhar aberto e agudo, de uma justiça que deve enxergar
claramente e em profundidade.
Esses, dizíamos, são apenas poucos exemplos para acenar a algumas das ricas carac-
terísticas e propostas investigativas sugeridas e elaboradas pelo autor, sem levar em consi-
deração, ainda, algumas de suas obras mais clássicas, mas não menos estimulantes em seu
exercício historiográfico. Entre essas é apenas possível apontar, aqui, para a Storia Moderna e

5. Esse texto, como já apontamos,encontra-se traduzido finalmente em edição brasileira: cf. citação, na nota 1.
6. Torino, Giulio Einaudi editor, 2008.

Breve Apresentação
16

Contemporanea 7 e Il Concilio di Trento: Una lntroduzione Storica8• Não por último, não podem
ser esquecidos alguns de seus trabalhos seminais e hoje já clássicos, como o artigo, publicado
em 1976, "America e Apocalisse: Note sulla 'Conquista Spirituale' del Nuovo Mondo" 9 ou
aquele de 1982, "'Otras Índias': Missionari della Controriforma tra Contadini e Selvaggi"10,
e outras numerosas e importantes contribuições, algumas das quais foram recolhidas, em
1999, numa preciosa edição de ensaios que leva o título de America e Apocalisse: e Altri Saggi 11.
Nessa direção e com esses trabalhos, enfim, emerge a proposta de uma circula-
ridade preciosa e atenta que pode ser encontrada nos vários percursos de nosso histo-
riador: isto é, a emergência de um contínuo ecoar do geral no detalhe e dos detalhes
nos contextos históricos gerais. Detalhe e contexto, particularidade e generalidade
se constroem, enfim, em uma dialética (histórica, não lógica, evidentemente) que faz
emergir uma contínua evocação e provocação entre os sujeitos históricos (os indivíduos)
e as orientações culturais de uma época (os contextos), mas também, uma renovação
no olhar distanciado do historiadpr.
Estas são, muito limitadamente, algumas das características, mesmo que muito
gerais, da escrita historiográfica de Adriano Prosperi, encontradas em algumas de suas
obras principais que, por sua relevância e seu interesse, sem dúvida acreditamos merece-
doras de maior atenção editorial no Brasil. E, para além dos trabalhos citados até aqui,
e do artigo, brilhante e precursor de uma nova perspectiva historiográfica relativa ao
problema da missionação americana, "America e Apocalisse" (América e Apocalipse),
ainda queremos destacar: Tra Evangelismo e Controriforma. Gian Matteo Giberti (1495-1543) ,
Roma 1969; Giochi di Pazienza. Un Seminario sul "Beneficio di Cristo" (escrito com Carlo
Ginzburg}, Torino, 1975; L'lnquisizione Romana. Letture e Ricerche, Roma 2003 ; e, entre
os últimos trabalhos: Eresie e Devozioni: La Religione Italiana in Età Moderna (coleção de
ensaios em 3 vols.), Roma, Edições de "Storia e Letteratura", 2010; junto com Vincenzo
Lavenia e John Tedeschi organizou o precioso Dizionario Storico dell'lnquisizione , Pisa,
Edizioni della Normale, 4 vols., 2010; e, enfim, seu mais recente trabalho, Le Ürigini
dell'lntolleranza, Roma/Bari, Laterza, 2011.
No que diz respeito à especificidade da presente obra, neste breve espaço e em
conclusão, vale a pena destacar que, como o próprio autor nos declarou , ela nasceu do
tema crucial da Missão, que representava, inicialmente, o coração do livro 12 • Mas, para

7. Obra em dois volumes, o primeiro dos quais escrito por Prosperi, com o subtítulo: Dalla Peste Nera alia Guerra dei
Trent'Anni, e o segundo, com subtítulo: Dalla Rivoluzione Inglese alia Rivoluzione Francese, escrito conjuntamente
com Paolo Viola. Torino, Giulio Einaudi, 2000.
8. Torino, Giulio Einaudi, 2001.
9. Publicado em "Critica Storica", XIII, 1976, pp. 1-67.
10. Em Scienze, Credenze Occulte, Livelli di Cultura, Firenze, Olschki, 1982, pp. 205-234.
11. Pisa/Roma, lstituti Editoriali e Poligrafici lntemazionali, 1999. Quatro são as sessões que recolhem estes en-
saios, e dão a medida, de algum modo, dos vários interesses historiográficos do autor. Trata-se de: l. Culture
dell'lntolleranza. La Missione; 2. La Giustizia; 3. Eresia e Folklore; 4. Misticismo, Santità, Immagini.
12. En passant, aqui, é com gratidão e satisfação que apontamos, a esse respeito, as generosas palavras que o pro-
fessor Adriano nos enviou, quando se abriu, inicialmente, a possibilidade de tradução dessa obra: palavras do

Tribunais da Consciência
17

desvendar a peculiar interpretação historiográfica desse núcleo central, o estudo teve que
deter-se, nas primeiras duas partes do trabalho, ao redor de dois temas , a Inquisição e a
Confissão, propostos como momentos de reflexão densos e prenhes de consequências
para entender melhor o projeto missionário da primeira modernidade, sobretudo em
sua revolucionária versão jesuítica.
A tese que se encontra na base do livro de Prosperi diz respeito à presença da
Igreja na Itália moderna, assim corno se tornou perceptível não somente em termos de
poder político, mas também em termos de conquista das consciências.
Não vamos nos deter, aqui, sobre as consequências implícitas, até nossos dias,
dessa embaraçosa presença da Igreja na sociedade italiana. Isto porque conseguimos
ver aqui realizada, com grande satisfação, a presente proposta da versão ed itorial da
última edição italiana da obra (realizada em fin al de 2009), na qual aparece um Prefácio
inédito proposto pelo próprio autor que atualiza o contexto e a perspectiva do traba-
lho, a dezesseis anos de sua primeira publicação, destacando justa e brilhantemente,
entre outras coisas, esse impacto social da Igreja no contexto político, social, cultural e
intelectual 13 da península. São esses, de fato, os frutos maduros e as consequências que
podem ser vistos desprendendo-se da profunda análise histórica da obra em questão.
O percurso proposto pelo volume reconstrói, enfim, com grande clareza e brilho
analítico, as formas e os tempos de afirmação da hegemonia católica na Itália depois da
ruptura da unidade religiosa europeia. A problemática é abordada através da an álise de
três tipos de presenças institucionais da Igreja: a Inquisição romana, primeiro tribunal
centralizado da península entendido como poder policial e repressivo; as novas fo rmas

próprio autor que revelam, de fato, a centralidade do tema da missão enquanto estímulo e ponto de partida
fundamental do estudo. Esses os termos: "[ ... ] e penso que para um livro como este meu você seria, de qual-
quer maneira, o historiador mais apropriado (especialmente no que diz respeito ao tema crucial da missão que
era o núcleo do qual nasceu o 1it1ro) do qual poderia desejar uma apresentação: e com o olhar de fora da Europa
e com a plena experiência direta da realidade italiana" ("[ ... ] e penso che per un libro come il mio tu saresti
comungue lo storico piu esperto [specialmente quanto ai cruciale tema della missione che era il cuore da
cui il libro e nato] dai quale potrei desiderare una presentazione. E con lo sguardo da fuo!i Europa e con la
piena esperienza diretta della realtà italiana").
13. Vejam-se, a esse respeito, as extraordinárias indicações relativas à manifesta vontade de marginalização (e conde-
nação), por parte dessa Igreja, das obras de Benedetto Croce e do historiador das religiões Raffaele Pettazzoni,
fundador e mestre referencial indiscutível da História das Religiões, em sua vertente especificamente italiana
(importante vertente de nossa própria formação historiográfica, diga-se de passagem). Além de compartilhar
esse comum destino de uma anacrônica discriminação junto à Igreja italiana da época, observamos todavia
como os dois historiadores laicos encontravam-se diferentemente orientados com relação à concepção da
autonomia da análise histórica em relação ao "objeto religioso": negada por Croce, apontada enquanto
possível e fundamental por Pettazzoni. A figura do historiador/ etnólogo Ernesto De Martino que se destaca,
justamente, entre os dois mestres é emblemática dessa diferença. De fato, foi curiosamente a influência do
próprio Pettazzoni que produziu a autonomização do percurso historiográfico de De Martino, com relação
à sua perspectiva de formação, influenciada por Benedetto Croce (responsável da primeira fo rmação do
historiador-etnólogo napolitano), em direção a seu novo percurso de indagação histórico-religiosa: passagem
que já estava se tornando evidente desde a publicação de Il Mondo Magico, de 1948, trabalho orientado pelo
antigo mestre, Benedetto Croce.

Breve Apresentação
18

de confissão, enquanto intervenção persuasiva e doce, de alívio das co n . ~ .


. . . . . . sc1enc1as; a
pregação dos m1ss10nanos nos campos e no meto das classes populares (ant
. . . es que na11
missões extraeuropeias), como mstrumento de anunação e co nquista cultural.
É justamente na realidade histórica do Quinhentos e do Seisce nto -
s q ue este
esquema sofreu variações de todo gênero: a Inquisição, depois da primeira , ·sa ngrenta
e duríssima fase de luta contra a heresia, se tornou um tribunal da mo ralid ad,,"' COt J'J•1a-
na. A confissão, inicialmente utilizada como instrumento policial, torno u-se teatro de
solicitações e seduções de natureza vária que deixava à condução ecles iástica O controle
da consciência como tribunal de um sistema de normas morais a caráter individualista,
dominado pelas culpas do sexo. Finalmente, foi função dos miss io nários, que ope raram
entre as plebes camponesas europeias, aquela de pôr em relação persuasão e rep ressão,
oferecendo, dessa maneira, uma base sólida à hegemonia católica . A co mplexidade
desses aspectos, suas transformações na época e a relação entre eles são enfrentados,
respectivamente, nas três partes em que se divide a obra: na parte primeira "A In qui si-
ção" , na segunda "A Confissão" e na terceira "Os Missionários" .
A reconstrução historiográfica da época, do funcionamento e das transfo rmações
institucionais em causa e das consequências na realidade histórica, política, social e
cultural italiana, é conduzida com uma investigação de notável erudição, caracterizada
por uma atentíssima leitura das realidades históricas da península na primeira Idade
Moderna: desde o nascimento da Inquisição italiana até sua relação com os estados
italianos, passando pela análise da "guerra espiritual" proposta pelo Concílio de Tren-
to e versando, enfim, na acurada investigação relativa às questões de consciência, que
batem às portas do próprio momento conciliar, estabelecendo as bases da nova relação
entre bispos e inquisidores, entre o controle das consciências e aquele do território. É
a afirmação de uma nova pedagogia inquisitorial que leva, consequentemente, a uma
nova base histórica para se pensar a relação (jurídica) entre foro interno e foro externo.
Finalmente, a análise relativa ao método missionário - sobretudo jesuítico - leva a uma
riquíssima leitura de sua função privilegiada de "mediador cultural" estabelecendo as
bases para um possível e rico confronto entre sua atuação europeia e extraeuropeia
(sobretudo, mas não só, americana).
Pela peculiaridade de sua abordagem, pela atenção da análise proposta, pelos
pormenores sobre os quais se centra e se adentra sua investigação e, enfim, pela extra-
ordinária relação que estabelece entre os aspectos até aqui sinteticamente apontados,
mesmo tendo sido publicada na Itália em 1996, não há dúvidas de que esta obra continua
sendo de grandíssima atualidade: e se isso vale pela rica tradição da historiografia italia-
na e europeia, tanto mais vale para aquela brasileira. E, com relação a esta última, não
somente para preencher algumas lacunas ou para abrir novos e importantes confrontos,
mas também pela relação profunda que emerge, desta investigação, entre alguns temas
historiográficos centrais e já clássicos no Brasil (como, por exemplo, aqueles relativos à
Inquisição ou à problemática missionária) e outros temas (entre estes aquele da confissão)
que, desprendendo-se de novas pistas de indagação historiográfica, mostram com toda
evidência sua importância para entender melhor os primeiros. Nesse sentido, esta obra

Tribunais da Consciência
19

representa um texto importante - talvez se possa falar já de um "jovem clássico" _ e uma


base fundamental para orientar, temática e metodologicamente, estudos futuros que
se abram a uma maior complexidade da relação histórica entre os aspectos destacados
isto é, aqueles relativos à Inquisição, à consciência e à ação missionária, na primeira'
época moderna. E, não secundariamente nessa trajetória, podem-se encontrar rastros
importantíssimos para entender, além das consequentes e novas peculiaridades do
contexto europeu, a constituição e as características de códigos que, necessariamente,
foram sendo modificados até permitir implementar a perspectiva e a base de um en-
contro com a diversidade cultural, processo exaustivamente ensejado ao longo de toda
essa época histórica.
E se, antes de apontar suas características e problemáticas historiográficas, co-
meçamos esta apresentação do autor e de sua obra evidenciando a clareza e elegância
literária de sua escrita, cabe destacar aqui, finalmente, que a textualidade na qual se
manifestam a riqueza dos percursos investigativos e a erudição profunda que transpira
deles não apresenta (como poder-se-ia esperar e temer, a priori) a constituição de uma
"obra fechada", em si concluída e configurada enquanto monumentum com seu caráter
(eventual e pesadamente) definitivo: ao contrário, na proposta de seus percursos, nas
modalidades de suas abordagens, nas ricas intuições e instigações espalhadas ao longo
do desenvolvimento da análise, para o olhar atento do historiador, a obra apresenta-se
caracterizada enquanto uma "obra aberta", profunda e ricamente tecida de estímulos,
sementes, provocações, novas hipóteses, apontando para possíveis e desejáveis percursos
historiográficos que se delineiam no horizonte partindo das problemáticas centrais
do livro, mas, às vezes, surpreendente e eventualmente, emergindo com certa peculiar
autonomia, mesmo que mantendo uma rigorosa coerência de perspectiva conforme a
proposta do trabalho. Tudo isso torna esta obra um rico e fortíssimo estímulo para o
aprofundamento de, ou o confronto com, problemáticas, perspectivas, análises, temas
apontados, mas não encerrados ou concluídos, em sua implícita provocação e clara pro-
posta: tanto para o historiador, quanto para o leitor em geral. Com essas características
e possibilidades em aberto, enfim, este livro oferece-se também por suas importantíssimas
contribuições no âmbito da História da Reforma e da Contrarreforma, da História da
Inquisição (italiana, mas não só), da missionação em Idade Moderna - com o destacar-se
da inédita centralidade da confissão enquanto seu instrumento privilegiado - e, mais
geralmente, de problemáticas de História Moderna.
Todavia, mesmo enquanto mais ligada a essas temáticas específicas e a eventuais,
ricas e numerosas, provocações e "aberturas" delas decorrentes, acreditamos que esta
obra manifeste ainda um importantíssimo valor para poder pensar, também, a uma em-
brionária História do Método Missionário (na primeira Idade Moderna). Contribuição
importante para a historiografia brasileira mais recente que, por um lado, pode encontrar
neste precioso trabalho de Adriano Prosperi, ricos estímulos e novas orientações, além
das específicas perspectivas de análise; mas também, por outro lado e ao mesmo tempo,
esta mesma produção historiográfica brasileira pode oferecer, por sua vez e com _sua
especificidade, um importante "banco de prova" das hipóteses interpretativas sugeri d as

Breve Apresentação
20

pelo brilhante texto que, finalmente, temos a satisfação de ver entregue ao público dos
historiadores e dos leitores brasileiros.

Adone Agnolin
História Moderna e História das Religiões
Departamento de História - FFLCH-USP

Tribunais da Consciência
PREFÁCIO 1

questão que se coloca no começo deste livro - lembrada há mais de dez anos - está
A entre as mais antigas e recorrentes na história da Itália: quais seriam, as razões
históricas da hegemonia da Igreja de Roma sobre a sociedade italiana? Ela foi colocada,
entre outros, por Benedetto Croce em sua Storia dell'Età Barocca in Itália, escrita na Itália
pós-liberal de 1924, enquanto a vitória política de Mussolini acontecia com a marca da
aliança entre trono e altar contra a ameaça de revolução social. Essa mesma questão
reapresentou-se em nossa mente diante da profunda crise das instituições da República
italiana na época do choque social e político ocasionado pelo caso Moro. Diante desse
contexto, pareceu inevitável no trabalho dos historiadores que se voltasse a indagar as
fontes com novas perguntas em relação àquelas dominantes nas muitas pesquisas de his-
tória da Igreja desenvolvidas no segundo pós-guerra e mais ou menos reconduzíveis sob
a insígnia da Reforma católica - uma insígnia oposta em relação à que figurava no título
da obra de Benedetto Croce. A reconstrução de um país derrotado e destruído não só
materialmente dera-se então sob a condução de um forte partido católico. O sopro de
crescimento econômico e de esperança social e política tornara-se perceptível também nos
estudos históricos, que conheceram à época o início de um intenso período de discussões
e de abertura internacional. Mas logo tornou-se evidente, na junção entre guerra e pós-
•guerra, o surgimento de novos interesses em torno da história religiosa italiana e da fase
tridentina do catolicismo, aquele que se tinha encarnado nas paróquias e nas dioceses. A
décadas de distância, no momento da crise, enquanto surgiam as profundas resistências
internas e internacionais do encontro entre o centro católico e a esquerda, encontro levado
adiante por Aldo Moro, veio à tona uma fisionomia diferente ~o catolicismo italiano, a do
poder monárquico do Papa-Rei. Uma fisionomia antiga tornava a aparecer, ainda que em
condições históricas profundamente alteradas pelas duas realidades que se enfrentavam:
alteradas tanto para a Itália, que de país atrasado tornara-se uma moderna democracia

1. Dezesseis anos após a publicação da primeira edição deste livro - já um clássico da historiografia, não somente
italiana, mas finalmente europeia - sobre as problemáticas da Reforma e da Contrarreforma, o Autor elaborou
o presente prefácio como acréscimo necessário para atualizar o leitor em relação ao conteúdo da obra: esta
versão nos foi adiantada, pelo próprio autor, para ser incluída nesta edição brasileira da obra e encontra-se
atualmente publicada, com pequenas diferenças redacionais, na edição da obra reeditada, em formato de bolso,
pela Editora Einaudi, Torino, em 2009 (Nota: Adone Agnolin).
industrial, como para a Igreja católica que, com o Concílio Vaticano II, acertara as contas
com a idade da Contrarreforma e apresentava-se no mundo com um grande capital de
prestígio e um renovado impulso para a abertura internacional. Nesse contexto, porém,
não tinha significado menor para o governo da Igreja católica a exigência de exercer uma
soberania especial sobre a Itália que se valia agora de outros meios em relação àqueles da
mediação de um partido que se reportava à democracia ainda que cristã.
Era um poder que fazia ouvir sua voz na crise das instituições estatais, mas que
estava, ao mesmo tempo, em condições de agir direta e profundamente nas consciências.
Para entender como e quando se tornara possível a criação dessa profunda nervura da
sociedade italiana, percebia-se a necessidade de indagar o que tinha acontecido no pe-
ríodo em que, em uma Itália politicamente dividida, o desafio da Reforma protestante
fora acolhido pela Igreja de Roma. Juntamente com a restauração e o fortalecimento
da rede fixa de governo dos povos constituída pelas dioceses e paróquias surgia a estru-
tura institucional do controle das consciências com seu ministério romano da verdade
concentrado no Santo Ofício - o organismo que tentara bloquear a difusão do novo
'partido comunista com a excomunhão culminada em 1° de julho de 1949 - e o aparato
móvel das missões organizadas para a conquista das massas populares, que logo depois
(em maio de 1950) levou em périplo por todas as paróquias do país a estátua de Nossa
Senhora peregrina para comemorar a vitória da democracia cristã nas eleições de 1948;
tanto em um como no outro caso surgira no início da república democrática italiana
uma forma da presença da Igreja católica no pais que tinha tido origem em um mo-
mento histórico bem diferente. A obra de controle e de governo das consciências com
o Santo Ofício da Inquisição e com as campanhas missionárias remontavam ambas à
época da Reforma e da Contrarreforma e tinham permanecido durante séculos as duas
faces do governo romano da sociedade italiana. Ambas tinham como base a conversão
e a confissão, pelo menos desde que as reformas iluministas do século XVIII e, no sé-
culo XIX, o Estatuto do novo Reino saboiano da Itália tinham eliminado a utilização
. do coercitivo "braco secular" a servico das excomunhões e das sentencas eclesiásticas .
.., J J •

Nas duas pontas de uma história iniciada no século XVI encontrava-se um mesmo fio :
o de uma defesa da sociedade diante dos perigos da liberdade de consciência que,
suscitando movimentos coletivos em torno de imagens de devoção e governando as
escolhas individuais por meio da confissão dos pecados, tendia a mobiliar estavelmente
o mundo interior dos indivíduos com imagens e pensamentos de uma disciplina da
obediência e da fé. Sermões de missionários e ensinamentos de párocos encontravam
- ~o momento da confissão a ocasião pedagogicamente mais eficaz para instilar uma
devocão obediente, verdadeira muralha contra a ameaca do individualismo e contra a
' '
ideia e a realidade da liberdade de consciência que era expressão desse individualismo.
Nos limites do sistema vigiava uma magistratura de comissários da fé, ou como se cha-
maram de inquisidores, destinada a exercer funções de vigilância contra os perigos da
desobediência e da escolha pessoal - a heresia. No sistema de disciplina social que as
diversas confissões do cristianismo europeu, mesmo divididas e em luta entre si, foram
obrigadas a construir, tratava-se de interceptar e atacar crimes e pecados para edificar

Tribunais da Consciência
23

uma sociedade obediente e moralizada não só por contrições externas, mas também e
sobretudo pelas normas interiorizadas da autodisciplina. Nisso a obra da Igreja católi-
ca _ ou, como preferiam dizer os protestantes, da Igreja de Roma - distinguiu-se por
colocar em funcionamento um poder autônomo de repressão e de punição por parte
do corpo eclesiástico ao qual os governos seculares deviam prestar ajuda.
Colocados diante de um projeto institucional de longa duração, tratava-se de
compreender melhor como, na situação europeia da época da Reforma, doutrinas e
instituições por si mesmas não novas tinham encontrado o novo ordenamento que lhes
garantiu a duradoura eficácia sobre a realidade italiana.
Foi esse, portanto, o escorso do trabalho. Tratava-se de estudar melhor o início
e a evolução de formas da presença da Igreja que, renovadas e reforçadas no século
XVI em um momento de perigo e de choque, tinham garantido a longa hegemonia dos
séculos da idade moderna e reapareciam no século das massas com renovado vigor após
o eclipse da época liberal do reino da Itália: a confissão, a inquisição, a missão. Formas
que tinham marchado paralelas para atacarem unidas, concordes no resultado mas di-
ferentes na estratégia: era essa a hipótese de pesquisa. Durante o trabalho, seguindo as
linhas do plano, deu-se a surpresa de uma descoberta: as linhas paralelas tinham tido
um momento de convergência, ou melhor, de intersecção e de subordinação.
As descobertas são o fruto que por vezes premia o trabalho dos historiadores,
semelhantes nisso em seu pequeno e não costumeiro laboratório aos cientistas que
estudam as leis da natureza. E, como o mundo da natureza, também os depósitos das
lembranças do passado permitem descobertas dos mais variados gêneros, algumas ca-
pazes de complicar as configurações conhecidas, outras de esclarecer e simplificar o já
conhecido. A descoberta de que se fala nesse livro pertence ao segundo tipo. O título
Tribunais da Consciência foi escolhido para indicar o núcleo da descoberta.
Esse título não era original: foi sugerido pela lembrança involuntária de um cé-
lebre texto, como descobriu em seguida o autor graças à observação de um experiente
leitor. Fora cunhado por Tommaso Campanella em 1604. É uma passagem que vale a
pena ser lida por extenso:

Vê-se ainda que hoje não se vive apenas com as leis de Cristo, mas com as leis civis, porque
a maldade e a fragilidade não se espera observá-las, mas a lei de Cristo tem os tribunais da consciência
perante os quais cada um deve penitenciar-se das culpas, fazendo em si justiça voluntária, e bem-
-aventurados seríamos se não houvesse necessidade de outro tribunal, e cada um demandasse pena
de sua culpa, sem esperar que outrem o acuse, e chame testemunhas. E isso foi desejo de Sócrates, e
dizia que assim quer a razão natural, e que não haja oradores para defender as causas, nem legistas
glosadores, como menciona Platão. Não disse apenas isso Sócrates, mas que tampouco deve-se o
homem defender e desculpar, e se condenado por erro, deve receber a sentença com humildade,
esperando de Deus recompensa após a morte. E isso fez e disse Sócrates, imitando Cristo, que ele
não conhecia em carne, mas em natureza racional2.

2· Tommaso Campanella, L'Ateismo Trionfato, org. de Germana Ernst, Edizioni della Normale, Pisa, 2004, vol. 1,

Prefacio
24

Os tribunais de que fala Campanella são os da confisão, como lugar onde se recebe
a penitência por culpas espontaneamente confessadas. É na confissão cristã , segundo
Campanella, que impera a lei de Cristo e de Sócrates, superior às leis civis, assim como
a justiça voluntária é mais elevada e mais verdadeira do que aquela ministrada pelos
juízes do Estado. Mas a confissão descrj ta por Campanella é a voluntária e e~ ontânea

... -- ---------
r"dos pecados, mais_par~ J ~ ~nos naquela ép; c~ - c9m ~-ver~ão protestante da
-. -- -- -
con fissão cristã do que co~ a católica. Nessa última, o tribunal ficava nas mãos de um
--
juiznumario,p~~ ve.ze; -i~ dicado como um médico das doenças da alma mas sempre e de
todo modo dotado de poderes e de regras para a administração de uma justiça especial.
Em suas mãos, a palavra "confissão" e a outra que frequentemente vinha associada a
ela - a "orientação espiritual" - tinham acabado por se tornar um poder: não pequeno,
aliás, de acordo com uma célebre definição, "o mais completo existente no mundo" 3.
Esse poder, é claro, podia parecer inconsistente e o sacerdote que o admin istrava po-
dia parecer um pequeno empregado do culto colocado ali para distribuir perdões sem
~ nhuma condição. Nos tempos de Campanella distanciava-se a lembrança do uso
l
t que dele fizera Carlo Borromeo para torná-lo um ~ orali?ade pública"4;
e avancava um uso banalizador da penitência sacramental cg_mo apta a absolver de
r - - _ ! -- - - ----- - -

qualquer pecado ao cust~ _~e algu111as_preces a s~r ruminada distraidamente desde que
o pec;for ~ e~ç!:._e_yj~ sir-Édwin S~ s_- "perm~i:-eça_n_a__ Igrej-ª, cfe~endo obediência ao
5
papa" • Desse modo, o muiidoitaliano co meçava a tornar-se, na imagem circulante no
-----..:....
munâo anglo-saxão, o de uma s~ Q . C .tit~~ de~ i_cada a obscenidades encober-

--·
tas pela devoção. O turvo repertório exibido por Richard Burton em sua Anatnomy of
..... - - .. ..---
Melanchoíyera certamente exagerado mas não desprovido de bases reais: os documentos
de governo eclesiástico mostram que já no fim do século XVI o confessionário inven-
tado por Borromeo como estrutura física dedicada a separar e a controlar as pulsões
eróticas produzidas pelos discursos sobre sexo era usado nos conventos como espaço
para bacanais e "farras" noturnas de freiras e frades 6 •

p. 114 (o grifo é meu). O manuscrito autógrafo traz uma versão eliminada: "defender as culpas" em vez de
"defender as causas" (vol. 2, pp. 192-193). Agradeço ao amigo Tommaso Cavallo pela indicação.
~ Jules Michelet, II Prete la Donna e la Famiglia, trad. it. org. por M. Sanfilippo, Lerici, Cosenza, 1977, p. 176.
~ Cf. W ietse De Boer, The Conquest of the Soul, Brill, Leiden, 2001 ; sobre os protestos e as resistências diante das

0 formas de penitência pública ver pp. 321-323. Da tradução italiana de Aldo Serafini, Einaudi, Torino, 2004.
Cito a partir da trad. it. da Relazione feita por frei Paolo Sarpi e publicada em Genebra em 1625 (Paolo Sarpi,
- Opere org. de Gaetano e Luísa Cozzi, Ricciardi, Milano/Napoli, 1969, p. 304).
6. A "orgias que eram feitas no quarto dos confessores e farras nos confessionários" (che si facevano nella camera
di confessori et trebi neli confessionali) refere-se uma minuciosa "Instruttione" para o duque de Ferrara, redigida
por volta de 1590 (cf. Lorenzo Paliotto, Giovanni Fontana Vescovo di Ferrara (1590-1611) , Seminario diocesano
di Ferrara-Comacchio, edizioni Cartografica, 2002, pp. 287-291; ver p. 287). Sobre os mosteiros católicos cf.
Richard Burton, The Anatomy of Melancholy , p. 1, sec. III mem. 2, subs 4 (ed. H . Jackson, New York, 2001 ,
pp. 418-419). Sobre a criação do confessionário é fundamental o ensaio de Wietse De Boer, "Ad Audiendi non
Videndi Commoditatem. Note sull'lntroduzione del Confessionale Soprattutto in ltalia", Quaderni Storici, n.s.,
LXXXXVII, 1991, pp. 543-572.

Tribunais da Consciência
j
25

--------- --
Mas se a consciência__p__Qdia sair ilesa daquele tribunal, havia outro que
-
usava sistemas mais eficientes: ; -da lnquisÍçã-9. Tommaso Campanella, que
- - -- - - -

tive~ ~ experiência pessoal c~m ele, s-abia bem disso: uma experiência
familiar à época para muitos que, irul_o___cQnf<:ssar o ~ e c a d o s , viam:_
-se encaminhados pelo confessor ao inquisidor se o que sabiam de si ou dos --~
outn; s 7 ug; riam leituras ou ideíãs- ~ i-cas-:- Mas, escrevendo no cárcere e
empregando a pena em uma obra apologética na tentativa de demonstrar-
-se arrependido e convertido, foi levado a exaltar o caráter livre e voluntário da
- - - ---- - -- -----· _ _ , , - - - - -
"justiça por si" _gue~ra feita na confissão sacramentâ[ Assim, o exame âas próprias
q.1lp;~ el_2_Pecado; -acabava :por c~incidir_com o "tribunal ~a consciência--,,-
da lei natural. Por essa via, tornava-se possível aproximar Sócrates ae Cristo: o que
já tinha sido feito antes de Campanella por um autor que lhe era muito familiar,
Erasmo de Rotterdam, que invocara o filósofo pagão com a ladainha Sancte Socrates
ora pro nobis . Mas era realmente livre e voluntária a tal "justiça por si" feita com __
a confissão cristã? Não. Já no século XIII, o papa Inocêncio III , com o Concílio
- .,.__:__:__ ___ __ ------=- -
LateraI!_e_nse IV emanara o d~s reto _que tornava sua prática obrigatória pelo menos
.---- ~ - - - -~- ----- - - - ---- -

uma vez ao ano. A preocupação do controle sistemático da obediênciià-autoridade


si ugia da urgência da luta contra a dissensão her~ ~- E o passo sucessivo foi dado
com o decreto de reforma do Concílio de Trento que impôs aos párocos manter o
registro preciso de quem cumpria e de quem não cumpria seu dever. São essas as
pedras fundamentais mais conhecidas do percurso que levou a fazer da confissão
U!Il rito qe passagem anual imposto e atentamente registrado. Todavia , permanecia•\
b ~ vulgo da penitência sacramental a c~acterística fundamen- )
tal da espontânea vontade individual de autoacusar-se, como se se tratasse de um
tribunal onde a pessoa,- como d ~Crunpanella, "~=-~!~classe pe~~ _:.Ua -culpa, i
sem esperar que outrem o a_çuse e chame testemunhas . Espontaneidade e sigilo da ,
confissão foram descritos e elogiado~-pÔr uma literatura apologética e por empenha-
das explorações teológicas em torno da necessidade ou não de um arrependimento
sincero para obter para o pecador o perdão divino. A realidade era diferente.r
reorganização geral do sistema dos sacramentos que esteve no centro da reforma
do cristianismo europeu teve na questão da penitência o núcleo esse~cial: a -partir

1
Oa primeira tese de Lutero sobre as indulgências, a definição ãàpenitência e de
seu lugar na vida do cristão tornou-se o problema principal. Disso devia sair uma
profunda transformação da~ prátic~s tradici~n~is. ~m teoria, a confissão continuava
sendo um momento essencial na vida do cnstao que se reconhecia essencialmente
como pecador. Mas no concreto da evolução do cristianismo moderno na Europa
as formas assumidas então pelas práticas para denunciar e eliminar as culpas foram
muito diferentes de igreja para igreja. No mundo católico, confi~ se o caráter
sacramental da penitência e conferiu-se, portanto, um poderferlor~~t~ às palavras
rituais do confessor ao eliminar as culpas. Mas mesmo aqui foi em um contexto
de cada vez mais nítida separação entre vida religiosa e vida civil, entre cristão e )
súdito, entrepecado e crime que .2-E9der de .::missão a-os- pecãOos foi obrigad_o a .

Prefácio
26

redefinir suas características 7• No entanto, onde a Igreja pôde exercer um domínio


' diretamente político houve tempo para uma tendencial subordinação da correção
do pecador como fato espiritual à construção de uma disciplina da sociedade . Foi
~ esse o caso da experiência de "conquista das almas" realizada em Milão por Carla
Borromeo, parecida por certos aspectos aos modelos da Igreja reformada por João
Calvino, onde o recurso à excomunhão renovou características antigas 8• No que diz
respeito à Igreja de Roma, desenvolveu-se em torno da confissão um longo embate
q~~ ~ó re~ente~~~te -~~lou alguns de seus momentos . A ponta mais alta do con-
flitQ__ veio à tO.!la justamel}te__quando o Concílio de Trento lev~va adiante a reforma
,.- - --- -
que vinculava a prátic~ sacramental. Coube ao pontífjce Paulo IV Caraja dar um
r- p~;so m u ~-i;-~ompro~~ etéd~-~~que subord ~nol! o tribunal de foro interno da

onfis_~ão ao da Inquisição. O documento com que Paulo IV tornou obrigatório em


~

Ll
559 o emp-r~go da confissão para fins de polícia inquisitorial é a fonte primária da
escoberta que se encontra no cerne deste livro.
A medida estava em gestação fazia tempo. Tinham ocorrido episódios anteriores
de inquisidores que recorreram à pressão violenta para impor aos conf! ssores a revelação
daquilo que tinham ouvido. A tendência tornara-se irresistível- naf ase aguda do con-
flito entre Reforma e Contrarreforma. Em Messina, -e~ 555 , um édito do inquisidor
impus~-;~b-penaâeexcõmunhãÓ. ~ brigação de denunciar os suspeitos de heresia e
proibira aos jesuítas de absolver quem não o fazia. Mas o resultado, visto com os olhos
dos jesuítas, tinha sido o de afastar as pessoas da confissão, um sacramento que ocupava
um lugar central na experiência religiosa deles e em sua estratégia de conquista das almas.
Quando apareceu o documento de Paulo IV, o jesuíta Juan de Palanco criticou-o como
) uma armadilha, um laço "con que se enlazavano muchas animas" 9 • Esse laço, contudo,
funcionava: a providência demonstrou logo sua eficácia no âmbito dos estados italianos
mais sujeitos ao governo papal da religião. Em 1561 , o núncio pontifício na Toscana
pôde escrever ao cardeal Michele Ghislieri que "com o aproximar-se dessa semana santa"
tinham sido descobertos muitos possuidores de livros proibidos 10 •
A providência tomada por Paulo IV em 1559 não foi um ato isolado, um bloco
errático na planície sedimentada pela longa duração da religião e de seu governo. Ela

7. Sobre a história da distinção entre pecado e crime consultar Paolo Prodi, Una Storia della Giustizia, Bologna, li
Mulino, 2002 e a Vincenzo Lavenia, L'Infamia e il Perdono. Tributi, Pene e Confessione nella Teologia Morale della
Prima Età Moderna, Bologna, II Mulino, 2004.
8. Para Milão, veja-se de Wietse De Boer, The Conquest of the Soul trad. it.: La Conquista dell'Anima. Fede, Disciplina
e Ordine Pubblico nella Milano della Contrariforma (2001), Torino, Einaudi, 2004. Em Milão também, assim
como no caso do modelo de Genebra sobre o recurso do uso da excomunhão e da confissão pública perante
a comunidade, eram modelos antigos da penitência que reapareciam. Para a tradição fundada por Calvino
cf. os ensaios recolhidos em Sin and the Calvinists: Moral Control and the Consistory in the Reformed Tradition. Ed.
Raymond A. Mentzer ( Sixteenth Century Essays and Studies, vol. XXXII, 1994).
9. Cf. do autor deste volume "Anime in Trappola. Confessione e Censura Ecclesiastica all'Università di Pisa tra
'500 e '600", em_, L'Inquisizione Romana. Letture e Ricerche, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura 2003,
pp. 263-296; ver pp. 264-267.
10. Idem, p. 266.

Tribunais da Consciência
27

re~ e~são ~~iste_?! ~-d_es~~~uito __entre os dois tipos de tribunal, 0 ponto


c~lmi_~~nte de urna estratégia de controle centrãfizado das consciências que tinha sua
ori!!em no sistema--dosttibunais papais e que agora, em uma sitÜ-acãÕ de emergênêia
~~ - - --- -:---~ ' '
decidia fechar-se em si. Antes de assumir a forma de uma norma geral, essa opção
vinha sendo amadurecida nos anos imediatamente precedentes. Entre os documentos
saídos do arquivo histórico da Congregação Romana do Santo Ofício da Inquisição
há um fragmento de um interrogatório conduzido em 23 de outubro de 1552 pelo
comissário-geral da própria Inquisição, o dominicano frei Michele Ghislieri, que
depois se tornou o papa Pio V. Podemos lê-lo como um documento emblemático do
que aconteceu então no decorrer dos muitos processos conduzidos pela Inquisição
dos quais não nos restam os autos. O réu era um frade, o franciscano Sisto de Siena,
acusado de heresia. Dele o inquisidor cobrou o motivo de não ter obedecido à ordem
do confessor de repetir diante do inquisidor a confissão e de denunciar os hereges
com que estivera em contato, ou seja, no caso específico, um nobre veneziano amigo
dele. E nisso o réu começou a chorar e a dar sinais de grande comoção ("Totus com-
movebatur ipse constitutus et lacrymas emittebat"). Ghislieri perguntou-lhe o porquê.
E ele ("interrogatus de causa huius commotionis et lacrymis") reagiu dirigindo-se ao
juiz inquisidor com uma frase que revela o tumulto dos sentimentos e o atrevimento
do réu que ousa dirigir-se ao juiz como um ser humano normal com amigos e afetos:
"A causa seria se Vossa Senhoria tivesse um irmão ou um grande amigo, que devesse
acusá-lo em um tribunal como este, e de semelhante vício. Eu sabia que o devia acusar,
eu não o fiz pelo amor que lhe tinha" 11 •
Amizade e amor tiveram que enfrentar a obrigação de denunciar, ao sair da con-
fissão, justamente aquelas pessoas que, por serem mais próximas, tinham confiado seus
pensamentos a quem agora se encontrava diante da obrigação de denunciá-las e salvar
a si mesmo, perdendo amigos e familiares. Foi um problema que afetou especialmente
a população italiana. Ao avaliar o que aconteceu no segredo da confissão deverá ser
considerada a lentidão quanto à penetração da norma nos diversos estados da península
e as cautelas políticas que aconselharam a não forçar as resistências locais. O núncio
papal em Turim, Federici, hesitava ainda em 1573 quanto a publicar éditos "proibindo
aos confessores que não absolvam os penitentes que não se revelarem" e preferia recorrer
a advertências orais "sem fazer estrépito" 12 • Era um dos compromissos possíveis entre o
rigor da norma e sua realização. E não se pode excluir que às vezes, por ignorância ou
por conveniência do confessor, o penitente que tinha algo a revelar conseguisse evitar o
recurso ao outro Tribunal13. É fato, de todo modo, que em 1559 o problema apresenta-

11. ACDF, st. st. UV 12, CC.


12. Carta de 5 de novembro de 1573, citada por Vincenzo Lavenia, "L'lnquisizione del Duca. I Domenicani e il
Sant'Uffizio in Piemonte nella Prima Età Moderna", em Praedicatores Inquisítores, III: I Domenícani e l'Inquisizíone
Romana, anais do III seminário internacional sobre "I Domenicani e l'lnquisizione", org. por Carlo Longo,
Roma, lstituto Storico Domenicano, 2008, pp. 415-476; ver p. 445.
13. O caso de Antonio Satta de Tempio que, em 1578, revelou ter sido absolvido em confissão, apesar de possuir
livros suspeitos, é pouco significativo, visto que os livros em questão eram apenas suspeitos de superS t ição e

Prefácio
28

-se, em termos institucionais, com as seguintes características: a associação Inquisição ;


confissão cria um espaço de passagem e de controle obrigatórios. E assim foi sobretud o
na realidade italiana. Acima dos comprometimentos possíveis e das tragédias humanas
documentadas que foram consumadas em torno dessa norma, devemos ter prese nte a
profunda transformação que aconteceu então na instituição do Ocidente cristão mais
do que qualquer outra ligada à mensagem original do perdão gratuito das culpas: a
5~~~0 o tribunal da consciência. Foi nele~~ se vi~ o único instrum ento ade-
quado para enfrentar o problema da revolução religiosa que acontecia , ou seja, aquele

------·----
~ à v ~n~role externÕ os pensamentos e as convicções secretas ~u, co mo se
dizia então, o "coiâçãõ''clo.nõme-m. - "Considerada a natureza das co isas" - escrevi a -
Vincenzio Borghini, um homem que lera Maquiavel - "as que se encontram nas mãos
dos príncipes podem por assim dizer serem regulamentadas por meio da autoridade e
da força, como não portar armas, vestir-se de um modo e não de outro etc. Mas essa la
religião] que é mista, consistindo principalmente no coração do homem que não está
sujeito a nenhum príncipe terreno, e no culto exterior secundariamente, afirm o que
nisso que é secundário sempre se pode interferir com a autoridade do príncipe, mas e
no primeiro? E quem impõe lei ao coração?" A resposta possível era apenas um a: uma
intervenção da autoridade eclesiástica na confissão. Impor leis, criar "laços da cons-
ciência" como se fazia com o sistema dos casos reservados, mesmo então, era objeto
de crítica. Mas Borghini rejeitava as críticas: "Como se controlam as crianças... assi m
deve-se fazer com os jovens pelo intelecto, como são a plebe e as mulheres etc. se mpre
deverão ser controladas" 14 • A plebe, as mulheres: como a modenense Dalida C arandi-
ni, que confiou ao jesuíta Bonsio de Bonsii suas ideias sobre a vida religiosa - ideias
tiradas sobretudo da leitura de Erasmo - e que pouco depois se viu contestada pelo
inquisidor de Módena, tendo o jesuíta se encarregado de transmitir em uma denúncia
à Congregação do Santo Ofício os pensamentos de sua "filha espiritual" 15• Portanto,
na Itália, mesmo a Companhia de Jesus, que tinha especial consideração pelo caráter
sigiloso da confissão, por conferir a esse sacramento um lugar central em sua estratégia
missionária, não hesitava em trair a confiança de quem revelava seus pensamentos
diante da aparente brandura do jesuíta.
O caminho escolhido, então, foi o da confissão regulada por um sistema que não
só restringia o acesso ao perdão com a multiplicação dos casos reservados - como tratou
de estabelecer são Carlos Borromeo, modelo do novo tipo de bispo - mas impunha a
tra~ jncia dos segredos ~ eia ao tribunal de foro externo da Inquisição.
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não de heresia (cf. Angelo Rundine, lnquisizione Spagnola. Censura e Libri Proibiti in Sardegna nel '500 e '600.
Sassari, Stampacolor, 1996, p. 176).
14. Maria Fubini Leuzzi, "II Trattatelw delle Cose di Religione di Vincenzio Borghini. Uno Scritto lgnorato", em
Archivio Italiano per la Storia della Pietà, vol. 20, Roma, 2007, pp. 23-40; ver p. 40.
15. A carta de Bonsio de Bonsii encontra-se conservada em versão original na pasta do processo a "Dalida Caran•
dini" (Modena, Archivio di Stato, lnquisizione 6.6) e em cópia no arquivo do Santo Ofício romano, St.st. D
4 g. (cf. do autor deste volume "Una Esperienza di Ricerca ai S.Uffizio", em_, L'lnquisizione Romana, op.
cit. , p. 256).

Tribunais da Consciência
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Assim foi possível construir um sistema de poder que foi exercido principalmente
sobre as consciências das classes populares e que pôde permitir à Igreja oferecer ao
poder político um serviço essencial, o de ligar os corações à obediência, como escreveu
Giovanni Botero.
A proposta de fazer uma releitura da história da presença da Igreja na Itália à luz
dessa descoberta suscitou duas objeções originadas de pressupostos de tipo diferente,
ou melhor, oposto: de um lado, houve uma reação de cunho apologético por parte de
quem, para defender a autonomia de confissão e confessores, "pontos de referência
fundamentais na vida cotidiana", negou que "possam ser encontrados ... testemunhos
convincentes do exercício concreto, por parte dos inquisidores italianos, de alguma
forma de hegemonia sobre os confessores" no mesmo momento em que reconhecia que
há "milhares de comparecimentos espontâneos de penitentes não absolvidos registrados
nos arquivos inquisitoriais italianos" 16 ; no extremo oposto dessa posição apologética
confessional coloca-se a apologética laica de quem acusou uma conivência do historiador
com os inquisidores ao mascarar a dureza sob os traços de uma insinuante brandura 17•
Contra um e outro desses pontos de vista chocava-se a prova documental do fato de que
a Inquisição perseguiu o objetivo de impor o domínio sobre as consciências, recorrendo
até às artes sedutoras da confissão.
Naturalmente, resta acompanhar a evolução desse ato de fechamento/fortaleci-

-
m~to do poder papal ao abrigo das redes policiais do Santo O f í c =
,,...---,
medida extrema tomada em um momento de dramática sensação de perigo por parte
- - - - - --- - - - - - - - - .. ---
de um papa fanático e em seguida abandonada mais ou menos silenciosamente? Ou
então, essa medida pertenceu a um processo de evolucão geral rumo à centralizacão dos_
~

't , , ,_____

p~olíticos 1 o que para os soberanos laicos significou o absolutismo? A pergunta


aguarda uma resposta a partir dos desenvolvimentos das pesquisas. Mas é possível
formular algumas hipóteses.

Enquanto isso, vale a pena mencionar que pesquisas posteriores à publicação


deste livro esclareceram indiretamente alguns aspectos de uma longa vicissitude, a do
conflito entre poderes em torno da confissão em sua _chn2la forma de sacramento da
--:--~- ~ - -.----..--- -.---;--:-- ~ - --------
remissão dos peca os e e ato de autodenúncia judiciária das culpas.
---------
O m~~~ ais ~dr~~á~ m~ol~~ m~ ~present_ativ~ ~_j~s~ e_nal,
?--~~ e~~~~ão capi~~l d2 condenado_, esteve no centro desse conflito: a oposição foi
entre a confissãõindivldual secreta como abertura das portas do R e i n o ~
c~ nssâo puõl.1ca- ~ f t õs, sem nenhuma ~ antia de perdão e de salvacão
- ·- ---- --· -- --------·---~---- -- ~ - - --- - - - .. -- ------ ·
~
16. Cf. G. Romeo, Ricerche su Confessione dei Peccati e lnquisizione nell'ltalia del Cinquecento, Napoli, La città del~ ·
1997, p. 67. A definição de confissão é mencionada na orelha do livro. _ ~
17. "O juízo sobre os tribunais de fé deve ser confiado, em última análise, ao controle de nossas consciências.
Quem considera que a graça da vida yale o preço da abjuração, da renúncia às próprias ideias, da denúncia
dos companheiros de fé, poderá apreciar a assim chamada 'misericórdia' dos inquisidores etc." Lê-se em nota:
"Sobre essa posição A. Prosperi" (Elena Brambilla, La Giustizia lntollerante, Roma, Carocci Editore
p. 171). O que dizer? "On est toujours l'inquisiteur de quelqu'un".

Prefácio
30

da ~ avanço do poder eclesiástico de redimir os pecados teve que ser pago com
r' ~ nção religiosa da morte por via de justiça e com a estrita aliança da religião oficial
1 com o poder político. Mas, se a Igreja no confronto com os poderes laicos conseguiu
) garantir o sigilo dos pecados a quem os revelava ao confessor, sua defesa falhou quando
j se adiantou a ameaça da rebelião herética. A heresia foi definida "crime de lesa-majestade
- divina" e ocupou lugar no vértice da pirâmide dos crimes. Nesse caso, todas as garantias
e as regras da administração da justiça foram suspensas. E com isso deixaram de existir
também o sigilo e a voluntariedade da confissão.
Encontram-se e conjugam-se no ponto da confissão as três diretrizes geralmente
distintas nos livros de história do mundo católico moderno: a do modelo católico tri-
dentino de vida religiosa, que tinha por protagonistas os bispos, a do nascimento e do
crescimento das missões católicas na Itália e no mundo e a da polícia da fé confiada à
Inquisição Romana reorganizada. Em todos os três casos, a consciência forneceu o campo
a~ log i~a~~ ~Jos três diferentes protagonistas da empresa, o missionário, o confessor,
e
o inquisidor: para educá-la Implantar-lhe as novas formas de devoção, para explorar os
p~ ado;-;e~ etos-a em redimidos, para usufruir do ~ov.h_e. cimento del~ ra fins de
repressão
~=---
do dissenso.
·,
s d1v"êrsos d~ver~ s dÕstrest:i;os de homens de Igreja, reunidos
e sobrepostos -a p_o_·s--a reforma tridentina e a decisão de Paulo IV, tornaram-se conexos e
estreitamente coordenados a ponto de poderem ser desenvolvidos até por uma única e
mesma pessoa. O missionário que· pregava aos povos nas Índias de além-mar como nas
Índias por acá, o confessor que dirigia as consciências e colhia as confidências de mulheres
piedosas e de aspirantes a santos podiam suspender as confissões e remeter ao tribunal
da inquisição quem tinha informações úteis ou heresias a abjurar; 5podiam transformar-
-se em vigários da Inquisição para colher depoimentos ~ tos d e hereges arrependidos
ou fazer chegar à Inquisição denúncias de opiniões heréticas e de livros proibidos. Por
outro lado, nos conventos onde o ofício inquisitorial tinha sede era normal o inquisidor
desempenhar a função de confessor 19 • A possível unidade física das três funções era
acompanhada de uma atenta divisão formal e ritual dos deveres. Isso decorria da tutela
da garantia de sigilo graças ao qual a confissão sacramental podia demandar a sinceri-
dade sem limites das declarações do penitente. Nasce daí a questão jurídica do valor do
testemunho do confessor no tribunal: questão que foi resolvida a princípio, excluindo
taxativamente a própria possibilidade de recorrer a uma deposição semelhante. Mas
para além do princípio teoricamente reafirmado de uma rigorosa separação formal dos

18. Cf. Misericordie. Conversioni sotto il Patibolo tra Medioevo ed Età Moderna, organizado pelo autor do presente
volume, Pisa, Edizioni della Normale, 2007.
19. Ainda que a Inquisição tenha se preocupado em impedir a seus comissários exercer o ministério de confessor
(como pontifica Elena Bonora em L'Archivio dell'Inquisizione e gli Studi Storici: Primo Bilanci e Prospettive a Dieci
Anni dall'Apertura em Rivista Storica Italiana, CXX, 2008, pp. 968-1002), tratou-se de uma preocupação que se
originava exatamente de uma realidade de intersecções. Em Turim, em 1576, o inquisidor ainda podia "absolver
os hereges in foro conscientiae", como atesta uma carta do núncio que solicitava a ampliação desse poder até
"receber os relapsos, que viessem espontaneamente" (carta do núncio datada de 17 de maio de 1576, citada
por Lavenia, L'lnquisizione del Duca, p. 447n).

Tribunais da Consciência
31

tribunais , resta o fato de que os arquivos da Inquisição foram se enchendo de denúncias


e autodenúncias juridicamente definidas como "comparecimento espontâneo" (spontanea
comparitio), na realidade fruto da obrigação imposta pelos dois tribunais que não deixava
outra escolha. Por isso, um ato do poder papal inaugurou a idade moderna do mundo
católico sob o signo da abertura de um canal entre os depósitos orais da confissão e os
registrados pela Inquisição. A modernidade do ato parecerá evidente se se pensar na
reviravolta que representou em relação à idade precedente, toda dedicada à exploração
da interioridade individual, nas pegadas das Confissões de Santo Agostinho e da antiga
sabedoria; quanto aos herdeiros e aos imitadores desse novo modelo, não deviam faltar.
Como se sabe, o caminho para escancarar com violência ou com persuasiva brandura
o depósito da consciência individual foi encetado por muitos.
Resta o fato de que no mundo católico da época da Reforma o caráter confiante
do ouvir e o gratuito do perdoar foram deliberadamente comprometidos em nome das
exigências superiores de uma "guerra espiritual" em ação (a definição é do próprio Gian
Pietro Carafa, futuro papa Paulo IV). No entanto, nem por isso faltou a elaboração de
estratégias de construção e aparelhamento dos espaços interiores. Pelo contrário. A
religião católica da idade moderna teve na Companhia de Jesus um corpo dedicado à
refinada arte da orientação das consciências, dedicado a estimular exercícios de autos-
santificação, perito no controle dos impulsos e fenômenos de misticismo visionário.
Tanto refinamento espiritual e tanta dedicação à ciência dos casos e ao desenvolvimento
das inteligências juvenis nos colégios não prejudicaram a obra de conversão de quem se
achava às margens ou mesmo fora dos limites da Igreja. A atividade missionária pôde
contar com levas de voluntários entusiasmados, atraídos pela perspectiva de repetir a
temporada apostólica do cristianismo das origens em dimensões de amplitude bem
diferente. E mesmo nesse caso, a passagem fundamental foi a do encaminhamento para
a confissão através de instruções orais e publicadas para fazer o exame da consciência
que encheram as estantes de bibliotecas inteiras. No entanto, o desenvolvimento da
vigilância inquisitorial em país católico, uma vez debeladas as comunidades reformadas
embrionárias, levou ao exercício de uma forma de governo das consciências perplexas
e dos lampejos místicos e visionários que fez dela uma agência que concorria com as
do clero secular e dos religiosos ativos como confessores. Todos juntos atuaram como
"tribunais da consciência" . O desenvolvimento histórico da centralização papal e da
afirmação do poder eclesiástico sobre os leigos fizeram o resto: assim, a direção do mo-
vimento concentrou-se nas mãos da Congregação do Santo Ofício, o ápice do sistema
das congregações, tribunal supremo e lugar de elaboração e de controle da doutrina
ortodoxa. Tudo isso teve consequências especiais para a história da península italiana,
que se tornou, após as guerras de Itália do século XVI e sobretudo após a Guerra dos
Trinta Anos, o campo especialmente reservado à autoridade religiosa e política dopa-
pado de Roma. Quão forte e arraigada foi se tornando a presença da autoridade papal
na Itália devia evidenciar-se nos momentos de crise do ordenamento social e político
italiano. O autor deste volume teve experiência disso na fase do imediato pós-segunda
guerra, quando a rede das instituições eclesiásticas supriu a carência quase total de

Prefácio
32

instituições estatais e ainda tomou consciência deste fato na época do sequestro e do


assassínio de Aldo Moro. Isso é dito só para lembrar que a história é um processo em
curso, um rio em que estamos todos mergulhados: é somente do interior do curso
do rio que se tem algumas percepções da direção da corrente e da conformação das
margens. Os documentos do passado auxiliam na tentativa de individuar as curvas e
os alagamentos que ralentaram ou desviaram o percurso de um dos muitos riachos de
que é feita a corrente da história humana.

Conhecimentos reservados e documentos secretos, os da confissão e os da inquisi-


ção, estimularam pesquisas e alimentaram fantasias diante da dificuldade de acesso aos
arquivos eclesiásticos. Mas a história e a pesquisa histórica também conhecem progressos
e acelerações. Quando este livro foi escrito o autor não podia imaginar que dali a dois
anos um pontífice da Igreja católica de personalidade excepcional conceberia o plano
de aproveitar a virada do milênio para uma operação de grande significado simbólico,
que foi definida por ele como a "purificação da memória" por parte da Igreja em seu
conjunto, um ato semelhante à confissão individual pelo efeito de eliminação das culpas
e de liberação do fardo de uma memória dos erros. Entre as sombras do passado a serem
eliminadas havia o uso da obrigação em matéria de consciência. Ainda os tribunais da
consciência, enfim. Por causa disso foi aberto à consulta dos historiadores o arquivo
da Congregação da Inquisição, redenominada Congregação pela Doutrina da Fé em
consequência do Concílio Vaticano II. Assim, de repente o porto das névoas onde
terminavam as pegadas seguidas até então por quem buscava notícias de processados e
de condenados tornava-se visível a todos os interessados. Abriu-se assim um laboratório
de investigações que enriqueceu enormemente nosso conhecimento dos mecanismos
da repressão, tanto daqueles da confissão como os das missões. Sobre essa documen-
tação, muitos estudiosos ponderaram suas investigações e suas hipóteses. Hoje, mais
de dez anos depois da abertura, o laboratório histórico está em pleno funcionamento :
no que diz respeito ao conhecimento dos nomes e das vicissitudes dos investigados a
série praticamente completa das atas das sessões, a única fonte não lacunar, permite
confrontos e verificações que integram a documentação dispersa localmente nos arqui-
vos das dioceses e nos fundos estatais onde se encontram os restos dos arquivos dos
tribunais inquisitoriais locais. Além disso, já está quase completa a edição das fontes
da perseguição conduzida pelo Papa Paulo IV contra os dissidentes de alto escalão, os
espíritos inquietos daquele mundo que foi definido como evangelismo italiano, um
mundo limítrofe entre igrejas diferentes e em conflito. Mas as novidades mais im-
portantes vieram do estudo da atuação da Congregação do Santo Ofício como poder
intelectual: a partir da exploração do trabalho desenvolvido pela Congregação e por
seus peritos sobre temas e problemas de caráter teológico, científico, político e moral
esse caráter foi emergindo para o primeiro plano. Por essa via reacendeu-se também a
discussão sobre o problema dos problemas da história da cultura cintífica moderna, a
fratura entre Igreja católica e sistema copernicano. Mas o caráter fragmentário de um
arquivo que foi repetidamente depauperado de fontes por seus próprios titulares não

Tribunais da Consciência
33

permitiu desenvolver trabalhos de reconstrução sistemática, obrigando a sondagens


parciais e casuais. Somente sobre dois pontos o arquivo forneceu a possibilidade de
reconhecimentos plenos: a questão da conversão dos judeus no Estado Pontifício, ob-
jeto de pressões assíduas, obsessivas, estressantes (para os judeus), e o funcionamento
do tribunal local de Siena, transferido ocultamente de Siena para o Vaticano no início
do século XX para impedir sua consulta aos estudiosos de Lelio e Fausto Sozzini e hoje
consultável. A abertura do arquivo histórico da Congregação pela Doutrina da Fé tornou
acessível ainda os fundos documentários da outra congregação vaticana, a do Índex. E
aí a pesquisa pôde embrenhar-se na selva de urna documentação sistemática relativa ao
campo da censura dos livros. A história da censura inquisitorial pode contar atualmente
com a exemplar coletânea de textos dos Índices dos livros proibidos, organizada por
H. J. De Bujanda, publicada e analisada em onze excelentes volumes. Além disso, urna
equipe de pesquisadores alemães dirigida por Hubert Wolf da Universidade de Müns-
ter iniciou e adiantou bem um projeto de levantamento sistemático da documentação
graças ao qual a história da censura eclesiástica no que se refere a seus operadores e
objetos hoje pode ser abordada corno um vasto continente a ser explorado. Toda futura
história da cultura escrita, sobretudo no que se refere à Itália, deverá levar em conta
essas obras. É através dessas fontes que se vem descobrindo em sua concretude e em
suas muitas facetas a história da mudança do estilo intelectual da minoria culta dos
estados italianos, obrigada à autocensura e ao refúgio na marginalidade de exercícios
poéticos e retóricos para não incorrer na suspeita e na proibição.
Quanto à relação entre a Inquisição Romana e a Itália, as pesquisas que vêm sen-
do vigorosamente desenvolvidas estão desenhando seus traços concretos. Mas desde já
pode-se afirmar que o que está vindo à tona é uma ligação antiga, urna atenção especial2°.
Na comparação entre as diversas formas nacionais assumidas pelos tribunais
da Inquisição eclesiástica é inevitável que os historiadores, que se formam e atuam
em nações e culturas específicas, não submetam adequadamente à luz o caráter fun-
damentalmente unitário das instituições de que falamos : por isso, é bom lembrar que
o princípio indiscutível do funcionamento dos tribunais das diversas Inquisições foi
sempre o caráter eclesiástico da justiça administrada no interior da pertença comum à
Igreja católica e da obediência à Sé Apostólica. A de Roma foi oficialmente chamada
"a santa e universal Inquisição romana". No entanto, é um fato indiscutível que as
Inquisições da idade moderna e contemporânea tenham se adaptado aos respectivos
contextos estatais. O caso da Itália é a confirmação de urna tendência. Mas é também
um caso especial pelo modo, ou melhor, pelos diversos modos da relação que se criou
entre uma instituição que se define universal e as situações concretas do país em que
atuou: e continua a atuar. Pois, corno veremos, ela continua a atuar. E é a profundidade
do passado que pode nos ajudar a tornar menos superficial e distraído o olhar presente.

20. O texto que segue foi apresentado como relatório introdutório ao encontro internacional "Storia e Archivi
dell'lnquisizione. A Dieci Anni dall'Apertura dell'Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede",
realizado em Roma (21-23 fev. 2008).

Prefácio
34

Que tenha havido no passado uma ligação especial com a Itália é algo que não
precisa ser lembrado. O primeiro sinal de alarme no caminho que levou ao nascimento
do novo organismo apareceu em 1536 quando, em Roma, descobriu-se que a "heresia
luterana" tinha ultrapassado as fronteiras geográficas italianas e materializara-se na
corte de Ferrara. Foi então que pela primeira vez o papado deu-se conta realmente
da gravidade do perigo e apressou-se a procurar uma solução. A criação desse novo
organismo deu-se em um ano crucial, 1542, quando o fracasso da pacificação religiosa
tentada por Carlos V afastou o espectro da convocação de um concílio que soava como
ameaça à autoridade papal. Recorreu-se então à Inquisição, ou melhor, à constituicão
de um tribunal supremo de poderes especiais capaz de modificar em profundidad~ 0
ordenamento tradicional da polícia da fé. Note-se que nessa época havia duas Inquisições
de poderes político-religiosos excepcionais concentrados nas mãos de uma autoridade
central: tinham surgido na Espanha e em Portugal em função antijudaica, instrumentos
de duas monarquias em ascensão que pretendiam usar a alavanca da unidade religiosa
para fins políticos. Não havia nada disso na Itália, onde a antiga rede dos conventos
franciscanos e dominicanos hospedava inquisidores sem que nenhum poder político
demandasse o endurecimento e a centralização do sistema em função de uma guerra
religiosa. Mas foi Gian Pietro Carafa, um cardeal que depois se tornou papa e que foi
o principal executor e criador da Inquisição Romana, a falar em "guerra espiritual".
Portanto, na Itália foi o papado a querer a reforma do sistema de polícia religiosa e a
dar-lhe uma ordenação especial, aplicando o modelo espanhol e português na própria
casa. Nesse ato inicial revelam-se as duas almas do papado, a do poder temporal e a do
universalismo espiritual, hospedadas no corpo único do soberano Pontífice, como nos
explicaram os estudos de Paolo Prodi.
Na Itália, portanto, uma diferença substancial em relação às Inquisições ibéricas
foi constituída pelo caráter do poder que dispôs e requereu o instrumento da Inquisição:
trata-se aqui de uma autoridade que é, ao mesmo tempo, religiosa e política, ao passo
que na Espanha e em Portugal enfrentavam-se dois sujeitos diferentes, o soberano e o
pontífice, que regulavam suas relações na seleção do supremo inquisidor. Do enfrenta-
mento surgem dois dados: não só o caráter especial da autoridade papal tal como era
reivindicada por seus apoiadores, mas também uma inegável realidade de fato , a da
hegemonia papal sobre os estados italianos que se firmou depois do período das guerras
da Itália, durante as quais o papado tinha posto a República de Veneza na defensiva e
irradiado seu domínio direto sobre a Itália central e na região padana. Tudo isso teve
consequências concretas na eficácia especial que, no espaço italiano, revelou o órgão
teoricamente universal que dominava o controle da ordoxia. Houve, portanto, desde
o início uma ligação especial entre o Santo Ofício da suprema e universal Inquisição
Romana e a Itália.
Falta compreender nos detalhes como funcionou essa ligação. E uma primeira
constatação com base nos estudos existentes é que ela esteve ativa nas duas direções ,
por parte do organismo de controle de um lado e por parte da sociedade italiana de
outro. Não se tratou apenas de uma correia de transmissão de uma autoridade central

Tribunais da Consciência
35

para órgãos periféricos, como foi em geral o caso das Inquisições ibéricas, mas de um
entre os muitos trâmites de uma relação substancial de aliança e de troca que foi a que
todos os poderes e as ambições da sociedade italiana construíram então com a última
grande capital restante na península e com seus recursos especiais de comunicação
com o resto do mundo. Se o novo príncipe do estado toscano, Cosmo I, queria saber
quantas hóstias eram distribuídas nas igrejas de seu domínio não era absolutamente
por sua devoção especial: o "príncipe novo" era dominado pela insegurança e pelo
temor do que se ocultava nas mentes e nos corações dos súditos. E a religião era, e
sobretudo aparecia então, como um instrumento especial de poder, "consistindo prin,
cipalmente 'a religião' no coração do homem que não está sujeito a nenhum príncipe
mundano", como escreveu o douto beneditino Vincenzio Borghini que, não à toa, foi
homem de confiança de Cosmo I nesses assuntos. Para ele e para seu tempo a heresia
era sinônimo de discórdia e de dissensão, ameaça à solidez do corpo da sociedade e
do estado. E nada foi mais assegurador para os poderes dos Estados italianos do que
confiar aos ouvidos dos confessores e aos interrogatórios dos inquisidores o controle
sobre as opiniões dos súditos. Essa exigência foi típica de uma época da história eu,
ropeia em que a centralização do poder caracterizou a formação dos grandes estados
nacionais e os monarcas, ainda desprovidos de uma polícia própria, entregaram,se de
bom grado aos instrumentos de controle e de persuasão da Igreja. Mas fizeram isso,
geralmente, criando Igrejas nacionais para seus fiéis. E diante da dificuldade de con,
cordar as opções políticas com as normas da moral e da religião, valeram,se de especiais
"conselheiros da consciência do rei". O caminho seguido pelos estados italianos foi
diferente: quando Cosmo III de Médici colocou,se o problema de como governar os
comportamentos sexuais de seus súditos e pôr um freio nos abortos, recorreu dire,
tamente ao Santo Ofício de Roma. Era o mais aparelhado e autorizado "ministério
da consciência" disponível na Itália, capaz de unir conselhos de consciência, normas
de verdade e estruturas de polícia porque podia fornecer respostas baseadas na "ver,
<ladeira" doutrina e encaminhar de modo competente as organizações especiais de
confessores e de inquisidores que atuavam no interior dos estados italianos, seguindo
as diretrizes romanas. Formou,se assim um hábito de colaboração interessada que
se coloriu de ambos os lados de oportunismo político e de adaptação às relações de
forca e de conveniência. Aquele que se qualificava teoricamente como um organismo
'
rigorosamente eclesiástico, regido por razões superiores e determinado a atingir seus
objetivos sem se curvar diante de nenhum poder, entrou como protagonista no circuito
da política italiana.
A essa especificidade italiana da Inquisição Romana referem,se as observações
necessariamente sintéticas que serão feitas a seguir. Não falaremos muito nos resultados
das pesquisas analíticas que estão sendo desenvolvidas em sedes particulares, em seus
arquivos e sobre contextos e questões determinadas. Seria longo tentar fornecer aqui
uma síntese adequada da enorme quantidade de conhecimentos novos que se tornaram
disponíveis e das novas fontes que emergiram de arquivos locais. Aquilo que alguns
de nós puderam ver a partir do observatório de um Dizionario Storico dell'Inquisizione é

Prefácio
36

um panorama variado e rico de limites muito mais amplos daqueles antes familiares a
quem abordava esse tipo de temas.
O aspecto sobre o qual desejaríamos concentrar a atenção aqui é o que diz respeito
ao espaço que a relação com a Itália ocupou na obra do Santo Ofício.
Após a fase inicial, o empenho maciço da nova instituição concentrou-se em casos
italianos de "hereges" de Ferrara, Módena, Lucca e assim por diante; mas foi sobretudo
dedicado a combater a componente moderada e conciliadora no corpo cardinalício. O
caso da detenção e do processo do cardeal Giovanni Morone, estudado por Massimo
Firpo, foi o monumento judiciário de um conflito totalmente italiano entre posições
religiosas no seio da Igreja 21 • O longo itinerário desse caso ocupa toda a parte central
da obra do Santo Ofício e conclui-se apenas com o pontificado de Pio V. Em seguida,
para proteger a fortaleza italiana dos riscos de infecção herética foram elaboradas re-
gras especiais, como aquelas que no final do século XVI limitaram a possibilidade para
mercadores e traficantes italianos de se dirigirem além dos Alpes em direção dos países
protestantes. A tendência a considerar o espaço italiano como espaço judiciário especial
teve sua origem no fenômeno bem conhecido da italianização do papado e das estruturas
centrais romanas da Igreja, incluindo aí as congregações romanas que, no início da idade
moderna, foram especialmente compostas por italianos. Houve um poder de direção
e de influxo decorrente da pertença dos pontífices e de seus conselheiros, além dos
diversos membros das congregações cardinalícias romanas, à sociedade italiana. Dessa
situação de fato resultou uma proximidade particular às realidades italianas, ou melhor,
um verdadeiro ar de família que se respira no interior dos órgãos idealmente universais
prepostos à luta contra a heresia e ao controle da imprensa. As análises minuciosas e as
pesquisas prosopográficas que estudiosos como Hermann Schwedt vêm realizando há
anos nos fornecerão muitos dados para uma reflexão mais atenta a esse respeito, mas a
avaliação do conjunto que aqui se propõe aparece no estado dos conhecimentos pelo
menos fortemente provável. A herança medieval da rede inquisitorial dos conventos
contribuiu para criar o sentimento de uma identidade italiana comum por ter-se ofere-
cido como uma estrutura pronta para passar tranquilamente do antigo ao novo estilo,
ou seja, de .uma dependência teórica do papado e de um regime baseado nas nomeações
por parte dos superiores da Ordem a um novo regime de delegação por parte da suprema
Congregação. Constituiu-se desse modo uma rede que falava a mesma língua e tinha
os mesmos circuitos de formação e de carreira. Os percursos das carreiras que levaram
membros de ordens religiosas a tornarem-se bispos, cardeais e papas após um período
de atividade inquisitorial são ilustrados por casos célebres, como os de Pio V e Sisto V.
A estrutura que se estabeleceu entre centro e periferia não sofreu abalos particularmente
graves. E tranquila foi a vida cotidiana do corpo dos inquisidores. Por mais que sobre
suas insígnias figurasse sempre a imagem de São Pedro Mártir e a profissão de defender

21. Para uma primeira síntese do autor da vasta pesquisa de arquivo por ele realizada que renovou O quadro de
nossos conhecimentos a respeito, cf. Massimo Firpo, Riforma Protestante ed Eresie nell'ltalia dei Cinquecento,
Roma/Bari, Laterza, 1993.

Tribunais da Consciência
37

a fé até o martírio fizesse parte de sua linguagem oficial, na realidade italiana os últimos
riscos foram corridos nos campos padanos e nas cortes italianas de meados do século
XVI quando na Mântua dos sicários mataram a apunhaladas dois dominicanos (Natal de
1567) e o inquisidor de Ferrara foi obrigado a recorrer à escolta armada. Mas depois de
então suas correspondências falam em vidas tranquilas, em relações gratificantes com os
poderes, em trocas de doações e recomendações (teoricamente proibidas). Serve à guisa
de representação de sua condição de privilégio, as imagens que pretenderam fixar nas
paredes das salas conciliares dos conventos. A de São Domingos de Bolonha é particular-
mente solene e sugestiva e rivaliza com as séries de retratos de bispos que naquele período
começaram a ser pintadas nos palácios episcopais. O estilo da vida cotidiana levada nas
sedes italianas emerge dos resíduos epistolares, mas é fixada de modo particularmente
preciso pelos relatórios enviados a Roma em resposta às periódicas investigações requi-
sitadas pela Congregação romana. Porém, para nós, o aspecto mais importante dessas
investigações não é a resposta mas a pergunta: a rica série de dados que os comissários
locais da Inquisição mandaram a Roma revelam-nos muitas coisas concretas sobre o
estado da administração dessa justiça especial da fé em cada lugar22 • Mas é o olhar do
poder central sobre as ramificações locais que parece especialmente significativo por
um dado que daí emerge com absoluta evidência: o caráter territorialmente definido da
instituição que, teoricamente universal, foi e permanece fundamentalmente italiana. A
consistência que atingiu no espaço de 150 anos pode ser vista pelo Catalogo delle lnquisi-
tioni, Inquisitori e Vicarii datado de 1706 23 • Nele encontram-se enumeradas 55 inquisições
locais, divididas em inquisições de primeira classe (Milão, Bolonha, Faenza, Gênova,
Florença, Pádua, Siena, Pisa, Treviso, Údine e outras mais), de segunda e terceira classes.
Aparecem apenas quatro sedes fora da Itália: Avinhão, Besançon, Toulose e Colônia.
Por volta de 1748 houve uma segunda sondagem. E mais uma vez o panorama das
ramificações da Santa e Universal Inquisição romana leva-nos quase somente dentro
das fronteiras da península italiana. E aí as formas de colaboração e de envolvimento
buscadas pelos príncipes e repúblicas desenham um panorama onde se desfazem todas
as fronteiras entre poderes laicos e eclesiásticos. Aprendemos assim que tinha durado
bastante o hábito da Inquisição florentina de "informar ao Sereníssimo Grão-duque
sobre a pauta do dia do Santo Ofício" e que em Veneza e em Gênova perdurou esta-
velmente a intervenção de magistrados e de funcionários dos governos nas práticas
inquisitoriais que imaginaríamos ciosamente protegidas pelo sigilo eclesiástico. De
um lado os "conselhos dos sábios para a heresia", de outro os assim chamados "pro-
tetores" do Santo Ofício. A dimensão do poder estatal como algo diferente do poder
eclesiástico, a distinção entre temporal e espiritual não tiveram cidadania na história
do antigo regime italiano.

22. Remeter-se para isso aos verbetes individuais do Dizionario Storico dell'Inquisizione, dirigido pelo autor. Pisa,
Edizioni della Normale, 2009.
23. ACDF, Sala histórica, II 2-h: Catalogo delle Inquisitioni, lnquisitori e Vicarii. II Registro dos Anos '50-'60 do '800.
Conservado neste lugar, ST. II, 5-y.

Prefácio
38

Na dimensão mais propriamente de polícia das ideias e dos comportamentos, as


condenações de Giordano Bruno e do bispo Marcantonio De Dominis - um processado
quando vivo e condenado à morte, o outro processado depois de morto - foram os últi-
mos casos significativos da dissidência intelectual e religiosa italiana antes de aparecerem
em Nápoles os casos dos ateístas e de se materializar em Florença a ameaça dos primeiros
ambientes maçônicos. Depois de então os casos mais clamorosos e de consequências
mais incisivas no seio das províncias italianas tiveram por protagonistas pessoas que
exigiam poderes especiais da religião - riqueza, amor, saúde - ou que oscilavam entre a
santidade mais ou menos fingida e a execração dos símbolos do sagrado, da blasfêmia à
iconoclastia e ao sacrilégio. O emaranhado de relações e a estimulação de sentimentos
sagrados e profanos nos contextos dos conventos femininos e das conversações sobre sexo
no confessionário (daí o crime inquisitorial de sollicitatio ad turpia) forneceram a matéria
mais largamente recorrente aos inquisidores, cada vez mais obrigados a experimentar os
êxitos irregulares e indesejados de uma enfatização da experiência religiosa em busca de
visões e de êxtases. A partir daí começou a correr o longo rio de uma matéria sempre
igual, feita de santos e santas falsos, verdadeiros e sobretudo fingidos , de confessores
"solicitantes", de blasfemos de rápido arrependimento e de poucos "espíritos fortes"
ou convertidos a outros credos; feita também de frequentes histórias de crianças judias
batizadas fraudulentamente e arrancadas das famílias. Um registro das causas tratadas
pelo Santo Ofício romano na década anterior ao rombo de Porta Pia mostra que essa
Inquisição contra a qual crescia a hostilidade da cultura liberal estava empenhada, na
realidade, ~m operações de controle não da heresia mas de desvios mínimos do rumo
de uma religião tornada costume.
O controle das opiniões foi exercido em outra vertente, a dos livros. E aqui deu
ensejo a uma total reescrita do patrimônio literário italiano. Os documentos do arquivo
da Congregação do Índex revelaram histórias de extraordinário interesse, a partir da
censura radical que atingiu o mais suspeito de todos os livros - a Bíblia em vernáculo.
Emergiu assim não só a sorte desse ou daquele texto e das contendas entre censores
decididos a destruir a obra e os solertes operários do expurgo como reescrita, mas
bem mais a tradução integral de que foi objeto a herança cultural italiana, ou seja, o
fruto mais elevado da época do Humanismo e do Renascimento. Sem esse processo de
tradução que afrontou a liberdade expressiva e o mundo de imagens que constituía o
patrimônio imaterial da sociedade literária italiana não se poderia compreender como
se passou da solar liberdade de Ariosto ao rio de devoções, hipocrisias e autocensuras
que invadiu a sucessiva cultura italiana. Aqui esperamos a conclusão da paciente obra
de análise de recomposição do trabalho de censores e consultores do Santo Ofício e
do Índex realizada pelo doutor Hermann Schwedt e por uma equipe alemã dirigida
pelo professor Hubert Wolf. Mas as primeiras amostras legitimam a impressão de que
antes de deparar com a querela francesa de rigoristas e laxistas ou com a circulação
dos textos do Iluminismo, ou ainda com os romances do século XIX, o trabalho dos
censores era exercido em primeiro lugar sobre o corpo dessa cultura italiana em verná-
culo que conhecera um rápido e exuberante crescimento e que então foi submetida a

Tribunais da Consciência
39

um trabalho de filtragem que a transformou profundamente. E aqui também emerge


a figura de Vincenzio Borghini, um homem que dedicou uma extraordinária atividade
para expurgar o Decamerão de Boccaccio de toda expressão capaz de ofender a honra
do corpo eclesiástico: foi a vitória póstuma de Ciappeletto. Para a paz e a manutenção
da boa ordem antiga era preciso sacrificar a liberdade dessa cultura literária que tivera
em Boccaccio, Ariosto e Maquiavel suas expressões absolutas e na leitura da Bíblia em
vernáculo o alimento de um cristianismo vivo e profundo - demasiadamente vivo e
demasiadamente indisciplinado para não alarmar o poder eclesiástico. Assim, a censura,
no que se refere ao passado, e o controle da produção quanto ao presente foram obra
de todo um sistema invasivo e também brandamente persuasivo, que submeteu a glória
das letras à garantia da moral dos frades e da doutrina dos teólogos.

Seguindo o fio do controle das ideias, a época mais próxima de nós fornece um
exemplo de como a Itália continuou a estar especialmente presente nas preocupações
do Santo Ofício mesmo após o advento do estado unitário. No panorama do século XX,
um caso desponta de modo especial: o das condenações da obra de Benedetto Croce
e de Giovanni Gentile. Com~ mostrou Guido Verucci 24 , considerou-se necessário à
época atacar os dois filósofos, apesar do apreço que ambos tinham manifestado quan-
to à função social da religião católica e apesar da posição que assumiram na época da
condenação vaticana do modernismo. Com uma iniciativa que não encontra paralelo
em outros países, as atenções da Suprema Congregação concentraram-se na década de
1930 em diversos aspectos da cultura italiana: por um lado, houve o empreendimento
cultural da Enciclopédia Treccani, onde foram reconhecidas heresias modernistas nos
verbetes escritos por colaboradores não ortodoxos como Alberto Pincherle, Raffaele
Pettazzoni e Adolfo Omodeo. Por outro, houve a condenação de manuais escolares de
história e de filosofia (de Angelo Pernice e Carlo Capasso em 1931), e a abertura de
um inquérito especial sobre os "manuais escolares para as escolas italianas": volumes
"extremamente perigosos para a integridade da fé da juventude estudiosa", em relação
aos quais foi tomada em consideração uma tratativa direta realizada entre P. Tacchi
Venturi e Mussolini, mas que foi resolvida antes graças à docilidade dos autores. Mas
os golpes mais duros foram reservados a Benedetto Croce: sua Storia d'Europa nel Secolo
Decimonono foi condenada em sua primeira edição (1932). E uma nota pessoal do então
cardeal Pacelli, membro da Congregação, propôs que fossem condenados Contributo alla
Critica di me Stesso e outras obras de Croce. A revista dos jesuítas, La Civiltà Cattolica ,
acompanhou a discussão no âmbito do Santo Ofício com quatro artigos, que coloca-
vam sob acusação o "abuso do fraseado religioso que parece inventado para ocultar a
irreligião e a incredulidade" 25 • A Storia d'Europa foi tachada como obra "de suprema
impiedade" pelo consultor Padre Guglielmo Arendt da Companhia de Jesus. No decorrer
da fase de instrução da prática relativa à condenação proposta das obras de Gentile e

24. Guido Verucci, Idealisti all'lndice. Croce, Gentile e la Condanna dei Sant'Uffizio, Bari, Laterza, 2006.
25. Idem, p. 146.

Prefácio
40

de Croce, é notável a observação que foi feita então por P. Agostino Gemelli, de que
teria se tratado da primeira vez que a Santa Sé teria condenado um sistema filosófico
o que não acontecera antes nem em relação ao positivismo nem ao materialismo. E'
trata-se de algo realmente notável: isso indica uma atenção em relação à Itália de um
tipo diferente à vingente para as outras nações e as outras culturas.

Dessa diferença, gostaríamos de retomar como conlusão um dado macroscópico


que emerge do confronto dos modos e dos tempos do surgimento e mais ainda daqueles
da extinção final das diversas formas do tribunal da Inquisição. A Inquisição espanhola
encerra-se entre um ano de nascimento, 1478, e um ano de morte oficial e definitivo,
1834, que segue a um tormentoso percurso do debate abolicionista e aos terremotos
políticos atravessados pela Espanha na época napoleônica. A Inquisição portuguesa, após
uma estreia mais tardia e combatida (1536, bula Cum ad Nihil de Paulo III) funcionou
até sua extinção decretada pelas Cortes em 31 de março de 1821. O último auto de fé
público ocorrera em 1765, em 1774 fora abolida a diferença entre "cristãos-velhos" e
"cristãos-novos", em 1774 fora abolida a Inquisição de Goa. Portanto, entre as reformas
do Iluminismo e o advento dos regimes constitucionais pós-napoleônicos as lnquisições
ibéricas tinham se tornado uma realidade do passado. Como tais são hoje investigadas
e discutidas: como um material histórico. Naturalmente, as formas especiais assumidas
nesses países pelos regimes fascistas e nacionalistas do século XX reacenderam o interesse
dos historiadores pelas características inscritas na cultura de seus países pela longa per-
manência de um sistema de controle da pertença e da identidade religiosa que formara
uma unidade com as características da nação. Foi assim que, na segunda metade do
século passado, a historiografia ibérica concentrou uma extraordináia quantidade de
estudos e de pesquisas sobre a Inquisição, fazendo disso uma espécie de laboratório de
análise da distância entre a Espanha e as modernas sociedades democráticas europeias.
Voltemos à Itália. O caso da Itália é diferente pelas razões que tornaram a presença
papal a de um Estado entre os estados da península e que conferem ainda hoje à Igreja
católica as características de um estado dentro do Estado - características introduzidas
na Constituição da República por meio da discutida inserção dos Pactos Lateranenses
em 1929 que não salvou o Partido comunista italiano da sucessiva excomunhão do
Santo Ofício. Aqui, a respeito das Inquisições ibéricas, vale um discurso diferente para
a Congregação, cujos documentos de seu próprio arquivo pudemos estudar nesses dez
anos. Discutiu-se muito sobre a data de criação, se é a de 1542, estabelecida pela bula
do papa Paulo lll, ou se se deve remontar à época da justiça eclesiástica medieval. Mas
sobre a data de conclusão não se discutiu absolutamente, fixando-a em 7 de dezembro de
1965: nesse dia foi aprovada na sessão IX do Concílio Vaticano II a declaratio de libertate
religiosa em que se reconhecia que os seres humanos gozam da liberdade de deixar-se
guiar pela própria consciência e não pela coerção e condenava-se o uso de qualquer
meio contrário ao espírito evangélico ("exclusis mediis spiritui evangelico contrariis").
Proclamava-se desse modo o valor da liberdade de consciência, ou seja, daquela que era
considerada uma heresia intolerável no século XVI. E foi em consequência disso que

Tribunais da Consciência
41

pareceu óbvio O motu proprio com que o papa Paulo VI transformou aquela que então
era chamada Congregação do Santo Ofício (com base na reforma ocorrida sob Pio X
em 1908) em Congregação para a Doutrina da Fé. Com o novo nome e após a demissão
do prefeito Cardeal Ottaviani, pareceu encerrada então uma longa história e concluída
para sempre a atividade da instituição, com todas as atribuições que lhe eram inerentes -
como por exemplo a censura de livros e as intervenções belicosas nos acontecimentos
políticos, sobretudo italianos. Não era assim. Hoje sabemos que essa data e esse ato
foram interpretados de modo demasiadamente apressado como conclusivos da longa
história da instituição. A atuação da Congregação a partir de 1965 foi não só intensa,
como também foi colocada decisivamente em uma linha que seu atual prefeito, o cardeal
Willam Joseph Levada, definiu como de "renovação na continuidade" . É fácil dar,se
conta disso para quem folheia os 105 documentos reunidos no volume publicado pela
própria Congregação em 2006. As matérias tratadas em uma ação normativa que se
tornou progressivamente mais intensa pertencem completamente à tradição histórica da
atuação do Santo Ofício: baste pensar na questão da sollicitatio ad turpia, presença fixa
há quase cinco séculos na jurisprudência e na atividade processual do Sagrado Tribunal.
E há naturalmente a excomunhão por apostasia e heresia, uma atenção especial quanto
às relações com os fiéis de outros credos, uma vigilância quanto às tendências políticas
e às ideologias como a "teologia da libertação" . Mas o que se destaca é sobretudo a
firme defesa da insubstituível função da Congregação como ministério da verdade: os
documentos emitidos pela Congregação e "expressamente aprovados pelo Papa parti,
cipam do magistério ordinário do sucessor de Pedro" , ou seja, entram nas condições
estabelecidas pelo dogma da infalibilidade papal26.
Diante desses documentos, o pensamento do historiador remonta à relação que
no século XVI ligou a atuação do Concílio de Trento à do Santo Ofício. O patrimônio
dos decretos conciliares e do repositório de experiências constituído pelos atos do
concílio foi confiado então à interpretação das congregações romanas em cujo topo
encontrava,se o Santo Ofü:io. A séculos de distância algo similar parece repetir,se. O
ministério da verdade e o guia das consciências retornam formalmente às mãos que
os exerceram nos últimos séculos. Tivemos um sinal importante desse retorno a uma
linguagem pré,conciliar com a recente formulação da prece para a conversão dos judeus.
São inúmeros os traços que os papéis do Santo Ofício trazem da obsessiva vontade de
conversão dos judeus a partir do século XVI nas diretrizes da Igreja. Derivou daí a prática
dos batismos de crianças judias arrancadas de suas famílias e algo de mais impalpável
mas não menos importante: o sedimento na mentalidade italiana de um hábito de
desconfiança e de desprezo em relação à minoria judaica que teve seu peso na vergonha
das leis raciais fascistas de 1938.
Há ainda outros sinais não negligenciáveis de um retorno de algo que já conside,
rávamos ultrapassado. Na longa duração de uma instituição da Igreja o ritual tem sua

26. Congregatio pro Doctrina Fídeí, Documenta, inde a Concilio Vaticano Secundo expleto edita (1966-1985), Libreria
Vaticana, 2006, pp. 1-2.

Prefácio
42

importância: por isso não negligenciemos o valor simbólico do recente discurso do papa
Bento XVI na sessão plenária da Congregação para a Doutrina da Fé de quinta-feira,
31 de janeiro de 2008: um discurso cujo conteúdo também foi significativo (tratou-se
nele de correções das "formas do diálogo ecumênico" e dos problemas da bioética),
mas do qual ressaltamos aqui apenas um dado simbolicamente sugestivo: o renovar-se
da antiga congregação da quinta-feira quando o Santo Ofício reunia-se solenemente
em feria quinta coram Sanctissimo.
Podemos assim concluir esse exame dos estudos históricos com uma constatação e
uma pergunta. A constatação é esta: o caso italiano se insere, com certeza, em um mais
amplo processo. Paolo Prodi, em uma nota de leitura deste livro, lembrou que o caso
italiano é somente um capítulo do percurso que na história do Ocidente vai da ética
ao direito 27 • Ora, no que diz respeito ao direito europeu, historiadores como Harold
J. Berman e Maria Sbriccoli recontruíram a virada que, entre o Quatrocentos e o Qui-
nhentos, levou das práticas tradicionais de justiça negociada a uma justiça hegemônica
fundada sobre o processo inquisitório e concentrada nas mãos do poder político 28 • No
panorama de uma Europa onde o poder político subordinou a si mesmo, de várias for-
mas, aquele das igrejas (desde a área protestante, onde o poder do clero foi cancelado,
até a área católica ibérica e francesa, onde se tornou instrumento daquele do rei) , o
caso italiano destaca-se como o único onde tenha havido um decidido reforço do poder
religioso e político do papado: um poder que foi exercido nos estados da península
através de uma variedade de instrumentos e de modos , mas especialmente através da
Inquisição Romana enquanto tribunal supremo. E a pergunta é: aquela de que estamos
falando é uma intituição do passado ou é um organismo vivo e em plena atividade? A
questão tem sua importância, não só para os historiadores e não só para os italianos.

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

DEL COL, A. Storia dell'lnquisizione. Milano, Mondadori, 2006


DE BUJANDA, J. M. lndex des livres interdits. Sherbrooke, Centre d'Études de la Renaissance. Genebra,
Librairie Droz, 1984-2001, voll.1-XI.
LATIIS, J. e TEDESCHI, J. The ltalian Reformation of the Sixteenth Century and the Diffusion of Renaissance
Culture : A Bibliography of the Seondary Literature (c.1750-1997). Ferrara, Panini Editore, 2000.
TEDESCHI , John. Il Giudice e l'Eretico. Studi sull'lnquisizione Romana. Milano, Vitae Pensiero, 1997.
WOLF, Hubert. lnquisition, lndex, Zensur. Wissnskulturen der Neuzeit im Widerstreit, Ferdinand Schoningh.
Paderborn/München/Wien-Zurich, 2001.
_ _. Romische lnquisition und lndexcongregation. Paderborn, F. Schõningh, 2005 .
_ _. Dizionario Storico dell'Inquisizione , Pisa, Edizioni della Normale, 2009.

27. Paolo Prodi, Chritianisme et Monde Modeme. Cinquante ans de recherche, Paris, SeuiVGallimard, 2006, p. 326.
28. Veja-se, do autor deste livro, Giustizia Bendata. Percorsi Storici di una Immagine, Torino, Einaudi, 2008.

Tribunais da Consciência
PREMISSA

ste livro é dedicado a um aspecto da história italiana da idade moderna nada novo nos
E estudos: a presença da Igreja católica, o modo como a estrutura eclesiástica enfrentou e
superou a fratura da unidade religiosa europeia na época de Lutero, conseguindo manter e
consolidar seu prestígio e seu domínio sobre a sociedade. Trata--se de um problema antigo,
evocado inúmeras vezes nas polêmicas civis e nos debates políticos e, consequentemente,
abordado muitas vezes nos estudos históricos: como diagnóstico desolado dos defeitos
profundos do país por parte de quem dava importância, no século XIX democrático e
liberal, aos modelos da França ou da Inglaterra e, mais tarde, à eficiência estatal e militar
alemã; como reivindicação fascista de um pretenso patrimônio cultural latino e católico
de obediência hierárquica, em comparação à desagregação individualista dos países de
ordenação democrática; como alusão às tradições de suplência assistencial e solidarística das
instituições católicas - a diocese, a paróquia, as associações e congregações dos leigos, até
mesmo a família - quando o poder estatal não cumpriu suas obrigações ou desestruturou-se
vergonhosamente. E seria possível continuar: como repúdio das moralidades católicas da
tradição e tentativa de uma sociedade modernizada e consumista de reatar-se ao "mundo
perdido" de antiquíssimas culturas folclóricas pré-cristãs; como - por fim - desconsolado
abandono de toda chave unitária de leitura da presença da Igreja, historiograficamente
reduzida à indecifrável soma de micropoderes pelo olhar de historiadores imersos num
mundo político ilegível e confuso. O caráter prospectivo do olhar histórico, de que falava
Tolstoi, revela--se a cada passo também nesse terreno.
Ora, não há dúvida de que a Igreja tenha vencido: não de uma vez por todas,
claro, mas encontrando em cada crise histórica do país Itália antigas e novas razões de
hegemonia. Porém, os diagnósticos historiográficos da vitória obtida no momento da
crise mais radical e perigosa - a da época de Lutero e de Calvino, que foi para a Igreja
católica a época da luta, da "Contrarreforma" - foram e continuam sendo extremamente
diferentes. Para alguns, a crise foi superficial: somente uma minoria teria sido tocada
pelo avanço do individualismo religioso e da secularização, permanecendo intacta a
força da tradição na vida religiosa do povo. Para outros, ao contrário, somente o uso
sistemático da violência e das fogueiras teria permitido à Igreja romana esconjurar um
perigo mortal. Nesses diagnósticos pesaram, além dos pressupostos gerais dos historia-
dores, os problemas emergentes em seu presente: da questão da unidade política da
44

península à questão da separação entre classe dirigente liberal e massas católicas, da


relação entre papado romano e fascismo à gestão católica do estado pós-fascista. A his-
toriografia, respondendo à sua função de profecia a posteriori , ofereceu de quando em
quando olhares prospectivos focalizados em ordenamentos determinados do presente.
As pesquisas aqui reunidas não têm a presunção de escapar à regra e desatar de urna vez
por todos os nós do problema. Certamente, pretendem se valer da profunda transfor-
mação social e cultural que nos últimos cinquenta anos 29 afastou vertiginosamente de
nossa experiência os problemas da antiga Itália camponesa - e colocou outros, novos
e terríveis. De fato , parece difícil negar que tenha ocorrido uma profunda mudança,
tanto na sociedade italiana como na Igreja católica: mas a transformação, se sacudiu
a poeira do Risorgimento 30 que pesa sobre a questão, tornou ainda mais perceptíveis os
dados profundos, as estruturas geológicas que ligam e condicionam os afloramentos de
superfície. Bastaria citar, entre muitas outras, a função solene, de alta soberania e de
representação estatal, que o papado foi chamado a desempenhar nos momentos - não
raros - em que a crise do país exigiu de seus dirigentes algo além da gestão ordinária dos
assuntos internos. A capital simbólica delineou-se claramente então por trás da oficial.
O poder papal de guia e de orientação eclipsou os poderes laicos da Roma italiana: o
apelo de Paulo VI às "Brigadas Vermelhas" e a sombria cerimônia fúnebre solene do
cadáver de Aldo Moro, com os homens de estado italiano ajoelhados aos pés do pon-
tífice romano foram os momentos simbólicos de urna refundação do estado italiano
que mais uma vez - após os anos da guerra nazi-fascista - precisou apelar às razões
últimas de sua unidade. Não foi certamente por acaso que, sobre o fundo sombrio dos
"anos de chumbo", enquanto os choques da realidade contemporânea punham a nu as
fraquezas congênitas e novas do sistema italiano, os estudos históricos concentravam-se
novamente na função de centro cosmopolita, de grande capital supra-estatal da Roma
papal nos períodos das guerras da Itália ou detinham-se no meandro de poderes espi-
rituais e temporais do papado. Para essa função estatal assumida durante séculos pela
Roma papal, a partir da crise do sistema dos estados italianos no século X.V , chamam
cada vez mais nossa atenção os estudos sobre a cultura e as instituições de nosso país.
Ora, não há dúvida de que Roma tenha exercido sobre a Itália moderna uma soberania
especial: sobre este ponto, a reflexão política e historiográfica italiana, de Maquiavel e
Guicciardini a Botero e Sarpi, insistiu durante séculos. Mas dessa soberania viu-se em
geral o aspecto negativo - o modo pelo qual o Estado da Igreja impediu aos demais
unificar a península. No plano positivo, não se pode dizer que tenha sido dedicada
suficiente atenção aos vínculos institucionais e culturais com os quais se construiu no
tempo a relação de hegemonia e foram exercidas as funções de governo.

Justamente na época da construção dessa realidade que então foi chamada


"Estado da Igreja" (e só mais tarde, com uma definição mais adequada, "Estado Pon-

29. O original em italiano do presente livro foi publicado em 1996 (N. do T.).
30. Período histórico compreendido entre o início de 1800 e 1870, no qual a Itália readquiriu sua independência
e conquistou sua unidade como nação (N. do T.).

Tribunais da Consciência
45

tifício") - e que de fato foi a criação do papado italiano entre os séculos XV e XVI -
ocorreu também a crise aberta no cristianismo europeu pela Reforma: pois, o próprio
papado que estava empenhado no plano político e militar em superar o duro confronto
com os demais estados italianos e depois com as maiores monarquias europeias pelo
domínio da península, teve de enfrentar nos mesmos anos e frequentemente com
os mesmos instrumentos a questão da dissensão religiosa, na Itália e no exterior.
Com os mesmos instrumentos: o sistema das congregações cardinalícias, instrumento
essencial de governo da monarquia papal, foi inaugurado e dominado pela do Santo
Ofício da Inquisição. E o grandioso trabalho de sistematização conceituai de um Ro-
berto Bellarmino, voltado para o combate das consequências da Reforma protestante,
tem em vista principalmente os fundamentos italianos do poder político do papado.
De resto, não só na Itália religião e política eram então incindíveis. Os soberanos
puniam o crime de heresia como o maior delito político, o de lesa-majestade. Divergir
da religião do príncipe era uma forma de sedição. Sobre esse terreno, como responsável
supremo pela fidelidade religiosa dos povos sujeitos a príncipes particulares, o papado
pôde portanto construir uma forma especial de exercício do poder acima das fronteiras
estatais: mas pôde fazê-lo somente nos estados italianos, os únicos nos quais o tribunal
do Santo Ofício romano exercia de fato sua função.

Novamente, o olhar volta-se para a Inquisição. E aqui pode-se levar em conta, a


par da vantagem histórica da distância, também a vantagem historiográfica oferecida
pelas pesquisas sedimentadas durante séculos em torno do eixo Reforma e Contrar-
reforma (e/ou Reforma católica). Hoje, da antiga diatribe parece restar muito pouco:
num mundo cada vez mais estreito e apinhado, a curiosidade dos historiadores é atraída
pelos processos de controle da violência que viram as agências da religião tornarem-se
precursoras da função estatal de regulação dos comportamentos coletivos. E aqui, as
analogias entre as igrejas prevalecem sobre as diferenças: passando da teologia à socio-
logia, perde-se completamente o que desencadeou à época a violência das fogueiras e
dos sagrados massacres. Não que as analogias tenham estado ausentes , ao contrário. É
inegável que, à sombra da religião oficial, através de uma aparência teológica, se interveio
durante os dois séculos da era moderna sobre nascimentos, noivados e casamentos,
sobre a educação das crianças e sobre a divisão dos sexos, sobre a diversão e sobre a
blasfêmia, sobre as regras da justiça como composição dos conflitos e sobre as represen-
tações da alteridade, sobre as regras da guerra e sobre os rituais de paz. A imposição de
uma disciplina social passou por seu arraigamento nas consciências: considerando-o à
distância de séculos, Karl Marx atribuiu a Lutero o mérito de ter "emancipado o corpo
da cadeia, acorrentando o coração". Mas fora o católico Giovanni Botero a oferecer a
mediacão da Igreja ao poder político do estado-Leviatã que avançava, sustentando que
somen~e a religião podia soldar nos corações o vínculo da obediência. A rapidez com
que O assunto foi prontamente retomado também no mundo da Reforma demonstra
que existia um interesse comum das igrejas de que lhes fosse atribuída a função da
disciplina social.

Premissa
46

Mas a disciplina foi, então como sempre, um misto de persuasão e de repressão,


de prêmios e de punições. Ora, na tradição italiana, as pesquisas históricas orientaram-se
sobretudo para aqueles que experimentaram na própria pele a violência da repressão:
os hereges, os divergentes. Histórias apaixonantes, as deles, depositadas nos papéis
processuais com toda a força de atração das aventuras individuais. As pesquisas sobre a
vertente ortodoxa da história da Igreja, longamente minoritárias, orientaram-se quanto
muito para as instituições de governo "pastoral" das almas - as paróquias, as dioceses,
as ordens religiosas, o funcionamento da assembleia conciliar tridentina ou dos sínodos
diocesanos - sem jamais abandonar completamente a velha estrada da hagiografia e da
apologética (biografias de santos, de missionários, de fundadores de ordens). Vidas de
fé e de aventuras ocorreram, em suma, entre quem lutava por um patrimônio de ideias
minoritário, perseguido, e entre quem era impelido pela ânsia de converter os "infiéis" ,
os "pagãos", ou simplesmente de redimir os pecadores. Ainda assim , foram sobretudo
os heterodoxos, os divergentes , a estimular a pesquisa histórica na Itália; deu-se , desse
modo, o paradoxo de um país de grande maioria católica que da religião majoritária
sabia bem pouco e interessava-se principalmente pelos hereges. A autobiografia imagi-
nária do país refletida na toponomástica italiana é exemplar. Giordano Bruno prevalece
ainda nas ruas e nas praças italianas bem mais do que São Carlo Borromeo ou Santo
Inácio de Loyola.
Tudo isso - objetar-se-á - pertence a uma época distante. Hoje, junto com a tradi-
ção do Risorgimento e com o culto dos santos leigos da religião do progresso, enfraqueceu-
-se também a tradição de estudos dedicada à Reforma (protestante) na Itália: quer se
tratasse dos protestantes "testemunhas da verdade" , portadores de certezas tão imóveis
quanto a Igreja que os mandava à fogueira ou obrigava-os a abjurar, ou dos "mártires
do livre pensamento" caros à tradição da Itália crispina31 , positivista e anticlerical, a
história deles era a de um desafio do exterior, em nome daquela que era definida a "ci-
vilização moderna" - desafio vitorioso, até quando se pudessem opor à Itália sanfedista 32
e camponesa as metrópoles industriais da Europa atlântica e protestante. Mas, com a
grande transformação sofrida pela sociedade italiana, o culto desses mártires refluiu a
memória pátria e doméstica de pequenas comunidades dissidentes 33 •
E no entanto, a questão não está certamente fechada: e não apenas no sentido
genérico segundo o qual uma questão histórica jamais se fecha completamente. Resta

31. De Francesco Crispi (1818-1901), estadista conservador que exerceu cargos no governo italiano como Ministro
do Interior, Ministro do Exterior e Presidente do conselho de ministros de 1887 a 1896 (N. do T.).
32. Relativo a sanfedismo: associação de cunho reacionário e antiliberal surgida no Estado Pontifício após a restau-
ração de 1815; por extensão, tendência reacionária, antiliberal e clerical (N. do T.).
33. Bem mais fértil, comparativamente, mostrou-se a investigação sobre os "hereges italianos" de Delio Cantimori:
esses hereges da cultura humanista, mestres da dúvida e da dissimulação, obrigados a se moverem no sufocante
afunilamento de ortodoxias eclesiásticas opostas e igualmente intolerantes, tinham algo a ensinar a quem vivia
nas sociedades totalitárias do século XX e não queria renunciar a decifrar as linguagens da propaganda e as
insistentes imposições das ortodoxias ideológicas. Bastariam a vitalidade e as metamorfoses de termos como
"nicodemismo" para revelar o quanto estava viva e sensível a corda tocada por essas pesquisas.

Tribunais da Consciência
47

sempre à nossa frente o problema de uma compreensão melhor e mais aprofundada das
razões e das características da relação que se criou então entre a Igreja e a Itália. Se a
força da repressão serviu para sufocar a dissensão e a heresia, será preciso entender em
que consiste tal força. Nesse caminho deparamos com a instituição à qual é dedicada a
primeira parte da pesquisa reunida neste volume: a Inquisição. É um nome de ecos sinis-
tros: seu halo sombrio é o resíduo histórico das polêmicas batalhas que acompanharam
a longa vida da instituição. À Inquisição, desde o século XVI, recorreu-se para explicar
o aniquilamento das ideias da Reforma e o reordenamento agressivo da Igreja católica.
Fala-se desse assunto há séculos, mas não se sabe muito. Uma aura de mistério
circunda essa instituição, alimentando lendas de toda espécie. A "lenda do Grande
Inquisidor" de Dostoiévski é somente a mais conhecida entre as muitas imagens que de
seus temidos horizontes futuros o mundo moderno transpôs no passado. Testemunha
a desculpa das mais variadas funções, a Inquisição foi usada nas polêmicas sobre os
estados policiais, sobre os sistemas totalitários de nosso século, sobre o extermínio dos
judeus e assim por diante. Os romances históricos do século XIX em diante nutriram-
-se dela continuamente; ao contrário, a pesquisa histórica na verdadeira acepção da
palavra permaneceu por muito tempo detida em alguns grandes afrescos do século XIX, ·
construídos quase exclusivamente sobre a história da "outra" inquisição, a espanhola.
Naturalmente, a ignorância é inevitável ao menos em certa medida quando as
portas dos arquivos permanecem fechadas para os estudiosos: e a Inquisição romana
talvez seja hoje a única instituição histórica no mundo a esconder ainda seus arquivos
(ou a abri-los somente para seus asseclas, tendo em vista determinadas e bem contro-
ladas operações, como aquela para "reabilitar" Galileu Galilei, por exemplo). Mas esse
fechamento irredutível do poder eclesiástico às razões da pesquisa histórica não é sufi-
ciente para explicar a superficialidade das noções circulantes em matéria de inquisição
eclesiástica. Se se levar em consideração que por pelo menos dois séculos o Santo Ofício
da Inquisição foi o único poder central em operação na península italiana, reconhecer-
-se-á que nenhuma história da Itália moderna estará completa enquanto não tivermos
um conhecimento melhor desse tribunal, de seu modo de operar, de seu arraigamento
na sociedade e nas instituições dos estados italianos antes de sua união.
Mas não é uma história da Inquisição o que se pretende oferecer. Já foram escritas
muitas 34 • Uma nova e mais precisa pesquisa poderá ser feita no dia em que, extintos o
secular fechamento e o pavor eclesiástico, o arquivo romano do Santo Ofício for acessí-
vel a todos os estudiosos e seu exemplo for seguido pelos muitos arquivos eclesiásticos

34_ Uma resenha, cheia de lacunas e já envelhecida, em Emile van der Vekené, Biblioteca Bibliographica Historiae
Sanctae lnquisitionis, Vaduz, 1982. Genérico e de pouca utilidade o volume de Miroslav Hroch e Anna Skybo-
rova, Die Inquisition im Zeitalter der Gegenreformation, Stuttgart, 1985. Da vasta literatura existente dá conta o
amplo quadro de Francisco Bethencourt, L'lnquisition à l'époque moderne. Espagne, Portugal, ltalie Xyf-XJX' siecle,
Paris, 1995. Para a Inquisição Romana, além das investigações de Massimo Firpo sobre o caso Morone (cf.
Inquisizione Romana e Controriforma. Studi sul Cardinal Giovanni Morone e il suo Processo d'Eresia, Bologna, 1992),
são fundamentais os estudos de John Tedeschi, parcialmente reunidos em The Prosecution of Heresy, Collected
Papers on the lnquisition in Early Modem ltaly, Bínghamton, New York, 1991.

Premissa
48

menores espalhados por toda a Itália. Somente assim será possível sair da estéril diatribe
entre as apressadas reabilitações, em moda nesse fim do século XX, e as sumárias con-
denações de outrora. E no entanto, não esperaremos os resultados de uma pesquisa do
gênero para saber que nenhum tribunal, nenhum sistema policial é suficiente para dar
conta de uma vitória histórica como essa que implantou a Igreja católica no centro do
sistema italiano. Trata-se de compreender como a Inquisição romana conseguiu exercer
seu poder e por que conseguiu fazer isso somente na Itália. Que não se tratasse somente
de poder, de resto, é evidente, se se pensa na extensão dos territórios governados por
Roma e se considere que em batalhas de religião e de cultura vale mais que em outras
o princípio de que não basta vencer se não se sabe convencer. A relação entre poder
e persuasão acompanhou a Igreja em sua história a partir da Antiguidade tardia 35 , ou
seja, de quando ofereceu ao Império Romano uma aliança prenhe de futuro 36 • No sé-
culo XVI, em relação a esse distante início, os termos do problema parecem revirados:
reduzida a área geográfica, mas multiplicados os obstáculos pela concorrência no mesmo
terreno de variantes cristãs frequentemente mais eficientes ou mais afeitas aos poderes
políticos, a Igreja de Roma precisou recorrer a energias capazes de emular as da época
apostólica. Não se tratava apenas de eliminar ideias e livros heréticos, abolir modos de
pensar, golpear inimigos: dos modelos de santidade até as práticas para a fertilidade dos
campos havia todo um mundo de valores e de representações que precisava ser difun-
dido nos cantos mais remotos da sociedade. A esse aspecto da questão - a "persuasão" ,
justamente, pelas vias da confissão ou da missão, mas também pelas vias do tribunal
da Inquisição - é dedicada a segunda parte da presente pesquisa.

A presença da Igreja na Itália na idade moderna é um fenômeno de tal amplitude


e complexidade que qualquer simplificação é arbitrária: tem relações com urna história
determinante para os aspectos políticos, institucionais, culturais, da história italiana.
De Maquiavel até Ranke, os aspectos políticos dominaram a análise histórica e as ideias
políticas. Foram temas dominantes: a capacidade do Estado da Igreja de manter e au-
mentar seu poder, de impedir que outros unificassem politicamente a península, de
servir-se da hegemonia religiosa para consolidar o poder político e territorial dos papas
(e vice-versa). Mas, já com o protestante Ranke, a questão complicou-se: não bastava a
habilidade política dos papas para explicar a capacidade de recuperação demonstrada
pela Igreja em meio à crise da Reforma luterana. Era preciso investigar a sociedade
italiana em busca dos sinais de vitalidade da religião tradicional e da capacidade do
clero de governar e manter a vida religiosa nos canais consagrados. A historiografia
católica desenvolvida na época sucessiva ao fim do poder temporal dos papas - de
Pastor a Jedin - acolheu o desafio: disso derivou um esforço vigoroso de pesquisa mas
também de reafirmação apologética dos títulos históricos em poder da Igreja católica
para sustentar sua inegável hegemonia sobre a religião das massas. Essa tradição histo-

35. Período compreendido entre os séculos III e VIII d.C. (N. do T.).
36. Cf. Peter Brown, Power and Persuasion in Late Antiquity, Princeton, 1992.

Tribunais da Consciência
49

riográfica surgiu nos tempos do positivismo, do historicismo e - para o mundo cató-


lico - do modernismo: para garantir sua ortodoxia, precisou exorcizar a própria ideia
da evolução histórica, da transformação. A tríade Reforma (protestante) - Revolução -
Mundo moderno constituía então a incontestável rede conceitual de decifração do
percurso histórico, a sinalética essencial para orientar-se, para estabelecer os valores e
desvalores, para atribuir a cada nação seu lugar no percurso da civilização. Nenhuma
transformação ou "reforma", dizia Pastor, somente restauração do antigo; reforma,
sim, precisou Jedin, mas só na ordem da disciplina eclesiástica e dos costumes, e não
na doutrina da fé. Os exercícios terminológicos executados em torno do conceito de
Reforma foram inumeráveis: isso leva ao riso hoje, porque se evaporou (ao menos por
enquanto) a auréola positiva que durante séculos circundou a ideia de Revolução como
processo produtivo da modernidade. Mas não se deve esquecer a duração e o fascínio
daquela linha ideal que a historiografia democrática do século XIX construiu de Lutero à
Revolução Francesa. "Jogou fora a túnica Martinho Lutero/ Joga fora os teus vínculos ,
pensamento humano": assim disse Carducci. Lutar pela civilização moderna, lutar por
uma reforma moral e intelectual significou de qualquer modo opor-se a uma condição
presente, a um poder ou a mais poderes, para liberar forças aprisionadas, para dar vida
a um mundo mais justo. Tudo isso hoje, pela primeira vez, passa por uma espécie de
eclipse: exige-se da modernidade a explicação de aspectos negativos, que até agora eram
postos entre parênteses. Questiona-se, por exemplo, se o extermínio dos judeus pode
entrar - mesmo como aberração - no processo de sujeição do indivíduo à autoridade ,
nos mecanismos impessoais da eficiência burocrática (Bauman). O resultado em termos
historiográficos foi o de subverter a relação entre a Europa filha da Reforma protestante
e a Europa católica: trate-se de bruxaria, de inquisição, de casuística, ou de outras for-
mas do obscurantismo atacado em outros tempos pelos iluministas, hoje a tendência
é subverter o juízo tradicional e reavaliar a Europa católica.
Nesse sentido, a crise recente da noção de "modernidade" chocou-se com a tendên-
cia oposta do mundo católico (ou pelo menos de uma parte dele) de reconhecer valores
positivos no processo de desenvolvimento histórico, na transformação: enquanto os
historiadores estavam ocupados com a Reforma católica, os teólogos estudavam a noção
de Reforma na igreja. Com isso, renunciava-se à posição fechadamente apologética que
durante séculos tinha se mantido - a posição que via uma verdade imóvel atacada por
heresiarcas capazes unicamente de repropor erros antigos e sempre iguais: e do ataque
tirava-se motivo de consolo, com a providência divina que se encarregava de "transfor-
mar [. .. ] as máquinas de seus inimigos em pompa triunfal mais ilustre" , como escrevia
um pregador do século XVII, tanto que "as perseguições do Norte foram realmente um

sopro impetuoso, L
mas para rerorçar a chama, nao
- para apaga-. 1a "37 .
Essas tendências apologéticas não desapareceram: na historiografia católica re-
cente, os protagonistas, da "restauração" ou da "reforma", só podiam ser os membros
do clero, a hierarquia eclesiástica - os papas, os bispos. Todo o movimento desses refor-

37. Giovanni Pietro Pinamonti, Opere, Venezia, Niccolà Pezzana, 1792, p. 134.

Premissa
50

madores - leigos disciplinados, clero ortodoxo - é, como o dos céus de Dante, fechado
em si e contido num empíreo que permanece imóvel: a Igreja católica não modifica sua
identidade, apenas a reafirma vigorosamente. As exigências apologéticas, como também
o empenho presente da Igreja em recuperar a hegemonia sobre as massas , orientaram
esses estudos para os trâmites ordinários do governo eclesiástico sobre a maioria or-
todoxa da população: os bispos, os párocos, a rede capilar de instituições paroquiais
e diocesanas, irradiada sobre o território, a sociologia dos sacramentos - reflexo no
passado daquilo que no presente é denominado o "catolicismo sociológico" . A historio-
grafia italiana acentuou nesses estudos os aspectos de história da atividade "pastoral"
dos chefes ordinários do rebanho católico - o bom pároco, o bom bispo - e foi atraída
pelas formas institucionais de governo confiadas ao clero secular. Estudar a história da
Igreja na Itália significou quanto muito, nesse segundo pós-guerra, descrever estruturas
da organização eclesiástica diocesana: paróquias e dioceses , bispos e cardeais, sistema
de benefícios, visitas pastorais, seminários para o clero, registros paroquiais e assim por
diante. Pode-se intuir o quanto tenha influído sobre isso o caráter contemporâneo de
uma igreja que se tornou, com seus bispos e seus párocos, uma estrutura organizativa
para a orientação política das massas católicas. De qualquer modo , a verdade é que esse
caminho acabou levando a colocar na sombra ou a esquecer completamente os aspectos
de controle duro e policial da ortodoxia que foram retomados à época no tribunal da

'
Inquisição - e de fato bem poucos traços dessa realidade encontram-se nas histórias da
Igreja de orientação confessional e apologética.
Foram os hereges e os mártires da Reforma que experimentaram esses aspectos:
o ordenamento inquisitorial, as estruturas policiais e judiciárias da repressão . Demo-
nizada pela polêmica protestante, atacada com determinação pelos iluministas até
desativar sua ligação com o "braço secular", a Inquisição atraiu em seguida as fantasi as
românticas que na total compenetração de religião e poder intuíram a prefiguração
de moderníssimas formas de controle político. Herdeiros da imagem demoníaca do
"grande Inquisidor" , os historiadores de nosso tempo forneceram algumas respostas
concretas, com base em pesquisas, às hipóteses dostoievskianas (relações genealógicas
entre Inquisição e totalitarismos modernos; função determinante da Inquisição no
processo de evacuação do mágico e de mundanização do sagrado). Em outro sentido,
porém, voltou-se a dar atenção ao sistema de controle inquisitorial instaurada pela Igreja
medieval e chamada para novas tarefas no século XVI. A importância dessas estruturas
emergiu indiretamente dos estudos orientados para a religião das classes subalternas,
o mundo mágico e folclórico: processos como a descolonização de um lado, o esva-
ziamento dos campos italianos de outro, alimentaram uma forte demanda de história
dos "selvagens", internos e externos à sociedade europeia, de reconhecimento de seus
mundos mentais: os universos da diversidade, da dimensão espacial foram transferidos
para a temporal. Relegados no passado por um mundo orientado para se tornar uma
aplainada "aldeia global", fizeram ouvir na Itália talvez mais do que em outro lugar o
apelo profundo da nostalgia e do remorso - tanto mais profundo quanto mais brusca
foi a ruptura e rápido o afastamento. Os testemunhos mais nítidos daquele mundo

Tribunais da Consciência
51

mágico, daquelas religiões folclóricas emergiram justamente dos arquivos da repressão


inquisitorial. O trabalho secular de uma espessa burocracia inquisitorial registrou
com precisão inexorável tudo aquilo que nas imaginações, nos discursos, nos ritos da
sociedade italiana não coincidia com as prescrições da ortodoxia tridentina governa-
da pelos papas da Contrarreforma: esses registros no papel pretendiam ser, e quanto
muito o foram, cancelamentos da realidade. Se não chegaram a isso totalmente, pelo
menos assinalaram os limites do permitido e levaram a estratégias de camuflagem e a
metamorfoses mais ou menos profundas.
Os depósitos de conhecimentos a esse propósito são aqueles reunidos e con-
servados por duas agências da Igreja católica, responsáveis pela conquista cultural: a
inquisição, justamente, e a propaganda missionária. Nas fronteiras do novo, do insólito,
encontramos essas duas figuras: o missionário, encarregado da conquista pacífica, ades-
trado nas artes da persuasão; o inquisidor, cão de guarda da ortodoxia, despistador da
contaminação que vem do mundo exterior, aguerrido e violento inimigo da novidade.
Através deles, podemos acompanhar de que modo a estrutura eclesiástica veio se mo-
dificando e aparelhando para responder ao desafio das duas novidades fundamentais
do mundo moderno: a revolução quantitativa - explosão das fronteiras geográficas,
manifestação da importância do mundo dos campos - com a consequente necessidade
para a religião dominante de passar do controle político-institucional das elites urbanas
ao domínio de grandes massas; a descoberta da complexidade e da importância do
domínio cultural como controle interiorizado de inteiros universos mentais.

Mais uma vez, portanto, repropõe-se a questão do papel desempenhado pelas


instituições eclesiásticas numa fase crucial da história italiana: e, juntamente com a da
função, existe a questão da duração desse processo e de seus êxitos. E aqui se apresenta
a dimensão do poder e do estado, tão estritamente relacionados com a presença do
papado e da Igreja na história moderna da península italiana. Questão de história do
estado: e não seria por acaso que, após o parêntese do estado dos Savóia 38 e do Risorgi-
mento, os caminhos da questão do estado tendem a levar cada vez mais à Roma papal.
Talvez, somente o fio da fortuna de Maquiavel ofereça uma pista adequada para
seguir os reflexos culturais e políticos dessa história. As obras do secretário florentino ,
publicadas à sombra de um papado dos Médici preocupado unicamente com a recon-
quista de Florença, deviam se tornar o próprio símbolo daquilo que não se podia pen-
sar ou dizer em política logo que o papado da Contrarreforma ocupou solidamente 0
centro da cena política italiana e internacional. Foram condenadas então não somente
as obras, mas - como declarou o poderoso cardeal Giulio Antonio Santoro, alma do
Santo Ofício - "junto com as obras o nome e a memória do referido autor" 39 • Mas o
tratamento policial dedicado à eliminação da memória era apenas um sinal do quanto

38. Período de 1720 a 1861 em que parte da península esteve sob domínio da casa de Saboia, sob a denominação
Reino do Piemonte-Sardenha (N. do T.).
39. A frase de Santoro é referida em uma carta do embaixador florentino Giovanni Niccolini, de dezembro de
1596; Cf. Giuliano Procacci, Machiavelli nella Cultura Europea dell'Età Moderna, Roma/Bari, 1995, p. 112.

Premissa
52

o problema proposto por Maquiavel e seus argumentos continuassem a dominar o hori-


zonte do pensamento das autoridades eclesiásticas. Autêntico incômodo para a Igreja da
Contrarreforma, o pensamento de Maquiavel não se deixava exorcizar somente com as
medidas policiais. O mundo católico continuou por muito tempo a buscar uma solução
para o problema de como conciliar com a cultura e com as instituições da Igreja esse
"rosto demoníaco do poder" que Maquiavel revelara: e aqui a forma italiana do proble-
ma destaca-se muito mais se comparada à espanhola, na qual se percebeu sobretudo a
crítica de Maquiavel ao cristianismo como religião suspeita de "enervar" e desarmar os
ânimos, de tornar os homens imbeles e preocupados somente com a salvação da alma. O
catolicismo espanhol, com sua exaltação dos ideais da cruzada, fundamentou a unidade
estatal dos povos e culturas diferentes da península ibérica no impulso conquistador
de uma religião guerreira. O italiano, por sua vez, produziu - como resultado de um
longo ruminar sobre o rosto do poder descrito por Maquiavel - a doutrina da "razão
de estado" destinada a marcar de modo duradouro os cenários da reflexão política com
sua descoberta dos serviços que a religião podia oferecer ao poder. Mas os modos como
os pensamentos de Maquiavel continuaram a ser pensados nas mentes dos homens de
igreja italianos do século XVI foram muitos. Se um papa célebre por suas qualidades de
estadista, como Sixto V, conservava O Príncipe entre seus livros, não obstante as muitas
proibições, devia ter uma razão para isso. Razões para relê-lo não faltavam ; a época
de Lutero e do Concílio de Trento estava demonstrando "quão importante é levar a
religião em consideração"; e, se o papado estava resolvido a levá-la em consideração,
podia-se também subverter o resto deste célebre título do capítulo XII dos Discursos ("[ ... ]
e como a Itália por ser desprovida disso graças à Igreja romana , é arruinada"). Era jus-
to, portanto, que o século iniciado com os cenários terríveis da Itália percorrida pelos
exércitos ultramontanos terminasse com a proposta do oratoriano Tommaso Bozio de
reconhecer no papado a verdadeira causa das fortunas da Itália. Não só o poder estatal
do papado tinha-se consolidado, mas a Igreja romana tinha levado em consideração a
religião e interpretado a seu modo a demanda de reforma. Maquiavel tinha reconhecido
na necessidade de reformar as ordenações, reconduzindo-as "para seu princípio" uma
espécie de lei comum dos estados e das religiões: mas as testemunhas daquele fim de
século podiam reconhecer que a sobrevivência da Roma papal não era devida somente
àquele tipo de "reforma"; além do antigo havia muito de moderno e de novo nas solu-
ções detectadas pelo papado. Com toda a razão o jesuíta Antonio Possevino, membro
de um organismo completamente novo (e hostilizado pelas outras ordens justamente
em razão de sua novidade) reformulou essa lei com as mesmas palavras de Maquiavel,
modificando-a com o reconhecimento de que se havia saído da crise, não se limitando
a retornar ao antigo, mas enfrentando situações novas com novos instrumentos 40 •

40. O texto de Possevino, sem data mas endereçado ao superior geral da Companhia de Jesus Claudio Acquaviva
para ser submetido a Clemente VIII, por ocasião do projeto de reforma das ordens religiosas, intitulava-se:
Che il modo di ridurre le religioni alia pe-rfettione non solo consiste nel ridurle ad osservare i primi loro precetti et regole,
colle quali furono da Dio istituite, ma anco in osservar quelle che caminano bene, accioché non se sviino (Archivum

Tribunais da Consciência
53

O reforço do papado e da Igreja católica tinham levado em conta diretamente


a sociedade italiana. E os desenvolvimentos sucessivos continuaram a acometê-la mais
diretamente do que as demais. Setenta anos atrás a Itália entrava na noite do fascismo,
Benedetto Croce dava uma interpretação positiva desse processo e o via ainda em curso:
a Igreja, escrevia Croce, "como todos veem, ainda hoje ... continua a cumprir múltiplos
deveres morais e políticos, que não se saberia como substituir, pelo menos por enquanto
e por um longo período de tempo; ainda hoje a obra da Contrarreforma amadurece
frutos de utilidade social" 41 • Havia muito, a cena era ocupada pela Igreja como tutora
da ordem e da moralidade pública. A probidade coletiva de grandes massas era a função
que a Igreja tinha se proposto desde o alvorecer dos novos regimes parlamentares: e por
isso pudera exibir a título de crédito as raízes profundas fincadas na sociedade civil. "A
sociedade civil deve cuidar da religião", advertira o cônego bolonhês Luigi Morandi
enquanto nas assembleias de Lyon vinha estabelecido como primeiro artigo da Repú-
blica que a religião oficial do novo estado fosse a religião católica42 • Da força renovada
dessa aliança a Igreja extraía agora motivo para dirigir ao Estado não as súplicas e os
apelos para defendê-la - como fizera na época da Reforma - mas imperiosos protestos.
A longa marcha do Estado para a sociedade civil fora percorrida pelas instituições da
igreja católica com um sucesso sem igual na Europa, nem mesmo nos países que do
catolicismo tinham se tornado paladinos: a Espanha, a França.

Hoje, finda a passagem de um país predominantemente agrícola para uma demo-


cracia industrial, o processo reconhecido por Croce pode parecer concluído - se não
por exaurimento das instituições eclesiásticas, certamente pela profunda transformação
da sociedade. O fundamento autoritário da verdade, a delegação das escolhas morais a
um organismo eclesiástico de inquisidores e de confessores, os ritmos lentos e repetiti-
vos da vida social regida pelos ritos de passagem coincidentes com os sacramentos da
Igreja cederam lugar a um horizonte social totalmente secularizado, onde mensagens
eclesiásticas e pulsões religiosas de natureza variada devem competir entre si e com
outros contendores no terreno da conquista das consciências.
Mas talvez voltar a percorrer esses longínquos precedentes pode apresentar ainda
algum interesse.

Romanum Societatis Iesu Opp. NN., 314, cc. 32r-37v). É evidente o eco tácito do primeiro capítulo do livro
terceiro dos Discursos; no texto do memorial, a referência se faz ainda mais intensa.
41. B. Croce, Storia dell'Età Barocca in Italia, Bari, 1967, pp. 19-20.
4 2. Luigi Morandi, La Religione Necessaria alia Probità. Ragionamento... Ove Anca si Prova, che la Civile Società dee Aver
Cura della Religione, Bologna, 1803.

Premissa
LISTA DAS ABREVIACÕES
'

MP - Archivio della Curia arcivescovile di Pisa (Arquivo da Cúria arquiepiscopal de Pisa)


ACAF - Archivio della Curia arcivescovile di Firenze (Arquivo da Cúria arquiepiscopal
de Florença)
AHSI - Archivum Historicum Societatis lesu
ARSI - Archivum Romanum Societatis Iesu
ASM - Archivio di Stato di Modena (Arquivo de Estado de Módena)
ASS - Archivio di Stato di Siena (Arquivo de Estado de Siena)
ASV - Archivio Segreto Vaticano (Arquivo Secreto do Vaticano)
ASVen. - Archivio di Stato di Venezia (Arquivo de Estado de Veneza)
BAV - Biblioteca Apostolica Vaticana
BNN - Biblioteca Nazionale di Napoli (Biblioteca Nacional de Nápoles)
DBI - Dizionario Biografico degli ltaliani, publicado pelo Istituto della Enciclopedia
Italiana, Roma
MHSI - Monumenta Historica Societatis lesu
ÍNDICE DAS lLUSTRACÕES
'

1. Imagem da Haeresia, de C. Ripa, Iconologia, Roma, 1593 (p. 681).


2. Societas ]esu toto Orbe Diffusa Implet Prophetiam Malachiae, da Imago Primi Saeculi
Societatis ]esu, 1640, t. I, p. 318 (p. 682).
3. Orbita Probitatis, de J. David, Veridicus Christianus, 1601 (p. 683).
4. Lorenzo Lotto, A Queda dos Hereges, 1524, particular. Trescore (Bérgamo), Oratório
Suardi (p. 684).
5. Semper Tacui, grafite de um prisioneiro dos Cárceres da Inquisição de Palermo, século
XVIII. Palermo, Cárceres da Inquisição, Cárceres Filipinos (p. 685).
6. O Exame de Consciência, dos Exerci tia Spiritualia A. Ignatii Loyolae, Roma 1663 (p. 686).
7. Um frontispício de manual da Inquisição (Sacro Arsenale, Overo Prattica dell 'Officio
della S. Inquisizione Ampliata, Roma, 1639) (p. 686).
8. Escola florentina, terceira cena da História de Antonio di Giuseppe Rinaldeschi ("Joga
o esterco na cara da Santa Virgem, imprecando, e foge na vila"), 1501. Florença,
Museu Stibbert (p. 686).
9. Publicação das Sentenças Pronunciadas pelo Tribunal da Inquisição , ilustração do século
XVII. Milano, Coleção Cívica Bertarelli (p. 687).
10. Amestrar os Ignorantes, de Giovanni Battista Romano (ou Eliano), Doctrina Chris,
tiana, Roma, 1587 (p. 687).
11. Antoon van Dyck, Uma Bruxa em Palermo, cerca de 1625 (p. 688).
12. Giovan Francesco Barbieri, dito o Guercino, Cabeça e Torso de uma Bruxa Simiesca.
Windsor, Biblioteca Real (p. 689).
13. Giovan Francesco Barbieri, dito o Guercino, Uma Bruxa Condenada pelo Tribunal da
Inquisição, cerca de 1625 (p. 690).
14. Domenico Beccafumi, Cena de Tortura. Paris, Museu do Louvre, Departamento de
Artes Gráficas (p. 691).
15. Giovan Francesco Barbieri, dito o Guercino, São Pedro Mártir, 1647. Bologna, Pi,
nacoteca Nacional (p. 691).
16. Carlo Bonomi, O Anjo da Guarda, final da terceira década do século XVII. Ferrara,
Pinacoteca Nacional do Palazzo dei Diamanti (p. 691).
17. E. von Schayen, Os Poderes Mágicos dos Feiticeiros e do Clero e Dúvidas do Médico , ex,
,voto do médico e filósofo de Imola Giovan Battista Codronchi (1564,1626). Imola,
Pinacoteca Municipal (p. 692).
58

18. Giuseppe Maria Crespi, A Comunhão, cerca de 1712. Dresden, Staatliche Kunstam-
mlugen, Gemãldegalerie Alte Meister (p. 693).
19. Giuseppe Maria Crespi, São João Nepomuceno Confessa a Rainha da Boêmia, cerca de
1740. Torino, Galeria Sabauda (p. 694).
20. Giuseppe Maria Crespi, A Missão, cerca de 1730-1740. Heidelberg, Kurpfãlzisches
Museum (p. 695).
21. Aureliano Milani, A Missão, segunda década do século XVII. Bologna, Coleção
Molinari-Pradelli (p. 695).
22. Jacques Callot, Os Mártires do Japão, cerca de 1630. Nancy, Museu Histórico Lorrain
(p. 696).

'

Tribunais da Consciência
PRIMEIRA PARTE
A INQUISIÇÃO
PRÓLOGO

A EXPERIÊNCIA CALABRESA

E ntre 1561 e 1563, o cenário da cristandade italiana é ocupado pelos últimos, intensos
e um tanto difíceis anos de trabalho da assembleia de bispos reunida em Trento. São,
na Itália, anos de lutas intelectuais, de contrastes e debates de tons ameaçadores: mas,
após a guerra de Siena e após Cateau-Cambrésis, a paz estabelecida pelo domínio espa-
nhol não parece mais prejudicada. No entanto, na outra extremidade da península, na
Calábria, há uma guerra em curso. Não uma guerra espiritual, de escrituras e de batalhas
teológicas, mas uma guerra combatida por um exército regular contra populações inermes,
mulheres, velhos, crianças; combatida até contra os cemitérios e os ossos dos mortos, que
foram desenterrados e espalhados. Foram vítimas dela os habitantes de alguns vilarejos
da costa tirrena da Calábria, Guardia e San Sisto: em junho de 1561, um corpo de infan-
taria sob comando do governador Marino Caracciolo destroi as colheitas, abate as casas,
degola e enforca os habitantes, manda-os à fogueira, mata-os lançando-os do alto de uma
torre. Não foram poupados sequer os ossos dos cemitérios. É um pequeno episódio, que
poderia ser confundido com o ramerrão de revoltas e de repressões armadas que marca a
vida dessas sociedades, sempre expostas aos riscos do banditismo: o tribunal instituído no
local, que condenou à morte os que escaparam do extermínio, recorreu para isso, entre
outras coisas, à acusação de rebelião e de porte de armas. Mas a acusação mais pesada era
a de heresia. Os habitantes dos vilarejos calabreses eram valdenses e portanto hereges:
chegados em levas sucessivas à Itália meridional, tinham sido capazes de não despertar
desconfiança, simulando e dissimulando. Haviam mantido a própria fé à sombra e no
silêncio, protegidos pelos senhores feudais do lugar. Mas com a adesão dos valdenses à
profissão de fé reformada, no sínodo de Chanforan (1532), as coisas tinham mudado.
Terminada a época da simulação, tinha início a da profissão ou "confissão" pública. A
decisão do sínodo fora levada ao conhecimento dos valdenses da Calábria por meio da
inflamada pregação de alguns pastores vindos do norte. O destino trágico desses pasto-
res - Giacomo Bonelli morreu na fogueira em Messina (1560), Gian Luigi Pascale foi
enforcado e queimado em Roma no mesmo ano - é um sinal de mudança dos tempos.
Havia começado a era confessional, no duplo sentido da palavra: aderir a uma "confissão
de fé" significava aceitar uma série de doutrinas contidas num documento escrito e dar
prova disso publicamente, lutando em prol da vitória da própria opção religiosa sobre as
demais. Não eram mais possíveis a ocultação e a simulação, que durante séculos tinham
permitidü às úHllllnidades valdenses sobreviwrem. Enqunnto Pascnle ia parar junto com
um companheiro nús dtX·eres de FuscnlJo, o povo de San Sisto rt:belava-se contra o Mar-
quês dt> Mültalto: e a reação das autoridades politkas e religiosas não se fez espernr. Os
tr1ass1:\('res e as fugueims que deram fim à história desses "enclaves" valdenses foram um
passo à fu!nte na direçfü.l daquela uniformidade religiosa cujas características doutrinais
esrnvam sendo elaboradas pelo concilio de Trt'nto.
Dos tnúrtos. mártires cnnsdt'ntes e vítimas ignnrns , não resta muito a ser dito.
Mas não fornm \)S únkos apagados da história . Quem sobreviveu o suficiente para ser
pwcessado, consignou pensamentos e palavras nos autos processuais: os autos , trans-
mitidos a Rmna pdos inquisidores, ainda têm sido ignorados , devido ao que um histo-
riador do século XIX deno1ninou "tolo ciúme" do poder eclesiástico' . Mas o que Roma
escondia, a Europa reformada não demorou a saber. As publicações difundidas pela
propaganda dos adversários traziam notícias do fato e celebraram seu martírio: apenas
dois anos mais tarde, em Basileia, era publicada a narrativn de John Fox 2• A batalha
travada pelas milícias espanholas contra as populações desarmadas trnnsferia-se para o
campo da propaganda religiosa: e o que fora uma fácil vitória militar transformava-se
numa derrota de efeitos duradouros . A intolerância da monarquia espanhola tornou-
-se conhecida da opinião culta europeia e os nomes das vitimas foram venerados como
mártires da fé.
Mas na Calábria a vida era retomada sob a égide da nova ordem . As campanhas
das publicações em outros países da Europa de nada valeram contra a repressão local.
O documento mais eloquente é uma lista de familias elaborada por razões fiscais em
1561: "foi morto nesse verão passado como luterano" , "está preso em Cosenza por ser
luterano". "está em fuga por ser luterano"; e as casas, quando não eram queimadas,
eram requisitadas pela Cúria; e, se ainda eram habitadas por mulheres ou adolescentes,
bastava frequentemente um vestígio da presença dos bandidos ("a cama é grande e vê-
•se [. .. J dormiram ali mais pessoas"), para atear fogo em tudo 3 • Nem todos morreram,
de qualquer modo: houve os que sobreviveram durante um tempo - o tempo de um
processo e de uma condenação - e os que foram deixados vivos . Dois jesuítas se ocupa-
ram dos condenados, os padres Lucio Croce e Juan Xavier, com a tarefa de "reduzi-los" ,
ou seja, fazê-los morrer não como rebeldes, mas arrependidos e resignados . Os jesuítas
eram mestres nesse tipo de coisa. Seu relatório ao superior geral da Companhia dá
conta de um sucesso total: "[. .. J Todos os que foram sentenciados ... foram reduzidos;
e em seguida nós os confessamos e acompanhamos um de cada vez ao suplício, foram
todos degolados e esquartejados"4.

1. Luigi Amabile, II Santo Officio dell'lnquisitione in Napoli, Narrazione con Molti Documenti lnediti, Città di Casrello,
1892, vol. I, p. VII.
2. Rerum in Ecclesia Gestarnm, quae PostTemis et Periculosis his Temporibus Evenerunt. .. , Basileae, 1563, p. II, liv. li, f. .137.
3. "Numerazione dei Fuochi nel 1561 ", publicada por Amabile, li Santo Officio dell'lnquisitione in Napoli, op. cit. ,
vol. II, Documenti, pp. 83-92 .
4. Cf, Maria Scaduto S. 1., Tra lnquisitori e Riformati. Le Missioni dei Gesuiti tra Valdesi della C'..alabria e delle Puglie,
em AHSI, XV, 1946, p. 9 do extrato.

A Inquisição
63

É a história de um massacre: mas os massacres, que tanta participação têm na


história de nossa espécie , (ainda) não puseram fim a ela (à sua história). Após a morte
das vítimas, a vida da sociedade continua e é necessário levar em consideração os sobre-
viventes para seguir adiante. O problema se apresentou com muita frequência, na época
do massacre de São Bartolomeu. Mas foi nos territórios do império espanhol que a par
da violência dos massacres tentou-se com maior determinação percorrer caminhos de
outro tipo de conquista. O conglomerado político dirigido por Filipe II era, como se
sabe, o maior existente no mundo; e era também o que tentava mais do que qualquer
outro transformar o jugo militar e político em um vínculo arraigado na consciência
dos súditos. No correr dessa mesma década de sessenta do século XVI, foram agredidas
e combatidas por motivos religiosos as populações indígenas do Peru, os moriscos de
Granada, as minorias recalcitrantes dos Países Baixos. Em todos esses casos, a dinâmica
é idêntica à calabresa: imposição de uma religião que é ao mesmo tempo uma cultura,
uma língua, um conjunto de práticas sociais, a uma população que permaneceu fiel a
uma identidade diferente; a população resiste, rebela-se - movimentos milenaristas no
Peru, sublevação dos moriscos de Albaicín na noite de Natal de 1568 ao grito de "viva
Maomé!" - e o exército espanhol intervém, reprime e saqueia. No caso dos Países Baixos,
com o passar do tempo a derrota do império espanhol imprimiu à história da Europa um
novo ordenamento. Mas também onde a resistência foi varrida e ocorreu a reafirmação
do poder estatal, após a vitória foi necessário enfrentar a questão de como impor a nova
identidade aos derrotados. Não era um problema de fácil solução. Demonstração disso
era o caso da minoria judaica, obrigada à conversão desde o final do século XV e, no
entanto, suspeita, quase sempre com razão, de ter permanecido secretamente fiel à sua
religião. Eram vínculos profundos que não podiam ser desfeitos facilmente . Os judeus,
os mouros, os índios americanos podiam ser obrigados a se batizarem e a assumirem
com nome cristão um patrimônio cultural novo - a "se converterem" , como se dizia.
Mas as resistências afloravam até mesmo na escolha dos nomes que se fazia na hora
do batizado. Uma pesquisa realizada sobre uma amostragem significativa de judeus
sicilianos demonstrou que eles, embora convertidos (à força) e batizados com nomes
cristãos, mantiveram uma identidade cartorial de tipo hebraico. Chamaram-se Coyno
(de Cohen), Levi, Manuel, Rafael e assim por diante. Era uma escolha que aumentava,
ou pelo menos não reduzia, suas dificuldades de inserção no mundo dos cristãos. De
fato, também por isso despertaram suspeitas e foram processados. Logo, enquanto se
dobravam à obrigação do batismo e declaravam-se cristãos, a fidelidade à identidade
judaica permanecia forte 5•
O problema da integração das minorias, através da eliminação das diferenças
religiosas e culturais, é desses que caracterizam a formação do estado na tradição euro-
peia e cristã. Foi um problema vivido dramaticamente em todos os estados europeus

5. Francesco Renda (La Fine del Giudaismo Siciliano. Ebrei Marrani e lnquisizione Spagnola Prima, durante e dopo la
Cacciata del 1492, Palermo, 1993, pp. 148 e ss.) sugeriu essas observações, estudando as listas dos nomes de
1890 sicilianos inquiridos por judaísmo entre 1492 e 1572.

Prólogo - A Experiência Calabresa


64

na época da Reforma; mas entre todos foi o estado espanhol que reconheceu nele um
objetivo fundamental, a ponto de aplicar nisso todos os seus recursos. Em um estado
que agregava uma grande quantidade de povos diferentes por língua, tradições, reli-
gião, a causa da unidade religiosa era a da unidade do estado; não se podia permitir
aos mouros de Granada celebrarem as núpcias com seus ritos, usarem a língua árabe,
vestirem-se de determinados modos sem serem vistos como inimigos internos, aliados
daqueles piratas muçulmanos que devastavam as costas mediterrâneas. E o mesmo valia
para os protestantes ou para os adoradores americanos do sol. A guerra e o massacre dos
rebeldes não resolviam o problema - mesmo porque a política cristã do rei de Espanha
não pretendia a destruição dos diferentes, mas sua conversão. Por isso, a persuasão e a
conquista cultural foram tarefas mais importantes ainda do que a repressão.
A conversão é a palavra que domina a história do mundo unificado pelas des-
cobertas e conquistas europeias. Do significado de origem hebraica, de volta atrás,
à verdade de uma tradição abandonada e traída, havia muito o termo passara, com
o cristianismo, a significar uma guinada, uma mudança para uma verdade nova e
conquistadora. Mas como se dava a conversão? No grande cadinho da Espanha da
"reconquista", o sinal da mudança tinha sido o batismo cristão imposto às populações
relutantes. Mas o efeito frustrante, a contínua incerteza e ansiedade no que se refere à
sinceridade daquela mudança imposta pela força haviam minado a sociedade espanhola
e conferido características raciais ao antigo ódio cristão pelos judeus. A descoberta
da América com suas populações dóceis e acolhedoras tinha entusiasmado os frades
1 habituados a bater de frente com a resistência dos judeus: haviam sido difundidos en-
tusiásticos relatos sobre aqueles povos que pareciam tão naturaliter cristãos a ponto de
merecerem um recrutamento em massa sob a nova fé , com ritos batismais simplificados
e administrados rapidamente a multidões de indígenas. Tão fácil parecia essa expansão
mundial do cristianismo a ponto de reacender antigas expectativas milenaristas: um
mundo unido como um único rebanho sob um único pastor - eis o sonho que de
Colombo em diante encontrou muitos dispostos a sonhá-lo. Era uma prática da con-
quista de tipo sumário, baseada numa confiança absoluta no mágico efeito do batismo
administrado. Mas a desilusão não se fez esperar: quando, em 1539, descobriu-se no
México que um príncipe tolteca sob sua nova identidade de convertido - chamava-se
don Carlos - alimentava às escondidas o culto dos antigos deuses , até os mais fervidos
defensores dessa evangelização tiveram de admitir que nem o batismo nem o nome
latino eram suficientes para criar a nova identidade. Desde então, foram desenvolvidas
uma discussão teológica e uma prática disseminada que tentaram determinar os ins-
trumentos para obter uma transformação efetiva da personalidade, não uma simples
mudança dos indícios externos de caracterização. De um lado, representou o triunfo
da investigação etnográfica e, de outro, da catequese como ensinamento, conquista
cultural, colonização do imaginário 6 •

6. Sobre a prática etnográfica (em particular, a de Bernardino de Sahagún) e mais geralmente sobre a questão do
"outro", remete-se a Tzvetan Todorov, La Conquête de l'Amérique. La question de l'autre, Paris, 1982.

A Inquisição
65

Essas experiências e outras adicionais ligadas à difusão das doutrinas da Reforma


exerceram seus efeitos também no mundo valdense da Calábria. Foi ali que se tornou
necessário o trabalho da Companhia de Jesus, um corpo eclesiástico que, se estava
pronto para exercer o ofício policial da inquisição, precisou dedicar-se ainda mais ao
da catequese e da conversão. No caso dos valdenses da Calábria, o vice-rei de Nápoles
tratou de pedir o envio de pregadores para facilitar de todos os modos a tarefa da recon-
quista religiosa: tratava-se de reconduzir os sobreviventes à ortodoxia. Teve início então
o ensinamento da doutrina cristã. E na relação com essa população os jesuítas, reagindo
talvez ao espetáculo sangrento que se desenrolara diante de seus olhos, manifestaram
sentimentos de simpatia; eram pessoas que, "fora da peste" (ou seja, da heresia), eram
exemplares no plano moral: não blasfemavam, não brigavam entre si, não eram posses-
sivos em relação aos próprios bens 7• A simpatia humana nascia talvez do contato com
uma dimensão da vida social na qual o cristianismo assumia formas antigas, não ainda
dominadas pela consciência doutrinária e pela redução da religião às suas características
teológicas; e até a lembrança dos horrores da carnificina deve ter tido seu peso. Mas,
para além de suas possíveis origens, essa contradição entre o exercício de um poder sem
limites e a piedade por quem sofria seus efeitos não pode ser ignorada.
Mesmo porque derivavam daí alguns problemas para as autoridades que se ser-
viam daqueles homens. Isso pôde ser visto claramente pouco depois, numa situação
análoga. Os jesuítas tiveram que lidar com outra comunidade valdense, a da Apúlia.
O cardeal Ghislieri mandou para lá um homem de sua confiança, padre Cristóbal
Rodriguez, com deveres e responsabilidades inquisitoriais. Era uma missão não oficial:
os poderes da Inquisição romana não tinham curso oficial no território do Reino de
Nápoles, onde era preciso, portanto, contar com as autoridades eclesiásticas ordiná-
rias. Mas essas não satisfaziam completamente as exigências do grande inquisidor
romano: daí a decisão de enviar o jesuíta Rodriguez, com uma ambígua autoridade
de vigário sob a qual se escondiam poderes de inquisidor. A Companhia aceitou:
não se podia dizer não a um homem como Ghislieri. E de qualquer modo, não havia
então objeções de princípio entre os jesuítas em relação à Inquisição: a Companhia
aceitava a instituição, salvo tentar depois - como fez em outros casos - reelaborá-
-la por dentro 8 • De fato, logo vieram à luz contrastes substanciais sobre como exercer
esse ofício. Enviado a Volturara em 1563, Rodriguez - que retornava então de uma
venturosa missão no Egito, entre os escravos cristãos - tentou aproveitar a ocasião para
recorrer a métodos suaves - "suavidade e brandura" - de preferência à dureza. Mas,
numa carta dura e seca, o cardeal Ghislieri enfrentou resolutamente a questão. Vale a
pena lembrá-la:

Advirto ainda a V.R, que uma coisa é ser confessor, outra é ser juiz: o confessor crê em tudo o
que lhe é dito: 0 juiz desconfia sempre da verdade do réu, et massime in hoc genere causarum; e porque

7. Carta de Xavier de 25 de junho de 1561, em Scaduto, Tra Inquisitori e Riformati, op. cit. , p. 11.
8. Cf. John W. O'Maley, The First ]esuits, London, Cambridge (Mass.), 1993, pp. 20 e passim.

Prólogo - A Experiência Calabresa


66

V. R. escreve-me que se se usasse de muito rigor etc ... que fugiriam do lugar, prouvesse a Deus que
tal geração nunca tivesse ali entrado 9 •

Uma rede de imagens e uma extensa série de argumentos circundavam essa regra
fundamental: fazia-se referência à arte médica de curar os ferimentos - e a figura do
médico é das que mais aparecem quando se trata de definir a função do eclesiástico
nessa época. Mas prevalecia a imagem do juiz, que portava tons ainda mais graves do
que aquela também severa do médico impiedoso. A exortação a duvidar e a desconfiar
até o fim apoiava-se no conhecido hábito da dissimulação a que eram propensos os
hereges. Esses valdenses tinham conseguido sobreviver por tanto tempo, graças à sua
habilidade em dissimular- "andar com fraudulência e ... enganar os católicos" - escon-
dendo a herança de ideias recebidas de "seus ancestrais". Era preciso desmantelar sem
piedade esses artifícios. Naturalmente, algumas concessões táticas podiam ser feitas ;
por exemplo, devia-se exumar os ossos dos mortos para queimá-los, segundo as regras
da Inquisição, mas não era preciso fazê-lo de imediato, se isso ofendia e aterrorizava
quem estava entre a conversão e o recrudescimento herético: "cuidamos primeiro dos
vivos, e depois faremos o que deve ser feito em relação aos mortos" .
A oposição entre confiança e desconfiança, suavidade e violência, não era um
detalhe secundário dessa história. Era, na realidade, a expressão de um problema
fundamental na estratégia da Igreja daquela época. De resto, os dois interlocutores es-
tavam aptos, pelas posições que ocupavam e pelos deveres que comumente cumpriam,
a representar com extrema clareza as escolhas implícitas na oposição entre confessor e
juiz. Um - o cardeal Michele Ghislieri - era o juiz por excelência, o "grande inquisidor"
que de Roma controlava e suspeitava. O outro pertencia a uma congregação de clérigos
regulares que, embora de surgimento recente, já fizera uma escolha decisiva a favor da
confissão. O nobre lfiigo de Loyola, desde que decidira tornar-se Inácio, "o peregrino",
tinha experimentado na própria pele a dureza intolerável da suspeita inquisitorial;
sua Companhia optara pelas artes da persuasão e por uma obra de evangelização que
tinha conduzido seus membros entre os não cristãos de todo o mundo. Os resultados
estavam inscritos nas experiências daqueles dois interlocutores: se Ghislieri precisara
fugir precipitadamente da território cristão de Bérgamo para salvar sua vida, Rodriguez
chegava em 1563 à Apúlia, recém-chegado de uma viagem ao Egito, durante a qual ele e
seu ~ompanheiro Gian Battista Eliano, judeu convertido, tinham podido viver tranqui-
lamente entre mulçumanos e judeus e reconduzir à prática religiosa os escravos cristãos.
Esses homens tinham, naturalmente, muito em comum: sobretudo, comparti-
lhavam o objetivo de combater contra o demônio e de arrancar-lhe as almas para salvá-
-las. Os jesuítas tinham se constituído em companhia justamente para combater sob o
estandarte de Cristo contra o exército do demônio: Inácio tivera uma visão do mundo
dividido entre os dois exércitos e tinha exposto essa visão no início de seus Exercícios
Espirituais, para explicar a necessidade de formar fileiras e de dedicar a própria vida

9. Carta de 8 de setembro de 1563, em Scaduto, Tra lnquisitori e Riformati, op. cit., pp. 44-46, em particular a p. 45.

A Inquisição
67

naquela luta sem quartel que tinha por objeto as almas. Frei Michele Ghislieri sabia,
portanto, que podia contar com a compreensão de Rodriguez ao lhe escrever sobre os
"novos labirintos" nos quais o demônio fazia cair suas vítimas e sobre a necessidade de
levar até o fim a atividade inquisitorial:

Porém, visto que o Senhor Deus escolheu-me como instrumento para ajudá-las, e o demônio
quis impedir obra tão santa por meio de seus ministros, deveis animar-vos muito mais, para que Jesus
Cristo, nosso redentor, seja vitorioso 10 •

Essas declarações de princípio traduziam-se depois em uma atenção precisa e


constante sobre os fatos das pessoas, como indivíduos: suas histórias eram reunidas
nos processos que Rodriguez conduzia (ocultando, como se disse, sua atividade de
inquisidor sob o título e a autoridade de vigário dos bispos do lugar). Desses processos,
Ghislieri extraía o que queria saber e submetia ao Santo Ofício de Roma suas propos-
tas que, aprovadas, eram transmitidas de novo a Rodriguez. Pelas cartas inferimos os
nomes de quem devia continuar seu processo em Roma, junto ao Santo Ofício; eram
uma minoria, mas eram também os que tinham mais adeptos, devendo,se extrair de-
les o necessário para aprofundar as investigações in loco . Depois, havia muitas outras
pessoas: as que abjuravam e eram absolvidas, mas não sem que Ghislieri quisesse
controlar o abjuramento 11 ; as que deviam cumprir penitências e solicitavam serem
tratadas com alguma condescendência; eram nomes e casos de mulheres e de homens
daqueles pequenos centros da Apúlia, sobre os quais Ghislieri mostrava,se muito bem
informado e sobre cujos destinos ele decidia de Roma com piedosa dureza - piedade
por "aquelas pobres almas, capturadas e enganadas pela diabólica fraude , libertadas e
recuperadas com seu (de Cristo) preciosíssimo sangue" 12 , dureza para com tudo aquilo
que dizia respeito aos corpos e aos sentimentos humanos de vergonha, de medo, de
dor - como era o caso daqueles que, absolvidos, recusavam-se a usar o sambenito ou
a abjurar em público: e devia,se usar o sambenito, "porque ele é o estandarte que de
bom grado deve ser portado por aqueles que estão verdadeiramente arrependidos;
e quanto àqueles que por terror de tal sinal não querem confessar suas heresias, o
I Senhor oferecerá ajuda para que sejam descobertos, para que possam ser arrancados
das mãos do demônio" 13 •
O arrependimento era o fim a que o jesuíta e o dominicano conjuntamente ten-
diam. Mas pela correspondência de ambos percebe,se que havia divergências quanto ao
melhor caminho para atingir o objetivo. Rodriguez solicitava penas brandas, penitências
secretas e não humilhações públicas, brandura na abordagem das pessoas. Ghislieri,

10. Carta de 3 de junho de 1564, idem, p. 55.


f
' 11. "De don Giovanni dell'Horzara, V.R. obtenha cópia da absolvição e abjuração, e mande-a para mim, que se
f/ terá em consideração, se será bem ou mal expedida" (carta de 19 de abril de 1564, idem, p. 54).
12. Carta de 3 de junho de 1564, idem, p. 56.
13. Carta de 25 de julho de 1564, idem.

J' Prólogo - A Experiência Calabresa


/
68

por sua vez, estava convencido de que o verdadeiro arrependimento era medido pela
colaboração efetiva oferecida pelos arrependidos com revelações e denúncias e que so-
mente nesse caso era possível conceder descontos de pena. A organização herética que
ele queria desfazer estendia-se da Apúlia ao Piemonte e à França; e por isso insistia em
exigir que todos confessassem quem eram seus "cúmplices, não somente de sua terra,
mas de todos os outros lugares, na Apúlia, Piemonte França, ou onde quer que seja,
porque do contrário seria pior para eles, que seriam falsamente convertidos , e quando
descoberta a verdade de que se tinham calado maliciosamente seriam punidos por
relapsos" 14 • Em suma, para Rodriguez bastava o arrependimento da confissão, ao passo
que Ghislieri queria algo diferente.
Não era uma oposição radical: dizia respeito aos meios , não aos fins . Tanto é
verdade que os dois colaboraram com recíproca satisfação. Ao fim e ao cabo, Rodriguez
pôde finalmente experimentar sem reservas sua estratégia do arrependimento secreto,
da renúncia às formas penais do juiz. Isso ocorreu no final de seu trabalho nas terras
dos valdenses. Arrumadas as coisas na Apúlia, Rodriguez fora mandado à Calábria, às
aldeias de Guardia e de San Sisto, cinco anos após a sangrenta expedição militar. O
tempo transcorrido não tinha sido suficiente para apagar a lembrança daqueles terrí-
veis dias ; mas tinha sido tempo bastante para que as crianças crescessem e os jovens
de então se tornassem adultos. Esses jovens, essas crianças haviam sido poupadas por
terem aceitado abjurar sumariamente os ensinamentos recebidos. Era legítima a des-
confiança de que algo da "erva daninha" tivesse permanecido dentro deles; Rodriguez
apresentou-se àquele povo que tentava retomar uma existência normal e pediu que
completassem o que ficara faltando nas abjurações passadas. Tinha em mãos uma ga-
rantia da congregação romana do Santo Ofício de "que não seriam punidos , dizendo a
verdade sobre o que havia faltado naquelas agitações" , era um documento escrito, que
podia ser exibido, coisa que Rodriguez fez : "E enviada que foi a dita asseguração para
que seja mostrada a eles ... se dispuseram, tendo confessado a verdade do que faltara
dizer então em seus exames" .
Cerca de novecentas pessoas dispuseram-se a confessar: "graça mui especial tanto
para a saúde de suas almas , como para o perigo que corriam de serem punidos, que
concedeu a Igreja depois das grandes perturbações que atentaram" . Era, ao fim e ao
cabo , uma espécie de ressarcimento póstumo e tardio. Mas era também um compro-
misso e uma redução da confissão inquisitorial a confissão secreta e sem consequências
penais , o que alterava substancialmente o estatuto da práxis inquisitorial. Rodriguez
tinha tanta consciência disso a ponto de solicitar que a coisa não viesse a ser conhecida
nem sequer no interior da Companhia: "E esta última parte por ser coisa rara, é bom
que mesmo de nossos poucos a saibam" 15 •
Mesmo encoberto pelo segredo, o episódio não devia permanecer isolado.
Encontram-se traços de uma história muito similar em um documento interno da Com-

14. Carta de 16 de dezembro de 1564, idem, p. 62.


15. Carta de Nápoles, ao Superior Geral em Roma, 6 jan. 1566; idem, pp. 68-69.

A Inquisição
69

panhia de Jesus que mostra como a estratégia indulgente da confissão continuava a se


sobrepor e a chocar-se com a estratégia severa da Inquisição. Foi o próprio Rodriguez,
alguns anos mais tarde, que recorreu à mesma oferta da confissão e da penitência secreta
para convencer alguns hereges de San Ginesio a abjurarem; os poderes concedidos a ele
por Ghislieri permitiam-lhe fazê-lo. Parece, porém, que Ghislieri, então Pio V, faltava
ao acordo e fazia aprisionar alguns desses hereges nos cárceres do Santo Ofício. E Cris-
tóbal Rodriguez precisou dirigir-se a Roma e pedir firmemente ao papa que respeitasse
o compromisso assumido 16 •
Após a conclusão da história dos valdenses da Apúlia, nas terras reconquistadas
com a força conjunta da justiça inquisitorial e do convincente recurso à confissão, o
bispo criou duas novas paróquias. Há a tentação de dar a este fato um valor simbólico.
As novas células tridentinas da cura animarum assentavam-se num território que outras
forças, eclesiásticas e não eclesiásticas, tinham assegurado para a igreja de Roma. Não foi
ao novo clero pós-tridentino, portanto, que se deveram a eliminação da igreja valdense
na Calábria e na Apúlia e a reabsorção de seus fiéis pelos longos braços da igreja romana.
Mas essa divergência entre a desconfiança do juiz e a confiança do confessor, que frei
Michele Ghislieri advertia como inconciliáveis, propunha um problema mais amplo
à nova realidade eclesiástica que se preparava para tomar o lugar da Igreja medieval.
A colaboração que aqueles homens eram capazes de dar prova não deve ocultar
a diferença de perspectiva que os movia. O inquisidor romano , criado na luta contra
os hereges, tinha à frente uma oposição simples: de um lado a verdade, do outro o
erro. Os jesuítas chegavam aos campos calabreses pela periferia do mundo cristão ou
por experiências decididamente fora de suas fronteiras - o Egito, as Índias. Vinham
de longe; sobretudo, eram capazes de olhar para as coisas italianas com uma perspec-
tiva nova. Sob a pena de Juan Xavier aparece a expressão "esta Índia" para indicar o
mundo calabrês 17 • Tinham sido justamente os jesuítas a cunhar essa expressão, que
transferia para realidades familiares e próximas o véu da exótica alteridade dos mundos
extraeuropeus havia pouco descobertos ou redescobertos: e tinham feito isso particu-
larmente em relação à Itália. O sarzanense Silvestro Landini, enquanto vagava entre
os habitantes da Córsega em 1553, começara a falar da ilha como de "sua Índia" 18 •
Fora um passo decisivo numa estrada nova e cheia de futuro : a que consistia em exa-
minar com olhar estranhado uma realidade próxima, aparentemente familiar. Ora, o
olhar que o confessor e inquisidor jesuíta dirigia ao povo calabrês era, na realidade,
característico de outro tipo humano - o missionário.

16. É Scaduto (idem, p. 22) a contar essa história, reconstruída com base em um relatório inédito do padre Silveri
ao padre Sacchini da Companhia de Jesus.
17. Carta de 22 de agosto de 1561, idem, p. 12.
18. "Nunca vi terra mais necessitada das coisas do Senhor do que esta [... ) Esta ilha será minha Índia, digna de
mérito como aquela do preste João", carta a Inácio de Loyola, em MHSI, Epistolae Mixtae, ex variis Europae
locis ab anno 1537 ad 1556 scriptae ..., III (1553), Madrid, 1900, pp. 115 e ss. V. neste volume o cap. XXVlll,
parte lll.

Prólogo - A Experiência Calabresa


70

Ao encontro/ choque entre as estratégias do inquisidor, do confessor e do missio-


nário, deveu,se a implantação, sobre os restos da comunidade valdense, de uma realidade
nova: a do catolicismo moderno. A construção da unidade religiosa italiana da era
moderna passou pois por uma mistura desigual dessas estratégias - mesmo se não teve
no resto da Itália os traços violentos e dramáticos que caracterizaram o caso calabrês.

A Inquisição
I
A FÉ ITALIANA

F é, esperança e caridade: como as três Graças da iconografia pagã, as três virtudes


teologais acompanharam a tradição cristã medieval, oferecendo,lhe um ponto de re-
ferência estável. Junto com os sete pecados capitais, as sete obras de misericórdia, os dez
mandamentos e algumas outras passagens obrigatórias da matemática cristã, constituíram
durante séculos um esquema mnemônico rápido e fácil da identidade cristã. A união
delas rompeu-se bruscamente em 1520. O tradutor anônimo da Liberdade do Cristão, de
Lutero, disse-o de maneira exemplarmente clara:

A muitos pareceu coisa fácil a fé cristã, a qual alguns ainda põem entre as virtudes como
suas companheiras, o que fazem porque não a provaram com nenhuma experiência, nem jamais se
deleitaram de tanta virtude que nela existem 1•

Com essas palavras podemos considerar postas as premissas da nova vida que
o instituto medieval da Inquisição conheceu no século XVI. A matemática medieval
das virtudes é subvertida; a fé desvincula-se da esperança e caridade, torna-se difícil,
para poucos. Era o necessário para que a instituição antiga anteposta às coisas de fé
conhecesse uma nova juventude.
Colocada assim, na abertura do texto mais revolucionário do monge saxão,
essa afirmação surge como o reconhecimento do caráter de uma nova era. A fé , desse
momento em diante, esteve no centro das discussões e dos conflitos: "sola fide" para
quem concordou com Lutero, a fé formada ou enriquecida pela caridade, segundo
as posições defendidas pela ortodoxia católica, que tentavam salvar a tradição. A
esperança ficou em posição ainda mais subordinada, ignorada por quem defendia a
certeza da salvação eterna e por quem sofria o terror da eterna danação. Entretanto,
eram justamente esperança e caridade a dominar as experiências religiosas da socie-
dade italiana. Na Roma de Leão X, cardeais e altos prelados , mercadores e homens
de letras eram os membros da "Companhia da Caridade", fundada em 1519 pelo
cardeal Giulio de Médici, o futuro Clemente VII 2• O ponto capital, solenemente

1. [Lutero] Opera Divina della Christiana Vita nuovamente Stampata, s.l. n.a., c. A Ir.
2. Cf. P. Paschini, "Le Compagnie del Divino Amore e la Beneficenza", em __, Tre Richerche sulla Storia della
Chiesa nel Cinquecento, Roma, 1945, p. 51.
72

afirmado nos estatutos da companhia, era o primado da caridade, a única virtude


capaz de elevar os homens para além da condição humana: "não sendo nenhuma
das muitíssimas virtudes a mais admirada entre os mortais nem a mais grata do que
a caridade, nem aproximando-se os homens com qualquer outra coisa de Deus a
não ser dando a saúde aos outros homens" 3 • A caridade era o âmago de uma reli-
gião para a qual se dirigia o consenso de uma sociedade de refinada cultura: podia-
-se realmente falar de uma confraria de cortesãos . E de fato foi essa a denominação
que a companhia se deu: por unanimidade todos os seus membros resolveram chamá-la
"Companhia da caridade dos cortesãos"4. Era a denominação mais apropriada àquela
realidade que a corte romana se tornara, reunindo a herança das cortes italianas: eram
os anos em que Baldassare Castiglione achava-se obrigado a investir sua fama de "melhor
cavaleiro do mundo" na defesa da política papal contra os ataques da corte de Carlos v.
Se a resposta de Roma a Lutero foi também a resposta italiana à Reforma luterana,
isso se deveu a uma realidade de fato : Roma ofereceu então à elite dos diversos es-
tados e centros citadinos italianos a única capital capaz de realizar o ideal de corte
descrita por Castiglione - ou pelo menos de abrigar ali os membros sobreviventes 5•
Era o exercício de uma hegemonia política e cultural que devia ser bruscamente sus-
pensa - mas não eliminada - pelo saque de Roma. Naturalmente, a elite supra-estatal
italiana reunida em Roma precisou vestir trajes eclesiásticos, desde os de simples
clérigo até os purpúreos do cardeal, e aprendeu a cultivar o sonho de envergar um dia
aquele que Ariosto denominou "o mais belo dos mantos" . Mas a hegemonia romana
e papal sobre a Itália que surgiu então da crise dos estados italianos devia conhecer
uma longa história.
A sociedade cortesã do início do século XVI tinha uma ideia própria da reforma
da igreja: requeria "se não a reforma total, pelo menos a modificação possível dessa
igreja"6. E tinha uma ideia precisa da importância da caridade. Os membros da compa-
nhia romana exerciam-na com os doentes , os presos, as prostitutas "convertidas" e com
os pobres: neste último caso, porém, consideraram necessário especificar que "se alguns
forem nascidos de pais melhores , na necessidade igual aos outros, sejam preferidos"7•
A atenção para com aqueles que eram chamados também "pobres vergonhosos" era o
sinal distintivo da caridade de uma classe dominante que , enquanto oferecia sua ajuda

3. Gli Statuti dei/a Compagnia della Charità di Roma, por Antonio Biado, Roma s.a. (1535), pt. II, cap. XI, c. C IVr.
4. "(.. .] Colocando como premissa uma amadurecida e unânime deliberação, e um consentimento, foi const i,
tuído, e ordenado que esta Companhia chame-se perpetuamente a Companhia da caridade dos cortesãos
[... ]" (idem, pt. II, cap. I, c. B IVr). Fala-se em "societas charitatis curialium" na redação latina. Statutorum seu
Constitutionum Societatis Charitatis de Urbe, Romae 1547, c. 711. (Agradeço a Daniela Solfaroli a indicação desse
trecho).
5. Cf. C. Oionisotti, "Chierici e Laici", em Geografia e Storia dei/a Letteratura Italiana, Torino, 1967, PP· 47-73-
- ~0 1· 1·denti-
6. II No110 Corteggiano de Vita Cauta et Morale, s.a. n. 1 (Venezia, 1530?), c. O III11. O autor d o texto nao .

ficado. Há uma possível atribuição a Mario Equicola, que porém não convenceu totalmente Cario Dionisortt
(cf. Gli Umanisti e il Volgare fra Quattro e Cinquecento, Firenze, 1968, p. 112 n.).
7. Gli Statuti della Compagnia della Charità di Roma op. cit. , cc. C I111-C IIIr.

A Inquisição
73

aos deserdados, não pretendia porém eliminar as barreiras sociais e queria garantir
seus membros da vergonha da desclassificação. Até nisso, a companhia romana refletia
perfeitamente as preocupações das classes dominantes italianas e o deslocamento da
cultura mercantil das cidades para os modelos aristocráticos de um patriciado que estava
disposto a inclinar,se para os pobres (para ganhar o Paraíso), mas não a se confundir
com os pobres.
A companhia da caridade dos cortesãos era composta "dos homens importantes
e em grande número desta Corte, que cresce a cada dia em quantidade, devoção e
entrada para a obra da caridade, que assim se denomina" 8 • E não era absolutamente
uma resposta improvisada ao desafio do obscuro monge saxão. "Plantar a caridade
nos corações" fora a palavra de ordem das Companhias do Amor Divino, as associa,
ções confraternais criadas por obra do infatigável tabelião genovês Ettore Vernazza
e rapidamente difundidas em Nápoles e Roma. Ocupavam,se com hospitais e com
moças casadouras, com condenados à morte e sifilíticos; mas faziam isso de modo
diferente daquele publicamente exibido pelas confrarias medievais. O efeito de sua
intervenção era o de fazer funcionar solidaristicamente a sociedade urbana, de acor,
do com a tradição daqueles hospitais que, por muito tempo, foram admirados pelos
viajantes estrangeiros. Lutero, durante sua viagem a Roma em 1510, ficara tocado pela
assistência que "esposas honestíssimas" prestavam espontaneamente nos hospitais
citadinos e pelo tratamento paternal que era oferecido na cidade de Florença aos
recém,nascidos abandonados 9 • Mas, com Vernazza e com o estilo genovês, secreto e
lacônico, de suas Companhias, a caridade tornara,se quase exclusivamente um modo
para aperfeiçoar,se espiritualmente e predispor,se a uma experiência direta e íntima da
relação com Deus. A história das várias companhias do gênero criadas na Itália entre
os séculos XV e XVI ainda permanece parcialmente encoberta para nós pelo segredo
em que elas quiseram atuar: mas é evidente que não se tratou somente dos muitos
ramos nascidos de uma semente por mágica fertilidade. Naquele período, confrarias de
origem antiga modificaram seus ordenamentos e viram surgir em seu interior grupos
restritos que almejavam não o exercício tranquilo de tradicionais obras assistenciais
e sim atingir novos objetivos que podem ser resumidos numa palavra: a perfeição. É
o caso das confrarias de derrotados que se dedicavam ao conforto dos condenados à
morte: por volta da segunda metade do século XV, surgem no interior delas grupos
restritos, especializados nos colóquios com os condenados que se torna, de coral e
rumorosa exortação à morte cristã, um diálogo pessoal, um momento de intensa e
difícil experiência espiritual. Uma dessas confrarias, a companhia florentina dos Ne,
gros, transferida para Roma e auxiliada por pontífices favoráveis à "florentinização"

8. Carta de Girolamo da Solana aos confrades de Veneza, 1° out. 1524, em M. Sanuto, I Diarii, Venezia 1879-
-1903, t. XXXVII, p. 36.
9. M. Lutero, Discorsi a Tavola, trad. it. de L. Perini, Torino, 1969, p. 272 (1° ago. 1538). Sempre aos hospitais
florentinos foi dedicado o amplo elogio de William Thomas, The History of ltalie ... , London, 1549, p. 138 (cf.
Edward P. de G. Chaney, uGiudizi lnglesi su Ospedali ltaliani", 1545-1789, em Timore e Carità. I Pooeri nell'ltalia
Moderna, Cremona, 1982, pp. 77-101).

A Fé Italiana
74

da Cúria, irradiou dali um modelo de grande sucesso 10 • Entre a assistência hospitalar


aos "incuráveis" e o auxílio aos condenados à morte, as relações, ideais e de ordem
concretamente organizativa, eram muitas. A filha de Ettore Vernazza, Battistina,
contou que quando o pai fora a Nápoles para fundar instituições de caridade, tinha
encontrado obstáculos na soberba nobiliária das famílias principais: então, de acor-
do com o pregador agostiniano Callisto Fornari, tinha projetado um plano astuto:
espalhara o boato de que estava sendo organizada uma confraria para acompanhar à
forca os condenados, obra "das mais vis" e desonrosas que se podia imaginar, e que
os genoveses seriam os primeiros a fazer parte dela. Assim, a emulação teria levado os
napolitanos a aceitarem obras bem mais "vis" das que tinham rejeitado 11 • Uma gran-
de distância separa essa ação combinada entre Vernazza e Fornari daquela que outro
proeminente mestre de vida espiritual e outro pregador - Juan Valdés e Bernardino
Ochino - realizariam em Nápoles na década seguinte: semelhante no método, mas
diferente nos destinatários (os coureiros , as pessoas do povo) e decididamente oposta
no conteúdo, propondo-se a desalojar o sistema da caridade e substituí-lo pelo da fé .
Mas o confronto, se faz emergir o caráter social e teologicamente revolucionário das
propostas da Reforma protestante, também ajuda a compreender melhor um caráter
profundamente significativo da Reforma católica e de seu sistema de caridade: tratava-
-se de um sistema solidarístico, que impunha aos poderosos e aos ricos uma forma de
responsabilidade social e de ação benéfica como dever de seu estado. Poder-se-ia falar
em um renascimento do antigo "evergetismo" diante desse espetáculo de humilhação
dos poderosos e de distribuição de riquezas privadas em prol do bem-estar público.
Não era uma novidade: nas cidades italianas, poder e caridade tinham estreitado
laços havia tempo , com a mediação dos institutos eclesiásticos e dos cânones reli-
giosos dominantes. Os cronistas citadinos anotavam com aprovação as novas formas
do ideal cavalheiresco exibidas publicamente pelos príncipes das senhorias italianas,
como, por exemplo, o ir à "ventura" do duque Ercole d ' Este - que iniciava o ano,
indo a cavalo bater às portas dos cidadãos para recolher esmolas para os pobres 12• Se
comportamentos desse tipo podiam aparecer como últimas e mais atualizadas form as
do ideal cavalheiresco medieval, eles não deviam desaparecer no decorrer da história
italiana. Um cânone idêntico de humilhação cerimonial dos poderosos como caminho
obrigatório para justificar e manter o poder devia tornar a aparecer nos rituais das
missões da Contrarreforma. A continuidade dessas formas de caridade e dos rituais

10. V. do autor deste volume "II Sangue e l'Anima. Ricerche sulle Compagnie di Giustizia in ltalia", em Quaderni
Starici, LI, 1982, pp. 959-999. Irene Polverini Fosi ("Pietà, Devozione e Política: Due Confraternite Fiorentine
nella Roma dei Rinascimento" , em Archivio Starico italiano, CLIX, 1991, pp. 119-161), estudando os modos
do estabelecimento romano das companhias florentinas, destacou o estilo mais individualista da piedade da
confraria de San Giovanni Decollato em relação ao estilo "nacional" de sua rival.
11. As reminiscências de Battistina Vernazza foram editadas por A. Bianconi, I.:Opera delle Compagnie dei Divino
Amore nella Riforma Cattolica, Cidade de Castello, 1914, p. 66.
12. Ver do autor deste volume "Le lstituizioni Ecclesiastiche ele Idee Religiose", em P. Rossi (org.), Il Rinascimento
nelle Corti Padane. Società e Cultura , Bari, 1976, pp. 125-166; em particular p. 136.

A Inquisição
75

a elas relacionados é um indício da continuidade de um longo período da estrutura


social e política do mundo citadino italiano.
Os mestres de vida espiritual, como Vernazza, e as "mães espirituais" que os
inspiravam propuseram o percurso da caridade como passagem obrigatória através
dos outros - o "próximo", os pobres como figura de Cristo - para atingir a perfeição
religiosa. Ora, nessa aspiração a tornar-se perfeito é fácil ver o indício de uma crise
do velho mas não superado esquema dos estados de vida que atribuía aos monges
o privilégio da fruição terrena de Deus, a assimilação ao modelo evangélico da vida
contemplativa, Maria: ao passo que para os leigos e para o clero secular permanecia
aberto o caminho do azáfama rumoroso de Marta. Esquer:na não superado, pelo
contrário, ainda bem vivo: uma demonstração clamorosa disso havia acontecido em
1511 , com a opção de dois patrícios venezianos, homens de grandes meios e respon-
sabilidades, de se retirarem para a vida contemplativa sob a regra dos camáldulos. O
gesto de Vincenzo Quirini e Tommaso Giustiniani reabrira dramaticamente o antigo
conflito entre a contemplação e a ação, entre monacato e vida no mundo, para o
amigo comum Gasparo Contarini: e justamente nas cartas que foram trocadas à época
entre Veneza e Camaldoli o historiador Hubert Jedin mostrou um possível paralelo
com a contemporânea crise espiritual do jovem Lutero, sua "experiência da torre" 13 •
Trata-se, com efeito, de um paralelo eloquente: enquanto Lutero, diante do texto de
São Paulo, descobria que "o justo viverá pela fé" , a conclusão a que chegou Gasparo
Contarini - meditando diante de uma imagem do crucifixo - falava ao contrário
da conciliação entre fé e caridade, entre fruição de Deus e ação no mundo. Sobre
essa base, foi possível para Contarini desenvolver seu curso honorum e administrar
importantes questões primeiro como patrício veneziano depois como cardeal da santa
Igreja. Essa conclusão de sua carreira sob a púrpura cardinalícia - resultado , como
demonstrou Carlo Dionisotti 14, da crise dos estados italianos, incapazes de oferecer
soluções adequadas às ambições e às capacidades de seus grupos dirigentes - não
deve induzir a erro quanto ao significado dessa escolha do jovem Contarini: era um
reconhecimento do valor das obras humanas, de seu significado religioso , equipa-
rado se não anteposto ao das ásperas penitências de seus amigos no eremitério de
Calmodoli. Mais tarde, o já cardeal Contarini devia entrar em choque com outros
amigos mais jovens sobre a questão fé/ obras: a quem lhe propunha adotar pesso-
almente o rígido agostinismo luterano, mantendo uma "religião de obras" para o
povo, Contarini - após algumas incertezas - replicou com um redondo não. Era um
compromisso baseado na "dupla verdade": mas não era isso que o tornava inaceitável
para o cardeal veneziano, mas antes a coerência com as convicções amadurecidas em
sua crise juvenil.

13. H. Jedin, "Contarini und Camaldoli", em Archivio Italiano per la Storia della Pietà, II, 1959, pp. 51-118. Cf.
Elisabeth G. Gleason, Gasparo Contarini, Venice, Rome and Reform, Los Angeles, Berkeley, 1993, que fala de um
conflito de valores entre cultura humanista e espiritualidade tardo-medieval (p. 22).
14. Dionisotti, Chierici e Laici, op. cit.

A Fé Italiana
76

Esse dúplice aspecto da caridade - amor a Deus, amorosa ajuda ao próximo - é


o elemento dominante em muitas manifestações da vida religiosa italiana da época.
Falou-se em um "paulismo" italiano do século XVI para definir uma espécie de caminho
nacional para a Reforma que remetia de bom grado às cartas paulinas. Mas o São Paulo
que mais circulava na Itália, antes e depois da Reforma luterana, não foi tanto o da
Epístola aos Romanos, mas o da Primeira Epístola aos Coríntios: e era com base nessa
autoridade paulina que se podia sustentar a nítida superioridade da caridade sobre a
fé. No final do século, Giovanni Leonardi, da cidade de Lucca, expressou uma opinião
amplamente compartilhada ao escrever que a caridade era "mais excelente" que a fé e
a esperança: a caridade, segundo ele, tornava impecável ("nenhuma pessoa que esteja
praticando a caridade pode pecar mortalmente") 15 • A caridade era o vínculo que unia
os homens entre si e com Deus: e sobre esse tema a literatura religiosa da época foi
riquíssima de variações. O percurso da alma até Deus, visto segundo o cânone antigo
das núpcias espirituais, é ilustrado em textos tão diferentes entre si, como podem
ser os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola e o Trattatello Utilíssimo del Beneficio di
Cristo de Dom Benedetto Fontarini e Marcantonio Flaminio. E não é certamente um
acaso que o texto mais célebre, responsável pela difusão da religião do "benefício de
Cristo" na Itália, ou seja, da justificação gratuita de que o pecador podia receber pela
fé, encontrasse um de seus momentos mais altos e sugestivos na exaltação da Eucaris-
tia: comunicar diretamente com Deus, comer seu corpo, era o ato supremo em que
encontrava retribuição e·alimento o amor ardente da Caridade. Os precedentes dessa
página mais próximos no tempo e no espaço podem ser indicados, por exemplo, nos
opúsculos devotos do dominicano frei Battista de Crema, nos quais o corpo de Cristo
é apontado como o cordeiro assado e sanguinolento do qual se nutre a alma devota
em busca da perfeição. Como pudessem estar de acordo o agostinismo de Lutero e o
severo ascetismo de Calvino com a doutrina do visionário dominicano, que foi acu-
sado de pelagianismo, continua um mistério. Mas os ingredientes que determinaram
o sucesso do pequeno tratado Del Beneficio di Cristo foram certamente esses: sinal de
que, na busca de uma via de comunicação da religião da fé com o público italiano, o
veiculo foi encontrado na linguagem da caridade e nas imagens da metamorfose da
alma pecadora na perfeição de Cristo. Essa linguagem alterava certamente a mensagem
de Lutero, e num ponto essencial: a religião da caridade como vínculo social e como
percurso até Deus exprimia, como a mensagem de Lutero, a vontade dos leigos de não
aceitar mais a divisão medieval dos "estados de vida" . Mas Lutero fora ao âmago do
problema acertando a mediação eclesiástica em sua raiz; a religião da caridade, por sua
vez, comprometia o modelo monástico da perfeição, mas não chegava até a rejeição
do corpo eclesiástico em sua totalidade: ao contrário, podia transformar-se - e de fato
foi o que aconteceu - num impulso para a renovação da estrutura eclesiástica a fim de
adequá-la às novas exigências. Um dos argumentos prediletos da apologética católica

15. Trattado della Charità Utilissimo, agora em V. Giovanni Leonardi Pascucci, Una Scelta Radicale per il Vangelo,
Lucca, 1991, pp. 250-261 ; em particular p. 254.

A Inquisição
77

devia ser justamente a exaltação do sistema assistencial como prerrogativa não italiana
mas romana: e na Roma da Contrarreforma, apinhada de peregrinos para o jubileu,
um advogado dos Países Baixos devia exortar à admiração dos triunfos da caridade, já
identificada tout court com a própria religião, ou ao menos com a pietas 16 •
Essa que definimos como a "religião da caridade", com seu vasto e exuberante
sistema de iniciativas, associações, instituições, estava fortemente enraizada na socie-
dade italiana: e era ligada por mais fios àquela que poderíamos chamar a "religião
da esperança" . A capacidade de ligar a relação com Deus à relação com o bem do
próximo (fazendo resultar o todo em um processo de aperfeiçoamento de si mesmo)
dizia respeito também aos mortos. A ação dirigida aos defuntos que Lutero excluía,
eliminando as indulgências, era a ponta emergente do sistema da caridade. Onde Lu-
tero via o arbítrio de um papado esquecido da palavra de Deus, outros, ao contrário,
viam a resposta benéfica a uma demanda de esperança que se projetava na vida futura.
Ir em busca "dos perdões" era um grande rito social, no qual as crônicas das cidades
italianas detêm-se de bom grado: era o surgimento de uma difusa necessidade coletiva
de eliminação do passado, de novo início. Era uma necessidade que , se numa época
não distante explodira em movimentos devocionistas de grande amplitude, agora tinha
sido como que canalizado pela oferta institucional de momentos e rituais precisos
para obter individualmente a abolição das cargas de culpa acumuladas passo a passo.
Se na sociedade italiana do século XVI encontravam-se apenas raramente movimentos
devocionistas como aquele medieval dos Brancos 17, a causa deve ser procurada também
na contínua oferta de indulgências gerais e especiais, que todo pregador tinha em seu
equipamento quando se dirigia a um lugar para desenvolver o ciclo do Advento ou da
Quaresma. Um dos primeiros polemistas italianos contra Lutero, o agostiniano An-
selmo Botturnio, usou como prova da eficácia das indulgências um episódio que lhe
acontecera enquanto pregava para o Advento em Piacenza: dois cônjuges, que tinham
recebido oportunamente um "perdão" especial para si mesmos, voltaram depois para
se queixarem de que sua casa estava infestada de espíritos. O protesto dos visitantes
noturnos devia-se ao fato de ambos terem se esquecido de obter a indulgência para seus
mortos; somente depois de ter sido sanada a falha, os espíritos hostis tinham voltado a
ser os bons e silenciosos protetores da família . O sistema das indulgências - ou, como
se preferia dizer então na Itália, dos "perdões" ou das "perdoações" - oferecia encontros
periódicos a quem desejava apagar o passado e retomar esperança no futuro (inclusive
o futuro depois da morte). Apagá-lo para deixar o homem diante de si mesmo, com o
peso de seus erros, com a ligação cortada com seus mortos, contradizia radicalmente o
sistema vigorosíssimo das trocas sociais, daquelas entre os vivos como daquelas que os
vivos mantinham com os mortos. Nas cidades italianas, um rico passado falava através

16. Theodorus Ameyden, De Pietate Romana, Romae, 1625.


17. Alusão à Confratemità dei Bianchi Battuti (Confraria dos Brancos Derrotados), surgida no século XIV em Turim,
que em seguida se espalhou pela Itália. Seus membros vestiam uma túnica branca com uma cruz vermelha e
um capuz com apenas duas aberturas para os olhos (N. do T.).

A Fé Italiana
78

de um emaranhado exuberante de instituições assistenciais de todo o tipo. Para voltar


ainda ao caso de Ettore Vernazza e à sua secreta dedicação à caridade, será necessário
levar também em conta o fato de que a inspiração religiosa vinha-lhe não de meditações
teológicas sobre textos bíblicos e sim da presença de Caterina Adorni, Santa Catarina
de Gênova; e os escritos de Santa Catarina têm um ponto de referência fundamental
no Purgatório. Invenção medieval, o Purgatório tornou-se uma ramificada e vastíssima
realidade na devoção e na vida social dos séculos XV e XVI. A imagem central, que
unifica de algum modo os territórios fronteiriços da caridade e da esperança, é a do
leite nutritivo e refrescante de Nossa Senhora: na pintura napolitana do século XV, esse
leite - que dominara o universo simbólico da caridade - jorra do seio da Virgem para
apagar as chamas do Purgatório 18 •
Mais do que a questão da fé justificante, foi justamente a questão do Purgatório
a dividir e a apaixonar os italianos. Nos primeiros processos da Inquisição, apareceu
com clareza que ali estava o ponto de ruptura e de choque 19 • Era como se um núcleo
secreto e profundo da vida social italiana tivesse sido tocado por essa negação: a riqueza
da vida material acumulada por suas cidades e o tesouro espiritual de méritos reunido
em séculos de preces e de obras - um tesouro que era visível e palpável nas instituições
citadinas, nas igrejas, nos santuários. A solidez desse patrimônio hereditário e o direi-
to de gozá-lo e de transmiti-lo fundia-se com a confiança de poder eliminar as culpas,
remediar os defeitos , salvar até mesmo os mortos - a esperança, justamente. E não
foi propriamente por acaso que a questão se tornou atual e desconcertante nos anos
das guerras da Itália, quando os poderosos exércitos ultramontanos varreram aquelas
riquezas e colocaram em séria dúvida a esperança como projeção futura de um presente
apaziguado. Os lansqueneses que deixaram suas marcas nos afrescos de Pietro Loren-
zetti e de Michelangelo gravaram à força a mensagem inquietante de Lutero sobre os
símbolos mais venerados de um bom governo citadino já então pertencente ao passado.
O aceso debate sobre o Purgatório foi , portanto, a ponta emergente da questão
da esperança. O choque sobre a questão da fé e sobre as - subordinadas - da caridade
(as obras) e da esperança foi vivo, apaixonado e não se limitou às palavras. A fé tomou
o lugar da religião , como objetivo dominante 20 • A própria noção de religião mudou
radicalmente de significado: em relação ao uso precedente - que identificava religião
com ordem religiosa , no interior de uma cristandade não diferenciada geograficamente
mas verticalmente, em seus diversos níveis de perfeição - , a nova acepção insistiu de
maneira exclusiva na fé como escolha individual, opção subjetiva, sem a qual não era
possível ser cristão. Confissões e profissões de fé constituíram o lado positivo do con·
trole sobre a pertença; processos e guerras de religião o negativo.

18. Cf. Pier Roberto Scaramella, Le Madonne dei Purgatorio. Iconografia e Religione in Campania tra Rinascimento e
Controriforma, Gênova, 1991.
19. Cf. S. Seidel Menchi, Erasmo in ltalia 1520-1580, Torino, 1987.
20. Cf. W. Cantwell Smith, The Meaning and End of Religion. A New Approach to the Religious Tradition of the Mankind,
New York, 1964.

A Inquisição
79

Na situação italiana, a supremacia da fé abriu caminho a custo e com atrasos notá-


veis: só com o concílio de Trento, por exemplo, chegou-se a impor a obrigação da professio
fidei ou declaração jurada de ortodoxia para determinadas categorias. Antes dessa data,
as discussões sobre a fé e sobre a caridade opuseram pequenos círculos reformadores
(filoluteranos ou "evangélicos" no sentido de inspirados em um rigoroso agostinismo)
a uma tendência majoritária - na teologia das grandes ordens, mas também na cultura
humanista - em salvaguardar, com o arbítrio humano, o mérito das obras e, portanto, o
valor da caridade. A exuberante literatura religiosa em vernáculo, difundida pelos impres-
sores do início do século XVI, parece ter outros temas dominantes: a oferta, por exemplo,
de caminhos fáceis para atingir a perfeição, a santidade - ou pelo menos sua fruição
indireta, por meio de visões, profecias, vidas de santos - e a relação direta com Deus; e,
para quem era menos exigente, a oferta de vade-mécum para a confissão de pecados e o
fácil perdão das culpas. Duas únicas condenações atingiram essa literatura, antes que se
abrisse, com a bula Exsurge Domine, a temporada das excomunhões contra a Reforma: a
primeira atingiu em 1511 o popularíssimo pregador e escritor religioso Pietro de Lucca.
Mas a doutrina, que o papa Júlio II fez julgar por um tribunal composto pelos maiores
teólogos da época e nomeado no decorrer de suas impetuosas campanhas militares na
Itália padana, não se referia à relação entre fé e obras, mas a uma pia doutrina místico-
-fisiológica do agostiniano de Lucca relativa à questão da concepção virginal de Jesus 21 •
Outro escrito condenado por recomendação, dessa vez, de um decreto conciliar, foi o
de Francesco de Meleto, o Quadrivium temporum prophetatorum, texto que aparece entre
uma selva de anúncios proféticos de sabor ou derivação savonaroliana 22 • A Itália, sob o
ferro das guerras ultramontanas, conheceu então um extraordinário florescimento de
eremitas e profetas que anunciavam flagelos e punições divinas para os pecados e falavam
no próximo advento de um "papa Angélico" para renovar o cristianismo 23 • A condenação
mascarou o ataque do papa dos Médici às tendências republicanas dos savonarolianos
florentinos com a proibição geral de todo exercício da profecia. Quanto ao resto, não se
diria que os papas romanos dos primeiros trinta anos do século se preocupassem muito
com os problemas da fé. Pelo que contavam os cortesãos que alegravam seus serões, eram
questões de literatura e de língua a ocupá-los em doutas discussões: os textos consultados
eram os de Petrarca e os de Bembo, não os de São Paulo 24 • Quanto às suas preocupações

21. Sententia contra don Petrus de Lucca qui novam Mantue predicavit heresim, Romae, 1511. Cf. F. Ascarelli, Anna!i
Tipografici di Giacomo Mazzochi, Firenze, 1961, p. 50. Consultei a cópia conservada na Biblioteca Corsiana de
Roma. Do sermão de Pietro Bernardini, Delio Cantimori sublinhou a proposta de fórmulas que garantiam
a salvação imediata a quem as pronunciava, sem necessidade de indulgências (cf. "Le Idee Religiose del Cin-
quecento. La Storiografia", em Storia della Letteratura Italiana, vol. V, Milano, 1967; agora em Eretici ltaliani dei
Cinquecento e altri Scritti, Torino, 1992, pp. 591-595).
22. Referência ao padre dominicano Girolamo Savonarola (N. do T.).
23. Cf. O. Nicoli, Profeti e Popolo nell'ltalia dei Cinquecento, Bari, 1984.
24. "Sua Santidade anda mui atarefado (com o concílio) e naturalmente causa-me infinita piedade ... Não obstante
eu dizer que nosso Senhor está repleto de trabalho, mesmo assim, ele conversa todas as noites por duas ou
três horas conosco, seus servidores. Na outra noite, entre outras, refletiu-se sobre as opiniões de V. S. sobre a

A Fé Italiana
80

diurnas , cumpre notar - contra antigas e novas tendências em especular sobre "partidos"
religiosos no interior da Cúria - o caráter periférico das questões teológicas (incluindo
a Reforma luterana) na ótica política e italiana dos papas e de seus cortesãos.
Justamente em oposição a esses papas e ao sistema de poder que representavam - ao
poder, dizia Francesco Guicciardini , dos "malditos padres" - dava-se ouvidos às novida-
des que vinham do norte, de além dos Alpes, lugar perigoso de novidades nas profecias,
mas também lugar de proveniência dos exércitos invasores. Um dos primeiros sinais de
interesse pelas ideias de Lutero é encontrado no escrito de um florentino : nele se conta
a viagem imaginária de dois savonarolianos que, em 1521, rumam para o norte para
saber pessoalmente quem era o tal Lutero, que lhes parece o realizador das profecias de
frei Girolamo 25 • A longa crise florentina na passagem da república ao principado tornou
a cultura política capaz de perceber com antecipação e extraordinária lucidez temas e
problemas que deviam tomar conta de toda a Itália. A viagem imaginada circunscreveu-
-se ainda na busca do já conhecido: mas a carga antipapal e anticlerical constituiu uma
força real no surgimento de uma opinião filoluterana na Itália. Poucos anos mais e ao
Lutero duramente rebelde nas ideias quanto à Igreja de Roma deviam chegar apelos
e reprovações. "Se tivesses continuado assim como tinhas começado, limitando-te à
purificação dos costumes do clero, sem desencadeares batalhas de doutrina - mandava
dizer a Lutero o humanista de Reggio Ludovico Parisetto - não te teria privado de meu
favor" 26 • E Guicciardini, com mais intensidade: "Teria amado Martino Luther tanto
quanto a mim mesmo" 27 • E ao contrário, "aquele frade Martinello Luterio - escrevia em
1526 o humanista Pellegrino Morato - com seu barro e lama em nosso tempo cobriu de
tal modo nossa fé que quase toda ela foi mudada" 28 •
As novas ideias pareciam encontrar terreno fértil sobretudo entre os humanistas
e mestres-escolas. A circulação dos livros, veículo extremamente eficaz das novas ideias -
como as autoridades eclesiásticas logo viram com clareza - colocava ao alcance de muitos
a possibilidade de fazer uma ideia sobre os conflitos de religião e sobre o vasto incêndio
que estava acontecendo na Alemanha. Foi justamente um mestre-escola, Francesco de
Casteldurante, que iniciou, em Veneza, em 1526, a longa lista daqueles que deviam
provar a repressão antiluterana. Investigado por suspeita de simpatias luteranas, escapou
às penas graças a uma abjuração 29 • A força do sentimento anticlerical atravessava toda
a sociedade e podia unir humanistas e populares, mercadores e nobres. As guerras da

língua [... J" (Carta de Giacomo Soranzo a Pietro Bembo, 29 de julho de 1530, em P. Paschini, "Un Vescovo
Disgraziato nel Cinquecento Italiano: Vittore Soranzo", em Tre Ricerche sulla Storia della Chiesa nel Cinquecento,
Roma, 1945, p. 104).
25. Bartolomeo Cerretani, Dialogo della Mutatione di Firenze, org. de Raul Mordenti, Roma, 1990, pp. 18 e ss.
26. Joannis Ludovici Pariseti, Regiensis Epistolae, Regii per Antonium Viottum 1541, e. B Illr.
27. Ricordi n. 28 (F. Guicciardini, Opere, org. Vittorio De Caprariis, Milano/Napoli, 1961, p. 103).
28. lspositione della Oratione Dominicale detta Pater Noster e della Salutatione Angelica Chia mata Ave Maria por Pellegrino
Morato, Ferrara, Francesco Rossa de Valenza, 1526, e. A lllr.
29. Sobre esse processo, ver do autor deste volume "Lutero al Concilio di Trento", em Lorenzo Perrone (org.),
Lutero in Italia. Studi Storici nel V Centenario della Nascita, Casale Monferrato, 1983, pp. 106-107.

A ln4 uis içào


81

Itália alimentavam um senso de identidade nacional totalmente negativo: "miserandos


italianos" e "mal-aventurada Itália", exclamava o literato Antonio Minturno, contem-
plando, após o Saque de Roma em 1527, o espetáculo das ruínas deixadas pela guerra.
Ruínas de cidades, naturalmente, porque o sentimento embrionário de unidade nacional
tinha um caráter seletivo, de identidade citadina: "Jaz [... ] a antes populosa, e ora vazia
de habitantes, Milão. Jaz a rainha das cidades antes alma e ora mísera. Jaz a antes bela
Nápoles e ora tão feia e tão disforme" 3º. O desastre político e militar alimentava um
senso de urgência de uma reforma da "Respublica Christiana" 31 • Alimentava também in-
quietações quanto à escolha do próprio lugar no mundo. Havia os que escolhiam a vida
monástica. Mas essa solução antiga do abandono do mundo parecia inadequada, assim
como parecera a Gaspare Contarini na época em que, após a derrota de Agnadello, seus
amigos Quirini e Giustiniani haviam se retirado para a vida contemplativa. Antonio
Minturno, criticando a escolha de um amigo que se fizera frade, exortava a permanecer
no mundo e a "paramentarmo-nos daquela imagem de Deus, que é a justiça de Jesus
Cristo" 32 • Era o ponto mais avançado de encontro com a Reforma a que podia chegar
a religiosidade humanística da elite italiana, que, no entanto, estava prestes - como fez
Minturno, juntamente com muitos outros - a vestir trajes eclesiásticos e a alinhar-se
em defesa da Igreja romana na assembleia tridentina: esses homens, mais apaixonados
por questões linguísticas do que por problemas teológicos, empenharam-se na defesa
de dois fatores fundamentais da unidade italiana - a língua e o altar.
Em outros níveis sociais, a subversão da ordem antiga levava a resultados bem
mais radicais. Um dos primeiros inquiridos por heresia luterana foi um jovem cam-
ponês do Friuli, Biagio di Totulo de Buttinicco, que, ao voltar da Áustria, onde fora
trabalhar, tinha trazido ideias "luteranas". Eram ideias que não paravam no protesto
anticlerical: evidentemente, os padres que cobravam pelas missas e pelos sacramentos
eram duramente criticados pelo jovem. Os sequazes de Lutero tinham-lhe parecido
"bons e valentes homens"; ao contrário, "esses padres são mercadeiros e mantêm putas" .
Quem o ouvia dizer essas coisas repreendia o audacioso camponês (audacem rusticum) ,
dizendo-lhe que não cabia a ele criticar os padres e que isso só lhe traria "desgosto".
Mas havia outras coisas que Biagio di Totulo tinha trazido consigo dos sermões ouvidos:
criticava as festas e os dobres de sinos para as procissões de imagens de santos - "eu faria
uma fogueira com aquele pedaço de pau"; criticava a missa e a eucaristia, criticava os
lugares do culto, pregava uma religião radicalmente diferente: "O que é a igreja senão
uma casa? A hóstia erguida pelo padre é um pouco de massa; de que se trata se não de
massa? Ali dentro não está o senhor Deus, é só um pouco de massa. O senhor Deus
está no céu e não na terra". E a quem lhe dizia "que a igreja era sagrada e as casas não" ,

30. Carta a Giovanni Guidiccioni, de Messina, 10 maio 1529 (Lettere di Meser Antonio Mintumo, em Vineggia,
junto a Girolamo Scoto, 1549, cc. 15v-16v).
31. "Que a seita luterana continue aumentando - escrevia ainda Minturno - não pode ser nada bom; não fosse
essa a oportunidade para pôr ordem na república cristã" (carta de Minturno ao senhor Giovanni Da le Fratte,
Palermo, 20 ago. 1531, idem, c.23r).
32. Carta, s.d., a Giovanni da Modena (idem, c. 60v).

A Fé Italiana
82

ele respondia: "Toda a terra é sagrada, como uma igreja; o senhor Deus está no céu
e assim se eu vou dormir no meio de um prado, assim aquele prado é sagrado como
uma igreja" 33 • Era a voz da fé luterana, que rompia as barreiras e ameaçava os bastiões
da Igreja. Houve necessidade de tortura para dobrar o jovem; e foi durante a tortura
que lhe fizeram a pergunta decisiva - qual acreditava ser a verdadeira fé , a italiana ou a
luterana ("quam credat esse veram fidem, an italicam an lutheranam"). A resposta foi
a seguinte: "Senhores, sempre segui a verdadeira fé italiana e sempre a mantive por ser
perfeita e todos os anos tenho me confessado, e nunca comi carne nos dias de quaresma,
nem de vésperas, nem de sexta-feira e nem de sábado" 34 •
A "verdadeira fé italiana" era uma denominação cunhada pelo inquisidor: Biagio
di Totulo tornou-a sua pelo mecanismo da pergunta autoritária e da resposta submissa - o
mecanismo fundamental daquele como de qualquer outro tribunal. Mas é singular que
viesse à cabeça do inquisidor uma denominação do gênero. Uma identidade religiosa
comum para toda a população italiana era, então, uma questão em aberto, não uma
realidade pacífica.
Para os viajantes que a atravessavam com os olhos bem abertos, a Itália era, à
época - e continuou sendo por muito tempo - , o país caracterizado justamente por
suas profundas diferenças internas, mesmo em matéria de práticas religiosas. Que era
essa a imagem da Itália, podia se inferir pelo testemunho do médico espanhol Miguel
Serveto. Esse agudo e irreverente observador, obrigado a se esconder por causa do rumor
provocado por seu tratado contra a doutrina da Trindade, manteve-se trabalhando por
algum tempo na indústria tipográfica: e assim preparou para publicação uma edição
da Geografia de Ptolomeu, atualizando suas informações com nítidas e cortantes pas-
sagens sobre a Europa de seu tempo. No capítulo que dedicou aos habitantes da Itália,
descreveu-os como diferentes em termos de língua e de costumes de uma região para
outra, distintos até fisicamente , unidos apenas pelo desprezo e pela antipatia com que
se consideravam reciprocamente - além de caracterizá-los pelo parco valor bélico e pelo
preconceito de se considerarem superiores aos ultramontanos. Segundo Serveto, os ha-
bitantes da península italiana - que para ele não passava realmente de uma expressão
geográfica - não possuíam ritos e convenções religiosas em comum: se alguns, como os
toscanos, eram muito supersticiosos, outros eram capazes de blasfemar de tudo o que
havia de sagrado. Em suma, se havia uma característica comum a todos os italianos,
era a de serem supersticiosos e não muito corajosos na guerra 35 •
Evidentemente, Serveto não nutria simpatia pela Itália, que lhe parecia submis-
sa ao papado. Suas simpatias iam para os rebeldes e para os derrotados : recusou-se

33. Do testemunho prestado em 12 de maio de 1531 por Gaspare "quondam Francisci de Fanna", publicado por
Luigi De Biasio, "lnquisizione a Cividale nel 1531. II Primo Processo in Friuli", em Forum Iulii, anuário do
Museu Nacional de Cividale do Friuli, XVI, 1992, pp. 9-29; em particular p. 25.
34. Depoimento de Biagio di Totulo em 9 de maio de 1531, ivi, p. 23.
35 . Claudii Ptolemaei Alexandrini Geographicae Enarrationes libri octo ex Bilibaldi Piickeymheri tralatione, sed ad graeca et
prisca exemplaria a Michaele Villanovano secundo recogniti, prostant Lugduni, apud Hugonem a Porta, excudebat
Gaspar Trechsel, Viennae, 1541 (a primeira edição é de 1535).

A Inquisição
83

categoricamente a chamar "América" o novo continente descoberto, para não cometer


uma injustiça com o desconhecido Colombo; e na página sobre a Alemanha deteve-se
a descrever a duríssima condição de vida dos camponeses, recordou rebelião deles
contra os nobres e concluiu com um comentário desolado: "são sempre os pobres
a sucumbirem" 36 •
Ninguém se deu ao trabalho de replicar a seus juízos. Entretanto, pelo menos
um daqueles estereótipos negativos difundidos a propósito dos italianos tinha suscitado
reações: quando Erasmo pusera em circulação o juízo sobre o parco valor militar dos
italianos, a coisa irritara os literatos romanos. Um deles, Pietro Corsi, publicara sua
"defesa da ltália" 37 • Mas não houve reações explícitas aos comentários sobre a religião
itálica, não obstante sobre esse tema adensarem-se outras sombras na literatura geográfica
europeia, cada vez mais sensível às ideias da Reforma. Sebastian Münster, discípulo de
Melanchton, fez uma extensa descrição das cidades italianas em sua Cosmografia: era
uma obra em que, pela primeira vez, a nova ciência geográfica tornava-se uma narração
agradável e informada, reportagem jornalística mista de imagens e de palavras. Pois bem,
nessa obra oferecia-se da Itália uma visão das belezas antigas e do grande florescimento
das letras: mas sobre essas paisagens italianas adensava-se pela primeira vez a sombra
carregada da intolerância e da perseguição religiosa. Essa sombra tinha um nome: era
a Inquisição, que feria e matava os seguidores das ideias evangélicas. A Brevis Historia et
Descriptio da Sardenha, escrita pelo advogado fiscal sardo Sigismondo Arquer e incluída
na edição da Cosmografia, publicada na Basileia em 1550, descrevia com as cores mais
sombrias as práxis inquisitoriais: prisões, longas detenções à mínina suspeita, torturas
cruéis. O autor dessas páginas devia experimentar na própria pele (até a fogueira) a
verdade de suas acusações: e antes de mais nada apresentava um quadro da vida religiosa
sarda, feito de corrupção do clero, ignorância do povo e sobrevivência de ritos pagãos
por trás do véu das cerimônias cristãs 38 • Confuso, deformado e repleto de absurdos é
o rosto que a Itália mostrou, finalmente, a Ortensio Lando, que o contemplava através
da máscara de um "anônimo de Utopia" 39 : seu olhar, porém, já era o olhar alheado

36. "Rusticorum agricolarum misera conditio [...) Hinc factum est ut nostris temporibus rusticorum viderimus
seditionem, et in nobiles coniurationem: sed succumbunt semper miseri" (idem, c. 158v).
37. Defensio pro ltalia ad Erasmum Roterodamum, Blado, Roma, 1535. Cf. R. Valentini, "Erasmo di Rotterdam e
Pietro Corsi. A Proposito di una Polemica Fraintesa", em Rendiconti dell'Accademia dei Lincei, aula de ciências
morais, s. VI, XII, 1936, pp. 896-922 (preocupado em defender a "integridade da raça" e a "virtude da raça" ,
Valentini é mais um herdeiro tardio daquela contenda do que um estudioso).
38. Sebastian Münster, Europa. Prima Nova Tabula, Basileae, 1540; _ _ , Cosmographia. Beschreibung aller Liinder,
H. Petri, Basileia, 1544 (depois traduzida também em italiano em 1558). Sobre o caso de Sigismondo Arquer,
cf. Massimo Firpo, "Alcune Considerazioni sull'Esperienza Religiosa di Sigismondo Arquer", em Rivista Storica
Italiana, CV, 1993, pp. 411-475.
39. Ortensio Lando não economizou em seus escritos as críticas ao mundo italiano (cf. Paul Grendler, Critics of the
ltalian World (1530-1560). Anton Francesco Doni, Nicoli, Franco & Ortensio Lando, Madison/London, 1969); mas
as raízes de suas críticas afundam numa identidade religiosa ainda controversa (v. a mais recente intervenção
sobre a questão por parte de Silvana Seidel Menchi, "Chi fu Ortensio Lando?", em Rivista Storica Italiana, CVI,
1994, pp. 501-564).

A Fé Italiana
84

de alguém que vivia como estrangeiro no próprio país e não se reconhecia na religião
dominante. Em suma, enquanto Doni publicava seus escritos e a tipografia de Henric
Petri na Basileia estampava a versão italiana da Cosmografia de Münster, a questão sobre
qual era a "verdadeira fé italiana" estava prestes a ser resolvida. Mas, por volta de 1530
tinha sido particularmente a fé luterana a exercer uma função unificadora decisiva,
'
pelo menos nos setores mais inquietos da população, os que levavam a formulações
mais radicais as confusas esperanças de uma renovação geral da sociedade. Já se viu
como - de acordo com o testemunho de Bartolomeo Cerretani - entre os savonarolianos
florentinos tinha se difundido a convicção de que o monge saxão estava destinado a
realizar os anúncios do profeta morto. Outro testemunho diz respeito ao modo como,
no cadinho da Reforma, o milenarismo cristão e o judeu podiam chegar a se fundir:
foi o hebraísta Francesco Stancaro a polemizar contra um grupo de hereges venezianos,
que somavam - segundo ele - os erros dos judeus e os dos anabatistas e diziam "que
viria outro Messias, e reinaria temporalmente, et in virga ferrea". Era, de acordo com
Stancaro, o mesmo "erro abominável, e condenável dos judeus, que fingem diante do
juízo geral que a igreja deve ter um governo terreno, e civil, no qual reinariam todos
os ímpios, e ocupariam todos os impérios": e Stancaro afirmava ter denunciado essas
ideias às autoridades venezianas 40 •
Trata-se de indícios sobre as potencialidades unificadoras que a lufada da Refor-
ma tinha no diversificado contexto italiano. A violência da polêmica doutrinária e da
luta entre as fés opostas devia promover o resto, obrigando todos a tomarem posição.

Por um singular jogo do acaso, foi justamente um inquisidor italiano - o dominicano


bolonhês Leandro Alberti - que publicou uma "descrição de toda a Itália" : mas nela, ao
tentar dar conta da densa rede de diferenças que constituíam o panorama da península,
o dominicano não levou em consideração a religião. Nem disso tinha se ocupado o his-
toriador florentino Francesco Guicciardini, que foi o primeiro a conceber uma história
da Itália como realidade unitária. A fisionomia unitária era projetada sobre a península
pela soma de uma grande tradição literária recente e de uma antiga grandeza política, a de
Roma antiga e de seu império: quem pretendia descrever os estados e as cidades italianas
para estimular a curiosidade e o prazer dos leitores e dos viajantes, como fez um inglês
apaixonado pela Itália, William Thomas, em meados do século XVI 41 , acabava sempre re-
correndo a esses argumentos. E mesmo quem tentava definir os "confins da Itália" , como

40. Cf. Opera nuova di Francesco Stancaro Mantovano della riformazione, si della dottrina christiana, come della vera
intelligentia dei sacramenti ... , em Basileia, 1547, dedicada "ao sereníssimo príncipe Donato e à ilustríssima
senhoria de Veneza", c. 3v: pp. 460 e 552-553. Aqui Stancaro remete ao texto onde demonstrara as analogias
entre messianismo rabínico e milenarismo anabatista: trata-se de uma folha solta, intirulada Rabinorum et
Anabaptistarum falsa opinio de duobus Messiis , priscorum Thalmudistarum autoritatibus confutata per Franciscum
Stancarum Mantuanum, Neoburgi Danúbio, apud Johannem Kilianum, 1546 (Ottavio Besoni, a quem agradeço
cordialmente, arranjou-me cópia do texto conservado na Zentralbibliothek de Zurique).
41. Antes de morrer no patíbulo de Maria, a Católica, Thomas - que, de 1545 a 1549, havia vivido e estudado
em Bolonha, Pádua e Veneza - teve tempo de publicar até uma gramática do italiano, destinada "à melhor
compreensão de Boccaccio, Petrarca e Dante" (cf. John Levsay, The Englisman's ltalian Books 1550-1700, Fila-

A Inquisição
85

fez Pinci4 2, submetia os dados naturais à herança de uma tradição literária e histórica tão
ilustre quanto remota. Por trás dos esquemas de uma historiografia pragmática e de uma
geografia naturalista, o discurso sobre a religião dos italianos permanecia à sombra - salvo
quando aparecia de improviso em testemunhos como o de Biagio di Totulo.
De fato, por volta de meados do século XVI, a oposição entre católicos e evan-
gélicos adquiriu uma acentuada coloração nacional, desdobrando-se naquela entre "fé
italiana" e "fé ultramontana" ou "alemã". Nas vendas das cidades italianas, discutia-se
quem eram os verdadeiros cristãos, se os alemães ou os italianos: e um certo gosto pelo
auto-aviltamento misturava-se às tomadas de posições em matéria de fé: "Os verdadeiros
cristãos são a gente da Alemanha[ ... ) - dizia um herege da Romagna - Os italianos são
fariseus, homens sem fé e sem piedade 43 .
Desse nacionalismo retórico fazia parte a consciência de que a oposição entre
luteranos e católicos era uma oposição entre fé italiana e fé alemã, ou ultramontana,
ou, como diziam alguns, "bárbara". Podia-se apoiar uma ou outra das duas posições,
mas os termos da escolha eram esses. A quem pensava como o herege da Romagna,
dirigia-se o apelo de um padre de Bérgamo em 1553: "Escutai, todos vós que habitais
na Itália - escrevia dom Bartolomeo Pellegrini - escutai vós também que amais e
elogiais amiúde esses bárbaros para vossa danação [... ) esses bárbaros não sabem fazer
outra coisa se não invejar os italianos [... ) procuram somente obscurecer o esplendor e
a honra do nome italiano" 44 . O autor tinha ouvido o célebre pregador Pietro de Lucca,
que pregara em Bérgamo em 1520 e ali profetizara os flagelos bíblicos - peste, fome
e guerra, e a morte violenta para muitos - que depois tinham se realizado 45 . Durante
anos e anos, os exércitos tinham atravessado a cidade, depredando-a e obrigando os
cidadãos a sofrerem vexações ilimitadas. Eram bárbaros, que não se detinham diante de
nada: assim, o corpo de soldados enviado a Veneza em 1529, sob o comando do duque
de Urbino e do conde Gaiazzo, com o encargo oficial de proteger a cidade, tinham-na
saqueado. Eram soldados alemães, infectados pela "raiva luterana" : esses "bárbaros
setentrionais" tinham destruído igrejas e conventos, e não se detiveram diante do

delphia, 1969, p. 6). Sobre William Thomas, cuja obra histórica foi reeditada (The History of ltaly [1549], org.
de G. B. Parles, lthaca, 1963), cf. Dictionary of Nacional Biography, vol. LVI, pp. 193-196.
42. Gio. Pietro Pinci, De Confinibus ltaliae, V. Ruffinello, Mantova, 1546.
43. Cost., 25 jun. 1551, de Alessandro Ressa de Ímola (o documento é reproduzido por Raffaella Rotelli, Il Tribunale
del Sant'Uffizi,o a Imola dalla Formazione al 1578, Tese de Graduação, Faculdade de Letras da Universidade de
Bolonha, orientada por C . Ginzburg, 1973-1974, p. 150).
44. "Audite haec omnes Bergomenses, auribus percipite omnes qui habitatis ltaliam, nonnulos qui hos barbaros
diligitis, et eos in condemnationem vestram aliquando laudastis, discutite nomen et intelligite mores nunquid
alio convenientiori vocabulo appellari poterant, quam ut barbari dicerentur... Illi autem aliud nesciunt nisi
invidere italis, et quantum ad eorum attinet voluptatem, semper cumpiut splendorem ac decus italici nomi-
nis obscurare [... ] neque in alio magis studio se exercerent quam ut populum Christi sanguine redemptum
a catholica, apostolicaque romana ecclesia separent (... )" (Opus divinum de sacra, ac fertili Bergomensi vinea, ex
diversis, autenticis, catholicisque libris, et scripturis, diligenti cura collectum... per reverendum dominum presbyterum
Bartholomaeum de Peregrinis, Brixiae, apud Ludovicum Britannicum, V Idus lulii 1553, e. 5lro).
45. Idem, cc. 39v-40r.

A Fé Italiana
86

pudor das mulheres ou da majestade dos nobres e do clero. Portanto, os italianos que
demonstravam simpatia para com as ideias desses bárbaros e, por sua vez, criticavam a
Itália e a igreja católica, deviam perceber que esses hereges usavam o nome de Cristo
somente para seduzir e arruinar o mundo, e que, tal verdadeiros bárbaros germânicos
não desejavam outra coisa se não denegrir o nome da Itália, separando o povo cristão'
da igreja católica, apostólica romana. "A nossa pátria é a igreja católica - escrevia um
controversista - [... ] Os verdadeiros cidadãos são aqueles que em ditos e feitos opõem-se
à temeridade deles" 46 • Era um cânone propagandista que fixava a identidade nacional
italiana em termos destinados a uma longa duração. Mas fora a evolução da situação
política dos estados italianos a levar as coisas a esse ponto.
Entre a coroação imperial de Carlos V em Bolonha, em 1530, e a paz de Cateau-
-Cambrésis, o horizonte político italiano tinha se livrado de qualquer ilusão. O nacio-
nalismo retórico da "liberdade da Itália" que fora objeto propagandístico da iniciativa
política e militar do papado chegara ao fim : se até as guerras da Itália tratara-se de evitar
a supremacia de uma única potência, agora tratava-se de aceitar como dado indiscutível a
ascensão do papado acima dos outros estados italianos. Um pregador de grande sucesso,
o franciscano Cornelio Musso, afirmou isso de modo claro, refletindo sobre as tarefas
que os bispos italianos tinham pela frente no concílio reunido em Trento:
A parte mais sã - escreveu Musso - desejará defender com o próprio sangue a
grandeza da Sé apostólica, pois certamente quase não temos outro bem; e, perdido
ou diminuído este, somos todos presa, não de imperadores e de reis, mas de qualquer
senhorzinho 47 •

46. li Modello di Martino Lutero, por Q. Iacopo Moronessa, Venezia, Giolito, 1555, c. Vir. Sobre Moronessa, mon-
ge da Congregação Celestina, cf. Lauchert, Die ltalienischen literarischen Gegner Luther, pp. 633-639 e Silvano
Cavazza, "Luthero Fidelissimo lnimico de Messer Jesu Christo. La Polemica contro Lutero nella Letteratura
Religiosa in Volgare della Prima Metà dei Cinquecento", em Lutero in Italia ... Studi Storici nel V Centenario della
Nascita, org. de Lorenzo Petrone, Casale Monferrato, 1983, pp. 67-94 e 91-93.
47. Carta ao cardeal Alessandro Famese, 11 abr. 1546, em Gottfried Buschbell (org.), Concilium Tridentinum. Diario-
,um, Actorum, Epistolarnm, Tractatuum Nova Collectio, vol. X, Freiburg im Breisgau, 1916, p. 451. Cf. G. Odoardi,
"Fra' Comelio Musso, OFM (1511-1574), Padre, Oratore e Teólogo ai Concilio di Trento", em Miscellanea
Francescana, XLVIII, 1948, P• 466. Em seus sermões publicados, Musso insistiu na genealogia latina e romana
da fé contra os "Germânicos", que uma nota editorial de Giolito - por ele não compartilhada - denominou
"sinagoga de Satanás" (cf. Gabriele De Rosa, "II Francescano Cornelio Musso dai Concilio di Trento alia
Diocesi di Bitonto", na coletânea de ensaios do mesmo autor Tempo Religioso e Tempo Storico, Roma, 1987; I,
pp. 395-442).

A Inquisição
II
0 NASCIMENTO DA
NOVA INQUISIÇÃO

m um documento oficial do papa que deu vida à nova Inquisição, Paulo III Farnese,
E lê-se um grito de alarme: as fronteiras da Itália tinham sido atravessadas pela "peste
da heresia" luterana. Num breve endereçado ao inquisidor de Ferrara em 8 de maio de
1536 o papa comunicou a novidade da situação: a notícia da difusão da heresia luterana
na Itália era tão mais alarmante quanto mais, até então, uma tal peste ali permanecera
estranha 1• O arrazoado era capcioso (havia anos, chegavam a Roma avisos de casos de
luteranismo, principalmente de Veneza), mas era bem escolhido.
A Itália constituía para o papa uma área de respeito especial: e justamente na
Itália, em Ferrara, em circunstâncias ainda hoje misteriosas, ganhara corpo a ameaça da
infecção herética. E dessa vez era uma coisa séria: não se tratava de qualquer mestre,escola
nem de qualquer mercador. O documento papal mostra que em Roma compreendeu-
-se toda a gravidade do caso. O que acontecera? Acontecera que a sexta-feira santa
daquele ano de 1536, certo "Gianetto, cantor francês", da corte da duquesa Renata,
no momento da adoração da cruz, "tendo cada um, segundo o costume, ido adorar a
cruz, o referido Ginetto não só não foi, mas ... partiu, demonstrando desprezar e ter
(pouca) consideração pela fé de Cristo" 2• Isso fizera surgir um emaranhado de reações:
o próprio duque e depois o inquisidor de Ferrara tinham intervindo. Teve início aqui
uma questão destinada a arrastar-se por muito tempo: a da corte de Renata3, cujos
componentes eram, no dizer do duque seu marido, "maculados de heresia" . Entre eles
havia o poeta Clément Marot, extremamente ligado a Renata: em um poema, Marot
tinha contado que ele, poete gallique, viera ver "le pays ltalique" para saudar Renata, a
mulher que seguia fielmente o ensinamento de Cristo4.

1. "[ ...] Quod Dei benignitate hactenus nec etiam auditum fuerit ut huiusmodi pestis in ltalia pullulaverit sed
ah ea procul permanserit... " (publicado na minuta vaticana por Bartolommeo Fontana, Rena ta di Francia Du-
chessa di Ferrara ... [1510-1536], Roma, 1889, pp. 501-503; o original está conservado no "Archivio dei Residui
Ecclesiastici" junto à Cúria de Ferrara, S. Domenico, I).
2. Carta de Ercole II, duque de Ferrara ao orador de Este na França, 5 maio 1536 (Fontana, Renata di Francia, op.
cit. , I, 1889, pp. 318-320).
3. Renée Valais Orléans (N. do T.).
4. "[ ... ] Si tu imites/ de ton Saulveur la vraye intention", cf. Fontana, Renata di Francia, op. cit., 1, PP· 249-251.
88

O breve papal é o primeiro documento relativo ao grande affaire político-religioso


de Ferrara, iniciado com a aliança entre aquele ducado e a França e com o matrimônio
do duque com Renata de França. A situação de Ferrara era delicadíssima, mas por
motivos políticos, não religiosos: em uma Itália sob a firme ocupação de Carlos V, esse
casamento que poucos anos antes tinha ligado a família Este à coroa francesa revelara-
-se a posteriori um péssimo negócio. Lógico, portanto, que o duque, sentindo-se cada
vez mais ameaçado pelo avanço papal na Emilia, quisesse eliminar qualquer motivo de
intromissão romana nos negócios de seu estado e de sua corte. O olho da corte papal
não teria certamente deixado passar um pretexto excelente como esse da inconfiabilidade
religiosa de seu feudatário. Ora, o pretexto havia: na corte do príncipe, sob sua proteção,
no momento mais solene do ano litúrgico - a Páscoa - o crucifixo fora insultado. Era
preciso que a autoridade ordinária - o inquisidor de Ferrara- , sustentada pela vontade
do príncipe, encerrasse rapidamente a questão. Não foi o que aconteceu: o inquisidor
de Ferrara desenvolveu uma investigação própria, impelido pelo duque que pretendia
fazer de modo "que esse fogo fosse apagado, antes que se tornasse maior" 5• Mas a reação
de Renata e dos franceses, que se declararam prontos a apelar a Roma ("o que é danoso
para nós - anotava o duque - como se não fôssemos senhores desta terra"), e a rapidez
com que Roma agarrou a oportunidade, impediram um encerramento "normal" do caso.
Foi, portanto, por acaso e por motivos de oportunidade política, que em Roma
o episódio foi dramatizado. No entanto, ainda que por acaso, acertou-se um alvo im-
portante, como se devia perceber somente mais tarde. Na corte de Ferrara, junto com
Clément Marot e outros franceses conhecidos por suas opiniões "luteranas", estava
também naqueles dias João Calvino. O fato seria revelado anos mais tarde por Théo-
) dore de Beze em sua biografia do grande reformador. Sobre essa viagem de Calvino e
sobre a possibilidade que tiveram então os inquisidores de cortar pela raiz a carreira
do mais temível de seus inimigos deviam surgir muitas lendas: talvez fosse ele o tal
homenzinho francês (gallus parve stature) com quem um frade declarou ter discutido
sobre a liberdade do arbítrio e a autoridade da Igreja durante a quaresma de 1536, no
palácio ducal de Ferrara 6 • Os inquisidores que meditaram sobre o episódio tiveram
que experimentar sentimentos semelhantes aos de seus predecessores que em Bolonha,
no século XIV, tinham deixado escapar frei Dulcino que viera reunir em segredo seus
seguidores. Mas Calvino não era um agitador popular: em Ferrara tentava conquistar
a atenção dos príncipes. Tampouco, naquela época, seu nome tinha algum significado
para as autoridades romanas.
O tom alarmado do documento papal entra no contexto das relações políticas
entre Roma e Ferrara. O breve impunha a extradição dos culpados para serem julga-
dos em Bolonha; era uma medida que atingia diretamente a autoridade do duque. De
resto, o breve continha alusões transparentes às possíveis represálias políticas contra os

5. Carta do duque Ercole II, op. cit.


6. Fontana, Renata di Francia, op. cit. , I, pp. 323-324. Dessas versões legendárias dessa viagem de Calvino ocupou-se
Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique, Amsterdam, 1734, s. v. "Ferrare", II, pp. 863-866.

A Inquisição
89

duques de Ferrara, como feudatários da Santa Sé. Mas não era novidade que em muitos
lugares da Itália (in multis ltaliae locis) se espalhasse a heresia luterana. As autoridades
romanas tinham admitido oficialmente o fato desde 1532: é o que se lê no breve papal
de nomeação através do qual um célebre pregador agostiniano de Piacenza, Callisto
Fornari, foi nomeado inquisidor-geral para toda a Itália 7. Mas, com o novo pontificado,
a questão assumia um peso diferente: a iniciativa política de Farnese mirava em direção
diferente daquela do papa da família Médici, obcecado pela questão de Florença8 •
A partida política que era jogada desde muito na área dos ducados padanos devia
encerrar-se para Ferrara com sua devolução à Santa Fé em 1598. Nessa partida, a carta
da fidelidade religiosa tinha seu peso e Paulo lll, político hábil e isento de preconceitos
como poucos, evidentemente não a subestimava.
Por outro lado, também era verdade que a inquietação religiosa crescia e que
os sinais de alarme se multiplicavam. Enquanto o concílio era adiado com qualquer
pretexto, avançava a necessidade de averiguar diretamente as diferenças doutrinárias e
de apropriar-se através de um exame pessoal dos elementos necessários para escolher
a própria verdade. Como escreveu Ottaviano Lotti ao cardeal Gonzaga, era hora de
"saber, estudando a sagrada escritura" , qual era a verdadeira fé 9 • Mas a opção de per-
guntar a verdade aos livros podia contemplar os indivíduos, não as instituições. Assim,
enquanto os pregadores viam suas pregações mais concorridas do que habitualmente -
sobretudo se eram novos, da escola dos capuchinhos, que se inspiravam textualmente
nos evangelhos - e enquanto os leigos eram capazes de frequentar escolas de grego e
de latim para buscar a verdade 10 , as autoridades eclesiásticas e as políticas tomavam
suas medidas.
Éditos, medidas policiais, detenções e processos por motivos de religião não são
suficientes, no entanto, para construir um percurso explicativo até o documento com
o qual, em 21 de julho de 1542, teve origem a congregação cardinalícia destinada a
ocupar-se da questão da heresia em toda a cristandade.
A bula do papa Paulo Ill Farnese Licet ab lnitio , apesar da linguagem pomposa da
chancelaria pontifícia e das distorções impostas pelas necessidades políticas, é um texto
cuja leitura atenta vale a pena: o papa - como é dito na bula - mesmo tendo desde o

7. O breve de nomeação, datado de 4 de janeiro de 1532, foi publicado por B. Fontana, "Documenti Vaticani
Contro l'Eresia Luterana in ltalia" , em Archivio della R. Società Romana di Storia Patria, X:V, 1892, pp. 71-165 e
365-474 (em particular pp. 127-128).
8. Sobre os horizontes políticos do papa florentino e sobre o modo em que condicionaram seu comportamento
em relação à questão luterana, a tradição é unânime, de Francesco Guicciardini (e de Francesco Berni) até a
historiografia recente: ver, entre todos, o volume de G . Muller, Die Romische Kurie und die Reformation 1523-
-1534. Kirche und Politik wiihrend des Pontifikates Clemens' VII , Heidelberg, 1969.
9. Cf. F. Chabod, "Per la Storia Religiosa dello Stato di Milano durante il Dominio di Cario V" (1938); agora
em F. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano nell'Epoca di Cario V, Torino, 1971 , P· 307 n.
10. Como fez o artesão bolonhês Girolamo Ranialdi, processado em 1543, que possuía O Novo TeSt ªmento lati-
no organizado por Erasmo e ia à escola de um professor para aprender a lê-lo (cf. A. Rotondó, "Per la stº ria
dell'Eresia a Bologna nel Secolo XVI" , em Rinascimento, s. II, XIII , 1962, PP· 107-153; em particular P· 138 ).

O N ascimento J a Nova Inquisição


90

início de seu pontificado atuado no sentido de resolver com o concílio os contrastes


de religião, via aumentar agora os casos de heresia e, sem poder realizar o concílio
devido à guerra em curso , recorria a um instrumento de emergência. A bula de Paulo
III trazia fortes elementos de novidade: com ela eram conferidos poderes excepcionais
a um grupo de cardeais para extirpar a "iniquidade herética" do corpo cristão. Uma
congregação formada por seis cardeais recebia do papa plenos e ilimitados poderes para
enfrentar a questão: nenhum privilégio e nenhum título eclesiástico deviam proteger
mais os acusados. Os cardeais deviam poder realizar suas ações, valendo-se de qualquer
meio, desde o "braço secular" até o suporte de inquisidores locais nomeados por eles;
aos cardeais da congregação - e somente a eles - era reservado o direito de absolver e
reconciliar com a igreja os hereges que, arrependidos , quisessem voltar à luz da verdade.
Tratava-se de uma medida extraordinária: os cardeais, na qualidade de inquisidores,gerais
com autoridade apostólica em toda a Respublica christiana, recebiam todo o poder para
proceder contra os suspeitos de heresia, os hereges , seus sustentadores e sequazes. Para
realizar seus objetivos, os cardeais podiam escolher eclesiásticos a serem designados
para diversos lugares. A eles não se podiam opor privilégios ou exceções de qualquer
tipo: clérigos seculares e regulares, mesmo se tivessem recebido ordem do presbiterato,
não podiam subtrair-se à ação inquisitorial dos cardeais designados. Ao papa, por seu
lado, reservavam-se os juízos de absolvição e de reconciliação.
A argumentação formal do documento mais encobre do que revela, obviamente,
questões e escolhas concretas. Mas as referências que ali se encontram devem ser levadas
a sério. Uma em particular: a do concílio. Todos esperavam o concílio como lugar de
definição da verdadeira doutrina cristã e de aplanação das controvérsias. Ora, sabe-se
muito bem durante quanto tempo o papado resistira às solicitações de convocação de
um concílio. A lembrança das doutrinas conciliaristas aprovadas em Costanza e na Ba-
sileia no século anterior fora mantida viva graças aos apelos de Savonarola e de Lutero,
para mencionar apenas os mais célebres. O quão vivas e fortes eram as expectativas do
concílio como lugar e instrumento de solução das controvérsias de fé , o caso concreto a
que se deveu o impulso ocasional da fundação da congregação romana, o da "Academia"
de Módena, basta para demonstrá-lo. Os membros do célebre grupo de Módena, que
entraram em conflito com os dominicanos da cidade por defenderem uma pobre velha
acusada de bruxaria e depois se tornaram o ponto de referência de um vívido movimento
reformador, viram-se submetidos a um formulário doutrinário com a solicitação para
subscrevê-lo. Mas tinham se recusado a isso, declarando "que aceitariam aquilo que fosse
determinado pelo Concílio" 11 • Do observatório de Módena, a criação da congregação
cardinalícia pareceu uma medida destinada exclusivamente ao caso local 12 : de resto, o
único verdadeiro precedente histórico da bula de 1542 ocorrera um ano antes , quando
os cardeais Carafa e Aleandro tinham sido designados para a "administração universal

11. Carta de Gentile Albino, chanceler do governador de Módena, ao duque d'Este, 2 ago. 1542 (em M. Firpo e
D. Marcatto (orgs.), ll Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone, Roma, 1981; vol. III, pp. 152-153).
12. "Nosso Senhor[ ... ] elegeu seis cardeais ligados à Inquisição de Módena" (carta de G . Albino supracitada).

A Inquisição
91

da Inquisição" e a coisa fora entendida como relacionada ao clamor suscitado pelo caso
do herege Camillo Renato entre Bolonha, Módena e Ferrara 13 •
O concílio, enfim, era a única alternativa verdadeira à guerra religiosa. Excluindo
o concílio, sobrava a guerra: não a que Carlos V deveria combater na Alemanha dali
a pouco, mas a "guerra espiritual" - expressão cara ao principal sustentador da opção
inquisitorial, o cardeal Gian Pietro Carafa. Na realidade, a política papal tinha impe,
dido de todos os modos a convocação do concílio; e essa medida, apresentada como
provisória, na expectativa de uma futura composição dos conflitos religiosos, era uma
opção de guerra. A Inquisição romana surgiu, portanto, como instrumento de emer,
gência, inserido numa estrutura tradicional para torná,lo mais eficiente e destinado
oficialmente a uma duração limitada no tempo: desse ponto de vista, sua diferença das
inquisições ibéricas não podia ser maior. Em Roma, a novidade apresentava,se em trajes
de continuidade 14 • Nada mais definitivo que o provisório, deveria ser dito: a Inquisição
romana não só deveria durar por muitos séculos, mas acabaria por suplantar o concílio
como lugar de busca da verdade e por impor de modo estável sua lógica policial nas
matérias de fé . Seu caráter fundamental era o da centralização: e, embora na bula papal
o território onde exercer o poder não fosse limitado em modo algum, era evidente para
todos que a coisa dizia respeito exclusivamente aos estados italianos.
Uma questão é a de como, sob quais pressões e com quais objetivos se chegou
à formação dessa congregação especial; e aqui, não obstante o estado lacunoso das
fontes, pesquisas não faltam. Outra questão, que pode ser considerada de maneira
independente, é a das características do instrumento que então foi inventado. Sobre
essa última chamaremos novamente a atenção aqui. No que se refere à reconstrução do
contexto em que amadureceu a escolha papal, basta dizer que a atenção dos estudiosos
dirigiu,se gradualmente às características da situação religiosa italiana ou às coalizões dos
partidos curiais: de um lado, o crescimento da dissensão herética nas cidades italianas,
com discussões, inquietações, incertezas, denúncias que se tornaram particularmente
dramáticas em Módena ("Esta cidade inteira ... está maculada, infectada pelo contágio
de diversas heresias como Praga. Pelas vendas, esquinas, casas etc. todos ... d iscutem
sobre fé, livre arbítrio, purgatório e eucaristia, predestinação" , escrevia o vigário do car,
deal Morone em novembro de 154015 ); do outro, a divergência do colégio cardinalício
entre duas tendências, variadamente denominadas à época e em seguida (evangélicos,
"espirituais", erasmianos, irênicos etc. opostos a intransigentes, contra,reformistas) com
a vitória final do partido liderado por Gian Pietro Carafa e determinado a conduzir
uma "guerra espiritual" contra os hereges. Ora, como observou o estudioso que mais

13. A fonte é uma carta do embaixador de Este em Roma, Bonifácio Ruggeri, a Ercole II, datada de 16 de julho de 1541
(em Firpo e Marcatto (orgs.], II Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone, op. cit, vol. II, pp. 1031-1032).
14. A observação é de Francisco Bethencourt, L'Inquisition à l'époque modeme. Espagne, Portugal, Italie Xyf-XJXE siede ,
Paris, 1995, p. 30.
15. V. do autor deste volume "lstituzioni Ecclesiastiche e Idee Religiose nei Domini Estensi all'Epoca dell'Ariosto",
em Paolo Rossi (org.), Il Rinascimento nelle Corri Padane, Bari, 1978, p. 156. O documento encontra-se atualmente
reproduzido em Firpo e Marcatto (orgs.), Il Processo Inquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone, op. cit, vol. II, p. 897.

O Nascimento da Nova Inquisição


92

recentemente e com maior riqueza de dados deteve-se sobre a questão , naquele verão de
1542 as duas estradas se encontraram: "enquanto a heresia luterana parecia espalhar-
-se não somente em Módena, mas também em Lucca , em Nápoles e em muitas outras
cidades italianas, o esvaziamento das margens de compromisso e de ambiguidade sob
a égide de um genérico esforço de renovação religiosa e a progressiva polarização de
grupos contrapostos mesmo nos vértices da instituição eclesiástica já se delineavam com
toda a evidência" 16 • Como a onda de cheia criada pelo confluir de dois cursos d ,água,
a reação inquisitorial iniciou seu percurso ameaçador.
A eficácia imediata, ou pelo menos os primeiros, clamorosos esclarecimentos
daquele dramático verão - o popularíssimo pregador Bernardino Ochino, geral da
nova ordem dos capuchinhos, convidado à Roma , fugiu para a Suíça; o douto teólogo
agostiniano Pietro Martire Vermigli fez o mesmo - encobriram diversas questões, antes
e depois do documento de 21 de julho. Depois, faltam-nos as documentações da nova
instituição, não só no sentido das fontes escritas produzidas por sua atividade , mas
também no sentido de um percurso visível e contínuo de suas intervenções. Antes, há
os documentos nos quais o cardeal Carafa deixou testemunho de suas ideias: e aqui é
possível encontrar um núcleo sólido do futuro Santo Ofício. Por exemplo: no memorial
enviado ao papa Clemente VII em 1532 sobre a reforma da igreja e sobre a repressão
da heresia luterana (De Lutheranorum Haeresi Reprimenda et Ecclesia Reformanda), Carafa
insistiu na necessidade de eliminar os privilégios monásticos que criavam empecilhos à
ação dos inquisidores , propondo um modelo de poder não limitado por nenhum vín-
culo na ação contra a "peste herética" 17; e foi ele ainda a evocar o modelo da Inquisição
espanhola nas discussões que precederam a criação da comissão cardinalícia de 1542;
que, em sua mente, o projeto fosse - coerentemente com esse modelo - orientado para
a figura de um super-inquisidor e que a habilidade política do mundano papa Farnese
se servisse do instrumento da congregação cardinalícia para frear e reequilibrar com
contrapesos o alvoroçado e prepotente cardeal napolitano, não é difícil de imaginar.
De fato , o instrumento inventado com aquela bula papal era tão tradicional na
aparência quanto completamente novo e sem precedentes na essência. Luís de Páramo,
inquisidor espanhol na Sicília no fim do século e primeiro historiador da instituição,
tentou inserir essa estrutura no horizonte imóvel da história sagrada: mas , além do
modelo inquisitorial fornecido pelo diálogo entre Deus e Adão na Gênesis, quando
chegou ao Santo Ofício e tentou encontrar seus precedentes nos séculos da história
cristã, encontrou somente o da concessão de poderes extraordinários contra a here-
sia a um cardeal1 8• Seu ponto de vista, próximo que está temporalmente das origens
do Santo Ofício, oferece-nos alguns pontos de apoio para entendermos não tanto as

16. M. Firpo, "Riforma Protestante ed Eresie nell'ltalia dei Cinquecento" , em G . De Rosa, T. Gregory e A. Vauchez
(orgs.), Storia dell'ltalia Religiosa, vol. II, Bari, 1994, p. 108.
17. O memorial foi publicado em Concilium Tridentinum, Friburgi Brisgoviae, ed. W. Friedensburg, 1901, vol. XII,
pp. 67-77.
18. Segundo Luís de Páramo (De Origine et Progressu Officii Sanctae lnquisitionis, eiusque Dignitate et Utilitate, ex
typographia regia, Matriti 1598, pp. 124-125), um ... precedente da medida pode ser encontrado na nomeação

A Inquisição
93

origens quanto mais o amadurecimento no decorrer da segunda metade do século da


congregação romana até sua configuração final no vértice do sistema das congregações
de Sixto V. Devemos nos ocupar dessa evolução mais adiante. No que se refere aos
precedentes imediatos do documento de fundação de 1542, basta percorrer a série de
breves emanados pelo papado em termos de luta contra a heresia para perceber o salto
de qualidade. São documentos que respondem à exigência de intervir nos casos mais
graves; referem,se a pessoas e a procedimentos específicos. Extrair disso um quadro
do conjunto não tem sentido: baseado nele seria possível concluir somente, como fez
19
Fontana, que "na Itália a importância da heresia foi excessivamente aumentada" .
Conclusão mal fundamentada, porque os breves papais eram documentos de resposta a
exigências propostas por outros e dependiam, até nas expressões usadas, do documento
de súplica. Mas esses documentos eram usados normalmente como uma oportunidade
para fazer valer a autoridade papal acima daquelas ordinárias. Nesse sentido, as várias
expressões da autoridade papal em matéria de "heresia luterana" , que, vista uma a uma,
podem parecer contraditórias no mérito - por exemplo, em matéria de privilégios das
ordens religiosas , gradualmente aumentados ou limitados, reforçados ou suspensos -
lidas em seu conjunto são muitíssimo coerentes: vão na direção que a providência de
1542 fez triunfar, com a concentração nas mãos papais do poder de intervenção nos
procedimentos por heresia. Até 1542, esse poder fora afirmado vez ou outra, fazendo
funcionar a apostolica auctoritas como um instrumento que intervinha excepcionalmente
para alterar o jogo normal das autoridades ordinárias. Com a criação da congregação
cardinalícia qual um supremo tribunal, a exceção tornava,se regra.
Tratava,se de um salto de qualidade. Não há dúvida de que entre os objetivos hou,
vesse o de potencializar o funcionamento da Inquisição. Mas a ele se ligava estreitamente
a afirmação, em uma forma nova, da autoridade papal. Confiar,se à inquisição era, por
outro lado, uma escolha natural para o poder papal que criara essa polícia especial da
fé : como para outras instituições medievais, ocorreu nesse caso uma retomada que sob
o signo da continuidade escondia efeitos novos e revolucionários.
A definição da heresia e dos modos de enfrentá,la foi então a oportunidade para
reformular as características do poder: e não apenas no âmbito da estrutura eclesiástica.
É singular que a historiografia moderna, distinguindo as categorias do estado e da igreja,
tenha acabado por perder de vista suas zonas de intersecção. Por isso, antes ainda das
circunstâncias concretas que em Roma levaram à criação da congregação cardinalícia,
deve,se ter presente o contexto mais geral em que se colocava a intervenção dos poderes
constituídos contra a heresia.
Um modelo ocupava necessariamente o horizonte europeu : o da Inquisição
espanhola. Com o aval de um papado temeroso das doutrinas conciliaristas e em
busca de poderosas alianças políticas, os reis católicos tinham podido transformar

para inquisidor-geral do cardeal Orsini, em 1263. Mas o ponto de vista de Luís de Páramo é o de um inquisidor,
convencido do caráter providencial e eterno da instituição.
19. Fontana, Documenti Vatican i Contro l'Eresia Luterana, op. cit. , p. 74.

O Nascimento da Nova Inquisição


94

a estrutura monástica e dependente de Roma da polícia inquisitorial em algo de


profundamente novo: a fidelidade religiosa e a política tinham se fundido . Foi assim
que o novo poder judiciário centralizado, valendo-se do impulso do ódio antijudaico
para atrair para si o consenso da população, conseguiu pôr em crise as ainda fortes
tradições de administração da justiça vigentes nos antigos reinos ibéricos (particu-
larmente, em Aragão).
O caso da península ibérica, com sua rica diversidade de estados e culturas passí-
vel de ser fundida numa nova realidade estatal, sempre pareceu excepcional no quadro
europeu. Não se encontra nada do gênero nos acordos e concordatas estipulados pela
Santa Sé com outros estados: aos reis de França e da Inglaterra importavam mais os
ricos benefícios com que ligar a si as classes dominantes e construir uma aristocracia
eclesiástica de permanente fidelidade . No momento oportuno, de resto , a perseguição
da heresia podia ser empreendida pelos tribunais ordinários.
Deixando de lado o que ocorreu na Inglaterra, onde o ato de supremacia de
Henrique VIII encontrou um alto clero disciplinado e aquiescente, deverá pelo menos
ser lembrada a solução que foi escolhida pelo "rei cristianíssimo" Francisco I, quando
a propaganda protestante contra a Missa invadiu com manifestos a própria corte. As
duras condenações distribuídas pela Chambre ardente partiam da consideração da he-
resia como sedição, crime "de lesa-majestade" e, logo, de pertinência direta do poder
de um príncipe cristão.
Portanto, a escolha romana situou-se na encruzilhada obrigatória na Itália da
época: entre França e Espanha. Ora, é indubitável que o modelo espanhol recebeu
muitos elogios então e mais tarde por parte dos homens da igreja mais assustados com
o espectro da rebelião religiosa. Um deles chegou a escrever: "Dizem que a Inquisição de
Espanha e a de Portugal são demasiado severas, e eu respondo, que são muito úteis" 2º.
Mas, na realidade italiana da década de quarenta do século XVI , era o modelo
francês que devia parecer mais adequado aos problemas do momento. A repressão ex-
tremamente dura com que a chambre ardente atacara a divergência herética na França 21
apareceu como a verdadeira resposta eficaz para um problema - a difusão da Reforma -
que era candente na Itália e na França, ao passo que era desprovido de consistência
na Espanha.
De fato, "o primeiro passo para a instituição da Inquisição romana" foi dado no
consistório de 15 de julho de 1541, com a decisão de "concentrar em Roma o controle
superior da Inquisição e de confiá-lo aos cardeais Carafa e Aleandro" , cujos nomes eram
uma garantia segura de intransigência e dureza 22 • Nessa ocasião, a discussão entre os
cardeais foi suscitada pelo "veemente protesto" do marquês del Vasto, governador de
Milão, contra a fraqueza da inquisição ordinária e por sua proposta de deixar em suas

20. Carta de Alvise Lippomano ao cardeal Cervini, Bologna, 16 nov. 1547 (em Gottfried Buschbell, Refcrrmation
und lnquisition in Italien um die Mitte des XVI. ]ahrhundert, Paderborn, 1910, p. 289.
21. Cf. o clássico estudo de Nathanael Weiss, La chambre ardente. Étude sur la liberté de conscience en France sous François 1
et Henri 11 (1540-1550), Paris, 1889.
22. Hubert Jedin, Storia dei Concilio di Trento, vol. 1, Brescia, 1949, p. 367.

A Inquisição
95

mãos o castigo dos hereges 23 • Era uma proposta que não podia ser aceita por Roma,
onde naqueles dias estava de volta da dieta de Ratisbona o cardeal Gaspare Contarini
e concluía-se com balanço negativo o projeto de concórdia com os luteranos; toda
iniciativa imperial sobre os temas de conflito de religião estava destinada a enfrentar
a desconfiança das autoridades romanas. Se com os hereges era preciso usar maneiras
fortes, essa tarefa cabia aos poderes eclesiásticos. Mas a questão era efetuar medidas efi-
cazes. Discutiu-se "se deveriam observar as ordens dadas pelos cânones ou então, como
24
foi feito em França pelo referido rei, proceder com rigor e exceder as constituições" •
No caso francês, as imunidades e os privilégios garantidos pelo direito canônico tinham
sido atropelados pelos poderes excepcionais conferidos aos tribunais reais , aos quais o
papado reconhecera desde muito o direito de tratar os casos de heresia 25 • Se desejavam
obter resultados, era preciso seguir esse caminho. E assim foi dada a Carafa e a Aleandro
a missão de se dedicarem à "administração universal da Inquisição". A providência devia
calar os protestos e garantir intervenções eficazes nas situações mais graves, como as de
Módena e de Lucca. Os dois cardeais enfrentaram a situação em Módena, assinando
juntos a sentença de condenação do modenense Bertari 26 • A morte de Aleandro deu
a Paulo III a possibilidade de fazer outras nomeações e de aumentar o número dos
responsáveis pela Inquisição, dissolvendo numa verdadeira comissão cardinalícia o
poder pessoal de Carafa. Em 4 de julho de 1542 ocorreu a nomeação dos seis cardeais
inquisidores 27 • De qualquer modo, o nome de Carafa encabeçava a lista que aparecia
na bula: seguiam-no os de Giovanni Morone, Pietro Paolo Parisio, Bartolomeo Guidic-
cioni, Dionísio Laurerio e Tommaso Badia. Na geografia curial, a composição é legível
como um compromisso entre a tendência conciliadora e aberta liderada por Gaspare
Contarini (Morone, Badia) e a tradicionalista e curial (Guidiccioni). Mas as questões
mais importantes continuaram a passar pelos canais políticos e curiais tradicionais.
Um dos primeiros e mais significativos atos da nova gestão centralizada das questões
doutrinárias foi a convocação a Roma do célebre pregador Bernardino Ochino: a carta
convocatória, datada de 15 de julho de 1542, leva a assinatura do cardeal Farnese 28 •
Em agosto de 1542, a morte do cardeal Contarini e a decisão de Bernardino Ochino
de interromper a viagem em direção de Roma e de fugir para a Suíça assinalaram uma

23. Cf. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano, op. eit., pp. 321-322; a carta de Vasto foi publicada por P.
Tacchi Venruri, Storia della Compagnia di Gesu in ltalia, Roma, 1931, I, 2, pp. 127-129.
24. Carta do embaixador de Este Bonifacio Ruggeri a Ercole II, 16 jul. 1541 (o importante documento foi assinalado
por Jedin, Storia del Concilio di Trento, op. cit., vol. I, p. 393, nota 2; é reproduzido, sem remissão a Jedin, por
Firpo e Marcatto (orgs.], Il Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giooanni Morone, op. cit. , vol. II, pp. 1031 e ss.).
25. Raymond Mentzer A. ("Heresy Proceedings in Languedoc, 1500-1560", em Transactions of the American Philo-
sophical Society, LXXIV, 1984, p. 44) assinala a bula de Clemente VII, de 1525, que abria a porta à intervenção
dos juízes leigos nos processos de heresia na França.
26. Cf. o dossiê dedicado a Bertari em Firpo e Marcatto (orgs.), II Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone,
op. cit., vol. I, p. 301.
27. Cf. L. von Pastor, Storia dei Papi, vol. V, Roma, 1931, p. 673.
28. Publicada por P. Piccolomini, "Documenti Vaticani sull'Eresia in Siena durante il Secolo XVI", em Bullettino
Senese di Storia Patria, X.V, 1908, pp. 299-300.

O Nascimento da Nova Inquisição


96

guinada imprevista e radical. E, no entanto, a guinada já estava inscrita no surgimento


da Inquisição romana. Em 20 de julho de 1542, antes portanto da morte de Contarini
e da decisão de Ochino de deixar a Itália, um homem de letras e da igreja achegado
a ambos tinha feito o seguinte comentário, ao escrever a um amigo romano, sobre o
significado das escolhas romanas:

Que Deus vos ajude com vossos novos inquisidores, diante dessas novas heresias, eu vos direi
a verdade, eu decido que mais são é crer com as mulherzinhas e estudar Aristóteles e Platão, que ir
se enredando em tantos novos dogmas e tão perigosos 29 •

Percebe-se por esses indícios que o modelo que se tinha em mente, ao se dar
vida à Inquisição romana, era o de um poder central capaz de varrer os obstáculos re-
lativos a privilégios e imunidades canônicas e de afirmar sua exclusiva autoridade. Era
o papado que, através da luta contra a heresia, propunha sua função de poder central
no ordenamento político italiano. Nos estados italianos, a longa agonia da "liberdade
da Itália" - no sentido de equilíbrio entre os estados maiores e não intromissão das
monarquias ultramontanas - foi contemporânea à difusão das ideias da Reforma. Era
portanto inevitável que os novos ordenamentos políticos da península serevelassern e
fossem transpostos no plano religioso. Se no caso espanhol a junção unitária da penín-
sula foi procurada, enfatizando-se a ameaça do judeu como inimigo interno, no italiano
aproveitou-se para o mesmo objetivo o perigo da heresia luterana.

A ameaça efetiva da ruptura da unidade da igreja provocou o reaparecimento de


traços antigos da questão da heresia na estrutura eclesiástica, conferindo nova atualidade
aos dispositivos elaborados havia muito tempo. No entanto, a dramática emergência de
um conflito de doutrinas que ameaçava as bases do sistema de poder eclesiástico varreu
do horizonte romano e daquele da cultura dominante qualquer tentação de tornada de
distância da noção tradicional de heresia. A dureza teológica do choque doutrinário
que teve início com as teses de Lutero trouxe consigo linguagem e instrumentos que
pertenciam ao mundo dos conventos e que havia muito pareciam em fase de refluxo,
sepultados pelas ironias elegantes da cultura humanista e pelo anticlericalismo presente
na nova moralidade urbana e mercantil. Entre os séculos X.V e X.VI, surgira a possibilidade
de retorno à acepção antiga, pré-paulina, da heresia como opção intelectual possível.
Contra a antiqua gens monachorum, a cultura arcaizante dos humanistas propusera urna
subversão da noção tradicional de heresia. Se se devia proceder por anátemas, o que
devia ser condenado era o erro moral, a prática de vida em contraste com a moral
cristã, deixando aberto o caminho da busca da verdade. A subversão trazida por Lu-
tero a esse respeito pode ser exemplificada com a oposição entre seu Catecismo - uma
obra que marcou profundamente a história do cristianismo europeu - e O "manual"

29. Carta de Ludovico Beccadelli a Cario Gualteruzzi, Bologna, 20 jul. 1542 (cf. Gigliola Fragnito, "Gli 'Spirituali'
e la Fuga di Bernardino Ochino", em Rivista Storica Italiana, LXXXIV, 1972, pp. 777-813; em particular p. 799,
mas todo o ensaio é fundamental) .

A Inquisição
97

proposto por Erasmo, seu pacífico "punhal (Enchiridion) do soldado cristão". Entre os
dois, foi o modelo do catecismo de Lutero que se impôs na prática social, justamente
porque oferecia não uma meditação para os espíritos eleitos do humanismo cristão,
mas elementos nítidos e certos de coisas para crer e formas rituais bem escandidos. A
derrota da proposta erasmiana representava ainda o fim, para aquela época, da tentativa
mais ambiciosa da cultura humanista: a de substituir a noção teológica de heresia por
uma noção de tipo prático e moral. Alguns, como o pio humanista inglês John Colet,
haviam formulado a proposta em termos formais e em sedes específicas 30 ; outros ha-
viam se limitado a desacreditar com a ironia o controle exercido pelas grandes ordens
e pela Sorbonne sobre as definições doutrinárias. Mas com o retorno a São Paulo que
caracterizou a época de Lutero também voltaram à atualidade as definições paulinas
de heresia: eram justamente as que tinham marcado a guinada decisiva em relação à
interpretação tolerante da diferença de opiniões no mundo antigo 31 • Somente diante
dos êxitos sanguinários e intolerantes do movimento de reforma, a proposta humanis-
ta voltou a ser atual; mas quando o humanista saboiano Sébastien Castellion tornou
a propô-la logo depois da fogueira de Serveto em Genebra, ele o fez com grave risco
pessoal, escondendo-se atrás de um pseudônimo.
Portanto, com Lutero, a ameaça maior no horizonte das autoridades romanas
voltava a ser justamente a heresia no sentido codificado por São Tomás e pela tradição
inquisitorial dominicana: "erro do intelecto, ao qual a vontade adere obstinadamente" ;
uma definição que no final do século a Iconologia de Ripa trazia em apoio à imagem
simbólica da heresia proposta aos pintores - "uma velha extenuada de aspecto assusta-
dor, soltará pela boca chama fumacenta , terá os cabelos desgrenhados e hirtos, o peito
descoberto, como quase todo o resto do corpo, os seios secos e bem caídos, segurará
na mão esquerda um livro entreaberto, de onde parecem sair serpentes, e com a mão
direita demonstre espalhar várias espécies deles" 32 • O livro, pois: eis a ameaça e o veí-
culo fundamental da heresia. A luta contra a leitura e a circulação de toda forma de
livros proibidos logo ocupou a congregação romana. Entre seus primeiros atos houve
um decreto - de 12 de julho de 154 3 - que está na origem da batalha católica contra
a hidra da heresia e as infinitas serpentes que as tipografias criavam 33 •

30. Cf. Lucien Carrive, "Le statut pénal de l'hérésie en Angleterre au dix-septieme siecle", em Christiane D'Haussy
(org.), Ortodoxie et hérésie, Paris, 1993, pp. 25-37.
31. Cf. Arnaldo Momigliano, "Empietà ed Eresia nel Mondo Antico" , Rivista Storica Italiana, LXXXIII, 1971, pp.
499-524, agora em Sesto Contributo alia Storia degli Studi Classici e del Mondo Antico, Roma, 1980, pp. 437-458.
Momigliano demonstrou que a guinada cristã referente à tradição antiga situa-se nas duas passagens dos Co-
ríntios XI, 18-19 - onde a heresia é apresentada como uma inevitável diferença de escolhas - e de Gálatas V,
19-21 - onde as dissensões são vistas como obras da carne. Em Gálatas I, 8-9 surge a expressão que deveria
voltar mais tarde com insistente continuidade na tradição normativa da igreja: "anathema".
32. C. Ripa, Iconologia, Venezia, Cristoforo Tomasini, 1645, p. 255.
33. O decreto foi publicado por Joseph Hilgers, Der Index der verbotenen Bucher, Freiburg im Breisgau, 1904, pp.
483-486 (cf. ainda a "introduction historique" de J. M. De Bujanda, lndex de Rome 1557, 1559, 1564, Les pre-
miers index romains et l'Index du Concile de Trente, Sherbrooke/Geneve, 1990, pp. 27-28, onde se reporta a data
inexata de 12 de junho de 1543).

O Nascimento da Nova Inquisição


98

Para esmagar a cabeça dessas serpentes, não bastava a condenação eclesiástica.


Típico da tradição cristã, a esse propósito, era o que podemos denominar o estrabis-
mo dos poderes, a não completada fusão entre poder político e poder religioso. Disso
derivava, entre outras coisas, a distinção processual entre condenação eclesiástica e
execução estatal. O herege, segundo a tradição medieval, tornava-se tal não por causa do
simples erro, mas pela tenacidade de sustentá-lo após a condenação da Igreja. Resistindo
à autoridade, dentro de um sistema político cristão, o herege é também um rebelde
ao príncipe. A condenação eclesiástica do herege fazia tradicionalmente referência ao
dever do poder político de eliminá-lo. Ora, a reação eclesiástica ao caso Lutero consis-
tiu justamente em chamar o estado em seu auxílio, agitando o fantasma da subversão
política: o herege é perigoso para a ordem pública, quem não obedece a Deus acabará
cedo ou tarde desobedecendo também ao príncipe. A bula de excomunhão contra
Lutero - Exsurge Domine , de 1520 - serviu-se desse argumento: Lutero, como um javali
na vinha do Senhor, destruía e ameaçava as plantinhas, era um sedicioso. Daí o dever
do imperador de fazê-lo calar-se, antes que se tornasse um perigo para o poder político.
Havia, nisso, o eco de uma tradição antiga, aquela que confiava ao sistema político do
corpo cristão a tarefa de garantir a defesa contra a heresia 34 • Mas, ao mesmo tempo,
havia uma enfatização da periculosidade política da heresia que subentendia uma oferta
de aliança entre poderes para garantir a obediência dos súditos.
O crime de heresia devia ser incorporado ao crime de sedição ou de "lesa-
-majestade" , do qual foi feito um uso cada vez mais amplo a fim de consolidar o poder
soberano 35 • O herege é um traidor (perduellis) : trair a fides implica faltar à fidelitas como
ligação política, porque o herege infringe seu fundamento e portanto torna-se merece-
dor de toda punição. Este é o horizonte teórico de juristas e teólogos revigorado por
volta de 1530: e dele emanaram as medidas tomadas pelos poderes contra a heresia.
A turbulenta história europeia da revolta dos camponeses e da "nova Jerusalém" dos
anabatistas deu corpo e sangue ao fantasma da subversão política. É nesse contexto
que as antigas regras do jogo que presidiam o funcionamento da inquisição eclesiástica
entraram em crise.
Qualquer que seja a origem verdadeira do processo inquisitorial36, uma regra
fundamental o governava: para condenar um herege havia necessidade da sentença

34. Cf. C. Henninger, Beitriige zur Organisation und Competenz der piipslichen Ketzergerichte, Leipsig, 1890, p. 354
nota. Mas ver agora Ruggero Maceratini, Ricerche sullo Status Giuridico dell'Eretico nel Diritto Romano-cristiano e
ne! Canonico Classico, Padova, 1994.
35. Estudando a história do crime político por excelência, o crimen lesae maiestatis, o historiador do direito Mario
Sbriccoli esclareceu como, justamente na época moderna, os dispositivos jurídicos que o tornaram um delito
de exceção, diante do qual não vigoravam mais as tutelas tradicionais, foram postos a serviço de um poder cada
vez mais exigente. Em última análise, chegou-se - escreve Sbriccoli - à "politização de muitos crimes 'comuns"',
com um efeito de "transbordamento da esfera do político para o nível da sociedade civil" (M. Sbriccoli, Crimen
Lesae Maiestatis. Il Problema de! Reato Politico alie Soglie della Scienza Penalistica Moderna, Milano, 1974, p. 257).
36. As sugestões mais convincentes sobre os mecanismos jurídico-formais de início do processo inquisitorial foram
colocados prioritariamente por um estudioso do direito canônico, Winfried Trusen ("Der lnquisitionsprozess.

A Inquisição
99

de um tribunal eclesiástico. O princípio tinha sido afirmado por ocasião do conflito


com os Albigesi. Só depois que os hereges tivessem sido condenados corno tais por um
bispo ou por outro eclesiástico que tivesse poder para isso - assim reza o decreto do
rei de França de 1228 37 - podia-se passar à execução da pena. Esse princípio não fora
aceito pacificamente, nem fora observado com regularidade na prática. No entanto,
sua afirmação marcara uma data importante na história da relação entre a comunidade
cristã e os hereges. Desde aquele momento, ficou estabelecido que o crime de heresia
devia e podia ser reconhecido apenas por juízes eclesiásticos, mediante um processo
específico e competências teológicas adequadas. As coisas mudaram profundamente
na Europa do século XVI, ao menos a partir da guerra dos camponeses na Alemanha.
Na dieta de Spira de 1529, foi emanada com o consenso dos luteranos a lei
imperial que previa a pena de morte (com o fogo ou a espada) para os anabatistas, sem
necessidade de processo inquisitorial preliminar por parte de um juiz eclesiástico 38 • Era
preciso impedir, como explicara o católico Johannes Eck, que os camponeses voltassem a
se rebelar e a ameaçar o clero, os príncipes e a nobreza 39 • O perigo de sedição constituía
o argumento principal de apoio ao recurso à pena de morte por parte das autoridades
políticas pelo crime de heresia. Buscava-se apoiar tal prática no código justiniano: o
decreto contra os "rebatizadores" baixado por Honório e Teodósio era a peça de apoio
de quem sustentava o direito de mandar à morte essa categoria específica de hereges.
Inutilmente os defensores dos anabatistas haviam tentado negar sua pertinência e
remeter ao Evangelho como única forma válida. Johannes Brenz tinha sustentado no
período mais áspero da polêmica e da luta contra os anabatistas que a condenação ca-
pital era contrária ao Evangelho e servia apenas para colocar em perigo a sorte eterna
das almas dos condenados; até mesmo a doutrina da comunhão dos bens, que tanto
alarmara os inimigos dos anabatistas, podia ser interpretada, segundo ele, como uma
reproposição do caminho monástico à perfeição e como tal confutada, sem que se visse
aí qualquer perigo à ordem social 4º.

Seine historische Grundlagen und frühen Formen", em Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechts-
geschichte, Kanonistische Abteilung, LXXIV, 1988, pp. 168-230), que lhe destacou as premissas no
processo por mala fama da alta Idade Média: procedendo não ex evidentia mas ex fama e pedindo
ao suspeito uma purgatio canonica que consiste no juramento, são elaboradas formas processuais
que se encontram depois no modelo inquisitorial que vemos em ação na época de Inocêncio lll -
formas que combinam a tradição alemã do juramento com a romana da investigação escrita.
37. "Postquam fuerint de haeresi per episcopum loci, vel per aliam ecclesiasticam personam quae potestatem
habeat, condemnati" (C. Douais, Documents pour servir à l'histoire de l'lnquisition dans le Languedoc, Paris, 1900,
reimpressão de 1977, pp. VI-VII.
38. Cf. Paul Wappler, Inquisition und Ketzerprozesse in Zwickau zur Reformationszeit. Dargestellt im Zusammenhang mit
der Entwicklung der Ansichten Luthers und Melanchtons über Glaubensund Gewissens.freiheit, Leipzig, 1908, p. 56.
39. Cf. a carta de Eck a Jorge da Saxônia, de 25 de novembro de 1527, muito explícita a esse respeito (reportada
por A. Seguenny, "Historia Magistra Vitae", em Horizons européens de la Reforme enAlsace, mélangesJ. Rott, org.
por M. de Kroon e M. Liénhard, Strasburg, 1980, p. 109).
40. "Haec compendiosissima et optima via est haereticos impugnandi, ut tantum Evangelio et Sacrae Scripturae
hoc duellum adversus haereticos committatur [... ) Nam si quis ob incredulitatem et haeresim statim morte

O Nascimento da Nova Inquisição


100

Essas fontes e essas controvérsias não cessaram com a dieta de Spira; quando
a questão voltou à baila após a condenação de Serveto, François Bauduin - como
grande jurista - concentrou suas pesquisas nas fontes antigas, tentando demonstrar a
interpolação dos termos "último suplício" no código de Justiniano. Mas já nessa data
o rigor e o caráter sumário dos processos judiciais contra os anabatistas tinham levado
a refletir novamente sobre a ligação entre teólogos e juízes no processo inquisitório 41 •
Diante das razões políticas e sociais que levaram a tirar do tribunal eclesiástico as
causas relativas à heresia dos anabatistas, o comportamento de Lutero e de Melanchton
foi de substancial consenso: sobre o fundo chamejante de Münster, até a simples heresia
desprovida de rebelião política ou social foi considerada punível com a morte. Mas há
outro fato, bem mais significativo, a assinalar: com a lei imperial de 1529 chegava ao
fim, ao menos para uma parte da Europa, toda a longa temporada da Inquisição tal
como fora conhecida na Idade Média. Fora uma fase marcada pelo fato de que entre o
poder político e o herege - personagem considerado perigoso para a sociedade cristã -
havia se interposto o tribunal eclesiástico. Agora, ao contrário, com os argumentos
mais variados, os poderes estatais tendiam a se apossar novamente da função de julgar
e abater todo tipo de subversão, inclusive a religiosa, que aliás parecia a mais perigosa.
Depois do Império, foi a França a cortar pela raiz a velha norma: Francisco I, logo após
a difusão em Paris dos placards contra a missa, impôs que os hereges fossem julgados
pelos Parlamentos. As razões eram aquelas habituais em qualquer ocasião em que são
modificados os mecanismos da justiça: a ineficiência dos velhos sistemas, a necessidade
de fazer frente a um grave e urgente perigo. Mas não resta dúvida de que esse sinal de
alarme atingiu, em Roma, quem se preocupou em reformular de uma nova maneira
o modelo de funcionamento da Inquisição.
No que se refere aos elementos de continuidade secular, parece justificado,
portanto, assinalar os de ruptura que orientam o surgimento da Inquisição romana.
Foi nesse contexto que o vértice romano da Igreja viu-se obrigado a reexaminar
a relação com os poderes existentes na cristandade: e no âmbito deles uma conside-
ração específica foi reservada aos estados italianos, desde muito ponto de referência
obrigatório para o papado. Insistiu-se, com base num plano geral, na busca de proteção,
elaborando e aperfeiçoando seus argumentos teóricos e articulando cada vez melhor os
dispositivos diplomáticos. A ligação necessária entre poder e verdade cristã foi invocada
infinitas vezes: e foi nesse contexto que começou a longa desdita de O Príncipe de N i-
colau Maquiavel, recém-publicado sob a distraída égide de um papa Médici. É apenas
aparentemente paradoxal, que coubesse a uma vítima da Inquisição, o pio cardeal inglês
Reginald Pole, dar início à lenda negra de Maquiavel como vulto demoníaco (literal-

mulctandus esset, ille non corporali solum vita privaretur, sed de animae quoque salute in discrimen veniret
[...]" (Adversus Anabaptistas Philippi Melanchtonis ludicium. Item an magistratus iure possit occidere Anabaptistas,
Johannis Brentii sententia. Item articuli inspectionis ecclesiarum Saxoniae emendati, Hagenau, 1528, cc. o IIIv-D JVr).
41. Cf. M. Turchettí, Concordia o Tolleranza? François Bauduin (1529-1573) e i "Moyenneurs", Geneve/ Milano, 1984,
pp. 162 e ss.

A Inquisição
101

mente) do poder. De todas as partes, então, não somente da católica, os titulares do


poder foram chamados de volta ao fundamento religioso de sua autoridade e ao dever
de defender a integridade da fé.
Mas no interior do quadro italiano a voz de Roma fez-se ouvir com gravidade
bem diferente. Ali a intervenção direta podia se valer de uma variada e flexível série de
instrumentos: havia os inquisidores e os bispos, como autoridades ordinárias; e havia
a rede dos enviados que portavam a voz própria da autoridade papal - os legados, os
núncios. Mais que os bispos (quanto muito, não residentes) e mais que os inquisidores,
eram os representantes diplomáticos os que melhor se prestavam para tratar diretamente,
caso por caso, as questões emergentes. Antes mesmo que o sistema das representações
diplomáticas estáveis atingisse a plena definição, é através da correspondência dos le-
gados e dos encarregados de negócios que se pode reconstruir o fluxo de informações
e de intervenções que ligaram Roma e as cidades capitais dos estados italianos. Natu-
ralmente, era diferente o caso das grandes realidades políticas da península, como a
República de Veneza, diferente das pequenas cidades-estados, como Lucca. De Veneza, os
despachos do núncio Girolamo Aleandro e depois os de seus sucessores (quando foram
conservados 42) permitem acompanhar o meandro de conflitos políticos que se enredava
em torno dos casos dos hereges verdadeiros ou presumidos. Para Lucca, ao contrário,
a rede das tratativas tinha como ponto de referência a personalidade eclesiástica mais
eminente que a República possuía na cúria, papel que foi desempenhado nos anos
em torno de 1540 pelo cardeal Bartolomeo Guidiccioni. Nele, os anciãos do governo
citadino tinham o interlocutor capaz de transmitir os desejos do papa e de garantir, ao
mesmo tempo, uma eficaz representação das exigências de Lucca43 •
Ora, pela correspondência diplomática - cartas dos núncios papais, despachos
dos enviados ou dos residentes a Roma por conta dos vários estados italianos - a in-
tervenção romana em matéria de heresia não parece diferente no método em relação
àquela exercida junto a cortes não italianas; talvez, de tom mais decidido e duro no
mérito, como convinha às relações de poder com estados menores , com pequenos e
temerosos regimentos citadinos. Tratava-se de garantir que o mercador tal que tinha
espalhado doutrinas heréticas fosse preso e processado, que as sentenças de condena-
ção fossem executadas, que os livros proibidos fossem impedidos de circular. A ação
do núncio podia, se necessário, ser reforçada por algum documento oficial romano .
Mas, de qualquer modo, era feita referência à obra de repressão que competia ao poder
político daquele estado. E a justificação usual, nos documentos oficiais, era sempre a
seguinte: os hereges são motivo de divisão e fonte de rebelião, não podem ser fiéis aos
homens por terem violado a fé devida a Deus; por isso, compete ao príncipe cristão a

42. Infelizmente, restam apenas fragmentos dos despachos de Fabio Mignanelli, cuja nunciatura cobriu um período
crucial (alguns fragmentos foram reconstituídos por B. Nicolini, Lettere di Negozi de! Pieno Cinquecento, Bologna,
1965): para os de Aleandro, cf. F. Gaeta (org.), Nunziature di Venezia, I (12 mar. 1533 - 14 ago. 1535), Roma,
1958, e II (9 jan. 1534 - 9 jun. 1542), Roma, 1960.
43. Cf. M. Berengo, Nobili e Mercanti nella Lucca dei Cinquecento, Torino, 1965; e ver agora Simonetta Adorni-
-Braccesi, "Una Città Infetta". La Repubblica di Lucca nella Crisi Religiosa de! Cinquecento, Firenze, 1994.

O Nascimento da Nova Inquisição


1(1 1

,)brt~w!\() dt' 1..•rradkn-los . Nem se limitava a sustentar a justificação de maneira abstrata:


os 1..·nviad,)s ,. ,)s representantes diplomáticos eram os intermediários de mensagens e
adw rtênd ns s,)brc os pt!rigos de misteriosos conciliábulos de hereges. Roma oferecia esses
seus cnnhcci mentiJs, qut> si.:! imaginam filtrados através das organizações eclesiásticas,
1..' ú l\\\l um r o nvite para ali.rn ças mais estreitas e para ações mais determinadas contra os

hcrcg~s. En:\ Bruges, em 1540, o enviado veneziano Francesco Contarini ficou sabendo
pdn legadn papal que ern Ro ma tinham sido recebidas notícias frescas de Veneza "de
qut• t'tn rnuitos locais dessa cidade criavam-se redutos e conciliábulos para aqueles que
ouvt'.'m a seirn luterana"; em preciso então - assim era sugerido por Roma - que as
auto ridades wnezianas tomassem providências "e não deixassem que um fruto podre
estragasse os outros que são bo ns" . Seguiam considerações sobre o que ensinava a his-
tória co ntemporânea: "A quem não provê esses primeiros princípios depois acontecem
coisas, que se vee m hoje na Alemanha e na Inglaterra, que não seguem a religião e nem
obedecem aos senhores temporais"44 • Em termos não diferentes, em 1545, - ou seja, após
a criação da congregação romana - Paulo III dirigia-se ao doge e ao senado de Veneza:
quem não é fid a Deus não pode ser fiel aos homens, logo os hereges constituem um
perigo para o estado 45. Eram argumentos aos quais ninguém se opunha - excluindo-
-se poucos indivíduos ou grupos isolados e duramente combatidos. Após a guerra dos
campo neses e a escolha de Lutero de alinhar-se com os príncipes, após a sangrenta
repressão da "Nova Jerusalém" anabatista, argumentos do gênero tinham se difundido
de um lado e de outro das barreiras confessionais. Os reformadores protestantes, por
sua vez, esforçavam-se para explicar aos príncipes que a reforma evangélica não mirava
a outra coisa se não a fazer com "que os povos sejam submetidos a seus príncipes, e
paguem-lhes seus tributos" 46•
Ao dirigir-se aos príncipes, o poder eclesiástico romano assumia a função de atento
e paternal admoestador, deixando ao poder secular o papel de distraído e renitente
executor. Por trás dessa ficção formal , havia quase sempre uma realidade bem diferente:
a de uma Roma capital de um corpo eclesiástico protegido pelos "três muros" de seus
privilégios - como os denominara Lutero em um de seus escritos de maior sucesso. E,
visto que na maior parte das vezes a heresia era praticada no mundo eclesiástico - parti-
cularmente, entre as ordens religiosas - os poderes laicos achavam-se de mãos atadas por
um emaranhado de privilégios que Roma evitava cortar. O representante de Carlos V
em Milão, o marquês del Vasto, teve muito que se queixar e ameaçar recorrer a medidas
drásticas por esse motivo. Mas a ligação histórica entre o papado e as grandes ordens
religiosas resistia a qualquer ataque. Muitas e muitas vezes, por exemplo, foi reforçada

44. Carta de 26 de junho de 1540; ASVen. , Capi dei Consiglio dei Dieci, Lettere di Ambasciatori, b. 8b.
45. Eis o que se lê num documento papal dirigido ao Doge e ao senado vêneto em 1° de maio de 1545, a propósito
da difusão da heresia em Veneza: "Nec vero fugit sapientiam vestram, quae singularis est, ... etiam ad divisiones
factionesque illius civitatis animadvertendum esse, ne, ad veteres haec nova superaddita, causam novitatibus
adirumque defectionibus aliquando praebeat: cum sicut nostis vel hec sola religionis dissensio multis in locis
obedientiam ac fidelitatem excusserit" (Fonta na, Documenti Vaticani contro l'Eresia Luterana, op. cit. , pp. 398-400).
46. Francesco Stancaro, lspositione de la Epistola Oznonica di S. Giacobo Vescooo di Gierusalemme ... , Basileae, 1547, p. 121.

A lnquisiçào
103

naqueles anos a norma segundo a qual os frades menores não estavam sujeitos à juris-
dição dos inquisidores e podiam ser processados apenas por seus superiores: e se, sob
a pressão de intervenções como as do marquês del Vasto, Paulo III chegou em janeiro
de 1542 a uma anulação das isenções com as quais leigos e eclesiásticos subtraíam-se à
ação dos inquisidores, logo depois (março de 1542) reforçou todos os privilégios dos
frades menores, subtraindo-os à ação inquisitorial per universum orbem 47 •
Pois bem, havia uma Roma capital de organismos eclesiásticos supra-estatais
que atava as mãos das autoridades políticas desejosas de varrer de seus estados quem
difundia a cizânia herética. Mas havia também uma Roma capital de um estado sujeito
à autoridade temporal dos pontífices romanos: e esse território compreendia uma im-
portante cidade universitária como Bolonha, onde circulavam livros e estudantes de
todo tipo, e o território de Avinhão, com seus enclaves religiosos valdenses. Como se
comportaram os papas em sua função de príncipes territoriais? A resposta é bastante
simples: tanto no caso de Bolonha, como no de Avinhão e de seu território, a repressão
da heresia foi entregue aos poderes temporais e não aos espirituais. Tomando como
ponto de referência os anos próximos a 1542, o quadro é o seguinte: em Bolon ha, não
foi o bispo Alessandro Campeggi, ausente, nem seu vigário Agostino Zanetti, nem o
inquisidor de San Domenico a agir contra o fermento da heresia que grassava entre
nobres e populares, entre doutores de direito e trapeiros 48 , mas o governador da cidade,
que mandou encerrar nos cárceres citadinos, chamados "do Torrone", um volumoso
grupo de hereges e os processou. E em Avinhão, não foi o bispo lacopo Sadoleto (que
recebera de Paulo III, em 1538, também a autoridade de inquisidor-geral), mas Alessan-
dro Campeggi, como representante e vice-delegado do governador Alessandro Farnese,
que conduziu uma tentativa de repressão militar contra os valdenses de Cabrieres e de
Mérindol: os protestos de Sadoleto, contrário ao uso das armas e decidido a defender
a própria jurisdição em matéria de heresia, foram candentes mas não fo ram ouvidos
em Roma 49 • O fato de que o poder temporal em Avinhão fosse representado pelo bispo
de Bolonha tem a ver, aliás, com as contradições do sistema de benefícios romano.
Anos depois, na França dominada pelas guerras religiosas, quem desejou voltar ao
catolicismo tomou o rumo de Avinhão e ali procurou não o bispo nem o inquisidor,

47. CF. Fontana, Documenti Vaticani contro l'Eresia Luterana, op. cit., pp. 383-384 (breve de 14 de janeiro de 1542);
idem, pp. 386-388 (breve de 6 de março de 1542); e pp. 158-161 (breve de 15 de dezembro de 1537), com o
qual Paulo III renovava os privilégios tradicionais dos menores observantes. Parece inexata, portanto, a inter-
pretação de Romano Canosa (Storia dell'lnquisizione in ltalia dalla Metà del Cinquecento alia Fine del Settecento, I,
"Modena", Roma, 1986, p. 8) que vê no documento de 14 de janeiro de 1542 a primeira fase do processo de
centralização que levou à instituição da congregação do Santo Ofício.
48. Para a situação bolonhesa e para a carta de Baldassare Fabri em que se fala de "trapeiros" hereges, cf. mais
adiante, cap. IV, nota 13. Sobre Alessandro Campeggi cf. o verbete (de quem escreve) em DBI, vol. XVII, Roma,
1974, p. 434.
49. Para Avinhão, o longo eco da repressão militar contra os valdenses vai dos contemporâneos (como Jean Crespin)
até nossos dias. Uma reconstrucão dos fatos pode ser encontrada em P. Gaffarel, "Les massacres de Cabriêres
et de Mérindol", Rewe Historique, CVII, 1911, pp. 241-271. Ver agora o vasto estudo de Marc Venard, Réforme
protestante, Réforme catholique dans la province d'Avignon. XVI' siecle, Paris, 1993, pp. 329 e ss.

O Nascimento da Nova Inquisição


104

mas o cardeal legado. Um seguidor do príncipe de Sanseverino, o cavalheiro de Salerno


Giovan Matteo Grillo, relatou em sua abjuração - publicada imediatamente, para fins
de propaganda - que, achando-se em França e desejoso de voltar à Itália, sem incorrer
nos rigores da Inquisição, não encontrou solução melhor que se dirigir a Avinhão e
pedir para ser julgado e absolvido pelo legado 50 •
O certo é que o pontífice romano, onde tinha o poder de príncipe, usava-o con-
tra os hereges com a mesma justificação e com os mesmos meios vigentes nos demais
estados. Se um súdito do estado da Igreja era detido e inquirido por heresia em outro
lugar, partia imediatamente de Roma o pedido de extradição em nome não do direito
eclesiástico de julgar todos os casos de heresia, mas em nome do poder do soberano de
submeter a julgamento os próprios súditos. Um caso do gênero aconteceu quando, em
1566, foi detido em Veneza, por ordem do Santo Ofício, Guido Giannetti de Fano. Pio V
pediu sua extradição para Roma e, diante das resistências venezianas, escreveu pessoal-
mente ao núncio: sua carta é um testemunho do caráter do homem. Os venezianos
deviam mandar-lhe o herege, escrevia Pio V, em primeiro lugar porque deviam saber
que nada lhe interessava mais: e não hesitava em tocar no fato de que muitas guerras de
Júlio II em diante tinham tornado extremamente delicado o assunto das controvérsias
territoriais entre Estado da Igreja e República de Veneza: "quando pensassem que Nós
temos tanto interesse por tal coisa, que obrigassem uma de suas principais cidades a
prestar tão grato serviço a esse respeito, como fariam a Deus e a Nós em mandá-lo" .
Mas, passando aos argumentos concretos, Pio V apresentava apenas um: "Queiram
considerar que a causa é por religião de um nosso súdito e vassalo" 51 • E ao embaixador
vêneto em Roma reafirmou oralmente a justificação: "Não vos pedimos um dos vossos,
mas um súdito nosso" 52 •
Ora, se o poder de punir era prerrogativa reconhecida, aliás verdadeiro dever
fundamental do estado cristão, e se como tal era aceito e praticado por Roma como
capital de um estado territorial, resta saber como o novo poder teoricamente ilimitado,
constituído em Roma nas mãos de uma congregação cardinalícia, podia inserir-se nos
existentes. É ainda ao sistema italiano que deveremos voltar, portanto.

50. "[ ...] Parti de Adge para vir a Avinhão[ .. .] para abjurar publicamente meu erro perante Monsenhor Ilustríssimo
e Reverendíssimo Cardeal de Armanhaque" (carta de Giovan Matteo ao irmão Matteo, em Abiuratione di molti
errori heretici, fatta publicamente, et spontaneamente dal sig. Gio. Matteo Grillo gentilhuomo salemitano innanzi a Mons.
Illustriss. Cardinale di Armignac... , por Pietro Rosso, Avignon, 1568, c. B Ir).
51. Carta de Pio ,; a Giovanni Antonio Facchinetti, 27 jul. 1566 (Nunziature di Venezia, vol. VIII, org. de Aldo
Stella, Roma, 1963, p. 86).
52. Cf. Aldo Stella, "Guido da Fano Eretico del Secolo XVI ai Servizio dei re d'lnghilterra", Rivista di Storia della
Chiesa in ltalia, XIII, 1955, pp. 196-238; V. p. 227.

A Inquisição
III
INQUISIÇÃO ROMANA E
ESTADOS ITALIANOS

" paz muitos anos - escrevia em 1567 o cardeal Girolamo de Correggio - que em
diversos lugares da Itália considerou,se estabelecer o tribunal da Inquisição, e em
alguns foi feito, mas por pilhéria"; somente agora tinha se tomado uma coisa séria. Vinte e
cinco anos antes em Mântua, por exemplo, ninguém sabia "o que significava lnquisição" 1•
Agora aprendiam, às próprias custas. Mas era um bem, escrevia o cardeal; para convencer,
,se disso, bastava olhar, além dos Alpes, o espetáculo da França.

Acreditais que se em França tivesse havido uma vigorosa Inquisição aquele rei se encontra-
ria agora no aperto em que se encontra e aquele pobre reino estaria na miséria em que está? ... E
estabelecei que abjurações e castigos são as coisas que poupam aos príncipes recorrer aos exércitos.

Juízo semelhante encontramos publicado então por um historiador que também


foi inquisidor, Umberto Locati: segundo ele, fora justamente o espetáculo das guerras
de religião na França que venceu as últimas resistências dos poderes políticos dos es,
tados italianos:

Tendo em França aumentado o fato da heresia, os principais fizeram muito bem ao pensar
em impedir tal contágio, vendo como os povos eram seduzidos e armados a pretexto de religião e
depois por tal meio alguns poderosos aspiravam a ocupar aquele reino. Por isso os grandes da Itália,
temendo a si mesmos, foram obrigados, o que antes haviam negado, a proferir seu apoio ao S. Ofício
da Inquisição de heresia 2 •

Locati tinha perfeita consciência do mecanismo de permuta graças ao qual a


Inquisição pudera se estabelecer nos estados italianos: a ajuda era oferecida e solicitada
em nome da conservação do poder, o poder político dos príncipes e o da corporação

1. Carta de 20 de dezembro de 1567 a Francesco Gonzaga de Novellara, em Sergio Pagano, ll Processo di Endimio
Calandra e l'lnquisizjone a Mantooa nel 1567-1568, Cidade do Vaticano, 1991, pp. 50-51.
2. [Umberto Locati] Italia Travagliata novamente Posta in Luce, nella qual si Contengono tutte le Ou.erre, Seditioni, Pesti-
!entie et altri Travagli ... , Venezia, Daniel Zanetti e cols., 1576, p. 218. Sobre a cultura histórica de Locati, cf. Simon
Ditchfield, "Alla Ricerca di um Genere: Come Leggere la 'Cronica dell'Origine di Piacenza' dell'lnquisitore
Piacentino Umberto Locati (1503-1587)", Bo!!ettino Storico Piacentino, LXXU, 1987, pp. 145-167.
106

eclesiástica. Mas seu ponto de vista ajuda-nos também a compreender como, para os
contemporâneos , a afirmação definitiva do novo organismo era colocada por volta
da década de sessenta daquele século. O contexto das guerras de religião na Franca , .
portanto, foi aquele em que se verificou um deslocamento decisivo na relação entre
poder político e tribunais eclesiásticos. Mais alguns anos e, tendo em vista os êxitos da
estrutura inquisitorial ramificada por toda a Itália, Tomaso Garzoni de Bagnacavallo
convidava, com uma expressiva hipótese, a admirar "esta velha robusta Igreja Romana
mais jovem do que nunca na força e no vigor contra os insultos daqueles (os hereges) e
que, à guisa de um valoroso Anteu, tira dos golpes e das pancadas poder maior e com
mais honra revigora-se" 3•
Esses triunfais balanços traçados por homens que somavam o ofício das letras
à profissão eclesiástica dão-nos conta de uma única estrutura inquisitorial, aquela do-
minada pela congregação romana do Santo Ofício: e essa estrutura aparecia aos olhos
' deles como a continuação natural, ou melhor, a retomada providencial da inquisição
monástica medieval. Continuidade de homens, de sedes , de práxis. Nas cidades italia-
nas, os locais da Inquisição eram os de sempre: réus e testemunhas ainda deviam bater
à porta dos conventos franciscanos e dominicanos; e os processos que se desenvolviam
nesses conventos eram regidos pelos mesmos procedimentos indicados nos manuais
redigidos séculos antes, que ora eram atualizados e publicados. A questão parecia,
portanto, muito simples: a Inquisição era uma realidade única e antiquíssima, que
encontrara e continuava por vezes a encontrar obstáculos entre as autoridades leigas,
mas que, se deixada funcionar bem, tornava a levar à vitória da fé. Eram impressões
enganosas. A Inquisição romana era a tal ponto uma instituição de tipo novo que a
própria antiga aliança entre papado e ordens religiosas teve de ser posta à prova: o
privilégio de franciscanos e dominicanos nomearem os inquisidores teve de levar em
conta os poderes da congregação cardinalícia nesse sentido. Não se tratava apenas de
poderes das ordens: o privilégio reconhecido aos conselhos citadinos ou aos príncipes
de escolherem eclesiásticos de sua preferência para as funções mais importantes - os
vigários episcopais, os pregadores para os grandes ciclos da Quaresma e do Advento -
estendia-se também aos inquisidores: para o exercício desse privilégio, eram necessários
contatos epistolares e verdadeiras embaixadas, nos quais entravam em jogo muitos
fatores de pressão. Foram necessários anos para que os poderes de nomeação do Santo
Ofício fossem de fato exercidos com uma certa independência pelos mecanismos de
promoção interna às ordens e pelas recomendações dos poderes políticos. No caso do
inquisidor de Ferrara, frei Girolamo Papino, por exemplo, podemos seguir quase dia a
dia a longa batalha que ele conduziu para ser nomeado inquisidor de Ferrara: Papino
tinha o apoio do duque de Ferrara, que, desde 1540, mandara cartas de solicitação
nesse sentido ao Capítulo geral dos dominicanos. E, em 1547, quando foi mandado
a Bolonha como legado de Este ao Concílio, aproveitou para interpelar os mais ilus-

3. Tomaso Garzoni de Bagnacavallo, La. Piazza Universale di Tutte le Professioni del Mondo, Venezia, Gio. Batti5ca
Somasco, 1589, p. 532 (discurso "De gli Heretici et lnquisitori").

A Inquisição
107

tres juristas da Universidade sobre sua nomeação para inquisidor4. Em seu caso, o
apoio do duque e as promessas e os empenhos obtidos "pela via de Roma" a seu favor
foram redondamente ignorados pelo geral dos dominicanos, cuja autoridade ainda
parece decisiva naqueles anos; mas igualmente decisiva era a autoridade do príncipe
quando se tratava de julgar seus súditos por heresia. Demonstra-o suficientemente o
fato de , em 1549, devendo encetar em Ferrara o caso de Fanino Fanini, o duque ter
inserido no tribunal inquisitorial três conselheiros de justiça da corte 5 • Só por volta
da metade do século XVI os inquisidores encarregados começaram a receber cartas
oficiais de encargo da congregação romana e, consequentemente, a ver modificados
seus títulos. Mas para que um sistema de nomeação da cúpula de um poder central
substituísse o mecanismo longamente experimentado do acerto entre poderes políticos
e poderes eclesiásticos, fundado no respeito dos interesses locais, foi necessário um
tempo muito mais longo.

Houvera uma efetiva solução de continuidade entre a inquisição medieval e a


inquisição romana, que - se parece mascarada e atenuada pelas ligações antigas de
aliança entre papado e ordens mendicantes - resulta evidente sobretudo na relação
com os vários poderes estatais e com as instituições criadas para enfrentar a questão da
"heresia luterana". O modelo centralista proposto em Roma teve que levar em conta
essas realidades: disso resultou uma série de compromissos estipulados em cada situação
específica que conferiu à veste costurada sobre a Itália pelo Santo Ofício uma variedade
arlequinal de cores e de desenhos. Veremos alguns exemplos disso, sem a pretensão de
reconstruir nos detalhes uma história que foi longa e complicada.
A Itália propriamente dita excluía, do ponto de vista da polícia da fé , as ilhas
maiores, onde atuava a Inquisição espanhola6 • Nos outros domínios espanhóis - Milão
e Nápoles - a extensão do já então célebre e temido tribunal não correspondia ao do-
mínio político dos Habsburgos. As tentativas de propor sua introdução evidenciaram
inquietações e alarmes na vida dos dois estados cujo controle implicava o domínio
sobre a Itália. O resultado foi a permanência das duas antigas funções de controle e de

4. Cf. as cartas de Papino citadas por B. Fontana, Renata di Francia Duchessa di Ferrara, Roma, 1893, II, pp. 231
e ss.; em part. pp. 234-235.
5. Sobre o agitado evento relativo à nomeação de Papino cf. Filippo Valenti, "Il Carteggio di Padre Girolamo
Papino lnformatore Estense dal Concilio di Trento durante il Período Bolognese", em Archivio Storico Italiano,
CXXN, 1966, pp. 303-417. O breve papal de nomeação foi liberado pelo papa em 20 de outubro de 1548
"communicatio negotio curo Reverendo Magistro Sacri Palatii": cf. Fontana, Renata di Francia Duchessa di
Ferrara, op. cit., pp. 507-509. Papino, finalmente, recebeu o encargo oficial da Congregação romana do Santo
Ofício em 23 de janeiro de 1552 (cf. Bartolomeo Fontana, Documenti Vaticani contro l'Eresia Luterana in Itália,
op. cit., p. 423). Sobre o caso Fanino cf. o verbete de L. Felice, DBI, vol. 44, Roma, 1994, pp. 589-592.
6. Sobre a Inquisição na Sicília existe uma vasta literatura; cf. o estudo de Francesco Renda, La Fine de! Giudaismo
Siciliano. Ebrei Marrani e Inquisizione Spagno!a prima durante e dopo !a Cacciata de 1492, Palermo, 1993; sobre a
da Sardenha, cf. G. Sorgia, Studi sull'lnquisizione in Sardegna, Sassari, 1961 e Agostino Borromeo, "Contributo
allo Studio dell'lnquisizione e dei suoi Rapporti con il Potere Episcopale nell'ltalia Spagnola", em Annuario
dell'lstituto Storico Italiano per l'Età Moderna e Contemporanea, XXIX·XXX, 1977-1978, pp. 219-276.

Inquisição Romana e Estados Italianos


108

intervenção nas mãos das autoridades eclesiásticas, assistidas e às vezes vigorosamente


estimuladas pelas políticas.
Chegou,se à sistematização completa da matéria formalizada com a bula Licet ab
lnitio numa situação caracterizada - no plano internacional - pela retomada da iniciativa
papal no que tange ao projeto de concílio de Carlos V e, no plano interno ao colégio
cardinalício, pelo redimensionamento do poder de Gian Pietro Carafa. A morte do
cardeal Aleandro e o ingresso de Morone, Cortese e Badia no colégio constituíram a
premissa para chegar à criação da congregação cardinalícia. A Paulo III , mais do que
a luta contra os hereges, interessavam outras questões: seu pontificado foi dominado
por um nepotismo agressivo; a consolidação do poder dinástico foi perseguida por
ele à custa de duros embates com Carlos V e em prejuízo do Concílio de Trento. Ao
confiar a tarefa de dar caça aos hereges a uma comissão especial de cardeais, Paulo III
recompensou, como se viu, um cardeal particularmente poderoso, Gian Pietro Carafa.
No entanto, na formação de uma congregação de cardeais, mais ainda do que na esco-
lha de seus membros7, fica evidente também a vontade de contrabalançar a tendência
representada por Carafa: só quando este último foi escolhido papa, viu,se triunfar ple-
namente a feroz e agressiva intransigência da "guerra espiritual" . Outros indícios ainda
dão conta de que a orientação de Paulo III não favorecia as pretensões do intransigente
cardeal napolitano: o mais preocupante caso de heresia conhecido naqueles anos foi
o da "Academia" de Módena, que estourou justamente em 1542. Os rumores cada
vez mais alarmantes de uma dissensão doutrinária difundida e liderada por um grupo
de homens de letras levaram a uma intervenção romana: mas foi uma intervenção do
poder eclesiástico ordinário em matéria de fé - o do bispo - e não da magistratura
extraordinária da Inquisição. Giovanni Morone, bispo de Módena, recorreu à ajuda de
seu mais velho e prestigioso amigo, o cardeal Gaspare Contarini, legado de Bolonha
à época. "Não era - escreve a esse respeito Gigliola Fragnito - apenas a escolha de um
caminho mais ameno para apagar os focos de heresia, o que guiava a ação de Morone,
mas provavelmente também a obstinada defesa - contra as ingerências da primeira
Congregação romana - daquela iurisdittione libera , que era elemento fundamental de
sua eclesiologia" 8 • Na divergência surgida no colégio cardinalício entre as tendências
diversas de Carafa e de Contarini a esse respeito, o papa Paulo III parece ter se aproxi-
mado mais daquela de Contarini; o que mais tarde também pôde ser visto no caso da
outra cidade onde as ideias da Reforma tinham penetrado, Lucca. Também o recurso à
criação de uma congregação cardinalícia devia manifestar somente em seguida os efeitos
de que era capaz: ela evidenciou quase inadvertidamente a descoberta do modo mais
eficaz para diminuir o poder do colégio cardinalício como corpo. Esse rumo devia ser

7. Mas sobre a composição da congregação e sobre a alternância dos nomes em seu interior, como notou William
Hudon (Marcello Cervini and Ecclesiastical Govemment in Tridentine ltaly, Dekalb, 1992, pp. 116-117) não é fácil
lançar luz.
8. G . Fragnito, "II Nepotismo Farnesiano tra Ragion di Stato e Ragioni di Chiesa", em Continuità e Discontinuità
nella Storia Política, Economica e Religiosa. Studi in onore di Aldo Stella, Vicenza, 1993, pp. 117-125; em particular
p. 123.

A Inquisição
109

segu ido , como notou Paolo Prodi 9 , a partir da institucionalização e multiplicação do


sistema de congregações. De fato , a questão da luta contra a heresia e a dissensão desa,
pareceu dos debates consistoriais. Tornou a aparecer rapidamente em 15 de março de
1571, quando Pio V confiou a matéria da revisão do Índex dos livros proibidos e várias
outras questões referentes ao controle livreiro a um grupo de cardeais 10 • Nasce assim
a congregação do Índex. Quando Sixto V, com a constituição lmmensa aeterni Dei de
poucos anos depois , regulamentou toda a séri.e das congregações, no lugar do Senado
cardinalício como corpo colegial capaz de enfrentar o papa e impor-lhe condições ficou
apenas um sistema de comissões especializadas em diversas tarefas, ligadas ao papa e às
suas estritas dependências. O fato de a congregação do Santo Ofício ver reconhecida
sua supremacia sobre todas as outras sancionava a dupla função desse organismo: de
um lado, supremo controlador da fé , de outro, instrumento privilegiado do poder
centralizador do papado.
Pois bem, a solução de continuidade era efetiva: a nova inquisição varria qualquer
resistência e qualquer obstáculo, valendo-se da autoridade suprema conferida pelo papa
aos cardeais delegados. Era o mesmo sistema de delegação da autoridade papal com o
qual se executava nessa mesma época a reorganização do governo pastoral nas dioceses
italianas. Entretanto, com a reorganização em congregações , destituía-se a tradicional
função de controle e de cogoverno exercida pelo conjunto do colégio cardinalício ou pelas
maiorias que gradualmente podiam se constituir em seu interior. Além disso, a vitória
da corrente intransigente da Reforma católica - que devia parecer irresistível com a elei-
ção de Gian Pietro Carafa - devia enfatizar imensamente a importância da Inquisição.
A questão , portanto, não era a da maior ou menor eficácia desse ou daquele
tribunal: era, ao contrário, a da autoridade a quem competia julgar os hereges. E aqui
se manifestavam duas ordens de problemas ou de conflitos para a nova Inquisição:
de um lado, os conflitos internos à estrutura eclesiástica, de outro os externos. As
primeiras vozes a se levantarem contra o poder confiado aos comissários do Santo
Ofício foram vozes de eclesiásticos e em particular de bispos. Ludovico Beccadelli,
já secretário de Gaspare Contarini e depois vigário de Marcello Cervini, chegando
a Ragusa com o título de arcebispo no final de 1555, descobriu por conta própria
quão pouco valia sua autoridade em relação à do inquisidor. Havia se deparado com
um cavalheiro da cidade que desejava ser absolvido por ter tido uma Bíblia traduzida
em vernáculo por Brucioli; mas Beccadelli fora obrigado a mandá,lo ao tribunal do
inquisidor, que era presidido por um bispo dominicano, por sua vez, de uma diocese
sufragânea de Ragusa, de modo que - observava amargamente Beccadelli - "eu venho
a ser inferior a um súdito meu" 11 • Em uma terra livre, como sublinhava Beccadelli, de
infettione luterana, as restrições a seu poder de bispo comprometiam a eficácia da ação

9. P. Prodi, II Sovrano Pontefice. Un Corpo e Due Anime, Bologna, 1988, pp. 169-185.
10. Cf. Pietro Tacchi Venturi, "Diario Concistoriale di Giulio Antonio Santori Cardinale di S. Severina", em Studi e
Documenti di Storia e Diritto, XXIII, 1902, pp. 297-347; XXIV, 1903, pp. 73-142 e 205-272; XXV, 1904, pp. 89-135.
11. Carta a Carlo Gualteruzzi, 2 abr. 1556, em E. Barbieri, Le Bibbie italiane dei Quattrocento e dei Cinquecento,
Milano, 1992, I, pp. 173-175.

Inquisição Romana e Estados Italianos


110

pastoral. Propunha, em virtude disso, que lhe fosse reconhecido o poder, diante de even-
tuais casos como esse, de "poder absolvê-los e uni-los à santa Igreja sem estardalhaço"tz_
Nesse episódio, era emblematicamente representada uma oposição antiga entre clero
secular e clero regular, entre milícias especiais e governo local da Igreja; mas havia
também uma oposição de tipo novo , referente às estratégias de controle da sociedade
que a Igreja devia escolher. A nova instituição , portanto, criava desde seu nascedouro
um problema de poderes no interior da Igreja.
Mas a Igreja na Itália devia acertar-se com as muitas autoridades políticas dos
vários estados italianos. Também para com eles colocou-se a questão de quem devia
controlar a disciplina religiosa da população, questão essa que no plano europeu mais
geral estava então na ordem do dia. A questão era de natureza extremamente delicada:
tratava-se de estabelecer o direito de um tribunal externo - o romano - de citar, processar
e condenar súditos de outros soberanos ou cidadãos de repúblicas livres. Evidentemente,
nem tudo é claro naquilo que aconteceu na época, tendo em vista o desaparecimento
ou a indisponibilidade das fontes . Mas a pluralidade de sistematizações que vemos em
funcionamento uma vez superada a metade do século XVI constitui por si própria um
documento do modo como se tinham composto os conflitos em questão. Naturalmente,
em razão das relações de força , não se tratou de sistematizações definitivas. A tratativa
foi insistente, quase contínua e as normas jurídicas precisaram se ajustar às mudanças
de situação. Mas a relativa estabilidade do quadro italiano na longa fase que vai da me-

' tade do século XVI ao início do XVIll proporcionou o suporte à estabilidade (também
ela relativa) do ordenamento inquisitorial.
Em torno da Inquisição, entretanto, não se desencadearam conflitos jurisdicio-
nais entre Igreja e Estado; aliás, a questão se agregou às muitas a propósito das quais
eram enredadas tratativas e abertas negociações entre os estados italianos e Roma. Se
isso não fosse levado em consideração, não compreenderíamos por que não é possível
retraçar nenhuma relação entre importância do estado, sua potência política e militar
e capacidade de manter-se livre da jurisdição inquisitorial romana.
Foi, portanto, na relação entre Igreja romana e estados italianos que se definiu
a sistematização da nova Inquisição. Essa palavra - Estado - é carregada de riscos por
fazer pesar sobre os eventos do início da idade moderna uma imagem anacrônica, a de
um poder forte sobre o território, de uma autoridade zelosa de suas prerrogativas e capaz
de opor-se a outra entidade nitidamente distinta de si mesma, a Igreja. Não era esse
o estado das coisas na Itália do século XVI. Em Roma, o papa tinha geralmente como
interlocutores personagens que estava habituado a encontrar à sua volta para múltiplos e
complicados negócios pessoais, que dependiam dele como de uma alta senhoria feudal,
que tinham necessidade de favores, de benefícios, de graças. Mais do que pelos prínci-
pes e pelos governos laicos, os assuntos eclesiásticos eram tratados pelos membros da
igreja daquele estado residentes em Roma. O sistema atingia a perfeição quando havia
um cardeal membro da família reinante: um Gonzaga para Mântua, um Médici para

12. Carta a Gualteruzzi, 17 mar. 1556, idem, p. 173.

A inquisição
111

Florença, um Este para Ferrara. Competia a ele garantir a mediação para os assuntos
eclesiásticos. Como bem entendera já no século XV o cardeal Francesco Gonzaga, era só
residindo em Roma que os assuntos eclesiásticos do Estado podiam ser conduzidos 13 • A
Inquisição não mudou as regras do jogo. O Santo Ofício, instituído contra as "heresias
e máximas de Módena, Nápoles e Lucca" , no início não conseguiu realmente intervir de
modo direto em nenhuma dessas três cidades. Quando, em 1542, tratou-se da heresia
em Módena, coube ao cardeal Morone ocupar-se do assunto. E quando, alguns anos
mais tarde, tornaram-se insistentes as acusacões de "infeccão" herética contra Lucca,
' '
a tentativa de Carafa de introduzir a Inquisição na cidade toscana foi imediatamente
bloqueada pela intervenção de um cardeal que era do partido intransigente, além de
ser membro da congregação do Santo Ofício, mas que era em primeiro lugar cidadão
de Lucca: Bartolomeo Guidiccioni 14 • O episódio é significativo também pelo modo
completamente personalista com que Gian Pietro Carafa dirigia os negócios da con-
gregação romana. De Roma, partiu em 1549 uma "comissão" para dois dominicanos
do convento San Romano de Lucca: a cidade, que criara em 1545 um "Ofício sobre a
religião" para demonstrar sua capacidade de enfrentar de modo autônomo o problema
da heresia, enviou imediatamente um embaixador ao cardeal Guidiccioni. O cardeal,
informado pelo embaixador em 24 de setembro, caiu das nuvens: "não sabia nada desse
breve". Paulo III também reagiu com estupor ao saber do breve: "e quem o mandou?
Eu não sei de nada". Em 28 de setembro, o cardeal Alessandro Farnese ordenou por
escrito a Gian Pietro Carafa "que a ordem seja revogada" 15 •
Porém, se as turbulências religiosas de Módena e Lucca ameaçaram no panorama
italiano uma forma local daquela "reforma das cidades" que na Europa da época viu os
casos de Zurique, Estrasburgo, Genebra e tantos outros ainda, o panorama político da
península era dominado por realidades bem diferentes: os estados de Nápoles, Milão,
Veneza e outras poucas entidades territoriais de menor dimensão. Era ali que se devia
resolver o problema do controle religioso, nos termos em que se estava propondo em
toda a Europa.

1. MILÃO E NÁPOLES. A ALTERNATIVA DA INQUISIÇÃO ESPANHOIA


NA ITÁLIA

O caso de Nápoles era o de maior relevo . A maior cidade italiana e europeia da


época era a capital de um reino de grande dimensão , onde Fernando de Aragão
e depois dele o neto Carlos consolidaram seu poder sem conseguir, no entanto,
implantar ali o modelo espanhol de Inquisição. Foi justamente de Nápoles que

13. Cf. D. S. Chambers, "A Defense ofNon-Residence in the Later Fifteenth Century: Cardinal Francesco Gonzaga
and Mantuan Clergy", The ]oumal of Ecclesiastical History, 36, 10/1985, pp. 605-633.
14. Sobre a história da relação entre Lucca e a Inquisição romana, remeter-se às pesquisas de Simonetta Adomi-
-Braccesi, "La Repubblica di Lucca e l'Aborrita lnquisizíone", em L'lnquisizione Romana in ltalia nell'Età Moderna,
Roma, 1991, pp. 233-262.
15. Retomo as citações dos despachos reportados por Fragnito, "II Nepotismo Farnesiano ... ", op. cit. , pp. 123-124.

Inquisição Romana e Estados Italianos


112

vieram os sinais mais inquietantes : quando Carlos V, recém-chegado da campanha


da Argélia, esteve em Nápoles em 1536 , teve oportunidade de ouvir o mais famoso
pregador da época, Bernardino Ochino . Por ocasião desses sermões, das conver-
sações do nobre espanhol Juan de Valdés e da nobre dama Giulia Gonzaga surgiu
o Alfabeto Cristão , a obra com que Valdés propôs seu catecismo básico para quem
queria seguir o caminho da perfeição espiritual. Mas em torno dos sermões de
Ochino também começaram a tornar forma outras inquietações religiosas , entre o
povo napolitano. Por muitos anos , nos papéis da Inquisição continuaram a surgir
episódios e figuras daquele período em que o povo dos "simples" , dos iletrados ,
tinha se apaixonado pela discussão de complicadas questões teológicas e achado que
o podia fazer impunemente . Mas justamente esse pulular de formas de urna curiosi-
dade indisciplinada, que ousava abordar as coisas "elevadas" , pondo em discussão a
autoridade eclesiástica e, consequentemente , fazendo tremer a política, foi a causa
do substancial acordo entre as duas autoridades na luta contra a heresia . Carlos V
ordenou a seus representantes na Itália oferecer toda ajuda ao recém-nascido Santo
Ofício em virtude da emergência criada pelo pulular de heresias 16 • Mas o problema
que por muito tempo agitou as chancelarias políticas da época e que se coloca ne-
cessariamente quando se trata dos domínios dos Habsburgos na Itália é o da não
realizada introdução da Inquisição espanhola.
No que se refere ao Reino de Nápoles, a questão teve uma longa história. Com-
batiam-se ali as estratégias opostas do papado e da monarquia dos Habsburgos, que
encontraram justamente no terreno do controle religioso o banco de prova de suas
pretensões. A Inquisição espanhola, já atuando na Sicília, jamais foi aceita no Reino
de Nápoles; as repetidas tentativas chocaram-se com uma cabal reação napolitana, que
tinha origem na fama de crueldade do tribunal espanhol e também na consciência
de uma autonomia própria a ser defendida. Nápoles, portanto, podia oferecer a um
nobre espanhol perseguido pela Inquisição - como foi o caso de Juan de Valdés - um
tranquilo refúgio. A elite culta da cidade, de resto, continuou por muito tempo a falar
de religião com uma liberdade impensável em outro lugar 17 • Mas quando as discussões
teológicas sobre predestinação e livre-arbítrio, bem como sobre outros temas reservados
aos teólogos, tornaram-se candentes até mesmo entre os coureiros e quando as ideias
de Juan de Valdés, através da mediação dos sermões de Ochino, chegaram ao povo dos
iletrados, o espectro da sedição pôs em movimento as autoridades políticas e religio-
sas. Através das cartas do vice-rei Pedro de Toledo, a corte de Carlos V teve notícia de

16. Para Milão, cf. a carta de Carlos V ao marquês dei Vasto, datada de Magonza, 11 ago. 1543, e publicada na
minuta de F. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa, op. cit., pp. 408-409. A questão mencionada na carta é a dos
poderes de um inquisidor não reconhecido pelo Santo Ofício. O auxílio do braço secular deve ser total, escreve
Carlos V em outra carta de 11 de abríl de 1552, ao pretor de Piacenza, relativa aos procedimentos inquisitoriais
contra os hereges, com o objetivo de evitar sedições e tumultos (Archivio di Stato di Parma, Culto, b. 101, S.
Uffizio 1570-1781, cc. n. n.).
17. Sobre a cultura napolitana do início do século XVI é útíl ainda a volumosa monografia de H. Jedin, Girolamo
Seripando. Sein Leben und Denken im Geisteskampf des 16. ]ahrhunderts, Würzburg, 1937.

A Inquisição
113

um específico alarme napolitano para a difusão da heresia: de outra parte, os teatinos


realizavam o mesmo ofício com o napolitano cardeal Carafa. Mas a autoridade que se
pôs em movimento não foi , pelo que se sabe, o Santo Ofício romano; nem, por outro
lado, foi possível introduzir a Inquisição espanhola pela pronta reação da cidade. O
resultado foi que , na década de 1540-1550, a repressão da heresia foi entregue ao tribu-
nal dos bispos, estimulado e assistido pelos poderes políticos locais. Em Salerno, coube
ao bispo Girolamo Seripando - que em sua ordem agostiniana tinha adquirido larga
experiência no controle da heresia - intervir com os meios ordinários dos tribunais
diocesanos e com os, extraordinários, dos confessores: e nas aldeolas de Cápua, onde
se formara uma comunidade de crentes da nova fé , foram ainda os bispos com a ajuda
dos poderes locais a executar uma repressão duríssima 18 •
A vigorosa investida da Inquisição romana sob um papa napolitano, Paulo IV, foi
marcada pela invenção de uma forma inédita de presença: a instituição de um comissário
do Santo Ofício que, de modo semioculto, devia dar sustentação à operação de controle
oficialmente confiada ao governo episcopal e às autoridades políticas 19 • A partir de Roma,
não sendo possível instituir um tribunal do Santo Ofício específico, recorreu-se de fato
ou ao tradicional instrumento diplomático de presença e de pressão política - o núncio -
ou a uma presença mascarada da congregação romana através de um seu representante
semioculto. A opção para semelhante encargo recaiu sobre a pessoa que dispunha de
maiores poderes reais de intervenção nessa matéria, ou seja, o vigário do arcebispo de
Nápoles. Da política perseguida pela congregação romana - e sobretudo por seu principal
motor e responsável, o cardeal Gian Pietro Carafa - pode-se ter uma ideia pela persona-
gem que concentrou em suas mãos as questões do controle inquisitorial: o dominicano
Giulio Pavesi, antes bispo de Vieste e depois arcebispo de Sorrento, acumulou os dois
títulos de vigário do arcebispado de Nápoles e de delegado da Inquisição romana, aos
quais acrescentou o de núncio em 1557 20 • O processo referente à nunciatura de Nápoles,
durante esses anos, é infelizmente lacunoso 21 • Mas as intenções do Papa Paulo IV, em
seguida à rápida guerra contra a Espanha, são perceptíveis na escolha da personagem:
ao dominicano Pavesi não faltava certamente a cultura inquisitorial; e, acumulando os
poderes de representante da Sé apostólica com os de representante do mais elevado
poder eclesiástico do Reino, era a pessoa apropriada para estabelecer comunicação da
maneira mais rápida e eficaz de um lado com os bispos e seus vigários no Reino, do ou-
tro com Roma. De resto, que a nunciatura caminhava no sentido de tornar-se a agência

18. Cf. G . Romeo, Inquisitari, Esorcisti e Streghe nell'ltalia della Controriforma, Firenze, 1990; P. Scaramella, "Con la
Croce a! Cuore". lnquisizione ed Eresia in Terra di Lat1oro (1551 -1564), Napoli, 1995.
19. Amabile, I! Santo Officio della lnquisizione in Napoli, op. cit.; G. Romeo, "Una Città, Due Inquisizioni: !'Anomalia
dei Sant'Ufficio a Na poli nel Tardo 500", Rit1ista di Storia e Letteratura Religiosa, XXIV, 1988, pp. 42-67 (retomado
em Romeo, Inquisitari, Esorcisti e Streghe, op. cit., pp. 7 e ss.).
20. Cf. Amabile, I! Santo Officio dell'lnquisizione in Napoli, op. cit., !, pp. 147 e 224.
21. Entre as lacunas mais graves, destaca-se aquela relativa justamente à nunciatura de Pavesi (cf. Pasquale Villani,
"Origine e Carattere della Nunziatura di Napoli (1523-1569)", Annuario dell'lstituto Starico Italiano per l'Età
Moderna e Contemporanea, IX-X, 1957-1958, pp. 285-539; em particular p. 317).

Inquisição Romana e Estados Italianos


114

principal para os negócios que requeriam poderes delegados por Roma, incluindo a luta
contra a heresia, pôde ser visto nos fatos : o sucessor de Pavesi, Niccolo Fieschi, enviou
circulares aos bispos e a seus vigários, apresentando-se como a autoridade delegada pelo
~ papa para ajudar os ordinários na obra de extirpacão de "tão perniciosa semente"22.,
'
pôde contar com os capitães de justiça leigos para a detenção de eclesiásticos suspeitos;
foi o instrumento das extradições quando o Santo Ofício considerou-as necessárias;
tratou diretamente, de um lado com as autoridades do vice-reinado, de outro com 0
cardeal sobrinho Carlo Borromeo, todas as questões relativas aos hereges (por exemplo,
o sequestro de seus bens e as pretensões da Câmara apostólica sobre eles). Em suma,
representou para todos os efeitos o poder papal do qual era legatário e foi um ouvido
atento voltado para as ameaças de heresia 23 • Nas instruções redigidas pelo novo núncio,
em maio de 1566, figurava em primeiro lugar o convite a

[... )permanecerem vigilância máxima naquelas partes da Calábria e naqueles lugares vizinhos
a Nápoles, onde se viu no passado alguma infecção de heresia, que os ordinários tenham vigários
não menos exemplares de vida quanto de inteligência, os quais usem de toda indústria e diligência,
para saber o modo e a vida que levam seus diocesanos e que proíbam conventículos, reuniões e con-
gressos noturnos, e também os diurnos , [... ) e para ter certeza daqueles que não vivem catolicamente
e não fazem obras e ofícios de cristãos, e para poder mais facilmente ou obrigá-los a se emendarem
ou remediar para que não infetem outros, seria bom persistir no modo e nas ordens já iniciadas e
providenciar que S. E. ordene aos governadores das províncias e dos lugares particulares que forneçam
sua ajuda e braço secular com segredo e prontidão aos bispos e seus vigários que os pedirem etc. ,
sabendo o senhor vice-rei que isso tende não menos à conservação, e paz daquele Reino, do que ao
serviço de Deus e à satisfação de S. Beatitude 24 •

A tentativa de Paulo IV de apoderar-se do Reino de Nápoles pelas armas tinha


fracassado; fora considerada por todos uma loucura e tornou-se um dos mais conspícuos
exemplos históricos do apego dos velhos aos mitos de sua juventude. Dali devia nascer
uma feroz polêmica sobre as responsabilidades daquilo que N iccolo Franco denominou
"ribaldo 25 velho": e nos julgamentos de então, enquanto Pio IV condenava à morte os
sobrinhos de Paulo IV e Pio V os reabilitava, foi envolvida a Inquisição romana, como
imagem e como estrutura 26 • Mas em tempos de paz a política papal continuou com

22. Carta circular, 13 jun. 1563 (cf. idem, pp. 512-513).


23. Cf., por exemplo, os despachos de Fieschi a Carlo Borromeo, idem, pp. 454 e 478.
24. Idem, pp. 534 e ss.
25. Embora dicionarizada (patife, pulha, trapaceiro), a palavra em português perdeu a acepção presente no contexto do
original italiano (soldado da Idade Média, ou servo que seguia os exércitos, dedicando-se aos saques) (N. do T.).
26. Personagem embaraçosa para a historiografia católica mais aberta, Paulo IV suscitou interesses e consensos
na tradição antiga e recente do catolicismo reacionário. Uma reavaliação do esquema "solidamente político"
de Paulo IV foi tentada por Alberto Aubert, Paolo IV Carafa nel Giudizio della Età della Controriforma, Città
di Castello, 1990. Sobre os termos em que foi colocada a questão no século XVI é fundamental o estud0 de
Massimo Firpo, ll Processo lnquisitoríale dei Cardinal Giooanni Morone, vol. I, Il Compendium, Roma, 1981.

A Inquisição
115

outros meios na mesma direção. Por ocasião da expedição antivaldense na Calábria e


na Apúlia, como vimos, a função inquisitorial mascarou-se de assistência religiosa aos
condenados à morte: a ligação direta entre pregadores jesuítas e papado executou de
maneira informal mas substancial os objetivos próprios do tribunal romano, que no
entanto encontrara o modo de não estar completamente ausente no Reino de Nápoles.
Assim, mesmo apresentando-se como baluarte da manutenção dos poderes exis-
tentes, o braço da Inquisição estendia de fato a centralização romana e a influência papal
sobre o vizinho e importantíssimo Reino de Nápoles (não de direito: pois ali o caminho
era barrado pelo governo madrileno, assim como o povo napolitano, demonstrando
"hostilidade" 27 , barrava a introdução da Inquisição espanhola).
A Inquisição espanhola era muito temida na Itália. A ameaça de introdução
da Inquisição "ao modo de Espanha" tinha suscitado e continuou a suscitar reações
negativas nos estados italianos. Somente na Sardenha e na Sicília foi possível implantá-
-la: a expulsão dos judeus que não quiseram se converter deu-se na Sicília com cerca de
dez anos de atraso em relação à Espanha. Mas dali em diante a atividade da Inquisição
foi dedicada predominantemente à caça aos judaizantes. Quando mais tarde também o
Reino de Nápoles passou a fazer parte dos domínios espanhóis, surgiu o problema se se
devia estender também àquele território a autoridade da Inquisição espanhola. Mas todas
as vezes que a proposta foi aventada suscitou reações negativas: protestos e ameaças de
possíveis revoltas aconselharam evitar essa medida e manter nos domínios italianos suas
tradicionais formas de administração da justiça. As revoltas napolitanas de 1510 e de
1547 contra a projetada introdução da Inquisição espanhola revelaram aos governantes
espanhóis o quanto o povo de Nápoles era "en esto articulo delicada y sospechosa" 28 •
Aconteceu o mesmo com o Estado de Milão: foram feitas ali inúmeras tentativas de
impor a Inquisição espanhola, mas todas entraram em choque com as reações hostis da
cidade. A mais importante ocorreu em 1563: Felipe II decidiu introduzir em Milão "o
ofício da Santíssima Inquisição ... ao modo da Espanha" e obteve um morno consenti-
mento do Papa Pio IV; mas a reação imediata e muito hostil da cidade e a ameaça de
uma nova sublevação em Nápoles bloquearam a iniciativa. Por fim, Filipe II, por meio
de uma carta de 8 de novembro de 1563, abandonou o projeto, ou melhor, declarou
jamais tê-lo concebido mas de ter apenas pensado em nomear um novo inquisidor com
mais autoridade do que o precedente 29 • Mas a coisa não terminou aí: as tentativas de
Felipe e as desconfianças dos milaneses continuaram por muito tempo e os apelos do
Senado de Milão contra a ameaçada Inquisição foram numerosos 30 •

27. "Esse povo demonstra hostilidade, duvidando ainda que a inquisição não lhe seja imposta" (Fieschi a Cario
Borromeo, Napoli, 18 dez. 1564; em Villani, "Origine e Carattere della Nunziatura di Napoli", op. cit. , p. 531).
28. Minuta de carta ao vice-rei de Nápoles, datada de 23 de junho de 1549, citada por Lopez, lnquisizione Stampa e
Censura nel Regno di Napoli, op. cit. , p. 38. Sobre a revolta de 1510, cf. Amabile, ll Santo Officio della lnquisizione
in Napoli, op. cit. , pp. 103-119.
29. Cf. Romano Canosa, Storia dell'lnquisizione in ltalia, vol. IV, Milano e Firenze, Roma, 1988, pp. 37 e ss.
30. · Um apelo do Senado de Milão a Felipe II contra a introdução da Inquisição, de 1565, pode ser encontrado
em Angiolo Salomoni, Memorie Storico-diplomatiche, Milano, 1806, reed. 1975, pp. 159-166.

Inquisição Romana e Estados Italianos

l
116

Por quais razões os estados italianos eram tão hostis? Diz-se que por medo do
sistema inquisitorial espanhol, pela fama de dureza que o circundava. Mas é uma respos-
ta superficial: a dureza que assustava as classes dirigentes não era aquela temida pelas
potenciais vítimas. É verdade que o medo daquele tribunal era grande. No mundo dos
imputados, nos discursos e nos julgamentos referidos nas sessões da Inquisição romana,
aludia-se frequentemente às diferenças entre um tribunal e outro, sobretudo quando
se tratava de pessoas que podiam cair sob a jurisdição da Inquisição espanhola. Por
exemplo, um espanhol de Valência que residia na Toscana e era acusado de praticar
encantamentos e magias com uso de hóstias consagradas, respondeu assim a quem 0
ameaçava mandá-lo de volta a Valência se não parasse de praticar coisas semelhantes:
"Em Valência eu não praticaria pois a inquisição de lá é mais rigorosa e não é tão amável
como aqui" 31 • Os judeus que emigraram da Espanha e se estabeleceram na Toscana -
onde podiam praticar abertamente sua religião - ao se encontrarem falavam do "grande
rigor de justiça que se usa em Espanha e Lisboa" 32 • Mas o ponto de vista das vítimas
não tinha muita importância. Não lhes cabia decidir. No Reino de Nápoles, a repressão
violenta contra a minoria religiosa dos valdenses, na Calábria, em 1561, e os processos
por heresia conduzidos pelos bispos com o auxílio das autoridades espanholas não
suscitaram qualquer reação de caráter geral e não diminuíram a fidelidade à Espanha.
Tratou-se de intervenções para eliminar, através da força , as minorias religiosas, que
tiveram caráter idêntico à violenta ação conduzida contra os mouros. Eram operações
cirúrgicas que suscitavam amplo consenso por parte do grupo religioso majoritário.
Mas não estavam-se dispostos a tolerar outras características do modelo espanhol: ele
fazia pesar a ameaça de um poder que não fazia caso das redes locais do privilégio, que
golpeava sem respeitar nem sequer os níveis elevados das hierarquias sociais, que pro-
cedia rapidamente ao confisco dos bens dos condenados: todos aspectos considerados
intoleráveis por quem tinha bens e prestígio a defender.
Não foi por medo da dureza do tribunal da Inquisição que se rebelaram os nobres
dos Países Baixos. E é justamente para a revolta dos Países Baixos - um acontecimento
de peso bem maior na história espanhola e europeia que as discussões italianas sobre
a introdução da Inquisição - que se deve chamar a atenção. Trata-se de um fato que
esteve ligado aos assuntos italianos. Os Países Baixos e o estado de Milão tiveram a
sorte singular de se apresentarem sempre contrapostos, como alternativos entre si, na
história das possessões dos Habsburgos. A imposição da Inquisição aos Países Baixos - e
a decisão de não implantá-la na Itália - acabou por resolver um problema que já se havia
colocado em várias ocasiões à política dos Habsburgos: o da escolha entre os domínios
italianos e os dos Países Baixos. Desde a época de Carlos V a questão foi tratada em

31. Denúncia anônima de 23 de setembro de 1579, em Archi1.1io Arci1.1esco1.1ile di Pisa(= MP), S. Uffizio, f. I, cc. n.
n. É um juízo confirmado pelo ótimo estudo de Ricardo Garcia Cárcel (Herejía y Sociedad en el Sigla XVI. La
lnquisición de Valencia 1530-1609, Barcelona, 1980, p. 216), segundo o qual o tribunal de Valência esteve "entre
los más duros del Santo Oficio".
32. Depoimento de Francisco Gómez de Morais, 4 jun. 1613, à inquisição de Pisa (MP, S. Uffizio, f. 4, cc. n.n.).

A Inquisição
117

várias ocasiões pelo imperador e por seus conselheiros. É uma história interessante,
por revelar também quais eram as posições espanholas em relação à Itália e aos Países
Baixos. É sabido que Carlos V teria preferido ocupar os Países Baixos, aos quais era
mais ligado e de cuja fidelidade sentia-se seguro, enquanto era mais desconfiado dos
domínios italianos, ou melhor, dos italianos em geral (para Carlos V, era possível contar
com a amizade dos italianos somente enquanto tudo corria bem). A escolha colocou-se .
após a paz de Crépy, em 1544, quando se tratou de optar entre duas alianças matrimo-
niais diferentes que custariam para Carlos V a renúncia a Milão, ou então a renúncia
aos Países Baixos e ao Franco-Condado. Nessa ocasião, foi o próprio duque de Alba
a sustentar que se devia manter Milão por ser "la puerta para ir y venir a Alemafia y
Flandes" , enquanto o arcebispo de Toledo e todo o partido castelhano insistiram nos
perigos, dificuldades e custos do domínio de Milão: pareciam mais seguras as posses-
sões hereditárias dos Países Baixos e mais fiel aquela população, ao passo que parecia
prudente abandonar os estados italianos com suas divisões , com a duvidosa fidelidade
da população e com os custos das longas guerras travadas . Havia até um julgamento
negativo sobre os italianos que era bastante difundido na cultura espanhola: um povo
dividido , inconfiável, de escasso valor militar33 •
A escolha de 1544 permaneceu em estado de projeto. Mas os argumentos usados
à época mostram a segurança que se tinha em relação aos neerlandeses e a desconfiança
em relação à Itália. A realidade histórica dos séculos sucessivos devia demonstrar quanto
estavam erradas as reflexões do partido castelhano representado pelo arcebispo de Toledo
e como a consolidação do poder espanhol na Itália estava ligada ao controle de Milão.
O momento da escolha entre Milão e os Países Baixos ocorreu no início do rei-
nado de Felipe II. Foi então que o mesmo projeto de instalar a Inquisição espanhola
foi aventado para os domínios italianos e para os Países Baixos. Na Itália, fracassou ;
nos Países Baixos, ao contrário, foi executado. Na Itália, houve somente ameaças de
revoltas; nos Países Baixos, ao contrário, a revolta aconteceu e levou ao desligamento
final desses territórios da coroa espanhola. Logo, é evidente que à introdução - ou à
fracassada introdução - da Inquisição espanhola deveu-se uma reviravolta política de
considerável importância para toda a história da Europa: os territórios italianos perma-
neceram fiéis à Espanha por pelo menos outros 150 anos. Ao contrário, as possessões
hereditárias dos Habsburgos nos Países Baixos tornaram-se independentes e o curso
da história europeia mudou. Existe um fio comum que liga esses acontecimentos: por
exemplo, as resistências napolitanas e milanesas fizeram-se bem presentes para quem
dirigiu o protesto dos Países Baixos contra a Inquisição: o exemplo de Nápoles foi citado
explicitamente nas capitulações subscritas pelos protestantes dos Países Baixos em 1565 34•

33. Cf. Federico Chabod, "Milano o i Paesi Bassi? Le Discussioni in Spagna sulla 'Alternativa' dei 1544", em
Carlo V e il suo Impero , Torino, 1985, pp. 187-224.
34. Cf. Alastair Duke, "Salvation by Coercion: The Controversy Surrounding the 'lnquisition' in the Low Countries
on the Eve of the Revolt'' , em Peter Newman Brooks (org.), Reformation Principie and Practice, Essays in Honour
of Arthur Geoffrey Dickens, London, 1980, pp. 137-156.

Inquisição Romana e Estados Italianos


118

Não podemos saber o que teria acontecido se as decisões de Felipe II tivessem


sido diferentes, ou seja, se tivesse imposto a Inquisição de rito espanhol à Itália e tives-
se usado de delicadeza nos Países Baixos. O curso da história da Europa certamente
teria sido diferente.
Mas devemos tentar entender qual foi o curso efetivo das coisas e qual era o lugar
da Inquisição em tudo isso. Entretanto, é necessário tentar entender o que tornava os
italianos tão hostis à Inquisição espanhola.
Antes de mais nada, deve-se recordar um ponto que já parece solidamente prova-
do35: não foi o temor da repressão contra os seguidores das doutrinas da Reforma que
desencadeou a reação dos Países Baixos contra os planos de Felipe II. As inquisições locais
tinham exercido uma duríssima ação anti-herética, as fogueiras de anabatistas tinham sido
numerosas, sem que faltasse o consenso das classes dirigentes: a responsável foi a defesa
dos tradicionais privilégios que a introdução desse tribunal teria abalado. Os projetos de
Felipe II relativos à criação de novas dioceses e o plano de um reordenamento total do con-
trole eclesiástico que se via por trás fizeram temer a passagem de um sistema inquisitorial
controlado localmente para algo profundamente diferente. A inovação pareceu política e
socialmente perigosa e passível de ser combatida, porque ameaçava privilégios e liberdades
tradicionais. Ora, também em Nápoles e Milão, a rejeição e o protesto diante da intenção
de Felipe II de introduzir a Inquisição espanhola foram sustentadas pelas mesmas razões.
Como demonstram as fontes, a resistência dos italianos à introdução da Inqui-
sição espanhola era alimentada e encorajada sobretudo pela nobreza e pelo clero, que
nisso encontravam ecos favoráveis em Roma. A posição papal em relação à Inquisição
espanhola pode ser resumida na resposta que o cardeal Michele Ghislieri deu ao jesuí-
ta Nadal, quando este lhe sugeriu o modelo da Inquisição espanhola nas práticas de
censura aos livros: "Roma impunha a lei à Espanha e ao mundo todo e não a Espanha
a eles" 36 . Era uma posição que encontrava fortes adesões na sociedade italiana, e não só
por nacionalismo retórico. A nobreza não tolerava a ideia de um poder judiciário capaz
de acabar com todos os privilégios, dependente apenas do poder do rei da Espanha. Tam-
bém o alto clero estava assustado com semelhante perspectiva, que significava transferir o
poder sobre eles da Cúria romana para o poder político. Com muita lucidez, o enviado
milanês ao Concílio de Trento, Cario Visconti, fez notar que "o uso da Espanha" era
que o soberano tinha poder sobre os prelados e o exercia através da Inquisição. Ora, se
na Itália semelhante sistema fosse admitido no estado de Milão, deveria ser concedido
também a Nápoles; e daí, todos os príncipes italianos pediriam "para poder fazer o mesmo
em seus estados, de onde se seguiria grande diminuição da autoridade desta S. Sé ... Os
prelados ... por causa da dita Inquisição, tentariam estar sempre bem com os Príncipes

35. Cf. F. E. Beemon, "The Myth of the Spanish lnquisition and the Preconditions of the Dutch Revolt", em
Archiv für Reformationsgeschichte, 85, 1994, pp. 246-264.
36. "Aviso" de Roma, relativo à reunião de 14 de janeiro de 1559 do Santo Oficio, em J. Hilgers, Der Index der
1559
verbotenen Bücher, Freiburg, 1904, citado a partir de Index des litJTes interdits, vol. VIII, Index de Rome 1557, •
1564, org. por J. M. De Bujanda, Geneve, 1990, p. 45 n.

A Inquisição
119

seculares" e por isso o papa perderia seu poder sobre o corpo eclesiástico italiano; nem
se devia dar crédito às declarações de fidelidade e de obediência da Inquisição espanhola
à de Roma, pois o exemplo do processo contra Bartolomé Carranza falava claro 37 •
Sobre a natureza real da Inquisição espanhola, sobre o fato de ser principalmente
um organismo político e estatal ou , ao contrário, um organismo eclesiástico, foram
aventadas hipóteses de vários tipos: foi observado com justiça que se tratou de um
organismo de natureza "mista" , que para se afirmar soube usar em cada caso específico
o instrumento do poder estatal e o de sua natureza eclesiástica 38 • Nos estados italianos,
o que se temia da Inquisição era um poder que ignorava qualquer privilégio e qualquer
isenção, capaz de proceder contra qualquer um. Preferia-se que em seu lugar houvesse
uma autoridade eclesiástica ordinária, dependente de Roma: melhor se fossem os bispos,
ligados às famílias dominantes.
As coisas aconteceram realmente dessa maneira. Não obstante novas tentativas
de introduzir a Inquisição "ao modo de Espanha" , de fato permaneceu em vigor um
sistema complicado, no qual os bispos agiam em assuntos inquisitoriais sob o controle
e a direção da congregação romana do Santo Ofício e com o auxílio dos inquisidores
nomeados por Roma. Disso resultou que a luta contra a heresia não foi conduzida pela
Inquisição espanhola, mas pelas autoridades eclesiásticas ordinárias, tanto em Milão
como em Nápoles. A questão da ameaça da heresia retorna continuamente na corres-
pondência entre o vice-rei de Nápoles e a corte, desde os tempos de Carlos V. Mas a
repressão da heresia foi confiada aos tribunais dos bispos, estimulados e assistidos pelos
poderes políticos locais. Em Roma, não sendo possível instituir um tribunal do Santo
Ofício específico, recorreu-se ou ao tradicional instrumento diplomático de presença e
de pressão política - o núncio - ou a uma presença mascarada da congregação romana
por meio de um seu representante semioculto.
A Inquisição, portanto, tanto em Milão como em Nápoles e em outros estados
italianos, foi um tribunal eclesiástico presidido por uma autoridade central: a congrega-
ção romana do Santo Ofício em cujo vértice havia o papa. Foi a única forma de poder
centralizado que funcionou na Itália durante toda a Idade Moderna. Isso deixou traços
importantes não só na história, mas também na realidade política italiana: uma forma
de alta soberania do papa sobre a Itália ainda é visível.
Quanto às características da ação inquisitorial de controle da sociedade italiana,
elas dependeram da natureza do sistema de controle: por se tratar de um poder totalmen-
te eclesiástico, em certa rivalidade com os tribunais laicos mais ou menos declarada, a
Inquisição preferiu formas brandas de intervenção, recorreu muito raramente ao braço
secular e serviu-se de maneira sistemática do auxílio dos confessores para conseguir

37. A carta, de 1563, foi publicada por E. Vega, "Il Município di Milano e l'Inquisizione di Spagna 1563", em
Archivio Storico Lombarda, s. 3, VIII, 1897, pp. 102 e ss. Cf. também Canosa, Storia dell'Inquisizione in Italia, 110!.
IV, op. cit., p. 35.
38. V. o lúcido ensaio de Franco Tomás y Valiente, "Relaciones de la Inquisición con el Aparato Institucional del
Estado", em La Inquisición Espanola. Nueva Visión, Nuevos Horizontes , org. por Joaquín Perez Villanueva, Madrid,
1980, pp. 41-60.

Inquisição Romana e Estados Italianos


120

penetrar nos segredos das consciências. Sua função de impor uma disciplina à socie-
dade realizou-se principalmente no que se refere às superstições e às práticas mágicas
populares, aos excessos no culto dos santos e nas devoções. Graças a um sólido sistema
de ligações com a igreja, a nobreza e o patriciado urbano não precisaram temer ameacas
particularmente graves por parte do poder da Inquisição. ·
Por todas essas razões, na tradição intelectual italiana, a imagem da Inquisicão
ligou-se à Igreja. De Paolo Sarpi a Pietro Giannone, a polêmica contra a Inquisição é u~a
polêmica contra a intromissão eclesiástica no campo dos poderes do estado: uma batalha
quase que só defensiva, de caráter anticlerical. É possível talvez encontrar nessa história
apenas sumariamente esboçada aqui, a explicação da diferença de orientação existente'
entre os historiadores italianos e os espanhóis: na Itália, os hereges foram preferidos
como tema de estudo por seu valor de testemunhas da liberdade de pensamento contra
um sistema de submissão das consciências que se valia de meios brandos, insinuantes,
invasivos. Na Espanha, ao contrário, sempre foi percebida por trás dos aspectos isolados
da história da Inquisição a presença de um poder monárquico central e de um projeto
de unificação estatal.

.
2. FLORENCA
Em Florença, capital de um "Príncipe novo" como foi indubitavelmente Cósimo I,
parece ter atuado por algum tempo uma magistratura específica, a dos "inquisidores
e comissários sobre as heresias". Não sabemos quase nada a esse respeito. Mas é certo
que ainda estavam em atividade muitos anos após a criação do Santo Ofício romano.
Em 1551, portanto quase uma década após o início oficial da nova Inquisição, a ma-
gistratura criminal de Florença - os Otto di Guardia e di Balia 39 - examinou a causa
pendente contra Ludovico Domenichi, acusado de heresia. Ocuparam-se do caso, ao
que parece, alguns "inquisidores e comissários sobre as heresias" , evidentemente uma
magistratura laica constituída por Cósimo I para fazer frente ao problema emergente
da difusão das ideias da Reforma 40 • E o caso em que aparecem seus nomes é de grande
interesse pelo entrelaçamento de propaganda religiosa e relações políticas que expõe.
Ludovico Domenichi, natural de Piacenza, foi literato original e espírito inquieto,
bom representante nesse aspecto do mundo das letras italianas da metade do século.
Gracas à nova relacão entre escrita e tipografia, criada pela difusão da imprensa, havia
boa; possibilidade~ de trabalho para tradutores e divulgadores: e Ludovico Domenichi
dedicou-se justamente ao ofício de tradutor e editor. Mas, para sua estreia, escolheu um
texto perigoso como nenhum outro: Excuse à messieurs les Nicodemites de Calvino,
um violento panfleto contra todos aqueles que, tendo abraçado as ideias da Reforma,

39. Antiga magistratura florentina, composta de oito cidadãos, que cuidava dos assuntos criminais e policiais da
República de Florença e depois do grão-ducado (N. do T.).
40. Dessa magistratura, que é indicada no documento publicado por Bonaini (cf. mais adiante, nota 40), desco-
nheço as vicissitudes.

A Inquisição
121

mantinham-se ocultos e n ão professavam abertamente sua fé . De cultura francesa ,


Calvino pensava sobretudo em seus antigos conterrâneos 41 ; mas suas tiradas polêmicas
contra os "protonotários delicados" que se dobravam docilmente aos ritos católicos da
missa e dos sacramentos para manter os próprios proventos pareciam feitas de propó-
sito para aquela sociedade italiana que tinha encontrado no benefício eclesiástico e na
Roma papal suas principais forças de coesão.
É compreensível, portanto, de que humores agressivos era fruto o estímulo a
projetar e levar a cabo a tradução e impressão desse livro: tratava-se, como constava da
ata dos Otto, de um "péssimo livro de heresia" , traduzido do latim para o vernáculo
"para que a falsíssima e péssima doutrina contida neste herético livro se espalhasse e
também infectasse as pessoas idiotas" 42• No decorrer de 1550, Domenichi tinha pu-
blicado aquele "péssimo livro" com a indicação de Basileia: mas fizera constar essa
indicação "falsa e iniquamente" porque tudo tinha acontecido "na cidade de Florença,
onde o dito inquirido promoveu e revisou a impressão" . Era um crime "contra a vontade
do ilustríssimo e excelentíssimo Duque, nosso senhor, e contra as leis e os estatutos,
e os bons e louváveis costumes, e as divinas e humanas leis" ; o culpado foi por isso
condenado ao confinamento perpétuo na torre da fortaleza nova de Pisa. Era tão só-
lida a jurisdição ducal sobre o crime de heresia que em pouco tempo o confinamento
perpétuo de Domenichi foi transformado em confinamento temporário no Cárcere
das Stinche e, finalmente , em permanência de um ano no convento dominicano de
Santa Maria Novella, mas com liberdade de entrar e sair e com todo o necessário para
poder "escrever e ler": uma recomendação de Renata de França e uma intervenção de
monsenhor Giovio, que contava com a ajuda de Domenichi para a impressão da versão
vulgar de suas Historie , obtiveram a graça de Cósimo 1.
Não foi a partir do caso de Domenichi que se formou a tradição historiográfica
para a Inquisição toscana, mas a partir do caso de Pietro Carnesecchi. Com um único
gesto, Cósimo I ganhou a fama de melhor executor dos desejos romanos. A extradição
de Pietro Carnesecchi - "audaz oferta" 43 , como foi definida, em troca do título grão-
-ducal - seu processo em Roma e a condenação à fogueira selaram com sinistra eficácia
os bons entendimentos políticos existentes entre Florença e Roma na época de Pio IV e
de Pio V. Mas na essência da gestão cotidiana, nem mesmo Cósimo renunciou a fazer
valerem seus direitos de soberano. Se em nenhum dos estados italianos era possível
alimentar dúvidas sobre a importância da relação com Roma, em Florença e na dinastia
dos Médici essa ligação era absolutamente vital: derivou daí a singular mistura de falta
de freios formais à ação inquisitorial e de equívocos substanciais que distinguiram a
situação toscana. Só em uma ligação de tipo quase natural, como a de mãe e filha - tal

41. Cf. C. Ginzburg, Il Nicodemismo. Simulazione e Dissimulazione Religiosa nell'Europa del 500, Torino, 1970,
pp. 122-124.
42. Publicado por F. Bonaini, "Dell'lmprigionamento per Opinioni Religiose di Renata d'Este e di Lodovico
Domenichi e degli uffici da essa fatti per la liberazione di lui secondo i documenti dell'archivio centrale di
stato", em Giomale Storico degli Archivi Toscani, III, Firenze, 1859, pp. 268-281 ; em particular pp. 272-273 .
43. Arnaldo D'Addario, Aspetti della Controriforma a Firenze, Roma, 1977, p. 159.

Inquisição Romana e Estados Italianos


122

era certamente a relação que ligava desde muito tempo Roma e Florença - era possível
chegar a colocar juntas a extradição de Carnesecchi com a abertura aos judeus portu-
gueses, declarada por Cósimo em 1558 e reforçada com a Constituição de Livorno de
1593. De resto, as crônicas florentinas contam como as sentenças contra os hereges
eram dosadas ao arbítrio de Cósimo, que era capaz de punir exemplarmente os "menos
nobres de sangue" , poupando os mais nobres (e "a muitos pareceu que faltava justiça",
anotou um cronista da época 44 ) . São anotações que revelam um aspecto importante
da justiça principesca e da inquisitorial especialmente: o príncipe não podia deixar ao
poder eclesiástico um instrumento como a Inquisição contra a heresia, sem renunciar
ao exercício não tanto de um poder estatal abstrato quanto do sistema concreto de
relações sobre o qual se apoiava sua hegemonia.
Por outro lado, a punição dos hereges fazia parte do ideal de príncipe cristão de
Cósimo I : empreendê-la primeiro e mais rapidamente do que os outros - os detestados
príncipes d 'Este, por exemplo - era um de seus objetivos. Não foi por acaso, prova-
velmente, que o título de inquisidor florentino tornou-se o de inquisidor da Toscana
mais ou menos no mesmo momento em que o inquisidor de Ferrara recebia o título
de responsável por todo o estado de Este 45 • Mas justamente por estar convencido de
que a subversão religiosa era a porta da subversão política - e bem sabendo, graças a
seus espiões, que em Roma a divergência religiosa era controlada e utilizada instrumen-
talmente em termos políticos - Cósimo quis manter-se ao corrente das investigações
inquisitoriais: príncipe "novo", temeroso de complôs e conjurações, queria ter um ouvido
no interior desse tribunal eclesiástico do qual, por princípio, era excluído. Além disso, o
sistema inquisitorial devia ser, segundo Cósimo, dirigido a partir da capital do ducado:
e isso em virtude de um plano de centralização e de eliminação da divergência que antes
ainda de ser religiosa era política. Por isso, nas relações com o tribunal da Inquisição,
pretendeu-se garantir ao soberano um poder de conhecimento das causas em curso que
foi menos formal do que o veneziano, mas nem assim menos eficaz. Ao cardeal de Tole-
do, que lhe demandava assistência para a execução das ordens do Santo Ofício, Cósimo
respondeu solicitando que os inquisidores lhe enviassem as informações que tinham "e
ele mesmo pensará em punir os hereges" 46 • Ora, as informações da Inquisição deviam
permanecer secretas para as autoridades não eclesiásticas: esse era o ponto principal em
toda a definição da natureza daquele tribunal. Mas no caso florentino, há numerosos

44. Do "Diario di Firenze dal 1536 al 1555", em Salvatore Caponetto, Aonio Paleario (1503-1570) e la Rifarmo.
Protestante in Toscana, Torino, 1979, pp. 235-237.
45. Cf. do autor deste volume "II Budget di un lnquisitore: Ferrara 1567-1572", em Schifanoia, II, 1986, pp. 31-
-40. Sobre Pietro Camesecchi cf. o verbete de A. Rotondo, em DBI, vol. XX, Roma, 1977, pp. 466-471 (a ser
completado com os dados revelados por Gigliola Fragnito, "Un Pratese alla Corte de Cosimo I. Riflessioni e
Materiali per un Profilo di Pierfrancesco Riccio", em Archi11io Storico Pratese, LXII, 1986, pp. 31-83; em particular
pp. 4 3-45 e notas). Sobre a construção do sistema estatal de Cosi mo I é fundamental o estudo de Elena Fasano,
Lo Stato Mediceo di Cosimo I, Firenze, 1973.
46. Arquivo Estatal de Florença, Carteggio Uni11ersale di Cosimo I, XXVI, f. 323, n. 5. Sobre o complexo jogo político
que se deu em tomo da Inquisição, v. Fragnito, "Un Pratese alla Corte de Cosimo !", op. cit.

A Inquisição
123

indícios de urna política de vigilância atenta em estabelecer limites precisos ao poder


da Inquisição corno tribunal eclesiástico governado por Roma. Em 1557 , quando o
Santo Ofício, manobrado por Paulo IV Carafa, demonstrou pretensões de jurisdição
sobre os judeus em matérias corno a usura , o sacrilégio e a blasfêmia, urna prática secreta
convocada por Cósirno especificou com clareza que tais matérias não faziam parte do
crime de heresia. Nessa ocasião foi admitido que "esta cidade (Florença) sempre per-
mitiu que os Comissários apostólicos executassem e punissem mais ou menos corno
lhes pareceu" . Mas não se devia seguir o modelo da Espanha, onde, anotava Francesco
Vinta, a Inquisição "abraça todas as coisas e de todos os excessos quer ter conhecimento,
condenar e confiscar" 47 • Por isso, antes de mais nada era necessário manter a definição
de heresia em âmbitos restritos e rigorosos: e se os judeus blasfemavam contra Cristo e
os santos, a corte secular devia se ocupar disso, corno para qualquer blasfêmia. Quanto
ao problema do conhecimento dos procedimentos inquisitoriais por parte do soberano,
ele foi resolvido de vários modos: ao mesmo tempo, corno ocorreu no caso Dornenichi,
membros do tribunal criminal dos Otto di Guardia podiam estar presentes junto com o
inquisidor. Não deveu-se tratar de urna presença esporádica, pois o modelo florentino ,
caracterizado pela presença de deputados laicos no corpo julgador, era um modelo
exemplar juntamente com o veneziano nas solicitações que outros príncipes italianos
dirigiam a Roma em matéria de inquisição 48 • Num primeiro momento (1551), foram
escolhidos corno comissários da Inquisição para todo o território do ducado algumas
personalidades caras a Cósirno I: o cônego Alessandro Strozzi, o monge beneditino
Isidoro de Montauto. Eles "conjuntamente com o Inquisidor conheciam as causas de
religião e participavam ao Governo as condenações a serem executadas" 49 • Num segundo
momento, confiou-se ao núncio apostólico a função de coligação entre a Inquisição
florentina, grão-duque e papado. Sucessivamente - a partir de 1570 pelo menos -
preferiu-se evitar a formalização dessas presenças de caráter político: os motivos não são
claros. É fato que depois dessa data recorreu-se à troca de informações caso por caso. O

47. Cf. A. Anzilotti, La Costituzione Interna dello Stato Fiorentina sotto il Duca Cosimo I de'Medici, Firenze, 1910,
pp. 190-193.
48. "[ ...] Que houvesse a intervenção de alguns leigos da cidade nos processos, valendo-se nesta demanda do
exemplo ora do duque de Saboia, ora dos Venezianos, ora de Florença, finalmente de Ferrara ... " (Carta de
Carlo Borromeo ao cardeal Rebiba, 28 fev. 1568, a propósito das solicitações feitas pelo duque de Mântua,
em Pagano, II Processo di Endimio Calandra, op. cit. , p. 81.
49. Fatti Attenenti all'lnquisizione e sua Istoria Generale e Particolare di Toscana (que apareceu anônima em Florença,
pelo editor Anton Giuseppe Pagani, 1782, mas de Francesco Becattini, cujo nome aparece na edição suces-
siva, Milão, 1797), pp. 127-128. O breve de designação dos comissários, datado de Roma, 24 dez. 1551, foi
descoberto em ASV, Minute di brevi, Giulio III, arm. 41, n. 62, 1043, c. 339ro, por Stefano Carrara, a quem
agradeço pela indicação. Sobre a estrutura do tribunal, na época de Pio IV e Pio V, ver do autor deste volume
"L'lnquisizione Fiorentina dopo il Concilio di Trento", em Annuario dell'lstituto Storico Italiano per l'Etd Moderna
e Contemporanea, vv. XXXVII-XXXVIII, 1985-1986, pp. 97-124 e 100-102. Uma atividade processual dos primei-
ros núncios em Florença, Giovanni Campeggi (1560) e Giorgio Comaro (a partir de 1561) foi registrada por
Lorenzo Baldisseri (La Nunziaura in Toscana, Cidade do Vaticano, Guatemala, 1977, pp. 44, 103 e ss.) com base
em algumas sentenças.

Inquisição Romana e Estados Italianos


124

grão-duque era diretamente informado pelos cardeais do Santo Ofício romano: Scipione
Rebiba primeiro, Giacomo Savelli depois mantiveram correspondência constante com
os grão-duques, aos quais faziam chegar pedidos para encarcerar e "mandar dessa vez"
a Roma as pessoas suspeitasse. Outras e mais detalhadas informações sobre os compor-
tamentos dos inquisidores no estado chegavam ao grão-duque através de seus juízes.
Aliás, era justamente esse controle substancial dos casos específicos que interessava aos
príncipes italianos: eram exigidas informações prévias ao encarceramento dos suspeitos
e informações sobre o que vinha à tona nos interrogatórios - e isso podia ser garantido
também mediante formas não institucionais, se, por exemplo, o notário que redigia os
autos do processo não era um frades 1• As autoridades de polícia do estado reservavam-
-se o direito de prender e perseguir os acusados de delitos inquisitoriais somente com
base em um consentimento que devia ser requerido a cada vez: e de Roma chegavam ao
tribunal florentino indagações preocupadas quanto ao tipo de informações que eram
dadas às autoridades laicas sobre as questões inquisitoriaiss 2• Por outro lado, a aprovação
das autoridades policiais era indispensável: se em Florença bastava controlar através
do alcaide quais pessoas tinham sido enviadas às Stinche pela Inquisição, na periferia
não se perdeu a ocasião de lembrar aos frades que o auxílio do "braço secular" devia
ser negociado caso a caso. Em Pisa, os frades de São Francisco, que em 1582 tinham
organizado uma solene abjuração de bruxas em sua igreja, tiveram que mandar as pes-
soas de volta para casa de mãos abanando porque o capitão dos esbirros recusou-se a
levar as duas rés da prisão à igreja, por falta de uma ordem específica do grão-duque
e, diante dos protestos dos frades, para cúmulo do desprezo, montou a cavalo e partiu
para o campo onde tinha coisas mais importantes para fazers 3 • No campo, por outro
lado, parece ter sido práxis normal para o inquisidor florentino ter relações com os
vigários do grão-ducado para executar as ordens do Santo Ofício. Prova disso é o caso
de um processo por bruxaria realizado em Pieve Santo Stefano, em 1603: o inquisidor

50. Cf. a documentação indicada por Valeria Marchetti, "Ultime Fasi della Repressione dell'Eresia a Siena nel
Tardo Cinquecento" , em Rassegna degli Archfoi di Stato, XXX, 1970, pp. 58-90.
51. Essas eram as solicitações do duque de Mântua em 1568: "que as capturas fossem comunicadas antes pelo
inquisidor; ... que se pegasse um notário que não fosse frade" (cf. a carta de Carla Borromeo supracitada, na
nota 48). Em Florença, Cósimo ordenou o depósito dos autos dos notários no arquivo público, em 1569 (e
por conta disso os depoimentos dos processos inquisitoriais foram, ao menos parcialmente, conservados no
arquivo do príncipe: cf. Valeria Marchetti, 'TArchivio dell'Inquisizione Senese. Rendiconto di una Ricerca
in Corso", em Bollettino della Società di Studi Valdesi , 93, 1972, pp. 77-83.
52. Em uma carta de 11 de outubro de 1577, o Santo Ofício romano solicitava ao inquisidor de Florença "que, tendo
sido observado [...] que seja necessário capturar, faça o Inquisidor a S. Alteza memorial a respeito, explicando
distintamente que recomendação tem a fazer o Inquisidor a S. Alteza, quer lhe fale em geral ou nomeie alguém,
que seja prestada conta do mérito da causa e dos indícios, se tal diligência deve ser feita para cada pessoa a ser
capturada ou só para algumas e para quem, se nisso surge alguma dificuldade imposta por alguém e por quê"
(ACAF, Miscell. S. Uffizio, b. 14: "Ristretto delle cose notabili cavato dalle lettere della S. Congregazione").
53 . O episódio, do qual restou documentação pontual nos calhamaços da Inquisição de Pisa (AAP, S. Uffizio, f. 3,
cc. n. n.), já foi narrado por Francesco Becattini, Fatti Attinenti all'lnquisizione e sua Istoria Generale e Particolare
di Toscana, Firenze, 1787, p. 143.

A Inq uisição
125

de Florença recebeu , "por ordem do Sereníssimo Grão-duque" , o processo feito pelo


vigário grão-ducal, transmitiu seu conteúdo ao Santo Ofício de Roma do qual fez saber
a vontade (que era a de libertar as duas bruxas): mas essa vontade só pôde ser executa-
da depois de um exequatur grão-ducal transmitido por carta do Auditor das Milícias 54 ,
onde se sublinhava que "na liberação que fará das duas mulheres, V. S. fará menção
não somente à referida carta do Padre inquisidor, mas dirá ainda que o faz por ordem
minha, como ministro e auditor de S. Alteza Real, e que na vigência desta confia-lhe a
liberação das duas mulheres" 55 •
De fato , a rede de vigários da inquisição romana cobriu a Toscana e com eles as
instituições judiciárias do grão-ducado dos Médici estabeleceram relações de colaboração.
O comissário florentino do Santo Ofício, ao qual coube o título de inquisidor-geral
da Toscana, foi escolhido entre os religiosos de confiança do grão-duque e frequente-
mente sobrepôs esse título ao de confessor pessoal do soberano 56 • Nesse panorama da
Toscana sobressai - aparentemente - a exceção de Lucca: mas trata-se, justamente, de
uma exceção só aparente. Em Lucca, uma longa batalha iniciada nos tempos do ponti-
ficado de Paulo III foi concluída com a renúncia à ameaçada introdução da Inquisição
romana. Foi o bispo a ocupar-se da defesa da fé tradicional; sua autoridade ordinária
atuou nos casos de heresia e de bruxaria. Ao lado dele, encontramos uma magistra-
tura citadina - o "ofício sobre a religião" - com deveres de polícia extraordinária em
matéria de fé . Uma solução do gênero foi obtida graças à posição de cidade imperial
e fiel aliada do imperador que Lucca soube manter. Mas a ameaça da introdução de
comissários delegados pela Inquisição romana permaneceu no horizonte da República
de Lucca: Roma deu-lhe ensejo a agitações toda vez que tentou obter uma ação mais
incisiva contra os "hereges", ou limitar o governo de Lucca a indulgentes conselhos. Foi
uma longa questão , que teve um momento dramático entre 1542 e 1545: a presença de
pregadores como Pietro Martire Vermigli e de humanistas como Celio Secondo Curio-
ne tinha despertado expectativas de reforma evangélica sobre efervecências políticas e
religiosas de uma cidade em crise, que não esquecera antigas paixões savonarolianas.
O entrelaçamento de esperanças políticas e religiosas que se tornou dramaticamente
visível nos complôs de Pietro Fatinelli e Francesco Burlamacchi tinha sua origem na
crise interna do regime oligárquico citadino, acelerada pela formação do poderoso
estado territorial toscano de Cósimo I. Nessas condições, a batalha pró ou contra a
Inquisição romana foi uma prova decisiva para o sistema de poder citadino. Admitir
uma autoridade externa com poderes excepcionais em matéria de religião significava
uma subversão radical das relações de poder: como em Milão, em Nápoles e, mais tarde,
nos Países Baixos em relação à Inquisição espanhola, assim em Lucca foi identificada

54. Membro da magistratura criminal florentina denominada "Otto di Guardia e di Balia" (N. do T.).
55. Arquivo de Estado de Florença, Segreteria di Gabinetto 155, fase. 8: "lnquisizione in processo di streghe fabbri-
cato da ser Leonardo Pasquino Pasquini da Loro, notaio del malefício dell'Illmo. Signor Baccio da Manente
Buondelmonti, nobile fiorentino, vicario dela Pieve S. Stefano, 1603".
56. Uma lista com os respectivos títulos foi elaborada por frei Antonio Benoffi, Series lnquisitorum Tusciae , cód.
698 da Biblioteca Antoniana de Pádua.

Inquisição Romana e Estados Italianos


126

na Inquisição romana uma ameaça de poderes externos, centralizados, refratários ao


sistema de composição interna dos interesses guiada pelas classes dirigentes locais. A
questão n ão dizia respeito à presumida severidade da Inquisição como tribunal, mas
justamente a seu caráter externo, não componível com a dinâmica dos interesses e dos
poderes locais. Isso pôde ser visto com clareza quando Paulo III, em 1543, para contornar
as resistências de Lucca, ofereceu entregar o controle da ortodoxia a um vigário do bispo
com poderes especiais: os Anciãos de Lucca trataram de repelir a oferta do remetente,
afirmando que não havia necessidade de mudar nada, que em Lucca via-se "seguirem
o antigo culto, pregarem os ofícios divinos , frequentarem as igrejas" 57 • Tudo ia bem
assim como estava: a vinda de fora de qualquer autoridade, episcopal ou inquisitorial
que fosse , era uma ameaça intolerável para um regime oligárquico citadino que havia
muito tempo fizera da religião um instrumento de conservação.
Assim, em Lucca, as coisas pelo menos formalmente não mudaram. E no entanto,
também em Lucca, como em Nápoles, o Santo Ofício romano exerceu um controle de
fato dos assuntos inquisitoriais. Não só - como veremos mais adiante - os instrumentos
do governo pastoral, como os visitantes apostólicos, foram, em caso de necessidade,
levados a funções policiais, mas foi a própria congregação romana do Santo Ofício a
dirigir a atuação do bispo de Lucca e a coordená-la com os tribunais toscanos da Inqui-
sição. Basta um único exemplo: em 1589, uma instrução detalhada do cardeal San toro
dispunha que uma meretriz de Lucca, chamada Giovanna, que já tinha deposto diante
do tribunal episcopal de Lucca a respeito de um caso de furto de hóstias consagradas
para fins de feitiçaria, fosse posteriormente examinada mediante o emprego de tortura:
depois o auto do processo devia ser expedido ao inquisidor florentino para completar
um processo contra um grupo de meretrizes 58 • Nesse contexto, portanto, o bispo atuava
formalmente como uma engrenagem inquisitorial, mesmo permanecendo no âmbito
dos mecanismos do poder citadino.
Quanto ao Ofício sobre a religião, instituído em 1545, era composto pelo gonfalo-
niere59 de justiça e por três cidadãos (e, a partir de 1549, também por dois Anciãos). Ele
atuou, pelo que se sabe 60 , contra os acusados de heresia com procedimentos diferentes
daqueles da Inquisição: é singular, por exemplo, o fato de que os hereges "relapsos" ,
ou seja, praticantes do mesmo crime pela segunda vez, podiam ainda ser agraciados
pelo Ofício de Lucca, enquanto para a Inquisição deviam ser condenados e transferi-
dos para o braço secular. O Ofício devia colaborar com o bispo e garantir o empenho

57. Carta dos Anciãos ao orador Giovambattista Bernardi, 9 jan. 1544, reportada por Simonetta Adorni Braccesi,
"Una Città lnfetta", op. cit., p. 160.
58. Carta datada de Roma, 18 nov. 1589, conservada em Bruxelas, Archives générales du Royaume, Archives
ecclésiastiques 1928 3ter, cc. 464r-467v.
59. "Gonfaloniere di Giustizia": magistrado instituído em 1298, em Florença, para tutelar os direitos do povo
(N. do T.).
60. Cf. S. Adorni Braccesi, "La Reppublica di Lucca e l'"Aborrita" lnquisizione: Istituzioni e Società", em
L'lnquisivone Romana in lta.lia nell'Età Moderna, anais do seminário internacional (Trieste, 18-20 maio 1988),
Roma, 1991, pp. 233-262.

A Inquisição
127

do governo citadino no controle da ortodoxia: era-lhe confiada a tarefa de verificar se


todos os habitantes de Lucca observavam rigorosamente a obrigação de se confessarem
e comungarem anualmente e se não comiam carne nos dias proibidos. A seu serviço
havia um "explorador" ou espião para as investigações secretas necessárias . A fronteira
móvel das tratativas entre a cidade e Roma deu lugar, no decorrer do século, a uma
pressão romana menor, à medida em que a consistência do calvinismo diminuía em
Lucca; o preço real do fracassado ingresso da Inquisição em Lucca foi, na realidade,
a emigração dos dissidentes, enquanto a conexão entre os instrumentos de controle
ordinário oferecidos pela estrutura diocesana e os da magistratura extraordinária do
Ofício predispunham uma grelha particularmente eficaz para a afirmação do confor-
mismo religioso.

3. VENEZA
Entre os estados maiores, Veneza ocupava um lugar especial: única autêntica potência
italiana, sua capacidade de unificar politicamente a península fora definitivamente
bloqueada pelo papado com a batalha de Agnadello. Mas continuava a ser um estado
de muita importância; dentre outras coisas, por suas relações comerciais e por sua
posição geográfica era ligado mais do que qualquer outro estado italiano ao mundo
alemão e, por conseguinte, estava exposto à difusão das ideias da Reforma. Por isso,
as relações que ali foram criadas entre inquisição eclesiástica e inquisição de estado
foram , tanto na época como depois, objeto de discussões e análises contínuas. O mo-
mento mais alto foi registrado pelo relato de Paolo Sarpi sobre as origens e o caráter
do ofício da Inquisição em Veneza: a obra de Sarpi, que a primeira edição impressa
em 1638 apresentava como "pia, douta e curiosa, muito necessária a conselheiros,
casuístas e políticos" 61 defendia a tese do caráter misto do tribunal veneziano como
decorrente de uma longa tradição de governo autônomo da vida religiosa. Fruto
póstumo de um conflito que vira pela primeira vez pôr em discussão os poderes da
inquisição em um estado italiano, o texto de Sarpi, porém, estava destinado a circular
somente fora da Itália e a chegar a mãos italianas só por caminhos complicados. Foi
traduzido para o latim, garantindo-lhe assim ampla circulação, por Andreas Colvius
de Dordrecht, que vivera em Veneza de 1620 a 1627 no séquito do enviado holandês
e tivera relações com Sarpi e com Galileu 62 • Como já acontecera com a mais célebre

61. Paolo Sarpi, Historia della Sacra lnquisitione Composta dal R. P. Paolo servita, ed hora la prima oolta posta in luce,
opera pia, dotta e curiosa a consiglieri, casuisti e politici molto necessaria, Serravalle, Fabio Albicocco, 1638; a obra,
que chegou imediatamente às mãos do Santo Ofício, foi vista como produto da "ímpia forja" calvinista de
Genebra, como observa Francesco Albizzi em sua Risposta all'Historia della Sacra lnquisitione Composta dal R. P.
Paolo Servita..., publicada em Roma, em 1678, mas "escrita certamente quarenta anos antes" (A. Rotondo, "La
Censura Ecclesiastica e la Cultura", em R. Romano e C. Vivanti [orgs.), Storia d'ltalia, vol. V, I Docurnenti,
Torino, 1973, pp. 1399-1492; ver p. 1476 n).
62. Historia lnquisitionis P. Pauli Veneti. Cui adiuncta est Confessio Fidei, quam ex ltalica língua Latinam fecit Andreas
Colvius, Roterdam, typis Arnold Leers, 1651.

Inquisição Romana e Estados Italianos


128

lstoria del Concilio Tridentino , também nesse caso a obra de Sarpi estimulou uma res-
posta polêmica e apologética por parte de Roma, de autoria de Francesco Albizzi,
um prelado que à longa e direta prática em questões inquisitoriais pôde acrescentar
o recurso "à pura, e sincera fonte dos registros originais , depositados nos Arquivos
Apostólicos" 63 • A questão que esteve no centro da polêmica dizia respeito aos direitos
da jurisdição inquisitorial em relação a uma grande quantidade de matérias das quais,
segundo Sarpi, o estado tinha tradicionalmente direito de controle. Era um problema
delicado e fundamental , que podia ser posto somente na Itália pela concomitante
presença de um poder romano centralizado e exclusivo em matéria inquisitorial e de
um estado como o veneziano que conservava zelosa memória de um modo diferente
de governar as muitas vertentes da vida social que , por fim, passaram a pertencer ao
âmbito inquisitorial e eclesiástico. Mas as condições da sociedade italiana eram tais
que a discussão foi sufocada ao nascer: a obra de Sarpi foi publicada fora da Itália,
como foi dito. Quanto à resposta de Albizzi, tinha o mérito de apoiar-se na pesquisa
erudita das fontes documentais, segundo o modelo que a historiografia católica tinha
imposto já com Baronio, na discussão com os autores das Centúrias de Magdeburgo.
Mas essas fontes permaneceram fechadas, na época e depois , à investigação histórica
e a própria obra de Albizzi sofreu os efeitos da desconfiança que então pesava sobre
qualquer forma de conhecimento histórico.
A polêmica sarpiana contra o papado romano e sua invasão deixou uma marca
duradoura na historiografia relativa à Inquisição: à acusação de Sarpi, que via nas
instituições de controle da ortodoxia o projeto de um domínio total (totatus) con-
cebido em Roma, que avançava ameaçadoramente nos estados italianos, a historio-
grafia católica oficial respondeu, na época e depois, afirmando de um lado a tese da
excepcionalidade do perigo herético que se corria em Veneza - tão grave a ponto de
determinar o uso de meios extraordinários, como era a congregação romana do Santo
Ofício - e de outro o caráter normal, tradicional da jurisdição eclesiástica sobre os
crimes de heresia.
Não iremos mencionar nem sequer em linhas gerais os resultados das muitas
pesquisas existentes sobre a Inquisição veneziana e sobre as muitas matérias que pas-
saram por suas mãos - desde o problema do controle das publicações ao dos judeus,
até os casos individuais de particular importância (como foi a extradição de Giordano
Bruno) 64 • Mas a questão que aqui nos diz respeito não se pode dizer que tenha sido
ainda completamente esclarecida: trata-se, enfim, do modo como o controle da ortodoxia

63. Francesco Albizzi, Risposta all'Historia dela Sacra lnquisitione, op. cit. , p. 3. A obra, cuja primeira edição foi pu-
blicada por volta de 1670, teve uma segunda edição (de onde provém a citação) "corrigida dos erros passados"
por volta de 1678, pela Tipografia di Propaganda: cf. E. van der Vekené, Bibliotheca Bibliographica, n. 4024,
4026, 4027. Sobre Albizzi, ver o verbete de A. Monticone em DBI, vol. 2, Roma, 1960, pp. 23-26 e sobretudo
o já citado ensaio de A. Rotondo, "La Censura Ecclesiastica".
64. Último volume a tratar de toda a questão é o de Canosa, Storia dell'lnquisizione in Italia, op. cit., vol. II, "Veneza",
Roma, 1987. Sobre os luteranos alemães em Veneza, o estudo de Stefan Oswald (Die Inquisition, die Lebenden
und die Toten. Venedigs deutsche Protestanten, Sigmaringen, 1989) é genérico e pouco atualizado. Mas veja-se

A Inquisição
129

no estado veneziano foi exercido nos anos imediatamente precedentes e sucessivos à


instituição da congregação romana.
Ora, para a República de Veneza, a data decisiva não foi tanto 1542 como 1547:
a solução que governou o mecanismo da Inquisição no estado veneziano foi posta
em funcionamento nesse ano com o decreto ducal de Francesco Donà, que criava
a magistratura dos Três Sábios contra a heresia; deviam "diligentemente inquirir
contra os hereges .. . e estar junto com o Reverendíss imo Legado e seus ministros ,
com nosso Reverendo Patriarca e seus ministros e com o venerável inquisidor da
perfídia herética" 65 • Não era uma solução definitiva; sobre os modos desse "estar
junto" os debates deviam ser demorados . Mas era a adesão às ordens romanas que
fechava uma fase de incertezas , temores e ilusões políticas e religiosas . Era uma es,
colha politicamente importante. A vitória contemporânea de Carlos V em Mühlberg
contra a Liga de Schmalkalden pôs fim às últimas tentativas venezianas de manter
alguma distância da potência habsburguesa e de praticar uma política de boas relações
com os estados protestantes alemães . A questão certamente não era de somenos
importância : a Liga protestante chegara a ter um embaixador próprio em Veneza e
muitos esperaram - ou temeram - uma vitória das ideias luteranas na República.
Desse momento em diante , a questão mudou de natureza, ou pelo menos teve um
lugar diferente onde se inflamar, tornando,se problema da relação entre a compo,
nente laica dos "três sábios" e a eclesiástica no interior do tribunal da fé . Também
na polêmica de tom mais elevado, a dos escritos de Sarpi e de Albizzi, a discussão
concentrou,se na natureza jurídica da presença dos delegados laicos - os "sábios
contra a heresia" - nos procedimentos da Inquisição veneziana: era uma presença
muda e sem qualquer direito de interferir no julgamento, ou então, esses delegados
tinham poderes judiciários efetivos? Quem sustentava esse último ponto, remetia,se
a precedentes históricos de intervenção das autoridades laicas em matérias inquisi,
toriais , com revisão das sentenças eclesiásticas: fora esse o caso da intervenção das
autoridades laicas nos processos contra bruxas e feiticeiros em Valcamonica (1518) 66 •
Pesquisas recentes demonstraram que a questão do controle político da práxis dos
inquisidores já era vivamente referida por volta de 1518, quando ocorreu a terrível
caçada às bruxas de Valcamonica 67 • Esse precedente estivera efetivamente presente
no governo veneziano: quando , em uma "parte" de 1550, foi estendido a todo 0
domínio o princípio da presença das autoridades laicas ao lado dos ordinários e dos

agora, sobre o contexto social da heresia em Veneza, John Martin, Venice 's Hidden Enemies. ltalian Heretics in a
Renaissance City, Berkeley/Los Angeles/London, 1993.
65. Decreto ducal de 22 de abril, em G. Sforza, "Riflessi della Controriforma nella Reppublica di Venezia", em
Archivio Storico Italiano, 92, 1935, p. 196; sobre a magistratura o estudo prosopográfico de P. F. Grendler, "The
Tre Savi Sopra Eresia 1547-1605: A Prosopographical Study", em Studi Veneziani, n .s. 3, 1979, pp. 283-340,
demonstrou que foram chamados a participar os patrícios venezianos mais importantes e de maior autoridade.
66. Cf. Francesco Albizzi, Risposta all'Historia della Sacra Iriquisitione, op. cit. , pp. 52-54 e 86-87.
67. Cf. Andrea Del Col, "Organizzazione, Composizione e Giurisdizione dei Tribunali dell'lnquisizione Romana
nella Repubblica di Venezia (1500-1550)" , em Critica Storica , XXI/, 1988, pp. 244-294.

Inquisição Romana e Estados Italianos


130

inquisidores, tornou-se explícita a referência a "uma parte velha já tomada por conta
dos feiticeiros em Brescia" 68 •
Mesmo então não se tratara de opor à Inquisição eclesiástica instrumentos e
métodos mais cautelosos e atentos em relação aos acusados: como se veria com fre-
quência em matéria de bruxaria, os governos laicos eram favoráveis - mais do que os
juízes eclesiásticos - a intervenções drasticamente punitivas que iam de encontro aos
anseios da população. Das dificuldades e dos conflitos que se desencadearam então
tinha-se saído com uma solução que se devia revelar com muito futuro : tinham sido
conferidos poderes de supervisão e de controle inquisitorial ao núncio pontifício. Com
os núncios sucessivos - Girolamo Aleandro, Girolamo Verallo , Giovanni Della Casa -
a autoridade do núncio como juiz de primeira e de segunda instância e, sobretudo,
como mediador institucional na relação entre Roma e Veneza revelou-se no impulso
dado à atividade inquisitorial nos anos da luta contra os "luteranos" 69 • Ao aumento da
importância de semelhantes matérias deve-se a criação da magistratura veneziana dos
três "sábios" sobre a heresia (1547): eles foram redutivamente apresentados corno "me-
ros assistentes" desprovidos de poderes judiciários, mas eram obviamente muito mais,
levando com sua presença, se não a voz, ao menos os olhos e os ouvidos do governo
veneziano em todas as passagens da atividade inquisitorial. Na realidade, houve até a
participação ativa dos membros laicos na ação do tribunal: mas suas intervenções, por
comum acordo, não foram registradas 70 •
Essa questão da presença de leigos é a questão que a ótica jurisdicional mais tardia
do conflito Estado-Igreja carregou de implicações não justificadas. Não se tratava de
opor uma legislação estatal em matéria processual a uma legislação eclesiástica, nem de
evitar que os membros de um estado fossem julgados por autoridades de outro poder
externo a esse. Tratava-se mais simplesmente de garantir toda informação ao governo
sobre o que surgia na atividade desses tribunais . Para isso, os governos republicanos
recorreram à presença de delegados laicos, expressos pelos órgãos consiliários de go,
verno citadino, enquanto os governos principescos recorreram a meios de outro tipo.
A presença de membros laicos caracterizava as inquisições de Veneza e Gênova
(ao passo que em Lucca, como foi visto, os laicos eram os titulares de uma magistratura
autônoma em matéria de heresia). Não era certamente uma variante de pouca importân-
cia em relação ao modelo romano de procedimentos. Eram feridas duas características
fundamentais do processo inquisitorial, o segredo e a exclusiva competência eclesiástica.
Ainda assim, em Roma essas variantes em relação ao esquema fundamental tinham sido

68. Referência de Ludovico Beccadelli em carta a Bernardino Maffei, 5 set. 1551 (Nunziature di Venezia, vol. V, org.
por Franco Gaeta, Roma, 1967, p. 280).
69. Sobre a obra de Aleandro como inquisidor em matéria de heresia, ver as fontes em idem, vol. I (1533-1535),
Roma, 1958. Ali, em particular, os despachos relativos aos exames dos textos na causa por heresia contra o
pregador Giambattista Pallavicini (sobre o qual cf. Adrianus Staring, "Giambattista Pallavicini, O. Carm. e la
eterodossia italiana nel Cinquecento", em Carmelus, XN, 1967, pp. 142-183).
70. Cf. Andrea Del Col, 'Tlnquisizione Romana e il Potere Político nella Repubblica di Venezia (1540-1560)",
Critica Storica , XXVIII, 1991, pp. 189-250.

A Inquisição
131

aceitas para poder contar com a colaboração desses governos. Quanto às rachaduras
nas normas fundamentais da práxis que tais deformidades implicavam, cuidava-se de
regular as coisas no plano formal de modo a limitá-las o máximo possível: os delegados
laicos estavam obrigados ao segredo e a presença deles não significava colaboração na
condução dos processos. E, no entanto, visto que representavam o governo, era óbvio
que aquilo que era tratado no tribunal da Inquisição destinava-se a ser relatado o quanto
antes às autoridades das duas Repúblicas. Em Gênova, conforme uma "memória" do
inquisidor redigida por volta de meados do século XVI, o procedimento era informar
dois representantes do governo (os "protetores do S. Ofício") somente quando uma
investigação secreta preliminar trouxera à tona indícios tais a ponto de tornar necessária
a captura do acusado; a partir desse momento , os "protetores" assistiam às fases suces-
sivas do procedimento e podiam, se solicitados, exprimir seu parecer (que era levado
em conta) aos membros eclesiásticos do tribunal7 1• Os "protetores" eram constituídos
por uma magistratura surgida por volta de 1539, numa fase em que ao governo genovês
parecera que o inquisidor era "pessoa .. . fria e um tanto tímida" 72 • Este era um lugar
comum da oposição entre a justiça do estado, que se pretendia rápida e exemplar, capaz
de satisfazer às exigências dos súditos, e a pouca eficácia visível dos procedimentos ecle-
siásticos. Tentara-se então manter sob o controle da república a gestão da luta contra a
heresia, propondo a escolha de um inquisidor que não fosse "forasteiro", mas cidadão,
e que fosse ladeado por uma comissão de nomeação política.
Exigências análogas em Veneza levaram à presença de delegados laicos no tribunal
do Santo Ofício.
Para entender as razões dessa verdadeira guinada ocorrida em 1547 , mais que re-
percorrer a longa série de interpretações e de polêmicas jurisdicionais que surgiram daí,
é necessário tentar entender o clima interno veneziano da época e a posição política da
República no sistema das potências europeias. A guinada de 1547 coincidiu com a vitória
de Carlos V contra os protestantes alemães. É evidente que não houve necessidade de
uma dose particular daquele realismo político, que fazia a fama do governo veneziano,
para perceber que na Itália o jogo era conduzido pelos Habsburgos segundo o princípio
da luta contra a heresia e, portanto, em necessária coligação com o papado. As coisas
tinham mudado muito desde os tempos da Liga de Cognac, quando o embaixador
veneziano Gaspare Contarini ainda tentava afastar o papa da aliança com Carlos V,
com o argumento de que o papa devia cuidar mais da "Igreja universal" e menos de
sua condição de "príncipe da ltália" 73 • Mas deve-se ainda levar em conta o alarme

71. A memória foi publicada por G. Bertora S. l., "II Tribunale Inquisitório di Genova e I'lnquisizione Romana
nel '500 (alla Luce di Documenti lnediti)", em La Citiiltà Cattolica, 18 abr. 1953, n. 2468, pp. 173 e ss. Ver
também Canosa, Storia dell'lnquisizione in ltalia, op. cit., vol. III, pp. 131 e ss.
72. Cita-se uma carta das autoridades de governo genovês ao vigário-geral dos dominicanos, 14 abr. 1539, em M.
Rosi, "La Riforma Religiosa in Liguria e l'Eretico umbro Bartolomeo Bartoccio", em Atti della Società Ligure
di Storia Pátria, XXIV, 1892, p. 67.
73. O discurso foi feito nesses termos por Contarini a Clemente Vil, em 2 de janeiro de 1529 (F. Dittrich, Regesten
und Briefe eles Cardinais Gasparo Contarini [1483-1542), Braunsberg, 1881, p. 41).

Inquisição Romana e Estados Italianos


132

crescente devido à ameaça de conventículos heréticos com suas confusas aspirações a


uma mudança do sistema existente: profecias e planos políticos, ideias de renovação
evangélica e ligações com os príncipes protestantes constituíam uma mistura inquietante
para a ordem constituída e para seus responsáveis. A propaganda papal, de resto, jamais
deixara de agitar diante das autoridades venezianas o fantasma da subversão política
como produto da heresia. As alusões aos "frutos podres" 74 que ameaçavam a integri-
dade da sociedade veneziana multiplicaram-se nos despachos diplomáticos de Roma
e pontuaram com eficácias as solenes invocações dos breves pontifícios. E podiam ser
encontradas correspondências entre essas invocações e as insinuações nas declarações
que os notários registravam durante os processos contra os suspeitos de luteranismo.
O clima veneziano daqueles anos foi bem interpretado por uma personagem a quem
decerto não faltou faro para as novidades: Guillaume Postel. No processo ao qual foi
submetido em Veneza, em 1548, Pastel foi convidado, entre outras coisas, a esclarecer
uma alusão que fizera a uma personagem absolutamente inominável em Veneza, Tiepolo
e sua famigerada conspiração e pediram-lhe contas de suas obscuras profecias. E Pastel:
"O espírito me diz que Veneza corre grande perigo e precisa continuamente de que
lhe façam orações para que se converta a Deus". E ele pessoalmente esperava e rogava:
"Eu espero ver uma grande conversão nesta cidade, pois que assim me diz o espírito e
vejo que o diabo tem mais inveja desta cidade do que qualquer outra sob o céu". Mas
o espírito podia falar até com mais clareza: "Nesta cidade há grande abundância de
luteranos, sacramentários e ímpios e sobretudo na juventude".
A admoestação que lhe fizeram é por si só um documento eloquente do estilo
predileto das autoridades venezianas nesses assuntos: "Ele merecia louvores por essas
boas ações, mas não devia mais nomear Tiepolo e outros" 75 • Era preciso aplacar, tran-
quilizar: mas também era preciso intervir rapidamente e silenciosamente contra esses
focos de infecção.
De resto, ainda que a colaboração da polícia inquisitorial fosse apreciada, não
se pretendia deixar a ela o monopólio de seus conhecimentos. Sabia-se bem que a rede
eclesiástica era capaz de se apoderar dos segredos depositados nas consciências. Mas não
se lhe pretendia permitir dar vida, com o tribunal inquisitorial, a um centro secreto de
poder no interior da República; queria-se conhecer as declarações das testemunhas, as
confissões dos acusados por aquela necessidade de controlar até os pensamentos dos
súditos que caracterizava o poder político. E foi justamente por motivos políticos que
se renunciou em Veneza a qualquer defesa de prerrogativas abstratas para, em vez disso,
buscar a colaboração com as autoridades romanas.
Os tempos dessa progressiva mas nunca total adequação às exigências romanas
falam claro. E um passo posterior foi dado em 1551, por ocasião da descoberta da or-
ganização anabatista que se alastrara no Vêneto. Mas tratativas e compromissos jamais
eliminaram completamente as diferenças de posição, tanto que os procedimentos in-

74. Cf. despacho de Francesco Contarini de Bruges, de 1540, supracitado, cap. II, n. 45.
75. Essa parte do processo de Postei foi registrada e conservada em cópia (ASVen., S. Uffizio, b. 160).

A Inquisição
133

quisitoriais em Veneza jamais corresponderam completamente ao modelo oficial, que


desejava esse tribunal entregue somente a juízes eclesiásticos e exclusivamente governado
por Roma. A imposição da presença de membros laicos foi o preço da introdução do
tribunal romano em Veneza; e ela se tornou , com a "parte" de 1550, a regra para todo
o domínio vêneto.
Na variada e confusa argumentação que acompanhou então os movimentos das
forças em jogo, foi dito e repetido pela parte romana que em Veneza não se fazia o
necessário para combater a heresia: mas a acusação era repetida então por Veneza con-
tra Roma. De fato , no decorrer dos séculos seguintes os argumentos romanos tiveram
maior circulação, mesmo porque a acusação de então transformou-se com o tempo
em um reconhecimento positivo, como se Veneza tivesse se mostrado mais tolerante
em relação às novas ideias ou até inclinada a seguir o modelo da Reforma alemã. Mas
as acusações venezianas às autoridades romanas , de pouca eficiência e pontualidade
na execução do que lhes competia, são parecidas com todas as outras que se fizeram à
época, de Milão a Florença, de Módena a Lucca: o coro dizia por toda a parte a mesma
coisa: que Roma deixava de fazer ou fazia mal sua parte, mantendo e aumentando de
todas as maneiras os privilégios monásticos que obstruíam o caminho de urna decisiva
justiça laica. Quanto ao confuso mundo eclesiástico, onde bastava a tonsura clerical
para escapar à justiça laica, a irritação das autoridades temporais era forte e difusa. Os
reitores venezianos mandavam mensagens alarmadas das cidades do domínio. Um único
exemplo, dos muitos que estão documentados nos arquivos venezianos, dará o colorido
daqueles anos: em Pádua, em 1543, um padre foi detido e processado por ter ferido um
homem. Durante o processo vieram à tona outros crimes contra a fé: blasfêmias, insultos
ao papa, elogios a Lutero ("Martinho Lutero se não tivesse tirado os bens dos padres
seria até adorado por Deus"). O podestade transferiu o processo ao vigário episcopal: as
autoridades eclesiásticas não só se recusaram a "tomar providências" a respeito , corno,
em sinal de protesto, suspenderam os ofícios religiosos. Quando o podestade foi assistir
à missa, os padres recusaram-se a celebrá-la: e de nada valeu a invocação irritada de que
quem negava missa ao potestade "negava à Ilustríssima Senhoria" 76 •
Polêmicas e protestos, portanto, tinham sua origem no mal funcionamento do
controle da fé e dos costumes. Se os núncios pontifícios lamentavam a propagação da
heresia e o escasso auxílio das autoridades laicas, da parte veneziana os protestos eram
contra um clero corrupto e incontrolável e medidas de prevenção eram multiplicadas.
E é justamente no jogo das partes que recuperamos a maneira difusa de compreender
deveres e natureza da tutela da fé .
Competia às autoridades eclesiásticas romanas , na interpretação veneziana, o
dever de cuidar daquele anárquico mundo monástico que escapava ao sistema territorial
do estado, ou que de todo modo era protegido por uma muralha de privilégios. Mas
quem detinha o governo do estado considerava seu o âmbito da vida religiosa e estava

76. o episódio é contado por Francesco Lippomano, podestade de Brescia, aos chefes do Conselho dos Dez (carta
de 3 de setembro de 1543 , em ASVen. , S. Uffizio , b. 160, cc. n. n.)

Inquisição Ro mana e Estados Italianos


134

decidido a tutelar a fé , intervindo nas muitas matérias em que percebia uma ofensa à
ortodoxia: a blasfêmia, as práticas de bruxaria e agora, por fim , a heresia. Não se tratava
de uma defesa anacrônica dos direitos do estado como entidade abstrata: nesses ter-
mos , a questão devia se apresentar muito mais adiante no tempo. O fato era que quem
tramava contra os antigos ordenamentos representava um perigo para a manutencão
do sistema existente: e era o suficiente para que o governo oligárquico da repúblic~ se
preocupasse com isso, sem fazer distinção entre religião e política. Justamente porque se
tratava de preparar remédios eficazes e não de defender razões de princípio abstratas, as
intervenções venezianas nos processos por heresia tenderam, na variedade das formas , a
garantir ao governo o pleno conhecimento do que era feito e pensado no território da
República. O instrumento preferido foi o da presença de representantes próprios durante
o desenvolvimento dos processos, sem qualquer rigor formalista : podiam ser leigos ou
eclesiásticos 77 ; quanto às suas intervenções no mérito durante o processo - intervenções
mal toleradas pelos inquisidores por razões de princípio, pois eram a prova formal de que
o tribunal da heresia não era composto só por eclesiásticos - as autoridades venezianas
aceitavam de bom grado e às vezes determinavam que não fossem averbadas 78 •
Sobre o cuidado com que Veneza se dedicou ao controle das opiniões e das
práticas religiosas , os documentos são abundantes. Já se fez menção ao fato de que,
enquanto surgia no horizonte a questão luterana, os reitores venezianos tinham se
confrontado com os inquisidores no decorrer da sangrenta caça às bruxas em Val
Camonica. E, no que diz respeito às blasfêmias, uma magistratura especial criada pela
república cuidara do assunto a partir de 1537 79 : da ofensa a Deus temia-se a vingança
divina sobre as instituições e a vida civil veneziana e as terríveis vicissitudes militares
do início do século XVI foram interpretadas como sinal da ira celeste. Não se podia
tolerar "que as brigadas dirigissem palavras contra a honra de Deus" , escreviam os
reitores de Brescia em 1542 80 ; e em relação aos crimes de blasfêmia intervinha-se
também contra eclesiásticos, ainda que através do auditor do núncio 81 • Quanto ao
controle da imprensa, o principal e mais temido veículo das ideias perigosas, as nor-
mas estatais precederam de muito as eclesiásticas. Dessa função do governo veneziano
demonstraram-se convencidos até os bispos do domínio e seus vigários, que diante

77. Dei Col ("L'lnquisizione Romana e il Potere Politico nella Repubblica di Venezia" , op. cit. , p. 198) assinala o
caso do processo contra frei Ambrogio de Milão (1545) para o qual o Conselho dos Dez solicitou a presença
de um eclesiástico de sua própria designação.
78. Também para isso, cf. idem.
79. Cf. Gaetano Cozzi, "Religione, Moralità e Giustizia a Venezia: Vicende della Magistratura degli Esecutori contro
la Bestemmia (Secoli XVI-XVII)", Ateneo Veneto, CLXXVIII, 1991, pp. 7-95 (reedição com atualização bibliográfica
da primeira edição dessa pesquisa fundamental, lançada em forma de apostila universitária em 1968).
80. Carta de 9 de janeiro (ASVen. , b. 160 do fundo S. Uffizio) .
81. Padre Nicolo Marcello foi condenado em 15 de dezembro de 1542 a três anos de prisão e depois banido,
"por ter o referido padre blasfemado muitas vezes o nome de Deus onipotente e da gloriosa Virgem Maria
em circunstâncias não apropriadas e de péssimo exemplo, que não são lícitas de serem expressas" (carta dos
Executores contra a blasfêmia aos chefes do Conselho dos Dez, 4 ago. 1543, ivi).

A Inquisição
135

de casos de crime contra a fé dirigiam-se à Sereníssima Senhoria e não a Roma: suas


cartas sobre o assunto , recolhidas mais tarde em uma miscelânea do arquivo 82 , são
testemunho disso . Mas nessa miscelânea encontram-se também traces do modo no
início confuso e um tanto caótico como se veio formando uma regr~ de conduta das
autoridades venezianas em matéria de heresia luterana.
Podia acontecer de o Conselho dos Dez83 ordenar a detenção de hereges e em
seguida mandar liberá-los, como sucedeu na primavera de 1540: os protagonistas, três
artesãos venezianos, foram detidos por motivos de ordem pública, ou melhor, como
rezava a "parte" deliberada pelo con:selho, "para reprimir qualquer movimento ou
tumulto que parecia suscitar-se" 84 • O direito autônomo de intervir no mérito de proce-
dimentos por heresia, detendo, processando e comutando penas, em suma, exercendo
atos de jurisdição própria, foi reforçado toda vez que julgado útil: mas como dado de
fato , exercício tranquilo de um poder efetivo, não como princípio abstrato. Intervinha-
-se antes e depois do processo inquisitorial, do qual em todo caso se desejava conhecer
o desenvolvimento e o conteúdo. No mérito das penas contra os hereges, o estado
veneziano arrogou-se o direito de comutar as que eram confiadas ao "braço secular" do
tribunal eclesiástico: frei Balbo Lupatino, condenado à morte em 1547 pelas autorida-
des eclesiásticas (no caso específico, pelo auditor do núncio, Rocco Cattaneo, e pelo
substituto do inquisidor) teve sua pena comutada na prisão 85 • Havia também nessas
intervenções uma concepção diferente da função da pena: como veremos mais adiante,
Veneza preferia formas ocultas, silenciosas, brandas às formas públicas do "auto de fé"
preferidas pela Inquisição.
A natureza das preocupações venezianas para com a manutenção do ordenamen-
to do estado mostra-se com evidência na relação entre a dominante 86 e as cidades do
território. Aqui, o dever de vigilância no que se refere à difusão das doutrinas heréticas
cabia aos reitores: mas as decisões eram reservadas ao poder central. Através do fluxo de
cartas entre os reitores e o Conselho, passaram todas as questões do controle das ideias
religiosas. Mas a tradicional falta de confiança de Veneza para com as cidades domina-
das limitou até a autonomia dos reitores, com os quais se criou uma relação análoga
àquela do tribunal eclesiástico central com suas ramificações periféricas. Em ambos
os casos, somente o tempo e o aumento quantitativo dos casos de heresia obrigaram a
conceder poderes mais amplos às sedes locais. De qualquer modo, é certo que desde o
início a intervencão dos reitores foi efetiva e não se limitou a seguir de perto os proce-
dimentos anti-he~éticos postos eventualmente em ação pelas autoridades eclesiásticas.
Em 1543, quando da prisão do arqueiro Ludovico os reitores de Pádua informaram

82. Hoje é a b. 160 do fundo S. Uffizio do Archivio di Stato di Venezia.


83. Um dos órgãos máximos do governo da República de Veneza, criado em 1310, era responsável pela segurança
do Estado (N. do T.).
84. Cf. Del Col, "L'lnquisizione Romana e il Potere Politico nella Repubblica di Venezia" , op. cit. , p. 195.
85. Idem, p. 206.
• - comum na Id ade Média para as cidades italianas, geralmente capitais, não dominadas por potências
86. D es1gnaçao
estrangeiras (N. do T.).

Inquisição Romana e Estad os Italianos


136

ao Conselho dos Dez: pela carta deles deduz-se que em Pádua o bispo "sufragâneo"
(ou seja, vigário in spiritualibus) era o "juiz primário em tal formação de processos de
heresia" 87 • E foi aos reitores de Pádua que o conselho dos dez ordenou em fevereiro de
1544 que executasse a prisão de um herege , de acordo com a exigência das autoridades
eclesiásticas, mas com a cláusula de que o processo fosse atentamente acompanhado por
elesªª. No ano seguinte, em uma parte relativa a Cipro, os Dez exigiram a intervenção
do reitor veneziano nos processos por heresia contra leigos; e a norma foi confirmada
nas instruções enviadas aos reitores de Vicenza, em 31 de maio de 1546, para o processo
contra o conde Giulio de Tiene e outros hereges 89 • Configurava-se assim uma linha
de governo da matéria: em relação aos leigos, as autoridades do estado deviam exercer
sua jurisdição, intervindo plenamente nos processos ; em relação aos eclesiásticos,
deixava-se a tarefa às autoridades eclesiásticas, desde que o governo veneziano tivesse
ampla informação de tudo . Foi assim, por exemplo, que no processo contra o bispo de
Capodistria, Pier Paolo Vergerio, os Dez arranjaram um modo de sequestrar e controlar
secretamente a "caixa das escrituras" do acusado 90 • Mas, devido ao que acontecia nas
cidades do território , o aumento dos processos por heresia levou à concessão de uma
certa autonomia aos reitores: aos de Brescia e de Bérgamo, em 1548, e em seguida aos
reitores de todas as cidades de terra firme (1550) foi atribuída a função que em Veneza
competia aos "sábios da heresia" . Os dois reitores, juntamente com dois doutores lai-
cos, deviam ter assento como membros do tribunal, ao lado do inquisidor e do vigário
episcopal91 • Mas as instruções aos reitores expedidas com a concessão eram claras: os
processos importantes pelas pessoas envolvidas e pelos riscos de escândalo e tumultos
deviam ser enviados ao Conselho.
O contato e a colaboração com a parte eclesiástica eram procurados de preferên-
cia com os bispos e com seus vigários; para as relações com Roma, o interlocutor era o
núncio. Quanto às ordens que choviam de Roma para os inquisidores, não se deixou
passar nenhuma oportunidade para reforçar a plena autoridade veneziana.
O trabalho mais difícil, nessa situação, era o do núncio: devia manter em
pé um sistema de boas relações , aparando as arestas, traduzindo as mensagens e
atenuando os tons. Era necessário explicar frequentemente a Roma que o governo
de uma república, como era o de Veneza, era constituído por muitas cabeças e, por-

87. ASVen., S. Uffizio, b. 160, cc. n. n.


88. Cf. Del Col, "L'lnquisizione Romana e il Potere Político nella Repubblíca di Venezia" , op. cit. , p. 197.
89. Idem, p. 202.
90. Idem, p. 201.
91. Sobre as fontes do lado romano, cf. Pio Paschini, Venezia e l'Inquisizione Romana da Giulio III a Pio IV, Padova,
1959; Del Col, "L'lnquisizione Romana e il Potere Político nella Repubblíca di Venezia" , op. cit., por sua vez,
segue as discussões e as perplexidades registradas pelas fontes venezianas. Provavelmente, no que se refere ª
esta decisão, foi enviada uma circular de Veneza às várias cidades, para saber se havia precedentes nos processos
por heresia conservados nos respectivos arquivos: e o quadro fornecido pelas respostas confirma que, de modo
desordenado e não homogêneo, as autoridades laicas tinham participado ativamente do controle doutrinário
(a circular, de 21 de junho de 1550, e as respostas, estão conservadas em ASVen., S. Uffizio, b. 160).

A Inquisição
137

tanto , era mutável, inconfiável, de tal modo que era preciso agir com destreza; ao
contrário, os assuntos de religião estavam sempre prestes, como escrevia o núncio
Ludovico Beccadelli, a desencadear o "zelo desordenado" de quem suspeitava que
todo o senado veneziano estivesse cheio de luteranos e por qualquer coisa de some-
nos queria que o núncio "ficasse em brasa" e fosse correndo protestar no Colégio 92 •
Não era apenas nos ciosos do lugar que o núncio pensava. Seu trabalho ordinário
tinha como ponto de referência, para assuntos de heresia, o tribunal veneziano da
Inquisição, composto pelos Três Sábios, pelo inquisidor ordinário - franciscano - e
pelo auditor do próprio núncio ; mas podia acontecer - como aconteceu no verão
de 1550 - que lhe enviassem inesperadamente um inquisidor extraordinário com
poderes especiais, designado por Roma na pessoa de um dominicano: e o núncio
devia enfrentar todas as reações do mundo veneziano 93 • Correndo os olhos pelos
despachos nervosos , impacientes , irritados que lhe chegavam de Roma , percebe-se a
rápida mudança que estava ocorrendo naquele mundo. Ao núncio chegavam cartas
em nome da congregação do Santo Ofício, junto com cartas do comissário, frei
Michele Ghislieri, e tinha que responder todas: mas não ousava explicar-lhes o que
mencionava ao escrever a quem , como Cervini, era membro da congregação, mas
também homem de vasta e variada cultura humanista, com o qual era possível falar
livremente: que , "embora esses senhores (venezianos) deem respostas boas e gentis ,
não lhes apraz no íntimos que seus súditos sejam convocados ao tribunal fora do
Domínio" 94 • Logo , toda questão se arrastava por muito mais tempo do que Roma
estava disposta a tolerar.
Algo acontecera em Roma se os tons tinham se tornado tão duros e urgentes.
Mas também em Veneza a lição da experiência teve de ser aceita; não tinham mudado
somente as relações de força internacionais. O argumento sacado a cada passo pelos
defensores daquele tribunal - que se devia ajudá-lo por todos os meios, pois, como
escrevia Beccadelli, "previne ao mesmo tempo a manutenção da religião e do estado
temporal" 95 - encontrara prova lancinante na descoberta de uma ampla organização de
anabatistas na Itália centro-setentrional e sobretudo no território da República.
A reconstrução das tratativas que se desenvolveram entre Roma e Veneza a propósi-
to dos "sábios" traz à tona um momento decisivo no segundo semestre de 1551: Júlio lll,
que perante os venezianos recorrera novamente ao tema tradicional dos riscos de
subversão política inerentes à heresia - "com a mudança da religião muda-se também
o estado" 96 - pôde dar uma demonstração convincente do que escrevia com o depoi-

92. Carta ao cardeal Marcello Cervini, Venezia, 12 mar. 1552, em Nunziature di Venezia, op. cit. , vol. VI, Roma,
l 1967, p. 69. Sobre rumores de listas de nobres luteranos, idem, p. 59 (carta a Cervini, 27 fev. 1552).
93. Cf. carta de Beccadelli a Verallo, 14 set. 1550, em Nunziature di Venezia, op. cit., vol. V, p. 125; o dominicano

, enviado por Roma chamava-se Giulio de Brescia.


94. Beccadelli a Cervini, 19 mar. 1552, em idem, vol. VI, p. 72.
, 1

95. Carta a Gian Domenico de Cupis, 30 abr. 1552, idem, p. 95.


96. Despacho de Roma, 26 set. 1551, citado por Albizzi, Risposta all'Historia della Sacra lnquisitione, op. cit., p. 55.
; E sobre este problema como um todo cf. Paschini, Venezia e l'lnquisizione Romana, op. cit.

Inquisição Ro mana e Estados Italianos


138

ment_o do padre Pietro Manelfi, natural das Marche, em dezembro desse ano97. O
depoimento era o fruto mais clamoroso da estratégia do Santo Ofício roman J, .
O: U 110
III , com a bula de 1º de abril daquele ano, oferecera a garantia de impunidade
a quem
depusesse espontaneamente - no prazo de três meses - tudo o que sabia sobre d'f
a l U-
~ão da heresia. Era uma medida excepcional, sinal e documento de uma legislação que
movava sem pestanejar, ignorando o existente e subvertendo-o: com esse método devia
ter continuidade, como veremos, não obstante modificações substanciais, a tradicional
prática inquisitorial do édito "de graça" . As autoridades ordinárias foram ultrapassadas
suscitando os protestos do núncio e da República de Veneza, que receberam a notíci~
com grande atraso e pela via inusitada dos frades da Inquisição 98 • Mas dessa medida
de exceção colheu-se logo um fruto também excepcional, graças ao qual a controvérsia
jurisdicional passou para o segundo plano. Frei Girolamo Muzzarelli, enviado especial
do papa a Veneza, entregou em 18 de dezembro, numa reunião reservadíssima, o texto
das revelações de Manelfi, onde era mencionada a organização secreta dos anabatistas
vênetos: foi ouvido por cerca de duas horas "com atenção e admiração"; era, como
escreveu Beccadelli, "uma conspiração de malfeitores contra o estado do Paraíso e 0
mundo" . E Girolamo Muzio, que acompanhava o caso com grande atenção, confir-
mou vitorioso a tese romana do herege como subversivo político: "Esses malfeitores -
escreveu Muzio - [... ] demovem as autoridades de qualquer senhoria e pregam uma
liberdade cristã, a de que não devemos nos sujeitar a ninguém, diretamente contra e
para a destruição de todos os estados" 99 • Na mesma noite do dia 18, partiram ordens
secretas de prisão para todos os nomes que constavam da delação: e os processos que
seguiram, decorreram sob a égide da máxima colaboração veneziana com a Inquisição.
Os detidos foram submetidos a um interrogatório preliminar "por conta do estado" e
depois entregues ao tribunal inquisitorial "para as coisas da fé" 100 •
Por muito tempo, Veneza continuou a ser um laboratório especial para os difí-
ceis problemas de funcionamento da Inquisição. As razões são evidentes: do ponto de
vista político, o abandono das ambições hegemônicas sobre a península italiana não
eliminara o fato de que Veneza continuava sendo o único estado italiano não absorvido
pela potência habsburguesa. A salvaguarda da segurança interna exigia que se ficasse
de olho em todas as ameaças: a verdadeira obsessão da conspiração, alimentada por
supostas revelações e verdadeiras chantagens que choviam continuamente nas mesas
do governo veneziano 101 deram ensejo, entre outras coisas, a sistemas de espionagem

97. Cf. Carlo Ginzburg, I Costituti di Don Pietro Manelfi , Firenze/Chicago, 1970.
98. Cf. a carta de Beccadelli a G. Dandino, 2 ago. 1550, e a resposta de Dandino, de 9 de agosto: sob
protestos do núncio, respondeu-se concedendo uma prorrogação da data a partir da qual contar os três
meses (Nunziature di Venezia, op. cit. , vol. V, pp. 101 e 106).
99. Cf. A. Stella, Dall'Anabattismo al Socinianesimo nel Cinquecento Veneto, Padova, 1967, pp. 87-88.
100. Carta de Beccadelli a lnnocenzo Del Monte, 2 jan. 1552, em Nunziature di Venezia, op. cit. , vol. VI, P· 34.
101. Basta dar uma passada de olhos nas correspondências diplomáticas para encontrá-las: na que vinha de
Ferrara, por exemplo, encontra-se uma carta de um servidor do duque de Ferrara, certo Reginaldo ou
Raynaldo, que diz ter condições de revelar os detalhes de um complô para incendiar o Arsenal: uma nota

A Inquisição
139

elaborados e penetrantes. Nada mais óbvio que se quisesse saber o que era revelado
pelos textos e pelos acusados de heresia: mesmo porque a inquietação e O desejo de
novidade religiosa podiam ser - e às vezes eram realmente - veículos de novidade polí-
tica e social. Se acontecesse, então, de ; ecair a acusação de heresia sobre um bispo - e
isso aconteceu em Veneza em muitos casos, dos quais três de grande repercussão, os de
Vergerio, bispo de Capodistria, de Vittore Soranzo, bispo de Bérgamo e do patriarca de
Aquileia, Giovanni Grimaldi - os ecos políticos eram fortes , como de resto era inevitável
que fossem: o episcopado pertencia legitimamente à classe governamental, tanto em
Veneza como em outro lugar. Do ponto de vista cultural, Veneza sempre continuava a
ser a capital da atividade editorial; e o avanço descomedido da atividade inquisitorial
em direção ao livro impresso mede-se pelos índices dos livros proibidos, que em Veneza
foram controlados pelo Monsenhor Della Casa 102• Do ponto de vista econômico, Veneza
era uma área de fronteira, ligada por fortes interesses comerciais ao mundo alemão
e ao ortodoxo e muçulmano do Mediterrâneo oriental, além de etapa obrigatória do
itinerário de fuga dos judeus da península ibérica; como consequência, apresentava
continuamente situações problemáticas. Mas era sobretudo a natureza dos ordenamentos
políticos do estado veneziano que exigia uma gestão diferenciada dos assuntos religiosos
em relação aos modos correntes nos principados. O choque representado pela descoberta
da organização anabatista a partir da delação de Manelfi foi forte , mas não imprevisto:
foi a demonstração da periculosidade da heresia e da ameaça política representada
por algum indício de vontade de mudança. Não por nada, quando o vigário episcopal
da diocese de Aquileia, lacopo Maracco, chegou a Udine em 1557 decidido a pôr em
movimento o mecanismo de controle naquela delicada área de fronteira , trazia consigo
uma cópia da delação de Manelfi; foi com esse documento que se inaugurou o arquivo
da Inquisição no local 103 • De qualquer modo, deve-se notar que logo no início de um
processo contra hereges de Cividale, bastou um recurso do provedor vêneto ao Conselho
dos Dez para bloquear a tentativa de processá-los fora da cidade e diante de um único
inquisidor (aliás, "um único frade", como escrevia escandalizado o provedor 104) . Mais
tarde, quando Maracco devia deter alguém, precisava sempre enfrentar as resistências
do "braço secular". As autoridades venezianas contrapunham-lhe o dever de escrever

adverte que a carta foi apresentada em 23 de maio de 1551 (ASVen., Capi del Consiglio dei Dieci, Lettere
di Ambasciatori, b. 8 a. Ferrara, n. 37-39). O episódio é recordado num contexto de casos análogos por
Paolo Preto (I Servizi Segreti di Venezia, Milano, 1994, p. 161 e nota) que conta como realmente o Arsenal
foi posteriormente destruído por um incêndio em 1569.
102. A literatura a propósito é bem vasta; remete-se indicativamente ao volume organizado por J. M. De
Bujanda, Index de Venise 1549 Venise et Milan 1554 (Index des livres interdits, op. cit., III), Geneve, 1987.
103. Mas sobre o modo complicado e diferenciado através do qual foi exercido o controle inquisitorial na
Pátria do Friuli, antes e depois do início do vicariato de Maracco, remete-se a um volume de Andrea Del
Cal a ser publicado, I.:Inquisizione nel Patriarcato e Diocesi di Aquileia (1557-1562). Agradeço a Andrea Del Cal
por ter-me permetido a leitura do material datilografado (O volume foi publicado em 1998, pela EUT,
com o título I; Inquisizione nel Patriarcato e Diocesi di Aquileia [1557-1559] [N. do T.)).
104. Carta de Leonardo Lombarda aos Chefes do Conselho dos Dez, 17 jan. 1559 (ASVen., S. Uffizio, b. 160).

Inquisição Romana e Estados Italianos


140

primeiro a Veneza para pedir a autorização para prender; de modo que, durante a
espera, era possível acontecer a fuga do acusado. Em casos de emergência, Maracco
usava de astúcia: em outubro de 1560, por exemplo, precisando deter um frade, certo
Gian Domenico Scevolino, diante da relutância do lugar-tenente, mandou chamar
o acusado à sua presença, com uma desculpa qualquer, e prendeu-0 105 • São situações
típicas, ou seja, situações que se apresentaram na época toda vez que o estado - não só
o veneziano - quis forçar o segredo dos processos inquis itoriais.
Veneza podia, portanto, resistir a Roma: a introdução da Inquisição romana
não era inevitável. Em Veneza, as propostas romanas foram rejeitadas toda vez que
razões políticas mostraram ser necessário. E o confronto podia ser muito duro: e o foi
toda vez que o Santo Ofício romano esteve em mãos de personalidades autoritárias e
intransigentes, decididas a impor a lógica de um poder que ignorava qualquer limite.
Particularmente importante foi o conflito que opôs Veneza a dois frades que o rigor
inquisitorial devia conduzir ao trono pontifício: o dominicano Michele Ghislieri e o
franciscano Feiice Peretti. Com Ghislieri, o conflito teve por objeto o processo contra
o bispo de Bérgamo, Vittore Soranzo (do qual se tratará mais adiante).
Outro caso de duro conflito foi o que opôs o governo veneziano a frei Feiice Pe-
retti, ratificado como inquisidor-geral em Veneza, em fevereiro de 1560: a hostilidade do
Conselho foi flagrante e conseguiu obter, após um longo braço de ferro , a substituição
de Peretti, mascarada de alternância geral dos frades franciscanos pelos dominicanos 106•
Os argumentos com que se justificou a rejeição foram essencialmente baseados na regra
da alternância que vigorava para os cargos políticos: era oportuno, dizia-se em Veneza,
que também a Inquisição mudasse de mão a cada ano, como se fazia em todos os órgãos
da república. Tratava-se, em suma, de evitar um excesso de poder nas mãos de uma ,
única pessoa por tempo demasiado: e o caso de Peretti parecia feito de propósito para
justificar os temores venezianos, tendo em vista a decisão e o rigor com que, durante o
período em que esteve no cargo, manobrara os instrumentos em seu poder.
Contra o novo estilo romano dos papas da Inquisição insurgiam-se continuamente
as resistências do governo veneziano, garante e herdeiro de uma tradição profundamen-
te diferente no que dizia respeito aos ritos e às manifestações da vida religiosa 107 • O
momento mais evidente em que essa tradição se mostra, no que se refere aos assuntos
da Inquisição, é o momento das execuções das sentenças capitais.

105. A história do caso é contada por Maracco em carta a Pier Francesco Ferrero de 11 de outubro de 1560,
publicada juntamente com o processo por A. Del Col, I.:Inquisizione nel Patriarcato, op. cit., pp. 389 e ss.
do material datilografado.
106. Cf. Paschini, "Due Episodi della Contro-Riforma in ltalia", em Archivio della R. Società Romana di Storia
Patria, XLIX, 1926, pp. 314-320; e, sobre os documentos do Conselho dos Dez, Del Col, "L'lnquisizione
Romana e il Potere Político", op. cit. Sobre o contexto do controle da imprensa, ver P. F. Grendler, The
Roman Inquisition and the Venetian Press, 1540-1605, Princeton, 1977 (trad. it., Roma, 1983).
107. Sobre as formas da vida religiosa veneziana e sobre suas características originais é fundamental o ensaio
de Paolo Prodi, "The Structure and Organization of the Church in Renaissance Venice", em J. R. Hale
(org.), Renaissance Venice, London, 1973, pp. 409-430.

A Inquisição
141

Como para toda a justiça penal de antigo regime , a pena de morte fazia parte do
horizonte regular do trabalho dos inquisidores. Por isso, a história do tribunal da fé foi
marcada por execuções capitais, que foram mais frequentes no século XVI para diminuir
em seguida e desaparecer no decorrer do século XVIII 108 • Porém, mais do que a morte
em si, o que despertava interesse e discussão era a organização do rito da execução.
Roma desejava e esperava o máximo de publicidade das condenações à morte por
sentença do tribunal da fé : era exigência da pedagogia do terror com seu axioma funda-
mental - matar um para educar mil - e, ao mesmo tempo, era decorrência da necessidade
política de mostrar o estado veneziano como aliado e executor obediente da vontade
da Igreja de Roma. Igual e oposta, a vontade veneziana de não se mostrar inclinada aos
desejos de um tribunal de frades não teria, sozinha, sido suficiente para impedir os "autos
de fé" públicos, ainda que decerto tivesse limitado o número deles; mas um motivo mais
forte, arraigado nas formas do poder patrício, exigia que os rebeldes e os dissidentes não
tivessem nenhuma oportunidade de dar espetáculo e de semear seu exemplo pernicioso.
Só raramente, portanto, o núncio podia escrever a Roma que finalmente fora cumprido
algum rito público de abjuração e, ainda mais raramente, que um herege fora executa-
do: se e quando acontecia, o respiro de alívio do representante de Roma era atenuado
por uma série de limitações desagradáveis. A abjuração pública de um schiavone 109 e a
degradação em São Marcos do padre Francesco Calcagno, em 1550, "na presença de
tanta gente quanta podia caber na igreja" eram boas notícias 110; e com o mesmo respiro
de alívio - "finalmente!" - em 11 de novembro de 1553, Ludovico Beccadelli contava a
execução capital de um anabatista suíço, execução impedida até o último momento pelas
resistências de quem, pensando nos Grisões aliados - fazia disso um "caso de estado" . E
acrescentava que, mesmo se por mérito até daqueles "santos assistentes do tribunal" (os
Três Sábios) ele fora finalmente condenado à morte, tinha-se preferido, todavia, afogá-lo
à noite "para que ninguém se escandalizasse com sua obstinação"lll. Temia-se, em suma, a
propaganda de ideias subversivas da ordem política e social: uma preocupação constante
do governo veneziano, que justamente por isso excluiu para os hereges a condenação
aos remos nas galés 112 • Tanto a prisão como a execução tinham de ser isoladas e secretas.
As autoridades do Santo Ofício, se obtiveram com algum custo a execução capital para

108. Não completamente, como mostra a pesquisa de Andrea Del Cal e Marisa Milani, "Senza Effusione
di Sangue e Senza Pericolo di Morte. Due Condanne Capitali dell'lnquisizione di Venezia nel 1704,
con un Excursus su quelle Veneziane del Cinquecento", a ser publicada em breve na Rivista di Storia e
Letteratura Religiosa. Agradeço aos autores por terem me permitido a leitura do material datilografado.
109. Soldado dos corpos de infantaria denominados Schiavoni ou Ultramarinos, provenientes de lstria e da Dal-
mácia, que atuavam na marinha vêneta em defesa da cidade e da República de Veneza em geral (N. do T.).
110. Nunziature di Venezia, op. cit., vol. V, p. 170 (carta a G. Dandino, 22 nov. 1550).
111. Idem, VI, pp. 284-285. Sobre as execuções capitais em Veneza, a lista fornecida por P. F. Grendler (The
Roman Inquisition and the Venetian Press, 1540-1605, Princeton, 1977, p. 57) e a de J. Martin (Venice 's
Hidden Enemies. Italian Heretics in a Renaissance City, op. cit. , p. 69) foram modificadas e acertadas por
Del Cal e Milani, "Senza Effusione di Sangue e Senza Pericolo di Morte", op. cit.
112. "Parte" de 3 de fevereiro de 1559, citada por Del Cal, "L'lnquisizione Veneziana e il Potere Político",
op. cit., p. 220.

Inquisição Romana e Estados Italianos


142

certas categorias de hereges - por exemplo, os "relapsos" - tiveram porém que se resignar
a aceitar o rito veneziano para as modalidades de execução: não o fogo , mas a água da
Laguna, não a praça e a luz do dia, mas a noite e o segredo. "Esses senhores - escrevia
em 1566 o núncio Giovanni Antonio Facchinetti - estão acostumados a mandar afogar
os hereges, e assim dar-lhes morte secretamente ... Dizem que a pertinácia de alguns deles
que morrem inspira mais compaixão nas almas simples do que terror nos infelizes" 113 •
A questão apresentou-se com frequência: mas também no pontificado de Pio V,
mais do que outros fiel à ideia de que os hereges deviam ser queimados em praça pú-
blica, os representantes romanos tiveram que se resignar a aceitar as execuções secre-
tas. Na longa discussão que se desenvolveu a propósito da sorte do humanista Publio
Francesco Spínola, condenado como herege relapso, o núncio Facchinetti expôs na
ordem todos os argumentos "para que ele fosse queimado publicamente": antes de mais
nada, o doge era obrigado a fazê-lo devido ao juramento solene de posse no próprio
cargo; mas, sobretudo, era oportuno fazê-lo para que todos vissem que em Veneza os
hereges não eram tolerados (e isso - acrescentava - "seria de mui grande edificação para
os católicos de França e de Flandres, pois que nessas províncias os huguenotes, para
impressioná-los, andam espalhando que Veneza, chave da Itália, é amiga deles devido
à tolerância que se vê dos alemães do Fondaco 114 e dos escolares de Pádua") 115 • Mas
não conseguiu nada: na noite de 31 de janeiro as águas da laguna engoliram Spinola.
E só a custo, alguns meses mais tarde, foi possível obter que, após abjurar, um herege
fizesse publicamente a penitência com o sambenito diante da basílica de São Marcos:
os sábios da heresia tinham feito objeção, pedindo que a penitência não fosse pública
"pela qualidade da pessoa" 116 •
Tratava-se justamente de pessoas: o discurso do estado que houve à época a pro-
pósito da Inquisição e dos modos de seu funcionamento na República de Veneza era
entendido concretamente pelos interlocutores em relação aos interesses e aos riscos
das classes hegemônicas. Os representantes de Roma não paravam de brandir a ameaça
da heresia como causa de mutações de estado, sedições e revoltas sociais, mas quando
queriam realmente dobrar a opinião dos governantes venezianos, sabiam onde atingir.
Quando foi discutida a extradição do herege Guido Giannetti de Fano, o núncio Gio-
vanni Antonio Facchinetti apresentou um vasto memorial onde, em tom comovido,
convidava os senadores venezianos a levar em consideração o "estado aflito" do cris-
tianismo - "dividida a França, perdida a Inglaterra, herética a Alemanha, próxima da

113. Carta de Giovanni Antonio Facchinetti a Michele Bonelli, 31 ago., em Nunziature di Venezia, op. cit.,
vol. VIII (mar. 1566 - mar. 1569), org. de Aldo Stella, Roma, 1963, p. 99.
114. Edifício que, na Idade Média, servia de armazém e de alojamento para os mercadores estrangeiros nas
cidades marítimas. Em Veneza há o Fondaco dei Tedeschi, citado no texto (N. do T.).
115. Facchinetti a Bonelli, Venezia, 1° fev. 1567, em idem, pp. 165-167. Sobre Spínola, cf. P. Paschini, "Un
Umanista Disgraziato nel Cinquecento: Publio Francesco Spínola", em Nuovo Archivio Veneto, s. n.,
XXXVII, 1919, pp. 65-186.
116. Facchinetti a Bonelli, Venezia, 17 maio 1567, em Nunz:iature di Venezia, op. cit. , p. 217 (tratava-se de
Alessaandro de Riva, advogado, ligado aos ambientes do patriciado de Verona).

A Inquisição
143

morte Flandres e no mesmo estado a Polônia" -, as preocupações paternas do papa, os


cenários apocalípticos que se anunciavam também na Itália. Mas reservava à segunda
parte do memorial as ameaças de efeito certo: se rejeitardes a proposta do papa "não
podereis almejar à dignidade de cardinalato, nenhum dízimo , nem a vacâncias de epis-
copados e a benefícios, nem pensões" - enfim, uma verdadeira ruína para os "vossos
117
fidalgos" • E ninguém pretendia realmente pôr em risco a aliança entre o papa, patrão
absoluto dos benefícios segundo a doutrina romana, e a sociedade dos "fidalgos".

Ainda não se sabem muitas coisas sobre a história da Inquisição em Veneza. Suas
fontes processuais, conservadas no arquivo veneziano dos Frari (os frades inquisidores)
esperam uma investigação exaustiva que ultrapasse o breve mas intenso período da luta
contra os anabatistas e luteranos. Outros tribunais eclesiásticos (por exemplo, o do Pa-
triarca, do qual ninguém até o momento estudou adequadamente o fundo remanescente
de processos 118) e sobretudo outras magistraturas laicas ocuparam-se de assuntos que mais
tarde, paulatinamente, deviam parecer de pertinência exclusivamente inquisitorial: a
moralidade individual e pública, os comportamentos rituais , o uso da palavra impressa
e da expressão verbal. Desde então, a cultura jurídica veneziana examinou muito aten-
tamente as práticas do tribunal da fé que em teoria deviam ser secretas: já no século
XVI ocorreu o único caso conhecido de publicação de sentenças e pareceres relativos à
lnquisição 119 • Porém, mais do que outras fontes extraprocessuais são os despachos dos
núncios que oferecem uma abundância de informações. Em Veneza, o problema para o
t!
novo tribunal, com sua rígida dependência de Roma, era evidentemente o de encontrar
Íl
o espaço de composição dos interesses: para isso, a figura do núncio era a mais indicada
pelas garantias que oferecia. Representante do papa, dotado de grandes poderes, aliviava
li as incumbências judiciárias, permitindo, de um lado, superar os contrastes entre inqui-
11 sidores e autoridades eclesiásticas ordinárias e, de outro, reduzir ao mínimo os casos
de extradição para Roma, que feriam a sensibilidade da classe governamental e lesavam
os interesses dos súditos. Por volta de 1581, segundo a descrição do núncio Bolognetti,
em Veneza os assuntos da Inquisição eram tratados por núncio, patriarca e inquisidor,
que se reuniam três vezes por semana, juntamente com o auditor do núncio, o vigário
do patriarca e com três senadores "mais importantes" (os "sábios contra a heresia"), ao
passo que nas cidades do domínio o tribunal era, formado por bispos ou seus vigários,
inquisidores e reitores, ou seja, podestade e capitão 120• É essa função de mediação polí-

117. Memorial anexado por Facchinetti à carta de 20 de julho de 1566 (idem, p. 78).
118. São dois volumes de processos conservados em Veneza, Archivio Storico del Patriarcato, Fondo Segreto
S. Uffizio.
119. Refiro-me à obra de Tommaso Trivisano (Decisionum Causarum Civilium, Criminalium, et Haereticalium,
Venetiis in palatio Apostolico luridice Tractatarum, Thomae Trivisani I. C. Praestantissimi ac Nonnullorum DD.
Eiusdem Palatii Auditorum libri duo, Venetiis, apud Bemardum Basam, sub signo solis 1595); trata-se de um
caso isolado e tão mais singular quanto mais rigorosas eram as normas sobre o segredo inquisitorial,
que excluía a publicação de sentenças e pareceres.
120. A relação de Bolognetti foi publicada por A. Stella, Chiesa e Stato nelle Relazioni dei Nunzi Pontifici a
Venezia, Cidade do Vaticano, 1964; cf. pp. 290 e ss.

Inquisição Romana e Estados Italianos


144

tica e judiciária desempenhada continuamente pelo núncio que remete à raiz política
da questão: esse tribunal eclesiástico que reivindicava regras canônicas extremamente
rigorosas, tradições antigas, orgulhosa autonomia e incontestabilidade absoluta, devia,
na realidade, aceitar todo tipo de irregularidade a cada vez que as autoridades estatais
consideravam necessário. A discussão a respeito foi contínua, mesmo recebendo desta-
que público apenas em alguns momentos. Já os historiadores do século XVI assinalaram
alguns episódios das resistências venezianas - em particular o que se verificou logo após
as pressões papais sobre Milão em 1564: estava vivo então o "mito de Veneza", feito
de admiração pela capacidade veneziana de resistir e de manter inalterado um modelo
antigo, refratário à mudança. Assim, a habilidade veneziana de evitar modificações no
sistema existente das relações com o poder eclesiástico e, em particular, de impedir o
aumento dos poderes do tribunal da Inquisição parecia digna de nota, se comparada à
disponibilidade bem diferente dos estados italianos menores 121 •
Mas não há dúvida de que - se a fórmula dos "sábios contra a heresia" limitou os
poderes do Santo Ofício - a república veneziana aceitou que em seu território atuasse
um tribunal eclesiástico dotado de amplos poderes e diretamente governado por Roma.
Isso foi suficiente para tornar muito mais frágeis as resistências de outros estados italia-
nos , mais recentes ou mais necessitados do apoio papal. Voltemos, pois, à constatação
inicial: na Itália, a soberania do estado, que em outros lugares tinha concentrado nas
mãos do poder laico o controle das ideias e dos comportamentos, encontrou uma ex-
pressão absolutamente original, a de reconhecer um direito de controle judiciário de
determinados assuntos ao soberano que ocupava o trono de Pedro. Começa a partir
disso a unificação moderna da Itália: e começa também, ou pelo menos adquire formas
adequadas à época, a longa tradição da alta soberania papal nos estados da península.

4. PODERES FLEXÍVEIS: A DIPLOMACIA, AS CARTAS

No funcionamento regular da organização das matérias inquisitoriais, o significado


político de fortalecimento da autoridade papal adquiriu forma no peso crescente exer-
cido pela figura do núncio apostólico. O núncio era o representante do papado como
autoridade espiritual e temporal: oferecia portanto a possibilidade de tratar o conjunto
das matérias correntes e de compensar entre elas os vários aspectos das questões, o que
simplificava bastante as tarefas das autoridades governamentais dos vários estados -
sobretudo dos principescos. Não é certamente por acaso que à figura do núncio fosse
confiada a gestão dos assuntos inquisitoriais em estados caracterizados por situações

121. "Mas eles [os venezianos], considerada a coisa com maturidade, e prevendo o perigo no qual estavam
prestes a cair, se em seu estado fosse dado abrigo a tão dura e rigorosa inquisição, pois que o reino de
Nápoles pela mesma razão quase se rebelou contra o imperador Carlos V, e os milaneses pouco antes
constantemente recusaram-na, sem querer porém dar a impressão de opor resistência aberta a sua
Santidade[ ...) evitaram o quanto puderam para resolver[ ... )". (Natale Conti, Delle Historie de 'suoi Tempi
(popularizado por Giovan Cario Taraceni), Venezia, Domenico Zenaro, 1589, e. 384v.

A Inquisição
145

muito diferentes como o dos Médici e o dos Saboia. Em Florença, coube à nunciatura
recém-instituída uma posição proeminente na condução dos processos da Inquisiçã 0 122 .
Aconteceu o mesmo em Turim nos anos sucessivos ao tratado de Cateau-Cambrésis
quando Emanuele Filiberto reorganizou a matéria, confiada precedentemente ao Par-
lamento de Turim de acordo com a orientação francesa em questões de heresia 123 • E,
tanto em Turim como em Florença, o núncio teve de garantir a informação e o con-
sentimento do príncipe e do Santo Ofício romano no que se refere aos casos tratados
pela Inquisição. O comissário local da Inquisição recebia a seguinte advertência: "nos
casos importantes não se meta a fazer nada" 124 sem a participação do núncio, que devia
informar o caso ao soberano; e o núncio em assuntos do gênero devia manter dupla
correspondência, com o cardeal sobrinho e com o Santo Ofício 125 • A situação dos do-
mínios de Emanuele Filiberto era particularmente complicada, mesmo porque ali os
limites políticos e os eclesiásticos não coincidiam. Era um problema de caráter geral,
típico de uma época dominada pela questão das relações entre dinâmicas religiosas e
eclesiásticas e poderes do estado. No caso dos domínios dos Saboia, havia uma área de
1
tradições gálicas, a Saboia, que não aceitava submeter-se a Roma nas formas em uso
~
no Piemonte: e ali a Inquisição romana encontrou constantes oposições 126 • A gestão
~
das questões doutrinárias deparou-se com a alternância de propostas e intervenções
n diversas, geralmente conflitantes. As estratégias da repressão violenta e da persuasão
11 determinaram seus argumentos em uma situação caracterizada pela presença de núcleos
organizados de divergência religiosa: os valdenses dos vales alpinos, que tinham aderido
ao calvinismo, impunham ao poder soberano o mesmo desafio que os valdenses da
Calábria e da Apúlia. Mas as comunidades do Piemonte não eram isoladas como as
do Reino de Nápoles: colocadas em uma posição de fronteira natural e de fronteira
religiosa, ofereciam uma resistência bem diferente à repressão militar. Campanhas mi-
litares e tentativas de conversão pacífica alternaram-se. Também ali a intervenção dos

122. Uma sentença emitida pelo núncio florentino como juiz detegado em causa de heresia é reproduzida por
Arnaldo D'Addario, Aspetti della Controriforma a Firenze , Roma, 1972, p. 501. O acusado era o magister
Paolo Cataldo, ou Cataldi, sobre cujo processo veja-se R. Canosa, Storia dell'lnquisizione in ltalia, op. cit.,
vol. IV, pp. 121-124.
123. Cf. G . Jalla, Storia della Riforma in Piemonte Fino alia Morte di Emanuele Filiberto, 1517-1580, Firenze,
1914; Canosa, Storia dell'lnquisizione, op. cit. , vol. III; sentenças do Parlamento de Turim em matéria de
heresia e magia na segunda metade da década de 1550 foram indicadas por M. Scaduto, "Le Missioni
di A. Possevino in Piemonte: Propaganda Calvinista e Restaurazione Cattolica", em Archivum Historicum
Societatis lesu, XXVIII, 1959, pp. 31-191, em part. p. 82 nota.
124. Carta de Scipione Rebiba a Vincenzo Lauro, 3 mar. 1570, em Nunziature di Savoia, vol. I (15 out. 1560 -
29 jun. 1573), org. de Fausto Fonzi, Roma, 1960, p. 246.
125. "Fez bem_ escrevia O cardeal neto Michele Bonelli a Vincenzo Lauro, em 12 de setembro de 1569, a pro-
pósito de abjurações feitas por Gian Battista Ceva e Cario Pasquali diante do núncio - em mandar para as
mãos do sr. card. de Pisa [Scipione Rebiba, membro do Santo Ofício] o processo deles; e daqui em diante
f deverá sempre prestar contas desses assuntos a S. S. Ilma" (Nunziature di Savoia, vol. I, op. cit., p. 211).
126. Cf. Achille Erba, La Chiesa Sabauda tra Cinque e Seicento. Ortodossia Tridentina, Gallicanesimo Savoiardo e
Assolutismo Ducale (1580-1630), Roma, 1979, P· 37.

Inquisição Romana e Estados Italianos


146

jesuítas foi caracterizada pela busca de formas de conquista não violenta. O mantuano
Antonio Possevino fez a Emanuele Filiberto - nos encontros que mantiveram no iní-
cio de 1560 - a proposta de abrir as portas aos não católicos, com o oferecimento de
uma anistia geral: e de Roma, padre Juan de Polanco relançou a ideia, sugerindo que
"a abjuração poderia ser secreta" 127 • O resultado foi a entrega dos negócios relativos à
inquisição ao núncio Francesco Bachaud, bispo titular de Genebra, que teve o poder de
absolver da excomunhão os hereges arrependidos mediante uma abjuração feita particu-
larmente e a custo de penitências secretas: tais poderes podiam também ser delegados a
bispos ou outros eclesiásticos 128 • E no entanto, logo que se soube em Roma do acordo
fechado em Cavour entre os representantes do duque e os dos vales valdenses, em 5 de
junho de 1561, o cardeal sobrinho Carlo Borromeo reprovou o núncio por não se ter
oposto àquela política de tolerância e enviou ao Piemonte o terrível cardeal Ghislieri,
com amplíssimos poderes - para que "lembre, ordene, disponha como lhe parecer"
não apenas na diocese de Alexandria, da qual era titular, mas com poderes de "general
superintendente" em todas as demais , em matéria de pregação anti-herética 129 - o que
significava uma forte limitação dos poderes do núncio.
O recurso à figura do núncio apostólico com poderes especiais para os casos de
heresia apresentou-se como a escapatória mais apropriada para todos os países onde
não era pensável a introdução da Inquisição romana. A atuação das nunciaturas nos
países onde ocorria a difusão das ideias da Reforma representou a alternativa possível
para a estruturação oficial da Inquisição. Naturalmente, os primeiros a reagirem a
semelhante ameaça foram os próprios seguidores da Reforma. Quando o papa Júlio
III enviou aos Grisões o núncio Paolo Odescalchi, o breve papal de nomeação foi
imediatamente publicado e comentado num panfleto do exilado italiano Pier Paolo
Vergerio; insistindo habilmente sobre o prejuízo aos poderes políticos trazido pela
intervenção do papa, Vergerio tentou alimentar uma oposição à ratificação daquele
tipo de acordo 130•
A questão fundamental era a relação entre a autoridade central do papa e as au-
toridades constituídas dos corpos políticos individuais no interior dos quais a primeira
devia ser reconhecida. Era inevitável que se procedesse através de compromissos e que
esses comprometessem em primeiro lugar a uniformidade da ordenação do tribunal.
O papa podia conceder tudo, nesse âmbito; e fazia-o livremente, por meio da congre-
gação do Santo Ofício ou por outras vias. As concessões disseram respeito não apenas
aos estados territoriais ou citadinos que fossem, mas também a sujeitos de caráter não
territorial, como, por exemplo, as ordens religiosas.

127. Carta de Palanco a Possevino, 20 mar. 1560, em Scaduto, "Le Missioni di A. Possevino in Piemonte",
op. cit., p. 71.
128. Idem, p. 72; cf. também R. De Simone, Tre Anni Decisivi di Storia Valdese (1559-1561) , Roma, 1958.
129. A carta de Carla Borromeo a Francesco Bachaud, de 12 de junho de 1561, está publicada em Nunziature
di Savoia, vol. 1, op. cit., pp. 66-67.
130. Atanásio (pseudônimo de Pier Paolo VergerioJ, Delle Commissioni et Facultà che Papa Giulio llI ha dato a
M. Paolo Odescalco comasco suo nunzio et inq_uisitore in tutto paese di Magnifici Signori Grisoni, s.L, 1554.

A Inquisição
147

E aqui a questão era complicada, no plano formal , por uma tradição de privilégios
que permitiam às ordens lavar a roupa suja em casa; no plano do conteúdo, esses pri-
vilégios eram o resultado de uma relação privilegiada com o papado que as pretensões
centralizadoras da Inquisição romana ameaçavam comprometer. De fato , para além
das declarações oficiais, o avanço da jurisdição inquisitorial nesse terreno deu-se a
passos lentos e silenciosos. Durante anos e anos depois de 1542 os atos capitulares das
grandes ordens continuaram a se ocupar de questões relativas a membros suspeitos de
heresia. Até no plano formal foi reconhecido o direito a uma certa autonomia sobre
o assunto. A coisa não é de espantar, tendo em vista as duas grandes ordens que for-
neciam o pessoal, as sedes e os meios para o trabalho inquisitorial. Para dominicanos
e franciscanos tratou-se, quanto muito, de regular as coisas de modo a evitar atritos
dentro dos conventos entre o inquisidor e outras autoridades da ordem. Seja como
for, é notável o fato de que a sucessão de casos de heresia, ocorrida, por exemplo, no
caso dos agostinianos, não comprometeu os tradicionais privilégios em questão. O
caso mais singular é o dos cônegos regulares lateranenses que , não obstante a suspeita
lançada sobre eles pela fuga de Pietro Martire Vermigli, continuaram por muito tempo
a administrar a justiça em casos de heresia através de um sistema autônomo de penas e
de juízes 131 • Aliás, não se tratou de um caso excepcional, pelo contrário. A autonomia
das ordens religiosas nessas matérias era coberta por concessões e autorizações papais.
Em 13 de julho de 1558, Paulo IV promulgou um decreto de confirmação de uma
norma aprovada pela congregação da ordem beneditina de Montecassino que acabara
de eleger dois comissários para atuarem contra os leitores de livros "luteranos": mes-
mo aprovando, Paulo IV estabeleceu procedimentos mais rigorosos. Três anos depois ,
Pio IV concedeu à mesma congregação o privilégio de escolher inquisidores entre os

131. A primeira disposição de caráter geral contra hereges e livros proibidos encontra-se nas atas do capítulo
geral de 16 de maio de 1546 em Cremona (Biblioteca Classense de Ravenna, Acta Capituli Gene-ralis Ca-
nonicorum Regularium, ms 222, c. 86v; mas cf. uma primeira menção em 11 de maio de 1536, idem, c. 4r).
Depois as normas são repetidas e tornam-se periodicamente mais rigorosas: em 1551 (idem, ms 223, c.
18r); em 1554 (idem, ms 223, c. 4lr); em 1557 (idem, ms 224, c. 27r); em 1571 (idem, ms 225, c. 103v). Não
se trata apenas de disposições gerais, mas também de ordens de captura e prisão de membros hereges e
apóstatas da ordem (no capítulo de 1554 foi ordenado que não se economizasse para capturar dom Teofilo
de Gattinara). Somente no final do século uma ampla investigação do Santo Ofício eliminou a autonomia
da poderosa ordem agostiniana (cópias das atas foram conservadas no fundo lnquisizione do Arquivo da
Cúria Arcebispal de Pisa). Notícias sobre os Cônegos Lateranenses, e sobre a penitenciária de Tremiti onde
eram encarcerados os confrades condenados, em Philip McNair, Peter Martyr in ltaly, Oxford, 1967 (cito a
partir da trad. it. Pietro Martire Vermigli in Itália. Un'Anatomia di un'Apostasia, Napoli, 1971, pp. 236-237).
Para os agostinianos, as atas de direção da ordem na época de Lutero foram estudadas por Jedin, Gerolamo
Seripando, op. cit. Para os dominicanos cf. Acta Capitulorum Generalium Ordinis Praedicatorum, ed. B. M.
Reichert, Roma-Stuttgart, 1901-1902. Somente em 1597, uma série de "ordens gerais" elaboradas pelo Santo
Ofício de Roma e transmitidas a franciscanos e dominicanos por meio dos respectivos cardeais protetores
regularam de modo analítico os comportamentos dos comissários locais da Inquisição em questão financeira
e disciplinar no que se refere às exigências dos conventos onde atuavam (as "ordens" foram recentemente
publicadas e estudadas por John Tedeschi, "New Light on the Organization of the Roman lnquisition",
em Annali di Storia Moderna e Contemporanea, li, 1996, pp. 265-274).

Inquisição Romana e Estados Italianos


148

membros da ordem e de elaborar os autos dos processos por monges beneditinos a'
' s
cujas escrituras se devia dar fé como se dava àqueles escritos pelos notários públicos 132.
Enfim, quando , poucos anos mais tarde , descobriu-se que uma perigosa heresia neo-
pelagiana havia conquistado toda a congregação de Montecassino, a rápida e rigorosa
operação policial de que foi encarregado o poderoso cardeal Cario Borromeo - e que
levou a prisões e destituições que atingiram o próprio presidente da Congregação,
dom Andrea de Asola - não eliminou completamente o antigo privilégio: "Embora
seja do conhecimento de S. Santidade que o Ofício da Inquisição não foi exercido
por eles com o zelo e diligência exigidos - escreveu o cardeal Rebiba em nome do
Santo Ofício - nem por isso tira-lhes a autoridade de inquirir, colher informações e
depoimentos, encarcerar e constituir processos e o que for necessário" . Porém, esse
privilégio foi cercado por tais e tantas limitações que , de fato , a ilha jurisdicional da
Ordem acabou sendo apagada do mapa da Inquisição 133 • As coisas seguiram caminho
diferente para uma ordem nova, a Companhia de Jesus , que recebeu um amplo indulto
em matéria de heresias e livros proibidos, conseguindo mantê-lo até mesmo com os
papas que lhe foram mais hostis 134 •
Na relação com as ordens religiosas agia uma aliança com o papado que impunha
frequentes rupturas às regras gerais. Isso se deu, particularmente, na matéria do contro-
le dos livros proibidos, que atingia diretamente as bibliotecas das grandes ordens e as
leituras dos corpos especializados no ensino, na pregação e nas confissões. As normas
extremamente rígidas que impuseram repetidamente a revogação de toda permissão para
ter e ler livros proibidos foram rompidas por exceções e privilégios. Uma forte margem
de discricionariedade continuou a envolver esse gênero de matérias, motivo pelo qual
nem mesmo os decretos mais drásticos são tomados ao pé da letra. Assim é, por exemplo,
no que se refere ao decreto com que Pio V determinou que os religiosos que recorriam
ao Santo Ofício não podiam ser punidos de modo nenhum por seus superiores por
um período de cinco anos 135 • Quando, em 1591, o jesuíta Giulio Mazzarino apelou à
Inquisição contra a autoridade de seus superiores, foi ouvido pelo comissário geral do
Santo Ofício (o dominicano Vincenzo Montesanto) que registrou seu depoimento. Mas
logo depois decidiram mandar o acusado a seus superiores e rasgar a aquela ata "para

132. Cf. Bullarium Casinense seu Constitutiones Summornm Pontificum, por D. Com. Margarinum, Tuderti, 1670,
pp. 465-467.
133. A carta de Rebiba a Carla Borromeo, de 5 de maio de 1568 (publicada por D. Maselli, Saggi di Storia
Ereticale Lombarda ai Tempo di S. Cario, Napoli, 1979, pp. 179-181), estabelecia de fato que cópia autên-
tica de todos os processos internos fosse enviada dali em diante ao Santo Ofício e que os inquisidores
podiam proceder ordinariamente contra os monges. Além disso, estabelecia que os monges que fossem
dirigidos com denúncias e depoimentos ao Santo Ofício não fossem punidos pelos superiores.
134. Por exemplo, com Paulo IV, que o confirmou por ocasião da publicação de seu rigoroso Índex. O texto
do indulto, publicado por P. Tacchi Venturi em 1905, foi publicado agora no Index des livres interdits, vol.
VIII, op. cit., pp. 45-46.
135. Decreto de 7 de agosto de 1567, publicado por Pastor, ''Allgemeine Dekrete der Rõmischen lnquisition
aus denJahren 1555-1597", em Historisches]ahrbuch, 33, 1912, pp. 479-549; ver p. 30 do extrato.

A Inquisição
149

que o nome desses padres [... ] n ão seja posto e mantido entre os nomes dos réus do S.
Ofício" 136 • O ato de favor, portanto, podia comportar não só a concessão de inquisições
internas, mas também a destruição dos vestígios dos erros cometidos por membros de
ordens religiosas , em nome da honra de toda a corporação. Era preciso evitar tudo
o que pudesse ser "causa de desonra para a Religião e de escândalo público" 137 • Era
preciso ocultar os arcana de uma ordem pelas mesmas razões que era preciso proteger
· as ordenações existentes do poder.
A realidade variegada dos poderes políticos e dos privilégios sociais reflete-se
portanto nas estruturas da Inquisição: os resultados , muito diferentes entre si, tive-
ram em comum a necessidade de limitar autonomia e segredo dos inquisidores com
a introdução de outras figuras no tribunal. Um caso exemplar foi o de uma Ordem
religiosa que dispunha também de um poder territorial: os Cavaleiros de Malta 138 • A
Ordem havia se insurgido contra a intenção de Paulo IV de estabelecer um tribunal
inquisitorial em Malta; mais tarde, um compromisso fora assumido com Pio IV, que em
1561 - seguindo um caminho já trilhado com a República de Gênova, com o duque
de Saboia e com os Magistrados helvéticos - tinha concedido ao grão-mestre da ordem
o privilégio de assistir nos casos de heresia à atuação de um tribunal constituído pelo
bispo, pelo prior da igreja do convento e pelo vice-chanceler. O compromisso foi minado
por conflitos entre bispos e autoridades da ordem: o resultado final foi o envio de um
inquisidor estável (a partir de 1574), que atuou com a assistência do bispo apenas nos
casos em que nobres não estivessem implicados. As instruções que eram redigidas para
ele constituem um documento das muitas faces que podia assumir a presença inquisi-
torial numa situação como a de Malta: afora os judeus e os mulçumanos de passagem
e a escassa população da ilha, o problema principal era a irascível e violenta sociedade
dos cavaleiros, "jovens pouco habituados à disciplina e dados à licenciosidade"; e
portanto era preciso "destreza", "não se fiar em ninguém", "amabilidade e afabilidade
com todos" ; sobretudo, era preciso a cada vez consultar-se antes com o grão-mestre e
proceder protegido 139 •
Por essa via era possível dar vida a tantos tipos diferentes de tribunais quantos
eram os interlocutores; todo rigor formal da práxis dissolvia-se numa densa e contínua

136. ARSI, Causa Mazarini, c. 228r.


137. A frase pode ser lida em carta do cardeal neto Del Monte, datada de 20 de abril de 1551 (endereçada ao
vice-legado de Bolonha e registrada nas atas do Tribunal criminal bolonhês do Torrone em 15 de maio
de 1551), na qual se ordenava proceder à incineração de alguns processos conservados no arquivo do
convento dos Serviti (Archivio di Stato di Bologna, Torrone, "Processi", 1551, 300, c. lv.). Sobre a questão,
cf. Guido Dall'Olio, "La riforma degli ordini religiosi a Bologna nel Cinquecento", a ser publicado no
Annuario dell'lstituto Storico ltalo-germanico in Trento.
138. Cf. Alessandro Bonnici, "Evoluzione Storico-giuridica dei Poteri dell'lnquisizione nei Processi in Materia
di Fede contro i Cavalieri del Sovrano Ordine di Malta", em Annales de l'O. S. M. de Malte, XXVI, 1968,
pp. 92-102; XXVII, 1969, pp. 5-13 e 57-80.
139. "Instruttione a Mons. Gori Oeputato lnquisitore di Malta", s.d. , em BAV, Borg. Lat. 558, cc. 83r-90r.
Sobre os problemas recorrentes na situação de Malta, idem, cc. 73r ss.

Inquisição Ro mana e Estados Italianos


150

série de tratativas detalhadas. Não é por acaso que a série documentária mais importante
para a reconstrução da história da inquisição seja constituída pelas cartas trocadas entre
a congregação romana e os comissários locais. O dever de informar continuamente de
tudo foi estabelecido por decreto do Santo Ofício em 18 de junho de 1564 (tornando
sistemática uma prática experimentada) 140 e foi reforçado a cada passo pelas autoridades
centrais: foi esse o eixo de encontro do sistema. Um eixo vertical: a relação fundamental
foi efetivamente com a cúpula romana, à qual deviam afluir todas as comunicações
e à qual competia dar a resposta decisiva. A flexibilidade das tratativas epistolares e
o fluxo contínuo das informações não podem ocultar, de fato , a novidade do projeto
institucional. Um sistema de poder judiciário centralizado substituíra a circulação hori-
zontal de opiniões e de informações que tinha caracterizado as organizações judiciárias
e inquisitoriais dos séculos precedentes 141 •
De Módena, nas primeiras décadas do século XVII, escrevia-se com uma frequência
quase semanal, de Udine com ritmos apenas mais lentos 142 • Quando tivermos a possibi-
lidade de ler todas as séries de missivas e respostas trocadas entre Roma e as sés locais,
teremos uma via de acesso ao funcionamento da justiça inquisitorial bem mais concreta
que a dos tratados dos canonistas e dos teólogos. Não é de admirar, portanto, que quando
se colocou o problema de redigir um regulamento para os vigários da Inquisição teve-se
que levar em consideração a chuva contínua de instruções, sugestões, conselhos. As
cartas do Santo Ofício romano constituíram a fonte da literatura de instruções e durante
muito tempo levaram a melhor sobre os tratados de caráter jurídico e teológico - até
porque, na época, a norma romana substituiu a tradição. É um aspecto particular do
verdadeiro triunfo da carta como instrumento do poder que caracteriza toda a época.
Instrumento flexível de comando, as cartas permitiam adequar o comportamento dos
vigários à situação do momento e às relações de força concretas. Importantes manuais
impressos, como o de Cesare Carena, utilizaram cartas da congregação romana para
ilustrar pontos específicos da práxis inquisitorial; manuais inteiros foram elaborados,
retalhando e juntando essas mesmas cartas de modo a oferecer uma resposta para cada
problema 143 • As razões romanas ao insistir nesse tipo de relação são evidentes: elas são

140. Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit., p. 26.


141. Sobre a importância do sistema de comunicações epistolares e sobre a organização vertical da informação
cf. Bethencourt, L'Inquisition à l'époque modeme, op. cit. , pp. 35-39.
142. Cf. Grazia Biondi, "Le Lettere delta Sacra Congregazione Romana del Santo Ufficio all'lnquisizione di
Modena: Note in Margine a un Regesto", em Schifanoia, N , 1987, pp. 93-108. A correspondência restante,
conservada em Bolonha, foi objeto de um registro manuscrito por Alessandra Parisini, conservado junto
ao Instituto de Estudos do Renascimento de Ferrara, e de um estudo de Guido Dall'Olio, "I Rapporti tra
la Congregazione del Santo Ufficio e gli lnquisitori Locali nei Carteggi Bolognesi (1573-1594)", Rivista
Storica Italiana, CV, 1993, pp. 246-286. Uma edição do importante fundo napolitano foi organizada
por Pier Roberto Scaramella, a quem agradeço por ter-me permitido a leitura do material datilografado
(Carteggi dell'Inquisizione Romana con i Tribunali del Santo Ufficio Napoletani, 1567-1625, Napoli, 1997).
143. Trata-se dos Regolamenti per i Vicari del S. Officio, redigidos pelos dominicanos Domenico Maria Marchesi
e Angelo Giuliani na segunda metade do século XVII, e hoje conservados junto ao Arquivo de Estado
de Cesena; cf. Paolo Caporali, Per la Storia dell'Inquisizione nel Secolo XVII (tese de formatura, Faculdade

A Inquisição
151

de tipo semelhante àquelas das inumeráveis burocracias que, à época, foram sendo
construídas com mecanismos e articulações do mesmo gênero. Não somente os vigários
da inquisição em relação ao centro romano , mas os vigários em relação aos bispos, os
missionários das Índias em relação às sés metropolitanas, os enviados diplomáticos em
relação às autoridades políticas de origem, em suma, todos os que deviam exercer algu-
ma forma de governo por conta de autoridades centrais mantinham aberto o canal da
comunicação através das cartas: só assim os endereços de governo podiam tomar nota
da mudança das situações concretas. Isso torna evidente o aspecto de domínio político
e cultural do qual a Inquisição era instrumento. Não havia uma definição doutrinária
rígida a ser inflexivelmente aplicada; a propósito de tudo podia ser iniciada uma trata-
tiva, de modo a adaptar as definições doutrinárias às dobras da realidade.
Nisso, os poderes políticos locais estavam de acordo; era uma via que deixava
brechas para compromissos vantajosos. Em troca, naturalmente, garantia-se ao papado
o reconhecimento de algo que , no entanto, tinha acontecido, ou seja, a redução da
doutrina da fé a assunto de polícia governada diretamente pelo papa. Nem as faculdades
de teologia nem os bispos tinham mais voz em capítulo sobre esse assunto: e portanto o
papado obtivera bem mais do que podia dar no terreno dos regulamentos formais dos
tribunais. Por outro lado, a ordem eclesiástica em seu conjunto tinha encontrado no
papado o baluarte capaz de garantir-lhe uma esfera de privilégio: a bula ln Coena Domini
na versão bastante ampla e agressiva que lhe deu Paulo IV ergueu uma barreira espessa
de excomunhões sobre tudo aquilo que dizia respeito ao clero, seus bens e privilégios.

A grande variedade das instituições judiciárias que existem por trás do nome
Inquisição romana mostra o quanto era difícil, mesmo nos estados italianos fracos ,
estabelecer um tribunal da fé, supra-estatal e eclesiástico, construído segundo um mo-
delo único. Mas o âmbito italiano recebeu uma consistência juridicamente reconhecida
justamente pela extensão ao menos nominal da autoridade do tribunal romano. O há-
bito costurado em Roma adaptava-se às deformidades do corpo italiano. Se um herege
escapava da captura por fraqueza das malhas inquisitoriais de um dos estados italianos,
era sempre possível preparar-lhe uma armadilha num outro 144. Por outro lado, a ausência
de resistências reais em relação a semelhantes instituições mostra não só o interesse dos
vários estados em garantir um controle eficaz das doutrinas e das práticas religiosas,
mas também a convicção geral de que era necessário ter com Roma um diálogo intenso
e contínuo sobre esses assuntos. Como disse em 1582 um cônego genovês diante do
conselho Menor, discutindo-se a lei aprovada então pelo governo de Gênova contra
os hereges: "A experiência tem demonstrado que onde aparecem tais pessoas surgem

de Letras da Universidade de Bolonha, 1972-1973). Para Carena, cf. seu Tractatus de Officio Sanctissimae
lnquisitionis et Modo Procedenti in Causis Fidei, Cremonae, 1655.
144. Por exemplo, tratando-se em 1569 de deter em Turim um francês suspeito de heresia para mandá-lo a
Roma, o núncio Vincenzo Lauro sugeriu superar os obstáculos à extradição, mandando capturá-lo em
Gênova com um estratagema (Nunziature di Savoia, vol. I, op. cit., pp. 166-167).

Inquisição Romana e Estados Italianos


152

grandes distúrbios e tormentos" 145 • Ninguém, que tivesse olhos para ver, podia então
contradizer semelhantes afirmações: por motivos de religião ocorriam até guerras e isso
parecia uma prerrogativa dos cristãos, algo que os antigos tinham ignorado, como obser-
vou Fabio Benvoglienti 146 • Esta preocupação do peso político da religião nos é familiar
através da insistência difundida pela literatura política, de Maquiavel a Botero e além
deles. Toda a tradição da "razão de estado" , que forneceu a justificação do poder e as
sugestões para sua tradução em instituições de governo, insistiu durante toda a Idade
Moderna em confiar ao príncipe não só o dever de garantir a segurança temporal, mas
também o de controlar que os súditos se comportassem como bons cristãos 147•
Mas não era apenas um tema do pensamento político. Preocupações muito con-
cretas a esse respeito angustiavam também os titulares do poder: o incêndio da Alema-
nha luterana e depois o da França huguenote e dos Países Baixos calvinistas não eram
fatos para aplacar tais preocupações. E, antes ainda, o papado, ao pedir ajuda para seus
inquisidores, tinha feito esvoaçar diante dos titulares do poder nos estados italianos
o espectro de uma nova e poderosa causa de divergência, que podia ser acrescentada
às muitas divisões daquelas turbulentas cidades. Não por acaso , Cósimo I - soberano
recente - tinha uma visão clara das instituições eclesiásticas e das práticas religiosas de
seu estado. Por isso, era bem aceita a atuação vicária desempenhada pela Igreja para
manter a ordem e a ortodoxia entre os povos. Mas , tendo em vista que a Igreja coinci-
dia com uma potência política que tinha seus interesses na Itália, os estados italianos
desejavam seguir de perto aquilo que o sistema inquisitorial descobria nos segredos das
consciências de seus súditos.
Portanto, longe de opor defesas jurisdicionais abstratas, os estados italianos ti-
nham uma necessidade real de fazer funcionar os poderes flexíveis, atentos e penetrantes

1 de que a estrutura eclesiástica era capaz; e tinham necessidade do apoio político do


Estado da Igreja. A República de Veneza era um caso particular, único estado que podia
contar com uma consistência política autônoma a ponto de rivalizar com o romano,
além de uma tradição de controle dos comportamentos que parecia tornar inútil e sus-
peita a estrutura romana da Inquisição. A expulsão dos Barnabitas das terras venetas
(21 de fevereiro de 1551), suspeitos de investigarem os segredos das consciências em
seus círculos espirituais e as dificuldades que encontraram os jesuítas pela prática das
confissões frequentes demonstram a atenção com que o governo veneziano controlava
esses aspectos da vida religiosa 148 • Mas, como já foi assinalado, justamente nesses dias
a descoberta da organização anabatista, graças à delação de Manelfi - delação tornada

145. Retomo a citação de Giuseppe Delfino e Aidano Schmuckher, Stregoneria, Magia, Credenze e Superstizioni
a Genova e in Liguria, Firenze, 1973, p. 5.
146. Discorso di M. Fabio Benvoglienti, per qual cagione per la Religione non sia fatta guerra fra ' Gentili, et perche si
faccia tra Christiani ... , Firenzi, tip. Bartolomeo Sermartelli, 1570.
147. Cf. Reínhard G. Kreuz, "Überleben und gütes Leben. Erlaüterungen zu Begríff und Geschíchte der
Staatsrãson", em Deutsches Vierteljahresschrift für Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, LII, 1978,
pp. 173-208.
148. Cf. P. Orazío M. Premolí, Storia dei Bamabiti nel Cinquecento, Roma, 1913, pp. 94-97.

A Inquisição
153

possível pela proclamação extraordinária de graça anunciada por Júlio III - constituiu
a prova das possíveis vantagens que o governo da República podia obter das eventuais
organizações eclesiásticas de vigilância: tratava,se apenas de poder acompanhar seu
funcionamento - e isso foi concedido, como é sabido. Nada estranho, portanto, que
os estados quisessem pôr,se a salvo de semelhantes perigos e não se sentissem mais
protegidos adequadamente pelas defesas tradicionais; as barreiras das disposições esta,
tutárias que o mundo citadino anterior à Reforma elevara contra hereges, blasfemos e
sacrílegos 149 pareciam inadequadas diante das dimensões da divergência religiosa e de
suas devastadoras consequências para os vínculos políticos e sociais. Não é de se admi,
rar, portanto, que os estados empregassem para isso todos os meios de que dispunham,
inclusive os meios colocados à disposição da estrutura eclesiástica. Do encontro entre
a necessidade de estabilidade dos estados italianos e a afirmação do papado na Itália e,
através da Itália, na Igreja, surgiram as características da estrutura inquisitorial.
Trata,se de uma fusão de interesses que pode ser visivelmente captada em um
documento a seu modo exemplar: aquele com que o duque Alfonso II d ' Este ratificou
a nomeação do novo inquisidor de Ferrara em 1569. O documento oficial, conser,
vado no que resta do arquivo da Inquisição de Ferrara, tem a estrutura de um texto
que engloba e comenta outro: um longo preâmbulo e um comentário conclusivo do
duque envolvem de fato a carta oficial de designação que Vincenzo Giustiniani, geral
dos dominicanos, endereçara a Paolo Costabili, novo inquisidor,geral dos domínios
de Este; sua nomeação dava,se em substituição ao inquisidor precedente, Camillo
Campeggi, não aceito pela sociedade local por sua engenhosidade policial e por isso
promovido a bispo de Nepi. Era, portanto, um caso delicado e por isso deu,se muita
atenção às formalidades. A nomeação do novo inquisidor era feita com base na au,
toridade apostólica delegada ao geral da Ordem dominicana e não por intervenção
direta da congregação do Santo Ofício; a ratificação ducal tinha o ensejo de tornar
executiva aquela nomeação e fazia,o seguindo a seguinte trama de argumentação: a)
deveres do príncipe católico em relação à tutela e à propagação do culto divino; b)
méritos particulares do governo de Este a respeito, seja para a organização de contro,
i le estatal posta em ação, seja para a indicação de inquisidores adequados (Camillo
Campeggi - leia,se aqui - teria sido proposto pelo duque ao papa para ser nomeado);
c) documento de nomeação de Costabili; d) ratificação do documento por parte do
duque e convite a todas as autoridades do estado para reconhecer,lhe os poderes, para
prestar,lhe auxílio para a execução de seu ofício e para assistir,lhe e a seus vigários,
fiscais, notários e a todos por ele designados 150 • Era um complexo jogo de formas,

149. Veja-se, a título de exemplo, o que estabeleciam os estatutos bolonheses de 1454 em matérias como a
heresia, a blasfêmia contra o nome de Cristo, as ofensas às imagens da Virgem, a disputatio contra fidem
(Statuta Civilia et Criminalia Civitatis Bononiae, Bononiae, 1735, t. I, pp. 429430 e 465).
150. Pode valer a pena, dada a dispersão desse gênero de documento em relação àqueles emanados por auto-
ridades eclesiásticas, reportar o incipit do documento para oferecer uma amostra do fraseado burocrático
empregado então por um príncipe italiano: "Catholicum Principem decet non solum religiosa tutari,
sede et ea omnia efficere, quibus Dei cultus reverentia introducatur, dilatetur ac vigeat, et de more

Inquisição Romana e Estados Italianos


154

que tornava perfeitamente óbvia a inserção do inquisidor no sistema do estado, até


o ponto de não ser mais possível perceber a separação entre a dimensão estatal e as
autoridades que obtinham de fora seus poderes reais. Em 1622, ou seja, quando o
sistema da Inquisição romana tinha atingido sua forma estável, era "do conhecimento
geral - segundo o frei Paolo Sarpi - que nenhum frade busca tal ofício, se não dispõe
antes do beneplácito do príncipe do lugar, e que em todas as cidades os inquisidores
são confidentes , ou melhor, obedientes a quem tem o domínio" . E Veneza também
queria um inquisidor "súdito e confidente" 151• Em Roma , a solicitação sugerida por
Sarpi foi examinada atentamente: decidiu-se satisfazer os venezianos, mas com um es-
tratagema digno de nota para a compreensão de como se conjugavam, na ótica romana,
a unidade inquisitorial da Itália e a obediência à sé papal, respeitando-se as diferenças
locais e regionais. Podia-se até admitir que em Veneza atuassem inquisidores nativos do
estado, mas desde que tivessem desenvolvido um tirocínio "para outras Inquisições da
Itália": assim, quando chegasse o momento de ocupar um cargo vacante no território
da Sereníssima, era possível, antecipando a solicitação veneziana, designar qualquer
um que fosse nativo do Estado, mas que, "tendo exercido em outro lugar" , fosse "mais
apto a desempenhar com prudência e destreza seu ofício" 152 • Era um jogo complexo,
que levava à criação de uma dupla pertença do corpo inquisitorial, uma de tipo natu-
ral - o nascimento - a outra, a mais importante, de educação e cultura. Podia-se desse
modo fingir satisfazer as solicitações locais, continuando a dar aos funcionários da
Inquisição uma formação totalmente romana 153 • Esse exemplo mostra como o projeto
de criação da que poderia, com alguns anacronismos, ser denominada uma burocracia
unitária italiana devia se adaptar às diferentes estruturas de poder local. Mas o projeto
existiu; e os poderes locais o aceitaram em essência. Também nesse caso, a retórica dos
deveres do príncipe católico propiciava o contexto de argumentação mais apropriado
para tornar indolor e inadvertida a operação.
A estrutura inquisitorial teve reconhecida uma função permanente mesmo quan-
do a ameaça de dissensão organizada diminuiu e desvaneceu-se o espectro daquelas
que logo foram denominadas as revoluções por antonomásia - as agitações político-
-sociais dos países onde a Reforma criara raízes. A instabilidade política e social foi a

custodis atque exploratoris vigilantissimi christifidelium et orthodoxae fidei observatorum viis praeesse,
ne illos pravi invadant; eiusdem sunt partes praecipuae et sanae dogmatum doctrinae adversantibus
omni conatu se opponat, horumque coercendorum ministris concilio, favore ipsoque brachio seculari
perpetuam opero ferat [... ]" (Ferrara, Archivio dei residui ecclesiastici della Curia, fundo S. Domenico, I,
ata de 1º de março de 1569).
151. Parecer "ln Materia di Crear Novo lnquisitor di Venezia", publicado por Gaetano e Luisa Cozzi, em P.
Sarpi, Opere, Milano/Napoli, 1969, pp. 1202-1211; em part. pp. 1207 e 1209.
152. "Nota dos negócios pendentes no S. Ofício de Roma de outubro de 1624", memorial para as congregações
do Santo Ofício (Biblioteca Nazionale di Napoli, BNN, ms. Branc. I B7, Atti d'lnquisizione, cc. 71r-731!;
em part. c. 73r.}. O memorial faz clara referência à solicitação do Senado no sentido de ter inquisidores
súditos de Veneza - exatamente a questão tratada por Sarpi em seu parecer.
153. F. Bethencourt (I.:Inquisition à l'époque moderne, op. cit., p. 137} assinala outras controvérsias entre Roma
e Veneza a esse respeito.

A Inquisição
155

ameaça agitada pela apologética católica para dissuadir de qualquer passo rumo a um
ordenamento diferente das relações entre política e religião. Argumentos desse tipo
dominaram, por exemplo, na grande controvérsia entre Roma e Veneza nos anos do
Interdito. A imobilidade foi a virtude exaltada diante daquilo que Bossuet chamou as
variations das Igrejas protestantes, seu irrequieto modificar-se sem jamais poder encontrar
uma ordenação estável. A estabilidade oposta à mutabilidade: esse esquema apologético
obteve grande sucesso durante toda a Idade Moderna na Europa católica. Foi aplicada
às vicissitudes políticas e às doutrinas religiosas, mas encontrou lugar até nas econô-
micas. Tão logo a Revolução Industrial inglesa surgiu no horizonte, seus efeitos foram
descritos como devastadores justamente pela mudança contínua que introduziam na
sociedade 154 • A Inquisição era a guardiã da ordenação existente, a garantia de que os
fundamentos doutrinários seriam mantidos sempre iguais a si mesmos nas mentes dos
súditos. As declarações solenes, repetidas nos documentos oficiais, podem ser lidas
como uma representação autêntica daquilo que se esperava dessa estrutura:

O próprio S. Tribunal é de grande valia para a manutenção da boa ordem no Principado,


porque retém os povos dentro dos limites do verdadeiro e do justo, vigiando continuamente para
que não se espalhem doutrinas opostas às divinas prescrições, das quais derivam todas as leis do bom
governo, e da necessária subordinação dos súditos às podestades supremas ... As duas podestades,
espiritual e temporal, não formam duas repúblicas mas uma só, ou seja, uma só Igreja, [...] são como
dois braços em um só corpo, um ajudando o outro [... ]' 55

Nem todos estavam de acordo: havia quem preferisse "a Igreja e a república dentro
de seus limites". E as reformas do século XVIII que aboliram a Inquisição ou limitaram
seus poderes deixaram os estados às voltas com o problema do controle dos costumes
e das ideias: a police des moeurs e os poderes ampliados da polícia estatal minaram as
bases de apoio da Inquisição eclesiástica. Mas isso não impede que aquelà promessa de
imobilidade continuasse a exercer seu profundo fascínio e estivesse pronta a oferecer-se
como tranquilizante em qualquer momento e em qualquer ordenamento político em
que prevalecesse o temor da mudança e o medo da história.

154. Veja-se, por exemplo, G . Cobbett, Storia della Riforma Protestante in lnghilterra ed in Irlanda la quale Dimostra
come un tal'avvenimento ha impoverito e degradato il grosso del popolo in que' paesi ... , trad. it. de D. Gregori,
Roma, F. Bourlié, 1825.
155. Citação do acordo entre dom Fernando de Bourbon e papa Pio VI, 28 jul. 1780 (reproduzido em G .
Orei, "Sulle Relazioni tra la Santa lnquisizione e lo Stato nei Ducati Parmensi", em Studi di Storia e di
Critica Dedicati a Pio Carlo Falletti dagli Scolari Celebrandosi il XL Anno del suo lnsegnamento, Bologna, 1915,
pp. 577-610; em part. p. 601.

Inquisição Romana e Estados Italianos


IV
CONCÍLIO OU "GUERRA ESPIRITUAL"

A bula Licet ab lnitio tornou explícita uma oposição fundamental, aquela entre concílio
.r-\.e inquisição. Eram, naquela época, duas ideias, duas imagens sugestivas, ainda não
incorporadas pelas instituições. Mas a oposição entre ambas era clara para todos. Eram
duas vias diametralmente opostas para fazer frente aos problemas da crise religiosa. Foram
percorridas em rápida sucessão: em 22 de maio de 1542 tinha sido lida em consistório
a bula papal de convocação do concílio em Trento lnitio nostri Pontificatus; em 29 de
junho, a bula fora publicada, numa situação internacional já agitada por incidentes que
prenunciavam o reinício da guerra entre Francisco I e Carlos V. A declaração de guerra
situa,se entre a publicação da bula de convocação do concílio e a bula que instituiu a ln,
quisição romana. A sequência das datas é por si só eloquente, ainda que os historiadores
do concílio não a tenham evidenciado 1• A via da guerra - a empreendida pelos exércitos
e a espiritual - era a alternativa ao concílio.
E no entanto, quando três anos mais tarde, encerrado o conflito militar, o con,
cílio reuniu,se em Trento, nem por isso a Inquisição romana deixou de funcionar, pelo
contrário. Sinal de que o papado tinha razões profundas que o impediam de abraçar
sem reservas a via do concílio. Mas a alternativa entre concílio e inquisição formulada
na bula era bem fundada na realidade, ou pelo menos nas representações mentais. O
concílio que devia se tornar, como escreveu frei Paolo Sarpi em seguida, um instrumento
essencial para estabelecer e reforçar a autoridade papal era temido como o mais "eficaz
meio para moderar o exorbitante poder" do papado. O concílio reunido era a verdadeira
instância em questões concernentes à fé: ele era visto como a assembleia que resolveria
as controvérsias doutrinárias e restabeleceria a paz na cristandade. O concílio era o lugar
da paz, onde ninguém devia ter medo: exatamente o contrário do tribunal da Inquisição,
que era o lugar e o instrumento da guerra espiritual. Certamente, a morte de Huss na
fogueira em Costanza era um lúgubre aviso destinado a manter viva a desconfiança em
relacão ao Concílio. Mas em Trento procurou,se fazer um caminho diferente: e assim,
'
no ato da convocacão do concílio, um salvo,conduto garantiu a todos a possibilidade
de ir até lá e vir e~bora, sem ter que temer detenção ou qualquer processo por ideias

1. Nem Sarpi, por exemplo (cf. Istoria del Concilio Tridentino, vol. l, l. l, org. de Carrada Vivanti, Torino, 1974, I,
p. 172), e nem H . Jedin (Storia del Concilio di Trento, vol. I, trad. it., Brescia, 1973, p. 510).
158

pessoais. E no entanto, mais que o salvo-conduto foi justo a esperança de poder expor
finalmente as próprias ideias à Igreja reunida com seus bispos que levou a Trento não
poucos espíritos inquietos: monges apóstatas como Giorgio Siculo, bispos e políticos ilus-
tres como Pier Paolo Vergerio. Na primeira fase de sua atividade, a assembleia conciliar
desiludiu essas esperanças com a definição da doutrina da justificação, que estabeleceu
uma rígida fronteira entre verdade e erro e congelou com seus anátemas as esperanças
de conciliação que restavam. A polêmica ausência do cardeal legado Reginald Pole nessa
sessão reforçou o significado de reviravolta do decreto sobre a justificação. Coube a
outro cardeal legado que também era membro da congregação romana da Inquisição,
Marcello Cervini, recolocar o concílio no sistema e na lógica do controle romano em
matéria de fé : quando os bispos obedientes ao papa transferiram-se para Bolonha, vozes
insistentes demandaram um uso exemplar dos instrumentos inquisitoriais. E dessa vez
o papa era chamado a dar um sinal evidente de seu poder de soberano: como e mais
que outros soberanos, devia eliminar a heresia de seu estado. Devia fazê-lo justamente
na cidade onde se reunia a assembleia conciliar, antigo e tradicional poder central da
cristandade em matéria de doutrina.
De dentro do próprio concílio, os expoentes do partido curial alçaram a voz para
pedir providências exemplares. Alvise Lippomano, bispo intransigente e inflamado
polemista antierasmiano e antiluterano, perguntava ao cardeal Cervini:

Por que em todas as terras da Igreja não se estabelece uma severíssima Inquisição contra esses
tristes luteranos e não são castigados de acordo com seus méritos? No momento não quero falar de
Roma: falarei apenas de Bolonha. Não há ali um número infinito deles? ... Dizem que as inquisições
de Espanha e Portugal são demasiadamente severas, e eu replico que são muito úteis ... 2

E poucos dias depois, Tommaso Stella repisava o mesmo argumento: a inquisi-


ção era necessária "principalmente em Bolonha, onde agora há o concílio"; mas era
necessária sobretudo para dar exemplo aos outros estados:

Quando acontecesse ... a instituição de uma poderosa mas não menos caritativa inquisição
contra os hereges, de modo que nas outras terras da Igreja ... creio que, além do exemplo que seria
para outros estados, arrancar-se-ia a raiz de tal pestilência em grande parte 3 •

O problema de Bolonha tinha um duplo aspecto para as autoridades romanas:


cidade universitária aberta à presença de estudantes e livros alemães, logo suscitara

2. A carta é datada de 16 de novembro de 1547 (Gottfried Buschbell, Reformation und lnquisition in ltalien, op. cit.,
p. 289; é reproduzida também em M. Firpo e D. Marcatto (orgs.), ll Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giaoonni
Morone, op. cit. , II/1, pp. 247-248 nota).
3. Portanto, cinco anos após a bula de Paulo III, a recém-nascida Inquisição romana não havia modificado subs-
tancialmente os procedimentos e ordenações existentes, nem mesmo no estado da Igreja. A carta de Tommaso
Stella é datada de 10 de dezembro de 1547; é reproduzida por Buschbell, Reformation und Inquisition, op. cit.,
p. 67 nota. Cf. William Hudon, Marcello Ceroini, op. cit., pp. 116 e ss.

A Inquisição
159

apreensões pela difusão de doutrinas heréticas. Mas era também a segunda cidade do
Estado da Igreja e assumira uma função de cenário solene para grandes representações
de poder com a coroação de Carlos V. Era uma função que não perdera mais; os festões ,
as estátuas, os arcos do triunfo e as escritas celebrantes que foram preparadas para a
passagem de Paulo III em 1541 reproduziram no auge os cenários de 1530: seu autor,
Scipione Bianchini, era um homem intimamente ligado aos círculos que ele mesmo
chamava "esses nossos novos cristãos", onde se lia a literatura da Reforma e se esperavam
mudanças da lgreja4. À entrada da cidade, a representação alegórica da fidelidade e da
obediência 5 recordava o triste caso da dura punição de Perúgia de apenas um ano antes
e atribuía a Bolonha a função de filha exemplar de Roma. E se a obediência escancarava
a porta da cidade, dentro reinavam as imagens da religião, da fé e da caridade.
A realidade não correspondia a essas imagens de fachada : mesmo em Bolonha
novas inquietações religiosas agitavam círculos intelectuais e ambientes populares: o
herege siciliano Paolo Ricci, também conhecido como Lisia Fileno ou Camillo Rena,
to, marcara com sua passagem o mundo citadino 6 • Os fragmentos restantes do grande
arquivo bolonhês da Inquisição mostram que esses ecos permaneceram por muito
tempo. Não se tratou apenas de ecos: centros ativos de agitação e de organização da
dissensão como o que se percebe em torno do mercador Giovan Battista Scotti revelam
a importância de Bolonha na geografia da dissensão anticatólica na Itália 7• A cidade
enchia,se de "livros proibidos luteranos e repletos de mil heresias"ª. E essa notícia che,
gava longe, se se pensa que Martin Butzer manteve uma série de contatos epistolares
com os grupos de Bolonha, de Módena, de Ferrara e de Veneza9 • Na Universidade de
Bolonha, a presença de Camillo Renato fomentava discussões sobre as "superstições"
a serem erradicadas e sobre a autoridade do papa: e na ação inquisitorial contra ele,
o conflito entre o inquisidor dominicano, o vigário do bispo e o legado papal abria
brechas para a fuga do acusado 10• Nas confrarias citadinas, onde a dimensão social da
vida religiosa continuava a se exprimir, a nova religiosidade cristocêntrica entrou em
clamoroso choque com as formas tradicionais de culto da Virgem e dos santos. Justa,
mente no oratório de santa Maria della Vita, em 14 de janeiro de 1543, o boticário

4. Carta de 30 de dezembro de 1542, publicada por G. Fragnito, "Gli 'Spirituali' e la Fuga di Bernardino Ochi-
no", op. cit., p. 799. Bianchini é apontado como autor do programa por Leandro Alberti, Historie di Bologna,
ms. it. 97 da Biblioteca Universitária de Bolonha, vol. IV, c. 319r.
5. "Mais abaixo do Rheno havia uma grande mulher de veste longa com um cão aos pés e o letreiro Dum memor
ipsa mei. Chamavam-na fidelitas; Savena abaixo outra grande mulher que tinha a mão esquerda em cima do
\ buraco de uma colmeia de abelhas, e o letreiro: 'Tu qui res hominunque deumque aeternis regis imperiis'",
foi denominada obedientia (carta de Marcantonio Gigli a Gian Battista Campeggi de Bolonha, 1º out. 1541,
em Archivio di Stato di Bologna, fundo Malvezzi-Campeggi, s. III f. 530, cc.n.n.).
6. Cf. Rotando, "Per la Storia dell'Eresia a Bologna nel Secolo XVI", op. cit., PP· 107-154.
7. Firpo e Marcatto (orgs.), li Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op. cit., passim.
8. Testemunho de Domenico Rocca, idem, IV, p. 466.
9. Cf. Paolo Simoncelli, "lnquisizione Romana e Riforma in Italia", Rivista Storica Italiana, C, 1988, pp. 1-125.
10. Cf. Camillo Renato, Opere. Documenti e Testemonianze, org. de Antonio Rotando, Firenze/Chicago, 1968,
pp. 314 e ss.

Concílio ou "Guerra Espiritual"


160

bolonhês Girolamo Ranialdi (ou Rinaldi) omitiu de propósito na leitura da matina a


passagem em que se invocava a aplicação dos méritos da Virgem aos fiéis , para grande
escândalo dos presentes. Detido e processado imediatamente, Ranialdi, após algumas
tentativas de defesa, declarou francamente : "A minha intenção é que se deve recorrer
a Cristo e não a outros" 11 • Não eram problemas que diziam respeito apenas a Bolonha.
Em outra cidade, Siena, outra confraria dedicada à Virgem, o jovem ourives Pietro
Antonio devia escandalizar os presentes durante a oração na véspera de todos os santos
de 1544, sustentando que Cristo era o único mediador e que "os santos não deviam
ser invocados" 12 • Mas as coisas bolonhesas ecoavam de forma bem diferente em Roma.
De resto , parece que em fevereiro de 1543 - e portanto pouco após a criação do Santo
Ofício romano - havia justamente em Bolonha "uma legião de luteranos" nas prisões
do governador. "Qualquer trapeiro pretende falar da fé e fazer as interpretações a seu
modo - queixava-se um bolonhês - Se um não é castigado, a coisa se espalha demais".
Mas quem e como devia puni-los? Falava-se em pena de morte, "mas não sei - dizia o tal
bolonhês, aludindo à venalidade dos tutores da justiça - se a morte será pelo pescoço
ou pela bolsa". O governador, Benedetto Conversini, preparava-se portanto para tirar
dinheiro deles. "Mas que seja o Senhor Deus a defender a santa fé , junto com a santa
igreja romana" . E se precisava invocar a proteção divina, queria dizer que a Inquisição
não agia e não era visível 13 •
A vigilância em matéria de religião permanecia entregue - mesmo no estado da
Igreja - à autoridade temporal, não à espiritual. A autoridade do papa era represen-
tada ali por cardeais legados de grande prestígio e capacidade política, como Gaspare
Contarini e Giovanni Morone: sobre as relações pessoais de ambos com ideias e grupos
heréticos devia recair dali a pouco uma carregada sombra de suspeita que, unida à dis-
persão das fontes inquisitoriais, não nos auxilia a compreender muito da situação que
se criara naqueles anos em Bolonha. É certo, no entanto, que foi o governador a deter
e a processar os hereges, na cidade que possuía uma inquisição dominicana numa sede
antiga e prestigiosa com homens como Tommaso Maria Beccadelli e Leandro Alberti.
A autoridade episcopal estava nas mãos de Agostino Zanetti, homem pio e solícito no
governo da vida religiosa da diocese: mas a iniciativa na luta contra os "luteranos" e os

11. Dos fragmentos do processo (conservados no ms B 1927 da Biblioteca dell'Archiginnasio) resulta que o inter·
rogatório é conduzido pelo vigário do bispo. O episódio foi narrado em Rotondo, "Per la Storia dell'Eresia a
Bologna", op. cit. , pp. 137 e ss. Ver também as observações posteriores de Rotondo a esse respeito em "Anticristo
e Chiesa romana. Diffusione e metamorfosi d'un libello antiromano del Cinquecento", em Forme e Destinazione
del Messaggio Religioso. Aspetti della Propaganda Religiosa nel Cinquecento, org. de Rotondo, Firenze, 1991, pp. 81,
86 e ss. Sobre a confraria bolonhesa, cf. M. Fanti, La Confraternità di S. Maria della Morte e la Conforteria dei
Condannati in Bologna nei Secoli XIV e XV, Perugia, 1978: um quadro do conjunto das confrarias bolonhesas é
oferecido por N. Terpstra, l..ay Confratemities and Civic Religion in Renaissance Bologna, Cambridge U.P., 1995.
12. Dos depoimentos do processo citados por Valério Marchetti, Gruppi Ereticali Senesi del Cinquecento, Firenze,
1975, pp. 51 e ss.
13. A carta, de 2 de fevereiro de 1543, é dirigida a Gian Battista Campeggi, bispo de Majorca, e está conservada
no Archivio di Stato di Bologna, fundo Malvezzi Campeggi, s. III, f. 531, cc. n. n. Sobre a situacão bolonhesa
daqueles anos, cf. A. Battistella, Il Santo Officio e la Riforma Religiosa in Bologna, Bologna, 1905.·

A Inquisição
161

hereges de todo tipo foi deixada - ao que parece - nas mãos das autoridades temporais.
Leandro Alberti, contando as histórias desses anos , mencionou que fora O próprio go-
vernador a tomar a iniciativa, "percebendo que muitos disputavam sobre assuntos da fé
católica, até os sapateiros e outros vis artesãos e diziam coisas heréticas" 14. Houve uma
intervenção da congregação romana, todavia, a respeito do campo delicado e urgente da
censura dos livros: entre os primeiros atos do Santo Ofício houve de fato o decreto de
12 de julho de 1543 , datado de Bolonha, através do qual se aviava na cidade a vigilância
em matéria de publicações heréticas. Justamente por ser matéria difícil e os meios de
intervenção do Santo Ofício não permitirem fazer mais - como se lê no documento -
decidia-se partir da cidade de Bolonha e confiar a Beccadelli e a seu substituto Leandro
Alberti a tarefa de manter a vigilância sobre a difusão dos livros heréticos 15 •
Mas foi sobretudo por ocasião da transferência do concílio para Bolonha que a
questão assumiu caráter de emergência, como prova de que se exigia dessa cidade uma
função exemplar, de espelho; e por isso, urgiam medidas anti-heréticas em Bolonha,
para mostrar o que o papa sabia fazer em seu estado.
A denúncia não caiu no vazio. É certo que os protestos continuaram: ainda em
1549 o novo inquisidor Girolamo Muzzarelli, homem de confiança do cardeal legado
Del Monte e mais tarde magister Sacri Palatii, declarava ter encontrado em Bolonha "um
grande emaranhado de heresias" 16 • Mas durante todo o tempo em que o concílio - em
sua componente de obediência papal - continuava a reunir-se em Bolonha, a questão
não era de fácil solução: o papa era chamado a escolher entre o rosto doce do pai
comum dos cristãos e o duro e decidido do soberano de um estado que, como outros
e mais do que outros, devia afastar a mácula da heresia. Não que houvesse incertezas
a respeito: era uma questão de poder e como tal devia ser resolvida. A linguagem das
imagens demonstra-o, ainda que através do véu das fábulas pagãs: a praça Maggiore de
Bolonha, sob Pio IV, foi povoada por imagens de um poder soberano firme e inexorável 17 •
Mas esse poder não estava em condições de manifestar-se abertamente na situação que
se criara durante o período bolonhês do concílio: a presença da assembleia conciliar
ao lado das instituições inquisitoriais criava uma possibilidade de conflitos que em
Trento - terra do Império e portanto desprovida de Inquisição - não havia. Conflitos

14. Leandro Alberti, Historie di Bologna, vol. IV, Biblioteca Universitária de Bolonha, ms 97/ IV, c. 330v (retomo a
indicação do estudo ainda inédito de Guido Dall'Olio, Eretici e lnquisitori a Bologna nel '500 (1525-1580). Tese
de doutorado em História da sociedade europeia, Universidade de Estudos de Veneza, 1993-1994.
15. Rotondó ("Anticristo e Chiesa Romana" , op. cit. , p. 84) sublinhou a origem bolonhesa do decreto da Inqui-
sição romana.
16. Carta do cardeal Dei Monte a Cervini, Bologna, 21 fev. 1549 (em Concilium Tridentinum, XI, org. de Buschbell,
Freiburg I. B., 1937, p. 494). Cf. Rotondó, "Per la Storia dell'Eresia", op. cit., p. 136. A falta de clareza que
existe a respeito do titular do ofício inquisitorial em Bolonha naqueles anos foi ressaltada por Heinrich Lutz
(Nuntiaturberichte aus Deutschland nebst erganzenden Aktenstücke, vol. XIV, Nuntiatur des Girolamo Muzzarelli. Sen-
dung des Antonio Augustin. Legation des Scipione Rebiba [1554-1556], Tübingen, 1971, pp. X e ss.), que é eloquente
quanto às condições em que se desenvolvia o trabalho do Santo Ofício.
17. A observação é de Irving Lavin, Passato e Presente nella Storia dell'Arte, (Princeton, 1993), trad. it., Torino, 1994,
cap. III: "Bologna e una Grande Intrecciatura di Eresie", pp. 93-124; em part. P· 118.

Concílio ou "Guerra Espiritual"


162

entre muitos e diversos poderes, não só entre concílio e inquisição: isso pôde ser visto
num episódio que teve como protagonista o bispo de Lavello, o dominicano Tommaso
Stella. A convite dos legados ao concílio , Stella - denominado o "Alemão" - começou
a fazer sermões em San Petronio contra as doutrinas heréticas. Mas outro dominicano,
Giovanni Battista de Crema, denominado de "Cremasco", subiu ao púlpito e atacou-o
abertamente, contando com a proteção do poderoso convento dominicano da cidade.
Era um confronto entre pregadores, um episódio nada novo no gênero. Mas a liberdade
de discutir publicamente e de disputar os favores do público não era mais tolerável à
sombra de um concílio que devia se ocupar da definição e da defesa da ortodoxia. De
resto, o concílio tinha baixado um decreto sobre a pregação, aprovado havia mais de um
ano: mas , como observou incomodado o cardeal legado Del Monte, ninguém parecia
ter se dado conta disso. Foi preciso o concílio pedir ao papa um breve que obrigasse
ao cumprimento do decreto; depois disso , o bispo de Bolonha Alessandro Campeggi
ordenou a Giovanni Battista que não pregasse mais sem sua permissão. Resolvida a
questão de impor um mínimo de disciplina, restava julgar o mérito das doutrinas
propostas e discutidas pelos dois pregadores. E para isso o cardeal legado "congregou
todo o Concílio ... e propôs as heresias ditas pelo dominicano de Crema ... E por decisão
unânime do Concílio foi proibido de pregar" 18 •
O episódio confirma o quanto a situação em Bolonha era confusa. Mas o concí-
lio, ou pelo menos o que sobrara dele após a transferência determinada pelo papa, não
estava absolutamente em condições de impor a respeito de questões do gênero uma
autoridade própria diferente daquela do papa. A solução foi induzir o concílio a tornar-

) -se instrumento de práticas inquisitoriais governadas por Roma: e, se não o concílio


inteiro, ao menos seu secretário. O secretário do concílio, Angelo Massarelli, seguia as
causas de heresia e transmitia ao inquisidor de Bolonha as ordens que recebia de Roma,
diretamente do cardeal Cervini: e Cervini, que era membro da congregação romana do
Santo Ofício, atuava como inquisidor, mas sob a cobertura do título de legado conciliar.
Um jogo de prestígios, graças ao qual nas correspondências conciliares encontram-se
histórias de interrogadores de hereges e deliberações do Santo Ofício 19 • São poucas
pistas, a partir das quais é difícil compreender qual tenha sido a ação empreendida
à época por Massarelli: quanto ao método, no caso do livreiro Francesco Linguardo,
por exemplo, foi usada uma dosagem de severidade e de brandura. Pelas opiniões, foi

18. Das cartas de Girolamo Papino ao duque de Ferrara, carta de 14 de janeiro de 1548 (B. Fontana, Renata di
Francia Duchessa di Ferrara, vol. II. Roma, 1893, p. 236). Cf. Filippo Valenti, "11 Carteggio di Padre Girolamo
Papino Informatore Estense dal Concilio di Trento durante il Período Bolognese", emArchivio Storico Italiano,
CXXN, 1966, pp. 303-417, em part. p. 346. Giuseppe Alberigo (I Vesco11i Italiani al Concilio di Trento [1545-
-1547], Firenze, 1959, pp. 313-329) colocou acertadamente o episódio no contexto dos problemas da pregação
enfrentados pelo Concílio.
19. Uma carta de Cervini a Massarelli, de 17 de julho de 1548, a propósito de alguns "hereges encarcerados" em
Bolonha contém as diretrizes da congregação do Santo Ofício a serem transmitidas ao inquisidor de Bolonha;
está conservada em ASV, Concilio 139, e foi publicada por Alain Tallon, "Le Concile de Trente et l'lnquisition
Romaine", Mélanges de l'École Française de Rome, CVI, 1994, pp. 129-159; em part. p. 132 nota.

A Inquisição
163

absolvido "secretamente em verdadeira confissão" enquanto se procedia judicialmente,


acolhendo suas denúncias sobre a circulação dos livros proibidos. Mas também nesse
caso, sobre um assunto que preocupava imensamente as autoridades inquisitoriais,
tentou-se recolher informações ("descobrir procedência"), de modo secreto, sem nada
transmitir à "corte secular" e prometendo servir-se daqueles depoimentos "para ganhar
aquelas almas com fraternas e cristãs admoestações" 2º.
A suspensão do concílio deixou novamente o campo livre para a "guerra espi-
ritual" . E foi justamente em virtude da eficácia ampliada e da dureza de métodos da
Inquisição romana que a questão se reapresentou, na última fase do concílio, em forma
de alternativa entre dureza romana e misericórdia conciliar. Porém, desde 1546, a rela-
ção não era mais entre duas abstrações, mas entre dois poderes de traços institucionais
definidos: de um lado, a congregação romana do Santo Ofício, de outro o concílio (ao
menos durante os períodos em que estava em sessão). Foi dito com justiça que se tratou
de relações caracterizadas por incompreensão e desconfiança 21• Não podia ser diferente:
não somente se tratava de instituições antitéticas por natureza, mas a própria definição
dos respectivos poderes em matéria de hereges a serem julgados criava zonas de atrito.
E foi justamente quanto a esse ponto que ocorreram confrontos e incompreensões.
Tratou-se de confrontos táticos, de pequenas batalhas, visto que no plano estratégico
a guerra já fora vencida pela Inquisição. Ao Concílio, que começou a funcionar numa
situação já comprometida pela existência do Santo Ofício romano e que aceitou desde
o início a estratégia romana da definição das barreiras doutrinárias a serem erguidas
contra os hereges, restou apenas realizar escolhas caso por caso: ninguém no Concílio
discutiu sobre a Inquisição a não ser em termos cautelosos e defensivos, ninguém pôs
em discussão sua existência ou métodos. Foi a Inquisição romana a acusar os bispos e
cardeais; caso por caso, naturalmente, mas com o efeito de estender para todo o corpo
a suspeita relativa a alguns membros.
Alguns casos de bispos suspeitos e às vezes processados por heresia lançaram
sombra sobre todo o episcopado. Uma teologia dominada pelo clero regular era o ins-
trumento mais temível para um episcopado de formação quase exclusivamente jurídica e
literária. De resto, a partir das sessões do concílio línguas maléficas como a de Dionísio
Zannettini, o Grego, levantavam dúvidas e moviam acusações contra muitos bispos
.
italianos . Essas acusacões encontravam ouvidos dispostos a acolhê-las e a submetê-las
a procedimentos judiciários. Não sabemos e talvez nunca saberemos quantos bispos
foram objeto de investigações inquisitoriais. O que deve ser evidenciado aqui é a dinâ-
mica dos poderes, que mostra o envolvimento do concílio na organização inquisitorial.
No âmbito conciliar surgiu a suspeita de heresia em relação ao bispo dominicano
Iacopo Nacchianti: em 5 de abril de 1546, discursando sobre a questão das fontes da reve-

20. Carta de Massarelli a Cervini, Bologna, 2 dez. 1548 (Buschbell, Reformation und lnquisition, op. cit. , pp. 308-309).
· · C arceren· ocupou-se d os casos dos livreiros investigados então, "Cristoforo Dossena, Francesco Linguardo
Lmgt
. d ano, Lºb
e un G 10r · p
1 rat, rocessa
tt' per Eresia a Bologna (1548)" , em L'Archiginnasio, V, 1910, pp. 177-192.
21. Tallon, "Le Concile de Trente et l'lnquisition Romaine", op. cit. , P· 147.

Concílio ou "Guerra Espirituat»


164

lação, Nacchianti suscitou violentos clamores da sessão ao afirmar que era ímpio colocar
no mesmo plano a sagrada Escritura e as tradições 22 • Era uma linguagem que lembrava
a de Lutero 23 • Nacchianti foi repreendido por Roma, teve de se justificar e suspender a
participação no Concílio. Não se dirigiu a Roma, onde o processo o esperava; mas de
Roma partiu uma ordem secreta ao secretário do concílio para proceder a uma investigação
local. E Massarelli, em dezembro de 1548, dirigiu-se a Chioggia e reuniu uma documen-
tação processual que enviou a Roma no mês seguinte 24 • Era uma documentação repleta,
segundo ele, de "coisas muito, muito feias e ímpias" 25 • Outra documentação, reunida no
outono de 1549 por dois comissários do Santo Ofício e que pode ser lida entre os papéis
venezianos, apresenta testemunhos de uma população escandalizada: o bispo criticava
as indulgências - dizia: "por que tantos perdões? por que tantos perdões?" - implicava
com os cônegos que levavam em procissão um menino de carne e osso, criticava o culto
dos santos, mas dizia também que era impossível Cristo estar na hóstia consagrada, pois
"seria preciso que a hóstia fosse de nosso tamanho" 26 •
Não se conhece o êxito desse processo; de fato, Iacopo Nacchianti saiu livre das
acusações, visto que voltou anos mais tarde à cena do concílio. Mas deve ter permane-
cido por muito tempo dominado pelo medo , tendo em vista as exibições de ortodoxia
que forneceu nos escritos que publicou 27• As acusações que pesavam sobre ele lembram
muito de perto as que tinham sido reunidas algum tempo antes a propósito de um
bispo que também entrara em conflito com as ideias de seu clero e da população de
sua diocese: Pier Paolo Vergerio. Ora, foi justamente no caso de Vergerio que as espe-
ranças no concílio e a realidade das relações de força mostraram-se com maior clareza.
Vergerio, que do concílio podia legitimamente sentir-se um promotor, chegara a Trento
em janeiro de 1546, perseguido por citações e denúncias. Não fora convidado para o
concílio, mas achava que sua condição de bispo lhe garantisse o direito de participar.
Dirigia-se a ele "para submeter-se ao julgamento da igreja", como escreveu o cardeal
Gonzaga ao recomendá-lo ao poderoso cardeal Madruzzo, que em Trento era o anfi-
trião. Devia ser protegido, segundo Gonzaga, até a conclusão da causa que pesava sobre
ele e que devia ser resolvida "ou pelo Concílio como um todo (corno o tinham sido

22. Cf. Jedin, Storia del Concilio di Trento , op. cit., vol. II, Brescia, 1962, pp. 105-106.
23. "Parece que se está ouvindo Lutero falar" , comentou Jedin (idem, p. 81).
24. Cf. Girolamo Carcereri, "Fra Giacomo Nacchianti Vescovo di Chioggia e fra Girolamo da Siena lnquisiti per
Eresia ( 1548-1549)", em Nuovo Archivio Veneto, n. s. XI, 1911, pp. 468-495.
25. Carta a Cervini de 12 de janeiro de 1549; reproduzo a citação da monografia de Pietro Mozzato, ]acopo Nac•
chianti un Vescovo Riformatore (Chioggia 1544-1569), Chioggia, 1993, p. 67.
26. Idem, p. 142 (cost. 11 de octubre de 1549 do canônico Battista "de Episcopis").
27. Um violento ataque contra os "falsos evangelistas luteranos" ("de lutheranis loquor, aliisque pestibus monstri.s-
que") pode ser lido na abertura de seu Opus Doctum ac Resolutum, in Quattuor Tractatu.s, seu Quaestiones Dissectum,
Venetiis, apud losephum Vicentinum, 1557 (dedicado ao cardeal Antonio Trivulzio), onde polemiza contra as
teses de Pomponazzi sobre a mortalidade da alma. Na edição de suas obras publicada pelos Giunti em Veneza
0 5~7), ª vontade de conformar-se "ad piae, atque ortodoxae fidei veritatem" é declarada já no título. Sobre os
escntos de Nacchianti cf. Friedrich Lauchert, Die ltalienischen literaturiscen Gegner Luthers Freiburg i. B., 1912,
pp. 584-612. '

A Inquisição
165

tantas outras de bispos, acusados de vários pecados), ou por vós, cardeais, reunidos" 28•
Enfim, o processo devia ser conduzido em Trento e não em Roma. Se essas eram as
expectativas que até mesmo um cardeal nutria em relação ao Concílio, a realidade não
demorou a desmenti-las. Vergerio não pôde fazer ouvir sua voz aos padres conciliares,
mas apenas ao cardeal legado Marcello Cervini e a seus colegas Del Monte e Pole; foi-
-lhe dito que antes de ser admitido no concílio devia submeter-se a processo senão em
Roma pelo menos em Veneza. Teve que se afastar de Trento e, de sua estada forçada em
Riva, descreveu o concílio como "uma criança que ainda não sabe andar nem falar" 29 •
Mas essa fraqueza, que Vergerio considerava apenas inicial, não foi mais superada: seu
processo - um dos mais imponentes e complexos conservados no arquivo veneziano
da Inquisição - foi realizado em Veneza e não em Trento, e enquanto os documentos
iam se acumulando o acusado amadureceu lentamente a decisão de abandonar a Itália
e a Igreja romana.
Perseguido por espiões e por inquisidores, o inquieto bispo de Capodistria
tinha feito uma breve aparição na cena tridentina. Fora tratado com astuta gentileza:
era evidente que, se fosse empurrado para o caminho da apostasia, Roma teria um
adversário temível. Assim foi: sua fuga da Itália devia propiciar à Inquisição Romana
um de seus críticos mais ásperos; mas não houve alternativas reais. Aliás, o caso de
Vergerio serviu para confirmar a posteriori que o partido intransigente tinha conside-
rado a questão corretamente. Com isso, as suspeitas contra as correntes mais abertas
do episcopado que já circulavam em Trento saíram reforçadas. Mas o caso de Vergerio
teve principalmente o significado de esclarecer em definitivo a quem cabia o poder de
julgar em causas de heresia. Dali em diante, ficou evidente que esse poder não estava
com o Concílio de Trento.

No caso do bispo de Bérgamo, Vittore Soranzo, a tempestade provocada pelo


Santo Ofício envolveu a diocese de Bérgamo: Soranzo atuou ali a partir de 1544,
primeiro com o título de coauditor do titular Pietro Bembo, depois como bispo. Sua
ação introduziu o que monsenhor Paschini denominou "um conjunto imponente de
reformas" 3º. Um édito de 1544 foi destinado a restaurar a disciplina eclesiástica: os
clérigos foram advertidos quanto à obrigação da tonsura e do hábito, ao respeito do
celibato, aos deveres de residência; mas também foram proibidos os livros suspeitos
de heresia luterana, dando curso a uma ordem do Santo Ofício romano. Em sua ação,
Soranzo parece ter seguido modelos como aquele oferecido na vizinha diocese de Verona

28. A carta de Ercole Gonzaga foi publicada já à época_ por Vei:gerio, após s~a fuga, de mo~o substancial~ente
correto (cf. Anne Jacobson Schutte, Pier Paolo Vergerw e la Ríforma a Venezia 1498-1549) (Pier Paolo Vergeno: The
Making of an Italian Reformer, Geneve, 1977), trad. it. , Roma, 1988, p. 319 e nota 75).
29. Idem, p. 321.
30. P. Paschini, "Un Vescovo Disgraziato nel Cinquecento Italiano: Vittore Soranzo", em Tre Ricerche sulla Storia
. ne1e·mquecen to, Roma , 1945 , p · 126 · Mas ver agora L. Chiodi, "Eresia Protestante a Bergamo nella
della ehiesa
Prima Metà del' 500 e il vescovo Vittore Soranzo. Appunti per una Riconsiderazione Storica", Rivista di Storia
della Chiesa in ltalia, XXXV, 1981, pp. 456-485.

Concílio ou "Guerra Espiritual"


166

por Gian Matteo Giberti: restauração da disciplina eclesiástica, visita pastoral à cidade
e à diocese (cujas atas se encontram reunidas em nove tomos no arquivo da diocese),
reforma da vida religiosa no sentido de eliminar tudo aquilo que parecia supersticioso
ou ridículo: um édito de sua autoria é endereçado contra a tradição de citar os próprios
inimigos in vallem ]osaphat. Mas surgiram suspeitas a seu respeito; em abril de 1548
foram afixados manifestos pela cidade de Bérgamo em que era acusado de heresia.
Bérgamo foi então teatro de um duro conflito que se desenvolveu entre a Inquisição
romana e o bispo, apoiado por Veneza. Tornou-se célebre ao menos um episódio desse
confronto, que teve como ator principal frei Michele Ghislieri: o frade , na qualidade
de comissário do Santo Ofício, foi enviado a Bérgamo por Júlio III e pelos cardeais do
Santo Ofício e colheu informações a respeito de Soranzo. Seus biógrafos contam que
homens armados tentaram agredi-lo ou intimidá-lo, sem sucesso. Escondido o dossiê
inquisitorial, Ghislieri fugiu à noite do convento suburbano de Santo Stefano, graças
à ajuda do franciscano Aurelio Griani que lhe arranjou montaria. Parece que desse
episódio originou-se a estima particular que o cardeal Carafa teve por Ghisleri e daí
a rápida carreira que devia levar o frade ao cardinalato e, em seguida, ao pontificado.
É evidente que Ghislieri mostrou lembrar-se de bom grado do episódio: um de seus
primeiros atos logo que se tornou papa foi conferir uma diocese a frei Aurelio, no
consistório de 8 de novembro de 1570. E Giulio Santoro, que conhecia bem a história
do Santo Ofício, anotou em seu diário que se tratava de um agradecimento a quem
lhe havia dado "montaria e ajuda" na missão empreendida contra Vittore Soranzo 31 •
Um eco das turbulências doutrinárias daqueles anos em Bérgamo pode ser en-
contrado na crônica da cidade publicada em 1553 por padre Bartolomeo Pellegrini:
uma obra de celebração das glórias citadinas e dos ilustres pregadores do Evangelho,
que tinham tornado Bérgamo uma vinha fértil para os operários da palavra de Deus.

O concílio reunido em Trento não demorou a desenganar as esperanças de quem


esperava da assembleia suprema da cristandade uma franca assunção da tarefa de escutar
e julgar homens e doutrinas, de levar a paz às consciências, de escutar todos aqueles
que eram portadores de mensagens e de revelações. Um monge visionário, Giorgio
Siculo, esperou inutilmente ser ouvido pelo Concílio e acabou sendo condenado à
morte pela Inquisição. Mais afortunados, comparativamente, um eclesiástico veneziano,
Giovanni Grimani, e um mercador genovês, Agostino Centurione, deveram ao poder
de seus estados o privilégio de serem julgados e absolvidos pelo concílio. Mas se tratou
de casos isolados, geridos na sombra por comissões complacentes, sem que jamais a
assembleia conciliar irradiasse aquela imagem de poder supremo que um século antes
fora sua característica. No entanto, vale a pena dar uma olhada nesses casos de processos
conciliares, para ver se a lógica que os guiava era diferente da que se estabeleceu nos
processos inquisitoriais.

31. Paschini, Tre Ricerche, op. cit., pp. 132-133. A anotação do cardeal de Santa Severina está no "Diario Concis-
toriale" , ed. op. cit. De Tacchi Yenturi, em Studi e Documenti di Storia e di Diritto, XX.III, 1902, p. 317.

A Inquisição
167

1. O PROCESSO CONCILIAR DE GIOVANNI GRIMANI


Giovanni Grimani, patriarca de Aquileia, foi objeto de acusações vagas de "lutera-
nismo" a partir de 1546 por suas ligações com personagens como Vergerio . O dele
é um caso menor que faz parte do grupo da caça ao herege no interior da hierarquia
eclesiástica italiana. Convencido por Júlio III , com a promessa de um cardinalato,
consentiu em fazer uma "purgação canônica" , que ocorreu diante do papa e de algu-
mas testemunhas . Mas a promessa do cardinalato não foi cumprida; pelo contrário, a
oposição em relação a ele foi crescendo devido à hostilidade pessoal de frei Michele
Ghislieri, guindado a altíssimos níveis de poder sob o papado de Gian Pietro Carafa.
Com o novo pontífice, Pio IV, as coisas não melhoraram: o embaixador veneziano que
fora solicitar a almejada eleição cardinalícia ouviu à guisa de resposta que aparecera
um documento muito grave contra o patriarca. Caíra em mãos da Inquisição uma
longa instrução sobre predestinação que Grimani tinha mandado a seu vigário em
1549 32 • Um pregador tinha afirmado que os predestinados por Deus à salvação não
podiam de modo algum ser condenados às penas do inferno nem podiam se salvar os
"precitos" , ou seja, aqueles que , segundo a previsão divina, deviam se danar; o vigário,
preocupado com o escândalo, pedira esclarecimentos. E Grimani não só respondera
que "a conclusão do pregador. .. é verdadeira e católica" , mas tinha sustentado por
escrito a validade da afirmação com longas argumentações. Agora aquela carta fora
entregue ao cardeal Ghislieri por "alguns inimigos dele" , como foi dito ao embaixador
veneziano Da Mula (provavelmente, um cônego de Cividale): e Ghislieri tirara essa
carta da manga justo na iminência das nomeações cardinalícias, para impedir a de Gri-
mani. O papa, solicitado a tratar pessoalmente da questão , confessou sua impotência
com frases impressionantes pelo que revelam do aumento do poder do Santo Ofício:
"Que podemos fazer? - parece dizer chorando ao embaixador veneziano - Nós não
podemos cuidar de tudo sozinhos; são eles os encarregados da lnquisição" 33 • O que
aconteceu a Grimani nos meses seguintes mostrou que as coisas estavam exatamente
assim. Obrigado a responder por escrito às objeções dos inquisidores, o patriarca de
Aquileia teve que sofrer os efeitos da hostilidade do poderoso cardeal Ghislieri. Em 16
de setembro de 1561, na congregação do Santo Ofício, na presença de Pio IV, foram
lidos pareceres e emitidos votos escritos de condenação: dizia-se ali que as proposi-
ções de Grimani eram heréticas e que se devia chegar ao processo regular contra ele.
Diante dessa ameaça, Grimani partiu prontamente para Veneza (decisão que levou
seus inimigos a falarem em uma verdadeira fuga) e de lá interpôs apelo ao Concílio.
Iniciou-se uma difícil tratativa, na qual interveio o próprio cardeal sobrinho, Carlo
Borromeo, para convencer Veneza a não apoiar Grimani; e seu argumento mais forte
foi que O julgamento do concílio só podia reiterar o ponto de vista do Santo Ofício:

32. A carta do embaixador veneziano Da Mula, datada de 21 de fevereiro de 1561, é reproduzida por P. Paschini,
"Giovanni Grimani Accusato d'Eresia", em Tre Illustri Prelati dei Rinascimento, Roma, 1957, pp. 155-158.
33. Carta de 22 de fevereiro de 1561, idem, p. 160.

Concílio ou "Guerra Espiritual"


168

Nem sua Serenidade [o doge] deveria pois acreditar que este Santíssimo Tribunal de Rom a,
no qual estão tantas personalidades de muita virtude , integridade e doutrina , fosse acusar o Patriarca
de coisas das quais o concílio não fosse fazer o mesmo, e talvez com maior severidade e rigor 34.

Em todo caso, decidiu-se fazer pesar sobre a cabeça de Grimani uma citação ad
comparendum diante do Santo Ofício, a ser entregue apenas se fosse visto de partida
para Trento. Foi imprescindível a habilidade de outra vítima ilustre da Inquisição, 0
cardeal Morone, para concluir a questão. O compromisso a que se chegou com dificul-
dade, após meses de atentas manobras , consistiu em confiar a questão não à assembleia
conciliar inteira, mas a uma comissão que reunia prelados de várias "nações" junto
com alguns gerais das ordens religiosas presentes em Trento: a comissão, designada
em 19 de julho de 1563, reuniu-se na casa de Morone em 13 de agosto. Cada um dos
membros emitiu oralmente seu parecer, que depois foi registrado por escrito, a pedido
de Morone. A sentença formal foi pronunciada em 5 de setembro e tornada pública
no dia 17; mas já em 26 de agosto uma carta de Trento relata o conteúdo do parecer
emitido pela comissão dos deputados , "os quais pronunciaram de comum acordo que
nos escritos de monsenhor Patriarca não haviam encontrado coisa alguma que não
estivesse conforme a verdade católica" 35 • Era uma conclusão diametralmente oposta
àquela do Santo Ofício. É natural que se pergunte "por que a carta de Grimani, julgada
herética pelos teólogos de Roma em 1561, pôde ser considerada isenta de erro pelos
teólogos de Trento em 1563" 36 • A leitura do que restou de ambos os processos pode
nos ajudar a entender melhor37 •
Diante de Pio IV, na sessão do Santo Ofício, tinham sido lidos os votos escritos
do geral dos jesuítas Laínez, do franciscano frei Felice Peretti (depois papa Sixto V), de
frei Cornelio Musso, do bispo de Lanciano Leonardo Marini, de Jacopo de Noguera, do
geral dos dominicanos frei Eustachio Locatelli. Laínez tinha antecipado considerar que
Grimani era pessoalmente um filho obediente da Igreja; e no entanto, tinha cometido
em boa-fé erros doutrinários graves, proferindo afirmações escandalosas e temerárias que
retomavam a heresia de Pelágio. Para Peretti, tratava-se contudo de erros já condenados
em Wyclif e Huss. Cornelio Musso observou que - após o esclarecimento prestado
pelo Concílio sobre essas questões - a carta parecia "de heresi lutherana vehementer
suspectam"; apenas Jacopo de Noguera não encontrou nada que não estivesse de acordo
com as ideias católicas, mas fez saber ainda que tinha conhecimento de uma anterior
abjuração de vehementi feita anteriormente por Grimani; a reunião foi encerrada com o
voto do dominicano Locatelli, o mais duro, que se concluiu solicitando que se passasse

34. Carta de Borromeo ao núncio em Venezia, 21 mar. 1562, idem, pp. 178-179.
35. Carta de Muzio Calino, citada por Paschini, "Giovanni Grimani Accusato d'Eresia", op. cit., p. 189.
36. Idem, p. 193.
37. No arquivo romano da Companhia de Jesus é conservado um processo que reúne, em cópia e na ordem, as
atas da comissão de Trento de 1563 e os registros da congregação do Santo Ofício de 16 de setembro de 1561
(Processus S. lnquisitionis sub Pio IV 1563 contra errores Patriarchae Aquileiensis in materia iustificationis et votum P.
lacobi Lainez circa eosdem errores, ARS!, Opp. NN. 207).

A Inquisição
169

ao processo formal. Rumo bem diferente tomaram os votos apresentados em Trento, na


reunião organizada por Morone: ausente o geral dos dominicanos , destituído na última
hora , tinham tomado a palavra o cardeal de Lorena, o cardeal Madruzzo - ou seja, os
chefes reconhecidos do partido francês e do imperial - e em seguida Stanislau Hosio,
Andreas Dudith, bispo de Pécs, Pedro Guerrero, bispo de Granada e influente porta-voz
do episcopado espanhol, Egidio Foscarari, bispo de Módena, Martin de Córdoba, bispo
de Tortosa, o abade beneditino Agostino Loschi. Ao contrário dos votos do Santo Ofício,
os votos desses últimos eram todos concordes em julgar não herética a carta de Grimani,
aliás devia ser considerada tamquam catholicam. Dudith acrescentou uma observação
curiosa: a carta de Grimani, escreveu ele, exprimia ideias ortodoxas, mas em tempos
tão infelizes como os que corriam era aconselhável não publicá-la para não encorajar os
homens a interpretarem as sagradas escrituras a seu bel-prazer. Se se levar em conta o fato
de que alguns anos antes , em 1556, Andreas Dudith tinha se dirigido a Célio Secondo
Curione, suplicando-lhe ajuda para um arranjo que lhe permitisse deixar a igreja católica,
será possível compreender melhor essa leve esfumatura de nícodemísmo, que se enquadra
bem em sua complicada posição pessoal de bispo secretamente dissidente 38 • Mas todos
os demais votos expressaram franca aprovação das ideias de Grimani. O último voto,
o do beneditino Agostino Loschi, declarou nada mais que um entusiástico consenso: o
abade de San Benedetto de Ferrara, membro da congregação de Montecassino que
criara a heresia "pelagiana" de Giorgio Siculo, elogiou o texto de Grimani pelo modo
como defendia a liberdade do arbítrio humano 39 •
Trata-se de leituras todas discordantes entre si: aquele texto podia parecer pela-
giano ou luterano, conforme o leitor. Mas as leituras eram concordantes, no entanto,
no que concerne à disposição de fundo : absolutória a da comissão de Trento, conde-
natória a romana. Em suma, a sentença não depende tanto da análise feita pelos votos
individuais, mas pré-existe de certo modo ao julgamento dos indivíduos. E a tendência
dos prelados do concílio era diametralmente oposta àquela do Santo Ofício.

2. 0 CASO DE AGOSTINO CENTURIONE


Naquele mesmo ano de 1563, já próximo de seu encerramento, o concílio também
examinou o caso de Agostino Centurione. Esse rico e poderoso mercador genovês, que
vivera muito tempo em Lyon e em Genebra, acabara adquirindo opiniões "luteranas" ,
isto é, calvinistas; citado pela inquisição de Gênova, decidira buscar caminhos mais
tranquilos para "reconciliar-se" com a Igreja. Num primeiro momento, tinha tentado
o caminho de poderosas recomendações e pedira à irmã que escrevesse à mulher de

38. A carta a Curione, desconhecida por P. Costil (André Dudith Humaniste Honwois, Paris, 1935) foi publicada por
Lech Szczucki e T. Szepessy (Andreas Dudithius, Epistulae, pars 1, 1554-1567, Budapeste, 1992, pp. 55-61).
39. "[...) Non solum esse catholicum sed etiam catholico sensu scriptum. Confirmat enim Deum non esse maio-
rum causam, docet insuper ita arbitrii libertatem, ut et paedestinatus possit aliquando peccare et praescitus
ad tempus benefacere" (voto datado de 15 de agosto de 1563, Processus, op. cit. , cc. 35v-36r).

Concílio ou "Guerra Espiritual"


170

Donato Matteo Minale, tesoureiro do papa; mas depois decidira dirigir-se a Trento. E
aqui considerações políticas de vários tipos - sobretudo, a possibilidade de reconduzir
à igreja, através de Centurione, alguns dos muitos calvinistas que tinham formado em
Gênova uma verdadeira igreja - foram alegadas pelos legados para reforçar a oportu-
nidade desse processo : mas também nesse caso tomou-se cuidado para não lesar as
prerrogativas do poderoso organismo romano do Santo Ofício. Recorreu-se então a um
subterfúgio legal: Centurione foi julgado em Trento, mas pelo arcebispo de Gênova,
Agostino Salvago, "juntamente com um par desses prelados" 40 • Como dizer que se
tratava de um processo normal diante da autoridade ordinária, e que só o acaso fazia
com que se desenvolvesse em Trento? Essas e outras considerações análogas chegaram
ao conhecimento do Santo Ofício, seja diretamente, seja através da influente e hábil
mediação do cardeal sobrinho Carla Borromeo. E naturalmente o processo foi concluí-
do do modo desejado por Centurione. Porém, mais do que a conclusão, o que parece
mais significativó é o confronto que ocorreu então entre o Santo Ofício de Roma e os
cardeais legados do concílio. Esses últimos , ao defenderem seu feito , não se referiram
à autoridade do Concílio, mas refugiaram-se atrás da antiga oposição entre bispos e
frades : os quatro prelados responsáveis pelo processo, "não podemos negar - escreveram
os legados - que não sintam muito mal que os mencionados Cardeais da Inquisição
demonstrem de certo modo (como eles dizem) confiar mais no frade inquisidor de
Gênova do que neles" . Era uma defesa bastante frágil; mesmo assim, os legados não
escondiam uma crítica substancial aos procedimentos do Santo Ofício, demasiadamente
duros e não adequados à época: estavam convencidos de "que nos tempos que correm
não era conveniente usar de rigor, que , ao contrário, era necessário com modos bran-
dos e amáveis mostrar o desejo de que os desviados voltassem ao bom caminho e se
juntassem à santa Igreja, fazendo com que soubessem que ela, como benigna e piedosa
mãe, estava de braços abertos para receber a todos com caridade" 41 •
Era uma oposição fundamental: mas o tom do protesto era de quem devia su-
portar um poder superior e temível, que não se podia nem sequer roçar com as críticas.
De resto, entre aqueles juízes conciliares havia alguns julgados pela Inquisição (Egidio
Foscarari) e isso era suficiente para tornar claras as relações de poder.

Restou ao concílio apenas a possibilidade de estabelecer como proceder para


"reconciliar" aquele que, arrependido dos próprios erros, pedia para voltar à comu-
nhão eclesiástica: após os rigores de Paulo IV e seu terrível Índex dos Livros Proibidos,
eram muitos os que tinham sido atingidos pela excomunhão por heresia, mas que não
ousavam denunciar-se diretamente à Inquisição. Na retomada dos trabalhos em Trento,
foram os franciscanos observantes do convento local de San Bernardino, que conhe-

40. Carta dos legados a Borromeo, Trento, 7 jan. 1563, citada por Luigi Carcereri, "Agostino Centurione Mercante
Genovese Processato per Eresia e Assolto dal Concilio di Trento (a. 1563)", em Archivio Trentino, XXI, 1906,
p. 6 do extrato.
41. Carta de 8 de março de 1563, idem, pp. 15-17 do extrato. Cf. também A. Tallon, "Le Concile de Trente et
l'lnquisition Romaine", op. cit.

A Inquisição
171

ciam bem essas coisas por meio da confissão, a colocar os legados diante do problema
da reconciliação dos arrependidos. Os legados, com cautelosas indagações a Roma,
obtiveram a licença para uma absolvição coletiva que foi dada no dia de Pentecostes de
156142 • Mas que se devia recorrer a Roma - até mesmo quando o poder de absolver os
hereges estava oficialmente entre as faculdades dos legados - era evidente para todos; e
0 comportamento cauto e desconfiado do papa Pio IV e de seu sobrinho não foi capaz
de apagar a lembrança recente de Paulo IV. A estrutura inquisitorial, fortalecida pelo
poder finalmente conquistado, chegou ao ponto de recusar qualquer colaboração com
Trento: o que pôde ser visto claramente quando um notário de Bérgamo, Vincenzo
Marchesi, herege relapso e fugido das prisões da inquisição milanesa, dirigiu-se a Trento
em 1563 e apresentou aos legados uma comovente súplica - "levou-nos verdadeiramente
à piedade e à compaixão por ele" , escreveram a Borromeo 43 • Foi necessária uma verda-
deira obra de persuasão por parte de Pio IV para convencer Michele Ghislieri a expedir
aos legados os autos em seu poder.
A esperança de um concílio capaz de sanar as fraturas religiosas e não de exacerbá-
-las demorou muito a morrer. Mas a alternativa entre inquisição e concílio foi resolvida
rapidamente pelo papado a completo favor da inquisição. Aquela congregação cardi-
nalícia da Inquisição que, em 1542, era oficialmente apresentada como uma medida
provisória à espera do concílio, vinte anos mais tarde era a titular de um poder que o
concílio mal ousava roçar.

42. A questão é tratada na correspondência dos legados com Carla Borromeo 0osef Susta, Die Rõmische Kurie und
das Konzil oon Trient unter Pius lV, Viena, 1904-1914, I, pp. 17 e 19. Cf. também Tallon, "Le Concile de Trente
et l'lnquisition Romaine", op. cit., p. 134).
43. L. Carcereri, "Appunti e Documenti sull'Opera Inquisitoriale del Concilio di Trento nell'Ultimo Período
0561-1563)", Rivista Tridentina, x, 1910, pp. 65-93; e Tallon, "Le Concile de Trente et l'lnquisition Romaine",
op. cit., pp. 142-143.

Concilio ou "Guerra Espiritual"


V
0 DESENVOLVIMENTO DA
CONGREGACÃO DO SANTO OFÍCIO
'

nquanto o concílio prosseguia a custo e com interrupções contínuas seu caminho,


E a Inquisição romana tinha se fortalecido . Nos anos em torno da metade do século,
a instituição deitara raízes na realidade italiana e perdera suas características de remédio
provisório de emergência. Sobre os modos e os tempos desse enraizamento há muita coisa
que não sabemos; mas é certo que naqueles anos as instituições antigas da inquisição
foram submetidas a uma profunda reelaboração.
Ora, a questão é se o reordenamento da Inquisição e seu crescimento foram
devidos à urgência da batalha anti-herética ou se a relação não é inversa: a Inquisição
romana pôde empreender uma vasta ação de controle anti-herético por ter conquista-
do por conta própria um poder extraordinário e deitara raízes estáveis no sistema de
governo eclesiástico.
É provável que a segunda seja a resposta correta. Não obstante o estado lacunoso de
nossos conhecimentos, sabemos o bastante para poder afirmar que a nova instituição teve
de combater em Roma a batalha mais áspera para afirmar-se e não nas várias províncias
italianas. Pode-se considerar emblemático o caso de um célebre documento, descoberto
e publicado há um século: uma longa lista de nomes e de acusações, que foi tomada
como um resumo de todos ou de muitos processos tratados pelo Santo Ofício desde sua
fundação até Paulo IV, e que, ao contrário, revelou-se rapidamente como o índice de
um único processo, aquele conduzido contra o cardeal Giovanni Morone por estímulo
de Gian Pietro Carafa 1• Através da leitura da cópia dos autos processuais entregues a

1. A opinião de seu editor, C. Corvisieri, de que se tratava justamente de um "Compendio dei processi del Santo
Uffizio di Roma da Paolo III a Paolo IV" (em Archivio della Società Romana di Storia Patria, III, 1880, pp. 261-290 e
449-471) foi contestada lucidamente por Karl Benrath ("Das Compendium lnquisitorum", Historische ?.eitschrift,
XLIV, 1880, pp. 46047 5) que reconheceu a verdadeira natureza do documento. A leitura comparada do compendium
e da cópia ad defensionem do processo Morone (consultada graças à cortesia do prof. Nicola Raponi, junto ao arquivo
particular Gallarati Scotti de Milão) levou o autor a resultados que foram expostos numa comunicação, apresentada
no Congresso de Estudos sobre a Reforma, realizado em Torre Pellice (1972), que permaneceu inédita; surgiu então
o projeto - não realizado _ de uma edição, pelo Corpus Refonnatorum Italicomm, dos autos processuais de Morone que
utilizasse O Compendium para decifrar os nomes omitidos nos próprios autos. Seguiram esse caminho, com novas e
aprofundadas pesquisas e com excelentes resultados, os modernos editores do Compendium e do processo Morone,
M. Firpo e S. Marcatto, Il Processo [nquisitoriale del Cardinal Giooanni Morone, vol. 1: "O Compendium" , Roma, 1981.
174

Morone para preparar sua defesa foi possível abrir uma brecha na luta dentro do colé io
cardinalício em meados do século XVI. Outros documentos, talvez mais significativ!s
quando se tornarem acessíveis enriquecerão a história do conflito que opôs então, e~
Roma, homens muito diferentes e concepções opostas sobre a Igreja e sobre a relacão
com os "hereges" da Reforma. Desde já, é possível entrever o documento-chave d~ssa
história naquele processo inquisitorial que foi construído a mando do cardeal e depois
papa Carafa contra o cardeal inglês Reginald Pole - o homem que preferiu não participar
da sessão do concílio de Trento em que foi aprovado o decreto sobre a doutrina da jus-
tificação, momento capital da ruptura teológica com a Reforma: o processo contra Pole
existe e foi lido - no século XX - por um estudioso ao menos (dom Giuseppe De Luca2)
que, infelizmente, não teve tempo de deixar pistas dele. Provavelmente, as tensões e as
emoções que envolvem a ruptura da unidade religiosa da cristandade ocidental são ainda
extremamente fortes , para que a Igreja romana decida-se a tornar de domínio publico as
intensas lutas que, naquela época, opuseram cardeais poderosos, candidatos ao papado:
mas é certo que esses cardeais dividiram-se não só em razão da aspiração à conquista
do poder papal, mas também do modo como pensavam usar esse poder voltado para o
mundo da Reforma.
Como evidenciou M. Firpo, reconstruindo a história do processo inquisitorial
contra o cardeal Morone, foi justamente no interior e na cúpula da Igreja que o Santo
Ofício revelou-se instrumento versátil de poder: a exclusão do papado de Reginald Pole,
o cardeal inglês amigo de Michelangelo e de Vittoria Colonna, e a onda de processos
e de suspeitas contra membros do colégio de cardeais, ilustres prelados e homens de
cultura encontraram em primeiro plano a função da congregação do Santo Ofício. A
constituição de um centro de poder desligado das instituições do governo ordinário e
coberto pelo segredo modificou substancialmente as regras do jogo. E foi justamente
no conclave aberto em virtude da morte de Paulo III que Gian Pietro Carafa lançou a
acusação de heresia contra o rival inglês: Reginald Pole suportou-a, segundo ele mesmo,
com a paciência de uma besta de carga, tal era sua boa consciência 3 • A acusação de
heresia não era, por si só, mais eficaz do que a de simonia, que não impedira Rodrigo
Borgia de tornar-se papa e de permanecer como tal; o jogo dos conclaves continuou a ser
dominado pelo peso das grandes potências e dos partidos cardinalícios. Mas os mapas
de acesso ao colégio cardinalício tiveram que dar lugar a um novo percurso, aquele que
passava através da polícia da fé. E foi justamente Giampietro Carafa, eleito papa, a ditar
a regra que excluía do direito de voto ativo e passivo em conclave os cardeais suspeitos
ou investigados por heresia: uma regra que atingia em cheio o cardeal Morone, mas que
também explicitava a nova identidade do papado da Contrarreforma4.

2. Algumas observações manuscritas de dom Giuseppe De Luca a esse propósito me foram dadas a ler pela
senhorita Maddalena De Luca, a quem muito agradeço.
3. Cf. Giuseppe De Leva, "La Elezione di Papa Giulio Ili" , Rivista Storica Italiana, I, 1884, pp. 22-38; ver P· 28.
4. A bula Cum ex Apostolatus Officio é de 15 de fevereiro de 1559 (Bullarium Diplomatum et Privilegiorum Sanctorum
Romanorum Pontificum, VI, Augustae Taurinorum, 1860, pp. 551-556). Sobre o contexto e sobre as interpretações

A Inquisição
175

De fato , a fisionomia do papado da segunda metade do século XVI é dominada


por tal centro de poder: foi somente por esse caminho que homens de origens humildes
como Michele Ghislieri ou Felice Peretti puderam ascender ao cardinalato e depois ao
papado. Outras carreiras, aparentemente muito mais promissoras, como as de Pole e
Morone, ao contrário, foram bloqueadas por meio de oportunos dossiês fornecidos pela
polícia secreta do Santo Ofício. Filtrar os candidatos ao papado, eliminar do círculo dos
elegíveis os concorrentes perigosos, não eram certamente coisas de pouca monta, visto
que - à diferença das tradicionais lutas pelo poder na Igreja - tudo isso podia acontecer sob
a égide da tutela da fé em sua pureza. A história dos conclaves foi , durante muito tempo,
modificada pela existência de uma estrutura central desse tipo . A ameaça do papa herege,
que nos séculos precedentes também tinha sido aventada no plano teórico por teólogos
e juristas, tornava,se instrumento eficaz, a ser usado contra este ou aquele concorrente.
O modelo humano no qual tiveram de se inspirar os candidatos ao pontificado e, em
torno deles, toda a sociedade eclesiástica foi influenciado por isso constantemente. A
vitória do sistema inquisitorial guindado ao trono de são Pedro por homens como Carafa
e Ghislieri não foi uma aventura individual: esses homens promoveram todo um corpo
eclesiástico inspirado nesse modelo. E o corpo tinha consciência disso: quando se tornava
papa um homem da Inquisição, "todos os inquisidores são particularmente obrigados
a render graças à sua Divina Majestade" 5 • Obviamente, os níveis inferiores da estrutura
eclesiástica foram submetidos ao mesmo processo: a garantia da pureza doutrinária do
corpo eclesiástico era fundamental numa igreja que vinha se identificando cada vez mais
decididamente com a componente clerical. Os catálogos de inquisidores publicados foram
um dos vestígios documentais deixados por aquele arraigado orgulho de corpo 6 • Mas
vestígios bem diferentes podem ser detectados nas carreiras que foram facilitadas pelos
vínculos de solidariedade construídos nas contingências comuns a essa polícia especial. O
episódio já lembrado do prêmio que Pio V conferiu no consistório de 8 de novembro de
1570 ao frei Aurélio Griani d'Urcisoni possui um significado exemplar que vai além da
gratidão do papa por quem o ajudara num momento difícil. Toda a estrutura eclesiástica
viu emergirem então dominicanos e franciscanos que dos tribunais da Inquisição passaram
diretamente às sedes episcopais e ao próprio trono pontifício 7. De todo modo, é fato que,
junto com a Inquisição, o conformismo doutrinário entrou constantemente na carreira e,
antes ainda, na antropologia eclesiástica, entendida como soma das regras de vida a que
era obrigatório uniformizar,se. O mundo eclesiástico foi consolidado por ele: o abismo

que foram dadas ao documento na época, cf. Firpo e Marcatto, II Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giovanni
Morone, vol. I, op. cit., p. 139 e nota.
5. Carta circular ao inquisidor de Florença do cardeal de Santa Severina, 15 set. 1610, por ocasião da eleição de
Urbano VII (Bruxelas, Archives générales du Royaume, Archives ecclésiastiques, 1828 3ter, e. 311v).
6. Cf. Cipriano Uberti, Tavola delli lr14uisitori, Novara, Francesco Sesali, 1586.
7. P. Simoncelli ("lnquisizione Romana", op. cit. , pp. 74 e ss.) sublinhou, através da leitura da Tavola del!i Ir14uisitori,
a função de promoção desenvolvida pelo ofício inquisitorial nas carreiras dominicanas do século XVI. Quanto
ao caso de frei Aurelio, cf. Pietro Tacchi Venturi S. 1., "Diario Concistoriale di Giulio Antonio Santori", op.
1re R·1cerche su lia Storia della Chiesa nel Cir14uecento, op. cit., pp. 132-133.
c1·t ., p. 317 ; pase h·101,· -r.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Oficio


1
176
1
social que até meados do século XVI separava os "príncipes da Igreja" do último dos frades
ou dos curas foi, quando não eliminado na essência, mascarado na forma da obrigação
de conformar-se nos costumes e nas doutrinas a um único modelo válido para todos.
É certo que isso não foi fruto apenas de um poder secreto concentrado nas mãos
de poucos homens. Esse poder existia e incutia terror: frei Felice Peretti, o futuro Sixto V,
não era absolutamente um homem pávido; e no entanto foi tomado pela angústia quando
precisou comparecer diante de Michele Ghislieri, o onipotente "grande inquisidor",
para justificar-se por suspeitas de heresia 8 • Porém, no fundo , havia sobretudo a ruptura
da unidade religiosa europeia, e a importância nova assumida pelas diferenças de dou-
trina nas relações sociais e políticas. O mundo monástico, a antiqua gens monachorum
insultada por Erasmo e pelos homens de cultura humanista, iniciava sua vingança. A
teologia das escolas, escarnecida por seu latim nada elegante, revigorava-se numa fase
dominada pelo problema da definição rigorosamente exata dos limites da ortodoxia.
A vontade feroz de isolar e destruir o herege pode ser vista nas imagens de fogueiras
chamejantes que dominam as escrituras monásticas: quando o franciscano G iovanni
de Fano publicava seu lncendio de Zizanie Lutherane 9 distorcia os termos da parábola
evangélica para expressar uma violenta carga de intolerância. Se as fogueiras acesas até
então tinham sido sobretudo as das bruxas, agora eram preparadas as dos hereges. E a
cultura monástica que dera à luz o Malleus Maleficarum no século anterior adaptava-se
à nova situação: contra Bernardino Ochino, que acabara de fugir, o cônego regula~ la-
teranense Raffaele de Como publicou seu Malleus Hereticorum 10 • E poucos anos depois
saiu publicado o tratado do franciscano espanhol Alfonso de Castro, cujo título era

) um grito de guerra: De Justa Haereticorum Punitione 11 •


Fogueiras e punições não faltaram . Em troca, uma feroz aspiração à pureza da fé
penetrou as hierarquias eclesiásticas. A pureza doutrinária e a santidade de vida eram
as novas qualidades exigidas do chefe da Igreja, uma vez que era dever dele a vigilância
contra a heresia, para garantir a saúde das almas. Sem levar em conta a ferocidade do
conflito desencadeado na Europa daqueles anos não seria possível entender o sucesso
de protagonistas desse tipo na cúpula da Igreja.
Veremos mais adiante alguns exemplos das dinâmicas sociais ativadas pela pre-
sença de uma polícia das ideias como a inquisitorial. Trata-se, no entanto, de entender
melhor como esse organismo veio a assumir suas características específicas na situação
italiana de meados do século XVI. Para isso, é preciso reconsiderar os elementos de
continuidade e os de ruptura entre velha e nova Inquisição.
Ora, o pouco que sabemos sobre o início do Santo Ofício é suficiente para
afirmar que houve, na cúpula da Igreja, uma solução de continuidade entre velhos e

8. O episódio é relatado por biógrafos de Sixto V; cf. L. von Pastor, Storia dei Papi, vol. x, Roma, 1928, pp. 25-26
e 649-650.
9. Publicado em Bolonha por Faello, em 1532.
10. Publicado em Veneza por Venturino Ruffinelli, em 1543.
11. Venezia, ad signum spei, 1549.

A Inquisição
177

novos direcionamentos sobre a questão: os anos de incubação deixaram traços de uma


busca persistente de instrumentos extraordinários para uma situação de emergência.
Essa busca foi promovida com insistência e convicção especiais pelo poderoso cardeal
Gian Pietro Carafa: a nova instituição ganha corpo em torno dele.

A própria identidade histórica da Congregação ainda parece mal definida: e pro-


vavelmente não só por falta de documentos ou de provas sequenciais de sua atividade.
O fato é que a definição e o aperfeiçoamento desse instrumento foi produto de um
processo histórico que durou muito tempo. Os elementos fornecidos pelo primeiro
historiador da Inquisição, Luís de Páramo, podem ajudar a acompanhá-lo. Entretanto,
como sugere Páramo, a opção de confiar a cardeais a tarefa de coordenação suprema da
Inquisição encontrava precedentes na tradição medieval. Ora, já antes de 1542, Carafa
tinha sido o ponto de referência das iniciativas e dos procedimentos contra os hereges.
Como já mencionado, no momento em que se aceitava intensificar a "guerra espiritual" ,
justamente o cardeal Carafa era o destinatário natural de uma providência do gênero:
se outros cardeais juntaram-se a ele, foi por razões de prudência política, a fim de o
controlar melhor. Sob sua presidência, reuniram-se então os membros da Congregação:
primeiro quatro (além de Carafa, Guidiccioni e os dominicanos Juan Alvarez de Toledo
e Tommaso Badia, esse último "Mestre do palácio sagrado" 12 e como tal dotado de au-
toridade específica em matéria de controle da ortodoxia), depois esse número oscilou
de seis a sete, até reduzir-se novamente a quatro sob Pio V. As reuniões da congregação
ocorriam todas as quintas-feiras, excluindo-se apenas a Quinta-feira Santa; o papa não
participava regularmente das reuniões. Somente a partir de 1556 o recém-eleito Paulo
N introduziu a práxis da presença constante do papa. Fiel à sua obsessiva preocupa-
ção com a supremacia da luta contra a heresia, o papa Carafa decretou a supremacia
absoluta do Santo Ofício sobre qualquer outra magistratura romana (1 º de outubro de
1555); concentrou também formalmente o funcionamento da Congregação nas mãos
de Michele Ghislieri, ao qual, antes ainda de se tornar cardeal, conferiu o mesmo poder
dos cardeais inquisidores na condução dos processos (1 º de setembro de 1555); ampliou
extraordinariamente a jurisdição do Santo Ofício, submetendo-lhe, entre outros, os
blasfemos (17 de outubro de 1555), os judaizantes, ou seja, todos os judeus de origem
ibérica (30 de abril de 1556), os culpados de sodomia (25 de novembro de 1557), os
simoníacos (24 de março de 1558), os celebrantes não ordenados (16 de fevereiro de
1559); conferiu ao Santo Ofício ampla faculdade de recurso à tortura, isentando seus
membros do risco de irregularidade canônica referente ao sangue derramado (29 de
abril de 1557) 13 ; revogou todas as permissões de leitura de livros proibidos e impôs aos
confessores não absolverem quem não se denunciava ou não denunciava eventuais cul-

12. Ou "teólogo do papa", conforme denominação vigente a partir de Paulo VI (N. do T.).
13. Cf. Pastor, "Allgemeine Dekrete", op. cit., passim. Sobre a questão da simonia, foi Girolamo Sirleto quem reco-
lheu material e levou Paulo IV a usar a segure da Inquisição contra o pestiferus {ructus dessa erva daninha; um
tratado de sua autoria sobre O tema é mencionado por P. Paschini, "Guglielmo Sirleto Prima del Cardinalato",
em Tre Ricerche sulla Storia della Chiesa nel Cinquecento, op. cit., PP· 230-231.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo O fi


178

pados (5 de janeiro de 1559); condenou à imediata pena capital os culpados de here-


sias particularmente graves, como o antitrinitarismo - decisão que inovava fortemente
a tradição inquisitorial do perdão aos hereges arrependidos e da atribuição ao braco
secular somente para os "relapsos" 14 • Foi uma verdadeira tempestade: a reação popul~r
que se desencadeou à morte de Paulo IV transformou a tradição do saque ritual em
uma agressão à sede do tribunal do Santo Ofício.
Foi justamente para reduzir o poder concentrado na Congregação, que Pio IV
aumentou para sete o número de seus membros e estabeleceu que as decisões fossem
tomadas por maioria dos votos , sem que ninguém tivesse mais autoridade que outros 15 .
Com Pio V, houve um retorno aos modelos do papa Carafa, que triunfaram a partir
da reforma do sistema das congregações empreendida por Sixto V: a Congregatio pro
sancta Inquisitione foi a privilegiada em todo o sistema, com base no princípio de que a
fé é o fundamentum de todo o edifício espiritual. Por isso, Sixto V confirmou todos os
privilégios de que a congregação fora dotada, reconheceu e consolidou o hábito pelo
qual o próprio papa devia presidir as reuniões e ainda definiu num leque mais amplo
e preciso as matérias que lhe eram pertinentes: heresia manifesta, cisma, apostasia ,
magia, sortilégios, adivinhações, abusos de sacramentos e qualquer outra matéria que
permitisse suspeitar ainda que longinquamente de heresia 16 • Na realidade, o âmbito
das matérias tinha se tornado indefinido e ampliável à vontade pelo simples fato da
predominância formalmente reconhecida a essa congregação sobre todas as outras. No
plano territorial, as coisas eram mais complicadas: em termos de direito, o Santo Ofício
não conhecia limites territoriais; e, ainda assim, declarava-se a vontade de não inovar
absolutamente nada nos privilégios da Inquisição espanhola.
Também no plano da organização interna da congregação romana - da qual no
entanto sabemos muito pouco - alguns sinais fazem pensar que deviam transcorrer
anos antes que se chegasse a um ordenamento burocraticamente eficaz. A figura-chave,
nesse sentido, foi a do "comissário" ou subdelegado: cabia a ele instruir as práticas a
serem tratadas, informá-las ao papa e executar as decisões da Congregação. Esse papel
foi desempenhado por membros da Ordem dominicana. O primeiro foi frei Teofilo
Scullica, calabrês, que ora assinou como "sub-inquisidor" ora como "subdelegado". Foi
sucedido por Michele Ghislieri, que sobre a atividade anti-herética e sobre as provas
de eficiência que soube dar construiu sua ascensão ao cardinalato; e, após sua eleição
cardinalícia, foi nomeado Tommaso Scotti. Entretanto, as figuras dominantes do

14. Essa bula de Paulo IV foi modificada por Clemente VIII, que remeteu ao arbítrio dos inquisidores também os
casos mais graves (cf. Albizzi, Risposta all'Historia, op. cit., p. 287).
15. Ainda Páramo fornece também os elementos de documentação (breve de Pio IV Cum nos per nostrum) e sugere
a interpretação (De Origine et Progressu, op. cit., p. 126). Todavia, a documentação mais útil para reconstruir 0
funcionamento do Santo Ofício é a editada por Pastor, "Allgemeine Dekrete", op. cit. (trata geralmente dos
mms. Barb. Lat. 1502 e 1503 da Biblioteca Apostólica Vaticana).
16. "[ ... ] Tam haeresim manifestam quam scismata, apostasiam a fide, magiam, sortilegia, divinationes, sacra-
mentorum abusus et quaecumque alia quae etiam praesumptam haeresim sapere videntur" (const. "Immensa
Aeterni Dei", Magnum Bullarium Romanum, t. IV/4, Romae, 1747, pp. 392-401.

A Inquisição
179

Santo Ofício não coincidiram necessariamente com a do "comissário" dominicano. É


o caso, por exemplo, de Giulio Antonio Santoro, escolhido por Pio V Ghislieri como
17
seu homem de confiança • De resto, o estilo e as escolhas de cada um dos pontífices
podem ser percebidos também nos mínimos aspectos da vida da nova instituição: e aqui
a nota dominante, no primeiro período de vida da Congregação, foi dada por Gian
Pietro Carafa. A presença assídua do papa, a regularidade e frequência das reuniões
(estabelecida a partir da sessão de 18 de abril de 1556) 18 foram os sinais externos de
um impulso sem precedentes da luta contra a heresia.
O local das reuniões era o palácio do Santo Ofício: se o papa presidia, então a
reunião ocorria no Vaticano. Um notário redigia os atos das congregações e conservava
suas atas; em caso de necessidade, concedia atestado regular do que fora deliberado.
Em 1566, o notário Cláudio de Valle entregou ao florentino Pietro di Ugolino de Vie-
ri, que o solicitara para anexá-lo a uma súplica ao duque, um resumo das atas de duas
reuniões em que se tratara de seu caso 19 • Somente essas atas, quando forem conhecidas,
nos permitirão acompanhar internamente a atuação do Santo Ofício. Externamente, o
Santo Ofício estabelecia comunicação direta com os inquisidores ou através do núncio.
Mesmo nesse caso, é difícil fornecer um esquema capaz de resumir situações diversas de
acordo com as épocas e os lugares; é certo que a correspondência entre o secretário do
Santo Ofício e os comissários locais foi o canal fundamental para o controle de cada caso
e para a imposição de uma linha comum. Mas também é verdade que a correspondência
diplomática com os núncios mantida pelos cardeais sobrinhos e, em seguida, pela secre-
taria de Estado, teve nas questões inquisitoriais um de seus temas fundamentais. Basta
dar uma olhada em qualquer um dos volumes que reúnem as correspondências romanas
com as nunciaturas estáveis italianas - Nápoles, Veneza, Turim, Florença - para neles
encontrar em abundância não só as linhas de gestão política das questões inquisitoriais,
mas também intervenções no mérito de cada processo. A razão dessa escolha residia na
ductilidade do instrumento político da nunciatura, em seu caráter original de servir
como instrumento de mediação e de tratativa direta entre papado e poderes estatais:
residia também na ausência de limites formais ao poder dos núncios aos quais o papa
podia delegar qualquer matéria, passando por cima dos outros poderes eclesiásticos com
a fórmula tamquam de latere legatus. No ato da nomeação, o núncio recebia o título de
comissário pontifício para as questões referentes à inquisição: e isso lhe permitia revestir
com a autoridade papal os procedimentos contra os hereges em situações de emergência
ou naquelas situações em que o tribunal romano da Inquisição não fora aceito: na Itália,

17. Sobre o cardeal de Santa Severina, Giulio Antonio Santoro, cf. Firpo e Marcatto, Il Processo lnquisitoriale dei
Cardinal Giooanni Morone, op. cit., vol. I, pp. 39-49. Quanto à figura do comissário ou subdelegado, cf. Vincenzo
M. Fontana, Sacrum Theatrum Dominicanum, Tinassi, Roma, 1666, pp. 540 e ss.; uma lista dos comissários
foi publicada: I. Taurisano, "S. Congregatio S. Officii, Series Chronologica Commissariorum S. Romanae
lnquisitionis ab Anno 1542 ad Annum 1916", em Hierarchia Ordinis Praedicatorum, Roma, 1916. pp. 67-78.
18. São dados retirados das atas das congregações do Santo Ofício, publicadas por Pastor, "Allgemeíne Dekrete",
op. cit., pp. 15-18.
19. Archivio di Stato dí Firenze, Tribunale della Nunziatura Apostolica, Atti criminali, f. 972, cc. 40v-41 r.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Ofício


180

como se viu , foram os núncios junto aos duques de Saboia e de Toscana que exerceram
esse poder nas campanhas contra os valdenses ou na primeira implantação de um sistema
centralizado de controle da ortodoxia; fora da Itália, foram os núncios pontifícios na
França das guerras religiosas a fornecerem seus poderes de mediação numa realidade
dilacerada, em que a heresia era tratada pelos tribunais reais como rebelião contra a
autoridade monárquica 20 • A lição aprendida nos estados italianos teve serventia mais
tarde na relação com outros parceiros estatais. Política e direito, relações reais de força
e tradições teológicas e jurídicas são ingredientes dificilmente separáveis dessa história.
A observação vale em particular quando se examina a relação entre Roma e
os outros estados italianos: e aqui a variedade das soluções formais que compôs 0
panorama italiano do século XVI avançado foi a abertura de várias relações de força e
de conveniência recíproca. O tempo acabou por selecionar e ordenar de acordo com
linhas homogêneas o que fora tentado nos difíceis anos do início: no fim , as redes
monásticas que cobriram boa parte da península acabou desenhando urna estrutura
fortemente centralizada e passavelrnente homogênea. Mas no começo, a necessidade de
obter imediatamente resultados eficazes, de um lado, os obstáculos interpostos pelos
poderes estatais, do outro, levaram os responsáveis do Santo Ofício a se moverem para
diversas direcões. Uma delas ao menos merece ser recordada: trata-se da norneacão de
' '
inquisidores laicos. É o biógrafo de Paulo IV Carafa quem conta essa história:

O S. Ofício de Roma dispôs de valentes e zelosos inquisidores, servindo-se ainda por vezes
de seculares zelosos e doutos, para auxílio da fé, como verbi gratia de Odescalco em Como, do conde
Albano em Bérgamo, de Muzio em Milão, Pesaro, Veneza e Capodistria. Essa resolução de servir-se
de seculares foi tomada porque não só muitos bispos e vigários, frades e padres, mas também muitos
dos próprios inquisidores eram hereges 21 •

Não há dúvida de que a desconfiança de Carafa em relação aos frades era enorme;
e, por outro lado, a maior parte dos casos de heresia tratados nas duas primeiras décadas
após o início do protesto luterano foi justamente de origem conventual e monástica.
Entretanto, também é verdade que a estrutura inquisitorial dispunha de homens bem
adestrados para decifrar as heresias e expor as astúcias dos hereges. O dominicano
Giovanni de Roma, que em 1532 processou o ancião valdense Pierre Griot em Apt, foi
extremamente hábil em extrair-lhe uma descrição precisa da organização e das ideias
valdenses no momento de passagem à confissão reformada 22 • Mas, independentemen-
te do fundamento do julgamento, ele nos restitui algo da sensação de perigo que foi
percebida à época por homens corno Carafa; e confirma-nos que, naqueles primeiros

20. A bula de designação do núncio concedia-lhe os poderes de comissário pontifício para as questões referentes
à heresia nos domínios de Saboia; cf. De Simone, Tre Anni Decisivi di Storia Valdese, op. cit., p. 274.
21. O trecho de Caracciolo é citado por C. Cantu, Gli Eretici d'Italia. Discorsi Storici, Torino, 1865-1867, II, p. 339.
22. Cf. Gabriel Audisio, Le barbe et l'inquisiteur. Proces du barbe vaudois Pierre Griot par l'inquisiteur Jean de Roma (Apt.
1532), Aix-en-Provence, 1979.

A lnquisição
181

movimentos do Santo Ofício romano, procedeu-se sem nenhum respeito aos modelos
tradicionais, conferindo-se encargos especiais para investigações secretas e recorrendo-se
até mesmo aos laicos. Como em qualquer polícia secreta, a figura do agente munido de
poderes especiais era prática comum na estrutura inquisitorial. Sabe-se, por exemplo,
que os dominicanos mais hábeis e preparados - como Tommaso Scotti de Vigevano e
Matteo Lachi - foram destinados ao desempenho de missões especiais, para as quais
lhes foram conferidos poderes excepcionais (menos conhecidos, por enquanto, são
justamente os usos desses poderes e o desenvolvimento dessas missões secretas 23) . Mas
os dominicanos pertenciam institucionalmente aos corpos especiais da Igreja destina-
dos à luta contra a heresia. Mais surpreendente é o fato de que se recorresse a alguns
laicos. Mas as provas disso, de resto, estão há tempo diante dos olhos de todos: aquele
que é mencionado aqui como o inquisidor laico para Milão, Pesaro, Veneza e Capo-
distria, Girolamo Muzio, fez ele mesmo publicar os documentos dessa sua atividade
inquisitorial. Suas Vergeriane referem-se à luta contra o bispo de Capodistria Pier Paolo
Vergerio; e suas Lettere Catholiche reúnem os testemunhos epistolares de uma assídua
atividade de organização policial e de vigilância doutrinária sobre pregadores como Celso
Martinengo e Ippolito Chizzuola nos anos em torno de meados do século 24 • Emerge
claramente dessas cartas que o recurso a Muzio tornara-se oportuno não só por sua
argúcia policial, mas também porque podia garantir o favor das autoridades estatais
para providências que, entregues às autoridades eclesiásticas, podiam suscitar suspeitas
e repulsas. Havia outro aspecto relevante: os lugares da heresia coincidiam com os da
cultura laica e do saber livresco - os lugares do livro impresso, ou seja, as livrarias.
E quem melhor que um homem de letras para poder espionar o que se dizia nesses
lugares? Muzio, literato e amigo de literatos, prestava-se bem ao objetivo. Podia, desse
modo, espionar os discursos de Vergerio e combatê-los com os mesmos instrumentos:
a imprensa, as cartas. Eram cartas de delação pública, polêmicas literárias que tinham
por objeto a verdade doutrinária e que serviam ao duplo objetivo de auxiliar o trabalho
secreto da Inquisição e desenvolver uma propaganda pública como antídoto. E, como
bom literato, podia colorir com palavras e imagens as cenas do duelo, que se tornavam
selvagens provas de força contra a besta feroz do herege: "Ele [Vergerio] permanecia na
livraria da insígnia de Erasmo, e (segundo o que diz o Salmo) qual leão em espelunca
. as garras a este e aque
esten dia . 1e "25 .

23. Tommaso Scotti esteve ao lado de frei Michele Ghislieri a partir de 1553 e sucedeu-o como comissário-geral da
Inquisição romana em março de 1557. Matteo Lachi foi nomeado "secretus e peculiaris nuncius" (com amplos
poderes) por Paulo IV em 25 de outubro de 1557, logo depois de ter deposto no processo contra o cardeal
Morone (cf. as fichas pontuais de Firpo e Marcatto, Il Processo Inquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op.
cit. , vol. II, pp. 173, 260-261 e nota).
24. Cf. Lettere Catholiche del Mutio Iustinopolitano, Venezia, 1571, p. 103 (carta a dom Ferrante Gonzaga, de 16
de abril de 1551 ·sobre Celso Martinengo); p. 104 (a Annibale Grisonio, de 18 de abril de 1551, ainda sobre
Martinengo); p. 145 (a Camillo Olivo, de Venezia, 16 de fevereiro de 1552, sobre lppolito Chizzuola); e passim.
• Le "vergenane,
25 . G . M uz10, • por G . o,·olito e Irmãos, Venezia, 1550, e. 34r. Cf. P. Paschini, Píer Paolo Vergerio il
.
G iovane e la sua Apostasia.
· Un Ep,·sodi'o delle Lotte Religiose nel Cinquecento, Roma, 1925, p. 137.

O Desenvolvimento d a Co ngregação do Santo Oficio


182

Três homens marcaram o início da Inquisição romana e conferiram-lhe ostra-


ços destinados a atingir a imaginação dos contemporâneos e a memória dos pósteros:
Gian Pietro Carafa, Michele Ghislieri, Feiice Peretti. O primeiro, em 1542, presidiu ao
nascimento da congregação que foi considerada sua criatura, o segundo foi o temido
comissário-geral da instituição - o verdadeiro "Grande Inquisidor" -, o terceiro con-
sagrou a proeminência do órgão no sistema de governo romano, colocando o Santo
Ofício no vértice das congregações em 1588. O estilo deles ficou impresso na ação do
tribunal que presidiam. O mais célebre e mais temido foi o do Carafa: a fúria do povo
romano , que se desencadeou quando de sua morte em 1559, destruindo os documentos
processuais e libertando os prisioneiros do Santo Ofício, deu a medida do clima de
terror que se tinha instaurado. De resto , Carafa não esperara o papado para mostrar
como os hereges deviam ser tratados em sua opinião. A dureza com que exigira de
um hesitante duque de Ferrara a execução capital de Fanino Fanini, de Faenza, tinha
sido um sinal para todos: a imagem da Inquisição romana na Europa reformada ficou
gravada dali em diante nos traços do cruel tribunal descrito por Francesco Negri e por
Giulio de Milão em seus relatos da morte heroica de Fanino 26 •
Gian Pietro Carafa tentou livrar a si mesmo e a seu tribunal da fama de crueldade
de que gozava pessoalmente. Em conversas com o enviado veneziano em Roma, Ber-
nardo Navagero, o papa declarou que na Inquisição procedia-se "com muita piedade e
misericórdia, e que se se pecava, pecava-se por serem excessivamente brandos" ; quanto
a si mesmo, Carafa afirmava "que, particularmente, jamais fora ávido por sangue, e que
não fosse alguns excessos escandalosos pelo quais havia necessidade de dar satisfações a
algumas comunidades por meio da pena, ele nunca desejaria ver a morte de ninguém" 27•
Porém, nesse momento, o papa tentava atrair para a rede uma presa de primeira grandeza,
o bispo de Bérgamo, Vittore Soranzo. Devia demonstrar determinação bem mais cruel
ao falar com esse mesmo embaixador de outra "peste herética" a ser queimada - por
exemplo, dos odiadíssimos Pole, Flaminio, Morone.
Dos três papas inquisidores, porém, somente um identifica-se perfeitamente
com a instituição, tendo sido ao mesmo tempo criador e criatura da mesma. Foi com
a implantação do Santo Ofício de Paulo IV que se construiu a carreira de um obscuro
frade piemontês; carreira fulminante, de frade a cardeal e a papa - e finalmente a san-

26. Cf. o verbete "Fanini" supracitado, cap. 3, nota 5.


27. "Nós que somos o primeiro a receber o encargo de Paulo III, temos, de tempos em tempos, tomado conhecimento
de que se procede com muita piedade e misericórdia, e que se pecavam, pecavam por serem excessivamente
brandos. Eu respondi que imitavam Deus Nosso Senhor, o qual abundava em misericórdia. Acrescentou o
Papa, que, particularmente, jamais fora ávido por sangue, e que não fosse alguns excessos escandalosos pelo
quais havia necessidade de dar satisfações a algumas comunidades por meio da pena, ele nunca desejaria ver a
morte de ninguém e que em várias épocas haviam estado na inquisição pessoas, que quando O povo pensava
que ia vê-las na fogueira, ele as via andarem livres após uma abjuração qualquer, porque sabe-se muito bem
o que rezam os cânones: e por isso fazem pior os que se ausentam". A conversa é referida em uma carta do
embaixador veneziano aos chefes do Conselho dos Dez, datada de Roma, 30 de outubro de 1557. ASVen.,
Sant'Ufficio, b. 160, ff. 130r-131 r. Sobre a importante correspondência de Navagero de Roma, cf. Pastor, Storia
dei Papi, vol. VI, Roma, 1922, pp. 670-672.

A Inquisição
183

to . Nomeado inquisidor em Como pelo capítulo provincial da Lombardia, segundo as


antigas regras , no primeiro conflito com os poderosos cônegos da catedral de Como,
Ghislieri recorreu ao Santo Ofício romano 28• Ao chegar a Roma, na véspera de Natal
de 1550, fora precedido pela fama da coragem e da intransigência com que exercera o
ofício de inquisidor: enfrentara os perigos de agressão por parte dos hereges no país
dos Grisões, fora apedrejado e salvo a custo por seu protetor Bernardo Odescalchi.
Devia demonstrar a mesma determinação dura e fanática na investigação que, como
inquisidor em Bérgamo, conduziu contra o bispo Vittore Soranzo: somente a ajuda de
quem lhe colocou à disposição um cavalo para fugir permitiu-lhe salvar a vida. Foram
essas qualidades que impressionaram Gian Pietro Carafa: e por isso introduziu Ghislieri
em sua "família" e, logo que se tornou papa, conferiu-lhe a diocese de Nepi e Sutri,
para logo em seguida nomeá-lo cardeal (15 de março de 1557) e Grande Inquisidor 29 •
O estilo de frei Michele Ghislieri está gravado nas frases de sua correspondência
oficial: duras e determinadas, sem incertezas, retrato de um homem que tinha um feroz
senso do dever e não tolerava compromissos. Leia-se esta, que foi mandada ao inquisidor
de Bérgamo, em 30 de novembro de 1555:

Reverendo Padre, não sei que fé eu possa dar de V. R. P. ao escrever, tendo-me vós muitas
vezes escrito que encontrais os magníficos reitores e o r. Vigário mui favoráveis , e por outro lado,
vós me escreveis terdes condenado Lazarino d 'Ardesio, herético relapso, às galés por três anos ... Não
sei de onde V. R. P. obteve autorização para poder formar tal sentença e quão ela esteja em confor-
midade com os sagrados cânones. Quem vos deu autoridade para perdoar um relapso, cousa que
jamais pretendeu a Sé Apostólica, nem este sacrossanto tribunal tem autoridade para poder fazê-lo?

E se isso tinha acontecido por desejo dos reitores vênetos, então "eles são inqui-
sidores e vós testemunha". Se era assim, a conclusão era uma só: "Este ofício não é para
V. R. e para descargo de vossa consciência será melhor escreverdes a vossos superiores
que lhe providenciem outro, do contrário ele será providenciado por cá."
Não era suficiente: segundo o estilo da Inquisição, a "culpa" jurídica era também
um pecado moral. O inquisidor de Bérgamo era convidado por Ghislieri a examinar
a própria consciência, por que se realmente tinha emitido uma sentença injusta para
"comprazer" às autoridades venezianas, então tinha incorrido também na excomunhão 30 •
Restou-nos um dossiê epistolar de Ghislieri, o dos despachos enviados por ele ao
inquisidor de Gênova. Ao folheá-lo, tem-se uma forte impressão do estilo do homem 31 •
Encontramos ali ordens detalhadas, muito precisas, sobre o que ser feito com cada um
dos réus: da tortura (o "rigoroso exame") à transmissão dos documentos processuais,
os aspectos da práxis são tratados com grande nitidez. Mas não se trata de definições

28. Sobre o caso dos cônegos, cf. o memorial anônimo e s.d. publicado por F. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa,
pp. 43le ss.
29. Cf. Nicole Lemaitre, Saint Pie V, Paris, 1994, pp. 53 e ss.
30. Carta de 30 de novembro de 1555, conservada em cópia em ASVen., Sant'Ufficio, b. 160, cc. n.n.
31. Cf. Pastor, Storia dei Papi, op. cit., vol. VI, p. 486.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Ofício


184

abstratas : as regras gerais que podem ser colhidas dessas cartas são poucas. Somente as
fundamentais: por exemplo, que o inquisidor deve investigar apenas os casos de suspeita
de heresia (quae sapiunt haeresim) "e não outros delitos, que se referem ad crimen lesae
maiestatis ou a outros erros" 32 • O que se evidencia é o trabalho a ser feito em terreno
delimitado com tamanha clareza: e o trabalho diário é o trabalho duro e odioso do
esbirro. É preciso arrancar a verdade das testemunhas, com ameaças:

Que se lhes advirta que não faltem à verdade, pois se forem apanhados mentindo serão
castigados mais duramente do que se fossem hereges; e hoje, aqui em Roma, está sendo fustigado
um frei Gio. Antonio de Faenza, da ordem dos Servos, por ter deposto em falso contra um frade de
sua religião 33 .

Quem não dá ouvidos aos convites dos inquisidores é para ser punido, aliás,
"merece todo o mal" ; e se há alguém que se gaba de ter "enganado o Ofício" , Ghislieri
quer ter testemunhos precisos do fato , "pois faria com que outras vezes não tivesse do
que se vangloriar" 34 • O "Ofício" sobrepõe,se, como deve sobrepor,se, a todos os pen,
sarnentos do inquisidor: "Esperamos então servir ao Senhor neste santo Ofício não
apreciando calúnias, porque convém pressupor que quem entra nesse Ofício torna,se
odioso ao mundo; mas tanto quanto o mundo tem ódio dele, tanto o Senhor haverá
de nos resguardar e seremos amados por ele" 35 • Para servir ao "Ofício" era preciso co,
nhecer e aplicar as leis; era preciso sobretudo indagar, conectar as pistas, desenvolver
um verdadeiro trabalho policial, de esbirro; Ghislieri o fazia. Suas cartas mostram como
seguisse as pistas dos suspeitos, levando em conta cada indício e determinando instruções
precisas para interrogar as testemunhas sobre bem determinados pontos. Quando se
passava às punições, mostrava,se duro, inexorável: se um frade tinha sido herege durante
anos e ensinara coisas erradas, não se podia tolerar que lhe fosse concedida permissão
para abjurar secretamente "por respeito a ele e à sua religião. Devia ele ter respeitado
a honra de Deus e a saúde do próximo". Por isso, abjuração pública e solene para o
frade; mas, ao mesmo tempo, broncas para o inquisidor que perdera tempo escrevendo
para Roma em busca de conselho e tentara ajudar o culpado 36 •
O Grande Inquisidor devia se tornar papa: mas sem esquecer nada do estilo e das
convicções amadurecidas nos anos anteriores. Seu dever de juiz supremo em matéria
de heresia absorveu,o mais do que tudo. "Vê todos os processos e lê todos os escritos",

32. Carta de 3 de dezembro de 1552 a Girolamo Franchi, inquisidor de Gênova, em Biblioteca Universitária de
Gênova, ms. E. VII. 15, c. 6r.
33. Carta de 7 de novembro de 1554, idem, c. 13r.
34. Carta de 5 de março de 1556, idem, c. 40r. Que a coisa incomodasse Ghislieri pode ser visto na carta seguinte,
em que torna a pedir uma verificação testemunhal "das palavras com que ele maculou o Ofício" (carta de 2
de abril de 1556, idem, c. 41 r).
35. Carta de 28 de maio de 1556, idem, c. 47r.
36. Carta de 20 de agosto de 1556, idem, c. 65r.

A inquisição
185

escrevia o cardeal Girolamo de Correggio em 1567 37• Se pensamos na quantidade de


documentos processuais que chegaram então a Roma de todos os terminais da estru-
tura, podemos ter uma ideia do trabalho que o papa dominicano desempenhava. Ler
processos e escrever - ou mandar escrever - cartas sobre o modo de levá-los adiante
foi uma tarefa à qual se dedicou sem poupar seu tempo. Tamanho afã em relação aos
documentos pertencia à dimensão do poder soberano assim como foi interpretado
naqueles anos pelo rei que foi sua encarnação mais conspícua, Felipe II de Habsburgo.
Mas para o papa que encarnou então os ideais de guerra santa da Contrarreforma, o
empenho burocrático foi dedicado sobretudo à condução dos processos. O fluxo contí-
nuo de cartas que de Roma guiaram os comportamentos dos comissários da Inquisição
em toda a Itália foi inspirado e controlado pessoalmente por ele. Pelas poucas frestas
abertas em uma documentação que ainda permanece quanto muito inacessível, vê-se
que essa leitura encarniçada dos autos era guiada por convicções precisas e por antigos
e arraigados rancores e suspeitas. O estudioso que do arquivo romano do Santo Ofício
trouxe à luz os materiais da dura ação romana contra a dissensão religiosa em Mântua
notou com justiça que os interrogadores do antigo secretário do cardeal Ercole Gon-
zaga, Endimio Calandra, insistiram sobretudo nos círculos dos "espirituais" italianos
da década de quarenta: eram essas "as sombras que continuavam a perturbar os sonos
dos herdeiros do papa Carafa" 38 • Suspeitava-se que Endimio Calandra soubesse "muita
coisa [... ) principalmente de alguns altos prelados e cardeais mortos e vivos" 39 • Morto
estava o cardeal Pole, mas o cardeal Morone estava vivo e vigoroso. Michele Ghislieri
tinha sofrido a absolvição do cardeal Morone e a do Carnesecchi quando era cardeal;
feito papa, conseguiu mandar Carnesecchi ao patíbulo e tentou inutilmente reabrir o
processo contra o cardeal Morone.
Fiel às suspeitas e às aversões amadurecidas durante anos de laboriosas e encarniça-
das investigações policiais, como papa devia incrementar o trabalho de polícia da fé que
lhe era familiar. Era um trabalho duro e arriscado: Ghislieri o conhecia bem. Salvara-se
por um fio no decorrer da investigação feita em Bérgamo contra Soranzo. Seus homens
corriam os mesmos riscos. A onda de ativismo que percorreu toda a estrutura a partir da
ascensão do Grande Inquisidor ao papado criou situações de grave tensão e perigo. Em
Mântua, na manhã do Natal de 1567, dois frades dominicanos foram mortos apunhala-
dos40. Mas enquanto os confrades dos assassinados, aterrorizados, armavam-se e projeta-
vam deixar a cidade, o papa fez ao embaixador de Mântua declarações do seguinte teor:

Se considerássemos por bem fazer em pedaços todos os frades de são Domingos, nem por
isso teríamos medo nem deixaríamos de seguir com galhardia por esse bom caminho que tomamos

37. Carta à cunhada Chiara; reproduzo a citação de Sergio Pagano, Il Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 36.
38. Idem, p. 144.
39. Carta do cardeal Rebiba ao inquisidor Camillo Campeggi de 27 de março de 1568, citada em idem, pp. 144-
-145.
40. Idem, p. 54.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Ofício


186

de tentar debelar os hereges. Nós estamos no mundo para guiar os homens até o céu: tanto rn .
ais
nós também devemos tentar chegar a ele: o que se faz por via de martírios, como fizeram esses d .
Ots
padres, cujas almas subiram diretamente aos céus 41•

O "martírio" dos inquisidores foi copiosamente recompensado: o fedor de carne


humana queimada era tanto - conta uma testemunha - que não se podia sair de casa42.
Tanta intransigência semeava ódio. Havia gente que teria colaborado de bom
grado para esse martírio; um mantuano exasperado exprimiu assim os sentimentos
citadinos contra o inquisidor: "Queira Deus que ele vá para o céu, para libertar desse
inferno muitos pobres!" 43
Na sede de martírio do papa Pio V há a consequência interna de sua assídua
caça ao herege e da violenta intolerância que demonstrou em relação aos judeus e não
cristãos em geral. Todas as forças da Igreja e todas as instituições disponíveis foram
desviadas para essa direção. Até as instituições de natureza político-diplomática, como
as nunciaturas, foram obrigadas a se adequar ao novo curso. Ao núncio junto aos
duques de Saboia, Pio V mandou escrever qual fosse sua interpretação das funções da
nunciatura: "Sua Beatitude não vos faz residir aí para nenhuma outra coisa que não
seja fazer continuamente com que os hereges não possam conversar nesses lugares e
que o S. Ofício seja apoiado" 44 .
As imagens com que seus representantes o definiram, colocaram em primeiro
plano justamente aquela santidade que em tempos vindouros devia ser sancionada
definitivamente com a beatificação: era um "padre simples de mente santa, de vida
inocentíssima[ ...] um papa muito bom e mui santo" 45 . A pureza da fé era componente
essencial dessa santidade que Michele Ghislieri reconduzia finalmente ao trono de Pe-
dro: e a própria política internacional do papado devia ser profundamente influenciada
pela preocupação com a defesa da fé . No momento mais alto e de maior sucesso da
iniciativa internacional do papado, ou seja, por ocasião da Liga contra os turcos, Pio V -
no consistório convocado em 18 de junho de 1571, para o envio dos embaixadores aos
príncipes cristãos - contestou asperamente o cardeal Cristoforo Madruzzo que propunha
convocar para a Liga também os príncipes da Confissão Augustana: não era possível
haver acordo ou paz com os hereges, nem mesmo com os mais moderados entre eles;
aliás, os mais moderados eram os mais perigosos, por poderem seduzir melhor os fiéis
e confundir as ideias. Logo, nenhum acordo contra a pureza da fé. Os rumos da guerra

41. Idem, p. 56.


42. "[ ...] Por causa do assado [de hereges na fogueira] ninguém naquele dia pôde sair de casa que não adoecesse,
tanto era o fedor" (carta de Ferrante Amigoni ao castelão de Mântua, 14 de abril de 1568, citada por Pagano,
Il Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 162).
43. Idem, p. 10.
44. Carta de Scipione Rebiba a Vincenzo Lauro, 3 dez. 1569 (Nunziature di Savoia, op. cit., I, p. 225).
45. Memorial anexado por Facchinetti à carta de 20 de julho de 1566 (Nunz.iature di Venezia, org. por Aldo Stella,
Roma, 1972, vol. VIII, p. 78).

A Inquisição
187

seriam resolvidos pelo Deus dos exércitos 46 • Era uma concepção da guerra santa mais
feroz e intransigente da que se atribuía aos turcos. Tanta dureza e tão feroz fanatismo
suscitavam perplexidade e discussões nos próprios ambientes da Cúria romana. Pelo
menos, observaria alguns anos mais tarde Alberico Gentili, os turcos combatiam apenas
os que consideravam infiéis e não faziam guerra contra seus hereges, os persas 47 •
A pureza da fé tornou-se um traço essencial do poder papal, o próprio fundamento
da ideia do primado romano: foi essa a herança permanente que Pio V deixou a seus
sucessores. A tutela dessa interpretação do primado teve importantes consequências
políticas. O caso do processo contra Bartolomé de Carranza, arcebispo de Toledo, detido
em 1559 pela Inquisição espanhola e objeto de um longo conflito entre Madri e Roma,
foi o ponto de confronto da interpretação romana das tarefas do tribunal da fé 48 • Pio V
inaugurou seu pontificado com uma guinada significativa: Carranza devia ser transferido
para Roma para ser julgado. Nas doutrinas atribuídas a Carranza, processava-se todo
um período de incertezas doutrinárias e de evangelismo anti-institucional. Mas com a
instauração do processo de um arcebispo espanhol em um tribunal eclesiástico romano
e não no correspondente sujeito ao rei de Espanha, Pio V indicava a afirmação de um
princípio que , tendo Roma como capital supra-estatal do corpo eclesiástico, era assim
subtraído até do mais católico dos reis. Esse princípio esteve no centro da dura batalha
travada com os estados católicos para impor a publicação da bula ln Coena Domini: hou-
ve, para isso, tensões notáveis, que ameaçaram prejudicar as alianças contra os turcos e
contra os huguenotes franceses , questões que no entanto interessavam ao papa. Entre
os estados italianos, Veneza conseguiu opor alguma resistência somente resguardando-
-se (como escreveu o núncio G . A. Facchinetti) "com o escudo do rei Felipe que porta
o nome Católico e possui teólogos mui eruditos junto de si" 49 •
O papa era também soberano de um estado territorial: e aqui a música era
diferente. A brandura e os escrupulosos procedimentos judiciários acionados para
Carranza não encontram nenhuma correspondência com os procedimentos utilizados
para reprimir a dissensão herética e as autonomias citadinas no Estado pontifício: em
Faenza, o conselho citadino foi decapitado; seus membros mais importantes foram
processados e mandados ao patíbulo em Roma 50 •
Dizia-se que a heresia minava o poder desde· as bases: mas o único a ser verda-
deiramente ameaçado com isso era o poder do papa, em sua dupla natureza. As "duas

46. A discussão é referida pelo cardeal Giulio Santoro (Tacchi Venturi, "Diario Concistoriale di Giulio Antonio
Santori", op. cit., pp. 338-339; pp. 44-45 do extrato).
47. Veja-se do autor deste volume "La Guerra Giusta nel Pensiero Politico Italiano della Controriforma", em
Odrodzenie i Reformacja w Polsce, XXXIX, 1995, pp. 31-49.
48. Sobre o caso de Carranza, é obrigatório o recurso à imponente documentação publicada por Jgnacio 1. Tellechea
ldígoras; cf. particularmente Fray Bartolomé Carranza. Documentos Históricos, vol. 5, Madrid, 1962-1976; e para
a fase romana El Processo Romano del Arzobispo Carranza (1567-1576), Roma, 1988.
49. Despacho a Michele Bonelli de 10 de dezembro de 1569, em Nunziature di Venezia, vol. IX, 26 mar. 1569 - 21
maio 1571, org. por Aldo Stella, Roma, 1972, p. 169.
50. Cf. Francesco Lanzoni, La Controriforma nella Città e Diocesi di Faenza, Faenza, 1925.

I O Desenvolvimento da Congregação do Santo Oficio


188

51
almas" que habitavam o corpo da autoridade papal encontravam-se ali • As fogueiras
acesas pelo papa Pio V e sua política da guerra santa - mais contra os hereges do que
contra os infiéis - estiveram estritamente ligadas a seu uso da Inquisição como "santo
ofício" a predominar sobre todos os demais. Depois dele, ninguém mais interpretou em
termos tão absolutos e universalistas uma tal concepção da pureza da fé . Uma herança
permanente que esse período de luta sem quartel contra o erro doutrinário deixou ao
poder papal foi, quanto muito, a possibilidade de usar o argumento da heresia como
uma espada de dois gumes: podiam ser punidos os hereges como autores de atentado
contra a dignidade papal e os autores de atentado contra a pessoa do papa como hereges.
E ambos os usos encontram-se amplamente comprovados no decorrer do século XVII.
Quando o cardeal Barberini teve de explicar às autoridades inglesas por que a Inqui-
sição romana mantinha preso durante três décadas um pobre eclesiástico anglicano,
culpado de ter chamado o papa "Anticristo", aferrou-se ao argumento de que o insulto
atingia sua Santidade como príncipe temporal, mesmo sem considerar sua dignidade
de chefe da Igreja 52• E, por outro lado, quem organizava conjuras contra a pessoa do
papa era condenado à morte com o argumento tradicional da Inquisição contra os
hereges, a acusação de lesa-majestade divina e humana 53 . Mas era um uso estritamente
defensivo, que não tinha mais a grandeza do projeto de fanática e agressiva intolerância
do Grande Inquisidor.

51. A imagem é de Paolo Prodi, II Sovrano Pontefice. Un Corpo e Due Anime, op. cit.
52. A carta do cardeal Barberini, de 26 de novembro de 1536' é citada por R• W . L·1ghtb own, "The p rotestan t
Confessor, or the Tragic History of Mr. Molle", em England and the Continental Rena1ssance.
· Essays m
· Honour
od ]. B. Trapp, org. por Edward Chaney e Peter Mack, Woodbridge, 1990, pp. 239-256; em part. p. 247. Molle
fora capturado enquanto acompanhava um nobre pupilo numa viagem educativa à Itália.
53. Cf. o caso descrito por Luigi Firpo, "Esecuzioni Capitali in Roma (1567-1671)", em Eresia e Riforma nell'Italia
dei Cinquecento, Miscellanea I, Firenze/Chicago, 1976, pp. 309-342; em part. p. 318.

A Inquisição
VI
A CRUEL INQUISIÇÃO

lnquisição era cruel? Os julgamentos dos contemporâneos e os de toda uma tradição


A historiográfica falaram em crueldade. São esses julgamentos que alimentaram a
"lenda negra". Não se trata de acusações provenientes apenas dos inimigos declarados ou
das vítimas. São vozes provenientes também de dentro do colégio cardinalício e da própria
congregação do Santo Ofício. "Horríveis" os julgamentos daquele tribunal: assim pensava,
por exemplo, o cardeal Seripando, que atribuía à dureza de Paulo IV a culpa disso 1• É certo
que a determinação à luta anti-herética do papa Carafa era clara e evidente. Ainda assim,
nem Carafa nem os outros inquisidores jamais admitiriam serem cruéis, pelo contrário.
Como se viu, o papa Carafa afirmou, em conversa com Bernardo Navagero, que o Santo
Ofício procedia "com muita piedade e misericórdia, e que se se pecava, pecava~e por serem
excessivamente brandos", tanto é verdade que tinha havido várias pessoas condenadas pela
inquisição libertadas após a abjuração, para grande espanto do povo, que "pensava que
ia vê-las na fogueira" 2• O argumento era usado de caso pensado: tratava-se de convencer
Soranzo, o bispo de Bérgamo, a dirigir-se a Roma para ser julgado ali. Mas as palavras de
Carafa exprimiam bem o comportamento dos inquisidores ante a acusação de crueldade.
Não se sentiam cruéis. O trabalho deles era necessário, ou melhor, indispensável:
era a mais nobre das missões e a ela era preciso dedicar-se sem ódio ou animosidade.
Não tinha sido o próprio Deus a começar aquele trabalho quando, no Paraíso terrestre,
interpelara Adão? E o inquisidor Masini acrescentava:

por ser divino e celeste o encargo que ele tem, deve consequentemente mostrar-se muito íntegro
ao proceder judicialmente, muito secreto ao encaminhar as coisas, caridoso ao governar os detentos,
cauto ao acreditar no que dizem as testemunhas, condescendente ao defender os réus, maduro ao
decidir os casos, benigno ao receber os penitentes, grave ao sentenciar os culpados, severo ao punir
os pertinazes, constante ao executar as sentenças, e tal por fim que em todas suas ações à dignidade
3
da personagem junte sempre uma angélica pureza de Paraíso •

1. Cf. mais adiante, nota 41.


2. Cf. anteriormente, cap. V, nota 28.
3. A imagem de Deus primeiro inquisidor pertence à tradição medieval dos manuais: cf. Umberto Locati, ]udi-
. le Inqumtorum,
eia •• Romae apud haeredes Bladii, 1568, sub voce "lnquisitor", p. 195; e no Sacro Arsenale Overo
190

Na eterna luta da verdade e do erro, havia necessidade de um tribunal para


defender a verdade e dar caca à heresia· isso não significava que se devia maltratar
' '
quem caía em erro, pelo contrário. Sem ódio e sem maldade, sem fins lucrativos, o
juiz inquisitorial devia andar à procura somente da verdade. Em relação aos culpados,
devia-se exibir um semblante terno, como aconselhara Bernardo Gui e como repetiam
todos os manuais inquisitoriais: e devia-se demonstrar "compaixão" justamente para
evitar a acusação de crueldade 4 •
E ainda assim, a Inquisição tornou-se logo sinônimo de tribunal cruel. Era real-
mente? À época o julgamento foi unânime da parte dos adversários religiosos e foi
herdado e repetido por muito tempo pela tradição liberal e democrática. Hoje, está
ocorrendo uma revisão desse julgamento: há quem propôs comparar a produção de
execuções capitais ou de torturas desse tribunal com a de um tribunal laico; e há quem
evocou a terríveis escabrosidades da célebre "Carolina", a constituição penal emanada
por Carlos V para o império. Com base nos dados numéricos, não é difícil demonstrar
que os tribunais criminais condenaram à morte mais gente, com torturas e violências
muito mais graves 5• De resto, os homens da Inquisição romana frequentemente apresen-
taram o argumento de que os outros tribunais eram mais cruéis que o do Santo Ofício.
Os inquisidores eclesiásticos geralmente não perderam a ocasião de exaltar a brandura
de seu tribunal em relação aos tribunais laicos. O termo "humanidade" encontra-se com
bastante frequência nas descrições que o Santo Ofício fazia dos próprios procedimentos,
em contraposição aos dos outros 6 • Contudo, não se pode ignorar quanto esse tipo de
representações era intencionalmente destinado à propaganda.
O fundamento antigo dessa propaganda residia na oposição original entre sacer-
dócio cristão e violência: ritos de uma religião nova contrária aos sacrifícios cruentos,
aqueles cristãos se baseavam em um corpo eclesiástico que não podia manchar as mãos
com o sangue das vítimas. Foi necessária, como se viu, uma medida especial de Paulo IV
para eliminar a irregularidade prevista pelos cânones para os inquisidores que, durante a
tortura dos réus, achavam-se materialmente contaminados pelo sangue7• Outro problema
do mesmo gênero criava-se, todavia, por ocasião da entrega ao braço secular. Como é

Prattica deU'Officio della S. Inquisitione de Eliseo Masini lê-se: "Inquisidor maravilhoso foi Deus abençoado" (cito
a partir da edição Roma, tipografia da R. Câmera Apostólica, 1705, p. 1; aqui, à p. 3, a passagem sobre como
deve "se mostrar" o inquisidor). Sobre a atividade literária de Locati, cf. Simon Ditchfield, "Umberto Locati
O. P. (1503-1587). lnquisitore, Vescovo e Storico", Bollettino Storico Piacentino, LXXXIV, 1989, pp. 205-221.
4. "lnquisitor igiturvelut iustus iudex, sic teneat in condemnationibus penalibus rigorem iusticie quod non solum
in mente servet interius, sed etiam in facie ostendat alterius compassionem, ut per hoc vitet notam indignationis
et iracundie, que argumentum et notam crudelitatis inducit" (Practica Inquisitionis Heretice Pravitatis, auctore
Bernardo Guidonis ... , ed. C. Douais, Paris, 1886, p. 233; retomo a citação de Camillo Henner, Beitritge zur
Organisation und Competem: der Papstlichen Ketzergerichte, Leipzig, 1890, p. 58).
5. Cf. William Monter e John Tedeschi, "Toward a Statistical Profile of the Italian lnquisitions, Sixteenth to
Eigteenth Centuries", em G. Henningsen e J. Tedeschi (orgs.), The Inquisitions in Early Modem Europe, Studies
on Sources and Methods, Dekalb, 1986, pp. 130-157.
6. Cf. Locati, ]udiciale Inquisitorum, op. cit., pp. 209-210.
7. Ato de 29 de abril de 1557, publicado por Ludwig von Pastor, Allgemeine Dekrete, p. 21.

A Inquisição
191

sabido, o tribunal da Inquisição não se manchava com o sangue dos réus: a sanção mais
dura que podia infligir era a excomunhão. Quando se tratava de mandar à morte os
condenados, havia sido encontrada a escamoteação de uma fórmula de entrega na qual
não só não se falava em morte física (mas apenas de excomunhão), bem co mo ainda por
cima os juízes eclesiásticos pediam à autoridade secular para moderar a punição flsica
e abster-se de derramar sangue. Segundo o franciscano espanhol Alfonso de Castro,
essa fórmula queria dizer exatamente o que estava escrito ali : os julzes eclesiásticos não
só não pediam a morte do herege, como pediam justamente o contrário 8• Mas, para
além dos esquemas formais - e que se tratasse de puro formalismo era reconhecido até
pelos especialistas em procedimentos inquisitoriais, como Francisco Pena - a realidade
era bem diferente: quando Pio V condenou Pietro Carnesecchi à morte, estava bem
decidido a vê-lo morto, embora no final da sentença contra o protonotário florentino
estivesse escrita a ordem de "moderar nossa sentença relativa à pessoa em questão, sem
risco de morte e efusão de sangue" 9 •
Na realidade, as coisas aconteciam de modo bem diferente de como essa imagem
de fachada queria fazer crer. De um lado, no plano prático, as autoridades da Inquisição
sempre fizeram de tudo para conseguir que os hereges excomungados fossem condenados
à morte com a máxima solicitude e da maneira mais clamorosa; de outro, a jurispru-
dência inquisitorial tratou explicitamente da questão de como obrigar as autoridades
laicas a mandarem à morte os hereges. O "braço secular" tinha sua própria autonomia a
respeito, motivo pelo qual não era infrequente o caso de sentenças de excomunhão que
demoravam a transformar-se em condenações capitais. Mas a jurisprudência inquisitorial
tinha suas astúcias policiais: as autoridades renitentes sempre podiam ser acusadas de
amizade suspeita com os hereges e submetidas por sua vez a processo inquisitorial 10 • De
fato, na práxis aquela entrega equivalia à condenação à morte: o herege excomungado
e entregue ao braço secular era executado, geralmente na fogueira. Se as autoridades
políticas tergiversavam e adiavam a execução, então chegavam as gritas pressantes de
Roma. No célebre caso de Fanino Fanini, o duque de Ferrara - que tinha aproveitado
a situação de sede vacante entre Paulo III e Júlio III para suspender a execução de Fa-
nino - foi convidado com dura insistência a mandar cumprir essa morte, que era tão
grata (vehementer gratam) ao papa 11 •
As razões de humanidade veem-se apoiadas mais pelas autoridades políticas.
, Quando o herege de Módena Marco Magnavacca foi condenado pela Inquisição, 0
conselho da cidade de Módena apelou ao duque de Ferrara em nome dos sentimentos

8. Alfonso de Castro, De Iusta Haereticorum Punitione, Venetiis, ad signum spei, 1549, e. 14.
9. "Estratto del Processo di Pietro Carnesecchi", org. por Giacomo Manzoni, em Miscellanea di Storia Italiana,
Torino, 1870, pp. 572-573.
10. Essa era a sugestão de Antonio de Sousa, ''Aphorismi lnquisitorum", Tournoni, 1633, liv. lll: De Paenis Haere,
ticorum, pp. 413 e ss.
11. "Fades enim rem ipsi Deo et nobis vehementer gratam tibique honorificam , et populis tuis, ut in fide catholica
conserventur, admoêlum salutarem" (carta de Júlio lll, de 31 de maio de 1550, em B. Fonta na, Rena ta di Francia
Duchessa di Ferrara, II, Roma, 1893, pp. 520-521).

A Cruel Inquisição
192

de "compaixão pela mísera mulher e seus cinco filhos pequenos, incapazes de ganharem
o sustento" 12• Mas não são expressões que devam ser tomadas muito ao pé da letra.
Neste caso, não seria possível entender por que sentimentos do gênero não encontravam
espaço quando se tratava de mandar executar os condenados pelo tribunal criminal.
No mesmo documento, há um sinal que pode apontar o caminho certo: é dito que a
cidade não desejaria assistir a um espetáculo "tal que em nossa memória ainda não foi
visto por aqui" . Ora, é evidente que outras execuções tinham ocorrido e outras deve-
riam ocorrer, como se pode observar na lista de justiçados de Módena 13 • Aqui se faz
referência a um aspecto específico da execução pública do herege: da heresia a entidade
coletiva que era a cidade deduzia, evidentemente, uma mancha, uma nota de infâmia
que se tentava evitar a qualquer custo ou pelo menos esconder. Um acordo com Roma
permitiu chegar a uma solução de compromisso: Magnavacca foi estrangulado durante
a noite na prisão para depois ser queimado na fogueira em praça pública. Sinal de que
não se tratava tanto da "desumanidade" da execução, mas do caráter do ritual público,
que de qualquer modo era considerado desonroso para a coletividade.
O episódio de Módena encontra confirmação em todas as controvérsias em
matéria de heresia e de inquisição que então opuseram os estados citadinos italianos
à sé romana. Já vimos como se opunham, no caso veneziano, uma vontade romana de
organizar autos de fé públicos e a surda resistência veneziana em relação a tais exibi-
ções. É uma oposição que se encontra mais ou menos nos mesmos termos em muitos
episódios relativos a outros estados italianos. Lucca resistiu vitoriosamente, como
vimos, à introdução da Inquisição romana porque não tolerava a mancha da "infec-
ção" herética. Em Mântua, em 1568, um pregador franciscano elogiou publicamente
a cidade e delongou-se em "chamá-la católica"; o inquisidor, apoiado por Pio V, reagiu
imediatamente, considerando o elogio "uma mentira perante este Santo Ofício e ao
próprio papa" 14 • Ora, nas representações tradicionais da cidade, a candura imaculada da
fé sempre desempenhara papel destacado. No que se refere a Mântua, basta remontar
a 1541 para encontrar a publicação de um sermão do cônego regular Callisto Fornari,
dedicado à exaltação da cidade como identidade coletiva, protegida por Deus por ser
local de culto sem nódoa. Era, vale a pena notar, um sermão sobre o texto de Aggeo
de evidentes ecos savonarolianos 15 • Desde os tempos de Savonarola em Roma, eram
toleradas de má vontade esse gênero de representações, pois de modo mais ou menos
explícito a antítese entre a cidade santa e a Babilônia infernal sugeria sempre uma com·
paração negativa com a sé papal. Por volta de meados do século XVI, o papado teve força
para derrubar o esquema tradicional e impor um modelo novo que atribuía a Roma
a missão de guardiã da fé, capaz de desencavilhar a peste herética de todas as outras

12. Carta de Francesco Comi, 6 set. 1568 (Archivio de Stato di Modena, lnquisizione, b. 4).
13. Conservada no Arquivo Municipal de Módena, Vacchetta delli Giustiziati.
14. Pagano, II Processo di Endimio Calandra, op. cit., pp. 73 e ss.
15 • Expositione di Aggeo propheta, nel Duomo de Mantua predicata per il Reverendo Padre Don CaUisto Placentino..., Padova,
G. M. Simoneta de Cremona, 1541.

A Inquisição
193

cidades. Desse fundo de representações e de esquemas mentais arraigados originava-se


a tentativa de evitar as execuções e as abjurações públicas, ou de pelo menos isentar
delas quem desempenhava funções de governo . Não se tratava de "humanidade", mas
de defesa do bom nome da cidade e de seus governantes diante do povo dos governados.
A Itália das cem cidades e dos estados citadinos resistia à representação dos triunfos
da fé romana nos quais via, justamente, uma limitação do poder de seus patriciados.
O exemplo espanhol da ênfase cerimonial nas execuções da Inquisição estava ali para
lembrar o modelo político que não era desejado na Itália 16 •
Mas não é neste terreno dos fatos , do sangue e das penas que se fincam as raízes
do julgamento de crueldade. Elas se acham inextrincavelmente ligadas à prática de
submeter à sanção de um tribunal as convicções de fé . A historiografia moderna herdou
esse julgamento da polêmica que a literatura da Reforma conduziu contra a prática
inquisitorial romana.
As raízes controversistas desse julgamento são reforçadas com uma verificação mes-
mo superficial na literatura da época. Descobrimos assim que mesmo da parte daqueles
católicos que apoiavam a atuação do Santo Ofício podiam se erguer ocasionalmente
vozes de protesto: isso acontecia quando se tratava de criticar o uso de métodos inquisi-
toriais por parte de estados não católicos. Contra a lnquisitio Anglicana e a crueldade dos
"maquiavelianos" ingleses o jesuíta Richard Verstegan escreveu páginas duríssimas 17• É
o sinal de que o termo "inquisição" podia indicar qualquer procedimento judiciário em
matéria de fé prescindindo da autoridade que o promovia. O que suscitava escândalo
e protesto era o fato de que se recorresse à força em matéria de fé . A questão viveu um
momento de dramática atualidade por volta de meados do século XVI. E é singular que
uma imagem cruel e sanguinária da Inquisição fosse se cristalizando mais tarde, bem no
momento em que esse tribunal, terminada a fase mais dura da luta contra a dissensão
herética, enfrentava outras questões e o fazia de um modo cada vez menos "cruel" , cada
vez mais propenso à persuasão do que à punição.
A discussão do problema se os hereges podiam ser obrigados por meio da
força a renunciar às suas ideias surgiu, como se sabe, em torno do caso de Michele
Serveto, o antitrinitário espanhol mandado à fogueira na Genebra de Calvino. Era
óbvio que na igreja católica se recorresse à Inquisição; o que, ao contrário, era per-
turbador para Sebastiano Casttellione e para os hereges italianos era o fato de que
na cidade conquistada pela Reforma deixassem sobreviver esses métodos. Porém,
se naquela fase de reordenamento das instituições eclesiásticas e de enrijecimento

16. Uma comparação entre cerimônia romana e cerimônia ibérica do auto de fé é proposta por F. Bethencourt,
num estudo que dedica grande e talvez excessiva importância aos aspectos cerimoniais (l:Inquisition à l'époque
modeme, op. cit., pp. 306 e ss.), mas que acentua justamente o désinvestissement cérémoniel italiano como elemento
representativo das dificuldades de afirmação simbólica da Inquisição romana em um contexto de multiplicidade
de poderes.
17. Theatrum Crudelitatum Haereticorum nostri Temporis, Antverpiae, apud Adrianum Huberti, 1592, p. 69: "lnquisi-
tionis Anglicanae et facinorum crudelium machiavellanorum in Anglia et Hibernia a Calvinistis protestantibus,
sub Elizabetha etiamnum regnante peractorum, descriptiones" ·

A Cruel Inquisição
194
I
das fronteiras confessionais o episódio de Serveto estava destinado a causar tais !/
polêmicas , devemos reconhecer que a guinada desse episódio era o resultado que
ocorrera tempos antes . I
,J

Na época da cultura humanista, os homens de letras tinham enterrado a cultura f


i
1
monástica e os instrumentos da Inquisição sob montes de ironia; desde então, parecia
J'
que nada mais podia desenterrá-los. Deviam pagar caro essa ilusão; e quem experimentou
!
mais diretamente o caráter ilusório desse triunfo foi justamente aquele que parecia ter
dado o golpe de misericórdia no velho instrumental: Erasmo de Roterdã.
!
Erasmo tinha atacado as pretensões da Inquisição com ironia do intelectual. ii
Em seus Colóquios , tinha criticado a inquisitio de fide: tinha contraposto o modelo de
y
um diálogo confiante baseado no cristianismo ao ódio teológico da cultura monástica.
Mas, com o aparecimento de Lutero, essa ironia não foi mais concebível; "não tenho i
coragem de arriscar a vida pelos meus princípios" , escrevera Erasmo nesse colóquio. O
,.
rápido e cruel divórcio do velho mestre, o sinal do avanço de tempos novos foi dado J
pelo virar-se da ironia - na forma abrupta da sátira e da derisão - contra ele: desde
Lutero que, no De Servo Arbitrio fez-se passar por um jovem e brilhante discípulo de
um pedante já superado, a Célio Secondo Curione, que fez aparecer em seu Pasquino
in Estasi um Erasmo condenado por analogia no além a penas que lembravam sua
tentativa de fazer jogo duplo 18 •
Agora era necessário decidir: e no cômputo devia-se incluir a dura punição
reservada ao herege. Não por nada, entre as proposições de Lutero condenadas como
heréticas na bula Exsurge Domine figurava em evidência aquela segundo a qual "queimar
os hereges é contra a vontade do Espírito". O ataque à própria existência do corpo
eclesiástico, feito por Lutero, conferia agora à velha instituição do tribunal monástico
um valor simbólico novo e uma função decisiva. Foi assim que nasceu uma "legenda" da
Inquisição, destinada a coroar com seu halo todo discurso sobre esse tribunal, inclusive
obviamente os discursos dos hístoriadores.
Assim, enquanto nos arquivos da Inquisição as fileiras dos novos processos contra
os "luteranos" começavam a ser depositadas junto àquelas dos processos por magia, por
feitiçaria ou por heresia acumuladas nos séculos anteriores, a aparente continuidade da
instituição devia se confrontar com uma nova maneira de sentir: a violência em matéria
de fé aparecia como a negação do Evangelho de Cristo.
Entre todas as acusações lançadas contra a Inquisição essa estava destinada a
ocupar o horizonte. Num primeiro momento, contudo, a questão não foi a da cruel-
dade inquisitorial contra a brandura evangélica, e sim a do choque entre quem tinha a
verdade da sua parte e quem tentava sufocar essa verdade por meio da forca. "A nossa
causa é causa de Deus e é justíssima": assim deviam consolar-se "os pers~guidos por

18. Pasquino in Estasi Nuovo e Molto Piu Pieno ch'el Primo, Roma (aliás, Venezia), 1546, e. L 8rv; cf. A. Biondi, "Il
Pasquillus Extaticus di C. S. Curione nella Vita Religiosa Italiana della Prima Metà del '500", Bollettino della
Società di Studi Valdesi, n. 128, dez. 1970, pp. 29-38 (e do mesmo o verbete "Curione", em DBI, vol. 31, Roma,
1985, pp. 443-449). .

A Inquisição
195

professarem a verdade evangélica" 19 • Era o que se lia num escrito consolatório, elaborado
originalmente para os luteranos alemães após a dieta de Augusta e traduzido para os
italianos após a reviravolta de 1542. Mas os homens da primeira fase do movimento
reformador, quase sempre de cultura monástica, não se escandalizavam facilmente com o
recurso à violência. O que os ofendia era a traição da verdade evangélica, o acúmulo de
erros e superstições que viam nos adversários, contra os quais invocavam de bom grado
a ira de Deus e a dos homens. Num dos textos mais populares da nova fé , a questão era
apresentada com as palavras de santo Atanásio contra os arianos: melhor fugir que ser
perseguido, melhor esconder,se que morrer 20 • A questão devia mudar de aspecto com
o duro ataque de Calvino a quem não professava abertamente sua fé.
No entanto, no momento do conflito, prevalecia a exaltação do desafio, a con,
fiança na vitória: "Sejam feitas inquisições, apreendam,se os livros - escrevera o exilado
Bernardino Ochino - que agora multiplicou,se de tal modo a bendita semente de
Abraão [...] que qualquer remédio que se tente em contrário resultará inútil, e disso o
processo que se verá a cada dia dará enorme testemunho" 21 • Quando aquela confiança
na vitória cedeu lugar ao medo da derrota ou à resignação diante de uma ruptura con,
solidada e de uma longa e cansativa guerra de posição, aquele tribunal já visto como
instrumento do Anticristo foi reconhecido como o responsável pela frustrada vitória
da Reforma. O cárcere e o patíbulo, a tortura e a confissão de fé diante do inquisidor e
do carrasco tornaram,se os temas exaltantes de uma nova Igreja apostólica. A Reforma
tinha encontrado a Inquisição. Da literatura de propaganda que adentrava os muros
das prisões até as relações das execuções capitais das novas testemunhas da fé, cresceu e
agigantou,se a sombra carregada de uma potência diabólica. Era uma novidade absoluta;
é certo que também os hereges dos séculos precedentes - cátaros, valdenses, "espirituais"
ou fraticelli - tinham visto na Inquisição uma criatura do Anticristo. Mas dessa vez as
dimensões do conflito eram bem diferentes; e a literatura de propaganda pôde contar
com as tipografias clandestinas dos países católicos e com as suíças e alemãs conquis,
tadas pela Reforma. A crueldade da Inquisição e o heroísmo dos mártires renovaram
pelo contrário as inflexões da Igreja dos primeiros séculos. O cárcere e a tortura de um
lado, a firme resistência do mártir do outro: é este o quadro que se encontra e se repete
em opúsculos e cartas transmitidos de mão em mão, manuscritos e impressos. Era uma

19. (Urbanus Rhegius] Libretto Consolatorio a li Perseguitati per la Confessione de la Verità Evangelica, Milano, 1545
(mas provavelmente Venezia: cf. Silvano Cavazza, "Libri in Volgare e Propaganda Eterodossa: Venezia 1543-
-1547", em Libri, Idee e Sentimenti Religiosi nel Cinquecento Italiano, Módena, 1987, p. 22.
20. "Nam si fugere malum est, perrsequi multo deterius, Hic quidem ne moriatur, absconditur" (Unio Hermani
Bodii divini verbi praeconis vocalissimi ex Ecclesiae doctoribus selecta, Lugduni, Janum Mounier et Jacobum
Charretier, 1533, c. 212v).
21. Carta de Bernardino Ochino a um tal B. D., s.d. mas correspondente "aos primeiros dias da estada em Gene-
bra", segundo Benedetto Nicolini, Aspetti della Vita Religiosa Politica e Letteraria dei Cinquecento, Bologna, 1963,
pp. 90-97, ver p. 91. A carta é conservada num códice que pertenceu a Vittore Soranzo (BAV, Vat. Lat. 10755,
·a de documentos chamou recentemente a atenção P. Simoncelli, "Inquisizione
c. 158 t1): sob re essa cres to matl
Romana", op. cit.

A Cruel Inquisição
/
196
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literatura que surgia de imediato e divulgava-se prontamente, no próprio lugar onde 0 f
mártir era preso e morto: frei Baldo Lupetino, encarcerado em Veneza por heresia, era
interrogado em outubro de 1547 e em dezembro daquele mesmo ano era publicado em
Veneza o texto reelaborado de seu interrogatório 22 • Fanino Fanini era mandado à morte
em 1550 e logo saía publicado o relato de seu caso, por obra de Francesco Negri. A
partir de então, os cárceres e os patíbulos da Inquisição tornaram-se um lugar familiar
para os leitores de toda a Europa: a experiência prisional, no início, foi experiência di-
reta ou imaginária dos cárceres da Inquisição 23 • O mundo de imagens e de sentimentos
elaborado à época pairou por muito tempo sobre as interpretações da Reforma, de seus
sucessos e, sobretudo, de seu fracasso na Itália. Os historiadores que se ocuparam do
assunto entre os séculos XIX e XX 24 consideraram que o confronto das forças podia ser
esquematicamente remetido a esses dois termos, de um lado a Inquisição e do outro a
Reforma. Sobre esse fundo , insinuou-se ainda outro tema, mais especificamente italiano,
dessa tradição, o que insiste na difusão das ideias da Reforma somente nos círculos dos
homens de letras, círculos que pareceram caracterizados por uma substancial fraqueza
moral. Essas duas vertentes do discurso - a pressão inquisitorial e a fraqueza moral
dos italianos - têm raízes distantes, na publicística dos primeiros anos de atividade do
Santo Ofício na Itália.
Mas a questão dominante que teve de ser respondida já naquela época dizia
respeito justamente à relação entre a violência e o Evangelho, entre o uso da força e
as questões de fé. No âmbito teórico, o armamentário tradicional dos teólogos tinha
os argumentos prontos para a resposta: mas não se tratava apenas de conduzir uma
discussão entre teólogos profissionais. A repressão da heresia adquiria rapidamente
características de grande amplitude e assim também o protesto e a reação das consciên-
cias ofendidas. Os teólogos afanaram-se para explicar seus raciocínios, descendo até o
terreno da polêmica em vernáculo: os hereges devem ser queimados, escreveu o fran-
ciscano Giovanni de Fano, assim corno se queima a má semente da zizânia quando se
colhe o trigo 25 • A imagem, tirada da parábola (Mat. 13, 24-30), podia na realidade levar
à direção oposta: Cristo tinha dito para não arrancar a zizânia para não correr o risco
de arrancar também a boa semente. Mas desde muito a parábola evangélica tinha sido
virada na direção exegética mais coerente em relação às novas características assumidas
pela questão da heresia e da impiedade no mundo cristão em relação à tradição do

22. "Articoli proposti a fra Baldo preggione in San Marco, con la risposta de essa frate" : cf. Cavazza, "Libri in
Volgare", op. cit., p. 23 e nota 75.
23. A historiografia moderna sobre a prisão, ao contrário, não leva em consideração isso; cf., por exemplo, Pie-
ter Spierenburg, The Prison Experience. Disciplinary lnstitutions and Their lnmates in Early Modem Europe, New
Brunswick/London, 1991, que, no entanto, faz referência ao texto de Mabillon sobre as prisões das ordens
religiosas (p. 14).
24. Cf., por exemplo, T. MacCrie, Histoire des progres et de l'extinction de la Reforme em Italie au seizieme siecle, Paris/
Geneve, 1831; Buschbell, Reformation und lnquisition in Italien, op. cit.
25. Opera Utilíssima Volgare Chiam.ata lncendio di Zizanie Lutherane, Cioe contra la Pemitiosissima Heresia di Martin
Luthero, Bologna, tip. G. B. Faello, 1532.

A Inquisição
197

· 26 . Dessa para'b o 1a, somente a imagem


mun d o antigo · do fogo tinha se imposto: como a
zizânia na hora da colheita, assim os hereges deviam ser queimados. Giovanni de Fano
não se cansava de repetir:

Os hereges são lobos em vestes de cordeiros, e por isso devem ser mortos [... ] Os hereges devem
ser queimados e a igreja communiter que ima-os, como queimou aquele homem diabólico, Joanne Huss,
favorito de Lutero, o qual merece etiam ele ser queimado [... ] Isso deveria ser feito etiam àqueles que
possuem os livros do perdido Lutero [... ]

Nenhuma incerteza agitava, no plano teórico, os teólogos oficiais da Igreja romana:


a punição dos hereges parecia perfeitamente justa, como demonstrava com abundância
de argumentos o franciscano espanhol Alfonso de Castro. E não eram questões teóricas:
seu tratado foi impresso em Veneza justo quando o tribunal da Inquisição também co-
meçava a trabalhar naquele estado em ritmo acelerado 27 • Com certeza, os argumentos
tradicionais deviam ser adaptados a uma situação nova, na qual os hereges internos
somavam-se às maiorias de hereges que dominavam em outros países cristãos: segundo
Alfonso de Castro, era necessária a justa punição com o fogo da minoria interna da
dissensão , mas era necessária também a guerra santa contra os hereges externos. Isso
já era suficiente para dimensionar a mudança da paisagem em relação à época em
que primeiro santo Agostinho e depois são Tomás tinham elaborado os fundamentos
teológicos do uso da força em matéria de fé . Mas houve uma novidade bem diferente
quando a fogueira foi acesa em Genebra por vontade de Calvino: a morte de Michele
Serveto, em 1553, levou à dura contestação do próprio princípio do uso da força em
matéria de fé. Até que ponto era lícito para um cristão fazer uso da força contra os he-
reges? Um célebre escrito publicado à época sob nome falso pelo humanista de Saboia
Sebastiano Castellione deu voz a uma dissensão radical no que se refere a essa relação
entre ortodoxia e repressão, que até então parecera perfeitamente óbvia. Já fazia algum
tempo que na cultura humanista de homens como John Colet, Thomas More, Erasmo
de Roterdã tinha se imposto um modo diferente de pensar em matéria de heresia: fora
dito, entre outras coisas, que para o cristianismo era mais nociva a heresia nas escolhas
práticas e na moral do que a heresia doutrinária. A aura positiva que no mundo antigo
tinha conotado a heresia como escolha intelectual tornava a brilhar.
O debate deixou uma marca profunda no mundo da Reforma 28 • Os valores da
tolerância e da liberdade religiosa tiveram que se impor, opondo-se à dura lei da con-
servação das novas igrejas: o que valia - perguntava-se Calvino - a vida de um homem

26. Sobre a tradição exegética cf. Roland H. Bainton, "The Parable of the Tares as the Proof Text for Religious
Liberty to the End of the Sixteenth Century", em Church History, n. 1, jun. 1932, pp. 67-89 e, do autor deste
volume, "Il Grano e la Zizzania: L'Eresia nella Cittadella Cristiana", em L'Intolleranza: Uuguali e Di11ersi nella
Storia, org. de P. C. Bori, Bologna, 1986, pp. 51-86. Sobre a reviravolta cristã em relação ao mundo antigo,
veja-se o ainda fundamental estudo de Arnaldo Momigliano, Empietà ed Eresia nel Mondo Antico, op. cit.
27. Alphonsus a Castro, De lusta Haereticorum Punitione, op. cit.
28. Ver o clássico estudo de Delio Cantimori, Eretici Italiani del Cinquecento (1939), nova edição, Torino, 1992.

A Cruel Inquisição
198

diante da força desagregadora do erro 29 ? Aparentemente, não houve história da questão


no mundo católico. A única voz católica que se fez ouvir na discussão sobre o caso de
Serveto foi a do agostiniano piemontês Girolamo Negri, favorável à tolerância e sus-
peito, por sua vez, de heresia 30 • Poucos anos antes, entre 1549 e 1550, acendera-se uma
candente polêmica em torno do caso de um herege que tinha abjurado sem conviccão
, '
só por medo e que depois morrera desesperado: o caso de Francesco Spiera.
Uma intensa campanha de opúsculos entre 1549 e 1550, pôs diante dos olhos
de todos os leitores interessados na Europa o caso desse advogado de Cittadella nos
arredores de Pádua. Spiera, processado em Veneza e convencido a abjurar as doutrinas
da Reforma, convencera-se depois de ter cometido o pecado imperdoável, aquele contra
o Espírito Santo, e morrera em desespero. Nesses opúsculos, as vicissitudes de Spiera
foram narradas , discutidas e interpretadas a partir de diversos pontos de vista e servi-
ram para propiciar um modelo negativo, um espelho seja para os paladinos luteranos
ou calvinistas da firmeza na fé , seja para quem promovia a simulação nicodemista 31 •
Era um problema todo italiano: visto que a Reforma não triunfara na Itália, a questão
era se se devia enfrentar o martírio ou salvar-se através da fuga - como fez o bispo de
Capodistria Pier Paolo Vergerio - ou, por fim, se não se pudesse permanecer no pró-
prio país e escapar dos inquisidores através da simulação - como defendia o ex-monge
beneditino Giorgio Siculo. Era urna questão complicada e tornada ainda mais difícil
pelas condições em que era discutida: linguagens cifradas, alusivas, uso de nomes pró-
prios e de identidades religiosas falsas (para escapar do uso da força em matéria de fé
que era justamente o tema da discussão). A decepção de quem esperara encontrar a
liberdade religiosa nos países da Reforma emergia de vários modos nessas discussões:
a Calvino, que exortava a abandonar o reino do Anticristo - ou seja, a Itália papista -
o exilado italiano Celio Secondo Curione replicou que o reino do Anticristo não era
somente na Itália.
Mas, no entanto, a Itália continuava sendo - ao lado da Espanha - o país da
Inquisição. E o estereótipo da crueldade inquisitorial encontrou campo propício para
se estabelecer.
Por volta de meados do século XVI, a longa sombra da Inquisição começa a ocu-
par o horizonte da Europa tornada por conflitos religiosos: as cartas dos encarcerados
nas prisões inquisitoriais e as notícias sobre as execuções capitais receberam então uma
notável divulgação impressa. O primeiro nome a surgir é o de Fanino Fanini, verda-
deiro protomártir da Reforma na Itália: outros tinham morrido antes dele, mas sua
história teve alguém que soube contá-la. Francesco Negri - já beneditino e, à época,
escritor de sucesso a serviço da causa da Reforma - publicou-a imediatamente após a

29. O tema foi desenvolvido por Calvino em sua Defensio Orthodoxae Fidei (Calvini, Opera, VIII, pp. 453-644).
30. Sobre ele, veja-se do autor deste volume "Echi ltaliani della Condanna di Serveto: Girolamo Negri", Riliista
Storica Italiana, 90, 1978, pp. 233-261.
31. Sobre o caso de Spiera e sobre a discussão que seguiu-se a ele, remete-se a Cantimori, Eretici Italiani del Cinque-
cento, op. cit.

A Inquisição
199

execução. Narrava-se ali que Fanino, preso pelos ministros do Anticristo, chamados
"lnquisidores" 32 , permanecera preso muito tempo e que por fim somente a insistente
solicitação feita pessoalmente por Julio III através de repetidas cartas ao duque de Ferrara
levara à execução da sentença de morte. Francesco Negri relatava ainda as tentativas feitas
até O fim para convencer Fanino a abjurar. Os companheiros de prisão exortaram-no a
pensar em sua família , que ficaria abandonada e desprotegida; mas Fanino retrucara que
Deus jamais abandona seus eleitos e seus argumentos tinham comovido e convertido os
demais presos. Até mesmo o frade que viera confessá-lo e o carrasco que o recebera no
patíbulo tinham ficado tocados por aquele modelo de morte cristã. Fanino não somente
recusara-se a confessar, como também a beijar o crucifixo que lhe fora oferecido à saída
da prisão: não precisava de um pedaço de pau feito pelos homens, porque Cristo estava
dentro dele. Era um modelo de morte cristã: esses mártires enfrentavam a morte com
beatitude, coisa que aqueles dominicanos que os enviavam ao patíbulo, verdadeiros
ministros do Anticristo, jamais fariam .
O relato de Francesco Negri era preciso e rico em pormenores: a crônica daqueles
dias, os diálogos travados durante a execução entre o condenado e os vendedores da
praça, mas também os bastidores de dura determinação das autoridades romanas foram-
-lhe comunicados por fontes bem informadas. Os documentos de arquivo revelaram a
verdadeira saraivada desferida de Roma pelo cardeal Carafa e o papa Júlio III para fazer
com que o duque de Ferrara ordenasse essa execução capital, não obstante as cartas
suplicantes da mulher. Enquanto Júlio III mandava cartas oficiais pedindo a morte de
Fanino, Carafa enviava mensagens por meio do orador de Ferrara Giulio Grandi: entre
insinuante e ameaçador, dizia zelar pela honra do duque, aludia à contaminação herética
que ameaçava a própria duquesa, relatava discursos de "reprovação" feitos pelo papa
na congregação do Santo Ofício e terminava oferecendo sua proteção 33 • A chantagem
funcionou: o duque respondeu que provaria ser "príncipe cristão e católico" e indicou
que o faria justamente "no caso desse Fanino de Faenza, que se encontra preso nesta
terra" 34 • No dia 22 de agosto, o "corpo abrasado" de Fanino, morto "por consenso da
Sagrada Inquisição ... foi lançado ao Pó como merecia" 35 •
Depois da segunda metade do século, martirológios protestantes e literatura
variada difundiram continuamente imagens terrificantes da obra da Inquisição. Em
1552, Ortensio Lando publicou um Catálogo dos Modernos Mortos por Fogo que ia do
nome de Savonarola ao de um tal "N. de Asola, de Treviso ... queimado por ser ana-
batista", no qual justamente se reconheceu o bispo anabatista Benedetto d'Asolo,
mandado à fogueira em Treviso em 17 de março de 1551; em 1554 foi publicada em

32. "Ab Antichristi ministris lnquisitoribus, quos vocant" (De Fanini Fat1entini, ac Dominici Bassanensis morte, qui
nuper ob Christum in Italia Rom. Pon. iussu impie occisi sunt, bret1is historia, Francisco Nigro Bassanensi authore, Cla-
vennae, 31 out. 1550, c.4).
33. Despacho de Giulio Grandi de 18 de julho de 1550, publicado por Fontana, Renata di Francia Duchessa di
Ferrara, II, op. cit., pp. 278-279.
34. Carta de 29 de julho, idem, pp. 276-277.
35. Anotação do registro dos executados, idem, p. 279.

A Cruel Inquisição
200

Estrasburgo a Historia de Montalcino 36 ; as coletâneas de histórias de mártires, as cartas


dos condenados à morte pela Inquisição romana deviam por muito tempo deixar ter-
rificada a outra Europa. Os "bárbaros" não eram mais uma ameaça distante: tinham se
estabelecido no próprio coração da cristandade, até mesmo na capital do cristianismo
antigo e medieval.
A novidade da Inquisição romana era denunciada abertamente, naqueles anos,
pelo mundo reformado. Na Basileia, em 1553, apareceu sob pseudônimo um texto sobre
o modo de proceder da cúria romana nos processos contra os luteranos. Relata-se no
escrito o processo instaurado contra um certo Eusebio Uranio, homem - como diz o
nome - pio e protegido pelo céu, que se recusa a abjurar sua fé. O texto, em forma de
diálogo, conta como eram construídos os processos inquisitoriais nos países sujeitos à
Igreja romana e fornece uma primeira lista das vítimas desses tribunais 37 •
Mas a verdadeira legenda negra da Inquisição devia começar com a obra de Jean
Crespin, o editor de Calvino: com sua Histoire des vrays tesmoins de la vérité de l'Évangile,
a aversão à inquisição podia se apoiar numa série de testemunhos apaixonados de
mártires e, ao mesmo tempo, a formação de uma consciência protestante encontrava o
modelo de homem a ser retomado 38 • Os martirológios da Reforma deviam partir daí:
em 1554, com extraordinária sincronia, o calvinista francês Jean Crespin, o luterano
alemão Ludwig Rabus e o humanista inglês John Foxe deviam provocar arrepios em seus
leitores com a narração das atrocidades perpetradas por esse tribunal do Anticristo 39 •
Através dos diferentes comportamentos das vítimas - a firmeza dos mártires, ca-
pazes de desafiar os sofrimentos da tortura e da morte, o culpável apego aos prazeres e
às comodidades da vida terrena - enfatizava-se a importância do tribunal da Inquisição,
sua dureza, sua capacidade de reconhecer e perseguir os fiéis do "evangelho", como se
definiam os seguidores da Reforma. Era um ponto de vista externo, que levava a sim-
plificar e ao mesmo tempo a engrandecer: a instituição temida, diabólica (literalmente,
como criatura de um papado-Anticristo) parecia unitária, eficiente, poderosa. Não era
possível resistir-lhe; não era possível esconder-lhe nada.

36. Sobre Lando cf. Silvana Seidel Menchi, "Spiritualismo Radicale nelle Opere di Ortensio Lando Attomo al
1550", Archiv für Reformationsgeschichte, LXV, 1974, pp. 210-276; em part. p. 274. Sobre Giovanni Buzio de
Montalcino, cf. o verbete redigido por John Tedeschi, DBI, vol. 15, Roma, 1972, pp. 632-634.
37. Hieronymus Marius, Eusebius CaptitJUS, SitJe Modus Procedenti in Curia Romana contra Lutheranos ..., Basileae,
1553; restaurado em Zurique, por J. Wolfius, em 1597. O autor é o médico de Vicenza G. Massari, exilado da
Itália em 1551, com recomendação de Vergerio a Bullinger (cf. Opera Calvini, XV, CR 43, col. 45); a carta de
recomendação de Vergerio, datada de 30 de abril de 1551, está em Heinrich Bullinger, Korrespondenz mit den
Graubündem, publicada por Traugott Schiess, Nieuwkoop, 1968, vol. I, p:'200.
38. Cf. Jean Crespin, Histoire des ways tesmoins de la vérité de l'Evangile qui de leur sang l'ont signée, depuis Jean Hus
jusques au temps present, reimpressão anestética a partir da edição de 1570, org. por L.-E. Halkin, Liege, 1966.
Sobre Crespin e sobre os martirológios da Reforma cf. Jean-François Gilmont, "Les martyrologes du XVIE siecle",
em "Ketzerverfolgung im 16. und frühen 17. Jahrhundert", em Wolfenbütteler Forschungen B. 51, Wiesbaden,
1992, pp. 175-192.
39. Sobre esses e outros martirológios da Reforma (como o de Adrian van Haemstede) cf. Gilmont, "Les martyro-
loges", op. cit. , pp. 175-192.

A Inquisição
201

Mesmo nos arredores do Santo Ofício, durante os anos em torno da metade do


século, surgiram perplexidades e temores de um excesso de poder e de crueldade. O
cardeal Giovanni Morone chegou a notar o endurecimento rápido e progressivo dos
métodos inquisitoriais º. E até Girolamo Seripando ficou assustado com a dureza dos
4

procedimentos realizados por Gian Pietro Carafa 41 • Mas a contestacão mais dura foi a
movida pelas vítimas, que opuseram à justiça da Inquisição a pala;ra do evangelho: e
talvez a formulação mais precisa desse argumento foi a do ferreiro Ambrogio Castenario,
do Friuli, segundo o qual "não se encontrava absolutamente no novo testamento que
Deus tenha ordenado que alguém deva ser morto por sua fé" 42 •
Diante desse fogo cerrado de acusações , a instituição inquisitorial parece inflexível
e entrincheirada em suas certezas. A própria predileção pelas execuções públicas parece
demonstrar que não se tinha medo de exibir espetáculos de morte e exemplos de martírio.
No entanto, sabia-se bem que esses espetáculos eram perigosos e tinham efeitos ambí-
guos: aterrorizavam, certamente - e nisso estavam em sintonia com os mecanismos da
justiça penal da época e com sua dura pedagogia dos suplícios - mas, à diferença dessa,
oferecia aos olhos das multidões não ladrões e assassinos punidos por seus crimes e, sim,
homens que tinham escolhido morrer por suas ideias. Eram espetáculos odiosos; de resto,
as crônicas medievais contam sobre inquisidores agredidos e mortos, sobre multidões
tumultuantes a favor de condenados por heresia. E bastava ler os autos dos processos
para descobrir que os acusados desejavam ter essa ocasião para manifestarem suas ideias.
Lorenzo Vex, um luterano processado em Veneza, em 1566, afirmou "que de malgrado
morreria em água salgada, porque não seria visto; mas que desejava ser queimado em
praça pública, porque diria tudo o que tinha a dizer" 43 • Esse desejo não se realizou. Mas
outros conseguiram. O sapateiro Girolamo Venier, condenado a ler sua abjuração na
catedral de Udine no domingo, 15 de abril de 1544, leu, ao contrário, boa parte de um
texto em que reivindicava suas ideias e protestava contra a violência a que fora submetido,
declarando-se "vencido por assédio do mesmo modo como são vencidas as cidades e os
castelos por fome"; depois tentou escapar, enquanto a multidão gritava "Fuja, fuja" 44 •

40. Morone observou "quod retroactis annis officium santae lnquisitionis negue hic Romae negue alibi tam
dilenter et rigide exercebatur ut nunc exercetur" (7 out. 1577, em M. Firpo e D. Marcatto [orgs.], I! Processo
Inquisitoriale dei Cardinal Gio11anni Morone, op. cit., vol. II, segunda parte, p. 619).
41. Seripando falou em nota de diário da Inquisição de um começo moderatum et mite a uma prática tal "ut nullibi
toto terrarum orbe horribilia magis magisque formidolosa iudicia esse existimarentur": para ele, a responsa-
bilidade por isso devia-se à severidade de Gian Pietro Carafa nulla humanitate aspersa (Concilium Tridentinum,
2: Diariorum pars Altera, org. Por S. Merl<le, Freiburg im Breisgau, 1911, p. 405). A opinião de Seripando é
confirmada, segundo seu biógrafo, pelo modo como foram tratados os casos dos agostinianos suspeitos (Jedin,
Girolamo Seripando, op. cit., 1, pp. 271 e ss.).
42. Cf. Luigi De Biasio, "Atti di un Processo per Eresia de 1568 contro il Fabbro Udinese Ambrogio Castenario",
em Regione Autonoma Friuli-Venezia Giulia, 1000 Processi dell'Inquisizione in Friuli, Udine, 1976, pp. 129-130.
43. Citado por Silvana Seidel Menchi, "Theorie und Wirklichkeit der Verfolgung in norditalienischen evangelis-
chen Kreisen 1540-1570", em Ketzer11erfolgung, op. cit:, p. 206 e nota.
44. O texto das duas abjurações, a preparada pelas autoridades eclesiásticas e a escrita para Girolamo Venier pelo
patrício udinense Pietro Percoto, encontra-se publicado em apêndice ao ensaio de Andrea Del Col, "L'abiura

A Cruel Inquisição
202

Eram situações de risco para as autoridades: o caso de Venier mostra o despreparo com
que naqueles primeiros anos eram enfrentadas as cerimônias públicas de abjuração. Em
seguida, casos do gênero tornaram-se se não impossíveis certamente muito mais difíceis:
sempre em Udine, o anabatista Bernardino della Zorza tentou, em 1567, modificar 0
texto da abjuração com o simples artifício da substituição do termo "abjuro" pela palavra
"confirmo". Mas o vigário patriarcal fez uma verificação antes da cerimônia e sequestrou
o texto modificado 45• E de resto, para impedir os culpados de propagarem suas ideias
na hora da execução recorreu-se sem demora a medidas bastante severas. Se em Ferrara,
em 1551, Giorgio Siculo conseguiu falar ao povo e declarar suas ideias, fingindo querer
abjurar, houve por outro lado o caso bem mais famoso de Giordano Bruno, cuja língua
foi presa por tenazes para impedi-lo de falar à multidão no percurso da execução 46 • Um
sistema penal - não só eclesiástico - baseado em penas exemplares e terrificantes revelava-se
arriscado e contraproducente quando se tratava de crimes de opinião: o testemunho de fé
do condenado, suas falas à multidão, até mesmo a simples enumeração de suas heresias
podiam abrir horizontes novos e perigosos para os presentes. Não havia saídas: e em geral
a instituição eclesiástica mostrou-se confiante no efeito de horror e de execração decor-
rente da descrição das heresias condenadas. Os juízes mais escrupulosos preocupavam-se
em acrescentar, ao final das sentenças, exortações aos presentes para que esquecessem as
opiniões que tinham ouvido condenar47 •
Mas o que pensava de si mesma a instituição inquisitorial? E como respondia à
campanha de duras críticas de que era alvo? Os inquisidores tinham familiaridade com
a escrita polêmica e com as diatribes teológicas. Basta percorrer os textos publicados
por quem se viu exercendo um cargo nesse tribunal para encontrar os fundamentos de
uma historiografia providencialista, dedicada a exaltar a eternidade, a imutabilidade
e o caráter necessário e desejado por Deus dessa instituição. Mas os inquisidores esco-
lheram um momento mais ligado à própria atuação de seu tribunal para responder às
críticas: a leitura pública das sentenças.
Por razões pedagógicas, Roma dava grande importância, como se viu, aos rituais
públicos. Assim como os tribunais criminais da época, o da Inquisição considerava ne-
cessário desfrutar ao máximo o espetáculo dos corpos martirizados e queimados para

trasformata in propaganda ·ereticale nel duomo di Udine (15 aprile 1544)", em Metodi e Ricerche, revista de
estudos regionais, n. 2-3, maio-dez. 1981, pp. 57-72.
45. Cf. na mesma fonte anterior, p. 64, nota 24, que esclarece a menção de Luigi De Biasio, "L'Eresia Protestante
in Friuli nella Seconda Metà dei Secolo XVI", em Memorie Storiche Forogiuliesi, LII, 1972, pp. 71-154; em part.
p. 109. Bernardino della Zorza foi condenado à morte com base na abjuração que ele transformou em profissão
de fé, mas conseguiu fugir. Girolamo Venier, por sua vez, conseguiu se livrar com penas leves.
46. Cf. o aviso de Roma de 1° de fevereiro de 1600 publicado em Luigi Firpo, Il Processo di Giordano Bruno, org.
por D. Quaglioni, Roma, 1993, pp. 355-356.
47. "Post publicationem articulorum suprascriptorum P. lnquisitor admonuit populum vulgariter illos articulos
partim falsos esse partim erroneos, scandalosos et partim haereticos, ne memoriae mandarent et tenerent,
Deumque deprecatum est, quia sunt contra animae salutem et fidei veritatem" (sentença pronunciada pelo
Inquisidor do patriarcado de Aquileia em 29 de dezembro de 1571 contra o anabatista Alessandro Jechil de
Bassano: Arquivo da Curia arquiepiscopal de Udine, S. Officio, b. 58, Setentiarium Libri, cc. 39r-40v).

A Inquisição
203

assustar e dissuadir. Para isso, tinha serventia não só a execução capital como também
a cena da abjuração pública. Na revisão do tradicional juízo de crueldade foi dito, entre
outras coisas, que a Inquisição romana diferenciou-se da espanhola por "não ter o hábito
de praticar a humilhação pública dos réus convictos diante de grandes multidões" 48 • A
observação não é de todo exata. Em Roma acreditava-se na importância da "humilhação
pública" e tentava-se impô-la, não só para as execuções capitais, como se viu, mas também
para as abjurações. Eram os estados italianos que resistiam. A preferência bem espanhola
pela "procissão de ignomínia" , como momento essencial de uma religião militante capaz
de unir solidamente a sociedade 49 , encontrou na Itália ecos favoráveis apenas nos rituais
romanos. E a insistência romana na necessidade de rituais públicos era vista pelos estados
italianos como uma imposição politicamente perigosa. Somente um forte poder monárqui-
co poderia impor humilhantes rituais de abjurações públicas aos membros dos patriciados
citadinos. O papado tentou isso; mas entrou em choque com a resistência de um amálgama
de poder local que compreendia príncipes, aristocracia laica e clero secular. Se Paulo IV
tinha conseguido humilhar e fazer morrer em público personagens de alto coturno, seus
sucessores tiveram que se dar conta de quão forte era a resistência das classes privilegia-
das. Sob o milanês Pio IV, em Milão, num domingo de junho de 1564, foram obrigados
a abjurar "cinco hereges marciais", dos quais pelo menos dois pertenciam a famílias da
nobreza: "um de Visconti e outro de Pietrasanta, que foi filho de um senador" 50 • Foi uma
abjuração pública, mas a igreja escolhida ficava "nas partes extremas da cidade", a despeito
da vontade do inquisidor de Milão que desejava realizar a cerimônia na catedral. O conse-
lho da Inquisição "por respeitos mui convenientes" pensara num primeiro momento em
marcar a abjuração para um dia de trabalho e em caráter "muito mais privado em respeito
à condição dessas duas pessoas"; mas ao final fora escolhido um compromisso - o dia de
festa e a igreja periférica - capaz de satisfazer as exigências abstratas da justiça inquisitorial
e as dos "muitos interessados de sangue" das duas famílias nobres. A abjuração era uma
)
matéria difícil. Em Mântua, em 1567-1568, uma áspera polêmica entre o duque e o papa
Pio V teve como tema justamente o modo de proceder às abjurações. O papa demonstrou
grande firmeza ao desejá-las públicas, ao passo que o duque solicitava que ao menos para
seus servidores mais próximos elas fossem realizadas "em capítulo e não na igreja" 51 • O
1
f triunfo da vontade de Pio V foi total à época: seu pontificado, de resto, foi o que fez maior
uso dos grandes rituais de execuções públicas de hereges 52 •

48. William Monter, Riti, Mitologia e Magia in Europa all'lnizio dell'Età Moderna (Ritual, Myth and Magic in Early
Modem Europe, 1983), trad. it. Bologna, 1987, p. 93.
49. Cf. Consuelo Maqueda Abreu, El Auto de Fe, Madrid, 1992, p. 254.
5o. De uma minuta de carta de Niccolo Ormaneto a Carlo Borromeo, Milano, 19 jul. 1564, publicada por Paolo
Preto, "Corrispondenza tra Niccolo Ormaneto, Vicário di San Carlo Borromeo, e Alcuni Vescovi dell'ltalia
Settentrionale", em Contributi alla Storia della Chiesa Padovana nell'Età Moderna e Contemporanea, l, Padova,
1982, PP· 9-31; em part. p. 15.
51. Pagano, Il Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 29.
52· Cf. Domenico Orano, Liberi Pensatori Brueiati a Roma dal XVI al XVIII Secolo, Roma, 1904, integrado por Luigi
Firpo, "Esecuzioni Capitali in Roma {1567= 1671)", em Eresia e Riforma nell'Italia del Cinquecento, Miscellanea 1,

A Cruel Inquisição
204

Nas sentenças solenes do Santo Ofício, lidas publicamente em Roma, na basílica


de Santa Maria sopra Minerva, encontra-se a pontual e elaborada argumentação em de-
fesa do tribunal e de sua obra. Diante da multidão de espectadores desses ritos terríveis
a voz impessoal da instituição argumentou, sem risco de ser contestada, as razões do uso'
da força em matéria de fé . Quem as lê, encontra-se diante de textos que - de acordo
com a tradição da retórica eclesiástica - ocultam as referências à polêmica presente sob
o véu intemporal das citações das escrituras, enquanto realizam a obra-prima de destreza
de responder com golpes de citações evangélicas e paulinas às acusações de traição da
brandura evangélica. Vamos repercorrer algumas daquelas que foram lidas em 1567.
Encontramos nelas uma estrutura repetitiva, composta de um preâmbulo, um relato
do caso, uma lista dos artigos de acusação, uma verdadeira sentença. O preâmbulo é 0
lugar próprio das declarações de caráter geral: e é aqui que encontramos os traços do
diálogo polêmico travado pelo Santo Ofício com seus acusadores.
O cenário devia ser imponente e terrível. Curiosamente, nenhum pintor deixou-
-nos dele uma lembrança adequada. Mas podemos imaginar - por exemplo, pelas
descrições de quem, por dever de ofício , mantinha outras pessoas informadas sobre os
eventos romanos - os lúgubres paramentos, o palco onde sentavam os juízes e os acu-
sados, a multidão reunida (por devoção, por curiosidade, por obrigação). O preâmbulo
das sentenças era aberto pela autoapresentação dos cardeais membros do Santo Ofício:
"Nós [... ] [seguiam-se os nomes e títulos cardinalícios], padres cardeais pela misericór-
dia divina da santa igreja Romana e na Universal República Cristã contra a perversão
herética inquisidores-gerais pela Santidade de Nosso Senhor (e aqui vinha o nome do
papa) especialmente deputados". Logo depois, eram feitas algumas considerações gerais,
que deviam introduzir e justificar a narração detalhada do processo, seus resultados e a
sentença conclusiva. Foi esse o lugar das sentenças reservado à defesa do caráter cristão
do procedimento inquisitorial, contra os que o negavam.
A inquisição eclesiástica é demasiado severa, dizem os inimigos. E eis a resposta,
redigida por conta dos cardeais Scotti, Rebiba, Gambara e Pacheco:

Como não houve severidade em São Paulo excomungar e nas mãos de Satanás entregar o
incestuoso Coríntio porque isso trouxe saúde a seu espírito, assim não hás de considerar rigor ou
crueldade praticada por nós contra ti, pois que para a saúde da tua alma por nós buscada veio à luz
e sucedeu que, tendo sido informados por deposição de teus cúmplices e também por haver visto
documentos com cartas de consolo, exortação e persuasão em querer perseverar nas opiniões heré-
ticas escritas aos teus cúmplices, que tu, Gio. Paolo Gnitio, livreiro natural de Brescia e residente
53
em Veneza[ ... ] [e aqui seguia o relato dos fatos decorrentes do processo e dos tópicos de acusação] .

Firenze/Chicago, 1976, pp. 309-342. Sobre os rituais romanos cf. Carlo De Frede, "Autodafé e Esecuzioni di
Eretici a Roma nella Seconda Metà del Cinquecento", em Atti della Accademia Pontaniana, n. especial, XXXVIII,
1989, pp. 1-41.
53. Trinity College, Dublin, ms 1224, cc. 152r-153r (consultados a partir da cópia microfilmada da Biblioteca
Vaticana, microfilme n. 15).

A Inquisição
205

São Paulo é naturalmente o autor predileto nesse contexto. Eis como ele é usado
na sentença contra "Francesco Gotifredo Luxemburgense" :

Porque não somente somos perante Deus encarregados de conservar em nossos corações sua santa
Fé, mas também com externa confissão a loco et tempo confessá-la, segundo testemunho de São Paulo
que para tanto deixou escrito Carde creditur ad iustitiam ore autem fit confessio ad iudicem, querendo dizer
que totalmente não somente no coração, mas também nas palavras e reflexões feitas com os outros deve
o verdadeiro cristão abraçar de todo o coração, com feitos e palavras, a sã doutrina da fé católica [... ]54

E ainda:

Diz o Apóstolo São Paulo, Diletíssimos e caríssimos irmãos, rogo-vos observar e atentar bem
àqueles que dentre vós semeiam divisão e discórdia com escândalos, e afastar-vos deles, porque com suas
doces argumentações e tantas bênçãos quantas vos prometem seduzem o mero e puro coração das almas
simples, querendo inferir que os enganadores e os falsos cristãos devem separar-se dos outros bons 55 •

Mas também a palavra de Cristo podia propiciar ocasiões de utilização relevantes.


Eis como os cardeais inquisidores serviram-se delas contra Fabrizio Armaroli, de Forli:

O Nosso Salvador quis reduzir de seus grandes pecados da cidade de Jerusalém e fez isso abrindo-
-lhe sua larga mão e grande liberalidade, concedendo-lhe muitos dons e graças, tocando seu coração
com suas boas e santas inspirações, embora a maior parte não consentia em aceitá-las, opondo-se de
vontade própria a ele, e ensina-nos com isso que temos o livre-arbítrio, e não deixa Deus de chamar-
-nos, e que a luz da fé é dom de Deus, mas de nós vem o erro e a falha 56 •

Com uma certa desenvoltura no uso das Escrituras, típica de resto de quem as
tratava com familiaridade na própria função de homem da Igreja, às frases evangélicas
de Cristo podiam ser atribuídos significados que nada tinham a ver com o original:

Jesus Cristo nosso Salvador deu em São Mateus uma regra a seus discípulos por meio da
qual deviam ser governadas as coisas pertinentes à santa Fé católica, dizendo-lhes: se for encontrado
quem dê mau exemplo a verdadeiros e puros fiéis que acreditam em mim, deve, com uma pedra no
pescoço, ser atirado no fundo do mar, pois que por dar mau exemplo em coisas pertinentes à Santa
Fé Católica romana merece a morte 57 •

A sentença podia ser punitiva, mas moderada; e aqui os juízes ostentavam no


preâmbulo seu desejo de moderação:

54. Idem, cc. 159r-160r (31 maio 1567).


55. Idem, cc. 167r-168v (sentença contra o espanhol Alonso Moya).
56. Idem, cc. 171r-172r.
57. Idem, mesma data, cc. 175r- l 76r. O acusado, Gregório Perino de Arezzo, capturado na Calábria, foi condenado à morte.

A Cruel Inquisição
206

O Apóstolo São Paulo refletindo sobre os mais santos e mais firmes em perfeição cristã dizia:
Devereis vós os mais perfeitos e mais repletos de caridade suportar a falta de firmeza e de perfeição
alheias; não diz porém que se devessem deixar vícios, pecados e demais erros sem castigo ou punição,
mas, como dizem os santos reitores, quer nos ensinar que mesmo ao punir, ou seja, ao corrigir, sejam
usadas para com o réu piedade e misericórdia 58 •

Os juízes puniam, portanto: mas sem arrogância, por obrigação, sublinhando a


dor - aliás, o "imenso pesar" 59 - com que o faziam .
São Paulo servia para reforçar a autoridade exclusiva da igreja em matéria de fé.
Eis a respectiva argumentação usada para condenar um mestre-escola de Amalfi:

Diz o Apóstolo São Paulo que se um Anjo descesse do céu e nos pregasse doutrina contrária
e nos ensinasse coisa diferente do que revelou o Espírito santo nas sagradas escrituras, que não lhe
deem crédito pois não nos foi enviado por Deus, querendo inferir que aquele que se opõe aos dizeres
das sagradas escrituras de santos concílios e doutores da Igreja não merece crédito, e como temerário,
presunçoso e excomungado deve ser punido60 •

O tempo presente é o do governo duro e da administração severa, dizem os juízes;


não é culpa deles se devem ter mão firme para corrigir:

Fiel e prudente, como diz o Senhor, é o servo que instituiu Deus no governo de sua família;
e ministra-lhe o verdadeiro alimento que nos convém. Sucede então que nestes dias miseráveis, nos
quais os rebentos do demônio sustentam e ensinam falsas, errôneas e heréticas doutrinas, precisam
que lhes seja ministrado o alimento salutar de acordo com sua conveniência e isso para a saúde dos
delinquentes e instrução de alguns 61 •

O conceito é reforçado com frequência; a punição é uma missão paterna e salutar,


que serve a quem é objeto dela, mas que se reflete positivamente sobre todos os demais:

A Santa Igreja católica e os sumos Pontífices Romanos demonstraram tanto desejo e empe-
nho de que seus filhos não tenham culpa ou mancha de heresia, que ordenaram que não somente

58. Idem, cc. 16lr-162r (sentença contra o agostiniano frei Agostino Ceracci de Velletri, de 31 de maio de 1567).
O acusado foi condenado a dez anos de galé.
59. Idem, cc. 169r-170r. Sentença contra Giovan Battista Fantinelli de Forli, 31 maio 1567: "Ensinando o Apóstolo
Paulo a seu caro e obediente discípulo Timóteo, disse que se deve com modéstia corrigir e refrear aquele que
resiste à verdade, ensinamento ao qual queremos nós (como somos obrigados) obedecer não sem imenso pesar
de nossa parte [... ]"
60. Idem, cc. 165r-166r (contra Annibale Salato de Amalfi, ex-beneditino, mestre-escola em Nápoles; condenado
a dez anos de galé).
61. Idem, cc. 173r-174v; sentença de 31 de maio de 1567 contra mestre Giacomo Locatelli, torneiro natural de
Bérgamo, morador de Forli; foi condenado ao emparedamento perpétuo. Sua sentença ordenava também que
sua casa, onde lia a Tragédia do Livre-arbítrio, devia ser "destruída e arruinada, e marcada com algum sinal para
memória eterna de tal fato, de modo que outros se abstenham de tais horrendos e abomináveis crimes".

A Inquisição
207

os hereges mas também os suspeitos dela, os escandalosos, os temerários e os homens que querem
contender sobre a fé possam e devam ser condenados como culpados, se no prazo que lhes for con-
cedido não purgarem por meios justos e ordens devidas e legítimas sua alegada inocência e afastarem
das mentes dos superiores e do povo cristão as causas das suspeições e maus exemplos contra eles,
por terem sido considerados por sua culpa hereges escandalosos e suspeitos 62•

Era a justificativa tradicional do sistema das penas inserida no complexo universo


pedagógico típico da igreja tridentina. Mas deve-se ter presente que essas considerações
constituíam apenas um preâmbulo da sentença. A parte mais conspícua era dedicada
a um resumo analítico dos resultados do processo. Era um relato: o relato de uma
série de erros e de culpas, que desembocava na punição conclusiva - que era, natural-
mente, sempre inferior à carga dos crimes e que de todo modo não era destinada ao
ressarcimento do mal cometido, mas devia propiciar à sociedade cristã o espetáculo do
erro confutado. Para se chegar a isso, compunha-se uma verdadeira história da vida
do acusado: não era um relato destinado a comover - como acontecia com aqueles
contidos nas súplicas dos condenados por outros tribunais criminais da época 63 -
mas, de preferência, destinado a tornar execráveis os modelos do erro. Não obstante
a diferença de rito entre erro e errante, também a vida do condenado arcava com as
consequências dessa virtuosa execração do erro. Dessas sentenças, em seguida, deviam
ser extraídos breves opúsculos para impressão, exibidos nos mercados e vendidos nas
praças: é uma literatura que se originou da espetacularização da morte por motivo de
justiça e, portanto, não se ateve apenas aos condenados pela Inquisição. Mas no âmbito
católico, a Inquisição foi a primeira a valer-se do uso da narração de casos de vida para
fins de uma pedagogia do erro e do horror.
Nesse ano de 1567, marcado pela retomada da Inquisição sob Pio V, muitas
histórias desse tipo foram lidas e contadas em Santa Maria sopra Minerva. Mas a mais
extensa e detalhada foi a sentença com que o protonotário florentino Pietro Carnesec-
chi foi condenado à morte. Foi um texto extraordinariamente longo e detalhado, que
percorreu toda a história da vida de Carnesecchi de 1540 em diante, analisando com
precisão de referência as relações com o círculo napolitano de Juan de Valdés, as ideias
heréticas abraçadas, os comportamentos evasivos nas relações com a Inquisição. O caso
era excepcional, pela importância da personagem, pelas intervenções de autoridades
que haviam acompanhado seu processo e pelos círculos ligados a seu nome. A sentença
foi lida para Carnesecchi em 16 de agosto de 1567: uma leitura de duas horas, que foi
poucos dias depois repetida publicamente na cerimônia solene celebrada em Santa Maria
sopra Minerva. A direção elaboradíssima do rito mostra a importância que Pio V dava
a esse caso específico: os cardeais sediados em Roma foram obrigados a comparecer e

62. Idem, cc. 155-158 (sentenca contra Mario Galeota, 12 de junho de 1567; foi publicada por Pasquale Lopez, ll
Movimento Valdesiano a N:poli. Maria Galeota ele sue Vicende col Sant'Uffizio, Napoli, 1976, PP· 174-179).
63. Cf. Natalie Zemon Davis, Storie d'Archivio. Racconti d'Omicidio e Domande di Grazia nella Francia dei Cinquecento
(ed. or. Fiction in the Archives, 1987), trad. it., Torino, 1992.

A Cruel Inquisição
208

a ausência do cardeal Morone deu ensejo a muitos boatos. A condenação à morte foi
marcada pela cerimônia do sambenito amarelo estampado com línguas de fogo . E nessa
ocasião, Carnesecchi encontrou um modo de reforçar sua fama de grande refinamento
de estilo, fazendo a alguém próximo o seguinte comentário sobre seu estranho traje:
"Padre, e lá vamos nós vestidos de libré como se fosse carnaval" 64 •
O caso de Carnesecchi era exemplar pela vontade de Pio V de retomar o caminho
percorrido por seu predecessor Paulo IV, consolidando a linha da severidade e da sus-
peita em relação a certos círculos bem radicados no mundo romano e na própria Cúria.
Mas sua sentença pode ser lida também como proposta de caráter geral por parte do
Santo Ofício que, enquanto se mostrava pronto para acolher com benevolência o herege
arrependido, não tolerava ao contrário quem escolhia o caminho do fingimento e da
astúcia para manter obstinadamente as próprias convicções. A longa sentença parece,
desse ponto de vista, uma persistente proposta do modelo do herege arrependido e urna
contínua repreensão a Carnesecchi por ter continuamente decepcionado as expectativas
da Igreja, mãe paciente mas não disposta a tolerar quem não se lhe entregava:

Tu te mostraste duro e renitente em confessar livremente tuas falsas opiniões contra a santa fé
católica [...] Perseveraste na mesma negativa [... ] E enquanto esperávamos de ti sinais de penitência .. .
ousaste tantas vezes escrever muitas e várias cartas furtivamente.

A função pedagógica da dureza era, de resto, preanunciada como de costume nas


frases iniciais desse longo texto:

Todos os dias vemos por experiência ocorrer o que o divino Apóstolo São Paulo, escrevendo
a Timóteo, predisse: "erit enim tempus cum sanam doctrinam non sustinebunt; sed ad sua desideria
coacervabunt sibi magistros prurientes auribus; et a veritate quidem auditum avertent, ad fabulas autem
convertentur" (Tim. 2, 4, 3-4). Como nestes infelizes e calamitosos tempos vê-se continuamente fazer
por muitas celeradas seitas de hereges, com irreparável prejuízo para a República cristã, e perdição
de infinitas almas, e particularmente pode-se considerar na presente causa.

A impiedosa sentença de morte que fechava o longo texto era obscurecida por
passagens paulinas e justificada com as duras necessidades de defesa da "república 1
cristã". O modelo romano era, portanto, o de uma pedagogia exercida através dos 1
"autos de fé", as sentenças e seus rituais públicos. De resto, essas palavras encontra·
vam uma pontual e terrível confirmação nos fatos: as execuções capitais, pública s,
solenes e marcadas pelo ritual do consolo completavam essa pedagogia, na qual 0
terror era o instrumento para instilar a necessidade da confidência e do abandono
aos braços maternais da Igreja. A estratégia romana do Santo Ofício favoreceu 0
desenvolvimento de cenários análogos mesmo nas sedes diferentes daquela romana.

64. Cf. Oddone Ortolani, Pietro Camesecchi, Firenze, 1963, p. 159. Mas cf. também O já citado verbete "Carnesecchi
Pietro", redigido para o DBI por A. Rotondà.

A Inqu isição
209

Em Veneza, entrou em choque com a resistência da Sereníssima, que temia a dra-


matização pública das penas capitais e preferiu ocultar os ritos da morte de justiça
na noite e nas águas da laguna. Mas ali também os textos das sentencas falavam a
mesma linguagem. Amparada por uma grande exibição de trechos das escrituras , era
colocada uma semelhante mensagem de apelo à confidência e ao abandono sincero
aos braços da lgreja 65 • Portanto , a julgar pelos argumentos das sentenças, o adversário
a ser combatido pelo Santo Ofício não era a pertinaz obstinação do herege, mas sua
capacidade de simular um arrependimento não verdadeiro e sobretudo sua vontade
de não trair outros, de não dar os nomes de eventuais cúmplices. A sentença capital
atingia de preferência personagens desse gênero .
Mas quais eram as objeções dos condenados? Os registros cartoriais que recolhe-
ram com extremo escrúpulo os depoimentos e as confissões feitas durante o processo
não puderam, naturalmente, estender os registros aos momentos finais. Essa função foi
confiada a outros. No estado da Igreja como em diversos outros estados sobretudo italia-
nos, ela coube às confrarias de justiça: mas seus registros das vontades dos condenados
e das circunstâncias da execução permaneceram sob a guarda dos arquivos Acabaram
impressas, ao contrário, as "relações" de vidas danadas 66 ou, se as coisas terminavam
bem, as abjurações dos hereges arrependidos 67 •
Às vezes, porém, é possível colher já no curso do processo os sinais de estupor e
de protesto dos condenados.
Ao lado do caso célebre de Carnesecchi lemos o de um obscuro acusado, o
tecelão de Vicenza Simone di Simone, processado em Veneza em 1570. Sua sentença
não foi pronunciada solenemente em público, mas foi lida pelo notário ao acusado na
prisão ("no local das celas"), em 13 de junho. Era uma sentença de morte. Os juízes,
depois de terem tentado por todos os meios convencê-lo a "denunciar seus cúmplices

65. Trinity College, Dublin, ms. 1224, cc. 104r-109r, sentença emitida em 25 de fevereiro de 1580 por Alberto
Bolognetti, legado apostólico no domínio vêneto, Giovanni Trevisan, Patriarca de Veneza e Mestre Gio. Bat-
tista de Milão, inquisidor-geral delegado para todo o domínio vêneto, contra Antonio Saldanha de Setúbal:
"Entre os santíssimos e para nós utilíssimos documentos que nos deixou o salvador do mundo, lembrou-nos
especialmente com os dizeres: 'estote prudentes sicut serpentes, et simplices sicut columbe', tal como está
escrito em s. Mateus no décimo caput. Por isso o senhor quer que seus cristãos sejam perspicazes e prudentes
ao máximo quanto a saberem proteger-se das insídias do inimigo da natureza humana, mas também os quer
puros, límpidos, transparentes e sinceros de coração, pois como está escrito no Eclesiastes no segundo caput
[14]: 'Ve duplici carde et peccatori terram ingredienti duabus viis' e Oseias no décimo caput: 'Divisum est cor
eorum, nunc interibunt', ou seja, ai daquele que tem duplo coração e ai do pecador que caminha sobre a terra
com duplos e simulados percursos, e por terem o coração repartido e dividido serão destruídos, arruinados e
aniquilados (...]" .
66. Na expectativa de uma coleta sistemática desse tipo de texto, veja-se, a título de exemplo, a Relazione Copiosa,
Distinta e Verídica della Nasci ta, Vita, e Morte Oprobriosa, et lnfame di Domenico Spallacini Impiccato, et Abbrugiato in
Roma nel dí 18 luglio 1721 in vigore della dilui condanna fatta dai supremo tribunale della Santa Romana, et Universale
Jnquisizione ..., em Roma, 1721, tipografia de Gio. Francesco Chracas, junto S. Marco ao curso, com licença.
67. Um único exemplo, também nesse caso: Abiuratione di molti errori heretici, fatta publicamente, et spontaneamente
dai Sig. Gio. Mattheo Grillo gentilhuomo Salemitano ..., Avignon, por Pietro Rosso, 1568.

A Cruel Inquisição
210 1
1

ou dizer algo importante" tinham se convencido de que seu arrependiment


. o era falso
e simulado, condenando-o à morte. Simone reagiu com frases amargas que 0
' notári 0
reportou num auto :

Acho - disse Simone - muito estranha e amarga esta sentença que me condena à morte
. , porque
eu sei que sou bom cristão e ia à missa sempre que podia. E ao Nosso Senhor não há de apete
cerque
um corpo em condições de poder combater contra a fé seja mandado à morte mais cedo, em vez de
ser mandado para combater contra os infiéis, e especialmente nessa guerra 68 •

A liga santa contra os turcos dava expectativas a Simone quanto à possibilidade


de modificar a sentença de morte para a de remador nas galés cristãs. Mas nem esse
argumento nem o apelo à vontade do Senhor contra a dos juízes obtiveram qualquer
resultado. Em 17 de junho de 1570, Simone recebeu na cela a visita de frei Marcello
de Santo Stefano para prepará-lo para a morte. Na tentativa de adiar ou modificar a
pena, Simone fez chegar aos juízes através do frade um bilhete onde pedia para ser
escutado de novo para revelar "tudo". Mas não tinha nada a revelar: diante dos juízes,
no dia seguinte, Simone explicou que esperara apenas "obter alguma piedade". "Sendo
misericordiosos e fiéis cristãos, como sua fama expande, poderiam conceder-me algumas
graças. E Judas teria encontrado misericórdia toda vez que se arrependesse. E por que
não a posso encontrar também eu que estou arrependido?"
Nada pôde ser feito. Na noite de 18 de junho, Simone foi afogado na laguna,
todo acorrentado e com uma "ponderosa pedra". O recurso à piedade dos inquisidores,
a oferta de revelar notícias úteis deviam encontrar sempre a porta fechada: as astúcias
extremas dos condenados era desmontadas pela determinação do tribunal, bem deci-
dido a não alimentar essas estratégias do desespero 69 • Mas os argumentos de Simone
não eram desprezíveis: o apelo à misericórdia, em nome de um Deus piedoso que teria
perdoado até Judas se ele se arrependesse, expressava uma rejeição profunda da dureza
de sentenças exemplares se emanadas de autoridades eclesiásticas. A Inquisição levou
em consideração esse modo de pensar disseminado. Suas condenações à morte foram
raras, suas sentenças foram justificadas - como se viu - de modo a apresentarem a
atuação do tribunal como orientada mais pela brandura do que pela dureza. Quando
se chegou a sentenças de morte, essas foram justificadas em nome não tanto da pu-
nição exemplar do herege pertinaz quanto da necessidade de impedir a simulação eª
ambiguidade dos falsos fiéis .
A peculiar situação italiana revelava nisso seus frutos: o perigo para o controle
inquisitorial não era constituído pela resistência dos hereges prontos para o martírio,

68. ASVen., Sant'Uffizio, b. 29, fase. "Contra Simonem Vicentinum", cc. n.n. Sobre o círculo dos hereges de
Vicenza, onde Simone não parece ser conhecido, cf. A. Olivieri, Riforma e Eresia a Vicenza nel Cinquecento,
Roma, 1992 (v. em part. p. 291).
69. Cf. o estudo de G. Romeo, Aspettando il Boia. Condannati a Morte, Confortatori e Inquisitori nella Napoli della
Controriforma, Fírenze, 1993.

A Inquisição
211

mas pela aparente condescendência de quem na verdade recusava-se a colaborar. Essa


contínua insistência na atitude maternal da instituicão
, , na vontade de usar misericór-
dia desde que pudesse contar com uma total confidência e com um abandono pleno
e sem reservas criou uma retórica particular da sinceridade nas comunicações com os
acusados. Os inquiridos recorreram continuamente a ela, com expressões como: "Eu
responderei sempre a verdade porque vejo que perante vós deve-se dizer a verdade" 70 •

70. Depoimento de 16 de novembro de 1582 de frei Valerio de Bolonha, ermitão de Santo Agostinho, diante do inqui-
· b. I, f:ase. 6·. n
s1·dor de p·isa (AAp, S. U'a;,zio = in Qiusa Fratris Egidii Senensis et Fratris Valerii de Bononia, e. 372).
n....----us
11

A Cruel Inquisição
VII
0 ÂMBITO INQUISITORIAL:
OS FUNCIONÁRIOS

S e o cálculo das vítimas da Inquisição redimensionou uma certa imagem truculenta do


modo de administrar a justiça por parte desse tribunal, ainda não foi efetuada setia,
mente uma contagem, não no fronte das vítimas, mas dos funcionários e dos agregados.
No entanto, não há dúvida de que foi por esse caminho que grande parte da sociedade de
antigo regime - ou pelo menos a parte que contava - envolveu,se na defesa e na ampliação
dos privilégios do tribunal em questão. É sabido que o número dos familiares do Santo
Ofício atingiu cifras exorbitantes; por exemplo, em Cremona onde no final do século XVI
eram um pequeno exército, formado "pelos piores da cidade"; ou então na Sicília. Aqui,
nessa mesma época, dom Scipio di Castro observava que a categoria dos familiares não
excluía nenhum grupo social: "Há Cavalheiros, barões, mercadores, artesãos, campesinos
e gente de toda espécie" 1• Marco Antonio Colonna avaliava o número total em cerca de
trinta mil homens e sublinhava que esse número compreendia "todos los ricos, nobres
y los delinquentes" 2 • Juízes mordazes e hostis, ainda que não totalmente condizentes na
análise sociológica: havia um traço de classe que unia os "familiares do Santo Ofício" ou
não? Um homem de lei e de cultura da estatura de Monsenhor De Luca, que adquirira
sua experiência na Nápoles de Masaniello, não tinha dúvidas: tratava,se de uma associação
de nobres, ricos e tratantes - "os mais nobres, ou melhor, os mais abastados, ou então
os mais valdevinos e malfeitores" 3 - como tinha dito Marco Antonio Colonna. E não é
difícil de entender que hoje, retrospectivamente, sejamos tentados a ver na relação entre
a Inquisição e a sociedade siciliana "uma das maiores organizações de tipo mafioso que já

1. Awertimenti di Don Scipio di Castro a Marco Antonio Colonna quando Andó Vicere in Sicilia, org. por Armando
Saitta, Roma, 1950, p. 69. Quanto a Cremona, o juízo do podestá, de 1594, é reportado por Susanna Peyronel
Rambaldi, "lnquisizione e Potere Laico: 11 Caso de Cremona", em Lombardia Borrornaica. Lombardia Spagnola
1554-1659, org. por P. Pissavino e G. Signorotto, Roma, 1995, pp. 579,617; v. em part. p. 567.
2. Relação de M. A. Colonna a Felipe II de 13 de novembro de 1577, citada por V. Sciuti Russi, Astrea in Sicília,
Napoli, 1983, p. 142.
3. Discorso di Monsignor De Luca Sop,ra l'Uso de' Patentati e Ministri dei S. Offitio nello Stato Ecclesiastico, BAV, Vat. Lat.
10852, cc. 334r,342t1 (em part. e. 337r). A resposta de Albizzi é reproduzida em cc. 342r-360t1. Sobre De Luca
falta um estudo adequado. Cf. Diego Rapolla, Dei Cardinale GiOtJanni Battista Di Luca Giuresconsulto Venosino ,
dei suo Tempo e della sua Patria, Portici, 1899.
214

operaram na ilha até nossos dias"4. Entretanto, mesmo nesse caso não se inventou nada
de novo: as associações de laicos em defesa dos inquisidores na luta contra os hereges
tinham aparecido na Itália centro-setentrional desde o século XIII. Porém, mais uma ve z,
por trás da aparente permanência do antigo, encontra-se uma realidade completamente
diferente: não corpos organizados de cidadãos em defesa do p~rtido da Igreja, mas grupos
de poder que tentavam manter e aumentar seus privilégios. E uma evolução semelhante
àquela mais geral das confrarias de laicos, que sofreram nessa época um difuso processo
de aristocratização: a retomada feudal e o desaparecimento das formas tradicionais de
luta política nas cidades traduziram-se numa modificação substancial das características
desse gênero de corpos coletivos. Pertencer à confraria dos Cruxati ou "Cruzados" com-
portava indulgências capazes "de, fazendo parte dela, mandar voando imediatamente
para o céu" , escrevia o governador de Siena em 15795 • Mas comportava também privi-
légios e vantagens mundanas de toda ordem: isenções fiscais , direito de porte de armas,
faculdade de não ser julgado por outro tribunal que não o da Inquisição. Não é difícil
de entender que havia os que tentavam apropriar-se disso tudo, fazendo valer poderes
de classe e prepotências pessoais. Os próprios inquisidores tiveram muita dificuldade de
estender a esses sua autoridade: na segunda metade do século XVI, o dominicano Camillo
Campeggi precisara intervir com certa dureza para impor o respeito de sua autoridade
aos cruzados, que tinham se acostumado a cooptar outros membros - e a distribuir-lhes
esses privilégios - ignorando completamente o direito de designação do Inquisidor6•
Segundo De Luca, contudo, no final do século XVII o problema não tinha mais a ver
1 com os estados italianos; tinha se tornado um problema do Estado da Igreja. Na falta
de dados seguros, é difícil fazer julgamentos a respeito. Certamente, no que se refere à
Sicília, os vice-reis não podiam deixar crescer em tal medida a categoria dos isentos sem
verem anulado todo poder de governar; e a coroa de Espanha não renunciou a cortar
gradativamente os ramos de uma erva daninha muito vigorosa. Nem os estados princi-
pescos italianos originários da crise dos ordenamentos republicanos e citadinos podiam
tolerar a existência de poder~s desse tipo. É exemplar quanto a isso o caso do grão-ducado
de Toscana, onde a tentativa de implantar uma confraria do gênero por parte de um
engenhoso inquisidor de Siena deu origem, em 1579, a um duro confronto político. O
grão-duque Francesco I percebeu imediatamente o risco de um retorno aos antigos con- ,,
flitos citadinos da época comunal: "inflamar os populares com a fala dos pregadores ,
distribuir as cruzes vermelhas da confraria no final de sermões inflamados, e ainda por
cima "numa cidade parcial como aquela" significava renovar lutas de facção intoleráveis
em um estado principesco: "em nossos estados não queremos outros patrões a não ser
nós" 7• De fato, uma vez afastado esse perigo, a concessão de "patentes" e de privilégios
parece ter encontrado algumas brechas na sociedade toscana do século XVII. Mas era

4. Orazio Cancila, Cosi Andavano le Cose nel Secolo Sedicesimo, Palermo, 1984, p. 30.
5. Citado em Valerio Marchetti, "Ultime Fasi della Repressione dell'Eresia a Siena", op. cit. , p. 75.
6. Cf. do autor deste volume "II Budget di un Inquisitore. Ferrara 1567-1572", em Schifanoia, 2, 1987, PP· 314~·
7. Da carta de Francesco I ao inquisidor de Siena frei Prospero Urbani, 20 dez. 1579, reproduzida por Valerio
Marchetti, "Ultime Fasi della Repressione dell'Eresia a Siena", op. cit., pp. 75-76.

A Inquisição
215

justamente no Estado da Igreja que a situação era grave. Pela ata de uma congregação
do Santo Ofício de 1624 resulta que entre as questões urgentes estava na ordem do dia
justamente esse ponto: tratava-se da necessidade de "estabelecer o número dos familiares
e ministros do S. Ofício nas Províncias, em particular na Úmbria, Marca e Romanha,
havendo desordem na qualidade e muito mais no número, que é supérfluo, excessivo,
e prejudicial ao bom governo de todo estado" 8 • Admissão significativa, que demonstra
ao menos a consciência do problema. Mas justamente por serem muito consistentes os
interesses que se ocultavam por trás da concessão do título de "familiar", não faltaram
vozes em sua defesa, mesmo no interior do próprio Santo Ofício.
A estrutura dos familiares do Santo Ofício era simplesmente uma continuação da
antiga estrutura das confrarias, como sustenta o cardeal Francesco Albizzi, defensor de
ofício de todos os privilégios da Inquisição, que, quase aos noventa anos, tomou a pena
para responder às críticas de De Luca. Mas sua remissão às origens não é suficiente para
responder ao duro e pontual ato de acusação de De Luca. Não se trata apenas das con-
frarias dos cruzados: estão em jogo - escreve De Luca - todos os cargos de consultores,
chanceleres, chefes dos esbirros, mandatários. Esses cargos são conferidos a pessoas ricas e
tituladas, a "mestres das armas" - gente que se faz isentar "de encargos públicos", ou seja,
não paga as taxas, não está sujeita aos tribunais ordinários, está autorizada a portar armas.
Livres para fazer o que querem, sem temer qualquer autoridade - "como não sujeitos
nem aos bispos, nem aos governadores, mas ao inquisidor, que é um frade isento, sem
prática do foro e que costumam ser indulgentes com seus titulares" - esses "familiares"
formam um corpo completamente incontrolável; além disso, não se contentam em gozar
esses privilégios, mas os estendem "a seus parentes, familiares e dependentes". Poderes
e privilégios criam corrupção: De Luca insinua a suspeita de que esses frades concedem
os títulos de familiares muito provavelmente por dinheiro. Mas, sobretudo, é evidente a
injustiça extremamente grave resultante disso em relação "aos pobres, aos quais cabe suprir
às necessidades públicas com seu suor" e que, ainda por cima, têm de sofrer prepotências
e injustiças sem poderem reagir. No ato de acusação de De Luca percebe-se um sentido de
estado e uma consciência política do problema que, no geral, não se manifestaram nos
estados italianos, onde nenhuma autoridade central foi capaz de impor uma providência
de limitação do número dos "familiares", como a que foi tomada na Espanha em 1553 9 •
Nos territórios sujeitos à Inquisição romana, não sabemos nem por aproximação
qual era e como variava no tempo o número de pessoas que, por motivos vários, preten-
diam ter acesso aos privilégios desse foro. As listas dos "titulares e oficiais" que as sedes
locais deviam expedir periodicamente a Roma não são de grande ajuda, limitando-se
(ao que parece pelos casos conhecidos) ao registro do pessoal judiciário e consultores 1°.

8. BNN, ms Branc. I B 7, cc. 71rv: Nota de' negotii pendenti nel S. Ufficio di Roma di ottobre 1624.
9. Sobre a questão dos "familiares" em Portugal, Espanha e Itália e sobre a política dos atos reais de "concórdia", que
fixavam O número com base em critérios demográficos, cf. Bethencourt, L.:Inquisition à l'époque moderne, op. cit, pp. 53-69.
10. Uma lista de 1657, relativa ao domínio florentino, foi publicada pelo autor deste volume ("Vicari dell'lnquisizione
Fiorentina alla Metà del Seicento. Note d'Archivio", em Annali del lstituto Storico ltalo-germanico in Trento, VIII,
1982, pp. 298-302).

O Âmbito Inquisitorial: Os Funcionários


216

A sociedade que gravitava em torno do tribunal não era apenas a dos que go.
zavam de sua proteção e privilégios; era também a de quem pretendia por motivos
vários influenciar seus procedimentos, lançando-os contra seus próprios inimigos e
afastando-os de seus clientes: é uma dinâmica que nesses termos pertence à história d
, e
todo poder judiciário. E possível imaginar que essa dinâmica ocorresse no âmbito das
atividades da Inquisição, mesmo sem deduzi-lo da insistente exortação a ignorar qualquer
recomendação que chegasse de Roma às ramificações locais do tribunal em questã 0 11
Como era constituída a "selva" inquisitorial? É necessário imaginá-la em seu con~
junto, como uma pequena sociedade tal como foi , para tirar os "grandes inquisidores"
de seu romântico isolamento. Solidariedade corporativa, privilégios comuns, defesa
recíproca nos momentos de risco são também elementos úteis para saber o que unia
entre si pessoas de origem, cultura e posição social diferentes e permitia sua colaboração.
Naturalmente, nas relações corporativas influíram as diferentes situações históricas;
uma coisa era oferecer um cavalo a frei Michele Ghislieri, ameaçado de morte em
1560, outra era mandar galinhas e frutas da terra ao inquisidor metropolitano da parte
dos vigários nos ociosos anos do início do século XVII toscano 12 • Em ambos os casos,
contudo, os comportamentos obedecem ao senso de pertinência a um mesmo corpo:
solidariedade, camaradagem, pequeno investimento para cair nas graças dos superiores
e agilizar a própria carreira, enfim, sentimentos e cálculos que partem do dado de fato
de uma linha divisória entre quem é membro da corporação e quem não é.
Mas quantos eram membros efetivos e quantos não? E como era composta essa
sociedade? Em que medida o âmbito da sociedade inquisitorial expandiu-se e chegou a
envolver os mais vastos conjuntos sociais cuja vigilância encabeçava? Para responder a
perguntas desse tipo seria necessário dispor de pesquisas bem diferentes das que foram
realizadas até agora. Mas é possível fazer algumas sondagens.
Em Módena, no início do século XVIII (quando "a estrutura estava testada e em
funcionamento" 13) o pessoal efetivo era formado por 204 pessoas, das quais 61 para
o tribunal da cidade e 143 para os vicariatos extraurbanos, espalhados por uma vasta
área que compreendia planície, colina e montanha da região de Módena. Quanto às

11. Reproduzo aqui um exemplo: "Rev. Padre - escrevia o cardeal Arrigoni ao inquisidor de Florença em 4 de
fevereiro de 1606. - Para manter a integridade, que convém ao tratamento e à ciência das causas da Santa
Inquisição, Sua Santidade, na Congregação do Santo Oficio, a 8 de dezembro próximo passado, ordenou
que se escrevesse a todos os Inquisidores que na execução e conhecimento das causas do Santo Ofício não
respondam a cartas de recomendação de qualquer pessoa, seja eclesiástica ou leiga, de qualquer dignidade, e
proeminência, e que não levem em consideração e não respeitem de modo nenhum tais cartas no despacho
das causas sob pena da privação do cargo e outras ao arbítrio de Sua Santidade. Porém, advirto V. R. para
que não deixe de observar inviolavelmente tal ordem e informe sobre ela a seus vigários, fazendo registrar ª
presente nos livros dessa Inquisição para instrução de seus sucessores ... " (ACAF, Misc. S. Uffizio, 7, 113).
12. Intercâmbios epistolares que aludem a doações desse tipo encontram-se difusamente documentados na corres-
pondência dos vigários toscanos da Inquisição com o Inquisidor florentino (ACAF, Misc. S. Uffizio, passim).
13. Carla Righi, 'Tlnquisizione ecclesiastica a Modena nel' 700, em Formazione e Controllo dell'Opinione Pubblica ª
Modena nel' 700, org. por A. Biondi, Modena, 1986, pp. 53-95; em part. p. 55 (do ensaio citado foram colhidos
dados que acompanham a situação de Módena durante o século XVIII.

A Inquisição
217

relações de poder, era uma estrutura que dependia do inquisidor de Módena e por ele
era selecionada e autorizada: o inquisidor recebia formalmente a própria autoridade
por delegação especial do papa, mas dependia também do consentimento do duque,
sem o qual não teria sido possível proceder à sua designação. Suas funções de governo
colocavam-no de fato numa posição de prestígio quase semelhante àquela do bispo:
outra e mais complicada era a questão de direito. Mas na série das precedências era
reconhecida a do inquisidor sobre a do vigário do bispo.
Esse poder tornava-se palpável graças à atuação de uma série de conselheiros e
de executores que compreendia:
um vigário-geral;
um pró-vigário;
seis consultores teológicos;
quatro consultores canonistas;
quatro consultores "legistas";
um "mandatário" (aquele que mandava efetuar as ordens de comparecimento,
busca e detenção, ocupava-se da afixação dos editais e assim por diante);
um mandatário substituto;
um mandatário dos subúrbios;
um chefe de esbirros para as operações policiais; e este podia contar com:
um executor;
um executor dos subúrbios;
um procurador fiscal; e aqui entramos em plena zona processual, onde encon-
tramos também:
um advogado dos réus;
um chanceler.
O mundo das prisões inquisitoriais era confiado a:
um inspetor das prisões;
um médico físico;
um médico cirurgião;
um barbeiro (que devia, inclusive, fazer a barba do inquisidor e de seu vigário);
um farmacêutico;
um provedor dos prisioneiros.
Ao mundo da imprensa eram delegados:
um tipógrafo (para aquilo que o inquisidor precisava publicar por dever de ofício);
um fiscal de embrulhos e caixas na alfândega e
um fiscal às portas da cidade.
Para as obras que deviam ser examinadas para obtenção de licença de publicação
podia-se contar com:
um revisor de teologia;
um de filosofia;
um de leis;
um de medicina;

O Âmbito Inquisitorial: Os Funcionários


218
,
um de letras humanas;
um de obras morais;
um de matemática e astrologia;
um para as publicações e livros franceses ;
um para as obras hebraicas.
Aos judeus era reservado:
um inspetor do gueto.
No que se refere aos judeus, que deviam pagar uma taxa à Inquisição, havia
também a função de:
um coletor das entradas do Santo Ofício.
A todas essas pessoas, que desempenhavam funções mais ou menos precisas
deviam também ser acrescentados os "familiares" da Inquisição, geralmente membros'
das principais famílias que ofereciam um apoio de "imagem" ao sagrado tribunal, re-
cebendo em troca a "patente" e os respectivos privilégios.
Se nos deslocamos para as paróquias da diocese, encontramos um sem-número
de vigários, chanceleres e mandatários, designados aos trios para cada mínimo centro
do território; nos centros de maior importância - em Finale, Carpi, Castelnuovo di
Garfagnana - a tríade ampliava-se para um núcleo mais robusto, quando havia uma
prisão a guardar ou um controle censório a exercer (por exemplo, sobre os pacotes de
mercadorias que atravessavam as fronteiras).
Ora, Módena continuava a ser, no entanto, a capital de um estado. Podemos
verificar se as exigências eram diferentes em uma cidade de grandeza semelhante, mas
com peso político diferente, como podia ser à época a cidade de Ferrara - já capital do
estado de Este, mas tornada a partir de 1598 sede de um governo legatório papal. Em
Ferrara, por volta da terceira década do século XVIII, um censo da estrutura inquisito-
rial 14 listava as seguintes figuras :
um Inquisidor (frei Domenico Andrea Corsini de Forli, designado em 5 de
setembro de 1731);
um vigário (frei Alessandro Grigioni de Milão);
um chanceler (dom Ulisse Onzarelli, padre secular de Ferrara);
um chanceler para as causas cíveis (o notário Giuseppe Maria Farina) e um chan-
celer substituto para as causas cíveis (Domenico Montanari, outro notário); a propósito
de ambos, deve-se dizer que eram designados pelo Inquisidor para exercerem a função
de juiz em processos civis em que estavam implicados os "patenteados" da Inquisição,
os quais gozavam o "privilégio do Foro", obviamente muito almejado;
um advogado fiscal ( Giovanni Domenico Borsetti, professor de direito da uni-
versidade de Ferrara);

le V rie
14. Os dados por Ferrara são tirados de uma lnformazione sopra lo Stato della S. lnquisizione di Ferrara, circa ica S.
e Patentati della Medesima, em Archivio dei residui ecclesiastici della Curia diocesana di Ferrara, fooclo
Domenico, I. A Informação, sem data, foi redigida ao redor de 1734 em vista de uma redução do número
das vicárias.

A Inquisição
219

um advogado dos réus (Tommaso Fabbri, também professor da universidade);


um procurador dos réus (Giovanni Battista Tabacchi);
um mandatário para a cidade (Giuseppe Durelli, capitão das milícias urbanas);
um mandatário para os burgos (Sante Pulzatti, tecelão);
um servidor do Santo Ofício (era Antonio Vasconi, dono de uma pequena loja
de tecidos , que se prestava a encontrar advogado, fiscal , mandatários e quem mais o
inquisidor precisasse);
o chefe dos esbirros (Sebastiano Gentilini, "esbirro profissional");
um cirurgião (Giacomo Priori);
um barbeiro (Giuseppe Ferrazzi);
um inspetor de livros e pacotes junto à alfândega (Girolamo Azzolini, coletor
de impostos);
um tipógrafo (Giuseppe Barbieri);
um armeiro (servia como perito nos processos por porte de armas; era Giovanni
Carlini, armeiro profissional);
um revisor de livros de filosofia (Pe. Ludovico Lanci, teatino);
um revisor de livros de belas,letras (o marquês Ercoli Trotti);
um revisor dos livros de teologia (era o franciscano Girolamo Centolani);
um revisor dos livros de leis (Antonio Beccari, professor de direito);
um revisor dos livros hebraicos (Agostino Botticini);
um intérprete da língua alemã (Giovanni Tommaso Dotti Colla).
Todos esses possuíam patentes (com exceção do "servidor do Santo Ofício") e por
isso gozavam dos privilégios de foro que a patente comportava. Isso valia também para
os "familiares", entre os quais encontramos a nata da nobreza de Ferrara. Os familiares
"servem - descreve a relação - para receber e acompanhar de uma Inquisição a outra
os presos ou coisas [... ] e fazem,no às próprias expensas, e por isso são escolhidos cava,
leiros e cidadãos que possam gastar". É preciso destacar que quase nenhum dos nomes
listados representava uma sobrecarga para a contabilidade da inquisição: muitos serviam
"por pura honra" e mantinham,se "honradamente" com os proventos da profissão ou
com as rendas familiares. Até mesmo o tipógrafo do Santo Ofício trabalhava de graça.
Somente o barbeiro e o médico recebiam um salário anual de três escudos cada um.
Tanta disponibilidade para trabalhar para a Inquisição sem compensação financeira
demonstra que havia fortes estímulos para participar da pequena sociedade inquisitorial
e compartilhar de seu poder e prestígio.
A lista completa dos possuidores de patentes da cidade de Ferrara atingia a cifra
de 63 , equiparando,se substancialmente a Módena. Essas 63 pessoas constituíam uma
pequena elite no interior de uma quantidade de "almas" que era calculada em torno de
28 mil. O território de Ferrara - para um conjunto de cerca de 122 mil "almas" - era
dividido em 21 paróquias, cada uma delas confiada a um trio formado pelo vigário,
o notário e O mandatário (Comacchio e, em menor medida, Argenta, possuíam um
staff mais volumoso). Em termos de funções de controle, seria absolutamente inútil
determinar a relação estatística entre os portadores de patentes e as pessoas passíveis

O Âmbito Inquisito rial: O s Funcio nários


220 ,
de inquisição, pois o pequeno grupo dos que pertenciam ao círculo da inquisicão ~
cumpria tarefas de controle policial direto , mas limitava-se quanto muito a a~ . nao
e1tar 0
que era determinado por outras agências: a organização dos confessores, por exem l
0
ou as pessoas leigas que , quando obrigados a denunciar o que sabiam sob pena d p '
e ex-
comunhão, eram idealmente arrolados em bloco no corpo da "polícia da alma". Como
elite, esse pequeno núcleo devia funcionar seja garantindo uma imagem adequadamente
elevada do tribunal que servia, seja demonstrando-se à altura dos deveres judiciários
que lhe competiam. Quem recorria ao vigário de uma paróquia perdida do Apenino
ou das vastas planícies palustres da costa devia encontrar uma pessoa em condicões , de
fornecer-lhe uma primeira avaliação correta de seu caso, sob pena de graves consequ-
ências em todo o processo que a partir disso se iniciava. E nem sempre esses vigários
estavam adequadamente preparados para sua tarefa. Há um documento a respeito no
relatório redigido em torno de 1681, por ocasião de uma reforma do sistema dos vica-
riatos e endereçada à sagrada congregação romana 15 •
Como consta do relatório, os critérios para a designação dos vigários eram aque-
les válidos em geral para os inquisidores: deviam ser preferidos em termos gerais os
membros das ordens religiosas ao clero secular; deviam ser pessoas de bons costumes,
de idade superior a trinta anos , preparadas adequadamente em matéria de teologia
e direito. Quanto aos chanceleres e mandatários, as exigências referiam-se aos bons
costumes, à preparação específica, à garantia de uma certa segurança econômica (para
excluir o risco de venalidade e de corrupção). Ora, é evidente que todas essas exigên-
cias nem sempre podiam ser satisfeitas quando se passava das cidades dominantes aos
burgos menores e às pequenas paróquias perdidas no campo. Quando se encontravam
pessoas do gênero, já desempenhavam funções vicariais e administrativas na estrutura
diocesana: e a sobreposição de funções pastorais e inquisitoriais era uma hipótese que
não agradava ao Santo Ofício.
Típica situação positiva era a situação da paróquia de Ariano, onde para o vicariato
era possível escolher entre três padres seculares: um - dom Pietro Violati - arcipreste
do lugar, de 64 anos, sem títulos de doutorado (mas "estudou teologia e direito civil e
canônico") e já nomeado vigário, não obstante a oposição de princípio ao acúmulo de
deveres pastorais e inquisitoriais; os outros dois mais jovens, sem paróquia, sem títulos
de doutor, e um "já processado no episcopado por causa de mulheres" e exilado da
diocese. Para o cargo de notário, podia-se escolher entre quatro notários laicos e um
clérigo que "sabe um pouco de gramática". Para o cargo de mandatário, propunha-se
uma lista tripla, um barqueiro e dois donos de mercearias. Em Trecenta a situação era
mais difícil: ali também havia um arcipreste provido de boa preparação, mas que já era

15. O documento, constante no relatório, intitula-se Nomina de Sogetti per li Vicariati Foranei della Santa Inquisizione di
Ferrara, per l'Offieio di Vicario, Notaro e Mandatario e foi redigido por volta de 1683. Sobre o sistema dos vigários
da Inquisição e sobre sua relação de imitação e de competição com O sistema vicarial diocesano, cf. A. Bioocli,
"Lunga Durata e Microarticolazione nel Territorio di un Ufficio del Inquisizione: 11 'Sacro Tribunale' a Modena
(1292-1785)", emAnnali deU'lstituto Storico ltalo-germanico in Trento, VIII, 1982, pp. 73-90. Sobre a situação roscana
no século XVII, cf. do autor deste volume, "Vicari dell'lnquisizione Fiorentina", op. cit., pp. 275-304.

A Inquisição
221

vigário distrital do bispo de Ferrara, dois sacerdotes desprovidos de bens (um "vive da
missa e com metade dos ganhos extras, e com o que calha") e " outros padres que mal
sabem dizer a Missa" . Em Copparo, não havia "nenhum notário registrado e nenhum
clérigo" . Havia um capelão de um oratório vizinho, que porém era "tido como um tan-
to inquieto" . Também em Pontelagoscuro a situação era deficitária: nenhum notário
registrado , nenhum clérigo; havia um pároco que tinha acabado de sofrer a pena de
dez anos de galé. No entanto, ali havia necessidade de vigário e notário porque, como
explicava o relatório , Pontelagoscuro era um porto fluvial onde "pode acontecer que,
por causa do mal de livros ou outros, haja necessidade da presença do notário, sem ter
que mandar chamar um" . As propostas de nomeação, portanto, eram obrigadas a se
dirigirem a pessoas bem distantes dos requisitos exigidos: clérigos jovens, pouco mais
que rapazes, que viviam na casa do pai e mantinham-se com a colheita da propriedade
paterna; havia pessoas como Francesco Borsatti, clérigo de 25 anos, de Bondeno, filho
de um capataz, que não tinha "vontade de estudar, mas de caçar" ; e outras como Carlo
Antonio Cavallieri, clérigo de Ficarolo, 22 anos que era "tido como jovem boêmio" .
Quando possível, escolhia-se uma pessoa "sensata e prudente", como o arcipreste de
Consandolo, mesmo que não tivesse títulos de doutor. Dava-se muita atenção às ma-
ledicências: um vigário mal falado era o que havia de pior. E a respeito dos clérigos da
diocese os falatórios eram abundantes. As informações, divulgadas no tom discreto e seco
do relatório, deixavam entrever poucas alternativas: somente a presença de mosteiros
dominicanos ou franciscanos resolvia de modo satisfatório o problema de encontrar
um vigário e uma estrutura de apoio para as funções de vigário; do contrário, era a
estrutura de governo secular da igreja, já sobrecarregada com muitas outras tarefas,
que devia intervir.
Uma rede frágil, portanto: pessoas pouco preparadas, expostas a todas as tentações
oferecidas por um poder temido e temível. A atenção ao escolher pessoas que "viviam
de suas posses", de idade não muito exposta às tentações da carne, que conheciam
bastante bem direito e teologia, não era suficiente para garantir que essas pessoas, no
exercício de seu poder, não se deixassem seduzir pelas oportunidades.· O problema
era do mesmo gênero daquele que na época pós-concílio de Trento fora detectado em
toda a estrutura do clero secular: era necessário que esse corpo de tutores das almas
oferecesse um bom exemplo, fosse irrepreensível, não se expusesse mais às críticas de
imoralidade e despreparo. A literatura pastoral tinha examinado a fundo quanto a isso
todos os argumentos que remetiam à famosa imagem evangélica do "sal do mundo";
que fazer se sal evanuerit? Não havia remédio. Era preciso, portanto, que esse sal fosse
obrigado a se manter salgado, ou que pelo menos se fingisse acreditar nisso - mesmo
ao preço de esconder cuidadosamente os defeitos aos olhares de fora. Uma certa dose
de hipocrisia era ineliminável do esforço de manter o corpo eclesiástico acima do laico
não só em termos de poderes e dignidades, mas também em termos de virtudes. No caso
dos "oficiais" da Inquisição, isto significava uma vigilância atenta do comportamento
deles por parte do próprio tribunal que serviam. Temos uma prova disso nos registros
dessa mesma inquisição de Ferrara que avaliava tão atentamente seus candidatos.

O Âmbito Inquisitorial: Os Funcionários


,
222

Em um registro das causas "expedidas" em Ferrara entre 1653 e 167216 a p


' arte
relativa ao pessoal do tribunal é bastante considerável. A lista nominal dos casos tratados
nessas duas décadas esboça uma estratégia que de um lado defende de qualquer crítica
e qualquer ofensa os membros e os funcionários da Inquisição, de outro ataca esses
últimos por abusos cometidos no âmbito do poder de que dispõem. Encontramos assim
um mandatário - certo Agostino Pola, de Papozze - condenado à prisão e destituído da
função por ter provocado ferimentos numa pessoa; e um portador de patente, Antonio
Maria Grandi, processado por espancamento. Há também o mandatário de Voghenza ,
implicado numa questão de frutos de dízimas; um tal Bernardo Navarra, esbirro do
Santo Ofício, denunciado por ferimentos , condenado à prisão e destituído do cargo;
Carlo Zambonati, mandatário de Francolino, processado por ofensas; Francesco Meri-
gi, mandatário de Canalnuovo, processado em 1672 por injúrias e ofensas contra uma
mulher. Nem os religiosos destacam-se por correção: o dominicano Luigi Fieschi, prior
do convento de Argenta, é processado por não ter lido os decretos referentes ao Santo
Ofício; frei Candido della Mirandola é acusado de abusu s. Officii; dom Carlo Pianati,
vigário de Massa Fiscaglia, culpado por manter relações com uma viúva, foi destituído do
vicariato em 29 de outubro de 1669. Em compensação, mais numerosos ainda parecem
ter sido as intervenções em defesa da autoridade do tribunal e de seus membros. Muitos
foram processados por ofensas a mandatários e vigários. Bastava chamar um mandatá-
rio "espião do Santo Ofício", como fez Angela Campa em 1657, para ser processado;
conflitos de competência, como os que se percebem por trás do caso de um grupo de
1 esbirros processados nesse mesmo ano por terem retirado um preso de ministros do
Santo Ofício, também levavam diretamente perante o tribunal. Destruir seus editais,
ignorar suas ordens, escarnecer de seus representantes eram alguns dos crimes mais
duramente punidos. Casos como o de um tal Antonio Battaglia, processado em 1661
por uma extorsão feita ao se fazer passar por oficial do Santo Ofício, oferecem indícios
significativos sobre os comportamentos reais dos verdadeiros funcionários desse tribunal.
A defesa atenta e contínua da própria imagem e das prerrogativas dos próprios
membros absorvia, portanto, uma parte importante das energias do tribunal. Por outro
lado, restava bem pouco do inimigo histórico da Inquisição, aquele que fora motivo de
sua criação. A heresia como escolha doutrinária consciente quase não aparece nos casos
tratados e "expedidos" nessas duas décadas. Se não fosse por alguns luteranos alemães
ou calvinistas franceses de passagem, não haveria quase mais traços das doutrinas he-
réticas para se contrapor às quais a Inquisição romana fora criada. Tampouco há traços
da outra mais antiga e mais grave ameaça, a bruxaria: não há bruxas processadas pelo
tribunal de Ferrara. Há, ao contrário, processos em defesa das bruxas: em diversos casos,
encontramos pessoas processadas por terem atribuído o epíteto de bruxa a algumas mu-
lheres. Em 1657, uma certa Margherita chamara bruxa a uma mulher e foi processada
por isso; em 1658, uma certa Alessandra foi processada sob a mesma acusação; em 1661

16. Cf. Registro de' Spediti dall'Anno 1653 all'Anno 1672, em Archivio dei residui ecclesistici della Curia diocesana
di Ferrara, fundo S. Domenico, I. O registro está em forma de rubrica, não completo (chega à letra S).

A Inquisição
223

coube a Andrea Ferri de Massa Fiscaglia cumprir pena pelo mesmo delito. Em 1669,
Elisabetta Guidi compareceu perante o tribunal por ter insultado Lucia de Codigoro,
chamando-a "bruxa" . Já então a acusação de bruxaria, pouco tempo antes tão perigosa,
tornara-se matéria de litígios entre mulheres e o tribunal criado para combater a bruxaria
intervinha para proteger a honra das mulheres ofendidas com esse título.
É de se perguntar qual era a utilidade restante da estrutura do Santo Ofício
em termos de defesa, real ou imaginária, da comunidade; quais fossem os "diversos"
contra os quais se erguera aquela barreira; qual a correspondência entre investimentos
e produto, do ponto de vista dos titulares do poder. A resposta evidencia-se imediata-
mente quando se lê o registro que resume os casos "expedidos": dos cerca de mil casos
tratados em menos de vinte anos - o que já é um dado eloquente do funcionamento de
um tribunal - a maioria absoluta diz respeito, de um lado, aos judeus, e, de outro, aos
feitiços e superstições. Para os judeus, os motivos de choque com o Santo Ofício eram
infinitos: bastava infringir em algum momento as barreiras que deviam separá-los dos
cristãos. E as ocasiões para romper essas barreiras eram frequentes: das relações com
prostitutas cristãs ao uso de criados e servos cristãos, do misturar-se aos cristãos nas
ocasiões festivas e nos divertimentos (danças, jogos de cartas) a qualquer outra forma
de familiaridade. Além disso, crimes mais graves eram perpetrados em todas as ocasiões
em que os membros da comunidade judaica entravam em choque com as práticas e os
símbolos da religião dominante. E aqui a casuística é extremamente ampla: judeus que
falam contra a penitência, que não demonstram a devida reverência à cruz ou às imagens
da Virgem, que não se retiram a tempo quando passam as procissões, que impedem a
conversão de outros iudeus. A presença da comunidade dos judeus de Ferrara reflete-
-se na exuberante di'nâmica documentada por essas listas e diferencia o Santo Ofício
de Ferrara do de outras cidades italianas onde a presença judaica era mais exígua ou
completamente inexistente.
Ao contrário, a luta contra superstições, encantamentos e feitiços que transpa-
rece do documento é idêntica em suas grandes linhas àquela que empenhou então as
estruturas inquisitoriais na Europa católica: o tribunal é atulhado de casos de feitiços
para conquistar o amor, encontrar tesouros, garantir a própria saúde e a dos amigos
e prover a desgraça (maleficium) aos inimigos. As pessoas que se apresentam diante do
inquisidor ou de seus vigários têm muitas vezes por objetivo denunciar espontaneamen-
te a si mesmas ou a outras (sponte comparentes), mas sua espontaneidade é fruto quase
exclusivamente da coerção exercida pelos confessores.
A heresia consciente, como foi dito, configura-se finalmente como um fenôme-
no marginal, como se tivesse desaparecido do mundo dos pensamentos pensáveis no
mund o cato, 1·1co. Pore'm , sa- 0 bastante numerosos os casos de blasfêmias heréticas: mas
• b •m no aumento desmedido dos casos de superstição - refletem-se os
aqui - como tam e .
- do tribunal de suas regras e dos mecanismos de controle,
resu lta d os d e uma evo luca
, 0 '
à qual devemos agora voltar nossa atenção.

O Âmbito Inquisitorial: Os Funcionários


VIII
0 ÂMBITO INQUISITORIAL:
AS REGRAS

- Essa vossa lei eu não a conheço - disse K;


- Azar seu - respondeu o guarda.
F. Kafka, O Processo

que sabiam os acusados sobre o tribunal que os processava? Muito pouco, a julgar

º por suas declarações. É exemplar, a esse respeito, o interrogatório de um camponês


de Pisa, Favilla de Mezzana, que compareceu em 157 5 perante a inquisição por blasfêmia:

- Que tribunal é este, sabe para que serve este tribunal? \


- É o tribunal da santa Inquisição.
- Sabe que causas são tratadas aqui?
- Não sei, padre, pois não tenho estudo 1•

O que chama a atenção nesse breve diálogo não é a resposta, mas a pergunta. Por
que o tribunal da Inquisição perguntava o que os acusados sabiam sobre ele?
Entretanto, um rápido exame permite excluir que se tratasse de uma pergunta
casual. Nos últimos decênios do século XVI e durante o século XVII a pergunta era
feita amiúde aos acusados, sem distinção entre iletrados e homens cultos. Uma rápida
verificação num calhamaço de documentos inquisitoriais qualquer é suficiente para
confirmar isso. Perguntava,se, por exemplo, "se sabe por que o Santo Ofício mete as
pessoas na prisão" 2; "quais sejam as causas e os crimes que competem ao s. Ofício
julgar" 3 ; e assim por diante.
As respostas variavam: se Favilla de Mezzana não soube dizer nada, outros esbo,
çaram respostas mais ou menos satisfatórias. Em 12 de junho de 1620, o inquisidor de
Módena estava interrogando um jovem notário da cidade, Francesco Zarlati, acusado
de ter lido e feito ler livros proibidos. A primeira pergunta foi a ritual, se sabia ou pelo
menos imaginava a causa de sua convocação. A resposta foi bem seca: "Senhor, só pos,

1. Depoimento, 11 ago. 1575 (MP, S. Uffizio , f. 1, e. 74rv).


2. Depoimento do cabo Cassiano de Modigliana, 5 maio 1621 (idem, f. 6. cc. n.n.).
3. Depoimento de Stefano Fiorini de Pescia, 18 jun. 1621 (idem, e. 49r).
226

so saber se me disser" . Mas o inquisidor não podia dizer, devia perguntar; e seguia-se
uma segunda pergunta de caráter mais geral ainda: se Zarlati sabia contra quais tipos
de pessoas atuava o Santo Ofício? "Creio - respondeu o notário - que o S. Ofício atua
contra os hereges, e contra bruxarias e outros malefícios" . E aqui o inquisidor precisou
suspender momentaneamente as perguntas, para esclarecer e informar: o raio de acão
do Santo Ofício era muito mais amplo; atingia também os blasfemos, os supersticio;os ,
os possuidores ou os leitores de livros proibidos, quem comia carne nos dias proibidos:
que dissesse, portanto, se conhecia alguma pessoa nessas condições ou se tinha ele
mesmo livros proibidos4.
Um diálogo desse tipo transgredia a regra fundamental dos interrogatórios ,
segundo a qual cabia ao acusado responder e explicar, competindo ao juiz apenas as
perguntas. E a coisa é tão singular a ponto de necessitar que se lhe dedique mais atenção.

Arbítrio e mistério: são essas as características ligadas aos processos da inquisicão


por uma longa tradição. Prisioneiro de um sinistro cárcere e sobretudo de regras desco-
nhecidas, o "réu" é o modelo do homem posto na condição da incerteza total, de si e
do mundo. O sonho do prisioneiro é feito de luz e liberdade: os escritos de Tommaso
Campanella, um homem que passou por uma terrível experiência carcerária, são domi-
nados pelo tema da luz solar. Mas a obscuridade das regras, mais do que a obscuridade
concreta das masmorras, domina o modelo historiográfico da Inquisição, sua imagem
conhecida. É uma imagem que bem merece ser chamada "kafkiana": e a atmosfera
difundida pela literatura de romances em torno do processo da Inquisição é aquela obs-
cura, inquietante, misto de arbítrio e de burocrático pedantismo que pode ser resumida
nesse adjetivo. Assume-se, em essência, que o tribunal eclesiástico operava encobrindo
com o segredo todo arbítrio e pondo os "réus" diante do fato consumado, deixando-os
debater-se sem pontos de referência.
"Este segredo é a alma do sistema inquisitorial", disse Juan Antonio Llorente,
um que entendia do assunto. Segundo o ex-secretário da inquisição espanhola, sem o
segredo não existiriam o arbítrio, o fanatismo, o desencadear-se das paixões pessoais
dos juízes 5•
A associação entre segredo e arbítrio é uma daquelas que herdamos da luta do
Iluminismo contra o antigo regime. Das duas acusações que o filo-jansenista e "afran·
cesado" Llorente fazia contra a Inquisição - de ser contrária à lei evangélica do perdão,
de esconder-se diante da luz da opinião pública - é sobretudo a segunda que pesou no
julgamento histórico sobre os procedimentos desse tribunal. Vale a pena, portanto,
examinar de perto o fundamento da acusação.

4. ASM, lnquisizione, Processi, b. 57 , e. 165. Agradeço a Maria Carolina Capucci, que me fez ler sua dissertação de
graduação sobre esse processo (Libri Poibiti, Librai e Lettori nella Modena dei Primo Seicento, Universidade dos
Estudos de Bolonha, 1988-1989, vol. 1, p. 67) e forneceu-me gentilmente posteriores indicações.
5. "Este segredo es el alma dei sistema inquisitorial. Sin él no seria tan terrible, ni triunfaria la arbirrariedad, ~a
· · 1a superst1c1
1gnoranc1a, · 'ó n, eI f:anattsmo
· y 1as pass1ones
· personales de los jueces y subalternos" Ouan Antonio
Llorente, Historia Critica de la lnquisición en Espana, Madrid, 1980, vol. I, p. 178).

A Inquisição
227

Será necessário , no entanto, distinguir os dois aspectos do problema, o caráter


secreto dos procedimentos inquisitoriais e a ignorância subjetiva do acusado. Não há
dúvida de que o segredo era a regra fundamental. Era, a princípio, uma norma prática
destinada a proteger as testemunhas da vingança dos acusados; havia também a neces-
sidade de uma ação eficaz e a publicidade era perigosa. Por isso, era preciso atuar sine
strepitu ac figura iudicii , evitar as consequências perigosas da publicidade, se se desejava
extirpar a erva daninha da heresia. Mas se não havia perigo, o inquisidor ou o bispo
podiam publicar os nomes das testemunhas , conforme fora estabelecido, por exemplo,
por Bonifácio VIII e registrado por Nicolau Eymeric 6 • Apesar disso, já no final do século
XV consagrara-se a práxis de impor o segredo sob pena de excomunhão seja às testemu-
nhas, seja aos peritos dos quais se solicitava parecer: e Francisco Pefia, comentando o
manual de Eymeric na edição romana de 1578 (que devia servir de base à Inquisição
romana) registrava o incomparável triunfo da práxis do silêncio e do segredo 7• Desde
então, a opinião geral passou a ser aquela que se lê no manual de Masini: "Não há
coisa que mais prejudique as causas do que a não observância do segredo" 8 • Obrigados
por juramentos severos a manter o segredo sub poena periurii et excommunicationis latae
sententiae - excomunhão que somente os membros da congregação cardinalícia podiam
anular - os inquisidores e seus vigários tiveram que dedicar boa parte de seu tempo a
colher e a resguardar denúncias e processos e a controlar o segredo das prisões.
Era uma reviravolta importante, que devia marcar a vida da instituição e sua
imagem: o segredo, associando-se ao método inquisitório que colocava nas mãos do juiz
a ação policial e a coleta das provas contra o acusado, acabou por tornar-se uma carac-
terística básica desse tribunal. Derivaram disso consequências de vários tipos, das quais
será suficiente recordar as duas mais evidentes: o surgimento de um sistema carcerário
inquisitorial e a organização de um sistema especial e secretíssimo de arquivamento
dos dados colhidos. Prisões e arquivos serviram de várias maneiras para tolher a livre
circulação de pessoas e informações: mas os membros da Inquisição fizeram isso de
modo particularmente acentuado e rigoroso, até tornar-se - de instrumentos acessórios
e facultativos - as instituições mais típicas desse tribunal. Quanto às prisões, durante
muito tempo, tratou-se de locais oferecidos por terceiros: as prisões do príncipe ou as
episcopais, por exemplo. Aprisionar alguém era prerrogativa do poder: e, como foi vis-
to, ao admitirem o tribunal da Inquisição nos próprios estados, os poderes soberanos
preocuparam-se com esse aspecto. Mas as características específicas da Inquisição logo
se evidenciaram com a questão do segredo. Não era possível manter qualquer segredo
nas prisões comuns, que serviam quanto muito para os devedores: eram lugares onde o
prisioneiro convivia e falava com outros prisioneiros e podia tranquilamente conversar

6. N. Eymeric e F. Pena, Manuel des Inquísiteurs, ed. crítica organizada por Luis Sala-Molins, Paris, La Haye, 1973,
pt. Ill, cap. 41.
7. Como sublinha corretamente Michele Escamilla-Colin, "L'lnquisition espagnole et ses archives secretes", em
Histoire économique et sociale, IV, 1985, pp. 443-477.
8. Masini, Sacro Arsenale, op. cit., p. 4.

O Âmbito Inquisitorial: As Regras


228

pelas janelas com os transeuntes. As prisões inquisitoriais, ao contrário, deviam garantir


o isolamento do prisioneiro durante a fase processual; e podiam ser usadas também
para punir e não apenas para custodiar alguém à espera de julgamento (ad Poenam/
ad custodiam) . Em ambos os casos, o isolamento era fundamental: o acusado - ou 0
condenado - devia ser isolado do mundo, para concentrar-se em si mesmo e, na soli-
dão e na aflição, chegar ao pleno arrependimento de suas culpas. A função da prisão ,
portanto, era sobretudo penitencial: tinha sido imaginada pela cultura monástica. E
a cultura da Contrarreforma inventou uma rede de guardiães e visitantes piedosos à
qual foi confiada, no Estado da Igreja, a própria função da vigilância carcerária 9• Para
os prisioneiros da Inquisição, a solução normal - nos muitos casos em que não se dis-
punha de prisões estatais - foi aquela da cela do convento. Ficava para os titulares do
poder político o problema de saber quem e porque era aprisionado: e até que inquisidor
servia-se do corpo policial sujeito ao príncipe e encarcerava seus prisioneiros nas prisões
do estado, a questão não se colocava. Colocava-se, porém, para a congregação romana
do Santo Ofício outra questão, a de saber em que medida a circulação de informações
entre inquisidores locais e príncipes prejudicava o segredo. Problemas do gênero não
existiam onde o tribunal era integrado por representantes laicos: mas sabemos quanto
essa presença, tão útil no plano da eficiência, era dolorosa para os inquisidores, que viam
aumentar perigosamente o número de pessoas em posse de informações que deviam
permanecer secretas. Frequentemente, as pessoas convocadas a se apresentarem diante
do inquisidor entravam no convento onde ele atuava e não saíam mais. Em Mântua,
no auge da investigação contra os hereges de 1567-1568, dizia-se que o convento de San
Domenico era semelhante ao inferno porque todos os dias alguém entrava ali e dele
não se ficava sabendo mais nada 10 •
Dispor de prisões seguras foi , portanto, um problema permanente no funciona-
mento da Inquisição. A questão teve um aspecto econômico relevante: as despesas para
adaptar celas de conventos ou para construir verdadeiras prisões inquisitoriais eram muito
pesadas para os balanços dos conventos. As entradas da Inquisição não eram muitas: taxas
impostas às comunidades judaicas (quando haviam), legados testamentários de membros
das confrarias dos Cruzados e, sobretudo, o confisco dos bens dos condenados. Mas ª
questão não era financeira : tratava-se de dispor de um poder ciosamente reservado ao
soberano: o de privar alguém da liberdade.
Quanto ao caráter secreto dos documentos processuais, sua custódia exigiu muitos
cuidados. O incêndio que na morte de Paulo IV destruiu os papéis na sede do Santo
Ofício foi dirigido contra a memória de uma instituição que dependia justamente do
acúmulo paciente de conhecimentos. Organizar e proteger arquivos, portanto, represen-
tou uma parte significativa das tarefas da estrutura burocrática da Inquisição. O arquivo

9. Cf. Yincenzo Paglia, "La Pietà dei Carcerati ". Confratemite e Società a Roma nei Secoli XVI-XVIII, Roma, 198º·
lo• "T10dos os d·ias aguem
1 · chega a San Domemco · e por não se ter jamais notícia de quem a11· ve10,
· aquele lugar
pode ser chamado inferno" (carta de Antonio Cerruti ao castelão de Mântua, 25 jul. 1567, citada por Pagano,
li Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 9).

A inqu isição
229

central recebeu em 1593 uma sede que se tornou definitiva 11 . Quanto às diversas sedes
locais, a consistência e a gestão de seus arquivos foi periodicamente controlada: no ato de
nomeação de um novo inquisidor, esse recebia do predecessor a consignação do arquivo,
descrito analiticamente na ata que era redigida; também as sedes vicariais eram obriga-
das a transmitir periodicamente as relações de seus documentos. Os vigários podiam
manter na sede apenas as coisas de menor importância e deviam expedir imediatamente
ao inquisidor os processos originais e todos os anexos. Não é por acaso que justamente
nessa época tenha tido início uma atividade de inventariação dos papéis existentes e de
controle de seu caráter secreto que devia ocupar dali em diante, de modo obsessivo, os
membros do referido tribunal' 2• O cuidado para com o segredo não chegou na Itália
aos ápices atingidos na Espanha, porque não houve ali nada equivalente à obsessão
bem espanhola da limpieza de sangre: e foi justamente em torno das provas de limpieza
que se desencadearam na Espanha tanto as calúnias e as investigações inquisitoriais,
como as tentativas de penetrar no segredo dos documentos processuais para utilizá-los
em proveito do poder pessoal e da eliminação dos adversários a partir da devastadora
acusação de descender de "cristãos-novos" 13 • Mas, de qualquer modo, proteger o segredo
dos documentos inquisitoriais não foi um problema de pouca monta também na Itália.
Toda essa preocupação com o segredo tinha como alvo o "réu". A condição do
acusado no momento em que se apresentava diante do juiz era - ou pelo menos deveria
ser - a de alguém que se voltava para si mesmo em busca da verdade, sem se deixar
distrair pelas paixões dos litígios humanos. Não devia ser distraído por nada: nem pelas
paixões externas nem pelos litígios pessoais. Era por isso que os testemunhos de acusação
deviam jurar, segundo a norma antiga, não serem movidos pelo ódio pessoal; nem o
acusado podia conhecer os nomes de seus acusadores, pois se devia evitar o despertar
de ódios pessoais e desejos de vingança.
Trata-se de condições ideais: na realidade, a denúncia, se não era necessariamente
fruto do ódio pessoal, era sempre sua semente. Por isso, a inquietação foi o sentimento
mais familiar aos acusadores: "Cuidai bem Vossa Senhoria em que no desejo de seguir
o que reza a justiça ... eu não seja nomeado", escrevia em 1549 um frade de Correg-
gio ao denunciar ao inquisidor um confrade; temia, justamente, ser vítima de "uma

11. Através de decreto de 23 de março, o cardeal Girolamo Berneri foi encarregado de cuidar da construção do
arquivo na sede do Santo Ofício (Pastor, "Allgemeine Dekrete", op. cit. , p. 52).
12. É conhecido o caso dos inventários redigidos por Calbetti em Módena (cf. A. Biondi, "Lunga Durata e Microar-
ticolazione nel Territorio di un Ufficio dell'lnquisizione", op. cit. , pp. 73-90; em part. pp. 81 e ss. Um inventário
analítico da sede de Pisa, redigido em 12 de fevereiro de 1586, enumera os documentos de acordo com o ano de
redação (AAP, S. Uffivo, f. 1, cc. n. n.): mais difuso é o critério de relação por tipos de documentos: um inventário
da sede florentina redigido em 1645 registra parte por parte os processos (37 volumes de processos "ligados") e
as cartas ("muitos maços de cartas") recebidas da congregação romana desde 1568 (ACAF, S. Uffivo, b. 11).
13. A "Suprema" estendeu a obrigação do caráter secreto a todas as denúncias e a todos os depoimentos em maté-
ria de limpieza e precisou reafirmar muitas vezes que quem violava o segredo incorria na excomunhão maior:
duas circulares sobre essa matéria, de 1607 e de 1628, foram publicadas por Juan Escobar dei Corro (Tractatus
Bipartitus de Puritate et Nobilitate Probanda Secundum Statuta S. Officii lnquisitionis, autor D. D. Joanne Escobar
em Corro, Lugduni, sumpt. Rochi Deville et L. Chalmette, 1733, p. 119).

O Âmbito Inquisitorial: As Regras


230

afronta ou de pancadas e talvez de morte" 14. As denúncias chegavam ao inquisidor de


contextos sociais afins - um convento, uma oficina de artesanato , uma confraria, uma
família : era o olho dos membros da comunidade que observava os comportamentos,
registrava as diferencas e colocava-as em evidência, primeiro nas conversas mantidas
entre eles e depois n~s denúncias . Tomemos apenas um exemplo. Em 1557, o caso do
jovem fabricante de selas de Udine Giorgio Fracassuto foi denunciado ao vigário-geral
lacopo Maracco , quando o caráter herético de seus comportamentos tinha se tornado
havia muito tema de conversas e de conflitos: a mãe , que não fazia "outra cousa senão
chorar por suas más opiniões" 15 , tirara-lhe um livro suspeito e mostrara-o a um frade;
seu patrão havia notado que, à passagem da Eucaristia pelas ruas da cidade, quando
todos os trabalhadores saíam da oficina para "fazer a devida reverência" , Fracassuto
"nunca fazia como os demais , mas sempre dava-lhe as costas ou não saía da oficina" 16 •
Queixara-se em segredo desse comportamento a um vendeiro vizinho, que, por sua
vez, fora imediatamente fazer um depoimento a respeito no tribunal do vigário e assim
tinham vindo à tona todas as conversas, as desconfianças e certezas de todo um univer-
so social, que unia casa, oficina, igreja e vizinhança. A escolha que rompia a unidade
daquele mundo era a de uma pessoa que, em vez de fazer "como os demais", elegia para
si uma nova e diferente regra de vida, estreitando vínculos com outra comunidade, não
visível mas real, a de sua fé . Mas somente quando alguém escolhia denunciar, essa rup-
tura tornava-se definitiva e irremediável. Daí, quando o acusado era confrontado com
as conversas, os gestos e episódios de sua própria vida, é fácil imaginar como mudava
sua relação com quem os tinha reportado ao juiz. Era uma mudança radical. Do ponto
de vista da instituição, era necessário evitar que a odiosidade da denúncia e seu preço
social desencorajassem quem era convidado a fazê-la.
Os manuais usados pelos inquisidores discutem atentamente problemas desse
tipo. Porém, mais do que as discussões dos juristas, convém seguir o processo tal corno
era vivido pelo acusado.
Nenhum caso melhor do que o de Giovanni Morone pode dar talvez uma ideia
adequada do funcionamento da Inquisição no auge de seu poder: um cardeal de grande
prestígio político e de consumada experiência repentinamente detido, em plena audiên- ',
eia pontifícia. Eis a cena ocorrida em 31 de maio de 1557:

Morone mal acabara de entrar na antecâmara, as portas foram fechadas, comparecendo em seguida
o cardeal Carafa, que comunicou ao colega que o papa tinha ordenado sua prisão no Castelo S. Ângelo[ ... )
portanto pelo corredor coberto que une o Vaticano ao Castelo S. Ângelo, o cardeal foi levado à prisão 17-

14. Carta de frei Pietro Sanotto de Correggio, 12 jun. 1549, publicada por Buschbell, Reformation und lnquisition,
op. cit., pp. 311-312.
15. Depoimento de Francesco Romano, 2 ago. 1557 (Archivio Arcivescovile di Udine, fundo S. Uffizio, b. 1, pro-
cesso n. 2; pude consultar sua edição organizada por Andrea Del Cal, ora no prelo, L'Inquisizione nel Patriarcato
e Diocesi di Aquileia, op. cit.).
16. Idem.
17. Pastor, Storia dei Papi, vol. VI, Roma, 1922, pp. 499-500.

A Inquisição
231

Portas fechadas , corredores cobertos, vozes abafadas: e aquele que era um dos
mais poderosos e conhecidos membros do colégio de cardeais vê-se na prisão de uma
hora para outra. Dão testemunho do espanto dos contemporâneos os informes que de
Roma circularam pelas cortes europeias e acabaram nas mãos de leitores estupefatos 18 •
Os autos de seu processo - ou pelo menos da cópia que o próprio Morone leu , pois
os originais, se existem, permanecem envoltos no mesmo segredo da época, no lugar
onde foram redigidos - revelam que durante anos , enquanto o cardeal frequentava a
corte papal, recebido com todas as honras , depoimentos contra ele eram colhidos e
indícios comprometedores procurados encarniçadamente 19 • Essa prisão foi excepcional
e pouco nos revela acerca das condições ordinárias do funcionamento da instituição.
A nenhum outro aconteceu , nem à época nem depois , ser aprisionado enquanto se
achava no centro da cena mais vistosa da cristandade, iluminada plenamente por um
aparato de informantes que estavam em contato cotidiano com os poderosos de toda a
Europa: nem ocorreu para outros a mobilização política e diplomática que houve ime-
diatamente para Morone. Mas, antes que o papa Paulo IV fosse obrigado pela insistência
unânime de poderosos como o imperador e o rei de Espanha a formalizar o processo
e a enviar juízes à cela do acusado , o cardeal Morone viveu no clima de incerteza e
de medo típico de qualquer outro prisioneiro do Santo Ofício. Sabemos qual era seu
estado de espírito pela "apologia" que escreveu e entregou em 18 de junho. Não havia
passado nem um mês desde a prisão, o isolamento foi interrompido em 12 de junho,
quando da visita dos cardeais aos quais o papa confiara a causa: no entanto, Morone
devia confessar que "devido à aflição na qual me encontro, perdi quase completamente
o sono". Esse tempo fora passado - segundo suas palavras - "a pensar e repensar" 20 : e
o resultado desses pensamentos foi um longo documento , composto de lamentações
e protestos, de meias admissões e de apaixonadas defesas; uma "apologia" , gênero
literário comum na tradição dos documentos processuais e sobretudo na tradição da
Inquisição. Se esse era o resultado de poucos dias de detenção para um homem de vasta
experiência e de consumada habilidade, além de dotado de amplas e poderosas redes
de relações, pode-se imaginar o que podia acontecer em condições normais. Decerto,
boa parte desses angustiantes pensamentos do período de detenção agitavam-se em
torno dos possíveis delatores. No caso de Morone, temos um testemunho preciso: na
cópia dos resultados processuais a seu respeito que lhe foi entregue para que pudesse
preparar sua defesa, os nomes das testemunhas de acusação, encobertos rigorosamente
pelo anonimato, foram reconstruídos pelo acusado com poucas incertezas. Os nomes
inseridos nos espaços interlineares no lugar do N . de ofício constituem o vestígio do
trabalho da memória que todo acusado teve que empreender - para defender-se melhor

18. Cf. a "Captura dei Cardinal Morono", publicada por Federico Sclopis, Le cardinallean Morone. Étude historique,
Paris, 1869, p. 90. Outros "informes" e despachos diplomáticos são utilizados por M. Firpo, lnquisizione Romana
e Controriforma, Bologna, 1992, pp. 266 e ss.
19. A pasta do processo de acusação abre-se com o depoimento de Giovan Barrista Scotti, de 1552: cf. Firpo e
Marcatto, Il Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giooonni Morone, vol. 11, op. cit., p. 245.
20. Idem, p. 504.

O Âmbito Inquisitorial: As Regras


232

das acusações , mas também para salvar o salvável de uma rede de relações sociais já
dilacerada pela desconfiança.

A partir disso, compreende-se quão importante tornava-se a relação com o juiz. O


acusado era detido assim, de repente, sem saber porquê; experimentava a prisão por dias
e noites a fio , antes de ser chamado diante do tribunal. A detenção podia durar muito
tempo; enquanto isso, o inquisidor continuava a colher depoimentos. Finalmente, um dia,
o acusado era convocado a comparecer em sua presença. E então tinha início o interroga-
tório. A primeira pergunta resumia todo o mecanismo inquisitorial: "se sabe ou imagina
o motivo por que se encontra aqui". O tribunal não dizia nada; deixava que o longo ma-
tutar de pensamentos durante esses dias e noites passados na cela produzisse seus frutos .
Há o bastante para encher de horror uma cultura educada no respeito aos direitos
do indivíduo - ou seja, a cultura democrática e liberal, nascida a partir das raízes da
Reforma protestante. Mas não era essa a cultura da Inquisição: nem em geral era essa a
cultura das formas costumeiras da justiça penal do antigo regime. Aqui não se tratava
de direitos do indivíduo, mas dos deveres das autoridades para a salvação das almas;
e partia-se do pressuposto, profundamente cristão, de que todo homem era culpado e
que uma varredura nas consciências individuais permitiria sempre encontrar alguma
coisa a ser confessada. Nisso , a Inquisição eclesiástica seguia um objetivo que lhe era
1
peculiar. Tratava-se de fazer emergir da alma do réu a penitência junto com a confissão. J
Era isso que diferenciava o tribunal eclesiástico no âmbito da doutrina e da prática t
penal em vigor - com a qual, no entanto, tinha em comum a convicção de que o réu
1
podia e devia ser fonte de prova 21 •
~
Portanto, era essencial que fosse a voz do acusado a dizer a verdade. E aqui tinha
lugar a primeira e decisiva pergunta do juiz.
O encontro e o confronto com o inquirido era o objetivo para o qual se preparava
e adestrava continuamente o inquisidor. Por isso, o momento do processo era decisivo
não só para o acusado, mas sobretudo para o juiz. Descobrir a culpa, perseguir o erro e
a fraude onde quer que se escondessem, desentocar o culpado e levá-lo de bom grado
ou não a confessar - era esse e não outro seu objetivo. Os textos que lhe serviam de
preparo não eram tratados de teologia e de direito, ainda que os ingredientes de que
eram constituídos viessem da cozinha dos juristas e dos teólogos: eram antes manuais
de procedimentos e coletâneas de conselhos, onde a doutrina necessária era condensada
em aforismos e a prática corrente dominava todo o horizonte. O processo era O lugar
onde teoria e prática fundiam-se: era ali que se dava o confronto direto com O acusado ,
o jogo do gato com o rato entre o acusado e seu juiz-policial.
Era um jogo de regras muito precisas. Essas regras, como em todo jogo que se
preze, eram envoltas numa aura intemporal: mas eram capazes de se adaptarem a situ-
ações concretas e historicamente determinadas.

e ~
~ Cf. a respeito a ampla e importante pesquisa de Paolo Marchetti, Testis contra se. L'lmputato come Fonte di Pro1,1a
~ ne! Processo Penale dell'Età Moderna, Milano, 1994.

A Inquisição
233

O inquisidor é alguém que busca, indaga, quer descobrir a verdade: os manuais não
se cansam de repetir isso. Inicia seu processo movido essencialmente por uma única razão:
a suspeita. Certamente, os manuais distinguem corretamente as três formas de início:
a fama, a confissão, a denúncia; formas diversas, que entram parcialmente em ação no
processo de tipo acusatório. Mas, de fato , em todos esses casos a reação profissional que
é estimulada no juiz,policial é sempre a da suspeita. E a suspeita é a chave do processo.
Sobre o suspeito, recolhem,se indícios; quando se considera oportuno, manda,se prendê,lo.
Na prisão, aquele que já é definido "réu" permanece por todo o tempo que o inquisidor
julga necessário - para colher testemunhos ou, ainda, só para enfraquecedhe a resistên,
eia. Depois, ele é convocado diante do inquisidor: e aí começa propriamente o processo.
Quem tenha lido ainda que um único processo inquisitorial não esquecerá nunca
a pergunta inicial que o juiz faz ao "réu" (isto é, o acusado, que deve demonstrar ser
inocente): se sabe ou imagina a razão por que está ali, a culpa de que é acusado. A esse
ponto, o réu pode decidir confessar, ou então tentar defender,se, negar: mas a pergunta
já lhe disse que o juiz sabe.
Desde as primeiras frases , o diálogo entre inquisidor e inquirido é uma luta, uma
prova de força; sobretudo uma prova de astúcia. Não faltam motivações teológicas: o inqui,
sidor é advertido de que deve levar em conta a natureza do adversário. O demônio é o pai
da mentira. O inquisidor, se quer lutar com ele, deve ren'unciar à candura das pombas e
aprender a astúcia da raposa. E por isso, ainda que lhe seja proibido dizer mentiras explícitas,
não deve dizer o que efetivamente conclui. Pertencem às regras do jogo a duplicidade e a
bondade fingida do inquisidor. O acusado pode desabar logo; mas também há aquele que
se recusa a confessar. Com ele, deve,se tecer uma complexa teia de aranha. O acusado deve
acreditar que o inquisidor é bom e misericordioso. Pessoas serão mandadas para tentar
induzi,lo a confessar, dizendo,lh,e que se o fizer poderá provar a bondade do juiz. Ademais,
desde o início do processo, o juiz usará para com o acusado palavras boas e fingirá conhecer
suas culpas mas compadecer,se dele; só se lhe pede que confesse, que diga os nomes dos que
o induziram à heresia. Em troca, promete,se,lhe tratá,lo com brandura. O acusado persiste
na negativa? Então o juiz pegará o processo e o folheará diante dele, dizendo: mas como
pode negar todos esses depoimentos das testemunhas contra você? Porém, jamais cometerá
a ingenuidade de entrar nos detalhes, permanecendo nas generalidades, de modo que o
acusado não se dê conta de que o inquisidor mente. Se o acusado não cede nem assim,
deve,se ameacá,lo com uma longa permanência na prisão; e se ainda persiste na negativa,
deve,se multi~licar as perguntas de modo a fazê,lo cair em contradição, colhendo assim
indícios suficientes para poder submetê,lo à tortura. Enfim, sempre pode ser posto na
cela dos espiões, possivelmente antigos amigos do acusado que depois se arrependeram: o
guarda da prisão ou até O próprio inquisidor escutarão às escondidas num local contíguo
(ainda que, a rigor, 0 inquisidor não devesse escutar o acusado a não ser em juízo). São
22
esses, literalmente, os conselhos que se leem no manual de Umberto Locati •

22. U. Locati, ]udícíale Jnquisitorum, Romae, apud haeredes Bladii, 1568. No exórdio da obra, Locati menciona
uma primeira redação da obra em vernáculo, que todavia não foi encontrada.

O Âmbito Inquisitorial, As Regras


234

Inquisidor em Pavia e Piacenza antes de se tornar (1566) comissário-geral do


Santo Ofício e confessor de Pio V, Locati representa perfeitamente o modo de pensar
de seus confrades: dominicano e profundamente grato à ordem que lhe permitira uma
carreira de tanto prestígio, não obstante suas origens humildes , tinha consciência do
extraordinário poder que lhe fora confiado. Conduziu uma dura campanha contra
os hereges de Piacenza; quando , em 1560, acreditou ter reconhecido o engano demo-
níaco nas visões de uma pobre mulher da cidade, que granjearam um extraordinário
sucesso popular ao qual não tinham ficado insensíveis nem o bispo nem o duque, não
se deixou intimidar nem sequer pelas mais altas autoridades do estado de Farnese. O
duque chegou a exigir sua remoção ao geral dos dominicanos: responderam-lhe que a
autoridade de Locati advinha diretamente do Santo Ofício romano e da confianca do
cardeal Ghislieri 23 • Pois bem, não obstante toda a sua indubitável cultura teológica,
Locati elaborou seu manual diretamente a partir da experiência acumulada dia após
dia, no trabalho do tribunal , e dava tamanha importância à lição da prática que inseriu
no manual trechos e trechos dos processos efetivamente realizados por ele em Piacenza,
tendo tido o único cuidado de trocar os nomes.
Não eram opiniões pessoais as que ele expunha, mas o produto de uma antiga
ciência policial, que retirara dos manuais inquisitoriais da Idade Média. Locati voltava
a propô-las numa situação de emergência: a estrutura inquisitorial, reativada com
novas características, não dispunha de um corpo de regras escritas e devia basear-se
na prática tradicional, exceto quando sofria modificações com base nos decretos do
Santo Ofício, verdadeiros atos do poder papal. Uma vez superada a emergência e
abandonada a orientação rígida da época de Paulo IV e Pio V, advieram instrumentos
oficiais de outro feitio: na época de Gregório XIII, empreendeu-se uma consciente
arcaização do novo com a edição de um corpus de tratados dos séculos precedentes 24
e, sobretudo, com a atualização do directorium inquisitorum de Eymeric, organizada
por Francisco Pena. Foi esse texto, guindado à condição de autoridade máxima por
concessão de privilégios papais especiais, que soldou formalmente a nova Inquisição à
antiga. E a solda foi representada pela imposição de uma nova roupagem, mais atenta
ao decoro e à severidade que o corpo eclesiástico devia exibir diante do olhar descon-
fiado de seus críticos. Aquilo que Eymeric apresentava como as astúcias (cautelae) do
inquisidor foi submetido a uma atenta revisão no comentário de Pena. Eymeric, por
exemplo, sugeria seguir o sistema de simulações que Locati empregara - as maneiras
boas e paternais, o fazer crer ao acusado que outro já teria revelado tudo ao juiz, 0
uso de espiões - mas Francisco Pena anotou em seu comentário que não era certo
dizer mentiras, mesmo para o bem (ainda que a mentira, recordava Pena, fosse apenas
um pecado venial).

23. Veja-se do autor deste volume "Madonne di Città e Madonne di Campagna", em Culto dei Santi. lstituzioni e
Classi Sociali in Età Preindustriale, org. por S. Boesch e L. Sebastiani, Aquilla, 1984, pp. 623 e ss.
24. Tractatus Illustrium in utraque tum Pontificii, tum Caesarei Iuris Facultate lurisconsultorum. De Iudiciis Criminalibus
S. Inquisitionis, t. XI, pars II, Venetiis, F. Zilettus, 1584.

A Inquisição
235

Francisco Pena explicou em det lh d .


a es como ev1a ser formulada a pergunta inicial.
Era a pergunta fundamental do pr d · •
ocesso e ev1a ser feita com modos atentamente es-
tudados: o réu devia
. sentar-se embaixo( m · humi·i·zon· se d'l') · · ·d d · d ' · ·
i i e o mqms1 or evia 1ngir-se
a ele com humanidade (humaniter) · M as era essencia · l que o mqms1
· · ·d or nao
- sugerisse
· de
modo nenhum as respostas · Dev1·a es t ar atento tam b,em para nao - comp letar as respos-
tas do acusado: seguir adiante (praeire) , completando as palavras que o acusado estava
dizendo, era contra a norma 25 •

O inquisidor paternal, piedoso, disposto a ouvir e a perdoar é, portanto, uma


figura construída propositalmente para minar as defesas do acusado. A respeito dos
sentimentos do juiz, as fontes nada revelam. Sabemos com certeza que existia um sen-
timento por assim dizer de ofício, que ligava o inquisidor ao acusado: e não era amor
absolutamente. O célebre pregador Cornélio Musso explicou do seguinte modo seu
ponto de vista a esse respeito: "Se o melhor amigo que tenho no mundo fosse luterano,
eu me tornaria imediatamente inimigo dele; e falo de sacrossanta inimizade, sobre a
qual está escrito: Perfecto odio oderam illos" 26 • Sem redundâncias monásticas, o fundador
da Inquisição romana, Gian Pietro Carafa, expressou da seguinte forma o mesmo con-
ceito: "Se o vosso pai fosse herege - exclamou, dirigindo-se ao embaixador veneziano
Bernardo Navagero (que gozava de sua confiança e simpatia) - nós providenciaríamos
a lenha para queimá-lo" 27 • Ódio sagrado e perfeito, portanto: mas sem nada de pessoal.
O ódio perfeito do inquisidor não tem nada em comum com qualquer "paixãozinha
humana" 28 , aliás, a mínima suspeita de misturar ao próprio trabalho hostilidades pes-
soais basta para provocar a indignação de quem o tem em alta conta.
Isso não significa que quando os inquisidores falavam dos "réus" entre si tiras-
sem a máscara da benevolência e revelassem sentimentos duros e impiedosos. Pelo
contrário. As cartas dos homens de igreja são repletas de atenções para com os proble-
mas dos acusados. Se esses eram pobres, isso era levado em conta. Quando o jovem
bolonhês Ulisse Aldrovandi teve de ir a Roma para ser processado, o cardeal legado de
Bolonha escreveu protestando que não era justo mandá-lo para lá como prisioneiro e
fazê-lo pagar todas as despesas dos guardas que deviam acompanhá-lo. Não só pobre
mas "paupérrimo", Ulisse era filho de uma viúva que "se sustenta das esmolas dadas
· às pessoas que sentem vergonha. Toda a esperança estava depositada nesse filho que

25. Nicolaus Eymericus, Directorium lnquisitorum, Romae, in aedibus Populi Romani, 1587 (a primeira edição é de
1578), p. 422.
26. Carta ao Pe. Marino Zotto, inquisidor de Veneza, de Pádua, 12 nov. 1549 (BAV, Borg. Lat. 300, f. 151).
27. Despacho de Navagero de 28 de outubro de 1557 (Biblioteca Universitária de Pisa, ms 15, c. 569v.). Pastor,
que tirara outra lição desse célebre despacho, viu nele apenas uma reação de Paulo IV à fuga para Genebra de
Galeazzo Caracciolo, marquês de Vico e seu parente por parte de irmã (Pastor, Storia dei Papi, VI, p. 508). Havia
muito mais coisa: tratou-se - como notaram Firpo e Marcatto, Il Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni
Morone, op. cit., II, p. 35 - de um longo e ameaçador desabafo do papa contra a "escola maldita" de Pole e de
Morone, contra a qual prenunciou rigorosas medidas: "Estamos prontos a agir e a dar uma surra".
28. Carta de C. Musso citada anteriormente, nota 26.

O Âmbito Inquisitorial: As Regras


236

estudava" 29 • Os homens do Santo Ofício não eram insensíveis a esses apelos. Nas cartas
aos inquisidores locais, encontra-se frequentemente referência à obrigação de prover
os acusados pobres de defensores públicos: "Se por pobreza não tiverem condições de
arcar com as despesas do advogado e do procurador, queira V. Rev. providenciá-los ex
officio para que não fiquem indefesos" , escrevia o cardeal Borghese (depois papa Paulo
V) ao inquisidor de Florença em 1603 30 • E, no entanto, o objetivo ao qual tudo estava
subordinado era a obtenção da verdade. Na mesma carta, o cardeal Borghese explicava as
passagens formais que aquela causa particular devia ter, reforçando porém a cada passo
que tudo visava a um único objetivo: "chegar com maior clareza à verdade", "encontrar
a verdade" , "encontrar melhor a verdade" 31•
A verdade devia sair da boca e do coração do acusado . O juiz não podia sugerir
nenhuma resposta. O periculum suggestionis devia ser evitado a qualquer custo; por
isso, nada de perguntas sugestivas e nada de induções de respostas , nem mesmo na
forma do apressado remate de respostas (praeire). As respostas deviam ser decifradas ,
desentranhando-se todas as muitas formas sob as quais a mentira podia se ocultar: da
reserva mental às respostas equívocas, os manuais dos inquisidores trazem um rico
repertório da retórica da mentira.
Ao campo das meias admissões, das armadilhas verbais, da falsa ignorância, das
piscadas para conferir um sentido diferente às palavras, o acusado era fatalmente con-
duzido, uma vez descartada a estratégia da oposição frontal - ou seja, quase sempre.
Se a grande maioria dos acusados movera-se decididamente rumo à abjuração, deve-se
dizer no entanto que não encontraram um caminho fácil pela frente. O perdão era
concedido a quem se arrependia, não a quem tentava enganar e ocultar ainda que só
parcialmente a verdade: eram esperados sinais indubitáveis do arrependimento - listas
de cúmplices, revelações de tramas ocultas. Se esses sinais não ocorriam, o réu era
considerado fortemente suspeito ou até mesmo "herege negativo". A escavação do in-
terrogatório dirigia-se em profundidade aos impulsos da consciência, à intenção com
que tinham sido feitas ou ditas certas coisas. Nos processos, a pergunta super intentione
ocupou um lugar cada vez mais importante no decorrer do tempo. Mais do que a rea-
lidade de certos atos - por exemplo, o pacto com o demônio - importava a intenção
subjetiva de quem o praticara.

Entre os demais argumentos, um em particular causava problemas: o da ignorân-


cia. Nas mãos de um acusado hábil, podia se tornar um argumento decisivo: o cardeal
Morone, por exemplo, acusado de heresia por afirmações feitas muitos anos antes, falou
da condição de ignorância não apenas dele mas de todos no que se refere às matérias
que somente mais tarde o concílio de Trento deveria definir.

29. Carta do cardeal Del Monte ao cardeal Cervini, Bologna, 17 ago. 1549, em Buschbell, Reformation und Inqui-
sition, op. cit., pp. 312-313.
30. Carta de 16 de agosto de 1603 (Bruxelas, Archives générales du Rcryaume, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, c.,560r).
31. Até mesmo uma irregularidade no processo em questão - ter promovido a acareação entre acusados e teste·
munhas "contra o estilo do S. Ofício" - podia servir para tal objetivo.

A Inquisição
237

Ora, tanta ignorância da part d d ·


. . e os acusa os era mais que improvável: as res-
postas evasivas tmham antes o ob1'et·ivo d e re d uzir
· as admissões
• de conhecimento e
Por. isso de
. ' _ , culpa. Não
_ se deve esquece r que o processo o mqulSl·d or propunha-se o'
d · ·
obJetlvo nao so e nao tanto de confi·r mar o cnme
· quanto d e con h ecer as mtencoes
· - e os
Pensamentos ocultos de quem o com et era,. nao - tm· h a outra serventia
· a pergunta
· super
intentione, obrigatória no processo. O acusado (reus) devia ser levado a pensar desde o
início que O juiz já sabia tudo e que não o interrogava para obter outras informações
ou documentos sobre o crime, mas exclusivamente para induzi-lo ao arrependimento,
à confissão e portanto à salvação de sua alma. A estratégia do inquisidor consistia em
conduzir o réu pela mão, sem sugestões ou pressões, ao longo de um percurso que se
iniciava justamente com o reconhecimento de que, no âmbito das matérias de compe-
tência do tribunal, havia o crime de que se era acusado. Uma vez reconhecido o próprio
crime, devia-se confessá-lo e entregar-se à misericórdia da Igreja. Era natural que uma
forma de defesa fosse justamente negar não só a culpa mas até mesmo o conhecimento
da existência daquele crime e da competência do tribunal para julgá-lo. E aqui o juiz
era obrigado às vezes a renunciar à regra do procedimento por perguntas.
Assim, mesmo sabendo que as pessoas sabiam mais do que queriam admitir, o
juiz - que devia interrogar, mas não podia de modo nenhum sugerir as respostas - era
obrigado a movimentos oblíquos de aproximação do objeto: e, lembrando ao acusado
a lista dos crimes inquisitoriais, pretendia abrir caminho para o reconhecimento e a
confissão das culpas. E quando se tratava dos limites do campo inquisitorial, à diferença
da burocracia impessoal dos tribunais modernos, o juiz descia facilmente ao terreno
didático, o que estava de acordo com sua cultura eclesiástica.
E aqui se tratava de uma matéria delicada, capaz de suscitar a reação do juiz - a
dos limites de sua jurisdição. Matéria fluida, rica em incertezas e em contrastes: pode-se
entender à perfeição que os inquisidores, tendo de enfrentar continuamente a questão
dos limites de seu poder, não soubessem furtar-se a ele nem mesmo na relação com os
inquiridos. De resto, a informação fazia parte dos deveres institucionais desse tribunal
que, justamente ao indicar os crimes de sua competência, punha em guarda a todos
para que não os cometessem. Mas nesses inícios de processos o inquisidor era quase
sempre obrigado a declarar os crimes por assim dizer limítrofes, os menos óbvios para
quem conhecia genericamente as finalidades tradicionais da instituição. Não é por
acaso que um início desse tipo encontra-se no processo por "afetada santidade" contra
a piedosa costureira bolonhesa Angela Mellini 32 •

É hora de voltar à questão de onde partimos. Por que o inquisidor perguntava ao


acusado o que sabia do tribunal diante do qual se encontrava? Nas instruções de Eyme-

32. "Convocada oficialmente, Angela apresenta-se em 22 de outubro de 1698 diante do inquisidor. Declara não
saber do que se ocupa o Santo Ofício"; e o inquisidor explica-lhe que o tribunal ocupa-se não só de quem
ofende a Deus de vários modos, mas também "de his qui sub specie sanctitatis aliquod malum faciunt et
sanctitatem affectant" (Luísa Ciammitti, "Una Santa di Meno. Storia di Angela Mellini", Quademi Storici, n.
41, maio-ago. 1979, pp. 603-639; em part. pp. 604 e 634).

O Âmbito Inquisitorial: As Regras


238

ric e nas anotações de Pena não há qualquer indicação que nos ajude; e nem quando
mais tarde, foram preparadas instruções e modelos de processos para ajudar vigários~
inquisidores na execução de suas práticas, essa pergunta foi prevista. O difundido Sacro
Arsenale de Masini propunha interrogatórios do tipo: a um acusado de heresia, após
a pergunta inicial se sabia ou imaginava a causa de sua captura, devia-se perguntar se
conhecia hereges, magos, feiticeiros , encantadores, blasfemos , leitores ou possuidores
de livros heréticos, ou outros que tivessem as mesmas características dos suspeitos de
heresia33 • Mas a fórmula variava. Em uma causa por bigamia, devia-se perguntar ao
acusado se conhecia alguém que dissesse ou praticasse algo contra a santa fé católica _
por exemplo, alguém que tivesse mais de uma mulher 34 .
É evidente o esforço de dirigir a atenção do acusado para o crime que lhe diz
respeito. É um esforço para dizer e não dizer ao mesmo tempo: era preciso dirigi-lo
para o caminho certo sem sugerir-lhe a resposta. Mas, se era o inquisidor a descrever
os contornos do campo, acabava por sugerir ao acusado qual era a acusação contra ele,
chamando sua atenção justamente para aquele tipo de crime. E situa-se aqui uma das
razões pelas quais, na práxis dos tribunais italianos, espalhou-se bem depressa o hábito
de pedir ao acusado para enumerar ele mesmo os crimes de âmbito inquisitorial. Mas
há ainda mais duas razões ao menos, dessa aparentemente marginal inovação proces-
sual: uma reside na vocação pedagógica da Igreja tridentina (era preciso que os leigos
soubessem a quais autoridades eclesiásticas estavam sujeitos e por quê) e outra no fato
de que os limites do campo inquisitorial tinham sido ampliados desmesuradamente
em relação ao início; era necessário verificar se isso era ou não sabido. Em todos esses
casos, torna-se evidente a nova e decisiva importância da relação entre o juiz e a cons-
ciência do réu.

33. "An cognoscat aliquos haereticos, magos, sortilegos, incantatores, blasphemos, libros haereticales tenentes ac
legentes, et alios huiusmodi suspectos de haeresi" (Sacro Arsenale, Overo Prattica dell'Officio della S. lnquisitione,
op. cit., p. 131).
34. "An cognoscat aliquam personam dicentem, aut facientem aliquid, quod sit contra sanctam fidem catholicam,
et praesertim plures simul uxores habentem" (idem, p . 238).

A Inquisição
SEGUNDA PARTE
A CONFISSÃO
PREMISSA

QUESTÕES DE CONSCIÊNCIA

S obre a importância da questão da consciência e da confissão na época de Lutero e do


Concílio de Trento é d ifícil errar por excesso; aliás, é possível cair no erro oposto, de
não dar-lhe o justo peso. E a historiografia caiu frequentemente nesse erro, até pela difi-
culdade de fazer história das consciências. Na passagem da antiga história das ideias, da
Geistesgeschichte à história intelectual e às histórias das mentalidades, continua-se a procurar
a chave para penetrar os processos históricos da consciência - que equivale a investigar os
traços fundamentais da natureza humana, ver se e corno se modificam. Ora, visto que o
ensino e o estudo da história - corno função oficialmente confiada aos poderes públicos
(as igrejas, os estados) e solenemente reconhecida por eles - originaram-se justamente da
ruptura da unidade cristã na época da Reforma e do Concílio de Trento, voltar à questão
de corno e por quê a função da escuta e/ou do controle das consciências foi regulada de
um determinado modo não pode pretender ser urna operação pacífica, pois trata-se de
remontar àquela divisão profunda em que a consciência e a questão de corno orientá-la,
apaziguá-la, fortalecê-la desempenharam o papel central. No centro da noção de "idade
moderna" colocou-se desde o final do século XVII a reivindicação luterana do significado
liberatório e apaziguador daquilo que Lutero chamara a "descoberta do Evangelho". A
tradição que de modo variado e por diversos caminhos liga-se ao significado de reviravol-
ta relativa à recusa da obediência oposta por Lutero às autoridades máximas do mundo
cristão em nome da fides e da conscientia - palavras antigas do vocabulário cristão trazidas
a nova vida - tornou a ser percorrida outras vezes pelos genealogistas dos princípios
de tolerância e liberdade 1• A genealogia do mundo moderno radicada no princípio da
liberdade de consciência sempre viu a contribuição católica e tridentina sob o aspecto
da recusa e da rigidez defensiva. Ao fazer isso, acolhia a mesma imagem que oficialmente
a Igreja tridentina dera de si, c_orn sua desdenhosa r~p~l~a ~o ~rincípio da liberdade d~
consciência corno heresia máxima. No quadro da historia italiana, no entanto, a tradi-

1. Cf. Ruth Lindemann, Der Begriff der conscience im franzõsischen Denken, (Berliner Beitriige zur romanischen
Philologie hsg von E. Gamillscheg und E. Winker, B. VIII, Heft 2), }ena/Leipzig, 1938; e recentemente La
liberté de conscience, XVIE et XVIIE siecles, org. por H. R. Guggisberg, F. Lestringant e J.-C. Margolin, Geneve,
1991. Mas deveriam ser recordados ao menos, para a tradição italiana, as obras de Francesco Ruffini e a de
Delio Cantimori.

l
242

ção liberal encarnada por Benedetto Croce chegou até a avaliar positivamente a obra da
Igreja - no sentido de hierarquia eclesiástica - pela função que desempenhara ao impor
uma disciplina ao povo e - no caso italiano - ao manter a unidade da fé de um povo
politicamente dividido.
A confissão é um ponto obrigatório para tratar desse problema mais geral. No
confronto entre a penitência como "conversão" , volta para si mesmo, caminho para
Deus, e a confissão como tribunal das culpas está contido o conflito mais amplo entre
uma religião da consciência e uma religião da autoridade. O confronto, no entanto, não
é traduzível em uma simples e clara justaposição de igrejas diferentes, mas perpassa no
interior as igrejas, mesmo a católica. Isso se torna evidente finalmente pelos resultados
de muitas e importantes pesquisas.
Uma breve história da questão , que não é possível estender aqui além de refe-
rências sumárias, encontra um ponto firme na Historia del Concilio Tridentino de Frei
Paolo Sarpi: os debates de Trento sobre a confissão foram narrados por ele com sua
extraordinária capacidade de transformar os documentos em um discurso vivo, ilumi-
nado por profundas convicções pessoais, que no entanto nunca se separam do assunto
da narração. Foi protagonista de sua narrativa, onde são tramadas continuamente as
fontes colhidas com cuidado, o espírito de "dominação" e de "avareza" dos padres
tridentinos. A imagem da confissão como um rito esvaziado de toda capacidade regu-
ladora dos comportamentos morais, reduzido à prática repetitiva por um povo a que
ninguém pedia realmente para mudar e por um clero contente de ter restabelecido
seu poder é a que A Relation of the State of Religion de Edwin Sandys colheu a partir do
testemunho de Sarpi e divulgou na Itália sujeita ao papado. A história dos conflitos
religiosos do século XVI, vista primeiro como luta entre verdade evangélica e anticristo,
depois como luta da razão contra a superstição (Voltaire), encontrou no fio do poder
indicado por Sarpi o indício mais consistente quando foi necessário tratar a questão
da confissão: A History of Auricolar Confession and lndulgences in the Latin Church, de
Henry Charles Lea, é o monumento, com um século de idade mas ainda não supera-
do, desse tipo de historiografia 2 • A questão tal como vista por Lea foi justamente a da
confissão como domínio das consciências exercido por uma casta. E as pesquisas de
Ignaz von Dõllinger sobre as controvérsias de teologia moral do século XVI não partiam
, de modelos muito distantes.
! Todavia, a questão não era só de poder, ou de exercício deliberado do controle
de uma casta sobre o resto da população; era também a de interpretar as necessidades
às quais a oferta eclesiástica respondia, em competição e em conflito com outras. A
· historiografia do século XX, que encontrou seu campo nos fatos mentais, não podia
ignorar esse aspecto da questão. E, no entanto, por ora não são muitos os resultados que
podem ser enumerados nesse ainda que breve balanço. Um pelo menos, todavia, deve
1 ser lembrado, o de Lucien Febvre, a cujo memorável ensaio de 1929 sobre as origens
1, da Reforma deve-se a clara explicitação sobre o que garantiu o sucesso da Reforma: ª
ij

2. Henry Charles Lea, A History of Auricolar Confession and Indulgences in the Latin Church (1896), New York, 1968•

A Confissão
243

justificação por fé como mensagem apaziguadora para consciências atormentadas, para~


as quais o sistema de indulgências criava novas e contínuas ansiedades.
O célebre texto de Febvre assinalava, de resto , uma reação a um modo de propor~
a questão da Reforma que datava do século XIX e do nacionalismo historiográfico que
dera um novo ordenamento à antiga interpretação da Reforma como mãe do mundo
moderno. Dado por certo que a Reforma protestante era o momento conclusivo da Idade
Média e o início da nova era, tratava,se de conciliar com esse cânone historiográfico o
nacionalismo emergente e decidir a quem cabia o primado de dar início à idade mo,
derna, se ao alemão Lutero ou ao francês Lefevre d 'Etaples. A crise do nacionalismo no
momento de sua mais trágica eclosão levou consigo suas florescências historiográficas.
Ora, com base justamente nas páginas de Lucien Febvre, podemos reconsiderar o T
problema da confissão e da consciência e perguntar,nos quando tem início a nova era,
onde se colocam os problemas que o concílio de Trento foi convocado para resolver.J
Uma passagem fundamental dessa época, se não um verdadeiro início, foi marcada em \
1517 pela primeira tese de Wittenberg: "Nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo, ao dizer 1
'Penite?-ciai,vos', quis que a vida intei:a dos fiéis seja uma penitência". _\
E a tese inicial e fundamental. E também a tese que encarna com maior evidên, '
eia a vontade de Lutero de voltar ao Evangelho e ao modo como o Evangelho tinha j
se traduzido na vida dos cristãos antes da reviravolta empreendida pelo poder papal e
pela teologia dos "modernos". Não há necessidade de sutilizar a respeito das formas -
em que Lutero fez circular suas teses - se entre os doutos e as autoridades eclesiásticas
ordinárias apenas ou se as afixando na porta da igreja do castelo de Wittenberg e mani,
festando seu espírito rebelde ao dirigir,se diretamente ao povo - para estabelecer se seu
comportamento era de revolucionário ou de restaurador do antigo. Contra a evolução
sofrida pelas formas da penitência, Lutero propunha um retorno ao Evangelho e uma
interiorização radical do processo de "conversão", com o consequente abandono do
complexo sistema de práticas e de trocas que fora se instalando justamente no terreno
da penitência. Lutero experimentara a inquietação profunda, a verdadeira angústia que
nascia da desproporção entre o senso ~a pró~ria _P :Ca~inosidad: ~ad~cal e o cálc~lo do~s
méritos e das obras meritórias para fms de JUst1f1caçao. A penitencia que perdia toda
delimitacão ritual e ampliava,se até se tornar um modo de vida, um hábito interior, \
era a pró,pria essência da conversão que Lutero exigia dos cristãos regenerados pela fé ·
Hoje, não se deve mais voltar ao valor consolatório da concepção luterana da
penitência. As propostas de Lucien Febvre encontraram ampla acolhida e ajudaram,nos
a entender O que se encontra consignado nos autos dos processos da Inquisição, nos
testemunhos de muitos homens e mulheres que, com diferentes níveis culturais, acharam
na proposta da Reforma uma mensagem de consolo, capaz de apaziguar as consciências
e de tornar viva a esperança de salvação e perdão divino. Mas esse ensaio, tão distante
no tempo, teve reflexos outros e mais significativos; revelou ao mesmo tempo O esgo,
tamento da genealogia do "mundo moderno" que a historiografia do século XIX havia
considerado como base sólida e que andava pari passu com a aversão ao obscurantismo
católico e àquela série de realidades que a historiografia protestante liberal enfeixou com

Premissa - Questões de Consciência


244

a grande empresa solitária de Henry Charles Lea: o celibato eclesiástico, o tribunal da


Inquisição, a confissão auricular. E foi um convite a procurar amplamente, com outras
categorias temporais e com outras fontes , em direção à história dos sentimentos. Por
esse caminho, já surgia então uma situação complicada e confusa, onde os percursos
se cruzavam e onde não se encontrava mais, pelo menos no início do século XVI, uma
Reforma claramente definida e consciente contraposta a um catolicismo igualmente
bem delineado e alinhado. Descobriu,se desse modo que, se 1517 marca uma mudança
fundamental, as raízes do problema eram mais antigas e que também as estratégias para
enfrentá,lo estavam havia muito em processo de elaboração. Mas se Lucien Febvre fora
levado a ir às origens para trazer à luz, nas devoções , nas preces, nas representações
mentais da vida religiosa na Europa ocidental entre os séculos XV e XVI, os aspectos do
problema, deve,se dizer que quem hoje se remete à sua proposta tende frequentemente,
com maior ou menor atenção, a deslocar de novo a questão para o terreno do confronto
entre igrejas: e aqui se adianta a candidatura da Igreja católica para tomar o lugar que
já foi da Reforma, ou pelo menos para dividir os méritos com ela.
Voltemos, para uma rápida consideração, à questão dos tormentos das consciên,
das, esmagadas pelo peso das culpas, e à capacidade da proposta luterana de apaziguá,
,las. Podemos dizer o mesmo da proposta tridentina sobre a confissão? Ou melhor,
podemos partilhar a extensão dessa mesma avaliação à penitência e à confissão católicas?
Porque essa extensão certamente ocorreu. O longo trabalho de Jean Delumeau serviu
para ampliar as argutas intuições de Febvre sobre a Reforma protestante para todo o
sistema cristão do Ocidente europeu: alargou os limites espaciais e temporais, falando
do Ocidente cristão na época do século XII ao XVIII, falou de uma "hiperculpabilização"
da cultura religiosa do Ocidente cristão como desproporção tendencial entre sentido do
pecado e confiança no perdão 3: e assim procedendo eliminou os limites entre Reforma
protestante e catolicismo do início da idade moderna, ambos imersos necessariamente
em uma história que os superava e incluía. Mas uma vez definida tal desproporção, por
assim dizer congênita na cultura cristã entre culpa humana e perdão divino, eis que
avança, porém, o "discurso reassegurador da Igreja romana" que explica "aos fiéis que
Deus perdoa tudo, que o sacramento elimina todas as culpas tantas vezes quantas forem
necessárias" 4 • Ora, Delumeau é certamente o leitor mais experiente dos tratados e dos
manuais em que a cultura eclesiástica recolheu todo o seu saber sobre a administração
da confissão. Não tem dificuldade em demonstrar que são Francisco de Sales, baseado
nas obras de Valere Regnault (Reginaldus), aconselhava aos confessores consolarem
com o argumento da infinita misericórdia de Deus os pecadores aterrorizados por
pecados descomunais ("bruxaria, frequentações diabólicas, bestialidades, massacres
e outras abominações semelhantes"). A história da teologia moral da era pós,Trento

3. Cf. Jean Delumeau, Le péché et la peur, 1983. Trad. italiana Il Pecato e la Paura. L'Idea di Colpa in Occidente dai
XIII ai XVIII Secolo. Bologna, 1987, p. 12.
4. Cf. Jean Delumeau, I.:aveu et le pardon, 1990. Trad. italiana La Confessione e il Perdono. Le Difficoltà della Confessione
dal XIII ai XVlV Secolo. Cinisello Balsamo, 1993, p. 40.

A Co nfissão
245

oferece uma quantidade enorme de reasseguramentos e de consolações, a ponto de


parecer uma espécie de campo de batalha contra as muitas doenças da alma - a escru-
pulosidade, o tormentoso senso de culpa, a verdadeira "doença mortal'' do desespero 5 •
E eis a conclusão: "as duas reformas religiosas do século XVI - a protestante e a roma-
na - empenharam-se em apaziguar uma angústia crescente (que a própria Igreja tinha
suscitado) relativa à salvação após a morte" ; uma com a tese da justificação pela fé , a
outra - a igreja tridentina - "com uma insistência até então desconhecida" no valor
consolador da confissão 6 •
Nesse esboço falta um detalhe: no sistema católico e tridentino da confissão, a
Inquisição foi uma presença dominante e determinante. A vontade de saber do confessor
eclesiástico e a do juiz eclesiástico da Inquisição encontraram-se no terreno comum da
relação especial de controle instaurado pela estrutura eclesiástica em relação ao povo
cristão no decorrer da longa época que vai do concílio Lateranense IV ao concílio de
Trento. A luta contra a Reforma protestante acentuou os traços policiais do controle
eclesiástico. Para que na confissão prevalecesse o valor de consolação e conforto es-
piritual, foi necessário esperar o fim da fase mais aguda dessa luta. Mas uma coisa é
certa: o encontro entre Inquisição e confissão não foi um acidente de percurso ou um
fato casual, mas correspondeu a algo de profundo e de congênito à evolução geral das
formas do poder.

5. Cf. para um quadro geral da evolução da teologia moral, Louis Vereecke, De Guillaume d'Ockham à saint A!phonse
de Liguori: études d'histoire de la théo!ogie mora!e modeme 1300-1787, Roma, 1986.
6. Cf. Jean Delumeau, I.:a\leu et !e pardon, op. cit, ed. it., PP· 41-42.

Premissa - Questões de Consciência


IX
INQUISIDORES E CONFESSORES:
PRESCRICÕES
,

Q uem segue os sinais do avanço da Inquisição em tantos terrenos controversos e


chega finalmente à relação entre inquisidores e confessores tem a impressão de um
afunilamento de toda a matéria em direção a um coletor único capaz de pôr realmente
em comunicação autoridades eclesiásticas e súditos (ou laicos, ou fiéis, como queiramos
dizer). De um lado, há as analogias profundas entre processo inquisitorial e sacramento
da penitência na finalidade comum de obter uma confissão de culpabilidade com espírito
de humildade e arrependimento - uma raiz comum "sadomasoquista", como foi dito 1•
De outro, há os serviços especiais que a confissão sacramental podia render aos juízes que
pretendiam atingir a qualquer custo a verdade oculta nos corações. Na época tridentina,
ou seja, no momento em que a confissão tornava-se efetivamente uma prática obrigatória
e controlada de modo capilar, fortalecia-se a vontade de usá-la como espaço de delação e
de coleta de informações. Não fora necessário esperar as deliberações do concílio de
Trento para isso: a prática da confissão era entre todas a que melhor combinava ligações
interiores e vínculos externos. De resto, os títulos e as imagens com que o confessor é
representado nas fontes da época são aqueles antitéticos do juiz e do médico, do pai
espiritual e do severo administrador da justiça divina. Juiz temível ao qual todas as
culpas devem ser contadas: mas também pai espiritual, conselheiro doce e paternal
capaz de cuidar das feridas mais secretas e dolorosas. A proposta religiosa de Lutero
apresentou-se como a verdadeira solução do problema da penitência e foi recebida como
uma oferta de consolo para as consciências perplexas e esmagadas pelo peso do pecado.
A penitência não podia mais concentrar-se em um momento temporal definido ou em
uma determinada prática ritual: a vida inteira do cristão devia ser penitência. Teve início
aqui um processo referente à confissão auricular do qual a prática social da penitência
devia sair substancialmente modificada. A prática mais difundida e familiar à Europa
do século XVI foi a de servir-se da confissão para controlar a preparação religiosa e as
ideias dos fiéis; tratava-se de uniformizar a ideia e a prática da ortodoxia e, consequen-
temente, de levar a população a conformar-se à vontade do poder, laico ou eclesiástico

1. A observacão é de Francisco Tomás y Valiente, "Relaciones de la lnquisición com el Aparato Institucional del
Estado", e~ La lru:Juisición Espanola. Nueva Visión, Nuevos Horizontes, org. de Joaquín Perez Villanueva, Madrid,
1980, pp. 41-60, em part. p. 59.
248

que fosse . Mas, ao lado de processos de longa duração, houve também intervenções
deliberadas do alto: as autoridades da Igreja católica foram particularmente solícitas no
uso do canal da confissão ou como meio para resolver sem violência os casos se heresia ,
ou como instrumento policial para reconhecer os hereges ocultos.
Na literatura normativa da época, ocorre um dilúvio de ordens e de proibições
que encontram o único êxito possível na relação com os confessores. É como um duplo
movimento, descendente - ordens da autoridade ao povo - e ascendente - informações
do povo à autoridade. Por um lado, trata-se de regular a válvula da absolvição para obri-
gar à observância de determinadas ordens quem , de outro modo , não teria dado a elas
a devida atenção, por outro, trata-se de aproveitar o conhecimento que é despejado no
ouvido do confessor para saber aquilo que de outro modo permaneceria secreto. Todas
as autoridades de todo tipo estavam interessadas em um e outro movimento; mas, de
fato , apenas as autoridades eclesiásticas tinham legítimo acesso aos mecanismos que
disciplinavam os confessores. De todo modo, ambos os movimentos baseiam-se em um
dado de fato , tão óbvio e macroscópico que poderia nos escapar: a absoluta necessidade
que tinham os homens da época de obter periodicamente a absolvição das culpas.
O confessionário atraiu (e frustrou) muitas curiosidades, estimulou fantas ias
romanescas, mas sempre acabou parecendo sigiloso aos historiadores pelo duplo sigilo
da oralidade e do segredo. O resultado foi o de limitar o olhar dos historiadores aos
dados mais grosseiros e exteriores - o controle eclesiástico do mundo dos leigos, a luta
entre autoridade e liberdade de consciência. Houve o esquecimento, em épocas mar-
cadas pelo conflito de poder entre Estado e Igreja, de um aspecto da confissão que no
entanto deveria ter estado sempre presente: o rito da periódica eliminação das culpas
não depende apenas de uma longa obra de persuasão e de imposição do exterior, mas
apresenta um profundo e vasto enraizamento que já na época em questão emergia da
comparação etnográfica. Em suma, a Igreja trabalhava no sentido de modelar uma
matéria que já encontrava disponível. A oferta de confessores e de incentivos à confis-
são manteve-se com dificuldade perseguindo a demanda: por isso, a difusão de uma
rede capilar capaz de oferecer escuta e perdão a quem queria aliviar-se de suas culpas
precisou seguir pari passu com uma regulamentação atenta do fenômeno, capaz de
controlar seus impulsos potencialmente eversivos. Quando for possível acompanhar os
desenvolvimentos teológicos, jurídicos, institucionais e sociais da confissão na longa
Idade Média das sociedades pré-industriais europeias, poderemos também começar a
compreender melhor quão grande era o espaço ocupado por essa história e que vazio
deixou à idade sucessiva.
Era inevitável que os tribunais de gênero diferente tentassem aproveitar-se disso,
tanto mais que a confissão tinha a sinceridade do penitente entre suas características ori-
ginais. O discurso dirigido a Deus através do confessor devia ser sincero, sem reticências.
Muitas e muitas vezes encontra-se registrada nos autos da Inquisição a declaração dos
acusados quanto ao desejo de serem sinceros como diante do confessor. Era justamente
dessa sinceridade absoluta do penitente que os inquisidores queriam usufruir. Era ali
que desaparecia a opacidade ordinária daquele mundo das intenções e dos pensamentos

A Confissão
249

secretos que tornava tão laboriosa a atuação do tribunal da fé . Mas como captar o fluxo
oculto dos pensamentos, liberado mas ao mesmo tempo protegido pelo segredo da
confissão? Naturalmente, não eliminando o segredo, condição essencial da sinceridade.
Mas podia-se abrir e fechar com controle a porta do perdão: visto tratar-se de poderes
internos ao mundo eclesiástico, foram os tribunais eclesiásticos que alavancaram o po-
der reconhecido à Igreja de incluir ou excluir dos sacramentos, de conceder ou negar o
perdão das culpas. Assim, podia acontecer de um tribunal eclesiástico valer-se do poder
de excomunhão para tornar mais eficiente aos olhos laicos seu serviço em matéria de
cobrança das dívidas: é o caso estudado por Lucien Febvre, do tribunal episcopal de
Besançon que, em pleno século XVI, recorria à ameaça de excomunhão para obrigar os
devedores ao pagamento - e, graças a esse poder, podia rivalizar em condições de van-
tagem com os tribunais laicos que tratavam do mesmo assunto 2• Quando conhecermos
um pouco melhor o funcionamento das cúrias episcopais contemporâneas, o caso de
Besançon poderá resultar menos extravagante. Mas não é de excomunhão que devemos
nos ocupar aqui, e sim de confissão: e, nesse terreno, deve-se logo registrar a concorrên-
cia bastante ativa entre bispos e inquisidores para estabelecer a quem competia usar o
poder de abrir e fechar a torneira das absolvições.
Ao uso judiciário - no sentido de "foro externo" - da confissão, opunha-se já
então um uso da Inquisição em forma de escuta paternal e compreensiva, de clemência
e perdão, em forma de "foro íntimo".
Em Roma, em 1552, dizia-se que o cardeal Carafa pretendia mudar de método
e "proceder doravante com brandura" ; e por isso desejava "investir muitos confessores
aos quais todos podem ir confessar seus pecados e receber a absolvição" 3 • Não é fácil
imaginar o feroz e desconfiado inquisidor inclinado a pensamentos de brandura. Mas
se refletirmos sobre o contexto em que essa afirmação era feita, talvez seja possível
reconhecer-lhe certa dose de verossimilhança. Era recente, então, a lembrança do golpe
mortal desferido no movimento da Reforma na Itália graças à delação do padre origi-
nário das Marche (e bispo anabatista) Pietro Manelfi. O sucesso estrepitoso fora obtido
justamente graças à estratégia da brandura: o estandarte da misericórdia, hasteado pela
nova política de Júlio III, garantia aos arrependidos a abjuração secreta e a absolvição
plena4. Era um momento de prestação de contas: quem tivera alguma responsabilidade
no movimento reformador e vira com simpatia as ideias "luteranas" devia escolher entre
um reingresso O mais indolor possível e a fuga para fora da Itália. O rigor demonstrado
pelo tribunal romano fazia desejar uma mudança de rota para quem, decepcionado e

2. L. Febvre, "Un Abuso e il suo Clima Sociale: La Scomunica per Debiti in Franca Contea", em Studi su Riforma
. •
e Rmasc1mento e altn· SCTI·rt·1 su P~oblemi

di Metodo e di Geografia Storica, trad. Corrado Vivanti, org. por Delio
Cantimori Torino, 1966, pp. 205-231.
Gi·rolamo Seripando Roma, 24 dez. 1552, em M. Firpo e D. Marcatto, ll Processo
3. earta d e A'ugusto C occ1ano

a •
lnquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op. cit., vol. II, P· 57 3 nota.
. . M· . , d 5 d ·unho de 1550 (Bullarum, Privilegiorum ac Diplomatum Romanorum Pontificum
4. Ah ula Ili1us qu1 1sencors e e e1
. . lle . d' Caroli Coquelines, Romae, 1745-1747, ed. Anast. Graz, 1965, vol. IV/ 1,
Amp!1ss1ma Co ctw, opera et sru LO
col. 266 e ss.).

Inquisidores e Confesso res: Prescrições


250

vencido, esperava poder reingressar na vida ordinária da sociedade, sem ter que pagar 0
duro preço de abjurações públicas ou pior ainda. E não faltavam vencidos . Ainda que a
propaganda protestante continuasse a alimentar esperanças, o movimento reformador
na Itália estava em retirada em todas as suas variantes: desde a antitrinitária e anabatis-
ta, destruída após a delação de Pietro Manelfi, àquela que seguia os modelos luterano
ou "sacramentário" (zwingliano ou calvinista), até o confuso mundo dos "espirituais"
que liam Valdés e confiavam no cardeal Pole. Até mesmo a mais moderada tendência
de reforma disciplinar e moral da igreja católica não atravessava um momento positivo
sob o pontificado de Júlio III. Para todos aqueles que tinham razão de temer, a alter-
nativa entre brandura e rigor traduzia-se em termos institucionais numa escolha entre
confissão e inquisição - ou, mais precisamente, entre a confissão no foro penitencial
e a confissão no foro contencioso: a diferença era que na primeira o perdão estava ga-
rantido , ao passo que a segunda acarretava uma pena 5 • Cancelar a culpa da heresia no
segredo da confissão e assim escapar da prisão e da tortura, da deshonra da abjuração
pública, quiçá da própria morte: era uma solução libertadora para muitos que tinham
razão de temer. É provável que, além da abjuração de Manelfi, um repicar de ocorrências
menores tenha levado então os membros do Santo Ofício romano a prosseguir nesse
caminho 6• Parece que, nessa época, os inquisidores iam ao encontro dos arrependidos
com um sorriso nos lábios, aliás, "com muita caridade e alegria" 7•
Para quem detinha o poder eclesiástico, a política da misericórdia também podia
parecer uma escolha oportuna, por razões de sensibilidade - o perdão evangélico, a acolhida
festiva às ovelhas tresmalhadas, - ou simplesmente por motivos de cálculo político: reduzir
a esfera da dissensão, permitir aos incertos, aos temerosos, aos vencidos um reingresso sem
riscos. Razões desse tipo eram certamente ouvidas no mundo eclesiástico italiano, onde
tinham vindo à tona já antes e onde cada vez mais deviam retornar a ser propostas. A mesma
divisão entre concílio e Inquisição no que se refere à abordagem de casos individuais de he-
resia encontra-se nessa oposição de métodos: em termos gerais e salvo exceções e preferências
individuais, opunham-se o modo pastoral e o judiciário de abordar a questão do herege.
Por trás dos dois modos havia corporações e poderes constituídos, opunham-se formações
intelectuais e forças reais. Havia, por exemplo, uma oposição entre a ordem dominicana,
fiel à sua tradição de guardiã da fé, e o clero que se dedicava à cura das almas - bispos e
párocos. Mas é impossível traçar linhas nítidas de divisão. Houve bispos pertencentes à
ordem dominicana, como Egídio Foscarari, que defenderam a oportunidade da maneira

5. Uma definição ponrual das formas da confissão segundo o foro que julga é fornecida por Umberto Locati (Praxis
Judiciaria l114uisitorum F. Umberti Locati Placentini Episcopi Balneoregiensis, ord. praed., Venetiis, apud Damianum
Zenarium, 1583, c. 50r).
6. Duas absolvições pronunciadas pelo inquisidor de Bolonha, frei Leandro Alberti, em 1551 foram documentadas
por Dall'Olio, Eretici e l114uisitori, tese op. cit. , pp. 155-156.
7. Fato atestado por Pietro Bresciani a propósito da acolhida recebida pelo inquisidor Girolamo Muzzarelli (cf.
Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano, op. cit. , p. 411). Devia ser verdade: nas atas do depoimento de
Manelfi lê-se que o inquisidor bolonhês frei Leandro Alberti recebeu-o, em 17 de ourubro de 1551, com ama-
bilidade e sorrindo (libenti animo et hilari fronte): cf. Ginzburg, I Costituti di Don Pietro Manelfi, op. cit. , P· 31.

A Confissão
251

"branda" para promover o reingresso dos hereges arrependidos na Igreja. De qualquer


modo, era uma oposição simples e clara: de um lado o perdão e do outro a vingança. Eram
dois métodos encarnados em duas pessoas: assim devia se exprimir a criatura de Carafa,
Michele Ghislieri: "[ ... ] uma coisa é ser confessor, outra é ser juiz: o confessor crê em tudo
o que lhe é dito: o juiz desconfia sempre da verdade do réu" 8 •
As duas pessoas eram dois vultos diferentes da mesma Igreja. Mas nada impedia
que elas fossem as duas máscaras de um mesmo indivíduo. O confessor podia ser encar-
regado de receber a confissão de hereges arrependidos; nesses trajes, podia funcionar
como agente auxiliar do inquisidor, reforçando a atuação deste, mas também podia
oferecer-se como alternativa à presença de um verdadeiro tribunal inquisitorial. Nessa
segunda direção moveu-se solicitamente o governo de Lucca, com o intento de criar um
mecanismo de reingresso agilizado para os arrependidos: quando foi criado o "Ofício
sobre a religião" (1545) como magistratura laica de tutela da fé, estabeleceu-se também
que os detentores de livros proibidos deviam entregá-los às autoridades e "mandá-los
por seu confessor em ato de confissão, para a segurança de não serem descobertos" 9 •
Essa segurança, ao contrário, não era garantida nem pelos dominicanos delegados num
primeiro momento pelo Santo Ofício nem pelo título de comissário do Santo Ofício
conferido ao vigário episcopal para tentar diminuir as resistências dos habitantes de Lucca.
A revogação desse título, em 1549, constituiu "uma derradeira tentativa de Paulo III de
impor suas escolhas ao Santo Ofício" 10 • Permanecendo aberta a questão, aventou-se a
hipótese de fazer uso do tribunal interno da confissão como via de saída da heresia. Foi
o cardeal Sebastiano Pighini quem propôs em nome do Santo Ofício mandar a Lucca um
pregador quaresmal com plenos poderes de absolver quem se apresentasse a ele ("poder
de absolver e de liberar in utroque foro todos aqueles que se apresentassem a ele etiam em
segredo para confessar seus erros"); o pregador devia levar consigo uma lista de nomes
suspeitos, retirados dos processos da Inquisição: à medida, que ministrava a confissão,
depois deveria também "ir tirando" os casos de sua lista 11. E este o exemplo que mostra
0 que Carafa tinha em mente ao mencionar sua vontade de "proceder com brandura".
De resto, justamente Carafa, mal foi eleito papa, ao receber os enviados de Lucca,
demonstrou afinidade com as exigências feitas por eles e reconheceu que também em
Nápoles, sua cidade natal, evitara-se en~egar _à In~uisição os cas~s d~ he_resia, ~eixa~~o-
-os por conta d a " a utori·dade ordinária do bispo . Em consequencia disso, foi em1t1do
um b reve papa1que cOnced eu ao bispo de Lucca o poder de absolver secretamente todo
caso de heresia por um período de três meses .

8. Cf. "Prólogo", nota. 9.S . della Storia di Lucca ... con Sce lta degl'ln d·1cat1. Document1,. org. d e Car lo M·muto11,·
9. Girolamo Tommas1, ommano . Ad .B . U e· , I ♦. .
m é referida por S1monetta orm- racces1, na ttta nietta, op. ctt. ,
Firenze, 1847, PP· 165-168 (ª passage
pp. 320-321.
.B . Una Città Infetta, op. cit., p. 326. . . .
10. Adom1, raccesi, . d d L cca em Roma, em que a proposta e mencionada, data de 6 de Janeiro
11. Idem, p. 335 (acarta do embaixa or e u
de 1554). .. . l de 26 de junho de 1555).
12. Idem, p. 339 (resumo da audiencia papa

Inquisidores e Confessores: Prescrições


252

Mas esse sinal de interesse no que se refere à confissão por parte de Gian Pietro
Carafa, ou seja, do maior defensor da Inquisição, demonstra que na metade do século
XVI os dois sistemas - o do perdão e o da vingança - não podiam mais conviver lado
a lado, ignorando-se: chegara o momento de uma prestação de contas. O encontro era
inevitável: o poder de absolver as culpas em confissão estava solidamente nas mãos
do clero, mas o poder da estrutura eclesiástica em seu conjunto estava ameaçado pela
heresia . E a heresia significava sedição política, subversão da ordem . O sistema de
pensamento da segunda escolástica, elaborado pelos dominicanos espanhóis em sua
fortaleza de Salamanca, com sua moderníssima atenção às questões do poder, lançara
as bases teóricas do problema da relação entre confissão e tutela da ordem existente.
Opunham-se aqui duas exigências conflitantes: de um lado, a necessidade de enfrentar
a heresia , de outro a tutela do caráter secreto da confissão. A ameaça da heresia era a
mais grave entre quantas se podiam imaginar: era um crime de lesa-majestade humana
e divina, subvertia a ordem pública. Os heresiarcas eram por sua natureza perverso-
res do povo. A exigência da defesa da ordem constituída abria brechas no muro do
secretismo absoluto da confissão: o confessor podia denunciar o herege que tentara
conquistá-lo com suas ideias, mesmo se isso tinha acontecido durante a confissão. Se,
ao contrário, o herege arrependido revelava-lhe nomes de cúmplices e conventículos
secretos, o confessor - tinha ensinado Domingo de Soto - devia exortar o penitente a
revelar a identidade dos cúmplices; e o penitente era obrigado a revelá-los se sua culpa
prejudicava o estado (in perniciem Reipublicae) 13• Ora, é verdade que, ao menos segundo
alguns, todos os pecados prejudicavam a sociedade (in perniciem publicam). Mas, de fato ,
já então era geralmente aceita a distinção entre o caráter privado da quase totalidade
1 dos pecados e a periculosidade pública de duas culpas, a de heresia e a de traição polí-
' tica. Somente nesse último caso era obrigatório intervir imediatamente, denunciar as
tramas em andamento, descobrir os cúmplices (a menos que, no entanto, eles tivessem
abandonado suas opiniões). Por outro lado, era absolutamente indispensável proteger
o segredo da confissão: a qualquer custo, mesmo mentindo e jurando falso, mesmo ao
preço da própria vida. O sigilo da confissão era de iure divino: isso significava que nem
mesmo o papa, nem mesmo toda a igreja tinha o poder de dispensá-lo. Se o segredo
fosse retirado, então ninguém mais se confessaria; e sem a confissão, a religião cristã
arruinar-se-ia e com ela a moral coletiva. Domingo de Soto era o confessor do imperador
Carlos V: e esse título, exibido até no frontispício de sua obra, era suficiente para recordar
aos leitores quanto o poder do confessor colocava-se acima das hierarquias humanas 14 •

13. "Nullus convictus de proprio crimine debet interrogari de occultis sociis 1... 1Excipitur casus quando crimen est in
pemiciem publicam, sicut est haeresis et proditio 1...1lmmo, quamvis non interrogaretur, admonendus esset a con-
fessore ut proderet socios: et ille tenetur prodere [... ]" (Domingo de Soto O. P., Relectio de Ratione Tegendi et Detegendi
Secretum, Salmanticae, 1541, membr. 2, q. 6, concl. 4, 56v-57v). Segundo o dominicano Umberto Locati, no caso
hipotético do proselitismo herético no confessionário eram defensáveis tanto a tese da obrigação do confessor de
denunciá-lo, como a oposta, da obrigação de proteger o segredo a todo custo (Praxis Judiciaria Inquisit01Um, c. 60r).
14. Relectio F. Dominici Soto Segobiensis Theologi ordinis Praedicatorum, Caesareae Maiestatis Caroli V a Sacris Confessio-
nibus de Ratione Tegendi, et Detegendi Secretum, Brixiae, apud Petrum Mariam Marchetum, 1582.

A Confissão
253

O conflito entre necessidade de saber e necessidade de salvaguardar o secretismo da


\ confissão foi resolvido pela marcha de autoridades eclesiásticas determinadas a tudo. Os
indícios de como a Inquisição romana pretendia se movimentar durante a época de Gian
Pietro Carafa são poucos mas significativos. Uma questão muito importante foi definida
com um decreto do Santo Ofício de 10 de setembro de 1556: os fiéis podiam descobrir
pelos éditos da Inquisição se tinham incidido em crime de heresia sem saberem. Eram
válidas as absolvições que haviam recebido nesse estado de ignorância? A resposta do
Santo Ofício foi afirmativa: a absolvição era válida e a confissão não devia ser reiterada;
mas era necessário livrar-se da excomunhão e, portanto, era necessário que passassem
pelo Inquisidor ou por outros que tivessem esses poderes 15• Isso no que se referia aos
penitentes; mas existia a questão dos conhecimentos do confessor e do uso que se podia
fazer desses conhecimentos. Um decreto do Santo Ofício estabeleceu que os confessores
não deviam ser obrigados a revelar o que tinham ouvido do penitente, nem mesmo se
este se lhes permitisse; e acrescentou uma cláusula aparentemente de reforço, mas que soa
ambígua: não se devia fazer menção dos assuntos tratados em confissão nem nos autos
do tribunal da Inquisição nem em outros tribunais, para evitar uma queda de imagem
(dedecus) da confissão 16 • Sinal de que no âmbito da Inquisição falava-se de confissão, de
que os confessores eram interrogados e de que alguma coisa talvez dissessem.
A doutrina era rígida, a propósito. Segundo a summa de frei Bartolomeo de
Medina, autor de robusta e tradicional doutrina dominicana, o confessor não podia
ser obrigado a evidenciar o que sabia; aliás, se interrogado no tribunal a respeito de
j assunto de um crime que lhe fora confessado, devia responder que não sabia de nada 17•
f Para evitar todo uso judiciário do saber adquirido em confissão, Medina acrescentava
uma cláusula importante: no caso de o confessor ter perguntado ao penitente a iden-
tidade dos eventuais cúmplices de seu pecado, o dever do penitente era apresentar-se
ao inquisidor e denunciar o confessor, pois querer saber os nomes dos cúmplices era
heresia: e, embora não se tenha notícia de comportamentos efetivos desse tipo , a dou-
trina fixada por Medina estabelecia um firme baluarte contra todo uso judiciário da
confissão, fora ou dentro do sacramento 18 • Podia-se até discutir se era admissível um
depoimento do confessor que, mediante permissão do penitente, relatasse no tribunal
o conteúdo da confissão. Mas os juristas faziam notar que esse depoimento não tinha
nenhum valor de prova: o penitente que dava a permissão de revelar o conteúdo de sua
confissão podia ter arquitetado desde o início uma confissão mentirosa com a intenção
de servir-se dela depois no tribunal - e por isso juntava-se sacrilégio à mentira 19 • Era

15. Decreto publicado por Pastor, Allgemeine Dekrete, p. 20.


16. "Confessarius non debet cogi ad revelandum aligua per reum confessa, etiam de licentia poenitentis, imo de
huiusmodi examinibus nulla debet fieri mentia in dedecus confessionis, negue in hoc negue in alio tribunali"
(decreto do Santo Ofício de 12 de agosto de 1557, publicado por Pastor, Allgemeine Dekrete, p. 61).
17. Bartolomeo de Medina, Breve Instruttione de' Confessori, D. Nicolini, Yenezia, 1582, c. 222r.
18. Idem, c. 223r.
19. É a opinião desenvolvida por Tommaso Trivisano, Decisiones Causarum Civilium, Criminalium et Haereticalium,
Yenetiis, apud Bernardum Basam, 1595, lib. I, dec. Ili.

Inquisidores e Confessores: Prescrições


254

necessário, portanto, manter firme o limite entre foro íntimo e foro externo, até mesmo
para garantir a plena sinceridade da confissão.
De fato , os inquisidores eram tentados a não respeitar esse limite justamente por-
que a partir das confissões sacramentais, secretas e portanto presumivelmente sinceras ,
podia-se chegar a preciosas informações. Bem antes que a Reforma luterana fizesse vir à
tona o problema em termos novos, dos lados da Itália onde se estabelecera a Inquisição
espanhola tinham chegado notícias aterradoras. Uma crônica da época narra que em
1510 muitos frades e padres tinham abandonado a Sicília para escapar aos maus-tratos
de inqu isidores à caça de hereges (ou seja, à época, de judaizantes):

O Inquisidor queria que os monges e os padres revelassem os pecados daqueles que se tinham
confessado com eles, e o Inquisidor mandara prender alguns padres, martirizara-os, dando-lhes os
dados na mão , e outros martírios, até que os tivessem revelado 20 •

A vontade de saber era tanto mais forte quanto mais elevado era o senso de perigo: e
o senso de perigo que se espalhou nas cúpulas da estrutura eclesiástica italiana em meados
do século XVI não foi absolutamente menor do que o armado pela Inquisição espanhola
contra os judeus, à procura de falsos convertidos. A ameaça era a de uma heresia que
dilacerava a cristandade: não uma das heresias experimentadas pela Europa medieval,
uma rebelião limitada a um grupo humano, a um país, mas uma série de doutrinas que,
surgidas a partir de Lutero (e daí o uso genérico e coletivo do termo Lutherana haeresis),
tinham se espalhado por toda parte, revelando uma extraordinária capacidade de conquista
de populações inteiras e de seus príncipes. Era uma realidade completamente nova: e
não era suficiente para esconder tanta novidade o fato de que, para condenar as novas
doutrinas, fossem apresentadas como reformulações de antigas heresias já condenadas.
À novidade da situação adaptavam-se as imagens tradicionais, como a que equiparava o
perigo da heresia ao da peste. Era a última em ordem de tempo: antes da Peste Negra de
1348, fora precedida das imagens de outras doenças temidas e repugnantes - a escabiose,
a lepra. Era uma imagem de implicações muito fortes. Sugeria imediatamente o recurso
às normas sanitárias que o mundo citadino mediterrâneo tinha elaborado para enfrentar
as ameaças mais graves à saúde pública: separar os sãos dos infectados, isolar e queimar
os veículos de contágio. Não se tratava apenas de imagens e de analogias, mas de realida-
des que na linguagem das autoridades eclesiásticas eram apresentadas como munidas de
um liame causal, genético. A heresia era a causa da peste e de qualquer outra maldição
divina - aridez e carestia, guerra e discórdia 21 • Por isso, devia-se combatê-la sem piedade.

20. Do Giomale de Giuliano Pássaro, citado por Pietro Napoli-Signorelli, Vicende della Coltura nelle Due Sicilie dalla
Venuta delle Colonie Straniere sino a' nostri Giomi, vol. IV, Napoli, 1810, p. 33.
21. Onde se permite a liberdade de difusão à heresia, - pregava San Cario Borromeo - "quid mirum postea, si iis in
locis [... ] pestes exoriatur, agri fruges non ferant, coelum imbres contineant, civiles oriantur discordiae, omnia
denique malorum genera adveniant [... ]?" (S. Caroli Borromaei, Homiliae, Mediolani, 1747, vol. III, p. 232).
Trata-se de um aspecto da denominada "pastoral do medo" (cf. Carla Delcorno, "Forme della Predicazione
Cattolica fra Cinque e Seicento", em Cultura d'Élite e Cultura Popolare nell'Arco Alpino fra Cinque e Seicento,

A Confissão
255

No século XVI, o contágio herético tinha um veículo fundamental que os séculos


anteriores não conheceram - ou pelo menos, não nessas dimensões: o livro. Grande
parte do trabalho dos inquisidores foi dedicado justamente à caça a esse extraordinário
veículo de heresias que era o livro. E não se demorou a compreender que a tarefa era
extremamente difícil: o livro herege passava de mão em mão e era capaz de transmitir
sua peste a um número muito elevado de leitores antes que alguém o descobrisse e o
entregasse ao confessor ou ao inquisidor. E havia também a imprensa, que era capaz de
multiplicar as cópias do próprio volume, multiplicando consequentemente os riscos de
contágio. O medo do livro nutrido pelos inquisidores era semelhante talvez apenas à
confiança que os propagadores das novas ideias depositavam em seu poder. As técnicas
sugeridas para a propaganda eram simples: deixar os livros nas estalagens, pelas ruas,
fazê-los cair corno que por acaso nas mãos das pessoas; escrever livros em que, fingindo
combater as "heresias" , fossem dadas a conhecer 22 •
A luta contra os livros conduzida pela Inquisição romana foi duríssima. Os pro-
testos dos livreiros arruinados pelo índex de Paulo IV não foram ouvidos.

Quando começa a peste e dois ou três casos são descobertos - disse Michele Ghislieri ao em-
baixador florentino em fevereiro de 1559 - imediatamente os príncipes, para a saúde de toda a cidade
e de seu domínio, mandam queimar todas as coisas encontradas nas casas infectadas, para que não
haja oportunidade de infectar outras e não levam em consideração o prejuízo sofrido pelos afetados 23 •

A imagem da fogueira era sempre a mais familiar à linguagem do inquisidor: e o


confronto entre fogueiras de hereges e fogueiras de pertences infectados era então habitual
na boca de Paulo IV. Mas queimar não era suficiente. Contra esses inimigos, a batalha era
dura: ao passo que com os hereges que lhe caíam nas mãos o inquisidor sabia muito bem
corno tratá-los e corno obrigá-los a dizer os nomes dos cúmplices ou, pelo menos, daqueles
que tinham ouvido suas falas, os livros hereges, tão eloquentes para quem os lia, eram
testemunhas inexoravelmente mudas. O inquisidor podia queimá-los quando os achava,
mas não podia saber quem os tivera em mãos e fora contagiado por eles. Era preciso en-
contrar o modo de transformar urna sociedade de leitores potenciais numa sociedade de
delatores. Os Índices dos livros proibidos, que constituíram um momento fundamental

org. de Ottavio Besomi e Carlo Caruso, BaseVBoston/Berlin, 1995, pp. 275-301 ; em part. p. 294). Sobre a
imagem da heresia como peste cf. R. I. Moore, "Heresy as Disease", em The Concept of Heresy in the Middle Ages
(11 th-13 th C.), org. de W. Lordaux e D. Verhelst, Leuwen - The Hague, 1976, pp. 1-11.
22. Técnicas desse tipo são descritas em um livro que é um modelo de propaganda disfarçada: o Dialogo di Giacopo
Riccamati Ossanese nel qual si Scuoprono le Astutie con che i Lutherani si Sforzano d'lngannare le Persone Semplici , s. 1,
1558. Sugere-se aí a publicação de obras de propaganda religiosa "com um titulo, qual o artifício do raciocínio
conseguisse: ou seja, que não assuste os homens escrupulosos, mas convide-os a lê-las"; depois, para que fossem
lidas, "atirar pelos caminhos algumas cópias de tal modo que possam parecer perdidas; poderiam ser deixadas
por viandantes nas estalagens como se esquecidas" (pp. 38-39).
23. Citado por A, Panella, "l.;lntroduzione a Firenze dell'Indice di Paolo IV", Rivista Storica degli Archivi Toscani,
I, 1929, p. 17. Cf. agora). M. De Bujanda, "lndex de Rome 1557, 1559, 1564. Les premiers índex romains et
l'index du Concile de Trente" (Index des livres interdits, v. VIII), Geneve, 1990, p. 39 nota.

Inquisidores e Confessores: Prescrições


256

das preocupações de polícia da fé , não resolveram esse problema. Naturalmente a• e


, In1or-
macão bibliográfica, surgida como resposta ao problema do controle da leitura gara .
· , nt,a
ao menos a possibilidade para os leitores bem intencionados de evitar qualquer contato
com a "peste" herética. Mas como obrigar quem obtivera um livro herético por um amig
o,
ou por um vizinho, ou simplesmente o vira circular nas mãos de pessoas conhecidas, a
fazer uma denúncia formal contra tais pessoas, tais vizinhos ou amigos?
Gian Pietro Carafa - já então papa Paulo IV - encontrou a resposta. Tratava-se de
recrutar os confessores às ordens da Inquisição. E seu Grande Inquisidor, frei Michele
Ghislieri, foi o instrumento ideal para a realização do projeto. Às suas ordens atuou
então um executor de grande capacidade: frei Feiice Peretti, futuro Sixto V, que nesse
empreendimento angariou títulos para sua fulminante carreira. A cadeia de comando
é reconstruída através desses elos, que conectam a vontade do papa à cidade capital do
livro na Europa: Veneza.
Mas o campo em que o dispositivo de guerra ao livro foi posto à prova não foi
a Itália e, sim, a Espanha. Nas origens do ato que devia alterar definitivamente a cir-
culação do livro na Europa católica encontramos uma proposta do Grande Inquisidor
espanhol Fernando de Valdés e uma pronta adesão romana. Valdés pediu ao papa,
através de um memorando de 9 de setembro de 1558, que todos os confessores, frades
ou padres seculares, fossem recrutados à força às ordens da Inquisição para combater
a circulação de publicações heréticas.
Uma bula de Paulo IV, de 5 de janeiro de 1559, examinou a questão com o estilo
resoluto e com a dureza que foram as qualidades típicas desse papa. Acolhendo plenamente
a solicitação espanhola, Paulo IV recorreu ao instrumento mais potente e ao mesmo tempo
mais delicado que a estrutura eclesiástica tinha em mãos: o exército dos confessores, adua-
neiros alinhados nas fronteiras da comunhão eclesiástica e da graça divina. Todo o sistema
da confissão foi posto a serviço da luta contra os livros: revogadas todas as permissões de
leitura dos textos proibidos, o inquisidor-geral torna-se a autoridade exclusiva no que se
referia a esse tipo de crime. Além disso, todo confessor devia fazer com que os penitentes
dissessem não só se tinham livros proibidos e se os tinham lido, mas também se sabiam
de outros; e, no caso de algo desse interrogatório vir à tona, o confessor devia remeter
o penitente ao Santo Ofício. Se não o fizesse, ele mesmo incorreria na pena máxima de
excomunhão maior, reservada só ao papa e ao inquisidor-geral24.
Como na Espanha, assim na Itália: a ordem dada por Paulo IV foi executada
imediatamente também na Itália. O conteúdo do documento papal foi comunicado

24. Cf. José Luis Gonzáles Novalín, El Inquisidor General Fernando de Valdés (1483-1568) , Oviedo, 1968-1971, vol. 1,
pp. 308-309, vol. 2, pp. 335-337; e ver também Virgilio Pinto Crespo, Inquisición y Control Ideológico en la
Espaiía dei Sigui XVI, Madrid, 1983. Por um capricho do destino, a bula papal de resposta, de 5 de janeiro de
1559 - documento que pode ser considerado como origem do multissecular relevo cárstico no que se refere à
circulação das ideias na Espanha e na Itália - permaneceu ignorada pelos historiadores da censura aos livros (cf.
J. M. De Bujanda, Index de l'Inquisition espagnole 1551, 1554, 1559, Sherbrooke, 1984, pp. 98 e 637-640). Pode
ser encontrada em Annales Ecclesiastici ... Auctore Oderico Raynaldo, vol. 15, Lucae, typis Leonardi Venturini,
1756, pp. 29-30.

A Confissão
257

não só aos comissários da Inquisição, mas também e sobretudo aos confessores, através
dos gerais das Ordens: em 25 de janeiro de 1559, o já então todo-poderoso Cardeal
Ghislieri enviou ao geral dos franciscanos uma carta em que lhe era categoricamente
ordenado transmitir uma ordem a todos os frades concebida pela "mente de Nosso
Senhor". A ordem determinava que os frades

[.. .) que não devam nem presumam absolver qualquer um que tenha direta ou indiretamente,
por conhecimento próprio ou alheio, ouvido de qualquer pessoa infectada ou suspeita de heresia,
ou que mantenha livros proibidos, se antes a pessoa que vier confessar não tiver denunciado juridi-
camente aos ministros do Ofício da Santa Inquisição o que sabe ou escutou em prejuízo ou perigo
da Fé Católica.

Os contraventores "serão gravemente castigados pelo Santo Ofício" . E, para eli-


minar qualquer risco, bem como para aproveitar a vasta rede de contatos entre frades
e penitentes, determinava-se "que os confessores, assim como no início das confissões
perguntam aos penitentes se têm casos particulares ou se são excomungados, pergun-
tem igualmente se conhecem homem ou mulher infectado, suspeito de heresia ou que
não leve vida católica". Era um comportamento que se fazia necessário pelo fato de
que a maior parte das pessoas - observava Ghislieri - "estimam não serem obrigadas a
denunciar inimigos de nossa fé nem deverem se confessar por não terem denunciado ,
visto que por vontade própria não diriam" 25 •
Dali em diante, muitas outras ordens da parte do Santo Ofício romano deviam
chover sobre a cabeça dos confessores, para sublinhar e reforçar pontos isolados e espe-
cíficos, que diziam respeito a seu engajamento coletivo sob as bandeiras da Inquisição.
Era aí que se combatia a verdadeira-- batalha contra a circulação do livro: se a
eficácia de aparatos de papel como os "índices dos livros proibidos" pode justamente
revelar-se problemática, o mesmo não se pode dizer das redes dos confessores. A partir
de 1559, a história da leitura na Espanha e na Itália deixa as livrarias para entrar no
confessionário.
Naturalmente, fazer aceitar as novas regras não foi fácil: sobretudo em Veneza.
De resto, essa era uma batalha dirigida especialmente contra Veneza, capital europeia
da imprensa: "Causa estupor - exclamava Ghislieri - que Veneza sinta-se livre para
publicar tudo, não importa quão doloroso seja, se a Santa Inquisição não o impede, e
que não se sinta livre para [publicar] um índex do principal tribunal do mundo em favor
da fé católica [... ]". E acrescentava: "Daí a entender claramente a todos os confessores
que não podem absolver quem tenha livros proibidos" 26 •
Frei Felice Peretti, enviado à sede veneziana com o título de inquisidor para todo
o domínio, compartilhava as certezas da ordem à qual pertencia em matéria de confis-

25. ASVen, Sant'Uffizio, b. 160, cc. n. n.


26. Carta do cardeal Ghislieri de 18 de fevereiro de 1559, registrada entre as cartas do Santo Ofício em Veneza.
Sobre a questão da impressão do Índex, remeter-se aos despachos da "Nunciatura".

Inquisidores e C onfessores: Prescrições


258

são. Apreciou certamente o convite à confissão frequente e os elogios à confissão como


fundamento principal da esperança dos cristãos de serem justificados que se leem em
uma obra de Paolo Morigia, autorizada por ele para ser publicada em 23 de janeiro de
1559 (justamente quando as ordens de Ghislieri eram dadas); ainda assim, ele deu ta-
manho impulso ao engajamento dos confessores em questões inquisitoriais a ponto de
suscitar violentos protestos, que ao fim levaram a seu afastamento. Em uma carta
de 1560, explica que a hostilidade do governo tinha origem no fato de ter ele "ordenado
aos confessores que não absolvam quem tenha livros proibidos e quem não revele os
hereges, e que a mesma coisa havia feito pregar do púlpito aos pregadores" 27 •
O sistema inquisitorial e o da presença dos frades no território da República
sobrepunham-se em grande parte. Aos conventos afluía a população para se confessar; e
nos conventos estavam sediados os vigários da Inquisição. Pode-se imaginar que a ordem
vinda de Roma acarretasse muitos problemas aos confessores. Mas sobre a interpretação
daquela ordem as ideias do pessoal da Inquisição eram claras: tratava-se de atuar com um
mecanismo de tipo automático, sem ficar indagando ou buscando justificações para os
comportamentos denunciados em confissão. Tomemos como exemplo o caso de quem
contava ao confessor ter comido carne em dias proibidos: pois bem, em 9 de março de
1559 frei Francesco Pincino (ou Pinzino), vigário vêneto da Inquisição, afirmou que nesse
caso os confessores não deviam se perguntar - ou perguntar - se a infração tinha origens
heréticas ou era motivada por outra coisa, mas remeter decididamente o penitente à
Inquisição. Por acaso os juízes criminais diante de um caso de homicídio esperavam para
prender o culpado depois de terem decidido se fora por legítima defesa ou por roubo?
Primeiro era detido e depois se decidia se era para ser posto em liberdade ou não 28 •
O confronto-conflito entre os dois tribunais, o da Inquisição e o da confissão,
é um acontecimento extraordinário, seja pelos dramas individuais que produziu, seja
pelo espetáculo do choque entre duas instituições tão próximas e tão diferentes. Não
há dúvida de que eram próximas: tão próximas, quanto mãe e filha podem ser. Ao
inquisidor fora confiado o poder de absolver em casos reservados ao papa (os casos de
heresia, justamente) aqueles que na fase definitiva do "tempo de graça" confessavam-se
espontaneamente com ele e revelavam-lhe os nomes de eventuais cúmplices: essa norma

27. A carta, endereçada a frei Sigismondo Botio, está conservada na Biblioteca Antoniana de Pádua, ms 698, cc.
lOrv e foi parcialmente publicada por G. Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit., p. 194. O volume de
Paolo Morigia, cuja publicação foi aprovada por Peretti, é a Opera Chiamata Stato Religioso, et Via Spirituale, em
Venetia, por Nicolo Bevilacqua de Trento, 1559: o capítulo sobre a confissão começa em c. 342r.
28. "[ ... ] Quando se pertence àqueles que comeram carne, os confessores não devem fazer nenhuma distinção,
por não serem eles que julgarão isso [... ] O mesmo soem fazer os juízes seculares, no caso em que se mata um
homem para defender a saúde do corpo, que desejam e assim costumam que o assassino se apresente a eles,
e quando consideram que o homicídio foi praticado sem culpa nos casos permitidos pela lei civil e natural
absolvem-no; assim também procederemos nós quando os confidentes obedecerem" (carta de frei Francesco
Pinzino, vigário-geral da Inquisição de Portogruaro, ao capitão de Pordenone, 9 mar. 1559, conservada em
ASVen., Sant'Ufficio, b. 160, cc. n. n.). O vigário previa a possibilidade de denúncias por escrito "a exemplo
do paralítico, outros devem mandá-la por ele escrevendo o que fazia para bem da verdade".

A Confissão
259

tradicional (já definida em uma bula de Inocêncio IV de 1243) é retomada durante o


século XVI, quando a ameaça de heresia se tornou urgente 29 • Portanto, desse ponto de
vista, o sistema inquisitorial interferia no da confissão e o inquisidor configurava-se
como um confessor dotado de poderes excepcionais. Nada insólito, no panorama do
governo eclesiástico tardo-medieval: através do sistema da reserva papal e da redistribui-
ção dos poderes de absolver os casos reservados a determinados delegados - em geral,
os membros de ordens mendicantes - a hierarquia ordinária de governo da cristandade
fora sendo progressivamente obnubliada. Por outro lado, o inquisidor tinha geralmente
como sede um convento, verdadeira central das confissões à qual as pessoas acorriam
também devido aos poderes especiais concedidos aos frades (e em particular àqueles
entre eles que exerciam funções inquisitoriais); e por isso podia também atuar como
confessor em caráter ordinário e apreender por esse caminho segredos que poderia
utilizar em processos: caso deplorável e deplorado na literatura inquisitorial - mesmo
porque temia-se que os hereges aproveitassem essa dupla veste do inquisidor para con-
seguir ser absolvido no confessionário - mas nem por isso menos real3°.
Se o confessor não podia absolver por crimes inquisitoriais, o inquisidor, ao
contrário, tinha o poder de absolver in utroque foro (e assim podia ocorrer o caso de
pessoas dispensadas sem absolvição pelo confessor as quais, ao se apresentarem ao
inquisidor, recebiam dele também a absolvição pelos pecados ordinários 31 ) . Mas ha-
via outro aspecto do problema, referente aos obstáculos postos pelo funcionamento
ordinário do tribunal da confissão à eficácia da ação inquisitorial. O que acontecia,
por exemplo, se um confessor ignorante de seus limites absolvia de boa-fé do crime de
heresia? Devia ser considerada uma absolvição válida ou não? E como saber o que fora
dito no confessionário sem infringir o segredo? Havia ainda o problema da coleta de
informações necessária à Inquisição: quem sabia e não revelava uma informação qual-
quer era ameaçado de excomunhão. Ora, o que era revelado no confessionário podia
servir para fins institucionais da Inquisição. Mas como era possível ter acesso a isso,
sem ferir o secretismo da confissão?

29. Cf. Henner, Beitriige, op. cit., pp. 235-245. Sobre a questão De Tempore Gratiae, o jurisconsulto Francisco Pena
elaborou textos, que permaneceram manuscritos, nos quais propõe aplicar o "tempo de graça" nas áreas pro-
testantes - Inglaterra, França, Império - que desejassem voltar ao catolicismo, bem como aos CTistianos nuevos
(cf. Patricia H. Jobe, "Inquisitorial Manuscripts in the Biblioteca Apostolica Vaticana: A Preliminary Handlist",
em Gustav Henningsen, John Tedeschi e Charles Amiel [orgs.], The Inquisition in Early Modem Europe. Studies
on Sources and Methods, Dekalb [Illinois], 1986, pp. 33-53; em part. pp. 39-40 e 53).
30. Como observa O . Niccoli ("II Confessore e l'Inquisitore: A Proposito di un Manoscritto Bolognese del Seicento",
em Finzione e Santità tra Medioevo ed Età Moderna, org. de Gabriela Zarri, Torino, 1991, pp. 412-434; em part.
p. 426), que lembra a propósito os conselhos de Locati ("lnquisitores [...] confessiones sacramentales libenter
audire non debent, ne Inquisitionis officium deludatur, et sacramentum poenitentiae contemnatur"). O risco
era duplo: para a dignidade do sacramento da confissão, bem como para a eficácia da caça aos hereges.
31. É esse o significado de um voto da Congregação do Santo Ofício de 23 de agosto de 1628: "Poenitentes, qui
contra aliquem in Sancto Officio deposuerunt, vel veritatem tacuerunt ne inquisitis damnum facerent non
possunt a confessariis absolvi in foro conscientiae sed hortari debent ad deponendum in Sancto Officio a quo
in utroque foro absolventur" (BAV, Borg. Lat. 558, c. 503r).

Inquisidores e Confessores: Prescrições


260

A questão formal da validade da absolvição fora definida desde o século XIII


estabelecendo de uma vez por todas a validade da absolvição sacerdotal. Mesmo se ~
confessor fizera mal em não encaminhar o herege a seu verdadeiro juiz, o bispo, contudo
não era possível eliminar o valor sacramental da absolvição. Bastava impor o dever da
abjuração pública para aqueles hereges cujos erros fossem conhecidos de algum modo e
não tivessem permanecidos encerrados no segredo da consciência. De fato, a distinção era
entre "interior" e "exterior": a confissão era o "foro interior" ou forum poli , a Inquisição
era o "foro exterior" ou forum fori : e o crime de heresia só podia ser consumado no segre-
do da consciência, mas também podia ser levado ao exterior, para o escândalo alheio,
caso em que se fazia necessária uma "satisfação" pelo mal cometido. As dificuldades
da doutrina tradicional, entre arbítrio inquisitorial e secretismo da confissão, surgiram
então ante a percepção de um perigo de dimensões novas e muito graves. A literatura
inquisitorial não fornecia muitas saídas: no tratado de Arnaldo Albertini sugeria-se que
o confessor tentasse convencer o herege arrependido a recorrer aos inquisidores; mas
era evidente a dificuldade da empresa, para o confessor - que não podia nem absolver o
penitente nem traí-lo ("nec confitentem absolvere, nec eum prodere") - como para
o penitente, impelido a trair os cúmplices e com medo de ser traído por isso, obrigado,
na melhor das hipóteses, a expor-se espontaneamente aos mecanismos de um processo
cruel. Talvez, somente a absolvição do papa pudesse - erri condições precisas - livrá-lo
do foro inquisitorial3 2•
No plano formal, a solução dada à velha questão dos poderes do confessor regis-
trou a plena vitória da Inquisição: o foro da penitência, ou foro interior, não podia eli-
minar as culpas sujeitas ao foro da justiça (foro exterior). Isso significava que a inquisição
sempre podia chamar em juízo quem tinha se "reconciliado" com a Igreja no segredo
da confissão. O manual de Masini sintetizou assim o ponto de vista do Santo Ofício:

O herege absolvido no foro da consciência, etiam dio pelo próprio pontífice romano, se depois
é acusado no foro exterior nem por isso evita as penas devidas aos hereges; pois por meio da pena
proposta no foro interior satisfaz a Deus e com ele se reconcilia: mas a pena do foro exterior cabe à
vingança pública e à satisfação da República 33 .

Atente-se bem à explicação de Masini: a proeminência da Inquisição está baseada


no critério da "vingança pública" e por isso da transferência da matéria do âmbito do
pecado para o da culpa jurídica. Como veremos mais adiante, as coisas não eram tão
simples. No entanto, deve-se notar que uma norma desse tipo tirava da confissão sacra-
mental todo vafor de proteção e deixava campo livre aos inquisidores e à sua vontade de
saber. Não fora sempre assim: na igreja medieval, como se viu, vigorava o princípio de

32. O tratado De Agnoscendis Assertionibu.s Catholicis et Haereticis foi publicado em Tractatu.s Illu.strium in utraque
tum Pontificii, tum Caesarei luris Facultate lurisconsultorum, De ludiciis Criminalibu.s S. Inquisitionis, vol. XI, pars II,
Venetiis, F. Ziletti, 1584, pp. 52 e ss. O título III, De Absolutione, acha-se às cc. 128r e ss.
33. Masini , Sacro Arsenale Overo Prattica dell'Officio dela S. lnquisizione, Roma, 1705, p. 356.

A Confissão
261

que a absolvição dada a um herege por um confessor ignorante mas de boa-fé liberava
o primeiro de suas culpas 34 • Ao contrario, desde os primeiros atos da nova Inquisição,
tinha se evidenciado o desejo de transformar as confissões sacramentais e orais em
denúncias escritas, que podiam ser utilizadas para fins processuais. Era por exigências
desse gênero, como notou Giovanni Romeo , que devia se generalizar o recurso ao as-
sim chamado "comparecimento espontâneo" 35: o penitente que tinha algo a dizer em
termos inquisitoriais era obrigado pelo confessor a se apresentar diante do tribunal da
Inquisição para fazer uma denúncia - ou uma autodenúncia - que era definida como
"espontânea" , mas que estava longe de sê-lo. A passagem do "comparecimento espon-
tâneo" era indispensável para obter a absolvição .
Uma simples leitura dos aforismos que resumiam a ciência jurídica da Inquisição
no século XVI mostra que o critério da "saúde pública" acabou por levar a melhor sobre
aquele que , de todo modo, sustentava a validade da absolvição. A posição recolhida por
Masini, e lembrada anteriormente, é reforçada por indicações como esta: "não têm os
sacerdotes, nem mesmo in foro penitentiae, autoridade para absolver os hereges penitentes
da excomunhão a que incorreu devido ao crime de heresia, sendo essa reservada ao
Sumo Pontífice, e por sua Santidade concedida tal autoridade de absolvição somente aos
bispos e inquisidores no foro exterior" . E mais: "quem é mestre em heresias é respon-
sável por altíssima ruína, não somente a própria, mas também a dos outros e de toda a
república. Portanto, deve ser punido com intenso rigor não somente como herege, mas
como inimigo da república" 36 • Naturalmente, não é dito que os confessores sempre se
ativessem a ordens do gênero: para todas as prescrições, muito numerosas e repetidas
na sociedade de antigo regime, vale o princípio de que uma coisa era ordenar, outra ser
obedecido. Além disso , foram concedidas atenuações e limitações em casos específicos
das normas mais rigorosas. Pio IV, por exemplo, concedeu ao cardeal de Médici para
a arquidiocese de Pisa a permissão de delegar a confessores de sua escolha a faculdade
de poder absolver "qualquer um que tivesse livros proibidos" 37• E pode-se imaginar a
importância dessa concessão numa sede universitária.
A função do confessor era delicada e importante: por isso, não é de se admirar
se de uma ordem importante como a dos Jesuítas, que demonstrou particular interesse
em relacão às confissões, vieram indicações de consenso só aparente. A Companhia
era isen~a, por privilégio e indulto papal, da jurisdição ordinária da Inquisição; mas
aqui O problema referia-se às pessoas que, atraídas pelos privilégios da Companhia,
apinhavam-se em torno dos confessores jesuítas. O que era necessário dizer a todos
que esperavam a possibilidade de serem readmitidos na comunhão católica com uma
simples confissão feita a um padre jesuíta, ainda que tivessem delitos heréticos próprios

34. Assim ficou disposto no concílio de Tarragona de 1242 (Henner, Beitrage, op. cit. , p. 237).
35. G . Romeo, Jnquisitori, Esorcisti e Streghe nell'ltalia della Controriforma, op. cit., pp. 191-194.
· · Sacro Arsena1-
36 . M as1n1, 1-e ,
op • cit. , Aforismo 136, pp. 357-358. Aforismo 255 , p. 375.
37. Acarta do cardeal Ghislieri ao cardeal de Médici é datada de Roma, 12 de abril de 1562 e encontra-se registrada
entre os Atu· Straord·mar1· do arquivo arquiepiscopal de Pisa, I, c. 18rv.

Inquisidores e C onfessores: Prescrições


262

ou alheios a confessar? Em 1568, o geral da Companhia enviou ordens que obrigavam


os confessores a exortar

[... ] os penitentes a se dirigirem aos inquisidores, onde houvesse, para revelar os cúmplices; e
vá ou não, deve entender [o penitente] que está absolvido no foro interior diante de Deus, mas não
no exterior, pois que se houver indícios, poder-se-ia proceder contra ele através do juiz eclesiástico,
embora já tenha sido absolvido diante de Deus 38 •

O que significa que, em todo caso, os confessores davam a absolvição, deixando


à vontade dos penitentes a decisão se proceder à denúncia ou não. A coisa não deve
ter passado despercebida: uma ordem seca de Sixto V, promulgada pela Congregação
do Santo Ofício em 1º de outubro de 1587 , proibiu aos jesuítas a absolvição de hereges
na confissão e ordenou que deveriam ser encaminhados ao tribunal da lnquisição 39 • E
isso fechou uma das portas deixadas abertas pelos confessores à tentativa de resolver
o crime de heresia no foro da consciência. Que era, repare-se bem, não um resíduo de
antigos privilégios do foro interior, mas uma esperta tentativa de remeter a questão da
heresia para sua origem, subtraindo-a do meandro das relações sociais no qual estava
produzindo efeitos devastadores. A coisa era muito mais evidente à luz do que acon-
tecia em França durante as guerras religiosas: e foi justamente aos prelados do reino
de França que foi concedida pelo Santo Ofício a faculdade de absolver os "relapsos",
isto é, os hereges que deveriam ser certamente executados: o decreto do Santo Ofício
explica essa vistosa exceção, atribuindo-a aos sentimentos paternais experimentados
por Sixto V diante do espetáculo da França após o massacre de São Bartolomeu 40 • Por-
tanto, a confissão mantinha uma função importante na relação com os hereges e, mais
geralmente, na capacidade da Igreja de enraizar-se na sociedade. Mas voltaremos a esse
assunto. Enquanto isso, deveremos reconhecer que o problema, do ponto de vista de
quem pretendia furtar-se ao foro exterior, continuava a existir.

Podia-se imaginar um escamoteio desse tipo por parte de quem temia o processo
inquisitorial e não encontrava segurança suficiente na absolvição a ele concedida por
seu confessor: fazer-se absolver pelo próprio inquisidor, que nunca deixava de ser
um membro de ordem religiosa. Mas eis a norma para impedir essa via de fuga: "Os
inquisidores não devem se intrometer nos assuntos pertencentes ao foro da consciên-
cia, escutando os culpados em confissão sacramental, mas devem proceder aos atos
jurídicos de acordo com a responsabilidade que lhes impôs a Santa Sé Apostólica" 41 •
A razão era de oportunidade: proibia-se aos inquisidores ministrar confissões sacra•
mentais devido ao perigo de que o herege, absolvido em tal circunstância, pudesse

38. Carta do geral da Companhia ao reitor de Milão, de 23 de novembro de 1568, reproduzida por F. Rurale, I
Gesuiti a Milano. Religione e Política nel Secando Cinquecento, Roma, 1992, p. 80. O grifo é meu.
39. Decreta et Litterae Apostolicae pro Sancto Officio, BAV, Barb. Lat., 1503, p. 39.
40. O decreto, de 2 de janeiro de 1586, é reproduzido em idem, p. 38.
41. Masini, Sacro Arsenale, op. cit., Aforismo 174, p. 363.

A C onfissão
263

ser denunciado por outra via e se insinuasse desse modo a suspeita de que o inquisi-
dor tivesse revelado O conteúdo da confissão . Consequentemente, estabelecia-se que
as confissões, ouvidas pelo inquisidor durante o "tempo de graça" , não deviam ser
confundidas com as sacramentais 42 •
O sistema de pesos e contrapesos aparenta plena segurança: os sacerdotes não
podem absolver em confissão do crime de heresia, só os inquisidores e bispos podem
fazê-lo - com a diferença, como foi dito, de que os bispos não podem delegar os vigários
e os inquisidores podem.

Uma equilibrada distinção de campos e distribuição de poderes: este, à primeira


vista, é o espetáculo oferecido pelos dois tipos de tribunais. Porém, este é apenas o
esboço formal , que depois devia se adaptar a uma realidade assaz complicada e sofrer
suas pressões. Mas, ao mesmo tempo, no plano formal , parece possível por alguns
indícios registrar um deslocamento das relações de força entre inquisição e confissão
a favor da primeira. É verdade que os padres tridentinos reforçaram o princípio do
poder episcopal de absolver também em casos reservados à Santa Sé, incluindo aí o
crime de heresia (para o qual, no entanto, os bispos não podiam delegar a eventuais
vigários seu próprio poder) 43 • Mas no decorrer do século tornou-s~ mais insistente e
sustentada com autoridade a opinião de que os inquisidores podiam perseguir com a
acusação de heresia mesmo aqueles que tinham obtido sua absolvição do confessor.
Francisco Pena afirmou, a propósito, que o confessor não podia testemunhar a favor
do acusado perante a Inquisição porque o que escutara em confissão tinha sido dito
a Deus, não a ele 44 • Outros fizeram notar que, se era admissível convocar o confessor
como testemunha em casos de heresia, abria-se a porta a confissões falsas e artificiosas,
em função da sucessiva deposição no tribunal 45 • As complicações que, em matéria de
verdadeiro e falso , dominaram as discussões teológicas da época possuíam essa raiz real
entre outras. Entre o verdadeiro como bem e o falso como mal, a ciência canonista a
. .
servico da confissão introduziu a ideia de uma simulacão boa, com a invencão da "reserva .
mental" : aquilo que os ouvidos humanos do juiz ouvem é só uma parte do discurso; a
outra parte, que reverte completamente seu significado, é proferida só mentalmente e
é conhecida somente por Deus , que perscruta os corações 46 •

42. Cf. Antonio de Sousa, Aphorismi lnquisitorum in Quatuor Libris Distributi, Turnoni, sumptibus Laurentii Durand,
1633, pp. 545-546.
43. Sessione XXIV, c. 6 De Reformatione.
44. A anotação de Pena aparece na edição de 1595 do tratado de Eymeric: sobre ela chamou a atenção Henner,
Beitriige, op. cit., p. 239 e nota.
45. "Poenitens, fartasse hac intentione sibi in iudicio de illa [confessione] inserviendi, propterea potuerit ille po-
enitens non verum dixisse" (Tommaso Trivisano, Dicisiones Causarum Divilium, Criminalium et Haereticalium ... ,
Venetiis, apud Bernardum Bassum, 1595, c. 4rv).
46. Sobre a reserva mental e O tratado de Martin de Azpilcueta Commentarius in Cap. 'Humanae Aures'... et de Arte
Bona et Mala Simulandi (Roma, 1584) cf. Perez Zagorin, Ways of Lying Dissimulation, Persecution, and Conformity in
Early Modem Europe, Cambridge (Mass.), London, 1990, pp. 165-179. Para as discussões e as práticas do século
XVI relativas ao assunto, continua fundamental o estudo de Carla Ginzburg, Simulazione e Dissimulazione Reli-

Inquisidores e Confessores: Prescrições


264

Na prática, o "foro exterior" reivindicou a mais ampla liberdade de procedi-


mento, sem se deixar bloquear pela declaração de qualquer confessor. E os êxitos
concretos dessa posição foram muito pesados para todos aqueles que se acreditaram
postos fora de perigo com a absolvição do confessor. Só lentamente firmou-se , com
o tempo , a ideia de que os confessores podiam absolver das culpas de heresia se essas
tivessem sido cometidas apenas em pensamento ou tivessem permanecido circuns-
critas a um círculo limitadíssimo de pessoas . Mas para chegar a isso foi preciso que
a ameaça da heresia como perigo iminente e extremamente grave, oculto no recôn-
dito da sociedade italiana, se desvanecesse . Enquanto a sensação de perigo durou ,
as barreiras da absolvição no foro da confissão não detiveram os sabujos do Santo
Ofício . No caso da Inquisição de Módena, sabemos que frei Paolo Costabili, tão
logo assumiu o cargo, pôs as mãos nas listas de hereges absolvidos pelo bispo Egidio
Foscarari e traduziu a despojada relação de nomes deixada pelo bispo em calhamaços
e calhamaços de processos 47 •
De todo modo, o fato é que o poder da Inquisição sobre os confessores foi de-
finido formalmente de modo definitivo. Os éditos gerais que os vários inquisidores
publicaram ao ingressarem na instituição contiveram normalmente uma cláusula relativa
aos confessores,_considerados como uma entre as categorias chamadas a colaborar em
posição subordinada à obra de proteção da fé (cobradores de impostos, aduaneiros,
funcionários dos correios, livreiros). Na realidade, toda a estrutura eclesiástica ordinária,
responsável pela difusão e execução das normas era subordinada. Mas a ordem decisiva
era dirigida aos confessores:

Que sejam diligentes - diz um édito geral genovês de 1590 - em perguntar a seus confidentes
no início das confissões, se têm notícia ou conhecimento de hereges ou apóstatas, ou seja suspeitos
de heresia, ou apostasia ... fazendo-os entender a obrigação que têm de torná-los evidentes ao santo
ofício, que haverá de mantê-los em segredo: nem serão absolvidos até que não tenham dado a devida
satisfação à santa lnquisição 48 .

Não obstante o tom imperativo, os éditos granjearam amplo reconhecimento.


Era da atuação dos confessores que dependia "mormente o serviço de Deus, e o bem

giosa nell'Europa del'500, Torino, 1970, como também a ampla discussão empreendida por Albano Biondi, "La
Giustificazione della Simulazione nel Cinquecento", em Eresia e Ri forma nell'ltalia del Cinquecento, Miscellanea I,
Firenze/Chicago, 1974, pp. 7-68.
47. Cf. Albano Biondi, "Streghe ed Eretici nei Domini Modenesi all'Epoca dell'Ariosto", em ll Rinascimento nelle
Corti Padane. Società e Cultura, org. de Paolo Rossi, Bari, 1977, pp. 165-199, em part. pp. 193-194. Sobre o contexto
de Módena naquela época cf. Antonio Rotondo, "Atteggiamenti della Vita Morale Italiana dei Cinquecento.
La Prattica Nicodemitica", Rivista Storica Italiana, LXXIX, 1967, pp. 991-1030, em part. pp. 1018-1030.
48. Editto Generale per il Santo Uffitio di Genooa, promulgado pelo dominicano frei Gio. Battista Lanci de Reggio,
inquisidor-geral de Gênova, 3 mar. 1590 (Archivio di Stato di Genova, Acta Senatus 1334; agradeço a Daniela
Solfaroli Camillocci a indicação). Um édito análogo publicado em Reggio Emilia em 1598 é citado por Be-
thencourt, L'lnquisition à l'époque moderne, p. 178.

A Confissão
265

privado e público" , lê-se em um édito do inquisidor de Florenca no final do século XVII:


mas a função policial era recomendada de modo imprescindível. Era necessário que
os penitentes fossem interrogados a respeito de todos os crimes indicados no próprio
édito, sob a sólida ameaça: "se não denunciá-los ... não podem ser absolvidos" 49 •
Mas essa organização do controle, que se apresentava em termos de distinção
ordenada de campos nas formulações oficiais, podia ser aplicada de modo muito mais
rosco e agressivo pelo pessoal de hierarquia inferior. A consciência do poder de que
dispunham levou certos vigários da Inquisição a invadir o campo dos confessores com
iniciativas clamorosas. É o caso do vigário da Inquisição de Pietrasanta, certo dom
Marchesino Valeriani, "não só idiota, mas de parca boa fama" , de acordo com o Santo
Ofício, que tomou uma iniciativa certamente insólita mas significativa: na semana
santa de 1591 - portanto no período de maior afluência ao confessionário - publicou
um decreto em que proibia os párocos de confessarem "algumas pessoas expressamente
nomeadas, inquiridas por ele como hereges por terem feito o feitiço da peneira, a fim
de encontrarem o dinheiro que lhes roubaram" 5º.
Iniciativa desconsiderada e imediatamente retomada, mas que revelava um sentido
das relações de força entre inquisidores e confessores cujas razões de mérito deveriam ser
examinadas. Não sem reconhecer desde o princípio que a jurisdição de "foro exterior"
da Inquisição tendia a se estender por um território bastante vasto e, inicialmente,
desconhecia limitações. A bula instituidora e os sucessivos esclarecimentos moviam-se
no sentido de eliminar todo privilégio pessoal e toda possibilidade de furtar-se ao po-
der do tribunal da fé; e esse era um aspecto importante, porque ignorava os privilégios
pessoais e os decorrentes de status . Em suma, passava-se de uma relação de tipo pessoal
com o poder a uma relação territorial. Ora, no âmbito da confissão, as coisas eram
ordenadas de modo bem diferente: era o penitente que procurava o confessor para si,
escolhendo-o com base em critérios sutilmente pessoais, sobre os quais a literatura reli-
giosa tentara por muito tempo fazer com que seus conselhos fossem ouvidos. Ministro
de Deus, administrador de uma lei ditada por uma autoridade superior, o confessor
acabara por se tornar uma presença humana decisiva: a ele as pessoas pediam conforto
e conselho: com ele as pessoas desabafavam as agruras da vida cotidiana. Criavam-se
.
assim relacões estáveis vínculos humanos muito fortes. Nos mosteiros femininos, por
'
exemplo, a mudança do confessor podia criar fortes descontentamentos: a crônica
dos conventos encheu-se, então, de tensões criadas pela chegada de confessores novos
e pela ruptura dolorosa das ligações afetivas que tinham sido criadas: "Se uma monja
deseja desabafar-se ou consultar-se, falta-lhe paciência" - assim, em 1591, uma monja

49. Editto Generale del Sant'Uffizio di Firenze, promulgado pelo inquisidor-geral frei Francesco Rambalducci de
Verucchio, em Florença, na tipografia Stella, 1672 (cópia em ACAF, Misc. Sant'Uffizio, b. 12, n. 232).
50. Carta do cardeal de Santa Severina ao inquisidor de Florença, 11 maio 1591 (em Archives Générales du
Royaume, Bruxelas, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, 1, c. 43: sobre esse documento deteve-se também Romeo,
lnquisitori, Esorcisti e Streghe , op. cit. , p. 197). Dom Marchesino foi processado e os autos de seus "exames" foram
enviados a Roma, conforme informação contida numa carta posterior do cardeal de Santa Severina de 29 de
junho (Archives ecclésiastiques, op. cit. , c. 44r).

Inquisidores e C onfessores: Prescrições


266

de Lugano criticava o novo confessor e morria de saudade do antigo 51 • Em geral, os


confessores eram os frades , que ao término das preces quaresmais recebiam os penitentes
de acordo com o próprio sucesso pessoal; e, geralmente, eram sempre frades os confes-
sores ativos nas sedes dos grandes santuários da cristandade. As normas tridentinas,
como veremos melhor mais adiante, tentaram seguir uma direção diferente, com um
fortalecimento da rede territorial das paróquias e com a obrigação de registro oficial
do cumprimento da obrigação de confessar-se e comungar-se uma vez por ano. Era a
mesma direção para a qual se movia a rede territorial da Inquisição: ou melhor, em
ambos os casos o controle da fidelidade exigia a submissão dos súditos/fiéis a sistemas
de controle capazes de organizar um território. Era um direcionamento que se fazia
sentir em toda Europa moderna, nos mais diversos níveis. No mundo católico italiano,
essa orientação tinha de abrir seu caminho através de uma selva de privilégios. O mais
consistente era representado pela bula da cruzada, por meio da qual se concedia a seu
destinatário a faculdade de escolher um confessor para si e de obter dele a absolvição
de todos os pecados, até daqueles reservados à Sé Apostólica: a coisa não foi tolerada
no mundo das ordens religiosas, devido à força eversiva que representava em relação à
autoridade 52 • Mas, apesar das resistências e das intervenções redutivas, a possibilidade
de conceder privilégios pessoais desse tipo permaneceu sempre aberta. Uma história da
normativa penitencial em época posterior ao concílio de Trento ainda não foi elaborada
e provavelmente quando tiver sido revelará percursos não lineares no movimento da
relação individual para a coletiva, da personalidade do direito para sua territorialidade.
Enquanto isso, já é possível reconhecer a força representada pelas ordens religiosas que,
se limitavam em seu interior as soluções e os privilégios individuais, estavam no entanto
bem decididas no exterior a não se deixarem submeter à autoridade de um tribunal
como o da Inquisição. Os privilégios que permitiam a toda Ordem lavar a roupa suja
em casa foram ciosamente protegidos até quando foi possível.

.._ Concluindo, a tomada sobre a confissão pela Inquisição foi devida a uma situ-
ação de emergência. Os inquisidores tinham absoluta necessidade de se apoderar das
informações filtradas no segredo da confissão. Esse conhecimento era inacessível para
eles devido àquele mesmo princípio que servira para excluir a credibilidade do teste-
munho do confessor em favor dos inquiridos. Muitas coisas eram ditas no segredo do
confessionário e seria útil sabê-las para ampliar e tornar mais eficaz o ataque inquisitorial
às más doutrinas e às práticas heréticas: porém, se o sacerdote devia ser considerado
simplesmente o ouvido de Deus, seu testemunho, cuja utilização em prol dos acusados
tinha sido negada, não podia ser ouvido nem mesmo em proveito deles - até por que
a sagrada e terrível lei do segredo opunha-se a isso. É bem verdade que mesmo na tra-
dição medieval tinham sido inventados mecanismos para tornar possível uma coleta

51. Cf. Sandro Bianconi e Brigitte Schwarz, Il Vescovo il Clero il Popolo, Locamo, 1991, pp. 177-178; cf. também p. 31.
52. No capítulo geral dominicano de 1601, ficou estabelecido que a bula não fosse aplicada no mundo das ordens
religiosas, cujos membros "dispositioni suorum praelatorum subiecti sint" (Haec sunt acta capituli gene-ralis Romae in
Omventu Praedicatmum Sanctae Mariae super Mineroam celebrati, Romae, ap,,ul Carolum Vulliettum, 1601, pp. 10-11).

A Confissão
267

sistemática de informações sobre a difusão da heresia por parte dos confessores e um


sucessivo redirecionamento dessas informações à lnquisição 53 . Mas a questão tornou-se
muito mais relevante diante das dimensões assumidas pela dissensão religiosa na Europa
do século XVI - e diante da expansão do "campo" inquisitorial que vimos . Enquanto
durou a batalha, o conhecimento daquilo que era dito em confissão foi indispensável.
Mais tarde, quando o conflito com as doutrinas da Reforma configurou-se em formas
estáticas e não mais ameaçadoras , as coisas mudaram. Muitos indícios servem para
demonstrá-lo. Por volta de meados do século XVII, toda a matéria das funções que o
confessor devia cumprir em relação às matérias inquisitoriais foi elaborada em um
manual de instruções; nele se encontra, entre outras coisas, a distinção cara a Ghislieri
entre a desconfiança do inquisidor e a credulidade do confessor54 . Mas é notável o fato
de que o confessor vê abrir-se ali um campo relativamente amplo de crimes heréticos
dos quais pode absolver sem qualquer necessidade de delegações e de poderes particula-
res55. Mudando os tempos, evidentemente, a cadeia de comando podia até se abrandar.

53. O confessor, segundo O concílio de Tarragona de 1242, devia inquirere de facto haeresis, pôr por escrito o que
lhe era confessado (fideliter corucribant) e depois relatar, com o consenso do penitente; se faltava o consenso,
devia pedir instruções (Henner, Beitriige, op. cit. , p. 238).
54. "lnquisitor reo sibi denunciatominime credere tenetur [... ] Confessarius vera credit poenitenti tam pro se
quam contra se dicenti [...)" (lgnazio Lupi de Bérgamo, Nooa lux in edictum S. lnquisitionis ad Praxim Sacramenti
Poenitentiae .. ., Bergomi, sumptibus Marci Antonii Rubei, 1648, "annotationes generales", N ; "discrimen inter
Reverendiss. lnquisitorem et Confessarium ...").
55. Embora com a advertência de que nem sempre é bom lançar mão desse poder (idem, dedicatória ad lectorem).

Inquisidores e Confessores: Prescrições


X
INQUISIDORES E CONFESSORES:
DESCRICÕES
,

S e era essa a cadeia de comando, uma verificação de fundo de seu funcionamento pode
ser procurada nos autos processuais que dela se originaram. A primeira coisa que se
descobre é que, se na visão do poder os mecanismos pareciam nítidos e automáticos,
na base para aqueles que se sentiam em perigo tudo parecia incerto e problemático. A
confissão tornara-se, ao mesmo tempo, necessária e insuficiente. Era preciso confessar-se,
pois bastava o simples abandono da prática da confissão para tornar quem quer que seja
suspeito de heresia; mas ir confessar-se já não era suficiente. Aliás, revelava,se um passo cada
vez mais arriscado: o confessor tornara-se o "braço espiritual" do inquisidor e contar-lhe os
próprios pecados era expor a si mesmo e aos outros a consequências penais imprevisíveis.
O traçado institucional era complicado e enriquecido, por volta de meados do
século, por novas articulações: o desenvolvimento da organização inquisitorial e os de-
cretos do concílio de Trento contribuíam, de um e de outro lado, para a mudança de
clima. Terminara o tempo das livres curiosidades; discussões e leituras matizavam-se
de perigo e de suspeita. Bastava se confessar? Ou era preciso fazer algo diferente? Na
incerteza, multiplicavam-se as medidas de cautela, entremeando e sobrepondo medidas
penitenciais e práticas judiciárias que extrapolavam o esquema das regras que vinham de
cima. Nos casos concretos que então foram tratados em tribunal, surgem testemunhos
da realidade vivida de sacramentos e inquisições - uma realidade que nenhuma história
abstrata elaborada do ponto de vista das intenções do poder jamais permitiu imaginar.
Um caso particularmente intricado é o do padre romano Lorenzo Davidico,
que em sua carreira de escritor de temas devotos, pregador, e sobretudo de intrigante
frequentador de ambientes cardinalícios, viu-se desempenhando muitos papéis na
comédia: antes de tudo, o de confessor habilitado a acolher e a reconciliar hereges
arrependidos· e em consequência disso, o de chefe de uma rede de informacões
' ' ,
secretas, disposto a fornecê-las à Inquisição; finalmente, o de inquirido ele mesmo,
obrigado a "bater-se com a Inquisição" para defender a própria vida. Lorenzo Davidi-
co recebera de Júlio III o título de "pregador apostólico" e a ele tinha sido conferido
oralmente o poder de absolver in utroque foro 1• Quando foi conduzido a Roma perante

1. Segundo O depoimento de Davidico, ele solicitara a concessão daquele poder por escrito, mas o cardeal Maffei
respondera-lhe: "Não é bom, para não parecer que quereis vos bater com a Inquisição. Quem quer saber o que
270

a inquisição, Davidico ofereceu-se para levar a depor um bom grupo de devotos seus
e utilizá-los como espiões da Inquisição. Eram, pelo que dizia, pessoas praticantes dos
sacramentos e que depositavam nele muita confiança: e assim ele poderia, se requisi-
tado fosse , "exortar esses coros de filhos espirituais de lugar em lugar" e impeli-los a
recolher informações secretas, com as quais, segundo ele, seria possível "fazer chegar
às vossas mãos 200 ou mais" 2• Podia-se contar com os conhecimentos desses seus fi-
lhos espirituais, mesmo por que muitos deles tinham sido hereges e haviam abjurado
secretamente por meio dele. Eles tinham prometido obedecer cegamente a Davidico,
"mais do que o monge ao abade" : assim, graças a esses potenciais "depoentes" podiam
ser descobertos "não só os cúmplices que tinham em Roma, mas também em várias
cidades" 3 • Se no início de seu processo, Lorenzo Davidico declarara orgulhosamente
"que meu costume é confessar meus próprios pecados e não os alheios"\ no decorrer
de seus depoimentos mostrou-se, entretanto, disposto a utilizar as redes de penitentes
para transformá-los em espiões da Inquisição. E, quanto a si mesmo, teve a cautela de
declarar que fizera suas primeiras confidências "por desencargo de sua consciência"
a um confessor cuidadosamente escolhido: o cardeal Rodolfo Pio de Carpi, um "dos
senhores deputados" do Santo Ofício 5 •
Inquirido e espião da Inquisição, confessor de hereges e herege, mestre de devoção
implicado em estratégias policiais dos poderes romanos: a condição de Lorenzo Davidico,
ainda que extremamente singular, é indicativa dos aspectos turvos e intricados que a
realidade daqueles tempos de luta sem quartel podia assumir. Mas o caso dele não foi
isolado. O curso rápido das coisas, no decorrer de uma década, podia transformar os
simpatizantes das novas ideias em testemunhas de acusação e até mesmo em delatores:
moralidade individual, solidariedade e amizades, bem como sacramentos e institui-
ções não eram poupados. A confissão sacramental era vista como um instrumento
entre outros para perseguir os hereges. O napolitano Ranieri Gualano (ou Gualandi),
ex-simpatizante das ideias valdenses, passou para os teatinos napolitanos seus conhe-
cimentos a respeito daqueles ambientes: e os teatinos usaram a confissão para saber
dele e do médico Antonio Capone "tudo o que conheciam a respeito desses hereges
ocultos" - ou seja, como uma espécie de canal para interceptar comunicações. Esse
modo de passar à Inquisição as informações obtidas em confissão, longe de parecer
discutível, foi considerado um título de mérito de Gian Pietro Carafa por parte de
seu biógrafo, que atribuiu apologeticamente aos teatinos e a seu fundador o mérito de
terem posto em funcionamento uma rede de vigilância dos seguidores napolitanos de
Juan de Valdés e de Bernardino Ochino na qual se fazia uso das notícias apreendidas

fazeis em confissão?" (depoimento de 20 de outubro de 1556, em Dario Marcatto, II Processo lnquisitoriale di


Lorenzo Davidico [1555-1560], edição crítica, Firenze, 1992, p. 137).
2. Depoimento de 16 de outubro de 1555, idem, p. 51.
3. Depoimento de 21 de maio de 1556, idem, p. 79.
4. Depoimento de 10 de outubro de 1555, idem, p. 40.
5. Idem.

A Confissão
271

em confissão, com toda a tranquilidade; essa biografia permaneceu inédita, documento


embaraçoso de um período que a memória oficial da Igreja católica preferiu esquecer6 •
Os teatinos foram o ouvido predileto da Inquisição romana também em Veneza,
onde porém sua função de espiões foi regularizada por uma delegação específica da
parte do inquisidor-geral frei Felice Peretti. Em 23 de setembro de 1558, o perfumista
Giovan Giacomo Millani assinou uma longa abjuração deixada nas mãos de seu con-
fessor, o teatino dom Giovan Paolo, que era "subdelegado do reverendo monsenhor
inquisidor de Veneza ... com o poder de receber por escrito a abjuração daqueles que
venham em penitência, tendo tido opiniões heréticas no passado" 7• Alguém devia ter-
-lhe explicado que esse era o caminho para pôr-se a salvo de perseguições futuras . Seus
erros heréticos eram distantes no tempo: remontavam a cerca de quatorze ou quinze
anos antes e consistiam na leitura de "livros luteranos" - os sermões de Bernardino
Ochino, o Pasquino in Estasi , o Beneficio di Cristo , ou seja, a diminuta biblioteca da
Reforma italiana. Giovan Giacomo tinha se "deleitado" muito com essa leitura e lem-
brava em particular de ter acolhido com plena convicção a ideia de que a confissão
era uma invenção dos padres e frades e de ter discutido isso "com muitos jovens".
Histórias distantes e apagadas: aliás, muitas vezes apagadas. Giovan Giacomo já fora
absolvido pela via ordinária, confessando-se e comungando todo ano por ocasião da
Páscoa: como se não bastasse, tinha sido "absolvido da heresia na época dos perdões
e queimado os livros". Mas no clima de caça ao herege daqueles anos , a inquietação
tinha ressurgido e agora Giovan Giacomo desejava apagar definitivamente o passado
"para maior segurança de minha consciência e de minha saúde" . As consciências
andavam inquietas e inseguras mesmo por que não estava claro qual era o tribunal
habilitado a eliminar a culpa da heresia. A insegurança tinha sido administrada pelas
autoridades eclesiásticas na direção de um confessor especial - um teatino - que atu-
ava como subdelegado do inquisidor (por sua vez, delegado da congregação romana)
e que tinha a tarefa de escrever por extenso o conteúdo da confissão em matéria de
culpas de heresia. Não sabemos a partir de quando os teatinos venezianos começaram
a desempenhar essa tarefa; mas estamos, de acordo com todas as evidências, diante da

6. Em sua Vita di Paolo IV, Antonio Caracciolo narra: "O modo[ ... ] foi o seguinte: sabe-se que Raniero Gualardo
e Antonio Capone, médico, praticaram com Valdés e Ochino, e confessavam-se com os nossos em San Paolo, porém
os nossos que estavam desconfiados, fizeram com que lhes contassem tudo o que sabiam sobre aqueles hereges escondi-
dos. Desse modo, os nossos tomaram conhecimento da má semente que eles semeavam e dos conventículos
secretos de homens e mulheres, que descobertos por eles, e referidos por escrito ao Cardeal Teatino em Roma,
esses chefes hereges fugiram todos de Nápoles" (o grifo é meu). O trecho foi mencionado por Paolo Simoncelli,
Evangelismo Italiano del Cinquecento. Questione Religiosa e Nicodemismo Político, Roma, 1979, p. 171, nota 25; sobre
Gualano, "espião dos teatinos", cf. Luigi Amabile, Il Santo Officio dell'Inquisizione in Napoli, op. cit. , vol. I, pp.
139 e 143; sobre suas sucessivas aventuras inquisitoriais, que o levaram, já em idade avançada, a cuidar do
caso de "reconhecida santidade" de Alfonsina Rispoli, cf. C. De Frede, Notizia d'un Valdesiano Pentito con una
Digressione sul Processo d'una Visionaria (Ranieri Gualanti e Alfonsina Rispoli), Napoli, 1990.
7. O documento, conservado em ASV, Sant'Uffizio, b. 14, proc. "Pre Baldassare da Fagnana", encontra-se em vias
de publicação no apêndice de A. Del Col, L'lnquisizione nel Patriarcato e Diocesi di Aquileia (1557-1559), op. cit.
Agradeço a Andrea Del Col por ter-me revelado sua existência e permitido a leitura.

Inquisidores e Confessores: Descrições


272

execução daquele desígnio de Carafa do qual se falava em Roma em 1552. De fato


investido como delegado da Inquisição, dom Giovan Paolo ministrou inúmeras confis-'
sões e teve que redigir outras tantas abjurações que foram parar diretamente nas mãos
da lnquisição 8 • Eram confissões-denúncias; a consciência dos penitentes era libertada
a custo da delação. Quem tinha sido "seduzido" por hereges devia apontar os nomes
dos sedutores: foi assim que a rede se fechou em torno dos que difundiam opiniões
e livros heréticos . Em abril de 1559, um rapaz de dezessete anos , Zuane di Nicolo,
trabalhador na oficina do joalheiro Battista Ferrari , confessou ter adquirido opiniões
heréticas na oficina do joalheiro Giovanni Battista Ferrari: em 13 de maio teve início
o processo contra o joalheiro 9 • Mas a linha que leva ao processo inquisitorial contra
Ferrari origina-se antes , mais precisamente na Páscoa. Demonstra-o um documento
curioso, que acabou nos autos do processo de Ferrari: um relatório de frei Lorenzo
Loredano onde é narrado que , na quaresma de 1559, Zuane tinha ido se confessar
com ele, no convento dominicano de são Zanepolo. Zuane não acreditava no valor da
confissão, "porque - afirmou - Cristo não a ordenou em parte alguma". Mas seu pai
obrigara-o a mudar de ideia. A coisa viera à tona logo que, no início da confissão, o
frade lhe perguntara "se ele acreditava no que acredita a santa Igreja romana" . Então,
obedecendo às ordens da Inquisição, o frade tinha suspendido a confissão e mandado
Zuane ao inquisidor. O inquisidor mandara-o de volta ao confessor com a ordem de
interrogá-lo e redigir uma ata. Frei Lorenzo, por dever de obediência, fez o que lhe
fora ordenado: na presença do pai de Zuane, interrogou-o e registrou suas respostas.
)
Porém, visto que o rapaz parecia pouco convencido e pedia-se a ele que esclarecesse
melhor os pontos em questão, o frade o arguiu asperamente com palavras terríveis e
ameaçadoras (verbis terribilibus et cominatoriis) e encaminhou-o de novo ao inquisidor. O
labirinto confessional de Zuane terminou provisoriamente diante do habitual teatino
Giovan Paolo, diante do qual o rapaz pronunciou uma abjuração formal.
O clima que emerge desses autos é de incerteza, confusão, medo. O período li-
~ túrgico do "perdão" pascoal reverte-se em seu contrário, com o desencadeamento de
denúncias e processos. Um povo cristão que discute e se pergunta a respeito do significado
e do valor da confissão é obrigado a submeter-se a práticas complexas e preocupantes,
das quais depende não mais apenas a libertação da própria consciência, mas a segurança
da vida e da liberdade pessoal.
Entende-se por que, ao lado de delatores, espiões e arrependidos, houve tantos
que procuraram "bater-se" com a Inquisição a golpes de confissão para pôr-se a salvo de
possíveis perseguições. Tomemos um desses casos, o da fidalga lsabella Frattina. Não era
uma figura menor da sociedade, como demonstram os nomes de seus pais: Giovanni
Gioacchino de Passano e Caterina Sauli, um diplomata e a outra herdeira da ilustre
família genovesa. Era casada com o nobre Marco della Frattina, de Portogruaro, Friuli.

8. Encontram-se reproduzidas em apêndice ao livro de De Col, op. cit. , as de Zuane di Nicolo, de abril de 1559,
e Marco da Riva, de 21 de junho de 1559.
9. ASV, Sant'Uffizio , b. 14, proc. "De Ferrari Gio. Battista".

A Co nfissão
273

Em sua casa foram recebidos literatos com fama de heterodoxos, como Alessandro
Cittolini, que também fora escolhido por sua mãe para ser seu preceptor. Cittolini
tinha frequentado em Serravalle Marco Antonio Flaminio, expoente máximo daquela
"seita" odiada por Paulo IV que se reunia em torno do cardeal Pole; e tinha aplicado a
técnica do "teatro da memória" de seu mestre Giulio Camillo Delminio, para difundir
mensagens antirromanas. Portanto, Isabella Frattina fora criada em um ambiente re-
pleto de efervescências heréticas. Vítima das suspeitas que assaltaram principalmente
sua mãe, foi conduzida diante da Inquisição de Veneza em 1568. Mas Isabella não
esperara aquele encontro: aos primeiros sinais de suspeita, "rasgados e queimados" os
livros heréticos, confessara-se com um sacerdote, que lhe tinha "perdoado e absolvido"
o pecado. Não satisfeita, "tendo ouvido que a absolvição de seu confessor talvez não
fosse suficiente" , dirigira-se ao frade que exercia a função de vigário da Inquisição em
Portogruaro - justamente frei Francesco Pincino, o intransigente defensor dos poderes
de seu tribunal - e fora absolvida por ele. Portanto, frei Francesco Pincino, ao mesmo
tempo em que escrevia essa ordem para os demais confessores, absolvia a fidalga Isa-
bella Frattina da culpa de ter lido livros proibidos. Eis a história como foi contada em
seguida pelo advogado de defesa de Isabella:

Tendo ouvido que a absolvição de seu confessor talvez não fosse suficiente, foi procurar o
inquisidor, na presença do qual como a juiz legítimo acusou sua falta e revelou seu pecado, e por ele
foi com salutar penitência absolvida 1°.

A questão não era tão simples como o advogado a apresentava: no entanto,


na época do processo, esse inquisidor tinha morrido e não podia testemunhar. E de
qualquer modo, o que era dito em confissão não podia ser declarado em um tribunal
de foro exterior. O advogado precisou recorrer a indícios da confissão e absolvição
acontecidas: havia três testemunhas que tinham visto lsabella "ajoelhada aos pés do
inquisidor frei Francesco Pincino, na igrejinha de santo Andrea de Portogruaro em
1566"; e havia outras três testemunhas prontas a declarar ter visto lsabella cumprir a
penitência com jejuns; finalmente - e essa prova, por ser "maior, mais concludente
e mais clara", foi reservada pelo advogado como conclusiva - havia três testemunhas
dispostas a jurar que o inquisidor afirmara "que ele tinha absolvido dona lsabella
por ter lido livros proibidos". Este último ponto mostra concretamente o que fora
aquela confissão ao frade inquisidor: uma confissão sui generis, cujo conteúdo podia
ser revelado a terceiros e do qual se deixava até mesmo registro escrito. Essas teste-
munhas, de fato, "declaram ter visto uma carta por ele lo inquisidor] mostrada, onde

10. A arenga do advogado de defesa de lsabella, redigida em 1569, foi publicada em apêndice a um estudo de dom
Luigi De Biasio, editado postumamente aos cuidados de Cristina Moro ("La Difesa di Comelio Frangipane per
Isabella Frattina davanti ai Sant'Uffizio Veneziano", em Memorie Storiche Forogiuliesi, LXXIII, 1993, pp. 149-158
e 159-183; a "Oratione in Difesa de la Signora lsabella Frattina Fatta dai Signor Comelio Frangipane", idem,
p. 164).

Inquisidores e Confessores: Descrições


274

estava escrito o nome de Isabella e de alguns outros , que por esse inquisidor foram
11
absolvidos, e que ele anotara como recordação" •
O caso de Isabella Frattina mostra que o encontro entre Inquisição e confissão
trazia algo de novo para ambos os tribunais: idêntica a culpa, idêntico o ritual, idêntica
até a pessoa - pois que, para maior garantia, escolhia-se como confessor o frade que
também atuava como vigário da Inquisição - as diferenças diziam respeito aos poderes.
O inquisidor agia não como simples confessor, mas como "juiz pontifício e delegado
de Sua Santidade": mesmo recebendo uma confissão sacramental, o frade fazia seu re-
gistro por escrito e revelava seu conteúdo a terceiros. Além disso, do ponto de vista de
quem tinha algo a ser perdoado, a coisa se apresentava com um halo de ambiguidade.
A estratégia seguida por lsabella Frattina foi a do acúmulo de absolvições e, sobretudo,
de testemunhos para lembrança futura . Mas o dela era um caso especial, como se viu:
tratava-se de constituir previamente argumentos defensivos na expectativa de um ataque
inquisitorial que era previsto e previsível.
Em outros casos, de pessoas menos expostas, pode-se facilmente imaginar que a
estratégia escolhida foi a do silêncio. De resto, era o que esperavam as próprias autori-
dades eclesiásticas. Uma admissão precisa nesse sentido encontra-se na já referida carta
de frei Felice Peretti, comissário da Inquisição em Veneza, a frei Sigismondo Botio.
Peretti, após ter descrito as ordens por ele dadas aos confessores, acrescentava que não
se limitara a predispor a rede para captar as denúncias, mas também ordenara a todos
os pregadores que informassem a população a respeito do que devia fazer quando ia
confessar: mas o resultado era que "a maior parte deixa de confessá-los" 12 •
Era possível, portanto, subtrair-se a essa confissão das consequências judiciárias;
e - visto que não era possível deixar de ir se confessar - podia-se ao menos recorrer à
autocensura, escondendo do confessor justamente aquilo que interessava aos inquisidores.
A pergunta que o documento faz - quão realmente eficazes eram aquelas medidas - é
difícil de responder. Naturalmente, o uso agressivo que Carafa, Ghislieri e Peretti teriam
gostado de fazer do confessionário como anexo do tribunal inquisitorial teve que levar em
conta as práticas sociais de longa duração, com relações antigas entre penitentes e confes-
sores aos quais era difícil impor viradas bruscas. Mas esse direito, uma vez reconhecido,
não foi mais desconsiderado. Quanto muito, tratou-se de moderar os pontos extremos
a que chegaram inquisidores exagerados ao exigirem a arregimentação dos confessores.
Houve resistências, não há dúvida. Mesmo em Milão, onde como alternativa à
ameaçada introdução da Inquisição espanhola recorreu-se ao engajamento em massa dos
confessores. Natale Conti, um historiador da época, narra: "Foi ordenado aos confes-
sores que, sob pena de excomunhão, obrigassem os confidentes a revelar se conheciam
algum herege; mas nenhum foi acusado por essa via" 13 •

11. Idem, p. 165.


12. Carta a frei Sigismondo Botio, supracitada, cap. IX, n. 33.
13. Natale Conti, Delle Historie de' suai Tempi, trad. em vernáculo de Giovan Cario Taraceni, Venezia, Damian
Zenaro, 1589, e. 385r.

A Confissão
275

Era, provavelmente, um julgamento apressado: Natale Conti não podia ler os


depoimentos registrados pelos notários da Inquisição milanesa. Tampouco nós podemos
fazê-lo . Mas podemos ter uma ideia mais completa e verdadeira dos efeitos das ordens
do Santo Ofício, ouvindo a narrativa de alguém que foi obrigado por aquelas ordens
a fazer uma denúncia.
Em Siena, o ourives Angelo di Lorenzo, vulgo "Riccio", denunciou em 1569 um
trabalhador de sua oficina, certo Vivaldo, natural de Flandres: não o denunciou em
confissão, mas antes de se confessar. A denúncia foi apresentada em 10 de fevereiro, em
pleno período da quaresma e de confissões. Foi assinada conjuntamente por Riccio e
outro trabalhador de sua oficina, Michele Greco. Contaram ao inquisidor que tinham
ido se confessar e disseram ao confessor conhecerem "alguém que pouco teme a Deus
e ainda não observa as coisas da Igreja"; o confessor não quisera absolvê-los "se não re-
velassem isto ao Santíssimo Ofício" 14 • Uma história linear, se nos basearmos na referida
narrativa: uma perfeita ação executiva do projeto concebido por aquele "santíssimo
Ofício" . Mas as coisas tinham acontecido de modo diferente, como depois contou Riccio
ao tribunal, quando foi chamado a confirmar a denúncia. Vale a pena acompanhar seu
relato: encontram-se nele a descrição dos efeitos do decreto do Santo Ofício nas estratégias
individuais e nos vínculos sociais de um ambiente citadino e de um mundo de artesãos.
Riccio conhecia bem Vivaldo, porque este era pensionista em sua casa. Via-o
comer carne nos dias de abstinência; via que não ia à missa. Eram sinais claros de suas
ideias. Além disso, essas ideias eram discutidas livremente na casa: Vivaldo, conversando
com a mulher do ourives, expunha francamente suas opiniões hostis à missa e à adora-
ção da hóstia consagrada. Mas tudo isso não parece ter criado nenhum problema para
Riccio até o dia em que tomou conhecimento da ordem de denunciar em confissão os
suspeitos de heresia. Tomou conhecimento disso no período das confissões, na qua-
resma; ouviu "diversas pessoas falarem" do assunto. Diziam "que ninguém que tivesse
praticado ou conhecesse algum suspeito de heresia podia ser absolvido" ; diziam coisas
ainda mais preocupantes: que, ao não denunciar o herege ou o suspeito de heresia,
corria-se o risco de sofrer a mesma pena que ele no dia em que a coisa viesse à tona
de outro modo. Riccio não se contentou com o que as pessoas falavam, mas quis se
informar pessoalmente. Dirigiu-se ao convento franciscano da Observância, para falar
com um frade, um sujeito "baixinho e alegre", que confirmou os boatos: "disse-me que,
sendo preso e descoberto o tal Vivaldo, eu incorreria na mesma pena por tê-lo abriga-
do em minha casa". Deduz-se então que o frade, confessor em potencial, obrigara-o a
dizer tudo, inclusive o nome do herege: e isso, talvez, tenha alimentado a investigação
sobre os flamengos residentes em Siena, que já tinha sido iniciada em outras bases 15 •

14. Archivio di Stato di Siena ASS, "Notarile Cosimiano 2777", Atti Giudiziari Rogati da Domenico Sabbatini, Processi
alia Nazion Tedesca.
15. O auto dos "processos à nação alemã" começa com uma carta do cardeal Rebiba de 16 de julho de 1568, que
acompanha a cópia do depoimento de um flamengo preso em Pádua, onde se menciona o nome de outro
flamengo que havia se transferido para Siena (idem, c. n.n.).

Inquisidores e Confessores: Descrições


276

Após essa meia denúncia , Riccio, que pretendia ter certeza do que lhe dizia respeito ,
foi falar ainda com um padre da Catedral de Siena e com um "reatino" (talvez um jesu-
íta?). A resposta era sempre a mesma. E enquanto isso o nome de Vivaldo continuava
provavelmente a passar de boca em boca. A essa altura, Riccio decidiu-se: dirigiu-se à
Inquisição, acompanhado de seu empregado Michele, e apresentou a denúncia. Daí,
finalmente , foi se confessar: e ao frade , que imediatamente "exortou-o" a denunciar
Vivaldo, pôde responder que já o denunciara: o frade , não satisfeito, "por pouco não
lhe pedia provas para ter certeza de poder absolvê-lo" 16 • Assim Vivaldo foi preso e, por
ordem do Santo Ofício de Roma, foi enforcado 17 •
De seu depoimento, veio à tona outro aspecto dessa confissão, reconstituída pela
intervenção inquisitorial. Vivaldo declarou ao inquisidor de Siena que havia se confes-
sado, sim, mas fizera-o para ocultar os aspectos secretos de sua vida, o modo como tinha
se tornado seguidor das ideias calvinistas apesar de continuar mantendo na aparência
comportamentos católicos: "Confessei-me para não dar a perceber que era luterano[ ... ]
e comunguei para mostrar que era bom cristão" 18 • A confissão, enxertada no tronco de
um sistema policial e levada ao tribunal como prova de defesa, mudava de constituição.
Tornava-se exibição ritual, prova de conformidade e, por-tanto, ato de conformismo. E
o que Vivaldo dizia de si mesmo - ter confessado para enganar as autoridades - outros
suspeitaram e disseram de amigos e de vizinhos. De um suspeito herege de Ímola, Leone
de Dozza, dizia-se , por exemplo, que ia à missa "para ser visto" 19 • Ouvir missa - um ato
tão profundamente ligado à cultura italiana - tornara-se então o momento de máxima
cisão entre ser e parecer. Abria-se o caminho para a dúvida e a desconfiança: os atos
que antes indicavam uma profunda devoção, agora podiam significar exatamente o con-
trário. Em uma denúncia contra o senês Fabio Cioni lê-se que ele tinha se confessado
e comungado "sem ter nenhuma fé nem crença no santíssimo sacramento". E o fizera
"não por acreditar na confissão ou mesmo para observar o preceito da santa Igreja, mas
sim para demonstrar ao mundo que era bom cristão, sendo falso herege". Subvertia-se
o valor do sinal do sacramento: uma inesperada prática devota dos sacramentos por
parte de certas pessoas tornava-se sinal de uma escolha herética. Se Fabio Cioni era
julgado suspeito antes de se confessar, depois de fazê-lo revelava-se "falso herege": "é

16. Depoimento de 26 de julho de 1570: "Resolve-me - respondeu Riccio - porque no começo da quaresma,
ouvindo diversas pessoas falarem que ninguém que tivesse praticado ou conhecesse algum suspeito de heresia
podia ser absolvido, e se não o revelasse ao Santo Ofício incorria na mesma pena; e porque eu tinha visto
o referido Vivaldo comer carne no sábado e não ir à missa, coisas que me provocavam escrúpulo, então fui
conversar com um frade de S. Francisco, baixinho e alegre, que me disse que, sendo preso e descoberto o tal
Vivaldo, eu incorreria na mesma pena por tê-lo abrigado em minha casa" (idem, cc. n. n.)
17. Carta do cardeal de Pisa, 17 jun. 1570, idem, c. 25 bis.
18. Depoimento do flamengo Vivaldo, 27 jun. 1570, diante da inquisição de Siena, idem, e. 33v.
19. Denúncia de Elisabetta do Basino de Tossignano, Ímola, 13 mar. 1578 (em Raffaella Rotelli, "11 Tribunale del
Sant' Uffizio a Imola dalla fondazione al 1578", Tese de graduação, or. C. Ginzburg, Università degli Studi
di Bologna, 1973-1974, p. 416). Segundo a testemunha, Leone teria dito abertamente que não ia à missa "de
boa vontade". "Se não fosse para mostrar que vou à missa, não iria."

A Confissão
277

disso - escrevia O denunciante - sinal mui evidente o fato de não ter revelado a seu pai
espiritual as próprias heresias" 2º.
A planta da suspeita crescia vigorosa sobre a ambiguidade de sinal introduzida na
prática dos sacramentos; e encontrava alimento na ruptura dos vínculos sociais produ-
zida por essa alteração da confissão dos pecados . O ourives flamengo Vivaldo, quando
se vira descoberto , pensara numa traição de um amigo e colega de ofício, Alessandro.
Encontrando-o na Piazza del Campo, em Siena, "na porta de San Martino", investira
contra ele com violência: "Quando alguém vai confessar, confessa os próprios pecados
21
e não os alheios" • Era uma ideia da confissão com a qual Bartolomeo de Medina teria
concordado, como vimos. Mas essa ideia, que encontrava apoio oficial na literatura para
os confessores, era completamente superada e subvertida pela intervenção da Inquisição.
De fato , a confissão tornara-se o lugar das delações e das denúncias secretas. Quem se
recusava a prestar-se a isso, pagava pessoalmente. Alessandro não tinha traído o amigo;
aliás, "por não revelar" , não fora absolvido e não pudera comungar. Era uma grande
prova de amizade e naquela noite os dois festejaram a confiança recuperada com uma
ceia na estalagem. Mas tiveram de pagar caro a tal ceia: pouco depois, encontraram-se
ambos diante da Inquisição.

Reconhecer a supremacia dos inquisidores sobre os confessores significava


modificar substancialmente a constituição não escrita que ligava o clero aos fiéis : a
norma do perdão cedia lugar à lei da suspeita e da perseguição. Os efeitos, difíceis
de calcular, foram devastadores. Ainda por volta de meados do século XVIII, entre os
"comparecimentos espontâneos" - que eram tudo menos espontâneos - encontram-
-se registrados casos como o da florentina Caterina Cavalicci que, apesar de instada
repetidamente pelo confessor a denunciar uma mulher que lhe ensinara um sortilégio
amoroso, tinha se recusado por muito tempo: "tanto por medo de ficar presa no S.
Ofício, como também para não fazer mal a quem mo ensinou" 22 • Havia tido uma ajuda
oferecida num momento de necessidade: era natural que não se quisesse pagá-lo com
uma denúncia. Era o apelo extremo a um vínculo elementar de solidariedade. O fato
de que mesmo nesse caso a pressão eclesiástica acabasse levando a melhor é uma prova
de quão irresistível tinha sido a irrupção dos tribunais e dos confessionários no mundo
das práticas tradicionais e dos pensamentos mais secretos.
Não faltaram estratégias de adaptação por parte dos penitentes. As declarações
ocasionalmente registradas durante os processos da Inquisição abrem brechas interes-
santes a esse propósito. Podemos considerar significativo, por exemplo, o conselho
que Lívia Pattina, de Módena, havia recebido de Olímpia Campana (ou Campanina):

20. ASS, "Notarile Cosimiano 2777", e. 64r (dep. de 27 fev. 1568). Sobre a questão, ver agora a ampla pesquisa de
Oscar Oi Simplicio, Peccato, Penitenza, Perdono. Siena 1570-1600, Milano, 1994.
21. Depoimento de Vivaldo, 30 jun. 1570, ASS, "Notarile Cosimiano 2777", e. 47r.
22. ACAF, Misc. S, Ufficio, b. 2-3, f. 478r (ata de 4 de maio de 1736). Em 17 de maio, Cavalicci foi reconvocada
· , · d o Inqms1
pe 1o vtgano · ·d or, reci·rou a abi·uracão
, e recebeu uma penitência leve (rezar a terça parte do Rosário
. - e a comunhão nas quatro festas principais do ano).
uma vez por semana, a conf tssao

Inquisido res e Confesso res: Descrições


278

Quando fosse indagada pelo Inquisidor a respeito dessas coisas, que era necessário, ao fazer 0
juramento, jurar dentro de si mesma não dizer a verdade, dizendo que então não é pecado. Disse-me
também que, quando se vai confessar, não é preciso dizer senão aquilo que queremos que saibam e
que depois é preciso esperar um Jubileu para que então os pecados sejam perdoados 23•

Campanina era perita em feitiços e dizia não ter medo do diabo ; mas esses seus
conselhos, dados além disso em um ano jubilar - 1600 - não eram baseados nas artes
diabólicas , mas nas sugestões de bem intencionados homens do clero. A estratégia é
clara: aproveitar as próprias ocasiões oferecidas pela Igreja para navegar sem riscos entre
os escolhos do sistema. E a abundância de jubileus e de indulgências extraordinárias
fala claro a esse respeito; já nos anos candentes da luta contra a heresia "luterana",
a estratégia dos suspeitos e também de hereges notórios fora a de receber "o perdão
mandado por Sua Santidade" 24 • Nesse sentido, o grande jubileu conclamado por Sixto v
para 1585 assinalou uma reviravolta: retorno descarado aos faustos jubilares que tinham
celebrizado o de Bonifácio VIII em 1300, esse evento pretendeu encerrar entre parêntesis
a época recente do Saque de Roma e da Reforma luterana.
A Roma saqueada e vilipendiada tornou-se a meta de apinhadas peregrinações:
e em todas as cidades ao longo do percurso, as confrarias citadinas ressuscitaram as
) tradições de hospitalidade aos peregrinos. O retorno à tradição encerrava novidades
substanciais: a peregrinação de uma Europa dividida, onde as próprias nações católicas
eram dilaceradas por guerras religiosas, resolveu-se substancialmente numa peregrina-
ção de italianos rumo à única cidade cosmopolita que sobrara na península. Por outro
lado, seguindo e acentuando a tradição jubilar tardo-medieval, tornaram-se acessíveis
a todos as vantagens espirituais da peregrinação: até para os que não arredavam pé de
casa. Numerosas instruções explicaram, diocese por diocese, em que condições podia
ser obtida a eliminação das culpas e das penas prometida aos peregrinos: assim, se Roma
tomou definitivamente o lugar de Jerusalém, em cada cidade houve igrejas equiparadas
às basílicas romanas, do ponto de vista das oportunidades jubilares. E essa foi a opor-
tunidade também para os muitos reingressos tácitos ou pelo menos secretos de quem
cultivara pensamentos heréticos: "o Jubileu torna os pecados reservados não reservados",
observava, com a proteção da autoridade de Gaetano, um solerte barnabita de Pavia:
o qual, publicando sua obra dois anos após o jubileu de Sixto V, propunha que este
fosse estendido indefinidamente no tempo 25 • A interpretação do barnabita mostra como
tinha sido bem compreendida a oferta de Sixto V e tentava-se prolongá-la além da data

23. Depoimento de 13 de novembro de 1600 (ASM, lnquisizione, b. 14, I/2, "Contra Liviam quondam Andreae de
Tortis ... appellatam Liviam Pattinam, et Olimpiam Campanam seu Campaninam", cc. n. n.).
24. Carta de frei Domenico de Ímola ao cardeal Morone, Módena, 26 nov. 1567, publicada por A. Mercati, Il
Sommario dei Processo di Giordano Bruno, com Appendice di Documenti suU'Eresia e l'lnquisizione a Modena nel SecolD
XVl, Cidade do Vaticano, 1942, p. 143.
25. M. R. P. Dom Cesare Bottoni Pavese, C. R. da Congregação de Somascha, Osservationi Soprai Giubilei et in
Particolare sop,ra quello Dato da N. S. Papa Sisto V l'Anno MD.XXCV,. .. em Piacenza, tip. Giovanni Bazachi, 1587,
sob licença da Santíssima Inquisição, p. 178.

A Confissão
279

do jubileu. Desse ponto de vista, típica a questão relativa a um hipotético pecador que,
tendo por malícia calado alguns pecados mortais "reservados" na confissão feita por
ocasião do Jubileu" , pergunta-se agora se pode se dirigir a um confessor qualquer, ou
se deve confessá-los a quem tem a faculdade de absolver casos reservados: por trás do
caso imaginário, reconhece-se facilmente o perfil do herege que se confessou durante
0 jubileu - quem sabe, por conveniência nicodemista - mas calou-se justamente sobre
sua heresia. Com uma acrobacia jurídica, o barnabita demonstra que o jubileu ainda
estende sua sombra protetora até mesmo sobre quem fez uma confissão não válida ou
sacrílega: "quando a confissão também foi falsa" , o pecador poderá obter igualmente
a absolvição "de qualquer confessor admitido pelo Ordinário, ainda que tivesse passa-
do o Jubileu; infelizmente, não se pode estender a concessão aos pecados reservados
cometidos após o Jubileu, mas no fundo o que importa é essa possibilidade de usar o
Jubileu para passar uma esponja nos erros dos turbulentos anos passados. Não faltam
provas concretas e precisas de que se tenha feito tal uso do jubileu de 157 5. Há atestados
de confessores que declaram ter "absolvido [... ] ín foro. conscíentíae pela autoridade do
santíssimo jubileu ultimamente emanado por N . Sr" penitentes culpados ou suspeitos
de heresia 26 •
Após essa primeira experiência, perdeu-se a conta dos jubileus: a estratégia de
quem esperava prazos desse tipo para livrar-se dos pesos mais graves e complicados estava
destinada ao sucesso. Jubileus extraordinários em rápida sucessão marcaram o final do
século XVI 27• E não cessaram no século seguinte. Não só eventos extraordinários - o
fim de uma epidemia de peste, de uma guerra, de uma carestia - mas também aconte-
cimentos políticos normais e bastante comuns ou até ocorrências religiosas particulares
eram motivo suficiente para ensejar o jubileu. Na Itália do século XVIII , chegou-se assim
a sobrepor o tempo excepcional do jubileu ao tempo ordinário da confissão anual e o
jubileu não passou de incentivo ou, como disse um observador toscano, de "atrativo"
para "fazer com que os fiéis ficassem mais predispostos à confissão e à comunhão": e
discutiu-se então se era possível com apenas uma confissão e uma comunhão "granjear o
Jubileu e satisfazer aos preceitos da Confissão anual e da Comunhão pascoal" 28 • A Igreja,
em suma, facilitava por todos os meios o dever da confissão e não mais se preocupava
em afirmar o poder da Inquisição. Mas, antes ainda de se chegar a esses incrementes, o
modelo tridentino de uma igreja controlada por instituições territoriais permanentes -
párocos e inquisidores - demonstrara não ter vida fácil. A força das Ordens religiosas,
antigas e novas, manifestara-se justamente na possibilidade de abrir seus braços aco-
lhedores aos pecadores e aos hereges arrependidos. Os laicos puderam contar, desse

26. MP, S. Uffizio, b. 2, e. 89: "Carta de Francesco Poloni ao Inquisidor de Pisa", de Montecalvoli, 23 jul. 1574,
relativa a Domenico de Treggiaia
27. Cf. H. C. Lea, A History of Auricular Confession, op. cit., vol. III, pp. 232-233.
28. Apologia di alcune riflessioni dei prete Gaspero Bertelli sul dubbio se concorrendo il tempo dei Giubbileo col tempo pasquale,
cioe dalla domenica delle Palme a tutta Domenica in Albis, si possa con una medesima confessione e comunione, fatte in
quel tempo, e acquistare il Giubbileo, e sodisfare ai precetti ... , Firenze, G. Cambiagi, 1776, p. 11 (do mesmo cf. ainda
uma Continovazione dell'Apologia, Firenze, 1779).

Inquisidores e Confessores: Descrições


280

ponto de vista, com uma ampla variedade de ofertas: havia os frades com seus ciclos de
pregações e de confissões; havia os locais de peregrinação - Roma , Loreto, Santiago e
muitos outros - onde os confessionários funcionavam sem parar e os confessores eram
munidos de poderes discricionários; havia as faculdades dos núncios, que garantiam a
quem tinha dívidas com a Igreja a possibilidade de reingresso sem muitos obstáculos.
Sem falar da pregação itinerante dos missionários, que traziam consigo - como veremos
mais adiante - privilégios e amplíssimos poderes no âmbito da confissão.

Porém, antes que tais estratégias de adaptação pudessem se desenvolver, contando


com a complacência de uma Igreja que não tinha mais um movimento herético para
combater, o campo foi dominado pelo uso inquisitorial da confissão. Foi assim que o
sacramento da penitência, de momento de reconciliação e de eliminação das culpas,
veio a se tornar instrumento de divisões novas e mais profundas. Mas tudo girava em
) torno da prática efetiva da confissão: a obrigação anual do sacramento, reforçado e
tornado efetivo pelo concílio de Trento, era o eixo sobre o qual girava toda a máquina.

A Co nfissão
XI
A CONFISSÃO NO
CONCÍLIO DE TRENTO

Q
uem tinha derrotado a heresia na Itália, a Inquisição ou a confissão? De acordo com
o assim chamado Catechismo Tridentino, não havia dúvidas: a cidadela que protegera
a Igreja contra os assaltos da heresia tinha sido a confissão 1• Esse julgamento, redigido
logo depois do Concílio de Trento, encontra-se em um texto encomendado pelo concílio
e lançado sob a égide do concílio, mas elaborado e autorizado pelo papado: e isso deve
ser levado em consideração ao se avaliar julgamentos do gênero. Evidentemente, se a
confissão desenvolvera seu poder de barrar a heresia, não tinha sido por uma espécie de
efeito automático da autoridade dos bispos e de outros prelados reunidos em Trento.
Por outro lado, as ações de autoridade sobre o corpo da confissão - as do concílio e as
romanas - tinham encontrado sua razão de ser na vitalidade real daquilo sobre o que
agiam. Se é necessário levar em conta os decretos do Concílio, é necessário mais ainda
lê-los no pano de fundo do que se tornara a confissão na vida da sociedade cristã naquela
época. Portanto, é necessário estender o olhar ao menos para as linhas principais das
transformações sofridas naqueles anos pela confissão nas propostas e nas práticas cor-
rentes. De qualquer modo, o Concílio de Trento propicia uma boa oportunidade para
o exame dessas transformações e de seus processos mais gerais e pode ser utilizado como
uma espécie de observatório avançado.
Deve-se partir de uma constatação elementar: o século do renascimento da In-
quisição é também o do renascimento - ou do primeiro verdadeiro nascimento - da
confissão auricular de massa.
Não é exagero falar em um primeiro verdadeiro nascimento da confissão auricular
como experiência coletiva. É verdade que já em 1215 o Concílio lateranense IV tinha
estabelecido, com o cânone Omnes utriusque Sexus, a obrigação da confissão anual. Mas
não bastava um decreto conciliar para mudar a vida de toda uma sociedade: para que
a prática efetiva se modificasse, era preciso algo bem mais determinante da expressão
de uma vontade ainda que poderosa nesse sentido. Essa vontade de controle regular
da prática dos leigos viera à tona por ocasião de um violento confronto com a heresia:
um paralelismo semelhante entre o fortalecimento da Inquisição e o da confissão é
evidente no século XVI. E ao retornar sobre uma norma como a que sancionava a obri-

1. Catechismus ex Decreto Concilii Tridentini ad Parochos, Roma, Manutius, 1566, e. 172.


282

gação para todos de se confessar pelo menos uma vez ao ano e de comungar pelo menos
na Páscoa, foi preciso enfrentar as resistências e as dificuldades de uma estrutura que
se estabelecera sobre certos equilíbrios e encontrava dificuldade de modificá-los. Nos
anos em que o Concílio de Trento tornou a propor a questão, estava-se no auge de uma
discussão aberta e extremamente incerta sobre a prática sacramental - uma discussão
muito mais complexa do que se imaginaria, com o confronto ordenado entre batalhões
de ortodoxos e patrulhas de hereges, bem cerrados em suas fileiras .
Na primeira metade do século XVI , em um caderno de recordações, um patrício
veneziano da família Contarini anotou durante alguns anos , juntamente com a con-
tabilidade da casa, também a contabilidade da alma: ano após ano, de 1506 a 1530,
encontra-se o registro de onde e quando fora feita a confissão anual e a comunhão,
segundo um esquema repetitivo do tipo: "1506, no dia 15 de março confissão na Carità
com m . Seraphin, no sábado de ramos , comunhão no dia 20 de março" 2• Anotações
do gênero não são raras; mesmo nas visitas pastorais entre o século XV e a primeira
metade do XVI, a prática da confissão e comunhão anual é registrada como um hábito
coletivo passavelmente respeitado. Portanto, não pareceria que o concílio de Trento
devesse ter muita dificuldade de impor o respeito a uma norma desse tipo. E contudo,
a um exame mais atento, surgem algumas diferenças entre o que as pessoas faziam
antes do concílio e o que lhes foi proposto - ou imposto - fazer em seguida. No pla-
no dos comportamentos, a primeira convicção a entrar em crise foi a de que bastasse
confessar-se e comungar uma vez por ano. Inúmeras vozes levantaram-se para propor
uma prática intensificada da comunhão ou da confissão: místicos como Bonsignore
Cacciaguerra, homens inquietos entre ortodoxia e heresia, como Tullio Crispoldi, pro-
puseram a prática da comunhão frequente , para grande escândalo dos tradicionalistas;
e nem mesmo Inácio de Loyola ficou livre de suspeitas quando reconheceu a utilidade
da confissão frequente. A proposta da comunhão frequente associou então místicos e
mestres de vida espiritual de todo tipo: sob essa bandeira acharam-se unidos visioná-
rios, profetas e os que buscavam receitas fáceis de santidade e perfeição. O misticismo
beneditino de um Ilarione de Gênova viu-se ao lado do agostinismo severo de Tullio
Crispoldi, defensor de duras teses predestinacionistas 3 . Não é fácil ordenar a confusa
série de vozes que se levantaram sobre esses temas na Itália do início do século XVI. Daí
se deduz, pelo menos, que a norma antiga não era mais suficiente para quem estava à
procura de um novo ordenamento da vida religiosa. E contudo, não se deve esquecer
que o Concílio de Trento não tomou a si a tarefa de entrar no mérito da legitimidade
dessa ou daquela devoção: do ponto de vista das autoridades eclesiásticas, o problema
era definir a norma geral e cuidar de sua observância. Ora, pelo caderno de notas do

2. Ricordi di Casa Contarini, ms lt, VII. 1268 (7511) da Biblioteca Nazionale Marciana; o esquema se complica nos
últimos três anos, nos quais são registradas numerosas confissões e comunhões.
3. Falta um levantamento dessa literatura. Veja-se, a título de exemplo, a produção literária de Bonsignore Cac-
ciaguerra, estudada por Romeo De Maio (Bonsignore Cacciaguerra; un Místico Senese nella Napoli del Cinquecento,
Milano/Napoli, 1965).

A Confissão
283

patrício veneziano, sabe-se que o confessor era escolhido a cada ano , de acordo com as
simpatias por um ou outro convento. E a comunhão, de todo modo, acontecia numa
igreja diferente daquela onde fora feita a confissão. Uma liberdade de escolha desse
tipo não foi mais permitida após o concílio: sobretudo, a assembleia de bispos reunida
em Trento não teve nenhuma dúvida quanto ao fato de que a confissão e a comunhão
tivessem que se tornar um dever rigorosamente controlado pelos párocos. Preocupações
"pastorais", de orientação das almas rumo à salvação, e preocupações de luta ferrenha
contra as rachaduras profundas que , após a Reforma, ameaçavam o edifício eclesiástico,
misturaram-se para tornar mais rígida a obrigação da confissão anual.
Como em muitos outros aspectos, também no caso da confissão a obra do
concílio foi uma obra de "conservação" , segundo a definição de Jedin, no sentido de
que conservou "quase todas as instituições jurídicas que tinham vindo à luz na Idade
Média"4. Essa obra de conservação, porém, teve efeitos profundos na reorganização
do corpo eclesiástico e na disciplina dos leigos. As medidas mais importantes, desse
ponto de vista, foram a rigorosa defesa do caráter sacramental da confissão privada e
a reafirmação do dever (sancionado por Inocêncio III) da confissão e comunhão anual
para todos os batizados. Ambas as medidas tiveram consequências importantes no re-
ordenamento das relações de poder entre o clero e a sociedade: foi sobre essa base que
a relação entre confessor e penitente tornou-se um canal obrigatório e fundamental
para qualquer comunicação. Uma vez colocadas essas premissas, era inevitável que a
Inquisição tentasse passar das esporádicas ações de rapina a uma consistente apropriação
desse meio de poder tão capilar e eficaz.
De resto, a confissão e a Inquisição possuíam ligações antigas. No que diz respeito
às raízes, o pecado e o poder estavam ligados reciprocamente por um vínculo estreito,
na tradicão
, intelectual da cristandade medieval: para uma humanidade pecadora, ha-
via necessidade de um poder instituído por Deus, capaz de golpear, punir e refrear 5 •
O sistema das penas tinha um valor reparador e regulava a inclusão e a exclusão da
comunidade dos cristãos. O surgimento do instituto eclesiástico da confissão privada
(assim como o desenvolvimento do processo inquisitorial) foi uma espécie de enxerto,
um ramo inicialmente menor, no tronco de um sistema que concebia o pecado como
um crime, uma ruptura do vínculo com a comunidade 6 •

4. H. Jedin, Riforma Cattolica o Controriforma? (ed. or. Katholische Reformation oder Gegenre{ormation?, 1945), trad.
lt. Morcelliana, 1957, p. 74.
5. Wolfgang Sturmer, "Peccatum" und "Potestas". Der Sündenfall und die Entstehung der herrscherlichen Gewalt im
mittelalterlichen Staatsdenken, Sigmarigen, 1987.
6. A literatura historiográfica sobre a penitência e a confissão é extremamente vasta. Sobre as origens da penitência
privada é útil ainda R. C. Mortimer, The Origins of Pri11ate Penance in the Western Church, Oxford, 1939, junto
com O mais recente C . Vogel, Le pécheur et la pénitence au mcryen-âge, Paris, 1969; também Bernard Poschmann,
Penance and the Anointing of the Sick (Toe Herder History of Digma) tradução e organização de T. Courtney,
Freiburg/London, 1964. Para as origens do processo inquisitorial, W. Trusen ("Der lnquisitionsprozess. Seine
historischen Grundlagen und frühen Formen", em Zeitschrift der Sa11igny-Stiftung für Rechtsgeschichte, a. 105, Ka-
nonistische Abt., LXXIV, 1988, pp. 168-230) propôs recentemente uma datação mais elevada que as tradicionais

A Confissão no Concilio de Trento


284

Quanto à reviravolta ocorrida no século XVI, deve-se provavelmente a um mestre


da tradição teológica mais oficial e mais conservadora, o dominicano espanhol Melchor
Cano, a observação mais penetrante. Em uma sua erudita e clara relectio de poenitentiae
sacramento realizada em Salamanca, Cano acusou Lutero e Erasmo de terem interpre-
tado mal o significado do termo "penitência"; eles o tinham entendido não como
dor e pena em virtude dos erros cometidos, mas como "mudança de mente" , início
de uma "vida nova" 7• Desse modo , a "conversão" havia começado a significar não um
retorno periódico ao bem abandonado, mas uma reviravolta drástica, definitiva, em
direção de uma nova vida 8 • Disso, segundo Cano, tinham derivado todos os erros dos
"hereges" luteranos. A suspeita que circundava nos ambientes católicos a "liberdade do
cristão" proposta por Lutero nascia do fazer de cada erva um feixe , confundindo antigas
heresias da liberdade do espírito e da impecabilidade com a proposta do reformador
alemão. Mas a observação de Cano toca um ponto significativo, o que tinha atingido
e convencido muitos, em toda a Europa, a se tornarem seguidores de Lutero: a possi-
bilidade de virar a página, de abandonar a tormentosa, infinita azáfama da contagem
dos pecados cometidos e das respectivas reparações e satisfações a serem oferecidas,
para iniciar uma "vida nova" , aliviada desse intolerável fardo . A confissão no período
tardo-medieval unia ao mesmo tempo elementos de autoridade e de controle social e
uma oferta de consolação 9 ; a proposta de Lutero varria os elementos de controle social e
deixava subsistir apenas o aspecto consolador da confissão. O convite de Lutero a fazer
um feixe de todas as práticas tradicionais ligadas à purgação e à satisfação dos pecados
e a eliminar o Purgatório da geografia do além para repousar na certeza da justificação
pela fé tinha um significado de consolação e pacificação: podia, portanto, fazer quem
o seguia ter esperança de um início de uma existência diferente, liberada daquele medo
do pecado e da morte que a literatura eclesiástica tradicional semeava a mancheias 10 •

e colocou-o no interior da relação comunitária como gerado pela necessidade de livrar-se de uma condição de
má fama. Mas o ensaio mais penetrante, que renovou os estudos sobre a questão da penitência na época da
Reforma, é o de John Bossy, "The Social History of Confession in the Age of the Reformation" , em Transactions
of the Royal Historical Society, s. 5, XXV, 1975, pp. 21-38.
7. Melchioris Cani Opera, Patavii, typis Seminarii, 1734, p. 496.
8. Sobre esse ponto, no que se refere à teologia dos reformadores, concorda o autor de uma recente síntese sobre
a história da penitência: Karl-Joseph Klãr, Das kirchliche Bussinstitut von den An/iingen bis zum Konzil von Trient,
Frankfurt am Main/Berna/New York/Paris, 1990, pp. 200-201 (que remete a S. Hausammann, Busse aLs
Umkehr und Emeuerung von Mensch und GeselLschaft. Eine theologiegeschichtliche Studie zu einer Theologie der Busse,
Zürich, 1975).
9. "Sacramental Confession Provided a Comprehensive and Organised System of Social Control", em Thomas
Tender, Sin and Confession on the Eve of the Reformation, Princeton, 1977, p. 345.
10. O resumo mais abrangente dessa literatura foi propiciado por Jean Delumeau (Le péché et la peur, op. cit.)
que, graças à gazua da "mentalidade coletiva", interpretou as imagens horripilantes difundidas pela literatura
eclesiástica como um espelho da consciência comum. A função aterrorizante da cultura da penitência foi ate-
nuada nos estudos seguintes de Delumeau (Rassurer et protéger. Le sentiment de securité dans l'Occident d'autrefois,
Paris, 1989; Vaveu et le pardon. Les difficultés de la confession Xlll-XVIII' siecle, Paris, 1990) que, por sua vez,
colocaram em primeiro plano a função tranquilizante e reconfortante da confissão. Já Steven E. Ozment (The

A Confissão

4
285

O novo modelo de crente foi oferecido em sua forma heroica por aqueles condenados
à morte por motivo de sua fé que subiram as escadas do patíbulo recitando o salmo
Miserere mei Deus , talvez na forma vernácula e sem mediações eclesiásticas 11 •
Se tinha sido essa a proposta e se os seguidores da Reforma permaneceram com
os olhos fitos nesse modelo consolador e libertador, a realidade das realizações institu-
cionais foi diferente. Existia um problema de controle da moralidade pública ao qual
nenhum poder era indiferente. De resto, a interpretação luterana defendeu a importância
da confissão pública para as culpas que prejudicavam a comunidade, como o assassínio, ,,
o furto , o adultério, o falso testemunho , deixando ao segredo da relação íntima com
Deus o arrependimento pelos pecados do coração 12 • E este do pecado como quebra de
uma disciplina social era um dos aspectos fundamentais - se não o mais importante -
da tradição cristã da confissão dos pecados. Embora a prática tardo-medieval tivesse
acentuado o aspecto da confissão privada, restava no pano de fundo o problema da
disciplina da sociedade: os êxitos que a questão teve na moralidade calvinista e no uso
do consistório apoiavam-se desse ponto de vista em bases sólidas 13 •
Alguns sublinharam-lhe os aspectos de tribunal duro e indiscreto: para William
Tyndale, a confissão auricular pesava nas consciências como um carrasco ameaçador
e cruel; e também para Thomas Moore, a ideia de contar as próprias culpas a certos
confessores era muito pouco agradável 14 • Mas não demorou muito, ao se definir a nova
relação entre obediência religiosa e fidelidade política, para que a ligação entre confessores
e penitentes parecesse cada vez mais atraente ou preocupante devido às possibilidades
que oferecia para usos de propaganda e de poder. Nas regiões da Europa onde a estru-
tura eclesiástica e o poder romano tinham sido subvertidos, os confessores foram vistos
como representantes de uma força hostil que podiam fazer propaganda contra o poder
legítimo. A ligação especial entre confessores e mulheres foi vista como um instrumento
subterrâneo de domínio sobre as famílias: os confessores que na Quaresma perguntavam
às mulheres se tinham dormido com seus maridos foram acusados de impelir os homens
ao adultério 15 • Porém, podia-se temer algo bem pior que essas conversas secretas a temer.
Na Inglaterra, onde Henrique VIII manteve a confissão auricular, os reformadores viram

Reformation in the Cities. The Appeal of Protestantism to Sixteenth-Century Germany and Switzerland, New Haven,
197 5) defende a tese de que a Reforma de Lutero oferecia uma resposta à ânsia gerada pelo sistema da confissão
tardo-medieval.
11. Sobre o uso do salmo na época de Maria, a Católica, cf. Lydia Whitehead, "A Poena et Culpa Penitence, Confi-
dence and the Miserere in Foxe's 'Actes and Monuments" , em Renaissance Studies, IV, 1990, n. 3, pp. 287-299.
12. Cf. Bossy, "The Social History of the Confession in the Age of the Reformation", op. cit. , pp. 26-27.
13. Cf. para algumas sondagens nesse sentido a coletânea de ensaios organizada por Raymond A. Mentzer, Sin
and The Calvinists. Morals Contrai and the Consistory in the Reformed Tradiction, Kirksville, 1994 (vol. 32, Sixteenth
Century Essays and Studies).
14. Retomo as citações de Tyndale (The Obedience of a Christian Man) e de Thomas Moore (Dialogue Concerning
Heresies) da obra de Peter Marshall, The Catholic Priesthood and the English Reformation, Oxford, 1994, pp. 9 e ss.
15. A acusação, de Jacob Strauss, é citada por S. Ozment, The Reformation in the Cities, op. cit., p. 53. Conselhos
do gênero dados no confessionário figuraram entre os itens de acusação contra um padre inglês em 1543: cf.
Marshall, The Catholic Priesthood and the English Reformation, op. cit., p. 25.

A Co nfissão n o Concilio de Tremo


286

na confissão secreta a ameaça de conjurações ou pelo menos de um uso do poder ecle-


siástico sobre as consciências em sentido contrário aos deveres de fidelidade política: a
confissão foi definida "the privy chamber of treason" 16 • Aquilo que a heresia representava
no mundo católico, aqui se configurava nos termos exclusivamente políticos da traicão
' .
O poder eclesiástico sobre as consciências aparecia como uma ameaça à construção de
um poder político sólido e firme : por isso, temia-se não tanto o que os confessores es-
cutavam, mas o que podiam dizer em segredo. Por outro lado, esse canal de propaganda
e de educação coletiva atraía por aquilo que se podia introduzir nele: daí, a longa série
de injunções, recomendações, ordens dirigidas aos confessores.
Era possível a propósito contar com um campo bem vasto de experiências anti-
gas e novas: aquelas acumuladas na relação com as minorias religiosas na Europa e as
que foram estabelecidas nos novos mundos abertos pelas navegações oceânicas. Não é
certamente por acaso que as primeiras notícias de livros paroquiais destinados ao le-
vantamento dos que não tinham confessado nem comungado uma vez por ano estejam
relacionadas na Espanha do século XV com o problema dos mouros e dos judeus 17 • Se
num primeiro momento uma ideia entusiástica e profética levou a batizar em massa
hordas de novos cristãos, logo em seguida foi a confissão que tomou o lugar do batismo
como verdadeira porta de acesso do cristianismo. Livros e sermões prepararam para o
conhecimento dos mandamentos cristãos e dos preceitos que deviam ser obedecidos: e
somente um período de aprendizado sobre tais assuntos abriu a porta aos catecúmenos.
Como as populações dos selvagens, tão bons por natureza quanto infantis, assim as
massas dos "infiéis" e as dos analfabetos na Europa cristã apareceram necessitados à
"conversão": não através do batismo, mas através de uma catequese destinada a oferecer
um conhecimento adequado dos deveres do cristão, no plano moral e civil.
A confissão, portanto, foi um instrumento de formação e de informação. Esperava-
-se de sua prática frequente e difusa que os fiéis se conformassem aos desejos das autorida-
des. Os que mais solícitamente moveram-se nessa direção foram os príncipes e soberanos
rompidos com Roma: após a virada estabelecida por Henrique VIII, por exemplo, foi
dada uma ordem aos curas das dioceses de York para que impelissem os fiéis durante a
confissão "to conform themselves in all points" aos desejos do soberano 18 • No mundo
católico, não demorou a se ter consciência do valor político desse poder sobre as cons-
ciências garantido pela confissão: a literatura sobre a razão de estado devia fazer disso
um lugar-comum. Mas, no entanto, o problema que surgiu ameaçadoramente desde o
início da Reforma foi o de como conter a dissidência religiosa e com que instrumentos.

16. Idem, p. 28.


17. Em Calahorra, por exemplo, no início do século XV, as constituições diocesanas estabeleciam para os párocos a obrigação
de manter um registro dos que haviam confessado e, para os fiéis, a de fazer pelo menos duas confisroes ao ano, na época
do Advento e da Quaresma (Ernesto García Fernandez, "Catecismos y Catéquesis Cristiana en las Comunidades... ",
em Religiosidad 'Y Sociedad en el Pais Vasco (s. XIV-XVI), org. Ernesto García Fernandez, Bilbao, 1994, p. 45). Na Itália dos
séculos XIV-XV, ao contrário, encontram-se registros de batismo, mas não de con~o e comunhão (cf. HubertJedin,
"Le Origini dei Registri Parrocchiali e il Concilio di Trento", em ll Concilio di Trento, II, 4, out. 1943, pp. 323-336).
18. Cf. Marshall, The Catholic Priesthood and the English Refonnation, op. cit., p. 28.

A Confissão
287

O Concílio de Trento abordou a matéria da confissão sob dois aspectos: o da


confissão como consolação das almas aflitas pelo peso das culpas e o da confissão como
exercício de um poder disciplinar sobre os indivíduos cristãos.
De resto , quando se fala do Concílio de Trento, fala-se de um evento que durou
bastante tempo, tanto que Sarpi o chamou justamente "Ilíada de nosso século" . Por
isso, deve-se em primeiro lugar datar e distinguir os tempos. E em seguida deve-se tentar
compreender não só a seleção feita em Trento entre os modos correntes de entender e
praticar os sacramentos, mas também e principalmente que seleção foi feita na realidade
entre as indicações do Concílio - trata-se, enfim, de passar à assim chamada história
da aplicação do Concílio.
No que se refere aos tempos , deve-se ter presente que a matéria da penitência,
antes de ser definida na sessão XIV, tinha sido tratada em outro momento da história
do concílio: precisamente, no célebre decreto de iustificatione , aprovado na sessão VI ,
de 13 de janeiro de 1547. E nele encontra-se a proposta da penitência como secunda
post naufragium tabula (cap. XIV): a questão é examinada aqui com olho no cristão que
não conseguiu continuar perseverante, não vigiou cum timore ac tremore (cap. XIII) e que
agora encontra-se exposto à ameaça do desespero. Sabe-se que o texto desse decreto de
iustificatione foi motivo de tensões muito fortes entre os que desejavam assinalar uma
nítida separação em relação ao mundo da Reforma e os que , ao contrário, tinham
recebido a ideia da justificação por solo fide . A ausência do cardeal Pole nessa sessão
solene foi entendida como uma tomada de distância do texto do decreto e devia
figurar entre as provas contra ele naquele famoso processo que talvez um dia seja pos-
sível ler. Naturalmente, depois que o concílio decidiu proceder apoiando definições
doutrinárias e decretos de reformatione e depois de ter sido defendida nesses termos a
questão doutrinária decisiva da justificação, as coisas não foram mais as mesmas. E a
prova disso encontra-se justamente na matéria da confissão: no decreto de 1547, ela
é vista com os olhos do cristão que foi batizado e que tem fé , mas que caiu e vai em
busca de uma "segunda tábua" para se agarrar. Por isso, fala-se de penitência como de
uma oferta consoladora: e a penitência compreende o arrependimento e o propósito
de confessar-se, se não a efetiva confissão. Era preciso defender a existência autônoma
de um sacramento da penitência que não coincidia com o batismo, única e definitiva
remissão das culpas segundo a proposta da Reforma. E nesse terreno mover-se não era
fácil. O beneditino Gregório de Bornate escrevera e publicara, poucos anos antes do
concílio, um texto que apresentava a penitência como um batismo renovado: um misti-
cismo da redenção e uma religiosidade toda perpassada pelo problema da justificação,
como a que se respirava na Itália daquela época, tinham absorvido muito da proposta
luterana e criado um clima de incerteza doutrinária 19 • Em relação a esse contexto, o
decreto de 1547 fixou limites doutrinários precisos, insistindo justamente na noção

19. Adversus Ca!umniantem ad Sacramentalem Confessionem, Dfoino lure non Teneri Adu!tum Christico!am G[regorii]
Bomati Monachi Casinensis Opusculum, Venetiis, typ. Thomam Ballarinum de Temengo Vercellensem, 1535
(cópia junto a BAV, Stamp. Barb. V. XIV. 28). É dedicado a Gaspare Contarini, recém-eleito cardeal.

A Confissão no Concílio de Trento


288

da penitência para os pecados cometidos após o batismo como realidade muito dife-
rente (multo aliam) da penitência do batismo, como "segunda tábua" a ser diferenciada
da primeira. Mas desse contexto, o decreto tridentino mantinha a proeminência do
problema da justificação, da penitência como disposição subjetiva do homem cristão
decidido a começar uma nova vida ("inchoare novam vitam") , que não se esgotava na
prática do sacramento.
Em 1551, a questão é vista de um ponto de observação bem diferente: trata-se
então de questões de poder, de uma matéria que é o próprio cerne do poder de gover-
no na sociedade cristã. Está em jogo a christiani populi disciplina 20 • Como havia escrito
Johann Eck em um texto familiar aos padres tridentinos , a confissão era o nervo da
disciplina cristã 21 • Mas no texto de Eck, "disciplina" tinha um matiz de significado
diferente em relação à "disciplina" de que fala o decreto tridentino: era a ideia clássica
da disciplina como governo de si, que Eck retomava da cultura humanista e arcaizante
de que se nutrira e que misturava sem dificuldade aos textos de teologia. Tratava-se,
enfim, de autodisciplina, ligada ao conceito de consciência - esse também elaborado
com base em fontes clássicas por Eck, boa testemunha da cultura hegemônica no início
do século XVI 22 •
A "disciplina" em que os padres tridentinos pensavam em 1551 era algo diferente:
os textos que discutiram e aprovaram tinham em mira o modo como o povo cristão
podia ser disciplinado, no sentido de posto sob controle. Na distância que separa esses
dois empregos do mesmo termo, é possível medir o impacto que a proposta luterana teve
e a reação que suscitou em um corpo eclesiástico que sentiu seu poder em perigo. As
duas vertentes abertas pela polêmica de Lutero e de seus seguidores foram justamente
essas: de um lado, o abandono de um conceito de penitência ritualizado e contabiliza-
do para provocar a expansão do sentimento de culpa sobre a vida inteira e exigir uma
"conversão" como reorientação radical da vida; do outro, o ataque à autoridade papal
e eclesiástica. Em um texto cuja eficácia é atestada pelo número de edições e sobretudo
pela circulação nas mãos de leitores registrada nos processos inquisitoriais, a Dottrina

20. Sessio XIV. De Poenitentia, cap. VII: De Casuum Reseroatione (Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Bologna, 1973,
p. 708).
21. "Cum confessio sit nervus disciplinae christianae .. ." (do memorial a Adriano VI, publicado por Georg Pfeilschif-
ter, Acta Reformationis Catholicae Ecclesiam Germaniae Concementia Saeculi XVI, I, Regensburg, 1959, p. 122. Reto-
mo a citação de André Duval, Des sacrements au Concile de Trente, Paris, 1985, p. 153). Sobre o mesmo conceito,
Eck insistiu no assunto no texto por ele publicado, que retomou a Assertio surgida sob o nome de Henrique VIII
e foi o mais amplo e significativo da parte romana: "[ ... ) Ut revera confessio ilia quae hodie fit in ecclesia
catholica, sit nervus religionis nostrae, et disciplinae christianae" (De Poenitentia et Confessione Secreta Semper
in Ecclesia Dei Observata contra Ludàerum Libri II, Romae, tip. Iacobum Mazochium, 1523, c. P Ir; a Biblioteca
Arquiepiscopal de Bolonha conserva a cópia com dedicatória de Eck a John Fischer). ·
22 . Uma história do valor semântico do conceito de disciplina revelou suas ascendências monásticas: mas seus
ecos estoicos não devem ser negligenciados. Já no' que se refere ao conceito de "consciência", o emaranhado de
valores estoicos e valores cristãos é um dado acertado em geral, mas falta uma pesquisa adequada à época de
que nos ocupamos. Cf. por enquanto o verbete "Consciência", no Dizionario di Filosofia de Nicola Abbagnano,
Torino, 1964, pp. 178-187.

A Confissão I
289

Verissima de Urbano Regio , ª oposição das duas doutrinas é organizada de acordo com
0 seguinte critério: ª "doutrina nova" a propósito da confissão é a da obrigacão da con-
fissão anual est abelecida pelo cânone Omnes utriusque Sexus , ao qual é associada a reserva
dos casos; a doutrina velha - ou seja, a autêntica, a evangélica - é a que consiste em
confessar a própria injustiça e em correr de volta em prantos aos pés de Jesus Cristo 23 •
A primeira gera escrúpulos devido à obrigação de lembrar todos os pecados; além disso,
a distribuição dos poderes e o sistema das leis "são feitos para atar as consciências ...
São invenções que arruínam as consciências de muitos" 24.
Portanto, o quadro dos problemas que se colocavam no grande arquipélago da
confissão podia ser sintetizado em dois itens principais: 1) um conflito entre promessa
de liberdade e exercício de governo eclesiástico; 2) um desafio a quem respondia melhor
à necessidade, reconhecida por todos , de consolar as consciências aflitas, livrá-las dos
escrúpulos e da ameaça do desespero devido ao peso dos pecados. Também não falta-
vam os que , ante o avanço de uma concepção completamente privada e individualista
da confissão, tentavam opor ainda um modelo comunitário de remissão recíproca e
fraterna das culpas 25 •
É no quadro de tais contrastes que se enquadra a resposta tridentina. E não
há dúvida sobre o fato de que - se no debate sobre a justificação o problema de ofe-
recer uma resposta às consciências aflitas foi proeminente - nas discussões sobre o
sacramento da penitência veio à tona sobretudo a questão do poder. O desafio lute-
rano aqui era particularmente difícil. Da parte deles, oferecia-se conceder liberdade
aos cristãos, não atar suas consciências, devolver aos cristãos aquela liberdade dos
filhos de Deus como liberdade interior que Lutero prometera com o mais célebre e
mais popular de seus escritos. Da parte católica, fazia-se valer a necessidade de guia
e de ajuda dos pecadores penitentes. Podemos perceber esse gênero de argumentos
no testemunho exemplar que se lê em um confessionário publicado nos anos do
concílio por um padre romano, "a confissão das pessoas luteranas e hereges, que
têm a opinião de que não são obrigadas a querer contar seus pecados a seu padre de
penitência". O autor atestava com base em sua experiência pessoal, acumulada "con-
fessando muitas e infinitas pessoas nos tempos pretéritos", que a ignorância reinava
soberana na matéria: as pessoas confessavam-se sem saberem "recitar seus pecados" ,
confessavam a duras penas uma vez por ano, não faziam "nenhum esforço em unir

23. Dottrina Verissima et Hora Nuovamente Venuta in Luce, tolta dai cap. IV a' Romani a consolare [ermamente le afflitte
'
conscienze dal peso de i peccati gravata ... , autor U. R. , 1547, pp. 5 e ss. Sobre o texto e sobre sua eficácia em
"fazer o leitor penetrar no próprio coração da doutrina luterana da justificação" cf. Silvano Cavazza, "Libri
in Volgare e Propaganda Eterodossa: Venezia 1543-1547", em Libri, Idee e Sentimenti Religiosi nel Cinquecento
Italiano, Módena, 1987, pp. 9-28; em part. pp. 22-23.
24. Dottrina Verissima, op. cit. , p. 11.
25. "[... ] Recordai _ escrevia Orazio Brunetto numa carta publicada em 1548 - que devemos remir entre nós
as culpas dos pecados passados, de modo que não ocorram penas, mas que nossas dívidas sejam satisfeitas"
(cf. Andrea Del Cal, "Note sull'Eterodosssia di fra Sisto da Siena, i suai Rapporti con Orazio Brunetto e un
Gruppo Veneziano di 'Spirituali", em Collectanea Franciscana, XLVII, 1977, PP· 27-64; em part., p. 53).

A Confissão no Concílio de Trento


290

a condolência à mente" e pensavam "estar por certo costume absolvidas de todos os


seus pecados mortais" 26 •
Ora, nas discussões dos teólogos, os fundamentos tradicionais do discurso teológico
sobre a penitência foram reexaminados e discutiu-se com variedade de abordagens - por
exemplo - a questão que esse padre romano indicava, da ausência de "condolência" , de
verdadeiro e profundo arrependimento dos pecados. Mas o ponto fundamental consistiu
na reafirmação e reorganização do poder de co nfessar. O exame atento da questão do
arrependimento imperfeito levou a um resultado que estava inscrito na tradição escolás-
tica27 , mas que era também funcional às exigências de consolidar o poder eclesiástico na
prática da confissão privada e auricular: o debate sobre attritio e contritio, as distinções entre
"temor filial" e "temor servil", as ulteriores distinções (retomadas por Gabriel Biel) entre
Timor sempliciter servilis e timor serviliter servilis obtinham um resultado não na avaliação
das disposições subjetivas do penitente, mas na repisada necessidade da confissão como
sacramento administrado pelos eclesiásticos. Se no debate sobre a justificação a questão
tivera relevância - por exemplo, no posicionamento de Pole que catalogara o temor servil
entre os pecados, ou no de Seripando que inserira no segundo esboço do decreto sobre
a justificação o tema do temor do inferno (ti mor divinae iustitiae) como passagem positiva
e preparação para a graça santificadora - , não teve absolutamente nenhuma relevância
na discussão sobre a confissão. Bastou a consideração de que na prática os confessores
jamais interrogavam os penitentes se estavam perfeita ou imperfeitamente contritos (an
sint perfecte contriti) 28 para deixar em segundo plano toda aquela antiga discussão: no lugar
da avaliação dos estados de ânimo dos pecadores entrou a preocupação de regular poderes
e deveres de acordo com uma sistemática administrativa do sacramento. Por outro lado,
nos modelos de confissão que os manuais difundiam havia muito tempo, introduziu-se
numa data difícil de precisar, mas de todo modo anterior às deliberações de Trento, a
declaração preliminar sugerida ao penitente de que seu arrependimento não era perfei-
to29. A prática corrente foi, de resto, mais familiar aos padres tridentinos do que o eram
as fontes e a história da penitência. O uso das fontes nas congregações de teólogos foi
tal que o editor moderno teve necessidade de antepor uma nota que parece retirada das
irônicas e escandalizadas observações de frei Paolo Sarpi: há tantos erros naqueles votos,
resumindo, que não é possível enumerá-los; tanto mais que frequentemente os padres do
concílio confundem o discurso sobre o sacramento da penitência com o mais simples e

26. Confessionale Novo, del Reverendo M. Hieronymo Messi Prete Secular, Prior de Santa Felicita in Romano Redrizato
alia S. de Papa Paulo lll et a Tutti li Fidelissimi et Buoni Christiani, s. a. n. 1, cc. A Ilr-A Illr. Sobre as formas de
"confissão alternativa" praticadas nessa época por dissidentes religiosos italianos cf. Seidel Menchi, Erasmo
in ltalia, op. cit., pp. 168-175.
27. CF. Valens Heynck OFM, "Zum Problem der unvolkommenen Reue auf dem Konzil von Trient", em Georg
Schreiber (org.), Das Weltkonzil von Trient. Sein Werden und sein Wirken, I, Freiburg i. B., 1951, pp. 231-280.
28. É destacado também em idem, p. 273.
29. Entre as declarações preliminares indicadas na confessio generalis proposta por Girolamo Messi encontramos:
ter tido contato com excomungados sem sabê-lo e a frase: "Meu padre, eu me considero culpado de não vir a
esta sagrada confissão e sagrado sacramento com contrição" (c. A VII v.).

A Confissão
291

genericamente relativo à penitência 3º. A projeção no passado da prática corrente produzia


uma distorção, denunciada pela ironia de Sarpi: "Quem ouvia aqueles doutores falarem
só podia concluir que os apóstolos e os antigos bispos não faziam outra coisa que ficar
de joelhos para confessar-se, ou sentar para ouvir a confissão alheia" 31•
Independentemente das ironias de Sarpi, o certo é que se projetava no passado
uma prática da confissão assim como era entendida no presente e parecia destinada a
intensificar-se cada vez mais. Através das várias vozes ouvidas nas sessões conciliares,
tem-se uma espécie de amostra das forças ativas em campo na igreja católica: elas reú-
nem a experiência das ordens mendicantes, tradicionalmente dedicadas à prática de
massa das confissões nos ciclos de pregações da quaresma e à elaboração de textos de
preparação (confessionários, livros devotos etc.); a das novas congregações e das novas
ordens - em particular, dos jesuítas, que se fizeram ouvir com as vozes poderosas de
Laínez e de Salmerón; a dos bispos mais ativos e empenhados no governo pastoral: e aqui
encontramos os mais doutos bispos espanhóis, principalmente Pedro Guerrero, bispo
de Granada e Martin Perez de Ayala, bispo de Cádiz, alguns italianos como Girolamo
Seripando, arcebispo de Salerno, Egidio Foscarari, bispo de Módena e outros mais.

A prática da confissão conhecia uma rápida evolução nesses anos: a novidade


mais importante era a do controle que os bispos ou seus vigários começavam a exercer
sistematicamente sobre a medida em que os fiéis obedeciam ao cânone estabelecido pelo
Concílio lateranense IV Omnes utriusque Sexus. E foi justamente a repisada fidelidade a
esse cânone que representou a intervenção mais importante do concílio na matéria. A
obrigação da confissão e comunhão anual devia se tornar não uma norma abstrata mas
uma prática social difundida, registrada e controla~ justamente porque a ela se ligou
a função de fiscalização da ortodoxia: seja na forma "pastoral" do governo dos bispos,
seja na policial da Inquisição.
Um controle da prática dos fiéis em matéria de confissão por parte dos bispos só
podia se dar através da limitação dos privilégios dos regulares. Mas, enquanto os bispos
tentavam retomar o controle da pregação e da respectiva prática da confissão como
momentos essenciais da cura animarum, perfilava-se no horizonte uma nova força, que
reduzia os poderes dos bispos: o tribunal da Inquisição, entregue a uma nova aliança
entre antigos parceiros: Roma de um lado, dominicanos e franciscanos do outro. Na
imagem da confissão como tribunal refletia-se o agigantar-se de um verdadeiro tribu-
nal, rival da confissão, o da Inquisição. E apesar disso, no contraste tradicional entre
episcopado e grandes ordens inseria-se agora uma presença nova, a dos jesuítas, que
traziam uma experiência própria em matéria de confissão e que, não só por esse aspecto,
representavam uma força prenhe de futuro. Outro fato novo era a crise da Penitenciá-

30. Cf. Concilium Tridentinum, Actorum pars quarta volumen prius, Friburgi Brisg., 1961, p. 241 nota ("non
pauci circa historiam errares inveniuntur, quos singillatim emendare impossibile est ... Haud raro de poe-
nitentia agunt aliqui patres, cogitantes tantummodo de poenitentia in genere, non autem de sacramento
poenitentiae").
31. Istoria dei Concilio Tridentino, org. por Corrado Vivanti, Torino, 1974, I, p. 562.

A Confissão no Concílio de Trento

-. ..
292

ria romana, que havia muito estava no centro de todas as acusações dos reformadores ,
católicos e protestantes que fossem . O difusível fenômeno da apostasia dos religiosos
legitimado pelo sistema das dispensas da Penitenciária criara uma situação não mais
tolerável em tempos de desordem disciplinar e dissídio teológico. Num memorial de
1532, Gian Pietro Carafa lançara,se contra os "cães raivosos" da Penitenciária, responsá-
veis a seus olhos por culpas gravíssimas; era por causa dos abusos romanos que o antigo
significado de apostasia como saída da ordem religiosa e o novo , de abandono da fé ,
tinham se sobreposto e identificado 32 • A escolha romana de atuar através do tribunal
do Santo Ofício tirou a razão de ser das súplicas e dos apelos dirigidos à Penitenciária
por quem queria escapar do rigor inquisitorial3 3 • A reforma empreendida por Pio V em
1569 consistiu em atentar para a nova situação, limitando ao foro interno a atuação
da Penitenciária 34 • Porém, que não se deveria reconhecer-lhe "nenhuma superioridade
ao Ofício da S. Inquisição" já fora dito havia muito tempo 35 •
Ora, no que se refere aos usos correntes em matéria de confissão, as deliberações
tridentinas selecionaram rigorosamente só a forma da confissão privada e, polemi-
zando com a Reforma protestante, reconheceram o caráter judicial (actus iudicialis) da
confissão sacramental e definiram seu direito divino (ius divinum 36 ). Porém, tentaram
fazer desse ato judicial um instrumento de politia externa , como reza o documento,
com o objetivo de tornar eficaz a disciplina christiani populi. Foi com tal objetivo que se
previu a reserva dos casos, como ato de externa politia que devia valer também coram
Deo 37 • Esse capítulo do documento conciliar mostrou-se controverso na aplicação, mas

32. O memorial de Carafa foi publicado com o título "De Lutheranorum Haeresi Reprimenda et Ecclesia Refor-
manda", em Concilium Tridentinum, XII, pp. 67-77. A validade do julgamento de Carafa é demonstrada por
Guido Dall'Olio, "La Disciplina dei Religiosi all'Epoca del Concilio di Trento: Sondaggi Bolognesi", em
Annali dell'Istituto Storico ltalo-germanico in Trento, XXI, 1995, pp. 93-140. Sobre a questão da reforma dos reli-
giosos continua fundamental o vasto ensaio de Hubert Jedin, "Per una Preistoria della Riforma dei Regolari
(Tridentino, sess. XXV)", em Chiesa della Fede, Chiesa della Storia. Saggi Scelti, Brescia, 1972, pp. 227-273.
33. Súplicas do tipo são mencionadas por Filippo Tamburini, Santi e Peccatori. Confessioni e Suppliche dai Registri
della Penitenzieria dell'Archivio Segreto Vaticano (1451 -1586), Milano, 1995, p. 29.
34. Cf. E. Gõller, Die piipstliche Ponitentiarie 110m ihrem Ursprung bis zur ihrer Umgestaltung unter Pius V, Roma, 1907.
Cf. o recente F. Tamburini, "La Riforma della Penitenzieria nella Prima Metà del Sec. XVI e i Cardinali Pucci
in Recenti Saggi", Rillista di Storia della Chiesa in ltalia, XLIV, 1990, pp. 111-140.
35. Carta de frei Michele Ghislieri ao inquisidor de Gênova, de 3 de janeiro de 1555, a propósito de uma inter-
venção da Penitenciária para comutar uma penitência aplicada em dois acusados da inquisição (Biblioteca
Universitaria di Genóva, ms E. VII. 15, c. 28r.
36. Cf. André Duval, Des sacrements au Concile de Trente, op. cit. , pp. 209 e ss., onde se discute a tese de Angelo
Amato (l Pronunciamenti Tridentini sulla Necessità della Confessione Sacramentale nei Canoni 6-9 della Sessione XV
[25 n011. 1551]. Saggio di Ermeneutica Conciliare, Roma, 197 5), segundo o qual o ius divinum refere-se à integridade
da confissão.
37. "Magnopere vero ad christiani popoli disciplinam pertinere sanctissimis patribus nostris visum est, ut atrociora
quaedam et graviora crimina nona quibusvis, seda summis dumtaxat sacerdotibus absolverentur, unde merito
pontífices maximi pro suprema potestate sibi in ecclesia universa tradita causas aliquas criminum graviores sue
potuerunt peculiari iudicio reservare. Nec dubitandum est. .. quin hoc idem episcopis omnibus in sua cuique
dioecesi 'in aedificationem' tamen, 'non in destructionem' liceat pro illis in subditos tradita supra reliquos

A Confissão
293

demonstrou ser também imediatamente controverso pelo modo como fora redigido .
E as controvérsias sobre sua redação como aquelas sobre sua interpretação permitem
ver quais candidaturas adiantavam-se então na igreja, quando se tratava de garantir a
"disciplina" do povo. O combativo bispo de Cádiz contou em sua autobiografia que
0 acréscimo sobre o poder de reserva, "mas só para edificação e não para destruição"
(2 Cor. 10, 8; 13 , 10) tinha sido inserido no texto da doutrina por proposta de sua
autoria e de Foscarari, mas que ela se referia ao papa; a presidência do concílio man-
dara eliminá-la e depois , ante os protestos dos bispos espanhóis que chegaram até
Carlos V, tornara a inseri-la, mas referida aos bispos - e foi dessa forma que o texto
foi aprovado 38 • Mas não foi somente esse indício textual que mostrou que o papado
não pretendia deixar aos bispos poderes de politia externa em suas dioceses. Pedro
Guerrero, de volta à sua diocese de Granada, valeu-se do poder de absolver em casos
de heresia para reconciliar com a Igreja um herege penitente: mas foi imediatamen-
te chamado a observar a norma que reservava ao inquisidor o poder de julgar em
semelhantes casos . As intenções dos bispos tridentinos mais atentos a seus deveres
de governo das consciências eram assegurar para si mesmos a plenitude de poderes
no exercício da confissão, como se viu nas solenes afirmações do sexto capítulo De
Reformatione circa Matrimonium aprovado na XXIV sessão de 11 de novembro de 1563.
Lê-se no texto que os bispos podem absolver (diretamente ou mediante um vigário) os
fiéis , seus súditos, de qualquer pecado oculto, ainda que reservado à Sé Apostólica:
e acrescenta-se nele que esse princípio é válido também nos casos de heresia, ainda
que com uma importante limitação: que os hereges podem ser absolvidos somente
pelo bispo em pessoa, sem possibilidade de delegação 39 • Sobre a defesa desse ponto
manifestaram-se de modo especial os bispos espanhóis, para os quais , como anotou
Pedro González, os tempos antes demandavam o uso da misericórdia evangélica dos
bispos do que o do poder judiciário dos inquisidores 40 •

inferiores sacerdotes auctoritate" (cf. "De Casuum Reservatione", cap. VII da Doctrina aprovada na sessão 14:
Conciliornm Oecumenicornm Decreta, p. 708).
38. "El obispo de Modena y yo la compusimos, y mudaron cierta cosa de sustancia en la doctrina acerca de los casos
reservados, contra la voluntad de los diputados, y era yo uno de ellos y el que habia insistido en que se pusiese;
es a saber: que el papa podría reservar casos ad aedificationem; y, ofendido de este atrevimiento y tirania, cuando
vine a tratarse la sesión de Ordine, que no se hizo, habiéndome senalado por diputado, no lo quise aceptar";
a questão era importante, para Ayala, que advertiu o imperador através de Vargas "de aquella cláusula y cuán
perniciosa era y cuán escandalosa seria a los herejes" (a autobiografia foi publicada por M. Serrano y Sanz, em
NBAE, II, Madrid, s.d. [1927], pp. 211-238; aqui cita-se a partir de Martin Perez de Ayala, "Discurso de la Vida", em
Pedro González de Mendoza, E! Concilio de Trento, Buenos Aires, 1947, p. 43. Cf. H. Jedin, "Die Autobiographie
des Don Martin Pérez de Ayala", em Kirche eles Glaubens Kirche der Gerschichte, II, 282-292).
39. "Idem et in haeresis crimine, in eodem foro conscientiae, eis tanrum, non eorum vicariis, sit permissum"
(Conciliorum Oecumenicornm Decreta, p. 764).
40. "Dei sexto canon se quitó lo de la lnquisición, porque en estos tiempos es grande inconveniente que los obispos
non puedam absolver los herejes que vinieren a sus pies arrepentidos de su yerro, pidiendo misericordia, pues el
inquisidór ordinario y el más legítimo pastor de las almas es el obispo" (Pérez de Ayala, "Discurso de la Vida", op.
cit., p. 144).

A Confissão no Concílio de Trento


294

Na realidade italiana, onde as ideias da Reforma tinham grassado, a questão as-


sumiu aspectos absolutamente dramáticos, ainda que o resultado tenha sido o mesmo.
A vontade de saber pela qual a estrutura eclesiástica foi dominada em um mo-
mento de grave perigo não se deteve diante das diferenças formais entre um tribunal
e outro. O confessor era um juiz: o Concílio de Trento tinha repisado essa definição e
também insistira na obrigação para os penitentes de descreverem com precisão as pró-
prias culpas. Havia ocasião melhor para saber quem e quantos eram os inimigos da Igreja?
Alguns bispos tentaram resolver a questão a seu modo. Os problemas surgiram
sobretudo nas capitais da dissensão doutrinária. Egidio Foscarari, o dominicano bispo
de Módena entre 1550 e 1564, mandou chamar as pessoas conhecidas por suas ideias
heréticas e "reconciliou-as" às custas de leves penitências ao final de conversações infor-
mais, sem notários e sem atas (tanto que um dos suspeitos gabou-se em seguida de ter
convertido o bispo às próprias ideias); segundo frei Domenico de Ímola, que acompanhou
essa atividade modenense do bispo, Foscarari tinha um breve papal que lhe conferia o
poder "de aceitar como bem quisesse, por escrito ou não, com testemunha ou sem" os
depoimentos dos hereges 41 • Não deve ter sido um caso excepcional. Marcello Cervini, nos
estatutos sinodais para sua diocese de Gubbio, ordenou a quem tivesse cometido heresia
apresentar-se a ele ou a seu vigário para a abjuração 42 • Também o cardeal Sadoleto em
Avinhão (em 1538) tivera plenos poderes em matéria de heresia e declarara-se favorável
ao uso não da repressão mas da christiana mansuetudo43 • Foscarari sentiu-se encorajado a
fazer o que fez pelas deliberações tridentinas e pelo novo impulso daquele tempo no epis-
copado italiano de dotar-se de poderes para governar o próprio povo. Por essa via, porém,
acabava-se de um lado provocando os poderes inquisitoriais, de outro, tendo de recorrer
a Roma para obter poderes especiais de legati de latere - sinal de que a função do bispo
como magistrado e juiz de seu povo não era realizável por vias normais. Foi em razão de
uma concessão especial feita pelo papa Pio V que o cardeal Morone, ou seja, um homem
que conhecera pessoalmente as durezas da Inquisição romana, em visita à sua diocese de
Módena em 1568, obteve plenos poderes de "libertar e absolver em um e outro foro de
todas as heresias e censuras e penas" quem se apresentasse livremente disposto a abjurar44 •

41. Cf. supra pp. 261-262. Sobre Foscarari falta uma pesquisa adequada; um rápido mas exaustivo levantamento
do estado dos conhecimentos sobre ele é oferecido por Franco Bacchelli, "Oi una Lettera su Erasmo ed Altri
Appunti da Due Codici Bolognesi", em Rinascimento, s. II, XXVIII, 1988, pp. 257-287, em part. pp. 257-259,
que menciona diversos documentos comprovantes do posicionamento tolerante e aberto de Foscarari para
com os suspeitos de heresia e publica entre outras coisas (pp. 282 e ss.) duas cartas de Filippo Valentini de
Coira, de 1562, relativas a uma oferta de salvo-conduto com amplas garantias.
42. Para os estatutos sinodais cf. U. Pesei, I Vescovi di Gubbio, Perugia, 1919, p. 115. Uma reconstrução e avaliação
atenta da obra de Cervini desse ponto de vista encontra-se no recente volume de William Hudon, Marcello
Ceroini and Ecclesiastical Govemment in Tridentine ltaly, op. cit.
43. O breve papal é datado de 5 de junho de 1538; a declaração de intenções de Sadoleto está contida numa
carta que escreveu ao cardeal Farnese de 29 de julho de 1539. Cf. Marc Venard, Réforme Protestante, Réforme
catholique dans la province d'Avignon. XVI' siecle, op. cit., pp. 330-331.
44. O breve de 1° de fevereiro de 1568, mencionado no final do século XIX por C . Cantú, é citado por A. Biondi,
"Streghe ed Eretici", op. cit., p. 194 nota.

A Confissão
295

Outros bispos tiveram que inventar para si mesmos percursos capazes de aprovei-
tar os conhecimentos do tribunal da confissão para desentocar os hereges ocultos. Mas
acabaram apelando à tendencial transformação da confissão anual obrigatória em um
tribunal de foro externo. Na sobreposição dos dois tribunais, houve quem não se conteve.
Em 1552, Fabio Arcella, arcebispo de Cápua, passou uma lista de mulheres suspeitas
de heresia a um cônego, ordenando-lhe "que devia confessar todas essas mulheres que
constavam da lista" , interrogando-as e certificando-se bem "se tinham sido hereges". Num
primeiro momento, o cônego recusou-se, mas, diante de uma ordem categórica, curvou-se.
Foi uma confissão singular: as mulheres foram convocadas e obrigadas a confessar "todos
os seus pecados e especialmente se tinham incorrido em algum erro de heresia contra
a Santa Madre Igreja e Santa Fé cristã" . Naturalmente, foi preciso explicar quais eram
as heresias: e aí surgiram notáveis complicações. O cônego perguntou àquelas mulheres
"se alguma vez lhes fora dito que não rezassem o terço, que não se confessassem ou que
não acreditassem no Santíssimo Sacramento da comunhão" . Muitas mulheres pediram,
preocupadas, "que lhes dissesse se haviam cometido o erro ao rezar o terço, confessar-se,
comungar, ir à igreja" : e o cônego teve que explicar "que tudo era correto e sagrado" 45 •
Em Salerno, em 1558, o agostiniano Girolamo Seripando informou o comissário
napolitano do Santo Ofício sobre a questão de um penitente culpado de heresia que
estava à espera da absolvição: o comissário ordenou que se passasse do oral ao escrito
e que o penitente anônimo transformasse a confissão (já feita) em uma autodenúncia
escrita, fazendo-o "especificar os cúmplices, e se tem notícia de qualquer pessoa que
esteja infectada pela heresia ... ", explicando detalhadamente "como incorreu em tais
erros, nomeando quem o induziu a isso". Somente depois da abjuração formal , o pe-
nitente podia ser absolvido 46 •
É evidente, enfim, que a urgência da luta contra os hereges em meados do século
XVI dobrava os antigos equilíbrios entre foro de consciência e o da justiça penal em
novas direções. Houve uma clara vontade, por parte de Roma, de desfrutar o veículo da
confissão para realizar a caça à heresia. Mas essa vontade juntou-se à iniciativa de bispos
que, para retomar o controle da ortodoxia de seus povos, não hesitaram em utilizar-se
do uso coercitivo e policial dos sacramentos: a comunhão 47 e a confissão.
Era uma situação de emergência: era necessário que os leigos manifestassem
sua fidelidade à estrutura eclesiástica de modo verificável - e para isso nada era mais

45 . Depoimento do cônego Santo Panebianco, de 1º de fevereiro de 1564 (publicado por Pier Roberto Scaramella,
Con la Croce ai Core. lnquisizione ed Eresia in Terra di La11oro [1551 -1564), Napoli, 1995, pp. 19 e 147).
46. A carta do vigário do arcebispo e comissário da Inquisição em Nápoles, Giulio.Pavesi, a Seripando foi publi-
cada por Michele Cassese, L'Attività Riformatrice di Giro/amo Seripando Arcivescovo di Salemo (1554-1563) nella
Conispondenza con Vescovi Meridionali, Tese de Doutorado, Università degli Studi di Pavia, 1987-1988, doe. 139
do apêndice. A importância da carta para o cruzameno confissão-inquisição foi mencionado por G. Romeo,
lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit., pp. 191-192.
47. Antes de obrigar O canônico Santo Panebianco à confissão obrigatória das mulheres suspeitas, Fabio Arcella
havia publicado um "bando" que impunha a obrigação da comunhão da Páscoa (cf. Scaramella, Con la Croce
al Core, op. cit., p. 18).

A Confissão no Concílio de Trento


296

apropriado que o cumprimento periódico e regular da obrigação de confessar-se e co-


mungar. Mas era necessário também que os culpados de propaganda herética fossem
identificados e punidos. Por isso, as vozes piedosas dos reformadores católicos que
tinham insistido em uma renovada e intensa prática sacramental obtiveram um sucesso
inesperado - mas numa direção não prevista por eles - e foram plenamente ouvidas
em todos os níveis da estrutura eclesiástica pós-tridentina, ainda que para fins que não
eram mais exatamente os mesmos. É nesse contexto que o atestado da confissão feita
transformou-se em certificado de boa conduta e acabou se tornando um documento
no âmbito do sistema policial do controle inquisitorial 48 • Esse atestado sobre a prática
sacramental reduzia-se a indício secundário na investigação policial: e essa era só uma
das muitas contradições provocadas pelo desenvolvimento anormal das necessidades
de controle no interior das estruturas eclesiásticas.
Outra e talvez mais significativa contradição era a da subversão substancial das
posições formais : a figura reconfortante e confiante do confessor, juiz do "foro inter-
no" , reduzia-se a um burocrático fornecedor de atestados relativos às parti exteriori, às
características comportamentais; ao julgamento do inquisidor, nominalmente relativo
ao "foro externo" , competia pelo contrário a tarefa de encontrar uma verdade escondida
no íntimo do indivíduo. Como e por que tinha se chegado a isso?
Do lado da Inquisição - e mais geralmente das autoridades eclesiásticas-, os dados
do problema eram os que já vimos; um ataque sem precedentes à própria existência da
Igreja, uma difusão da heresia em todo o corpo cristão da Europa, a urgência de res-
posta a uma agressão insidiosa e capilar. Era necessário recolher onde fosse possível os
sinais das incertezas e das vacilações doutrinárias, se não mesmo da verdadeira traição,
da apostasia. Em todo lugar: e portanto também, se não principalmente, no exame
sincero que os penitentes faziam de si diante do confessor. A exigência da suspeita e da
luta sem quartel contra os adversários opunha-se à exigência do perdão e da remissão
das culpas, que encontrara tantas expressões na intensa reflexão sobre a penitência no
período tardo-medieval. Mas a questão posta durante todo o Concílio de Trento e que
continuou pairando por muito tempo sobre toda a matéria não era apenas de método:
era um problema de poder. A quem pertencia o poder de julgar em matéria de fé?

48. Para se ter uma ideia, reproduzimos atestados como o concedido a um soldado da fortaleza florentina de San
Miniato em 1566: "Eu, frei Joseph, frade de São Francisco da Observância, certifico e dou fé que é verdade
que confessei Martino da Cidade de Castello, bombardeiro, ao menos duas vezes por ano, e também dou fé
que ele sempre como bom cristão e verdadeiro católico sempre reza o terço, e é homem de boa consciência
pelo que ouvi em confissão [... ) Dou fé ainda que ele todo ano comungou ao menos duas vezes" (Archivio
di Stato di Firenze, Tribunale della Apostolica Nunziatura, 593, cc. n. n.). O segundo atestado, conservado no
referido arquivo, foi concedido na mesma data a Martino pelo capelão da fortaleza de San Miniato: declara-se
nele que "ministrei muitas vezes confissão ao bombardeiro Martino no decorrer dos quatro anos que passei
na referida fortaleza e reconheci nele que leva uma vida cristã e, durante esse tempo, vi nas partes exteriores
sinais manifestos de que é um homem muito bom e cristão, isto é, que é todas as manhãs o primeiro [a estarl
na igreja diante da imagem do crucifixo e na primeira missa, e muitas vezes também na segunda, e [mantém]
em seu quarto continuamente a lanterna ou lume diante da imagem da mãe de Nosso Senhor Deus[ ... ]".

A Confissão
297

O Concílio de Trento fora convocado para resolver as controvérsias de fé; era óbvio,
portanto, que sua convocação reforçasse nos bispos a consciência de serem chamados
a governar seus povos para mantê-los na fé ortodoxa, para desentocar e punir os here-
ges. E isso estava em desacordo com as pretensões do Santo Ofício romano , que não
deixava passar nenhuma oportunidade de fazer chegar a esse ou àquele bispo a ordem
categórica: "não se intrometa em nenhum caso ou de modo nenhum em assuntos de
fé" 49 - o ql:).e para um bispo causava mais estranheza do que se podia imaginar. Tanto
mais que os "assuntos de fé" não se limitavam à luta contra as doutrinas da Reforma,
mas tendiam a estender-se a muitas outras matérias, à medida em que a emergência do
conflito de religião cedia a passagem, pelo menos na Itália, aos problemas do controle
do cotidiano dos comportamentos e das ideias.

49. A citação foi retirada de uma carta do cardeal Scipione Rebiba ao núncio de Veneza Gian Battista Castagna,
de 15 de dezembro de 1573, na qual - em nome da congregação do Santo Ofício - solicitava "que V. S. Com
· e convemen
mo dês na · t e ocasi·a·o faça saber a mons · o bispo de Vicenza que não se intrometa em nenhum caso
e d e mo do nen h um em ass Untos de 1•e1·" (Nunziature di Venezia, vol. XI, 18 jun. 1573 - 22 dez. 1576", org. por
·
Ad nana Bu ff:ard 1,· Rorna, 1972 , p . 113)· Matteo Priuli era o bispo de Vicenza.

A Confissão no Concílio de Trento


XII
BISPOS E INQUISIDORES PARA
UMA SOCIEDADE CRISTÃ

A lista da~ m~térias de competência da Inquisição não fora estabelecida de uma só


vez: no mtncado campo da administração da justiça do antigo regime, o tribunal
da Inquisição compartilhava com os outros inúmeros tribunais a necessidade de fazer
valer seus direitos e sustentar sua importância numa luta contínua com os possíveis
concorrentes. Naturalmente, pode parecer paradoxal uma definição do gênero para
um tribunal de identidade histórica tão forte e tão nitidamente definida: formalmente
e por antiga tradição, competia-lhe tudo aquilo que tinha a ver com a heresia. Devia
ingerir-se somente nos casos que sabiam a heresia (quae sapiunt haeresim) "e não em ou-
tros crimes", reafirmava em 1552 frei Michele Ghislieri 1• Mas se o Grande Inquisidor
pretendia com isso delimitar o campo e defini-lo rigorosamente, enganava-se. Toda a
experiência do século da Reforma mostra o quanto o negotium fidei estava intimamente
ligado aos mais variados aspectos da vida social. Por outro lado, na sociedade de antigo
regime os tribunais de todo tipo perseguiam objetivos de regulamentação dos compor-
tamentos e tutela das práticas religiosas e da vida moral que interferiam muitas vezes
nos da Inquisição: por isso, somente um exame comparativo das matérias tratadas nos
vários tribunais criminais - eclesiásticos e laicos - permitirá a obtenção de um panorama
adequado das intersecções e das sobreposições de matérias que então foram possíveis.
Competia institucionalmente à Inquisição a tutela da fé e, consequentemente, a
perseguição da heresia. Quais eram as heresias a perseguir, os inquisidores na metade
do século sabiam muito bem. E se não sabiam, havia um sem-número de instrumentos
prontos para avivar-lhes a memória: manuais, listas e catálogos de diversos tipos, em
forma genealógica ou por ordem alfabética, repertórios enciclopédicos de um perigo
multiforme mas sempre igual, como se a cizânia herética a ser erradicada fosse sempre
a mesma e como se o demônio não modificasse na substância a má semente que desde
o início da história cristã esforçava-se para fazer grassar entre os fiéis . Lutero, Zwingli,
Calvino, os anabatistas retomavam e representavam heresias muito antigas: o oficio do
inquisidor consistia em decifrar por trás das mutáveis aparências o vulto imóvel de uma
formulação doutrinária específica e, uma vez determinado o erro, verificar no acusado a
presença ou não da pertinácia ou soberba intelectual que constituía o verdadeiro herege.

1. Cf. parte I, p. 183.


300

Mas logo as coisas começaram a ficar mais complicadas. O tribunal responsável


pelos crimes de fé achou-se diante de um dilema: ligar-se exclusivamente à caça relativa
àquelas formulações teológicas específicas, ou então perseguir o desviacionismo dou-
trinário em todas as suas encarnações e em todos os seus mascaramentos possíveis. Era
o mesmo dilema diante do qual se encontrara a Inquisição medieval: e como resultado
disso , após o esgotamento das heresias contra as quais tinha sido criada, ocorrera uma
progressiva rarefação de sua presença. Não foi esse o caso da Inquisição romana: a mes-
ma pedagogia das perguntas dirigidas preliminarmente aos acusados sobre quais eram
os crimes julgados por aquele tribunal, torna evidente que a Inquisição romana seguiu
um caminho diferente, ampliando continuamente seu campo de ação.
É difícil reconstruir em detalhes como e por que isso aconteceu. Mas em geral
fica bastante claro que o tribunal da fé soube aproveitar os privilégios que , em âmbito
teórico, lhe eram reconhecidos, no contato com a exuberante riqueza das experiências
cotidianas. A partir dessas experiências, elaboradas na relação com a congregação
romana, nascia a jurisprudência que às vezes encontrava um modo de depositar-se
nos manuais para publicação. Para os acusados, em particular, e para a sociedade cir-
cundante não faltavam os meios de informação: a par da literatura especializada dos
manuais, acessíveis aos inquisidores e também aos homens de lei não eclesiásticos, havia
toda uma série de instrumentos mais ágeis e sutis, que iam das pregações aos éditos.
Houve a formulação bastante extensa das matérias de competência do Santo Ofício
perpetrada por Sixto V na constituição lmmensa Aeterni Dei. Mas esse documento foi
importante, mais do que pela relação positiva de matérias de estrita pertinência desse
tribunal, pelo reconhecimento de sua autoridade como válida em todos os casos de
suspeita de que a fé estivesse em jogo. Quanto às matérias efetivamente tratadas em
outras etapas, o diagrama histórico é ainda muito incompleto e hipotético: não tanto
no que se refere aos tópicos de acusação mas no que diz respeito aos tempos e modos
em que aos poucos esses tópicos foram inscritos na agenda do tribunal. Somente atra-
vés do exame de fato dos materiais processuais restantes é que se poderá construir um
diagrama verídico 2• Com base nisso , apenas será possível remeter a relação abstrata
das matérias inquisitoriais à variedade das experiências realizadas em tempos e lugares
diferentes pelo conjunto de tribunais atuantes sob a autoridade romana: o que significa
não só os tribunais da Inquisição romana, mas também os das inquisições ibéricas que
se remetiam às autoridades romanas e que mantinham relações de intercâmbio com os
tribunais dependentes de Roma.
Restam-nos os documentos escritos: neles podemos verificar o cuidado que a
instituição romana dedicava à divulgação dos conhecimentos de seu interesse - em
primeiro lugar, à informação sobre seus poderes e sobre as matérias de sua competência.
Quem quisesse, tinha um modo muito simples de conhecer tais matérias: bastava ler o

2. Mas, enquanto isso, deve-se ter presente o estudo de John Tedeschi e William Monter, "Toward a Statistical
Profile of the ltalian lnquisitions, Sixteenth to Eighteenth Centuries", agora em J. Tedeschi, The Prosecution °f
Heresy , pp. 89-126.

A Confissão
301

édito geral que o inquisidor publicava no início de sua atividade. Mas também nesse
caso, se lermos e confrontarmos mais éditos distantes só poucos anos um do outro,
temos a impressão de um movimento rápido de expansão , uma espécie de prolifera,
ção dos poderes ou pelo menos das pretensões desse tribunal. O édito geral de 1568,
assinado por Paolo Costabili, inqu isidor,geral de todo o território de Este, era muito
breve: redigido em duas línguas (latim e italiano), explicava em não mais de dez linhas
os deveres dos fiéis súditos do duque:

Ordena,se em primeiro lugar que quem souber de alguma pessoa que se desvie da fé católica
e da doutrina da Santa Igreja Romana, seja herege, defenda ou aprove dogmas e coisas heréticas,
ensine,as ou realmente acredite nelas:
se alguém igualmente souber quem tenha, leia livros proibidos por heresia, ou por qualquer
outro motivo seja infame, ou suspeito de heresia;
ademais se alguém souber quem faça sortilégios, malefícios e bruxarias, com abuso e vilipên,
dio dos sacramentos, ou culto e adoração de demônios, ou que tenha livros que realmente tratem
de tais coisas:
deverá no prazo máximo de vinte e quatro dias manifestar-se e denunciá-los ao R. P. Inquisidor
ou, em sua ausência, a seu vigário, do contrário incorrerá em excomunhão 3•

Apenas trinta anos mais tarde, o édito geral é bem diferente. O que foi publicado
em Reggio Emília pelo inquisidor Pietro Visconte de Tabia em 20 de outubro de 1598
reúne em capítulos diferentes as indicações pelas categorias específicas de crimes: "Os
hereges e suspeitos de heresia" ainda são a primeira categoria e a mais analiticamente
descrita. Mas vêm em seguida: "Bruxas, magos, feiticeiros , encantadores e supersticiosos
[.. .] Livros proibidos[ ... ] Os blasfemos[ ... ] Os judeus[ ...] Os impedientes e detratores do
Santo Ofício [... ] Os protetores e cúmplices dos supracitados delinquentes"; e no final
há um apêndice de "admoestações, preceitos e inibições" relativos a "denunciantes e
testemun h as ", "presos ", "·impressores, t·ivreiros,
· co bra d ores de impostos
· ", "reveren d os
·
parocos e presi·d entes ", "reverend os prega dores ", "reveren dos conressores
e " 4.

Os éditos gerais e a literatura dos manuais registram nesse período as ambições


sem limites dos tribunais da Inquisição. Sem limites mas não sem obstáculos: embora
ainda se saiba pouco ou nada sobre o funcionamento efetivo de muitos tribunais da
época, é fácil imaginar que devem ter ocorrido conflitos e sobreposições. E isso não
só devido ao conhecido entrelaçamento dos poderes e dos tribunais que atuavam na
sociedade de antigo regime: a Inquisição romana era filha de um projeto complexo de
reforma dos comportamentos, que atingia não só as doutrinas, mas os costumes e a vida
cotidiana, visando ao retorno a uma forma antiga, mítica e não histórica, de vida cristã.

3. A cópia impressa está conservada em ASM, lnquisizione, b. 270. Sobre os éditos inquisitoriais e sobre sua evolução
cf. Bethencourt, L'lnquisition à l'époque modeme, op. cit., PP· 176 e ss.
4. O édito, publicado em Reggio por Flavio e Flaminio Bartoli, está conservado no já citado fundo de Módena,
b. 270.

Bispos e Inquisidores para uma Sociedade Cristã


302

O historiador e inquisidor Umberto Locati talvez tenha descrito melhor do que outr .
" ,e • • os.
tratava-se d e re1orrnar a cidade e corte de Roma, e a Cnstandade ... reduzir O clero ao
antigo candor de doutrina e vida pura ..., extirpar a semente perniciosa da heresia; !. .. ]
impedir e castigar os enormes pecados que provocam a ira de Deus" 5 • Um projeto de
reforma, portanto, estava por trás da atuação dos mais conscientes e ativos membros do
tribunal: o que não é particularmente original em um século que já vira outros projetos
de reforma bem diferentes. No interior da Igreja católica, outros instrumentos e outros
projetos orientaram-se para a tentativa de reformar modos de pensar e comportamentos.
Era inevitável que competissem entre si até se sobreporem e criarem obstáculos uns
aos outros. Veremos alguns casos, sem pretensões de completude: somente quando a
atividade dos tribunais criminais eclesiásticos e laicos dessa época tiver sido investigada
teremos a medida exata da marcha institucional da Inquisição romana. Mas pelo menos
um ponto sobressai com absoluta clareza: nesse primeiro meio século de vida da Inqui-
sição romana, cumprira-se o breve ciclo de urna proposta diferente de organização e de
controle da sociedade cristã, a que tivera como base os bispos e a estrutura diocesana.
Os projetos de reforma moral e de reorganização da disciplina no clero e na
sociedade que se tinham enfrentado na primeira metade do século encontraram uma
caixa de ressonância nos documentos do Concílio de Trento: certa ideia da ordem
social e dos costumes individuais tinha estado estritamente ligada à imagem do bispo
corno pastor, que vigiava paternalmente seu rebanho. A respeito dessa ideia do bispo,
todas as correntes de reforma do início do século XVI estiveram de acordo: até Lutero,
quando se dedicara à reorganização das instituições eclesiásticas em sua visita às igrejas
da Saxônia, tinha rebatido que, na raiz da depravação que tornava conta dos costumes,
havia a responsabilidade de bispos que não tinham sido pastores mas lobos rapaces. A
ideia de sociedade que servia de base a esse apelo ao bispo-pastor trazia quase sempre
a marca de uma severidade e de um ascetismo de modelo agostiniano: e isso tornou
possível nas correntes reformadoras italianas do início do século XVI a confluência de
posições individuais que mais tarde deviam seguir caminhos diferentes, cindindo-se
entre ortodoxos e "luteranos". A obra do Concílio de Trento ainda ecoa intensamente
essas tendências: o pessimismo difuso na raiz profunda do mal inclina os decretos tri-
dentinos de reforma para o projeto de urna sociedade regida - se preciso, corrigida - por
um corpo eclesiástico bem preparado, mas sobretudo solidamente radicado nos lugares
onde mora o rebanho a ser guardado: portanto, um corpo de padres e de bispos, que
conhecem suas ovelhas para que possam manter urna contínua e precisa administração
e estejam em condições de remediar as más inclinações específicas de suas regiões. Ao
contrário, a desconfiança circundava a errática pregação dos frades, devido à tolerância
de sua prática penitencial. Quanto à Inquisição, viu-se como, a partir de vários sinais,
aflorava no concílio um sentimento difuso de hostilidade e de temor em relação aos
membros e aos modos desse tribunal de frades governado por Roma: embora nem todos

5. [Locati), ltalia Travagliata, op. cit., p. 218. Locati descreve nele os objetivos que, com a eleição do papa Pio V
Ghislieri, pareciam-lhe próximos de realizar-se.

A Confissão
303

os bispos estivessem de acordo com o espanhol Pedro Gonzalez de Mendoza quanto a


pensar que os tempos exigiam o uso da misericórdia evangélica dos bispos mais que o
emprego do poder judiciário dos inquisidores 6 • Mas certamente eram muitos os que se
sentiam diminuídos em sua autoridade quando eram obrigados a deixar o campo da
fé inteiramente nas mãos dos inquisidores.
Esse modelo episcopal de governo da sociedade cristã não permaneceu confi-
nado nos projetos e nos memoriais de reforma: fixou-se estavelmente no horizonte
do corpo eclesiástico da época marcada pelo Concílio de Trento e, embora mudando
progressivamente nos traços, representou um modelo ideal ao qual, dali em diante,
os membros do episcopado foram chamados a se conformar. Os grandes modelos do
cristianismo antigo - santo Agostinho, santo Ambrósio - conheceram uma atualidade
jamais perdida de todo nem mesmo nos séculos precedentes, mas renovada pela força
das tendências de retorno ao antigo da idade humanista. A literatura dos "espelhos",
dos "tipos ideais", que aproveitava o filão biográfico plutarquiano para propor reali-
zações modernas da perfeição antiga, foi uma tendência geral, como um grande rio
da época, em que é possível discernir a corrente relativa ao modelo ideal de bispo. A
época tridentina ofereceu a esse modelo algumas figuras nas quais se encarnar: de Gian
Matteo Giberti a Carlo Borromeo, de John Fisher a Bartolomeo de Martyribus, quem
se encaminhava à carreira eclesiástica teve de meditar sobre encarnações próximas de
ideais antigos.
No horizonte da sociedade italiana destacou-se a figura ideal de um bispo que
detinha vastos poderes - por direito divino, segundo uma tendência minoritária der-
rotada em Trento, por concessão papal, segundo a solução vitoriosa - e usava-os para
perscrutar os comportamentos individuais e coletivos. Quando, consumada a ruptura
doutrinária e institucional, a igreja católica dedicou-se à reorganização de suas estrutu-
ras, a ideia de bispo pareceu ter encontrado um modelo tão concreto quanto eficaz na
figura do cardeal sobrinho de Pio IV, Carlo Borromeo.
Se lemos sua obra legislativa, iniciada em 1565 com o primeiro concílio provin-
cial milanês, encontramos um projeto fortemente concorrente em relação ao modelo
oferecido pela Inquisição romana, seja como constituição, seja quanto às matérias es-
pecificamente indicadas. Quando os assuntos eram heresias, abusos ligados às imagens
sagradas, magia e adivinhação, blasfêmias, os bispos eram chamados a punir com rigor e
a expulsar da societas fidelium os culpados 7. Todos os párocos, por sua vez, eram chamados
a vigiar e convidados a denunciar os suspeitos. As disposições nesse sentido tornaram-
-se mais sistemáticas a partir do II concílio provincial de 1569: um édito, que devia
ser lido pelos párocos durante a missa duas vezes por ano, na quaresma e no advento,
conclamava todos a denunciar os que se desviavam da fé ortodoxa, os leitores de livros
proibidos, os suspeitos a qualquer título: e isso também foi imposto aos confessores, que

6. Cf. cap. XI, nota 40.


7. Acta Mediolanensis &clesiae a Carolo Card. S. Prascedis Archiepiscopo condita, Milano, apud Pontium, 1599, pp. 4-6;
às pp. 5-2 encontra-se o convite para ajudar a Inquisição.

Bispos e Inquisidores para uma Sociedade Cristã


304

deviam recordar aos penitentes a obrigação da denúncia 8• A medida era idêntica àquela
inventada pelo Santo Ofício poucos anos antes. Mas o modelo instituído por Borromeo
era, num certo sentido, mais completo. Não se tratava apenas de indagar se havia hereges
ou protetores de hereges: a lista das coisas a respeito das quais se devia fazer "diligente
inquisição" abarcava muitas outras matérias, desde a organização das escolas de doutrina
cristã à presença de superstições, dos pecadores públicos aos judeus, da administração
dos conventos de monjas à limpeza dos petrechos sagrados 9• Uma obra do gênero deman-
dava inclusive a colaboração com a Inquisição; e de fato , bem no início dos decretos do
Concílio Provincial lê-se um convite ao clero para que colabore com os inquisidores. No
entanto, o modelo de sociedade estritamente vigiada em que pensava Borromeo ligava-se
não tanto à eficiência da polícia inquisitorial quanto à vigilância dos bispos e do clero
secular, à sua obra de administração severa e paternal. Não se tratava apenas de palavras.
Quando necessário, Carlo Borromeo interveio contra bruxas e hereges, prescindindo dos
instrumentos ordinários da Inquisição e mostrando de quanto rigor e rapidez podia ser
capaz o bispo-pastor na defesa da ortodoxia de seu rebanho. Da investigação contra os
hereges de Mântua em 1568 àquela contra a seita "georgiana" no interior da congregação
cassinense da Ordem beneditina, até a perseguição às bruxas da Mesolcina, o modelo de
polícia da fé oferecido por Borromeo foi caracterizado pelo recurso à Inquisição somente
como instrumento para uma função de governo que permanecia solidamente nas mãos
do bispo 10• O estilo do bispo podia revelar-se ainda mais duro que o do inquisidor: tão
estorvado este último pelas regras do direito e pelo controle das autoridades superiores
romanas, quanto era imediata e desprovida de incertezas a participação desejada pelo
bispo, que se sentia chamado pela vontade de Deus a exterminar os lobos agressores de
suas ovelhas. Chegou-se ao ponto, como veremos mais adiante, em que as bruxas conde-
nadas pelo cardeal arcebispo de Milão deveram sua salvação à intervenção da Inquisição.
Do ponto de vista do bispo, a ameaça de heresia era apenas uma entre muitas:
tratava-se de absorver ou eliminar os focos de diversidade ou de dissensão doutrinária - por
exemplo os judeus, contra os quais Carlo Borromeo antecipou as medidas de recrudesci-
mento adotadas em seguida pela política papal 11 ; era preciso impedir a circulação de livros
e de homens, em uma terra que mantinha fronteiras com o mundo europeu da heresia: e
surgem medidas nas mais variadas direções, dos mercadores que vinham de terras suíças
aos contatos dos jovens lombardos com a Alemanha por motivos de estudo. Mas, em
geral, tratava-se de instaurar um modelo de vida cristã constituída de severa moralidade,
de ordem social e respeito às hierarquias como premissas necessárias para um intenso
ascetismo. A luta contra os elementos de desordem interna somou-se à organização de

8. Cf. Agostino Borromeo, "L'Opposizione all'Eresia", em Il Grande Borromeo tra Storia e Fede, Cinisello Balsamo,
1984, pp. 225-251; em part. pp. 226-227.
9. Cf. o "Ricardo di alcune cose delle quali principalmente si ha da fare diligente inquisizione", publicado por
Domenico Maselli, Saggi di Storia Ereticale Lombarda al Tempo di s. Cario, Napoli, 1979, pp. 184-186.
10. Cf. idem e S. Pagano, Il Processo contra Endimio Calandra.
11. A observação é de Borromeo, "L'Opposizione all'Eresia", op. cit., p. 234; ver também Renata Segre, "Il Mondo
Ebraico nel Carteggio di Carla Borromeo", em Michael, 1, 1972, pp. 162-260.

A Con fissão
305

defesas contra a ameaça da "peste" herética do exterior. A proposta positiva de uma reno,
vada religiosidade individual e coletiva foi a outra face da medalha em relação às medidas
repressivas e de controle. Quanto a essas, o projeto global composto por seu conjunto é o
de uma cidadela ortodoxa, cercada de muros espirituais e materiais, protegida por milícias
celestes mas também terrenas, por polícias sagradas e por um bem lubrificado sistema de
espionagem: uma comunidade imóvel e desprovida de trocas, sobre a qual o bispo devia
exercer sua vigilância. A relação era entre a autoridade eclesiástica e o indivíduo, com a
exclusão de qualquer outro sujeito. Todas as formas coletivas da tradição medieval pare-
ciam suspeitas e a serem reformadas: de modo particular as confrarias, com sua tendência
a uma sociabilidade devota que escapava à organização territorial planificada do modelo
episcopal. A paróquia é a célula base desse sistema: e, ao estabelecer sua diretriz, os bispos
tridentinos querem-na livre das formas associativas ligadas ao parentesco. O projeto da
paróquia - explicitou Carlo Borromeo - devia recortar de modo regular e controlável o
espaço habitado, sem seguir o desenho móvel das alianças parentais. E aqui surge um dos
principais obstáculos que a diretriz reformadora teve que enfrentar: a família.
A batalha em torno da família foi um momento essencial da relação entre Igreja
e sociedade italiana na época do Concílio de Trento: a quantidade de poderes e funções
sedimentadas nas organizações parentais na época era tamanha que só a literatura jurí-
dica permite fazer uma ideia dela 12 • Mas a afirmação das novas dimensões da presença
da Igreja perpassava a construção de uma relação individual com cada cristão como fiel.
E a pessoa reassumia-se e concentrava-se na consciência como lugar secreto, acessível
apenas ao confessor ou, de qualquer modo, ao poder eclesiástico: por outro lado, o
efeito do poder sobre esse lugar evidenciou-se cada vez mais na série de imagens e termos
judiciários (tribunal, provas, indícios, probabilidade, exame etc.) com que a consciência
tornou-se pensável na literatura dos "casos" dedicada a seu governo 13 •
O choque entre Igreja e família foi duro e disse respeito, em primeiro lugar, aos
sacramentos, dos quais a diretriz tridentina tirou o caráter de ritos de consagração das
redes familiares: a drástica podadura do número de padrinhos de batismo, a reforma
do matrimônio e a disciplina dos votos religiosos foram apenas alguns dos pontos de
atrito 14 • O modelo episcopal de reforma a esse respeito , na falta de poderes reais, en-
controu sua expressão em uma literatura de conselhos, admoestações e propostas de

12. E por isso é preciso recorrer ainda à obra de Nino Tamassia, La Famiglia Italiana nei Secoli Decimoquinto e
Decimosesto, Milano/Palermo/Napoli, s.a. (1910).
13. Uma arguta observação sobre esse ponto, que mereceria um desenvolvimento mais amplo, é fornecida por
James Tully, "Governing Conduct", em Edmund Leites (org.), Conscience and Casuistry in Early Modem Europe,
Cambridge/Paris, 1988, pp. 12-71; em part. p. 29. Sobre a casuística vista sob a perspectiva da Inglaterra
moderna, cf. Keith Thomas, "Cases of Conscience in Seventeenth-Century England", em John Morril, Paul
Slack e Daniel Woolf (orgs.), Public Duty and Prioote Conscience in Set1enteenth Century Eng!and, Essays Presented
to G. E. Aylmer, Oxford, 1993, pp. 29-56.
14. Sobre o conflito entre igreja tridentina e familia, remete-se ao ensaio fundamental de John Bossy, "The
Counter-Reformation and the People of Catholic Europe", Past and Present, 1970, trad. it. em M. Rosa, Le
Origini dell'Europa Moderna. Rioolu~ione e Continuità, Bari, 1977, pp. 281-308.

Bispos e Inquisidores para uma Sociedade Cristã


306

modelos exemplares. Dirigia-se, a esse respeito, aos pais de família, como responsáveis por
determinados deveres ou "ofícios": deviam ocupar-se da realização da proposta eclesiástica
com um controle pontual dos filhos , das mulheres e dos criados. Foi desenvolvido sobre-
tudo o aspecto da educação, em uma literatura pedagógica dedicada a delinear as formas
da "educação cristã" a ser praticada na vida familiar; família e igreja podiam estabelecer
uma aliança apenas para impor a obediência ao herege sedicioso, visto como um menino
desobediente 15 • Mas bastaria um confronto sumário com a literatura dedicada ao pai de
família na Alemanha luterana 16 para mostrar o grau de desconfiança com que se olhava
para os membros da casa familiar no mundo católico: uma desconfiança que se torna
perceptível não só e não tanto nas ásperas reprimendas dirigidas a pais e mães pelos bispos
e pelos eclesiásticos da época, mas sobretudo no silêncio que envolve o assunto. Numa
sociedade citadina substancialmente dominada pelas organizações das famílias, chama a
atenção a escassa presença do tema nas fontes eclesiásticas. E, se a literatura sobre o pai de
família adaptou seus preceitos aos temas emergentes da época - por exemplo, incitando o
pai a controlar a religião dos filhos como o rei devia fazer com a do povo 17 - a instituição
familiar como tal não foi um interlocutor ao qual as autoridades eclesiásticas dedicaram-
-se em particular. Sua presença foi escassa também na literatura espiritual, onde as Regole
de Cherubino de Spoleto (repropostas na época do Concílio de Trento) limitavam-se a
garantir também aos cônjuges a possibilidade da salvação de acordo com a ótica de uma
divisão medieval dos estados de perfeição 18 • Somente na obra de Giovanni Leonardi,
de Lucca, e na de seus seguidores é dada uma atenção específica à família: o que pesou
nisso foi o modelo dos "modernos hereges na Alemanha, França e outros lugares", com
sua insistência na leitura doméstica para doutrinar os jovens 19 • Mas na longa série de
conselhos e sugestões dadas a pai e mãe para a construção de uma vida familiar edifican-
te encontram-se também outros elementos, fundidos em uma nova proposta motivada
pela urgência do desafio luterano; de um lado, a rica tradição da literatura dos livros de
família e dos "tratados dos ofícios" da cultura humanista (não só italiana) e, de outro, a
experiência pessoal que o autor teve da realidade viva da família na sociedade de Lucca.
Resta o fato de que, no projeto de reforma episcopal, o cristão foi visto como
indivíduo isolado, a ser educado e controlado. E o instrumento fundamental para
atingir o objetivo foi identificado na confissão.

15. A obra de Sílvio Antoniano, Tre Libri deU'Educazione Christiana dei Figliuoli, Scritti ad Instanza di Mons. Iliustrissimo
Cardinale di S. Prassede Arcfoescot10 di Milano, Verona, junto a Sebastiano Dalle Donne e Girolamo Stringari
compagni, 1584, foi dirigida pelo autor aos "pais de família". Cf. Vittorio Frajese, II Popolo Fanciullo. Silt1io
Antoniano e il Sistema Disciplinare della Controriforma, Milano, 1987, p. 46.
16. Cf. Steven Ozment, When Fathers Ruled. Family Life in Reformation Europe, Cambridge Mass./London, 1983.
17. A relação entre pais e filhos é incorporada ao "regimento régio" por Francesco Tommasi, Reggimento dei Padre
di Famiglia, Firenze, tipografia de Giorgio Marescotti, 1580, p. 128.
18. Regole dela Vita Matrimoniale Utili a qualunche Persona che Desidera Vivere nel Timor di Dio, et Stato dei Santo
Matrimonio, Roma, junto a Vincenzo Lucrino, 1553.
19. lnstitutione di una Famiglia Christiana... Composta dai M. R. P Giooanni Leonardi, di nuooo Tistampata ad instanza
di Agostino Rispolo napolitano a commune utilità, Napoli, por Secondino Roncagliolo, 1642, p. 11.

A Confissão
307

Também nesse caso, Carlo Borromeo surge como modelo de uma tendência
disseminada. Juiz severo no tribunal da consciência, como queriam os bispos reforma,
dores de Trento, o confessor esboçado por Borromeo devia escutar descrições precisas,
distribuir sentenças proporcionais às culpas, solicitar quando necessário reparações
públicas. Se antes dele outros bispos já tinham se dirigido aos confessores, assinalando
o que deviam transmitir na relação a dois com o penitente, é com Carlo Borromeo que
o confessor torna,se um guarda aduaneiro que deve pedir contas aos penitentes, antes
de passar adiante, de como observaram os éditos, os admonitórios e os anúncios em
série emitidos pelo arcebispo. Nos Avvertimenti per li Confessori de Borromeo, lê,se entre
outras coisas: "Também não sejam absolvidos ... os que não notificaram o que sabem de
coisas, que tenham sido avisados a notificar por édito público, admonitório papal ou
arquiepiscopal, se antes não fazem a notificação e expiação" 2º. A precisão na descrição
das culpas era necessária para que pudessem haver intervenções e remédios apropriados.
Nisso, Carlo Borromeo demonstrava ter cumprido o espírito da reforma tridentina:
o confessor era entendido por ele como um juiz. Durante os debates tridentinos, essa
severa concepção do confessor provocara dúvidas e hostilidades: e em sua Istoria frei
Paolo Sarpi retomou tais críticas e acrescentou as suas. Que sentido tinha fazer do con,
fessor um juiz se o que dele se requeria não era uma sanção penal mas um ato de graça?

[... ] O ofício do juiz é tão somente declarar inocente aquele que o é, e culpado o transgressor.
Mas fazer do delinquente justo, tal como se atribui ao sacerdote, não sustenta a metáfora do juiz.
Concede o príncipe graça da pena aos delinquentes, restituindo à fama: a ele mais se assemelha
quem faz do ímpio justo [... ]2 1•

Mas o uso que os bispos tridentinos mais consequentes - e são Carlo Borromeo
depois deles - pretendiam fazer da confissão era justamente esse: um tribunal que inves,
tigasse atentamente as culpas para aplicar penas adequadas e para solicitar reparações
pontuais, um lugar enfim onde fosse possível fazer justiça, reconduzir a uma norma
exata as relações sociais. A estrutura territorial do governo eclesiástico devia permitir
isso: os párocos deviam governar a rede das relações sociais através da confissão, os bis,
pos deviam sabiamente ampliar ou restringir as redes do sistema dos casos reservados.
Vejamos bem como, a par do tribunal da Inquisição, tinha se delineado um tri,
bunal paralelo no foro confessional - ao menos na interpretação que os bispos triden,
tinos faziam desse foro. Nesse terreno, não foram seguidos pelas ordens religiosas que
conheciam bem as motivações profundas da confissão. Os penitentes que se apinhavam
em torno delas durante a Quaresma, não buscavam justiça, mas perdão; não retribuição
exata, mas eliminação e esquecimento da culpa; não terror, mas consolação. Não foi por
acaso que as resistências mais fortes a Carlo Borromeo vieram da ordem que escolhera

20. Awer~e... ai Confessori della Città, et Diocese sua, Milano, por Paolo Gottardo Pontio, 1574 (em Acta Ecclesiae
Mediolanensis, ed. Achilie Ratti, Mediolani, 189()..1896, vol. II, col. 1887).
21. Paolo Sarpi, Istoria del Concilio tridentino, org. de C. Vivanti, Torino, 1974, p. 583.

Bispos e Inquisidores para uma Sociedade Cristã


308

0 terreno da confissão corno seu. O pregador jesuíta Giulio Mazzarino criticou com
ásperas ironias a vontade centralizadora do arcebispo: em seus sermões milaneses de
1579, Mazzarino disse entre outras coisas "que se ele tivesse sido confessor, não teria
sabido confessar por causa da quantidade de casos reservados que ali eram publicados"zz_
Desencadeou-se um conflito que foi resolvido com o afastamento de Mazzarino:
mas a vitória do cardeal arcebispo de Milão foi efêmera. O fato é que o alinhamento
em campo de urna densa rede de casos reservados tornara a confissão uma fronteira de
conflitos contínuos. A declaração de guerra nesse terreno tinha sido feita por Paulo IV
Carafa, quando formulara a casuística da bula ln Coena Domini. O sentido do poder
eclesiástico, de suas prerrogativas e responsabilidades , que transparece nos atos de
Carlo Borromeo e que o levou ao duro embate contra o governo laico espanhol, tivera
sua manifestação mais intransigente e severa na decisão de Paulo IV de usar a exco-
munhão como instrumento para submeter à vontade eclesiástica os comportamentos
das autoridades civis. Para avaliar as consequências que podia ter um documento do
gênero nas mãos de um arcebispo como Borromeo, basta percorrer a correspondência
daqueles seus vigários encarregados por ele de transmitir sua vontade ao clero local e
às autoridades civis. A correspondência do padre de Biasca Giovanni Basso com Bor-
romeo volta continu.a mente aos problemas postos pela bula ln Coena Domini: nas Tre
Valli italianas da Suíça, havia uma grande quantidade de pessoas que descobriam ter
incorrido na excomunhão por terem feito simplesmente o que estavam habituadas a
fazer 23 • E quem se achava culpado de casos reservados devia providenciar uma viagem
a Milão para ser absolvido: coisa que frequentemente não estavam dispostos a fazer;
em Giornico, foi necessário o jubileu de 157 5 para resolver o problema de três homens
que tinham renunciado à confissão "por serem seus casos reservados, e nunca terem
querido apresentar-se em Milão nem ao vigário" 24 •
A situação de quem não queria se conformar à disciplina episcopal tornara-se
difícil: o sistema da reserva dos casos já se unia, sem deixar qualquer passagem, à rede de
controle de malhas cerradas estendida em torno dos espaços e dos tempos da confissão.

22. Citado por Flavio Rurale, I Gesuiti a Milano, op. cit., p. 234.
23. Cf. Sandro Bianconi, "Dall'Epistolario di Giovanni Basso", Archfoio Storico Ticinese, XXVIII, 1991, n. 110,
pp. 261-294.
24. Carta de G. Basso de 30 de setembro de 1575, idem, p. 257.

A Confissão
XIII
RITOS DE PASSAGEM,
PASSAGENS OBRIGATÓRIAS

arece que, lá por meados do século XVI, o professor Claudio Betti, docente de filo,
P sofia moral da Universidade de Bolonha, afastava-se da família e da cidade na Qua-
resma e dirigia-se a Módena, "e acreditava-se que ele o fizesse para furtar-se ao preceito
da comunhão pascal" 1• O caso de Betti pode servir para resumir emblematicamente o
novo e dramático significado assumido nessa época pela relação com os sacramentos na
Páscoa e sobretudo pela relação com um determinado território. Permanecer ou partir
era sinônimo de submeter-se ao controle ou escapar das malhas de uma rede, a rede dos
registros paroquiais.
O estudo dos registros paroquiais recebeu um notável impulso em épocas recentes
na Itália, estimulado por interesses relativos à história da população. Sobre a gênese des-
sas fontes , ou seja, sobre as razões que levaram as autoridades eclesiásticas à implantação
do sistema de controle baseado no registro de certos dados , não houve muita discussão:
prevalecem há muito as hipóteses gerais sobre os "motivos burguês-burocráticos" 2 que
mantiveram na sombra seus aspectos, por assim dizer, "feudal-repressivos". Longe de
qualquer generalização, é possível dizer que se sabem mais coisas sobre os registros de
batismo, de casamento e de morte do que sobre os destinados ao registro das confissões
e comunhões nos períodos obrigatórios do ano - ou seja, exatamente daqueles cum-
primentos religiosos que então assumiram um valor de indicador seguro da ortodoxia.
Trata-se precisamente do registro como instrumento burocrático que pressupõe uma
organização territorial do controle e uma série de funções e de regras: algo diferente
e moderno no que se refere à atenção relativa aos modos e às épocas da prática dos
sacramentos, que é um fato de origem mais antiga. Quanto à confissão e à comunhão,
a obrigação de praticá-las ao menos na Páscoa fora sancionada conforme desejo do papa
Inocêncio lll pelo Concílio Lateranense IV. Mas o problema tinha sido, durante muito

1. Girolamo Tiraboschi, Biblioteca Modenese, Módena, 1781, 1, pp. 267-272; em part. p. 270. Sobre Betti, autor do
pequeno tratado De!la Cena del Signore e de um Trattato della Verità e della Bugia (manuscritos conservados na
Bibl. comunale dell'Archiginnasio, Bologna, ms B. 3434), que mereceriam um estudo adequado, cf. também
o verbete de G . Stabile, em DBI, vol. IX, Roma, 1967, pp. 713-714.
2. O termo, de Hubert Jedin, é retomado por Paolo Prodi, "11 Concilio di Trento e i Libri Parrocchiali", em La
"Conta delle Anime". Popolazioni e Registri Parrocchiali: Questioni di Metodo ed Esperienze, org. de Gauro Coppola e
Casimira Grandi, Bologna, 1989, p. 14.
310

tempo, ensinar, persuadir, fixar na memória e na fantasia da população a importância


dos dois sacramentos - sobretudo da eucaristia. Os sinais de um controle sobre a prá-
tica efetiva começam a ocorrer apenas com o início de depoimentos e atas de visitas
pastorais. Os formulários elaborados pelos bispos para as visitas pastorais trazem em
primeiro lugar a pergunta sobre como vivem os leigos e clérigos, se se confessam uma
vez por ano e se recebem a Eucaristia na Páscoa 3• Em Ferrara, Pisa, Lucca, lá pelos
meados do século XV, ocorreram registros bem mais precisos dos casos dos que não
confessaram nem comungaram. Era o reitor da igreja que, a pedidos, "dava ao notário
da visita os nomes dos que não confessaram nem comungaram: o notário anotava-os
num papel para transcrevê-los mais tarde nas atas da visita" 4• A obra de controle era
o pressuposto necessário à intervenção, que devia dobrar as resistências e impor uma
prática uniforme. Os métodos eram pastorais, de persuasão: ao contrário, o início de
um sistema policial e coercitivo foi típico da época de Trento. Tudo isso poderia ser
facilmente explicável, pensando nos dois momentos de um processo de longo prazo, o
primeiro destinado a fixar o hábito na maioria da população, o segundo como fase da
identificação e punição de uma minoria resídua de renitentes. Porém, a história não é
um processo linear. Os dois momentos ocorreram, mas o segundo foi ilimitadamente
dominado pela luta contra a dissensão religiosa e pela violenta intolerância da Contrar-
reforma. Os dois momentos também podem ser diferenciados de acordo com a impor-
tância distinta assumida a cada vez por um ou por outro dos dois sacramentos. Em um
primeiro momento, foi a comunhão que suscitou mais resistências: e os dados foram
registrados justamente porque a estratégia eclesiástica consistia em fixar na população
o culto da Eucaristia. A confissão era um fato essencialmente privado e pessoal e não
estava necessariamente ligada à Páscoa, ao passo que a participação na comunhão era
um evento geral, no qual participar do divino exigia um estado de harmonia coletiva
e de perfeição individual: isso ajuda a entender porque era quase sempre vivida corno
um objetivo superior à própria condição 5•
Os fato de que muitos se confessavam com a intenção de não comungarem foi
denunciado, por exemplo, por são Bernardino de Siena6• Os dados coletados pelo vigário
Diotisalvi de Foligno na diocese de Pádua em 1454 mostram numerosos casos de pessoas
que não confessaram e não comungaram. Eram comportamentos devidos não a opções
teológicas, mas a impedimentos de caráter moral: quem estava brigado com vizinhos ou

3. "( ...} Utrum bene vivant ad conveniendum ad audiendum divina, et an semel confiteantur in anno vel Eu•
caristiam recipiant in Paschate" (questionário para as visitas pastorais de Giovanni Tavelli, bispo de Ferrara,
publicado por Guerrino Ferraresi, II Beato Giooanni Tat1e!li da Tossignano e la Riforma di Ferrara nel Quattroeento,
Brescia, 1969, vol. III, p. 93).
4. Enrico Peverada, LA Visita Pastora/e dei Vescooo Francesco Dai Legname a Ferrara (1447-1450), Ferrara, 1982, De·
putazione Provinciale di Storia Patria, sec. Monumenti, vol. VIII, p. 152.
5. A diferença entre os dois sacramentos é sublinhada por Miri Rubin, Corpus Christi, The Eucharist in LAte Medietl'11
Culture, Cambridge, 1991, p. 84.
6. Cf. Roberto Rusconi, "II Sacramento della Penitenza nella Predicazione di san Bernardino da Siena", Aewm,
XLVII, 1973, pp. 235-286; em part. p. 265.

A Confissão
311

com familiares , quem vivia em concubinato, quem tinha o hábito de blasfemar e de passar
o tempo na estalagem não se confessava, mas sobretudo não comparecia no momento
da comunhão anual7. Comportamentos desse tipo encontram-se documentados por
muito tempo: na primeira metade do século XVI , foram redigidas listas pontuais de não
comungados com a indicação dos motivos. Em geral, eram blasfemadores, jogadores,
amancebados. Não faltavam as mulheres, ainda que em minoria. Por exemplo, em 1544,
em Formigosa, região de Mântua, havia três mulheres que não comungavam: uma - Anna
Paralupi - por desejo de vingança, por sua filha ter sido assassinada; a outra, Francesca
Desiderata, por sua filha levar vida desonesta e ela ser considerada responsável por isso.
Havia finalmente certa Margherita, que vivia em concubinato. Foram convocadas à
presença do visitador: Anna recebeu a ordem de perdoar a homicida e um prazo para
que comungasse até o dia de Todos os Santos; quanto a Francesca Desiderata, permitiu-
-lhe receber a comunhão, mas se a filha reincidisse no pecado, ela seria punida com
três meses de prisão e depois exposta diante da igreja em atos de penitência pública.
Margherita, enfim, teve que prometer deixar seu companheiro dentro de um mês 8 • A
economia moral revelada por esse tipo de registro girava em torno da comunhão como
momento de solução dos conflitos e de eliminação dos pecados clamorosos. Por parte
dos bispos ou de seus vigários, tratava-se de aplicar a obrigação da prática anual dos
sacramentos, sancionada pelo Concílio Lateranense IV: não havia, ou de todo modo
não prevalecia, um uso instrumental dessa prática para verificar a ortodoxia. O bispo
de Verona Gian Matteo Giberti, que propiciou a muitos de seus contemporâneos um
modelo de bom pastor, ordenou aos párocos o registro dos não confessados e não
comungados e a indicação da causa de tal comportamento; mas no caso dele, já nos
' encontramos em um terreno diferente: o da proposta de uma recorrência frequente aos
sacramentos, confissão e comunhão, como instrumentos de aperfeiçoamento progres-
sivo. Por isso, não se contentou em exigir a cedula non eucharistiatorum9 e em intervir
pessoalmente para convocar os não comungados, mas recomendou de todos os modos
que recorressem com maior frequência à comunhão.
Como quer que seja, tratava-se de uma vontade de controle que tinha outras carac-
terísticas que não a pura vigilância anti-herética. É justamente essa função de desentocar
os hereges que, ao contrário, aparece em um édito de 1554, publicado conjuntamente,
em Milão, pelo arcebispo Giovan Angelo Arcimboldi e pelo comissário apostólico contra
a heresia. O édito referia-se à leitura e à pregação e ditava medidas bem severas contra a
difusão dos livros proibidos; prometia, entre outras coisas, a absolvição e a penitência
secreta a todos aqueles que se apresentassem para confessar suas próprias culpas ou

7. Cf. Pierantonio Gios, ll Graticolato Romano nel Quattrocento. LA Visita Pastorale di Diotisalvi da Foligno a Norckst
di Padooa (1454), Padova, 1995, pp. 50-53.
8. Romolo Putelli, Vita, Storia ed Arte Mantooana nel Cinquecento. li. Prime Visite Pastorali alia Città e Diocesi, Mantova,
1934, p. 52.
9. Esta é a denominação encontrada nas visitas pastorais (cf. a ata da visita de Santa Maria in Chiavica, de 9 de
março de 1541, publicado em Riforma Pretridentina della Diocesi di Verona. Visite Pastorali dei Vescooo G.M. Giberti
1525-1542, org. de Antonio Fasani, Vicenza, 1989, vol. lll, p. 1681).

Ritos de Passagem, Passagens Obrigatórias


312

para denunciar cúmplices. Além disso , quem contribuía para a detenção de cúmplices,
podia esperar como compensação receber uma parte dos bens sequestrados aos hereges.
No final do édito vinha publicado um amplo índex dos livros proibidos. Mas, antes
de passar à lista como tal, o édito ordenava que se provesse a realização da obrigação
da confissão e comunhão anual por ocasião da Páscoa: todos os padres responsáveis
pela cura das almas eram intimados a informar o povo do dever estrito de confessar e
comungar na Páscoa. Os contraventores teriam seus nomes publicados com ignomínia,
seriam excomungados e "expulsos das igrejas com grande vitupério" e, se pertinazes,
incorreriam nos rigores da justiça eclesiástica e da secular 10 • Era um endurecimento do
cânone de Inocêncio III Omnes utriusque Sexus , cujo objetivo de luta contra a Reforma
foi logo denunciado pelo exilado Pier Paolo Vergerio 11 •
Desde esse momento, pode-se dizer que o caminho estava escolhido. Não se
tratava mais de uma simples exigência de controle da prática sacramental, como a que
fora manifestada em muitos éditos e decretos sinodais. A associação de bispo e inqui-
sidor tinha levado essa passagem anual a tornar-se uma espécie de pente para desfazer
os nós heréticos ocultos. Mas antes que prevalecesse a exigência da identificação dos
hereges , a medida tinha conservado uma função de disciplina não limitada somente à
luta contra a dissensão doutrinária. O bispo Loffredo, da província de Salerno, ordenou
em 1537 o registro diferenciado e analítico de não confessados e não comungados e a
entrega das listas ao vigário-geral da diocese até a oitava de Páscoa: mas não parece que a
preocupação inquisitorial fosse a causa da providência 12 • Ordens urgentes nesse sentido
partiram também de Girolamo Seripando em 1554. Certamente, em muitas medidas
de tipo "pastoral" havia latente um potencial de vigilância anti-herética. De resto,
tinha sido na Espanha da "reconquista" que se começara a controlar o cumprimento
da obrigação estabelecida pelo Lateranense IV com registros destinados a identificar os
mal convertidos 13. Percebe-se aqui a função policial que esse tipo de informações podia
assumir: uma possibilidade que se desenvolveu na época da Reforma quando o ataque
protestante à confissão auricular deslocou a atenção das autoridades eclesiásticas para
esse sacramento como filtro obrigatório para identificar hereges. Assim, se os registros
de tipo cartorial - os destinados a registrar os batismos da população - começaram a se
alastrar muito rapidamente pela Itália, os referentes à confissão e comunhão aumenta-
ram consideravelmente somente na época tridentina. Em Roma, "as primeiras ordens
dirigidas aos párocos de registrar por escrito os confessados e os comungados durante

10. O édito foi reproduzido em fac-símile no volume de J. M. De Bujanda, Index de Venise 1549. Venise et Milan
1554 (Index des livres interdits, vol. III), Geneve, 1987, p. 459.
11. "( ...] Onde o dever exigiria que vós não alterásseis tais penas e aos nossos irmãos que não querem vir às vossas
confissões e comunhões outro mal não fizésseis além daquele que vossa lei impõe, vós a pretendestes modificar
e aumentar [... ]" (Catalogo del Arcimboldo Arcivescovo di Melano .., em 1554, c. 4v).
12. Cf. Francesco Volpe, "Strutrura dei Libri Parrocchiali fra Cinquecento e Seicento", em Il Concilio di Trento nella
Vita Spirituale e Culturale del Mezzogiomo tra XVI e XVII Secolo, org. de Gabriele De Rosa e Antonio Cestaro,
Venosa, 1988, vol. 1, pp. 65-82; v. p. 72.
13. Cf. o estudo de Ernesto Garcia Fernandez, Catecismos y Catéquesis Cristiana (v. cap. II, n. 18).

A Confissão
313

a Páscoa ocorreram todas após o fechamento do concílio tridentino" 14 • Na Sardenha,


segundo um estudo comparativo, os registros desse tipo são os únicos que não aparecem
5
antes de 1576' • Ora, foi justamente em torno dessa data que a imposição do controle
sobre os confessados e comungados generalizou-se: foi devido às visitas apostólicas
ordenadas por Gregório Xlll que o modelo de controle da frequência aos sacramentos
impôs-se até onde não havia bispos determinados como Carlo Borromeo. Naturalmente,
a visita episcopal e a contagem das almas foram também - como foi dito - "um grande
instrumento pastoral" 16 • A contagem dos não comungados teve a função - tanto no
mundo católico como no luterano - de identificar as hostilidades e resolver as rupturas
no interior da comunidade: o perdão das culpas individuais era ligado ao perdão recí-
proco por um vínculo antigo que, embora atenuado , ainda vigorava no século XVI. No
Wurttemberg luterano e na Bolonha católica do final do século XVI , para ser admitido
na comunhão e no apadrinhamento vigoravam normas semelhantes: era necessário, por
exemplo, demonstrar saber de cor o Pater Noster. Em Gõppingen o pastor denunciou
o septuagenário Lienhart Seitz por não saber rezar o Pater Noster - ou melhor, por não
querer rezar o trecho que ligava o perdão divino dos pecados ao perdão recíproco das
ofensas - e por isso excluir-se da comunhão 17 • A normalização d~ prática sacramental
e o aprendizado quase sem erros das preces fundamentais - o Pater Noster, a Ave Maria,
o Credo, os dez mandamentos - parece um processo concluído por volta de meados do
século XVII em muitas dioceses católicas 18 • Mas um fato é certo: a rigorosa imposição
do controle eclesiástico por meio de registros apropriados quanto à execução do dever
de confessar-se e comungar-se não tivera apenas motivos pastorais nem tinha o objetivo
único de restabelecer a paz social: tratava-se de desalojar dissidentes e hereges, além de
impor a obediência às regras da sociedade cristã.
O registro, assim como aparece em forma mais ou menos estereotipada, dos
decretos dos sínodos diocesanos e dos concílios provinciais - bem como dos decretos

14. C. Sbrana, "Origini ed Evoluzione dei Libri Parrocchiali Romani con Particolare Riferimento allo Stato delle
Anime", em C. Sbrana, R. Trai na e E. Sonnino, Gli "Stati delle Anime" a Roma dalle Origini ai Secolo XVII, Roma,
1977, p. 52.
15. Cf. Bruno Anatra, Anna Maria Gatti e Giuseppe Puggioni, "Cinque Libri nella Sardegna Centto-meridionale",
em La "Conta delle Anime", op. cit., pp. 124-133; em part. a tabela à p. 122. Alguns registros anteriores a essa
data contêm somente relações nominais da população (cf. Fonti Ecc 1esiastiche per lo Studio della Popolazione della
Sardegna Centro-m.eridionale, Roma, 1983, org. de Bruno Anatra e Giuseppe Puggioni, p. 635). F. Volpe (Struttura
dei Libri Parrocchiali, op. cit., p. 73) afirma ter encontrado um único registro de estato de almas no século XVI
para a área napolitana e salernitana: o de Pagani, que remonta a 1575.
16. Marc Venard, "Le visite pastorali francesi dal XVI al XVIII secolo", em Le Visite Pastorati, org. de Umberto
Mazzone e Angelo Turchini, Bologna, 1985, pp. 13-55; em part. p. 32.
17. Para Bolonha, cf. Paolo Prodi, Il Cardinaie Gabriele Paleotti (1522-1597), Roma, 1967, ll, pp. 184-185; para
Wurttemberg, cf. David Warren Sabean, Power in the Blood. Popular Culture and Village Discourse in Early Modem
Germany, Cambridge, 1984, pp. 38 e ss.
18. Para a região de Toledo, é esta a conclusão de Jean-Pierre Dedieu, "Christianisation en Nouvelle-Castille.
Catéchisme, communion, messe et confirmation dans l'archevêché de Tolede, 1540-1650", em Mélanges de la
Casa de Velazquez, Xv, 1979, pp. 261-293 .

Ritos de Passagem, Passagens Obrigatórias


314

dos visitadores apostólicos de Gregório XIII - era caracterizado por uma extrema com-
plexidade burocrática. Sigamos o modelo proposto por Carlo Borromeo. O confessor
oficial é o pároco. A ele deve se dirigir o fiel que quer confessar-se e comungar-se. E aqui
surge imediatamente o problema dos que não têm domicílio fixo , que se deslocam por
motivo de trabalho, que mudaram de casa nos últimos meses. Trata-se de identificá-los
com precisão: mas é evidente, de um lado, que a estabilidade da população é um ingre-
diente fundamental para implantar um controle eficaz e, de outro, que os nômades e
os marginais são suspeitos como tais.
O pároco deve manter um registro dos residentes em ordem alfabética, separado
do livro das almas. Nesse registro "quando vêm se confessar, marque com um ponto ou
traço o nome dele ou dela, que tiver confessado; ou, então, quando ministrar a confissão,
tenha consigo um pequeno quinterno 19, e quando a tiver ministrado a alguém, escreva
nele o nome e sobrenome do confessado, ou da casa onde está" . Se o fiel confessou em
outro lugar, deve trazer um atestado - uma "fé" - redigido pelo confessor de acordo com
um modelo determinado. Nesses casos, o confessor que não é pároco deve , de qualquer
modo, ter aprovação do bispo e manter consigo uma relação exata das fés que de quando
em quando terá de emitir, "para que possamos saber melhor se as fés não foram fraudadas
por um inconfesso". As fés devem ser entregues ao pároco pelo menos três dias antes da
comunhão da Páscoa, para que haja tempo de fazer as devidas verificações e controlar
os casos suspeitos 20 • No momento da comunhão, tem-se a conclusão de tanto trabalho.
Quem se apresenta para comungar, traz um "boletim" com seus dados de identidade:
nome, sobrenome, endereço. O sacerdote celebrante é assistido por um clérigo ou por
um leigo de boa fama, que recolhe os boletins e lê com voz clara os nomes escritos.
No final do rito, o pároco assinala em sua lista os nomes dos boletins. Os que faltam à
chamada sem justificação válida recebem penas graves: afixação dos nomes nas portas
das igrejas, admoestações públicas, finalmente comunicação dos nomes ao bispo para
as providências necessárias (excomunhão, processos).
Encontram-se por toda parte variantes secundárias do modelo: por exemplo, a
lista dos comungados podia ser elaborada com o simples registro dos nomes durante a
comunhão pascal. Mas, visto que a lista devia ser feita durante a comunhão, isso exigia
o auxílio de um clérigo (ou pelo menos de um leigo de boa fama) que devia escrever os
nomes com a máxima rapidez (quam celerrime 21 ). A lista confrontada com o registro das
almas, depois, devia permitir ao pároco identificar os faltantes e denunciá-los. O visi-
tador apostólico Gian Barrista Castelli, educado na escola de Borromeo, ofereceu uma

19. Conjunto de cinco folhas de papel dobradas em dois e colocadas uma dentro da outra (N. do T.).
20. As citações foram tiradas dos "Awertimenti", em Acta Ecclesiae Mediolanensis, organizados por Federico Bor-
romeo (edição Lugduni, 1682, pp. 654 e ss.).
21. Constitutiones et Decreta Promulgata in Dioecesana Synodo, Celebrata sub Reverendiss. D. Michaele Priolo Episcopo
Vicentino, Anno... 1583, Vincentiae, apud Perinum Bibliopolam et Georgium Gracum socios, 1584, c. 6Cw.
Michele Priuli segue aqui, como declara expressamente, o modelo do concílio provincial de Carlo Borromeo;
nas primeiras Constitutiones pós-tridentinas de Matteo Priuli essas normas não aparecem e trata-se apenas do
clero diocesano (Constitutiones et Decreta ... 1566, Patavii, Laurentius Pasquatus excudebat).

A Confissão
315

descrição do mecanismo de controle tão precisa que chega a ser pedante: o pároco, ao
distribuir a eucaristia, devia ser precedido de um passo ou dois por um clérigo, ao qual
quem desejava comungar devia entregar a schedula com nome e sobrenome anotados:
nada de ficha , nada de comunhão 22 •
Um episódio emblemático ocorreu em Pisa, em maio de 1573: o pároco de Treg-
giaia, durante as festas da Páscoa, advertira o povo "de que quem não tivesse confessado
durante toda a oitava e recebido o santíssimo sacramento do corpo de Cristo seria sub-
metido ao procedimento ordinário" , com a denúncia e a consequente excomunhão 23 •
E logo um leigo da paróquia considerara seu dever ir contar ao padre que

Domenico di Simone, ferreiro do referido lugar I... J estando em via pública e proferindo na
presença de outras pessoas I... ] disse o referido Domenico que a confissão e comunhão eram uma
cerimônia mundana e que o homem podia se salvar sem essas santíssimas circunstâncias, e disse não
querer confessar nem comungar e assim o fez , até a presente data I...]

A reação da autoridade eclesiástica foi imediata: e o que chama a atenção é o


rápido deslocamento de toda a matéria do bispo ao inquisidor. O ferreiro é preso, os
consultores do Santo Ofício entram em ação e, não obstante ter o artesão voltado ime-
diatamente atrás, a questão vai crescendo num acúmulo de doutrina teológica e jurídica
sobre a questão do significado das "cerimônias" e onde reside a heresia. Evidentemente,
nem a estrutura diocesana era suficientemente forte para fazer frente por conta própria
a protestos e dissensões desse tipo, nem as ideias eram suficientemente claras sobre
questões não secundárias - o que era "cerimônia" e o que era a essência do sacramen-
to. Justamente nisso a fraqueza da estrutura diocesana era particularmente grave. Em
1569, o cardeal Fulvio Della Corgna, bispo de Perúgia, pusera à prova a preparação do
capelão da paróquia de San Costanzo perguntando-lhe se, em matéria de confissão,
a absolvição era ou não válida sem a colocação das mãos na cabeça do penitente. A
resposta fora clara: não, essa colocação não era uma "cerimônia" secundária, mas uma
parte essencial do sacramento; como também, segundo o capelão, era parte essencial
uma fórmula de absolvição extraordinariamente prolixa. O cardeal tentara explicar a
diferença entre matéria e forma no sacramento da penitência e no da comunhão: e,
uma vez que o capelão tinha sido também pedreiro, deu o exemplo da terra e da água
para fazer tijolos. Mas, com base nisso, era difícil fazer as coisas funcionarem de modo
eficaz. Os confessores e seus penitentes continuaram a pensar que a mão na cabeça
constituía o momento decisivo da absolvição; e os confessores, diante da solicitação
de absolver também por casos reservados, continuaram a fazê-lo, quiçá com a restrição

22. Decreta Generalia a... Patre D. lo. Baptista Castellio... Aedita, Parmae, apud Erasmum Viottum, 1594, pp. 18-19.
Castelli tinha sido vigário-geral de são Cario Borromeo e presidira o terceiro concílio provincial; a visita apos-
tólica a Parma acontecera em 1578 (cf. Hamilcare Pasini, Applicazione del Concilio di Trento in Diocesi di Parma
nella Visita Apostolica di Mons. G. B. Castelli, Parma, 1953).
23. AAP, lnquisizione, b. 2, ff. 2lr e ss.

Ritos de Passagem, Passagens Obrigatórias


316

mental praticada pelo capelão de Perúgia: "Eu o absolveria daqueles pecados que pu-
desse absolver" 24•
Nem por isso a tentativa de cerrar as fileiras da estrutura diocesana quanto a
esse ponto de contato decisivo entre clero e laicos foi abandonada. Após o concílio ,
as visitas apostólicas organizadas e impostas por Gregório XIII foram um momento
significativo de verificação. Pareceu claro, então, que o mecanismo que se queria impor
baseava-se no nexo estreito entre confissão, comunhão e clero paroquial. Se a liberdade
tradicional fosse mantida, a relação anárquica com frades de passagem teria tornado r
incontrolável o efetivo cumprimento da obrigação. Era uma modificação que subvertia
completamente os costumes tradicionais: não mais objeto de livre escolha com base em
afinidades espirituais, a relação com o confessor tornava-se a malha fundamental de
uma rede de controle lançada pela autoridade eclesiástica sobre a prática sacramental.
Mas a partir do novo modelo também surgiam problemas novos. Entretanto, o
sistema de fichamento burocrático aplicado à confissão corria o risco de tornar trans-
parente o julgamento que o confessor-juiz formulava ao término do interrogatório. Se
um penitente afastava-se do confessionário, sem levar consigo a ficha a ser devolvida
na hora da comunhão, todos os presentes podiam entender que não recebera a absol-
vição. Era aqui que se revelava a intenção de uma sociedade governada por um corpo
de funcionários rigorosos, onde os confissionários funcionavam como tribunais da
moralidade coletiva e os pecadores públicos eram publicamente banidos na hora da
comunhão. Porém, tudo isso entrava em choque com o caráter secreto da confissão
auricular reforçado em Trento e com o caráter consolador e ciosamente privado que a
confissão das culpas tinha assumido cada vez mais; por isso, acabou-se permitindo que
os párocos entregassem o cartão de absolvição também para os não absolvidos, para
evitar escândalos 25 •
Além disso - e esse não era um problema de pouca monta - a estrutura territorial
do governo pastoral ligava sua eficácia à estabilidade, ao ordenamento local. O fiel de-
finido pelas normas tridentinas era sobretudo uma pessoa com residência fixa, que não
se afastava da paróquia por períodos demasiadamente longos, que voltava para ela pelo
menos para cumprir seus deveres de frequência sacramental. Era o sonho de um mundo
fechado e imóvel, que, no entanto, não ficava confinado à imaginação da utopia, mas
tentava tornar-se a realidade cotidiana da vida. Os mundos imaginários sonhados pelos
utopistas e pelos reformadores da época, desde a ilha inventada por Thomas Moore
até a Cristianópolis de Valentin Andreã, foram mundos fechados e estáticos, onde o
controle capilar era exercido sobre comunidades circundadas por muralhas intranspo-

24. Cf. Ugolino Nicolini, "La Visita Apostolica Post-tridentina", em Storia e Cultura in Umbria nell'Età Moderna
(Sec. XV-XVII) . Atti dei Convegno di Studi Umbri, Gubbio 18-22 maggio 1969, Gubbio, 1972, pp. 457-473; v. em
part. pp. 468-469.
25. Mas estudou-se uma complicada estratégia para recuperar a cedula: cf. lo. Baptistae Bernardini Possevini Man·
tuani, De Officio Curati, ad Praxim, Praecipue circa Repentina, et Genera!iora, Venetiis, ex typographia Salicata,
1618, p. 137. Idem, pp. 56-61, a casuística do comportamento a ser seguido ao ministrar os sacramentos aos
pecadores públicos e ocultos.

A C onfissão
317

níveis. Algo dessa inspiração encontra-se na literatura normativa eclesiástica da época


tridentina. Quando o bispo teatino Paolo Burali tentou proibir os cidadãos de Piacenza
de passarem as principais festas do ano no campo, deu voz justamente a esse sonho de
26
mundo fechado • Naturalmente, seu esforço de persuasão estava destinado a esboroar-
-se contra a antiga prática da vilegiatura, que naquele século encontrou nova força. Tam-
bém o fenômeno do nomadismo impôs sua realidade aos sonhos do governo eclesiástico:
a confissão do nômade (vagus) foi regulada pela simples norma tradicional, segundo a
qual ela competia ao pároco do lugar onde o nômade se encontrava no momento do
preceito pascal. Mas uma limitação foi acrescentada à regra geral: o nômade podia gozar
dessa liberdade especial desde que vagar de um lugar a outro não fosse uma esperteza para
evitar submeter-se a seu pároco 27 • O caso do professor Claudio Betti ensinara alguma coisa.
Porém, onde existiam fronteiras mais difíceis de ultrapassar, daquelas que dividiam
cidade e campo, então o sonho eclesiástico de um mundo fechado podia traduzir-se em
medidas mais eficazes. Se alguém devia se expatriar por trabalho, como acontecia aos
mercadores ou aos emigrantes, então devia-se arranjar permissões e atestados, princi-
palmente se ia a países protestantes. Assim, por exemplo, o mercador bolonhês Matteo
Spínola, em 1572, devendo dirigir-se por motivo de trabalho a Nuremberg, precisou
pedir permissão ao bispo Paleotti e ao inquisidor, garantindo que se confessaria duas
vezes ao ano a um sacerdote católico e que na volta exibiria o atestado relativo 28 • Desse
modo, desde o primeiro momento, o funcionamento da rede paroquial e diocesana
revelava seus limites e entregava-se ao poder do grande olho central da Inquisição.
Todavia, deve-se recordar um fato importante: se na disputa entre o bispo e o
inquisidor foi o último que saiu vitorioso, aos olhos dos laicos da época tornou-se
evidente uma identidade substancial entre os modelos propostos por uma e por outra
autoridade eclesiástica - uma identidade que derivava de uma mutação na natureza da
confissão. Em 1577, o arcebispo de Nápoles Paolo Burali, após um profundo exame
da preparação dos confessores napolitanos, conferiu a apenas alguns deles (dezoito ao
todo) a autoridade de absolver pelos casos reservados. Imediatamente, espalhou-se por
Nápoles o temor de que esse fato "devia ser princípio de inquisição"; a preocupação
foi tão forte que o eleito do povo e os capitães das Piazze dirigiram-se ao vice-rei para
indagar, justamente, se se tratava ou não de um "princípio de inquisição". O vice-rei
conseguiu evitar a muito custo uma reunião das Piazze e uma agitação citadina maior;
pediu a intervenção do núncio pontifício, que veio a ocorrer. O arcebispo , chamado
a dar explicações, fez ver que a reserva de casos "não era nova porque é praticada por
todos os bispos, uns mais, outros menos, de acordo com o que julgam ser útil para a
saúde das almas" 29 •

26. Constitutiones Editae, et Promulgatae in Synodo Dioecesana P!acentina, quam Illustrissimus et Reverendissimus D. D.
Paulus de Aretio, SRE Presbyter Cardinalis ... Habuit, Placentiae, apud Franciscum Comitem, 1570, p. 118.
27. "[ ... ] dum modo non vagetur, ut evidat iudicium proprii parochi" (Possevino, De Officio Curati, op. cit. , p. 114).
28. Memorial de 4 de agosto de 1572, in Biblioteca dell'Archiginnasio, Bologna, Litterae Sacrae Congregationis s.
Officii, vol. C, n. DOO(.
29. Retomo as citações de Pasquale Lopez, Clero, Eresia e Magia nella Napoli dei Viceregno, Napoli, 1984, pp. 74-75.

Ritos de Passagem, Passagens Obrigatórias


318

Burali tinha razão: como verdadeiro discípulo de Carlo Borromeo, não fizera
outra coisa a não ser aplicar a metodologia rigorosa do controle territorial sobre a
administração da confissão, elaborada pelos bispos que estavam mais preocupados em
usar esse instrumento para impor uma nova moralidade coletiva. Por isso, o despreparo
específico dos confessores parecera grave, tanto que o próprio Burali tinha publicado
um douto e minucioso catecismo penitencial para ser estudado pelos sacerdotes das
cidades. Era convicção disseminada que não se podia mais aceitar a forma tradicional
dos pregadores quaresmais de passagem, que ministravam a confissão como um ritual
periódico, sem levarem em conta o objetivo de transformar a penitência em ascese
cotidiana. O rigorismo episcopal pretendia aproveitar a confissão para reformar em
profundidade a moralidade coletiva. E a Inquisição inseriu aí suas exigências.

A Confissão
XIV
INSTRUMENTOS E OBSTÁCULOS:
O CLERO DOS CONVENTOS
E DAS PARÓQUIAS

fato de o nome de Carlo Borromeo sobressair-se no horizonte do panorama da

º proposta episcopal de reforma não permite incidir nos dois erros, opostos e com-
plementares, de considerá-lo um caso absolutamente excepcional, ou então, um expoente
típico de toda uma época. Certamente, o panorama esteve congestionado de situações
muito diferentes entre si; mas os modelos de direção episcopal que brilharam no horizonte
dos bispos italianos do século XVI foram encarnados por poucas figuras: Gian Matteo
Giberti para a geração dos anos do concílio e Carlo Borromeo para a época pós-conciliar.
Era ingrediente fundamental desse modelo a ideia da obrigação de residência: ideia
amplamente difundida, que contava entre seus mais convictos defensores com o próprio
pai da Inquisição romana, Gian Pietro Carafa. Tão logo se tornou papa, foi Carafa quem
tentou tentou resolver também esse problema com o modo de agir abrupto e autoritário
que o caracterizava: a bula com que impôs aos bispos, em 1559, o abandono imediato da
corte e a ida às próprias sedes, encheu a cúria de caras fechadas e de barulho de esporas 1•
Sempre por vias centralizadoras e com burocrática dureza, Carafa propôs-se a regular em
consistório o modo "como esses bispos deverão governar seus cônegos e padres" 2• No
entanto, mais do que semelhantes penadas autoritárias, foram outros fatores a impelir os
bispos às suas sedes: de fato, a opção do jovem cardeal Carlo Borromeo de deixar Roma
não obedeceu a constrangimentos externos, mas a convicções pessoais. Porém, logo que
os bispos se transferiram para suas sedes, colocou-se o problema da relação entre um
desejo de regulamentação da sociedade de acordo com certos critérios e os instrumentos
disponíveis: não só as instituições tradicionais do poder de jurisdição - os tribunais das
cúrias episcopais, de cuja atividade nesse período sabe-se muito pouco - mas sobretudo
os homens, as redes de padres e frades que envolviam o território diocesano. A primeira
reação dos bispos ao contato com suas sedes, nos anos do Concílio de Trento, foi a busca
de auxílios para remediar as carências encontradas no clero local. Foram numerosos os
apelos que chegaram às recém-nascidas congregações de clérigos regulares e, em particular,

1. "[ ... ] Ouve-se um rumor de botas e esporas, com certos rostos sombrios e, como se costuma dizer, mal encarados"
(carta de Andrea Monteceneri a Annibale Campeggi, Roma, 8 mar. 1559, em Archivio di Stato di Bologna,
fundo privado Malvezzi Campeggi, s. Ili, Lettere, vol. 13/536bis, cc. n. n.).
2. Idem.
320

à Companhia de Jesus: cardeais e bispos faziam tratativas para obter o envio de alguns
desses clérigos às suas dioceses, para desempenharem missões de alto controle do clero:
visitas pastorais, atividades de estimulação religiosa, mas principalmente ensino - como
pregar, como ministrar os sacramentos, sobretudo como confessar. E aqui nos deparamos
com a questão da ignorância do clero, acusação tão generalizada nos documentos da época
quanto fonte de mal-entendidos no âmbito histórico.
De fato , a acusação de ignorância foi uma das formas assumidas então pela luta
para levar às extremas periferias as linguagens elaboradas no centro. Não é o caso de
falar de ignorância em termos absolutos: a enérgica presença dos religiosos de várias
ordens nas discussões religiosas das cidades italianas na primeira metade do século XVI
mostrou que existia um problema de indisciplina, não de ignorância. E o mesmo vale
para o universo das paróquias: as crônicas e as memórias redigidas pelos párocos do
século XVI, ainda pouco estudadas, comprovam não só a cultura literária frequentemente
notável dos autores , bem como a forte ligação que mantinham com suas comunidades 3•
Mas é justamente este o ponto. O que se exigia, essencialmente, era a correção de um
modo de formação do clero que garantisse uma disciplina uniforme e a eficiência na
transmissão ao povo de determinados modelos. Era preciso um novo tipo de cultura:
e nesse sentido a importância dos jesuítas residiu justamente na flexibilidade e pres-
teza com que souberam propiciar o necessário, assim como tinham feito em outro
plano com sua proposta do colégio no quadro da crise do ensino universitário. Mas
era sobretudo uma questão de poder: o padre devia inserir-se na cadeia de comando
eclesiástica, destacando-se da sociedade na qual costumava mover-se e com a qual se
identificava, nas práticas cotidianas, no modo de vestir e de falar. Durante anos e
anos, as queixas e reprimendas das autoridades eclesiásticas a propósito do clero das
paróquias bateram nas mesmas teclas de acusação: padres que se vestiam como leigos,
que exerciam profissões de leigos, que jogavam cartas nas estala~ns ou gritavam nas
praças e nos mercados com as mesmas inflexões dialetais e com as mesmas expressões
vulgares da gente do povo. Em vez disso, o padre devia representar o corpo eclesiástico
aos olhos do povo e transmitir sua mensagem de modo correto e uniforme - com um
vestuário determinado, com ritos uniformes, com uma pregação que devia receber a
aprovação do bispo e não a do povo: era uma verdadeira inversão de perspectiva. O
fato é que o clero das paróquias tinha uma relação própria com os detentores do direito
de patronato sobre os benefícios: com os administradores dos bens móveis e imóveis
da igreja, com a família que detinha o juspatronato4 e, em todo caso, com os poderes
radicados no próprio local onde era exercida a orientação das almas. Despojá-los dessa
ligação e obrigá-los a relacionarem-se com o novo poder episcopal foi empresa dura e
demorada, nem sempre coroada de sucesso. Conhecemos pouco do lento processo de

3. Veja-se, do autor deste volume, para uma apresentação sumária de alguns casos, "Un Vescovo e il suo Pievano:
Feliciano Ninguarda e Domenico Tarili", Archivio Storico Ticinese, n. 116, dez. 1994, pp. 231-243.
4. Instituto jurídico do direito canônico, que consiste em uma série de privilégios e deveres atribuídos, por dis-
posição da autoridade eclesiástica, aos fundadores de igreja ou benefícios e a seus herdeiros (N. do T.).

A Confissão
321

colonização que retirou do clero das paróquias seu papel de pequeno mas importante
ofício de prestígio, articulado solidamente entre as realidades locais e habituado a
relacionar-se com elas. Foi necessária uma complicada pedagogia, que por vezes pôde
servir-se de escolas especiais - os seminários - mas que tentou , por todos os meios ,
obrigar o baixo clero a mudar completamente sua orientação: uma coisa era ganhar a
eleição para um determinado benefício, conquistando o favor dos paroquianos ou dos
poderosos do lugar, outra coisa era demonstrar ao bispo possuir as qualidades neces-
sárias. Foi uma mudança de cultura, mas foi principalmente uma orientação diferente
imposta à bússola do clero paroquial. A luta contra a "ignorância" do clero era uma
luta contra uma cultura e um poder que deviam ser derrotados: a cultura que servia ao
pároco para obter o consenso de seus paroquianos, dos administradores da igreja, da
família que possuía o juspatronato da paróquia, não era a mesma que o bispo estava
disposto a valorizar. O exame dos sermões que Carlo Borromeo mandou preparar para
o clero de suas paróquias traz à tona o dificultoso processo de reconversão cultural e de
poderes que ocorreu então 5 • Afastar o baixo clero das dinâmicas dos poderes locais não
foi empresa breve nem fácil, até por não se tratar somente de substituir pela dimensão
piramidal e hierárquica da estrutura eclesiástica a estrutura horizontal das pegajosas
ligações comunitárias de povoado. No âmbito dos poderes havia outros concorrentes: se
em Milão Carlo Borromeo teve de enfrentar as organizações nobiliárias de sua diocese,
problemas não demasiadamente diferentes foram enfrentados pelo bispo de Marsico,
quando tentou reconduzir sob sua jurisdição um clero ligado ao baronato local e capaz
de promover causas contra ele nos tribunais romanos 6 •
O problema do clero dominou as preocupações dos bispos da época tridentina.
Isso não quer dizer que a questão da "reforma do povo cristão", como se dizia à época,
fosse negligenciada; pelo contrário. Vimos como eram vastas as ambições do modelo
episcopal de reforma. Em seu interior, colocava-se também a questão da heresia e do
controle doutrinário stricto sensu. A própria estrutura inquisitorial outra coisa não foi,
no início, senão um dos instrumentos disponíveis para os bispos reformadores. Todos
aqueles que, a exemplo de Borromeo, chegaram às respectivas dioceses com anteriores
experiências de poder paroquial e com privilégios adequados enfrentaram as questões
de seu governo, sem fazer muita referência ao tribunal inquisitorial. Foi esse o caso de
Giberti em Verona, de Cervini em Reggio Emília e Gubbio, de Morone em Módena, de
Paleotti em Bolonha: alguns desses pessoalmente, outros através de seus vigários, trata-
ram diretamente dos casos de heresia 7• A vigilância doutrinária foi expressa em éditos

5. Um estudo exemplar a respeito é o de Wietse de Boer, "The Curate of Malgrate or the Problem of Clerical
Competence in Counter-Reformation Milan, em The Power of lmagery, Essays on Rome, ltaly and lmagination, org.
de Peter van Kessel, Roma, 1992, pp. 188-200 e 300-316.
6. Cf. Giovanni Antonio Colangelo, La Diocesi di Marsico nei Secoli XVI-XVIII, Roma, 1978, p. 26.
7. Para Giberti, veja-se do autor deste volume "Un Processo per Eresia a Verona Verso la Metà dei Cinquecento",
Quademi Storici, XV, 1970, PP· 773-794. Quanto a Cervini, entre as cartas que Ludovico Beccadelli escreveu-
-lhe de Reggio Emília, algumas dizem respeito ao caso de Antonio Lorenzini, comissário de Cervini para a
visita diocesana de 1543: Lorenzini tinha lido uma obra de Lutero, motivo pelo qual - escreve Beccadelli - "os

Instrumentos e Obstáculos: O Clero dos Conventos e das Paróquias


322

de meados do século XVI, como os do bispo de Brescia, em que se ordenava denunciar


"Luteranos" e "Lâmias" , ou seja, hereges e bruxasª. Logo após O concílio, os sinais de
uma vontade de impor O controle episcopal nas matérias doutrinárias multiplicaram-se.
O modelo oferecido em Milão pelo jovem e determinado cardeal sobrinho, tornado
arcebispo, exerceu uma influência enorme e imediata. Outros bispos, como o literato
Girolamo Vida, informaram-se solícitamente sobre os "abusos" que os visitadores
encarregados por Borromeo tinham encontrado; e a relação de abusos proposta por
Vida é indicativa do modo como o problema da heresia misturava-se a muitos outros:

Que não vos seja penoso, portanto, avisar-me oportunamente [... ] sobre usuras e contratos
feneratícios ; sobre a blasfêmia; sobre a inobservância das festas ; sobre concubinatos; sobre usurpado-
res de bens eclesiásticos ; sobre o vestuário e hábito pouco religioso dos sacerdotes; sobre os hereges ,
feiticeiros e supersticiosos , e muitos outros delitos dignos da censura eclesiástica 9 •

O início da obra normativa de Carlo Borromeo produziu ecos imediatos. Tratava-


-se, como pode ser lido nos decretos do concílio provincial de Ravenna, de empreender
uma obra vasta e minuciosa de controle, que devia impedir a circulação de heresias, a
impressão e a circulação de livros proibidos (mas também todos os crimes de palavra,
sobretudo se ligados às sagradas Escrituras), os conciliábulos suspeitos, em particular
os de iletrados e de rudes onde se falasse de coisas concernentes à fé, os abusos relativos
às imagens sacras, as representações teatrais de mistérios sagrados, as bruxarias e os
encantamentos, as superstições, a blasfêmia 10. Em tudo isso, o inquisidor era assumido
como um auxiliar da ação de governo episcopal, alguém cuja atuação devia ser ajudada,
assim como a do bispo 11 •

confessores dizem que está excomungado e há necessidade de autoridade apostólica. Rogo a V. S. Rev.ma
que me conceda a autoridade de absolver ao menos desta vez[ ... ]" (carta de 9 de fevereiro de 1543, Biblioteca
Palatina di Parma, Pai. 1009, c. 109r). Quanto a Morone, as cartas que lhe foram enviadas de Módena relatam
casos semelhantes ao do jovem modenense que, "achando-se envolvido em algumas heresias", passara "treze
anos sem confissão e comunhão" e, desejando voltar ao "bom caminho", contava com os poderes do cardeal
para ser absolvido do modo mais breve (carta de 28 de novembro de 1565, de Módena, de frei Domenico de
Ímola a Morone, publicada por A. Mercati, Il Sommario del Processo di Giordano Bruno, con Appendice di Documenti
sull'Eresia e l'lnquisizione a Modena nel Secolo XVI, Cidade do Vaticano, 1942, p. 139; cf. ainda idem, p. 141, onde,
entre outras coisas, frei Domenico admite que, devido à sua predileção por esses métodos, o povo considera-o
"demasiadamente brando". Com os mesmos métodos, Beccadelli, vigário de Marcelo Cervini em Reggio Emilia,
ia submetendo ao cardeal os casos de quem, caido em heresia, queria retornar sem estardalhaço à comunhão
eclesiástica. Para Paleotti, cf. P. Prodi, Il Cardinale Gabriele Paleotti, Roma, 1962-1968.
8. Éditos publicados por Paolo Guerrini, Atti della Visita Pastorale dei Vesco110 Domenico Bollani alia Diocesi di Brescia,
vol. II, Brescia, 1936, p. VIII.
9. Carta a Carlo Ormaneto, vigário-geral de Carlo Borromeo, Cremona, 27 ago. 1564 (Biblioteca del Seminario
di Padova, cód. 350, c. 78r).
10. Decreta prOt1incialis synodi Ra11ennatis, [... ] domin. Iulio Feltrio de Ru11ere, Romae, apud haeredes Antonii Bladii,
1569, cc. 5v-13v.
11. "Episcopis atque aliis sacrae lnquisitionis ministris auxilium, fa11orem et consilium praebeant" (idem, c. 511).

A Confissão
323

Os bispos que tentaram executar esse modelo enfrentaram resolutamente o


mundo dos privilégios monásticos dos quais a tnquisição era a expressão máxima.
O tipo de governo eclesiástico proposto por eles consistia num firme domínio da
população de um determinado âmbito territorial: toda a população, inclusive ecle,
siásticos. Aliás , o problema principal foi justamente impor um novo ordenamento às
relações dentro do clero, obrigando os padres e, numa certa medida, os frades a levar
em consideração a nova organização do poder. Os ricos capítulos das igrejas catedrais,
os confessores e os pregadores provenientes dos conventos, os próprios párocos e cape,
lães tiveram que redefinir âmbitos e modos de suas atividades, tendo em conta a nova
presença do bispo. E não se tratava de coisa de somenos, tanto que a empresa se revelou
quase sempre superior aos meios ordinários à disposição dos bispos. Era extremamente
difícil acabar com os privilégios e as isenções das ordens religiosas: e aqui somente a
autoridade delegada pelo papado garantiu aos bispos alguma possibilidade de enfren,
tar com sucesso os poderosos antagonistas entrincheirados em seus conventos e nos
capítulos das catedrais 12 • Nesses conventos desenvolvia,se a parte maior e mais intensa
da vida religiosa, desde as confissões às múltiplas formas das devoções populares. Não
se revelou muito mais fácil o projeto de impor aos párocos e aos capelães das várias
igrejas submetidas nominalmente à autoridade do ordinário esse novo papel que a
Igreja tridentina tinha previsto para eles: o de "pequenos empregados do culto" 13 • No
mesmo quadro entra também a luta para obrigar o clero das paróquias a uma rigorosa
uniformidade ritual, com a consequente renúncia à execução de formas irregulares e
proibidas de exercício dos poderes sagrados.
A administração dos sacramentos era o terreno de embate fundamental. Carlo
Borromeo emanou ordens severas proibindo aos párocos pedir compensações em troca
da administração dos sacramentos: a coleta de donativos após a comunhão na pátena
oferecida ao beijo dos fiéis, ou as ofertas ao confessor após a absolvição. Proibição de
pedir, não de aceitar 14; era difícil acabar com a ideia de que a uma dádiva como aquela
representada pelo sacramento não devesse corresponder outra equivalente, mesmo
porque as práticas desse gênero eram antigas e amplamente difundidas, além de serem
defendidas pelo clero das paróquias. Impor a nova imagem depurada do sagrado signi,
ficou redefinir papeis e poderes no conjunto da vida social: e as dimensões da empresa
ajudam a compreender as razões dos insucessos. A sombra da elaboração erudita do
crime de simonia e do consequente princípio abstrato segundo o qual nada devia ser
exigido em troca dos sacramentos, prosperava uma teia de costumes e de convenções
que iam além do pagamento por missas e das taxas estalares relativas aos funerais, batis,
mos e casamentos. A separação entre estipêndio nominal e boleto de pagamento efetivo

12. H. Jedin, "Delegatus Sedis Apostolicae und bischõfliche Gewalt auf dem Konzil von Trient", em Kirche des
Glaubens Kirche der Geschichte, Freiburg im Breisgau, 1966, vol. II, pp. 414-428.
13. A imagem é de E. Le Roy Ladurie, Le Frontiere dello Storico (Le territoire de l'historien, Paris, 1973), trad. it. Bari,
1976, p. 44.
14. Nota-o Henry Charles Lea, A History of Auricolar Confession and lndulgences in the Latin Church (1896), New
York, 1968, vol. 1, p. 408.

Instrumentos e Obstáculos: O Clero dos Conventos e das Paróquias


324

começou a ser considerada somente quando se determinou ao clero paroquial substituir


a ligação de poder pessoal sobre a comunidade por uma obrigação mais rigorosa de
dependência burocrática do alto 15 • Mas é fácil de imaginar que os capelães, que recebiam
salários de fome dos titulares não residentes, tendessem a expandir em todas as direcões
as possibilidades de completar seus proventos. Como observou o jesuíta Luis Molin~ no
fim do século, em cinquenta anos a inflação tinha reduzido à metade ou a um terço 0
poder aquisitivo da moeda; e consequentemente era justo manter o poder aquisitivo do
próprio salário, exigindo compensações pelas funções desenvolvidas 16 • As necessidades
materiais do clero foram procurar - e provavelmente encontraram - satisfação no terreno
de uma cultura que dava grande valor à proteção mágica e religiosa e que, por isso, estava
disposta a pagar: e se era permitido pagar pela missa, que era o ato sacerdotal de maior
poder, não causa espanto que se pagasse por todos os sacramentos. A prática social era
extremamente variada: pagava-se em dinheiro ou in natura, havia a doação do lenço novo
por ocasião do batizado, o donativo para a confissão e a comunhão, e assim por diante 17 •
Imagens satíricas dessas práticas eram encontradas sobejamente na literatura anticlerical da
época. O teatro popular ironizava o confessor que pedia um ducado por cada absolvição:

Vós deveríeis vos envergonhar:


não vos basta saber nossos pecados,
ainda por cima quereis cobrar 18 •

O conflito tinha origem também na simples questão relativa a quem devia ficar
com esses donativos, se o clero ou o bispo: foi o que ocorreu, por exemplo, no que se
refere às doações de círios deixados em testamento por moribundos a quem os assistia 19 •

15. Somente no final do século XVI começa-se a dispor de "indicações mais específicas" sobre os direitos adquiridos
pelos párocos no que se refere a itens teoricamente proibidos pela legislação sinodal, como "a administração dos
batismos e a celebração dos casamentos", observava Carla Russo em sua importante pesquisa sobre "l Redditi
dei Parroci nei Casali di Napoli: Struttura e Dinamica (XVI-XVIII Secolo), em Pe-r la Storia Sociale e Religiosa dei
Mezzogiorno d'Italia, org. de Giuseppe Galasso e Carla Russo, 1, Napoli, 1980, pp. 1-178; em part. p. 101.
16. Cf. Federico Chabod, "Stipendi Nominali e Busta Paga Effettiva dei Funzionari dell'Amministrazione Milanese
alla Fine dei Cinquecento" (1958), em Cario V e il suo Impero , Torino, 1985, pp. 281-450; em part. pp. 300-302.
O documento estudado por Chabod mostra uma grande defasagem, nos níveis inferiores, entre "oficiais"
do estado e clero, em detrimento desse último: "os proventos quase insignificantes de várias capelanias, e
totalmente insuficientes para o sustento de uma pessoa", observava Chabod (p. 315). Falta, portanto, estudar
como sobreviviam os capelães.
17. Não existe nenhuma pesquisa sobre esses aspectos extrajurídicos dos proventos do clero paroquial. Dados e
informações como as reunidas por C. Corrain e P. Zampini (Documenti Etnografici dai Sinodi Diocesani Italiani,
Bologna, 1970) devem ser lidos no contexto das situações sociais e políticas específicas; cf., para um exemplo de
pesquisa nesta direção, o estudo de Angelo Torre, II Consumo di Devozioni. Religione e Comunità nelle Campagne
dell'Ancien Régime, Venezia, 1995 (cf. em part. pp. 64-65).
18. De La Confessione dello Smarrito, de 1338, de Marcello Roncaglia de Sarteano (tomo a citação de Michele Feo,
"La commedia popolare senese dei Cinquecento come letteratura antiumanistica" em Umanesimo a Siena.
'
Letteratura, Arti Figurative, Musica, org. de E. Cioni e D. Fausti, Siena, 1994, pp. 111-147; em part. p. 129.
19. Cf. o decreto sinodal de 1567, reproduzido por Colangelo, La Diocesi di Marsico, pp. 137-141.

A Confissão
325

Esses costumes tiveram então que se adaptar às novas regras de um episcopado


que fazia um uso agressivo de seu poder de jurisdição. E nos documentos dos processos
exarados pelos tribunais episcopais foram reunidas histórias como a de dom Clemente
Sartorelli, capelão de San Giovanni di Montelauro, diocese de Pesaro, processado em
1579. Dom Clemente - como fazia provavelmente a maior parte dos párocos - não
se limitava a receber passivamente os donativos tradicionais, mas pressionava os paro-
quianos quanto a seus deveres. Durante a missa festiva de maio de 1579, por exemplo,
"virou-se para o povo e disse: 'Não me venha ninguém batizar qualquer criança nesta
igreja, sem trazer um lenço novo , que não será batizada, pois não sou mosqueteiro e não
uso trapos para limpá-los, mas quero lenços e não farrapos "' 2º. Dom Clemente não se
limitava a defender a dignidade de seu papel com as homilias, mas punha em prática
o que dizia: por exemplo, tendo recusado o batismo à filha de um paroquiano que era
demasiado pobre para pagá-lo com a compensação de um carneiro - este era, segundo
o pároco, o ressarcimento devido por quem renovava o "batismo novo" após a Páscoa.
Dom Clemente recusou-se até a dar a comunhão pascal a uma mulher, por ter-lhe orde-
nado como penitência a obrigação de mandar rezar duas missas que a mulher ainda não
lhe tinha pago: assim, para poder comungar, teve de ir à casa buscar-lhe o dinheiro das
missas: "e ele então me comungou" 21 • Não é de espantar que nessa paróquia o número
dos não confessados e não comungados na quaresma fosse alto 22•
Provavelmente, a partir de então o pároco teve de renunciar a muitos ganhos
não codificados em troca de uma definição mais adequada de sua "côngrua" . Nem por
isso ficou reduzido à situação social de "mosqueteiro", já que lhe foi categoricamente
proibido confundir-se no traje e nas maneiras com os níveis sociais inferiores, exercer
ofícios "vis" , "braçais" , frequentar estalagens e mercados: foram esses os aspectos de
sua vida alvejados durante as visitas pastorais e as inspeções vicariais nos campos e nas
montanhas. Sobre ele reverberou a aura sagrada do corpo eclesiástico em seu conjunto,
capaz de propiciar-lhe prestígio e proteção às custas dos mais sólidos vínculos e ligações
culturais e jurídicos de subordinação: o sacerdote devia ser perfeito, da perfeição que
devia ser reconhecida "em todos os eclesiásticos" , segundo aquela que se tornaria mais
tarde a fechada e triunfalista concepção barroca 23 • Mas em troca teve de abolir uma
grande quantidade de funções e de poderes que lhe valiam todo o prestígio reconhecido
a quem manipulava as vias de acesso ao sagrado. As tesouras da autoridade episcopal
tiveram que cortar rigorosamente no setor das ligações entre o padre e seu público, com
decretos que proibiram sobretudo os usos mágicos do poder sacramental: por exemplo,
rezar "para prejuízo alheio" ou até mesmo "para a morte" de uma pessoa; ou dizer missa

20. Depoimento de Giorgio de Montelauro, testemunha, 5 jun. 1579 (Archivio diocesano di Pesaro, lura Civilia
et Criminalia, vol. II, c. 16v).
21. Dep. de Lucrezia Filippi, 6 jun. 1579 (idem, c. 28v).
22. "Em minha paróquia sei que há muitos que não se confessaram nem comungaram na Páscoa próxima passada"
(dep. de dom Clemente, 3 jun. 1579, idem, c. 13r).
23. P. Luigi Da Ponte, S. I. , Il Sacerdote Perfetto Overo del Sacramento dell'Ordine, dello Stato e della Perfezione che
Appartiene a tutti gli Ecclesiastici, Roma, por Domenico Antonio Ercole, 1691.

Instrumentos e Obstáculos·· O Clero dos Conve ntos e d as Pa roqu1as


· ·
32 6

"co~ hósti~s _escrita~, papéis, ou orações, e outras coisas supersticiosas", ou distribuir


a leigos, quiça suspeitos de supersticão, "qualquer coisa sagrada como círio sal ,
b . ' ' 'agua
enta e coisas que tais" 24• São indicações que descortinam um mundo de possibilidades
e, de todo modo , de suspeitas relativas aos poderes mágicos e ao uso deles por parte de
uma personagem que era ao mesmo tempo um sacerdote cristão e um bruxo de aldeia.
Foi preciso, em primeiro lugar, fazer com que o exercício dos poderes sagrados não se
adaptasse mais às necessidades, aos amores e ódios dos paroquianos, mas se elevasse
acima das disputas locais, das transações econômicas e dos interesses pessoais. Sabemos
muito bem que a tentativa teve apenas um sucesso limitado: durante séculos ainda se
deviam ouvir denúncias e queixas referentes a práticas mágicas ou - como foram logo
definidos - a "erros populares". Naquele que foi o primeiro livro a definir desse modo
costumes e práticas italianas, lê-se, por exemplo, a seguinte descrição do que aconte-
cia em torno dos recém-nascidos: costumava-se "levar as secundinas, ou camisolas de
criancinhas para serem benzidas e consagradas na missa, vendendo-as depois, dando a
entender aos homens ignorantes que enquanto trouxerem tais camisolas consigo, nunca
poderão ser mortos nem feridos" 25 •
Nos lugares onde houve processo de reconversão e na medida em que obteve
sucesso, coube ao pároco a função de dobradiça com o mundo dos leigos e de defen-
sor da célula base da estrutura, a paróquia: essa é a função principal que foi definida
no modelo elaborado e proposto então para o corpo dos párocos em geral - o que foi
chamado o "tipo ideal" do pároco 26 • Foi então atribuída à paróquia uma grande quan-
tidade de funções , opondo-a caso pensado à pregação itinerante exercida pelas grandes
ordens. Pregação e administração dos sacramentos deviam ocorrer dentro de um quadro
territorial com um responsável determinado e constante, o pároco como delegado do
bispo. Era um projeto novo, com o qual, como já vimos, o poder de governo da Igreja
colocava em primeiro plano a relação com cada um dos cristãos - os "fiéis" - contro-
lando sua fidelidade com instrumentos estatísticos eficazes. A natureza territorial da
paróquia podia, desse modo, sobrepor-se à redes móveis do parentesco e cortar seus
prolongamentos: foi o que aconteceu na Milão de Carlo Borromeo, que nos decretos
de seu primeiro concílio provincial expressou com toda a clareza essa vontade. Devia-
-se entrar na Igreja como indivíduos e não como agregações sociais: nem as famílias
nem as confrarias podiam mais exprimir ilimitadamente sua força de agregação. Os
sacramentos não deviam mais servir de ensejo para sancionar o prestígio social da fa-

24. "L'ordine della messa il quale deve tenere il Sacerdote quando celebra senza canto, et senza ministri, secondo
!'uso della Santa Romana Chiesa [...) per il R. M. Giovanni Burcardo [... ), Con alcuni awertimenti aggiunti
nel fin·e", em Bolonha, por Gio. Rossi impressor Episcopal à rua de S. Mamo lo, 1567, Awertimenti, cc. 80v-81 r.
Sobre o uso da missa como poder contra alguém, cf. John Bossy, "The Massas a Social Institution 1200-1700",
Past and Present, n. 100, ago. 1983, pp. 29-61.
25. Scipione Mercurio, De gli Errori Popolari d'ltalia Libri Sette, Venetia, junto a Gio. Battista Ciotti sienense, 1603,
c. 260v. Sobre a "camisa" ou placenta e sobre seus usos, cf. C. Ginzburg, I Benandanti. Stregoneria e Culti Agrari
tra Cinquecento e Seicento, Torino, 1972.
26. H. Jedin, Il Tipo Ideale dí Parroco Secondo la Riforma Cattolica, Brescia, 1950.

A Confissão
327

mília: no batismo, o catecúmeno não podia ter mais de dois padrinhos; no casamento,
que ocorria dentro da igreja e não no sagrado, a vontade de quem pretendia se casar
tomava decididamente o lugar - ao menos em termos legais - das alianças projetadas
e pretendidas pelas famílias .
Sobre esse fundo , a relação entre os bispos e os inquisidores assumiu nessa primeira
fase o caráter de um confronto entre governo do território por parte de uma autoridade
ordinária que nele residia e incursões ocasionais de organizações monásticas. Cervini,
que também era membro da congregação do Santo Ofício, fora incapaz de ordenar ao
inquisidor de sua diocese de Reggio Emilia que se abstivesse dos sermões e de perma,
necer em seu posto, para não provocar "escândalo nas almas" 27 : um tipo de relação
bem diferente daquele que devia se fixar em seguida, quando o sermão do inquisidor
implicaria a suspensão automática de todos os outros. O fato é que nas fases iniciais
do Concílio de Trento, o decreto sobre a pregação tinha marcado um momento de
afirmação do poder dos bispos em relação ao clero regular. Mas nos mesmos anos veio
a ser progressivamente constituído um modelo de tipo bem diverso, sob impulso curial
e romano. Era um modelo que, com os mesmos ingredientes, levava a resultados muito
diferentes. E também a Inquisição, radicando,se estavelmente no território, modificava
seu primeiro caráter e construía um novo tipo de relações com a autoridade episcopal.
Gabriele Paleotti e Carlo Borromeo propuseram, em Bolonha e em Milão, um
modo de governar a vida e as ideias religiosas que tinha no bispo o principal ponto de
referência. Tornou,se célebre então e ainda mais em seguida o modelo proposto por Carlo
Borromeo. Ele perseguiu esse projeto, que previa uma periodicidade fixa dos concílios
provinciais (três anos) e dos diocesanos (um ano) , durante os breves mas intensos anos
de seu governo episcopal. A visita pastoral era o instrumento de contato com os fiéis e
de controle da execução dos decretos sinodais; um levantamento atento dos compor,
tamentos transgressivos devia propiciar a base para as intervenções repressivas e para
as medidas de controle. Foram compostas listas de superstições e de comportamentos
nocivos localmente determinados: uma obra de sociologia da transgressão, elaborada com
vistas à eficácia da intervenção 28 • Pretendia,se fornecer aos pregadores uma informação
pontual para tornar seus sermões mais precisos e eficazes. Não era uma ideia nova: já
antes do Concílio de Trento, o bispo de Verona tinha reunido e impresso informações
do mesmo tipo, dedicando,as aos párocos e pregadores 29 • Por sua natureza, o projeto
tendia a eliminar a pregação itinerante e seus modelos genericamente penitenciais
com vistas a uma obra pontual de correção moral e de doutrinação, desenvolvida por
um clero ligado à paróquia, ou pelo menos de tal modo precisamente informado das
deficiências morais da população local a ponto de comportar,se como um pároco. Até
as instituições destinadas à doutrinação e à formação cultural eram alimentadas por

27. Carta de 10 de janeiro de 1544, em T. Bozza, Nuovi Ntudi sulla Riforma in Italia. I. II Beneficio di Cristo, Roma,
1976, pp. 62-63.
28. Cf. O. Lurati, "Superstizioni Lombarde (e Leventinesi) del Tempo di San Cario Borromeo", em Vox Romanica,
XXVII, 1969, pp. 229-249.
29. Per li Padri Predicatori, Verona, por Antonio de Portese, 1540.

Instrumentos e Obstáculos: O Clero dos Conventos e das Paróquias


328

circuitos internos à Igreja local. A vontade de Carlo Borromeo de fortalecer a exclusiva


autoridade própria evidenciou-se, por exemplo, no duro confronto que o opôs à Com-
panhia de Jesus: "Eles pretendem - escreveu então a seu agente em Roma - que sua
congregação dependa deles mesmos e eu desejo que tudo seja de acordo com minha
vontade" 30 • O confronto provocado pelo pregador jesuíta Giulio Mazzarino mostrou
como era amplo o arco das divergências recíprocas 31•
À vertente da ação formativa correspondia uma vertente de elaboração legislativa:
normas aprovadas e atualizadas pelos sínodos, intervenções dos tribunais eclesiásticos,
colaboração com os tribunais laicos 32 • Cario Borromeo, no âmbito da vastíssima área
submetida a seu governo, teve de lidar com poderes políticos diferentes, alguns dos
quais não admitiam o tribunal da Inquisição: era o caso, por exemplo, dos "três vales"
suíços. Isso também favoreceu o desdobramento de um complexo modelo de governo
episcopal, no qual coube à organização do clero paroquial a função de garantir uma
transmissão eficaz do modelo central em todas as áreas periféricas.
A comunicação epistolar foi o instrumento fundamental de ligação entre centro
e periferia; se a visita pastoral continuava sendo um instrumento essencial para garantir
a eficácia do governo episcopal, tratava-se, no entanto, de algo que garantia apenas uma
presença de tipo excepcional. Já a função ordinária de governo do território era garantida
pelo instrumento da comunicação epistolar, que atingiu, sob Carlo Borromeo, uma
intensidade excepcional. Escrever cartas foi um exercício obrigatório na arquidiocese
lombarda. Não foi tarefa fácil nem agradável para quem teve de assumi-la: "Passo o dia
inteiro preso aqui, como um cão, a escrever" , queixava-se em 1571 o vigário forâneo da
paróquia de Angera, Giovanni Antonio Conturbia 33 •
O bispo e seu clero ainda podiam demonstrar-se reciprocamente insatisfeitos
e desconfiados , mas através dessa rede epistolar tinham ao menos chegado a um
acordo quanto à língua de uso. E isso não era pouco: a língua era um instrumento
essencial para o funcionamento de um sistema de comunicação capaz de permitir
a governo total de um território através de uma rede de funcionários - algo que os
poderes estatais ainda deviam realizar em muitas partes da península italiana. Em
uma península onde nenhuma autoridade central tinha condições de impor algo se-
melhante à diretriz de Villers-Cotteret, a função desempenhada pela Igreja para impor
a unidade linguística não foi certamente de somenos importância para a construção
de uma futura Itália unida. A língua imposta pelo arcebispo de Milão e usada dali
em diante pela rede eclesiástica da arquidiocese milanesa - como documentam as

30. Carta de 7 de setembro de 1577; cf. do autor deste volume "Chierici e laici nell'opera di Cario Borromeo",
em Annali dell'Istituto Storico Italo-germanico in Trento, XIV, 1988, pp. 258-259.
31. Sobre a história das relações entre Borromeo e os jesuítas cf. Flavio Rurale, I Gesuiti a Milano, op. cit.
32. Sobre esse aspecto, muito pouco estudado, uma sondagem de grande interesse é a de Paolo Prodi, "Note sul
Problema della Genesi dei Diritto nella Chiesa Post-tridentina ... ", em Legge e Vangelo, Brescia, 1972, pp. 191-223.
33. Citado por Danilo Zardin, "Et subito esseguiró quanto la mi ordini". Contesto locale, vicari foranei e Curia
arcivescovile di Milano sul finire dei Cinquecento, em La Città di Angera Feudo dei Borromeo (Sec. XV-XVII/) ,
Angera, 1996, pp. 253-289; em part. p. 255.

A Confissão
329

cerca de sessenta mil cartas da correspondência de Carlo e Federico Borromeo ainda


conservadas - conduziu ao modelo do vernáculo codificado no decorrer do século
XVI pela sociedade literária italiana. Foi por esse caminho que a fronteira linguística
da diocese ampliou-se para além da fronteira política do Estado de Milão, incluindo
os territórios suíços ; por isso, o processo de italianizacão da comunicacão escrita na
Itália setentrional também deveu algo à obrigação que· os dois Borrom~o impuseram
a seu clero de manter uma ligação epistolar constante com a metrópole 34. Ora, foram
diversos os fatores de semelhante processo : entre outros, podem ser lembrados a
educação literária dos cardeais e bispos ao gosto do italiano de Bembo 35 (ainda que
isso não impedisse à "santa viva" de Siena, Caterina Vannini, de achar cômico o
"falar forasteiro" de Federico Borromeo 36 ) e as exigências de uma língua burocrática
para uso do governo estável de um vasto território; mas fundamental foi sobretudo
a necessidade de destacar a língua do clero paroquial do vernáculo dos leigos , como
instrumento para conferir-lhe a dignidade e o prestígio necessários para suas funções
intelectuais . As instruções para o seminário, publicadas sob o nome dos dois Bor-
romeo em 1599, eram muito claras a propósito: era preciso empenhar-se no sentido
de corrigir os erros de pronúncia e as inflexões decorrentes dos locais de origem 37 •
Somente o clero devia parar de usar a língua dos "braçais" e as expressões do vulgo ,
enquanto ao povo era permitido manter seu vernáculo mesmo quando se dedicava ao
estudo da doutrina cristã 38 • A unidade linguística, portanto, foi concebida como um
instrumento para fortalecer a identidade do corpo eclesiástico e ligá-lo à dependência
hierárquica dos superiores mais que aos vínculos da sociedade laica em meio à qual se
movia. Daí, parece difícil duvidar que o italiano das preces e dos sermões - o italiano
da igreja, como foi chamado - tenha promovido o sucesso do italiano suprarregional,
com prejuízo do dialeto e do latim, e que a política eclesiástica nesse âmbito tenha
sido um poderoso fator de unificação linguística 39 •
Demorou muito tempo a instalação dos seminários e sua eficácia foi muito desi-
gual. Antes que os produtos dos seminários substituíssem os párocos criados na cultura

34. Isto foi adequadamente indicado por Sandro Bianconi, I Due Linguaggi. Storia Linguistica della Lombardia Svizzera
dai '400 ai nostri Giorni, Bellinzona, 1989, pp. 102 e ss.; ver ainda do mesmo autor, "Fonti per lo Studio della
Diffusione della Norma nel'Italiano non Letterario tra Fine '500 e lnizio '600", Studi Linguistici Italiani, vol.
XVII, Roma, 1991, pp. 39-54.
35. Pietro Bembo (1470-1547), cardeal, poeta, teórico da literatura. Foi um dos principais responsáveis pelo esta-
belecimento do italiano da Toscana como modelo de língua literária (N. do T.).
36. Segundo O testemunho de uma colega de Vannini, de 1623, Sandro Bianconi, op. cit., p. 45 .
37. "li praecipue observentur, qui vitiosas quasdam inflexiones voeis habent, quas a patria secum extulerunt"
(Institutiones ad universum seminarii regimen pertinentes a Sancto Carola confectae, iussu Federici card. Borromaei editae
anno 1599, Milano, 1885, p. 23).
38. O uso do vernáculo a esse respeito é oficialmente autorizado nos estatutos sinodais sicilianos do século xvn,
relativos ao ensino do catecismo: cf. Mari D'Agostino, La Piazza e l'Altare. Momenti della Política Linguística della
Chiesa Siciliana (Secoli XVI-XVlll), Palermo, 1988. .
39. Cf. 0 estudo fundamental de Giovanai Pozzi, "L'ltaliano in Chiesa" , em Cultura d'E!ite e Cultura Popolare ne!l 'Arco
. 1..,a c·mque e Se1cen
Alpmo · to, org. de Ottavio Besomi e Cario Caruso, BaseVBoston/Berlín, 1995, pp. 303-343.
1

Instrumentos e Obstáculos: O Clero dos Conventos e J as Paróquias


BO

vernácula de seus paroquianos, coube aos vigários forâneos controlar e levar aos mais
distantes rincões da diocese o ponto de vista e a cultura do bispo - por exemplo, na
matéria delicada e então muito frequente dos milagres e das aparições, com a conse-
quente proliferação de novos cultos. Em 1597, o vigário forâneo de Trezzo informava 0
visitador da zona que os homens de S. Gervasio tinham praticado atos de culto de uma
imagem milagrosa de Nossa Senhora, contra as ordens que tinham sido dadas; e tudo
isso "com conhecimento do cura do lugar para interesse próprio e que nunca me avisa
de coisa alguma" 40 . É um caso emblemático: as orientações do governo eclesiástico e do
pessoal intermediário que o representava entravam em choque não só com o problema
de uma religiosidade popular impregnada de fenômenos extraordinários e de busca
do milagre, que devia ser enfrentada com os novos e severos critérios tridentinos, mas
eram obrigadas a levar em conta as ligações instauradas pelo clero das paróquias com
aquele povo e com suas necessidades . Desse modo, a inadequação dos instrumentos
disponíveis para o governo episcopal abria as portas às milícias monásticas da Inquisição.

'

40. Cf. Maurizio Sangalli, Miracoli a Milano. I Processi lnformativi per Eventi Miracolosi nel Milanese in Età Spagnola,
Milano, 1993, p. 187.

A Confissão
XV
CONTROLE DAS CONSCIÊNCIAS E
CONTROLE DO TERRITÓRIO: REDES
EPISCOPAIS E REDES INQUISITORIAIS

C omo vimos, o modelo de uma sociedade cristã não era ameaçado, aos olhos do bispo,
apenas pelo perigo da heresia. E é aí que se entende a diferença essencial no que se
refere ao controle inquisitorial. Os externos tolerados - ciganos, judeus - e os internos
transviados por pecados públicos e clamorosos - blasfemos, usurários , concubinários -
deviam ser isolados, afastados ou obrigados a dobrar,se à "verdadeira" norma cristã. Por
isso, previa,se que os pecadores públicos que se apresentavam para a comunhão pascal
não pudessem ser admitidos se antes não tivessem dado sinais claros de seu propósito de
mudar de vida. O pároco, por sua vez, não podia afastar os pecadores que se mostrassem
como tais somente a ele - evidentemente, para não ferir o princípio do secretismo da
confissão. Mas podia adiar a absolvição à espera de sinais certos do arrependimento do
pecador - por exemplo, a anulação dos contratos de usura por parte dos agiotas.
Volta,se, portanto, à confissão: e aqui a diferença entre o uso inquisitorial e o uso
episcopal parece evidente. Ao inquisidor interessava somente apoderar,se dos conheci,
mentos secretos para tornar eficaz sua obra de caça ao herege. Ao bispo, ao contrário,
a confissão servia como instrumento de regulação de toda a sociedade: para eliminar
as culpas morais, para reduzir à ordem cristã quem dela se afastava, para dar exemplos
eficazes de conversão. O projeto tomou várias formas: mas entre todas, a que teve mais
importância na vida cotidiana da população foi a prática da ampla reserva dos casos e
a, parcialmente relacionada, das penitências públicas. Ambas encontravam uma origem
comum na vontade de obrigar os pecadores a mudarem de vida. Carlo Borromeo não
tinha proposto uma penitência de malhas largas: nem sua ideia da confissão dos pecados
tinha algo em comum com a função consoladora, de remédio contra os terrores e o
desespero do pecador, que para outros era essencial. Isso pode ser visto principalmente
na amplitude que assumiu em seu governo o sistema de reservar à autoridade do bispo
uma grande quantidade de pecados. O Concílio de Trento, como vimos, tinha aprova,
do a contragosto O princípio do recurso à reserva: ocorreram equívocos, discussões e
maus humores contra um princípio que, tornando mais dificil o perdão dos pecados,
fazia temer consequências desastrosas. E, por isso, fora solicitado que se fizesse um uso
moderado do poder de reserva, "para edificação e não para destruição". As mesmas
palavras encontram,se nas advertências de Carlo Borromeo aos confessores, mas 0
significado delas é totalmente diferente. A preocupação do arcebispo de Milão era que
332

os confessores munidos do poder de absolver em casos reservados fizessem disso uso


excessivo, oferecendo assim um percurso fácil para a absolvição dos penitentes; deviam
proceder nesse caminho "com moderação". E a ordem foi repetida por ocasião do jubileu
de 1575, quando as faculdades concedidas aos confessores foram ainda mais amplas1.
O confessor devia ser juiz severo e não o fornecedor a pedido do perdão divino para
todos os pecadores ainda que arrependidos.
A escolha ia na direção da função de juiz que o Concílio de Tento atribuíra ao
confessor: tratava-se, em suma, de graduar as punições e de diferenciar vários níveis de
poder de acordo com a gravidade dos pecados. Mas assim abriam-se percursos que iam
da interioridade da consciência para o mundo exterior: quando o penitente era enviado
por um juiz de nível inferior a outro dotado de maiores poderes, e sobretudo quando
lhe eram impostas penitências públicas e humilhantes, sua culpa corria o risco de tornar-
-se visível. O sistema borromaico de cidade cristã baseava-se na visibilidade: exaltava a
virtude e a moralidade com ritos públicos, punia os pecados com penitências públicas 2•
Nos casos de pecados socialmente conhecidos, o pecador devia cumprir penas que
mostrassem a toda a comunidade o abandono das práticas passíveis de culpa e a volta
à comunhão eclesiástica. Era um princípio reconhecido pelo Concílio de Trento, ao
qual Carlo Borromeo deu particular importância. Por causa disso, histórias de pecados
e penitências tomaram a correspondência entre o arcebispo e seus párocos. Em 1572,
por exemplo, apresentou-se diante do pároco de Imbersago para se confessar certo
Bernardo de Dosso e confessou ter recorrido a uma prática supersticiosa para curar-se
de uma febre. Seu caso entrava no rol daqueles que Carlo Borromeo reservara para sua
absolvição. Por isso, o pároco teve de escrever ao arcebispo, que concedeu a absolvição,
mas com determinadas condições:

Se a coisa é pública, vós o fareis permanecer em dia de festa pública à porta da igreja com uma
corda no pescoço, durante as missas, e vós exagerareis o fato no altar com um sermão. Se ele por causa
de febre benzeu outros, ou ensinou a outros como a benzer, vós o fareis cumprir penitência em dobro 3•

A série dos casos reservados estabelecida pelo primeiro concílio provincial ( 1565)
era composta por doze e ia do rapto de meninas à falsificação de moedas, de balanças,
de medidas. Trata-se de uma relação que se complicou nos anos sucessivos e foi enri-
quecida por uma casuística nova. No segundo sínodo diocesano milanês (1568), Carlo
Borromeo acrescentou para sua diocese uma dezena de outros casos, entre os quais o de
quem conhecia e não denunciava hereges ou leitores de livros heréticos 4• Ora, sobre a

1. Acta Ecclesiae Mediolanensis, ed. Ratti, op. cit. , vol. II, col. 1904-1908.
2. Sobre a public morality como característica do modelo milanês de são Carlo Borromeo insistiu justamente
Wietse de Boer, The Uses of Confession in Counter-Reformation Milan, Tese de Doutorado, Universidade Erasmus
de Rotterdam, 1995, pp. 112 e ss.
3. Carta de 1º de março de 1572, publicada parcialmente por Maria Luisa e Ottavio Lurati, "Guaritori Popolari
e Magia dei 'Segnare", em Folclore Svizzero, LXIII, 1973, pasta 1, p. 7.
4. Cf. Acta Ecclesiae Mediolanensis, ed. Ratti, op. cit., vol. II, col. 53-54 e 821-822.

A Confissão
333

eficácia dessas relações e sobre seus efeitos na vida social da arquidiocese milanesa não
sabemos muito: porém, o suficiente para poder dizer que o rigor da norma penitencial
imposta por Borromeo teve que se ver com a reacão "de baixo" da sociedade e com a
das autoridades superiores, políticas e religiosas. ,
A reserva dos casos tinha como consequência o fato de que o confessor devia
expor ao cônego penitenciário da cúria milanesa o caso com que se deparara e soli-
citar o poder de absolver o culpado e a indicação da pena a ser aplicada. Do ponto
de vista da pessoa que se confessava, isso significava o risco concreto de que, nesse
ínterim, a família e a comunidade adivinhassem sua condição e talvez até seu pecado.
Naturalmente, nessas trocas de cartas entre confessores e penitenciários multiplicam-se
os cuidados para impedir que isso aconteça: os nomes dos interessados são omitidos;
na escolha das penas a serem aplicadas, faz-se distinção entre pecadores públicos e
culpas ocultas nas consciências . Estratégias do segredo eram determinadas em casos
de pecados graves , mas que não eram de conhecimento público: os de incesto eram os
mais evidentes. Em 1571, por exemplo, uma viúva que tinha confessado um incesto foi
punida com seis meses de jejum a pão e água, com ordem de não dizer a ninguém as
razões de seu jejum. Em 1579, ocorreu em Besozzo outro caso do gênero. Tratava-se
de um homem que confessara ter mantido relações sexuais com a irmã da mulher com
quem depois se casara. Esse casamento devia ser considerado nulo , segundo as normas
canônicas. Optou-se todavia por pedir secretamente a dispensa, determinando-lhe que,
enquanto isso, se abstivesse das relações conjugais: "mas se procurado [pela mulher],
devia ceder", porque a mulher devia permanecer na ignorância de tudo 5 • A questão
das culpas notórias era outra coisa; aqui exigia-se uma penitência pública, além da
imediata interrupção da prática culpável. Os nomes dos pecadores são explicitados na
correspondência entre o arcebispo e os párocos, assim como suas culpas (como vimos
antes, no caso de Bernardo de Dosso). A publicidade das penas e das confissões devia
servir para inculcar no povo o cumprimento das normas: assim, no caso de práticas
disseminadas, como a blasfêmia, uma investigação efetuada por Carlo Borromeo trouxe
à tona uma grande quantidade de usos intimidativos da penitência pública por parte
do clero. O pároco de Gorgonzola, por exemplo, tinha usado um remédio com um
blasfemo e jogador "fazendo-o dizer sua culpa publicamente na igreja, durante a missa,
na presença do povo antes de ouvi-lo em confissão"; e o de Melegagno recorria ao
sistema de não permitir a comunhão dos blasfemos no dia de Páscoa 6 • Mas o projeto
de Borromeo teve que se confrontar com a resposta da sociedade. E a resposta foi
de nítida rejeição no caso das práticas sociais de longa data, arraigadas no costume e
nas necessidades das pessoas. É il\dicativo das resistências suscitadas o fato de que as
denúncias anônimas, encorajadas com a afixação de caixinhas criadas para isso, não
deram nenhum resultado: em Roma, em um ano de exposição da caixinha, recolheu-

5. Retomo este e os casos seguintes da importante pesquisa de de Boer, The Uses of Confession, op. cit., p. 226.
6. Cf. Ottavio Lurati, "Pene ai Bestemmiatori, Indulgenze, Reliquie e 'lmmagini Profane' nella Diocesi Milanese
(e nelle Tre Valli) ai Tempi di San Cario, Folclore S11izzero, LX, 1970, fase. 4, pp. 41 -52; em part. p. 45.

Controle das Consciências e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


334

-se apenas uma denúncia 7. Impôs-se a necessidade de recorrer, no caso da blasfêmia


ao recurso de práticas substitutivas: por exemplo, o pároco de Desio deu permissão ~
seus paroquianos para "insultar o demônio, e blasfemar dele ao invés de Deus e seus
santos" 8• Uma prática disseminada, contra a qual as medidas do governo eclesiástico
chocaram-se em vão , era a de fazer dormir os recém-nascidos na cama com os pais: as
normas canônicas proibiam-na, para evitar o risco, bastante frequente , de que a criança
fosse sufocada inadvertidamente durante o sono. Carlo Borromeo impôs essa proibi-
ção com grande determinação e dureza; aliás , foi além: elaborou instruções precisas
sobre o modo como devia ser feito o pequeno leito ou "berço" , onde a criança devia
dormir. Mas, de fato , casos de crianças sufocadas na cama ocorreram com frequência:
e as mulheres foram obrigadas a penitências públicas, na igreja, com a círio aceso, aos
olhos de todos. Para resolver de vez a questão, o quarto concílio provincial milanês
aplicou a excomunhão em todas as mulheres que mantinham as crianças de menos de
um ano na própria cama. Mas o remédio revelou-se pior do que o mal: nas casas dos
pobres havia só uma cama onde dormia toda a família; o berço não cabia e não era
prático para as mães que amamentavam seus filhos durante a noite. E sobretudo: como
explicar às mulheres que eram excomungadas simplesmente porque, "compadecidas
do choro das crianças " 9 , levavam-nas para a cama? O resultado era que as mulheres
não se confessavam mais, pelo menos até a criança completar o fatídico primeiro ano
de vida (mas se apresentavam do mesmo modo para receber a comunhão), ou então,
ao se confessarem, silenciavam sobre esse caso específico, ou contavam ao confessor,
rindo e brincando, como algo que não devia ser levado a sério. A reação oficial foi
extremamente dura, com ameaças de denúncia à Inquisição para as mulheres que
demonstravam tão pouco respeito pelas autoridades eclesiásticas. Mas é evidente que
nesse ponto o sistema proposto por Borromeo tinha encontrado um limite intrans-
ponível: manter a proibição com todo seu rigor significava fazer entrar em crise o re-
curso à confissão. Sob o governo de seus sucessores, a questão foi resolvida através da
concessão cada vez mais frequente aos párocos do poder de absolver as mulheres e de
conceder-lhes permissão para manter as crianças na cama. Para justificar a permissão,
as cartas dos párocos insistiram em argumentos como a robustez das crianças, que as
livrava do perigo de sufocação: a criança aparecia descrita como "galharda", "vigorosa",
até mesmo "feroz". Mas a voz dos párocos, na correspondência com Milão, eleva-se
também para defender gente paupérrima, que não pode proceder de outro modo. "A
miserável pobreza", ou melhor "o frio excessivo, e abundante pobreza o exigem", como
escrevia o pároco de Muggiasca em 1588 10 • De fato, essas cartas falam de uma prática
que ninguém é capaz de considerar passível de culpa.

7. Idem, p. 46.
8. Idem, p. 44.
9. Observação do penitenciário Pocalodi, em de Boer, The Uses of Confession, op. cit., p. 234.
10. Ottavio Pasquinelli, "Peccati Riservati a Milano dopo San Carlo (1586-1592)", em LA Scuola Cattolica, CXXI,
1993, pp. 679-721 ; em part. p. 713.

A Confissão
335

De resto, a fraqueza da autoridade ordinária transparece nas desoladas observações


do clero diocesano . Os párocos que deviam extirpar esse gênero de práticas recorriam
em vão à reserva; a concorrência dos frades "que têm facilidade de absolver" 11 obrigava
o clero, por sua vez, a ameaçar os pecadores renitentes de entregá-los a outros poderes
mais eficazes: o tribunal laico ou o da lnquisição 12 • E somente tais meios traziam "algum
benefício" , observava desconsolado o pároco de Leventina 13•
Ainda mais grave foi a derrota de Borromeo em sua tentativa de moralizar ou de
proibir certas formas de sociabilidade: do baile às festas de carnaval. O confronto quanto
a isso que o opôs às autoridades espanholas de Milão constitui talvez o aspecto mais
conhecido de sua atividade, o que mais de perto remete ao modelo do rigor calvinista.
Desde a época do embate entre Pierre Viret e o Abbaye des nobles enfants em Lausanne,
a tentativa de regulamentar a vida social com base em precisas e severas normas morais
dera início a uma longa história de contrastes sociais, tanto nos países protestantes
como nos católicos 14 • No mundo católico, são incontáveis os decretos sinodais que
tentaram impingir à sociedade um hábito de penitência: era preciso, sobretudo, fazer
desaparecer dos ritos religiosos qualquer aspecto de sociabilidade mundana. Às confra-
rias , culpadas pela organização de festas por ocasião do santo patrono ou das rogações ,
foi lembrado, por exemplo, que as procissões deviam - assim se lê nas constituições
sinodais de Forlí - "ser pesarosas, e repletas de penitência, e não alegres" 15 •
Carlo Borromeo moveu-se nesse terreno com critérios extremamente severos,
tomando como alvo bailes, diversões e festas carnavalescas. Um momento decisivo da
luta foi indicado no édito que, no início do carnaval de 1579, fulminou a excomunhão
contra organizadores, participantes e expectadores das festas carnavalescas. A petição
em Roma de um grupo de dançarinos provocou uma mensagem papal a Borromeo, na
qual lhe era ordenado considerar "como é grande a fragilidade humana" e solicitado
que absolvesse todos com "penas salutares" 16 •
Não se tratava de simples indulgência para com as fraquezas humanas . Essa
intervenção significava que a aristocracia milanesa e as autoridades espanholas tinham
sido ouvidas em Roma. O projeto de Borromeo não levara em conta a predileção
romana pelo centralismo, pelas relações diretas com os Estados, em prejuízo "da
disciplina eclesiástica, das Igrejas locais" 17 • De fato , com a morte de Borromeo seu

11. A observação é do pároco de Corbetta e refere-se ao convento de Abbiategrasso (Lurati, "Pene ai Bestemmia-
tori" , op. cit. , p. 45).
12. "Remédio para os blasfemos com a ameaça de proceder contra eles por meio da inquisição" (idem, p. 46).
13. Idem.
14. Sobre O caso de Lausanne, cf. Ilaria Taddei, Fête, jeunesse et pouvoirs. J;Abbaye des Nobles Enfants de Lausanne,
Lausanne, 1991, p. 79.
15. Constitutioni Sinodali per la Città, et diocesi di Forlí, con una breve instruttione in fine per i curati semplici, con licenza
della Santíssima Jnquisitione, em Bolonha, por Alessandro Benaccio, 1565, p. 59.
16. Esse documento também foi revelado pela pesquisa de Wietse de Boer, The Uses of Confession, op. cit., p. 239.
17. Cf. P. Prodi, "Riforma lnteriore e Oisciplinamento Sociale in san Cario Borromeo", lntersezioni, vol. v, n. 2,
ago. 1985, pp. 273-285; em part. p. 283 .

Controle das Consciências e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


336

projeto caiu em desuso e, na igreja italiana, a memória do arcebispo de Milão foi


atenuada nas dimensões de uma santidade genérica e boa para qualquer uso (ao
passo que reapareceu com outro e mais preciso significado na França galicana de
Luís XIV e em outras situações análogas 18) . Na realidade , esse modelo não teve vida
fácil : para "reformar" a sociedade eram precisos poderes reais . E nesse terreno, as
resistências e , frequentemente , a oposição das autoridades políticas, fizeram sentir
todo o seu peso . Os conflitos de Carlo Borromeo com o governador espanhol em
Milão, bem como os de Gabriele Paleotti com o governador e com o legado ponti-
fício em Bolonha, mostraram com toda evidência quais eram os limites do poder
da hierarquia eclesiástica ordinária. Paleotti, para obrigar um cônego de sua sede a
cumprir o dever de celebrar missa , viu-se obrigado a recorrer à mediação do comis-
sário do Santo Ofício Umberto Locati, mesmo tendo recebido um breve papal com
plenos poderes "de poder corrigir, reformar etc." 19 • O episódio, junto com outros do
mesmo gênero , levou o amargurado Paleotti a falar de bispos reduzidos "somente à
mitra , sem o cajado" . A estrutura eclesiástica ordinária encontrava-se impedida não
só e nem tanto pelos poderes laicos, mas sobretudo pela centralização romana. As
rigorosíssimas sanções espirituais emanadas por Paulo IV com a Bula ln Coena Domini
contra qualquer intromissão de poderes laicos em relação a coisas e pessoas de perti-
nência eclesiástica marcam o entrincheiramento tendencial da sociedade eclesiástica
como corpo isolado; além do mais, o princípio da reserva dos casos a arbítrio do
papa, cujo triunfo foi consagrado por essa bula, reduziu o poder dos bispos a um
pálido reflexo do poder romano 20 • Visto no espelho do Estado da Igreja - estado a
seu modo exemplar pela soma dos poderes espiritual e temporal concentrada nas
mesmas mãos - o lugar reservado ao poder do bispo no controle da sociedade não
era minimamente adequado ao que exigia o modelo. Os representantes do poder
político limitavam e invadiam continuamente o âmbito da autoridade episcopal,
combinando desse modo os dois fenômenos aparentemente contraditórios da cleri-
calização do aparelho estatal e da secularização das regras de controle da sociedade.
Contra a vontade do bispo, era o governador de Bolonha que concedia licenças
para "festejar dias não consagrados e nos dias de festas licenças para comédias de
cantores em bodegas, para ciganos que todavia vivem fora da cidade e assassinam os
pobrezinhos, e para muitas outras coisas [... ]" 21 • A lista das matérias é significativa

18. Idem, p. 283.


19. Carta de Paleotti ao cardeal Francesco Alciati, 10 dez. 1569, citada por P. Prodi, ll Cardinale Gabriele Paleotti
(1522-1597), Roma, 1959-1967, vol. II, pp. 358-359.
20. Na ausência de estudos modernos apropriados, ainda é útil [Le Bret) Pragmatische Geschichte der so berufenen
Bulle ln Coena Domini und ihren furchterlichen Folgen fur den Staat und die Kirche ..., Frankfurt/Leipzig, 1772. Cf.
ainda Lea, A History of Auricolar Confession, op. cit., 1, pp. 325-329.
21. Prodi, II Cardinale Gabriele Paleotti, op. cit., pp. 360-361 (de uma minuta de carta de Paleotti a Umberto Locati,
de 21 dezembro de 1569). A questão das características do estado da Igreja é retomada por Prodi em ll Sovrano
Pontefice. Un Corpo e Due Anime: La Monarchia Papale nella Prima Età Moderna, Bologna, 1982 (idem, p. 277,
faz-se referência ao texto da carta a Locati supracitada).

A Confissão
337

daquilo que os bispos tridentinos almejavam fazer para o controle da moralidade


coletiva. São matérias peculiares a todos os modelos de disciplina da sociedade que
foram propostos na época: por exemplo, nas práticas que os consistórios calvinistas
abordaram em suas reuniões 22 •
Entretanto, o plano episcopal de governo dos comportamentos e de individuali-
zação da relação entre autoridade eclesiástica e o "fiel" exprimia uma exigência demasia-
damente profunda para que nada fosse feito . De fato , coube à Inquisição romana tornar
eficaz esse modelo de controle individualizado e minucioso através de redes territoriais.
Ela o fez de vários modos , como veremos no decorrer do presente estudo. Realizou isto,
em primeiro lugar, modificando as formas herdadas da Inquisição medieval: a rede dos
conventos com os quais se identificavam as células da inquisição precisou se tornar
instrumento secundário e ocasional de uma estrutura estável, ricamente articulada, co-
nectada com as outras autoridades do território. A construção de uma rede mais densa,
a dos vicariatos, levou a Inquisição a rivalizar-se com a diocese. No final do século XVI,
já era visível em muitas partes da Itália a sobreposição das duas estruturas territoriais.
Das duas, a primeira a tomar forma fora a diocesana: e também nesse caso, o movimento
tinha sido de uma rede de presenças relativamente autônomas a uma estrutura regida
por uma cúpula hierárquica. No que diz respeito à cura das almas, a antiga pieve 23 rural
cedeu lugar à multiplicação de igrejas paroquiais; tratou-se de um processo lento e não
uniforme, que passou por uma forte aceleração no período tridentino, graças à atuação
de bispos como Gian Matteo Giberti e Carlo Borromeo. Assim, a autoridade que ca-
bia ao responsável pela pieve em razão de seu título e da relação com a população que
estava na origem desse título foi substituída pela autoridade central do bispo delegada
a um representante dele no local, o "vigário forâneo" (ou também "prior", como foi
dito em Lucchesia 24). As funções desempenhadas pelos vigários eram de vários tipos:
visitas periódicas de controle nas áreas do campo, verificação das execuções impostas
pelo bispo durante sua visita, funções de formação teológica e cultural: o vicariato era,
de hábito, o ponto de reunião para congregações mensais do clero, durante as quais
os padres deviam confessar, ouvir sermões, estudar os "casos de consciência". Mas sua
razão de ser fundamental era a de permitir ao bispo controlar seu clero por meio de
interposta pessoa, "estar presente ali todos os dias" 25 • É fato que os julgamentos mais
rigorosos sobre a moralidade e a preparação do clero das paróquias podem ser lidos

22. Algumas referências úteis na coletânea organizada por Mentzer, Sin and the Calvinists, op. cit., (mas o título
promete mais do que realiza). Para a vertente católica, mas com ótica comparativista, cf. agora Wolfgang Rei-
nhard e Heinz Schilling (orgs.), Die katholische Konfessionalisierung, Münster, 1995.
23. Na Itália medieval, termo eclesiástico que designa a igreja principal de uma circunscrição eclesiástica menor,
que mantinha sob seu controle outras igrejas e capelas, depois substituída pela igreja paroquial (N. do T.).
24 . eompetenc1as
• • e d everes d os pri·ores encontram-se analiticamente descritos nas Regole per le Classi de' Sacerdoti,
e per Ogn'altro Chierico della Città e Diocesi di Lucca..., de Alessandro Guidiccioni, bispo de Lucca, em Lucca,
junto a Vincenzo Busdraghi, 1588.
25 • ro;s1m
A- • r . . d
101 exp11ca o por
o 1·b er t'1 em relatório apresentado em 1542
. . ao Conselho dos Dez em Veneza; veja-se
,-: E
d o autor este vo ume Ira vange 1sm0
1· e Controrif,orma ' G. M. G1bert1 (1495-1543), Roma, 1969, p. 214.
d l

onsciências e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


C ontro Ie d aS C
338

justamente nos relatórios dos vigários forâneos: são extremamente dura


_ " s, por exemplo
as acusaçoes contra a corruptela hodierna do clero" que se leem nos relat · · . '
. . . onos enviados
por Giovanni Antonio Spessato, vigário forâneo de Carlo Borrome 0 Z6 _
O modelo foi retomado e imitado em muitas outras partes da Itália ora com
• • A • ,

~- m~sma msistencia quanto às preocupações do controle centralista, ora com maior


hdehdade quanto às capacidades de organização autônoma do corpo eclesiástico. Os
modelos mais significativos e já então mais influentes foram os realizados em Módena
por Morone - que refez todo o sistema das congregações plebanali 27 , com particular
atenção à montanha 28 - em Milão por Carlo Borromeo 29 e em Bolonha por Gabriele
30
Paleotti (para lembrar só alguns exemplos mais conhecidos e mais próximos no tem-
po da época tridentina). Trata-se de bispos que são conhecidos também pelo uso que
fizeram do instrumento canônico da visita pastoral: mas a presença descontínua de
um titular do poder de governo que exercia tal poder por meio de inspeções pessoais
não era mais suficiente. Devia-se passar do governo pessoal e itinerante ao de poderes
delegados exercidos burocraticamente por delegados com presença estável nos luga-
res. Era uma passagem - vale a pena lembrar, pelos múltiplos fios que ligam a esfera
eclesiástica à civil - que acontecia simultaneamente também em outros níveis e outros
planos do exercício do poder. Para ficar no âmbito das formas de governo eclesiástico,
deve-se dizer que a Inquisição não só emulou o modelo de presença sutil e estável no
território propiciada pelas paróquias e pelos vicariatos plebanali, como também acabou
por incorporá-lo a seu sistema de controle. Quase contemporaneamente à reforma
do sistema das congregações plebanali realizada por Morone, a região montanhosa de
Módena foi coberta por uma rede de vicariatos da Inquisição: e o mesmo movimento
ocorreu em outros lugares.
Justamente a partir desse paciente e minucioso controle do território teve
origem a regulação exaustiva dos deveres da Inquisição que pode ser considerada o
retrato dos limites reais desse tribunal no final do século XVI. Uma nota "sobre o
ofício do Inquisidor", redigida em Módena nos primeiros anos do século XVII, arrolou

26. Cf. Lucia Pelagatti, "Gli lnizi della Riforma Cattolica in una Pieve Rurale Lombarda. Le Congregazioni dei
Clero a San Donato in Diocesi di Milano (1567)", Studi e Fonti di Storia Lombarda. Quademi Milanesi, XV, 1995,
pp. 69-96; em part. pp. 72 e 80. Logo que foi eleito, em 1567, Spessato tinha escrito a seu bispo uma carta de
trepidante autoacusação sobre sua carreira precedente: tratava-se de uma verdadeira "conversão", no sentido
de uma nova orientação, da· escolha de um ponto de vista diferente.
27. Relativo às pievi; ver nota de tradução (N. do T.).
28. Sobre a reforma das congregações cf. do autor do presente volume "lstituzioni Ecclesiastiche nei Domini
Estensi nell'Età dell'Ariosto", em Il Rinascimento nelle Corti Padane. Società e Cultura, org. de Paolo Rossi, Bari,
1977, pp. 160 e ss.
29. Cf. E. Cattaneo, "lnfluenze Veronesi nella Legislazione di San Carlo Borromeo", em Problemi di Vita Religiosa
in Italia nel Cinquecento. Atti del Convegno di Storia della Chiesa in Italia (Bologna, 1958), Padova, 1960, PP· 165
e s.; e cf. agora Angelo Turchini, "Officiali Ecclesiastici fra Centro e Periferia. A Proposito dei Vicari Foranei
a Milano nella Seconda Metà dei XVI Secolo", Studia Borromaica, VIII, 1994, pp. 153-213.
30. Cf. P. Prodi, "Lineamenti dell'Organizzazione Diocesana in Bologna durante l'Episcopato dei Card. Gabriele
Paleotti (1566-1597)", em Problemi di Vita Religiosa in Italia nel Cinquecento, op. cit., pp. 323-394.

A Confissão
339

pontualmente "contra quais pessoas procedia o Santo Ofício da lnquisição" 31• A lista
tinha um caráter prático e sintético e era elaborada com base em uma experiência
direta de governo de um determinado território . Eram seis as categorias de crimes
suJ:,metidos à !,nquisição: os hereges , os suspeitos de heresia, os simpatizantes de he-
reges , os "magos , bruxos e feiticeiros" , os blasfemos, os que "se opõem a este Santo
Ofício e a_seus oficiais". A primeira categoria, a dos hereges propriamente ditos , é
a menos -problemática de ser definida , remetendo a fórmulas estereotipadas: abarca
todos aqueles "que dizem , ensinam, pregam ou escrevem contra a Sagrada Escritura,
os artigos da Santa fé , os santíssimos sacramentos e ritos , ou seus usos , os decretos dos
Santos Concílios , e determinações feitas por sumos pontífices, a suprema autoridade
do sumo pontífice , as tradições apostólicas , o purgatório e indulgências , o estado
das religiões aprovadas , e outras coisas que tais" . Mas uma nota explicativa informa
que nesse capítulo incluem-se "ainda aqueles que dizem e sustentam que cada um se
salva na própria fé" . Ora, remontava justamente ao início da restauração eclesiástica
tridentina nos campos de Módena a descoberta de tal heresia nas afirmações de um
moleiro de Savignano sul Panaro, Pellegrino Baroni, vulgo Pighino. Pighino afirmava
que "todo homem era obrigado a estar sob sua fé , seja ela a judia, a turca e qualquer
outra fé" 32• Em relação à sua heresia, as autoridades diocesanas tinham entrado em
choque com as inquisitoriais. Pighino fora identificado como herege justamente no
decorrer de uma visita vicarial do território modenense realizada por determinação
do bispo Giovanni Morone em 1565; e depois a Inquisição se encarregara dele. Mas
era sobretudo nas demais categorias de crime que a prática concreta dos casos tra-
tados pelo tribunal modenense feria em cheio as definições oficiais, não tanto nas
categorias quanto nas exemplificações. Assim, na segunda categoria, a dos suspeitos
de heresia, encontramos exemplos de doutrinas antitrir:iitárias ("como quem afirmava
ser o filho da Santíssima Trindade menor que o Pai.. . ou Deus ter-se feito criatura
na Encarnação") , de teses iconoclastas ("ou quem afirmava serem papel, madeira ou
pedra as imagens de N. Senhor ou dos santos") que tinham sido tratadas por aquele
tribunal; e encontramos sobretudo os primeiros sinais de uma avalanche de práticas
mágicas e supersticiosas: o abuso dos sacramentos (o bastante disseminado batismo
do ímã, por exemplo) e das coisas sacramentais ("água benta, velas, folhas ou ramos
de oliveiras bentas, cruzes, palavras, sentenças ou salmos da sagrada escritura"). A
matéria atinge o quarto ponto da lista: e ali encontramos descrições pontuais dos
esconjuros ("cinco dedos ponho no muro, cinco diabos esconjuro") e das várias
categorias de orações:

31. Conservada em ASM, Jnquisizione, b. 295, cc. 4 numeradas; o amigo Albano Biondi, a quem agradeço, informa-
-me que "o texto é de Calbetti ou de Lerri". Arcangelo Calbetti foi inquisidor em Módena entre 1600 el 1607;
sucederam-no Serafino Borra (1607-1608) e Michelangelo Lerri (1608-1616). Em uma carta de Calbetti a Borra,
de 17 de dezembro de 1607 (idem, b. 288; agradeço à dra. Caterina Capucci a indicação), faz-se menção a uma
instructio para 05 vigários, compilada por ele, que é, conforme todas as evidências, nosso documento.
32. Cito a partir de Carlo Ginzburg, Il Formaggio e i Vermi. Il Cosmo di un Mugnaio del Cinquecento, Torino, 1976,
p. 145. O processo é de 1570.

Controle das Consciências e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


340

- para ser amado por amor desonesto , como são as orações de S. Daniel, de S. Marta, de
S. Helena ;
- para saber coisas futuras ou ocultas, como a "Anjo santo, anjo branco" etc. , a "Doce Virgem",
e que tais. E os confitemini de Nossa Senhora;
- as que contêm nomes incógnitos, cujo significado nem é sabido, e caracteres ou círculos, ou
triângulos etc. , que são trazidos junto do corpo, ou para ser amado por mulheres, ou por príncipes,
ou por quem quer que seja, ou para se proteger das armas dos inimigos, ou para não correr nenhum
perigo, ou para não confessar a verdade nos suplícios, ou para outros fins .

A casuística que se apresenta aqui e nas outras seções do documento pode servir
de índice temático das práticas desviantes das quais as autoridades modenenses deviam
se ocupar nesses anos.
A relação fez sucesso, tanto junto aos inquisidores como junto aos bispos. Foi
publicada em 1608, em Módena, pelo inquisidor frei Michelangelo Lerri como seção
de uma informatione mais ampla destinada aos vigários, que por sua vez tornou a ser
publicada depois, em Cremona e em Parma, em 1628 33 • Por sua clareza analítica e
pelo modo prático e concreto da identificação das categorias cada vez mais imprecisas
e numerosas, a relação foi juntada em 1612 aos "avisos" de Rodolfo Paleotti, bispo de
Ímola, e encontrou finalmente uma sistematização definitiva no manual mais difundido
e de maior sucesso da Inquisição romana, o Sacro Arsenale de Eliseo Masini (1621)3 4•

33. Bretie lnformatione dei Modo di Trattare le cause dei S. Officio per li molto retierendi tiicarii della Santa Inquisitione,
instituiti nelle diocesi di Modona, di Carpi, di Nonantola, e della Garfagnana, Módena, tipografia de Giulian Cassani,
1608 (uma edição anastática foi organizada por Albano Biondi, Ferrara 1991). A edição parmense (Bretie lnfor-
matione dei Modo di Trattare le cause dei S. Officio per li molto retierendi tiicarii dei/a Santa lnquisitione, instituiti nelle
diocesi di Parma, e di Borgo S. Donnino, Parma, junto a Seth et Erasmo Viotti, 1628; a dedicatória aos vigários é
assinada por frei Benedetto de Bistagno inquisidor de Parma), reproduz exatamente a modenense, inclusive no
que se refere à dedicatória "aos reverendos senhores vigários" da qual se atualiza somente a data e a assinatura;
contudo, foram omitidas duas seções "Do modo de examinar os réus" (que até na edição modenense estava
inserida, às pp. 27-46, com a advertência de que o exame dos acusados era de norma reservado ao inquisidor
e não era permitido aos vigários a não ser em condições excepcionais) e "Algumas ordens recebidas da Sagrada
Congregação( ...]", pp. 53-56, que se referem às tarifas de custos judiciários vigentes em Módena. Uma cópia
da edição parmense é conservada no Archivio di Stato di Parma, fondo "Culto" , b. 101. Não pude examinar
se a Bretie Instruttione in Cui si Prescritie il modo e la forma che detiono tenere i tiicari foranei dei S. Officio di Patiia...,
publicada no final do século XVII, com o nome de frei Giovanni Domenico Boero, Pavia, por G . Ghidini s.d.
(indicado por L. Musselli, "11 Tribunale dell'lnquisizione a Pavia", Annali di Storia Patiese, 18, 1989, pp. 103-111 ;
cf. p. 104 nota) é também uma reedição do texto modenense.
34. Episcopale della Città e Diocese d'lmola, Bologna, por Vittorio Benacci, 1616, pp. 200-205. A data de redação é a
indicada por Angelo T urchini, lnquisitori e Pastori, Cesena, 1994, p. 35 (que propõe o cotejo pontual com o Sacro
Arsenale: cf. pp. 111 e ss.). A identidade essencial dos textos de Paleotti e de Masini foi observada por Giuliana
Zanelli (Streghe e Società nell'Emilia e Romagna dei Cinque-Seicento, Ravenna, 1992, pp. 102-108; em part. p. 105)
que levanta a hipótese de uma fonte comum, que poderia ser a própria Bretie Informatione dei Modo di Trattare
le Cause dei S. Officio, publicada por frei Michelangelo Lerri em Módena. Não se pode excluir, naturalmente,
que o texto de Lerri retome a divisão das categorias de um édito geral elaborado pela congregação romana.
Mas o colorido local da casuística é inegável.

A Confissão
341

Os fatos relativos a esse breve texto trazem à tona um dado de inegável importância: a
irradiação da rede de vigários no território já permitia aos comissários da Inquisição
o exercício de um controle minucioso, capaz de competir vitoriosamente com a rede
paralela das instituições diocesanas e de influenciar seu funcionamento . Porém, deveria
se falar menos de rivalidade e mais de sobreposição e confusão.
Em teoria, a confusão estava excluída das normas estabelecidas pela Congregação
do Santo Ofício. Uma regra fundamental impunha escolher os vigários no seio do clero
regular e proibia atingir o clero secular das paróquias. Não está claro quando foi for-
mulada pela primeira vez, contudo é certo que não foi observada. De resto, em 1640, o
cardeal Barberini, mesmo reforçando-a formalmente , observou que a norma valia "toda
vez[ ... ] que no mesmo lugar existirem pessoas regulares aptas ao exercício de tal ofício" ,
e que na ausência dessas pessoas podiam ser nomeados os párocos, desde que solicitada
a devida permissão à Congregação romana 35 • De fato , fora dos maiores centros urbanos,
a rede dos vigários foi constituída por párocos, "o que - como foi observado - não é
desprovido de significado para as formas de comunicação da fé" 36 • Não é difícil com-
preender por que , para a congregação romana, devia-se evitar a sobreposição: durante
séculos os conventos tinham produzido pessoal munido da cultura teológica necessária
e abrigado em suas celas os instrumentos do ofício - desde os livros e arquivos até os
cárceres. Mas a tendência da estrutura inquisitorial em relação à presença disseminada
no território era demasiadamente forte para deixar-se deter pela eventual ausência de
conventos. E assim, não obstante os vetos formais, também o clero das paróquias foi
arrolado e, como decorrência, frequentemente o vigário do bispo e o do inquisidor
romano foram a mesma pessoa. A convergência das duas estruturas é o resultado de
uma tendência à sobreposição das funções , que mostra o quanto a Inquisição tinha se
transformado desde o momento de seu renascimento.
Sua intervenção deixou de ser ocasional e estremecedora, realizada apenas na pre-
sença de desvios isolados e graves ou de específicas organizações heréticas, mas tornou-se
contínua e quase cotidiana. Devia-se poder recorrer à Inquisição a qualquer hora, de
acordo com o mesmo impulso que levava cada fiel ao confessionário. E o inquisidor -
como veremos melhor mais adiante - também modificou as formas elementares de
seu trabalho: não mais o édito de graça e o de justiça, mas um só édito geral e muitos
éditos particulares; não mais graves punições públicas, mas uma miríade de "penitências
salutares" frequentemente secretas, ou, como quer que seja, não vistosas; e, entre as
formas de início do processo, ao lado das tradicionais da fama e da acusação, passou a
destacar-se em primeiro lugar a da spontanea comparitio, também chamada "desencargo
de consciência" - ou seja, um sistema de impulso individual codificado e generalizado
(encorajado, também, pelas formas leves de pena) que de fato tornou inútil o édito de

35. Carta circular de 28 de janeiro de 1640, conservada em ACAF, S. Uffizio, b. 11, n. 102. Sobre a situação real
em duas áreas-modelos vejam-se os estudos do autor deste volume ("Vicari dell'lnquisizione Fiorentina", op.
cit.), e de Albano Biondi ("Lunga Durata e Microarticolazione", op. cit.).
36. Biondi, "Lunga durata e microarticolazione", op. cit. , P· 87.

Controle das Consciências e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


342

graça 37• Presente de modo difuso e estável em todo o território, o vigário viu crescer cada
vez mais o aspecto burocrático de seu trabalho: à medida em que a estrutura eclesiástica
reunia uma grande quantidade de conhecimentos, principalmente através das malhas da
confissão, e encaminhava aos vigários da Inquisição os que deviam submeter a própria
consciência a um desencargo, eles viam diminuir as tarefas de investigação policial e
aumentar as de arquivamento e transmissão de dados. Para ver num relance como tinha
mudado a natureza da presença territorial de inspetores eclesiásticos no território no
decorrer do século XVII , basta confrontar as instruções modenenses lembradas anterior-
mente com um opúsculo redigido para os vigários da Inquisição na região de Ferrara
no final do século XVII. As Regale del Tribunale del Sant 'Officio, publicadas em Ferrara
por frei Tommaso Menghini "para esclarecimento dos vigários de sua jurisdição", não
perdem tempo relacionando os crimes a serem indagados, mas concentram-se na apre-
sentação da abordagem burocrática a ser seguida para a autuação dos vários momentos
do processo, desde a denúncia e o interrogatório das testemunhas até a sentença 38 •
Mas, visto que estamos observando os modelos de conhecimento e controle do
território revitalizados pela retomada episcopal da época tridentina, seria bom sublinhar
desde já duas maneiras diferentes de sobreposição da polícia inquisitorial aos modelos
"pastorais" do governo episcopal: não somente a Inquisição propôs, onde lhe foi pos-
sível, modelos de vigilância calcados nos modelos diocesanos, mas investiu de funções
inquisitórias as instituições de governo episcopal, sobretudo - mas não só - nas regiões
da Itália onde a Inquisição não foi oficialmente admitida. Como vimos, a área mais
vasta e mais importante desse ponto de vista era a do reino de Nápoles. Ora, a presença
do núncio apostólico e a atuação do comissário do Santo Ofício em Nápoles podiam
garantir uma informação imediata e uma ação de espionagem eficaz para uma Inquisição
Romana preocupada essencialmente com a condução de uma luta sem quartel contra os
hereges. Mas as coisas complicaram-se quando, com a mudança de tarefas e de funções,
surgiu o problema do controle minucioso do território; por isso, acabou-se recorrendo
justamente aos bispos, obrigando-os a encobrir com o véu da ação "pastoral" atos precisos
de tipo inquisitorial. "Onde os Inquisidores não estão presentes, os ordinários podem e
devem atender à execução do decreto do Santo Ofício" 39 : essa regra, estabelecida para a
realização do Índice romano de 1559, pode ser tomada como norma do funcionamento
da Inquisição romana, Há provas disso em muitos autos, particularmente nas áreas onde

37. "[... ] Havendo os sumos Pontífices concedido aos réus, que compareçam espontaneamente a qualquer mo-
mento, ou digam inteiramente a verdade a respeito de suas culpas e de seus cúmplices, desde que não sejam
prevenidos, a graça das penas às quais seriam condenados, não se reputa mais necessário publicá-lo [o édito
da graça], por nele ser restrito a poucos dias esse tempo, que é perpétuo" (a observação é de Albizzi em sua
Risposta all'Historia della Sacra lnquisitione Composta già dai R.P. Paolo Servita, op. cit. , p. 324).
38. Regole dei Tribunale de! Sant'Officio, Praticate in alcuni casi imaginarii da F. Tom.aso Menghini d'Albacina, inquisitore
generale di Ferrara, e suo Ducato, per lume de' Vicarii della di !ui giurisditione, segunda impressão, em Ferrara, pelo
herdeiro de Giglio, tipógrafo do Santo Ofício, 1687.
39. Carta do cardeal Michele Ghislieri ao inquisidor de Gênova, 10 mar. 1559, Biblioteca Universitaria di Genova,
ms E. VII. 15, c. 94r.

A Confissão
343

não foi possível construir uma rede institucional de comissários da Inquisição. Em uma
relação dos "negócios pendentes" perante o Santo Ofício romano em 1624, tem-se notícia
de como fora resolvido o problema de uma "determinada superintendência" no território
do Reino de Nápoles: decidira-se "enviar aos bispos do Reino as minutas do édito do
Santo Ofício, com ordem de publicá-lo como ordinários, inserindo nele o conteúdo dos
éditos que soem publicar como bispos". Em suma, era preciso ocultar o caráter centralista
e policial do édito do Santo Ofício romano atrás das formas da presença pastoral, que
se presumia ligada aos problemas locais e portanto diversificada em termos de tempos e
espaços. Por isso, além de omitir qualquer referência ao Santo Ofício no texto do édito,
os bispos tinham recebido ordem de modificar o início do texto e proceder esparsamen-
te, "sem alterar a forma, lugares e tempos com que cada bispo costuma publicar" 40 • Mas
expediente semelhante podia vir a calhar também nos lugares onde a Inquisição, mesmo
presente, era contida pelo controle estatal: assim, nos decretos sinodais das dioceses veneras
o olhar agudo e desconfiado de Sarpi detectou, nessa mesma época, a presença de decretos
do Santo Ofício romano que, não tendo sido acatados "nos ofícios da inquisição deste
Domínio com a assistência dos representantes públicos", tentavam passar por outras vias 41 •
Outro exemplo é oferecido pela visita episcopal, instrumento cuja função "pasto-
ral" desde então recebeu destaque até se tornar uma espécie de sigla da assim chamada
"reforma tridentina". A função da visita como instrumento de conhecimento e de
intervenção foi de fato central na cultura e no governo eclesiástico da idade moderna.
Mas a intervenção pastoral foi assumindo no decorrer da segunda metade do século XVI
um perfil diferente daquele que tivera nos séculos anteriores, até à época do Concílio
de Trento: a visita do bispo tinha sido um momento de conhecimento e de governo por
parte de uma autoridade eclesiástica ordinária, isto é, consolidada e presente em meio
à população; o caráter ritual da visita fora usado também para estimular a renovação
religiosa dos fiéis , com sermões, indulgências, administração dos sacramentos. Com base
nessa tradição introduziu-se a prática das visitas ditas "apostólicas": atos de delegados
papais, enviados primeiro nas dioceses do estado da Igreja e depois no resto da Itália, as
visitas apostólicas ordenadas pelo papa Gregório Xlll realizaram o ideal de unidade da
península italiana que o pontífice fez representar nos mapas da Galeria Vaticana. Era
uma solução para o grave problema da fragmentação de poderes e de jurisdições que
freava a ação dos bispos e que constituíam a maioria dos "impedimentos de residência"
denunciados pela assembleia conciliar. A mesma não coincidência entre fronteiras ecle-
siásticas e fronteiras políticas provocava problemas significativos: se tomarmos o caso da
diocese de Luni-Sarzana, com suas 287 paróquias divididas entre sete estados territoriais
maiores e uma infinidade de feudos menores 42 , podemos ter uma ideia da dificuldade

40. BNN, ms Branc. 1 B 7, e. 72rv.


41. Consultar "ln Materia delli Decreti della Sínodo Diocesana di Treviso, 1° febbraio 1616", publicado por
Gaetano e Luisa Cozzi, in Sarpi, Opere, PP· 589-591.
42. Cf. a introducão de Enzo Freggia às atas de La Visita Apostolica di Angelo Peruzzi nella Diocesi di Luni-Sarzana
(1584) I. Le V~ite a Sarzana e nella Bassa Vai di Magra, Roma, 1986, pp. LIII-LVIII.

Controle das Consciências e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


344

que qualquer bispo teria de desenvolver uma ação eficaz em meio a tal emaranhado de
poderes. Mas havia - no interior de cada estado - interesses de corpos constituídos em
condições de frear a determinação moralizadora dos bispos. Por isso, houve entre os
imitadores de Carlo Borromeo quem pensasse em impor o cumprimento das normas
tridentinas e dos decretos sinodais a golpes de excomunhão 43 ; mas a resistência romana
em relação a esse método - que levava ao fortalecimento da autoridade de bispos e arce-
bispos e, em geral, das estruturas de governo das igrejas locais - deixou caminho aberto
somente à intervenção de autoridades delegadas diretamente pelo papado.
Surgiram assim as visitas apostólicas. As resistências dos poderes políticos e as
controvérsias que pontuaram seu desenvolvimento mostraram que havia sido bem
entendida a vontade de estabelecimento de uma autoridade central e o uso do modelo
tridentino como um esquema unificador. Porém, desse modo, o projeto de um periódico
momento de renovação religiosa e de encontro entre o "pastor" de uma determinada
igreja e seu rebanho foi sendo substituído por uma inspeção de caráter administrativo
e policial, realizada por delegados que não tinham qualquer ligação com as igrejas visi-
tadas e destinada a verificar somente o grau de uniformidade, de decência, de correção
dos paramentos, dos ritos , das práticas religiosas. O caráter não pessoal mas delegado
da autoridade do visitador e sobretudo a atenção exclusiva aos desvios e às resistências
em relação a um modelo uniforme aproximavam esse gênero de controles às visitas
inquisitoriais e, em âmbito mais geral, às funções dos comissários nas monarquias do
início da idade moderna.
De resto, no decorrer daqueles anos, a sombra da inquisição estendeu-se sobre a
visita apostólica não só em termos de genérica analogia formal. Conhecemos a respeito
um episódio significativo, relativo à cidade de Lucca. Lá, como vimos, a Inquisição ro-
mana não foi aceita; a república de Lucca opôs-se por todos os meios ao que parecia uma
dura lesão infringida às regras de funcionamento do estado citadino. Contudo, Lucca
era vista por Roma como uma capital da infecção herética e o papado não renunciava a
tentar de todos os modos introduzir ali o controle inquisitorial. Foi assim que se recorreu
ao envio de um visitador apostólico ao qual foram conferidos os poderes de inquisidor:
Gian Battista Castelli, bispo de Rimini, fez sua visita de maio e a novembro de 1575, e
durante ela, mesmo sem o governo de Lucca ter concedido o exequatur ao breve papal que
lhe conferia poderes inquisitoriais, recebeu secretamente denúncias escritas, vindas de um
grupo de cidadãos particularmente determinados a lutar contra os hereges: a partir delas
foram instaurados processos e mais processos 44 • Esse exemplo evidencia como o instituto

43. Sobre a tentativa feita nesse sentido pelo arcebispo de Salerno Gaspare Cervantes, cf. Pietro Caiazza, Tra Stato
e Papato. Concili provinciali post-tridentini 1564-1648, Roma, 1992, pp. 95-101.
44. Cf. S. Adorni-Braccesi, La Repubblica di Lucca, pp. 258 e ss. Sobre a dinâmica das denúncias, eis o que referiu
um dos conjurados de Lucca, Francesco Fantucci, em seu depoimento perante o inquisidor de Pisa de 2
de julho de 1576: tinha sido abordado por Giovan Battista Nannini que o fizera jurar segredo e lhe dissera
"que queria que eu fosse um dos outros sete ou oito que estavam de acordo em denunciar e acusar ao Mons.
Visitador os hereges sodomitas e maus cristãos de Lucca, para que prevalecesse a honra de Deus sobre tudo
isso ... que como os outros estavam de acordo com isso eu também devia ir ao visitador dizer o que eu sabia,

A C o nfissão
345

da visita, de instrumento de governo baseado no contato direto entre bispo (residente) e


povo cristão, transformava-se em inspeção de um delegado da única e distante autorida-
de papal: e como, justamente devido à natureza de delegado e comissário do visitador,
a visita se deslocava para o modelo do controle inquisitorial. Naturalmente, o bispo
mantém deveres e desempenha funções que fornecem a todos a ideia de uma sociedade
controlada com o rigor de um pai severo, mas justo: os registros paroquiais, com suas
relações de batizados, casamentos, almas para comungar, constituem o precipitado das
funções de conhecimento e orientação paternal e cotidiana que permaneceram como
sólido apanágio de paróquias e dioceses. No entanto, também a Inquisição precisou
ter seus instrumentos de controle sociológico. A irradiação no território, que no início
do século XVII era um processo bastante adiantado, cobriu as terras mais distantes das
cidades capitais com uma densa série de vicariatos: o exemplo modenense e o toscano
são os mais conhecidos 45 • Mas foi um processo não linear e, pelo pouco que se sabe a
respeito , rico em complicadas consequências. Na Toscana, por exemplo, só tarde e com
muitas resistências foi reconhecido aos inquisidores o direito de nomear seus próprios
vicários. Em 1580, quando o inquisidor de Siena instituiu um vicariato em Volterra, o
bispo da cidade, Vito Serguidi, irmão do secretário de Francesco I da família Médici, pro-
vocou uma duríssima intervenção do grão-duque, que levou a operação ao fracasso 46 • O
episódio serviu para pôr em confronto duas concepções diferentes do controle territorial
para as matérias religiosas. O grão-duque defendeu que não havia nenhuma necessidade
de vigários inquisitoriais porque os bispos de seu estado encontravam-se todos presentes
em suas sedes e, portanto, podiam desempenhar as tarefas de vigilância "dispensando
a multiplicação de outros ministros" 47 • Ao contrário, segundo o cardeal Savelli, a rede
dos vigários tinha justamente a missão de aliviar os bispos de tais incumbências, de
acordo com um projeto baseado na especialização das funções 48 • O ponto de vista do
grão-duque sobre as funções dos bispos ainda se identificava com o modelo tridentino:
os desdobramentos seguintes, com a rápida propagação da rede inquisitorial em todos
os pequenos centros da Toscana, estabeleceram a vitória do ponto de vista romano.

mostrando também que eu devia fazê-lo por muitas razões: ao qual respondi que não era mais aquela época
em que eu ficava a perseguir os aflitos com os outros espirituais, mas que, tendo mulher e filhos , parecia-me
devido cuidar de minha família e não da vida alheia, mas, enfim, não soube santo [= tanto) safar-me, que
lhe prometi estar com os outros e, tendo-me dito para pensar durante a noite e põr por escrito o que sabia,
resolvi não escrever, mas dizer de viva voz ao Visitador o que sabia[ ... ) e nas três vezes em que falei com Mons .
Visitador sempre veio esse padre Gio. Battista à minha casa para levar-me ao dito Visitador e agora passo pelo
desgosto de que por causa dessas coisas a cidade esteja de pernas para o ar. Cidade essa que me parece católica
de corpo e alma, embora alguns membros estivessem infectados, e a intenção do príncipe é muito boa" (AAP,
S. Uffizio, f. 1, c. n.n.).
45. Cf. nota 35 deste capítulo.
46. Cf. Marchetti, Ultime fasi della repressione dell'eresia a Siena, op. cit., pp. 82-83.
47. Carta de Francesco 1 a Alessandro de' Médici, 13 de fevereiro de 1581, op. cit. , p. 86.
48. "[ ... ) Os ordinários que amam O serviço de Deus têm em consideração de serem ajudados pelos inquisidores ou
por seus vigários. Os quais, por não se ocuparem de outro assunto, podem atender melhor a este serviço do
que os ordinários" (carta a Francesco 1, Roma, 24 de dezembro de 1580, op. cit., p. 84).

Controle das Consciências e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


346

Cruzamentos e sobreposições ocorriam também nos níveis mais baixos da


estrutura. Tomemos o caso da montanha modenense: em um primeiro momento
as funções de vigários da Inqu isição foram desempenhadas ali pelos pregadores'
dominicanos que , durante o ciclo quaresmal, reuniam informações - quiçá durante
a confissão - que depois registravam em atas . Mas também houve casos de párocos
que se dedicaram a elaborar dossiês inquisitoriais. Nesse envolvimento das estruturas
paroquiais na luta contra a heresia viu-se justamente um momento de um processo
mais amplo de diferenciação entre pároco e comunidade e de um isolamento do
corpo eclesiástico em defesa dos próprios poderes e privilégios : e aqui os instrumen-
tos inquis itoriais ofereciam-se como os mais eficazes, no que se refere às estratégias
pastorais do modelo diocesano tridentino 49 • O pároco, enfim, torna-se inquisidor:
torna-se tal em termos de direito , pois - como se viu - a rede dos vigários da Inqui-
sição , no século XVII , foi frequentemente formada pelas mesmas figuras (arciprestes,
pievanos 50 , simples párocos) que compunham a rede de governo diocesana; e todavia
frequentemente é inquisidor de fato , já que atrás de muitos processos inquisitoriais
encontra-se a acusação inicial feita por um pároco, movido talvez pelo desejo de vin-
gança contra as autoridades laicas da comunidade e sua indócil hostilidade. Domenico
Scandella, podestade de Montereale, foi denunciado pelo pievano em 1583, assim
como os podestades do Appennino modenense eram denunciados pelos párocos de
suas comunidades 51 •
Se os párocos acabaram cada vez mais envolvidos até se arrolarem oficialmente
na rede inquisitorial, a inquisição promoveu seu avanço no território do governo dioce-
sano até se apoderar dos mesmos instrumentos de investigação sociológica que tinham
sido criados para o bispo. No início do século XVII, exigia-se dos vigários da Inquisição
de Módena o fornecimento de dados idênticos àqueles que os bispos mais diligentes
coletavam para suas dioceses:

O nome do lugar
Se é terra, castelo ou vila, grande ou pequeno
Sob qual domínio ou jurisdição, seja em temporal
Sob qual diocese ou jurisdição, em espiritual
Se algum é governado por marquês ou conde etc.
Se é por potestade, ou não, ou seja se tem governador, ou comissário
Com que domínios confina
Se é na planície ou na montanha
1... l

49. Susanna Peyronel Rambaldi, "Podestà e inquisitori nella montagna modenese. Riorganizzazione inquisitoriale
e resistenze locali (1570-1590)" , em Vlnquisizione Romana in ltalia nell'età moderna, Roma, 1991, pp. 203-231;
em part. p. 217.
50. Eclesiásticos responsáveis pela pieve (N. do T.).
51. Cf. Ginzburg, II Fonnaggio e i Vermi, op. cit., p.4; Peyronel Rambaldi, "Podestà e lnquisitori", op. cit. , pp. 218 e ss.

A Confissão
347

Quantos domicílios possui, aproximadamente


Quantas almas possui aproximadamente
Quantas igrejas tenha
E o nome delas
Qual igreja é pieve, qual é paroquial
Se é igreja, ou convento de alguma religião e quantos religiosos vivem nele aproximadamente 52•

Em um caso, pelo menos , conhecemos uma demostração desse caso, realizada -


ao que parece - entre 1605 e 1611 , aos cuidados da Inquisição de Romagna 53 • Na
época em que se descobre a estatística como instrumento de governo , a Inquisição
apropria-se para seus objetivos de uma relevação sistemática das informações sobre
a população semelhante a que constituía o objetivo principal dos autos de visitas
pastorais. É uma prova a mais do avanço da Inquisição num terreno que original-
mente não era seu.
Mas que terreno era esse? O esforço de construir redes territoriais e de coletar
e elaborar dados sobre a população era - como vimos - semelhante para os bispos e
para os inquisidores. Mas o projeto também era semelhante. Se os párocos também
lidavam com a luta contra a heresia, os inquisidores também lidavam com a moral.
Era uma situação totalmente nova no que se refere à relação tradicional entre cura
animarum paroquial e luta contra a heresia: as paróquias não tinham sido envolvidas
a não ser marginalmente na luta contra a heresia até o início da época da Reforma 54 •
Nem a Inquisição medieval jamais se dedicara a controlar a moralidade dos compor-
tamentos e a administrar por sua conta a cura de almas. Na grande transformação,
desempenhou certamente um papel importante a memória da luta religiosa do início
do século XVI: o corpo eclesiástico, chamado a um sentimento de identidade mais
forte, mas também de dependência da cúpula romana e de suas ramificações, dotado
das mais rígidas regras de comportamento, foi se entrincheirando em defesa de velhos
e novos privilégios e tornou-se cada vez mais intolerante a qualquer forma de crítica.
Para se defender e para atacar, era inevitável que os instrumentos rápidos e temidos
da Inquisição se mostrassem mais eficazes do que as vias lentas e incertas do governo
pastoral. Mas a desestabilização da antiga relação entre cura das almas e defesa da
ortodoxia, com a sobreposição não apenas de métodos e instrumentos, mas também
de objetivos, é indício de uma mudança profunda, de um distanciamento geral da
tradição dos últimos séculos. Os vazios que se criaram tiveram de ser preenchidos de
algum modo; e foi por isso também que, juntamente com a visita pastoral como ato
cada vez mais exclusivamente administrativo, foram aumentando formas novas de

52. Biondi, "Lunga Durata e Microarticolazione", op. cit., pp. 84-85.


53. Encontra-se no Libro degli Atti dell'lnquisizione, conservado no Arquivo de Estado de Faenza: agradeço a An-
gelo Turchini por tê-lo indicado e por ter-me feito ler a redação manuscrita de seu estudo (Angelo Turchini,
lnquisitori e Pastori, Cesena, 1994).
54. Cf. G. G. Merlo, "Cura Animarum ed Eretici", em Pievi e Parrocchie in ltalia nel Basso Medioevo (Secc. Xlll-XV),
Atti del VI Convegno di storia della Chiesa in ltalia, Roma, 1984, pp. 543-556.

Controle das Consciências.e Controle do Território: Redes Episcopais e Redes Inquisitoriais


348

animação e de renovação religiosa - em primeiro lugar, as missões populares (sobre


as quais trataremos mais adiante). Mas, por enquanto, trata-se de entender melhor
o que tinha acontecido no mapa das jurisdições, nos limites entre erro teológico e
pecado moral.

A Confissão
XVI
BISPOS E INQUISIDORES:
SOBREPOSICÕES E CONFLITOS
'

e ostuma-se ver nas tendências do final do século XVI um abandono, quando não
uma traição, das aspirações de reforma do início do século: à reforma opõe-se a
Contrarreforma, à simplicidade do Evangelho o aparato constritivo e autoritário de
uma hierarquia opressiva. Na realidade, os decretos e as medidas policiais das autori-
dades eclesiásticas em fins do século XVI não fizeram outra coisa que realizar os desejos
contidos nos memoriais produzidos pelas tendências reformadoras e rigoristas do início
do século. A verificação é simples. No que diz respeito ao governo episcopal, podemos
tomar como comprovação os decretos do primeiro concílio provincial milanês para ver
resumidamente os comportamentos transgressivos sobre os quais se tentava intervir: eram
aqueles que havia décadas tinham sido denunciados por uma literatura de orientação
reformadora, com tonalidades diferentes - desde o lamento penitencial da sempiterna
corrupção humana às cores dramáticas da profecia, passando pela prosa severa e contida
de quem tinha responsabilidade de governo. Tratava-se de blasfemos, feiticeiros , gente
que pervertia a palavra de Deus ou desobedecia publicamente a seus preceitos. O olhar
dos bispos lançado ao mundo laico apreendia uma quantidade de erros e aberrações cada
vez mais vasta e preocupante. Os estatutos sinodais, juntamente com os antigos cânones
sobre a vida e os costumes do clero (de vita et honestate clericorum), viam aumentar cada
vez mais a parte dedicada às denúncias do que não ia bem na vida do povo cristão. E,
naturalmente, a heresia acabava sendo o ponto principal e a síntese das aberrações do
mundo. Dos primeiros sinais de preocupações anti-heréticas por parte dos sínodos da
época tridentina passa-se rapidamente a descrições precisas e amplas sobre as formas
da heresia, sobre os veículos de sua difusão (mestres-escolas, livros) e sobre o modo de
combatê-la. A leitura comparada de manuais da Inquisição e de fontes normativas de
origem episcopal evidencia que o inimigo a ser combatido é o mesmo. Isso é bastante
óbvio, por determinados aspectos. O ponto de vista das duas autoridades era o mesmo,
ou pelo menos encontrava-se no centro da questão, que era a da proteção do bonum fidei .
Mas, se isso permite compreender a sobreposição tendencial de sua atividade na luta
contra O erro doutrinário, há outras razões que tornaram necessário esse encontro num
terreno mais amplo.
Essas razões personificam-se na figura do herege assim como fora concebida e
imaginada: 0 herege era essencialmente um mau cristão. A pertinácia de sua desobe-
350

diência às autoridades era o indício principal e o ponto de partida de uma completa


degeneração moral, de um abandono de todo o respeito às normas comuns que regiam a
vida da sociedade. No âmbito da prática, os hereges tornam-se conhecidos como "aqueles
que , notadamente, afastam-se da vida comum aos católicos": essa definição sintética
da não conformidade sobressai em ambas as tradições - inquisitorial e episcopal - das
autoridades empenhadas em criar as estruturas do conformismo. A partir das instruções
para os vigários modenenses da Inquisição, a definição passou nos Avvisi de Rodolfo
Paleotti, bispo de Ímola (1612), e no Sacro Arsenale de Eliseo Masini (1621) ao cerne de
uma idêntica descrição analítica dos hereges e dos suspeitos de heresia 1: evidentemente,
bispos e inquisidores reconheciam nessa fórmula a razão de sua unidade de intenções.
O encontro deles tornara-se necessário pelo ponto comum de intersecção constituído
pelos confessores: o bispo devia descrever os casos de competência do Santo Ofício "para
que todos os párocos e demais confessores saibam governar os súditos e penitentes" 2•
Até essa data, fora percorrido um longo caminho de aproximação e de sobreposição
entre as duas autoridades, que fizeram sobressair sobretudo a inquisitorial por sua maior
eficácia. Mas a razão da convergência entre bispo e inquisidor situava-se no modo de
conceber a figura do herege como dissidente: como atestam importantes canonistas, por
dissidente entendia-se não só quem se afastava da fé comum, mas também quem não
seguia o modo comum de viver3• O herege, conforme era definido pelas doutrinas, era
antes de tudo um mau cristão e era traído pela singularidade de seus comportamentos
e pelo conflito que portava na vida social. No linguajar comum toscano, recordava o
sábio Vincenzo Borghini de Florença, heresia significava "discórdia ... dissidência e
escândalo"4. As autoridades eclesiásticas só tinham de acatar o pedido de eliminação do
transviado que a sociedade produzia sem cessar. Os catálogos dos mártires elaborados e
divulgados pela piedosa propaganda protestante não puderam fazer muito no sentido
de rebater uma campanha agressiva de demonização dos hereges como "transviados".
Por outro lado, a acentuação dos aspectos morais e práticos da dissidência herética
foi resultado também de uma insólita e inaudita importância doutrinária assumida então
pelos ritos e pelas práticas. A prática ritual e sacramental, assim como fora definida no
confronto doutrinário da época da Reforma, propiciava infinitas ocasiões para identificar
o dissidente: bastava não ir à missa, não seguir as procissões, não tirar o chapéu diante
de uma imagem sacra, para ser imediatamente identificado e tornar-se objeto de suspeita.

1. Episcopal.e della Città e Diocese d'lmola, por Vittorio Benacci, Bologna, 1616, pp. 200-205 (cf. cap. XV, notas 33 e 34).
2. O texto de Paleotti é citado por Turchini, lnquisitori e Pastori, op. cit., p. 111.
3. "Verbum dissidentes[ ... ] includit non solum dissidentes a fide, sed etiam a communi conversatione honesta"
(Martinus ah Azpilcueta, Commentarius Utilis in Rubricam de ]udiciis, Romae, apud Tomerium et Bericchiam,
1585, p. 139, n. 93; uma exposição resumida da doutrina do doutor Navarro sobre o julgamento inquisitório
é fornecida por Rafael Rodríguez-Ocana, "Notas sobre el Juicio lnquisitorio", em Estudios sobre el Doctar NatJarro
en el IV Centenario de la Muerte de Martin de Azpilcueta, Pamplona, 1988, pp. 387-400).
4. O trecho, em Vincenzo Borghini, Opere, por Filippo e lacopo Giunti, Firenze, 1585, p. 563, é citado por Johannes
Kremer, "Ketzer, Zauberer und Homosexuell", em Peter Blumenthal e J. Kremer, "Ketzerei und Ketzerbekãmpfung
in Wort und Text", em Zeitschrift fur Franzõsische Sprache und Literatur, b. 14, Sruttgart, 1989, p. 19.

A Confissão
351

Muitos podiam dizer de si mesmos o que escrevia um correspondente de Anton Francesco


Doni: "Eu lá vou [à missa] para não parecer herege" 5• De situações como essa surgiam as
ansiosas perguntas que os italianos faziam aos chefes da Reforma: era permitido participar
dos ritos sagrados dos "ímpios" católicos? E até que ponto a disposição interior podia se
afastar licitamente do comportamento físico? As perguntas que Lelio Sozzini dirigiu a João
Calvino a esse respeito constituem um espelho da condição de quem, então, sentia na
própria pele a impossibilidade crescente de ser diferente no interior de uma religião que
sobrecarregava de implicações doutrinárias uma grande quantidade de ritos: casamento,
batismo, missa e muitos outros 6 • Os exilados, até os mais compreensivos, não tinham
dúvidas e advertiam os italianos: era absolutamente impossível separar interior de exterior,
ou - como escrevia Celio Secondo Curione - "participar das cerimônias e superstições da
Babilônia, estando presente apenas fisicamente , mas com a alma ausente" 7: quem dizia o
contrário e convidava os dissidentes italianos a dissimular, como o herege italiano Giorgio
Siculo, devia ser renegado. De fato , na Itália, todo comportamento suspeito que tivesse
relação com os ritos sagrados - não ir à missa, bem como administrar os sacramentos
sem ter sido ordenado sacerdote ou casaMe com mais de uma mulher - foi atingido pela
intervenção das duas autoridades, do bispo e do inquisidor.
Com esse critério, estava de acordo o outro tipo tradicional que julgava suspeito
de heresia_o comportamento moral que divergia da norma: o herege era um "mau cris,
tão" , dizia,se, levando,se em conta seu abandono da ortodoxia, sobretudo no plano do
sentimento comum da moral. Era uma difamação que se apoiava frequentemente em
dados reais. A liberdade da opção pessoal levava ao libertinismo, diziam os acusadores:
e a história da personagem do libertino mostra um enredo contínuo entre acusações
preconcebidas de imoralidade e comportamentos que se afastavam efetivamente da
norma 8 • Na situação dos procedimentos por heresia na Itália do século XVI, deu,se uma
passagem quase imperceptível da repressão doutrinária à interferência nos costumes. Em
1558, quando o inquisidor de Ímola reuniu testemunhos contra o humanista Sebastiano
Flaminio, ouviu,se repetir por muitos o mesmo julgamento: Flaminio "estava no mau
caminho" e era suspeito de heresia "luterana", pois era sodomita e "mantinha rapazes
suspeitos em casa" e fora abandonado pela mulher9 • Flaminio levava vida desregrada,

5. Carta de Benedetto Volpi, de Como, 31 ago. 1544, em Paolo Gerardo, Novo Libro di Lettere Scritte dai piú Rari
Auttori et Professori della Lingua Volgare Italiana, por Comin de Trino, Venezia, 1544, c. 136v.
6. Cf. Lelio Sozzini, Opere, edição critica org. por Antonio Rotondô, Firenze, 1986, pp. 134 e ss.
7. Quattro Lettere Christiane, con uno Paradosso, Bologna (mas Basileia), por M. Pietro e Paulo Perusini fratelli, 1552,
pp. 21-22.
8. Cf. Gerhard Schneider, Il Libertino. Per una Storia Sociale della Cultura Borghese nel XVI e XVII Secolo (Der Libertin,
1970) trad. it. Bologna, 1974.
9. Dep. de Battista "de Tepis", de Castel San Pietro, 20 maio 1588; o documento, que não pude conferir no
manuscrito do arquivo episcopal de Ímola, é reproduzido por Raffaella Rotelli, Il Tribunale dei Sant'Uffizio a
Imola dalla Fondazione ai 1578, Tese de Graduação, Università degli Studi di Bologna, orientador C. Ginzburg,
1973-1974, p. 188. Sobre Flaminio, primo do mais conhecido Marco Antonio, e sobre os processos de Ímola
chamou a atenção pela primeira vez Giuseppe Fortunato Cortini, La Riforma e l'Inquisizione in Imola (1551 -1578)
e Marco Antonio Flaminio Luterano, imola, 1928, PP· 28-34.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


352

tinha familiaridade com judeus, era sodomita: e por isso o inquisidor reuniu testemu-
nhos sobre todos esses pontos, que, todavia , não entravam em seu campo. Mais adiante
tornou-se normal também para a inquisição atingir os sodomitas e quem frequentava
'
judeus 1°. A fama de sodomita podia surgir como consequência de um juízo negativo a
respeito de certas profissões: o preceptor, o homem de teatro. A inquisição de ,.,Ímola
reuniu - sempre em 1558 - rumores e acusações a respeito de certo Battista Chillini,
que era conhecido como "um grande comediante" 11 , no sentido de que se dedicava a
compor comédias . Mas em Ímola era considerado "um grande trapaceiro, um malvado
e um grande sodomita" , diziam que não se confessava nem comungava jamais, que ca-
çoava da religião , que enganava os parentes, chegavam a defini-lo "o maior blasfemo e
renegador da fé de Cristo que pode haver no mundo" 12 • Mas o processo não conseguiu
apurar nada mais concreto que boatos . E os boatos tinham origem num dado de fato
real - escrever comédias, ter relações com o teatro - e no projetar o próprio modelo de
vida no dos outros: a suspeita era gerada pela diferença. Para o médico Stefano Faelli,
Chillini parecia "todo mal vestido"; e ainda por cima, acrescentava Faelli, "eu nunca o
vi em igreja alguma e vou à missa todas as manhãs, além de frequentar outras igrejas" 13 •
Desse modo , enquanto a estrutura territorial da Inquisição copiava a da diocese,
os bispos copiavam as instruções inquisitoriais para ensinar ao próprio clero como
defender a fé. Reconduzir à norma da vida católica era o objetivo comum dos bispos e
inquisidores: e nesse terreno comum produziram-se repetidos choques sobre a prioridade
de uns ou de outros - prioridade nos poderes e nos deveres, mais frequentemente nos

'
direitos, sobretudo os de precedências cerimoniais. Mas era consciência disseminada
que as matérias de intervenção de uns e de outros eram as mesmas: para os tratadistas
da Inquisição, era evidente que a intervenção dos inquisidores tornara-se necessária
devido à ineficácia da intervenção dos bispos: por ausência, indolência ou imperícia
deles, como explicava Simancas 14 • Mas os bispos mais ativos e preparados dedicavam-se
às mesmas matérias e sentiam-se chamados a intervir para restaurar o mesmo modelo
ortodoxo de vida ao qual também se referia a Inquisição. Por um certo trecho do ca-
minho os dois percursos foram comuns, tanto que os rastros documentários deixados
por esses dois poderes quase sempre são difíceis de distinguir. Quando soubermos mais
sobre a atividade desenvolvida pelos tribunais diocesanos 15 , as sobreposições destes com

10. A tese de uma lenta assimilação do crime de sodomia ao de eresia, proposta por E. W. Monter, "La sodomie
à l'époque moderne en Suisse romande", Annales, E. S. C., XXIX (1974), pp. 1023-1033, é examinada nos casos
de Ímola por Rotelli, Il Tribunale del Sant'Uffizio, op. cit.
11. Depoimento do médico Stefano Faelli, 21 maio 1558 (idem, p. 235).
12. Depoimento de Ludovico Mongardini, 25 maio 1558 (idem, p. 236).
13. Idem, ibidem.
14. "Propter varias episcoporum curas, sive propter quorundam absentiam vel ignaviam, vel imperitiam" (1.
Simancas, "De Catholicis lnstitutionibus", em Tractatus Universi luris, XI, 2, Venetiis, 1584, p. 150).
15. De fato, como constatou Prodi, não existe "nenhum estudo na Itália que nos diga ainda que seja para uma
única diocese como funcionava a cúria diocesana do ponto de vista judiciário" ("Tra Centro e Periferia: Le
lstituzioni Diocesane Post-tridentine", em Cultura Religione e Politica nell'Età di Angelo Maria Querini, org. de G.

A C o nfissão
353

os da Inquisição irão resultar, provavelmente, muito amplas. Seu empenho principal


consistia em controlar, frequentemente em proteger um clero indisciplinado, concu-
binário e culturalmente despreparado: e, no que dizia respeito aos leigos, bastavam as
intrincadas questões matrimoniais para absorver-lhes as energias restantes. Por outro
lado, se no início as cúrias episcopais tentaram ocupar-se seriamente das matérias de sua
competência, os poderes bem mais amplos dos tribunais da Inquisição acabaram por
fazer com que batessem em retirada. Para minar as forças das instituições de governo
eclesiástico local contribuía também o poder político, que achava mais conveniente tratar
diretamente com Roma tanto as questões beneficiárias quanto o controle da ortodoxia:
o bispo, escolhido geralmente no interior do sistema local de poder, tinha demasiada-
mente poucas oportunidades, meios e ideias de interferência nesse campo, onde lhe
era reconhecido quando muito o dever de fazer "sermões devotíssimos e exortações
.
ef1cazes " 16 . F01· Justamente
· um b 1spo
· que antepôs a um trata d o - d estina d o a i1ustrar a
"dignidade e ofício dos bispos" - a declaração, fruto de toda sua experiência, de "que as
ordens eclesiásticas afastadas de alguma maneira de Vossa Beatitude (o papa) não podem
vigorar". E ao lado do papa, a Companhia de Jesus , terminando então de completar seu
primeiro, triunfal centenário, propiciava o suporte indispensável à atuação do bispo: o
qual continuava a falar em "reforma", aliás, de várias e múltiplas reformas - das almas,
de si mesmo, da família, do clero, dos leigos, dos "Grandes" - mas admitia desanimado
que, "por mais que os bispos façam e se esfalfem, por mais que os púlpitos ilustrem
e declarem", escassa era a eficácia no tocante aos costumes das pessoas 17• Já se estava
muito distante dos projetos de reforma embasados na autoridade do bispo.

Alguns casos concretos poderão mostrar como se dera a competição entre inqui-
sidores e bispos. Vejamos alguns, sem pretender exaurir uma casuística que foi bastante
vasta, coincidindo praticamente com os próprios limites da vida social. A reforma pro-
movida pelos membros mais ativos do episcopado tridentino teve como alvo não só as
convicções individuais, mas também e principalmente os comportamentos da praça e
da venda, as práticas da festa e do mercado. Nisso, sua ação inseriu-se em uma corren-
te mais vasta, que abarcou os reformadores ativos nas várias confissões cristãs. Quem

Benzoni e M. Pegrari, Brescia, 1989, pp. 209-223; em part. p. 217). Para uma análise exemplar da administração
da justiça nas cúrias episcopais do século XV, cf. R. Bizzocchi, Chiesa e Potere nella Toscana del Quattrocento,
Bologna, 1987, pp. 245 e ss. Para época muito mais remota, cf. Wilfried Hartmann, "Der Bischof als Richter" ,
Romische Historische Mitteilungen, XXVIII, 1986, pp. 103-124. Recentemente, foi analisada por Danilo Zardin "La
Struttura della Cu ria Arcivescovile al Tempo di Cario Borromeo", Studia Borromaica, VIII (1994), pp. 123-152.
Uma análise eficaz do entrincheiramento pós-tridentino dos tribunais eclesiásticos em defesa da "honra" do
clero foi proposta por Michele Mancino, "Giustizia Penale Ecclesiastica e Controriforma. Uno Sguardo sul
Tribunale Criminale Arcivescovile di Napoli" , em Campania Sacra, 23, 1992, pp. 201-228.
16• Assim
· escrevia . o pod es t ade de Brescia em 1569 ' elogiando a obra do bispo Domenico Bollani (cf. D. Montanari '
Discip!inamento in Terra Veneta, Bologna, 1987, PP· 56 e ss.).
17· o·10. Batt1sta
. R·mucc1m, . . arce bi'spo e príncipe de Ferroo, Della Dignità et Offitio dei Vescovi , Roma, por P. Manelfi '
1651 : d a d ed 1catona a Inocen
. . . • ci·o X (Ferroo 23 nov. 1650) e do preâmbulo "aos leitores". A obra é precedida
, •
por uma aprovação entus1ast1ca.. . d e Pietro Sforza Pallavicino.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


354

tentou uma relação das matérias que entraram na ótica dos reformadores juntou listas
d~ seguinte gênero: "atores, bailes, fantoches , baralhos, charivari, charlatões, brigas de
caes contra ursos , corridas, dados , danças , adivinhações, feiras , livros populares, magia
1
máscaras, menestréis, predição do futuro , contos populares, bruxaria e tabernas"1s
Ora, justamente o campo da festa e do espetáculo esteve no centro de uma disputa d~
métodos e de uma prova de força entre bispos e inquisidores.

1. O TEATRO
Na época pós-tridentina acenderam-se ásperas polêmicas sobre a moralidade do tea-
tro e sobre os perigos contidos nos espetáculos teatrais . Uma arte que tinha fortes
raízes na "representação sacra" e que era profundamente ligada à vida social não
podia escapar aos rigores da iminente "reforma" . Os homens de teatro protestaram
justamente contra o moralismo daqueles que , não podendo mudar a realidade,
investiam contra suas representações : "O que chamamos documento, outros cha-
mam mau exemplo" , devia dizer de modo lapidar o comediante Nicolo Barbieri em
1629; e acrescentava: "A autoridade encobre os defeitos , ou lhes muda o nome" 19.
O próprio fato de que os comediantes pudessem dizer tais coisas mostra que no
tempo de Barbieri o vento tinha mudado . Mas em seu início a nova severidade
eclesiástica tinha sido um fenômeno nada superficial. Antes de tomar como alvo as
representações teatrais , atacara também os ritos sagrados no intuito de depurá-los
e eliminar deles qualquer elemento teatral que pudessem ter.
A luta contra a teatralidade sacra comportou, por exemplo, uma profunda
modificação das procissões, enrijecidas em uma exibição de papéis e dignidades do-
minantemente eclesiástica. A cronologia da supressão de festas como a do episcopello 20
acompanha o estabelecimento dos novos modelos tridentinos; e essa que foi saudada
apologeticamente como "a salutar influência do Concílio de Trento" 21 modificou cer-
tamente em profundidade a relação entre ritualismo eclesiástico e tradições folclóricas.
É verdade que, no âmbito das missões, recorreu-se abundantemente ao teatro para
os enormes empreendimentos de aculturação que se abriam dentro e fora do mundo
cristão, dentro e fora da Europa. Os relatórios dos religiosos enviados às Índias ocidentais
e orientais - mas sobretudo nas ocidentais, entre as populações americanas - meneio-

18. Peter Burke, Popular Culture in Early Modem Europe, London, 1978, trad. it. Cultura Popolare nell'Europa Moderna,
Milano, 1980, p. 204.
19. A citação foi tirada do prólogo do lnavertito (cf. Ferruccio Marotti e Giovanna Romei, La Commedia dell'Arte
e la Società Barocca. La Professione dei Teatro, Roma, 1994, pp. 568-569).
20. Trata-se de uma antiga festa medieval, de caráter profano e licencioso, que se realizava em datas religiosas. O
bobo da aldeia (ou o menino mais ingênuo) era paramentado como um padre ridículo (o episcopello) e levado
em procissão até o lugar onde seria realizada uma missa blasfema. O episcopellc rezava as partes da missa,
parodiando o texto verdadeiro. Na consagração da hóstia, o episcopellc era obrigado a comer excrementos e a
beber urina, em meio às risadas dos presentes (N. do T.).
21. M. C. Jacobelli, ll "Risus Paschalis" e il Fondamento Teolcgico dei Piacere, Brescia, 1990, p. 35.

A Confissão
355

nam O uso ba st ante frequente de representações teatrais de temas sagrados, às quais era
confiada a tarefa de colonizar o imaginário dos mundos n ão cristãos 22 • Voltaremos a
essa contradição latente decorrente da diferença de objetivos e de meios entre métodos
inquisitoriais e missões . Mas, entretanto, deve-se notar que o teatro missionário era um
gênero didático, solene e severo - pelo que se pode inferir a partir das descrições dos
missionários - que tinha bem pouco em comum com a teatralidade efervescente das
representações sacras. Nessas últimas, a invenção dramática, os elementos cômicos, a
inversão de papéis, a irrupção da vida cotidiana em todos os seus aspectos desencadea-
vam motivos de escândalo e de perplexidade nos novos titulares do poder eclesiástico,
bem decididos que estavam a depurar e castigar os costumes.
O governo da festa implicava o governo de toda a vida social: não à toa, os con-
selheiros de Borromeo encaminhavam-lhe memoriais "para a vida honesta de Milão"
que miravam a propostas de novas regulamentações dos tempos e espaços públicos:
estalagens e prostíbulos, procissões e modo de comportar-se na igreja 23 • Os éditos
mencionavam regras de "vida política e cristã" , ou seja, da disciplina das manifestações
sociais, assunto sobre o qual as ideias dos bispos reformadores deviam levar em conta
os poderes estatais e as exigências das classes dominantes. Nos momentos mais ásperos
do confronto, tem-se quase a impressão de assistir a uma renovada tentativa de realizar
na terra uma sociedade cristã ideal - uma sociedade imobilizada por uma série fechada
de regras, certamente bastante distante das conturbações do início do século XVI, mas
sempre filha dos mesmos impulsos religiosos. Projetava-se um modelo de convivência
caracterizado por uma nítida divisão entre sagrado e profano, com uma hierarquia moral
dominada pelas cores da penitência e pelos valores do decoro e da severidade. Por isso,
o espetáculo - junto com o baile, o jogo, as diversões caracterizadas pela devassidão
e pela licenciosidade sexual - era visto como uma prática social perigosa, passível de
regulamentação. Sobre o teatro incidia uma antiga proibição: como mostra o tratado
de Onofrio Panvinio sobre os ludi e sobre as representações teatrais da Roma antiga,
redigido por volta de 1564 embora publicado mais tarde, iniciava-se então, na cultura
eclesiástica e romana, uma vigorosa retomada de uma antiga ideia da ligação entre teatro
e paganismo (que tinha sido expressa por Isidoro de Sevilha a partir da aproximação
entre "circense" e a feiticeira Circe) 24 • Carlo Borromeo manifestou-se obstinadamente

22. Richard Trexler, "We Think, They Act. Clerical Readings on Missionary Theatre in 16th Century Mexico", em
Understanding Popular Culture: Europe from the Middle Ages to the Nineteenth Century, org. de S. Kaplan, Berlin,
1984, pp. 189-227, reeditado em Trexler, Church and Community 1200-1600. Studies in the History of Florence and
New Spain, Roma, 1987, pp. 577-613.
23. Um memorial anônimo com esse título, atribuído a Niccolà Ormaneto, é citado por Angelo Turchini, "11 Go-
verno della Festa nella Milano Spagnola di Cario Borromeo", em La Scena della Gloria. Drammaturgia e Spettacolo
a Milano in Età Spagnola, org. de Annamaria Cascetta e Roberta Carpani, Milano, 1995, pp. 509-544; em part.
p. 520.
24. Sobre as vicissitudes do texto de Panvinio, cf. o recente ensaio de Silvia Tomasi Yelli, "Gli Antiguari intorno
ai Circo Romano. Riscoperta di una Tipologia Monumentale Antica", Anna!i della Scuola Norma/e Superiore di
Pisa, Letras e Filosofia, s. m, XX, 1990, pp. 61-168; em part. PP· 139-140.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


356

contra a ameaça de sobrevivências pagãs ocultas nas festas e no teatro. Mais geralmente ,
a hostilidade em relação ao teatro era muito mais forte quanto mais contagiosa e peri-
gosa parecia a representação em relação à realidade. De resto , a hostilidade em relação
às representações, ou pelo menos a tendência a limitar seu âmbito e a submetê-las a
funções educativas, caracteriza amplamente as orientações do episcopado reformador
italiano da época, como se vê , em particular, nas discussões sobre a pintura ou naquelas
sobre as características e os objetivos da oratória sacra.
Quanto ao teatro , tratava-se de submetê-lo no sentido de fazer dele um instru-
mento de comunicação e de propaganda dos valores aprovados , purificando-o de todos
os germes de valores e modos de viver e de pensar considerados licenciosos, errados ou
indecentes: daí a proibição de misturar sagrado e profano, alto e baixo. Como decor-
rência, discussões , protestos, memoriais de reformas; mas também um florescimento
de propostas positivas 25 • Com o teatro mirava-se um momento essencial da festa: ora,
justamente o tempo festivo e sua relação com o tempo ordinário tornaram-se o centro
de modelos e propostas que tinham como alvo a orientação da vida do cristão em seu
conjunto. Tratava-se de substituir uma concepção do tempo de tipo cíclico, ligado aos
ritmos da natureza, por um sentido linear e severo do uso do tempo , em relação a uma
ideia da vida como peregrinação e aperfeiçoamento moral progressivo. Juntamente com
o teatro em sentido estrito, foram objeto de cuidadosa regulamentação - não só no
mundo católico - toda uma série de comportamentos coletivos mais ou menos ligados
à festa : o baile, em particular, objeto de repetidos ataques e de uma polêmica jamais
interrompida por parte dos eclesiásticos 26 , mas também a celebração da abundância de
alimentos em um mundo de penúria, os rituais festivos do cortejo, os ritos de passa-
gem. Todas essas coisas eram então vistas com desconfiança pelos reformadores como
oportunidades de devassidão e de licenciosidade sexual. No mundo católico italiano,
a época dominada pelo Concílio de Trento é a época em que os sinais do conflito de
valores parecem mais evidentes. Mas a história do conflito entre a nova Quaresma e
os antigos carnavais ainda não está plenamente esclarecida, não obstante os muitos
estudos que imergiram a antiga imagem de Francesco De Sanctis nas fontes da época.
Como em todas as batalhas, o desenho das estratégias gerais que podem ser feitas
de cima e de longe poderia parecer claro: de um lado, o "mundo popular" , os "com-
portamentos coletivos" 27 , de outro uma cultura oficial dominada por tons sombrios
e severos de um cristianismo reformado, o de João Calvino ou de Carlo Borromeo.

2.5. A história do teatro popular na Itália, desde a época de Alessandro d'Ancona encontra-se no centro dos estudos
historicos. Além da obra de Paolo Toschi, Le Origini de! Teatro Italiano, Torino, 1955 (em part. pp. 85 e ss.),
para a commedia dell'arte remete-se aos estudos de Fernando Taviani, em particular La Commedia dell'Arte e la
Società Barocca. La Fascinazione de! Teatro, Roma, 1969.
26. Cf. Alessandro Arcangeli, "L'Opuscolo controla Danza Attribuito a Cario Borromeo", Quadrit1ium, n. s., 1,
1990, pp. 35-76. Mas cf. principalmente, do próprio Arcangeli, a vasta pesquisa reunida na tese de doutorado,
ainda inédita, La Polemica sulla Danza, Secc. XN-XVII, Università di Pisa, 1993.
27. Cf. La mort des pays de Cocagne. Comportements collectifs de la Renaissance à l'âge classique, org. de Jean Delumeau,
Paris, 1976; e Burke, Cultura Popolare nell'Europa Moderna, op. cit.

A Confissão
357

Mas é uma clareza superficial: os contendores dividiram-se certamente nas táticas. E


no mundo católico italiano reinou por muito tempo a incerteza quanto a quem devia
dirigir a ofensiva, se os bispos - que podiam mostrar alguma prioridade na energia da
denúncia - ou os inquisidores.
Por outro lado, não havia uma linha de frente compacta adversária. Para permane-
cer no mundo teatral, a nova exigência de seriedade e gravidade que a sociedade europeia
refletia em sua religião não deixou de se fazer sentir no interior das companhias dos
comediantes: conforme assinalou Benedetto Croce a propósito de uma companhia de
atores napolitanos, o contrato constitutivo (de 157 5) fixava por escrito o empenho formal
no sentido de "ostentar espíritos devotos e morais e escrupulosa observância das práticas
sagradas" 28 • E, no entanto, justamente em Nápoles, no ano seguinte, os estatutos sinodais
insistiram sobre a obrigação de submeter ao bispo os textos dos dramas sagrados antes
de representá-los , a fim de que as histórias que deviam provocar a devoção dos fiéis não
fossem usadas para fazer o público rir 29 • A luta contra o riso , o divertimento e a mistura
de sagrado e profano, fenômeno geral de uma época, encontrava no teatro, portanto,
um objetivo particularmente evidente: e o resultado era a obrigação de impor-lhe uma
autoridade eclesiástica - nesse caso, a ordinária da cúria arquiepiscopal. Desse ponto de
vista, a capital da ofensiva foi a Milão de Carlo Borromeo. Desde o concílio provincial
de 1565, o arcebispo tinha dado a entender sua vontade de pôr fim ao teatro popular
das representações sagradas e de impedir toda contaminação teatral de temas , espaços
e tempos sagrados. Retomando a polêmica de Tertuliano contra os spectacula pagãos,
Borromeo identificou sobrevivências de paganismo nos ingredientes fundamentais
da ação teatral: a mistura de sagrado e profano, de verdadeiro e falso ; a comicidade; a
imoralidade ou o caráter "escandaloso" das histórias narradas. Eram todos elementos
que minavam a "vida política e cristã", como defendeu então, em concordância com
o arcebispo, o governador de Milão no decreto emanado em 31 de maio de 1566, o
qual ordenava a "mestres e atores de comédias, herbolários, charlatães, bufões, zanni 3º,
cantores de rua" respeitarem determinados limites nas festas comandadas pela "santa
madre igreja". Além disso, eram proibidos de ocupar a metade da praça do Domo mais
próxima da própria catedral3 1• A batalha de Carlo Borromeo para eliminar da vida
social as remanescências (ou "superstições") pagãs continuou ainda mais decidida nos
anos seguintes: em 1568 uma companhia convidada pelo governador obteve a permis-
são do arcebispo com uma única condição, a de "que ele devia tomar conhecimento
dos trechos que pretendiam representar, e que o cenário seria examinado por alguém

28. Benedetto Croce, I Teatri di Napoli dal Rinascimento alla Fine del Secolo Decimottavo, Bari, 1916; cito da edição
org. Por G . Galasso, Milano, 1992, pp. 43-44. E cf. Taviani, La Commedia dell'Arte , op. cit.
29. "Quae fideles ad pietatem excitare debent, pro nostra corruptione, ut in his solet, ad cachinnum et contemptum
commoveant" (Constitutiones seu Decreta Provincialis Synodi Neapolitanae, Napoli, ex Officina Salviana, 1580,
p. 8; retomo a citação de Croce, I Teatri di Napoli, p. 40).
30. Tipo de servo astuto, grosseiro e bufão da Commedia dell'Arte (N. do T.).
31. O texto do anúncio é reportado por Gentile Pagani, "Dei Teatro in Milano avanti il 1598", extrato de Teatro
llustrato, Milano, 1884, pp. 31-32 do extrato.

Bispos e lnquisidores: Sobreposições e Conflitos


358

nomeado por ele. Que se alguma coisa nos referidos cenários houvesse de imodesto
ele mesmo, o santo, de próprio punho anotava" 32 • De fato , uma ordem do governador'
traz a informação de que Borromeo exercia a censura prévia através de Alessandro Sauli,
preposto de San Barnaba, assistido por um delegado do poder político: o objetivo era,
como declarava o texto do decreto, eliminar "as coisas que pervertem o bom viver e
corrompem os bons costumes" . A relação das normas em que tal exigência obteve uma
descrição analítica foi redigida por volta de 157 2-157 3 pelos titulares do setor de censura,
que se tornaram três: os comediantes deviam , em primeiro lugar, evitar "usar de modo
algum trajes pertinentes a sacerdotes ou a outras pessoas sagradas, nem paramentos de
igreja de espécie alguma, nem tampouco qualquer sorte de traje que tenha semelhança
com as supracitadas" ; nem se devia "falar de modo algum da sagrada escritura, e de
temas nela contidos" ; e não devia ser dita nenhuma palavra que pudesse dar ensejo a
"interpretação sinistra acerca das coisas da santa Fé católica ou que pudessem induzir
qualquer superstição a simples ouvintes, nem encantamentos nem outras feitiçarias".
Também não se devia tratar de amor de maneira lasciva ou pouco "honesta"; e, ao lado
das matérias, os lugares e os tempos: proibidos os dias festivos e as horas de missas, eram
explicitamente proibidas as representações "nos locais habitados por judeus", devido
à proibição geral de "conversação entre cristãos e judeus" 33 • Critérios extremamente
severos, portanto: o princípio a que obedeciam era o mesmo que inspirara a censura
imposta após o Concílio de Trento aos textos literários, sobretudo aos mais conhecidos
e divulgados. O Decamerão de Boccaccio, por exemplo, tinha sido expurgado de modo a
eliminar qualquer referência crítica a eclesiásticos: os padres no centro de acontecimentos
J amorosos tinham sido substituídos por mestres-escolas 34 • As preocupações de Borromeo
atingiram os tons mais ásperos logo após a terrível peste de 1576: em seu "memorial"
aos milaneses, o arcebispo apontou justamente a devoção aos espetáculos teatrais como
uma das causas da ira divina. Não se tratou apenas de pregações e de éditos: a comissão
criada para controlar os textos teatrais e para depurar preventivamente os espetáculos
do que tinham de licencioso e de indecente parece ter trabalhado intensamente a fim
de garantir seriedade, correção formal e respeito à doutrina ortodoxa.
A voz de Borromeo não permaneceu isolada: a hostilidade em relação ao mundo
imaginário que o teatro era capaz de criar e que se prestava a fantasias subversivas foi
então um sentimento disseminado para além das fronteiras do mundo católico. Para
ficar no âmbito da Igreja italiana, uma tentativa semelhante de chegar à proibição das
comédias foi feita em Bolonha por Gabriele Paleotti que, já em setembro de 1567, .
escreveu a Pio V, pedindo para "acabar com elas" 35 • Essas "loucuras" lhe pareciam pre-

32. De um testemunho de Niccoló Beltrame, mencionado em idem, pp. 32-33.


33. Idem, pp. 34-35.
34. O desaparecimento em massa dos padres e frades da literatura italiana (como personagens, não como autores)
é um amplo fenômeno ainda não estudado em seu conjunto: cf. por ora A. Sorrentino La Letteratura Italiana
e i~ Sant'Uffizio, Napoli, 1935. Reapareceriam somente no século XIX, como notou Gio~anni Pozzi (Alternatim,
M1lano, 1996, pp. 265-266).
35. Cf. Prodi, II Cardinale Gabriele Paleotti, op. cit., II, pp. 209-210.

A Confissão
359

judiciais à moral, representadas por pessoas de má vida, nos dias de festa que deviam
ser dedicados a Deus. E não era possível nem sequer submeter à censura preventiva o
texto das comédias, tendo em vista o hábito dos comediantes de recitar "de improvi-
so". A proibição foi obtida, mas resultou impossível de ser respeitada, não obstante ser
Bolonha - como notou Cario Borromeo, que acompanhava com atenção as tentativas
de Paleotti - uma cidade do "estado eclesiástico". A sociedade ignorava as reprovações ,
as exortações, os sermões. O teatro levava sua ameaça até aos povoados mais remotos.
Em 1574, em Aspra , um pequeno vilarejo da Sabina, foi representada no Carnaval uma
comédia que reunia todas as características do teatro combatido pelos reformadores:
era uma história de necromantes e de divindades pagãs, de eremitas e de ninfas. O
fato ocorreu a pouca distância de Roma; mas não foi o Santo Ofício a ocupar-se dele.
Houve intervenção do cardeal Giovanni Ricci, bispo da Sabina. Ricci, homem "mui
amável e prático das coisas mundanas", como o julgava um contemporâneo 36 , n ão era
certamente um reformador nem nutria simpatia pela Inquisição (como núncio papal
em Portugal, tivera de travar uma dura luta contra os métodos dos inquisidores por-
tugueses). Advertido por uma denúncia anônima do que tinha acontecido, ordenou
ao podestade de proceder à prisão. E o processo foi conduzido não pelo Santo Ofício,
mas pelo tribunal do Governador3 7• Portanto, também os tribunais laicos podiam se
ocupar de teatro. Sobretudo ocupavam-se dele os bispos, como momento normal de
seu governo da sociedade. Há outros exemplos. Um édito promulgado pelo arcebispo
de Florença Alessandro de' Médici em 21 de maio de 1581 proibiu a representação
de "comédias, tragédias, farsas , tragicomédias ou outros espetáculos tanto de temas
sagrados quanto profanos" nos oratórios das confrarias; fora dos espaços sagrados, o
édito permitia a representação de "farsas e representações espirituais e edificantes",
mas desde que antes fossem "vistas e aprovadas por S. S. Reverendíssima ou por seu
vigário-geral" 38 . O vigário em questão, cujo nome figurava no final do édito, era oca-
valeiro de Santo Stefano Sebastiano Médici: seu nome já é um indício da relação que se
criara em Florenca entre autoridades diocesanas e inquisicão. Autor de uma edicão dos
' ' '
estatutos sinodais florentinos de 1573, comentados à luz das normas canônicas, Médici
também publicou um importante tratado sobre as heresias, escrito com a pretensão
de oferecer um manual aos guardiães da ortodoxia 39 • Mas, apesar de sua indubitável
preparação, suas relações com o inquisidor no âmbito da censura não foram muito
fáceis . Justamente na época do édito, verificara-se o caso de uma "obra não relativa a

36. Paolo Tiepolo, embaixador veneziano, em relatório de 1569; cf. Hubert Jedin, "Kardinal Giovanni Ricci ( 1497-
-1574)", em Misce!lanea Pio Paschini, II, Roma, 1949, pp. 269-348 (agora em Idem, Kirche des Glaubens Kirche der
Geschichte, op. cit. , vol. 1, pp. 207-269).
37. O caso é narrado por Thomas V. e Elizabeth S. Cohen, Words and Deeds in Renaissance Rome. Triais before Papal
Magistrates, Toronto/Buffalo/London, 1993, PP· 243-277.
38. O édito foi reproduzido por M. Plaisance, "Littérature et censure à Florence à la fin du XVI• siecle: le retour
du censuré'', em Le pouvoir et la plume. lncitation, contrôle et répression dans l'ltalie du XVJE siecle, Paris, 1981 ,
pp. 233-252; em part. pp. 249-250.
39 · Sebas tº1anus Medºices, Summa Omnium Haeresum et Catalogus Schismaticorum, Firenze, officina Sermartelliana ' 1581 ·

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e C onflitos


360

heresias", aprovada por Médici, mas proibida pelo inquisidor: sinal evidente do desejo
da Inquisição de superar os limites da luta contra a heresia para intervir em matérias
de moral e costumes 40 •
A pouca distância de tempo e de lugar do édito florentino , tinha havido outro édito
dedicado ao teatro: mas dessa vez tratava,se de um ato emitido pela própria Inquisição.
Publicado em Pisa, em 20 de julho de 1579, era dedicado aos atores da commedia dell'arte
e proibia "todos os comediantes" de "representarem qualquer coisa, fosse escritura do
velho testamento ou do novo, fosse escritura sagrada ou santa, fosse assunto eclesiástico
ou religioso [... ] nem tampouco representar ou escrever peça sobre necromancia" 41 • O
édito concluía um caso processual. Tinha chegado a Pisa a companhia de um comediante
veneziano, Giovanni Scarpetta, que divulgara um manifesto impresso com o programa
de suas comédias. Os títulos eram ll Figliol Prodigo [O Filho Pródigo], La Commedia degli
Spiriti [A Comédia dos Espíritos], ll Negromante [O Necromante]. Isto foi o suficiente para
que Scarpetta fosse chamado à presença do inquisidor para justificar,se. O ator teve de
explicar que nessas comédias não se cometia "vilipêndio nem de exorcismos nem de coisas
da santa igreja" ; aliás , ciente dos riscos que corria em tempos desfavoráveis ao teatro,
Scarpetta tentou engabelar o inquisidor pisano com a história de uma autorização que
lhe teria sido concedida justamente por Carlo Borromeo 42 • Mas esse argumento também
se revelou uma defesa frágil diante da clara vontade do tribunal inquisitorial de ocupar,se
diretamente de questões desse tipo. Portanto, se à época o teatro suscitava as suspeitas e
a vontade de censura das autoridades eclesiásticas em geral, o édito pisano prova que a
Inquisição estava preparada para tornar seu esse terreno. Na substituição da autoridade
que se ocupava da questão, havia também um deslocamento dos critérios de interven,
ção: não se tratava mais de reformar a vida social, conferindo,lhe um estatuto severo e
abolindo o riso e a festa; a questão referia,se ao controle de uma vontade deliberada de
atacar a Sagrada Escritura e a autoridade da Igreja. Com esse deslocamento na ótica da
autoridade, dava,se a passagem de uma obra de conversão religiosa a uma intervenção
burocrática e policial, mais imediatamente eficaz quanto mais destinada a modificar os
comportamentos sem agir sobre as convicções profundas.

2. A BLASFÊMIA
A história da blasfêmia constitui um caso exemplar de terra de ninguém, onde poderes
eclesiásticos e laicos sentiram,se no dever de interferir. Como vimos, os não confessados
e não comungados eram frequentemente blasfemos habituais. A intervenção do bispo

40. Cf. Plaisance, "Littérature et censure à Florence", op. cit., p. 243.


41. O édito é reproduzido em MP, Sant'Uffizio, b. 2, cc. 626r e ss. ("processo de'comedianti"). Cf. sobre esse
processo as observações de C . Ginzburg, "Folklore, Magia, Religione", em Storia d'Italia, org. de R. Romano
e C. Vivanti, vol. 1, I Caratteri Originali, Torino, 1972, pp. 654-655.
42 . "Todas as nossas comédias são revistas por um deputado do cardeal Borromeo de Milão" (depoimento
de 19 de julho; a circunstância é negada pelo depoimento sucessivo de um ator florentino, Giacomo di
Aurelio Panzini).

A Confissão
361

para trazê-los de volta à comunhão tendia a atingir a blasfêmia com os instrumentos de


seu governo: a persuasão, a ameaça de excomunhão. Mas outras autoridades aventuraram-
-se no mesmo terreno , competindo com a autoridade episcopal.
Fenômeno de longa duração como poucos, a blasfêmia foi percebida como um
perigo e uma ameaça intolerável justamente na época do surgimento da Inquisição
romana. As denúncias foram contínuas, o tom com que se falou sobre o tema foi de
alarme: particularmente grave parece ter sido a preocupação na Inglaterra da metade
do século XVI em diante 43 • Na Genebra de Calvino a blasfêmia era duramente com-
'
batida. Em França, uma série de decretos reais sucederam-se rapidamente um depois
do outro, agravando continuamente as penas e graduando-as de acordo com as reinci-
dências: multas, prisão, pelourinho, incisão dos lábios, corte da língua 44 • Na Espanha,
as magistraturas criminais citadinas precederam e acompanharam a ação inquisitorial
em matéria de blasfêmias e falsos juramentos: o hábito de jurar pela cabeça (partes ho-
nestas) ou pelo cu de Deus ou de Nossa Senhora (partes pudendas) teve de enfrentar a
repressão penal45 • Mas a questão do disciplinamento da linguagem parece ter-se tornado
mais premente no século XVI 46 • Quanto aos italianos, a ousadia e a variedade de suas
blasfêmias deixavam pasmos os viajantes estrangeiros: um rapaz napolitano , detido e
processado em Toledo devido às terríveis blasfêmias que costumava proferir, desculpou-se
dizendo que pelas ruas de Nápoles era absolutamente normal ouvir coisas bem piores 47 •
O médico espanhol Michele Serveto (Miguel Servet) achava particularmente horrendas
as blasfêmias dos italianos 48 • A julgar pela frequência de observações do gênero durante
a idade moderna, pareceria que os italianos tivessem um traço genético especial desse
ponto de vista, que fossem por natureza "les plus grands blasphémateurs du monde" 49 •
A casuística das circunstâncias da blasfêmia tal como registrada em denúncias e
processos era extremamente variada. Blasfemava-se tanto nas horas de trabalho como
nos momentos de repouso. Blasfemava-se nas vendas, na rua, na estalagem. Blasfemava-se
na igreja. Em Pisa, em 1581, na igreja de San Francesco, os cônegos bateram com círios
no inquisidor e em seus confrades, gritando: "Puta de Deus, matemos esses frades" . O
jogo, principalmente o de cartas, era uma ocasião quase obrigatória para as blasfêmias.
Girolamo Gonzo, que foi denunciado ao inquisidor de Vicenza em 1640, proferia

43. Cf. Ashley Montagu, The Anatomy of Swearing, New York/London, 1967.
44. Cf. E. Belmas, "La montée des blasphêmes à l'âge moderne du Moyen Age au XVII' siêcle", em Menta!ités, II,
lnjures et blasphêmes, org. de Jean Delumeau, Paris, 1989, pp. 13-33.
45. Pablo Perez Garcia, La Comparsa de los Malhechores. Valencia 1479-1518, Valência, 1990, pp. 96-100.
46. Cf. Ricardo Garcia Carcel, He-rejía y Sociedad en el Sigla XVI. La lnquisición en Valencia, 1530-1609, Barcelona,
1980, e Jean-Pierre Dedieu, "El Modelo Religioso; las Disciplinas dei Lenguaje Y de la Acción", em lnquisición
Espatiola: Poder Político y Control Social, Barcelona, 1981, PP· 208-230.
47. O caso é citado por Maureen Flynn, "Blasphemy and the Play of Anger in Sixteenth-century Spain", Past and
Present, n. 149, nov. 1995, pp. 29-56; em part. P· 32.
48. "Iuramentis et blasphemiis in Deum horrendis passim utuntur" (De Italia, em Claudii Ptolomaei Geographicae
Enarrationis Libri Octo, ed. M. Villanovanus, Lugduni, C. Trechsel, 1535).
49. Boneventure d'Argonne, citado por P. Prodi (cf. mais adiante, nota 58), p. 362.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Co nflitos


362

centenas de blasfêmias "porque tem esse costume toda vez que joga"; "blasfema toda
vez que perde, e - acrescentava o acusador, Filippo Bagnara - perde quase sempre". A
essa altura o acusador considerou conveniente declarar que ele não jogava baralho de
bom grado por não querer "ter predisposição de ouvir blasfemarem" 50 .
Se nos afastamos do terreno da prática efetiva da blasfêmia para o da percepção
que dela tiveram as autoridades e o das intervenções normativas e punitivas, encontramos
um panorama muito sobrecarregado e confuso. Nos estados italianos tinha se iniciado
muito cedo uma caça à blasfêmia que empenhara poderes eclesiásticos e tribunais laicos.
Os estatutos comunais acolheram solicitamente as disposições papais que previam penas
específicas, bem diferenciadas (uma coisa era blasfemar contra Deus e Nossa Senhora,
outra contra os santos). E as penas podiam ser muito duras (até o corte da língua)5 1•
Os éditos que ameaçavam os blasfemadores com o pelourinho e as histórias de pessoas
punidas com a língua "pregada" pontuam as crônicas das cidades italianas. A repetência
delas e o agravamento contínuo das penas deixam entrever a dificuldade de resolver o
problema por essa via. Ausentes as autoridades eclesiásticas ordinárias, muito pouco
eficazes as civis, o recurso à Inquisição impôs-se como um resultado natural. De sua
parte, a Inquisição acampara desde o início no terreno da blasfêmia com ambições
hegemônicas. Mas durante muito tempo, mais se tratara de espelhar na heresia algo
da odiosidade da blasfêmia do que incluir a blasfêmia num âmbito da heresia. Em
suma, a heresia era apontada como caso específico de blasfêmia, para sustentar sua
punibilidade: como escrevera são Tomás, toda heresia tem como ingrediente a blasfê-
mia, dado que tira de Deus algo que lhe pertence 52 • Diferente e oposto é o movimento
com que, a partir do final do século XIV em diante, o tribunal da Inquisição recorta no
continente da blasfêmia uma região chamada "blasfêmia herética" e a partir daí avança
pretensões de domínio exclusivo de toda a área. A justificação teórica foi encontrada,
detectando uma categoria de blasfêmias heréticas diferente da categoria da blasfêmia
pura e simples. Não era uma invenção parida pelo desejo de poder dos juízes: a blasfêmia
fazia parte do discurso sobre Deus ou dirigido a Deus - uma parte negativa, irregular,
subalterna. Na blasfêmia, podiam se refugiar os herdeiros derrotados das religiões ou

50. Da denúncia de Filippo Bagnara, reportada por Laura Megna, "Vita Religiosa e Pietà di Popolo in una Co-
munità Rurale Vicentina d'Ancien Régime: Lisiera e Centri Limitrofi nell'Età Moderna", em Lisiera. lmmagini ,
Documenti per la Storia e Cultura di una Comunità Veneta, Vicenza, s.a., pp. 167-211; em part. p. 171. O processo
relativo ao episódio pisano de 1581 encontra-se em AAP, Sant'Uffizio, b. 2, cc. n. n.
51. Os estatutos de Bolonha de 1250, incorporando a norma emanada por Gregorio IX (e. 2, de maled. V, 26: cf. F.
Friedberg, Corpus luris Canonici, II, Leipzig, 1879, col. 826-827) atingiram os blasfemos com a pena da fustigação
pública (cf. L. Frati, Statuti di Bologna dall'Anno 1245 all'Anno 1267, Bologna, 1869, I, p. 301); successivamente
(1288 e 1389) previram penas mais graves, até a amputação da língua para os reincidentes (cf. Raniero Orioli,
"E Nol Porave Fare Dio... Documenti dell'lnquisizione Bolognese", em Atti della Accademia Navonale dei Lincei,
s. VIII, Rendiconti della Classe di Scienze Morali, Storiche e Filologiche, vol. XLIII, fase. 7-12, jul.-dez. 1988, pp. 173-233;
em part. pp. 187-188). Os Estatutos de Rimini também estabeleciam uma pena de 25 liras de Ravenna para quem
blasfemava contra Deus e Nossa Senhora, a metade para quem blasfemava contra os santos: quem não pagava a
multa era ameaçado com o corte da língua (cf. A Falcioni, Bellaria e la Signoria Malatestiana, Rimini, 1992, p. 55).
52. "Omnis haeresis blasphemiam includitur, cum aufert a Deo, quod sibi attribuitur" (Secunda Secundae, qu. 13, par. I).

A Confissão
363

das doutrinas teologicamente condenadas. Mas como identificá-los? O Directorium


lnquisitorum de Eymeric propôs no final do século XIV uma distincão sumária: de um
lado, as blasfêmias de quem insultava Deus ou Nossa Senhora, m;s sem negar artigos
de fé; de outro, quem afirmava coisas contrárias aos artigos de fé , por exemplo, negando
que Deus podia mandar tempo bom (tempus clarum) e portanto negando a onipotência
divina. Em termos teóricos , a distinção ainda era acatada pelos homens da Inquisição
dois séculos mais tarde , segundo o testemunho de Francisco Pena 53 •
A relação entre Deus e o bom e o mau tempo tinha uma estreita relação com a
matéria da blasfêmia. Afinal, era do céu que vinham tempestades e secas, elementos
fundamentais numa sociedade pré-industrial. E essa era frequentemente a origem das
blasfêmias. O clero, naturalmente, não podia pôr em dúvida que os eventos atmosféricos
fossem o efeito visível do poder divino. Tratava-se, porém, de convencer os camponeses
de que a providência divina mandava para o bem deles não só a abundância , mas tam-
bém "a carestia, as chuvas, a seca, os ventos, as tempestades , as inundações dos rios" 54 •
E isso não era fácil. Os camponeses eram descritos como sujos, supersticiosos, astutos
e desonestos não só nas tradicionais sátiras dos habitantes do campo, mas finalmente
também na literatura eclesiástica tridentina e reformadora, que determinava levar em
conta seus sentimentos de inveja e de rancor dirigidos a padres e frades e "igualmente
aos magistrados temporais" e tentava "aquietar os lamentos dos pobres" 55 • Mas não
era empresa fácil. Os camponeses "nutrem inveja pelos da cidade, por acharem que
vivem melhor; e por isso falam mal deles e querem humilhá-los" 56 • Eram essas as raízes
camponesas da blasfêmia de protesto dirigida contra os céus e contra os poderosos
da terra. Como disse um canto popular vêneto , "o Altíssimo de cima I manda de lá
a tempestade I o altíssimo de baixo I devora o que sobra I e entre os dois altíssimos
57
1 vivemos na miséria" • O medo em relação às classes subalternas levou à repressão

sistemática e ameaçadora de um tipo específico de blasfêmia, a que destilava a ira dos


desprovidos. A percepção teológico-jurídica da natureza da blasfêmia tinha mudado
com o surgimento do mundo citadino. Os poderes laicos perceberam nela uma peri-
culosidade oculta: de crime social, inserido numa dimensão horizontal, a blasfêmia
parece tornar-se - ou ser percebida, o que dá na mesma - um delito contra a dimensão
vertical do poder, o Deus que está no alto e as demais autoridades que o representam.

53. "Haec distinctio vera est, et communiter a nostris nunc recepta" (N. Eymericus, Directorium Inquisitorum
[ ... ] cum Commentariis, Francisci Pegnae, Romae, 1587, p. 334). Cf. também, a propósito da jurisprudência
inquisitorial, Quellen zur bomischen Inquisition im 14. Jahrh., org. de Alexander Patschovsky (MGH, Quellen zur
Geistegeschichte, II), Weimar, 1979, p. 272. Idem, p. 268, é o recurso ao decreto pontifício de maledicis que
confia ao bispo o julgamento da blasfêmia.
54. Gabriele Paleotti, "lnstruttione per tutti quelli, che Havranno Licenza de Predicare nelle Ville, et Altri luoghi
delta Diocese di Bologna 1578", em Episcopale Bononiensis Civitatis et diocesis, Bologna, por Alessandro Benacci,
1580, cc. 32v40v; em part. c. 36v.
55. Idem, c. 36r.
56. Idem, ibidem.
57. L. Mercuri e C. Tuzzi, Canti Policiei Italiani 1793-1945, Roma, 1962, I, p. 201.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


164

No mundo citadino medieval prevaleceu a dimensão horizontal: as confrarias colocaram


em seus estatutos obrigações especiais de intervenção contra os confrades culpados de
blasfêmia. E nessa época, a blasfêmia foi considerada nas "sumas" penitenciais perti-
nente à categoria dos pecados de língua, relativos ao oitavo mandamento. No século
XVI , entretanto, foi considerada no âmbito do segundo mandamento, quase - conforme
observou P. Prodi - "representasse um movimento inverso, de execração do nome de
Deus por colocar em discussão a relação de convivência entre os homens baseada na
autoridade e no poder" 58 •
Somente uma pesquisa analítica sobre as formas da blasfêmia e da repressão
devota poderá nos dizer de fato o que estava em jogo entre os homens: mas podemos
assumir com certa tranquilidade a hipótese de que as mensagens lançadas contra o céu
referiam-se às coisas que não iam bem na terra. De resto , se os acontecimentos adversos
da vida engrossavam a corrente das blasfêmias, a repressão da blasfêmia por parte das
autoridades políticas e religiosas tornava-se mais dura por ocasião de revezes políticos e
militares (interpretados normalmente como um sinal da ira divina). Portanto, os blasfe-
mos e seus perseguidores eram unidos numa sólida fé quanto à existência e ao poder de
Deus 59 • Naturalmente, os inquisidores eram estimulados em seu trabalho nesse campo
pela dúvida de que a blasfêmia, por vias tortas, trouxesse à tona convicções heréticas
que, em caso contrário, permaneciam dissimuladas. E a hipótese também foi avançada
pelos historiadores. Diante do aumento dos casos de blasfêmia nos documentos da
Inquisição romana depois de 1580, em confronto com uma diminuição paralela que
quase beira o desaparecimento dos procedimentos por heresia, avançou-se a hipótese
de que, por parte dos inquiridos, "exaurido o interesse religioso, apela-se para essa
forma elementar e primitiva de protesto" e que por parte dos inquisidores a tendência
é "incluir na categoria do crime de blasfêmia e ateísmo também muitas manifestações
heréticas" 60 • Seja dito, no entanto, que com a extensão do campo inquisitorial ao crime
de blasfêmia parece ter mudado profundamente a identidade social dos acusados: as
classes cultas do mundo urbano submetidas pela luta contra a heresia foram sucedidas
por ambientes de outro tipo: camponeses em primeiro lugar. Eram os camponeses que,
por admissão geral, recorriam continuamente à blasfêmia: diante da menor dificulda-
de - escreveu frei Luís de Granada em seu célebre Guía de Pecadores - os camponeses
encolerizavam-se à força de blasfêmias com suas bestas de carga 61 •
Fica-se tentado a instituir nexos causais com fenômenos históricos de outro gê-
nero, como o da maior exploração do trabalho camponês naqueles anos. A literatura
eclesiástica registrou de modo variado os ecos de um processo social de amplas dimen-
sões, o da retomada aos valores nobiliários e feudais e o do aumento do peso das cidades

58. Cf. P. Prodi, II Sacramento de! Potere. Il Giuramento Politico nella Storia Costituzionale dell'Occidente, Bologna, 1992,
p. 384.
59. Nesse sentido orienta-se também a interpretação de Flynn, Blasphemy and the Play of Anger, op. cit.
60. Cf. D. Cantimori, "Au cour religieux du XVI• siecle", em Anna!es ESC, maio-jun. 1960, pp. 556-568 (ora em
Cantimori, Eretici ltaliani dei Cinquecento e altri Scritti, Torino, 1992, pp. 559-560).
61. Luis de Granada, Guía de Pecadores, org. de Matias Martínez Burgos, Madrid, 1942, p. 122.

A Confissão
365

em relação aos campos. A igreja que vinha estendendo sua presença nos campos teve
que enfrentar O problema do comportamento a ser assumido diante do ordenamento
social existente. Era preciso encontrar os argumentos para responder àqueles camponeses
pobres que , segundo Gabriele Paleotti, queixavam-se de serem tratados por Deus como
"filhos ilegítimos" , obrigados que eram "à labuta e ao suor, onde muitos outros neste
mundo têm comodidade e repouso em abundância" . Moralistas e canonistas tiveram
de enfrentar a questão - da qual certamente se falava na confissão - se era lícito ao
camponês ressarcir-se ocultamente pela exagerada exploração de que era vítima 62 • Porém,
muito mais grave para o mundo eclesiástico era outra acusação, que tocava no centro
de uma religião que se tornara um sistema de noções, uma cultura livresca: ser pobre e
trabalhar o dia inteiro - diziam os camponeses - significava ser "desprovido de letras,
de ciências e de condições de dedicar-se aos exercícios sagrados" , de modo a "parecer-
-lhe vedada a via de acesso ao Paraíso" 63 • Quase dois séculos mais tarde , outro bispo ,
o nobre florentino Francesco Maria Ginori, achou por bem republicar as observações
e os conselhos de Paleotti para replicar a discursos desse tipo, que continuavam a ser
difundidos entre "as gentes ignorantes do campo" 64 . As respostas foram encontradas na
oferta dos prêmios do além para quem suportava com paciência as aflições. Mas fez-se
também largo uso das proteções que a Igreja podia oferecer contra granizos e tempes-
tades: "benzer a casa, conservar o ramo santo, a vela benta para certos casos, benzer
o pão, os frutos dos campos, e outras cousas ... "65 • Mas, como o surdo rumor de um
trovão , o protesto das classes populares acompanhava ao fundo os sermões de um clero
que frequentemente não se distinguia da classe dos patrões e quase sempre justificava
a violência e a exploração que praticavam. É um protesto que toma a forma de uma
rebelião a um Deus injusto. "Cristo virará um diabo de tantas chuvas que manda" , disse
Daniele Buiato, um camponês de Casarsa, no verão de 1596: a mulher doente, um boi
doente e as chuvas insistentes que lhe arruinavam a colheita tinham-no convencido de
que Deus tinha deixado o diabo agir livremente, ou melhor, que ele próprio tinha se
tornado um diabo 66 • E a blasfêmia foi frequentemente um protesto contra a injustiça de
um sistema que se apoiava em Deus e em seu clero. Esse Deus que mandava o granizo
sobre as lavouras era injusto, porque depois só os camponeses pagavam com a fome

62. A questão é proposta de modo exemplar na obra de Bernardino Carroli da Romagua: "Se o patrão me obriga
a fazer algo além do trabalho ordinário, ou seja, se no trabalho eu sou sobrecarregado além do que é justo e
honesto, por que não devo, ou não posso reparar às escondidas o dano sofrido, com os bens do patrão, não
podendo ser pago com justiça (por via de razão), considerando que não quero nem posso brigar com o patrão,
para não ser expulso da propriedade?" (Instrutione dei Giovane ben Creato, Ravenna, junto a Girolamo Corelli e
Girolamo Venturi, 1581, p. 199. Cf. sobre Carroli o estudo de Elide Casali, II Villano Dirozzato. Cultura, Società
e Potere nelle Campagne Romagnole della Controriforma, Firenze, 1982).
63. Episcopale Bononiensis Civitatis, c. 36r.
64. Lettera Pastorale e Altri Avvisi Utilissimi per amministrare con friato la parola di Dio alle genti rozze di campagna
nuovamente da tt• m
• luce per uso de' parochi e predicatori della diocesi di Fiesole, Moucke, Firenze, 1770, p. 72.
65. Episcopale Bononiensis Civitatis, c. 39v.
66. Cf. Andrea Del Col, "Streghe e Bestemmiatori nei Processi dell'lnquisizione", em Ciasarsa. San Zuan, Vilasii,
"versuta, org. d e G . Ellero, u· d m
. e, 1995 , pp · 191-206; em part. pp. 192-193.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


366

a má colheita. E por isso, como disse um camponês de Castelfranco, "Deus fazia os


camponeses blasfemarem intencionalmente" 67•
Essa heresia camponesa destaca-se no vasto continente da blasfêmia, sobre o qual
se abateram então os raios de autoridades laicas e eclesiásticas. A bula de Pio V contra
os blasfemos previu penas bem rigorosas: pesadas multas em dinheiro para leigos e
eclesiásticos e, para os de "ínfima condição" e desprovidos de meios, pesadas penas
corporais: deviam ser expostos na frente da igreja com as mãos amarradas durante um
dia inteiro e, se reincidentes , fustigados por toda a cidade e, finalmente , condenados
a terem a língua furada e mandados às galés . Coube aos bispos providenciar a execu-
ção dessas ordens 68 • Ao lado dos éditos episcopais e inquisitoriais contra a blasfêmia,
encontram-se éditos do poder civil que tratam do mesmo crime; se os éditos da Inqui-
sição dedicavam à matéria um espaço cada vez maior, o duque Cesare d 'Este ameaçava
perfurar a língua de quem blasfemava contra a Virgem e os santos. Mas o príncipe
dava continuidade a uma tradição de controle político da moralidade que pertencia à
história da religião citadina: seus éditos atingiam apenas os comportamentos públicos,
principalmente em área urbana. Já os procedimentos inquisitoriais revelavam-se capazes
de atingir também as áreas periféricas. Além disso , se eram menos sangrentos em suas
consequências imediatas, podiam no entanto provocar profun~as crises.
Matteo Giazzotto, um camponês de Spezzano, na região de Módena, foi proces-
sado por blasfêmias em 1598 69 • Fora denunciado pela mulher e entre as testemunhas
de acusação foi ouvida também a filha dele: sabe-se que a busca de testemunhos váli-
dos para descobrir os hereges não se detinha diante de nenhum laço humano: "Para

) provar o crime de heresia no Santo Ofício admitem-se filho contra pai e pai contra
filho , mulher contra marido, marido contra mulher, servo contra patrão, patrão contra
servo" 70 • Também não fica claro o que havia de herético nas blasfêmias desse camponês
modenense. Com certeza, Matteo Giazzotto era um mau cristão; tinha comido um
frango durante o jejum das quatro têmporas; era violento; quando ficava com raiva
dizia à mulher coisas do tipo: "seja maldito esse padre do cão que te confessa e mete a
hóstia em tua boca" (e devia ter seus motivos para implicar com quem, evidentemente,
minava seu domínio sobre a mulher e a família). Mas, se na confissão o padre sabia
o que fazia, o tribunal da Inquisição foi bem além, ouvindo os testemunhos de acu-
sação contra ele da mulher Lucrezia e da filha Camilla. A filha confirmou que o pai
era homem duro e violento: uma tarde batera nela até tirar-lhe sangue do nariz. Ora,
sobre tais testemunhos haveria muito a dizer: evidentemente, o alargar-se do campo
inquisitorial passava através de uma crise profunda do instituto da família. Os maridos
que, a exemplo do costureiro Franceschino de Trieste, surravam as mulheres quando

67. ACAF, Misc. S. Uffizio, b. 22, doe. 3; denúncia de 1695.


68. O sumário da bula foi reproduzido por Paleotti em seu Episcopale, cc. 206v-208v.
69. Retomo as citações do estudo de Marie-Jeanne Piozza-Donati, "Proces contre Matteo Giazzotto modénais
soupçonné d'hérésie à la findo XVIº siecle", Mélanges de l'école française de Rome. Moyen Age-temps modernes,
LXXXlX, 1977, pp. 945-982.
70. E. Masini, Sacro Arsenale, op. cit. , af. 147, p. 952.

A C onfissão
367

voltavam da confissão, faziam-no porque estavam cientes do uso que a Inquisição fazia
71
do confessionário • Mas parece mais importante sublinhar, todavia, a dinâmica através
da qual se chegara à denúncia e o modo como fora acolhida. Ora, o aparecimento de
um édito do Inquisidor que dedicava grande espaço à blasfêmia ( 1598) levou a mu-
lher do camponês modenense a dirigir-se ao vigário da Inquisição e a denunciar seu
marido como blasfemo. Até os camponeses sabiam que não se podia blasfemar contra
Deus, aliás sabiam que "comete um grande pecado quem blasfema contra ele" : assim
disse Favilla de Mezzana, camponês pisano, ao inquisidor daquela cidade em 1575.
Mas era difícil explicar que , ao dizer "Deus chifrudo" , como fizera Favilla, acabava-se
na Inquisição e a habitual confissão não bastava 72 • De qualquer modo, _o fato é que o
avanço da Inquisição no terreno da blasfêmia foi rápido e agressivo no final do século
XVI. Por isso, ocorreu também uma rápida mudança nos comportamentos. A mulher
de Matteo Giazzotto explicou ao vigário que seu marido sempre fora um blasfemo, mas
que só então ela decidira denunciá-lo: não falara antes porque o padre dizia do altar
que era preciso confessar os próprios pecados e não os alheios; porém, visto o édito,
compreendera que devia denunciar também os pecados do marido. Era uma mudança
significativa na tradição da confissão individual dos pecados; e era um conflito evidente
entre as advertências do pároco e o édito da Inquisição.
Lucrezia tinha se apresentado diante de frei Leandro de Capugnano, que fazia os
sermões da quaresma em Spezzano. Durante a quaresma fora também publicado o édito
da Inquisição e frei Leandro divulgara-o durante os sermões. Era essa sua obrigação, de
acordo com o édito de Reggio de 20 de outubro de 1598:

Todos os reverendos reitores e párocos das igrejas paroquiais e os superiores de mosteiros


[...] devem ter uma cópia de nossos éditos [... ] e futuramente , todos os anos, em um domingo da
Quaresma, devem ler ou mandar ler [...] quando estiver reunido o maior número de pessoas [... ] e
conservarão uma sua cópia na Sacristia e outra será pregada na porta principal de suas igrejas, de
modo que não possa ser despregada, e sob pena arbitrária não seja removida por ninguém[ ... ] Aos
Reverendos pregadores deve ser dada uma cópia desses nossos éditos para que os divulguem em um
ou mais sermões 73 •

Lucrezia fora se confessar para a quaresma; e então passara a funcionar a outra


ordem contida no édito:

Aos Reverendos confessores, que tenham todos uma cópia desses éditos, e que sejam diligentes
ao interrogar os penitentes de acordo com o expediente que julgarem, e encontrando-os culpados

71. o caso, documentado na b. 48 do fundo veneziano do Santo Ofício, é mencionado por John Martin, "Out
of the Shadow: Heretical and Catholic Women in Renaissance Venice", ]oumal of Family History, primavera de
1985, pp. 21-33, em part. p. 25, que vê o episódio como prova da esfera de liberdade que a confissão representa
para as mulheres.
72. V. cap. VIII, nota 1.
73. Piozza-Donati, "Procês contre Matteo Giazzotto", op. cit., P· 932.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


368

de terem cometido algum desses delitos ou de não terem denunciado os delinquentes não deverão
absolvê-los se antes não prestarem contas ao Santo Ofício tão logo seja possível.

De fato , sabe-se pelo processo que o pároco, dom Girolamo, aconselhara a mu-
lher a denunciar o marido (e, coisa que ela não diz, negara-lhe a absolvição enquanto
não fizesse a denúncia) . O pregador frei Leandro acolheu a denúncia de Lucrezia para
poupá-la de uma viagem até Módena - motivação "econômica" que encobre uma trans-
formação do papel do pregador de penitência. De fato , desse modo o pregador torna-se
um inquisidor e a quaresma - época tradicional do perdão - torna-se a época da suspeita
e da acusação. Entretanto , resta o fato de que , no confronto entre as penas do tribunal
laico e a penitência imposta pelo eclesiástico, Matteo Giazzotto saíra ganhando.
Outro crime, que permite medir a longa duração do senso mediterrâneo da honra
e da vergonha e seu sobrepor-se com os progressos da alfabetização no século XVI , era 0
do insulto ou do "libelo famoso" 74 : é provável que houvesse alguma relação entre a defesa
da honra dos homens e a da honra de Deus. Mas é certo, contudo, que a questão da
blasfêmia foi uma questão bem diferente e constituiu um problema específico de grande
importância do ponto de vista dos tribunais. Em Veneza, nas três primeiras décadas do
século XVI , o Conselho dos Dez chegou a se manifestar oito vezes sobre a questão e em
Milão os repetidos decretos documentam a mesma vontade incessante de castigar os
crimes de blasfêmia 75 • Encontramos a definição de são Tomás repetida em termos apa-
rentemente tradicionais, mas na realidade novos, como é nova a pretensão de submeter
ao inquisidor os crimes de língua: "Diz-se blasfêmia herética aquela que dá a Deus algum
atributo que não lhe convém, ou tira-lhe algo que a ele pertence, como 'Deus traidor',
'na presença de Deus' etc." 76 • Ora, visto que as blasfêmias geralmente ofendiam atributos
divinos , não há como ignorar o vasto âmbito de atividades que se abria ao tribunal da
Inquisição. E o exemplo de blasfêmia citado dá uma ideia da arbitrariedade dos crité-

74. O ensaio de Peter Burke, "Insult and Blasphemy in Early Modem ltaly" (em Idem, The Historical Anthropology
of Early Modem ltaly. Essays on Perception and Communication, Cambridge, 1987, cap. VIII; trad. it. Scene di Vita
Quotidiana nell'ltalia Moderna, Bari 1988, pp. 118-138) trata predominantemente dos processos do Tribunal do
Governador de Roma. Das relações entre esse crime e os progressos da alfabetização, com o correspondente
aumento de um "sentimento de si" no mundo popular, trata Claudia Evangelisti ("Libelli Famosi: Processi
per Scritte lnfamanti nella Bologna del '500", Annali della Fondazione Einaudi , 26, 1992, pp. 181-239).
75. Sobre Veneza, é fundamental a bela pesquisa de Gaetano Cozzi, "Religione, Moralità e Giustizia a Venezia:
Vicende della Magistratura degli Esecutori controla Bestemmia", publicada como apostila de um curso uni-
versitário em Pádua (1968) e agora reeditada com uma nova introdução e uma atualização bibliográfica em
Ateneo Veneto, CLXXVIII, 1991, pp. 7-95. Cf. também R. Derosas, "Moralità e Giustizia a Venezia nel'S00-'600:
Gli Esecutori contro la Bestemmia", em Stato, Società e Giustizja nella Repubblica Veneta (Secc. XV-XVIII) , org.
de Gaetano Cozzi, Roma, 1980, pp. 433-528. Sobre o aumento dos decretos governamentais em Milão, cf. F.
Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano, op. cit. , p. 268 nota.
76. "Blasphemia haereticalis est qua vel aliquid Deo tribuitur quod illi non convenit, vel aliquid ah eo aufertur,
quod convenit, ut 'Dio traditore', 'Al dispetto di Dio' etc." (De casibus reserva tis Eminentiss. et Reverendiss. D. D.
lacobo tit. S. Mariae in Via SRE Presb · Card· Boncompagno, Bononiae,
. typ1s . lo. Antonii Sass1. 1mpress.
. arehiep ·• s.
a., p. 4).

A C unfissão
369

rios. Por outro lado, a necessidade de detalhar e de exemplificar decorria justamente do


caráter genérico da norma. Foi assim que os manuais inquisitoriais e a literatura para os
conselheiros das consciências tornaram-se repertórios de blasfêmias, com um movimento
semelhante à teologia moral em matéria sexual, obrigada a velar com o latim eclesiástico
sua transformação em uma espécie de kamasutra .
Naturalmente, o desafio ao poder encontrou justamente uma primeira forma
no insulto explícito, público e escandaloso, que o herege lançava contra a Igreja domi-
nante , ofendendo-a através de seus santos e de suas imagens. Por isso, até os penalistas
laicos - corno Jean Papon 77 , na França - começaram a introduzir entre as categorias da
blasfêmia a de "blasfemos por heresia" e a prever consequentemente as regras para a
divisão entre juízes laicos e juízes eclesiásticos. Quanto à Itália, a blasfêmia era um crime
de que desde muito se ocupavam os tribunais laicos quando , com as lutas religiosas do
século XVI , sua identidade complicou-se com elementos de heresia e de iconoclastia.
Foi com o próprio fundador do Santo Ofício, Gian Pietro Carafa, que a reação à
blasfêmia atingiu o ataque global à fé que se viu nesse tipo de imprecação. Enquanto Júlio lll
tinha se limitado a endurecer as penas para os blasfemos, Paulo IV, em dois decretos
sucessivos, promulgados nas congregações de 17 de outubro de 1555 e de 18 de abril
de 1556, estabeleceu que os blasfemos fossem processados pelos inquisidores em todo
o domínio eclesiástico (e determinou que fossem mantidos registros criados para esse
fim , aos cuidados de Michele Ghislieri e de Gian Battista Bizzoni) 78 • No entanto, a
imputação de blasfêmia apareceu muito raramente na fase mais árdua da luta contra
os hereges. A vontade de Carafa foi provavelmente frustrada , pelo menos em certa
medida, pelas resistências disseminadas: com base em seu decreto, de fato , até quem
ouvisse blasfemar e não denunciasse imediatamente o blasfemo à Inquisição incorria
na excomunhão reservada aos protetores de hereges. Pode-se imaginar com facilidade
quais fossem as consequências desse tipo de ordem. De fato , tamanho rigor acabaria
por se revelar insustentável, não fosse um decreto do Santo Ofício, baixado em 1585 ,
que interferiu no sentido de moderar esse caso específico: ficou estabelecido, então,
que incorreria na excomunhão somente quem, ouvindo blasfemar, desconfiasse de que
por trás dessa blasfêmia houvesse opiniões heréticas. Desse modo, cabia à consciência
do ouvinte decidir a respeito - o que significa que a Inquisição tinha abandonado
o ataque, ou que tinha conseguido implantar o sistema de controle no interior das
consciências individuais 79 • Significa sobretudo que a inclusão da blasfêmia no rol dos
crimes tratados pela Inquisição determinara um grande congestionamento de casos.
As medidas dos bispos destinadas à repressão da blasfêmia não conseguiram evitar
que a Inquisição assentasse acampamento nesse território, não obstante as inúmeras
ordens e éditos episcopais a respeito. Mas é justamente por meio de documentos como

77. Cf. O . Christin, "L'iconoclaste et le blasphémateur au début du XW siecle", em Mentalités , II, 1989, pp. 35-47.
78. Cf. Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit. , pp. 17 e 18. Sobre as formas de Júlio lll cf. o verbete Blasphemia, em Lucio
Ferraris, Prompta Bibliotheca Canonica, Jurídica, Moralis , Theologica ... , Venetiis, apud G . Storti, 1782, t. 2, p. 2.
79. Decreto de 3 abril de 1585 , publicado por Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit. , p. 40.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e C o nflitos


.370

esses que se tem a prova do emaranhado de normas que oneravam a matéria: as penas
espirituais anunciadas pelos bispos geralmente fazem referência, para ulterior ameaça,
não só às normas eclesiásticas, aos decretos dos concílios, às bulas papais, mas também a
"outras penas impostas pelos decretos e leis imperiais, ducais, ou demais potestades civis"ªº.
Nessa situação registrou-se o avanço da Inquisição. Pena, comentando o manual
de Eymeric, subverteu-lhe a distinção entre blasfêmias heréticas e não heréticas: todo
blasfemo, através de seu comportamento, tornava legítima a suspeita de heresia. Esse
argumento revelava as ambições hegemônicas do Santo Ofício em direção do ilimita-
do território da blasfêmia. Foi uma verdadeira mudança da natureza desse tribunal. E
deve ter se tratado de um fenômeno geral, a julgar pelas repetidas tentativas do Santo
Ofício romano no sentido de diminuir e especializar o trabalho dos comissários locais.
É significativa, a esse respeito, uma manifestação da congregação romana a propósito
de Gênova: uma deliberação de 25 de julho de 1590 estabeleceu que para os crimes
de blasfêmia devia se proceder distinguindo nobres de viles , aplicando aos primeiros
penitências salutares e multas em dinheiro e, aos segundos, a obrigação de exibir-se
diante das portas da catedral com a língua "enganchada" e uma vela acesa na mão. Mas
havia no decreto uma advertência significativa: o inquisidor devia proceder somente
nos casos de blasfêmias heréticas 81 •
Era uma tentativa de retirada: exatamente naqueles anos, a disseminação de con-
frarias especializadas em intervenções contra a blasfêmia - as companhias "do Nome
de Deus" 82 - mostra que se pretendia antes seguir o caminho da persuasão do que o do
tribunal. Mas, enquanto a estratégia antiblasfêmia se complicava e ampliava, não diminuiu
a atuação dos inquisidores, ao contrário. As razões são evidentes: o sistema inquisitorial
era de uma minuciosidade extraordinária na investigação do crime, à diferença dos outros
tribunais. E isso por ter como base a confissão obrigatória e o encaminhamento feito pelo
confessor ao inquisidor. Por exemplo: em Vicenza, em 1640, certo Girolamo Gonzo foi
denunciado porque quem o ouvira blasfemar tinha ido depois se confessar e o pároco
o obrigara a dirigir-se ao inquisidor porque "seria excomungado se não denunciasse" 83 •
Além disso, a estratégia das punições fazia com que, diante da escolha entre tribunais
laicos e tribunal inquisitorial, as pessoas preferissem decididamente o último.

80. Ordini et Precetti contra i Violatori delle /este, et contra i biastematori per l'illustrissimo et reverendíssimo cardinale et
vescovo di Piacenza [Paolo Burali], Piacenza, junto a Francesco Conti, 1573, p. 6: "Ordine contra la biastema,
et biastematori". Um apelo às autoridades políticas e civis para condenar os blasfemos pode ser encontrado
nos estatutos de Burali: Constitutiones Editae, et Promulgatae in Synodo Dioecesana Placentina ... 1570, Placentiae,
apud Franciscum Comitem, 1570, p. 16. Testemunhos a esse propósito são mencionadas por Franco Molinari,
ll Card. Teatino Beato Paolo Burali e la Riforma Tridentina a Piacenza (1568-1576), Roma, 1957, p. 328 e nota.
81. Decreto publicado por Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit., p. 47.
82. Cf., por exemplo, os Capitoli, Ordini et lndulgenze della Venerabile Compagnia del Santíssimo Nome di Dio instituita
dai sacr'ordine delli /rati predicatori, per estinguere il pessimo vitio della bestemmia et inutili giuramenti, Urbino, junto
a Bartholomeo et Simone Ragusii fratelli, 1589 (outra ed. 1594).
83. Do depoimento de Filippo Bagnara de 24 março de 1640, citado por Megna, Vita Religiosa e Pietà di Popolo,
op. cit., p. 171.

A Confissão
371

Também na França e na Espanha, notou uma estudiosa francesa , "a blasfêmia,


grave pecado teológico, é reprimida com mais severidade pelas autoridades laicas do
que pelas eclesiásticas. Por paradoxal que pareça, é melhor cair na rede da Inquisição
do que na do rei" 84 • Encontraremos outros paradoxos do mesmo tipo. E deveremos
questionar por que nos parecem como tais. A diferença, e frequentemente o confron,
to, entre a justiça eclesiástica e a secular, sempre fizeram com que se atribuísse ao juiz
eclesiástico um maior grau de brandura: e uma vez terminada a fase violenta da luta
contra a heresia, quando a Inquisição fora chamada a defender um poder ameaçado, a
antiga diferença tornou a aparecer. Foram incontáveis à época as estratégias por parte
de quem tinha sido condenado por um tribunal criminal laico para passar às mãos da
Inquisição: a mais pitoresca talvez tenha sido a de um andaluz, Diego de Vique, apri,
sionado em 1579, que - ao aproximar,se a data da sentença - não só pôs,se a blasfemar
em público com blasfemias temerarias , mas se autodenunciou à lnquisição 85 • O resultado
foi que a Inquisição espanhola aceitou sua confissão e mandou,o, "reconciliado" , ao
juiz secular que, antes de enforcá,lo pelos outros delitos , fez com que lhe aplicassem
duzentas chicotadas pelas blasfêmias. Como mostra também a experiência realizada nessa
época pelos súditos napolitanos de Felipe II 86, as estratégias do poder não se dispunham
absolutamente a ser dribladas pelas pobres astúcias dos acusados.
Para ficar no âmbito dos poderes controlados pela Igreja, é evidente que a natu,
reza da blasfêmia e a necessidade de discernir a cada vez seus eventuais traços heréticos
devem ter suscitado muitos problemas: a operação tentada no terreno então predileto
da casuística abstrata foi o reflexo de complicações infinitas no plano da vida cotidiana.
Devem ter sido muitos os que, à época, dirigiram,se às autoridades eclesiásticas para
solicitar esclarecimentos sobre o comportamento a ser mantido em uma sociedade em
que a blasfêmia era hábito cotidiano. Os padres que estavam em postos marítimos ou
em meio aos soldados parecem ter tido problemas maiores. "Nesta minha congregação
há muitos varões ou marinheiros que costumam blasfemar a torto e a direito", escrevia ,
em 1602 ao inquisidor de Módena o padre que servia como vigário na congregação de
S. Pietro in Elda 87 • E então eram requisitados poderes delegados para resolver in loco
os inúmeros casos que se apresentavam. "Contentai,vos que absolva os que blasfema,
rem contra o nome de Deus ou da Santíssima Virgem, muitas vezes com blasfêmias
heréticas, impondo a penitência aos pecadores", sugeria o tal vigário, observando
que uma atuação gradual de transformação dos costumes era mais necessária do que

84. Belmas, La montée des blasphemes, op. cit., p. 15.


85. O episódio é relatado pelo jesuíta Pedro de León, que atuou à época como consolador nas prisões espanholas:
cf. Pedro de León, Grandeza 'Y Miseria en Andalucia. Testimonio de una Encrucijada Histórica (1578-1616), org. de
Pedro Herrera Puga, Granada, 1981, pp. 404-405. Sobre Pedro de León e sobre a importância dessa fonte
veja-se O estudo de Michele Olivari, "Lettura 'Politica' dei Resoconti Missionari di Pedro de León, Gesuita
Andaluso (1580-1620)", Rivista di Storia e Letteratura Religiosa, XII, 1986, pp. 475-491.
86. Cf. G. Romeo, Aspettando il Boia. Condannati a Morte, Confortatori e lnquisitori nella Napoli della Controriforma,
Firenze, 1993.
87. Carta de 3 abril de 1602, ASM, Inquisizione, b. 286, cc. n. n.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


372

processos formais : "É preciso ir diminuindo o hábito aos poucos, do contrário a coisa
sairia do controle". Portanto, de acusação civil e inquisitorial, a blasfêmia começava a
tornar-se matéria de confissão (ainda que ministrada por esse confessor especial que
era o vigário da Inquisição); tanto mais que o vigário, prevendo "a grande afluência de
pessoas que viriam em busca de absolvição" , solicitava a possibilidade de "conferir tal
autoridade aos párocos de minha Congregação nos casos necessários , para aliviar-me
de tanto fastio" . A afirmação do poder inquisitorial nesse terreno resolvia-se, portanto,
em um fastio suplementar de tipo burocrático: poderes delegados , correspondências
entre os vicariatos e as autoridades centrais. Transformar os costumes, "reformar" de
modo cristão os comportamentos impunha-se como objetivo à estrutura eclesiástica:
mas a blasfêmia mantinha-se profundamente arraigada. Quanto muito, a dureza das
punições dos tribunais laicos obteve o efeito de tornar desejada a justiça eclesiástica,
inquisitorial ou ordinária. A blasfêmia não herética era considerada de foro misto
pelos próprios inquisidores 88 • Mas a arbitrariedade e o caráter efêmero dos limites
entre os vários tipos de blasfêmia deixava ampla margem às controvérsias: segundo os
tribunais laicos, por outro lado, os réus acusados de blasfêmias heréticas pertenciam à
inquisição somente até o momento da abjuração e depois deviam passar às suas mãos
para receberem penas adequadas 89 •
O édito da Inquisição de Módena em matéria de blasfêmia previa um limite
de doze dias no decorrer dos quais era necessário denunciar os casos de que se tivesse
conhecimento. Mas como observá-lo quando se vivia em um ambiente onde todos
blasfemavam cotidianamente? Em 1643, diante de Ludovico Cavedoni, vigário em
Castelvetro, apresentou-se um soldado forasteiro para confessar-se; mas , antes da confis-
são, no preâmbulo dedicado à verificação da existência de eventuais excomunhões por
razões heréticas, reconheceu ter ouvido "muitos outros soldados amigos, mas de nações
diferentes, blasfemarem nos meses passados muitas vezes de modo herético". Não os
denunciara "porque os blasfemos eram amigos, e também por lhe parecer muito difícil
obedecer ao édito entre soldados, que labutam juntos e estão acostumados a ouvir todos
os dias semelhantes blasfêmias heréticas, sendo uma empresa muito árdua denunciar a
todos"; e por isso o padre, que estava evidentemente de acordo com as considerações
do soldado, requeria a faculdade de absolver da excomunhão todos aqueles que se
encontravam em condições semelhantes 90 .
No terreno dos modelos elaborados pelos teólogos, quem folheia a literatura para
confessores e para inquisidores depara-se continuamente com a tentativa de definir os
limites entre a blasfêmia herética e a não herética. Algumas tentativas de regulamen-
tação ocorreram com os manuais elaborados para os confessores e para os consultores
do Santo Ofício no século XVII: nessas sumas destinadas a ordenar a consciência com

88. Cf. Tedeschi, Th.e Prosecution of Heresy, op. cit., p. 98, que remete a C. Carena, Tractatus de Officio Sanctissimae
lnquisitionis, Bologna, 1668, p. 123.
89. Cf. Tedeschi, Th.e Prosecution of Heresy, op. cit., p. 123, nota 46.
90. Carta de 29 de janeiro de 1643, (ASM, lnquisizione, b. 286, cc. n. n).

A Confissão
373

base na ciência inquisitorial, a balança parece pender para os inquisidores: a eles é


reservada até mesmo a blasfêmia implícita dos enamorados que , chamando "omnipo,
tentem, summe sapientem, summe pulchram" a própria amada, atribuem,lhe qualidades
divinas. Com maior razão entravam no campo herético blasfêmias tradicionais como
"puta d e D eus " ou "b oceta d e Deus ", por negarem a pureza divina 91• Longas listas
de blasfêmias deviam permitir aos tribunais do confessor e do inquisidor tomarem
uma decisão sobre como tratar o blasfemo arrependido. As blasfêmias, ordenadas por
séries baseadas na analogia, eram divididas em heréticas e não heréticas. Assim , por
exemplo, na seguinte série: "Dio sagradone, dio poverino, poverinazzo, sagradazzo, ai
conspetto, ai conspettone , ai conspetazzo di 0io, di Christo, di Maria, di Mariazza" 92 ,
a resposta do perito identificava como não herético somente "ai conspetto di 0io" [na
presença de Deus] 93 • Como se vê, os critérios de distinção não se encontram entre os
mais transparentes; portanto, deve,se imaginar os confessores enquanto percorriam
rapidamente tais listas para decidir se reencaminhavam ou não os penitentes para o
foro inquisitorial.
No entanto, a prática ensinara que era inútil agredir frontalmente com as armas
do Santo Ofício comportamentos populares de ampla difusão. Em virtude disso, foi
se impondo uma distinção entre o significado herético abstrato de certas afirmações e
seu uso social. Um exemplo típico é aquele da blasfêmia siciliana santo diavolone [santo
diabo], que se usava normalmente ex iracundia: e era usada com tal frequência que
induziu a inquisição siciliana a categorizá,la como blasfêmia simples 94 • Séculos mais
tarde, Giovanni Verga devia registrar seu uso inalterado entre os camponeses de Aci
Trezza 95 • Justamente o mundo camponês, que descarregava a ira contra a injustiça social
implicando com Deus, era o que criava os problemas mais sérios para os moralistas.
Até mesmo Alfonso de' Liguori que, tratando da gente do campo, tentou elaborar
métodos de intervenção pastoral, não pôde deixar de reconhecer um limite excedente
à ação inquisitorial no campo da blasfêmia justamente em matéria de injustiça social:

91. lnstructio Catholica pro Confessariis ad Discemendum inter Lepram et Lepram, ex Manuali Qualificatorum Sanctissimae
Inquisitionis Desumpta, Perusiae, ex typographia episcopali, apud Angelum Laurentium, 1664, pp. 46-51 ; em
part. p. 47.
92 . No início da série, os epítetos de Deus (santo, pobrezinho) encontram-se flexionados no grau aumentativo de
modo ridículo e pejorativo; o mesmo se dá com a expressão "na presença de" (al conspetto di) e com o nome
de Maria (N. do T).
93. "Sunt omnes, praeter al conspetto, haereticales" (Reverendissimi Patris Francisci Bordoni Parmensis S. T. D.
Collegiati, Sanctae et Universalis lnquisitionis Qualificatoris, Tertii Ordinis Sancti Francisci Ex-Generalis
Manuale Consultorum in Causis S. Officii contra Haereticam pra11itatem refertum, quamplurimis dubiis no11is, et 11e-
teribus resolutis cui accessit discursus. De concursu et examinatione clericorum ad benefitia 11acantia. Opera posthuma,
- J ·quaque abso lu t·1ss1·ma, nunc primum edita • Parmae, sumptibus losephi ab Oleo per Hippolyrum et fratres de
Unue
Rosatis, 1693, par. 70; mas veja-se toda a seção sobre blasfêmia, com interessantes observações sobre a diferença
de critérios entre a Inquisição espanhola e a romana, PP· 341-371).
94. lnstructio Catholica pro Confessariis, op. cit., P· 49.
95 . Local onde se passa a ação do romance Os Malavoglia (N. do T.).

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos


374

Dizer "ó Deus, não fazeis as coisas justas" , se isso fosse dito como verdade , tratar-se-ia de uma
blasfêmia herética , que deveria ser denunciada ao bispo por quem a ouve dizer dentro de um mês
'
no máximo 96 .

Uma teoria social baseada na providência divina encontrava-se exposta a duras


contestações, freadas apenas pelo medo da Inquisição. Se os camponeses blasfemavam,
os doutores indagavam-se "por que Deus fez pobre uma pessoa e tão rico o rei de Espa-
nha" : e a resposta que parecia mais ortodoxa era "que essa era a vontade de Deus, que
houvesse agricultores , e pessoas de governo e virtuosas" 97 • Mas ao tentar justificar em
nome de Deus a ordem social existente, a Inquisição expunha esse Deus à blasfêmia
dos menos afortunados .
A relação entre a estrutura eclesiástica e o ordenamento da sociedade é um pon-
to chave, obviamente. As representações elaboradas à época pela cultura eclesiástica
foram múltiplas e prestaram-se a diferentes funções . Mais que no âmbito da teologia da
blasfêmia, foi no terreno da doutrina moral que se desenvolveu a mediação eclesiástica
em matéria de direitos de propriedade, ao abrigo de uma elaboração doutrinária - a
da "segunda escolástica" - que deu à doutrina da propriedade privada suas caracterís-
ticas modernas 98 • Essa posição teórica da teologia oficial, que enrijecia e consagrava as
relações de propriedade, promovendo individualismo e voluntarismo, seguia pari passu
a interferência assistencial do mundo eclesiástico em favor dos deserdados - ainda
que, naturalmente, esses últimos não reivindicassem direitos de herança. Tratou-se,
num longo trabalho pedagógico, de habituar os pobres à sua própria condição e de
fazer com que a aceitassem como dado de natureza, imutável e desejado por Deus. A
transformação da caridade cristã em sinônimo de esmola e de assistência foi o reflexo
do que aconteceu então nas relações de poder e de propriedade: mas no terreno da
intervenção assistencial criaram-se profundas solidariedades entre o mundo eclesiástico
e as classes subalternas. No que se refere à inquisição, trata-se mais uma vez de man-
ter bem diferenciados seus níveis: a estrutura central do Santo Ofício conseguira ser
aceita pelos vários estados como fiadora da obediência dos súditos e da manutenção
das hierarquias políticas e sociais; isso não impedia que nos níveis operacionais mais
baixos a natureza monástica de seu pessoal fosse percebida de modo positivo por parte
das classes populares.
Uma percepção positiva era encorajada pelo fato de que esse tribunal, pelo me-
nos teoricamente, atingia também os poderosos. Justamente no terreno do crime de
blasfêmia, os inquisidores tiveram frequentemente que enfrentar não só os protestos
dos camponeses oprimidos pela natureza e pelos homens, mas também os nobres de-
socupados, que blasfemavam no jogo. Blasfemava-se devido à injustiça, mas também

96. Alfonso de' Liguori, Omfessare Diretto per le Con[essioni della Gente di Campagna, Bassano, Remondini, 1773, p. 82.
97. Denúncia apresentada ao Inquisidor de Florença em 1650 "contra Petrum Natan Gallum medicinae profes·
sorem" (ACAF, Misc. S. Uffizio, b. II, n. 170).
98. Remeter-se, a propósito, aos estudos fundamentais de Paolo Grossi; cf., por exemplo, II Dominio e le Cose.
Percezjoni Medievali e Modeme dei Diritti Reali, Milano, 1992.

A Confissão
375

devido à fa~ta d~' sorte no jogo: e nisso , mais do que os camponeses, estavam implicadas
as classes ncas. Yehementer suspecti de heresi" eram, para a Inquisição, todos os que
tinham o costume de blasfemar durante o jogo 99 • E a propósito, ouvindo a variada série
de ofensas a Deus ditas nas mesas de jogo, tem-se a impressão de que o Deus cristão
devesse sofrer o desafio de uma divindade mais antiga, a divindade pagã da fortuna : o
jogador que , nos dados ou nas cartas, tentava a sorte, sentia a necessidade de desafiá-la e
de combatê-la: "a fortuna é mulher" , escrevera Maquiavel, tentando explicar em termos
familiares o caráter prometeico do desafio aos decretos divinos para impor a "virtude"
individual. E algo como um titânico desafio aos céus encontra-se nas blasfêmias dos
jogadores; como nessa que em 1663 levou Alessandro de' Médici, cavaleiro de Santo
Stefano, e muitos outros nobres e ricos senhores florentinos à Inquisição:

Cristo eu te amaldiçoo e não me fazes perder a alma, a luz dos olhos, Cristo eu te amaldiçoo
e não me mandas urna seta, não me quebras o pescoço, Cristo tenho a ti e aos que creem em ti em
meu cu [... ] contra a tua vontade hei de vencer mais urna [... ]1 00 •

A partir disso ocorreu um violento conflito entre o Santo Ofício e um dos mais
poderosos grupos da sociedade do grão-ducado. O mundo dos jogadores de azar sempre
fornecera farta colheita de clientes à Inquisição, desde as origens medievais do ingresso
desse tribunal no mundo da blasfêmia; a novidade documentada por esse processo não
era, portanto, relativa ao crime, mas à fisionomia social dos acusados. A Inquisição
atingia até os nobres e os próprios membros da casa reinante: e isso certamente era
importante para fixar na consciência popular de um país católico o senso de certa
autonomia e imparcialidade do poder eclesiástico.
Por outro lado, a avalanche de denúncias e de processos por blasfêmia não
significava que se estendesse aos acusados - na maioria camponeses, jogadores e pros-
titutas - o rigor de que dera prova o tribunal da fé ao perseguir luteranos, calvinistas,
antitrinitários. Desde o longínquo início da época medieval, quando tinha ingressado
nesse campo, o tribunal da fé, uma vez reconhecida a falta de "pertinácia" herética do
blasfemo, tendia, como se disse, a recuperar "o conceito penitencial subtendido à norma
canônica" e a impor não uma pena mas uma penitência 101 • De fato, o tribunal de foro
externo começava a utilizar meios e condutas próprios do tribunal de foro interno, a
confissão. Esse processo não se limitou ao campo da blasfêmia. Foi na exploração do
bem mais vasto e incerto continente das práticas e das crenças mágicas e feiticeiras que
os dois tribunais tiveram de pôr à prova seus meios de análise e de intervenção.

99. lnstructio Catholica pro Confessariis, op. cit., P· 50.


100. ACAF, Misc. s. Uffizio, b. 23 : "Denunzie e Informazioni contro li Signori Anselmi, Acciaioli, Grifoni,
Cardinali, Deva e Cav. Alessandro Mediei", 1654-1660.
101. Cf. Raniero Orioli, "Enol Porave Fare Oio ... Documenti dell'lnquisizione Bolognese", op. cit., p. 220.

Bispos e Inquisidores: Sobreposições e Conflitos

I
XVII
CRER EM BRUXAS: BISPOS E INQUISIDORES
DIANTE DA "SUPERSTICÃO"
,

história da caça às bruxas, matéria complicada e particularmente discutida desde


A então, é também uma história de contínuos conflitos de jurisdição entre as au,
toridades que pretendiam o direito de se ocuparem da matéria: aqui faz,se necessário
dedicar um pouco de atenção aos que opuseram os bispos aos inquisidores. Não foram
os conflitos mais importantes. Tinha bem outra importância, sobretudo do ponto de
vista das acusadas, a questão se deviam ser julgadas por juízes laicos ou eclesiásticos: a
distinção trazia em si modos e características diferentes da intervenção judiciária, mesmo
porque os tribunais laicos julgavam em matéria de malefícios - a acusação de ter provo,
cado a morte de animais ou de pessoas, por exemplo - e atuavam geralmente com mais
rapidez e rigor em comparação com os juízes eclesiásticos. Mas a rivalidade entre bispos
e inquisidores decorreu de duas direções diferentes no interior da jurisdição eclesiástica.
A questão colocou,se em termos conflitantes após o nascimento da Inquisição romana.
Até então, vigorava em termos abstratos o princípio fixado desde o século XIV, segundo
o qual inquisidor e bispo - ainda que pudessem conduzir separadamente as causas -
deviam pronunciar as sentenças de comum acordo e cada um na presença do outro ou
de seu vigário. E a norma referia,se às causas de heresia entre as quais, como veremos,
não estavam necessariamente compreendidas as de bruxaria, magia e superstição.

Nesse terreno, a Inquisição impôs seu domínio até fazer dele um setor extre,
mamente mais vasto do que os outros de sua competência. Mas sua candidatura para
ocupar,se desses crimes não fora única nem irresistível. Havia, desde muito, a dos
bispos. Como ocorreu com a blasfêmia, o território da "superstição" revelou entre os
séculos XV e XVI sua insólita capacidade de atração. Almejavam a seu controle as novas
levas do episcopado, esses tipos de "inquisidores e mui solertes castigadores" 1 que se
aventuravam à conquista de suas dioceses, prontos para detectar remanescências pagãs
e presenças diabólicas nas práticas folclóricas e, em particular, nas formas da medicina
popular. Mas a questão parece mudar de aspecto na medida em que se avança das visitas
pastorais do século XV àquelas do século XVI.

1. É a definição que um vigário episcopal paduano do século XV, N icolà Grassetto, deu de si mesmo (cf. P. Gios,
L:lnquisitore della Bassa Padovana e dei Colli Euganei 1448-1449, Candiana, 1990).
)78

Em 1448 , o bispo de Ferrara Francesco Dal Legname perguntava ao reitor da


igreja d e Vill anova se um a feiticeira de sua paróquia, conhecida como Berlea, continu-
ava a praticar seus encantamentos: o tom da pergunta era condizente com o de uma
inspeção normal das co isas e e.las pessoas da diocese e não tinha nada de dramáticoz.
N o entanto , foi muito dramático o alarme lançado meio século mais tarde pelo vi-
gário episcopal d a diocese florentina : antes mesmo de colher qualquer informacão
' '
no documento que marcava a visita diocesana , o vigário do cardeal Júlio de' Médici
junto à arquidiocese florentina forneceu um quadro alarmante dos fenômenos de
magia e superstição como de uma religião alternativa, a ser combatido e eliminado 3 •
A vida e as práticas religiosas po pulares já pareciam distantes do cristianismo oficial,
irreconhecíveis e perigosas; mesmo Lutero, após sua visita às igrejas da Saxônia, usou
tons semelhantes. Após o Concílio de Trento, o senso de urgência da luta contra as
superstições é percebido de modo difuso nas visitas pastorais, nos sínodos diocesanos
e na literatura de tipo "pastoral". Não se trata de uma orientação limitada ao mundo
católico. Viam-se ali as ameaças de uma "falsa" religião, capaz de corromper a verda-
deira justamente por ser dela uma imagem distorcida: era preciso, portanto, retornar à
verdadeira forma , re-formar. A "superstição da arte mágica" , como a definiu o cônego
florentino Francesco Cattani de Oiacceto, era uma questão atual para as autoridades
eclesiásticas devido ao sucesso que granjeava junto "à mais vil plebe e ignorante vulgo"4.
Por outro lado, essas ameaças que a literatura jurídica e teológica reduzia a abstrações,
na realidade apresentavam-se com feições concretas de grupos, ofícios, formações sociais
definidas; era a cultura própria e específica de grupos sociais particulares que entrava
no ângulo de visão da religião oficial e devia enfrentar sua vontade unificante e nor-
malizadora. Só que o bispo tinha uma visão "pastoral" de toda a gama das expressões
sociais, desde a usura e as relações entre os sexos à blasfêmia, e assim por diante: o
inquisidor, por sua vez, devia se ocupar somente da heresia. Para dar um exemplo:
os sortilégios e os encantamentos para desencadear as paixões amorosas pertenciam
a quem se dedicava ao ofício do amor - cortesãs e prostitutas. Assim, acontecia de
serem mobilizados contra elas, como prostitutas, os esforços de moralização dos
bispos enquanto, como "bruxas e benzedeiras", "herboristas e feiticeiras" , suspeitas
de apostasia e de pacto com o diabo, eram inquiridas pelo Santo Ofício 5 • A disputa

2. Cf. Peverada, La Visita Pastorale del Vesco110 Francesco Del Legname, op. cit. , p. 254.
3. ACAF, Visite Pastorali. Atti della Visita di Giulio de' Mediei, cc. 1r ss. (ata de 10 de julho de 1514).
4. Discorso del Reverendo M. Francesco de Cattani da Diacceto gentil'huomo et canonico di Firenze et protonotario apostolico
Sopra la superstizzione dell'arte magica, in Fiorenza, tip. Valente Panizzi e Marco Peri, 1567 (da dedicatória ao
cardeal M. Bonelli). A obra conta com a aprovação do inquisidor e do vigário episcopal.
5. A coisa é evidente no que se refere às cortesãs venezianas, mas também o é em outros lugares. Para Veneza,
remete-se aos estudos de Marisa Milani (cf. , por exemplo, os documentos sobre Streghe e Dia11oli nei Processi del S.
Uffizio. Venezja 1554-1592, org. de M. Milani, Padova, 1989, e sua edição do processo contra Valeria Brugnalesco,
de 1587 , em apêndice a Processi del s. Uffizio di Venezia contro Ebrei e Giudaizzanti (1587-1598), org. de Pier Cesare
Ioly Zorattini, vol. VIII, Firenze 1990, pp. 176 e ss.). Entre os papéis da Inquisição florentina, encontra-se uma
súplica à congregação romana de uma certa Fiore di Francesco de Crespoli, de 1593. Relata-se ali que Fiore,

A Confissão
379

entre os dois poderes também comportou permutas imprevisíveis nos métodos: se a


tradição confiava o papel de tribunal suspeitoso e intransigente à Inquisição e deixava
ao bispo a moderação e o uso da persuasão convenientes ao "pastor" das almas , nos
desdobramentos ocorridos no século XVI no terreno da magia e da bruxaria as coisas
assumiram um aspecto diferente.
A candidatura do bispo como antropólogo levou a pior em relação à do
inquisidor: e isto apesar do modelo do bispo como atento registrador dos mitos e
ritos desviantes da ortodoxia ter tido uma sólida tradicão retomada no século XVI
' '
por personalidades como Giovanni Matteo Giberti e Carlo Borromeo . O convite de
detectar e eliminar as "superstições" e as indicações precisas que esses dois bispos
tinham proposto deixaram alguns ecos nos decretos e nos sínodos, onde, porém , a
linguagem atemporal da norma acabou por amontoar e confundir proibições antigas
e recentes 6 • Pesquisas mais atentas certamente encontrariam materiais etnográficos
nos arquivos episcopais ; mas é nos autos da Inquisição que esse material foi reunido
de modo sistemático e é o inquisidor - não o bispo - que se tornou o antecedente
do antropólogo 7• Essa mudança de mãos pela qual passou a matéria da "superstição"
pode ser verificada até nos menores detalhes. Se tomarmos , por exemplo, qualquer
fragmento desse mundo que devia depositar,se nos autos inquisitoriais - para citar só
um exemplo, a prática de tirar o telhado do cômodo onde se encontrava um moribundo
ou de pôr o moribundo em contato com a terra, que implicava uma concepção da alma
humana como algo material - encontraremos um seu primeiro traço nas advertências
escritas por Giberti a seu clero 8 ; mas será somente nos autos da Inquisição que as
informações sobre as "superstições" serão depositadas com certa sistematicidade, antes

originária das montanhas de Pistoia, foi mandada ao exílio depois de um processo realizado em Pistoia "na
corte do bispo" contra diversas meretrizes que tinham sido condenadas como "bruxas e benzedeiras" (Archives
Royales de Bruxelles, Archives ecclésiastiques 19283 ter, I, cc. 54-55; a cópia da carta foi mandada pelo cardeal de
Santa Severina ao inquisidor de Florença em 27 de fevereiro de 1593, para o esclarecimento do caso).
6. Cf. Cleto Corrain e Pier Luigi Zampini, Documenti Etnografici e Folkloristici nei Sinodi Diocesani, Bologna, 1970
(reed. de uma série de artigos publicados em Palestra dei Clero, 1964-1967). Tratou-se, de todo modo, de convites,
não de ordens taxativas; a partir desse ponto de vista, foi feita a distição entre hereges de um lado, feiticeiros e
bruxas do outro (cf. um sínodo de 1645 resumido por Giovanni Maceroni e Anna Maria Tassi, Società Religiosa
e Civile dall'Epoca Postridentina alie Soglie della Rivoluzione Francese nella Diocesi di Rieti, Rieti, 1985, p. 345). A
dificuldade de contextualizar as referências a práticas folclóricas em documentos como os sínodos é provada
também pelas pesquisas de Gabriele De Rosa, Vescovi, Popolo e Magia nel Sud, Napoli, 1971. Sobre os dados
reunidos por Borromeo, a pesquisa apoia-se essencialmente em O. Lurati, Superstizioni Lombarde (e Leventinesi)
dei Tempo di san Cario Borromeo, op. cit.
7. Cf. C. Ginzburg, "L'Inquisitore come Antropologo", em Studi in Onore di Armando Saitta dei suoi Allievi Pisani,
Pisa, 1989, pp. 23-33 . Para os aspectos etnográficos do governo das dioceses Peter Burke ("Le Domande del
Vescovo e la Religione del Popolo", Quademi Storici, XLI, 1979, retomado com modificações no volume do
mesmo autor The HistoricalAnthropology, op. cit., trad. it. Scenedi Vita Cotidiana nell'ltalia Moderna, 1987) mostrou
o caráter decepcionante dos atos de visita e propôs um esquema interpretativo que foi atentamente verificado
por Danilo Baratti por meio de uma investigação em um contexto específico (Lo Sguardo dei Vescovo. Visitatori
e Popolo in una Pieve Svizzera della Diocesi di Como. Agno, XVI-XIX sec., Lugano, 1989).
8. Trata-se do Breve Ricardo de G. M. Giberti, publicado em Verona em 1530; cf. Ginzburg, l Benandanti, op. cit., p. 26.

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


380

de tornarem a aparecer entre os séculos XVII e XVIII nos relatórios dos missionários
ou, no século XIX, nas documentações etnográficas. No entanto, é a presença do
clero paroquial que perpassa toda essa história: como confessores, como mediadores
das ordens da Inquisição, como informantes dos missionários ou como autores em
primeira pessoa dos relatórios sobre os "erros populares" da era napoleônica. De fato
somente a estrutura paroquial tinha condições de atingir as populações do campo e da'
montanha, as mais periféricas, aquelas onde as formas arcaicas ou proibidas de ritos
e de mitos religiosos encontravam terreno mais propício à existência e à resistência:
nada podia substituir um mediador como o confessor. Quando, depois de ausências
seculares, os bispos animados pelo espírito da reforma tridentina apareceram pela
primeira vez nos burgos perdidos nas montanhas italianas ou para lá mandaram
seus vigários, as atas registraram as declarações de párocos e confessores a respeito
de como podia ser administrada a matéria da superstição. Em 1566, em Lizzano in
Belvedere, no Apenino bolonhês, o pievano respondeu à pergunta sobre as superstições
declarando que ali havia "algumas mulheres que costumam praticar certos feitiços e
superstições, que prometeram em confissão não praticar mais"; não lhes lembrava os
nomes, mas prometeu entregar uma lista deles "escrita de próprio punho" 9• É evidente,
por esse único caso, como a rede de presenças eclesiásticas no território diocesano e
o instrumento da confissão estavam prontos para entrar em ação, de acordo com as
novas exigências de controle dos comportamentos e de pureza da fé.
Apenas um cuidadoso recenseamento poderá nos dizer quais foram as caracterís-
ticas e os resultados do esforço direto dos bispos nesse terreno. Daremos aqui só dois
exemplos, um justamente célebre de Carlo Borromeo e outro, menos conhecido, do
veronês Girolamo Negri, bispo de Chioggia de 1572 a 157910• Negri, após uma visita
pastoral, na qual colhera abundantes indícios de "práticas supersticiosas" (em particu-
lar no uso dos Agnus Dei, na leitura de livros e nas práticas matrimoniais), promulgou
em 14 de dezembro de 157 3 um édito dirigido a todos os confessores da cidade e da
diocese. De acordo com ele, os confessores eram obrigados a interrogar os penitentes,
fazendo-lhes perguntas como: que orações e devoções faziam, quais leituras, se tinham
Agnus Dei e de que tipo, como tinham se casado, que sinais e rituais (signis et coeremo-
niis) usavam ao fazer o sinal da cruz, ao se ajoelharem, ao dizerem suas preces: e assim
por diante. Livros, Agnus Dei, orações e tudo o que soubesse a superstição devia ser
entregue à Cúria: e com isso o bispo esperava que a erva daninha da superstítio cedesse
lugar às frondes vigorosas da verdadeira religião 11 • Desse momento em diante uma
longa série de mulheres (com uma minoria de homens) apresentou-se ao tribunal do
bispo, contando e fazendo registrar _uma grande quantidade de jaculatórias, de rezas e

9. Cf. M. Fanti, Una Pieve, un Popolo. Le Visite Pastorali nel Temtorio di Lizzano in Belvedere dal 1425 al 1912, Lizzano
in Belvedere, 1981, p. 41.
10. Cf. Dino De Antoni, Vescooi, Popolo e Magia a Chioggia, Sottomarina, 1991, pp. 53 e ss.
11. "Ad Offitium afferant libros, Agnus Deos superstitiosos et orationes prohibitas uc superstitiosa religio invete-
rascat et sancta virescat et florear" (idem, p. 55 nota). De Antoni pergunta-se se offitium deve ser entendido no
sentido de Inquisição; mas os processos examinados por ele são do tribunal episcopal.

A Confissão
381

de cançõezinhas - do mesmo gênero e às vezes as mesmas que, no entanto, iam sendo


recolhidas por parte do Santo Ofício e que cada vez mais deviam ser reunidas nos
fichários dos tribunais inquisitoriais 12 •
Naturalmente, a cultura e a preparação do clero paroquial não eram em geral
as mais apropriadas para identificar as práticas proscritas pela igreja tridentina. E não
se tratava da oposição entre ignorância e cultura literária: mesmo párocos com boas
leituras como Domenico Tarilli de Comano registravam impassíveis no livro paroquial
práticas de oferendas propiciatórias a Caronte (para a viagem das almas) 13 • Evidente-
mente, era justamente a cultura eclesiástica tridentina , com suas exigências de uma
eliminação radical da magia e da superstição, que devia criar raízes. Não só a solida-
riedade do clero paroquial com a cultura local era profunda, mas a oferta do sagrado
oficial, ainda que competindo com o sagrado proscrito, tinha com este analogias e
relações substanciais: do bispo à bruxa, o campo religioso da época da Contrarreforma
apresenta-se como um campo integrado, onde as rivalidades internas não escondem
filiações e semelhanças 14 •
A conduta de Carlo Borromeo oferece o ponto de observação mais significa-
tivo para captar as diretrizes de reforma do episcopado italiano da época tridentina.
Justamente no corpo dos decretos do primeiro concílio provincial, Carlo Borromeo
ressaltou as severas proibições do exercício da magia, dos encantamentos e venefícios,
dos pactos com o diabo. No quadro da luta conduzida por ele nessa direção, há um
episódio que merece uma atenção particular: o das bruxas de Lecco. Trata-se de um
grupo de mulheres - pelo menos oito, embora o número não seja certo - que foram
detidas e processadas por vontade do arcebispo de Milão em 1569. A história delas
pode ser acompanhada a partir das menções que lhe foram feitas na correspondência
entre o arcebispo de Milão e a congregação romana do Santo Ofício, na pessoa do
cardeal Scipione Rebiba. As mulheres eram acusadas de terem provocado a morte de
crianças e animais, de terem pisoteado o crucifixo e a imagem de Nossa Senhora, de
terem roubado hóstias consagradas e "feito em mil pedaços e até mijado em cima" e

12. Um exemplo de coleta de materiais desse gênero dos autos de uma Inquisição italiana foi dado pela
tese de uma estudiosa americana elaborada com base nos processos do fundo modenense: Mary O'Neil,
Discerning Superstition: Popular Errors and Orthodox Response in late Sixteenth Century ltaly, Ann Arbor, 1982.
Uma primeira apresentação dos resultados de sua pesquisa, com o titulo "Magicai Healing, Love Magic
and the lnquisition in late sixteenth Century Modena", foi publicada em lnquisition and Society in Early
Modern Europe, org. de S. Haliczer, London, 1987, pp. 88-114. Para a Espanha cf. Maria Helena Sánchez
Ortega, "Sorcery and Eroticism in Love Magic", em Cultural Encounters. The lmpact of the lnquisition in
Spain and New Word, Oxford, 1991, pp. 58-92. Sobre esse tipo de fontes cf. também M. P. Fantini, Orazioni
e Scongiuri tra le Carte dell'lnquisizione Modenese, 1568-1602, Tese de Graduação, Università degli Studi di
Pisa, a.a. 1992-1993 .
13. Domenico Tarilli (1533-1593) manteve um livro paroquial rico em anotações de crônicas (D. Tarilli, Notizie dal
Cinquecento, org. de D. e T. Petrini, Lugano, 1993); cf. p. 161 e as observações da introdução, pp. 70-71, onde
se menciona um indício de práticas semelhantes, com a significativa substituição de São Pedro por Caronte.
14. Cf. David Gentilcore, From Bishop to Witch. The System of the Sacred in Early Modern Terra d'Otranto, Manchester/
New York, 1992.

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


382

de terem cometido "toda sorte de luxúria com seus Demônios íncubos" 15 • Borromeo ,
horrorizado com esses crimes - que as mulheres confessaram sob tortura - mostrou-se
imediatamente determinado a condená-las e a levá-las à punição de modo a "fazer disso
exemplar demonstração" 16 • Porém, havia um problema: as mulheres não eram "relapsas".
Por isso, se se procedesse contra elas através da Inquisição, não podiam ser entregues à
corte secular para enviá-las à morte. Em vez disso, o bispo queria recorrer a uma justiça
sumária: e visto que o tribunal episcopal não era atrelado às regras da Inquisição, pensava
poder fazê-lo . Mas Roma , o Santo Ofício, criou um impasse inesperado. Uma carta do
cardeal Rebiba, escrita em nome da congregação cardinalícia, informou a Carlo Borro-
meo que sua carta - justo aquela que propunha a "exemplar demonstração" - fora lida
na presença de Pio V. O papa ouvira, tinha até "louvado merecidamente a diligência e
o zelo" do cardeal milanês. No estilo curial, essa melíflua condescendência prenunciava
uma dura freada. Pio V mandara escrever a Borromeo que "em matéria das bruxas, que
verificados antes os corpos de delitos , depois Vossa Reverendíssima faça justiça" 17 • O antes
e o depois da verificação e da condenação não se encontravam evidentemente em seus
devidos lugares nos processos milaneses.
Mas era sobretudo a ordem de verificar o corpus delicti que barrava o caminho ao
tipo de justiça sonhada por Borromeo: em vez do percurso que ia do crime espiritual à
condenação à morte, propunham-lhe a necessidade de distinguir entre crimes de heresia
e de apostasia, atingidos pelas sentenças do tribunal eclesiástico, e crimes de malefício
verificáveis - venefício, infanticídio, homicídio - contra os quais era possível fazer uso
da justiça secular. A história do caso demonstra que o obstáculo interposto pelo Santo
Ofício romano não foi fácil de contornar. Decepcionado e irritado, Carlo Borromeo
ainda elucubrou em suas cartas aqueles que tinham sido seus projetos:

Depois de terem sido admitidas no Santo Ofício para a abjuração , pensava eu em proceder
como ordinário às penas que de direito mereceriam por crimes tão enormes e tão qualificados , e
também remetê-las à corte secular [... ]1 8•

De fato, ao que parece, houve uma investigação suplementar. As mulheres foram


novamente interrogadas, depois mandadas ao inquisidor para a abjuração e finalmen-
te entregues de novo nas mãos do foro episcopal para que este, num jogo das partes
tornado formalmente necessário, procedesse à transferência ao braço secular. Mas a
morte de uma das acusadas, a intervenção do Senado milanês junto a Roma, a ação

15. Carta de 9 de março de 1569, em BibliotecaAmbrosiana, Milano, ms P 4 inf. (minutas de São Carlos Borromeo),
f. 64r. É reproduzida por Giuseppe Farinelli e Ermanno Paccagnini, Processo per Stregoneria a Caterina de'Medici
1616-1617, Milano, 1989, p. 86.
16. Carta de 23 de fevereiro de 1569 (op. cit., p. 85).
17. Carta citada por Paolo Portone, "Un Processo di Stregoneria nella Milano di Carlo Borromeo (1569)", a sair
no volume de anais do simpósio Stregoneria e Streghe nell'Europa Moderna, Pisa, 1996. A carta está conservada
no Archivio arcivescovile de Milano, Archi11io Spirituale, dez. XN, vol. 246, f. 13. O grifo é meu.
18. Carta de 9 de março de 1569 (Farinelli e Paccagnini, Processo per Stregonenia, op. cit., p. 86).

A Confissão
383

dos advogados de defesa complicaram novamente a questão, até provocar uma nova
intervenção do Santo Ofício romano: e mais uma vez o órgão supremo da Inquisição
concentrou o exame dos documentos processuais na questão do corpus delicti . No início
de 1570, um Carlo Borromeo ansioso devido às dilações do processo e com medo de
que as bruxas ficassem impunes, viu chegar a resposta que assinalava sua derrota: nem
todos os crimes tinham sido provados.
Suas cartas dão a medida de como os interlocutores falavam línguas diferentes.
Carlo Borromeo não achava necessário perder tempo com a investigação dos crimes. A
condenação, segundo ele, não devia atingir os crimes de homicídio, mas os de apostasia
e de heresia 19 • Era uma evidente divergência das linguagens e das estratégias entre bispo
e Inquisição. Mas era também uma mudança de postura do Santo Ofício em matéria de
bruxaria. A obrigação de apurar a existência do corpus delicti é uma dessas normas que,
no início do século XVII , deviam ser reunidas na fundamental lnstructio pro Formandis
Processibus in Causis Strigum et Maleficiorum de Desiderio Scaglia: um documento que
ratificou conquistas jurídicas decisivas na história da caça às bruxas 20 • Já o modelo
episcopal de solução do problema da bruxaria oferecido por Carlo Borromeo era a
expressão de um fervor devoto de luta contra a presença do demônio no mundo que
seguia uma direção completamente diferente: as do santo arcebispo, como foi dito com
justiça, eram "posições muito rigorosas, seguramente minoritárias na igreja italiana de
seu tempo" 21 •
Carlo Borromeo lidou com bruxas também em Val Mesolcina, resultando em
uma série de processos concluídos com várias condenações à morte: aqui o êxito foi
justificado pelo próprio Borromeo com o argumento de que os tribunais locais teriam
feito muito pior, tendo em vista "o extremo ódio e horror que têm às bruxarias" 22 •
Mas sua ação nesse terreno é emblemática no que se refere a um projeto de reforma
geral das características da sociedade em que a bruxaria era apenas uma e não a mais
importante entre as formas assumidas pelo mal. Uma dureza, uma "sagrada" dureza e
impaciência, era parte essencial do estilo com que os reformadores de todo tipo enfren-
taram então o mundo das superstições e da magia. A "cura das almas" continuava a ser
a preocupação dominante: os sofrimentos dos corpos não importavam, aliás, podiam
ser um instrumento útil para a salvação das almas, as das bruxas e as do povo que as via

19. "[ ...] Conquanto à notificação dos homicídios confessados por elas não tenha sido dada maior importância,
embora nem todos tivessem sido verificados, não foram condenadas por isso, mas como apóstatas e hereges
impenitentes" (idem, p. 88 e nota 116).
20. Em sua obra De Potestate Angelica (Roma, 1651), Giovanni Tommaso Castaldi, o primeiro editor da Instructio
indica que ela consistia de uma collectio de normas já em circulação nas instruções internas; cf. Tedeschi, The
Prosecution of Heresy, op. cit., p. 214, que levanta a mesma hipótese.
21. Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit., P· 52.
22. Carta citada pora A. Borromeo, "L'Opposizione all'Eresia", em II Grande BO'ITomeo tra Storia e Fede, op. cit.,
pp. 225-251, em part. p. 246. Sobre O rigor das magistraturas laicas em matéria de processos por bruxaria nos
cantões católicos, cf. os estatutos de Leventina reportados por Raffaella Laorca, Le tre Valli Stregate, Locamo,
1992, pp. 142 e ss.

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


384

morrer. É uma postura que decorre evidentemente do modo como Borromeo recebeu
o relatório sobre a execução das bruxas de Mesolcina. O relatório foi-lhe enviado pelo
jesuíta que tinha "confortado" as moribundas. As mulheres, amarradas em uma mesa
tinham sido jogadas de "ponta cabeça" sobre o monte de lenha. Ateou-se fogo à lenha:'
"viu-se uma labareda horrível, que reduziu todos os seu ossos e membros a cinzas".
Havia uma enorme aglomeração de gente e "todos gritavam Jesus a plenos pulmões, e
ouviam-se ainda elas [as bruxas] gritarem e invocarem o santíssimo nome em meio às
ardentes labaredas, tendo cada uma delas seus rosários no pescoço com a Ave Maria
abençoada" . Portanto, era de se esperar que as almas das mulheres mortas tivessem
se salvado: o jesuíta, que as tinha "reconciliado" quando já se encontravam "estiradas
e amarradas" , exprimia a devota convicção "da saúde de todas" . E Carlo Borromeo, de
Bellinzona, agradeceu ao jesuíta aquele informe que lhe trouxera consolatione e convidou-o
a seguir aquele caminho e "a fazer abundante colheita espiritual dessas sementes" 23 •
Além dos esquemas formais que regulavam as relações entre bispos e inquisidores 24 , é
evidente a diferença de estilo e de interesses entre o fervor religioso de Borromeo e as
cautelosas verificações do Santo Ofício.
Do exame ainda que sumário da questão, vieram à tona dois pontos proble-
máticos. Um diz respeito ao uso da confissão: o filtro mais oportuno que se ofereceu
também aos bispos reformadores para conhecer e intervir com conhecimento de
causa nas zonas "deformadas" da vida social foi a confissão. Mas podia a confissão
ser também o lugar de uma composição secreta do conflito entre a religião oficial e
a "supersticiosa"? O problema dizia respeito não só à estrutura ordinária de governo
da Igreja, mas também à estrutura policial da Inquisição dirigida por Roma. Outro
ponto digno de atenção é a cautela máxima que parece inspirar o comportamento do
Santo Ofício em matéria de bruxaria em comparação com o de Borromeo. E aqui se
coloca a questão das formas e dos tempos do avanço da Inquisição nessas matérias.
Com respeito ao estilo da reforma episcopal da magia, o da Inquisição romana
resultou - em contraste com Cario Borromeo - mais cauto e atento às regras do
direito. A justiça, segundo a advertência que Rebiba mandou a Carlo Borromeo,
devia seguir só depois da verificação do corpus delicti. Nesses anos, análogos sinais
de cautela e de moderação por parte do Santo Ofício se multiplicam. Ora, justa-
mente nesses anos ocorreu o avanço mais decisivo da Inquisição no terreno da luta
contra as "superstições", progressivamente absorvidas no interior da acusação de
bruxaria. Por razões que permanecem misteriosas, o paradigma da bruxaria atingiu
sua plenitude teórica no mesmo momento em que a estratégia inquisitorial mudou
de método e de direção.

23. A carta do jesuíta, de 8 de dezembro de 1583, e a resposta de Cario Borromeo, de 9 de dezembro, foram publicadas
em Atti di s. Carla Riguardanti la Suizzera e i suoi Territori. Documenti Raccolti dalle Visite Pastorali, dalla Corrispondenza
e dalle Testimonianze nei Processi di Canonizzazione, org. de Paolo D'Alessandri, Locamo, 1909, p. 358.
24. Uma sistematização precisa, para os domínios espanhóis na Itália, é fornecida por Agostino Borromeo, "Contributo
alio Studio dell'Inquisizione e dei suoi Rapporti col Potere Episcopale nell'Italia Spagnola del Cinquecento", em
Annuanio deU'lstituto Storico Italiano per l'Età Moderna e Contemporanea, XXIX-X:XX, 1977-1978, pp. 219-276.

A Confissão
385

Devemos nos deter agora nesses dois aspectos do problema: o estilo da confissão
e os modos do avanço inquisitorial.

"Acredita em tudo o que dizem das bruxas?" : esta era a pergunta que os confesso-
res deviam fazer aos penitentes, segundo as instruções de um manual de fins do século
XVI 25 • Trata-se de uma pergunta que poderia ser dirigida aos historiadores: o que se
sabe e no que se acredita (saber) , não só a respeito da bruxaria, mas sobre esse conjunto
de mitos e de ritos que durante uma longa fase da história europeia pertenceram ao
mundo do proibido e causaram perseguições aos suspeitos dessa prática. Durante muito
tempo , os historiadores responderam com uma só palavra: bobagens. (Lucien Febvre,
que se fez a pergunta de como se tinha deixado de crer nessas bobagens, respondeu
que fora necessária uma "revolução mental" .) Algumas vezes, também os juízes e outros
contemporâneos pensaram e disseram a mesma coisa: invencionices, "zombarias" , como
disse um nobre de Friuli diante das histórias que lhe eram contadas a propósito dos
benandanti 26 ; eram histórias e boatos que logo se configuraram como um "núcleo de
tradições e de mitos ... absolutamente desprovido de correspondências com o mundo
culto" 27 • Não se reconheciam, nesses relatos , os traços da religião do demônio descrita
pela literatura inquisitorial; quando se propagou a ideia de que os tais benandanti não
passavam de uma variante da conhecida seita de bruxos, a coisa foi tratada com mais
atenção. Através dos traços incertos do desconhecido , os juízes tinham encontrado
uma realidade familiar.
No entanto, até esse núcleo mais sólido de certezas despertava discussões e dúvi-
das: admitido e dado como certo o pacto com o demônio , as discussões começavam tão
logo se abordava a questão da realidade do sabá. Era verdade que as bruxas se dirigiam
fisicamente e realmente ao rito noturno? Ou tratava-se de alucinação? Os historiadores,
que se debruçam sobre os documentos dos inquisidores e que dependem de suas infor-
mações, herdaram da cultura desses juízes a questão da realidade da bruxaria, mas ten-
dem geralmente a não enfrentá-la. A tese da realidade do culto das bruxas como religião
alternativa efetivamente praticada, após ter convencido os juízes eclesiásticos, encontrou
alguns ecos entre os historiadores: Margaret Murray primeiro, Carlo Ginzburg depois -
de modos muito diferentes - consideraram que não se pode ignorar o forte sabor de
realidade das narrativas das presumidas bruxas. A tese de que as bruxas eram pobres
mulheres iludidas - por si mesmas ou pelo demônio - ou ainda vítimas fabricadas pela
violência legal, pela intolerância e pelos preconceitos, custou a se impor entre os inqui-
sidores, mas finalmente foi aceita e traduzida em regras particulares de procedimento:

25. Somma, ÜtJer Brwe [nstruttione per Confessori , per Saper bene Amministrare il Sacramento della Penitenza, de R. P.
F. Gio. Pedrazza, novamente traduzida da língua espanhola por Camillo Camilli, Venezia, Giorgio Angelieri,
1584, c. 13r (uma edição espanhola da Summa de Casos de Conciencia de frei Juan de Pedraza foi publicada em
Alcalá de Henares em 1568).
26. Nos séculos XVI e XVII, em Friuli, pessoas que conheciam e celebravam ritos antigos para propiciar a fertilidade
dos campos e livrá-los de eventuais feitiços (N. do T.).
27. Ginzburg, I Benandanti, op. cit., pp. 6 e 54.

C rer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


386

e dali passou à cultura histórica geral, combinando-se diversificadamente com o ponto


de vista de quem creditava à Inquisição dos países católicos a responsabilidade de ter
alimentado a fé no diabo e, portanto, de ter criado as condições para que se acreditasse
na bruxaria. Desse momento em diante, não crer nessas histórias configurou-se como um
sinal de progresso, de afastamento de um paganismo difícil de morrer 28 • Ainda hoje, há
historiadores que sustentam sua origem toda eclesiástica e veem na invenção da bruxaria
um instrumento de poder e de domínio cultural para agredir e desagregar a "cultura
popular" (R. Muchembled, por exemplo). Resiste a esse critério porém o comportamento
específico das autoridades católicas a respeito: que não só foram solícitas em negar a
realidade do sabá, mas foram também dementes ao abordar todo o universo da supers-
tição e da bruxaria em especial. Os estudos históricos demonstraram sem sombra de
dúvida que a caça às bruxas, no mundo italiano e no ibérico, teve características menos
sangrentas e violentas que em outros lugares graças à postura assumida pelas autoridades
eclesiásticas 29 • Normalmente assume-se que à diminuição da fé na realidade da bruxaria
e do pacto com o diabo correspondeu sua descriminalização. Mas a coisa não é simples
assim. O manual de que partimos pode nos oferecer algumas indicações úteis a propósito.
No entanto, logo nos adverte que sob o nome de bruxaria eram reunidas muitas coisas.
"Tudo aquilo, que se diz": o caráter compósito do mundo de práticas e de crenças,
de mitos e de ritos que no conjunto das normas inquisitoriais era denominado bruxaria
é um dado de fato. No universo da bruxaria foram juntados os comportamentos e os
mitos da magia e do mau-olhado, da medicina popular e de todo o complexo mundo
das "superstições". Na prática da pesquisa, somente quando se conseguiu puxar um
fio desse tecido - os cultos da fertilidade dos "benandanti" estudados por Carlo Ginz-
burg, e ritos e mitos da caça a que se dedicou Maurizio Bertolotti - diminuiu a coesão
ilusória de um objeto único e sem arestas e foi-se realmente além dos conhecimentos
dos inquisidores.

28. Todavia, também quem afirmava, come Balthasar Bekker, que "plus on se trouve éloigné du Paganisme ... et
moins on ajoute de foi à toutes les choses qui regardent le diable et son pouvoir" (e, naturalmente, segundo
ele, o mundo da Reforma era o que mais tinha se afastado do paganismo) reconhecia honestamente, a pro-
pósito do sabá, que havia "beaucoup d'écrivains papistes qui nient que cela soit" (Le monde enchanté, trad. fr. ,
Amsterdam, chez Pierre Rotterdam, 1694, introdução n. n. e p. 283).
29. Cf. os estudos de John Tedeschi, reunidos em The Prosecution of Heresy, op. cit. E, para um panorama atualizado,
cf. Early Modem European Witchcraft. Centres and Peripheries, org. de Bengt Ankarloo e Gustav Henningsen,
Oxford, 1990 (onde figura um ensaio do próprio Tedeschi sobre "Inquisitorial Law and the Witch", pp. 83-
-118, depois retomado e reelaborado na coletânea supracitada). Ali, Robert Rowland ("Fantastical and Devilish
Persons: European Witch-beliefs in Comparative Perspectives") propõe uma leitura comparativa do fenõmeno
em um quadro europeu. Para o mundo espanhol, cf. Gustav Henningsen, L'Awocato delle Streghe (The Witches
Advocate: Basque Witchcraft and the Spanish Inquisition (1609-1614), Reno, 1980) trad. it. Milano, 1990; para
Portugal, F. Bethencourt, O Imaginário da Magia. Feiticeiras, Saludadores e Nigromantes no Século XVI , Lisboa,
1987, e seu orientando José Pedro Paiva em um trabalho ainda inédito (Bruxaria e Superstição num Pais sem
"Caça às Bruxas". Portugal 1600-1774, Tese de Doutorado, Universidade de Coimbra, 1996) defenderam a tese
de uma hierarquia eclesiástica empenhada em uma obra de cristianização, paciente e tolerante em relação ao
mundo mágico popular.

A Confissão
387

O autor do manual fornecia de imediato a síntese do que ele acreditava a propósito


das bruxas. É uma página instrutiva, que nos ensina o que um homem da igreja pensava
conhecer sobre bruxas e feiticeiros : "é gente danada" que, convencida pelo demônio
"que lhes promete riquezas e prazeres" , põe-se a serviço de Satanás, "para tê-lo como
seu Senhor e viver sob seu império" . A apostasia era seguida pelo sabá: que, porém,
não era algo real. "Untam seus corpos com certas matérias e são tomadas por um sono
profundo". A hipótese de que o sabá fosse uma alucinação provocada por unguentos
especiais foi verificada em caráter experimental: o italiano Gian Battista Della Porta e o
espanhol Andrés de Laguna experimentaram no próprio corpo o poder das substâncias
usadas pelas bruxas 30 • Entretanto, os relatórios que chegavam da América falavam dos
poderes extraordinários de uma nova droga: o tabaco, que Girolamo Benzoni definia
como "essa fumaça verdadeiramente diabólica e fétida" e que outro médico espanhol,
o sevilhano Monardes, apontava como instrumento usado pelo demônio para tornar
vítimas de ilusões e alucinações os sacerdotes dos índios da América. Como escreveu
Carlo Ginzburg, "as viagens de exploração transoceânica fomentaram uma circulação de
substâncias inebriantes e estupefacientes tão ampla e intensa que pode ser comparada à
unificação microbiana do mundo": e fomentaram também uma caçada de conhecimen-
tos em matéria de poderes mágicos em que foram envolvidos e confrontados bruxaria
eurasiática e costumes americanos 31 • O resultado provisório foi um cadinho de creduli-
dade e desconfiança, dominado pela categoria da ilusão. Até o confessor que explicava
o que se devia pensar sobre a bruxaria apoiava-se na seguinte posição: as bruxas são
enganadas pelo demônio, que é "um grande médico e muito antigo" e por isso conhe-
ce os poderes dos pós e dos unguentos; adormecem e durante o sono imaginam estar
em qualquer lugar, por exemplo, nas cidades de Veneza e Roma. Quando despertam,
"têm certeza de ter estado pessoalmente nessas cidades e de tê-las visto com os próprios
olhos corporais"; mas é ilusão, ainda que forte e profunda. Contudo, essa explicação
das viagens noturnas das bruxas como pura ilusão não é tão clara como parece. Nem
tudo na bruxaria é ilusão; o sabá não é, por exemplo. Eis como é explicado o sabá:

Este já referido ato nefando aumentou de modo que muitos e muitas iam fisicamente a um
lugar deserto, que é mantido particularmente para tal fim, para onde o demônio os leva pelos ares
à noite, e lá adoram o demônio enquanto gozam seus deleites carnais com diabos em forma de
homens e de mulheres.

Portanto, a viagem noturna é uma viagem "física" e tem um destino concreto: há


lugares escolhidos propositalmente, lugares reais onde se dão os encontros noturnos do
sabá. Já à época foram feitas pesquisas para identificar nos bosques e nas montanhas os

30. A história das experiências desse tipo não foi concluída à época; cf. Ginzburg, I Benandanti, op. cit., p. 23 nota.
31. Idem, "Gli Europei Scoprono (o Riscoprono) gli Sciamani", em Klassische Antike und neue Wege der
Kulturwissenschaften,Symposium Karl Meuli, org. de F. Graf, Basileia, 1992, pp. 111-128 (idem, pp. 111-112, as
citações de Benzoni e Manardes).

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


388

vestígios de lugares do gênero. Deve-se dizer, contudo, que não se tem nenhuma notícia
de eventuais descobertas de rituais de bruxaria ocorridos nesses lugares.
Uma semelhante mistura de realismo e de ilusão é encontrada na explicação do
poder de matar crianças atribuído às bruxas. As bruxas matam as crianças a pedido do
demônio; mas não são vampiros, não sugam o sangue das crianças; são apenas assassinas
que, com o auxílio de um hábil e astuto colaborador como o demônio entram nas casas
de noite e sufocam as crianças.

[... ] Empenham-se em sufocar as crianças à noite, fazendo o demônio os pais e as mães ador-
mecerem profundamente: não para sugar-lhes (como pensa o vulgo) o sangue, mas para agradar a
Satanás, que concede os melhores lugares, favores e honras em suas festas e reuniões a quem mata maior
número de infantes. Mas todavia na casa onde havia cruz, crucifixo ou imagem de Nossa Senhora, não
podiam causar dano nem às crianças, nas quais a mãe, ao pô-las para dormir, tivesse feito o sinal da
cruz. Disso já foram informados os inquisidores e a justiça de Navarra. Creem alguns que entrem nas
casas enquanto as portas e janelas estão fechadas , e é erro diabólico atribuir aos membros do inimigo
as virtudes do corpo glorioso. A verdade é que o demônio abre-as muito devagar, a fim de entrar, e
depois volta a fechá-las , ao sair. E crer ainda que mudem a feição que Deus lhes deu , transformando-
-se em pás, vassouras ou gatas, é contra a fé , e esta é a determinação do Concílio. Mas o demônio
engana-lhes de tal modo a imaginação, que lhes parece ter outra feição 32•

A "determinação" referida é o Canon Episcopi, o documento fundamental usado


por quem negava a realidade do sabá. O andamento incerto do discurso desse manual
para confessores (um dos muitos que à época trataram da matéria) depende, portanto,
da necessidade de conciliar um ponto de referência da cultura eclesiástica consolida-
do - o sabá cuja natureza de "formação cultural de compromisso" foi esclarecida por C.
Ginzburg33 - com o objetivo eminentemente pastoral do livro: voltado aos confessores, o
texto propõe fornecer-lhes argumentos para rebater a fé popular nas bruxas. Não se deve
negligenciar a origem espanhola do texto: nele transparece algo do que foi chamada "a
sabedoria inquisitorial" espanhola em matéria de bruxaria 34 •
Trata-se de uma questão de poderes: é preciso convencer as pessoas de que o
poder do sagrado oficial é autêntico, ao passo que o das bruxas é ilusório, deriva da
habilidade do demônio que sabe apresentar como realidade o que não passa de uma
astuta manipulação das coisas. Portas que se abrem de noite, pozinhos naturais usados
para curar (e disso advém a convicção errônea de que é a invocação do demônio que
os torna poderosos): eis a explicação natural de fenômenos tomados por milagrosos. O

32. Somma, 011er Breve lnstruttione, op. cit., cc. 1311-14r.


33. C. Ginzburg, Storia Nottuma. Una Decifrazione del Sabba, Torino, 1992.
34. Michele Escamilla-Colin, Crimes et chatiments dans l'Espagne inquisitoriale, Paris, 1992, IJ, p. 63 (que remete à
correspondente tradição de estudos que vai de H. C. Lea a Gustav Henningsen). Mas também nos manuais
para confessores de autores italianos era considerado um erro grave acreditar "que as bruxas vão fisicamente
a quaisquer lugares, e que as mulheres convertam-se em gatas ou em outros animais, e perambular de noite,
e sugar o sangue de crianças" (Paolo Morigia, li Gioiello de Christiani ... , Venezia, 1581, f. 95r).

A Confissão
389

caráter pastoral do discurso revela-se no momento em que se trata de convencer quem


se confessa a não "fazer bruxedos" , ou seja, não praticar bruxaria por conta própria:
"Quando se dizem palavras, ou se fazem sinais, desenhos , cerimônias ou se colocam
coisas, que se sabe não terem virtude de causar os efeitos aos quais se aplicam, é tudo
superstição, e onde se invoca o nome do Demônio" 35 • Tais coisas não causam os tais
efeitos: e se causam - como é o caso do mau-olhado ou "olho gordo" - isso não depende
do poder do demônio, mas da "virtude natural" inerente ao próprio olhar. Em suma, só
Deus e a natureza possuem poderes efetivos; o demônio não passa de um hábil trapacei-
ro. É uma luta de poderes divinos contra poderes demoníacos: era necessário extirpar
a fé nas bruxas, remetendo os poderes mágicos à zona do ilusório. O autor do manual
tentava atingir esse resultado, mesmo dentro dos limites de uma cultura eclesiástica que,
por seus pressupostos e pelos meios que empregava, sobrepunha-se frequentemente ao
mundo da superstição (era extremamente difícil, por exemplo, justificar a proibição dos
"breves supersticiosos" que, no entanto, eram sempre feitos com ingredientes pios)3 6 •
Essa postura que se conveio chamar "pastoral" não é absolutamente uma novidade
daquela época: mas intensifica-se e torna-se dominante nos anos em torno do Concílio
de Trento. O manual para confessores pressupõe que na confissão pudessem ser re-
solvidos não apenas os erros de quem acreditara em bruxas, mas também os de quem
tinha cometido atos de bruxaria. Essa estratégia não ficou no papel. Foi justamente
na confissão que ocorreu a primeira e decisiva coleta de informações. Porém, no que
dizia respeito à verdadeira culpa, a questão não era absolutamente pacífica, no plano
das normas e da ordenada repartição dos campos de ação por parte das autoridades
que disputavam entre si essa repartição. O confessor encontrou em seu caminho as
pretensões de outros tribunais, em primeiro lugar, a Inquisição eclesiástica.

A interferência da Inquisição no território da magia, sortilégios e "superstições"


era discutível e discutida. A velha norma (sancionada por uma bula de Alexandre VI em
1258) de que os inquisidores não deviam se ocupar de semelhantes matérias a não ser
que tivessem um manifesto teor herético 37 foi objeto de interpretações conflitantes. A
questão da bruxaria, para a qual se chegou a cunhar a definição de um específico quadro
herético de referência, teve um desenvolvimento particular e completamente autôno-
mo38. Quanto a encantamentos, sortilégios, práticas divinatórias, observância de dias e de
ritos particulares, trata-se de matéria que, ao menos no âmbito das posições e declarações
formais, foi inserida cada vez mais decisivamente no raio de ação dos inquisidores. Em
meados do século XV, Nicolau V escreveu ao inquisidor-geral da França que adivinhos
e "sacrílegos" deviam ser perseguidos mesmo na ausência daquele manifesto teor de

35. Somma, Over Breve lnstruttione op. cit., c. 1411.


36. "Mas em sendo de coisas verdadeiras e sagradas a escrita de tal breve, ou de palavras e nomes conhecidos, e
sem outros sinais que não O da cruz, ou rituais que devem ser escritos em certo papel, ou em certa hora, ou
atados com certo fio , ou outras coisas semelhantes, não é pecado" (idem, c. 16r).
37. "Nisi haeresim saperent manifeste" (cf. Henner, Beitriige, op. cit. , P· 308).
38. Cf. Ginzburg, I Benandanti, op. cit. , p. 17 nota.

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


390

heresia de que falara Alexandre VI 39 • Não sabemos, todavia, que efeitos concretos teve
a coisa . Não só os tribunais episcopais mas também as autoridades laicas continuaram
a processar pelo crime de bruxaria e reivindicaram tranquilamente o direito de fazê-lo :
"é de minha natureza perseguir e inquirir os delinquentes e malfeitores", escreveu em
1456 o potestade de Tortona, para justificar o procedimento contra Sibilia, uma velha
enviada à fogueira como bruxa 4°. A presença da justiça laica nessas matérias se fez sentir
por muito tempo, não só na França onde acabou por dominar sozinha toda a matéria,
mas também nos estados italianos. Além disso , mesmo nos casos em que a Inquisição
atuou com seus homens, os poderes políticos quiseram reforçar seu direito de inter-
venção e supervisão, como em matéria de importância primária para a segurança e a
tranquilidade dos súditos. Basta lembrar o caso da intervenção das autoridades laicas
na grande caça às bruxas e aos feiticeiros de Valcamonica em 1518 41 •
Nessa época, em matéria de bruxaria já era dominante a interpretação consa-
grada pela bula de Inocêncio VIII , Summis Desiderantes Affectibus (1484), e comentada
pelo Malleus Maleficarum de Heinrich Kremer (H. Institoris) e Jakob Sprenger (1487):
a conjuração demoníaca, o culto disseminado do inimigo de Deus na forma do sabá
das bruxas. Foi uma vitória prenhe de terríveis consequências: não só as autoridades
eclesiásticas, como também príncipes e magistraturas citadinas empenharam-se nesse
terreno. Não se tratou , para esses últimos, de opor à Inquisição eclesiástica instrumentos
e métodos mais cautos e atentos em relação aos acusados: como se veria com frequência
em matéria de bruxaria, os governos laicos eram favoráveis - às vezes ainda mais que os
juízes eclesiásticos - a intervenções drasticamente punitivas, que quase sempre iam de

' encontro às exigências da população. Em Valcamonica os reitores venezianos disputa-


ram com os inquisidores no decorrer de uma sangrenta caça às bruxas. Nem se tratou
apenas de bruxas dos vales alpinos, da região de Como ou de Valcamonica, segundo
a hipótese "montanhesa" avançada anos atrás por Hugh Trevor-Roper42 : no coração
da Padânia, o infeliz príncipe de Carpi, Gian Francesco Pico, apesar de ter oferecido
proteção aos herdeiros de Savonarola e à seita dos "Ungidos", desencadeou uma caça
às bruxas de resultados horripilantes. Era o mesmo homem que cultivara amplíssimas
ambições de filósofo cético e de apologeta cristão; e, ainda, o mesmo homem que se
gabava de ter como hóspede uma santa viva e contava os voos noturnos empreendidos
por ela de Monferrato a seu palácio. Nesse caso podemos ter um exemplo significati-
vo das preocupações de fé de um homem culto daquele tempo. Gian Francesco Pico

39. A bula papal (em J. Hansen, Quellen und Untersuchungen zur Geschichte des Hexenwahns und der Hexenverfolgung
im Mittelalter, Bon, 1901, p. 19) é citada por Ginzburg, I Benandanti, op. cit., p. 17 nota.
40. Ver do autor do presente volume "La Circolazione delle Idee Religiose", em Le Sedi della Cultura nell'Emilia
Romagna. L:Epoca delle Signorie: le Città, Milano, 1986, pp. 117-133.
41. Cf. Dei Col, Organizzazione, Composizione e Giurisdizione dei Tribumali dell'Inquisizione Romana, op. cit.,
pp. 244-294.
42. Protestantesimo e Trasformazione Sociale, trad. it. Bari, 1969. A propósito dos modelos interpretativos da bruxaria -
questão de que não nos ocupamos aqui - indica~e a recente obra de Gábor Klaniczay, The Uses of Supernatural Powers,
Cambridge, 1990, onde se propõe uma correspondência com O surgimento do estato assoluto (cf. pp. 153 e ss.).

A Confissão
391

interferiu pessoalmente nos processos inquisitoriais daquele que foi denominado "o
pogrom antibruxas da Mirandola do ano de 1522-1523" 43• Por vezes, as intervenções dos
poderes políticos foram justificadas pela pressão popular e pela demanda de punições
exemplares contra a ameaça representada pelas bruxas. Mas o caso dos processos de
Mirandola demonstra justamente que o rigor monástico, compartilhado por Pico, era
fruto da convicção da existência de um complô de forças demoníacas capazes de ações
extraordinárias e milagrosas, como o voo noturno das bruxas. Da parte da população,
ao contrário, no início do século XVI , estava ainda prestes a renascer uma velha anti-
patia em relação à Inquisição, que datava da época dos cátaros e dos fraticelli . Durante
os processos de Mirandola, a amplitude e a violência sanguinária da repressão , com
fogueiras de dezenas de pessoas , suscitaram de fato críticas gerais: "Começaram mui-
tos a dizer com palavras injuriosas, que não era justo esses homens serem mortos tão
cruelmente ... Dia a dia, cada vez mais, esses murmúrios cresciam no meio do povo" 44 •
A fama da personagem principal do grupo , dom Benedetto Berni, durou muito tempo
como sendo a de alguém "que tinha comércio com o diabo e sempre batizou em nome
dele todas as crianças por dezoito anos" 45 •
A ideia de uma seita dos ritos noturnos dedicada à adoração do demônio , que
estava na base da noção de heresia por bruxaria, unificou e atraiu para seu âmbito
práticas, mitos e ritos de diversos tipos. A elaboração de uma leitura unitária de um
mundo variado e disperso, estranho e incompreensível, é o trabalho a que se dedica-
ram os inquisidores. E o fascínio dessa grande simplificação - a chave única de leitura
propiciada pela noção da "heresia por bruxaria", do complô diabólico no rito noturno
do sabá - foi tanto que somente hoje o trabalho dos historiadores vai se livrando dele
a muito custo, aprendendo a seguir os fios individuais das crenças e dos ritos que os
inquisidores fizeram confluir em sua construção: os antigos ritos de povos caçadores
que afloram nos processos modenenses do início do século XVI, o xamanismo dos
povos das estepes e os cultos de fertilidade na série de processos friulanos contra
os benandanti no final do século XVI 46 • A interferência da Inquisição teve o efeito
de impor - não apenas por meio de livros, mas por meio da rigorosa pedagogia dos
tribunais - o modelo simplificante da bruxaria aos "mil fios que ligam o conjunto de
práticas e de crenças arraigadas nas massas da Europa cristã ... às religiões e às culturas
que floresceram em épocas arcaicas, ou simplesmente pré-cristã" 47 • Outra questão é se
depois essa interferência conseguiu realmente eliminar ou transformar e·m profundi-
dade as crenças pré-cristãs e impor-lhes os traços da demonologia cristã: somente um
estudo aprofundado das fontes inquisitoriais poderá fornecer uma resposta à questão.

43 . A. Biondi, "Introduzione" a Gian Francesco Pico della Mirandola, Strega o delle Illusioni dei Demonio, Venezia,
1989, p. 9.
44. Leandro Alberti, idem, p. 52.
45. Antonio Brasavola [Musa), Vita di Christo, ms 1862 da Biblioteca Universitaria di Bologna, terceira parte, c. 43r.
46. Cf. M. Bertolotti, "Le Ossa e Ia Pelle dei Buoi. Un Mito Popolare tra Agiografia e Stregoneria", Quademi Storici,
n. 41, maio-ago. 1979, pp. 470-499; Ginzburg, I Benandanti, op. cit.
47. Bertolotti, op. cit., p. 492.

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


392

No entanto, é possível registrar o fato de que em 1638, mais de um século após os


processos modenenses que tinham absorvido a imagem do sabá de bruxas nos ritos
de caça, os inquisidores de Módena registraram ainda relatos de ritos noturnos onde
se comia um boi e, depois de comido, "esse boi foi juntado, ou seja, seus ossos foram
conjugados , e ele voltou a existir" 48 •
De todo modo, o fato é que por volta de 1520 aumentaram na Itália os casos de
magia e superstição tratados pela Inquisição: Carla Ginzburg notou isso no que se refere
a Módena, mostrando entre outras coisas que o trabalho do tribunal inquisitorial consis-
tiu justamente em atrair - por meio do jogo de perguntas, e da violência da tortura - as
práticas e as ideias dos acusados na esfera da religião demoníaca 49 •
Entretanto, nem por isso cessava a interferência de outras jurisdições em questões
de feitiços e de magia: as séries de processos criminais celebrados diante dos bispos ainda
não foram explorados em sua grande maioria, mas pode-se tranquilamente formular a
hipótese de que os casos de feitiçaria e de medicina popular foram em grande número
encaminhados a esses tribunais. Os processos de herbariis et maleficiis são abundantes,
por exemplo, entre aqueles promovidos diante do patriarca de Veneza entre os séculos
)(V e )(VI 5º. Por outro lado, mesmo entre os papéis da Inquisição começaram a pulular
processos desse tipo; mas o interesse dos inquisidores concentrou-se em uma questão
dominante: entre os séculos )(V e )(Vl, a ameaça que pairava no horizonte dos inquisi-
dores foi a da bruxaria. A literatura inquisitorial não deixa dúvidas a respeito. A "seita
abominável" das bruxas e dos feiticeiros era, para Bernardo de Como, uma congrega-
ção de adoradores do diabo: com rigoroso método indutivo, o inquisidor extraía suas
observações da análise dos processos. Tinha muitos diante de si, reunidos no arquivo

) da Inquisição de Como: baseado neles, Bernardo podia datar a primeira aparição da


seita de cerca de 150 anos antes 51 • Era um fenômeno recente: o Canon Episcopi, que era
citado por quem negava a realidade do sabá, portanto não podia valer nesse sentido 52 •
Sempre a partir dos processos, Bernardo adquiria a convicção de que essas reuniões
noturnas não podiam ser fruto de ilusões. Os sonhos e as fantasias variam de pessoa

48. ASM, lnquisizione, Processi, b. 108, processo "Contra Filippum de Guerris" , depoimento de 26 de novembro de
1638 de Ottaviano Rinaldi.
49. C. Ginzburg, "Stregoneria e Pietà Popolare. Note a Proposito di un Processo Modenese dei 1519", (1961) agora
em Miti Emblemi Spie, Torino, 1986, pp. 3 e ss.
50. Ver os processos "contra Helisabeth Estensem de herbariis et maleficiis" (1500), contra Marietta Perseghina
de herbariis (1516), contra Lucrezia, Fiorina e Taddea, de herbariis, contra "a Turca", de superstitionibus (1518), e
contra "Paula malefica et herbaria" ( 1529) no Archivio Patriarcale di Venezia, Archivio Segreto, b. I, cc. 156r-157v,
188r-213v, 249r-279v, 348r-353v). A partir da introdução da Inquisição romana, os processos de maleficiis et
superstitionibus são realizados diante do inquisidor (cf. idem, vol. II, cc. 48r-57v, processo "contra Joannam Me-
diolanensem cognominatam 'la strologa'", 1564; idem, cc. 119r-140v "contra Peregrinam de maleficiis" , 1568).
51. "Praedicta autem strigiarum secta pululare cepit tantum modo a centum quinquaginta annis citra, ut apparet ex
processibus inquisitorum antiquis, qui sunt in archiviis inquisitionis nostrae Comensis" (Bernardo de Como,
·um et H·1eronymum fratres Mettos,
Lucerna lnquisitorum Haereticae Pravitatis ' Mediolani , apud "aleri
v, · 1546, e. 94r) ·
52. "Quidam insurgunt [... ] quod fantastice ac 1·11usori·e t · ·· · · d · h ·
e m somnus eis omma prae icta contingant et m ums
opinionis suae fomentum adducunt textum can. Ep·1scop1· [. ..]" (·d 1 em, e.
92 v). '

A Confissão
393

para pessoa: por sua vez , as confissões conduzidas pelos inquisidores em toda a Itália
descreviam sempre as mesmas coisas. Como se podia duvidar da realidade delas? Havia
também as confissões espontâneas de crianças, como a de certa Antonia, de oito ou dez
anos , reportada pelos pais: contara-lhes que de noite fora acordada pela tia Maddalena
e levada ao sabá53 • De confissões como essa, recolhia-se uma quantidade impressionante
de detalhes sempre iguais, a ponto de convencer os mais incrédulos: descrição dos ritos ,
dos lugares, dos cúmplices, com extrema precisão. E o inquisidor verificara a veracidade
de tudo , por meio de reconhecimentos nos locais indicados (em Valtellina, por exemplo)
e de confrontação dos testemunhos.
A convergência dos testemunhos convencera-o da gravidade da coisa: a seita existia,
seus rituais eram reais e não imaginados, a quantidade dos seguidores do demônio era
impressionante. É verdade que uma regra antiga impunha não aceitar os testemunhos
dos confessados contra outros; mas essa regra não valia nos processos de lesa-majestade
e menos ainda nos processos de heresia54 • Portanto, as referências a co-réu feitas pelas
bruxas deviam ser aceitas. O inquisidor, naturalmente, não devia mencionar nomes
ao interrogar as bruxas sobre seus cúmplices no sabá; devia também ter presente a
possibilidade de que as pessoas vistas pela bruxa no sabá fossem imagens ilusórias
produzidas pelo demônio. Mas não podia ignorar esses depoimentos. Chamava sua
atenção uma característica desses depoimentos (que devia revelar-se importante também
para os historiadores): sua extraordinária conformitas, ou seja, o fato de se encontrarem
neles descrições idênticas feitas por pessoas que não se conheciam, a propósito de
fatos acontecidos em tempos e lugares remotos entre si, bastava para ele desmontar a
tese dos que viam nisso apenas sonhos e ilusões 55 ; Bernardo vira processos e processos,
realizados em toda a Itália por inquisidores dominicanos, e o caráter estereotipado dos
depoimentos chamara sua atenção: tudo concordava, não havia nada da vagueza e da
casualidade dos sonhos 56 • Portanto, a única conclusão possível era que estava aconte-
cendo um complô, um ataque subterrâneo à verdadeira religião dirigido pelo diabo . O
horror do ataque diabólico que emerge dessas páginas é da mesma natureza daquele que
se percebe no célebre Malleus Maleficarum: o inquisidor é consciencioso na aplicação
das regras processuais. Mas é o fato de ter como adversário o próprio "pai da mentira"
que o instiga ao rigor na avaliação das provas: "Reparai bem - diz Bernardo de Como
a seu leitor-inquisidor - e estai bem atento para não sugerir nomes ao interrogar sobre
, 1·ices... "57 .
os cump

53. Idem, e. 92r.


54. Idem, e. 19v.
55. Idem, e. 91v.
56. Idem, cc. 9lv-92r.
57. "Advertas tamen et sis bene cautus, tu inquisitor, ne interrogando de complicibus et sociabus unquam inter-
roges an aliquando viderint talem vel talem, specificando aliquam vel nominando [... ) Advertas insuper et sis
bene cautus ne de facili fadas aliquam detineri propter inculpationes talium strigiarum tantum, quia posset
contingere quod daemon assumeret personam alicuius et sub forma illius se praesentaret in ipso ludo, ut illam
personam infamet" (idem, e. 99r).

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


394

Nessa luta, havia necessidade de uma coragem sobre-humana: a difusão da seita


da bruxaria sob várias denominações (masche , striges) compreendia a Itália inteira,
segundo Bernardo . Por isso, os inquisidores eram chamados a lutar diretamente com
o demônio e suspeitavam que Deus tinha concedido ao adversário uma nova e inau-
dita liberdade. Exatamente no convento de Como, no decorrer dessa insurreição da
Inquisição contra as bruxas, o dominicano frei Isidoro Isolani estava escrevendo um
douto tratado a propósito de um assunto de grande atualidade, as ilhas descobertas por
Colombo no mar Oceano: juntando os dois fatos , Isolani cunhou a hipótese de que
o fim do mundo estava chegando e que a liberdade concedida ao demônio era aquela
prevista no Apocalipse para a época do Anticristo. Mas, ao mesmo tempo, Isolani
registrava que só em 1513 tinham sido queimadas em Como mais de sessenta pessoas
pelo crime de bruxaria 58 •
Esse paradigma da bruxaria é o que domina o horizonte da Inquisição durante
décadas: ou, pelo menos , domina seu horizonte cultural. A Inquisição espanhola
parece ter sido mais atenta e mais rigorosa no que se refere a diferenciar a verdadeira
bruxaria da matéria dos encantamentos e das superstições. Em uma instrução de 1515,
a Suprema ordenava aos inquisidores ocuparem-se somente dos casos de bruxaria que
tivessem manifesto sabor de heresia ("qui sapiant heresim manifeste"), sem se deixarem
distrair por "coisas externas" 59 • Na Itália, onde se desenvolveu uma douta discussão
sobre a questão dos poderes das bruxas e do voo noturno rumo ao sabá60 , a prática
cotidiana do trabalho inquisitorial foi menos atenta às distinções. Na segunda metade
do século XVI , Francisco Pena repropunha a obra de Bernardo de Como, rejeitando as
opiniões dos que, como Francesco Ponzinibio, negava a realidade da viagem noturna 61 •
E justamente no final do século esse paradigma e suas razões eram repropostos na Ale-
manha por Peter Binsfeld em um tratado que obteve, não obstante sua dimensão, um

58. "Libertatem novam accepit diabolus quam nunquam antea accepisse legimus ... Neque ista sunt parvipendenda,
cum in diocesi Comensi provinciae Lombardiae ducatus Mediolani, anno Dommi MDXIII plusquam sexaginta
ex talibus maledictis hominibus sint ignibus crema ti ... " (I. Isolani, De lmperio Militantis Ecclesiae Libri Quattuor,
apud G. Ponticum, Mediolani, 1517, c. b !Vr). Do arquivo da Inquisição de Como não se têm notícias.
59. Escamilla-Colin, Crimes et chatíments, op. cit. , II, p. 6.
60. Sobre os teólogos, juristas (Alciato em particular) e humanistas que interferiram no assunto, há muitos estu-
dos. Momentos dessa discussão constituem o tema central do trabalho (inédito) de Maurizio Bertolotti, La
"Quaestio de Strigibus" di Bartolomeo Spina e il Dibattito sulla Stregoneria in ltalia nel Primo '500, Tese de Graduação,
Università degli Studi di Firenze, or. L. Perini, a. a. 1975-1976. Mas veja-se também Germana Ernst, "I Poteri
delle Streghe tra Cause Naturali e Interventi Diabolici. Spunti di un Dibattito", em Giomn Battista Della Porta
nell'Europa del suo Tempo, Napoli, 1990, pp. 167-197.
61. "Sed Franciscus Ponzinibius nescio quo spiritu ductus hanc communem sententiam solus (quod ego sciam)
in dubium revocans tractatu de lamiis conatus est defendere eas non ferri corporaliter" (Bernardus Comensis,
Lucerna 11U]uisitorum cum Annotationibus Francisci Pegnae, Additi... duo tractatus loannis Gersoni, unus de protestatione
circa materiam fidei, alter de signis Pertinaciae haereticae pravitatis, Vincentius Accoltus, Romae, 1584, p. 155.
Pena declara ter usado para essa edição o exemplar manuscrito do tratado de Bernardo conservado em Roma
no Santo Ofício).' N:~ vi a ediç~o Venezia, 1596, citada por Ginzburg, J Benandanti, op. cit., p. 17 nota, onde
parecem ter surgido incertezas de Pena a esse propósito.

A C o nfissão
395

62
notável sucesso : eram razões fundamentadas nas confissões das bruxas, lidas através
de urna grande quantidade de teologia escolástica e urna visão sombria do acelerar-se
da história humana rumo ao fim . A polêmica era dirigida contra a tese (de Johannes
Wier) do caráter ilusório do pacto com o demônio e do voo noturno das bruxas. Para
consolidar suas razões Binsfeld utilizava exatamente os argumentos de Bernardo de
Como, isto é, a concórdia dos depoimentos das acusadas, o pernicioso postulado da
sinceridade infantil, a exatidão das coincidências de lugares , datas e pessoas, a preci-
são das confissões. A ciência demonológica de Bodin conciliava-se, em suas páginas,
com as informações reunidas pelos muitos processos que conduzira: histórias trágicas,
como a de Anna Meisenbein (ou Weisenbein), denunciada pelos filhos , capturada e
processada em 5 de outubro de 1590, submetida a "moderada tortura" e queimada viva
no dia 20 do mesmo mês; ou a de Maria, queimada em 10 de novembro de 1588 63 •
Tanto empenho desse tipo de escrita tornava-se necessário diante do avanço de novas
tendências, céticas em relação ao pacto com o diabo , inclinadas a uma pesquisa mais
atenta de provas independentes das confissões.

A matéria da magia e dos sortilégios desempenhou um papel importante nessas


discussões. Os manuais da ciência jurídica inquisitorial dedicavam-se a isso no quadro
da questão da bruxaria. A longa batalha a propósito da bruxaria pode ser vista, sim-
plificando, corno um conflito entre quem remetia a bruxaria ao quadro das práticas
populares supersticiosas e ilusórias e quem, ao contrário, tentava enquadrar qualquer
prática de medicina popular como heresia formal e crime de apostasia. Quantos escon-
juros para afastar as borrascas e quantas maldições contra as colheitas dos vizinhos,
que pareciam inócuas superstições na literatura agronômica italiana, foram apontados
como malefícios eficazes na literatura inquisitorial: para Peter Binsfeld foi suficiente um
violento granizo ocorrido no dia de São Tiago em 1591, para demonstrar a eficácia do
pacto com o diabo e do complô das bruxas contra as messes estipulado, segundo ele,
na noite dos Quatro Tempos (Quatuor Tempora) 64 . É possível falar até de um conflito
entre os que sustentavam a realidade do pacto com o diabo e os que , ao contrário,
reduziam tudo a sugestões, enganos ou autoenganos. A questão da prova dividia as
duas fileiras . Os que sustentavam a realidade do pacto com o diabo eram obrigados a
admitir a dificuldade de encontrar uma prova eficaz, uma probatio concludens; somente
a confissão da bruxa ou do mago era a prova verdadeira e absoluta desse crime. Nesse
caso, portanto, a confissão cumpria uma dupla função: era, ao mesmo tempo, indis-
pensável devido à natureza herética do crime, que entrava por esse motivo na categoria
do crimen lesae maiestatis - onde a confissão tinha o valor de um reconhecimento ritual

62. Na feira de Frankfurt a obra foi requisitadíssima, conforme relata o autor no prefácio à terceira edição: cf.
Tractatus de Confessionibus Maleficorum et Sagarum ... An et quanta Fides iis Adhibenda Sit?, auctore Petro Binsfeldio
suffraganeo Trevirensi, Ooctore Theologo, Augustae Trevirorum, ex officina typographica Henrici Bock, 1595.
Mas a dedicatória é datada de 1° de setembro de 1596 (a primeira edição, em alemão, tinha saído em 1590).
63. Idem, pp. 36-70.
64. Idem, pp. 614-615.

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


396

do poder que se admitia ter traído 65 • Mas era também a prova fundamental de que
o crime ocorrera, a única condição graças à qual as suspeitas e os indícios podiam se
tornar certeza. Mas como obter essa prova? As confissões espontâneas de que falava
Binsfeld eram, na realidade, resultado do emprego da tortura, ainda que "moderada".
Na falta de confissões espontâneas, partia-se das acusações e dos indícios e tentava-se
obtê-las em número adequado para poder chegar à captura do réu. Pregos, invólucros
de peles, gordura e outras coisas do gênero, encontradas em casa de acusadas ou, como
contava Binsfeld, nas vísceras de um homem morto, bastavam para provar o malefício.
Nessa altura, com inspeções e perquirições, procedia-se à coleta ulterior de indícios,
até atingir o objetivo real, o da tortura do "réu".
A tese de um caráter herético e de uma apostasia verdadeira e absoluta presentes
nas crenças e nas práticas de bruxaria acabou atraindo também o mundo dos sortilégios
e das "superstições" para a órbita da inquisição. Essa tendência de ampliar a interferência
inquisitorial atingiu seu ponto mais alto com o papa-inquisidor Sixto V, que combateu
pessoalmente na guerra contra adivinhos e astrólogos. É conhecida sua intervenção
contra a astrologia judiciária, com o decreto Coeli et terrae Creator de 5 de janeiro de
1586. Mas nessa época a ação inquisitorial já se estendera sobre todo o vasto conjunto
das "superstições" , assumindo as características que devia conservar durante toda a
idade moderna: não tanto caça implacável contra específicas formações doutrinárias
("heresias") quanto campanha de conhecimento e de intimidação. Por isso, a definição
dos poderes da Inquisição na constituição Immensa Aeterni Dei (22 de janeiro de 1587)
representou mais a consagração de um avanço já ocorrido no terreno da magia e dos
feitiços do que a abertura de novas frentes. Nesse documento, Sixto V confirmou todos
os privilégios de que a congregação fora dotada, reconheceu e consolidou a tradição
segundo a qual o próprio papa devia presidir suas reuniões e também definiu em um
leque mais amplo e preciso as matérias de competência da Inquisição: heresia manifesta,
cisma, apostasia, magia, sortilégios, adivinhações, abusos de sacramentos e qualquer
outra matéria que permitisse a suspeita, mesmo remota, de heresia {"praesumptam
haeresim sapere viderentur"). A expressão praesumpta haeresis sancionava a mudança da
antiga norma que falava de manifesta haeresis 66 • Entretanto, nessa mesma época, quando
homens como Binsfeld condenavam à fogueira sem incertezas, a práxis inquisitorial
tomava, na área italiana, o rumo da cautela e da desconfiança em relação às confissões
das supostas bruxas. O cardeal Giulio Antonio Santoro, em nome do Santo Ofício,
decretou a invalidade dos depoimentos de bruxas confessas contra outras mulheres que
tinham sido vistas indo "junto com elas aos jogos diabólicos" 67 •

65. Cf. Sbriccoli, Crimen Lesae Maiestatis. Il Problema del Reato Politico, op. cit. , pp. 158-162.
66. "[ ...] Tam haeresim manifestam quam scismata, apostasiam a fide, magiam, sortilegia, divinationes, sacramen-
torum abusus et quaecumque alia quae etiam praesumptam haeresim sapere videntur" (const. "Immensa Aetemi
Dei" ; cf. Henner, Beitriige, pp. 308-310).
67. "Todas as confissões feitas por elas - escreveu Santoro, em nome do Santo Ofício - ainda que provem contra
elas próprias, não provam contra Argenta, porém, por serem depoimentos de coisas vistas enquanto iam a esses
jogos diabólicos, podendo em tais jogos terem sido iludidas pelo demônio no intuito de caluniar o próximo";

A Confissão
397

Suposições, suspeitas, incertezas: nesse clima as pastas processuais da Inquisição


continuaram a sedimentar informações (e vítimas). Ao leitor de hoje, contudo, essas
pastas dão a impressão não de uma dura ação repressiva, mas de um amplo levantamento
concluído apenas parcialmente de ações punitivas bem definidas: em um regime d€.
incerteza, procedeu-se a um inventário das práticas e das crenças - mitos e ritos - para
eliminar tudo o que não coincidia com o modelo oficial. E essa incerteza era a premissa
fundamental da ação praticada pela Inquisição: mesmo se o inquisidor não reconhecia
nos materiais recolhidos nenhum traço dos filões mais importantes que lhe eram fami-
liares - a heresia, a apostasia - sua ação atingia a superstição, reduzindo-a ao estado de
fragmento sem sentido, sem um lugar reconhecido na religião oficial: resíduo mais ou
menos maligno, talvez até mesmo inócuo, mas de qualquer modo resíduo (bom para a
pesquisa dos herdeiros futuros do inquisidor, historiadores e antropólogos).
O diálogo entre inquisidor e inquiridos assumia frequentemente a forma de um
exame de noções de escola: é emblemático, a esse respeito, o interrogatório de uma
quiromante, Antonia de Ferrara, ocorrido no tribunal florentino em 1567. Foi-lhe
perguntado "se ela prediz alguém ter nascido sob o planeta Júpiter ou outro, tendo
conhecimento dos signos dos planetas" 68 • Para o inquisidor, tratava-se de examinar as
práticas divinatórias para verificar o uso que se fazia da antiga adivinhação pagã e a
eventual negação do livre-arbítrio humano. E Antonia deu mostras de ter entendido
perfeitamente as regras do jogo, porque se abrigou atrás de sua condição de iletrada,
respondendo "que talvez alguém letrado pudesse ter esse conhecimento". Porém, não
demorou muito para que não só a quiromancia, mas todos as várias partes de um estra-
nho e multifacetado universo mental - o da superstitío - entrassem uma depois da outra
na órbita desse tribunal. Sobre a superstição, a cultura eclesiástica não era desprovida
de categorias definitórias - que se encontram, numa certa medida, com as categorias
herdadas pela análise histórica, sobretudo no que diz respeito à insistência no caráter
residual dos mundos culturais expressos nos ritos e nos mitos "supersticiosos": trate-
-se de remanescências de cultos pré-cristãos ou de formas envelhecidas e proscritas da
própria religião dominante 69 • Todavia, mais do que as definições e os conhecimentos
herdados, teve importância à época o trabalho de coleta e de investigação realizado pelos
inquisidores: durante décadas, afluíram em suas mãos os depoimentos de inúmeras
testemunhas e acusados, como efeito simultâneo de um novo código de ortodoxia e de
uma estrutura em condições de controlar minuciosamente o que passava pela cabeça

carta de Giulio Antonio Santoro, cardeal de Santa Severina, ao vigário de Nápoles, Roma, 5 de fevereiro de
1588, relativa ao caso de Argenta Amorosa (cf. Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit. , pp. 18-19).
68. Cf. do autor de;te volume l.:Inquisizione Fiorentina dopo il Concilio di Trento, op. cit., pp. 120-121.
69. Sobre as subdivisões tradicionais na cultura eclesiástica antiga e medieval a esse respeito cf. Dieter Harmening,
Superstitio. Uberlieferungs - und theoriegeschichtlich Untersuchungen zur kirklich-theologischen Aberglaubensliteratur
eles Mittelalters, Berlin, 1979. Para os historiadores, que devem sempre utilizá-las, é importante lembrar que
as categorias da hierarquia eclesiástica - do "proposto", do "prescrito", do "tolerado", do "proscrito" - são
historicamente mutáveis (Cf. Ginzburg, "Premessa Giustificativa", Quademi Storici, n. 41, maio-ago. 1981,
pp. 393-397; em part. p. 396).

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


398

das pessoas. É difícil precisar quando esse trabalho teve início; na realidade, a coleta de
informações sobre mitos e ritos era antiga na história da defesa eclesiástica da fé : mas ,
na tradição inquisitorial, tinha se tornado uma função secundária da caçada a adver-
sários determinados - hereges e bruxas. Como todo pesquisador, o juiz da Inquisição
seguia as pistas de hipóteses bem definidas e acolhia ou descartava de acordo com sua
pertinência ao desenho do crime. Consequentemente, os comportamentos sociais eram
focalizados no decorrer de sua pesquisa só pelas ligações que propiciavam a aspectos
bem determinados de crime: para a bruxaria, o emergir do sabá como formação cultu-
ral, por volta de meados do século XV, exerceu um efeito libertador sobre a atividade
repressiva desenvolvida pelos inquisidores e também serviu para encaminhar para esse
paradigma todo fragmento suspeito de mito e de rito que apresentasse qualquer ponto
de sustentação. Ora, percorrendo as documentações de qualquer fundo inquisitorial
pós-tridentino, uma observação remete à quantidade e à qualidade das informações
recolhidas: o universo da "superstição" vem à tona a partir da reunião de inúmeros
fragmentos , alguns recolhidos imediatamente, outros deixados de lado para serem even-
tualmente retomados anos mais tarde, quando se vislumbra sua função num desenho
mais amplo. Mas permanece o fato da coleta, que foi vasta e profunda na medida em que
era vasta a fratura que se abrira entre o cristianismo purificado, reelaborado ou, como
quer que se diga, "reformado" e tudo o que se lhe opunha nas práticas sociais correntes.
O inquisidor não era o único a desenvolver esse trabalho: junto com o seu, outros
tribunais, eclesiásticos e laicos, acumularam em seus arquivos processuais informações
do mesmo tipo. As orações a São Daniel e a Santa Marta, para atrair o amor de alguém
ou o retorno da pessoa amada, podiam conduzir não só ao inquisidor mas também ao
tribunal laico quem as ensinava. Se Maddalena de Ferrara foi denunciada ao inquisidor
de Módena em 1552 por esse motivo, poucos anos depois, em Roma, a cortesã Lucrezia
foi conduzida ao tribunal do Governador sob a acusação de ter recitado a oração de São
Daniel7°. E os bispos, reproduzindo instruções estereotipadas da Inquisição, podiam
enriquecê-las com a descrição de esconjuros e ditos populares de suas dioceses.
Os documentos reunidos nos processos foram até agora examinados apenas su-
perficialmente por uma pesquisa dominada durante muito tempo pelos modos e pelo
gosto da descrição curiosa da cor e do folclore local; só mais recentemente foram feitas
investigações baseadas na comparação sistemática dos materiais 71 • Visto que aqui não
tratamos disso, valerá a pena considerar o modo como os inquisidores refletiam sobre
os materiais coletados. Os resultados desse trabalho, que tem muitas analogias com a
pesquisa histórica e antropológica, encontram-se nos conhecimentos depositados nos

70. O caso de Lucrezia é objeto de um processo publicado (em tradução inglesa) por T. V. e E. Cohen, Words and
Deeds in Renaissance Rome, op. cit., pp. 189-199; para o de Maddalena de Ferrara (conservado em ASM, Inqui-
sizione, b. 3, f. 3) cf. Mary O'Neal, Discerning Superstition:Popular Errors and Orthodox Response in Late Sixteenth
Century ltaly, Tese de Doutorado, Stanford University, 1982, p. 130.
71. Cf. Ginzburg, I Benandanti e Storia Notturna, op. cit.; M. Bertolotti, Camevale di Massa 1950, Torino, 1991. Já 0
caminho da investigação sistemática em um único arquivo - no caso, o fundo modenense da Inquisição - foi
seguido por O'Neal, Discerning Superstition, op. cit.

A Confissão
399

manuais, nos éditos e nos vários tipos de instruções circulantes no mundo da Inquisição.
É uma literatura que, por ser tão vasta e dispersa, demandaria uma pesquisa autônoma:
os levantamentps existentes limitaram-se por enquanto a uma lista de títulos , aos quais
não corresponde a não ser esporadicamente uma investigação analítica 72 . Por outro lado,
embora se apresentando em uma aura sem tempo como instrumentos da eterna luta
entre verdade e erro, esses textos permanecem fortemente ligados à sua época. Assim,
para dar um exemplo, a questão da bruxaria é dominante nos manuais do século XV e
do início do XVI , ao passo que a questão da heresia é posta nitidamente em evidência
nas obras que surgiram na época da Reforma: a essa fase corresponde o trabalho edi-
torial que os novos inquisidores realizaram com base nos textos antigos - Pena no de
Eymeric 73 , Campeggi no de Zanchino Ugolini - e o trabalho de gabinete dos especia-
listas em direito com base nas fontes medievais. Como os historiadores modernos que
tentam se orientar na floresta das fontes er:n busca de uma pista dos procedimentos,
os jurisconsultos do século XVI aventuraram-se entre as fontes medievais por incum-
bência das autoridades eclesiásticas 74 • Nessa fase ocorreu ainda a proliferação de uma
literatura teológica complementar sobre a necessidade de punir os hereges e sobre o
melhor modo de reconhecê-los. E reconhecê-los significava identificar sua genealogia,
com base no princípio de que a verdadeira refutação da heresia consistia em reconduzi-
-la à sua origem 75 • Mas, a par da lição dos antigos , foi a experiência que alimentou o
crescimento da jurisprudência inquisitorial. As instruções e as ordens emanadas pela
congregação romana seguiam o perfil concreto dos negócios tratados localmente: e
das cartas da congregação romana os inquisidores o resultado de verdadeiros manuais
sistemáticos 76 • Os manuais reuniram, portanto, normas antigas e recentes, informações
de cima e experiências processuais concretas.

72. Cf. E. Van der Vekené, Bibliotheca Bibliographica Historiae Sanctae Inquisitionis, Vaduz, 1982-1983. Mas para uma
autêntica introdução às fontes veja-se principalmente as densas páginas de Tedeschi, The Prosecution of Heresy ,
op. cit. , cap. III ("Inquisitorial Sources and their Uses").
73. Cf. Edward M. Peters, "Editing Inquisitors' Manuais in the Sixteenth Century: Francisco Pena and the Direc-
torium lnquisitarnm ofNicholas Eymeric", Library Chronicle, XL, 1974, pp. 95-107 e A. Borromeo, "A Proposito
dei Directorium lnquisitarnm di Nicolas Eymeric e delle sue Edizioni Cinquecentesche", Critica Storica, XX, 1983,
pp. 499-547.
74. Por encomenda do Santo Ofício, Pena publicou em 1579 uma colleção de Litterae Apostolicae em matéria
de heresia recolhidas dos registros papais da época de Inocêncio III em diante (cf. Borromeo, "A Proposito
dei Directorium ]nquisitarnm", op. cit.). Em janeiro de 1582, Pena recebeu ainda o encargo do Santo Ofício de
compor um índice e um sumário dos documentos sobre a Inquisição a partir do registro das cartas do papa
Gregório XI, na Biblioteca Vaticana (o resultado pode ser lido no ms Branc. 1 B7 da Biblioteca Nazionale di
Napoli, cc. 75r-84r). Sobre a obra de Pena, Patrícia H. Jobe está realizando uma pesquisa geral.
75. "Haereses suam ad originem revocasse, refutasse est": esta epígrafe, tirada de San Girolamo, pode ser lida na
abertura do De Vitis, Sectis, et Dogmatibus omnium Haereticarnm, qui ab orbe condito, ad nostra usque tempora, et
veterum et recentium authorum monimentis proditi sunt, elenchus alphabeticus, por Gabrielem Prateolum Marcossium,
Coloniae, apud Gervínum Calenium et haeredes J. Quente!, 1581.
76. Guido Dall'Olio (I Rapporti tra la Congregazione dei Sant'Ufficio e gli lnquisitori Locali nei Carteggi Bolognesi, op.
cit. , pp. 261-262) registrou O caso de um manual elaborado para a atuação da Inquisição de Bolonha a partir
de uma compilação sistemática das cartas da congregação romana do Santo Ofício.

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


400

Por muito tempo , durante a segunda metade do século XVI , a linguagem dessas
fontes fala ainda quase que exclusivamente de heresia. Para dar só um exemplo, o édito
geral publicado pelo inquisidor milanês frei Giovan Battista Borgo em 1582 tem como
alvo exclusivo combater a heresia, à qual se refere em termos tradicionais: proibição de
crer de modo diferente da Igreja romana em matéria de sacramentos e outras coisas,
proibição de alinhar-se com os hereges nas "controvérsias que há hoje em dia entre
católicos e hereges" , proibição de ter Bíblias vulgares de qualquer tipo ou outros livros
em língua vernácula sobre doutrinas controversas; e no entanto, ainda que mantenha
na ordem do dia a grande batalha sobre a verdade da fé , o édito é redigido no tom pa-
ternal e sereno de quem se prepara para receber a rendição de um inimigo derrotado 77 •
Mas nessa época outras vozes já se tinham feito ouvir na literatura dos manuais. Na
segunda metade do século, os manuais inquisitoriais assumiram cada vez mais o caráter
de descrição de práticas concretas e começaram a oferecer repertórios de "superstições"
redigidos com bastante precisão e conformidade em relação à realidade. Umberto Locati,
inquisidor em Piacenza, em seu ]udiciale Inquisitorum , não se limitou a sustentar em geral
a pertinência das práticas supersticiosas a seu tribunal, mas descreveu-lhes atentamente
rituais e fórmulas : por exemplo, era para ele "manifestamente herética" a divinatio que
se praticava para saber os segredos ou para descobrir quem tinha roubado algo - e essa
divinatio era realizada com uma vela benta, água benta e com um menino ou menina
virgem que olhava em um recipiente de água e rezava a oração "Anjo branco, Anjo
santo, pela tua santidade e pela minha virgindade" 78 • A experiência tinha mostrado a
Locati que havia outras fontes de erro, mais próximas e mais insidiosas que a propagan-
da herética. Não bastava processar os luteranos ou censurar a expressão sola [ides nos
escritos publicados 79: o demônio podia assumir a forma de uma inesperada devoção

) coletiva suscitada por uma visionária que afirmava ter falado com Nossa Senhora. E o
inquisidor citou em seu manual parte dos autos do processo com que, em dias que se
imaginam bem difíceis para ele, tinha não só dominado o fluxo tumultuoso da devoção
coletiva, incluindo aí as forças do clero secular e do poder político, como bloqueado
e impedido a construção de um santuário 80• Portanto, a presença do erro podia advir
de dentro do povo cristão, não ter origem apenas na infecção herética proveniente dos

77. Cópia do édito, publicado em Milão por P. Gottardo Pontio em 1582, está conservada em ASM, S. Ufficio ,
6. 270.
78. "Nota quod divinatio ad inveniendum furta, vel ad sciendum aliqua secreta, quae fit cum candeia benedicta
et aqua similiter benedicta, ac puero vel puella in phiala aspiciente et dicente haec vel similia verba, videlicet" ,
"Anjo branco, anjo santo, pela tua santidade e pela minha virgindade etc.", sapit haeresim manifeste" (Umberto
Locati, Opus quod ludiciale lnquisitornm Dicitur... , Romae, 1570, p. 85. A passagem é citada também por Tedeschi,
The Prosecution of Heresy, op. cit., p. 250 nota).
79. Talvez colando em cima de um texto diferente, como se pode ver na obra do bolonhês Tiresio Foscarari, Con-
versio Divi Pauli, s. 1. n. a. (cópia da Biblioteca Universitaria di Bologna, A. y tab. 1. H . I. 36) onde O original
que dizia: "Sola fides opera et quae sunt venera ta tonantem / Haec pote sunt nostros habiles efferre labores" ,
teve as duas primeiras palavras substituídas por "Ipsa fides" (c. A Ilr).
80. Ver cap. VIII, p. 232, nota 23.

A Co nfissão
401

países da Reforma. Outras experiências do gênero revelam-se por trás da exatidão dessa
transcrição do esconjuro ao Anjo.
A transformação completou-se no final do século XVI: a partir das visitas apos-
tólicas iniciadas por Gregório Xlll , ficara claro que os responsáveis pela ação contra
qualquer forma anômala de religião não eram os bispos, mas as autoridades inquisitoriais
delegadas por Roma. Há uma espécie de recapitulação conclusiva sobre essa matéria na
série de manuais e de instruções para vigários da Inquisição, redigidos em base local,
que já foram lembrados. São textos que aparecem como a redefinição de limites após
uma mudança nas relações de força . Era preciso, portanto, fornecer a esses vigários
uma definição precisa das matérias de sua competência, para colocá-los em condições
de resolver as controvérsias que podiam se apresentar com os vigários forâneos dos
bispos. Na Breve lnformatione modenense, quando se fala em magos, bruxas, encantado-
res , a descrição pura e simples é introduzida por explicações elaboradas, que parecem
responder ao porquê de certas matérias insólitas comparecerem entre as competências
inquisitoriais. No que se refere à categoria de magos e bruxas, um preâmbulo adverte:
"Por semelhantes espécies de pessoas abundarem em muitos lugares da Itália, e mesmo
fora dela, mais convém ser diligente; e por isso deve-se saber que esse artigo comporta
todos aqueles que fizeram pacto com o diabo, implícita ou explicitamente, para si ou
para outros" 81 • O pacto implícito com o diabo é uma acusação que permite reunir nessa
categoria uma vasta e dispersa série de práticas: não só a oração "Anjo branco, anjo
santo" incriminada no manual de Locati, mas também as orações "de São Daniel, de
Santa Marta e de Santa Helena" feitas para atrair o amor; e ainda quem traz consigo
breves e escritos protetores de tipo mágico, e até mesmo os que "olham, ou fazem com
que olhem as mãos para saber coisas futuras ou passadas". Portanto, não mais só as
quiromantes como Antonia de Ferrara, mas também seus clientes estavam expostos
finalmente à caça inquisitorial.
Esse era o esquema operacional dos inquisidores no início do século XVII. E sua
validade era geral, como demonstra o fato de o texto ter sido reproduzido literalmente
no manual mais amplamente utilizado nessa época: o Sacro Arsenale de frei Eliseo Masini,
que o atualizou apenas no que dizia respeito à categoria dos "suspeitos de heresia" 82 •
Por volta do final do século XVII, em suas Regale del Tribunale del Sant'Officio,
Tommaso Menghini tinha diante de si uma situação ainda mais clara: blasfêmias, sor-
tilégios e remédios "supersticiosos" ocupam praticamente todo o horizonte da Inquisi-
ção. Totalmente desaparecida a heresia culta ou teologicamente prevista, em seu lugar
colocam-se práticas cuja natureza herética não se distingue mais com muita sutileza;
na prática, toda blasfêmia, assim como toda reza "supersticiosa" são de competência
do Santo Ofício e basta. Trata-se apenas de lembrar aos vigários que "por suspeitos de

81. Breve lnformatione del Modo di Trattare le Cause de! S. Officio, op. cit., P· 11.
• lum
82 . On d e me • cnmes
• qu e estavam aparecendo na práxis corrente, como a poligamia, o abuso dos sacramentos,
o ce leb rar missa sem ser padre e ass,·m por diante·' cf. Sacro Arsenale, Overo Prattica dell'Officio della Santa Inqui-
.
sitione, 1. ed., Gênova, 1621 (sobre as várias edições, cf. Van der Vekené, Bibliotheca Bibliographica, op. cit.).

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição»


402

heresia entendem-se os que blasfemam de modo herético, dizendo: 'contra a vontade


de Deus, puta etc."' e os que "curam a erisipela, o mal dos olhos, ou outros males com
cruzes e sinais encantados" . Seu livrinho oferece modelos de verbalização elaborados
sobre as matérias mais frequentes ; ao oferecer um modelo de verbalização para a spontanea
comparitio ou autoacusação - o modelo que prevalece na prática cotidiana do tribunal,
como veremos - Menghini escolhe um caso de sortilégio e tece o seguinte comentário:

Foi posto o primeiro fato de sortilégio, porque esses casos pestilenciais se estenderam, com
tal frequência e com a ruína de tantas almas , por todo o Cristianismo que ... os juízes da Santa Fé ...
lidam continuamente com eles 83 •

E interessava tanto, afinal, essa matéria aos inquisidores que o opúsculo oferecia
até mesmo uma "Nota sobre algumas pequenas obras e histórias proibidas", onde se en-
contravam listadas em uma tentativa de levantamento "Histórias", "Lendas", "Orações"
e rezas "supersticiosas", tornadas quase as únicas encarnações da imprensa "herética",
junto a comédias, livros de sonhos, livros de cartas de amor. Eram materiais selecionados
a partir da riquíssima série de éditos que os inquisidores tiveram de publicar em matéria
de livros e escritos de publicação proibida, assinalados pela Congregação do Índex. Mas
deve-se ressaltar o fato de que de toda essa série considerou-se necessário recapitular so-
mente uma literatura que tinha como destinatário e, às vezes, como comitentes, as classes
populares: escritos de poucas páginas, em caracteres grandes, baratos, de conteúdo entre
o maravilhoso sagrado e o profano, por vezes ligados a formas de devoção que tinham
se originado em confrarias e oratórios 84 • Trata-se de um atento controle da cultura das
classes populares, em suas formas cotidianas e, sobretudo, em sua escolha das expressões
devotas. Dos antagonistas que um século antes dominavam o horizonte inquisitorial -
Lutero, Calvino, Zwingli, Butzer e todos os seus continuadores, cujos escritos a própria
Congregação do Índex tanto perseguira - não se considerou necessário lembrar.
A literatura inquisitorial do século XVII oferece contínuas confirmações dessa
nova hierarquia das matérias: o crescimento da "superstição" parece desenfreado; o
levantamento das práticas de tipo mágico empenha a atenção desse tribunal e de seus
especialistas. Por isso, também, a literatura inquisitorial privilegia o título Prattica. Não
havia necessidade de elucubrações teológicas de alto nível - como aquelas reunidas
nas Controversiae de Bellarmino - mas de um paciente trabalho de bricolage entre os
passatempos de mulheres, camponeses, frequentadores de mercados e de feiras. Aberta
ao acaso uma Prattica, podem ser lidas descrições como esta:

83. Regale del Tribunale del Sant'Officio, op. cit., p. 82.


84- Veja-se, por exemplo, a proibição da devoção chamada "Stellario, na qual se rezam doze Ave-Marias, divididas
em três partes • acrescentando um Padre-nosso para ca d a uma, com alguns versos espec1a1s,
· · antífonas e oraçoes,
-
co~ ~ertas regr~s pre~critas"; junto com a reza é proibida a elaboração de companhias e de oratórios (édito de
frei P1etro Mart1re R1cciardi, inquisidor de Mântua, promulgado em 23 de junho de 1640 e conservado em
ASM, Inquisizione, b. 270).

A Confissão
\
403

Para atrair homens para suas casas [... ] dão nós em fitas enquanto estão na missa, centenas de
nós, e ao fazê-los dizem palavras desconhecidas ou conhecidas, mas lascivas [... ] Abusam de água e de
velas bentas, rezando a oração de São Daniel, de Santa Helena e outras parecidas que tais chamam, em
que invocam os santos para conseguirem seus intentos [... ] Fazem o sortilégio da jarra usando menino
ou donzela virgem , ou mulher grávida, e fazendo com que digam: Anjo santo, Anjo branco, por tua
santidade, por minha pureza [... ]85

Matéria popular, de mulheres superst1c10sas e de frades intrigantes: a única


coisa a fazer era tratar com indulgência os culpados, destruir os textos supersticiosos
e substituí-los por outros 86 • Era exatamente a mesma estratégia que fora usada com
as religiões pré-cristãs do México; aqui também, o imponente trabalho etnográfico
elaborado por frei Bernardino de Sahagún e por outros missionários europeus fora
condenado à destruição por Felipe II , porque a eliminação da memória aparecera
como o único caminho para obter a conquista religiosa 87 • Evidentemente, mesmo na
relação com as "superstições" em terra cristã, tinha se imposto um modo de raciocinar
em termos de conquista religiosa, diferente daquele do áspero confronto doutrinário e
da intransigência anticlerical que fora seguido pelos primeiros simpatizantes do Santo
Ofício. A mudança de estratégia, portanto, aparece ligada à instauração de uma relação
de tipo "colonial" - ou, se quisermos, de tipo "missionário" - entre inquisidores e povo
"supersticioso" a ser cristianizado.

85. Prattica di Procedere nelle Cause dei S. Officio, ms in Biblioteca Comunale di Forlí, fundo Piancastelli, ms VIII/81.
Cf. A. Turchini, "Acculturazione Religiosa e Pastorale", em Storia di Forlí, III, I.:Età Moderna, Bologna, 1991,
pp. 105-127, que remete à tese de P. Raggi, Processi di Magia a Forlí fra '500 e '600, Tese de Graduação, Università
degli Studi di Bologna, a. a. 1974-1975 (que não pude consultar).
86. O dever do inquisidor de queimar os "livros supersticiosos" é declarado no decreto do Santo Ofício de 25 julho
de 1590 (Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit., p. 47). Quanto às práticas substitutivas, elas abarcam um campo
muito vasto, limitando-se quase sempre a cristianizar superficialmente o que era proibido. No mundo católico
europeu, por exemplo, a astrologia condenada, com poucas modificações, é substituída por uma "astrologia
cristianizada (cf. E. Casali, "Noceto Nocente" e "ll Ligure Risvegliato", Studi Secenteschi , 34, 1993, pp. 287-329;
v. part. p. 322).
87. Veja-se a respeito T. Todorov, La Conquista dell'America, Torino, 1982, p. 290; G. Baudot, Utopia e Storia in
Messico. l Primi Cronisti dela Ci"iltà Messicana (1520-1569), Milano, 1992, pp. 426 e ss. Filippo II "chegava a
esconder dos membros do Conselho das Índias a última localização que escolhera" para os livros que tratavam
das religiões pré-cristãs na América (idem, P· 429).

Crer em Bruxas: Bispos e Inquisidores diante da "Superstição"


XVIII
PEDAGOGIA INQUISITORIAL

avanço da Inquisição no terreno das "superstições" não foi desprovido de incertezas

º e não representou a vitória de uma tendência persecutória: o paradigma do ataque


demoníaco, que inspirava a literatura inquisitorial no início do século XVI , no final do
século já parece distante. Não faltaram nem mesmo resistências a esse avanço - de fora
do mundo inquisitorial, mas também de dentro. De fora opuseram,se todos aqueles
que tinham razões de jurisdição a salvaguardar: Paolo Bisanti, vigário do Patriarca de
Aquileia, declarava em 1582 que "o inquisidor não deve se imiscuir in superstitionibus,
que manifestamente non sapiunt haeresim" 1• De dentro, era a quantidade dos procedi,
mentos a serem seguidos que suscitava perplexidade e tentativas de diminuição: um
vigário toscano pediu que lhe fosse indicada de uma vez por todas "que penitência
devo ministrar" para não ter de escrever a cada caso de jaculatória ou de breve supers,
ticioso 2; mas nessa época (estamos em 1623) a crítica da própria noção de heresia por
bruxaria tinha aberto uma brecha que permitiu recolocar em liberdade blasfêmias e
superstições, fora da construção teológica da heresia e do pacto (implícito ou explícito)
com o diabo. O retorno à práxis antiga, de atribuir ao tribunal da Inquisição apenas os
casos com manifesto teor de heresia, foi o resultado formal - não substancial - dessa
mudança. Em 1602, uma carta de Paolo Borghese em nome da congregação do Santo
Ofício ordenou que essa regra fosse respeitada pelo vigário da Inquisição bolonhesa,
que contestara no tribunal arquiepiscopal o direito de tratar "as causas das superstições,
dos encantamentos e bruxarias": talvez fosse, como foi notado, um primeiro passo na
direção "daquela postura cética e 'racionalista' que devia se impor nos ambientes da
congregação romana do Santo Ofício" 3 • Ou talvez se tratasse apenas de aliviar a pressão
de uma transbordante casuística sobre as estruturas judiciárias da Inquisição. De fato ,
as coisas continuaram a andar como sempre, com a maior parte das causas de encan,
tamentos e feitiços confiadas ainda à Inquisição. Os documentos restantes dos muitos

1. Carta de 2 de dezembro, já citada por A. Battistella, II Sant'Officio e la Riforma Religiosa in Friuli, Udine, 1895,
pp. 41-42; publicada por F. Salimbeni, em Le Lettere di Paolo Bisanti Vicario Generale do Patriarca di Aquileia
(1577-1587), Roma, 1977, p. 349.
2. Carta de Francesco Montichiari ao inquisidor de Florença, Fivizzano, 5 mar. 1623 (publicada pelo autor deste
volume em Vicari del!'lnquisizione Fiorentina, op. cit. , PP· 303-304).
3. Ginzburg, I Benandanti, op. cit. , p. 17 nota.
406

que então foram acumulados nos arquivos dos tribunais inquisitoriais reúnem traços
de alarmes contínuos a respeito dessas matérias e oferecem-nos a percepção do quanto
eram intrincadas. No final do século XVI, as cartas do Santo Ofício ao inquisidor de
Florença narram histórias de caçadores de tesouros , de encantadores de tempestades, de
um grupo de "sectários diabólicos" de Montepulciano, "que se entregavam ao demônio
e subscreviam-se em um papel com o próprio sangue" 4; a busca da fortuna e do amor, a
vontade de dominar as forças da natureza davam forma a uma impressionante variedade
de práticas, que o Santo Ofício unificava em sua jurisdição, mas às quais já tinha desis-
tido de dar uma forma única 5• E à obra de vigilância dessas matérias acrescentava-se a
necessidade de enfrentar as solicitações de justiça que afluíam de muitas partes contra
bruxas e magos: documentos quase sempre comoventes, como o da mãe enlutada com
a morte de um filho que buscava vingança contra a suposta responsável pelo malefício
e, diante da inércia do tribunal local, apelava diretamente ao Santo Ofício 6• Mas era
sobretudo a dimensão cotidiana e ordinária do recurso aos esconjuros e aos malefícios
que levava a formas de intervenção cautas e ponderadas, de tipo pedagógico.
Houve, em primeiro lugar, uma pedagogia negativa, destinada a evitar o contágio
herético, que consistia em ocultar as informações consideradas perigosas ao povo cristão:
tratava-se basicamente, como se lê em uma instrução do Santo Ofício, de "não referir
os modos de sortilégio e magia" que tinham vindo à tona durante o processo no texto
da sentença que devia ser lido em público, "para que aqueles que estiverem presentes
na abjuração não tenham ocasião de aprendê-los" 7•
Se as intenções eram de tipo educativo, deve-se dizer que certamente a obra
educativa ocorreu: mas, como sempre acontece aos bem intencionados pedagogos, não
ocorreu na direção conscientemente perseguida, ou pelo menos não só nela. Houve
também uma difusa pedagogia involuntária em direção das regras e das formas do mundo
demoníaco e subterrâneo que se pretendia combater. Sermões, éditos e sobretudo a dura
pedagogia processual dos interrogatórios e da tortura disseminaram o conhecimento do
sabá e do pacto com o diabo. A máquina azeitada com a colaboração de pregadores e
confessores deu resultados em larga escala: podemos considerar exemplar o aviamento
dessa spontanea comparitio de certa Bartolomea di Antonio de Pistoia, oferecida diante
do inquisidor de Pisa frei Giovanni Lusitano em 20 de abril de 1582: "Tendo estado
dias antes em Santa Maria quando vós pregastes e entendido quão grande é o pecado de
fazer ou mandar fazer feitiços, encantamentos e sortilégios com a jarra, e a grande pena

4. Archives Generales du Royaume, Bruxelles, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, r, c. 18ro (carta do cardeal de Santa
Severina de 30 set. 1588) e passim.
5- As já lembradas pesquisas de M. Milani sobre o mundo vêneto, devem-se acrescentar os muitos trabalhos sobre a
Itália meridional, , de Pasquale
. o.• nella Napoli del v·1ceregno, Napo 1·1, 1984, a J. saII mann,
Lopez, Clero, Eresia e Mama
Chercheurs de tresors et Jeteuses de sorts. La quête du sumaturel à Naples au XVI siecle, Paris, 1986.
6. Archiv~s Generales du Royaume, Bruxelles, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, I, c. 37r: carta s.d. em cópia de
Antonta de Bernardo ao Santo Ofício .
. 7.
IHnstruções ~o ca rd eal Pompeo Arrigoni ao inquisidor de Bolonha, 18 fev. 1612 (cf. Tedeschi The Prosecution of
eresy, op. c1t., pp. 229-230 e 244). '

A Confissão
407

que cabe àqueles que sabem e não revelam, que são excomungados, vos digo [... ]" 8 • Os
sermões do inquisidor eram um momento de informação para o povo que também era
convocado a escutá-lo por meio de éditos apropriados. E aprendia-se muito com esses
sermões; como explicaram os anciães da comunidade de Triora em 1580 , no comeco '
da campanha antibruxaria quem tinha informado sobre as regras do jogo e sugerido as
respostas às suas futuras vítimas fora o próprio inquisidor:

O vigário da santa Inquisição desde o princípio pregou em púlpito público deste local para
a audiência de todo o povo o que podiam fazer semelhantes bruxas, e nos graves tormentos podia-se
duvidar que dissessem o que ouviram pregar sobre aquilo que eram suspeitas de ter feito 9•

Portanto, se o inquisidor aprendia com os processos, os processados aprendiam


com ele.
Mas um verdadeiro problema de educação - pedagógico no sentido positivo, de
aculturação - colocou-se a partir do amadurecimento nos níveis centrais da máquina
inquisitorial de um núcleo de convicções precisas em matéria de sortilégios e malefí-
cios. Foi aqui que ocorreu uma verdadeira mudança do paradigma de bruxaria, cujas
fases ainda permanecem parcialmente misteriosas. O ponto de chegada da mudança é
comumente reconhecido na Instructio pro Formandis Processibus in Causis Strigum, Sortile-
giorum et Maleficiorum; um documento que começou a circular, pelo que sabemos, nas
sedes italianas da Inquisição romana por volta de 1620, primeiro em forma manuscrita
e depois impressa (numa versão italiana abreviada em. 1625 , no Sacro Arsenale de Ma-
sini, em edições latinas a partir da metade do século). Esse regulamento surgiu, como
demonstrou John Tedeschi em seus estudos, como resposta do Santo Ofício romano à
verdadeira avalanche de denúncias contra bruxas em várias partes da Itália 10 • É um texto
caracterizado por um forte ceticismo em relação à tese que fazia das bruxas verdadeiras
representantes do demônio na terra; e sobretudo, é um texto de caráter normativo e
jurídico, não teológico. No que tange às especulações de tipo teológico que, do Malleus
Maleficarum em diante, tinham dominado neste campo, a Instructio desceu ao terreno
das normas procedimentais: exame do corpus delicti, avaliação das provas, recusa a aceitar

8. MP, [fU/uisizione, f. I, c. 406. A denúncia de Bartolomea levou ao processo contra Lucrezia de Peloso, acusada
de "fazer feitico com a jarra". O caso foi assinalado e estudado por Romano Canosa, Storia dell'lnquisizione,
IV, "Milano e Firenze", Roma, 1988, pp. 157-210 e por Giovanni Romeo (Inquisitori, Esorcisti e Stregue, op. cit.,
pp. 169-180), que vê justamente na surpresa e na indignação da investigada o indício da "reviravolta silenciosa,
mas de alcance incalculável" nos procedimentos inquisitoriais.
9. A carta, endereçada ao doge e aos governadores de Gênova, foi publicada por Michele Rosi, Le Streghe di Triora
in Liguria. Processi di Stregoneria e Relati11e Quistioni Giurisdizionali nella Seconda Metà del Secolo XVI, Roma, 1898,
pp. 62-64.
10. Cf. Tedeschi, The Prosecution of Heresy, op. cit., PP· 205 e ss. Sobre a data de redação e de primeira circulação,
foram formuladas diferentes hipóteses, que tendem a retrodatar o documento em relação às primeiras citações
de sua circulacão. De resto, em uma carta do Santo Ofício ao inquisidor de Siena de 3 outubro de 1626, é
mencionada c~mo uma "instrução antiga" (idem, p. 218).

Pedagogia Inquisitorial
408

como válida a designação de co-réu para quem, confessando ter participado do sabá
trazia à baila os nomes de outros culpados. '
A importância do documento não reside todavia em uma vontade de estabelecer
normas objetivas válidas em geral e muito menos em uma postura de piedade para com
os "réus", do gênero daquela que inspirou as obras de caridade para os encarcerados
(e depois tomou forma nas normas para processos e prisões ditadas pelo piedoso bispo
Gian Battista Scanaroli 11 ) . Em tudo prevalece um ceticismo radical que se evidencia
sobretudo, na definição do corpus delicti: deve-se levar em conta que, nessa época, os'
juízes laicos continuavam a considerar pistas evidentes da atuação de bruxaria, inserindo-
-as consequentemente na tipologia do corpus delicti , uma variada tipologia de indícios:
imagens, escritos, sementes, penas ou bolas de gordura nos colchões e nos travesseiros.
Havia quem aconselhasse nada menos que verificar se das camas das crianças vítimas de
malefício erguia-se "uma névoa de ar denso e verde" 12• Não havia, portanto, uma diferen-
ça entre juízes laicos e juízes eclesiásticos, mesmo porque os juízes laicos inspiravam-se a
respeito dessa matéria nas magicae quaestiones de Martin Del Rio, considerando-o "não
só como teólogo e canonista, mas como jurista" 13 • Tudo isso é excluído radicalmente
pelo olhar cético e desconfiado do autor da lnstructio. Onde outros enxergam demônios
e anjos , ele enxerga engano ou, no máximo, autoengano.
O fato singular que atrai a atenção é a insistência nos ambientes monásticos e
conventuais como lugar de origem dos enganos e da simulação de presenças diabólicas.
Dir-se-ia que a protagonista não é mais a bruxa da aldeia, mas a monja: é ela, com sua
incapacidade de suportar clausura e castidade, que cria o cenário da possessão, que se
entrega aos cuidados do exorcista e, frequentemente, que o envolve como cúmplice
consciente em sua rede de simulações. Como se chegara a essa conclusão? Caso fosse
possível um exame sistemático dos autos dos Santos Ofícios e das instruções enviadas
continuamente pela Congregação romana aos comissários locais, poder-se-ia tentar re-
construir melhor a origem desse diagnóstico: mas, por enquanto, deve-se levar em conta
que em Roma as questões de bruxaria e as de malefício apareciam estritamente ligadas
às de possessão demoníaca. Na visão do corpo eclesiástico - que era sempre um corpo
de poderes rigorosamente masculinos - havia uma tendência de suspeitar das mulhe-
res como tais, fracas e por isso mais facilmente enganáveis pelo mestre dos enganos, o
demônio. E justamente com esse argumento, já no final do século XVI, foi estabelecido
que não deviam valer os depoimentos de bruxas confessas contra outras mulheres vis-
tas indo "junto com elas aos jogos diabólicos" 14 . Mas o engano diabólico difundiu-se

11. lo. Baptistae Scanaroli Mutinensis, De Visitatione Carceratorum Libri Tres, Romae, typis Reverendae Camerae
Apostolica, 1655 (cf. em part. lib. II, par. 3).
12. Cf. Antonio Maria Cospi, II Giudice Criminalista, in Fiorenza, tipografia de Zanobi Pignoni, 1643, p. 355 (mas
ver todo o capítulo XLII, "De Corpi de' Delitti ne' Malefizii, o Malefiziati", pp. 354-356; a matéria dos indícios
que o juiz deve reunir encontra-se disseminada em toda a obra).
13. Idem, p. 369.
14. V. cap. XVII, nota 67. O caso em questão era o de Argenta Amorosa, denunciada por lppolita Palomba e Beatrice
Castiglione à Inquisição napolitana. A carta citada, do card. Santoro, é O documento a partir do qual Giovanni

A Confissão
409

principalmente em ambientes monásticos. E quando algum documento permite espiar


a cozinha dessas instruções, a ligação entre bruxas e monjas parece ainda mais evidente.
Entre os papéis de Francisco Pena, o eminente jurisconsulto que dedicou sua ativi-
dade intelectual aos assuntos inquisitoriais, encontra-se cópia de duas cartas enviadas pela
congregação do Santo Ofício aos bispos de Reggio Emília e de Piacenza, respectivamente.
Trata-se ali de dois casos semelhantes: na primeira, a acusação feita a duas monjas do
mosteiro de são Tomás de Reggio Emília de serem "feiticeiras" e de terem, com suas artes
diabólicas, provocado a morte de catorze outras monjas; na segunda, o caso do mosteiro
de San Bernardo onde, após a morte suspeita de três monjas, fora iniciado um procedi-
mento semelhante, com interrogatórios de "muitas monjas, e também três exorcistas, dois
médicos, um cirurgião e barbeiro" 15 • A segunda carta é elaborada a partir do modelo da
primeira; um artifício de redação óbvio em si, desde que se leve em conta a estrutura da
Inquisição romana. Mas justamente a construção de um observatório central em condições
de reunir, comparar, unificar, era a novidade histórica que permitia então fazer esse traba-
lho. De todas as partes da Itália, não só os inquisidores, bem como os bispos, os núncios
e os superiores das ordens - em suma, toda a estrutura eclesiástica - faziam confluir para
Roma materiais e experiênc_ias processuais: ali, esse material era atentamente examinado e
levado às congregações do Santo Ofício para a decisão. Conhecimento e poder uniam-se,
portanto, nesse nível superior da estrutura. Assim, era óbvio que, ao redigir a instrução
para o bispo de Piacenza, fosse levado em conta o que se estabelecera para Reggio e fossem
retomadas, com burocrática fidelidade, as mesmas considerações, com as mesmas palavras.

A Santidade de Nosso Senhor, tendo ouvido o parecer desta sagrada Congregação do Santo
Ofício, ordenou expressar a V. S. que a matéria dos malefícios em si, além de ser falaz, é tão perigosa
quanto nociva, seja na verificação dos malefícios seja na busca de seus autores.

Com palavras quase idênticas, o cardeal Millino escreveu ao bispo de Lodi em


1624, sobre matéria de bruxaria, mandando-lhe a Instructio de Scaglia 16 • Na carta ao
bispo de Reggio, em vez de remeter a lnstructio, eram propostos pontos e temas especí-
ficos: também aqui, fazia-se menção à "experiência" dos processos já concluídos e de
seus resultados negativos ("tendo-se por vezes pretendido seguir adiante com os termos
de razão e de justiça, esbarrou-se em escândalos e inconvenientes sem resultado"). O
processo de Reggio, em particular, era considerado mal executado: "Desagradou por
demais que tenham sido interrogadas sobre diversas coisas das quais não havia indícios,
e de modo sugestivo"; e da interrogação sugestiva passara-se à tortura (" e, antes de con-
fessarem, lhes tenha sido aplicada a tortura"). Com a tortura, chegaram aos nomes de

Romeo desenvolveu uma ampla pesquisa sobre o background da postura "moderada" assumida dali em diante
e cada vez mais claramente pelo Santo Ofício romano em matéria de bruxaria (cf. Romeo, Inquisitori, Esorcisti
e Streghe , op. cit. A carta foi reproduzida por P. Scaramella, em Carteggi dell'Inquisizione Romana con i Tribunali
dei Sant'Ufficio Napoletani, 1567-1625, no prelo).
15. BNN, ms Branc. 1 B 7, cc. 51r-54v.
16. Cf. Tedeschi, The Prosecution of Heresy, op. cit. , PP· 215-216 nota.

Pedagogia Inquisitorial
410

outras monjas vistas no sabá: "além de examinarem monjas consideradas endemoniadas


e outras nomeadas pelas próprias duas supostas rés como tendo sido vistas nos redutos
do Demônio, o que não sói ser considerado em relação aos cúmplices, podendo isso
decorrer de ilusões causadas pelo Demônio pai e autor das mentiras". Diante de uma
situação do gênero, a ordem da Congregação era que fosse suspensa toda atividade
processual e, aliás, que o bispo e quem tinha instaurado o processo junto com ele, se
abstivessem de aparecer no convento por um certo tempo. Sobretudo, "desista-se de
qualquer modo de submetê-las a mais exorcismos" ; o clamor público suscitado por
exorcismos e processos de bruxaria e malefício alimentava a conturbação do convento.
Não havia necessidade de exorcistas, mas de confessores. Mediante a frequência dos
sacramentos e da prece, as monjas deviam encontrar uma saída "para seus dissabores,
tormentos ou outra vexação"; somente assim os conflitos interiores seriam atenuados.
Temos aqui um exemplo da estratégia pedagógica romana e de seus conteúdos. Era
preciso levar o corpo eclesiástico periférico a ver as coisas conforme o modo elaborado
pelas autoridades centrais. Interiorização, persuasão, penitência, deviam substituir o
esplendor dos suplícios e os clamores públicos dos exorcismos.
Numa estrutura centralizada como a do Santo Ofício, a mudança de rota para
o centro foi transmitida certamente aos vários tribunais locais. As correspondências
oficiais da Inquisição trazem nítidos indícios de atividade de informação e controle,
além de ásperas reprimendas aos vigários que não seguiam as regras. Houve portanto
uma mudança que, embora perpassada por resistências, contradições, atrasos, chegou
a modificar profundamente a postura dos tribunais eclesiásticos em matéria.

No entanto, é difícil atribuir a um documento isolado o mérito de ter realizado


sozinho uma mudança de tão grande importância. Enquanto permanece irrefutável a
novidade da práxis de um novo critério de avaliação das provas como é o indicado pela
lnstructio, deve-se lembrar que nem por isso diminuíram a crença no pacto com o diabo
nem o rigor - pelo menos teórico - em relação a quem se considerava ter feito o pacto. O
decreto promulgado em 20 de março de 1623 por Gregório X.V "contra maleficos et sorti-
legos cum Diabolo pactum facientes" estabelecia que os culpados fossem imediatamente
entregues ao braço secular se de seus malefícios decorresse a morte de alguém; se, pelo
contrário, não tinha ocorrido assassínio, então deviam ser condenados à prisão perpétua.
Era uma medida severa só na aparência: de fato , ela afastava completamente do tribunal
laico essa categoria de acusados e previa a entrega deles ao "braço secular" somente no
caso em que do malefício decorresse a morte de alguém - e os peritos da Inquisição, pelo

.
menos desde que as novas regras tinham entrado em circulacão sabiam muito bem o
'
quanto era difícil atribuir a morte de alguém a poderes mágicos. De fato, não parece que
os tribunais inquisitoriais italianos tenham modificado seus comportamentos após esse
decreto: e, de resto, não esperaram o aparecimento da Instructio para seguir u•ma práxis
tendencialmente pouco sanguinária, quando não completamente branda no que se refere
às bruxas. Uma pesquisa sobre a história da Inquisição na segunda metade do século XVI
demonstrou a disseminação de posturas e comportamentos inclinados à compreensão e

A Confissão
411

à brandura em relação a quem caía nas malhas do tribunal pelos crimes de magia e en-
cantamentos 17. Essa postura não dependia tanto do ceticismo ou da atitude racionalista
em matéria de ação diabólica, mas de uma combinação de realismo e de paternalismo.
O realismo aparece continuamente na avaliação dos moventes concretos que
levavam homens e mulheres a fazerem uso da magia. O núncio em Veneza Alberto
Bolognetti, ao concluir sua malfadada nunciatura (1581), apresentou um quadro da
atividade do tribunal da Inquisição empenhado em

[... ] várias matérias de heresia entre as quais as mais frequentes , ou pelo menos as que o
mantiveram mais ocupado, foram duas: superstições de encantamentos e infidelidade de cristãos
judaizantes. Os encantamentos - observava Bolognetti -, embora a maioria deles tivesse aquelas
circunstâncias que os tornavam matéria de Inquisição, ou seja, adoração de demônios , orações e
defumações de incenso de bálsamo, de enxofre, de assa-fétida e de outros odores bons ou tristes,
não decorriam, ao que se podia ver, de inclinação à heresia, mas tendiam àqueles dois fins , ou seja,
amor ou ganhos, que podem tanto nos homens levianos 18 •

Amor e ganhos: era por esses motivos que se recorria ao demônio e tentava-se pôr
à prova o poder do príncipe das trevas. Os homens de igreja registraram por muito tempo
a duração desse princípio extremamente forte na recorrência ao demônio 19• O núncio
Bolognetti contava ainda que dos processos tinham vindo à tona histórias incríveis,
como as "que se leem nas fábulas dos romances". Eram histórias verdadeiras, no duplo
sentido de realmente acontecidas e de um real envolvimento de forças demoníacas:
mas também era verdadeira a combinação de literatura e de realidade, "de fábulas de
romances" e de paixões e necessidades reais a que aludia o núncio.
Os processos venezianos da época confirmam o entrelaçamento entre literatura
e vida real e confirmam também a realidade do pacto com o diabo. Em 10 de abril de
1590, por exemplo, foi recolhido na água de um canal veneziano uma folha de papel
onde os estupefatos leitores encontraram um verdadeiro ato formal de culto ao demô-
nio por parte de certo Andrea, que pedia em troca de sua alma o amor da mulher de
seu patrão. Houve interferência da Inquisição e Andrea foi identificado e interrogado;
admitiu tudo e declarou que, desesperado de amor, tinha copiado de uma Vita di San
Basilio o texto do contrato com o demônio e o assinara com o próprio sangue. Mas
depois, assustado com o que fizera, jogara-o fora "na cloaca, que foi dar no canal" 20 •
Como se vê, se os núncios liam romances de cavalaria, os artesãos e a gente humilde
liam vidas de santos e pescavam suas informações sobre o diabo na literatura devota.
Talvez por esse fato, também que denotava de todo modo o terreno favorável à religião

17. Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit.


18. O relatório foi publicado por Stella, Chiesa e Stato nelle Relavoni dei Nunv Pontifici a Venezia, op. cit., pp. 286 e ss.
19. Ainda no início do século XVIII, um bispo queixava-se: "Oh, quantas mulheres não se encontram, que recorrem
ao diabo para arranjar casamento ou para si mesmas ou para os seus filhos" (Giovanni Fontana, La Santità e
la Pietà Trionfante, in Venezia, presso Andrea Poletti, 1716, pt. II, p. 105).
20. O processo foi publicado por Milani, Streghe e Diavoli nei Processi del S. Uffzzio, op. cit., pp. 213-226.

Pedagogia Inquisitorial
412

oficial em que se dava a batalha, as punições não eram tão duras como aquelas contra
os verdadeiros hereges. Penitências salutares e um período de afastamento de Veneza
foi tudo o que o ato de Andrea, teoricamente tão grave, causou ao culpado.
A postura de compreensão pelas "inclinações" dos acusados de que dera exemplo
o núncio Facchinetti traduzia-se em penas leves: abjurações públicas e penitências salu-
tares. (Era importante a abjuração pública, notava o núncio , porque podia contribuir
para a educação do povo no que se refere àquelas práticas de magia.) Era a difusão
dessas práticas, sua normalidade social, que sugeria posturas desprovidas de rigidez.
Até os que se dirigiam ao tribunal da Inquisição pedindo justiça sumária eram mais
frequentemente clientes decepcionados de bruxas e feiticeiras do que cristãos obcecados
pela ameaça do demônio 21 • Dessa combinação de conivência, compreensão e ceticismo
resultou de todo modo uma postura branda que devia caracterizar por um longo período
o comportamento dos tribunais inquisitoriais italianos. Um fervoroso teórico da linha
dura, o franciscano observante de Novara Ludovico Sinistrari, teve de admiti-lo com
amargura: na Itália - escrevia Sinistrari em 1700 - as bruxas quase nunca iam acabar
na fogueira , ao passo que fora da Itália era a pena ordinária 22 •
A relativa brandura italiana é atestada, de resto, também nos níveis inferiores da
estrutura inquisitorial, onde se confundia variadamente com níveis de cultura diferentes
dos que caracterizavam o ponto de vista romano.
Um caso concreto talvez nos ajude a decifrar melhor algumas das características
do trabalho inquisitorial no que se refere aos casos de magia e bruxaria. Tomemos um
exemplo entre os papéis da Inquisição de Pisa. Tratava-se de um tribunal com fama
de relativa brandura: um espanhol que fazia encantamentos e magias reconheceu que
jamais faria o mesmo na Espanha "porque a Inquisição de lá é mais rigorosa e não
é tão branda como a daqui" 23 • Essa brandura maior decorria também do confronto
com as práticas do tribunal laico da vizinha república de Lucca, onde ocorreram então
condenações à morte por bruxaria 24 • No entanto, a experiência vivida por Cammilla

21. Um único exemplo dentre os muitos que se poderiam dar: em 2 de setembro de 1609 foi endereçada ao
inquisidor de Pisa a denúncia contra uma bruxa, Doralice de Siena, por certo Tommaso Ciampoli, que a
acusava de ter-lhe "prejudicado, ou melhor, embruxado o filhinho" e pedia "que justiça seja feita por tamanho
malefício"; soube-se depois que Ciampoli levara o filho doente a Doralice para que o curasse e que somente
o fracasso da cura levara-o à denúncia (MP, lnquisizione, f. 4, cc. 38r e ss.).
22. "Regulariter extra Italiam, suspendia et incendio punitur. ln ltalia autem, rarissime traduntur huiusmodi
malefici ab inquisitoribus Curiae saeculari" (Ludovici M. Sinistrari, De Delictis et Poenis, Venetiis, apud Hie-
ronymum Albriccium, 1700, p. 277, cap. "De Poenis Sagarum").
23. O documento, citado anteriormente, cap. III, nota. 31, está guardado em MP, Inquisizione, f. r, cc. n. n. O
nome do espanhol era Gaspare Yitale e a denúncia contra ele foi apresentada em 23 de setembro de 1579. A
passagem não escapou a Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit. , p. 178 e nota. Para uma leitura conjunta
dos processos pisanos do período, cf. Ornella M. R. Palazzi, Alcuni Processi per Stregoneria e Magia a Pisa nella
Seconda Metà dei Cinquecento, Tese de Graduação, Università degli Studi di Pisa, a. a. 1988-1889.
24
· Os processos de Lucca foram tema de vários estudos. Uma transcricão dos documentos e um estudo foram
objeto do trabalho de Vittorio Antonelli, Processi per Stregoneria a Lu~ca dai 1571 a 1605 Tese de Graduação,
Università degli Studi di Pisa, a. a. 1990-1991. '

A Confissão
413

di Simone, uma viúva de cinquenta anos da aldeia de Fabbrica, na diocese de Volterra,


acusada de bruxaria em 1609, não foi das mais brandas 25 • Foi presa com base na fama
pública e em testemunhos recolhidos pelo vigário local da Inquisição, Cario Mazzinghi,
que era ao mesmo tempo o pievano de Fabbrica: como vimos, as normas do Santo Ofí-
cio recomendavam evitar semelhantes sobreposições entre clero paroquial e estruturas
inquisitoriais, mas de fato as coisas aconteciam assim quando não havia conventos de
frades . Mazzinghi mandou trancafiá-la na prisão de Peccioli e tratou de transferi-la para
a do Santo Ofício em Pisa. Enquanto isso, Mazzinghi continuava a recolher materiais
contra a acusada. A postura de Mazzinghi em relação a Cammilla foi explicada por ele
em algumas cartas expedidas ao inquisidor de Pisa durante o verão e conservadas nos
numerosos documentos do processo. Na primeira, contava ter falado com a acusada no
dia em que fora transferida para a prisão em Pisa: nunca a vira antes e não tinha preven-
ções contra ela; mas ficara desconfiado por causa de uma palavra usada por Cammilla.
Perguntara-lhe "por que lhe tinham feito aquilo" , ou seja, por que fora acusada de ter
feito adoecer e morrer uma pessoa. Cammilla respondeu:

"Não sei, se tivessem me visto em forma , o que diriam?" Então, diante da palavra em forma
fiquei muito desconfiado, por me parecer termo da arte, e disse-lhe: "O que quer d izer em forma? "
"É, replicou ela, porque dizem que vou em forma de gata" - como se antes tivesse querido dizer: "se
tivessem me visto em forma humana o que diriam, já que não puderam me ver desse modo porque
vou em outra forma" . E minha conjectura - concluía Mazzinghi - é que entre eles ir em forma sig-
nifica por excelência ir em forma humana.

O pievano de Fabbrica, portanto, acreditava na realidade da bruxaria, nos poderes


diabólicos, nas metamorfoses animalescas. Estava convencido do dever de combater contra
forças terríveis e contra quem se submetia a elas. No entanto, não era partidário das penas
severas contra as bruxas. Eis como expôs suas convicções na carta seguinte, de 1º de julho,
ao inquisidor pisano: ficara sabendo que durante a viagem de Cammilla para a prisão de
Pisa, a mulher tinha passado um dia na de Peccioli. E que ali "foram conversar com ela
} dez pessoas, que a convenciam a não confessar, porque senão seria queimada". Mazzinghi
j comentava escandalizado o episódio: essa solidariedade que ultrapassava, na prática de um
1 burgo de província, as proibições e as barreiras formais da Inquisição para dar conselhos à
'
acusada, parecia-lhe injustificável: "Vede V. S. que espécie de pessoas há nesse lugar, que em
vez de tentar extirpar do mundo uma peste como esta, tentam alimentá-la e conservá-la" .
Era preciso remediar as consequências de tal episódio. E Mazzinghi dava os
seguintes conselhos ao inquisidor:

Agora O remédio que a isto se poderia aplicar, ao que me parece (remetendo-me sempre ao
vosso saber e juízo), seria V. S. conversar e dizer-lhe que é muito bem informada, que não se resolve a

25 . AAP, S. Uffizio, f. 4, 1610-1614, cc. 193 r. e ss. Sobre esse processo cf. a tese de graduação de Paola Senesi,
Camilla da Fabbrica, Università degli Studi di Pisa, a.a. 1994-1995.

Pedagogia lnquisitorial
414

confessar tudo por ter sido distraída e perturbada pelas pessoas malignas que gostariam que morresse
em uma prisão e tivesse os braços amarrados, dando-lhe a entender que seria morta e queimada,
mas que isso está longe da verdade, porque no Santo Ofício não se procede com tal rigor como nas cortes
seculares; e que nesta corte são aplicadas apenas penitências tal qual também é feito na confissão secreta e que
V. S. quer benevolamente que ela confesse tudo e peça perdão, e que, sobretudo, V. S. pede-lhe que
o faça para que aquelas crianças doentes sarem, e que prometa não mais fazer mal no futuro , e que
ela depois verá que V. S. procederá com ela humanamente de acordo com a justiça 26 •

Se Cammilla decidisse não confessar, então era necessário empregar a força ; e


aqui a pena do pievano-inquisidor carregava-se de imagens foscas , conjugando o ritual
da Missa com o da tortura - uma sobreposição linguística que exprimia exatamente a
das duas funções desempenhadas pelo padre na Igreja da Contrarreforma:

E finalmente, tendo-lhe feito tal discurso, se a Secreta não impetrar o que foi pedido, será
necessário erguer a voz, ir ao Prefacio e deter-se no Sursum corda, onde será necessário que ela padeça
ou diga a verdade.

Foi exatamente o que aconteceu. No decorrer do verão, foi instruído o processo. Em


18 de outubro, em uma congregação de teólogos e juristas, os documentos foram examina-
dos e decidiu-se que os indícios - uma série de nebulentos e fantasiosos relatos de doenças
estranhas e de um gato diabólico que devia ser a própria Cammilla - eram suficientes para
que fosse gravemente indiciada: podia-se portanto aplicar a tortura graviter. Três dias mais
tarde, Cammilla foi submetida à tortura. Gritava: "Jesus, Maria, estão estropiando esta pobre
velha". E mais: "Oh, Deus, ajudai-me, oh, Deus, meus braços". Foi um longo sofrimento: o
auto traz páginas de perguntas insistentes que lhe foram dirigidas pelo vigário, intervaladas
por seus lamentos 27• Não confessou nada. Em 1° de novembro foi novamente conduzida
à câmara de tortura, despida e ameaçada de tormentos. Mas não foi possível mudar sua
postura. Ignoramos qual foi a sorte que teve. É provável que nos documentos do Santo
Ofício romano tenha restado algum indício desse procedimento: a Toscana daquela época
produzia uma grande quantidade de causas desse tipo, tanto que foi necessário elaborar
uma instrução especial para os processos contra as benzedeiras e as parteiras de aldeia como
era Cammilla. E, justamente nessa época, entrou em circulação a lnstructio de Scaglia. Mas
os papéis do processo pisano oferecem um perfil eloquente do modo de pensar do pessoal
subalterno, aquele clero das paróquias e dos tribunais que mantinha contato mais direto
com as pessoas. A carta de Mazzinghi expressa perfeitamente esse misto de ternura e de
violência, de missas e de torturas, de confissão consoladora e de Inquisição punitiva, de
crença em bruxas e em metamorfoses demoníacas, mas também de compreensiva tolerância
em relação a quem praticava sortilégios e maus-olhados - resumindo, essa mixórdia, não
do coração humano mas do sistema de governo da Igreja pós-tridentina na Itália.

26. As duas cartas de Mazzinghi estão conservadas em idem, cc. 22lr-223v. O grifo é meu.
27. Idem, cc. 214r-215r.

A Confissão
XIX
UMA INQUISIÇÃO "PASTORAL"?

N os percursos das autoridades eclesiásticas em matéria de magia e superstições,


frequentemente contraditórios e de qualquer modo não facilmente decifráveis, é
possível acompanhar, portanto, o avanço progressivo dos tribunais da Inquisição. Houve,
como se viu, uma promoção a heresia de matérias que um século antes entravam na ótica
e nas preocupações pastorais dos bispos; e nisso a vontade hegemônica do novo tribunal
teve seu papel. Mas não se pode ignorar a voz da realidade social, que se faz ouvir através
das denúncias, dos testemunhos e confissões processuais: encontram-se aí inúmeras des-
crições de experimentos, de fórmulas, de farmacopeias , de práticas mágicas. As acusações
de malefício e de bruxaria por parte de quem estava convencido de ter sido vítima disso
constituem uma prova direta do quanto se acreditava disseminadamente na eficácia de
tais sistemas. À grande e crescente atração pelos poderes mágicos, o corpo eclesiástico
dos países católicos não opôs uma postura puramente negativa, de rejeição pura e sim-
ples, mas uma série de regras para colocar limites entre o campo do consentido e o do
proibido. Uma oferta rica e ampla de práticas e ritos protetores respondeu à demanda da
sociedade; ao mesmo tempo, desencadeou-se a luta contra os ritos proscritos - a magia
e a superstição - na qual se empenhou a Inquisição romana. Após uma fase agressiva e
duramente repressiva, prevaleceram os elementos pedagógicos.
No deslocamento da gama das matérias inquisitoriais percebe-se uma mudança
nas táticas que foram se tornando cada vez mais brandas e mais flexíveis. Sobre todas as
práticas mágicas e supersticiosas, dos remédios populares à bruxaria, a Inquisição tinha
estendido sua jurisdição, fazendo valer a acusação de apostasia: afinal, existia a possibili-
dade de que mesmo por trás da oração de Santa Marta e das misturas de ervas houvesse
um pacto com o diabo implícito no recurso a seus poderes ou até mesmo diretamente
explícito, quiçá assinado com sangue. A caça à presença diabólica dominara as fantasias
durante o período dos processos por bruxaria: as autoridades romanas tinham posto
limites à expansão da caça às bruxas, com a elaboração da já mencionada lnstructio do
cardeal Scaglia, que impusera a investigação do corpus delicti, ou seja, da prova de uma
efetiva intervenção de potências demoníacas. Ora, se tentarmos compreender como
evoluiu a questão da apostasia, os manuais inquisitoriais nos oferecem uma resposta
singular: Menghini, por exemplo, propôs a seus vigários um modelo de processo no
qual um estudante se autoacusava de ter assinado com o próprio sangue um pacto com
416

o diabo, renegando deliberadamente a fé catolica. Era um caso exemplar de apostasia,


ou pelo menos assim parecia. De fato, Menghini recorria a uma longa nota para afirmar
que se o jovem, ao cometeÍ esse ato, soubesse estar praticando o mal, isso signiíicava
que ele continuava a crer que "Deus e o verdadeiro Deus, e sua lei e a verdadeira lei":
portanto não se estava diante de um caso de "apostasia formal". E isso, segundo Men.
ghini, valia tanto para "aqueles que renegam a fé na Turquia" quanto para as bruxas
"que, persuadidas pelo demônio, apostatam Deus" - eram todos gente que sabia estar
cometendo o mal e por isso estavam livres da acusação de apostasia formall.
O mecanismo da casuística aplicado às disposições internas e às intenções dos
acusados tinha como resultado âtenuâr a condicão dçles e reduzir as penas inquisitoriais
a penitências. O domínio da Inquisição era amplo, incomparavelmente mais amplo do
que aquele que dotara a estrutura em meados do seculo XVI; não só a estrutura dioce.
sana devia levar isso em consideracão, bem como todas as Ordens religiosas, grandes
e pequenas (às quais fora ordenado que providenciassem em períodos determinados a
leitura pública dos decretos e resoluções apostólicas em matéria de Inquisição2). Pare-
ce que, tomando o lugar dos pastores de almas que tinham sido os primeiros a dar o
alarme no que se refere à disseminação das superstições, os inquisidores quisessem dar
prova de espírito pastoral.
A supersticão tinha enffado no campo inquisitorial, como termo válido em geral ffi
'fl
para um conjunto vasto e variado de práticas sociais, enfocadas de tempos em tempos
pela instituição. No plano formal, isso significara sua promoção a heresia. Os éditos do
Santo Ofício falam, por exemplo, em "heresia dos remedios supersticiosos"l. Mas a essa
ênfase definitória correspondia no plano prático uma postura redutiva e pragmática e
uma substancial descaracterização do crime, que era punido com penitências mínimas
e tratado com procedimentos administrativos muito pouco rígidos. Unificando bru.
xaria e medicina popular em uma definição que podia significar um recrudescimento
da perseguicão, houve um movimento na direção oposta. Não passavam de "mulherzi.
nhas e homúnculos": os vigários do Santo Ofício deviam chamá-los de volta à ordem,
notificando "que no futuro não devem mais fazer tais remedios ou encantamentos
de modo algum nem a qualquer pretexto, sob pena de serem chicoteados e presos a
pão e água, sendo informados de que nenhum sacerdote pode absolvê-los"4. Palavras

Regole deL Tríbunale. del Sant'Offício, p. 97.


A ordem íoi dada através de um decreto do Santo Oficio de 14 de abril de 1633, que foi publicado com os
mais importantes documentos papais sobre o assunto: cf, Decreta et Constitutiones Summorum Pontificum ad S.
Inquísitionis Officium pertinentia; ad quorum publícationem tenentur omnes Supenores Regulanum, rr in eis, Romae, ex
Tlpographia Rever. Camerae Apostolicae, et Bononiae, qpis Io. Baptistae Ferronii S.Oíficii impressoris, 1660.
t. Um documento não datado (escrito presumivelmente por volta da primeira metade do século XVIÌ), transmi.
tido de Roma ao inquisidor ílorentino, a propósito de um grupo de mulheres da região de Casentino, fala em
"extirpar a heresia dos remédios supersticiosos" (ncRr, Misc. S. lJffizto,b.2l, n.26).
4. Ìdem. Leve-se em conta que o ato tem a forma de uma instrucão oíicial (intitula.se de fato Ìnsrruni one per iL
Rev. Inquisitore di Fíren7e per Estírparel'Heresia deLleSuperstitioseMedícíne\ e refere.se a um grupo de mulheres
bem identiíicado.
r:
4r7

emeaçadoras, às quais correspondia uma prática bem mais moderada: uma rápida
rondagem sobre os processos efetuados por volta da metade do seculo XVII mostra que
a absolvição era garantida para todos os que se arrependessem e que eventuais rigores
Jos tribunais locais eram objeto de reprovações e de chamadas à ordem por parte do
Santo Ofício: as orientaçÕes romanas eram que as mulheres acusadas não somente de
simples encantamentos bem como de bruxaria deviam ser punidas por meio de "pe.
nitências salutares"5. A estrategia das ameacas terrificantes visava a obter o abandono
Je práticas disseminadas, no centro de um uso social extremamente intenso. Era uma
estratégia eíicaz foi justamente por ter ouvido dizer que queriam "queimar... todas as
t'ruxas que existem no povoado, caso não se convertam" eqe B"rtolomea Golizza, de
Farra d'Isonzo, {oi ter com seu confessor em Cividale, em marco de 1648, e depois se
apresentou ao inquisidor; o dela não era arrependimento verdadeiro, apenas "temor do
tbgo que a ameacava", advertia o pároco ao apresentar o caso. Entretanto, não obstante
a enormidade dos crimes coníessados, Bartolomea foi deixada em liberdade, com as
'costumeiras penitências "salutares"6.
O fato e que esse campo era vasto e complicado, a ponto de parecer incontrolá.
vel, coincidindo com as formas mais difundidas da cultura popular. Naqueles mesmos
ânos, um vigário do domínio florehtino pedia a seus superiores permissão para designar
alguns deputados para acatar e resolver sumariamente denúncias de blasfêmias hereticas
e supersticÕes, "porque as pessoas distantes, na maioria camponeses, não podem vir"?.
Assim, severa na teoria, a ameaça traduzia-se em benevolência paternal para com os
temerosos penitentes que apinhavam tribunais e confessionários.
Enquanto editos e "práticas" marcavam os novos limites da ação do Santo Ofício,
os arquivos da Inquisição comecaram a ficar repletos de descrições detalhadas de ritos,
oracÕes, receitas: os notários transcreveram-nos com muita paciência a partir da viva
r-o: de testemunhas ou de acusados. Denúncias e autodenúncias chegavam sem parar:
eram padres, que recorriam ao inquisidor para obter de sua autoridade a intervenção
'eficaz contra leigos suspeitos, o que alguns anos antes era de competência dos bispos;
era sobretudo um número incalculável de mulheres que ultrapassavam as soleiras clos
'lrcariatos da Inquisição, levadas - diziam elas - por escrúpulos e arrependimentos: na
lrealidade, eram enviadas oficialmente ao tribunal por seus confessores, sob ameaca de

"Expedi'la com admoestacões e penitências salutares e libertá-la da prisão": foi esta a ordem que a congregacão
Jo Santo Oficio Bolonha, por meio de carta datada de 25 de janeiro de 1649, no caso de Pellegrina
íez chegar a
Zecca acusada de bruxaria e submetida a um procedimento que em Roma foi julgado "demasiadamente rigo.
roso" (sobre esse processo, conservado no Arquivo Arquiepiscopal de Bolonha, e sobre o contexto dos casos
Je hetesia e bruxaria tratados por esse tribunal no século XVII, cf. Giuseppa Fan, IiAnivitd del s. Offfzio deltn
InquisiTioneaBoLogna(1635-169q,TêsedeGraduação,UniversitádegliStudidiBologna, a.a. 1974.1975;àp.
117 encontra-se a carta supracitada).
.{rchivio della Curia arcivescovile di Udine, S. O/ficio, b. 29, íasc. 18, cc. n. n. A carta do pároco de Cividale - um
significativo testemunho da rotina instaurada entre confessores e inquisidores - é de 4 de abrii de 1ó48.
Carta de Francesco Montichiari, de Fivizzano, 5 mat 1623, publicada pelo autor do presente volume em Vrcari
deLL'Inquisíxione Fiorentina allaMetà del Seicenro, op. cit., p. 304.

Uma Inquisição "Pastoral"J


rl
418

excomunhão e do vexame de verem seus nomes afixados na porta da igreja paroquial.


Denúncias e autodenúncias terminavam geralmente com uma rápida abjuração e com
algumas penitências leves. Mas era, mesmo assim, uma rotina exaustiva para os fun,
cionários do tribunal, que não eram nem sequer estimulados pelo sentimento de uma
guerra espiritual contra as insídias do demônio. E isso explica as resistências ocorridas
tanto dentro como íora da estrutura inquisitorial. Aqueles membros que se atinham
ao rigor das definições teológicas não podiam aceitar impassivelmente o ingresso em
um território tão vasto e mal definido.
Foi justamente um eclesiástico com funcÕes de governo ordinário que explicitou
sua divergência. Como vimos, o vigário-geral do Patriarcado de Aquileia, Paolo Bisanti,
era de opinião que o inquisidor não devia intervir ln saperstit ionibus que "manifestam
non sapiunt haeresim"s. Bisanti reíeria-se às práticas de medicina popular e aos inci-
pientes processos contra os benandanti; ressaltava ainda outros sinais da disseminação
do controle inquisitorial, como os processos contra quem comia carne nos dias proi-
bidos. Mas, enquanto nesse caso a força de inércia persistia em ser uma reação contra
o que poucos anos antes fora o rito da dissensão reformadora contra a lgreja romana,
no caso das superstições a frente que se abria era nova e destinada a rápida ampliacão.
Tão rápida que os vigários da Inquisição, diante da grande quantidade das denúncias e
autodenúncias ativadas pelos confessores - que deviam se recusar a absolver ate quem
só tinha conhecimento de práticas supersticiosas - viram-se obrigados a uma espécie
de retirada. De resto, como notou uma atenta estudiosa dos processos da Inquisição
veneziana sobre semelhantes matérias, os inquisidores como objetivo "antes combater
a 'supersticão' como forma desviante da 'verdadeira' religião do que atingir Satanás e
seus supostos adeptos"e: era o prevalecer de uma estratégia "pastoral" sobre a punitiva
e policial. Somente a partir dos autos, por ora secretos, do Santo Ofício romano, será
possível tentar entender quando e como, nas orientações de quem governava essa estru-
tura, a atitude educativa e paciente tinha se imposto com prejuízo da caça às presenças
demoníacas no mundo.
Mas devemos nos entender sobre as características desse espírito "pastoral". Tam-
bem é verdade que, a partir do final do século XVl, toda a estrutura eclesiástica em seu
conjunto - salvo algumas resistências do mundo monástico - manifestou uma postura
compreensiva e tolerante em relação ao mundo da "superstieão": tal postura comum
fez passar para segundo plano as diferenças no modo de conceber e de interpretar esses
fenômenos - diferencas que foram extremamente fortes entre o mundo romano em que
se moviam os membros da congregação do Santo Ofício e os vigários das mais remotas
e periféricas sedes da Inquisicão. Ora, nessa postura comum da estrutura eclesiástica
lê-se uma especie de sentimento de tranquila consciência de um poder não ameaçado
por nenhum perigo. Nos níveis mais elevados, isso exprimia-se na forma de um senso
de alta responsabilidade no governo das massas populares, matéria a ser tratada com

8. Cí. cap. XMII, nota 1.


9. Milani, Srregl.re eDiaçolineiProcessi deLsant'í.Jffi7io, op. cit., p. MI.

i,$p..rl..ao
r"
419

cuidado e atenção, deixando passar tudo aquilo que não se chocava diretamente contra
a disciplina da sociedade cristã. Nos níveis inferiores do corpo eclesiástico encontrava-se
disseminada a tranquila ceïteza de que, na luta contra os poderes mágicos, a Igreja podia
descer sem temor no terreno de um confronto direto. Mesmo o último dos clérigos
podia enfrentar vitoriosamente o poder de magos e bruxas e derrotar as aÍtes diabólicas
com os poderes conferidos pelas potências celestiais atraves dos canais de uma ordenada
hierarquia: não só derrotá-los, mas até emulá-los, oferecendo a quem precisasse uma
proteção superior. Se "mesmo entre as pessoas boas" recorria-se a poderes mágicos e a
práticas supersticiosas, como admitiam os vigários da Inquisiçãor0, isso significava uma
necessidade grande e difusa de veículos do gênero para garantir para si a saúde, a sere-
nidade, o amor, a riqueza. Pois bem, a lgreja encontrava-sè presente justamente nesse
terreno com meios adequados, ela podia oferecer não uma religiao intelectualizada e
racionalmente depurada, mas os imensos poderes e os inúmeros veículos do sagrado
legítimo. Se o mal se individualizava e cada um tinha seu demônio, havia sempre um
Anjo da guarda para cada um; e, de resto, o poder dos demônios era enfrentado e batido
cotidianamente em espetáculos públicos pelo poder dos exorcistas.
Naturalmente, o uso indiscriminado e repetido desses poderes criava alguns pe-
rigos para a ordem da hierarqula: o confronto dramático e espetacular entre potências
do bem e potências do mal de que podiam dar prova os exorcistas não combinava com a
orientação tranquila da hegemonia católica na situação italiana. Por isso, a intervenção
da Inquisição tornou-se necessária tambem nesse terreno.

Carta de Francesco Montichiari, op. cit., nota 7.

Uma Inquisição "Pastoral"J


r

)o(
INeursrDoRES E ExoncISTAS

ì
pressão social sobre a Inquisição revela.se de modo todo especial no âmbito da-
quela matéria das "possessões demoníacas" e dos exorcismos que aumentou então
incontrolavelmente, trazendo problemas novos e de extrema gravidade às autoridades
de todo o tipo. Também nesse caso é difícil distinguir se o crescimento do fenômeno
era aparente ou real, ou seja, se era devido a uma alteração das escalas de leitura da
realidade por parte dos tribunais e corpos constituídos ou remetia a modificações
eíetivas dos comportamentos sbciais. E futo que a casuística revelada pelas fontes
a partir da segunda metade do século XVI e durante todo o XVII é de uma riqueza
impressionante. Não se tratou de um problema especificamente italiano. Quanto
às interpretaçÕes desses dados, a alternativa que as fontes da época nos deixaram e
a da escolha entre simulação e realidade. Uma comparação atenta entre os casos de
exorcismos que ocorreram então na França e na Inglaterra colocou em evidência o
uso instrumental dos casos de possessão por parte das autoridades eclesiásticas para
fins de propaganda religiosa: tratava.se, em situações de conflito confessional, de
aproveitar o clamor dos ritos públicos de exorcismo e de fazer com que os demônios
desempenhassem a missão de apologetas da fé1.
Na ltália, a incidência dos fenômenos de possessão e das práticas de exorcismo foi,
tambem, bastante elevada. Ela pode ser percebida, indiretamente, pelas próprias fontes
inquisitoriais. Se a Inquisição adentrou o terreno das possessões, foi justamente para
fazer frente a um fortíssimo aumento de histórias clamorosas e para impor o próprio
controle ao corpo dos exorcistas de ofício. A atitude cauta, desconfiada, destinada a
esfriar e a isolar o fenômeno, impedindo seu aumento epidêmico, desenvolveu.se na
estrutura inquisitorial em razão direta de uma pressão social insolitamente aguda, e
isso remete à questão das causas que tornaram o estado de possessão uma formação
cultural característica dessa época - ainda que não limitada a ela.

1. Cf. D.P. Walker, Possessione ed Esorcismo. Francia elnghiltenafraCinque eSeícento (edição original UncbonSpints,

Philadelphia, 1981) trad. it. Torino, 1984. Cf. sobre este iiwo as profundas observações de Ottavia Niccoli,
"Esorcismi ed Esorcisti tm Cinque e Seicento", Socierà e Storia, )oCüI, 198ó, pp. 409418. Para uma época dife-
renre, mas sempre seguindo o fio dos usos políticos e apologéticos de determinados fenômenos psíquicos, cí.
RobertKreiser, Miracles, Contulsioru andEccltsíasticalPotiticsinEarlyEighteenth'CenturlPans, Princeton, 1978.
422

Quaisquer que fossem suas causas, é certo que no interior da instituição inqui.
sitorial não demorou muito a ser usada para esse propósito uma linguagem completa-
mente diferente daquela que prevalecia entre os exorcistas ou mesmo entre os juízes
laicos. Enquanto os tratados para exorcistas desenvolviam uma ciência especial dos
sinais, abrindo um caminho que devia pôr em comunicação os poderes humanos do
exorcista com as potências do outro mundo - e presumia-se que os corpos dos magos
Ì, ! e endemoniados fornecessem os sinais da eficácia da comunicação -, a literatura
inquisitorial oferecia apenas umas poucas indicações de procqdimentos, advertindo
frequentemente sobre o risco de excessiva credulidade. Ate mesmo nas advertências
para o clero, redigidas por bispos decididos a eliminar os abusos, o problema de
como reconhecer os verdadeiros endemoniado, i-|0, uma lógica que não encontra
similaridade na literatura inquisitorial, por sua natureza orientada em outra direção.
Segundo Gaspare Cervantes, o sucessor de Seripando em Salerno que demonstrou
especial atenção nessa matéria, devia-se admitir que certa pessoa era um verdadeiro
endemoniado quando se comportava de determinados modos, por exemplo, quando
"fala em alguma língua que aquela pessoa antes não conhecia"2. Mas foram sobretudo
os exorcistas de ofício que se aventuraram nesse terreno. A Menghi - e a seu celebre
Compendio dell'Arte Essorèística, et Possibílítà delle Mirabili et Stupende Operationi delli
Demoni - pode.se opor Menghini, autor de um pequeno tratado de prríxis inquisito-
rial que listava superstições e preces a serem evitadas. De um lado, uma angelologia
mirabolante, uma ciência das metamorfoses e das operações mágicas no tempo e no
espaco, um olhar ávido lançado sobre a vida cotidiana dos anjos do abismo, com uma
inexaurível riqueza de detalhes (por exemplo, sobre as línguas diabólicas, que - apren-
demos - são tantas quantas as diferentes regiões dos homens, com uma exceção para
a Itália: "os Demônios [...] podendo falar entre si sem voz, [...] exercitam-se e falam
com as línguas de todas aquelas gentes, embora os demônios que habitam entre nós,
italianos, possam íalar todas as outras línguas; mas soem fazer isso mui raramente,
e com imensa dificuldade"'). De outro, uma serie de instruções burocráticas sobre o
modo de colher os testemunhos e as confissões, onde a ciência dos anjos e substituída
por poucas regras de prudência quanto ao modo como tratar a crescente matéria das
"superstiçÕes"a. É uma diferença substancial que traz muitas consequências: a ciência
dos espíritos fornecida pelos manuais para exorcistas podia tambem ser usada em pro-
veito próprio - e eis o exorcista competindo com os magos, rezando a oração ao Anjo

?,. Awertimenti per lr Persone Ecclesíastiche, et Massime per Li Curati deLln Diocese Me*opoLitana dí SalBrno et come si

dowannoportdreconlorostessi, eto,ncoÍÕ,conLisuoiparochianiinpublico,etnelsacramentodel.laPenítentía,emRoma,
pelos herdeiros dos Dorici, s. a., c.45t). Sobre a caneira de Cervantes no âmbito da Inquisição antes e depois
do episcopado de Salerno cí. Caiazza, Tra Stato e Papato, op. cit., pp. 59-60 e 79-80 e passim. Sobre a "diagnosi
impietosa" do estado da exorcística traçada por Cervantes chama a atenção Romeo, Inquisitori, Esorcisti e StregÌu,
op. cit., p. 135.
Cí. Girolamo Menghi, Compendio dell',\rteEsorcistica, etPossibíLía dalleMirabili etStupende Ope"rdtioni delLiDemoní,
et de' Malefici, Bologna, G. Rossi, 1576 (ed. Restaurada, Gênova, 1987), p. 55.
4. Menghini, Regoln delTríbumle fuISant'Offício, op. cit.

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branco, usando Satanás na busca a tesouros ou para seduzir a mulher amada. Coube
justamente aos inquisidores ressaltar essa possibilidade: e pode-se facilmente imaginar
que o fizessem de bom grado. Era uma questão de poder, os exorcistas dispunham de
um campo de atuação vastíssimo, seu crédito apoiava-se nas sólidas bases de uma religião
dos espíritos amplamente compartilhada e facilmente acreditada; a presença demoníaca
no mundo e a ciência dos poderes que podiam ser extraídos daí tornavam-se perceptí.
veis por meio do exorcista, numa visível e sugestiva atuação cotidiana de combate aos
demônios. Era por isso tambem que os conventos franciscanos da Observância, onde
eram habitualmente recrutados, gozavam de uma atração religiosa arraigada durante
séculos no seio da população, mais que a paróquia e infinitamente mais que os vica.
riatos da Inquisição. A autoridade ordinária do bispo pàdi" f"r"r muito pouco para
controlar sua atuação; por outro lado, toda a estrutura eclesiástica diocesana, ligada
aos fenômenos locais e aos movimentos da sociedade que a continha, estava por sua
própria natureza disposta a deixar.se envolver nas dinâmicas do evento excepcional,
talvez para aproveitar com finalidade apologética as manifestações públicas da potência
dos espíritos. Embora na sociedade italiana o uso do exorcismo para fins de propagan-
da religiosa contra os hereges tivesse motivos bem menores do que em outras regiões
europeias, isso não significa que a atração exercida pelas dramáticas cenografias de
um alem que irrompia na cena cotidiana fosse desconhecida. A voz do possuído ou
do endemoniado era chamada a coníirmar os ensinamentos eclesiásticos e a decifrar
os misterios do mal e da aversão na vida cotidiana: o espírito do mal, enquanto se
submetia ao poder sagrado do exorcista, revelava cúmplices e adeptos, documentava
tramas de bruxarias e iniciava processos em que toda a comunidade compartilhava
a ilusão de participar de atos de justiça providencial. Ausentes ou disponíveis as au-
toridades ordinárias, não se devia esperar muito nem mesmo do reordenamento de
toda a matéIia dos ritos sagrados a que chegou o Rituale Romanum do papa Paulo V5.
A uniformidade sobrepôs.se à variedade e à improvisação. Mas, apesar das repetidas
recomendações sobre a preparação e os costumes do exorcista, alem da imposição da
presença do medico, o campo para o dlalogo entre o exorcista e os espíritos sobre a
presença de bruxas e suas identidades permanecia liwe.
Com muita írequência, os ritos do exorcismo dependiam da capacidade de im.
provisação e do senso de oportunidade dos exorcistas: a improvisação era obrigatória
naquela que pretendia e parecia ser um embate gladiatorio entre o lutador de Deus
e o do diabo. Forte devido à presença divina da qual era portador e estimulado pelas
presenças do espírito maligno, mas tambem do público, o exorcista improvisava; e nem
todos - principalmente entre os eclesiásticos presentes - achavam corretas tais improvi
sações. Frei Alessandro de Florença, processado pelo bispo de Cortona em t579, curava
as monjas endemoniadas do monastério das Santucceí de Cortona da seguinte maneira:

5. Sobre oRítualeRomanum(161$cí. Pastor,Sroria deiPapi,op.cit.,vol.XÌI,Roma, 1930,pp. 16ó'168.


6. Religiosas do assim chamado Ordo Santucciarum, que tinham como padroeira a beata Santuccia Carabotti
(N. do r.).

Inquisidores e Exorcistas
424

Pegou nossos Exorcismi catholici, jogou-os no chão e nos íez pisoteáìos com o pe esquerdo.
Depois jogou o missal no chão e mandou íazer o mesmo com ele, e ao ordenar-lhe que saísse, disse
com muita arrogância: "se és duro, minha cabeça e de ferro e se és gtande, eu sou maior do que tu".

Não usava o livro dos exorcismos, mas "certos exorcismos de sua autoria escritos
a mão"; tinha "um papel que se sabia ter sido arrancado de um Iivro in'oitaq.to, escrito
a mão com uma bela caligrafia antiga, contendo os anjos de patriarcas e profetas, e ao
final dizia: "eu te ordeno em nome de... que apareças neste espelho"l e essas misteriosas
folhas volantes deviam parecer tão suspeitas para os inquisidores, quanto atraentes para
quem, entre os presentes, tentava se apoderar do poder misterioso das palavras sagradas.
E, de fato, resulta dos autos do processo que írei Alèssandro tinha entrado em contato
com um astrólogo de Cortona, perito na arte de encontrar objetos roubados. Além das
palawas sagradas, frei Alessandro não hesitava em recorrer aos proprios sacramentos:
costumava dar à possuída "o Santíssimo Sacramento na mão e fazê-la jurar em cima
dele"; e chegava até mesmo a pôr "o cálice embaixo das roupas das mulheres e encostá-
'1o nas partes pudendas". Obrigara uma monja a tÍazer consigo dia e noite uma hóstia
consagrada fechada numa caixinha, ate que a monja, que não conseguia dormir por causa
da caixinha, fosse falar cÒm seu confessor?. Essas práticas continuaram: a confianca no
poder dos sacramentos e, em particular, da eucaristia era tal que as hóstias continuaram
durante muito tempo a atrair o interesse dos exorcistas, não diferentes dos necromantes
e das bruxas nesse aspecto. Aos limites extremos que separavam o exorcismo do sacrilegio
chegou, por exemplo, um monge que costumava dar "a alguns possessos, exorcizados por
ele, partículas nas quais escrevia as palawas da consagracão, para que as comessem"s.
O choque era inevitável, se Menghi, dedicando seu Compendio ao cardeal Giuho
Feltrio Della Rovere, protetor da Ordem Franciscana (no dia "dos santos estigmas do
beato padre S. Francisco") denominava-o "uma armaria contra os insultos do Diabo",
os inquisidores estavam determinados a valer-se de seu "sagrado Arsenale". Não era
apenas questão de tratados, porque esses diferentes saberes eram chamados a exibir seu
valor diante dos problemas vitais de afecções e doenças que não se sabia como curar.
Mesmo após a publicação do Rituale, portanto, os exorcistas continuaram a dispor
de um vasto campo de ação e a desencadear localmente fenômenos de caça às bruxas.
Podia acontecer com qualquer um o que aconteceu em 1643 a Caterina, fllha de Bar

7. Depoimento de 16 de janeiro de 1578 do cônego Mariotto Banchi, que declara ter tomado conhecimento de
tais coisas por tê-las ouvido das monjas e de sua abadessa "como confessor das teíeridas monjas". A passagem

supracitada é tomada da denúncia autógmfa de Girolamo di Michelagnolo, padre de Cortona, apresentada ao


tribunal em 18 de fevereiro de 1578 (Archivio di Stato do Firenze, Nunziatura Aposrolica, Atti Criminalli, 851 [de
1574 a 1586), cc. n. n.: "Processum contra R.dum P. Fratem Alexandrum Florentinum Ordinis S.ti Francisci").
Carta do cardeal Barberini em nome do Santo Oíício ao bispo de Molfetta, 10 de janeiro de 1626, a propósito
de Giovanni Battista Rainaido, monge celestino (sRV, Barb. lnt.6334, cc. 8r,-9r). Sobre a sutil linha de limite
entÌe exoÌcistas e magos, cf. A. Biondi, "Tra Corpo ed Anima: Medicina ed Esorcistica ne1 Seicento (l'Ahxicacon
de Candido Brugnoli)", em Disciplina deLL'Anima, DiscipLina del Corpo e Disciplína deLla Società traMedíoeq.)o ed Età
Moderna, org. de Paolo Prodi, Bologna, 1995, pp. 397-416.

-{ Confissão
r
425

tolomeo di Buto, de Santa Croce sull'Arno: Caterina tinha onze ou doze anos à epoca
e era portadora, segundo consta de sua pastâ processual, de "um mal muito esquisito,
com írequentes quedas no chão e outros acidentes". Os médicos falaram em um mal
não "natural". Foi chamado um exorcista que, apos ter-se certificado de que a menina
estava "capacitada para o exorcismo", tentou entrar em comunicacão com o hipotético
espírito, ordenando.lhe que se deslocasse para um braço. O braço tinha feito "certo
movimento", mas tudo íicara nisso. Por isso, o exorcista estava inclinado a pensar que
se tratava de doença "natural". Nessa situação incerta, impôs-se a certeza do pai de ter
identificado a autora do "íeitiço", teve origem então um caso de bruxaria, que passou
das mãos do tribunal episcopal para as da lnquisição, indo dar em nadae.Portanto,
Caterina e seus pais tinham passado do exorcista ao bispìo e deste ao inquisidor: sinal
de uma incerteza entre os súditos, mas tambem de um conflito entre os titulares do
poder. Foram poupados, ao que parece, de passar pelo tribunal criminal do prÍncipe:
mas esse quarto posto do poder não se manteve absolutamente afastado de tal prática
na epoca. Em Florença, na segunda decada do século XVII, o tribunal criminal dos Oito
teve de trabalhar muito com casos de íeitiços e bruxarias: na mesma época, a cúria ar.
quiepiscopal florentina organizou uma verdadeira congregação de exorcistas para {azer
frente a urnâ enorme quantidade de casos de suspeita possessão demoníaca1o. Assim,
a materia genericamente reunida sob a etiqueta "superstição" era objeto de diversas
candidaturas por parte dos poderes laicos e eclesiásticos - sinal de uma emergência,
atestada de resto pela grande quantidade de queixas e de denúncias acumuladas entre
os papéis da Inquisição. Antonio Maria Cospi, um juiz que então tratou de muitos
casos de bruxaria e necromancia em nome do tribunal grão-ducal, deixou-nos em uma
obra postuma um quadro inquietante das convicçÕes com que atuara em seu trabalho
de juiz: ele acreditava na eficácia malefica de preparados à base de "gorduras de meni-
nos assassinados [...ì ou de outros homens vítimas de morte violenta ou mortos pela
mão da justiça"; procedia à busca de "agulhas, alfinetes, espinhos, estacas, pregos [...]
anéis, imagens, caracteres, lâminas de chumbo"; registrava os ritos e os esconjuros dos
ligamentos para causar a impotência sexual; debruçava-se fascinado sobre o caráter e os
limites dos poderes diabólicos, apoderando-se copiosamente da literatura exorcística11.

O caso íoi instruído na cúria episcopal de San Miniato, mas um resumo foi p".", ìo arquivo da Inquisição de
Florença (ACAF, Misc. S. Uíido, b. 35: "Compendio e Sunto delli Inditii che Vegliano neÌ Processo Fabbricato...
contro Polita Baroni e Lisabetta sua madre da S. Croce ptesunte steghe e maliarde"). Cf. do autor deste volume
"lnquisitori e Streghe ne1 Seicento Fiorentino", em aa. w., Gostanza,IaStrega di SanMíniato, org. de F. Cardini,
Bari, 1989, pp. 241 e ss. Não me foi possível consultar o processo original, conservado no arquivo diocesano
de San Miniato (cí. Livio Tognetti, "Polita e Lisabetta Baroni le Streghe di S. Croce suÌl'Arno", Bollettino üLLa
Accademia degLi Eutelcti, n. 58, dez. 1991, pp. 105-1i0). De acordo com a sentença, publicada por Tognetti, o
processo iniciado em 24 de abril de 1643 foi concluído em 16 de setembro com leves medidas policiais contra
a principal acusada, Lisabetta Baroni Capannini, condenada a un ano de exílio fora da diocese.
l0 Remeto a propósito ao já citado ensaio "lnquisitori e Streghe".
ll As diíerentes íontes da cultura desse singular juiz-policial são indicadas no tírulo de sua obra, publicada
postumamente pelo sobrinho Ottaviano Carlo Cospi' Antonio Maria Cospi, IL Gíudice C-riminalisto... dove con

lnqu isidores e Lxon-str


426

O caso toscano dessa época deu ensejo a uma correção da postura da Inquisição
em toda essa matéria, que ia da magia e da possessão demoníaca ate a bruxaria como
tal. Contra a atividade de Cospi, considerado "juiz incompetente", e ao mesmo tem-
po para obstar as interferências eclesiásticas de outro tipo (os exorcistas, os ffibunais
episcopais), o cardeal Giovanni Garcia Millino, por ordem do Santo Ofício, expediu
t de Roma a Instructio pro Formandis Processibus elaborada por Scagliatz. E e aqui que ve-
\ mos atestado o que se pensava dos exorcistâs nos ambientes do Santo Ofício: vítimas
í
(ou aproveitadores) de enganos femininos, urdidos sobretudo por monjas incapazes
i
1
de suportar a clausura e a castidade. Como era apropriado a um ato do Santo Ofício,
ele não se reíeria apenas a Florença, mas fazia parte de uma vasta carnpanha destinada
a deter os efeitos devastadores da crenca no -au]olhado e na bruxaria. A Inquisição
tendia a considerar como uma questão única aquilo que os exorcistas e os juízes laicos
como Cospi esfalfavam.se em separar em infinitas espécies diferentes: e partia mais
dos efeitos terrenos do que das causas ultraterrenas. De fato, referiam-se a ela como
"matéria dos malefícios" e consideravam-na - como escreveu o próprio cardeal Millino
ao inquisidor de Lodi - uma materia "falaz e por demais incerta"ll. Materia rica em
enganos e erros, portanto: e para sair de um emaÍanhado de erros que tinha posto à
prova a propria autoridâde da Inquisição, decidia-se adotar como único criterio de juízo
o dos resultados concretos desses crimes, os "malefícios", suspendendo qualquer juízo
sobre a existência de pactos com o diabo, sobre voos noturnos e outros elementos típicos
do paradigma da bruxaria. O demônio citado nesse documento não era o anjo negro
de amplos poderes dos manuais de exorcistas, mas o espírito da mentira e do engano;
escapar de suas armadilhas só era possível permanecendo firme no terreno da prática: e
em nome da experiên cia, rerum maglstra, eram iniciadas as tais instruções. Tirava-se daí
a impressão de que o mundo ultraterreno tinha se tornado menos decifrável. Natural-
mente, o demônio era o pai da mentira: mas a prática do Santo Ofício atinha-se mais
às capacidades humanas de mentir e de distorcer. E justamente a
partir da prática com
as mentiras e com as falsas aparências do mundo humano parece ter-se iniciado aqui o
declínio do inferno que dominou então a cena teológica europeia14.
Entre os mentirosos - ou pelo menos entre aqueles que eram vítimas mais
fáceis dos enganos de mulheres (visionárias, possuídas, bruxas) - eram recordados
os membros das corporações eclesiásticas especializadas sm discernir e controlar os
espíritos: e, em primeiro plano, estavam os exorcistas. Quanto às provas, remetia-se
à experiência amadurecida nos procedimentos inquisitoriais; e de fato, nos arquivos
da Inquisição não faltam indícios de como foram acertadas as contas com os exop

dottrina teoLoglca, canoníca, ciuíln, filosofica, medica, storica e poetica si discorre dí tutte quelle cose che aI gludíce dcIle

cause cnminali possono aweníre..., em Fiorenza, tipografia de Zanobi Pignoni, 1643.


12. A referência a Cospi enconfface na caÍta de envio da Ìnstructio, escrita pelo cardeal Millini em 21 de março
de 1626,já citada por G. Bonomo, Caccia atle Stregfu, Palermo, 1959, pp. 298-299.
13. Carta de 9 de maio de 1624, reproduzida por Tedeschi, Thr. Prosecution of Heresl, op. cit., pp. 215.216.
14. Veja+e o velho mas ainda válido estudo de D. P. Walker, Thc Decline of HeLl. Seventeenth Century Discussioru o/
EtemaL Torment, London, 1964.

l-
i
:{\ A Confissão
r.
{l;

cistas15. Porém, se no terreno da vida social a polícia inquisitorial tinha mantido os


olhos abertos, a vitória desse tribunal sobre os poderes dos exorcistas é transcrita
em outro gênero de documentos: por exemplo, nas condenações dos manuais para
exorcistas, que são abundantes no século XVII16; ou ainda nos documentos papais
destinados a limitar ou a proibir o recurso a esse tipo de atividade - documentos
que atingiram principalmente os franciscanos observantes. lJm decreto do Santo
Ofício de 19 de setembro de 1591 proibiu expressamente aos menores observantes
conservar livros de necromancia, geomancia, quiromancia e que tais17. E proibições
semelhantes continuaram a ser feitas aos franciscanos da Observância. Do decreto
de Clemente VIII Cum non síne Gravíssima (5 de março de 1601) ao de Urbano VIII
de 15 de dezembro de 1633, In D. N. Seduìo Incrmberi, renovados em 1657, "para
eliminar - escreveu o cardeal Barberini - a ocorrência de sortilegios, encantamen-
tos e semelhantes crimes, nos quais, com grande pesar (o papa) vê cotidianamente
muitos religiosos dos Menores Observantes mesmo reformados incorretem"ls. O
observatório central do Santo Ofício romano era o mais apropriado para registrar
"cotidianamente" os episódios diários protagonizados pelos monges no comércio
com o sagrado.
Muitos recorriam aos conhecimentos dos frades, que conservavam e conheciam os
livros proibidos. Enquanto o liwo tornava-se cada vez mais um veículo suspeito nas mãos
do povo, as investigações romanas descrevem-nos as bibliotecas dos conventos como um
panorama de extraordinária riqueza bibliográfica: apesar do amplo expurgo ordenado
no final do século XVI e dos danos provocados pelas guerras, apesar do impulso dado às
bibliotecas paroquiais, a realidade do patrimônio livresco italiano no século XVIII era e
continuava a ser uma realidade monástica. "Mais de sete mil volumes de liwos de todas
as ciências, e a maior parte sagrados": é a admirada anotação relativa ao convento dos
padres teatinos de Piacenza, em meados do seculo Xvllle. Foi dessas bibliotecas que saí-
ram frequentemente os liwos de esconjuros e de feitiços; e não íoram poucos os frades
que, ao distribuírem Agnus Dei, medalhinhas, breves e relíquias, puseram-se a louvar seu
poder milagroso mesmo para usos não ortodoxos. Aparições fugazes nos documentos
inquisitoriais - os privilégios da Ordem e sua própria mobilidade salvaram-nos frequen.
temente de investigações mais aprofundadas - as vigarices dessas personagens foram

15. Nos processos do século XVII, enconffam.se ftequentemente casos de exorcistas inquiridos. Um exemplo é
fornecido por algumas pasras conservadas no fundo remanescente da Inquisição boionhesa, ms B. 1888 da
Biblioteca Comunale dell'Archiginnasio di Bologna.
16. Uma relação sumátia é íornecida em M. Petrocchi, Stona dB.Lla SpírítuaLíta haLiana, Secc. XÌII-XX, Roma, 1984,
pp. 157 e ss.
Cí. Pastot, Al\gemeineDekreteop. cit., p.48.
Carta de 1. de dezembro de 1657 ao inquisidor de Florença, conservada em ACAF, Misc. S. U/Ízio, b. tt.tlt,
doc. n. 135.
19. IllnclüestadilnnocenzoXsuíRegolniinhalía. ITeatini,org.deMatcellaCampanelii,Roma, 1987,p. 171.Ainda
não foram estudados os inventários da investigação do íinal do século XM, mencionados por Romeo De Maio,
Riforme e Miti nella Chiesa del Cinquecento, Napoli, 1973, pp. 365 e ss.

I n qu is i dors e Lu.rcr.tr.
lr"-"
428

amplamente descritas no decorrer de processos por cúmplices e vítimas. Entretanto,


alguns deles apresentaram-se espontaneamente diante de algum vigário da lnquisicão,
como fez o menor observante frei Antonio de Brugnato que, em 20 de maio de 1677,
acusou-se diante do vigário de Livorno de ter ensinado fórmulas que, ditas ou escritas
em papel e comidas, protegiam da dor da tortura judiciária e impediam de confessar2o.
Era uma das situacões em que mais se recorria pos poderes mágicos das palawas arcanas
cujo conhecimento era atribuído sobretudo ao mundo dos conventos. Mas a gama das
ofertas era bastante ampla, dominada, naturalmente, pelos segredos de amor e de ri-
queza. Foi um frade agostiniano que, de acordo com a denúncia feita por um tal Nicola
de Lorenzo Berti ao inquisidor de Florença, falou-lhe "a respeito de segredos naturais"
e ensinou-lhe que bastava dizer a fórmula Abbàs, Saras, Sarabas, fructus mulíerum para
enfeiticar as mulheres2l.
No mundo dos conventos e nos níveis mais baixos do clero paroquial a fé na acão
demoníaca encontrava seus cultores mais convictos, seja para combatê.Ia, seja para usá.
'la em proveito próprio. A quantidade de religiosos envolvidos ativamente em práticas
mágicas e esconjuros a espíritos do mal e bastante grande nos papeis da Inquisição;
íoram eles que maniíestaram maior obsessão teórica e prática contra as supostas bruxas,
das quais esperavam - e acabavam extorquindo - confirmações sobre um mundo de
poderes do mal, cujo sinistro fascínio os atraía de modo evidente. As acusadas tiveram
írequentemente que se esforçar para estar à altura do que se esperava delas; e nem sem.
pre conseguiram isso. Quando, em 1647 , num burgo camponês da Toscana, um frade
ambicioso e ignorante submeteu à tortura Caterina Volterrani, uma mulher de 64 anos
acusada de bruxaria, não se limitou a fazer-lhe perguntas "sugestivas", mas explicou.
-lhe minuciosamente o que esperava ouvir: chegou a citar a fonte de sua ciência - o
manual de Menghi. Mas deve ter ficado um tanto decepcionado quando, ao chegar à
descricão do banquete consumido pelas bruxas na noite do sabá, a mulher, tomando
como princípio sua experiência camponesa, descreveu-lhe um sabá à base de pão e
queijo22. O frade pensava ter encontrado a mesma língua daquela religiao folclórica que
Í-r
ti pretendia combater; e a urdidura entre suas perguntas tendenciosas e as respostas da
;
pobre mulher torturada coloca-nos diante de um emaranhado de sugestões da teologia
il t
oficial e ffadicões íolclóricas que constitui a característica original da bruxaria. Nesse
caso, a intervenção do inquisidor de Pisa interrompeu o processo antes que chegasse a
consequências ainda mais crueis: na carta enviada ao frade, encontramos um indício
das capacidades da estrutura de aprender com suas experiências. A confissão da acusada,
segundo o inquisidor, não era prova suficiente, não so porque não havia o corpus delicti -

20. 't...1 Considera-se culpado e acusa também ter dito a Pasquarino de Valle di Casana, diocese de Brugnato, que
as palawas -iesus transiens per medium illorum tèm a grande virrude de proteger, para que os submetidos à tortura
não coníessem, ou que comendo na manhã da toÍtuÌa um pâpel onde estejam escritas as palawa s Cotsumatum
est, não confessaria nada" (Comparecimento esponrâneo de 20 de maio de 1622, AAp,S.l.Jffizio í. 6, cc. n. n.).
21. ACAF, Misc. S. U/fixio, b. ttatt, doc. n. 29 (autodenúncia de 21 de julho de 1650).
22. Arquivo episcopal de San Miniato, CiviLe del|'Anno 1ó42, processo contra Caterina Volterrani de Ponsacco
(Silvia Nannipieri, que me cedeu gentilmente o texto, prepaÌa a publicacão desse material).

A Confissão
r
419

como exigia a"instructio" de Scaglia - mas tambem porque o inquisidor já tinha testado
em um caso dramático a disponibilidade dos acusados de confessar sob tortura coisas
não verdadeiras. Anos antes, no tribunal da Inquisição de Concordia e Aquileia, um
acusado confessara ter participado do sabá e ter provocado a morte de muitas crianças:
os pais dessas crianças todavia desmentiram tudo. O acusado, apavorado por "ter dito
mentira no tribunal [...] enforcou-se"23. A tortuïa e o suicídio tentado pelo acusado
íriulano pouparam então outros sofrimentos à pobre Caterina Volterrani.
O que precisava ser desfeita era a ligacão entre a ciência dos espíritos cultivada
nos conventos e a creduhdade de um povo ateÍrorizado pelos feitiços e pelas doencas.
A peste de 1630, por exemplo, levou à difusão de um antigo instrumento de protecão,
os "breves" devocionários: era costume carregá-los .o.rtigo contra todos os tipos de
agressão24. Mas essa prática, que nos seculos precedentes alimentara o funcionamento
de tipografias monásticas como a de Badia em Ripoli, tornara-se finalmente intolerável
para uma religião depurada, na qual a Inquisição assumira o papel de herdeira e instru.
mento da luta de são Carlo Borromeo contra as superstições. E foi justamente o modelo
de Borromeo a ser evocado nas instruções expedidas de Roma, por ocasião da peste
de 1630, para a publicação de um édito contra essas "vãs superstições"25. Certamente,
as tipografias trabalhavam desde muito na producão não só de breves devocionários,
mas tambem na de materiais de necromancia: as primeiras incursões inquisitoriais no
mundo da tipografia veneziana tinham revelado casos significativos nesse sentido26. Mas
logo não se fez mais distincão entre oracÕes de necromancia e breves devocionários: a
ordem íoi para que se fizesse "queimar em público os referidos escritos de sortilegio e
magia e registrar em processo tal ato"z1.
A caça às formas irregulares da prece e da devocão que se desenvolvia de tal modo
no mundo católico foi apresentada como o equivalente do que acontecia nesse ínterim
no mundo protestante: um processo paralelo de depuração e de intelectualização da fé
ocorreu indubitavelmente nos dois lados da muralha que opunha as confissões cristãs
na Europa28. Realmente, os inquisidores vestiram com frequência as vestes de pacien.
tes pedagogos, em seu esforço de tirar da cabeça de denunciantes e de denunciados
a fé nos poderes mágicos. O próprio tom de seus editos muda substancialmente por

23 Carta do inquisidor írei Ludovico, de Pisa, 12 de junho de 1647 Gden). O."ro dJ íeiticeiro friulano Olivo
Caldo é relatado por Ginzburg, I Bemndanti, op. cít., pp. 148.151.
?,4. E, pelo menos uma vez, íoram encontrados com qu.rn o, ,r".'u, É o caso do documento encontrado e publicado
por Giulio Battelli, "Tre 'Brevi Devozionali del' 500. IJn nuovo testo del 'Pater noster'di San Giuliano",
em
Miscellanea dí Studi Marchiglani ín onore di Febo AIIÊui, org. de G. pace, Agugliano, 19g7, pp. 23 e ss.
!5 A carta, do cardeal de Santo Onoírio, dirigida ao inquisidor de Florenca, é datada de 28 de setembro de 1ó30;
acompanha um édito que não íoi conservado e comenta-o, observando que tais supersticões "como tais
íoram
proibidas também por s. m. de São Carlo Borromeo" (Rcer, M*c. S. lJffizio,b. II.ÌII, n.
42).
26. Como o de dom Iseppo de Carpenedolo, processado em 1534 (Archivio Patriarcale di
Venezia, S. lJffízio,b. Z,
cc. 455r-501u).
)7. Carta do cardeal Arrigoni de 23 de agosto de 1608 (ACAF, Misc. S. U/Írio, b. Il.tti, n. 1).
:8 E a conhecida tese de Jean Delum eau,It catholicisme entre Luther etVohaire,Paris, 1971 (trad. it.
Milano, 1976).

lnqu is idors e Lx..rcr.rz.


410

volta do final do seculo XVl, no momento em que sua ação se volta para os terrenos
ì da blasfcmia e da superstição:

Por não termos outro intento - advertia frei Pietro Visconte de Tabia em 1598 - a não ser
a honra de Deus e a saúde das almas, convidamos e convocamos, com caridade paternal, a todos
os anteriormente nomeados infratores em penitência a comparecerem por livre e espontânea
vontade ao S. Ofício e livremente confessarem seus erros e prometemos.lhes usar de misericórdia,
recebendo-os com benevolência, absolvendo-os e impondo-lhes penitências secretas sempre que
possível e conveniente?e.

Não se tratava de simples pala\-ras ou de p]romessas ilusórias. Ainda enquanto


as ideias do lluminismo abriam caminho nos ambientes cultos das cidades europeias'
não é raro encontrar homens da Inquisição empenhados em explicar a seus clientes
que as noções que esses últimos tinham em materia de magia e de espíritos eram
completamente infundadas e irracionais. O tom de suas intervenções deve ser lido,
levando-se em conta o tom submisso e abatido de quem se apresentava ao tribunal,
contando histórias de tentativas inúteis e de magias ineficazes - um tom mais de
decepção do que de ariependimento. Como escrevia um analista protestante daquele
mundo mágico, se essas velhas pobres e combalidas tinham diabos a seu serviço, devia.se
tratar realmente de pobres diabos3o. A Inquisição católica evitava atentamente negar a
existência do dlabo; mas ao mesmo tempo tentava explicar que as assim consideradas
ações demoníacas não passavam de frutos de imaginações doentias. Tômemos, a título
de exemplo, o episodio protagonizado por Caterina Gabbrielli, dona de um sítio em
Pietrafitta, nos arredores de San Gimignano , em I775. Caterina tinha se autodenun'
ciado por práticas supersticiosas, bem como tinha denunciado as camponesas de seu
sítio como culpadas de mau-olhado em relação a ela. O inquisidor de Florença, ao
qual a questão chegara atraves do trâmite habitual - falta da absolvição do confes.
sor, comparecimento diante do vigário da Inquisição, expedição da documentação à
sede central toscana - resolveu o problema, encarregando o vigário local de absolver
Caterina pelas práticas supersticiosas com penitências leves; mas acrescentou ainda
um adendo a propósito das acusações de mau-olhado, que possui um decidido tom
pedagogico, "Mas deveis convencê-la de que sofre de um mal fisico [...] Esforçai-vos
por tirar.lhe da cabeça - porém sera diíicil - a imaginação que nela se fixou, isto e, de
que a indisposição que a faz sofrer e causada por apalpamentos de velhas feiticeiras
[...1",t. Tinha sido e devia continuar sendo uma empresa dificil eliminar essas ideias:
mas era sempre uma empresa na qual o inquisidor sentia-se parte ativa.

29. Edito geral supracitado (Rstr.l, Inqrisizi one, b. 27 0).


30. "Or, si sa magie ne consiste que dans un te1 pact conffacté avec le diable - escrevia Bathasan Bekker a propó'
sito de uma velha octogenária recoihida em um asilo - il faut donc que ce soit un pauwe diable" (I* monde

enchanté, Amsterdam, 1694, l, p.6021.


Jl. Carta de junho de 1775, em ACAF, Misc. S. U/Ízio, b. ÌI'il, n. 574.

h\=- I

!;' \ I C..nilr.ão
[íi,
r
4ll

Naturalmente, isso não significa que se podem arregimentar sem outras distin-
çÕes as milícias da Inquisição sob a bandeira da razão:
e nem as analogias entre a luta
contra as superstições no mundo católico e no protestante devem fazer esquecer as
diferenças. No campo católico, por exemplo, junto com os breves, os "Agnus Dei" e
oS terços bentos considerados como "supersticiosos", havia os 'Agnus Dei", os breves,
as medalhinhas e a água benta considerados como ortodoxos: não e insólito o caso de
discussões e objeções promovidas por supostos magos e bruxas junto a inquisidores
embaraçados32. A importância dos veículos sensíveis do sagrado, o poder que palavras
e objetos tinham na liturgia católica de transformaÊse e transíormar eram fatores que
impediam qualquer interiorização e intelectualização da fe religiosa tão radical quanto
a perseguida no cristianismo da Reforma. Diferenciai o heretico do ortodoxo' nesse
tipo de práticas - uma vez abandonado o caminho da demonologia dos exorcistas -
significou percorrer ate o fim um caminho mais harmonioso para uma instituição bu-
rocrática e fortemente centralizada: era ortodoxo (ou era herético) o que a autoridade
eclesiástica definia como tal. Quem se detinha nas semelhanças entre ritos ortodoxos
e práticas supersticiosas já se encontrava no perigoso caminho da heresia. A fórmula
da abjuração - Credo quod credit sanctaMater Ecclesia - era uma rendição incondicional
. o abandono de todo exeroício autônomo do pensamento.

32. Ao inquisidor que lhe perguntava por que Ìecorria a terços bentos, Maddalena Serchi de Certaldo respondeut
"O padre disse no altar que eles têm grande virtude e devoção, que soubéssemos disso" (dep. de 11 de julho
de 1625; veja+e do autor do presente volume "lnquisitori e Streghe"' op. cit., p. 232)'

\ Inquisidors e Lx.. rcr'ta'

[,
{
r:

XXI
SNxIDADE VT,nONDEIRA r, FRmn

I loqueada a portâ da angelologia como ciência e contestado validamente o prestígio


L) dor exorcistas, continuava aberta, no entanto, uma veÍtente da presença dos poderes
do alem-mundo entre os homens - a santidade. Ao lado de quem invocava o Anjo negro
ou o Anjo branco para obter poderes e riquezas, havia quem invocava os espíritos celes.
tes, tentando o caminho da perfeição cristã. A Inquisição estendeu seu controle também
nesse terreno, seja através da verificação oficial dos atos relativos aos santos mortos, seja
através da decisiva eliminação da "santidade viva".
Pode-se observar a respeito da santidade algo semelhante aos outros campos ate
agora examinados da obra da lnquisição. Em torno da blasfêmia e do sacrilegio bem
como em torno dos poderes decorrentes de outros tipos de relações com espíritos de
alem-mundo - a superstição, a bruxaria - tinham se intensificado de um lado as práticas
sociais e, de outro, a disputa por seu controle, até pelo menos a vitória conclusiva da
Inquisicão. Pois bem, a questão da santidade tambem parece marcada por uma evolução
semelhante. Estamos diante de trajetórias mais longas do que as expressas, no breve
período, pela ruptura da Reforma e da Contrarreforma.
A crise viera à tona com a crítica humanística e erasmiana dos milagres e do
maravilhoso: uma crítica que, porém, não conseguira impedir a crescente popularidade
das manifestações taumatúrgicas, de quem era seu produtor e tambem de quem sabia
monopolizar seu patrocínio. Fossem as ordens religiosas, ciosas guardiãs das relíquias
mais ilustres, fossem os príncipes como protetores das "santas vivas"l, encontramos
sempre a mesma percepção da importância crucial que a experiência da santidade tinha
assumido na vida social. Podia ser uma experiência procurada por conta própria, ou
então um desejo de experimentar seus reflexos: é fato que no decorrer do seculo XVI
aumenta a busca da perfeição fora dos canais tradicionais das ordens monásticas - para
uma minoria - e, para a maioria, a busca do contato com o taumaturgo ou da orien-
tacão de um mestre de assuntos espirituais, de um pai ou de uma mãe de acordo com
o espírito. Os tons dramáticos e intensos desse novo ílorescimento de experiências
reiigiosas têm como íundo os desenvolvimentos devastadores das guerras, os conflitos
teológicos, a ruptura da unidade religiosa; ao mesmo tempo, a mudança na íisionomia

1. Cf. G. Zani, Le Sante Vive. Profezíe di Corte e Deuozíone Femminile rro '400 e'500, Torino, 1990.
t:

434

oficial da religião leva a dramatizar e a considerar com desconfianca toda uma serie de
manifestações que já tinham pertencido ao patrimônio do cristianismo medieval: entre
elas, a santidade milagrosa e taumatúrgica.
A crítica da "superstição" foi acompanhada por uma crescente polêmica contra
a busca de guias carismáticas em lugar da hierarquia oficial. Pregadores ilustres como
Serafino de Fermo advertiam contra o excesso de curiosidade em relação aos "espiri-
tuais" - que ele, de modo depreciativo, chamava "espiritados"l mas os "espirituais"
gozaram de tamanho prestígio a ponto de fazer sombra à igreja institucional. A busca
de "sinais" visíveis - profecias, miiagres, poderes extraordinários como a levitação, o
voo, as aparições - caminhavapari passu com o descredito que a crítica humanística,
ampliada e intensificada pela polêmica reformadora, tinha lançado sobre toda essa
serie de coisas. E sobre este fundo que se deu o avanço da lnquisição no território
da santidade.
No início do século XVII, o avanço estava virtualmente concluído. As primeiras
solenes celebrações seiscentistas de novas beatificações fecharam um longo parêntese
Ì de incerteza e de suspense. Mas, na epoca dessa retomada, o Santo Ofício mantinha
I sob rígido controle a atividade da congregação cardinalícia responsável pelas causas
i dos santos
Não podemos dizer que conhecemos detalhadamente a história de como tinha
se consolidado esse tipo de controle. No plano doutrinário, a fundamentação foi pro-
piciada por Roberto Bellarmino: se o papa tem o poder de definir a verdade da fé e
de decretar quem são os hereges, consequentemente tambem tem o poder de indicar
quem são os santos a serem venerados. Portanto, da precedência na luta contra a heresia
deriva especularmente o direito de decidir quem são os santos2. Bellarmino captava com
precisão um fenômeno característico da história da Igreja nesse período. Os polemistas
da Reforma protestante tinham atacado a "falsa religião" romana e proposto o modo
de identificar os sinais característicos da "verdadeira religiao"3. O ataque protestante foi
rechaçado; mas se no plano doutrinário e institucional não houve incerteza quanto a
confirmar a "verdade" remana, diferente e mais complicado foi o problema das formas
que a "verdadeira" religiao devia assumir no nível de sua expressão máxima: a santidade;
o patrimônio da tradição medieval pertencia ao passado e, depois que a borrasca da

"Proponere toti Ecclesiae quid sit credendurn, et quid agendum in iis quae sunt religionis" é poder do papa
"qui toti Ecciesiae praeest. Item ex contrario, declarare, qui Sint haeretici, ita ut a tota Ecclesia pro talibus
habeantur, est summi pontificis, ut ante ostendimus, ergo declarare qui sint sancti et colendi, eiusdem erit
summi pontificis" (Roberto Bellarmino, De Controuersiis Chnstianae Fídci Adqtersos huiw Tempons Haereticos, IV,
DeEccltsiaTnurnphante, em Opera Omnia 2, Napoli 1857, 1. I, c. MlI, 2; a passagem e assinalada num estudo de
Giuseppe Dalla Torre, "Santità ed Economia Processuale. IlEsperienza Giuridica da Urbano MII a Benedetto
XIV', em Finzìone e Santità tra Med"ioeqto ed Età Moderna, org. de Gabtiella Zarri, Torino 1991, pp. 231-263; em
part. p. 2i4 e nota).
Exemplar, pelos tons da polêmica, o título de um texto de Matteo Flacio lllirico, Clnrissimae quaedtmNotae,
Verae et Falsae Religionis, atque Adeo ipsir.rs Antichristi , ex quibus etiam rudiores... statuere queant nostram doctnnam

esse oerdm dc ipsiís ChÍisti, Papísrarum vero falsam et plane ipsius Antichristi, Magdeburgi, 1549, op. cit.

À Confissáo
r.=

435

crítica humanística tinha passado sobre ele, devia ser inventariado. Além disso, as for-
mas sociais assumidas pela santidade como fato cultural foram tais e tantas a ponto de
demandarem - não menos do que a bruxaria - uma intervenção cuidadosa mas decisiva.
Ora, a santidade não era outra coisa a não ser o ponto de definição máxima
da relígião e da fe. Visto que o instrumento e o local específico de elaboração da
vonrade papal em materia de definição da heresia era o Santo Ofício, era óbvio que
esse instrumento também fosse usado para controlar a produção de santos por parte
da sociedade cristã. Analogias do processo canônico com o processo inquisitorial
foram identificadas no plano formal - por exemplo, na introdução do promotor fidei
desde a época de Leão Xa. Mas pretendemos assinalar aqui somente as ocasiões em
que a.reforma das "vias legais para a santidade" susciàou intervenções específicas
de controle por parte do Santo Ofício. lJm momento decisivo e, do ponto de vista
íormal, totalmente evidente, e o da verificação da ortodoxia doutrinária por meio
do exame dos textos: já que o santo, na concepção que se firmou entre os séculos
XVI e XVll na Igreja catolica, era um modelo exemplar de virtude proposto para toda
a Igreja - deixando de ser, portanto, o taumaturgo protetor de uma determinada
comunidade - a qualidade preliminar a ser constatada era a pureza da fe. E assim, o
primeiro e decisivo movimento do processo canônico passou através da congregação
do Santo Ofício. Mas foi em um plano mais geral que o trabalho do Santo Ofício em
prol da ortodoxia veio a ocupar o terreno da santidader "seguramente ate a década
de trinta do seculo XVll - escreveu Giuseppe Dalla Torre - em essência, o Santo
Ofício ocupou.se diretamente com a materia pertinente à veneração dos santos, seja
no que se refere à repressão dos abusos, seja no que se refere - de modo mais positi-
vo - à aprovação do culto público"5. Ao longo desse caminho, encontram-se outras
prescrições mais sutis: por exemplo, as de Urbano VIII relativas à confecção e ao uso
das imagens de santos, graças às quais até mesmo o florescente culto das imagens
teve de passar pelo beneplácito da Inquisição.
Tudo isso tinha a ver com o culto dos santos mortos, o tradicional enfim. Mas
restava o fronte da santidade como atributo de pessoas vivas. Os novos modelos de
santidade que entraram em circulação no decorrer do século XVI levavam a diferentes
direções: havia a busca da experiência do martírio pela fé, que impelia os jovens a entrar
nas ordens missionárias e a embarcar para terras não europeias. Nq que se refere a essa
santidade heroica, masculina e conquistadora de mundos novos, reservada a poucos, a
alternativa era constituída, sobretudo (mas não exclusivamente) para as mulheres, por
uma prática devota feita de exploração do mundo interior, que culminava em êxtases
e arrebatamentos. Em torno de quem se acreditava ter um certo grau de familiaridade
com o alem.mundo, íormava-se um fluxo de seguidores, de clientes e de curiosos. A essa
altura, os fenômenos interiores repercutiam no mundo exterior, com a característica
subversiva de mensagens que pretendiam vir diretamente do além-mundo.

4. Cf. Dal1a Torre, "Santità ed Economia Processuale", op. cit., p. 239.


5. Iden,p.247.

Santidade Verdadein e Fris


í

436

Uma presença típica dos novos tempos, impensável na epoca da luta contra Lute,
ro, é a da santidade falsa ou íingida. Impensável, certamente: ninguém teria imaginado
que a estrutura edificada para resistir ao ataque de uma serie de "heresias" feitas de
cortantes e agressivas "verdades" teológicas, nascidas de um atormentado e agostiniano
senso de culpa, ver,se.ia combatendo multidoes de candidatos à santidade, obedientes à

Igreja romana, devotados a todas as devoções lícitas, peritos na vida da perfeição. E, ao


contrário, essa, justamente, tornou-se a presença mais inquietante que os inquisidores
tiveram de combater. E um íenômeno de primeira grandeza na história da religiao
pós-ffidentina que só recentemente foi identificado, mas cuja extraordinária riqueza
de historias individuais - predominantemente felnininas - que foi capaz de veicular
já pode ser intuída6.
Diante de casos do gênero, que ocupam grande parte da província da santidade
cristã, a alternativa em que se achavam confinadas as autoridades eclesiásticas era, como
foi dito, a do verdadeiro,/falso. O primeiro indÍcio italiano do avanço da Inquisição
nesse território não íugiu à regra. Quando o tribunal napolitano teve que tratar do
caso de Alfonsina Rispola (por volta de 1590) a questão que se colocou num primeiro
momento foi "se as coisas contadas por ela procediam realmente de um dom especial de
Deus ou de ilusões or èrgrrror do demônio"7. Mas logo se devia chegar à identiíicação
de uma terceira possibilidade: entre verdadeiro e falso, havia a categoria da "santidade
fingida", isto e, de um misto de mentira e hipocrisia. Era uma categoria que, mais uma
vez, marcava a tendência da Inquisição de movepse em um terreno completamente
humano, deixando de lado a ciência dos espíritos.
Do ponto de vista da instituição eclesiástica, a questão não dizia respeito à
santidade - cuja possibilidade e importância a igreja tridentina tinha reafirmado, em
polêmica com os protestantes - mas ao "fingimento". O problema que o governo ecle-
siástico teve de enfrentar foi o da autenticidade das experiências que uma multidão de
aspirantes à santidade, à união direta com Deus, vinha apresentando. Eram autênticas
ou eram ilusorias? A iÌusão e o engano eram as artes do demônio, o enganador por
definiçao. Discernir a verdade dos espíritos era uma questão antiga, que retornava atua.
lizada, aparicões, visões, revelacões eram fenômenos extraordinários e profundamente
emocíonantes que levavam à percepção de Deus atraves da linguagem do corpo e que
indicavam em quem era protagonista uma esperança parà todos os problemas de sua
comunidade. Cabia aos clerigos regulamentar e conffolar tais fenômenos, fornecer a
chave para discernir quanto havia de verdadeiro e quanto de falso. Por essa via, o saber
oficial da Igreja e suas funções reguladas pelo direito podiam retomar o controle sobre
as ocorrências imprevistas de divino na vida cotidiana. De resto, era um dever pastoral

C{. Zarrí (org.), Finlione e Santítd tra Med.íoeuo ed Età Mod.ema, op. cit. No que se refere ao mundo espanhol, as

íontes foram estudadas em uma importante pesquisa de Isabelle Poutrin (Le voiLetlapLume. Autobiographie et
sainteté. féminine dans L'Espagne mod"erne, Madrid, 1995), que coloca em primeiro plano a questão da autobio-
grafia feminina.
Cf. G. Romeo, "Una 'Simulatrice di Santità'a Napoli nel '500: Alfonsina Rispola", em Campanra Sacro, MII-X,
I
197 7'197 8, pp. 159-218.
&i
r-t--*.=tft.
\ Confissão

I
7

4l;

percebido com profunda seriedade: era preciso proteger os homens dos enganos do
pai da mentira, do espírito das trevas capaz de encenar as características dos espíritos
da luz. E por isso, o trabalho da discretio spirituum consistia em dar ao diabo aquilo que
lhe cabia, descobrindo seus enganos e impedindo os fiéis de caírem em seus engodos.
Eram esses os dados tradicionais: uma síntese deles, fundamental e largamente
utilizada, foi fornecida por Jean Gerson. Mas no final do seculo XVI a questão do dis-
cernimento dos espíritos complicou-se. Ao lado do engano demoníaco, capaz de câtivar
a confianca do homem, impôs-se a noção do fingimento humano. A experiência da
luta entre as várias igrejas saídas da crise da Reforma ensinara que os homens tinham
aprendido bem a arte do engano e que não havia necessidade de recorrer à ação direta
do demônio para explicar as refinadas alquimias da *eàtira. Foi provavelmente a expe'
riência acumulada no descobrir por detrás das aparências e dos enganos as verdadeiras
convicções dos indivíduos que pôs os inquisidores no encalço do que devia se tornar
um de seus principais objetos de investigação: a hipocrisia, ou seja, a santidade fingida
ou simulada.
O que e a hipocrisia? É a arte do ator, que repïesenta um papel diante dos espec-
tadores e não so com palavras mas também com os atos indur@ òrËdiãtrno que não é
verdadeiro. Assim um eruditd tratado sobre a questão da verdade tentava explicar em que
consistia a mentira. Ainda que seja possível distinguir muitos tipos de hipócritas, eles têm
um único objetivo: obter louvores e fama de santidade através do exercício de virtudes
fingidas: falsos jejuns, exibições de devoção às imagens sagradas, preces em público (para
ser visto e ouvido por todos), suspiros e lágrimas íingidas ao rezar (quando a verdadeira
prece e feita com o coracào, quase sem mover os hbios). Ora, visto que a verdade não
consiste apenas de palawas, mas repousa sobre a união das palavras com os fatos, o grau
mais elevado da mentira e dado pela hipocrisia e o grau mais elevado da hipocrisia e
a santidade fingida. lmagem do íalso santo e o diabo - escreve o autor - pintado em
trajes de homem piedoso, quando vai seduzir Cristos. No repertório contemporâneo de
Ripa, a imagem da hipocrisia e, de fato, a de um devoto, com o terco numa das mãos e a
outra ocupada em dar esmola, mas sob a longa veste do devoto desponta o pe caprino. E
uma imagem que, sozinha, basta para medir a distância dos anos da luta contra Lutero:
então, o pé caprino despontava sob a batina de Lutero e os chifres de bode furavam a
máscara com os traços do reíormador.
Em menos de um século, o inimigo - o Inimigo por antonomásia - mudara pro-
fundamente. As muralhas da instituição eclesiástica não eram ameacadas pelo desafio
dos teólogos e o estrondo das armas, mas pela serena, sussurrante devoção de muitos
buscadores da perfeição. Como era possível tanto alarme por causa de inimigos que,
mais do que atacar frontalmente o edifício da devoção, apresentavam-se como praticantes
talvez exagerados, mas entusiasmados, das vias de aperfeiçoamento espiritual garanti-

8. Petri Simonis Tiletani Episcopi Yprens is, De Ventate Libri Sex et Reliqua eius quae supersunt, muhae eruditìonis et
pietatís Opera. CoIIe.gít et recensuit, pro suo in amicum defunctum ffictu P. Ioannes David., Soc. Iesu sacerdos, Anwerpiae,
ex Officina Plantiniana, 1609, pp. 132 e ss.: De Hlpocnsi eiusqueNatura.

Santidade \trdadein e Fai*


r.'.

438

das pela lgreja? Uma pequena demonstração pode nos ajudar a entender as razões do
alarme. No início dessa historia há a imagem evangelica do lobo predador sob a pele de
cordeiro: a passagem de Mateus 7 ,15 fora usada continuamente na literatura contra os
seguidores de Lutero. Ele é aplicado agora aos "falsos santos"l esses dois inimigos, tão
diferentes entre si, tinham em comum o poder de seduzir o povo. "Falsos profetas, em
trajes de cordeiros", seduziam as multidões; demonstravam grande afeição pela plebe
ignorante, a simplicem indoctamque pl,ebem mas só para usufruir o sucesso. Verdadeiro
inimigo de todos, o hipócrita e um lobo para o homem, lupus est igltur homo nlis homi-
nie. E visto que estamos em uma cultura que pensa por imagens, eis outra imagem rica
em atributos e força evocativa: a de uma mulher vestida de púrputa e ouro e enfeitada
com gemas e perolas. Ela segura na mão direita um cálice cheio do abomÍnio de sua
superstitio: e a falsa e fingida religiao (fíctareligio)to. Não havia necessidade de mencionar
o nome de quem tinha sido o primeiro a propor essa imagem: tratava-se de Andrea
Alciato, o autor mais íamiliar a uma cultura que estava cotidianamente habituada aos
emblemas. E singular o fato de que, enquanto Pierre Simon aplicava aos hipocritas a
imagem dafíctareligío, ainda não se tinha perdido a lembrança de quando essa imagem
referia-se à Igreja de Roma. Em um mosteiro udinense, um grupo de monjas rebeldes
no início do século XVII cantava os versos do emblema dedicado por Alciato à ficta
religio, e identificavà a uer& religio com a de Calvinoll. Pierre Simon tambem conhecia
bem esse clima e em parte ainda se movia nele: um de seus escritos é dedicado à defesa
da "verdade" católica das opiniões do cardeal Sadoleto contra as "falsidades" de Calvi-
no. Mas, finalmente, a versão mais urgente e atual da oposição entre verdadeira e falsa
r' .- jáìra
religião
.> a que circulava em torno da santidade.
Se abandonamos o ponto de vista inquisitorial, concentrado na questão do
engano e do fingimento, e tentamos decifrar as características sociais do fenômeno,
encontramo-nos diante de muitos traços não novos. Trata-se, em geral, de grupos e
grupelhos, comunidades pequenas (mas por vezes também muito ramificadas e extensas)
reunidas em torno de figuras carismáticas caracterizadas por maniíestaçÕes excepcio-
nais - revelações de acontecimentos futuros, visões, poderes taurnatúrgicos - arraigadas
em um poder pessoal de acesso ao mundo divino. Fenômenos do gênero, em seus
traços tipológicos, acompanham frequentemente, como um ruído de fundo, a face
ortodoxa do cristianismo historico: são a eterna tentação da perfeição, da experiência
excepcional e suprema de contato direto com Deus. Porém, não se pode negligenciar
o potencial de subversão de tais manifestaçÕes, sua capacidade de construção de novas
íormas de organização social e de exercício do poder. A instituição eclesiástica como
corpo regido por vínculos jurídicos, como sistema de poderes estruturais e transmitidos

9. Idem, p. 138.
L0. Idem.
11. V.doautordopresentevolume"ljUmanitàdiCristorraDevozioneedEresia",emAntimnitananismíntlrcSecond
Holf of tlv 16th C*ntury, org. por R. Dàn e A. Pirnat, Budapeste, 1982, p. 707; o texto da canção "falsa religião"
é reproduzido em apêndice ao amplo estudo de Giovanna Paolin, "llEterodossia nel Monastero delle Clarisse di
J
Udine nella Seconda Metà del '500", em Colbcnnea Francíscano 50, 1980, pp. 107-167; em part. p. 1ó0.
ilr*,*

r{ Contissão
í-

439

de acordo com normas impessoais, era ameaçada por uma tal de religiao de santos e de
personagens carismáticas; mas não era menos ameaçada por ela a solidez dos vínculos
e dos poderes políticos, pela carga de contestação diretamente política e social que
essas realidades exprimiam em seu próprio constituir-se como "verdadeiras" formas
de organizacão cristã.
A luta foi longa; a história da "falsa" ou "fingida" santidade foi uma componente
essencial dessa luta. Dos tempos dos fraticelli e dos savonarolianos ate as devoções mís.
ticas do século XVII e as revoluçÕes dos "santos" puritanos, o campe de definiçao da
santidade foi um campo de batalha. No mundo católico, coube à estrutura eclesiástica
e a seus instrumentos de vigilância e de repressão - a inquisição em primeiro lugar -
manter sob controle as ameacas políticas e sociais alimentadas pela religiao. Tratou-se de
pulsões que atravessaram todo o espectro social, desde os grupos marginais ("monjas e
camponeses, frades e outros adivinhadores", como os denominava depreciativamente um
historiador florentino do início do seculo XVI12) até os ambientes de cortes cardinalícias
e principescas. Havia sobretudo mulheres, frades e outros guias carismáticos, unidos pela
profecia: e ao redor deles, príncipes e soberanos que indagavam suas visões, ou então
um círculo de "simples", todos atraídos pela presença viva e visível da santidade - ou
até mesmo de Deus em pessoa.'A personagem central desses grupos e geralmente uma
personagem dupla, o santo como portador da divindade e seu profeta - um homem
e uma mulher, no caso mais simples, ou de todo modo uma copresenca de elementos
masculinos e femininos. Do monge Têodoro e de sua companheira Maria que, em 1515,
foram processa{os e condenados em Florença, ao médico de Reggio Basílio Albrisio
que, por volta de 1559 , {ez-se passar por Cristo reencarnado e teve um séquito de doze
monjas ("figura" da lgreja apostólica)13, o fenômeno represent&se variadamente nas
decadas centrais da epoca da Reforma. Retorna e torna-se mais denso a partir do final
do seculo XVI: e aqui os casos já são incontáveis. Enquanto se impunha e era reprimido,
o fenômeno perdeu seus tracos mais abertamente heréticos e radicais, que no entanto
não deixaram de aparecer: conservou constantemente o caráter de pequena comuni.
dade, reunida em torno de uma viva presença divina, dirigida ou mediada pelo santo.
Mas a ameaca subversiva das mensagens proféticas e das comunidades de "santos" fez.se
perceber no final do século XVI com novas tonalidades no próprio cerne do mundo
católico e das cidadelas da ortodoxia.
Profecia e política eram indissoluvelmente ligadas: das visões do futuro, ga.
rantidas pelo céu, surgiram verdadeiras conspirações. Como a de Stilo, na Calábria,
dominada pela personalidade de Tommaso Campanella; e antes ainda, a que foi pro-
tagonizada por uma visionária peruana, Maria Pizarro, que trazia no nome a tradicão
dos conquistadores, ao redor dela, os protagonistas da "conquista espiritual" - do-
minicanos e jesuítas. Para a Inquisição de Lima, a história teve início em 1571 e foi

Bartolomeo Cerretani, Dial,ogo dellaMutatione di Firenze, org. por Gíuliana Berti, Firenze, 1993, p. 15.
Cí. os textos reunidos pelo autor deste volume e por Albano Biondi em "ll Processo al Medico Basilio Albrisio.
Reggio 1559", em Contribati della Bíblioteca Panizzi di Reggjo Emilía, 4, 1978.

Santidade Verdadeira e Fals


/

440

concluída em 1578 com um clamoroso processo e com a condenação à fogueira do


dominicano frei Francisco de la Cruzla. Mas seus ecos foram muito mais duradou-
ros. No entanto, a assim chamada heresia de frei Francisco de la Cruz foi algo bem
mais amplo e perigoso do que a solitária heresia de um dominicano. Entre visoes e
exorcismos, tinha se formado uma mistura explosiva de expectativas milenaristas e de
crítica do sistema político vigente. Até os jesuítas estavam diretamente envolvidos na
coisa. Somente a habilidade do visitador enviado pela Companhia de Jesus conseguiu
evitar que as autoridades da Companhia no Peru fossem publicamente envolvidas:
esse visitador chamava.se Jose de Acosta e deveu-se a ele uma crítica radical de qual-
quer tentativa de aceleração do curso da historia em bases proféticas e milenaristas:
as mulheres - ele afirmou, retomando os argumentos de Jean Gerson - eram fracas e
sujeitas ao engano; o demônio, pai da mentira, as iludia com falsas revelaçoes. Além
disso, a convicção de poder conhecer o desígnio de Deus sobre a história humana
possuía um perigoso potencial revolucionário. A historia europeia dos séculos seguintes
devia demonstrar a precisão de tal diagnostico no nexo entre Apocalipse e revolu-
ção. A estratégia proposta por Acosta ante a ânsia conquistadora presente também
em sua Ordem foi atuar como se o mundo não devesse jamais acabarl5. A crítica ao
profetismo investia diretamente contrâ o projeto de uma imediata e revolucionária
transformação do mundo com vistas à realizaçáo do reino dos justos. Daquela crítica
do potencial revolucionário dos fènômenos de "falsa" santidade deviam decorrer
muitas consequências: em(rimeiro lugar, um repensar e uma tentativa de reorgani-
zação das formas de controle e de orientação da santidade e da devoção feminina.
Mas o caráter potencialmente subversivo de semelhantes fenômenos levou sobretudo
a confiar o probiema à estrutura criada para a defesa do ordenamento vigente das
formas de poder, a Inquisição.

Na origem desses fenômenos estava implicada a curvatura devota e patética assu-


mida pelos moclelos mais difundidos e autorizados de religiosidade. As características
intimistas e sentimentais, que aparecem cada vez mais nas formas dominantes da vida
religiosa do "outono da Idade Média" tinham estimulado uma busca voltada a atingir a
percepção do divino nas experiências da visão interior. Os fenômenos da iluminação e
do abandon o (qlumbrados, dejados) que as autoridades eclçsiásticas espanholas do início
do seculo XVI consideraram suspeitos e condenaram como hereticos, foram as mani-

t4. Cf. M. Bataillon, "l-a Herejía de Ftay Francisco de ia Cruz y la Reacción Antilascasiana", em Ê.tuàes sur Bartolomé
àe las Casas, Paris, 1963, pp. 109-374. O processo íoi mencionado e estudado pela primeira vez por Toribio
Metlina, ElTribunoldelttlnquísicíónenLima(1569-1820), (1887), com preí. de Marcel Bataillon, Santiago do
Chile, 1956, cap. V, pp. 63 e ss.
15. J. de Acosta, DeTemponbus Nouissimis Libn Quatuor, Romae, aplrd Tornerium, 1590; ver do autor deste volume
"New Heaven and New Earthr Prophecy and Propaganda at the Time oí the Discovery and Conquest oí the
America" em Marjorie Reeves (ory),PropheticRomeintfuHighRenaissance Penod, Oxíord, 1992,pp.779-30);em
part. p. 301. Sobre os resultaclos revolucionários das tendências úsionárias e apocalípticas, cí. E. P. Thompson,
lTirness against rheBeast, London, 1993, trad. it. Apocalisse eRir,ol"uzione, Milano, 1996, ttad. bras.Tesremunha
contra aBesta, São Paulo, Edusp, no prelo.

-.h*
A Confissâo

ú"
r
441

festaçÕes iniciais e extremas de tendências destinadas a impor-se. A piedade religiosa,


abandonando o terreno da construção da respublica christiana, tornara-se cada vez mais
instrumento para agir sobre o mundo interior: de 1á, por meio de revelações e profecias,
ameacava efeitos devastadores na ordem existente.
Era uma tendência que obedecia a uma evolução de alcance mais longo e amplo.
Mas o sucesso dessa devoção moderna, feita de busca da consolação interior e que
culminava no êxtase místico, trazia problemas à Igreja como autoridade de governo.
Os guias, os exercícios, as práticas devotas sugeridas por ordens religiosas e por auto-
res de temas espirituais forneceram modelos de percursos para se atingir a períeição
marcados pela vontade de pôr um freio nessas manifestações: sua regra fundamental
foi a obediência. Quem experimentava fenômenos extlaordinários devia submeter-se
aos conselhos de um pai espiritual, guardar para si eventuais visões e revelações, não
buscar notoriedade. Mas essa ligaçao entre pais e filhos espirituais era tal a ponto de
não garantir completamente as instituições: como demonstrava o caso de Maria Pizarro
e de seus exorcistas e coníessores - o jesuíta LuízLopez, o dominicano Francisco de la
Cruz - os papeis de pai e íilho podiam ser trocados com muita facilidade.
Na busca da perfeição e da íruição direta da divindade, há formas recorrentes
de devoção, como - fundarrtental - a da comunhão assídua, não precedida frequen-
temente pela confissão dos pecados. Spria possível pensar em um reflorescimento do
antigo, apos o intervalo de duros conflitos teológicos da Reforma. No fundo, muitos
dos íenômenos condenados como "falsa santidade" ou "hipocrisia" já eram conhecidos
nos seculos que antecederam Lutero e Calvino: mulheres que viviam só de eucaristia
e que atraíam a atenção de multidões de íieis com manifestações excepcionais, visões,
êxtases, revelacões. Era, efetivamente, um retorno do antigo e de um antigo nunca
desaparecido de todo. Antigos os modelos fornecidos pela religião e antiga a posição
feminina na sociedade (e a relação entre mulheres e alimento), era inevitável que cer-
tos fenômenos se reproduzissem, principalmente em ambientes como os conventos
femininos, em que os dois contextos - da cultura religiosa e da coerção social - pro-
duziam ao máximo seus efeitos. A devoção eucarística fora insistentemente exaltada
tambem com função antiprotestante. A tendência já era existente e disseminada por
volta de meados do seculo XVI; e mais adiante, foram os primeiros jesuítas que sofre-
ram os ataques dos desconfiados guardiães da ortodoxia por manifestacÕes do mesmo
gênero. A comunhão frequente apresentava-se como uma inquietante ruptura de uma
tradição que circundara o contato com o corpo de Cristo com uma série de cuidados
e de regras. Somente os perfeitos podiam hospedar no próprio corpo o corpo de
Cristo como presença habitual; essa convicção disseminada entrava em choque com
a tendência em abolir as distâncias e em substituir o alimento terreno pelo alimento
divino. Encontramo-nos aqui diante de um longo e profundo traço deixado pelo
cristianismo medieval, um problema que tinha angustiado e contraposto místicos e
homens de governo eclesiástico: tratava-se do ponto de contato entre uma religiao
íundada na presença do Deus como alimento e uma sociedade da penúria, um mun-
do pré-industrial obcecado pela ameaça da fome, com suas mulheres condenadas à

Santidade Verdadeira e
7

442

silenciosa função de nutridoras16. Quando os homens do livro, teólogos e humanistas,


apinharam a cena histórica com suas controvérsias, essa ffadicão não desapareceu.
Aliás, muitos testemunhos do século da Reforma deveriam ser relidos, registrando a
presença subterrânea de tendências desse tipo. Não foi absolutamente por acaso que
o opúsculo mais popular da Reforma italiana, o célebre Beneficio di Crisro, seduziu seus
leitores com uma página de inspirada devoção eucarística.
A busca da perfeição era uma variante mediterrânea da ânsia luterana pela própria
justificação: foi por esse caminho que na obra de Juan de Valdes a experiência mística
'dos alumbrados e a da teologia luterana misturaram+e e confundiram seus traços ate

{ tornáìos indistinguíveis. A obra de outro espanhol, Inácio de Loyola, mostraria que


II os caminhos eram efetivamente muito diferentes um do outro. A Companhia de Jesus,
l que foi o instrumento mais eficaz da luta contra a Reforma protestante, foi tambem
: fonte inexaurível de estratégias da perfeicão e da santidade, até ver-se envolvida no
celebre conflito com o rigorismo jansenista. Ora os jesuítas não foram certamente os
' únicos que se moveram em direção de um estilo de vida construído para conduzir à
santidade e, portanto, à degustação na terra do futuro reino dos ceus. Antes deÌes, o
dominicano Battista de Crema e seu discípulo, o cônego regular agostiniano Serafino
de Fermo, tinham pregado e praticado regras para chegar à vitória contra as tendên,
cias pecaminosas do homem, o ensino fora reunido por indivíduos e por grupos. Por
exemplo, a congregação dos primeiros barnabitas com g ramo feminino das Angélicas
(a presença de mulheres é um sinal seguro dessa religíao do alimento divino e da paz
dos perfeitos) inspirara-se em regras orientadas para a vitória sobre as pulsões culpáveis
do individuo ate eliminar em Deus os limites individuais. Os jesuítas, atraídos por
uma profunda vocação pelo aperíeiçoamento de si proprios, reuniram essa herança.
De seus documentos aflora continuamente a convicção de que um exercício diuturno
podia tornar a massa humana plasmável até a perfeição. Não por nada, no interior da
Companhia na época do generalato de Francesco Borgia espalhou.se a notícia de uma
revelação feita por Deus ao geral que tinha como excelente conteúdo uma promessa de
eleição garantida para todos aqueles que, ingressando na Companhia, perseverassem
nela até a morter?. Mas não foi certamente a Companhia a monopolizar uma tendência
tão arraigada na própria essência da religião, na imitação de Cristo como perspectiva de
superação dos limites humanos ate experimentar a natureza da divindade. Daí, como
de uma raiz proíunda, brotaram tendências coletivas e aventuras individuais: algumas
cavaÍam na estrutura da Igreja o direito de permanecer, outras foram varridas com
violência ou sutilmente modificadas.

16. Cf. a importante pesquisa de Caroline 'Walker Bynum, HoIy Feast and Ho\ Fast. The Religioas Significance ol
Food. to Medieval. Women, Berkeley/Los Angeles,/London, 1988.
17. "Nos trezentos primeiros anos da fundacão da Companhia não tinha sido danado, nem devia sêìo nenhum
dos que tinham vivido, viviam então e viveriam depois, perseverando nela até morrer" ("Rivelazione Fatta
a San Francesco Borgia intorno a quelli che Muoiono nella Compagnia di Gesú", ms Gesair. 1494, xu da
Biblioteca Nazionale de Roma, c. 3r).
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$\
.4. Confissão
r
443

A continuidade do fenômeno possui algo de viscoso: os casos apresentam.se


praticamente idênticos nos mesmos lugares, com a distância de anos, em Milão, o
convento de Santa Marta tinha hospedado as visões de sóror Arcangela Panigarola nas
primeiras décadas do século; e ainda em Milão, os Barnabitas tinham envolvido primeiro
em admirada devoção e depois em silêncio embaraçado as visões e o carisma de Paola
Antonia Negri. Em Milão, no final do século, Isabella Berinzaga inspirava ao jesuíta
Achille Gagliardi seu Breq.,e Compendio della Perfezione Cristíana; e no seculo seguinte o
convento de Santa Marta registrou os inícios do movimento dos "Pelaginos".
Mas foi sobretudo a íorte raiz heterossexual da espiritualidade - por assim
dizer - que repropôs continuamente a questão: homens que buscavam nas mulheres
a orientação espiritual, mulheres que a buscavam nos homens. Podia até acontecer o
caso de duas "madres divinas" se encontrarem no mesmo lugar e seus filhos espirituais
terem de entrar em conflito para garantir a predominância de uma ou de outra. O
caso ocorreu no "Ospedaletto" veneziano onde, por volta de meados do seculo XVI,
a Angélica Paola Antonia Negri encontrou-se diante da misteriosa Madre Giovanna e
de seu devoto confessor, o então jesuíta Guillaume Postel; segundo Postel, foram jus-
tamente as angélicas, "hipócritas e assassinas de pobres", que moveram uma campanha
para denigrir Madre Giovannas. É certo que em rápida sequência as duas "divinas
Madres" desapareceram do horizonte veneziano, devido justamente à imediata per.
cepção que tiveram as autorfdades políticas das ameaças de subversão representadas
por esses movimentos. Tais acontecimentos, enquanto se desenrolavam, eram vistos
com desconfiança e frequentemente terminavam mal. As próprias mulheres, em meio
às inflamadas devotas, tinham consciência disso. Quando, por volta de 1570, Madre
Teresa del Gesü foi lembrada por um visitante ocasional do caso da visionária Magda.
lena de la Cruz, processada pela Inquisição de Córdoba em 1546, respondeu: "toda
vez que penso nela, eu tremo"19.
As figuras femininas aparecem como objeto quase exclusivo da atenção inqui-
sitorial. Os homens que rodeiam as "santas" são geralmente vistos como enganados e
seduzidos - se a santidade é julgada falsa - ou como prudentes e doutos orientadores
de consciência, se a santidade é aceita. Mas sua função é constante e fundamental: entre
as mulheres e os homens que as guiam e se deixam guiar há uma ligacão intensa, feita
de diálogos profundos, de trocas epistolares, de confissões orais e esc.ritas, de narrações
da própria vida, de instruções relativas à experiência mística. A hierarquia eclesiástica
não se furtava a esses fenômenos. A multidao de místicas que serve de fundo a perso.
nagens das famílias cardinalícias mais ilustres e uma prova eloquente disso. Prelados
ilustres, como os cardeais Camillo Paleotti em Bolonha e Federico Borromeo em Milão,

18. Cf. Marion L. Kuntz, "Europa Catalizzatrice tra Oriente ed Occidente nel Pensiero di Guglielmo Postello,
in Il Letterato tra Miti e Realtà del Nuovo Mondo: Venezia, il Mondo Iberico e I'ltalia", Atti de| Convegno di
Vrc7ía, A. Caracciolo Aricò (otg.), Roma, 1994, pp. 24I-255; em part. p. 249.
"Nunca vez me acuerdo de ella que no tiemble" (citado por Enrique Llamas Martinez oCD, Sanra Teresa de
I esús 1 la Inquísición Espaíola, Madrid, 197 2, p. I 5).

Santidade Verdadeira e Falsa


444

visitaram mulheres com íama de santidade, mantiveram relações epistolares com elas,
estudaram'nas com um misto de devocão e curiosidade2o. Com frequência, essa ligação
de amor "divino" revelou traços humanos, demasiadamente humanos para a instituição
eclesiástica: e prorrompeu a acusação, a perseguição pública ou secreta, a luta contra
as comunidades nascidas daquele vínculo.

Ora, mesmo sem esquecer que cada uma dessas histórias teve características diíeren-
tes porque foram diíerentes os protagonistas e os contextos, deve.se admitir, no entanto,
que o aspecto familiar é o mesmo. Sobre o fundo dos interiores principescos de dinastias
reinantes ou dos mosteiros femininos, as figuras de "santas" dotadas de dons proféticos e
de forte ascendente espiritual são enconffadas com caàcterísticas semelhantes no intervalo
de seculos. Se Lucia de Narni e as outras "santas vivas" de seu tempo garantiram a seus
protetores a seguÍanca que decorria do conhecimento antecipado que tinham dos aconte-
cimentos, o mesmo fizeram muitas outras mulheres entre os seculos XM e XVIII. À espera
de que a história de todas elas (que não íoram poucas) seja reconstruída do modo analítico
que as fontes inquisitoriais poderiam permitir, pode.se aproximar o caso de Domenica
Narducci, mística florentina do início do século XVl, do caso de Maria Domenica Mazzei,
camponesa visionária na Florenca do século XVIII. A primeira, que se definia "horteloa"
e

e "analfabeta", desempenhou funções de conselheira espiritual e de profetisa, atingindo


atraves do veículo das caltas uma vasta rede de personalidades, dos pontífices aos grandes
pregadores (Ochino) e, sobretudo, às mulheres mais cultas e sensíveis dos círculos espiri.
tuais italianos (Caterina Cibo, Giulia Varano). Ao lado desses interlocutores epistolares,
esteve' como seu guardião, o confessor; e esteve tambem a desconfiança inquisitorial a
seu respeito, representada por uma personalidade de primeira grandeza da vida religiosa
italiana desse período, Pietro Quirini, o nobre veneziano que se tornara monge camáldulo.
Diante da notícia de uma intervencão inquisitorial de Quirini contra ela, Domenica, com
a ajuda do confessor, escondeu alguns escritos e queimou outros (mas a morte súbita de
Quirini eliminou a ameaca)21. Dois séculos mais tarde, sempre em Florença, o nome de
Maria Domenica Mazzei aparece em um fragmento de processo por simulada santidade
conservado entre os papeis da Inquisição. O enredo é o mesmo: uma fidalga florentina -
Anna Maria Vittoria de' Médici, monja do convento da SS. Conceicão na rua Scala - um
confessor -
Giovanni Camillo Dini, guardião da santidade de Maria Domenica - um
sistema de relaçÕes baseado nas cartas, que viajavam do convento ate o confessor, do
confessor à "santa" e vice-versa; e, last but not Least, as suspeitas das autoridades eclesi.
ásticas, formalizadas desta vez na categoria da simulada santidade. Tâmbem as relações
sociais obedecem às mesmas regras não escritas, que previam a santidade encarnada em
mulheres pertencentes a classes subalternas. Maria Domenica Mazzei era, de acordo com
a descricão da fidalga Anna Maria Vittoria de' Médici, "uma camponesa... pessoa vulgar,

20. Cf. Agostino Saba, Federico Bonomeo e i Mistici d.el suo Tempo. Con b Vita e Ia Conispondcnxa Inedita dí Catarina
Vannini da Siena, Firenze 1933; agora também R. Marchi, Fed,enco Bonomeo eIe ClaustraLí,Firenze, l99Z.

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21 O episódio é narrado por Adriana Valerio, Domenica da Paradiso. Profezia e Politica in wwMistica del Rinascimento,
Spoleto, 1992, pp. 79 e ss.

.{ Cerntissão
r-
44s

que mora no morro"2z. Não se sabe o que era dito nas cartas, pois - contou a fidalga
de' Médici - "eu as queimava imediatamente". Tratava.se, segundo ela, de curiosidades
inocentes; por exemplo, podiam referir-se aos acontecimentos da vida cotidiana da corte
florentina: "Quando a princesa Violante devia ir embora, conforme se dizia, perguntei
o que ia acontecer" (e Maria Domenica teria respondido "que eu não me preocupasse,
pois seria fogo de palha, como de fato foi"). Mas com certeza a situação tinha mudado:
a presenca da Inquisição, o sequestro e a destruição dos escritos, a prisão do confessor, a
acusação a uma fidalga pintam um quadro mais severamente disciplinado, onde o insur.
gir inalterado de necessidades de ffocas sociais e de atribuição das próprias apreensões
a mulheres "santas" capazes de "ver" o futuro era cada vez mais controlado pelas organi.
zações ordinárias do governo eclesiástico. Controlado, com o signo dominante alterado
(que agora e o masculino, do confessor), mas sempre vivo, ou melhor, revivescente e não
eliminado. Sua permanência, como a de muitas outras formas antigas, dá a essa sociedade
e à sua vida religiosa um sabor arcaico, de um ressurgimento do antigo como que fora
do tempo, à sombra de uma sociedade eclesiástica que fizera da conservação sua glória.
Essa impressão de arcaísmo religioso encontra enfim um bom fundamento na
realidade histórica da Italia daquela época, em que a experiência por vezes dramática e
violenta da epoca da R{orma fora colocada como entre parênteses. A Inquisição, que
surgira para se ocupar com os seguidores da antropologia negativa de Lutero e Calvino,
não teve mais oportunidade de processar pessoas como Francesco Spiera, o advogado
de Cittadella que se deixou morrer porque estava convencido de ter cometido o pecado
contra o Espírito Santo, a culpa imperdoável. Experiências desse tipo tiveram ocasião de
surgir em outros lugares: por exemplo, na consciência do jovem Jean Castel, um aluno
dos jesuítas convencido calvinianamente de estar predestinado à danação, que cometeu
um atentado contra Henrique IV na França. Mas na história italiana, os documentos
inquisitoriais mostram que o senso do pecado como infração misteriosa e imperdoável
de uma proibição sagrada era muito menor. O perigo maior foi representado por quem
tinha adquirido muita familiaridade com o mundo dos santos e dos perfeiros a ponto
de ameacar de subversão a imperfeita realidade dos ordenamentos exisrentes.

Ora, a ciência dos santos tinha uma solida tradição no que se refere às regras
para discernir santidade verdadeira e falsa, espíritos bons e maus..A possibilidade de
distinguir o verdadeiro do falso nesse campo era conviccão até mesmo de laicos como
Gian Francesco Pico, acólito de Savonarola e de Caterina de Racconigi, inimigo jurado
de bruxas e superstições: para ele, a transíerência noturna de Caterina de um lugar para
outro muito distante constituía um milagre, ao passo que o voo noturno das bruxas da
Mirandola era um poder diabolico que merecia a fogueira23. A partir desse embasamento
seguira-se adiante, na tentativa de colocar sob controle uma vida religiosa que batia à
porta do divino com manifestações do amplo eco social.

zz. Depoimento de 2 de fevereiro de 1i18, em ACAF, Misc. S. Uífido, b. 31, pasta 338
1J. Cf. a introdução de A. Biondi a Pico della Mirandola, Strega, op. cít.
ì

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Santidade Verdadeira e Falsa
r
446

A
defesa da "verdadeira religião" estava de acordo com a defesa daquilo que
em seguida seria chamado "ordem pública". As visões e revelações, que constituíam
grande parte do íascínio popular dessas mulheres, eram uma perigosa porta aberta
para o futuro: o futuro irrompia no presente com a garantia da verdade e ameacava
derrubar os donos do poder. Filipe II fez submeter a rígido controle a jovem madri-
lense Lucrecia de León, cujas visões sobre o futuro da Espanha, reunidas entre 1587
e 1590, preanunciavam desgraças causadas pelo mau governo e alimentavam portanto
o descontentamento contra o rei24. Mas o caso de Lucrecia e só o mais conhecido do
que deve ter sido um pulular de visÕes e de revelações: como já durante a crise política
dos pequenos estados italianos, as "santas viva{' tinham oferecido seu escudo protetor
ao ameaçador precipitar das guerras, assim o declínio irrefreável do grande imperio
mundial dos Habsburgos foi acompanhado de vozes de profetisas e visionárias que
se erguiam das províncias mais distantes. Do estado de Milão ao Peru, houve um en-
trelaçamento de vozes e visões femininas, que davam corpo e ameaçador destaque às
inquietacões disseminadas: por trás dessas mulheres existia todo um sistema de escuta,
composto de intérpretes e seguidores.
Citemos alguns exemplos, em Milão, em 1579, a Companhia de Jesus foi pressio-
nada pela hostilidad'e surgida entre o jesuíta Giulio Mazzarino, pregador brilhante, e o
cardeal arcebispo Carlo Borromeo25. Não e o caso de nos determos nas razões desse em-
bate, ainda que certamente não tenham sido nem poucas nem de somenos importância.
Bastaria dizer que não fora um simples embate de caracteres, nem um conflito entre a
obsessiva centralização do cardeal e a tendência das ordens religiosas de asseguraremce a
própria autonomia por meio dos ordinários. O estilo novo e atraente do pregador jesuíta
ridicularizara a ritualidade exterior da cidade contrarreformista. Eis, a título de exemplo,
uma das afirmações que lhe foram contestadas, a propósito das estações da via sacra:

Pretendia mostrar uma estacão que teria sido mais útil e írutuosa, que não sâo as estações
postas na cidade, que era descer ao inferno com o pensâmento, e íoi dito incisivamente e soou es-
candaloso, parecendo detrair as estaçôes, que são fundadas no sangue do Senhor26.

A crítica rituais públicos de penitência era acompanhada nos sermões


aos grandes
de Mazzarino pela rejeição aristocrática dos tons patéticos e dos artifícios para suscitar
as lágrimas de coletividades de ouvintes. Sobre esse ponto, a investigação conduzida
pela Companhia encobriu, sem eliminá-lo, o conflito com o modelo de Borromeo:

E quanto ao que Ìhe atribuem ter dito contra chorar publicamente pela paixão de Cristo,
não há dúvida nenhuma de que o Padre não quis dizer, nem condenar as lágrimas exteriotes: mas

24. Cí. Notman Kagan, Lucrecia's Dreams. Politícs and Proplwq in Sixteenth-Cenury Spain, Berkeley/Los Angeles,/
Oxford, 1990.
25. Cí. Rurale, I GesuítiaMiltnoeCarlnBonomeo op. cit., pp.217 ess.
2ó. ARSI, Hist. Soc. 164,f. 40l
-*,
A Confissão
r-
447

disse que ele não tinha talento para aquela mocão dos afetos que faz o povo gritar e chorar, e que se
esforçava para fazer sentir a Paixão de Cristo dentro de cada um, e se alguns quisessem gritar e chorar
que procurassem outro pregador [...] Quanto a ter dito que os gritos que o povo costuma dar em tais
sermões quando não são acompanhados de sentimento íntimo não despertam muita aprovação, isso
não seria algo repreensível o que, porém, não íoi ditoz?.

A investigação discreta conduzida pela Companhia e o processo interno a que


submeteu o pregador conseguiram conter um conflito ameacador por suas possíveis
consequências. Mas os relatórios que chegaram à casa generalícia de Roma descreveram
não só os conflitos surgidos em torno da hegemonia sobre o poder da palawa pregada,
mas também aqueles, mais secretos, nascidos em torno à", p"l"rrr", sussurradas, no
segredo dos confessionários, para a orientação das consciências individuais. Justa.
mente nesse lugar privado e eleito das emoções íntimas, nas conversações discretas da
I orientacão das consciências, encontravam-se novas complicações. Para elas voltou.se
" toda a atenção do visitador, que tinha o olhar exercitado para semelhantes matérias.
E é justamente nas complicações intrínsecas à arte da orientação das consciências que
devemos nos deter. Eis, por exemplo, o que conta o visitador padre Morales a respeito
do padre Giovanni Battista Pefirsco:

Digo que não se portou bem ao tratar com algumas mulheres devotas nossas, algumas das
quais sabem coisas mui extraordinárias, tratando com elas com frequência e indagando em demasia
para ouvir delas coisas futuras, dandolhes demasiado crédito, e alimentando-lhes esse procedimento
com dar-lhes livros de semelhante matéria [...]28,

Perusco, segundo a acusação, fizera coisas que as normas da Companhia proi-


biam: tinha ido à casa de uma das mulheres e uma vez chegara a"rezaÍ junto com ela
para ver como entrava em êxtase". Mais tarde, descobriu-se que a tal mulher não era
digna de crédito, tanto que Perusco abandonara o ofício de confessor. Mas havia outra
que parecia poder ser levada mais a serio. O padre Perusco a frequentava "para saber
' algumas coisas que Deus lhe manifestava, como flagelos que deviam cair sobre esta
I cidade e sobre o Rei". Havia, portanto, um uso do poder da mulher, para adivinhar
acontecimentos políticos de primeira grandeza. Para o padre Morales, a mulher parecia
confiável, pois não se gabava de seus dons, aliás, até hesitava em acreditar que viessem
' do ceu, "solicitou a seu confessor - escrevia Sebastiano Morales - que não a obrigasse
I a falar com o padre (Perusco) por ter muito medo e achar que daria muito crédito a
essa coisa e não queria ser enganada pelo Demônio". Alem disso, suas revelações eram

z7 Carta do padre Parra a E. Mercuriano sobre G. Mazzarino, Milano, 22 abr. 1579 (conservata em cópia em
I Gesuiti aMilano op. cit., pp. 225 ess; quanto às escolas
ARSI, Htsr. Soc. 164, c. 8r). Mas cf. sobre isso Rurale,
de retórica dos jesuítas cí. o vasto estudo de Marc Fumaroli, lâge d,e I'éLoquence. Rhitonque er res literaria de Ìa
Renaíssance au seuil del'époque classíque, Genève, 1980.
28 Carta de Sebastiano Morales ao padre Everardo Mercuriano, Milano, 25 mar. 1579, em ARSI, Hist. Soc. 164,
cc. 16r-17r.

Santidade Verdadeira e Falsa


448

"coisas raríssimas e capazes de surpreender". Não se furtava à solicitação de dar provas


de seus dons, por exemplo, fora capaz de descrever ao estupefato jesuíta as coisas de
que estava se ocupando em Roma o geral da Companhia, com tanta precisão - escreve
Morales - que "eu fiquei atônito". Essas verificações menores tornavam mais confiáveis
as profecias sobre os maiores eventos da cristandade: e tais profecias concentravam-se,
ao que parece, nas adversidades de Filipe II e nas conturbadas vicissitudes de sua ca-
tolicíssima família. O relatório do padre Morales deixa entrever apenas um particular
dessa históriar "E o particular de que se tratava era ameacar S. Majestade com a morte
do filho e tratava também de seus conselheiros aos quais dava demasiado crédito e
outras coisas das quais nenhuma aconteceu". Os Íumores sobre a trágica ocorrência
envolvendo dom Carlos repicavam de Madri Uìlao e dali voltavam à corte: coisas
"
serias e graves, essencialmente iguais àquelas com que se preocupava Lucrecia de León.
O mundo dos confessores e dos religiosos que circundava a mulher milanesa tomara
muito a serio a possibilidade de que se tratâsse de revelações politicamente importantes,
sinais e avisos mandados do ceu para o soberano de um imperio em crise: tão a serio
que "o padre provincial escrevera a respeito ao rei Felipe". Escrevera secretamente e
Morales - que ficara sabendo do mesmo modo - observava que não eram coisas que
se devesse fazer sem iníòrmar a Roma. Por isso, pode-se legitimamente imaginar que,
em Madri, o velho rei de um vasto imperio lesse tanto os sonhos de Lucrecia como os
da visionária milanesa - e que outros poderosos se debruçassem inquietos sobre esse
tipo de documento.
As autoridades do mundo eclesiástico não escapavam absolutamente a essa
tendência. Era muito viva nesse ambiente a vontade de descobrir os planos secretos
de Deus. Voltemos mais uma vez ao caso da Companhia de Jesus: mulheres como a
visionária de Milão eram o veículo possível para conhecer esses mistérios.
"Será que por tal meio Deus não fala sublimemente com V. P. e com o mundol
Que não pretenda da Companhia algo de grandel" - perguntava com ênfase o padre
Gagliardi ao geral Acquaviva em 15932e. A dama - quase certamente a mesma de que
falava em 1579 o padre Morales - era a celebre Isabella Berinzaga, já sob a proteção da
Companhia havia muito tempo. Por meio dela, o padre Gagliardi tinha reunido ensi-
namentos, contidos em escritos que tiveram grande repercussão e importância, como
o Brecre Compendio intorno aIIa Perfetione Christiana. Coerentemente com a impostação
dominante na Companhia, foram os ensinamentos asceticos os divulgados, enquanto os
conteúdos das profecias foram ocultados, suprimidos ou mantidos em segredo. Mas o
número das visionárias e das proíetisas ativas nesses anos devia ser notável: basta pensar
que o padre Morales, durante uma parada em Florença no decorrer de sua viagem de
inspeção a Milão, encontrara outro caso, muito parecido com o milanês: uma viúva "que
entra em êxtase e tem revelações, ou melhor, quase sempre visÕes" e, ao lado dela, um
confessor jesuíta que se tornaïa "devoto" da viúva. Ele a julgara "uma coisa perigosa";

29. A carta de 7 de julho de 1593 foi publicada por P. Pirri S. 1., il P. Achitle Gagliardi, In Dama Mil.anese, Ia Rifomw

dello Spinto e íLMouimenro degLi ZeLatorí, AHSI, XIV, \945, pp. l-72; em part. p. 59
iii
:* rt
r-
449

A coisa não foi desprovida de


e o geral removera o jesuíta, pai espiritual da viúva3o.
complicações; mas enquanto isso, nessa mesma Florença, havia um jesuíta que observava
os primeiros passos de Maria Maddalena de' Pazzi. Se acompanharmos as vicissitudes
do padre Mazzarino, o habil e indócil pregador hostil a Borromeo, vamos dar em uma
historia de acusações de relações suspeitas com mulheres devotas, que levaram a uma
investigacão em Reggio Calábria, em 159631. O panorama, enfim, e prenhe de casos do
gênero; se alguns desses íoi luntado à historia oficial das devoções e da santidade católica,
resta-nos ainda um conjunto desconhecido de candidatos que não superaram a prova.
A difusão desse gênero de inquietações e de projetos político-religiosos era um
fenômeno que superava infinitamente os limites de uma única ordem religiosa. No
entanto, nao há duvida de que a Companhia esteve .ra liìth" de frente por ao menos
duas razões: em primeiro lugar, porque estava vitalmente interessada no que se passava
nas cortes e nos centros de poder; e depois, porque era a ordem que desenvolvera mais
a sutil arte da exploração e orientação das consciências. Desde o início, tinha dedicado
ao exame de consciência um espaço bem determinado na jornada de seus membros32,
formara hábeis coníessores; demonstrara mais interesse pela qualidade do que pela quan-
tidade de penitentes e travara relações duradouras com as consciências inquietas que
lhe tinham sido confiadas. Em particular, com as mulheres, um elenco das mais ilustres
penitentes que confiaram suas consciências à orientação especializada de confessores
jesuítas e relativamente fácil, cobrindo praticamente as cortes da época33; e o cuidado
com que os jesuítas tomavam nota do sucesso junto ao público feminino registrava uma
tendência e a encorajava3a. Os historiadores da Companhia sempre sublinharam a des-
confiança do instituto inaciano em relação "aos modos extáticos, decorrentes de visões
e revelacões"35: mas deverá ser levado em conta o fato de Íatar-se de uma congregação
que escrevera a perfeição e a promessa de salvação eterna no próprio nome e no interior
da qual circulavam revelações e visões numa intensidade superior à de outras ordens
religiosas36. Uma escolha decisiva e jamais renegada do fundador estabelecera como

30. Idem, pp. 3-5.


11. ARSI, Hist. Soc. 164.Uma breve menção em Rurale, I Gesuiti aMilano, op. cit., p.720.
12. Santo Inácio prescreveu uma hora a ser empregada na oração e dois exames de consciência; a congregação
geral que elegeu F. Borgia em 1565 decidiu deixar a cargo do geral aumentar a quantidade de tempo (cf. F.
Scaduto, LOpera dr Francesco Borgia 1565'1572, Roma, 1992, p. 47).
, ll Cí. idem, pp. 350-351 os cuidados dedicados em 1565 quanto à escolha de um confessor jesuíta alemão para as

duas filhas de Fernando da Áustria, que se casaram respectivamente com Francesco de' Médici e Alfonso II d'Este.
ì14 "Quase todas as fidalgas mais importantes coníessavam.se com os nossos" (B. Palmio ao Geral, de Forli, 29 nov.
1565, idem, p. 285). Um episódio tardio dessa tendência de ionga duração é tema do estudo de C. Manunta
Bruno, Una Regtna e íL Confessore. Inrere Inedíte di Marid CLotilde di Francía Reglna di Sard"egna aLI' ex Gesuíta G.

B. Senes (1799-1802), Fftenze, 1935.


J5 A citação é tirada de uma biografia manuscrita dedicada ao geral Acquaviva pelo padre Antonio Sacchini;
faço-a a partir de Pirri, IL P. Achilln Gaglíardí, op. cit., p.6.
)6 A origem do nome iesuita foi indicada numa passagem da Vita Chnsri de Ludolfo Certosino, em que o próprio
Cristo denomina assim os que chamou para a salvação eterna (cf. John W. O'Malley,ThzFirstlesuits, Cambridge
Mass./London, 1993, p. 68).

Santidade Verdadeira e Falsa


4s0

objetivo da Companhia não so "dedicar-se à salvação e à perfeição das próprias almas,


mas com a mesma misericórdia buscar a salvação e a perfeição da alma do próximo"l?.
Assim, movendo.se no terreno da orientação espiritual à perfeição, era inevitável que
seus membros fossem dar naqueles "modos extáticos" e que nem sempre fossem capazes
de desconfiar deles. Naturalmente, não eram os únicos: as experiências extraordinárias
de mulheres capazes de visões, revelações e outros fenômenos do gênero ocuparam ou-
tras ordens e demandaram intervenções de verdadeiros especialistas do sagrado. Tinha
havido os barnabitas, que atuaram com toda a naturalidade nesse terreno: mas a opção
que fizeram de escutar obedientemente a "divina madre mestra" Paola Antonia Negri
tinha se revelado contraproducente3s. O reforçado corpo eclesiástico da Contrarreforma
não tolerava direções femininas; era ávido do misìicismo sentimental que permeava as
relações com as mulheres, mas desde que detivesse seu controle.
É .r.rr., ambientes que comeÇam a circular palavras novas: "serenidade", "silên-
cio", "oração afetiva"3e. Enquanto os bispos tridentinos põem em funcionamento uma
regulamentação rigorosa das formas públicas de devoção, que elimina tudo o que parece
"supersticioso" ou "ridÍculo" e impõe o controle paroquial à prática sacramental, as
fronteiras do sagrado são deslocadas para novos territórios: o conflito entre Borromeo
e Mazzarino é uma prova disso. Por outro lado, as visionárias, as "beatas", as "divinas
madres", que no início do século alimentavam o consenso social para o príncipe, tam-
bém tinham revelado frequentemente temíveis capacidades de coagular a dissensão e
a inquietação social, ate dar vida a sonhos e a projetos político-religiosos de subversão
da ordem vigente. Era necessário administrar esse difícil assunto.
Na situação italiana, um traço específico da questão e dado pelo contexto des-
sas experiências: o mosteiro feminino. Enquanto na Espanha as beatas são místicas e
visionárias que vivem quanto muito como laicas, em contextos familiares e citadinos
abertos, suas similares italianas só muito raramente vivem fora dos ambientes monásti.
cos, o modelo feminino que as conforma e o da "religiosa em solidão"ao. É no mosteiro
que "o demônio costuma mui frequentemente transformar-se em anjo de luz para
enganar as almas incautas"; e o {az com "falas ao coração, esplendores extraordinários,
visões de Anjos, de Nossa Senhora, do Senhor, intensas satisfações espirituais"4l. Era
essa a experiência de um confessor de monjas: e para as religiosas isoladas atrás das
robustas grades dos mosteiros, os confessores ou os exorci"stas serviam de ligação com
o mundo. Suas visões e revelações eram coletadas ciosamente por eclesiásticos de alto

37. Monunennlgnaaana,s. IIÌ:S. IgnatiideLqolaC,onstíutionesetRegulaeSociewtnluu,Romae, 19341948,ü.gen.,1,2.


38. Cf. M. Firpo, "Paola Antonia Negri da 'Divina Madre Maestra' a 'Spirito Diabolico"', em Bamabiti Studi, t'11,

1990, pp. 7-66.


39. P. Pirri (IL P. Achil.b GagLiardi, op. cir., p. 6) lembra que, em 1574, o geral da Companhia E. Mercuriano entrou
em atrito com o padre B. Alvarez a propósito da oração de quietud e com o padre Antonio Cordeses a propósito
da "oración afectiva".
40. Eo tírulo de um tratado do jesuita Gio. Pietro Pinamonti, "La Religiosa in Solitudine', em Pinamonti, Opere,

Pezzana, Venezia, 1767, pp. 134.260.


41. Gio.PietroBarchi, InstruzziorcperliünfusondiMonacÌrz...,MilanoeFirenze,porFrancescoOnofri, 1661,p.29.

{ Confissão

\
r
451

escalão, como o arcebispo de Bolonha Camillo Paleotti e o de Milão, cardeal Federico


Borromeo; mas, no entanto, os tribunais episcopais condenavam com rigor as ligações
amorosas que surgiam continuamente entre as muitas monjas reclusas motivadas pelas
duras razões do patrimônio familiar e os poucos homens em contato com elas - pre.
gadores, confessores, raramente jovens leipos. Se eram mulheres liwes, então o perigo
do escândalo levava o mundo eclesiástico a elaborar regras extremamente rigorosas.
Uma ordem especial do geral, dirlgida aos jesuítas em 1617, impunha-lhes não irem à
casa das penitentes sem urgência e necessidade, não ouvir confissões em domicílio a
não ser que a penitente estivesse doente - mas neste caso alguém devia estar presente
durante a confissão - e não falar durante a confissão a não ser de assuntos pertinentes
a esse sacramento: era uma tentativa de esvaziar uma .Àp".rh" difamatoria contra a
Companhia que, no início do século XVII, viu na publicacão de um celebre falso (os
Monita Secreta) um veículo destinado a um longo e extraordinário sucesso42.
O horizonte das autoridades eclesiásticas, meio século depois do surgimento da ln-
quisição romana, viu-se ocupado então pela materia da relação entre mulheres e confesso-
res. Episodios clamorosos rompem aqui e ali a densa cortina de silêncio com que o mundo
eclesiástico tentou envolver suas relações com as mulheres. Mas, por trás das histórias que
em autos da Inquisição ou em causas de beatificação, percebe-se um emaranhado
"floraram
de vicissitudes coddianas entre um clero celibatário por opção e um mundo feminino
obrigado à virgindade pela dura lei de um sistema patriarcal: esse mundo feminino -
espremido entre os modelos de Nossa Senhora e de Eva pecadora - foi para a sociedade
eclesiástica o mediador de sonhos, visões e sentimentos lícitos e ilícitos. A dominante
feminina dessas vicissitudes e indubitável: mulheres que fundam congregaçÕes - como
a instituída em Verona por Maddalena Gamba, de quem não se sabe muita coisa, a não
ser que era muito mal vista por Roma - mulheres que redigem obras piedosas, mulheres
que continuam a perseguir experiências místicas excepcionais. A estratégia da instituição
eclesiástica apura-se e torna-se mais precisa.
O ar de família que liga os fenômenos no decorrer de um longuíssimo período
levou alguns a ver uma substancial continuidade que iria dos beguinos aos quietistasa3.
Trata-se, na realidade, de uma genealogia elaborada pela própria Inquisição para dar
conta da longa duração dessas maniíestações da vida religiosa. Outros chamaram a
atenção para a experiência religiosa vivida "em condições especiais de perturbação e de
obscurecimento", para explicar as semelhanças que perpassam textos muito distantes

uMonentur
42 mediante eorurn P. Generali ne accedant ad domos mulierum, praesertim poenitentium, sine
urgenti et necessaria causa, non audiant domi earum coníessiones occasione infirmitatis nisi aliquo praesente
non tamen audiente; non agant in coníessionario nisi de spectantibus ad sacramentum confessionis, nec
dent licentiam paenitentibus ad sacramentum Euch. accedere nisi praevia reconciliatione" (enst, Irur. 174,1,
Collectio Diversorum DecretorumSacrae Congregationis s. Officii, c. 199u). Sobre os Monita Secrera, publicados pela
primeira vez por volta de 1615 na Polônia por um ex-jesuíta e depois continuamente reeditados, íalta um estudo
adequado. Sobre o contexto do "mito jesuítico", cf. Vittorio Frajese, Sarpi Scettico: Stato e Chiesa a VeneTia tra
Cinque e Seicento, Bologna, 1994, pp. 179 e ss.
43, Cí., por exemplo, J. -R. Armogathe,b quié.tisme, Paris, 1973.

\,à"
Santidade Verdadeira e Falsa
!T-
452

entre si44. Certamente, não se deve negligenciar a transmissão de textos e a consciência


doutrinária de que foram veículos os liwos e a ffadição profunda das ordens religiosas.
Mas, ao lado dos trâmites institucionais e dos portadores masculinos de tradições e
ensinamentos, é preciso levar em conta a transmissão de modelos concretos através
da leitura feminina de biografias de mulheres santas. Talvez nenhum outro seculo
tenha tido um florescimento tão rico e um mercado tão intenso de biografias e de
autobiografias femininas. Uma célebre personagem do quietismo francês, Madame
Guyon, formou-se na leitura de San Juan de la Cruz e de santa Teresa; e da Vita de
santa Teresa nasceram não só a Vie de Madame Guyon, mas infinitas outras biogra.
fias. Não se tratou de uma imitação literária, de um processo "noïmal" (pelo menos
na sociedade literária) a partir do qual de um liioo d. sucesso nascem reescrituras e
imitações, tratou.se antes de produtos de um tipo especial de laboratorio intelectual.
E um laboratório dominado por uma figura destinada a experiências excepcionais,
que outros seguem, controlam e estudam, por meio da escrita: a figura protagonista
e instada a ditar ou a escrever aquilo que vê e sente no decorrer de experiências que
escapam aos demais pela propria natureza delas. A imagem de abandono sensual que
Bernini deixou.nos dos êxtases de santa Teresa representa em sua ambiguidade aquilo
que um olhar (masculino) via da experiência mística feminina. De experiências desse
tipo, da curiosidade e do clamor que suscitavam, partia o trabalho do controle e da
distinção, coníiado a coníessores, mestres e diretores de consciências: os quais traba-
thavam em cima das palavras escritas. Era preciso escrever. Foi por ordem do confessor
que santa Teresa escreveu sua vida; e sempre por ordem de confessores e inquisidores
foram escritas então muitíssimas páginas. Trata-se de material que raramente viu a luz;
'..l-.-\
.ru,[qu"nòmuito, destinado a circular no interior de grupos de devotos ou entre as
maosE-ëciesiásticos desconfiados. Esperava-se a morte da personagem com fama de
santidade para entregar o relato de sua "vida admirável" a obras a serem publicadas - e
que nem sempre foram publicadasa5.
Atraves das escrituras desenvolveu-se tambem o trabalho de análise e de interven-
çao policial do tribunal da Inquisição, que não demorou a reivindicar direitos exclusivos
sobre essas materias. Sua intervenção andou pari passu com aquele de tipo persuasivo
da literatufa devota oficial.
As propostas dessa literatura podem ser resumidas na incitação à desconfiança,
ao segredo e à obediência. Não era preciso crer em manifestações e visões extraordi.
nárias; não era preciso torná-las públicas e provocar o clamor em torno das próprias
experiências; devia.se sempre dobrar-se à autoridade eclesiástica. No início do seculo
XVII, um eloquente balanço das propostas íoi fornecido pela Prattica della Vita Spi-
rituale de Marco Aurelio Grattarola. Para ele, quem anda em busca de certiíicações

44. Dom Giuseppe De Luca, Introduzione alla Storía àtlla Píetà, Roma, 19ó2, p. 40.
45. É o caso, paÍa dar um exemplo, do Semplice Racconto deLlaVita AmmirabíIz di Perfettionelntema deLlll dívotd. uerglne
CatennnMancini della cíttà d'Asco\i suor di casa centurata mantellnta Agostinidnd mcrtd nelL'anno 1653, de frei Lorenzo
di San Gio. Battista de Ferrara, Agostiniano Scalzo, manuscrito da Biblioteca Ariostea di Ferrata, cl. I, n. 31.

\ Confissão
r
453

extraordinárias da relação com o além peca por "fervor indiscreto" e expõe.se aos
engodos do demônio. E o demônio engana, segundo ele, seguindo uma serie precisa
de passagens: "primeiro com esplendores visíveis", por meio dos quais o fiel pode
ver repentinamente durante a prece "resplandecer todo o aposento"; depois, ter.se.á
a impressão de ouvir uma voz que fala diretamente ao coracão e o devoto acreditará
ser Deus quem está dizendo à sua alma: "tu es minha esposa"l seguirá uma aparição
visível do demônio em íorma de anjo, de Cristo ou de Nossa Senhora e ter-se-á a ilusão
de músicas celestes; passar-se-á em seguida ao momento em que o demônio oferecerá
"falsas revelacões, manifestando coisas secretas do passado, do presente e mesmo do
futuro"; e ainda êxtases e arrebatamentos religiosos, dersejo intenso pela "comunhão
cotidiana", "grandes excessos de amor", impressão de ter estigmas, certeza de ter "a
inteligência da sagrada escritura". E "finalmente sabe achar um modo de fazer milagres
falsos e aparentes"46. Essa casuística era extraída, como de resto prometia o título da
obra, da prática da "vida espiritual". Ela poderia se sobrepor a muitas histórias de
vida: mesmo após o ato de acusação de Grattarola e os inúmeros processos inquisito-
riais que o precederam e o seguiram, foi ao longo dessa progressão que se dispuseram
muitas histórias de intentada santidade; e, ainda que divididos entre desconfianca e
te, os eclesiásticos continuardm a reunir documentos a respeito. Esses mesmos sinais
que, segundo Grattarola, denunciavam o engano diabólico foram, para o cônego de
Lucca Nicolao Bambacari, os vestígios autênticos de uma relação especial com Deus,
manifestada na experiência da "santinha de Sarzana" Maria Caterina Brondi, visões,
revelações de segredos, profecias, alimentação reduzida à Eucaristia, possibilidade de
dar uma olhada nas almas do Paraísoa7.
Não há dúvida, entretanto, de que as formas assumidas então pela prática devota
preocuparam e assustaram não pouco as autoridades eclesiásticas. Os tons da cautela,
as incitações à moderação e à desconfianca, a exigência de uma santidade que estivesse
confinada ao âmbito da prática moral ordinária, são outras tantas notas recorÍentes na
ìiteratura dos pais espirituais e diretores de consciências. Na primeira fileira encontramos
os jesuítas; e podemos considerar emblemática esta página de um autor da Companhia,
dirigida justamente às monjas:

Não desejais absolutamente íavores extraordinários do Ceu, sobretudo aqueles que trazem
aigum apelo e algum sinal externo de santidade. Como seriam os milagres, as predições, as exalta-
ções místicas e os êxtases. Que se receberdes algum deles sem terdes pedido, não vos acrediteis nada
melhores e não faleis jamais a respeito, a não ser com muita confusão. Não tinha Judas o poder
Je fazer milagres? Caifás não profetizou? O mago Simão não ficou suspenso no ar à vista de todos?

4ó. Marco Aurelio Grattarola, Prattica deLl"a Vita Spírituale per Le Monachr et d"Ltre PeÍsone..., Como, junto a Gio.
Angelo Turato, 1617, caps. 38 e 39, pp. 118 e ss.
47. Onde viu, enffe outros, Roberto Bellarmino, íornecendo a autenticação de uma santidade canonizada (ela que
tinha uma de natureza suspeita); cf. C. N. Bambacari, Memorie Istoríche dell"e Vírtü ed ATioni diMana Caterina
Brondi, Vrglne Sarzanese, Lucca, 1743 e o verbete "Brondi", redigido pelo autor deste volume em DBI, vol. 14,
Roma, 1972, pp.457459.

Santidade Verdadeira e Falsa


lii

454 i

Quando mais oculta se mantém a virtude, mais firme ela é. Mais vale um pouco de bom e deuoto interior, do ii;

que um exterior muito ruiàoso48. tiii


iii
iii
iÌi
ll,
OrientacÕes desse tipo eram, por assim dizer, a interferência preventiva em relação l,
à intervencão cirúrgica da Inquisição, o objetivo era o mesmo. Tratava-se de proceder
il
do exterior das manifestações visíveis dos poderes mágicos para o interior da moral e
l
da prática silenciosa. Não demasiadamente silenciosa, porém. A devoção nutrida se-
cretamente no interior da consciência preservava a instituição eclesiástica das ameacas
de movimentos devocionários incontroláveis e de santidades não sujeitas ao poder
eclesiástico romano: mas podia tirar dos próprios poderes a função a que estavam mais
ciosamente apegados, a da mediação entre a conscìência individual e Deus.
A via da "contemplação mística" trazia consigo o risco da incontrolabllidade.
Embora eclesiásticos de autoridade tenham defendido isso, como o cardeal Peffucci4e,
o "devoto interior" continuava a ser sempre um refúgio em que a instituicão se via
desarmada. A tendência de tentar um contato íntimo, afetuoso, com a experiência
religiosa foi então bem mais vasta que as fronteiras italianas ou mesmo católicas: basta
lembrar Spener e as correntes pietistas do mundo luterano. Mas em território católico
e dentro das fronteiras mais ciosamente guardadas pela igreja romana - as italianas,
justamente - contra essas tendências insurgiram-se logo a desconfianca e a acusação
de subversão ou, ao menos, de perversão. O refúgio do misticismo, de qualquer modo,
não podia dizer respeito a uma solitária experiência individual isso estava excluído por
deíinição do âmbito de uma Igreja que, de sua parte, tinha contribuído para a disso-
lução das formas associadas de vida religiosa dos laicos (das confrarias às organizações
familiares) e que do indivíduo isolado tinha aproximado sistematicamente confessores
e inquisidores, pais espirituais e distribuidores de graças sacramentais. Por força das
circunstâncias, esse refúgio parecia o lugar suspeito de contatos pecaminosos entre os
leigos e seus inseparáveis defensores, os eclesiásticos. No decorrer do seculo XVII, acon-
tecimentos escandalosos amplamente dir,rrlgados pela Inquisição pontuaram as crônicas
das cidades italianas: em Florença, em 1641, o cônego Pandolfo Ricasoli e a monja
Faustina Mainardi confessaram publicamente, numa concorrida cerimônia pública
da Inquisição, suas relações amorosas e foram condenados à prisão5o; em Palermo, em
1724, um acontecimento semelhante teve um desfecho bern mais funestosl.

48. Glt
'\rcani deLla Vira ReLigtosa scoperti ad una dc+,ota Novizia da un suo Padre Spmtua\e della Compagnia di Giesà,
nadottí daL francese... per comandamento delL'ill. mo e R. mo Moruign D. Giuseppe Miglìaccio arcir.'escovo di Messina, e

dn esso driTTati aILe religlose deLta stessa città e sua diocesi, em Messina, na Cam. d'Amico, 1716, pp. 53.54 (o grifo
consta do original). A aprovação para a impressão é de Matteo Maria Tusa S. I.
49. b ContemplnzioneMístíca, de Pier Matteo Petrucci, padre do Oratório e bispo de Jesi, depois cardeal, foi
publicada em Iesi em 1681.
50. A abjuração deu-se em 28 de novembto de 1641 no reíeitório do convento de Santa Croce: uma descrição da
época encontra-se no manusctito do Archivio di Stato di Firenze, Segretena d,í Gabinetto 155, pasta 3.
51. Reíerido por Antonino Mongito re, IJAtto Pubb\tco dí Fedc Solcnnemente Celcbrato nella Cittd di Palzrmo a 6 Apaln
l 1724 dalTribunalp. del s. Ufftzio di Sicilia, Epiro, Palermo, 1724.

i
h
' .\ Confissào
r
4s5

São alguns dos episódios mais clamorosos e dramáticos que emergiram de um


arquipelago de histórias semelhantes, as quais permaneceram em sua maioria desco.
nhecidas e confinadas aos papéis da Inquisição. As autoridades romanas preferiram
geralmente o controle subterrâneo e a repressão branda ao clamor dos autos de fé. Para
isso, foi elaborado um metodo que recorria justamente ao isolamento e à persuasão.
Num primeiro momento, a questão apresentou-se em termos relativamente
simples, de oposicão entre verdadeiro e falso - verdadeiros espíritos bons, íalsos e
enganadores espíritos maus. Mas logo surgiu a hipótese que devia dominar o campo: o
engano humano, em suas formas de fingimento deliberado ou de autoengano.
Tômemos um exemplo do primeiro tipo, escolhendo ao acaso entre a multidão
de "santas mulheres" que emergem da documentação ào S".rto Ofício. Estamos na
Calábria: aqui, no início de 1676, chega de Roma uma instrução enviada ao bispo
de Catanzaro a propósito de Chiara Migale, monja do mosteiro de Santa Chiara, em
Squillace5z. A irmã está "aqui faz alguns anos em alto conceito de santidade, e havendo
por isso muita concorrência de pessoas, costuma em seus mui frequentes pretensos êx-
tases (não obstante mulher idiota) poetizar, cantando rimas toscanas e por vezes versos
latinos em louvor do santo do dia". Irmã Chiara exibe tambem os estigmas, ou, como
prudentemente se expressa o secretário do Santo Ofício, "cicatrizes sanguinolentas nas
mãos e nos pés, estigmas (como diz ela) gravados por Jesus Cristo" há pelo menos seis
anos. O Santo Ofício examina seu caso e estabelece a conduta a ser seguida: no entanto,
não decide se se trata de verdadeira ou falsa santidade e tampouco aceita a hipótese,
contida no relatório apresentado, de que se trate de uma endemoniada. "Permanece
suspenso ate agora o juízo, quanto a ser ela verdadeira serva de Deus, quanto a serem
as coisas ditas acima obras sotrrenaturais e graças divinas, ou então ilusões ou sugestões
do demônio, como se deduz do relatorio, sendo possível acreditar que ela esteja possuí.
da [...ì". Mas estabelece a conduta a ser seguida, o bispo de Catanzaro, juntamente com
o de Squillace, atuando como instrumentos do Santo Ofício, "escolherão um ou dois
Padres da ordem que lhes aprouver, homens de bondade e de prudência, e sobretudo
peritos no conhecimento do espírito; ser-lhes-á ordenado ir em segredo e sob outro
pretexto ao Mosteiro de Santa Chiara encontrar e tratar quantas vezes forem precisas
com irmã Chiara e com as demais monjas". Com base nos relatórios confidenciais desses
religiosos, de natureza ambígua - entre confessores e espiÕes - seria possível chegar a
verdadeiras "informações ludiciais" ou não.
Mas muito mais disseminado foi o segundo tipo de interpretação desses fenômenos:
ou seja, que não havia espíritos nem bons nem maus, e que se tratava de enganos - ou
de autoenganos - fruto de sugestões e de afecções terrenas, alimentadas pelo vínculo da
dependência espiritual das mulheres em relação aos confessores e mestres de vida religiosa.
Inqueritos cautelosos, silêncio, segredo, informações confidenciais: em relação ao
mundo dos mosteiros femininos, o Santo Ofício manifesta o temor das formas explosi.
vas da devoção e recorre a sistemas de informação secreta: mas sobretudo, rescinde as

ii tt BAV, Barb. In. 6334, c. IV (carta ao bispo de Catanzaro de 2 de janeiro de 1626).

l-'x
Santidade Verdadeira e Fals
r':"

456

relações com o exterior, isola a mulher que obriga a {alar de si, submete-a a um regime
de isolamento e de observação.
Na Espanha dos alumbrados, a lnquisição mantivera esses íenômenos sob um
controle muito atento. Ali foi experimentado, no caso celebre de santa Teresa, o mé-
todo que devia ser amplamente utilizado, tanto na epoca como depois, tambem na
Itália: inquéritos discretos, amplo uso cle escritos autobiográficos, encomendados e
controlados pelo confessor, investigações longas, minuciosas, secretas, que podiam, se
necessário, desembocar em processos formais. Era a renúncia ao simples esquema de
divisão entre verdade e erro que durante seculos fora familiar à Inquisição e que fun-
cionara plenamente na caça aos seguidores da Reforma protestante. No próprio coração
da vida religiosa, no terreno próprio e específico da piedade religiosa, assim como uma
longa evolução o clefinira, estava-se diante de ambiguidades indeciíráveis. Era preciso
escarafunchar atentamente as histórias contadas por essas mulheres, examiná-las com
íriezae isenção - daí a importância do escrito - parâ chegar à decisão qllanto à natureza
dos espíritos que as agitavam.
A materia era das mais frequentes: e um manual manuscrito de materias inqui-
sitoriais, em uso na Companhia de Jesus, propunha a respeito uma instrução do Santo
Oíício "para restâbelecer a saúde de sóror N. N.": a irmã de que se trata não superou
os exames a que foi submetida no passado, suas pretensões de manifestações excepcio-
nais do Espírito ora encontram crédito somente em um pequeno grupo de seguidores
dentro e fora do mosteiro, onde ela "vive quase desesperada". Estamos, portanto, em
um estágio mais avançado do percurso desses acontecimentos: nesse caso também, o
instrumento de que se vale o Santo Ofício para intervir é o bispo, ao qual pertence a
jurisdição ordinária sobre os mosteiros femininos. Eis a série de medidas indicadas,
1) O bispo, antes de mais nada, deverá visitar o mosteiro "em momento propí-
cio" - isto e, ocultando, sob um pretexto plausível, o objetivo específico de sua vinda.
2) "Colocará sóror N. em outra cela individual, na qual haja a imagem de Nossa
Senhora". Nessa cela, a irmã não será deixada sozinha: "dormirá com ela alguma monja
das mais velhas, para que observe seu comportamento" (e, naturalmente, alem de velha
a monja deveria ser escolhida entre as não seguidoras de N.).
3) Recorrer.se.á ao controle medico, com purgações oportunas e salutares. Mas,
alem do corpo, também a alma deverá ser purgada" E aqui interfere o confessor, que
naturalmente deverá ser escolhido pelo bispo.
4) "Indicará à reGrida sóror N. um douto e prudente confessor, que com suavi-
dade e modos faça com que ela se disponha a descarregar sua consciência". O confessor
devia ser a única presença humana ao pé da reiigiosa; qualquer outro contato devia
ser impedido. Particularmente, a instrução detém-se na necessidade de bloquear todo
intercâmbio, mesmo só epistolar, com pessoas de fora e, de modo particular, com dois
de seus protetores. Uma cortina de silêncio devia ser estendida ao redor da religiosa
para tornaÊlhe inofensivas as turbr-rlências. E nisso era preciso envolver também as
demais religiosas, para convencêlas a não falarem mais dela:

A Confissáo
r
45?

Se os defeitos de sóror N. são evidentes no mosteiro, seria bom fazer saber às monjas que todos são
decorrentes da Melancolia e do temperamento natural da mesma, que não há mal nisso, e recomendar-
-se-á às referidas monjas que não falem neles, nem em demônios nem em ilusões5l.

A "melancolia", mal do seculo, envolve e explica o comportamento da religiosa,


aos olhos da Inquisição. Por isso, a intervenção e escondida, as formas dissimuladas,
os modos suaves. Mas a dureza da condição humana dessa irmã "quase desesperada"
foi certamente enrijecida por medidas daquele tipo. A história, ou melhor, as muitas
e diferenteshistórias que a instrução modela, permanece desconhecida para nós tanto
em seus detalhes concretos como nos resultados subsequentes. Mas não faltam abso.
lutamente candidatas para o retrato falado de sóror N.,tque, por exemplo, poderia ter
sido a toscana irmã Francesca Fabbroni, monja visionária, santa "presumida", espionada
de muitos modos, processada em vida e após a morte, que chegou a ser exumada e
teve seu cadáver queimado na fogueira. O caso dela e instrutivo e ajuda.nos a compre-
ender até mesmo o que a instrução citada não diz: por exemplo, diz.nos o que podia
suceder a partir dos "desencargos de consciência" eventualmente feitos por irmã N. a
seu confessor. Os confessores escolhidos para ela receberam instruções precisas sobre
o modo como tratá-la: deviam "sempre humilhá-la e romper o conceito que se crê que
tenha formado de si mesma"54. Encontramos estratégia semelhante aplicada ao caso
de Maria Caterina Brondi, a "santinha de Sarzana" que, extremamente jovem, fizera
falar de si como de uma santa "viva". A intervenção do Santo Ofício tinha sido ime.
diata e, desde 1705, fora-lhe designado um confessor pelo bispo; em seguida, sempre
pelo Santo Ofício, tinham sido indicados os desdobramentos sucessivos ate a morte
de Brondi e depois dela55.
A ofensiva da Inquisição contra a santidade fingida ou presumida e contra as for.
mas extraordinárias de irrupção do divino no palco do mundo não era certezade sucesso.
Para demonstrá-lo, bastaria uma simples comparação com o que acontecia nessa epoca
em um país católico desprovido de Inquisição, a Franca. Lá os fenômenos de devoção
suspeita foram confiados aos exorcistas; e foram os exorcistas a ditarem lei, no celebre
processo de Loudun e em muitas outras ocasiões do mesmo tipo56. Entretanto, Roma
lancava mão das conclusões a que chegara o Santo Ofício para influir no que acontecia

it, 53. ARSI, Ìnst. 174,1, cc. 6r-7v (Collectio Diuersorum Decretorum Sacrae Congr. S. O/Íci;).
54. Instruçáo aos coníessores de Fabbroni, citada por Niccoli, IL Confessore e L'Inquisítore, op. cir., p. 419. Sobre
Francesca Fabbroni cf. o verbete de Adelisa Malena in DBI, vol. 43, Roma, 1993, pp. 673.676.
55 Cópias de cartas do Santo Ofício sobre Btondi e uma caÍta de seu confessor, ftei Bonaventura d'Amelia
encontÌam.se no Archiüo di Stato di Pisa, Ospedah 3242, cc. n. n. No mesmo local, uma carta âo arcebispo de
Pisa escrita por G. A. Pini e datada de 9 de Florença, setembro de 1719 (poucos meses após a morte de Brondi)
menciona uma "ordem dada à Inquisicão de não deixar publicar nada nem em louvot nem em execracão de
Maria Caterina".
56. Sobre o caso de Loudun, os exorcistas que estiveram envolvidos chegatam a publicat relatórios impressos: é o
caso do "Fedele rapporto", publicado em 1634 por P. Tranquille, lembrado também por A. Huxley, I Diavoli
díLoudun, trad. it. Milano, 19ó0, p. 135.

Santidade Verdadeira e Falsa


tY-
4s8

na França. Por ocasião de um caso de "monjas embruxadas e possuídas", em 1643, foi


enviado de Roma um documento em que o Santo Ofício sintetizava assim sua posição:

Esta S. Congregação não se induz facilmente a acreditar que os sinais expressos no relatório e os
movimentos e retorções feitos pelas monjas tenham origem em causa sobrenatural e em maquinações
do demônio, pois descobriu sempre que, nâ maioria das vezes, tudo advém de humores melancólicos
de monjas descontentes e introduzidas contra sua vontade nas clausuras.

Era, portanto, opinião da Congregação que não "deva acontecer em Franca nada
diferente do que acontece na Itália, porque as fêmeas são fêmeas em toda a parte, haverá
vícios sempre que houver homens"s?. E os homents sob acusacão pertenciam justamente
às duas categorias dos exorcistas e dos confessores: como os primeiros não resistiam ao
fascínio das monjas, assim os segundos eram presa fácil de suas "filhas espirituais". Essas
conclusões eram tiradas de um documento bastante significativo que vinha atrelado
ao manuscrito: uma Prattica per Procedere nell.e Cause del Sant'Uffi1io, que John Têdeschi
atribuiu com boas razões a Desiderio Scaglia58. Em um capítulo central, a Prattica abor.
dava justamente a "santidade presumida" como uma das manifestações da capacidade
feminina de enganar.'Os inquisidores eram intimados a desconfiar e a proceder com
muita prudência. Constituía um grave perigo para a estrutura eclesiástica, segundo o
autor. Outros compartilharam tal preocupação, diante da alarmante disseminação de
uma religiosidade extática e visionária. Quem atuava em estreito contato com o mundo
dos mosteiros femininos atestava isso continuamente. Não é de espantar que, após um
breve período de tempo, justamente um vigário preposto aos mosteiros (de dioceses
importantes, como Bolonha e Veneza) retomasse as análises da Prattica, ressaltando
como daqueles fenômenos de "hipocrisia" decorriam "grandes danos e escândalos na
santa lgreja, nessa nossa época"5e. Ao contrário, é provável que tenha sido a mudança
de orientação da cultura e da religião oficial - a favor, agora, de uma santidade feita de
rigorosa e de pouco mirabolante prática de virtudes morais - a responsável por confinar
a santidade extática e milagrosa em uma zona suspeita e, portanto, por fazë.la emergir
com tracos negativos. É l'r-" hipótese que recentemente parece encontrar credito em
uma revisão geral de nosso passado disposta a reconhecer também à Igreja católica uma
capacidade modernizadora, uma espécie de propensão à racionalidade. Mas é necessário
diferenciar: a luta entre religiao e magia, que conheceu ásperos conflitos em outras
áreas europeias, assumiu no coração do catolicismo uma fisionomia toda particular.
Tratava-se, aqui, de uma luta de poder, reconhecer aos veículos do sagrado uma eficácia
independente e autônoma em relação à estrutura ordenada da hierarquia era extrema-
mente perigoso para um corpo eclesiástico já suficientemente alarmado com o ataque

57. BAV, Cod. Borg. I-at. 558, íí. 520-525.


58. Cí. Tedeschi, The Prosecution of Heresl, op. cit., cap. VI, pp. 229 e ss.
59. Giorgio Polacco, Pratiche per Díscerner lo Spirito Buono ü1. Malvaglo e per Conoscere gl'Indemoniati e Mabfícíatí

)
(1638), citado em Zarri (org.), Finrione eSantità, op. cit., p. 21 e nota.

l5*',', j
h-
1 .',È

A Confissão
r
459

da Reforma. Os fenômenos da santidade taumatúrgica não angariavam crédito somente


nas camadas sociais menos aculturadas: a história das "santas vivas" nas cortes italianas
do seculo XVI tinha revelado a quem saiba ver que um carisma religioso, por sua própria
natureza, atraía a atenção de outros poderes. Um rápido exame da situação um século
mais tarde mostra que a linha de defesa tinha se enfileirado não na reducão dos veículos
da magia, mas no submetê-los ao máximo possível ao poder eclesiástico. A fábrica dos
santos, que tinha sido como que desativada no seculo abundante da crítica humanística
ereformada, no século XVII encontra-se em plena atividade. Os eventos miraculosos dos
santos regularmente canonizados são celebrados e amplificados nas grandiosas festas
promovidas em sua homenagem em todo o mundo católico. Mas também acha.se em
andamento a luta contra a "falsa" ou a "presumida" saÀtidade. A produção de indul-
gências ligadas a jubileus, a santuários ou ainda a outras ocasiões encontra-se em fase de
crescimento: mas a lnquisição deve manter-se vigilante contra as "falsas indulgências",
impressas e divulgadas por "muitos vagabundos e esmoleiros [...ì cuja finalidade não e
outra que, esmolando, espoliar os idiotas e os simples do pouco que têm em casa", como
escrevia o inquisidor de Módena em 163560. O mesmo problema da distinção entre
"falso" e "verdadeiro" colocava-se também a propósito de outros veículos da proteção
divina dos quais essa época conheceu um grande uso: tercos, agnus dei, rosários, meda-
lhas bentas e outros objetos passados de algum modo pelo contato taumatúrgico com
os ritos sagrados e com os corpos sagrados. Desenfornados e disseminados em grande
quantidade por frades e missionários, eram dados e recebidos como instrumentos de
proteção capazes de transferir de quem os dava a quem os recebia um efeito salvífico de
algum modo consubstancial ao próprio objeto. Abria-se aqui, evidentemente, o âmbito
de um comércio social sem limites, onde o objeto era delegado a representar presenças
e influxos positivos e variadamente medicamentosos. Nada de mais distante daquela
religiao depurada que se imaginou em lenta marcha rumo às fronteiras da modernidade,
com suas turbas de povos supersticiosos lentamente encaminhados a um contato com o
sagrado de tipo inferior. A intervencão mais significativa nessa matéria parece ter sido
a do papaAlexandreVll em 1657: a partir dela foi estabelecido um limite à eficácia
das medalhas bentas ate então distribuídas, na pessoa do último detentor. Quanto às
que seriam distribuídas em seguida, o limite era rigorosamente fixado na pessoa que
materialmente recebia primeiro aqueles objetos. Ao contrário,.tinha sido proibido
fazê-las circular, atraves de doação ou empréstimo: quem, desobedecendo à proibição,
as recebesse, não faria jus às indulgências correspondentes6l.
Os poderes sagrados deviam permanecer nas mãos das autoridades eclesiásticas,
sob o estrito controle das cúpulas romanas: isso é o que se pode extrair de nossas fontes.

60. Edito de írei Giacomo Tinti de Lodi, inquisidor de Módena (ASM, In4uisixion e,b. 270).
61. Declaratio et Deuetum Sanctissimi D. N Alexandrí Popae VII super indulgentiis, quae tam a Sanctitate sua, quam ab eius
p'roedecessoribus, coronís, rosanis, granis, cabuLis, crucibus, numismatibus, meda\íis vulgo nuncupatis, et sacris imaginibus

benedictis hnctenus concessae sunt et in posterum a Sanctítate sua concedentw, Romae, qpis Reverendae Camerae
Apostolicae, 1657 (a cópia por mim consultadâ encontrir-se no citado fundo modenense da Inquisicão, b. 2?0).

Santidade Verdadeira e Falsa


í

460

Toda forma de recorrência direta e não controlada pelas fontes dos poderes sagrados
pareceu grave e preocupante, tal foi, sem dúvida, o caso dos fenômenos reunidos
sob o rótulo de "santidade presumida". O tom cauteloso e concreto da Prattíca e a
estrategia nela proposta devem ter parecido convincentes nos ambientes eclesiásticos
mais responsáveis.
Embora permanecesse manuscrita, a Prattica circulou amplamente no interior
da estrutura inquisitorial naqueles anos: e foi ponto de referência para todos os que
tentaram conter possessões demoníacas e santidades visionárias, recorrendo o mínimo
possível aos poderes dos exorcistas. A citada Prattícaremeteu' por exemplo, o já lembrado
vigário das monjas, Giorgio Polacco, quando, por volta d,e 1643, precisou defender'se
dos ataques dos que defendiam a intervenção dè exorcistas no interior dos conventos
"endemoniados"ó2.
De todo modo, a vitória da Inquisição não foi fácil nem imediata. Tudo somado,
de tudo o que aconteceu à época nos mosteiros sabe-se bem pouco. Provavelmente,
a exploração do vasto continente da experiência religiosa, sobretudo feminina, levará
a modificar bastante nossos conhecimentos. Não se pode negligenciar o fato de que
a Inquisição, por sua natureza, interferia apenas nos casos que suscitavam algum
clamor. Entretanto, h'li indubitavelmente um traço que caracteriza o modo de agir da
Inquisição nos campos em que foi estendendo sua atividade: de um lado, uma certa
rigidez teologica que levou a reduzir as margens de práticas toleradas e a ampliar a
quantidade de ingredientes indispensáveis para reconhecer a ortodoxia (e nisso deve
se reconhecer o efeito duradouro do choque com a Reforma protestante em nome do
qual a Inquisição foi ressuscitada); de outro, uma grande cautela nos procedimentos e
uma tendência a reduzir ao máximo o espaço deixado ao miraculoso e ao extraordini
rio. Fosse o espírito do direito romano a produzir esses resultados ou fosse realmente a
experiência acumulada por quem atuava no núcleo central de uma vasta organização,
o que e inegável e o resultado tendencionalmente cetico, concreto e cauteloso que se
vê em sua prática processual.

O diagnóstico na Prattica de Scaglia foi claro: na raiz


desses fenômenos dado
dos problemas como a bruxaria, as possessões demoníacas, a santidade "presumida"
havia uma questão de relações demasiado estreitas entre as mulheres de um lado, os
confessores e os exorcistas de outro. A vigilância dos inquisidores sobre essas duas
articulações da estrutura eclesiástica devia, portanto, ser restrita, enquanto podia ser
redimensionado o medo da presença demoníaca no mundo - esse mesmo medo ao qual
a Inquisição devia em boa medida sua razão de ser. As convicções de Scaglia, porém,

62. E íoirepreendido por isso, de acordo com seu B.íeue Raccontamento di quanto g\i è Occorso nel Corso dì wenta sei
(indicado
anní continuí mentre è stato confessor deLLe venerand.e monache di Santa Lucía dí Vneüa, Venezia, 1ó43
por Tedeschi, The Prosecutíon of Hereq, op. cít., p.238 e nota 57). Sobre a obra e a carreira de Polacco cí. Anne
Donne e Disciplina nel1a Venezia del Seicento", em
Jacobson Schutte, "Tra Scilla e Cariddir Giotgio Polacco,
Donna, DiscipLína, Creanza Cnstiana üL xv aI XVIÌ Secolo. Studi e Testi a Stampa, org. de Gabriella Zarri, Roma,
1996, pp. Zl5-234.
ì

\ A Confissão
r
461

rinham se formado não a partir da repetição interminável de casos tratados no correr


Jos anos pelas autoridades eclesiásticas italianas, mas a partir do caso de Maria Pizarro
e de Francisco de la Cruz, que através do texto de José de Acosta sobre o fim do mundo
rinha se tornado ponto de referência obrigatório para todos os especialistas do mundo
mágico, dos exorcistas aos inquisidores63. A opinião de Scaglia era, portanto, a de Acosta:
resumia-se ao convite de abandonar qualquer expectativa de intervencão divina extra.
.'trdinária na história dos homens. Mas a opinião de Scaglia teve importância decisiva
por se tornar, ainda não sabemos como, a opinião oficial da congregacão romana do
Santo Ofício. Sua reducão da religião de fato social e político a fato privado passava
ç.elo abandono da magia e do maravilhoso. A santidade qodia sobreviver apenas como
:noralidade, ainda que elevada ao nível máximo, ou, como se disse em homenagem a
modelos clássicos, "heroico"64.
Era uma transformação importante na história da luta contra bruxaria, magia e
supersticões. Era também o ato conclusivo de um confronto subterrâneo mas importante
entre diferentes articulacóes do clero e diferentes formas da relação entre clero e leigos.

rl Solícito mediator pelo conhecimento do caso foi outro jesuíta, Martin Del Rio, (DísquisítionumMagícarum
Librí Sex, 1" ed. 1599.1600; cf. a edição Venezia, junto a Vincenzo Florini, 1616, pp. 503J06).
Veja-se do autor deste volume "UElemento Storico nelle Polemiche sulla Santità", em Zarri (org.), Finzione e

Santità, op. cit., pp. 88.118.

Santidade Verdadeira e Falsa


r

XXII
OsrucAR A CoxprssÃo,
CoxTRoLAR OS CONFESSoRES

fiemergir da bruxaria com as características de uma verdadeira heresia do mar das


\J "rup.rstições" e seu retorno naquele contexto apinhado e indistinto foram fenôme.
nos de uma história relativamente veloz: entre o primeiro e o segundo movimento passou
pouco mais de um século. Mas se o aparecimento dessa heresia significara a galvanizacão
da estrutura inquisitorial, seu desaparecimento tendencial não levou consigo o refluxo
desse aparato: ao contrário, houve uma mudança de seus metodos. Já e consideração
partilhada por todos que, no final do seculo X\rl, os tribunais da Inquisição romana,
tendendo exaurir-se a matéria da dissensão herética explícita e consciente, comecaram a
ocupapse tambem com outras questões. No final do século, as superstições, as magias, as
blasfêmias e ainda outras materias já tinham ocupado o lugar central que antes fora ocu.
pado pela heresia. No campo inquisitorial foram postas na ordem do dla materias como:
a) as superstições; b) as blasfêmias; c) a falsa ou presumida santidade e o uso incorreto
Je imagens sagradas; d) os abusos dos sacramentos (matrimônio, confissão, ordenação
sacerdotal); e) o controle das minorias suspeitas (os judeus falsamente convertidos ou os
judeus não convertidos como suspeitos de blasfêmias hereticas, sacrilégios, magias). Mais
cautelosa, ao que parece, foi a marcha desse tribunal no terreno dos crimes de natureza
sexual. Mas, de todo modo, evidencia-se sua evolução de tribunal da heresia para tribunal
da moralidade coletiva. Mais adiante, tambem haveria editos sobre materias como a pros.
druicão, os bailes, as vigílias1. Não se renunciou, naturalmente, a atrelar o novo ao antigo
Je modo que o primeiro parecesse filho natural do segundo. As justificativas que foram
elaboradas tiveram em comum uma especie de intelectualização das práticas sociais e uma
aplicacão da regra da suspeita: tratava-se de pressupor possíveis aspectos doutrinários ou
elaboracões intelectuais de tipo herético por trás de comportamentos desviantes. E por
isso, na história teologica da Inquisição, a intervenção na poligamia ou na sollícitatio ad
turpia serâ explicada por meio de uma fileira de argumentos desse gênero: 1) o matrimô-
nio, a confissão etc., são sacramentos; 2) quem se casa muitas vezes ou quem aproveita a
intimidade e as conversas do confessionário para {azer propostas de amor (terreno, não
espiritual) subverte o sacramento, despreza e viola sua natureza de modo não diferente
daquele dos hereges que refutam intelectualmente sua verdade. Deve-se substituir essa

l. Veja-se um desse, sobre essas matérias, emACAF, Misc. S. Uffirio, b. 27, pasta 19.

\
464

história teológica por uma historia pura e simples, deve-se, enfim - como dizia Lucien
Febwe - reincorporar a teologia à historia. E portanto, em vez de seguir as laboriosas
argumentações com que se tentou atrair determinados comportamentos para a orbita de
um crime de tipo conceitual, parece mais útil tentar seguir a história de como, quando e
em que medida esses crimes entraram no campo de ação inquisitorial. Isso significa, por
exemplo, tentar entender as inusitadas dimensões assumidas nessa época por práticas
sacramentais antigas, como a confissão, ou a nova realidade social que o rito tridentino
do matrimônio expressava. O horizonte da Inquisição no século XVII e ocupado cada vez
mais pelas materias de magia e bruxaria, pela impostura de santidade, pelos judaizantes
e pela serie de crimes ligados aos sacramentos: solicitação, celebração da missa sem orde,
nação sacerdotal, bigamia2.
Naturalmente, não se pode negligenciar de todo o possível conteúdo real dos
argumentos inquisitoriais: não se pode excluir, em suma, que a heresia, a dissensão
doutrinária perseguida e eliminada na forma de proposições intelectualmente elaboradas,
fossem ocultadas e encontrassem expressão em comportamentos sociais divergentes da
norma. De resto, esse caminho foi seguido justamente pelos membros da congregação
romana do Santo Ofício, que se preocuparam sobretudo com a apuração das inten.
cões: tratava-se de compreender se os acusados tinham se comportado de certo modo
por convicçÕes intelectuais ou cedendo a impulsos de outro gênero. Por exemplo:
numa carta de instruções de 1586, o cardeal Giulio Santoro ordenou ao arcebispo de
Nápoles, em nome do Santo Oíício, apurar com a tortura da corda a "intencão" no
caso de certo Vincenzo di Franco, acusado de bigamia. Se o acusado confirmava sob
tortura "ter tomado a segunda mulher por paixão", o caso devia ser concluído, para a
Inquisição, com uma simples e leve abjuração, deixando o arcebispo liwe para atuar
em outra sede. Mas não se podia excluir uma recusa intelectual deliberada do caráter
sacramental do matrimônio3.
E f^to que a religião dessa epoca derramou na cabeça de seus seguidores uma
quantidade tão abundante de preceitos e de ensinamentos a ponto de tornar todo o
âmbito da vida social um espaço potencial de confronto entre verdade e erro. Alem
disso, a matéria dos sacramentos fornecia, ao mesmo tempo, uma visível linha de di
visão entre ortodoxia e heresia e um mecanismo regulador da sociedade. A questão é
particularmente evidente no que diz respeito aos ritos de conciliação anual da confissão
e os matrimoniais. Em materia de matrimônio, e difícil no estágio atual das pesquisas

Esses são os resultados da sondagem eíetuada por Anne Jacobson Schutte sobre a casuística tratada pelo inqui'

sidor Agapito Ugoni em Veneza entre 1663 e 1670 ("i Processi de1l'lnquisizione Veneziana nel Seicentot La
Femminilizzazione dell'Eresia", emlln4uisifioneRomanainkalíanell'EtàModerna, op. cit., pp. 159'173).

A carta deveser publicada em breve no já citado volume de P. Scaramella , Cartegi deLL'Inquísiqione Romana con í

TríbunaLi deLsant'ufficioNapoLetani, 1567'1625. A coníirmação de que pot voita dessa época o modelo espanhol
de jurisdiçao inquisitorial sobre a bigamia teve larga circulação na Itália pode ser obtida em Repertoríum Inqui'
sítorum Prauitatis Haereticae,Venetiis, apud Damianum Zenarum, 1588. Foi editado em Veneza com correções
e acréscimos, aiém de dedicatória a Gian Battista Castagna, que parece tê-lo levado à Itália de sua legação na
Espanha. Sobre a bigamia cf . iden, p. 409.
r
465

ter uma ideia, ainda que aproximada, do papel desempenhado pela inquisicão nesse
que foi um campo ilimitado, em que tribunais laicos e eclesiásticos foram chamados a
Jisciplinar os mecanismos da união conjugal. No que se refere às Inquisições ibéricas
que - estimuladas pela experiência de formas de poligamia legitimadas por religiões não
cristãs - não demoraram nem um pouco a introduzir o crime de bigamia em sua lista,
a situação italiana parece caracterizada por uma origem decididamente pós-tridentina
do ingresso da lnquisição nessas materias e por um insistente confronto tanto dos
rribunais laicos quanto dos episcopaisa.

A verdade e elaborada e transmitida por uma rede de poder, que chega a cada
indivíduo (ou tende a isso): e, chegando ao destinatário, atranca-o do cálido abraço
da tradiçao em que vive imerso para impor-lhe uma nova regra5. Assim, os critérios da
madição social e familiar, os comportamentos da oficina e do mercado, as regras que
rradicionalmente presidem à relação com os outros - todos os outros, inclusive Deus e os
santos - entram em uma zona obscura, a desconfianca, a crítica são as posturas prelimi.
nares que a autoridade assume. Por conseguinte, o primeiro ato exigido do súdito/cristão
e a confiança na autoridade da Igreja entendida justamente não como comunidade tradi.
cional, mas como autoridade,alta e distante, Esse movimento conjunto, que reorganiza
toda a rede das relações, articula-se em dois momentos: primeiro é a separação do corpo
eclesiástico de sua base social e a imposição de uma disciplina rigorosa da obediência e da
uniformidade; depois, esse corpo adquire atitudes e funções de mediação e de transmis-
são de cima para baixo da sociedade.Todo esse mecanismo comporta numa sociedade -
dominada por um sistema de poder eclesiástico - uma contínua oscilação do sistema de
valores entre fé e moral e uma enfatização crescente do conffole policial uma polícia da
fé que propicia um perfil mutável e ffansforma-se continuamente em políce des moeurs.
A moralização
da vida cotidiana, a longa marcha da religiao em meio aos com.
portamentos individuais e coletivos foram as premissas da desmesurada expansão do
campo inquisitorial: questoes muito amplas, que aqui só podem ser esboçadas como
em transparência, por trás do avanço da Inquisição e o deslocamento de seus limites.

Cí. os dados analisados para a Inquisição de Toledo por Jean-Pierre Dedieu, IJadministratíon dp.la foi. lllnquisitíon
üTolède (xvl'xvln Madrid, 1989, p. 770 e passim. A jurisdição inquisitorial sobre a bigamia foi suspensa
siècle),

por Carlos III em 1770 (idem, p. 749\. Para a área colonial, cf. Paulino CastaÃeda Delgado e Pilar Hernández
Apaticio, "Los Delitos de Bigamía en la Inquisición de Lima", em Missionalia Hispaníca,XLl| 1985, n. 1,72,
pp.241-774. Para os estados italianos, na falta de estudos pontuais sobre os riquíssimos fundos de arquivos
das causas matrimoniais das cúrias episcopais, devemos nos limitar a registrar a presença episódica de casos
de bigamia nos fundos inquisitoriais e os indícios de conírontos entÍe os diversos tribunais nessa matéria; em
Gênova, por exemplo, em 1662, certo Benedetto Roccatagliata íoi processado por bigamia pelas autoridades civis
não obstante os protestos do inquisidor (cf. R. Canosa, Stona del.L'Inquisizione in kalia dnllà Metà del Cinquecento
aLIa Fíne delSettecento, vol. iII, ïbrino e Genova, Roma, 1988, pp. 176.177). De resto, o Santo Oíício admitia a
jurisdição do juiz secular nas causas de poligamia e reservava4e apenas o exame da intenção (cf. a nota relativa
a um câso de 1609, em Biblioteca Casanatense, ms. 2653, Deoeta Magls Praecipua, c. 518r).
Sobre isso insistiu acertadamente John Bossy, Christianitl in rhe West 1400-17 00, Oxford, 1985, tr rd. it.llOccídente
Cnstiano 1400-1700, Torino, 1990.

Obrigar à Confissão, Controlar os Confessores

I
r':'

466

A metáfora teüirorial cobre uma realidade de conflitos de poder, dos quais se

deve ao menos fornecer um esboço. Para atrair determinadas materias para a esfera de
competência do Santo Ofício era preciso subtraí,las de outros tribunais e a coisa não
era tão simples. Porém, mais que a história dos contrastes de jurisdição - que tambem
e importante para iluminar a partir do interior da vida social os projetos e as ambiçÕes
de velhos e novos poderes - o que se pretende aqui e acompanhar o modo como o
crescimento e a transformação profunda da Inquisicão na realidade italiana estiveram
ligados à sua capacidade de adaptação aos instrumentos que a estrutura eclesiástica the
propiciava. Entre todos, como se viu, foi fundamental a confissão.
Viu.se como a confissão tinha revelado, nos debates tridentinos, sua dupla na-
tuiezar instrumento de poder e de consolação, cJnal de formação e de informação. Do
ponto de vista da lnquisição, como hmbem dos bispos reformadores, era o aspecto da
informação que contava. Era preciso que todos se confessassem para poder haver um
filtro eficaz e minucioso, um espaço obrigatorio para a reunião dos conhecimentos. E
somente o conhecimento exato dos males - os males morais como os doutrinários -
podia garantir a eficácia da intervenção. Mas não precisara muito para entender que,
se a confissão devia ser transíoïmada em espaço de delação das culpas alheias, era
necessário vencer resìstências profundas. Como declarou frei Felice Peretti, a maior
parte "abstinha-se de confessat"6.
Devia-se obrigá.los: o corolário de tantas obrigaçóes feitas para os confessores
em função da Inquisição era que a população fosse realmente obrigada, querendo ou
não, a confessar.se. Nesse caminho, os sinais foram claros e contínuos: a Itália dessa
época conheceu, através de suas instituições eclesiásticas de todos os tipos, a obrigação
da confissão periodica. Isso era dito pelos decretos conciliares, repetido pelos sínodos
diocesanos; e inculcado pelos pregadores, párocos, mestres. Até os médicos foram
envolvidos. Deve.se a Pio V uma obstinada perseveranca neste caminho. Valendo'se
de normas que remontavam a Inocêncio III (e retomadas nas discussões tridentinas)
foi Pio V que impôs aos medicos, com um motu proprio de 1566, o juramento de negar
tratamento aos doentes que não se tivessem preliminarmente confessado?. Tratava'se da
i irrupção de um método policial e autoritário no campo da preparação à morte, em que
se registrava então um complicado processo de generalização e laicização de modelos
monásticos8. A novidade estava no estilo, não na coisa em si. O bispo de Verona G. M.
I Giberti também ordenara aos medicos "não curar do corpo de quem antes não tivesse
curado a alma", mas - segundo admitiu - com escassos resultadose. Mas o verdadeiro
l

6. Carta a frei Sigismondo Botio, citada no cap. IX, nota 27.


7. A obrigaçao para os enfermos de proverem primeiro a alma e depois o corpo foi sancionada pelo decreto 22 do
Concílio lateranense N (ünrilíoum Oeanrwnicorun Deoeta, op. cit., pp.245 e ss.). Sobre o decreto de Pio V SapeÍ
Cnegem Dominicum de 1566, cí. L von Pastor, Ston d dtí Pspi dollo Fíne dclMedío Ew. vol. \'Ìll, Roma, 1951, pp. 61 e ss.

8. Cí. sobre isso as observações de Alberto Tenenti, Ìl Senso della M orte e I'Amore dcllaVita nel Rinascimenro, Torino,
1989, cap. IX: "Da MicheÌangelo a Bellarmino".
9. A menção aos médicos "que não obedecem ao decteto" nesse ponto está contida em Per Li Padi Predícaton,
ímpresso em Verona por Antonio de Portese, 1540, c. B. IVr.

.{ Confissão
r
467

precedente da medida tomada por Pio V foi constituído pelo decreto de Carlo Borromeo,
aprovado no primeiro concílio provincial milanês: ali ficara estabelecido que os medicos,
após terem intimado devidamente os doentes à confissão, iniciassem o tratamento e
.. suspendessem, caso quatro dias depois o paciente ainda não se tivesse confessadolo.
Pio V, ao generalizar a norma da arquidiocese de Milão, tornou-a mais rigorosa e mais
apra ao controle inquisitorial (vale lembrar, de fato, que o projeto perseguido por Borro.
meo tinha no centro uma figura de confessor que tendia a coincidir com a do pároco).
A obsessão do controle dos pensamentos mais secretos dos homens atingia assim
a tronteira extrema de sua vida e ali era presidida por um corpo especial da alfândega,
:ormado por médicos e confessores. Para os médicos que. tivessem desobedecido a essa
.rrdem estavam previstas penas bem rigorosas. Nao faltaàm repercussões na literatura
piedosa nem formas de propaganda no interior da corporação medica: o médico de
lmola Battista Codronchi, em nome de seus colegas, aceitou prontamente a ordem da
rrreja para desenvolver um trabalho de persuasão. Os colegas medicos deviam exigir
a confissão do doente não só por medo do pecado mortal e das sanções eclesiásticas,
mas também em nome da ciência. As ligações entre o corpo e a alma fazem com que -
escrevia Codronchi - a confissão dos pecados possa ser considerada um medicamento
tísico, pois quem se confessa b cura a alma tambem consegue muitas vezes benefício
para o corpo11,
As relações instauradas então pela religiao oficial com a medicina foram de grande
importância tanto no terreno das representações mentais quanto no das instituições e das
relações de poder e não se pode dizer ainda que tenham sido devidamente estudadas: a
função dos medicos tornou-se então decisiva em muitos campos, antes de mais nada no
exame das operações demoníacas no que dizia respeito ao mundo da bruxaria. A corpo-
ração dos médicos, identificada pelo título universitário e pelo consequente juramento
solene da fides Tridentina, encontrou uma identidade cultural e uma função social respei-
tada e garantida na aliança com o mundo eclesiástico: isso permitiu aumentar a distância
social em relação ao mundo dos "práticos" - os cirurgiões, os barbeiros - e a doutrinária
em relação à medicina paracelsiana. Se o mundo dos médicos expressara inquietações
científicas e verdadeiras heresias no terreno religioso no início do século XVI - pense-se
no caso de Michele Serveto - na nova situação viu-se associado à estrutura eclesiástica,
votado à defesa da visão ortodoxa do mundo e da ordem social existente. Os privilégios
Jos medicos, como são descritos na literatura do final do século XVI, aparecem refor'
çados, profissão civil, ligada ao âmbito urbano12, o ofício do medico levava a contínuos
contatos com o mundo eclesiástico. Alem disso, enquanto o clero era rigorosamente

10. Acta EcclesiaeMediolanensis, a Carolo Card. S. Praxedis Archiepíscopo condita..., Milano, apud Pontium, 1599,
pp. 1O11.
1l DeChnsnana acTutaMedendíRationeLiMDuoYanaDoctnnaReferti... Opus piis medicis praecipiueítemque aegotis,
et minístns, atque etiam sacerdotibus ad confítendum admissis utilissimum, ductore Baptìsta Codronchio phílasoph'o, ac
medico Imob.nsi, Ferrariae, apud Benedictum Mammarellum, 1591, pp. 4849.
O médico não é obrigado a tratar dos rústicos, pontifica Vincenzo Carrari (DeMedico etIIIius Erga Aegros Oficio
Opusculum, Ravennae, apud Andream Miseroccum, 1581, pp. 148'149)'

Obrigar à Confissão, Controlar os Confessores


r:-
468

obrigado a abandonar qualquer prática curativa, os medicos viam.se trabalhando com


frequência cada vez maior no teÍreno do espírito. O cidadão de Ravenna, Vincenzo
Carrari, por exemplo, exerceu contemporaneamente funções de medico e de exorcista e,
ocupando.se do caso de sua irmã Lucrezia, que se dizia enfeitiçada por uma "maléfica",
encontrou, segundo ele, a prova da existência do pacto com o diabo de cuja eficácia
alguns comecavam a duvidarl3. Mas se, nos intercâmbios cada vez mais frequentes entre
as duas profissões, os medicos estavam dispostos a definir o confessor como um médico
espiritual14, exigiam em contrapartida o respeito às normas canônicas que proibiam a
intromissão dos sacerdotes nas práticas da saúde do corpo15. Ademais, para uma profissão
como a médica, que estava se protegendo por trás dp nrivilegios acadêmicos, encontrar'
-se em estreitocontato com os "médicos da alma" Jru trn reconhecimento lisonjeiro.
Perguntamo.nos, contudo, se os médicos, na prática cotidiana, cumpriam real'
mente a obrigação de impor a seus clientes a confissão preliminar.
ljma coisa era, provavelmente, a prática sanitária individual, a assistência que
os medicos prestavam no domicílio dos clientes ticos, outra coisa era o que acontecia
nos hospitais. A rede de controle romana tinha maiores possibilidades ao recorrer
não à consciência do medico particular, mas às estruturas hospitalares: e justamente
nessa época os hospitals passavam por uma íase de mudanças profundas, com pro'
cessos de centralização burocrática e com funções de controle social sobre massas
de mendigos e de marginais. Ate a forma de assistência estava sofrendo modifica'
ções: o exercício das obras de misericórdia em relação aos
enfermos, os pobres e os
peregrinos, que fazia parte da tradição das confrarias dos leigos, já se tinha tornado
acessível somente por meio de um currículo profissional que incluía a clericalização:
esta e a liçao que se exrrai do caso de são Camilo de Lellis. Na entrada do hospital,
o viajante que adoecia de repente encontrava uma barreira devota que the impunha
a cura da alma em sentido católico como passagem obrigatoria para a cura do corpo.
A barreira tinha uma eficiência prática inegável em relação aos viajantes de coníissão
não catolica que, se adoeciam e eram hospitalizados, viam-se diante da alternativa
de aceitar confessar.se catolicamente ou acabar diante da Inquisição. O alemão As'
suero Bisbiach, internado em outubro de 1615 no hospital da Morte de Bolonha, foi
descoberto como luterano pelo confessor que cuidou dele, denunciado à Inquisição,
foi preso, processado e, após uma longa detenção, condenado à morte, não obstante
uma abjuração tardiar6. E um exemplo da eficiência do sistema.

13. Iden,pp.107-110.AproibiçãodospárocostrataÌemaspessoasdoentes,medianteousosuspeitodesacramen'
tais, os sínodos diocesanos Íetornam constantemente. Cf. Cieto Corrain e Pier Luigi Zampini, "Documenti
Etnografici e Foikloristici nei Sinodi Diocesani dell'Emilia Romagna", emPaLesta del Clero, XLIII, 1964, n- 15'
.17 , p. 5.
14. "De medico spirituali animarum, idest de ipso confessario..." (Carrari' DeMedíco, op. cit., p. 105).
15. "Qui sacerdotii ofíicio funguntur, debent esse valde cauti in curatione, ac administratione aegrotantium, ne
quid faciant ve1 omittant, cuius causa irregularitate aíficiantur..." (idem, pp. 152.153).
16. Após a hospitalização, Assuero fora "examinado como de costume" pelo confessor. Para mascarar e iustificar
a denúncia íeita pelo coníessor à Inquisição, uma intervenção subsequente acrescentou no manuscrito que o
*"-. I
-h-
I { Contissão
I

t
r
469

Desse tipo de pressão sobre os hospitais encontÍam-se traços disseminados nas


intervenções em matéria de autoridades eclesiásticas e políticas. São exemplares, a
propósito, as ordens emanadas pelo visitador apostólico enviado na Lucca dos anos
seguintes à grande emigração calvinista: Gian Battista Castelli impôs então (1575)
que ninguém podia ser tratado no Hospital citadino da Misericórdia se não se confes,
sasse na hora da admissão, se não comungasse dentro de três dias e se não reiterasse
os dois sacrâmentos ao termino de um mêsl?. Ora, se não se podem nutrir dúvidas
sobre a vontade das autoridades eclesiásticas a esse respeito, trata-se de saber se essas
disposições foram de fato cumpridas. Aparentemente, as fontes normativas nos leva-
riam a crer que, toda vez que um medico se aproximava de um doente, sua primeira
peÍgunta fosse se o paciente já tinha feito a devida conlissão. Porem, e muito provável
que a atuação dos médicos, na medida em que se desenvolvia íora dos hospitais rigo'
rosamente controlados, encontrasse dificuldade em alinhar-se às normas. Um indício
significativo, a esse propósito, é o ato com que, em 1577, o visitador apostólico de
Alba absolveu médicos por não terem cumprido o disposto na bula, impondo'lhes,
sob juramento, evitarem semelhantes lacunasls. Um tratado de teologia do início do
seculo XVII informa.nos, de resto, que a obrigação tinha sido substancialmente des,
cumprida: a prática social das relacões entre medicos e doentes rejeitara tacitamente
essa imposição e às autoridades eclesiásticas só restava reconhecê.lo1e. Trata.se de um
indício importante: alem de um certo limite, a instituição não podia ir e, se queria
durar, devia levar em conta os sinais da sociedade. Quem pretende esildar a história Ilr
!.
da Inquisição deve, portanto, guardar-se do perigo de sobrevalorizar a eficácia de seus I
Ì
editos. Mesmo porque, em relação a inquisidores e confessores, quem se encontrava l
diante de seu tribunal tendia, atraves de uma opção defensiva tão óbvia a ponto de
não precisar ser explicitada, a dizer-lhes o mínimo possível, mas a dizer sobretudo
aquilo que os juízes esperavam ouvir. Somente a desconfiança aguçada, a inteligência
do teólogo somada à perspicácia do policial, permitia aos inquisidotes it, por vezes,
além da superfície plana do óbvio por detrás do qual se entrincheirava o inquirido; e,
quanto aos confessores, a ênfase dada por sua literatura à necessidade de dizer tudo
pode ser bem entendida diante do caráter evasivo das declarações dos penitentes e de
estrategias de deíesa que utilizavam.

exame acontecera "fora da confi ssío" (lJn Auroiaíé in BoLogna il. 5 novembre 1618. Documento Oríglnab Pubbticato

conCommentarío eNote daM. G[ualandl], Bologna, 1869' p. 3).


t7. ASV, Congregaxione deLConcíIio,Vísíte Apostoliche, C 38, cc. 97r-98v (ato de 2ó junho de 1575). Sobre as ocor'
rências dessa visita a ptopósito da Inquisição cf. cap. XV, nota 44.
18, ASV, Congregoli one dei Vescoui e Regolnri, Vistte Apostoliche, A 7, c. 5r. O caso íoi mencionado por G. Romeo,
umotte
que o enquadra em uma documentada casuística da mudança da cristã" na época da Contrarreforma
(Aspettando iL Boía, oP. cit., cap. 7\.
19. "Cum videamus illum [o juramento imposto por Pio Vì minime usu receptum esse, idque qtidentibw et díssimu'
Iantibus praelatis, iuramentum id non obligat, nisi in iis locis, ubi id decretum usu teceptum esset" (Thomas
sanchez, opusMorab.ínPaeceptdDecalogt,l, Anwerpiae, 1631, cap. XVl, p.408. O griío é meu. Retomo a
indicação de Prodi, II Sacramento delPotere, op. cit., p. 422 nota).

Obrigar à Confissão, Controlar os Confessores


470

Por isso, os editos dos inquisidores traziam repetidas, insistentes advertências


aos confessores, todos os confessores, "de qualquer ordem, religião, estado e condi-
ção - declarava o inquisidor de Bolonha Eliseo Capys em seu edito de 4 de março de
1579 - antes de começarem a ouvir as confissões dos penitentes devem primeiramente
perguntar-lhes se têm notícia de alguma pessoa que seja suspeita de heresia ou tenha
livros suspeitos": e se a resposta era afirmativa, deviam "mandá-los denunciar tudo ao
Santo Ofício antes de ouvir a confissão"2o. Deve-se dizer, contudo, que os inquisidores
não se limitaram aos editos. Seu poder sobre os confessores foi exercido com insistên-
cia, com rigorosa determinação. Em cada sede, o inquisidor e seus vigários trataram de
convocar todos os confessores para informar-lhes que não deviam absolver penitentes em
todas as inúmeras materias de que se ocupava a Inquisição. E, na passagem das simples
e um tanto untuosas formulações oficiais para a linguagem real das sedes periféricas,
entrevê-se como que uma cena de quartel, uma multidão de confessores que escuta muda
e amedrontada o frade inquisidor que os convoca para dar-lhes disposições especiais,
1ê documentos e por frm faz redigir e assinar a ata de polícia. Tômemos uma dessas
cenas: estamos em Pesaro, em 1615. O inquisidor e o dominicano Giovanni Vincenzo
Reghezzi de Tabia. Convocou a comparecerem "à sua presença, na própria cela, todos
os confessores, tanto iegulares, como seculares da mesma cidade" e pronunciaìhes
um discurso. Lembra a importância da confissão e detem-se num ponto fundamental:
"quanto podem os Padres confessores servir ao S. Oficio por ocasião das confissões".
Parece que Reghezzi tambem fazia considerações sobre a postura do penitente como o
mais apto a colaborar e a dar informações. Havia, segundo ele, uma regra geral da qual
se devia partir para extrair informações sobre heresias e malefícios: "não há nenhuma
pessoa tão ímpia que, prostrada ao pe do confessor, não tenha nenhum sentimento de
obedecer a esse confessor, nas cousas pertinentes à própria saúde"2l.
Na versão posteriormente retificada dessa fala, o inquisidor fingiu ter solicitado
aos confessores que endereçassem as denúncias ao bispo ou ao inquisidor, indistinta-

20. O ediro encontr&se conservado no Archivio Arcivescovile di Bologna, MiscellaneeVecchie 774, c. 113; retomo
a indicação de Dal1'Olio, Eretici e Inquisiton a Bol.ory nel'500, op. cit., p. 313.
21. 'A qualquer pessoa, que ler ou úr esta nossa, eis que o R. P. f. Giovanni Vincenzo Reghezza de Tâbia, acual prior
de S. Domenico de Pesaro e ügário.geral do s. Oíício desta cidade e sug diocese, convocados à sua presença,
na própria cela, todos os confessores, tanto regulares, como seculares da mesma cidade, após ter-nos feito uma
paternal e amoÌosa exortação, mosrando-nos quanto podem os Padres coníessores servir ao S. Ofício por
ocasião das confissões, onde não há nenhuma pessoa tão ímpia que, prostrada ao pé do confessor, não tenha
nenhum sentimento de obedecer a esse conêssor, nas cousas pertinentes à própria saúde, e quão úteis são os

refêridos confessores para fazer com que os penitentes apresentem íielmente as listas ou anotação de seus liwos
[...] bem como ordenar aos penitentes que devem denunciar todos os hereges, suspeitos de heresia, maleíícios,
visto que desses últimos muitos são descobertos, com grave prejuízo à honra divina, em detrimento da S. Fé
católica e dano de muitos com malefícios de assassínios; e pÕrtanto ordena-nos exptessamente o supracitado
R. P. Vigário que não devemos absolver qualquer pessoa que não tiver apresentado a lista de seus liwos, ou
levado os liwos indicados nas listas ao S. Ofício, muito menos absolver as pessoas que tiverem conhecimento
de algum herege, suspeito de heresia ou maléfico, se antes não tivetem realmente denunciado os deiinquentes
ou ao Ilmo. Monsenhor o Bispo ou ao S. Ofício" (ASM, inqrisirion€,b.295/N).

A Coníissão
í

471

mente. As coisas não tinham acontecido exatamente assim; parece que Reghezzi, além
de ordenar que lhe fossem mandados todos os penitentes que tivessem algo útil a dizer
à Inquisição, ajuntou uma "proibição especial de mandá.los ao tribunal do bispo", o que
causou uma confusão e determinou uma intervenção romana22. Para remediar, o frade
exigiu e obteve uma declaração assinada perante o notário do Santo Ofício por doze
confessores na qual o episódio era descrito de forma correta e aceitável para o bispo.
Escaramuças secundárias: o busílis era que os confessores eram postos às ordens dos
inquisidores, para os quais deviam atuar como coletores de informações e instigadores à
delação. Do ato subscrito pelos confessores de Pesaro é possível extrair não só quais eram
as características "normais" das relações entre "íórum interior" e "fórum exterior", como
também tinha mudado o horizonte da instituição no decàrrer das últimas cinco décadas.
Há outros indícios do costume dos inquisitores de convocar os confessores e
de ordernarlhes não absolverem os penitentes em casos de heresia ou, de todo modo,
sujeitos ao tribunal da Inquisição. Era uma prática normal; tem-se notícias dela so.
mente nos casos em que os inquisidores foram alem dessa solicitação. Aquele vigário
da Inquisição que em Pietrasanta, em 1591, apresentou aos confessores uma lista de
pessoas que não deviam ser absolvidas porque processadas por ele23 cometeu o erro
de usar formas excessivamente grosseiras e por isso foi repreendido; mas na essência
mostrou ter entendido quais eram as relações de poder entre confessores e inquisidores.

22. "Esses Ilustrissimos Senhores desejam ser informados por vós de tudo o que se passa nesse particular" (Carta
do cardeal Millino de 25 abril de 1615, ASM, Inquisirione,b. T52). Agradeço a Carolina Capucci a indicação
deste caso.
Ver p. 263.

Obrigar à Confissão, Controlar os Confessores

I
r

XXIII
Fono IxrEnIOR, FORO ExrE,nIoR

fl iovanni Antonio Spessato, vigário forâneo de Carlo Borromeo e colaborador


\J.onui.to dos planos de reforma do arcebispo, era também um homem de consci-
ência delicada e de competência jurídica indiscutível. Quando lhe foi conferido o cargo
de confessor dos sacerdotes submissos à sua autoridade, foi tomado por uma dúvida,
como podiam ser conciliados um poder de foro exterior - o de um superior com íun-
ções de governo e deveres de disciplina delegados pelo arcebispo - e a delicada função
de juiz no foro da confissão3 Tratava-se, em suma, de uma sobreposição dos poderes
de foro exterior e de foro da penitêncial. Não conhecemos a resposta; mas a questão
não deve ter perturbado Carlo Borromeo. O projeto ideal da reíorma propugnada por
ele fundava-se justamente nessa sobreposição. O sistema da reserva dos casos levava,
por sua natureza, a concentÍar nas mãos de uma autoridade central o conhecimento
dos pecados e o julgamento das culpas. Ora, o princípio do "conhecer para governar"
vinha bater justamente nas barreiras que protegiam o caráter secreto da confissão.
Se a ciência política atribuía grande importância ao conhecimento dos vícios e das
traquezas humanas como base para a construção de um poder, o governo pastoral dos
eclesiásticos tridentinos tambem pretendia também basear-se em um conhecimento
cerrado das mesmas materias.
A divisão dos dois foros na tradição do cristianismo medieval tinha elaborado
havia muito tempo os critérios oportunos para evitar sobreposições. A própria distinção
entre confessor e inquisidor apoiava-se nesses fundamentos2. Mas o antigo conjunto de
normas teve de fazer frente a uma situação nova: a rígida subordinação da confissão a
tarefas de tipo policial, de governo das ideias e dos costumes. Ao mesmo tempo, outÍo e
bem mais grave problema originou'se na exigência de que o poder político dirigia a quem
rinha as chaves da consciência: tratava-se de basear a obediência do súdito na mesma
Iei moral e eclesiástica que estava dando vida à figura do "fiel". A tentativa de institu-
cionalizar o consenso e de torná-lo controlável foi típico da "epoca confessional", nesse
sentido bem distante de indicar um percurso para a liberdade do indivíduo moderno3; o

l. Cí. a carta s.d., mas do início àe 1567 , citada por Pelagatti, Gli Ìnízi &LIa Riforma Cattolica, op- cit., p.70 nota.
i. Cf. Henner, Beitrtige, op. cit., pp. 235 e ss.
l. Cf. Kari Schreiner, "Die Lehrverpflichtung und ihre Auflosung. Rechtglaubigkeit als 'Band der Gesellschaít'
474

"juramento de religião" como vínculo de consciência sucedeu à imposição da fidelidade


política como dever moral. O resultado foi um contínuo cruzar-se de percursos entre os
dois âmbitos da consciência e das leis. No plano teórico, chegou.se - no mundo católico
espanhol - a sustentar oíicialmente que não havia nenhuma diferença entre plano da
consciência e plano das leis e que a lei do soberano obrigava a consciência sob pena de
pecado mortal, mas não para submeter as leis ao crivo da consciência cristã, e sim para
forçar os súditos à observância das leis do príncipe cristão mesmo quando ofendiam
claramente as consciênciasa. Na prática, a estrutuÌa eclesiástica, para proteger seu po-
der autônomo sobre os fiéis, foi elaborando uma estratégia que, através da ciência dos
casos de consciência, povoou de infinitas exceções as normas gerais, deixando sempre
aberta alguma saída para a autoridade do co.rfes*sor e para sua capacidade de ver as
coisas do ponto de vista do penitente. E bem conhecido o ato de acusação formulado
por Sarpi e por Pascal contra o esvaziamento da autoridade moral das leis estatais e o
enfraquecimento da consciência moral produzido pelos usos dos confessores de seu
tempo e pelas doutrinas probabilísticas dos casuístas. Mas a acusação de ambos tinha
por base a ideia, em certos aspectos tradicional e em outros utópica, de um estado
cristão, dotado de um sistema de leis obrigatórias em consciência porque justas. Por
outro lado, e dificilvef no jogo da casuística um espaço efetivo para o crescimento da
consciência individual moderna5, se houve algo do gênero, foi fora do modelo de uso
coativo da confissão que se verificou na ltália da Contrarreforma.
Na ltália, a subordinação da confissão à lnquisição foi estabelecida em função da
defesa de um poder especial, o da estrutura eclesiástica. Os protestos escandalizados, os
débeis lamentos dos inquiridos deram, na medida do possível, voz ao estarrecimento
diante daquela inaudita pretensão não só e não tanto de violar o segredo da consciência,
mas de transformar o pecador arrependido em um delator das culpas alheias. Isso é

and'Grunllage des Staates"', em Bekenntnis und Eínhnit der Kirche, org. de Martin Brecht e Reinhard Schwartz,
Stuttgart, 1980, pp. 351.379. Mas ver sobre toda a questão Prodi, Ìl Sacramento delPotere, op. cit.
4. A tese é do deíensor da licitude da divisão racista da sociedade espanhola enre cristãos "novos" (udeus conver.
tidos) e "veÌhos", o teólogo Juan Escobar del Corro, no primeiro de seus Tì'actatus Ties Selzctissimi er Absolutissimi.
L In quo ostendítur nullam díffercnaam ad.esse inter fontm conscíentiae et forum exteT iorem, Cordubae, apd Salvatorem
de Cea Têsa, 1642 (sobre ele cf. Albert Sicroíí Los Estatutos de LimpieTa de Sangre. Controntersías entre los Siglos XV
l xvlÌ,Madrid, 1979).
5. A tese é proposta por Miriam Turrini em um liwo tão estimulante quanto discutíve\: Itt Coscíenza e Ie l-eggl.
Morale e Dintto nei Testi per la Confessione della Prima Età Modema, Bologna, 1991. A variante católica da socio-
logia weberiana coníirma que é um destino de todas as discussões sobte a "modernidade" o de circular entre
modelos abstratos, lançados arbitrariamente no curso da história (algo do gênero era observado há muitos anos
por Ernesto Sestan, quando ainda estava na moda discutir sobre o modelo weberiano de gênese do capitalismo
pela ascese protestante). Salvo querer considerar Gian Paolo Osio um modelo da autonomia moral do indivi
duo moderno, o qual, para convencer a monja Virginia de Leyva a deixá-lo entrar em sua cela, recoÍreu a um
manual de casos de consciência. Come nota a propósito M. Turrini, "o homem ao qual se Íemete a casuística,
de íato íoi declarado menor de idade" (p. 174) - observação plenamente partilhada pelo autor deste volume. E
não basta Íemeter à ambiguidade dos processos acionados pela casuística para pôr de acordo o câso concreto
com a tese gera1.

A Confissão
r
47s

confirmado por uma expressão que se encontra repetida nos processos inquisitoriais:
"dizer os pecados dos outros".
"Eu não achava que se devia dizer os pecados dos outros", exclamou Elisabetta
de Basino da Tossignano, quando foi obrigada a se dirigir ao inquisidor dominicano
de Ímola para testemunhar contra Leone de Dozza6. Seu testemunho foi registrado
como denúncia "espontânea", feita - como registrou o notário - "pto exoneratione
suae conscientiae et zelu fidei"; mas a consciência dessas testemunhas parece mais car- ï

regada, ao praticar o ato imposto, pela sensação de trair uma norma moral e religiosa
profundamente introjetada. Como disse o ourives Vivaldo, "quando se vai confessar,
coníessam-se os próprios pecados e não os alheios"T. Abandonar esse critério significava
transformar-se em espião da inquisição e com isso prejuâicar principalmente os entes
mais próximos: pais, amigos, vizinhos - ou seja, pessoas cujas ideias e comportamentos
eram mais bem conhecidos. Entretanto, desses estreitos vínculos comunitários da vida
social que as novas regras ordenavam infringir decorriam complicações que os juízes
tiveram que avaliar: havia o medo de que os denunciados pudessem adivinhar a identi-
dade do denunciante, resultando em uma fissura ainda maior no já rompido baluarte
do segredo da confissão. Para documentar uma situação que deve ter ocorrido com
bastante frequência, apresentatnos o seguinte caso, exposto ao inquisidor de Módena
por um confessor em 1615: um penitente revelara em confissão ter ouvido seis pessoas
blasfemarem. Fora intimado a suspender a confissão e a fazet seu "comparecimento
espontâneo" diante do juiz de foro exterior. Mas o penitente tinha sido assaltado por
dúvidas e dissera estar disposto a denunciar apenas três das seis pessoas "porque diz
haver entre eles dois parentes seus, e um ou dois companheiros, e tem certeza de que
se os denunciar, logo vão achar que foi ele e que disso poderá advir algum mal". Diante
desse risco, o penitente recusou-se a seguir as ordens do confessor, permanecendo "obs.
tinado e sem confissão"8. Decorre implicitamente desse exemplo que se não se tratasse
de parentes e amigos o penitente não teria tido dificuldade alguma de denunciar: e isso
mostra o potencial destrutivo de um sistema que encorajava sutilmente a denúncia,
mesmo de uma simples blasfêmia. Nada mais fácil que denunciar os inimigos pessoais
e confiar ao tribunal da Inquisição a missão de executor das próprias vinganças.
Os termos com que era denominado o documento de denúncia - '-dg.l:_l"tg,g.
de consciência" ou spontanea comparitio, isto é, a denúncia feita por quem tinha sido
confessor ao tribunal da Inquisição - mascaravam e falsificavam
"nvraAõçfãóprio
hipocritamente a realidade de uma transferência do foro da penitência para o da vin.
gança: a consciência é aliviada com uma denúncia, ou seja, com um ato de foro exterior,
o penitente comparece perante um juiz não espontaneamente, mas por que obrigado
pelo confessor. Porem, justamente o uso abundante de semelhantes mecanismos acabou
produzindo uma reviravolta imprevista no tribunal inquisitorial que, de tribunal de

ó Depoimento de 13 de março de 1578, publicado por R. Roteili, IlTribunale deL Sant'Uffíno a Imola, op. cít., p. 476.
ì Ver cap. X, nota 21.
i Carta de Antonio Cantelli ao inquisidor de Módena, de Medolla, 29 mar. 1615 (ASM, Inquisíríuw, b. 286, c. n. n.).

Foro Interior, Foro Exterior


F5-
476

"foro exterior", foi transformando cada vez mais em um observatório dos movimen-
se
tos das consciências e habituou-se a interferir com os mesmos meios utilizados pelos
confessores. As confissões adiadas ou "comparecimentos espontâneos", documentos
desconhecidos pela tradição medieval, acumularam-se diante dos juízes que se valeram
deles quanto muito como meio para conhecer cada mínimo indício, para intervir de
modo cauto e secreto, para modelar e guiar as consciências: penas leves, penitências
"salutaÍes", abjurações secretas concluíram a maior parte dos procedimentos iniciados
por tais denúncias.
As sobreposições e as ambiguidades eram inevitáveis: foram mascaradas com perí-
frases cautelosas, com distinções apuradas de formas e de poderes, mas foram mantidas.
O poder de adentrar o segredo das consciências era demasiadamente precioso e, ao
mesmo tempo, demasiadamente perigoso para não suscitar novos problemas periodica.
mente. Indicaremos aqui somente dois episodios dessa história que não se referem tanto
ao conflito de poderes entre juízes de tipo diferente - inquisidores e confessores - mas
a um aspecto específico da confissão: o de tribunal de moralidade social, conforme a
interpretação que the deu são Carlo Borromeo.

a) Uma questão debatida no final do século XVI foi se era possível fazer uso
para fins de governo dos conhecimentos adquiridos em confissão. Era um problema
muito preciso, que dizia respeito à prática da reserva dos casos e à sua aplicação den-
tro das ordens religiosas. A diferença do que acontecia na vida social das paróquias e
das dioceses, no interior das ordens religiosas a reserva dos casos punha nas mãos do
superior os meios para manter sob conffole seus adversários e mantê-los distantes dos
centros do poder. Sinais desse problema continuaram aparecendo. Deve.se dizer que
o segredo da confissão foi defendido com decisão: embora seja necessário sublinhar
que se tratou de uma obrigação parcial e unilateral por não dizer respeito ao penitente
nem ao conteúdo da confissão - que podia e frequentemente devia ser confiado a uma
denúncia escrita - mas só ao confessor. Ao menos no plano teórico, não houve dúvidas
nem hesitaçoes. Domingo de Soto tinha dito com toda a clarezar desvelar os segredos
!l da confissão e sacrilégio para o qual não vale nem sequer a dispensa papal; muito
menos podem valer argumentos como o da defesa do bem público ou da luta contra
tti
o mal - por exemplo, o mal da heresiae. Salvaguardar de toda suspeita quem escutava
as confissões era decisivo para garantir a solidez do sistema. (Isso, naturalmente, não
impedia as várias ordens de se caluniarem reciprocamente na materia.)
Se seguirmos o aspecto da relação entre os conhecimentos que o confessor podia
adquirir através de seu ministério e o poder que podia extrair disso, descobriremos que
aqui não foram feitas concessões de qualquer gênero. Foi Clemente VIII que proibiu aos
membros das ordens religiosas, que fossem contemporaneamente confessores e superiores,
qualquer uso de notícias obtidas em confissão no âmbito do exercício de seus poderes.

9. "Nec praetextu cuiuscumque boni publici, nec ut malo, quamvis haereticae pravitatis, occurtant" (DeRatione
l Tegendi et Detegendi Secretum, op. cit. Ver cap. X, nota 13).
{
Ëì A Confissão
r
4n

Nessa época, discutia-se muito o problema da sollicitatio ad turpia, de que falaremos mais
adiante; e provável que a linguagem generica da norma acobertasse uma referência espe-
cífica tambem aos problemas que surgiam quando no interior de uma ordem religiosa
era necessário atribuir encargos - por exemplo, de confessor - a membros dos quais se
sabia, por intermedio de confissão, que tinham se tornado culpados de insídias sexuais
em confessionário. E fato, de todo modo, que o impulso mais forte em direcão da sal.
vaguarda do segredo confessional chegou ao papa da parte dos jesuítas. Como glosou o
seral dos jesuítas Claudio Acquaviva, havia uma distância que não podia e nem devia
ser preenchida entre o sacramento e a gestão das coisas humanaslo. Todo um dossiê de
pareceres a esse respeito íoi elaborado pelos jesuítas em 1588; nele eram relacionados
os riscos enfrentados pelo segredo de confissão ."ro q.r.-tpossuía a chave dele tambem
Jesempenhasse funções de governo. Por exemplo, se um confessor negava publicamente
seu voto ao proprio penitente, os frades certamente extrairiam disso suspeitas sobre even-
ruais culpas de conhecimento apenas do confessor. Portanto, formalmente, arriscava-se
a quebra do sigilo do secretismo. Na essência, contudo, o que preocupava os jesuítas era
\) caráter de instrumento de governo da comunidade quea confissão assumiria, em total
Jetrimento de seu aspecto de consolação e de ajuda ao pecadorll.
Segundo o jesuíta Antonio Possevino, por exemplo, não se deviam atribuir fun-
cÕes de confessores aos consultores escolhidos pelo prior do mosteiro para assisti-lo no
Eoverno. De fato, era inevitável que os subordinados se recusassem a abrir suas cons-
ciências a esses confessores que podiam fazer uso, nos setores de governo do mosteiro,
los conhecimentos obtidos em confissão; e de todo modo, esses confessores estariam
mais preocupados em executar a vontade dos superiores do que consolar e curar as
rtlicões das almas12.
Conhecimento e poder: conhecer os segredos das pessoas confere um poder notá-
rel. E isso permite entender por que o problema do uso dos conhecimentos adquiridos
em confissão continuava a se apresentar, com resultados diferentes. Em torno do segredo
las consciências a que os confessores tinham acesso giravam poderes determinados a
á:er de tudo para apoderanse dele. A Conspiração das Pólvoras, em 1605, custou a vida
Jo jesuíta inglês padre Garnett, enforcado por não ter denunciado os conspiradores e
:eus planos, conhecidos atraves da confissão: e a questão esteve no centro da celebre
rolêmica que opôs James I Stuart ao cardeal Roberto Bellarmino. Tratava-se de esta-
i'elecer se a segurança do soberano e do estado eram motivo suficiente para romper o
regredo da confissão ou não13. O poder eclesiástico sobre as consciências e a fidelidade
r!ì estado seguiam caminhos separados, pelo menos no mundo católico. A doutrina

Sobre o decreto de Clemente VIII cf. L. Honoré, Le Secret de la confession. Etud,e hístonque-canonique, Bruxelas,

1974, cap.5, pp. 81 e ss.i o texto de Acquaviva íoi indicado no ensaio de Niccoli, "11 Confessore e I'lnquisitore",
op. cir., p. 425.
O dossiê encontraae reunido em ARSI, Opp. NN. 158, cc.98r-ll?r (pareceres de Fernando Perez, Diego Cisnetos
e Antonio de Acosta).
De Casibus Reseruaris (enst, Opp. NN. 314, cc. 181r.202qt).
Ct. Honoré, h secret dekt confession, op. cit., pp. ?3 e ss.

Foro Interior. Foro Exterror


478

oficial firmou.se na defesa {o mgp_d-g interior como campo reservado, imune ao poder
. àËiã;r'Ëãã;tr"Tgi""d. síntese tãõlõlica de Suarez dedicada à confissão rejeitou
rigorosamente que a lei humana pudesse dizer respeito aos acttís internosr4: mas, ao mes.
mo tempo, deixou aberto o caminho para a intervenção dos poderes eclesiásticos nesse
campo, em rermos que revelam o alcance da divisao moderna entre Igreja e Estado.
A pergunta era se, por parte dos confessores, podia ser feito uso dos conhecimentos
adquiridos em confissão para impedir o mal: o problema tinha surgido, em termos
concretos, no âmbito da discussão sobre o crime de sollícitatio. A resposta de Suarez
deixou aberta a possibilidade - ainda que ao custo de infinitas precauções - de um
uso por assim dizer policial da confissãor tratava-le, essencialmente, de exigir o nome
da pessoa que tinha sido socia criminís, para desencadear em relação a ela uma ação
repressiva. Naturalmente, o segredo da confissão devia ser garantido de mil maneiras:
por exemplo, pedindo permissão ao penitente para fazer uso do que fora revelado, ou
então, fazendo com que tudo fosse repetido fora do sigilo da confissão. Mas no plano
geral a questão era que a autoridade eclesiástica delimitava para si no foro da consci.
ência um âmbito reservado, subtraído aos poderes políticos mas sujeito de todo modo
a uma lei e a um sistema judiciario que atuavam para fins de bom governo e do bem
público - fins paralelol diferentes em relação aos estatais15'
^",
A questão se era lícito para o confessor obter a revelação do nome do cúmplice
foi um problema central nas discussões de teólogos e canonistas, como confirmação de
quão forte era a tendência de utilizar a confissão como canal para o governo da socieda,
de, na encruzilhada entre as identidades de juiz e de médico, que the eram atribuídas,
.1r

{
tl o confessor foi chamado a escolher não só, em geral, entre a brandura e a dureza, mas,
,Í mais concretamente, entre as funções eminentemente judiciárias e a paciente obra de
i consolador de almas aflitas. O célebre doutor Navarto, por exemplo, não teve dúvidas
em defender o direito do penitente de não revelat os cúmplices. Mas a orientação das
autoridades eclesiásticas foi muito imprecisa a esse propósito: durante muito tempo,
a doutrina oficial esfalfou,se à procura de uma solução que permitisse salvaguardar o
secretismo da confissão e a intervenção contra os crimes secretos conhecidos através da
confissão. A experiência dos confessores parecia cada vez mais a dos médicos e cada vez
menos a de juízes: demonstra.o o fato de que aqui os tratados dos canonistas cederam
o lugar a coletâneas de aforismosl6. Reunindo a opinião prèdominante, um decreto do

14. P. Francisco Suarez S. 1.., Commentaiorum ac Disputationum in Tetiam Partem Divi Thomae, t. IV, Lugduni,
sumptibus Horatii Cardon, 1613. O tratado De Poenítentia, publicado pela primeiravez por Suarez em 1602,
encontra-se no t. )CüI da edição Vives.
15. Cf. Camilo Maria Abad, "Una 'Lectura' de Suarez lnedita'utrumLíceat aliquando uti scientia confessionis"', em
P.

Miscetlanea Comillas,lX, 1948,pp. 135-190; em part. p. 138. O texto da le.ctura de Suarez indica com precisão
sua origem da quaestio sobre o peccatum ilLud de so\Ilcítatione (p. 178).
t6. Naqueles célebres e difundidos do jesuita português Emanuel Sá, a questão do uso da ciência adquirida em
confissão é resolvida com o reconhecimento de que o confessor pode avisar as autoridades sobre eventuais
perigos para o estado ou para a comunidade que the foram revelados em confissão, mas desde que o nome do
penitentepermaneçaoculto(AphonsmiConfessanarumexDoctorumsententiisCollcctae,Venetiis, 1640'pp.9697\.

A Confissão
r
479

Santo Ofício de 18 de novembro de 1682 estabeleceu que se podia fazer uso da scientia
exconfessione acquisita, desde que não prejudicasse o penitentelT. Porém há de se notar
que nessa epoca era o Santo Oficio que legislava sobre a matéria: e o interesse da ln.
quisição em conhecer os segredos da confissão era inquestionável. A coisa é muito mais
evidente se levarmos em consideração a rigorosidade com que o segredo da confissão
foi defendido em todas as outras direções que não tinham a ver com o funcionamento
da Inquisição.
A
questão do uso da ciência adquirida em coníissão seguiu, desse modo, um
percurso específico, de refinada questão teológica. Mas em sua raiz havia um conflito
de interpretacão sobre a natureza e sobre os deveres da confissão. Uma coisa era pensar
na confissão como ocasião de uma relação estritamentetindividual, para ajudar quem
vivia na afliçao das próprias culpas; outra concebê-la como um instrumento de refor
ma da sociedade. A ideia de que os conhecimentos obtidos pelos confessores podiam
ser utilizados como instrumento de governo e de polícia moral estava arraigada na
estrutura diocesana reorganizada da época tridentina. E foi nela que reapareceu de
quando em quando.

b) Nao faltou absolutanÌente, de fato, o robusto filao de vontade policial e inqui.


sitória que encontramos tambem nos modelos tridentinos de uso da confissão para o
governo pastoral. Foram necessárias verdadeiras batalhas diplomáticas e jurídicas para
pôr limites à curiosidade dos confessores. Foi um duro conflito o que opôs, no século
XVIII, as autoridades romanas a uma parte do clero português sobre a questão que - em
relação ao "sigilo" do segredo da confissão - foi denominada "sigilismo". A questão,
tratada pelo papa Bento XIV, consistia na exigência que faziam certos confessores de
que os penitentes lhes relatassem com precisão não só as circunstâncias de seus pecados
como também os nomes e os endereços de seus cúmplices. Assim, a ideia moral do
pecado tinha se equiparado à ideia jurídica do ctime. De posse dos dados, o confessor
ia à caça dos culpados e os agredia, jogando.lhes na cara os pecados de que tomara
conhecimento. O episódio suscitou repercussões notáveis em toda a igreja portuguesa
e exigiu uma série de intervenções das autoridades romanasrs. Nessa ocasião foi reafir.
mado o princípio de que o confessor não podia perguntar aos pecadores os nomes de

17 Sobre o decreto, citado de modo parcial e ambíguo por A. Criscito no verbete "Segreto" áa Enciclopedia Cat
tolica, cí. Honoré, It secret dela confession, op. cit., p. 98. Cf. de recente Niccoli, ILConfessore eI'Inquisítme, op.
cit., pp. 427.428.
18. Demonstrao a coletânea dos documentos oíiciais que foi organizada à época: cf. Collecçao lJniversal de todns os

Papeis, qu!. se Tem Publicadn nesta Cofte sobre a Pro.xe dc .Algunos Con/essores, que Perguntavão na ünfissao
'\bomimuel
ao Penítente peln Complíce de seuPeccado..., Madrid, na Officina dos herdeiros de Francisco del Hierro ,1746,vo1.3.
O episódio foi o resultado final de toda uma orientação doutrinária: do contexto em que oconeu se ocupou em
um amplo trabalho Antonio Pereira da Silva, OFM, A Qrcstrio do Srgilismo em Pmtugal no Século X%II; um Abuso na
ConfissdoReprouadapuBentoXlV,Braga, 1964. Idem,pp.Tess.,umareconstituiçãodosprecedentesdoséculo
XM e das raízes teológicas espanholas (no ensaio de Gérard Dufour, Clero I Sexto M and.amíento. La Cont'essíón enla
Espanl dzlSiglo X\4tI, Valladoli, i996, não são encontrados, porém, traços das repercussões espanholas do caso).

Foro Interior, Foro Exterior


Fï-
480

seus comparsas. No entanto, os que apoiavam essa práxis defendiam sua validade com
considerações que se alinhavam com o decreto do Santo Ofício de 1682: tratava.se,
na opinião deles, de conduzir ativamente uma batalha para a eliminação do pecado.
Assim, tendo os nomes dos cúmplices habituais dos pecadores, podia-se ir atrás deles
para reconduzi-los ao bom caminho. Mas, por trás dessas boas intenções, vislumbrou-se
em Roma o espectro de uma prática que havia séculos a Inquisição combatia: a de um
uso das coisas ouvidas em coníissão para enredar sexualmente não so os penitentes
como também seus comparsas. Como veremos, justamente sobre essa prática da solli
citatio tinha ocorrido um decisivo acerto de contas entre a autoridade dos confessores
e a dos inquisidores.
Pode.se considerar esse episódio como a deÀadeira manifestacão de uma ideia da
confissão como poder de controle, instrumento de vigilância policial por parte de uma
autoridade à qual não se devia opor nem sequer a barreira da consciência. Tratava-se
de uma tentação intrínseca à ideia tridentina de confessor,juiz, insaciável registrador
de particulares, policial determinado a perseguir a culpa e os culpados, a apanhá-los e
a puni-los. Mas essa ideia da confissão fora derrotada por uma imagem do confessor
como pai espiritual, apoio misericordioso, psicagogo capaz de reerguer o pecador e
colocálo no caminho da perfeição.

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A Confissão

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XXIV
CoxnssÃo coMo CoxsomcÃo
E AuxÍLro. A OnRA Dos JrsuÍrns

ão Vicente de Paulo, ao que parece, quis ser enterrado perto do coníessionário dos
jesuítasr. E um dos muitos sinais deixados na história pelo extraordinário sucesso do
metodo jesuítico de orientação das consciências. Era um sinal de que o coníessionário
podia ser escola de santidader pelo menos assim o entenderam os hagiógrafos. Mas e
sobretudo um documento entre os muitos da ligaçao possível de ser criada por meio
da coníissão, do auxílio para viver que se podia tirar dela. 'Auxílio" é tetmo dos mais
tiequentes no vocabulário específico da Companhia de Jesus, uma especie de chave
unitária de um empenho de gênero variado: ffate-se de hereges e de infieis, de missões
extraeuropeias, de organização de colégios para filhos de príncipes ou de congregaçoes
para artesãos, íala-se sempre em "auxílio". E entre todos os "auxílios", aquele que era
dado em confissão destacou-se como o mais importante.
Nao foi uma descoberta sem prenúncios. Na época, todos sabiam que a confissão
era importante. E, já que estamos tratando da Inquisição, valeria a pena lembrar que
são justamente os autos da lnquisição que fornecem a prova da importância social da
confissão. As atas demonstram como uma grande quantidade de experiências e de prá-
ticas reuniam-se em torno da confissão: o lugar do perdão parece ter sido buscado com
ânsia e com uma participação insólita. Do grande debate do século sobre a penitência,
que atingiu com Lutero o tom mais elevado, os reflexos nas experiências de indivíduos
e de grupos foram extraordinariamente numerosos e variados; não se tratou tanto de
um conflito em torno da confissão entendida como pedido de perdão do pecador a
Deus, mas muito mais em torno do direito do confessor de fazer com que o peniten-
re the contasse em pormenores as próprias culpas. Bem depressa, disseminaram-se e
generalizaram.se práticas da confissão que tendiam a fazer com que coincidisse com
uma autoacusação generica, evitando a enumeração das circunstâncias e das especies de
pecado2. Mesmo a discussão que os processos inquisitoriais permitem-nos acompanhar
não dizem respeito à confissão, mas ao direito e ao poder dos eclesiásticos de serem

SaintVincent de PauL, par I'abbé Maynard, Paris. 1860, vol. w, pp. 96-97.
"[...] Conquestus etiam fuit dominus plebanus quod fere omnes confiteantur [...] tantumodo in generali fotma,
nec quicquam specifice et com suis circunstantiis debitis volunt coníiteri amplius [...]" (visita de 21 de janeito de
1538, de Bernardo Clesio a San Vigilio in Mais, publicada por G. Cristoforetti, La Vísita PatoraLe deL Cardínale

B ernardo Cb sio al.l.a Di o cesi di Trento 1 5 37' 1 5 38, Bologna, 19 89, p. 327 ).
rn-
482

seus mediadores: para o resto, os grupos reformadores italianos, fossem católicos ou


"luteranos", parecem ter pensado com simpatia na prática de dizer as próprias culpas,
no pior dos casos acentuando seu aspecto comunitário em relacão ao individual. Num
moinho toscano por volta de meados do século XVI, um taverneiro contava a seus
ouvintes "que na igreja primitiva, os santos cristãos faziam.na publicamente (a confis-
são)... e pediam perdão a quem entrava e saía das igrejas"3. Fosse o modelo da "igreja
primitiva", fosse o prestígio duradouro dos modelos monásticos de confissão pública
das culpas, fato e que mesmo nos grupos e nas congregacões que se formaram sob a
insígnia da fidelidade a Roma - como os Barnabitas e as Angélicas - a prática de dizer
em público as proprias culpas obteve um notável sucesso: e foi justamente por causa
dessa prática que as autoridades venezianas .*pük"r"* do território da República os
devotos de Paola Antonia Negri, a "divina madre" dos Barnabitas, em 1551a. De resto,
a própria teologia controversista que se desenvolveu na epoca de Erasmo e de Lutero
deixou transparecer essas tendências: a par das virulentas polêmicas de Eck em defesa
da prática da confissão individual e secreta5 houve ainda outras vozes, depois não casual-
mente esquecidas na epoca pós-tridentina. Houve, por exemplo, um texto do beneditino
Gregorio de Bonarte, que - fazendo tacitamente suas as opiniões de Melanchton -
propôs uma ideia da confissão de tipo místico e espiritual, facilmente conciliável com
práticas menos ortodoxas e uniformes que as destinadas a venceró. De resto, a história
das práticas está bem longe de ter sido explorada. A imposição tridentina da confissão
auricular, privada e secreta, a ser feita a alguem detentor de um poder territorial em vez
de a algum "espiritual" carismático, teve de encontrar seu caminho em uma realidade
que tinha elaborado por conta propria não poucas formas de outro tipo.
Pode-se obter uma prova adequada da variedade dessas formas não tanto da lite-
ratura dos confessíonários como investigando as experiências individuais. Eis, a título
de exemplo, o que achamos lendo o resumo autobiográfico ditado por Inácio de Loyola
a Gonçalves de Câmara: a) a coníissão entre leigos (Pamplona, 1521), "E chegado o dia
em que se esperava o ataque, ele se confessou com um de seus companheiros de armas"?;
b) a confissão escrita e geral (Montserrat, 1522): "Fez uma confissão geral por escrito e
a confissão durou três dias" (e ainda em seguida, em Manresa, um teólogo da catedral
aconselhou a Inácio "escrever na confissão tudo aquilo que conseguia lembrar")8.

3. Depoimento do taverneiro Vannino de Empoii, de abril de 1567, em Archivio di Stato di Firenze, NunTíatura
B42,cc. n. n. Era contra
esse modello de confissão que os controversistas católicos tinham saído em campo
desde os primeiros textos de Johannes Eck (veç por exemplo, a obra indicata mais adiante na nota 5).
4. Cf. O. Premoli, Stona dei Bamtbiti nel Cínquecento, Roma, 1913, pp.94-99.
5. V. cap. XI, nota 19.
6. De Poenitentía et Confessíone Secreta semper in Ecclesia Dei Obseruata contra Ludderum Librí II, Romae, por
Jacobum
Mazochium, 1523.
7. Segundo o mais recente e meticuloso biograío de santo Inácio, Ricardo García-Villoslada S. I. (Sant'Ignazio
di Lo'1ob, ed. or. Madtid, 1986, trad. it. Torino, 1990, p. 171) a ptática datava pelo menos do século XI e era
aprovada e aconselhada por teólogos e moralistas.
8. MHSÌ, Fonres Nanatiq.,i de S. Ignatio de Lo'joìa, org. de Candido de Dalmases, I, Roma, 1943, p. 38ó.

A Confissão
r'
481

Ora, no que tange à confissão pública e àquela entre leigos, haveria muito a ser
dito sobre a raiz profunda de tais práticas e sobre a necessidade em que se viram as
proprias autoridades eclesiásticas de permitirem a sobrevivência delas, pelo menos em
casos excepcionais - apesaÍ da tendência geral de fazer da confissão um ato privado,
não comunitário: tal era, por exemplo, não só a confissão do soldado, mas também
a do marinheiro. Ainda no começo do século XVII, o manual para párocos de Gian
Battista Possevino propunha estender a noção de agonia a toda a viagem por mar, de
modo a colocar os marinheiros na condição do moribundo que demanda a absolvição;
e as histórias de navegantes que na hora do perigo recorrem à confissão coletiva não
são absolutamente excepcionais na época da viagem às Índiase.
A prática da confissão geral e o espaço que ocupou i" obr" dos jesuítas impõem
problemas -"ir.offií"áárlÉ-úi que começa uma outra história ou, pelo menos, que
se tem uma reviravolta na historia plurissecular do rito cristão da coníissão dos pecados.
No entanto, deve ser dito que, na experiência de Inácio, a questão da confissão, de sua
validade, de como ter uma lembrança completa das culpas passadas, assumiu formas e
tons de dilacerante intensidade, de resto, em sintonia com os problemas de seu tempo.
^A. sensacão angustiante do pecado, que esteve na origem da reação luterana, domina

o horizonte do cristianismo do'seculo XVI: mesmo no campo catolico, experimentos e


propostas avançadas nesse terreno mostram que a ffadição das grandes chamas peni-
tenciárias coletivas tinha chegado a um ponto de ruptura. Tratava-se de pacificar com
Deus não o povo cristão mas o indivíduo: no lugar dos ritos coletivos (como os ciclos
penitenciários da quaresma) impunham-se soluções válidas no terreno da consciência
individual. A proposta luterana da justificação por solafide - ainda que baseada na antro-
pologia negativa de um rígido agostinismo - teve um valor apaziguador, de entrega total
Jo crente à fé-confiança: no mundo católico, a pacificação foi oferecida, mas ao preco
de uma entÍega obediente do "fiel" à autoridade de quem podia eliminar suas culpas -
o confessor, justamente. "Tôda esperança consiste na confissão; a confissão justifica o
homem e propicia a remissão"10: assim podia ser formulada a oferta católica, para alem
das distinções e dos debates teológicos do Concílio de Trento. Viu-se, contudo, que a
estrutura diocesana movia.se em outÍa direção, configurando-se mais como um sistema
de governo dos comportamentos sociais. Tudo isso estava distante de ser suíiciente para
as inquietações e os tormentos das consciências individuais, em uma época marcada pela
Jescoberta da consciência como sistema de autorregulação. Foi preciso algo diferente, e
a resposta foi adiantada confusamente de muitas partes; ate afirmar-se deíinitivamente
na forma encontrada e praticada por Inácio de Loyola em sua experiência de Montser-
rat - uma forma originada muito provavelmente da devotio modernarr e destinada a ser

9. Cf. Alain Cabantous, b ciel dans Ia mer, Paris, 1990, p. 107 (que reproduz também o trecho de Possevino, a
partir de uma edição francesa de 1619).
.l rt. PaoloMorigia, OperaChíamataSratoReligioso, etViaSpirítuale,Venezia,porNiccoloBevilacqua, 1559,p.343.
Ì 1. John W. O'Malley (The First Jesuits, op. cit., p. 138) lembra justamente a influência da deuotio moderna sobre o
abade Cisneros. Cí. tambem Pierre Gervais, "lgnace de Loyola etla confession génétale", em Communio, ed.
írancesa, VU, 1983, pp. 69-83.

Confissão como Consolação e Atxílio. A Obra dos Jauitr.


484

levada por ele ao centro do catolicismo moderno. As novidades foram essencialmente


duas: em primeiro lugar, a relação com o confessor tornou-se uma relação duradoura,
proíunda, capaz de funcionar cada uma das infinitas vezes em que o sentimento de
culpa era deflagrado. As repetições periodicas, em suma, deviam ser bem mais nume.
rosas do que as anuais previstas pelo cânone Omnis utriusque Sexas. Em segundo lugar,
as repeticões foram inseridas em um percurso de aperfeicoamento. A proposta jesuítica
tirou proveito das experiências de "alfabetos espirituais" e de conforto dos pecadores
que eram abundantes no início do seculo XVI: seu núcleo fundamental consistiu em
ligar a confissão geral - momento de busca profunda dentro de si mesmo e na própria
vida, momento também de grande afliçao e sentimento de culpa - ao início de uma
história individual de progresso, de ascensão e de aperfeiçoamento. Executar o "exercício
da vida ctistã" - para citar o popularíssimo manual de Gaspar de Loarte - significava
comecar uma nova vida com um momento de mudança que era representado justamente
pela coníissão geral. E a função de exercitar-se consistia em buscar um crescimento, um
melhoramento progressivo.
Mas o que garantiu à Companhia um prestígio extraordinário foi ter fornecido
uma sólida preparacão específica a seus confessores na materia dos casos de consciência,
ensinando-os a resolvel qualquer confusão moral, qualquer nó de escrúpulos. Graças à
construção de uma relação estável com o coníessor, o da "orientação espiritual", o peni.
tente carregado de culpas podia, desse modo, comecar a se tornar um perfeito cristão,
soerguepse do confessionário onde fizera o lavraco total de suas culpas com a perspectiva
de nunca mais voltar a ser aquele misto de pecados e fraquezas que o exame de consciência
tinha the revelado ser. A promessa de períeição que lhe era feita não era de tipo mágico
ou taumatúrgico: o diretor espiritual não era um santo homem capaz de transformar
magicamente os pecadores em santos. Era muito mais: mestre da arte de plasmar a per-
sonalidade, oferecia-se como conselheiro e conforto cotidiano, ouvido ao qual relatar
todo cedimento, mão pronta a socorrer e a levantar quem tinha défaíllances no caminho
da construção de um homem "novo". Nisso, ainda estava implícito um desenvolvimento
de outro tipo: a direção espiritual, personalizando a relação do confessor com o pecador
e partindo de uma consideracão do pecado como uma doença, uma fraqueza da pessoa,
oíerecia-se - e verdade - para colocar no caminho da perfeição quem dela queria se ser.
vir; mas, faltando a perfeição, podia tambem peÍmanecer confinada a tecnica de apoio
psicológico quando não a murmúrio confuso sobre os acontecimentos do dla. A crítica
moral de La Bruyère intuiu a realização dessa possibilidade ao estigmatizar a orienração
espiritual como espaço de conversação maledicente sobre as culpas alheias12. Deve.se
questionar se esse desenvolvimento não era congênito à propria natureza da relação de
gestão psicologica dos pesos de consciências sofredoras ou de personalidades perturbadas:
sem reabrir aqui uma questão de fato pouco explorada - a das raízes catolicas da psica-

17. "Le técit de ses íautes est pénible; on veut les couwir, et en charger quelque auúe: c'est ce qui donne le pas
au Directeur sur le Confesseur" (Is caractères oules moeurs dz ce siècLe, Paris, 1931, Il, p. 41; mas cf. também
(j pp.117-113 e 127).

Ht A Confissão
r
4i|5

nálise - o problema da natureza ambígua do metodo da direção e posto justamente pelo


ãìãrt" eÍÌtre a adesão entusiástica e disseminada à direção como panaceia espiritual
e as críticas ferozes que se levantaram de muitas partes à sua degeneração em vínculos
de dependência e de subordinação afetiva.
Há aqui uma nota especííica da personalidade de Inácio que encontrou desen-
volvimento na vida subsequente de uma grande Ordem. Não que os jesuítas tenham
sido sempre e somente a realização do projeto inaciano: contra o uso historiográfico
do princípio da inamovível fidelidade ao fundador - que caracteriza o ponto de vista
de todo corpo associado ligado por uma regra - pode-se fazer valer o adágio de Marc
Bloch, segundo o qual até as Ordens religiosas sao filhas da propria epoca mais do
que dos proprios pais. Mas nesse caso, o impulso no sentìido de conjugar o auxílio ao
próximo com o crescimento, o aumento, a conquista - atitudes típicas das orientações
do fundador - encontrou um novo caminho no interior das instituições seculares.
Esse que pode ser indicado como o princípio do magis (ad maiorem Dei gloríam) e cujos
aspectos externos da conquista de poder são conhecidos atuou em primeiro lugar
justamente na capacidade de projetar a conquista de espaços internos por meio da
confissão. Tratava-se de guiar os pecadores no caminho da autorreforma, até tornálos
capazes de não cometer mais pEcados. Nesse sentido, os jesuítas souberam interpretar
e dar resultados ortodoxos a uma tendência presente de maneira difusa nas propostas
de muitos mestres espirituais do tempo deles, algumas pontas extremas dessa tendên-
cia foram condenadas, mas nem por isso são menos significativas para compreender
que atração eram capazes de exercer. Tal íoi o ensinamento de frei Battista de Crema,
conforme o modo segundo o qual foi reunido e praticado pelos Barnabitas e pelas
Angélicas pelo menos ate a expulsão de Veneza em fevereiro de 1551: a busca de um
caminho que, mediante as práticas de extremo ascetismo, devia conduzir à "vitória
sobre si mesmo" e à condição de impecabilidade. Essa misacha spiritual perfetione, como
a denominou Girolamo Regino ao apresentar para publicação a Via de Aperta Verità
de frei Battista, exerceu uma duradoura atração não apenas sobre a congregação dos
Barnabitas, mas sobre muitos outros, atingidos pelos escritos de frei Battista, ou pelos
de seu herdeiro Seraíino de Fermo ou por outras correntes desse misticismo extremo
e um tanro suspeito de heresia; a hostilidade de teologos especialistas como Melchor
Cano e a condenação romana dos textos, acontecida imediatamente após ao caso da
expulsão dos Barnabitas13 de Veneza, não serviram para eliminar completamente um
tênômeno de busca da perfeição e da fruição direta de Deus que tinha raízes pro'
tundas. A mesma prolífica atividade de escrever de frei Lorenzo Davidico e sua vida
desregrada, "entre santos, hereges e inquisidores" como foi escrito, foram inspiradas a

13. Condenação confirmada por Michele Ghislied em uma caÍta ao inquisidor de Gênova de 15 de agosto de
1553: "As obtas de frei Jo. Battista de Crema são expressamente proibidas e a respeito disso mando-vos uma
sentença autêntica" (Biblioteca Univetsitaria di Genova, ms E. \'ÌI. 15, c. 9d.

Confissão como Consolaçào e Auxílio. A Obra Jos Jesurra'


486

essas raízes14.O sucesso de escritores e pregadores que prometiam de conduzir à paz da


alma, à serenidade de Deus, à impecabilidade, à fruição de experiências excepcionais,
mostra quanto espaço havia naquela época de turbulências religiosas para os breviários
de vida espiritual e os mestres de perfeição. Prometia-se o desaparecimento de toda
inquietação interior, a obtenção de uma liberdade total - a liberdade dos perfeitos. Os
percursos sugeridos passavam todos por severas provas de ascetismo, constituídas por
uma busca sistemática da humilhação de todo amor próprio: a prática da comunhão
frequente tinha obviamente um lugar central na economia desses percursos. Como
disse o jesuíta Lainez no Concílio de Trento, estava em curso uma reforma do homem
interior (reformatio interiorishominis) paralela àquela.do homem exterior. E à reforma do
homem interior foi dedicada uma farta literatura espiritual, na qual foram propostos
remedios, sugestões, conselhos para tornar o homem vitorioso naquele que Lorenzo
Scupoli denominou "combate espiritual". Ora, a consciência da importância decisiva
da confissão nesse contexto foi disseminada no mundo católico bem além dos limites
de uma única ordem. A confissão era, por convicção geral, a porta da conversão, isto
é, a passagem essencial para a construção da identidade15. Foi um jesuato16 milanês que
deu a ela a denominação mais {eliz "ioia dos cristãos". Segundo Morigia, a coníissão
era uma prática de higiène da alma, "Nós varremos a casa todos os dias, uma vez por
Semana queremos vestir uma camisa limpa", e então por que não "limpar" a alma com
a mesma frequêncial E a confissão geral, que devia ser feita uma ou duas vezes por ano,
era para ele como "n-" úou Li.nútú.tul da alma"1?.
os jesuítas trouxeram a contribuição não só de conselhos e sugestões específicas,
mas de uma atenção constante no que se refere à construção da relação atraves da qual
passavam os conselhos: a ligação entre confessor e penitente. No entanto' era necessá'
rio atrair os penitentes, e eles acorreram em grande quantidade, atraídos não só pela
preparação específica dos jesuítas - que dedicaram sempre grande cuidado ao estudo
dos casos de consciência - mas também pela amplitude do indulto que lhes era confe'
rido. A Companhia realmente tinha amplos poderes, seus membros podiam absolver
de todos os vínculos de excomunhao e de proibiçao e de todos os casos reservados, até
mesmo papais - com a única exceção daqueles listados na bula In Coena Domini18. Não

14. Ver o estudo de Massimo Firpo, Ml labinnto del.Mondo. Lorenzo Dauidico.tra Santí, Eretící, Inquisitorí, Firenze,
1992, que reconstituiu com grande riqueza de novos dados uma peÌsonagem secundária de notável interesse.
15. "Vera conversio ad Deum est per poenitentiam sacramentalem" (Breuis Regub. ad. Confessani' et Confitentis,
Munus Rite Obeundum, Composita aVincentioMazzoLio..., Lucae, ex typis Vincentii Busdraghi, 1590, p. 21).
16. Religioso da ordem de São Jerônimo, fundada na Itália em 1360 pelo beato Giovanni Colombini e extinta
em 16ó8 (N. do r.).
Paolo Morigia, II GioíeLLo de' Chrístíani... díviso in cinquelibn. Ne' qualì si tratta dcLl'enormírd deL peccato, del.I'essamíne
deLll conscienza, dzlla cogníríone di se stesso, dzll.a conmtíone, delle parti dellt confessione, dcLmodo dí sapersíben confessare,

junto a Gio. Antonio delli Antonii, 1581 (mas a obra tinha sido concluída
et deLla perfetta penitenza,Venezia,
quatro anos antes, confotme aíirmação do autor na dedicatória), íí.71u,83't'84r.
18. "sciant se ab omni excomrnunicatione, suspensione et interdicto posse absolvere etiam externos, tum ab
omnibus etiam casibus reservatis, non episcopis solum, sed Summo Pontiíici modo ne sint casus vel censurae
.í ,i in Coena Domini reservatae" (P. Diego Lainez, De Mod"o Audiendi Confessiones, em ARSI, Opp. lrtl.55, cc. 109t

H.' A Confissão

t.h
r
487

e fácil ter uma noção exata dos poderes da Companhia a propósito disso: os jesuítas
mantiveram uma postura muito reservada em torno dos documentos oficiais de seus
lrivilegios, para os quais chamaram, no entanto, a atenção dos penitentesle.
Embasados nisso, os jesuítas puderam contar com um crescente sucesso em
sua obra de confessores. Durante anos e anos, os relatórios dos jesuítas descreveram
as imensas multidões que se apinhavam junto aos confessores da ordem, as pesadas
:essÕes no confessionário a que eram obrigados. É sobre esse fundo que devem ser
Ì.rdas as insistentes advertências, que não demoraram a ser dirigidas aos membros da
Companhia por seus superiores, apontando na direção da qualidade das confissões
e não da quantidade. As instruções dos jesuítas aos confessores são extremamenre
:iaras a esse respeito; os confessores não devem propor.rà o objetivo de ouvir catervas
je penitentes para liquidá-los após uma penitência sumária. Ao contrário, devem ter
Fresente o modelo do medico que busca e cuÍa feridas secretas - são os médicos da
:lma20.
Ig_"ggr qg:_f=t1o{12111 i.9l!i_:1o c.t_11:.Na história da ordem fundada
por Inácio, a proposta da confissão geral devia tornar-se uma das mais importan.
:es, ela encarnava melhor que qualquer outra prática devota o movimento que das
profundezas da abjeção levava ao desejo de resgate, do conhecimento de si mesmo
r vitória sobre os próprios instintos culpados - e portanto, do abismo do pecado à
;úspide da perfeição. Era preciso partir da reconsideração dos erros passados em toda
sua extensãor para recuperar periodicamente o impulso para um novo início. Mas
rão se tratava de uma meditação moral tradicional: era uma prática feita a dois. O
;ristão devia pôr nas mãos do proprio psicagogo todos os fios imperfeitos do tecido
Ja própria vida, para obter com a ajuda dele uma transformação radical. Assim, o
confessor tornava-se algo bem diferente em relação ao distribuidor ocasional de um

e ss.; em part. c. 111u). Na Alemanha os jesuitas


obtiveram em 1550 do núnzio Alvise Lippomano o poder de
absolver também os hereges arrependidos (o documento de Lippomano, de 21 de abril, e a carta de Canisio
a Inácio, de Ingolstadt,28 de maio, em Petri Pauli Canisii S.I.Epístulae erActa, edidit Otto Braunsberger,
Friburgi Brisgoviae, 1896, l,pp.314-319). Pata a conservacão de tal privilégio os jesuítas dedicaram sempre uma
atencão particular (cí. idem, p.639, a carta de Canisio a Inácio de 17 de junho de 1556, sobre as diíiculdades
encontradas junto aos penitentes por causa da excomunhão por liwos proibidos). Paulo IV confirmou o indulto
em 8 de maio de 1557, mas só oralmente e limitando sua validade à Europa setentrional (idem, vol. II, Friburgi
Brisgoviae, 1898, p. ó58 nota). Pio IV revogou-o, mas acabou por confirmáJo por interíerência de Michele
Ghislieri (ídem,vol. IV, Friburgi Brisgoviae, 1905, p.533): o geral Laínez ordenou não falar publicamente da
licenca de ler liwos proibidos "por el peligo de perderla" (circular de 10 de junho de 1559: cí. H. Reusch,
"Beitrâge zur Geschichte des Jesuitenordens", em Zeitschnft fur Kirchengeschichte, XV, 1895, pp. 98.99).
t9 Como se lê desde a primeira edição portuguesa do diíundido manual de Polanco, quem tinha caído em
excomunhão podia ser absolvido no íoro da consciência pelos jesuítas que tinham poder para isso (Directorio
Coimbra, 1537 , c. 74v; mais vago e alusivo o texto
de Confessores et Penítentes Copilado per Mestre Joan Polanco..,
latino impreso na ltália, Breue Dírectorium ad Confessaii, et Coefitentis Muruu Rite Obeundum Concínna.tum,
Bononiae, apud Alexandrum Benatium, 1589, p. 50). A primeira edição do tratado é de 1554.
"Statuant sibi non hoc animae munus suum ut multos poenitentes audiant, eosque catervatim imposita tantum
poenitentia de data absolutione expediant; sed potius ut tanquâm medici internis animae vuineribus medeant"
(Ins*uctioproConfessariísnostraeSocietatis,mssec.XMldaBibliotecaNazionalediRoma,fondoGesuitico, 1477,
n. 20, íf. 428r e ss.).

Confissão como Consolacão e Arxílio- A Obra dos Jesuítas


488

perdão divino sempre todavia garantido. Tornava-se conhecedor profundo da história


de uma vida, aquele que possuía os segredos mais íntimos e ao qual o pecador se
entregava para fazer aquilo que sozinho não tinha condicões de fazer.
Era uma virada radical no que se reíere à tradiçao. Na prática franciscana, so.
bretudo, a "confissão geral" significava confissao íácil e breve: a Confessione Generale
atribuída a frei Bernardino de Feltre e a Confessione General.e de fra Raphael eram livri.
nhos de dezesseis páginas ao todo e garantiam desde o título facilidade e brevidade.
Eram textos tão simples e fáceis que muitos, acusava um franciscano, "pegam os in'
terrogadores e coníessam tudo aquilo que veem escrito, feito ou não" - e isso, Paolo
Morigia chamava depreciativamente "confessar o impresso"21. O rito da confissão anual
concebia a característica "geral" da denúncia das culpas em termos muito parecidos
aos que foram as características da "coníissão geral" na interpretacão dos simpatizantes
italianos de Lutero: geral, isto e, generica, sem indicação de circunstâncias e caracte.
rísticas exatas do pecado cometido. A proposta dos jesuítas ia na direcão oposta. Sua
ascendência sobre as consciências foi devida ao mesmo contexto no qual tambem
se inseriu o sucesso arrebatador da proposta luterana em materia de penitência: a
penitência invadia toda a vida, não podia mais ser limitada a um ato ritual articulado
pelos tempos do ano'litúrgico.
Era inevitável que os guardiães da tradição não tivessem ficado contentes com
essa verdadeira virada: "com essas confissões, que alguns pretendem que sejam gerais
[...] submetem-nas de modo que ninguém possa tirá-las das mãos deles"22. Preocupado
com esse novo tipo de domínio psicológico, o dominicano Medina chegou a levantar
dúvidas quanto à ortodoxia dessa prática: poÍ acaso não viam que, retomando sempre
do início, confessando novamente pecados já confessados, colocava-se em dúvida a
propria validade da confissãol

I E opinião verdadeira e corÍeta de todos os católicos que aquele que se confessou bem uma
I
I vez não venha a se confessar uma outra, e não há lei humana que obrigue ao contrário. De onde
ì/
I

se segue que aqueles que dizem ser necessário fazer confissões gerais ensinam uma doutrina falsa e
errônea: pois que ou as confissões passadas foram válidas ou não foram; se foram válidas e erro e má
doutrina dizer que seja necessário íazer outras confissões gerais: se foram inválidas, é verdade que
todas devam ser reiteradas e feitas de novo, não porque as particulares não bastem, mas por não terem
sido válidas: por isso, ensinar que todos têm necessidade de fazer coníissão geral é erro ensinado por
homens com pouca prática na cura das almas.

21. A acusacão é do observante Francesco de Mozzanica, em sua Breuissíma Introductione impÌessa em 1510; retomo
a citação do amplo e íundamental estudo de Roberto Rusconi, Con/essÍo GeneraLis. Opuscoli per la Pratica
Penitenziale nei Pdmi Cinquanta Anni dalla Introduzione della Stampa", em Ì Frati Minori tra'400 e'500.
Attidelxlt Congresso InternazionalB,Assis, 1986, pp. l9l-277; empaÌt. p.725.Cí. tambémMorigia, ILGioiella
de' Chnstianí, op. cit., c.9lr.
7.2. Breuelrunuttione de'Confessori, come síDebba AmministrareilSaqamento dellaPenitenza..., do M. R. P. F. Bartolomeo
í de Medina, em Venetia, iunto a Domenico Nicolini, 7582, cc.48u49r.

A Confissão
r
489

A prática da confissão geral levantava dúvidas e acusações; mas a violência dos


ataques so é explicada se se tem presente a capacidade de adesão e o grande sucesso
que as propostas dos jesuítas sobre a confissão obtiveram não apenas entre os simples
fieis mas entre eminentes eclesiásticos. O bispo de Ferrara Paolo Leoni acreditava tanto
na utilidade da confissão geral que inseriu em seus estatutos diocesanos uma apaixo-
nada peroração a esse respeito. Seus argumentos baseavam-se na natureza complexa
da confissão que, segundo a norma dos cânones tridentinos, devia constar de três
partes (coníissão, contrição, restituição). Ora, bastava que uma dessas partes não fosse
períeita para que a coníissão "particular", a que se fazia de tempos em tempos sobre
os pecados cometidos desde a última confissão, não atingisse seu objetivo. E por isso,
concluía Leoni, a confissão geral era tão oportun" qr.,," ô, párocos deveriam exortar
seus paroquianos a praticá'la2l.
O que não se dizia e qual era o lugar da confissão geral na estrategia jesuítica: mas
basta folhear qualquer manual para confessores em uso na companhia para descobri-lo.
A Institutio Confessariorum do jesuíta de Bríndisi Martino Fornari, por exemplo, que e
recomendada pelo geral Claudio Acquaviva, parece bastante autorizada e representativa
já ao prometer desde o titulo um caminho de perfeição aos penitentes2a. A obra articula-
-se em três livros dos quais so o'primeiro tem um aspecto familiar para quem conhece
os manuais dos seculos anteriores: nesse primeiro livro trata-se das disposições do
confessor, das condições e posições sociais dos penitentes, dos remedios para os vários
pecados. Era uma subdivisão normal na vasta literatura dos manuais que, em vernáculo
e em latim, era dirigida a coníidentes e confessores para instruilos sobre as modalidades
do sacramento. Mas já na parte conclusiva desse primeiro livro, aparece uma concepçào
do pecado como enfermidade da alma e do confessor como medico capaz de curá-la.
Portanto, o pecado não é mais o resultado da batalha entre anjos bons e maus - batalha
externa ao homem - mas é o resultado de deficiências e fraquezas individuais, que se
revelam no pecado. A tentação e uma prova das reações individuais, dos estados de espí-
rito e dos temperamentos: tentador pode ser o diabo (que não conhece a interioridade
humana e procede por tentativas), mas pode ser outro homem ou até mesmo Deus. A
tentação e necessária, ou melhor, e, pode ser, muito útil25: e o caminho para atingir
a perfeição e o prêmio eterno. O confessor-médico deve ajudar o indivíduo tentado a
superar a provar que se torna, desse ponto de vista, uma oportunidade útil, sem a qual
o aperíeiçoamento não aconteceria. Por isso, a prece do pater noster e subvertida: o
homem deve ser induzido à tentação. O importante e que haja quem o ensine a tirar
bom proveito disso. Também a consideração das culpas muda profundamente. No lugar
do herege, temos o homem tentado contra a fér cabe ao confessor ensinar-lhe como

?.3. DecretaetConstítutíonesPenLLustnsetReuerendíssimiinChnstoPanisetDomíníP.PauLíLeoníi...EpiscopiFenaríensis,
Ferrariae, Victorius Baldinus typographus Ducalis, 1588, pp. 16-17.
1.4. Institutío Confessariorum ea Contínens, quae ad Praxim audiendí confessiones, et promouendi poenitentes ad clvístíanom
per f ectionem p e'í tinent..., Romae, cpud Barthoiomaeum Zannettum, 1610.
"[...] Maximam ex tentationibus hauriri utilitatem" (idem, p. 98).

Confissão como Consolação e Auxílio. A Obra Jos Jaurr::


r
490

vencer a tentação, sugerindo-lhe as passagens bíblicas que levem a uma adesão passiva
às doutrinas da lgreja, a uma recusa a querer saber as coisas "altas"2ó. O mesmo vaie
para a blasfêmia. Mas para que o confessor possa intervir toda vez em que haja neces.
sidade, é preciso que a relação com ele seja estável e não esporádica. O segundo livro
comeca pelo fim da coníissão: o penitente que procedeu a uma verdadeira e profunda
rejeicão do pecado não deve ser deixado ir embora com uma simples absolvição. Deve
ser convencido a fazer uma confissão geral e a pôpse no caminho da milícia espiritual:
é aqui que se realiza o progÍessus in uia Domíni, o aumento progressivo do controle de
si mesmo e a orientação para o bem da propria pessoa. E esse é o "caminho da purga.
ção", ao qual se segue, no terceiro livro, o "camin\o da iluminação". A relação casual e
esporádica do penitente com o confessor tornou-se a ligação estreita e contínua de um
discípulo com um mestre sempre pÍesente, sempre atento aos movimentos interiores
do discípulo, capaz de ajudar aquelas forças já presentes nele que podem conduzi.lo
ao caminho da perfeição religiosa.
A linguagem sistemática dos manuais, de resto, corresponde à linguagem mais
informal das instrucões internas. Em uma delas, redigida por Claudio Acquaviva em
1588, explica-se em que consiste o exame de consciência (ou ratío conscientiae) a ser feito
diante do superior; e ne'cessário - observava Acquaviva - abrir o estado da propria alma,
evidenciar defeitos, paixões, simpatias, tentacões, até mesmo virtudes, enfim, tudo o que
e necessário para fazer com que se conheca bem a si mesmo: e deve.se fazer isso com fre.
quência, não em datas marcadas uma ou duas vezes ao ano27. É decisivo, de todo modo,
o critério fr,rndamental fixado por Acquaviva: e preciso que o penitente desvele o estado
de sua consciência não como se estivesse diante de um juiz, mas como diante de um pai28.
Confirma-se portanto o que Ghislieri tinha escrito ao jesuíta Rodriguez: o inquisidor,
como juiz, não tem nada a partilhar com o confessor. A confissão e o lugar da escuta
e c1a confiança: e os jesuítas foram os mais conscientes defensores desse princípio. Isso

não os impediu de colaborar com o tribunal da fe e até mesmo de dar ouvidos à oferta
do rei de Portugal de entregar a eles a direção da Inquisição naquele país2e. Os hereges
tinham sido combatidos: quanto a isso não restavam dúvidas. Mandar à morte um ou
outro podia funcionar como um bom sistema de dissuasão, mesmo segundo lnácio de
Loyola. Mas a "vida nova" do cristão iniciada pela confissão geral apoiava.se não no
terror das penas, mas na conversão interior: e foi por isso que os jesuÍtas seguiram o
caminho clas confissões e não o dos processos inquisitoriais. Tâmbém por isso, sempre

z6 Idrm, p. 100. Cí. C. Ginzburg, "LAlto e il Basso. ll Têma della Conoscenza Proibita nel Cinquecento e Sei.
cento", em ldem,Míti, Emblemi, Spie. MoÍfoLogta e Stona, Torino, 1986, pp. 107.132.
27. "[...] Statum animae suae, nimirum defectus, passiones, propensiones, tentationes, virtutes ípsas et quaecum.
que ad períectam sui cognitionem facere possunt, ei manifestare, cui se ad maiorem Dei gloriam ditigendos
tradiderunt" (Iurructioad.Faci\ioremReddendamConscientíaeRationema R. P. N. Clatdio CuidnmVisitato'riData
Anno 1588, da redação manuscrita, conservada em Hauptstaatsarchiv, Muniqu e, lesuíten 9, c. 57 e ss.).
28. "Se non tanquam iudici suam coscientiam superiori, sed tanquam patri maniíestare' (idem).
79_ Um quaclro claro e coreto da questão, normalmente pouco aproíundada nos estudos sobre a Companhia, é

fornecido por O'Malley, Thr First.lesuits, op. cit., pp. 310-320i em part. p. 312.
r
491

atribuíram muita importância a um privilegio, tão importante quanto controvertido,


que os autorizava a absolver os hereges in foro conscientiae3a.
A experiência da Companhia a esse respeito encontra-se reelaborada e resumi-
da nas grandes sínteses que foram dedicadas à figura do "diretor espiritual" entre os
seculos XVII e XVIII. Era preciso transformar a relação ocasional com o penitente na
ligação duradoura de pai e filho espiritual. Na lgreja pós-tridentina sempre se teve ampla
consciência do fato de que a grande maioria dos cristãos "aproxima-se uma vez por ano
do confessor mais para pareceï cristão do que por vontade de viver de modo cristão"3l.
As conclusões que o pregador jesuíta Giovanni Pietro Pinamonti devia tirar disso de-
monstram a longa íldelidade da Companhia ao método visto. Segundo Pinamonti, era
desse ponto que se devia partir: aproveitando a ocasião,to confessor devia transíormar
o rito distraído e apressado no início de um percurso que poria aquele pecador no ca-
minho da perfeição. Para isso, era fundamental o adiamento da absolvição: "Não seja
pois verdade que correis a dar-lhe a absolvição e a dispensálo [...] Adiai a absolvição de
modo que ele se disponha a ser absolvido, cumprindo antes um tanto da penitência
a ser-lhe imposta"32. Era necessário demonstrar-lhe que seus males requeriam não "o
medicamento instantâneo de uma imediata absolvição", mas um tratamento longo, para
o qual era necessário que aqüele pecador escolhesse "um confessor estável e de muito
zelo"; enquanto isso, deveriam dar.lhe livros para ler e práticas devotas para cumprir.
Se se conseguisse convencê-lo a tanto, a relação podia ser iniciada: o primeiro passo era
a confissão geral, meio extraordinário de grande eficácia. Porem, devia-se ter cuidado
ao reiterar com muita frequência a confissão geral. Se fosse descoberto que com isso os
progressos espirituais eram bloqueados por um contínuo elucubrar das culpas passadas,
com o risco de que um excesso de escrúpulos precipitasse o penitente no desespero, era
necessário limitar-se à primeira confissão geral e depois impor-lhe "um rigoroso silêncio
sobre o passado"13. Assim, o confessor na relação com o penitente colocava-se como um
médico em relação a um paciente. Mas para ele, à diferença do que acontecia com os
medicos do corpo, não existiam doentes incuráveis: todos podiam ser curados e condu-
zidos ao caminho da perfeição, desde que seguissem as instruções do medico espiritual.
Esse, por sua vez, devia fazer uso dos conhecimentos cientííicos para obter o controle

10. Sob Sixto V, em uma das muitas ocasiões em que o indulto concedido aos jesuítas íoi limitado e precisado,
estabeleceu.se que os confessores da Companhia deviam enviar ao Santo Oíicio os hereges "maniíestos"
("Haereticos manifestos Patres Soc. Jesu sub praetextu cuiusvis priúlegii non absolvant in confessionibus et
in íoro conscientiae, sed illos ad S. Ofíicium transmittant, quia Sixtus V quos talem privilegium habebant,
illud revocavit et abstulit 1585" t Forma procedendi ìn causís Sancti Officii ac haereses omnes a R. P. M. Lturentio a

Laurea Santiss. D. N. Papae cotxu\tore dispositae et ìn unum coLle.ctae, BAV, Borg. Utt. 5 59, c. 48v).
31. Gio. Pietro Pinamonti, "11 Direttore. Metodo da Potersi Tenere per Ben Regolare le Anime nella Via della
Peíezione Cristiana", em Opere, Pezzana, Venezia, 1767, pp.607-710; em part. p. 607. Sobre a impottância da
orientação espiritual para os jesuítas cí. Joseph de Guibert 5.I., b. spiritualíté de ln Compagnie de lésus. Esquisse
hístorique, Roma, 1953, pp. 301-304.
12. Pinamonti,IlDirettore, op. cit., p. ó08.
)3. Idcn,p.617.

Confissão como Consolação e Auxílio. A Obra Jt s Ìsu:rr.


492

total das consciências e penetrar seus recônditos. A teoria dos temperamentos era tida
como o abecê da prática confessional por exemplo, com os que sofriam de melancolia
era preciso evitar a severidade sob risco de estimular uma tendência natural ao deses-
perol4. Como se vê, aprofundando a estrategia do controle da consciência, o confessor
põe.se diante das pessoas como um cientista que experimenta em laboratório o modo
de determinar certos efeitos. Daí, a análise científica da relação enffe causas e efeitos
substitui a dinâmica medieval do confronto entre anjos e demônio em torno do pecadort
as potências extra.humanas não são eliminadas ou excluídas, mas são introjetadas ou
consideradas como agentes secundários que se inserem em processos internos ao ser
humano. É por.ss. caminho que, progressivamente, o Tentador de asas de morcego
que esvoaça ao redor do pecador e substituído por energias naturais existentes dentro
do individuo. Em lugar da Têntação como ato promovido por forças sobrenaturais se
não diretamente por Deus ("não nos deixeis cair em tentação") encontra-se cada vez
mais a Paixão como produto do movimento natural da psique humana: força natural,
poÍtanto, e por isso positiva. "O que seria o mar se não fosse agitado de quando em
quando por ventosl Seria um pântano sem fim, mas pútrido, que empestaria a terra.
E o que seria uma alma sem tentações? No máximo um receptáculo de soberba e por
meio da soberba um reCeptáculo de vícios"35. Como a névoa que se ergue das planícies
e das águas paradas para o alto das montanhas, assim a paixão nasce das potências
inferiores do corpo e ergue-se ate as superiores, do intelecto e da imaginação: a arte do
diretor da consciência consistirá, poÍtanto, em dominar o conflito de forças dentro
do individuo. Assim, o pecado deixa de ser um fenômeno misterioso e dramático para
tornar-se o resultado previsível de inclinações naturais que, aumentando progressiva-
mente em virtude de erros de estrategia, podem chegar ao resultado extremo do pecado
mortal - extremo, mas não derradeiro, porque sempre há um remedio, uma saída, um
tirar proveito do erro.
uma estrategia desse gênero, aplicada em larga escala, modificou radicalmente as
características medievais da confissão e conferiu à relação com o confessor um lugar cen-
tral na vida social. Os confessores com que nos deparamos na epoca pós-tridentina são
personagens que sabem como entrar no íntimo de seus "filhos espirituais", acompanham-
.lhes momento a momento as vicissitudes, fornecem conselho e auxílio, vivem indi
retamente as vidas alheias. A ligação estreita que são capazes de criar com seus filhos
espirituais alimenta-se de contatos e conversas contínuas, diferentes do encontro em
confissão. Uma devota anônima do final do século XVII aconselhava aos penitentes
que mudavam ocasionalmente de confessor que não maniíestassem ao novo sua vida
interior assim como faziam ao diretor espiritual. Havia o risco de que o confessor
ocasional fornecesse indicações diferentes em relação ao normal; e havia ainda o
problema do tempo, "exigindo-se longo tempo para declarar o estado interior de uma
alma, ou entediaríeis o confessor, que não é o vosso habitual, ou então impediríeis

34. Iden, p. 613.


35. Idem, p. 623.

A Confissáo
r:
493

os outros que querem se confessar"; e conclamava a diferenciar confissão de "confe-


rências espirituais"36.
O tempo era também um problema para as confissões gerais. Os manuais para
confessores continuaram durante muito tempo a propor modelos de autoexames sumá.
rios, a serem praticados antes da confissão, mas cada vez mais tomava corpo a prática do
exame de consciência como exercício normal, a ser feito diariamente, antes de dormir3i.
Em relação à tradição do exame cotidiano, o método introduzido pelos jesuítas foi ca.
racterizado por uma extraordinária minuciosidade. Para se ter uma ideia, basta folhear o
interminável esquema proposto para o exame da consciência no livro de devoção escrito
pelo padre François Coster para as congregações de que foi organizador infatigável:
congregações que, na prática do exame de consciência, tirìtram uma finalidade espec!
íica38. A confissão, para os membros da congregação, devia ser realizada toda semana.
Para esse encontro, era necessário preparar-se com apuradíssimos exames cotidianos,
para identificar não só os pecados mortais cometidos, mas tambem todos os veniais: o
devoto distinguia-se do cristão normal pela busca de um estilo de vida mais elevado e
isso demandava deveres precisos. Por isso, o exame cotidiano devia ser concluído com
listas escritas de pecados ordenados em grupos homogêneos: daí, na hora da confissão,
a lista inteira devia ser decorada'e repetida ao confessorse. Porém, visto que podia acon.
tecer de alguem não ter feito o trabalho cotidiano de anotação, o padre Coster fornecia
um pró-memória modelar, que não era absolutamente uma lista esquemática. Páginas
e páginas, um liwo inteiro, revelam ao leitor todas as categorias de pecados ordenadas
segundo a aritmética nova dos dez mandamentos somada à tradicional dos sete pecados
capitais4o. Fundamental e preliminar, naturalmente, é o pecado de heresia, que logo se
desdobra no de contatos com hereges e com livros heréticos, para depois se espraiar na
variada casuística das superstições e da magia. Superado esse obstáculo, a análise passa
em revista ordenadamente todas as ocasiões da vida social apropriadas a pecados veniais
ou capitais: os juramentos, por exemplo, levantados em relação ao segundo mandamen.
to, não são apenas sumariamente indicados, mas são separados em juramentos pelas
chagas, pelo sangue, pela paixão de Cristo, e também em juramentos por Júpiter e por

), 36 Strad.a di SaLute Breve, Facile e Sicura Insegnata Nuoçamente da un Religloso Scalzo Eremitano ad una sua Penitente,
em Bologna, por Longhi, 1679, p. 145.
)1, "Ne prius admittas somnum, quam cuncta diei,/Acta ter excuÍras, bona, seu mala notando", advertia um
anônimo Methodus Con/essionis, hoc Esr, Ars,
Srue Ratio, et Brevís Via Confitendi, Lugduni, apud Theobaldum
Paganum, 1546, p. 307.
; 38. À sua obra é dedicado o volume de Louis Châtellier, IlEurope des üuots, Paris, 1987 (trad. it. Milano, 1988)
que íaz referência à traduçáo francesa do LibeLLus SodaLitatis (Izliwe dela Compaígníe c'est'ààireLes Cínqlívres des
irutitations cl'trestíennes, dressé.s pour I'usage de Ia conftéie de la très'hcureuse Vierge Marie, Anvers, Plantin, 1588).
39. "Qui autem in cotidiano examine vespertino distincte, breviter, et simul quae sunt eiusdem rationis peccata,
scripto notaret [...] cum est accedendum ad coníessionem [...] quod notavit, in memoriam redigat" (Líbellus
Sodalitatis, hnc Esr, ChnstianarumlnstitutíonumLíbrí Quinque, P. Frellon et A. Cloquemin, Lugduni, 1594, liwo I,
cap. I: "De Mod.o Insrituendte Con/essionis quae Octavo quoque Díe Fieri SoleC', pp. 1-2).
40. Sobre a passagem de uma â outra e seus efeitos, cí. John Bossy, "Moral Arithmetic. Seven Sins into Ten Com.
rnandments", em Conscience and Casuístry in Earfu Modern Europe, org. de Edmund Leites, pp. 214-254.

Confissão como Consolacão e Auxí1io. A Obra dos Jesuitas

I' - rEEÚÍl Il-


FF:
494

Hercules. Elaboram.se esquemas mnemônicos que dos pecados capitais derivam famílias
inteiras de pecadosr seis filhas da Acídia, sete as da vanglória, oito da luxúria; e era
as
necessário perquirir cada filiaçao, vendo por exemplo se, na busca por novidade, - uma
das filhas da vangloria, justamente - não se cometera o pecado de desejar roupas novas
ou novas opiniões. Era preciso escavar na memória, recordar tudo - circunstâncias'
ocasiÕes, quantidades e qualidades dos pecados. Era, como se pode facilmente imaginar,
uma leitura ansiosa, embora o autor exortasse à confidência e tentasse afastar o perigo
de uma consciência scrupulosam et anxiam. Para incentivar a confiança, padre Coster
usava uma imagem nada nova, a de Deus como um soberano que, à sua chegada a uma
cidade, oíerece um perdão geral a todos os súditos que a ele se dirigem para solicitar'
.lhe a carta de remissão - adaptação católica dà princípio da justificação por fé caro,
na Itália, aos leitores do Beneficío di Cristoal. Mas o exame de consciência era uma prova
difícil, que exigia dedicação. Mesmo os autores que se esforçaram em atrair mais do que
espantar os penitentes, deixaram escapar imagens inquietantes: o cristão deve "enttar na
caverna de sua consciência e, fechada a entrada a outras coisas de fora, deve examiná'la
quanto a todas as coisas que possa ter feito contra ela"42. O diálogo com a consciência
no interior da caverna era a antecipação daquele com o juiz eclesiástico sentado em seu
escano (as arquitetut'as barrocas do confessionário, se variaram de muitas maneiras as
características secundárias desse mobiliário eclesiástico, sempre sublinharam sua solene
função;udiciarla). Diálogos temíveis, tanto um como o outro. O exame de consciência
não podia ser outra coisa se não fonte de ansiedade, justamente pela busca de exatidão
e completude. E, visto ser fundamental recordar com precisão cada detalhe emergente
do dialogo com a consciência, recorria-se à escrita. Anotações manuscritas' cruzinhas
ou barrinhas marginais nas listas de pecados propostos pelo liwo da própria congre'
gação auxiliavam os devotos a lembrarem os pecados a serem denunciados43. E esse e
um indício que nos ajuda a entender por que assumia grande importância à época a
questão quanto à possibilidade de fazer.se uma confissão por escrito.
A escrita era o resultado inevitável da prática do exame de consciência: no lugar
dos mecanismos mnemônicos baseados na rápida resenha de mandamentos e pecados,
entrava um esforço de aprofundamento em uma materia que nem mesmo as artes da
memoria podiam mais controlar. A prática dos Exercí cios Espirituais de Inácio levava,
por sua natureza, a recorrer à escrita no exame de consciência. Existe um documento
exemplar a respeito disso em uma edição ilustrada, onde a forma do exame de cons'
ciência concentra.se justamente na prática da escrita, enquanto o texto lembrava a
obrigação de repercorrer mentalmente, à noite, cada hora do dia para controlar o que
fora feito em pensamentos, palavras e atos, a imagem precisava melhor a operação a
ser cumprida, mostrando um homem que, ajoelhado, registra por escrito o resultado

41. A imagem do rei e apresentada entre os "argumenta popularia ad commendandam írequentem confessionem"
(LibeLLw Sodalitatis, oP. cit., pp. 10-14).
42. Paolo Morigia, Il Gioiello de'Chnstíani, Treviso, junto a Fabritio Zanetti, 1601, c. 11r.
43. Sinaisdessegêneroencontram.se,porexemplo,naspáginasdedicadasaoexamedeconsciênciadoLibeLlusSoda-
lítatis, {o padre François CosteÌ, na cópia arquivada na Biblioteca Universitaria di Pisa
(col.' Franceschi a. 114).

A Confissão
r"
495

do exame44. Por outro lado, a confissão geral desembocava na autobiografia, e, como


todas as escritas autobiográficas, as confissões também foram elaboradas para um
leitor. De fato, se as confissões tiveram de ser cada vez mais preparadas por escrito,
e provável que a confissão se resolvesse frequentemente em leitura. Os indícios que
encontramos de práticas desse gênero nas vidas de candidatos à santidade indicam
como relativamente costumeiro o uso da escrita não só para a preparação à confissão,
mas como texto a ser lido ao confessora5. Não era apenas uma questão de auxílio à
memória para o penitente: o diretor espiritual, tendo de orientar e aconselhar, pre-
cisava da mediação da escrita para conseguir saber a natureza dos problemas, para
distinguir inspiraçÕes boas e enganos diabólicos, para dissipar os véus da hipocrisia,
a irmã gêmea da santidade. Resumindo, ao tornar-se moÌnento de conhecimento e de
auxílio ao crescimento espiritual do indivíduo, a confissão tendia a transferir-se do
oral para o escrito.
As práticas da escrita aplicada ao revolvimento das consciências foram nu-
merosas e ainda esperam ser adequadamente conhecidas. Não se tratou somente
de solitárias introspecções individuais, o modelo monástico do capítulo das culpas
reconhecível por trás da busca visionária da "vitória sobre si mesmo" que era pra-
ticada entre os primeiros Batnabitas foi reproposto com sucesso no final do século
XVI por um devoto da "divina madre" Paola Antonia Negri, Marco (depois Antonio)
Pagano, que se tornara franciscano observante4ó. E sabe-se 1á quantos outros grupos
e grupelhos devotos praticaram confissões escritas e gerais em que o indivíduo de-
monstrava diante da comunidade as crises periódicas a que sua participação estava
sujeita. A prática social da confissão e o sucesso dos modelos de perfeição espiritual
andaram pari passu.

44 Exercitia SpirituaLia S. Ignarii Loylae Societatis lesu Fundatoris..., Romae, ex-typographia Varesiana, 1663, cc. n.
n. ("examinis generalis modus"). A imagem é reproduzida por G. Palumbo , Speculum Peccatorum. Frammenti dí
Stona nello Specchlo delle Immagtní tra Cin4ue e Seicento, Nâpoli, 1990, p. 233.
4s. Sóror Ottaüa Angela Arditi, florentina, monja ern Êmpoli, íoi instada por seu orientador espiritual a íazer a
confissão geral. Eis a narração de uma aparição prodigiosa do demônio: primeiro o tentador assume as feições
de são Pedro e tenta íazer a monja cometeÍ o pecado da soberba, mostrando-lhe o quanto suas culpas eram leves.
Depois, aparece-lhe nas vestes de uma co-irmã, sóror Vincenza Angiola Mugnaini, e íaz com que the entregue o
texto da confissão gera1, aproveitando.se do íato de que "a Verdadeira monja [sóroi Vincenza], para se edificar
pedira a sóror Ottavia que lhe mostrasse a confissão geral já feita". O biógrafo explica que sóror Ottaüa tinha
cedido à súplica da co-irmã, esperando com isso ser humilhada, "para que, considerando-a uma grande pecadora,
a desprezasse". Mas quando, lida a coníissão, sórorVncenza começa a elogiá-la e a observar que naquela confissão
íazia.se "caso dos mínimos pormenores", sóror Ottaúa deu-se conta de ter diante de si o tentador diabólico e fugiu
da superiora (Co mpenàio deLln Vita delb Venrrabil.e Suor Ottauia Angela Arditi, Religiosa rwl, Monistero dclla Nunziata
d'Enpol.i, em Lucca, por Salvatore e Giandomenico Marescandoli, 1739,pp.74-75\.
46. Como notou G. Zani, nas Ordini de Antonio Pagani (1586) pata as Filhas de Maria Imaculada Dimesse de
Vicenza estão previstas "capituÌações" escritas que deviam reunir as confissões comunitárias das culpas a serem
realizadas ao final de um período de seis meses de retiro ("'Vera' Santità, 'Simulata' Santita: Ipotesi e Risconni",
em Finzione e Santítà uaMedioevo edEtàModema, op. cit., pp. 25-26).Mas o percurso de Marco, aliás Antonio
Pagano, mereceria uma pesquisa específica.

Confissão como Consolação e Auxílio. A Obra dos Jesuítas


496

Mesmo na base das vicissitudes pessoais de inácio de Loyola, a confissão aparece


como um laboratório de experiências em que a tradição misturava-se à busca do novo.
O caráter público, ou pelo menos participativo e comunitário, da confissão e do con-
sequente perdão resistiu, enfim, mais do que se imagina ao avanco das características.
opostas de relação ciosamente privada, individual e secreta entre penitente e coníessor.
O surgimento e a disseminação do confessionário como lugar físico da confissão e
suíiciente para demonstÍar que esse avanço era irresistível.
Porém, não se tratou de um percurso sem obstáculos, no âmbito da historia da
confissão e de sua evolução para um sentido moderno e inquietante da construcão
da identidade pessoal. Nessa evolução interferiu o problema do controle inquisitorial
dos pensamentos secretos e das convicções íntimãs. Justamente no terreno da escri.
tura mediu-se então uma dimensão da coníissão que podia rivalizar com o processo
inquisitorial ou, ao contrário, abrir a possibilidade de integração de uma no outro.
A passagem do oral para o escrito era tão indispensável para o processo inquisitorial j
quanto era, oficialmente, uma barreira intransponível para a confissão. Essa resistência
da dimensão oral da confissão deve ser destacada: em uma epoca que tendia a traduzir
,i
toda forma de oralidade em escrita, exigiram-se boas razões para impedir que tambem
a prática confessional ss tornasse escrita e para desencorajar quem a fazia desse modo.
A escrita permitia meditar demoradamente, exercitar a memória, vasculhar
atentamente nas proíundezas do passado de modo a tornar a exposicão das próprias
culpas o mais exaustiva possível.
Por essas razões, o escrito volta continuamente na relação entre confessores e
penitentes. Vimos, de resto, como o uso da confissão escrita encontra.se na experiên.
cia do fundador dos jesuítas. Não e por acaso que justamente entre os membros da
Companhia, confessores especializados e mestres de gerações inteiras de confessores,
aílorassem periodicamente tentativas de uso da escrita. Mesmo quando a forma oral
parece estabelecida de maneira irrevogável, há indícios que mostram uma espécie de
sobrevivência subterrânea. Mas a questão era muito delicada, e foi necessário esperar
situacões de emergência - a guerra, a peste, a carestia - para propor timidamente uma
legalizacão da prática. Um texto de um bispo romano - Rutilio Benzoni, bispo de Re.
canati, educado pelos jesuítas e particularmente próximo deles - dedicado à questão
geral da fuga diante das próprias responsabilidades de governo, traz prova disso. O que
servira de estímulo ao autor era um problema real: a epidemia que atingira boa parte
do norte da ltália no final do século XVI criara violentos atritos entre eclesiásticos
fieis a seus deveres, como Carlo Borromeo, e prelados que tinham se refugiado nas
vilas senhoris do Vêneto para escapar ao risco de contágio. Com a tecnica escolástica
aprendida no Colégio romano, o autor abordou pontualmente os vários aspectos do
problema, quem procedia à cura das almas devia permanecer, naturalmente. Mas, se os
empestados não podiam ser abandonados sem sacramentos, tambem era justo que os
sacerdotes ministrassem os sacramentos com todas as precauções necessárias para evitar
o contágio. Ora, a confissão auricular era o sacramento mais perigoso, visto que punha
em estreito contato o sacerdote e o empestado; e eis que aflora a ideia da confissão

A Confissão
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L
r-
497

escrita. No fundo - escrevia o bispo de Recanati - não importava se a confissão íosse


escrita ou orala?. Mas a benevolência que circundava a ideia não dependia somente da
urgência de perigos como o da peste, como foi dito, a proposta tinha sido avançada
por um discípulo dos jesuítas: e justamente nos pontos elaborados em materia de ratio
studíorum no interior da Companhia em 1592, encontramos colocada com muita cau-
tela a proposta de reconhecer a validade da confissão escritaas. Essa proposta, embora
cautelosa, deparou-se com uma oposição firme e coesa. lJm decreto do Santo Ofício
publicado em 1602 proibiu inapelavelmente as coníissões per Litteras seu internuntium4e.
-\ doutrina tinha seus principais defensores entre os jesuítas: o tratado dedicado por
Francisco Suarez à penitência foi censurado justamente no ponto em que deixava aberta
âporta à possibilidade de confissões por carta ou por procür^ção5o. Pouco mais adiante
no tempo, encontramos ainda um decreto do Santo Ofício que ordenava aos jesuítas
não conservar escritos contendo as confissões de seus penitentes5l: prova, caso houvesse
necessidade disso, de que a prática sobrevivia com tenacidade. Por outro lado, os usos
inquisitoriais da confissão parecem ter exercido um certo estímulo para transferir o oral
para o escrito. As exigências que a Inquisição tinha, de conhecimento exato, textual, do
que eÍa coníessado, certamente incrementaram essa prática. Há indícios seguros a esse
propósito: um frei carmelita, processado em Módena por ter sido encontrado em posse
Je fórmulas de incantationes, justificou-se alegando ter tÍanscrito tais fórmulas depois
Je tê.las ouvido em confissão, com o objetivo de comunicá-las ao Santo Ofício: "Não
quero dizer o nome da mulher que as forneceu - afirmou frei Alessandro Cantini -
porque o fez em confissão; eu anotei essa receita, mas não a ensinei a ninguem". E à
pergunta se considerava lícito que os confessores, terminada a confissão, escrevessem
imediatamente as fórmulas de encantamento ouvidas, a resposta foi: "Se eu devo trazê-
-las ao Santo Ofício, tinha de anotá-las"52.

4i Rutilio Benzoni, Tractatus de Fuga... in quo, quid Omnes Pnncipes et Rectores, tum Ecclzsiasticí, tum cíviles tempore
pestis,famis etbeLLi agere debeant, pl.enissime explicatur, Venetiis, apzd Societatem minimam, 1595, pp. 104r-109r,
"Quaestío quinta: dn scÍipÍo possiÍ quis confiteril". Sobre Benzoni, cí. o verbete de Silvana Seidel Menchi em DBÌ,
VÌII, Roma, 1966, pp. 737.739.
18. "Poenitentiae sacramentum absenti per nuntium seu per litteras collatum non valet; quamüs contÍaÍium sua
probabilitate non careat" (J. J. I. von Dôllinger e F. H. Reusch, Geschichte der Moralstreitigkeiten in dcr ritmísch-
'katholísche Kirchz seit dem 16. Jahrhundert, Nordlingen, 1889, Ir, p. 231).
49. O texto impresso está juntado a uma coletânea de Decretas. Romanae et Universalis Inquisitionis Fere Omnia sub
Clemente VÌIÌ, em BAV, Barb. Íttt. 1370 (também indicado por Pastor, .ALlgemeine Dekrete, p. 9 do extrato). Os
jesuítas anotaram.no por conta própria em umâ CoLkctio Diuersorum Decretorum Sacrae Congregationis s. O//icii
(RRst, Ìrur. 174.1, c.63r).
50 Na ordem do dia da congregação do Santo Ofício anunciada previamente ao papa em 6 de maio de 1603 lê-se
entre outros assuntos: t'Fiet verbum circa censuram íaciendam in librum Patris Suarez Jesuitae super materia
coníessionis sacmmenralis et absolutionis per litteras" (BNN, ms Branc. I B 7, c. 135r).
t1. "Confessarii Soc. lesu mediante eorum Patre generali monentur ne retineant scripturas continentes confes.
siones poenitentium" (Forma Procedendi in Causis Sancti Afícíí ac Haereses Omnes, a R. P. M. Laurentío a Iturea
Sanctiss. D. N.Papaeconsuhoredisposítaeetinunumcollectae, BAV, Borg. Lat.559,c.37u).
, i1. Depoimento de 20 de abril de 1584, em ASM, Inquisizione,B. S/l4a (devo a indicação a M. Pia Fantini).

Confissão como Consolação e Auxílio. A Obra dos Jesuitr.


498

Tâlvez o frade pensasse em fazer uso bem diferente daquelas transcrições: e não
faltaram então casos semelhantes, de frades e padres que praticavam esconjuros e en.
cantamentos aprendidos no confessionário. É exffemamente significativo contudo o
íato de que fizesse parte da consciência profissional do confessor a obrigação de relatar
ao Santo Oficio; dessa obrigação decorria a necessidade de transcrever de imediato e
com precisão as palavras ouvidas em confissão. Por isso, na prática do confessionário
o uso da escrita entrava tambem devido às necessidades da Inquisição. De resto, eram
os próprios confessores que encorajavam os penitentes a colocar por escrito as coisas
que depois deviam contar ao inquisidor53.
Os guardiões da tradição, ao contrário, enfileiraram-se rigorosamente contra tudo
aquilo que pudesse ameaçar o secretismo da confissão. Para o dominicano Bartolomeo
de Medina, devia-se evitar até a suspeita de uma ainda que mínima ruptura do segredo
confessional. A análise que ele propôs dos casos que podiam ser apresentados na prática
penitenciária e bastante minuciosa: não só o conteúdo da confissão, mas tudo o que
lhe corresponde (o "meio" pelo qual se chega a ele), e protegido pelo mesmo segredo.
"Se alguem encontrasse um papel escrito de próprio punho por Pietro para sua
confissão geral, e outïa pessoa, ao vê-lo, torna.o público, por estar ali contido que ele
tinha praticado crimes gxaves... merece grave castigo, e é sacrilégio, porque, embora não
se trate de confissão, e caminho para ela"54. E nem sequer por brincadeira ou leviandade
o confessor deve deixar escapar o que quer que seja do que sabe: "Nem para escapar a
algum prejuízo, nem pela vida, nem pela morte, nem para libertar um inocente' nem
que nisso residisse a saúde e a preservação de todo o mundo"55. Deve, portanto, evitar
fornecer outrem qualquer informação, mesmo indireta, por meio de alusões, sobre o
a
que ficou sabendo, por exemplo, se dissesse "a primeira pessoa que confessei era uma
adúltera", aparentemente não ptejudicaria ninguem; mas podia acontecer que outra
referência íeita a respeito da primeira penitente revelasse aos outros - quiçá, ao marido -
o segredo que devia permanecer sepulto. A defesa do segredo pode levar a situações
extremas: para evitar que os outros adivinhem o que se passou na confissão, o sacerdo'
te pode sentir.se obrigado a conceder a fe de confissão mesmo a pessoas que não são
absolvidas - justamente para que os demais não desconfiem de nada do que aconteceu.
E um caso extremo, pois autoriza-se desse modo um possível e grave pecado, ou seja,
participar da eucaristia sem ter sido absolvido. Mas o deve.r primário do confessor é
proteger o segredo. Naturalmente, há o caso da revelação de complôs secretos contra o
Estado ou de ameaças para o bem comum: em tal caso, o confessor poderá, em deter'
minadas circunstâncias, avisar a quem de direito, sem no entanto revelar a identidade
do penitente. lsso tambem vale para revelações sobre a existência de hereges, "Se eu

53. Um franciscano pontremolense, írei Paolo Gianguardi, ao entregar ao inquisidor algumas listas escritas de
coisas ouvidas de outros frades, conta tê.lo íeito por conselho de seu coníessor, "o qual me disse que pusesse
essas coisas no papel e que íazia bem em denunciar" (comparecimento espontâneo de 27 de julho de 1666
perante o inquisidor de Pisa) (eAp, S. Liffizio, f. 16, 1664'1668, c.784r).
54. Bartolomeo de Medina, Breve Instruttíone, op. cít., cc.I7lrtt.
l 55. Idem,c.279u.
i

A Confissão
I
'â\
r
499

tomo conhecimento em confissão de que são hereges, e que eles seguem adiante, que
dentro em pouco aumentarão e tudo será destruído, não posso dizer uma palavra, se
eu tomar conhecimento disso em confissão"56.
Na prática, essas doutrinas tinham sido superadas pelo rígido vínculo imposto
pela Inquisição à confissão. O confessor podia permitir-se não revelar o que sabia; o
ônus recaía todo sobre o penitente, que não podia se furtar. Entretanto, houvera um
fato decisivo: o ingresso triunfal da escrita no mundo da coníissão, como revolvimento
da memória e impiedosa interrogação dos segredos confessáveis. Devia-se escrever, seja
para relatar sem erros circunstâncias e qualidades dos pecados, seja para transmitir
ao tribunal de foro exterior a denúncia do crime de heresia. Em todo caso, a pessoa
era atraída para um confronto com a página como espelhb da própria memória, de si
mesmo. Indagava-se sobre a própria identidade de modo cruel, angustiante; e depois
despejava-se tudo no ouvido confidente de outra pessoa, o confessor. Mas o caráter
de ligaçao íntima, de profunda familiaridade de pensamentos e de afetos que o novo
modelo de confissão tendia a criar fez surgir um novo problema.

Confissão como Consolação e Auxilio. A Obra dos Jesuitas


r

XXV
IxpursrDoRES E CoxTESSoRES:
A SoTLICITATIo eo TURPIA

foi no terreno das novas formas privadas, íntimas e pateticas, de dominante feminina,
I assumidas pela confissão na epoca tridentina que se verificou a última e mais significa.
tiva metamoríose na relação entre inquisição e confissão. De um lado, o tribunal de foro
interior tornou-se um lugar onde se desenvolvia uma investigação elaborada e profunda, de
natureza judiciária; de ouffo, o tribunal de foro exterior da Inquisição acabou assumindo
luncões de polícia dos costumes sexuais, mas também de garantia e de defesa dos penitentes,
assimilando uma quantidade de,características que pertenciam ao primeiro: secretismo
e delicadeza de modos, fins ediíicantes e consoladores. O processo de metamorfose recí-
proca foi acompanhado pela subordinação de um ao outro, com a definitiva afirmação
da supremacia dos inquisidores sobre os coníessores. O fio para seguir esse processo nos
e dado pela história de uma nova figura de crime inquisitorial, que foi chamada no cau-
teloso latim da teologia moral sollicitatio adnlrpiat ou seja, o uso por parte do confessor
das circunstâncias da confissão para encetar relações amorosas e manter relações sexuais.
Com íigura de crime, nada tiveram a ver a longa tradição da sátira anticlerical
essa
e os protestos e propostas de reforma que, havia tempos, tinham por alvo os costumes
sexuais do clero. Para que esse problema viesse à tona com força devastadora, foram
necessárias duas condições: a transformação progressiva das características da confissão
em um fato ciosamente íntimo e privado nas formas e predominantemente orientado
para acontecimentos íntimos e vida sexual; a violenta polêmica da Reforma contra
a imoralidade do clero católico. No seculo XVI, sabia-se muito bem que a confissão
propiciava aos eclesiásticos uma oportunidade entre outras para aproximar.se das mu-
lheres e íazer-lhes propostas amorosas. Nem todos faziam como Lutero, que - quando
ainda era monge - não encarava as mulheres que estava confessando para não cair em
tentação. Em Deventer, o jovem Erasmo de Roterda ouvira contar diversas histórias
de aventuras entre coníessores e mulheres, tirara disso sábios ensinamentos. Não se
devia estimular a uitiosa curiositas de padres que continuavam mesmo assim sendo
homens, quase sempre homens jovens, impedindo que a confissão se tornasse uma
ocasião para insistidas descrições de atos sexuaisl. A sociedade eclesiástica, obrigada a

l. Des.EtasmiRoterodami,ExomologesisSiveModusConfitendi,emOpera,T.V,LugduniBatavorum, 1704,col.146.
-170; em part. col. 153. O testemunho de Lutero íoi recolhido por seu discípulo e secretário Veit Dietrich (cí.
Martin Lutero, Díscorsi aTauoln, ory. de Leandro Perini, Torino, 1969, p.27\.

502

defender.se do ataque de Lutero, reforçou de um lado a obrigação do celibato eclesiás-


tico e de outro o dever dos penitentes de relatar tudo, sem omitir nenhum detalhe, ao
proprio confessor. As duas coisas estavam ligadas, a função sagrada do juiz das culpas
demandava um padre não envolvido nos pecados da carne. Mas disso derivou uma
emergência tão grave quanto previsível, tão temida quanto intolerável. O Concílio
de Trento identificou uma situação de risco particularmente grave na relação entre
sacerdotes e mulheres em confissão.
A proeminência das questÕes sexuais no âmbito da confissão era um produto
da nova orientação assumida pela penitência. Passou-se então, como foi devidamente
observado, da penitência como meio para remoyer a hostilidade social a uma dessocia'
lização do sentido do pecado, entendido como algo que acontecia essencialmente na
mente2. Ao confessor.juiz coube cada vez mais a tarefa de desenvolver uma profunda
investigação sobre os pensamentos, sobre as intenções, sobre os atos amadurecidos em
segredo. Observou.se que, até 1540, nos manuais para confessores e penitentes o pecado
ffatado com mais atenção foi a avareza; depois dessa data, a luxúria3.
Tudo isso não podia deixar de suscitar reações: da Alemanha católica' um jesuíta
escreveu ao geral Laínez, em 1558, que havia mulheres que se surpreendiam com as
perguntas feitas pelo'confessor em materia de comportamentos sexuais e comentavam
isso por toda a parte, com péssimos efeitos sobre o bom nome da Companhiaa. Mas
tribulações bem diferentes estavam chegando então da Espanha.
Um jesuíta de Granada, na quaresma de 1558, viu-se diante do caso de uma
penitente assediada pelo confessor. O problema que se impôs foi se o culpado devia
ser denunciado e como era possível fazê.-lo. O caso foi levado ao conhecimento do
arcebispo Pedro Guerrero: era convicção comum do arcebispo e dos jesuítas ser o abuso
do confessionário um problema bem grave e disseminado, mas dificil de enfrentar por
uma razão muito simples - a impossibilidade que as mulheres tinham de denunciar
a um tribunal os assedios, sem manchar a propria honra e a da família. Decidiu'se de
comum acordo que o sacerdote que tivesse obtido conhecimento (em confissão) de
semelhantes abusos podia fazer denúncia com permissão das penitentes: tal solução
foi proposta pelo arcebispo e pelos jesuítas em seus sermões ao povo. Mas tambem
aqui devia-se estar atento para que o caso concreto não transparecesse. Assim, em
seu sermão, Pedro Guerrero falou de modo geral de uma mulher que ouvira dizer
coisas hereticas, mas não podia denunciar o responsável porque os familiares dela

Z. É a tese de Bossy, Tfu Social History of Confession, op. cit., em part. pp' 27 e 31'
3. Cf. Carlo Ginzburg, "Tiziano, Ovidio e i Codici della Figurazione Erotica nel Cinquecento", em ldem, Miri,
Emblzmi, Spie.Morfo|ogla eStoria, Torino, 1986, pp. 133-157; em patt. p. 151. Uma exceção que coníiÍma a Íegrâ
éconstituída por um pequeno ffatado de um beneditino, Ilanione de Gênova, De lztissimo Avaritíae Dominatu'
Brescia, por Damiano Turlino, 156?, que atribui o primado à avareza; mas os beneditinos, excluídos da prática
dos quaresmais e das coníissões, representavam uma espécie de arcaísmo'
(carta
4. Admiravam+e ainda do íato de parecer tão importante para o confessor a violação do jejum da Quaresma
de P. Joannes Covillonius, de lngolstadt, 24 abr. 1558; MHSI, Lainii Monumenta. Epistolae et Acta Patis Jacobi
Ininii, t. wtr, 1564-1565, Matriti, 1917, p. 467\.

A Confíssão
r
503

não permitiam: nesse caso, segundo a opinião de Guerrero e dos jesuítas, a mulher
podia recorrer ao confessor e encarregá-io de fazer a denúncia5. No que se refere ao
caso real, o exemplo inventado ftansformava a solicitação em heresia; e foi justamente
essa a solucão que se impôs. Era preciso atribuir à Inquisição a tarefa de processar
os confessores culpados. O jesuíta Francesco Borgia foi quem sugeriu colocar ime-
diatamente o caso da sollicitatio entre os inquisitoriais, ou então entre os reservados
ao papa; e sua sugestão recebeu o apoio do núncio pontiíício Leonardo Marini. O
episódio suscitou violentíssimas reações por parte das demais ordens religiosasr che-
garam a dizer que os jesuítas revelaüam o conteúdo das confissões e que isso levaria
à ruína da lgreja. Melchor Cano foi adversário resoluto da Companhia e, por volta
.le 1559, andou acusando os jesuítas em Roma d" ,.r.-nol, mbrados e de defenderem
a opinião heretica de que os confessores podiam revelar os nomes dos cúmplices ou-
vidos em confissão6. O ataque desferido pelos dominicanos espanhóis, ou seja, por
uma grande força intelectual e política, foi bastante duro e criou serias dificuldades
à Companhia: a polêmica arrastou-se por muitos anos e não se tratou apenas de uma
batalha de escritosT.
Foi sobre esse fundo que se chegou à solução. Abula CumSicutNuper, conhecida
como bula Contra Sollicitantes,'publicada por Paulo IV Carafa em 18 de fevereiro de
1559, concedia ao inquisidor de Granada o poder de julgar os confessores culpados de
usar a confissão dos pecados como oportunidade para relações sexuaiss. Era aparen-
temente um episódio menor e limitado se visto no âmbito das preocupacões de luta
anti-herética dominantes então entre as autoridades eclesiásticas. A redação do índex
dos liwos proibidos em Roma, os autos de fé de Valladolid e de Sevilha em 1559 eram
certamente acontecimentos bem mais importantes aos olhos dos contemporâneos do
que as polêmicas entre dominicanos e jesuítas sobre a confissão. Contudo, entre a
questão surgida em Granada e os mais vastos problemas da luta contra a heresia houve à
época uma ligação de grande importância. Pouco tempo antes da redação da bula Contra
Sollicitantes (18 de fevereiro de 1559) e exatamente no dia 5 de janeiro de 1559 Paulo IV
publicou a bula que ordenava o arrolamento dos confessores ao serviço da Inquisição

l A mulher "puede y debe a su confesor decirselo y declaralle quién es aquel hereje y dalle licencia para que e1 1o
denuncie al Santo Oficio" (carta do padre Juan Ramirez ao reitor de Alcalá, 14 jun. 1558, citada por P. Camilo
Maria Abad, Una "Izctura"de Suarezlnedíta, op. c;r., p. 138).
jo. Cí. A. Alcalá Galve, "Conuol de Espirituales" , em Historia de La Inquisición en Espara y América, org. de J. Perez
I

Villanueva e B. Escandeil Bonet, vol. I, Madrid, 1984, p. 809.


t_
I Cf. A. Astrain, S. I., Histona de la Compaíía de |estk en ln Asistencía de Espana, Madrid, 1919-1925, t. II, cap. V;
sobre alguns desses episódios, como a detenção dos jesuítas em Valladoli poÍ parte da Inquisição, em 1586, e a
intervenção de Sixto V (que ameaçou privar o cardeal de Toledo de tirar-lhe o chapéu cardinalício), cí. Pastor,
Stona d.eí Papí dalln Fíne delMedio Evo, op. cir., vol. X, p. 109; Natale Mosconi, I-a Nunzíatura dt Spagno di Cesare

Speciano 1586'1588, Brescia, 1961, pp.54 e ss.


Cf. M. Avilés Fernández, 'Las Modificaciones Estructurales Prevaldesianas", em Histona d,e Ia Inquísición en
Espana'1 Améríca, op. cit., p. ó45. Sobre a história do crime de sollicitatio no âmbito inquisitorial, é sempre útil

H. C. Lea, A Histol of the Inquisition of Spain, New York, 1906907; cito a partir da trad. espanhola Histoia de
ln In4uisición Eslanola, Fundación Universtaria Espafrola, 1983, liv. IV, cap. Vl, pp. 473ó12.

Inquisidores e Confessores, A Sollicitatio aÀTurpit


504

romanae. Em ambos os casos, o procedimento era idêntico. Não e necessário muito


para imaginar que uma das duas providências sugeria a adoção da outra. LJm estudioso,
refletindo sobre os autos de fé espanhóis dos anos entre 1559 e 1562, perguntou-se se a
prática discreta da estratégia sugerida ao papa pelo arcebispo Guerrero e pelos jesuítas
não contribuía então para a descoberta das "astúcias protestantes"lo. É bem provável
que a mesma ideia tenha ocorrido a Paulo IV e a seus conselheiros. De resto, houve
à epoca outras medidas semelhantes do papa Carafa em defesa da administração dos
sacramentos, como a que condenava à entrega imediata ao braço secular quem ouvia
confissoes ou dizia a missa sem ter recebido as ordens sagradasll.
Originou-se desse modo uma estrategia de controle da confissão que subordinou
manifesta e continuamente o tribunal de foro inìerior ao tribunal de foro exterior. O
dominicano Domingo Baflez formulou sua acusação contra os jesuítas justamente nesses
termos: a deles eïa uma doutrina que, segundo ele, submetia o foro da penitência ao
foro exterior eclesiástico ou civilt2. O fato de que essa mudança importantíssima tenha
sido provocada pelo próprio bispo tornado celebre pelas batalhas tridentinas em defe-
sa dos poderes episcopais contra a invasão da cúria mostra que a íorça das coisas era
superior às intenções dos indivíduos. Diante de casos de abusos G*tr;ã"fi-.rã.,
o nãò encor"Ìtrara outro modo para submeter o clero ao plano da reforma e
"r.Jtirpo
fazer justiça derrubando os obstáculos (por exemplo, os interpostos pelos privilegios
das ordens religiosas), senão pedir a criação de uma nova figura de crime inquisitorial:
sorte bastante curiosa essa de quem, em Trento, fora o principal adversário do partido
paroquial e o defensor do "direito divino" da obrigação de residência dos bispos. A refor-
ma disciplinar e moral do corpo eclesiástico era confiada ao instrumento inquisitorial.
Os resultados superaram todas as expectativas. Em 16 de abril de 1561, Pio IV reiterou
a bula de Paulo IV, estendendo à Espanha inteira o poder dos inquisidores de tratar
os casos de sollicitatío13. A sociedade eclesiástica, fechada em si mesma, detetminada a
fornecer de si uma imagem de corpo perfeito, inventou um sistema policial para que
o sacramento da confissão não desmoronasse na estima da sociedade: o próprio sacra-
mento, no entanto, tornara-se passagem obrigatória e controlada por todo um sistema
burocrático. E, sobretudo, tornara-se um momento em que o fiel devia responder essen-
cialmente a duas perguntas: a preliminar sobre questões de heresia - da qual dependia
o prosseguimento da confissão ou a intervenção da Inquisicão - e a outra sobre os
comportamentos sexuais, matéria então em alta no confessionário. Obrigar a conversas
sobre sexo entre homem e mulher e garantir que não se passasse das palawas aos atos
tornou-se o problema da sociedade eclesiástica: primeiro na Espanha, depois na ltália.

9. Ver pp. 255.756.


10. Abad, Una "Leraua"dB Suarezlnedita, op. cit., p. 741.
11. Decreto de 1ó de fevereiro de 1559 (Pastor, Allsemeine Dekrete, p.24).
17. "Ea doctrina spirituale íorum huius sacramenti íoro exteriori ecclesiastico vel civili indigne subicit" (Abad,
Una "Ixctura"de Suarezlnedita, op. cit., p. 150).
13. Cí. Adelina Sarrión Mora,Sexualidadl Confesíón. InSolícitatíón ante elTribunal delSanto Oficio (Siglos XVÌ-XÌX),

Madrid, 1994, p.60.

A Confissão
r
505

Ainda não foi esclarecido quando a providência contra a sollicitatio, inicialmente


limitada à Espanha, estendeu-se a outras parres do mundo católico. A história da elabo-
ração e da perseguição dessa figura de crime encontra.se envolvida nos cuidados e nas
atmosferas rarefeitas e ambíguas que circundaram então toda a matéria da casuística
sexual. Não e possível, por exemplo, investigar os éditos inquisitoriais, que durante
muito tempo não aludiram à questão. Para o crime de sollicítatio impôs-se à época a
mesma questão de pedagogia negativa aplicada à descricão das heresias condenadas.
Por tais motivos, na Espanha o Conselho da Inquisição verou entre 1571 e 1576 a
inclusão explícita da sollícítatio nos éditos de féta. Junto com a preocupação pelos
eíeitos nefastos das pinturas lascivas15, de atualidade à epoca na Igreja católica, havia
também a preocupação pelos efeitos semelhantes do, t.*ior. E os textos - sobretudo
os dos teólogos e moralistas - vasculhavam com uma boa vontade cada vez maior as
intimidades dos sentimentos e dos sentidos. Mais adiante, chegou.se a escrever obras
de teologia moral que tratavam de beijos, amplexos e polucões16. Mas os riscos que se
corriam com um sacramento da penitência dedicado predominantemente às matérias
do comportamento sexual não demoraram a ser considerados de primeira importância.
Na itália, a questão tivera uma história caracterizada sobretudo pela atuação
Jos bisposr de dois bispos em pârticular, Gian Matteo Giberti e Carlo Borromeo. Sem
entrar no merito das discussões teológicas, lembrar.se.á apenas que, no concílio de
Trento, fora a voz dos bispos a lamentar os "abusos" introduzidos no sacramento da
penitência. E foi também a partir da obra de bispos reformadores, como Gian Mat
teo Giberti e Carlo Borromeo, em conflito com as ordens religiosas - sobretudo os
tianciscanos, havia seculos protagonistas da prática confessional - que teve início uma
serie de medidas na matéria: a mais importante delas, a que introduziu uma barreira
arquitetônica destinada a evitar contatos entre o confessor e as mulheres. Mais perigoso
Je todos era o contato visual: e para evitá.lo o bispo de Verona Gian Matteo Giberti
tinha introduzido o confessorium, um tabique divisório entre confessor e mulheres
penitentes' Carlo Borromeo elaborara então essa proposta, inventando um móvel que
Jevia dominar toda a história sucessiva da Igreja - o móvel do confessionário, feito
para separar e para unir, para isolar a relação a dois do contexto e para impedir que ll

a intimidade da relação produzisse frutos indesejáveist7. Avoz dele foi a mais nítida
e eíicaz, não a única. Outras ergueram-se naquele seculo para modelar e remodelar o 'i
Èspaco físico da confissão íeminina. Os jesuítas tinham um interesse vital na questão e
contribuíram para a elaboração da forma desse móvel, visando a sanar os problemas que

Iün,pp.61.63.
Cf. Ginzburg, "Tiziano, Ovidio e i Codici della Figurazione Erotica", op. cír.
Um tratado manuscrito "De Tàctibus, Osculis, Amplcxibrs et Pollutionibus" composto pelo jesuíta Andrea Nicosia
t'oi examinado atentamente na Congregação do Santo Oficio de 22 de março de 1611' decidiu.se queimáìo;
mesmo sem conter doutrinas de fé suspeitas, a matéria do liwo verificou+e ual.dz iníuriosam, teflvranam, contrâria
aos bons costumes e não isenra de obcenidades (BNN, ms Branc. I B 7, c.255r).
Ct. Wietse de Boer,"Ad audiendínonuìdendí commoditatem". Note suil'introduzione del coníessionale sopraftutto
in Ìtâlia", Quaderní Stonci, n. 77, ago. 1991, pp. 543.572.

lnquisidores e Confessores: A Sollicitario aÀTurpw


í'

506

se lhes apresentavam: em Aragão, por exemplo, as fidalgas recusavam'se a confessar com


os jesuítas por seus confessionários não terem portas e propiciarem a outras mulheres
curiosas a oportunidade de escutar o que ali era dito; daí a medida de mandar fazer
portas, mas de forma a não separar demasiadamente quem estava no confessionário do
ambiente circunstantels. De todo modo, era fundamental controlar a visão, o sentido
mais perigoso de todos: o olhar do confessor não devia encontrar o rosto da penitente
enquanto a interrogava, ajudando-a a distinguir pecados mortais e pecados veniais. E
assim, enquanto as igrejas das cidades aparelhavam-se com móveis paÍa a confissão cada
vez mais elaborados, mesmo quem atuava em lugares menos aparelhados habituou-se
com o tempo afazer uso de algum instrumento rudimentar com funções semelhantesle.
Portanto, a questão estivera no centro da iniciativa episcopal, nos lugares em
que fora mais inovadora e mais incisiva, mas estendera-se tambem a outros ambientes.
Justamente um colaborador de Giberti fez um diagnóstico preocupado da relação das
mulheres com a confissão: era, segundo Tullio Crispoldi, uma relação tornada parti-
cularmente delicada pela dependência vital da mulher de sua fama pública. O olhar
,li da sociedade, que seguia a mulher na hora em que se aproximava do confessor, era um
olhar atento, capaz de deduzir a gravidade das culpas pela demora da confissão. E por
isso as mulheres tendiafn a confessar-se raramente e a permanecer o tempo mais breve
possível diante do tribunal da honrazo.
Outro colaborador do bispo de Verona, Niccolò Ormaneto, que depois serviu
a Carlo Borromeo, ocupou-se diretamente com as normas inquisitoriais espanholas
sobre a sollícitatio. Em I57 5, Ormaneto, durante uma nunciatura que exerceu na Espa-
nha, ficou tão tocado pela gravidade do problema da sollicitatio a ponto de considerar
inadequadas as normas fixadas no documento papal. Nele, para permitir à Inquisição
lidar com esse crime, íizera-se referência ao tanto de negação herética do sacramento
que podia ser suspeita quando este se tornava instrumento de aventuras amorosas.
Portanto, o inquisidor podia tratar somente dos casos que se tinham verificado dentro
dos limites cronológicos e físicos da administração da penitência. Ormaneto, por sua

18. A providência íoi tomada em 1584 e diz o seguinte: "Fiant lignei cancelli, qui prospectum non impedianL
et tamen non pateant reliquis accessus"; a abertura, contudo, não devia permitir que se ouvisse o que estaw
sendo dito (Hauptstaatsatchiv, Münch, Jesui ten 9, c.70).
19 Eis como se comportavam os missionários jesuítas, no século seguinte, segundo um importante representante
deles, "Alguns costumam levar nas missões umas grades de latão presas em bastõezinhos curtos: e são nece*
sárias e muito úteis por não se encontÌar quantidade suíiciente de coníessionários. Outros usam uma toalha
atada a dois paus pÌesos em uma cadeira, e essa barreira serve não só para que o penitente não íique cara a

caÌa com o coníessoq mas também pata que não seja reconhecido por ele" (Antonio Baldinucci, Awertímend
a chi Desidera Impíegarsí neLlz.Míssioni, ARSÌ, Opp. NN. 299, c. 31r).
20. "E outro grande deíeito sobretudo das mulheres de não se coníessatem mais de uma vez; onde mesmo se

esqueceram de algum pecado, ali não voltam para não parecerem pecadoras, porque dizem que já são notada-.
por isso... De modo que ainda tentam liwar-se rapidamente, deixando de dizer até pecados que lembmrn, para
que não falem que permaneceÌam muito tempo em coníissão" (Tu11io Crispoldi., Instruttione de' Sacerdoti 1...1

scntta ad instc;nza et in persona di Moruignor Reverendissímo Gioc)an Matteo Giberti Vescovo di Vrona, em Vinegia.
junto a Gabriele Giolito de'Ferrari, 1568, p. 88).

A Confissão
r:
s07

vez, propôs que qualquer relação sexual entre confessor e "filhas espirituais" fosse sub.
metida à jurisdição daquele tribunal; mas de Roma responderam-lhe que "os erros que
não conffadizem diretamente a fé católica não devem ser do conhecimento do Santo
Ofício"21. Entravam em choque duas concepções da Inquisição, isto e, da emergência a
ser enfrentada: o governo da moral sexual e a reforma cristã dos costumes interessavam
mais aos que, como Ormaneto, tinham sido íormados na escola do modelo episcopal
de disciplina da sociedade, enquanto a tradição inquisitorial tentava ater-se aos limites
tradicionais de sua função, que era a de defender a fé contra a heresia. O resultado
foi aparentemente contraditório: a Inquisição obteve a jurisdição sobre os crimes de
sollicitatio, mas dentro de limites determinados, muitas vezes esclarecidos e redefinidos.
Na essência, era preciso que a abordagem e a solicitação selual acontecessem no âmbi-
to da coníissão sacramental, nos lugares onde se confessava ou, pelo menos, em suas
imediações: somente assim era possível dizer que havia a suspeita de negação intelectual
do caráter sacramental da confissão.
No que se refere à Inquisição romana, ainda não temos condições de estabele-
cer exatamente quais foram os tempos e modos efetivos de seu ingresso no terreno da
confissão para casos de solLicítatio. A questão preocupou naturalmente os bispos22. É
provável que os casos desse tipo fossem tratados pelas cúrias episcopais. A Inquisição, por
outro lado, devia enfrentar as resistências opostas de tribunais episcopais e privilégios
monásticos. Em um dos não poucos casos em que teve de discutir o assunto, o Santo
Ofício romano estabeleceu para os frades a obrigação de denunciar os culpados desse
crime à Inquisição, sem se limitar à cômoda escapatória de deferi-los às autoridades
internas à ordem23. Mas toda pretensão de obter uma clareza definitiva quanto à questão
dos mecanismos jurisdicionais deve levar em conta o caráter naturalmente tumultuoso
e complicado da matéria: se a cautela e o proceder caso a caso eram obrigatórios para
tudo o que dizia respeito à confissão, aqui se tratava de coisas que podiam causar danos
irreparáveis a toda estrutura eclesiástica. A acusação de sollicitatio prestava-se, entre
outras coisas, a tornar-se instrumento de difamação nas relações entre as várias ordens
religiosas, extremamente ciosas dos respectivos privilegior. É .o-pt.ensível, portanto, 1i"
que as regras formais cedessem diante da necessidade de defender o prestígio das ordens
que tinham feito da confissão seu campo predileto. Em pelo menos um caso, sabemos
com certeza que foi deixado campo livre à ordem a que pertencia o.religioso suspeito.
Em 1596, quando o jesuíta Giulio Mazzarini foi acusado do crime de sollicitatio, a in
vestigação relativa aconteceu dentro da Companhia2a.
Contudo, uma coisa ao menos e clara, não só a lnquisição começou a mudar
de natureza com a introdução de crimes como a sollicitatio, mas mudou a feição do

/1. C{. de Boer, "Ad Audiendi nonVidendí Commoditatem", op. cit., p. 567.
72. Em de Boer, idum, é reproduzido um decreto sinodal publicado em Forlì em 1565.
23. Decreto de 3 de dezembro de 1592, publicado por Pastor, Al.l.gemeineDekrete,op. cit., p.51.
24. O processo, cujos autos são de grande interesse para as dinâmicas sociais postas em moúmento poÌ seme-
lhantes acusações (chantagens, maledicências), íoi concluído com um decreto de absolúção por parte do geral
Acquaviva, de 30 de julho de 1597 (ARSI, Causa Mazanni, c. 307rv).

Inquisidores e Confessores, ASollicítotio ad Tutpia


F:-:
508

'l patrimônio de fé a ser defendido. Todo o eixo da verdade cristã deslocou.se do plano
das doutrinas teológicas - a natureza de Cristo, a justificação por fé ou por obras,
a predestinação e assim por diante - para o da moral. Desse momento em diante,
a discussão doutrinária no seio da Igreja católica e seus instrumentos de controle e
de coercão foram cada vez mais assaltados por questões morais - e de moral sexual,
principalmente.
De fato, casos de coníessores processados pela Inquisição começaram bastante
cedo, mas sua frequência intensificou'se rapidamente a partir do final do seculo XVI25.
Nas instruções manuscritas da Inquisição de Módena (redigidas antes de 1608) declara-
-se de competência inquisitorial o crime "daqueles confessores, que no ato da confissão

tentassem mulheres ou solicitassem para pecado.àrrr"l ou para atos obscenos"2o. É pro-


vável que as várias jurisdições se sobrepusessem e se cruzassem na experiência concreta
de denunciantes e de acusados; do relatório de um missionário jesuíta em Sermoneta
em 1608 (de que trataremos mais adiante) extrai-se a descricão de um itinerário que,
antes de chegar à Inquisição, atravessava muitas competências institucionais e categorias
diferentes e complexas de experiência: se a pessoa "solicitada" amadurecia a decisão
de denunciar a coisa, vencendo fortíssimas resistências internas e ambientais, devia
enfrentar confessores, tribunais episcopais e apenas em última instância o da lnquisi-
ção. Formalmente, a jurisdição inquisitorial confirmou sua validade em geral quanto
aos casos de sollicitatìo com um decreto aprovado pelo Santo Ofício na sessão de 10 de
julho de 1614: nesse dia, no palácio Quirinale, reuniram-se na presenca de Paulo V os
cardeais Bellarmino, Taverna e Millino e ouviram um relatório sobre o multiplicar.se
de casos de confessores que aproveitavam as circunstâncias da confissão para tratar com
as mulheres de rebus inhonestis. A questão foi concluída com um decreto papal que esta-
belecia a jurisdição inquisitorial sobre esses crimes2?. Retornou-se ao assunto, de forma

z5 De Boer ("Ad Audiendi non Videndi Commodítatem", op. cít., p. 5ó8) menciona três casos do fundo veneziano
entre 1547 e 1585, e 22 casos entre 1585 e 1630. Um processo por solicitação de 1580 contra o írade domi.
nicano Cipriano de Udine, é citado por Luigi De Biasio no catálogo dos 1000 Process i d.el.l.'Inquisizione ín FriuLi,
Udine, 1976, p. 25; mas é só a partir de 1618 que os casos reincidem e aumentam rapidamente. Também
em Módena, os processos pot sollicirario üatados pela Inquisição intensificam.se no início do século XVII: cf.
por exemplo os processos contra o servita ítei Plautillo de Ferrara, de 1612 (b.41/2), conúa frei Francesco
Benedetto Boni de Castiglione, de 1613 (b.43/18), contra frei servita Giovanni Battista, de 1ó17/18 (b.
47/3) e contra frei Bonaventura de Viadana, íranciscano observante (b.47/9), dom Tommaso Gherardini,
pároco de Monte Tortore (b.48/l), dom Gabriele Gallo, pároco de Fossoli (b.48/2, b.53 e b. 54), dom
Giacomo Medici de Casinalbo, pároco de Panzano di Carpi (b. 51), ftei Michele Calandrino (b. 54), todos
de 1617-1618, e assim por diante. Uma pesquisa íeita por Rosa Bonollo (LAttivitàProcessuale deLS. IJfficio
Vneziano a Carico degli EccLesiastici nei Primi Trent'Anni deL XVII Secolo, Monograíia de Graduação, Università
degli Studi di Venezia, 1985-1986) mostrâ o crescimento de processos desse tipo em Veneza nas primeiras
décadas do seculo XVII.
26. Sopm L'Ufficio deL Padre Inquisitore, manuscrito em Archivio di Stato di Modena, Inquísí7ione,b.295, c. 4r (cf.
cap. XV, nota 31).
27. P. Laurentius Cozza O. F. M., Dubia Selzcta Emergentia circa Solicítatíonem in Confessíone Sacramentali, Romae,
1709, et Florentiae, 1713, apud. Petrum Martini, pp. 69-70.

A Confissão
r-
5Cì9

solene, com o decreto Uniuersi Dominici Gregis de 30 de agosto de 167228. Nesse segundo
documento, a quantidade de especiíicações complementares demonstra que se queria
acabar imediatamente com qualquer tentativa dos confessores de escapar da acusação
de abuso de sacramento, que constituía o argumento principal para submetê-los ao
poder inquisitorial e portanto, bastava que a sollicitatíot o ato de assediar sexualmente
a penitente, tivesse acontecido logo antes ou logo depois, perto do confessionário ou,
como quer que seja, em um contexto que pudesse ser remetido à relacão entre confessor
e penitente, para a acusação ser posta em marcha. Na Espanha, ambiguidades ainda
foram encontradas nesse documento: não parecia claramente resolvida a questão da
autoridade competente para julgar esse crime. Todas as especiíicacoes deixavam uma
'rnargem que devia ser resolvida com a aíirmação do poder exclusivo e absoluto da
Inquisição. A questão tinha sido debatida em 1620 em Valência, entre o arcebispo e
p inquisidor: nessa ocasião; o inquisidor sustentara que esse crime, disseminando-se
iapidamente em meio ao clero, desacreditava a Igreja aos olhos dos hereges (justamen-
te nessa época Robert Burton ironizava a respeito dos amores clandestinos do clero
batolicoze). Era preciso, portanto, combater tais crimes resolutamente; mas, se não se
farantia resolutamente a pertinência inquisitorial exclusiva do crime e não se tornava
obrigatoria a denúncia, as mulhdres "solicitadas" - qr" geralmente eram mulheres
rhonestas" jamais denunciariam os coníessores culpados, já que arriscavam perder
-
a honra3o. A publicação do breve papal, com as margens de incerteza que deixava em
materia jurisdicional, provocou uma intervenção do rei de Espanha (por requisicão da
Suprema) junto à Santa Se, em janeiro de 1623: as razões da Inquisição e a gravidade
do crime por suas consequências levaram, em abril daquele ano, à afirmação da com-
petência inquisitorial exclusiva3l. A essa altura, as defesas restantes dos confessores para
escapar da Inquisição foram entregues às areias movediças da ciência dos casos, sinal
ile que a partida essencialmente estava terminadalz. Mas estava terminada apenas no
plano das formas, na realidade, o crime peÍmaneceu escondido nas zonas de sombra
que o poder eclesiástico e a condição feminina eram capazes de criar. Apenas poucos
anos após a definição extensiva dos poderes da Inquisição, o Santo Ofício devia reco.

2s. Uma publicacão contemporânea é a seguinte: S. D. N. Gregorii Papae xv Constitutio contÍd Sollicitdntes in Con'
typographia Reverendae Camerae Apostolicae, 1672.
fessiníbus [sic], Romae, ex
29 Robert Burton, The Anatornl of MelanchnL1,vol.lll, 161l (trad. it. de A. Brilli e F. Marucci, Malínconia d'Amore,
Milano, 1981, pp. 401 e ss.).
3C A controvérsia é narrada por Michè1e Escamilla-Colin , Crimes et chÂtiments dans I'Espagne ínquisitoiale., vol. il,
Paris, 1992, pp. 168-170.
3l Idem,pp. 170-172. As normas da Inquisição romana são expostas analiticamente por Cesare Carcna(Tractatus
de Offícío Sanctíssímae In4uisitionis etModo Procedendi ínCausis Fidei, Bononiae, qrpis Jacobi Montii, 16ó8, pars ll,
tit. V, De Con/ess anis SoLLicitantibus, pp. 103 e ss.). Cí. ainda A. Santarelli, Tlactarus de Haeresi, Schismate, Aposrasia,

Sollicítatione, Romae, haeredes Bart. Zannetti, 1625.


t: Imaginou.se, por exemplo, o caso do coníessor que cede aos oferecimentos de uma penitente, só porque a
mulher ameaça gritar e criar um escânda1o: nesse caso, o confessor pratica pecado mortal, mas não pode ser
acusado de sollicitatio (D. Joannis Escobar em Corro,TractatusTres... De Con/esariis Solícítantibus Paenítentes ad
Vnereo;adBxp\icationemConstitutíonísGregoniXV...,Cordubae,dprídSalvâtoremdeCeaTesa, 1647,p.77).

Inquisidores e Confessores, A SoÌlicitctio atJ Twpw


tr-
510

llr.(
I I nhecer que "o crime de solicitação em confissão sacramental, por fragilidade humana
I ì I ainda demasiado frequente hoje em dia, permanece sem punição na maioria das arc7es, por
I

I nao díspor o foro exterior de notícia dele e proua sufíciente"33.


Nessa data, a situação jurídica estava todavia bem definida e as relações de força
entre inquisidores e confessores eram estavelmente marcadas pela nova figura de crime.
Em 1623, Francesco Montichiari, vigário episcopal em Fivizzano, ao se tornar vigário
da lnquisição, tomou posse do novo cargo com a consciência bem precisa de ter dado
um salto de qualidade: "Como vigário do bispo fiz o que pude, mas agora, com braço
maisterríuel, espero com a ajuda de Deus extirpar tudo"34. O primeiro ato que o novo
vigário estava prestes a baixar mostra que o braço adquirido era realmente mais tertível
que o precedenter "Reunirei em muitos lugares os confessores... e não me limitarei a
ler para eles a bula contra sollicitdnt€s, mas tambem hei de obrigá-los ao compromisso
de serem diligentes em fazer observar o edito geral vulgar, sobretudo contra as supers-
tições e blasfêmias".
Era esse, portanto, o quadro das relações de força entre inquisidores, bispos e
confessores nessa epoca, numa diocese italiana: o vigário do inquisidor tinha à disposi-
ção um instrumento coercitivo determinado em relação aos confessores, gracas ao qual
podia exigir deles que fossem remetidos ao tribunal de foro externo todos aqueles que
tinham culpas a confessar ou simples informações quanto às matérias reservadas. Mas
o poder intimidador por excelência era dado pela existência de um crime específico em
virtude do qual os confessores deviam submeter-se à lnquisição.

33. Carta circular "aos bispos da ltália", Roma, 3 out. 1626, em BAV, Barb. lnt. 6334, c.281ru (o grifo é meu).
34. A carta de 5 de março de 1623 íoi publicada pelo autor do presente volume em apêndice a Vi can dcLl'Inquisizione

Fiorentina, pp. 303 e ss.

A Coníissão
a

XXVI
ConTESSORES E MuLHERES

ôom a questão da sollicitatio entrou em crise um baluarte da cultura eclesiástica tradi-


\-.rcional. Devia-se dar credito ao testemunho das mulheres contra os padresl Mulheres
que toda uma tradição pintava como mutáveis, propícias ao engano, mendazes, levianas,
corruptíveis, deviam ter nas mãos um poder tão terrívelJ A resposta foi afirmativa. Bas-
tava "a declaração de uma única mulher" paÍa mandar pàrâ a-piisí; ó qúpt;iõìérr"t.
No decorrer de meio seculo transcorrido desde o Concílio, abusos e culpas de natureza
sexual invadiram o campo do bacramento catolico da penitência. Celibato sacerdotal e
votos monásticos envolveram um corpo sacerdotal chamado a dar prova de uma sólida
integridade moral contra uma tempestade de críticas anticlericais e de simpatias pela
Reforma. Ao mesmo tempo, a relacão entre clérigos e leigos foi se tornando predominan-
temente uma relação entre clerigos e mulheres. Ou melhor: era com as mulheres que os
homens de igreja mantinham cada vez mais relações íntimas, no âmbito de uma religiao
que acentuara seus traços de busca interior, de decifração dos sentimentos e movimentos
do ânimo. O panorama visto do observatório cenffal do Santo Oficio romano foi prova-
velmente rico de episóclios de grave infração das normas, basta lembrar o da falsa santa
napolitana que, em colaboração com seu coníessor Anielo Arcieri, conseguiu conquistar
fama de clarividente na Nápoles do início do seculo XVII graças à revelação que o padre
seu amante fazia-lhe dos segredos ouvidos em confissão2. Mas as ligações entre mulheres
e confessores constituíram um problema para as autoridades eclesiásticas muito alem
de episodios isolados desse gênero. O processo de feminilização da religiao é algo mais
vasto e impalpável, que marca e ajuda a entender o viés tomado pelo uso da confissão:
Maquiavel colhera alguns sinais disso quando evocara a grandeza viril da religião antiga,
deplorando o enfraquecimento dos ânimos causado pelo cristianismo. Mas no sistema
de valores que antes ligara a "piedade" religiosa com a justiça em relacão a Deus e ao

l. Esse é o reor de uma instrução enviada pelo cardeal Millino ao vigário arquiepiscopal de Gênova em 17 de
julho de 1627 e reproduzida por Cesare Carena (Tractatus dc Ofíicio Sanctissirnae Ìnquisitionis etModo Proceàendi
in Causis Fideí, Bononiae, typis Jacobi Montii, 1ó68, pp. i 13-114). Ìdem, p. ÌII, é formulada em termos gerais
a questáo "an hoc crimen ex testimonio mulierum proberur"' o capítulo começa assim: "Quamvis foeminae
mutabiles sint dolosae, fraudulentae, mendaces, leves, et corruptibiles [...ì"
Cf. o verbete "Aniello Arcieri", de G. De Caro, em DBl, vol. ÌlÌ, Roma, 19ó1, p. 7ó9. A abjuração pronunciada por
Arcieri em forma "semipública" em 1619 pode ser lida no ms Urb. L-at. 1696 da Biblioteca Vaticana, íf. 5ú.54v.
r.**
5n

povo, houve certamente no século XVI uma aceleração para o polo oposto, de um mun-
do de experiências interiorizadas imersas em uma aura sentimental fortemente emotiva,
enquanto a vida pública tornava-se cada vez mais campo de uma política secularizada3.
De resto, as inquietudes, as perturbações, as visões não foram apanágio exclusivo
de psicologias femininas. A própria evolução das anotações autobiográficas masculinas
do caráter predominantemente econômico dos "liwos de família" medievais para os
diários espirituais do seculo XVII é um indício de quanto a mudança atingia então
tambem a psicologia masculina. Não menos que as mulheres os homens colocaram no
papel seus movimentos interiores e registraram os obscuros fantasmas que os atormen-
tavam, seguindo as terapias aconselhadas por seus orientadores espirituais; portanto, a
escrita autobiográfica recomendada não foi prerrolativa exclusivamente femininaa. Ao
contrário, foi prerrogativa dos diários espirituais católicos o fato de serem escritos sob
a orientação eclesiástica para serem lidos por um leitor especial, o diretor espiritual,
perito em decifrar os "espíritos" que estavam por trás dos sinais da experiência: e uma
característica ausente na escrita autobiográfica como instrumento de autoexame a que
dedicaram amplas instruções Isaac Ambrose e John Beadle na Inglaterra puritana e no
diário espiritual de que foram íérvidos defensores Spener, Francke e os pietistas no
mundo alemãos. Disso decorre tambem a enorme predominância de diários femininos
no mundo católico em relação ao domínio masculino no campo da autobiografia pro-
testante: como tambem a predominância das visões no mundo católico em relacão às
meditações e aos pensamentos no protestante. Mas não porque o clero estimulasse a
busca do sensacional, pois os modelos oficiais de santidade, ao contrário, procuraram
conter de todo modo a mare das visões: em uma biografia de são Filippo Neri lia-se,
por exemplo, que o santo recomendava a todos "que the cuspissem na cara, quando
tivesse visões"6. Contudo, não resta duvida de que o "pacto autobiográfico" proposto
então pelos pais espirituais atraiu predominantemente um público feminino e fez surgir
uma avalanche de fenômenos visionários.
A ligação entre clero e mulheres adquiriu entào um significado peculiar, que
também está intimamente relacionado com o deslocamento dos valores da "piedade"

São muito agudas as observações de James D. Garrison, Pietas ÍomVergilto Dryd"en, PhiladeÌphia, 1992 (agradeço
à minha íilha Valentina ter-me indicado esse liwo).
De "écriture autobiographique sur ordre" fala Isabeile Poutrin, Iz voile etla plume. Autobiographie et saíntete féminine

dans I'Espagne moderne, op. cit., pp. 14.1ó. Mas ver, paÍa um caso masculino de grande interes se, o Diario Spiritualc
de Filippo Baldinucci, org. por Giuseppe Parigino com introdução de E. Stumpo, Firenze, 1995.Idem, notícias
sobre o nascimento e o encâminhamento à ptofissão religiosa do filho Antonio, lembrado anteriormente, cap.
25, nota 19.
5. As obras de Ambrose e de Beadle, publicadas respectivamente em 1650 e em 1ó56, são citadas no estudo
fundamentale de Alan Macíarlane, The Familqy Life of Ral.ph losselín, ASeuenteenth-Centur'1 Clrrglman. An Essal in
Hístoncal Anthropology, Cambridge, 1970 (cito a partir da ed. Norton, NewYork, 1977 , pp.6-7). Uma inrodução
à história da autobiografia junto por Günter Niggl, "Zur Sâkularisation der pietistischen
aos pietistas é íornecida
Autobiographie im 18. Jahrhundert" (1977), em ldzm (org.), Dle Autobiographíe: zu Form und Geschichte eíner
literarischen G attung, Darmstadt, 1989, pp. 3 67 -391.
6. Niccolo Macchiavelli, Vitd di S. Filippo NeÍi, Napoli, tipograíia de Felice Mosca, 1699, pp. 219-220.

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A ConÍissão
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',4|ì,
r
513

para o mundo interior e com o processo paralelo de abandono do campo político e


econômico às autoridades temporais e a formas de saber dessacralizado. A mulher,
tornando-se protagonista de uma religião sentimental e visionária, foi a destinatária
Je uma nova atenção por parte do corpo eclesiástico. No duro confronto que se ini-
ciou então entre a Igreja e a família, por exemplo, a mulher foi considerada como a
porta de acesso ao sistema familiar. A literatura sobre o modelo cristão de mulher,
enquanto reduzia à escolha entre convento e casamento os estados de vida permitidos
à mulher - e abolia portanto qualquer possibilidade de autonomia - deixava vislum-
brar as oportunidades de domínio ocultas nessas condições de servidão. A "mulher
cristã" podia exercer suas artes de persuasão e chegar a dirigir às escondidas as decisões
Jo marido-patrão. Mas a isso opunha-se por parte dos lJgos o perigo da intromissão
clerical: o clero podia, dlrigindo a mulher com a confissão, exercer indiretamente o
mais insidioso dos poderes nas matérias que lhe eram vetadas. A intromissão do padre
entre a mulher e o marido alterava um sistema antigo e simples de domínio. Era uma
questão de poder e como tal foi vista e vivida já então e cada vez mais na sequência,
ate o duro ato de acusação lançado no seculo XIX por Jules MicheletT. Entrava e
causa o sistema familiar como um todo, até, portanto - em estados dominados por
organizações familiares - as rnais ciosas matérias de estado. Foi justamente em um
estado oligárquico dominado por alianças de famílias - a república de Gênova - que
um observador do início do século XVII, Andrea Spinola, levantou dúvidas e objeçoes
contra todo o sistema da confissão feminina em nome da defesa do estado. Andrea
Spinola narra escandalizado de confissões femininas intermináveis, orientações espi-
rituais e relações de confidência íntima entre confessores e mulheres. Spinola tinha
visto em uma igreja genovesa "uma fidalga que se confessava", Era "uma dessas que
praticam os sacramentos". Porém, mesmo conhecendo-a como devota, Spinola ficara
incomodado com a duração da confissão, duas missas tinham sido celebradas e a
confissão da mulher não parecia chegar ao fim. Alem disso, o pajem que esperava
a fidalga dissera.lhe que normalmente sua patroa costumava passar a manhã inteira
nessa devota ocupação.
Mas o que tinha a ver a confissão de uma mulher em um texto de caráter político?
O próprio Spinola fez-se a pergunta:

Têndo em meus escritos o objetivo de servir à minha pátria, perguntar-me-ia alguem aà quíd
Jissertar sobre o que foi dito acima. Respondo-lhe interessar por demais ao bom governo que nossas
mulheres cá da cidade sejam piedosas e devotas, sim, mas não escrupulosas a ponto de, esquecidas
Jos cuidados da casa, perder sua liberdade moderada e razoável, em prejuízo dos maridos e da Re-
pública, da qual elas são grande partes.

Jules Michelet, Du prêne, dela femme, dzln faml\ie, Paris, 1845 (4. ed.). Sobre a mulher "emissária da lgreja junto
ao marido" cí. o estudo de Elisa Novi Chavarria, "ldeologia e Comportamenti Familiari nei Predicatori Italiani
tra Cinque e Settecento. Têmatiche e Modelli", Rioista Storica halíana, 100, 1988, pp. 679-723, ver part. p. 686.
Andrea Spinola, Scntri Scelri, org. de Carlo Bitossi, Gênova, 1981, p. 245.

Confessores e Mulheres
5t4

Por isso, mesmo as mulheres deviam manter uma liberdade "moderada e razo.
ável" para estarem de acordo com o bem dos maridos e do estado. Aquela hberdade
opunha.se a direcão das consciências segundo interesses de um poder diferente
daquele do estado. Muitas vezes encontram-se sinais de preocupação na literatura
de instrucão aos confessores contra a prática de levar as mulheres a fazerem votos
simples de obediência "nas mãos dos diretores, convencendo.as de que assim estariam
isentas de obedecerem a seus pais": daí provinham, ao que parece, "inumeráveis
desordens"e. Não e difícil de acreditar nisso: a coisa tinha uma relevância política
imediata, como mostra a alusão de Spinola. Com certeza, até o exercício da auto-
ridade dos confessores sobre os penitentes homens despertava certa preocupação:
no decorrer da dura batalha do Interdito Paulo V e Veneza, frei Paolo Sarpi
".rtr"t"
acusou reiteradas vezes os confessores de terem tentado orientar politicamente os
penitentes em sentido hostil à República: relatou ainda que em 1589 os jesuítas em
Veneza recusavam a absolvição aos senadores que tinham reconhecido Henrique IV
de Navarra como legítimo rei da Francal0. Mas se pressões desse tipo sobre os homens
de governo eram temíveis, as pressões exercidas sobre o mundo feminino preocu.
pavam ainda mais. Entretanto, o sexo feminino era considerado mais frágil e mais
influenciável. Porém,'o que preocupava sobremaneira no sistema da confissão era
seu ameacador implantar-se na sociedade da família, comprometendo seus vínculos
de obediência e, consequentemente, ameaçando o estado, que se firmava sobre a
força das principais famílias.
Agostino Valier, bispo de Verona, dedicou uma série de textosrr às mulheres nos
vários estados ou condições que lhes eram permitidas - monjas, casadas, viúvas. Mas a
palavra do bispo dirigida às várias categorias de mulheres desenhava aquele gênero de
governo da vida social que remetia à persuasão e ao doutrinamento coletivo. Também
e sobretudo para as mulheres, foi bem mais eficaz e presente à época o sistema de con-
trole individual que tinha seu fator decisivo na confissão. Na relacão com o confessor
e com o diretor espiritual, regida por regras antigas que ora conheciam uma nova vida,
apresentavam-se às mulheres novas oportunidades de exercer um poder12.

Awertimentí a' Conlessori, Brescia, por Gian Maria Rizzardi, s.d. (mas 1728), p. 285. O texto é exrraido de autores
que vão de Carlo Borromeo a Paolo Segneri Jr.
10. Paolo Sarpi, Storìa delLe Cose Passate tra Paol"o V etc., em Opere, ed. Helmstadt (Verona), 1761-17ó8, vol. Itt,
p.42.
t1 Cí. Institutione d'Ogni Stato LodBqtole delle Donne Christiane; Instruttione drllz Donne Maitate; Instruttione d"eLla Veru
etPerfettaViduia (pequenas obras impressas em "Venetia, junto aos herdeiros de Francesco Rampazetto",157't);
e também os Ricordi di Monsignor Agostino Valerio Vescouo di Vrona lttsciati aLIz MonachB ne\Ia sua Visitatiorle

FattaL'Anno del Santissimo Giubileo 1575, Venetia, junto a Bolognino Zaltieri, 1575. Mas a série dos estados de
vida íeminina compreendia então também o do celibato fora do convento ou, como ainda se denominava, da
"monja de casa" ou "continência doméstica" (esta última denominação é de P. Morigia, Opera Chiamatastato
Religioso..., oP. cit., f. 2r).
tz. Sobre isso chama a atenção o ensaio de Patricia Ranft, 'A Key to Counter Reíormation Women's Activism:
The Confessor.spiritual Director", loumal of Femínist Srudies in Religion, n. 10, Fall, 1994, pp.7-26 (que não se
detém na sollicitatío, porém).

A Confissão

h,
í-

515

Sobretudo para as mulheres' o espaço destinado à confissão da mulher nas ins-


truções e nos manuais para confessores, a partir do final do seculo XVI, íoi bem mais
expressivo do que o dedicado à confissão masculina. As minuciosas prescrições de são
Carlo Borromeo sobre os tempos, lugares e modos das confissões das mulheres demons.
tram o quanto a questão aparecesse grave e importante: os confessores das mulheres
deviam ser escolhidos entre os mais velhos e comedidos; as mulheres podiam ser ouvidas l

em confissão somente à luz do sol, e portanto não antes do alvorecer e não depois do
anoitecer; e não em casas particulares, mas na igreja, publicamente. Para tornar ainda
mais arriscado e prenhe de ambiguidade o encontro entre confessores e mulheres,
acrescentou-se a proíunda transformação na economia moral que já foi mencionada.
Fosse qual fosse a causa dela, é certo que o espaço dos criirres contra a sociedade - a
soberba, a inveja, a avareza - foi tomado pelas culpas particulares e pelas do sexo de
modo prevaricador enquanto o confessionário tornava-se o espaço da conversa sobre o
sexo13. A inserção do crime de sollicítatio no campo da inquisição fez surgir uma serie
de problemas, impondo medidas para limitar uma consequência devastadora do novo
protagonismo devoto feminino: entravam em jogo, contemporaneamente, a honra
das famílias e a do clero, o prestígio da família laica posto em risco pela desconfian.
i
ça quanto aos comportamentos'femininos em confissão e o da família religiosa - as
grandes ordens, ciosas de sua reputação. Os dois polos tocavam-se no caso das monjas
e de seus confessores. Por isso, os confessores de monjas viram-se instados de modo
muito particular a temer e a tremer diante das dlficuldades e dos riscos de seu ofício:
o confessor de monjas, segundo o vigário milanês Pietro Barchi,

[...] temerá muito sua íragilidade [...] Portanto, irá ao confessionário e tratará [...] com as mon-
jas do modo como foi a primeira vez [...ì Será muito mais cauteloso e prudente de não se afeicoar a

alguma delas em particular [...ì Guardar-se-á de partilhar qualquer segredo seu com alguma delas [...ì
Estará vigilante para que alguma não se apegue a ele com particular afeto [...] Ouvirá as confissões
de todas as monjas em um mesmo lugar, porem não nas grades dos parlatórios, mas na janelinha do
confessionário [...ì Jamais mandará chamar qualquer monja isoladamente [...] Dividirá igualmente
com todas o tempo das confissõesla.

E assim por diante, por páginas e páginas. Se a mulher era sernpre um perigo, a
monja era um perigo à enesima potência.
O ponto de vista da literatura clerical era unilateralmente destinado a sublinhar
a periculosidade - voluntária ou involuntária - da mulher. Era ela a tentadora. Na li-
teratura hagiográfica e na iconografia religiosa surgiu o tema do confessor tentado por

A observação sobre a inversão na hierarquia dos pecados é de Bossy, The SociaL History of Confes.sion op. cit., e
pdisim em outros ensaios; da produção de conversas sobre sexo em coníissão ocupou.se Michel Foucault, La
uoLonté de sauoir, Paris 1976, trad. it. Milano, 1978.
t4. Insnuuíone per gIí Confessoi di Monache, del Dottore Gio. Pietro Barchi Vícario dell"e Monache deLla Città, e Diocesi
diMikmo..., Milano, pelo herdeiro de Paciíico Pontio e Gio. Battista Piccaglia, 1607, pp. 6-9.

Confessores e Mulheres
í

516

mulheres lascivas15. As imagens elaboradas em torno dasollicitatio evidenciam que estava


pronto a ser desencadeado um preconceito hostil em relação às mulheres. E por outro
lado, e evidente tambem que o remedio da criminalização inquisitorial não passava de
uma frágil barreira diante da raiz profunda desses casos, alimentados justamente pela
intimidade do vínculo criado pela relação confessional. Por isso, a literatura das normas
precisou registrar contínuos retornos ao assunto e medidas cada vez mais duras: tão
íntima e profunda era essa ligação e tão subalterna e suspeita era a posição da mulher
em relacão ao clero. Naturalmente, não se podia contar com a disponibilidade das peni-
tentes molestadas ou seduzidas pelos confessores no sentido de se dirigir ao inquisidor
para fazer uma denúncia. Entretanto, havia o perigo concreto de serem consideradas
caluniadoras e de serem submetidas e expostas poiisso a penas públicas infamantes16.
Fosse como fosse, a vergonha e o prejuízo recaíam sobre elas - quando não o do tri-
bunal, certamente o da sociedade e das famílias. E esse é um dado de fundo, algo que
fazia parte de uma divisão profunda da sociedade e das regras do domínio dos homens
sobre as mulheres. Desse ponto de vista, a inserção do padre na relação entre homem
e mulher não produziu certamente o aumento de poder para as mulheres que muitos
temeram à época e ao qual os historiadores de hoje poderiam ver-se tentados a dar
crédito. A mulher estuprada por um homem qualquer podia ter algumas possibilidades
de justiça atraves dos tribunais laicos ou ter a esperanca de um casamento reparador;
a mulher assediada por um padre achava-se numa condição bem mais frágil. De resto,
é evidente que a inserção do crime de sollicitatío entre aqueles tratados pela Inquisição
teve o objetivo primário de deíender o corpo eclesiástico e o sacramerÌto da penitência
do descredito gravíssimo que os ameaçava. O secretismo extremo que cercou os casos
'il concretos, as longas investigações, as punições afastadas dos olhos do público foram
devidos à vontade de não afetar a imagem do clero e de não comprometer a coníiança
na confissão. Quanto à relação entre mulher e sacerdote, podemos tomar por teste-
munha um papa que foi tambem homem de cultura e de mentalidade relativamente
aberta como Prospero Lambertini: nos "casos de consciência" que Lambertini propôs
aos padres de sua diocese bolonhesa foi proposto o caso de uma mulher que esbofeteia
o padre que tenta seduzi-la. Pois bem, segundo Lambertini, a mulher que esbofeteia
um padre incorrç em excomunhão: isso significava que a mulher agredida pelo padre
podiaíquanto muito-ledir socorro ou tentar fugir, mas não podia bater no agressorlT. A

l5 Um único exemplo para a iconograíia: a tela pintada por Simon Vouet por volta de 1ó24 para a basíiica romana
de San Lorenzo in Lucina e dedicada à tentação no coníessionário de são Francisco Caracciolo, íundador dos
Ciérigos Regulares menores (cf. Roberta Giorgi, San Lorenzo in Lucina nel Seicenü0, Storia deLlt CommittenTa,
Roma, 1990, pp.6.10).
16. Uma mulher que tinha prestado falso depoimento quanto a ter sido assediada no coníessionário foi condenada
a ficar diante da porta da igreja com um cartaz que descrevia seu crìme: o caso, extraído de um decreto do
Santo Ofício de 29 de julho de 1609, encontra.se registrado no capítulo "De Tormentis et Têstibus" de uma
coletânea de "decreta magis praecipua ab anno 1548" (Biblioteca Casanatense, ms 2653, c.520r).
t7 Casus conscíentíae Bononieruis díoecesis presblterís oLim de mandttto... Prosperí Lambertini moxBenedíctí XIV..., vol. l,
ab anno 1732 usque ad totum dnnum 1753, Bononiae, ex qp. Longhi, 1767 , p.295.

. A Confissão
i.ì
'{âìr
r
517

antiga misoginia monástica encontrava novo alimento na obrigatoriedade de abstinência


sexual, confirmada e reforçada por todo o clero; e o resultado disso consistia em
atribuir
todas as culpas possíveis à mulher. A imagem clerical da mulher como instrumento do
Jemônio produziu uma imensidao de obscuras fantasias jurídico.morais18.
Condicionamentos pesados, sem dúvida. No entanto, a partida iniciada pela
Inquisicão com os confessores era jogada justamente na possibilidade de convencer as
mulheres a denunciar os padres. As mulheres eram cliente-s ha.!_ituais dos confessionários,
bem mais que os homens. or hãiÃãïipóJiá*
.or-ri"rrur-r.; ã."t"." í;êi;.
"t -"Ìiì"..r
ffi;ã.p."ãil;úJda honra, essencial às mulheres no mercado matrimonial,
mas também à fama da família inteira. Se a mulher não se coníessava, a sociedade au.
tomaticamente deduzia disso consequências ruinosas p"râ o bom nome dela. "É difícil
encontrar mulheres que não se coníessem de quando em quando" - reconhecia um
especialista capuchinho. Aos homens era reconhecida certa liberdade, pois os deveres
Ja honra viril - a obrigação de vingar as ofensas, por exemplo - eram predominantes
sobre aqueles do bom cristão: "quando estão em alguma ocasião próxima de amor ou
Je ódio, íicam longe dos sacramentos"l as mulheres, ao contrário, se quisessem evitar
a desonra pública, deviam ir regularmente à igreja e demonstrar uma devoção tanto
mais regular quanto mais secretamente desregrada fosse sua vida,

Uma mulher, que ainda não tenha sacrificado à ignomínia pública sua honra, embora esteja
enviscada em pecaminosa ocasião, ainda com animosidade irá aos sacramentos por esse mesmo
,'Ìlotivo, pois ela crê por meio dos sacramentos encobrir suas desonras secretasle.

Obrigada em uma condição tão contraditória, a mulher devia seguir ao pe da letra


.rs normas que regulavam a vida de sua paroquia. Era preciso, então, garantir às mulheres
.' direito de denunciar os confessores sem prejuízo ou vergonha. Tinha início aqui uma
.erie de contradições entre as exigências da estrutura eclesiástica e as normas escritas ou
não escritas - sobretudo essas últimas - em materia de honra feminina. No entanto, a
Inquisição precisava de uma denúncia escrita para atuar: como co*lJ/.enc-el 3"r._Lylh-elï a
apelar ao tribunal do inquisidor e a cumprir esse ato que por si bastava para desonrá-las?
-\ normas eclesiásticas, em seus complicados vaivens sobre o assunto, mostram o conflito
entre exigências contraditorias - o conftole sobre os confessores, a defesa das normas
sociais em matéria de honra feminina. A pouca distância da bula Contra Sollicitantes,
voltou-se ao assunto, com uma carta da congregação do Santo Ofício a todos os bispos
e inquisidores da ltália, datada de 10 de agosto de 1674, na qual se respondia a uma
questão: "se as penitentes são obrigadas a denunciar os confessores, pelos quais foram

18. ver a respeito o autêntico repertório de obscenidades elaborado por L. Sinistrari, De Delictis et
Pode-se
AÌbticcium, 1700.
Poenis,Venetiis, apud H.
19. Frei capuchinho Gaetano Matia da Bergamo, lUomo Apostolico Istruito nelln sua Vocazione aI Confessíonario per
Udíre speTialmente Ie confessioni generali, neL tempo deLLe missioni, e de' giubbileí, ed in qualunque aLtra occonenTa, em

Venezia, junto a Gio. Battista Regozza, 1727 , pp. ZZ3-224.

Confèssores e \'íulher*
il8

solicitadas no local ou ato da confissão, quando consentiram na solicitação". A questão


tinha surgido de uma dlflculdade concreta: a de convencer de seu dever de denunciar o
confessor essas penitentes que tinham motivo de temer chantagens e de serem intimadas
] como co.reu. A resposta íoi clara: "qualquer penitente tem a obrigação de denunciar
i o coníessor, pelo qual íoi solicitado no local ou ato da coníissão, mesmo que tenha
j consentido, mas não tem a obrigação de propalar o próprio consentimento, nem se for
I i.rt"rrog"do pelo bispo, ou inquisidor, ou por seus vigários, diante dos quais depuser;
I muito menos o confessor denunciado, procedendo-se contra ele, nos depoimentos, que
I

! forem feitos, seja interrogado sobre tal consentimento; e no caso de ele querer declara-lo
l de viva voz, não se escreva o que disser". Era uma declaração de guerra aos confessores,
o tribunal lancava mão das mulheres para obrigar'os eclesiásticos a não aproveitarem
de sua posição de força de homens, dotados do temível poder eclesiástico e do direito
-
de acesso reservado à intimidade dos sentimentos e das conversas. As mulheres, só de
irem ao tribunal apresentar a denúncia, arriscavam seu capital mais precioso, a honra.
Era preciso, portanto, oferecer-lhes todas as garantias, pois os eclesiásticos ameaçados
defender.se.iam atacando. E havia defesa melhor do que descarregar toda a culpa em
cima das mulheresl A cultura clerical dispunha em sua memória de um verdadeiro ar-
senal de ârgumentos: as'artes femininas da sedução e do engano, a estreita aliança entÍe
o diabo e a mulher para a danação do clero - tudo servia, enfim, para lançar sobre a
mulher a culpa do desejo masculino. E a cultura dos casuístas produziu - na Espanha,
em Portugal e na Itália - uma longa serie de hipóteses onde as fantasias clericais mais
desenfreadamente obscenas foram cobertas com o veu da moral foram apresentadas as
mais variadas hipoteses para reduzir o campo de aplicação da nova categoria de crime. A
congregação romana empenhou-se continuamente na discussão de exceções e de opiniões
que sutilmente levavam a desresponsabilizar os confessores ou, pelo menos, a esvaziar
todo o conteúdo da ameaça de um verdadeiro processo. Recorreu,se ate ao pedido de
i que, antes da denúncia, fosse usada com os culpados a prática evangélica da "correção
íraterna" - uma simples admoestação ou reprimenda pessoal, sem consequências juri-
, ã;ã;;Ã; seculo anterior, essa proposta fora avançada por quem pretendia resolver com
I
i espírito evangelico as controvérsias doutrinárias no seio da Respublica christiana. Ora, o
L
mesmo argumento era utilizado para encobrir os malfeitos do corpo eclesiástico, per-
filado em defesa de sua honra. O Santo Ofício, em sessão áe27 de setembro de 1628.
rejeitou essa proposta como "falsa, causa de relaxamento disciplinar e capaz de tornar
inútil a Bula papal"20. Na longa batalha travada então, os confessores puderam contar
com o apoio das poderosas ordens religiosas que continuavam sendo o principal lugar
de que advinham. Daí as dificuldades de tornar efetiva a vontade expressa pelo Santo
Oíício: os contínuos "anúncios" emanados a propósito certamente não constituem unì
sinal de sucesso. O documento papal de 1624 foi reimpresso e enviado novamente a
todos os bispos e inquisidores da ltália em pelo menos duas ocasiões, em 1667 e 172b.
para que fosse lido em "todas as igrejas paroquiais dessa diocese em presença do povo'.

20. Cozza, Dubia Selecta Emergentía circa Solícitatíonem, op. cít., p. 67.

A Confissào
r
519

Teve-se que constatar que, de fato, essas ordens eram "negligenciadas" - prova, como se
houvesse necessidade, da dificuldade de atingir os confessores sem prejudicar a honra
dos - e sobretudo das - penitenteszl. Declaração singular: o número das denúncias e a
quantidade dos casos que foram tratados na prática inquisitorial são tão altos que, se a
eles se juntar um número "oculto" de casos não denunciados, conclui-se que a materia
deve ter sido realmente de grande importância social: uma sondagem em qualquer um
dos fundos inquisitoriais apresenta resultados impressionantes. Porém, mais do que
confiar na eloquência dos números, tentaremos analisar alguns casos concretos.
Em26 de setembro de 1627, perante Giovanni Maria Tolomei de Osimo, inquisi-
dor em Pisa, apresentou.se uma mulher: jovem - de acordo com nossos critérios (tinha
cerca de 24 anos) - mas já casada e mãe de família, chaÀava-se Francesca e era mulher
de um tal Giovanni Battista de Pistoia, camponês na propriedade de um negociante
pisano em Avane. O filho do negociante tornara-se píevano de Avane, de acordo com
notórios mecanismos de ascensão social e de consolidação das vantagens adquiridas.
Francesca fora falar justamente desse pieuano. O padre pusera os olhos em Francesca
desde a chegada dessa família de camponeses de Pistoia: e quando Francesca tinha
ido se confessar com ele, este lhe dissera claramente suas intençoes. Não tinha sido
uma declaração sentimental, rnas uma oferta clara e desenvolta de patrão de quem por
ser mulher era duplamente serva - do proprio marido em primeiro lugar e depois do
patrão do marido; e havia em Francesca uma fraqueza a mais alem daquela "natural"
do sexo, o fato de ser forasteira. O padre disseralhe claramente, com poucas palawas,
como poderoso do lugar à mulher pobre e íorasteira: "És pobre forasteira e se me ser-
vires como a teu marido, providenciarei tudo o que precisas, seja de casa, de campo,
de comer, de beber e de vestir"22.
Uma oferta de proteção, um registro brutal das relações de força, seja visto
tanto de um como de outro m$Lo,'alalqdg p"dt" não devia parecer absolutamente
extravagante para quem a ouvia{'Qua.r,o -frô podia parecer chocante justamente por
descrever uma situação sem saída para quem, nascida mulher e pobre, estava condenada
a servir à vontade alheia. Francesca tinha ficado chocada pela situação. Mas escondera
tudo da família, das vizinhas, desde o primeiro momento. Essa cena tinha ocorrido no
confessionário, denffo de uma igreja apinhada de outras mulheres que faziam fila para
confessar.se. O inquisidor perguntou imediatamente "se ao redor havia pessoas que
pudessem ter ouvido as propostas desonestas". Francesca garantiu-lhe que ninguém

21. Exemplates impressos da catta, "escrita pela s. Congregação do Santo Ofício a todos os Bispos e Inquisidores
da ltália", encontÍam-se conservados entre os documentos da lnquisição Ílorentina (Archives Générales du
Royaume, Bruxelles, Archi ves ecclÁsíastíques 1928 3ter, ll, cc. 48, ed. 1667 , e 53, ed. 1728) e da modenense (ASM,
Inquisilione,b.TT , ed.1667). A impressão de 1667, ordenada peio papa Alexandre VÌI, traz na cópia modenense
a ordem complementar, 'A presente carta [...] será tornada pública por todas as igrejas paroquiais desta dio
cese diante do povo para que a todos chegue a notícia de erradicar do campo da Santa Madre Igreja peste tão
execranda, quanto é o abuso do ato e lugar do sacramento da confissão para íins péssimos". No preâmbulo
da ediçao de 1728 deciara-se que as ordens tinham sido "negligenciadas"
ACAF, S. Uffizío, f . 6, 1621-1623, depoimento de 26 de setembro áe 1627
"I
TF-

520

tinha ouvido nada. A confissão terminara normalmente, com a fórmula sacramental


recitada logo apos a- fala arrebatada. Ela estava ali "ajoelhada no confessionário", o
padre dizia-lhe que tinha se apaixonado por ela e que a pegaria mesmo à força: "'Vou
te pegar nem que seja pelo telhado lda tua casa] quando estiver bem apaixonado'.
Confessei meus pecados e ele me deu a absolvição". Francesca voltara a se confessar
uma e outra vez. O inquisidor perguntou-lhe o motivo e teve como resposta: "Para não
causar escândalo aos meus irmãos e ao marido que podiam dizer: 'Por que não te vais
confessar com o padre?"'
A mulher estava sujeita aos homens da família, seu primeiro dever era "não causar
escândalo", porque a culpa seria apenas dela. E assim se esclarece um contexto familiar
bem definido: uma família composta de uma mãe è um grupo de filhos; o pai morreu e
seu Ìugar foi ocupado pelo marido da filha. Para Francesca, sujeita aos genitores e depois
tambem aos irmãos, ocorrera o acréscimo de uma nova servidão. E esse grupo familiar não
era capaz de protegê-la contra o mundo exterior, pelo contrário. Se a mulher causava escân-
dalo, a responsabilidade era dela. E o que se vê no momento em que o assedio amoroso do
padre torna-se explícito e revela-se à mãe de Francesca. E uma cena descrita com os traços
e as cores da piedade religiosa de todos os tempos da Igreja tridentina e contrarreformista:
a anciã vai à igreja, "para enfeitar o altar de Nossa Senhora" junto com outras mulheres
da companhia da qual faz parte. "O próprio padre indagou sobre minha honra e minha
mãe voltou chorando para casa."A desgraça, aos olhos da mãe, não ameaça a vida da filha,
mas algo mais importante: a honra, esse patrimônio da família inteira que e agredido no
lado mais fraco e exposto, a mulher. A mãe dirige-se à filha não com afeto e compaixão,
mas com ameaca: "[...ì Se ficar sabendo que cedeste a ele [o importante não e que a coisa
aconteca, mas que se venha a saberl, eu te amaldicoarei". São ameacas que se cruzam e
pesam de lados opostos. A história prossegue assim durante anos: a mãe depois morre.
A vida de Francesca continua, igual na aparência, mas com essa chantagem: a obrigação
social de ir à igreja e a pressão cada vez mais intolerável do padre. Finalmente, eis o ato
final, que permitiu a essa história de prepotência comum ser documentada. Francesca
apresenta-se diante do inquisidor de Pisa e protocola sua denúncia. Não deve ter sido facil
para ela ir ate Pisa: os cerca de dez quilômetros que separam Avane de Pisa representavam
uma verdadeira viagem, que demandava tempo e, sobretudo, o consentimento da família
para uma jovem esposa. E para o consentimento havia necessidade de uma razão, que não
podia ser a verdadeira. "Eu sou jovem e quase nunca venho a Pisa, pois quase nunca meus
irmãos me deixam vir. Agora vim com uma vizinha à feira, e para poder cuidar melhor de
meu assunto, disse.lhe que queria ir à casa dos Lombardi ver a noiva." Um fingimento e
uma cobertura dobrados, portanto: com a família, a proteção e propiciada pela vizinha,
que vai à feira, com a vizinha e necessário um pretexto que não desperte dúvidas para
poder se afastar da feira rumo ao convento franciscano onde mora o inquisidor. Mas resta
a pergunta fundamental, por que agora exatamente, por que esperou tantol E, principal-
mente, como ficou sabendo que podia fazer o que fez, ou seja, que podia denunciar ao
tribunal da lnquisição um padre que the fazia esse tipo de proposta? É justamente isso o
que pergunta o inquisidor e a curiosidade dele é a nossa: "Por que veio agora, e não antes,

A Confissão
r.
521

denunciar o referido padre e como sabe que quando uma mulher e atacada em sua honra
na confissão deve denunciar o confessor à Inquisição?"
A resposta e simples: se um confessor corrupto é a causa dos problemas dela, um
confessor correto é o que a encaminhou ao tribunal da Inquisição:

Fiquei sabendo que se deve recorrer à inquisição em casos como este, numa conversa em
nossa casa, em Pistoia, com nosso confessor que era da ordem de São Francisco, quando ele disse que
as mulheres que vão se confessar e que ficam escandalizadas são obrigadas a procurâr a lnquisição.

Este caso aconteceu em Pisa. Como se disse, trata-se de um caso típico: cada
ingrediente da história e encontrado com frequência nosìautos da Inquisição italiana
a partir do final do seculo XVI. Como Francesca, muitas outras mulheres deram início
então a procedimentos inquisitoriais contra coníessores pelo crime de sollicitatio. A
visão da mulher como ser inferior - ainda mais do campo, uma camponesa - ajuda a
entender como podia se dar essa fusão entre as duas funções essenciais da instituicão
eclesiástica, a da confissão e a da Inquisição.
Do observatório romano do Santo Ofício tinha-se à frente um panorama
composto não só por denúncias formais, mas tambem por uma grande quantidade
de rumores que encontravam diíiculdade para se tornarem denúncias. Os casos
apareciam por meio da voz de confessores que recebiam as confidências de mulheres
que se viam entre a obrigação de recorrer à Inquisição e o medo de que esse passo,
tornando-se notório, custasse-lhes a honra. Recorria-se a Roma com pedidos para
transigir e conceder às mulheres a absolvição, sem pretender a passagem preliminar
pelo tribunal inquisitorial. E de Roma chegavam respostas incomodadas, irritadas,
só raramente compreensivas.

São muito frívolas as razões que as duas penitentes de V. R. alegam para não denunciar os
confessores solicitantes - escrevia o cardeal Barberini a frei Matteo, um minorita de Norcia - porém, o
senhor deverá convencêlas da obrigação que têm e da vanidade dos pretextos alegados para não fazê.lo,
podendo o segredo do Santo Ofício sanar a dúvida de terem suas honras manchadas quando tomar
conhecimento do fato, e devendo prevalecer sobre todas as coisas o dever de aliviar sua consciência?3.

Com as mulheres - esse era um problema quase exclusivamente feminino - o


problema era terrivelmente complicado: não bastava garantir-lhes o segredo íormal quan-
to ao texto da denúncia, era necessário fazer de modo que o percurso dessa denúncia
permanecesse impenetrável em uma sociedade que espiava todos os movimentos das
mulheres e defendia-lhes a honàãô-" f""aÃË"tã e condlçao da honra masculina.
à casuísiËãïõnstituïdã'iõïãerrubada, podia uma mulhei faiei chègãi a denúncia
ao convento onde residia o inquisidor por intermédio de outreml Podia recorrer a
fingimentos e subterfúgios para com sua família? Como, por outro lado, era possível

i 13. Carta de 7 de outubro de 1626, em BAV, Barb. I-at. 6334, c.796qt.


ri- -
522

defender os padres das vinganças de mulheres apaixonadas e rejeitadas? Ainda mais


vasta foi a casuística surgida então para exame dos tribunais. Dos processos que se
seguiram, cada vez mais numerosos, resultaram infinitas astúcias por parte dos padres
no sentido de escaparem à acusação de abuso do sacramento: o padre podia assediar
a mulher fora do confessionário, antes ou depois da confissão, ou sob o pretexto de
confessá-la quando ia à casa dela. Ao contrário, havia as acusações dos padres às mulheres,
confissões demasiado detalhadas, uma busca de afeto na relação com o confessor que
podia degenerar, verdadeiras declarações de amor no confessionário. Enfim, a materia
era complexa por sua natureza. Do ponto de vista da lnquisição, era preciso, portan-
to, definir cada vez melhor as normas para evitar que as malhas da repressão fossem
demasiado largas. No final das contas, cabia ao èorrf"rro. o julgamento de primeira
instância: sua interpretação era decisiva para que o caso pudesse passar à lnquisição.
As mulheres "solicitadas" por um confessor revelavam o ocorrido a outros confessores
que, por sua vez, deviam decidir o que fazer. Como se comportaram? Convencê-los a
seguir as diretrizes do Santo Ofício foi uma guerra de longa duração. Ainda no século
XVIII, denunciava.se a tendência a uma excessiva clemência por parte dos confessores,
demasiadamente propensos a conceder a absolvição às penitentes' sem obrigá'las a
recorrer ao Santo Ofícib:

Não é preciso muito para julgar que a denúncia não seja feita [...] por ser qualquer denúncia
odiosa em si [...] Nos casos duvidosos, se a pessoa penitente é obrigada ou não a denunciar, nin'
guém deve fazer-se de sábio e cuspir a sentença que não, a título apenas de favorecer a boa fama de
quem talvez, infelizmente, seja réu; mas deve-se, quer por meio dos vigários, ou pot si mesmo, quer
oralmente ou por escrito, apresentar a informação ao Inquisidor, do qual se espera que julgue, para
ouvir o que tem a aconselhar2a.

Mas era justamente esse o obstáculo dificil de superar, as mulheres revelavam - a


custo, imagina-se, com vergonha, com grande dificuldade - a um confessor o que outros
confessores tinham thes dito ou feito. Mas não queriam encetar o percurso da denúncia
formal, devido à transparência social de certos atos: serem vistas diante do inquisidor e
perder a honra era uma única coisa. Os confessores de profissão detestavam todo esse
rumor de procedimentos formais e o tráfego de atos escritos que punham em perigo a
matéria prima de seu trabalho, fazendo secar a planta da confianca. Uma vez dentro da
esfera da Inquisição, essas histórias assumiam uma dimensão pública, terrível para as
mulheres por colocar em perigo o capital social de que dispunham, a honra. O esforço
dos confessores foi então o de evitar ao máximo o processo inquisitorial.
Em maio de 1608, o jesuíta Giovanni Battista Palmucci, ao fim da missão no
campo do Lácio, contou rer tido dificuldade em Sermoneta. Surgira a desconfiança em
relação aos jesuítas, porque se espalhara o boato de que eles revelavam os conteúdos das
confissões. E essa era a consequência de uma história acontecida em Sermoneta durante

24. Gaetano Maria de Bérgamo, IJUomo Apostolíco, op. cir., p. III'

A Confissão
r
523

a missão precedente: então, fora recebida a confissão de uma mulher que contara um
episodio de "solicitação". Relata Palmucci:

Movidos por excesso de zelo, aqueles bons padres, ao ouvirem de uma mulher que tinha sido
solicitada in sd"cra"mento conlessionis a quodam relígíoso etc., depois de pedir licenca à referida mulher,
revelaram tudo ao Monsr. Bispo, o qual demonstrou o desejo de abrir um processo a respeito, e foi
assim que a coisa chegou ao inquìsidor com não pequeno escândalo dos parentes da mulher e de
outros da terra, os quais deduziram disso que revelávamos as confissõesz5.

Foi um duro golpe no sucesso da missão e os jesuítas passaram por momentos


difíceis: "que consternação a nossa, ao vermos com que desconfianca éramos tratados".
Foi necessário seguir uma estrategia destinada a ffanquilizar a população: discrição nas
perguntas no confessionário, sermÕes à população sobre os vícios e os pecados onde
não devia transparecer nada do que eÍa ouvido em confissão. A estrategia penitenciária
foi obrigada a marcar passo ate a população sentir-se tranquilizada. Mas o relato do
missionário dá uma ideia seja do andamento real das denúncias por solicitacão, seja
das resistências proíissionais dos confessores.
Vemos ocorrer tambérn nesse episódio o mesmo recurso que já vimos ser usado
no caso da blasfêmia: o confessor podia transformar-se em instrumento do inquisidor e
registrar por escrito a confissão oral. Mas nem isso era facilmente aceito, como se deduz a
partir das cartas do secretário do Santo Oíício. Em76 de dezembro de 1626, foi enviada
ao arcebispo de Matera uma carta em que se anunciava uma resolucão quanto ao caso de
"três mulheres solicitadas, que não querem denunciar nem por intermedio do proprio
confessor"26. Eram tratativas demoradas e difíceis, não se podia obrigar as penitentes
a apresentarem denúncia íormal porque não se podia negligenciar completamente o
limite entre confissão e inquisição. Mas, enquanto isso, essas coisas ditas em confissão
circulavam em cartas e, sem nunca terem sido denunciadas formalmente, forneciam
material para inquéritos e para a atuação do tribunal. É o qr.r" se vê claramente no caso
da monja de Gênova que admitira práticas que entravam na categoria da sollicitotio ("[...j
No confessionário, e por vezes no ato da confissào, ocorreram contatos de mão e de rosto
com seu confessor"), mas não pretendia fazer denúncia formal. De Roma, concederam.
lhe um adiamento: "Não seja obrigada a denunciá.lo ao Santo Ofício", ao menos por
enquanto: "poderá então V. R. - escreveu-se ao carmelita que colhera e transmitira a
informação - não liberá-la absolutamente da obrigação de denunciar, mas prorrogar
o tempo"27. Junto com essa carta, seguiu outra endereçada ao inquisidor de Gênova,
onde se pedia para verificar "se de um ano para cá compareceu nesta Inquisição algum
confessor, acusando-se de palavras ou contatos ocorridos no confessionário durante

75. ARSI, Rom. 129. I, cc. Lllrqt.


76. BAV, Barb. Lat. 6334, c. 158,..
27. Carta de 31 de janeiro de 1626 ao P. írei Gasparo de San Giovanni Battista, carmelita descalço, em Gênova
(idem, c.24v).

i
\ Confessores e Mulheres

À
F*-
524

a confissão ou fora dela com alguma monja"28. Portanto, uma investigacão tinha sido
iniciada: e era o suficiente para que essa admissão, feita secretamente pela mulher
no coníessionário, se tornasse conhecida e pública; tanto mais que, apesar de toda a
vigilância do Santo Ofício, os inquisidores locais nem sempre garantiam os direitos
reconhecidos às denunciantes - em particular, o direito a que não lhes fosse pergunta.
do se tinham ou não consentido na sol\icitatíoze. De um lado, a curiosidade, os deveres
sociais e os ásperos conflitos que rodeavam a honta da mulher, de outro a consciência
exata do efeito das conversas de teor sexual nos diálogos íntimos entre sacerdotes e
mulheres despertavam uma viva curiosidade em torno de tudo aquilo que dizia respeito
ao confessionário. Para se ter uma ideia disso, basta folhear qualquer denúncia de solli
citatío; por exemplo, a de um certo Francesco Puècioni, que em 10 de janeiro de 1664
fez uma spontanea comparítio diante do inquisidor de Pisa para contar coisas que ficara
sabendo. No centro de sua denúncia estava o pároco de Santa Luce que, segundo ele,
"havia solicitado em confissão as mulheres de Cesare del Bano"; ficara sabendo através
de sua mulher, que por sua vez fora posta ao corrente por confidências femininas das
vizinhas - confidência de que fora excluído e por razões óbvias o tal Cesare del Bano
que era o chefe de família das mulheres "solicitadas": "aquelas pobres mulheres não
sabiam o que fazer, pois não queriam que seus maridos ficassem sabendo"3o.
Diante de tal dificuldade, inaugurou-se no Santo Ofício a tendência em permi.
tir frequentes excecões à norma que proibia a absolvição a quem não passava antes
pelo inquisidor para apresentar denúncia. A mulher solicitada, que "não consegue
se resolver a denunciar o sacerdote réu... seja por ora absolvida"3l. E mesmo quando
se tratava de mulheres de que tinham "abusado muitas vezes no confessionário e no
sacramento da penitência", tolerava-se sua recusa quanto à denúncia, permitindo que
íossem absolvidas com a advertência de pelo menos "não voltar mais a confessar-se
com os mesmos que as induziram ao erro"3z. As histórias que as mulheres conta.
vam quando decidiam apresentar denúncia mostram como era lento e complicado
o caminho para se chegar até o ffibunal da lnquisição. Podiam se passar anos não
só dos fatos mas até mesmo de quando um determinado confessor impunha-lhes a
obrigação de recorrer ao inquisidor para {azer a denúncia. No caso de Rosa Magag.
nini de Calci, a história das solicitações tinha começado muito cedo, moça abastada,
sobrinha de um pieuano, travara amizade com o capelão.do tio, que se tornara seu
confessor. O capelão tinha se enrabichado por ela, durante cerca de onze anos, no
período da confissão pascoal, Rosa dirigira-se a ele e a cada vez tinha se repetido a
cena da seducão:

28. Id.em, c.24rv.


29. Em 29 de janeiro de 1628, o Santo Ofício expediu uma carta de censura ao inquisidot de Cremona por ter
"exptesso o consentimento desta [...] sendo coisa demasiadamente prejudicial à reputação de testemunhas que
obtêm semelhantes consentimentos" (s.{V, Barb. htt. 6336, cc.31u.37r).
30. AAP, S. U/Írio, í.17,1664.1670, cc. n. n.
11. Carta ao inquisidor de Florença de 29 de janeiro de 1628, BAV, Barb. Lat.6336, c.78v.
tL. Carta de 19 de fevereiro de 1628 ao bispo de Pesaro, ídem, c.46qt.

A Confissão
w
I

525

Pouco antes de confessar-me, depois de me íazer entrar na sala ou em um aposento contíguo


[...], solicitou-me notoriamente com palavras e com atos impuros a coisas desonestas e carnais, e

logo depois de ter-me solicitado desse modo, mandava-me à igreja da referida Companhia para a

confissão e assim, de fato, depois de um quarto de hora ou de meia hora vinha para me confessar
e coníessava-me; em seguida celebrava, e com uma partícula, que consagrava junto com a hóstia na
missa, dava-me a comunhão.

Essa cena de hábito quase conjugal ocupara toda a juventude de Rosa - ate o
dia em que algo tinha minado aquela ligação. Rosa fora se confessar com outro e este
a tinha "obrigado em consciência e ameaçado com a não absolvicão, caso não lhe
prometesse sinceramente denunciar ao s. Ofício o relerido padre". Rosa prometera;
mas depois deixara o tempo passar. Quanto mais próximo era o convento do inqui-
sidor, tanto mais inatingível tornava-se para ela. Na casa dos clerigos em que ela ia
encontrar o capelão havia os rapazes do catecismo e as camponesas que a conheciam.
O capelão tinha fama de bom padre, se a vissem dirigir-se ao convento da Inquisicão,
as suspeitas não demorariam a aparecer. Já que a via direta era impraticável,organizou-
-se um percurso oblíquo. Rosa tinha parentes residentes em Calcinaia, um burgo bem
distante de sua aldeia: fora ao encontro deles e enquanto estava ali aproximara.se de um
pieonno que celebrava a missa em um pequeno oratório das redondezas e que tinha, entre
outras incumbências, a de servigário do Santo Ofício. O pieuano foi posto ao corrente
do sucedido: prometeu a Rosa conseguir junto ao inquisidor e ao arcebispo autorização
para receber a denúncia. Tudo isso ocorria em junho de 1755; no ano seguinte, em mar.
ço, Rosa obteve novamente permissão para ir ter com os parentes em Calcinaia. Nesse
ínterim, o pieuano obtivera a autorização para receber a denúncia. Assim, finalmente, o
relato daquela ligação incriminável, as palavras que tinham circulado secretamente du.
rante muito tempo puderam tomar forma escrita, de acordo com as normas legais. Rosa
contou e respondeu a todas as perguntas, até a última - que era referente à demora da
denúncia. Quando o pieuano perguntou-lhe porque adiara por tanto tempo a denúncia
a ser feita, Rosa respondeu com palawas que valiam para ela e para as muitas mulheres
que como ela tinham convivido então com a angústia do mesmo problema, "Eu não
1r
denunciei antes o referido padre Nardini porque não pude, por ser filha de família e
se tivesse podido, teria denunciado antes para a tranquilidade de minha consciência"13.
Mas a denúncia não foi suficiente para devolver-lhe a tranquilidad e: o pieuano, ao expedir
a documentação, remeteu junto uma carta de recomendação para que as autoridades
metropolitanas deixassem a moca em paz. 'A mesma mulher - escreveu o pieuano - após
ter deposto espontaneamente, ficou temerosa de sofrer alguma difamação, caso devesse
comparecer ao Tribunal para ulteriores procedimentos"14.
Era um temor fundado: a denúncia não fechava, mas abria um procedimento pe.
nal; aliás, se a acusacão revelava-se infundada - e o corpo eclesiástico como um todo era

13. AAP, S. Uffizio, Misc.Ì, comparecimento espontâneo de 8 de março de 1756 s.p.


J4. Idem, carta de 1'de abril de 1756 s.p.

Confessores e Mulheres
\:
T-
í-

526

capaz de defender muito bem seus membros em casos do gênero - aplicava.se à mulher
a pena de talião, atingindo.a com a iníâmia. De qualquer modo, porém, a infâmia e a
desonra sempre acabavam atingindo as mulheres: bastava que se divulgasse a historia de
seu comparecimento perante o inquisidor. Era preciso defender as mulheres - se não
todas, pelo menos as "nobres" e, naturalmente, as monjas. Foi estabelecida para elas a
norma que atribuía ao confessor a tarefa de fazer a denúncia no lugar da penitente35.
De resto, o efeito da desonra podia ser o resultado involuntário dos procedimentos
burocráticos desse tribunal: por exemplo, quando era necessário recolher testemu-
nhos posteriores ou então simplesmente assegurar se a mulher denunciante estava em
estado nubil (libero) ou conjugal. Para um caso semelhante, um homem conhecedor
das leis como Prospero Lambertini - mais t".d. f"pu Bento XIV - determinou que se
encontrassem testemunhas de confiança da mulher "solicitada" que atestassem seu
estado núbil, do contrário seria necessário proceder a investigações, que resultariam
em "revelar o segredo"36.
Seja como for, em relação às mulheres as regras impunham o máximo de se.
cretismo e de atenção. No que se refere ao confessor réu, o procedimento era severo.
O processo, controlado diretamente por Roma, onde se tinha atenta lembrança dos
precedentes de confesdores reincidentes, podia chegar à abjuração, que devia ser feita
solenemente "na presença de párocos e confessores convocados com essa finalidade",
à degradação e à prisão in perpetuo3l . E não era preciso mais do que a suspeita para que
a possibilidade de ouvir confissões fosse suspensars.
Apesar de tudo, as raízes do mal eram profundas e o Santo Ofício tinha consciên-
cia disso, a ponto de torná.lo objeto de uma carta circular dirlgida a todos os bispos

35. À pergunta se as meninas e as senhoras da nobreza fossem levadas a denunciar pessoalmente eventuais casos de

solicitação ("an puellae, et foeminae nobiles solicitatae... tenentur personaliter adire inquisitores, vel episcopos")
a resposta íoi negativa. Semelhante obrigação seria demasiadamente dura, escreve írei Girolamo Trimarchr
("valde durum est, quod foemine illustres, et nobiles et pueliae obligentur, ut personaliter adeant sanctuÍn
il1ud tribunal"). Deviam ser ouvidas em suas próprias casas, delegando ao confessor a missão de denunciar.
E isso valia também para as monjas ("hodie tenetur et moniales et puellae et nobiles foeminae denunciare.
aut per se ipsas vel per confessarium"): Fratris Híeronymi Tnmarchí Gentensis ex Messana mínimorum ordinis S.
Francisci a Paula... De confessarío abutente sdcídmento poenítentiae trd"ctdtt;s unicw. Opus episcopis, ínquísitonbu-t
confessaiis, aLiisque personis eccLesiastícís utiLe, et apprime necessanum..., Genuae, ex typographia Petri Io. Calerr
zani et Io. Mariae Farroni soc., i636, pp. 723.225. O tratado de Trimatchi, coníessor e inquisidor de la4a
experiênçia, escÍiro enffe Palermo, Madri e Gênova nos anos de 1627 a.1635, é rico de documentos oíiciais e
de iníormações. Outros tratados íazem referência explícita a uma instrução "na qual se diz que o bispo ou .-
inquisidor coníerem autoridade ao confessor no sentido de receber por escrito e corn juramento a denúncú
a ser imediatamente levada a quem ihe deu autoridade para recebê-1a" (Istruzione per íNoveIIi Confesori, neli;
quatc si SmínuzzaTuttaLa Pratica deLsagramento deLla Penitenza... Opera d'un ecclnsíastico, chr si esercita nellz missiorc-
Lucca, por Leonardo Venturim, 1775, p.270).
36. AAp, S. Uííizio, Misc. I, carta de Lambertini ao arcebispo de Pisa, Bologna, 16 mar. 1737.
37. Essa é a sentença decidida em Roma para dom Francesco Angelerio, cuta de Lorgnano, diocese de Perúga
em 22 de janeiro de 1628 (carta ao inquisidor de Perúgia, BAV, Barb' I-at' 6336, c'26u)'
38. Tal íoi o caso do agostiniano Giovanni Steíano de Crema, indiciado por solicitação e "outtas vezes [...] penr
tenciado por semelhante delito" (carta ao vigário da lnquisição de Savona, 8 jan. 1ó28, ibid., c. 10r).

A Confissão
r
527

da ltália em outubro de 1676 nela, partia-se do aumento do "crime de solicitação


em confissão sacramental", para colocar o problema de como identificar e chegar aos
culpados, tal crime, reconhecia o Santo Ofício, "permanece sem castigo na maioria
das vezes, por não dispor o foro exterior notícia e prova suficiente". A maior parte dos
crimes desse tipo ficava encoberto pelo segredo do "foro interior", pela renitência incri.
minável dos confessores em cumprir seu dever de encaminhar ao tribunal da Inquisição
quem soubesse de algum caso, 'A ignorância ou malícia de muitos confessores não só
impede de dar a entender aos penitentes que denunciem, mas com muita frequência
convence-os do contrário". Por isso, para que ninguem pudesse usar a ignorância como
desculpa, ordenava-se aos bispos que, no próprio ato de aprovar um sacerdote secular
ou regular para a confissão, "seja lida e imposta a bula... de modo que ninguem possa
alegar ignorância"3e.
.." constantemente lembrada aos bispos na respectiva literatura de
-ffi;;á?eiiã
instruçÕes. Competia ao bispo a tarefa de indicar confessores e de aprovar os das ordens
religiosas: nas intenções tridentinas, pretendia-se impor o controle sobre as ordens re.
ligiosas e uma organizacão territorial permanente, de párocos-confessores, como uma
verdadeira polícia das consciências sob o governo da autoridade episcopal. Mas houve um
desvio de rumo, aliás, chegou-se a recomendar aos bispos "valerem-se para isso da obra
dos religiosos, que em sua maioria costumam ser forasteiros, e costumam mudarem-se
muitas vezes de um lugar para outro [...] para que, com eles, principalmente no que se
refere às mulheres, tenha-se mais confiança" (sem esquecer que, com a possibilidade de
escolher entre mais confessores, garantia-se ao povo "uma plena liberdade de escolher e
de substituir os confessores por suspeita de violação de segredg")4o. E pensando sempre
nas mulheres, sugeria-se ao bispo proibir aos confessores "absolver daqueles pecados nos
quais são cúmplices; pois que muitas pessoas simples, e particularmente as mulheres,
são induzidas a pecar com os próprios coníessores, confiando que podem ser absolvidas
por eles, sem a necessidade de confessar tais pecados a outras pessoas"4l. As mulheres,
na realidade, não se iludiam muito a proposito; em Veneza, em 1628, certa Maddalena,
seduzida em confissão pelo frade Giobatta de Fabris, disse ao inquisidor que achava
"uma grande coisa o confessor pecar comigo e confessar-me"4L.
Apesar de sua importância, não nos interessa aqui o aspecto das ligações afeti-
vas e da repressão dos instintos sexuais que tiveram por palco o confessionário e nem
mesmo a história doutrinária de velhas e novas "heresias" elaboradas em torno a essas
práticas e instituições: sentimentos e doutrinas desse tipo tinham existido antes e de-
viam ocorrer na sequência. Mas há pelo menos dois elementos que pertencem a essa
época, cujas marcas encontram-se nas diferentes experiências que se acumulam nos

19. Carta "aos bispos de ltália", Roma, 3 out. 1626, citada no cap. )o(V, nota 33.
40. Giovanni Battista De Lttca, IL Vscovo Pratíco Overo Díscorsi nel.l.'Ore Oziose de'Gíorní Canicolnri dell'Anno 1674,
em Roma, pelos herdeiros de Corbelletti, 1675, p. 151.
41. Idem, pp. 155.156.
42. Mas o coníessor, segundo disse, convencera.a mostrandolhe um liwo impresso em latim, onde se dizia que a penitente
seduzida pelo confessor podia ser absolúda pelo mesmo coníessor (ASVen., S. Uffcio, Processi, b. 8ó, cc. n. n.).

Confessores e Mulheres


.t-t
r:' t
I

5?.8

papeis do governo eclesiástico. lJm constitui um traço impalpável mas real, que pode-
ria ser denominado feminilização da religião: ele e percebido no intimismo de afetos
e de ambientes, na tonalidade sentimental da experiência religiosa ou nas estratégias
eclesiásticas dirlgldas ao mundo feminino (como meio e trâmite para atingir o mundo
masculino, mas tambem como fronteira mais próxima às experiências secretas e indizí.
veis do sagrado). O outro é o aparato que lhes serve de fundo e que reúne a linguagem
e as regras sociais da relação ou do encontïo entre eclesiásticos e mulheres em razão
do qual foi criado: o confessionário. Esses fenômenos foram causados pela brandura e
morbidade, latentes e potenciais, da confissão pos-tridentina, da paternidade espiritual
e de uma estrutura baseada no controle dos pensamentos mais secretos por parte de um
corpo eclesiástico, entrincheirado em uma posiçaJde privilégio e decidido a defendê'
-la, mas preso ao respeito de rigorosas regras jurídicas. Eram normas que criavam uma
zona protegida e garantida: graças a elas, era possível recorrer a um tribunal eclesiástico
para ser protegidos de abusos eclesiásticos. Por outro lado, era do funcionamento dessas
regras que dependia não tanto a segurança individual dos leigos ou a honra de suas
mulheres, mas a manutenção da estrutura eclesiástica. Era por isso que se precisava
obter a garantia de que os crimes do clero não permanecessem secretos e impunes; e
era por isso, portanto, que havia necessidade de obrigar os leigos - e em particular
as mulheres - ao duro e desonroso dever da denúncia escrita. Deve-se destacar aqui
apenas o aspecto específico de uma questão mais geral: quem recorria ao tribunal da
confissão, íazia.o por motivos complexos, vencendo resistências profundas, impelido
por sentimentos de culpa e atraído pela promessa do perdão e do esquecimento. Mas
eis que à porta do confessionário deparava-se com éditos que o transformavam de pe.
nitente em testemunha de processos judiciários. Bispos e inquisidores eram instados a
garantir, de qualquer modo, que ninguem jamais perguntasse ao denunciante se tinha
ou não consentido ao ser "solicitado"; as eventuais declaraçÕes não requeridas deviam
ser excluídas da ata ("caso ele queira declarar de moto próprio, que não seja registrado
seu dito"). Todas essas informações e garantias deviam ser transmitidas aos destinatá'
rios em lugar e circunstâncias idênticas em que ocorrera o crime: no confessionário, ti
I

durante a confissão. Mesmo os decretos do Santo Ofício seguiam esse caminho: os li

próprios confessores deviam explicar "aos penitentes a obrigação que têm de denunciar li
l

os coníessores"4l. Assim, o pedido de absolvição do penitente transformava.se em um tiI

ato de acusação "espontâneo" perante o inquisidor. E isso confirma, por um lado, a fl


importância insubstituível desse ponto de contato entre estrutura eclesiástica e leigos, Ír

por outro, o esforço feito no sentido de mantê'la sob controle.


As resistências eram, obviamente, tão mais fortes quanto mais motivo tinha o
penitente de temer o proprio envolvimento em um processo infamante e perigoso. Tais
resistências podiam revelar.se insuperáveis; e então e que se dava a transformação do
confessor em um agente da Inquisiçãor "Quando, no entanto, o penitente persistia na
mesma renitência, Nosso Senhor contenta-se com que o bispo ou o inquisidor autorize

.l 43. De Luca, il Vescovo Pratico, op. cit.

.l

A Confissão
r
529

o confessor a receber a denúncia por escrito e com juramento para ser imediatamente
levada a quem tiver autorizado de recolhê-la". Por fim, se o penitente não se decidia a
fazer a denúncia escrita, então devia ser dispensado sem absolvição, dando ao mesmo
tempo curso a uma denúncia que era também uma lesão evidente ao segredo confessio-
nal, "que nos seja enviada por escrito e espeÍe-se a resposta; enquanto isso a absolvição
dele lpenitente] deve ser adiada"aa. Tôdo esse trânsito de atos escritos, com juramentos
formais e transmissão de papeis à Inquisição, deve ser imaginado no contexto da paró-
quia, junto de um confessionário apinhado, talvez no período da Páscoa, quando ali se
acotovelava, por dever e tradição, toda a população maior de idade. O confessor fora
transformado em um agente da especie mais insidiosa de polícia: e isso logo depois de
sua já ocorrida transformação - por parte do Concílio de Trento - em um funcionário
público do estado civil, destinado a fornecer aqueles atestados sem os quais as pessoas
eram excomungadas e daí expulsas da própria comunidade.
A partir desse momento, a subordinação dos confessores aos inquisidores estava
garantida: nenhuma discussão abstrata a respeito de uma hipotética divisão de campo -
para uns o "foro interior", para outros o "foro exterior" - podia esconder o dado de fato
de uma ameaca constante suspensa sobre a cabeça dos confessores e de sua permanente
condição subalterna em relação ao terrível tribunal da fé. Os modelos de depoimentos
inseridos nos manuais dos inquisidores deixam claror em suas denúncias, as mulheres
assediadas pelos confessores deviam, sim, calar os pecados que tinham confessado, mas
deviam descrever minuciosamente todo o resto, desde o local do crime (o confessio-
nário) ate tudo aquilo que o confessor tinha dito ou feito. A questão atingiu medidas
extraordinárias na práxis inquisitorial entre os seculos XVI e XVII, mesmo fora da ltália.
Os processos e as denúncias por casos de sollícitatio encheram os arquivos inquisitoriais,
da ltália ao Peru. A figura do confessor foi circundada por uma aura ambígua. Com a
chegada do seculo XVII, as coisas se agravaram: as heresias a serem combatidas tornaram-
-se o molinismo, o quietismo e outras tendências desse tipo, arraigadas no seio de uma
direção das consciências cada vez mais personalizada e íntima, caracterizada pela relação
de "filiação espiritual". Houve efeitos devastadores em brilhantes carreiras eclesiásticas
e complicadas tramas de conspiraçÕes políticas e de desvios religiosos. Recordam-se, a
título de exemplo, o caso do barnabita Bartolomeo Gavanti, suspenso da pregação em
1617, em decorrência da denúncia de uma monja genovesa45, e toda a série de vicissi-
tudes religiosas e políticas que se configuraram, aos olhos dos inquisidores, como uma
vasta ramificação herética, a dos "pelaginos" da Lombardiaa6. Na mesma fenomenologia
da santidade, íoi codificado o caso do confessor que se furta, fugindo da tentação: tal
foi o caso do padre Francesco Caracciolo, confessor na basílica de Sao Lourenco em

44 Idem. O texto é um decreto do Santo Ofício de 20 de julho de 1624, exposto em forma epistolar ao cardeal F.

Borromeo: P. Laurentius Cozza cita-o e comenta em Dubia Selecta, op. cit., pp. 54-56.
45 Completamente desconhecida e ainda assim definida como "mulher extravagante" e não coníiável por S. Pagano
("Denunce e Carcerazioni al S.Offizio del P. Bartolomeo Gavanti', emBamabitì Studt,2, 1985, pp. 87-111; em
part. p. 100).
46. Cf. G. Signorotto,Inquísitorí eMistici nelSeicentoltal.iano. IiEresíadíSanra Pelugia, Bologna, 1989.

Confessores e Mulheres
530

Lucina entre 1606 e 1607: ali "uma mulher loba com aparência de pomba tentou-o no
confessionário, declarando-lhe seu afeto impuro. Ele fugiu para sua cela, onde aplicou-se
uma disciplina de sangue"47.

47. Cf. P. Clemente Piselli, Noritie Histoiche dBll'Ordine, Roma, 1710, p. 86 (retomo a indicação do esrudo de R.
Giorgi citado anterioÌmente, nota 15 deste capítulo).

A Confissão
r

XXVII
.ACREDITAR
CoM o ConeCÃO''

/-o- a extensão da materia dasollicitatio, pode-se considerar atingido um equilíbrio


\,*-zestável entre lnquisição e confissão. A subordinação do foro penitenciário ao foro
exterior caminhou pan passu com uma sobreposição e confusão de estilos. O tribunal da fé
dobrou-se às penitências leves e secretas e perdeu quase inteiramente a função terrificante
que seus fundadores tinham lhe atribuído. Ao mesmo tempo, em movimento paralelo, a
casuística organizava a materia da confissão de um modo mais de acordo com o tribunal
litigioso, onde as questões de' direito são entabuladas, discutidas e esmiuçadas, do que
com o espaço em que se alivia a pena da consciência ofendida. As consciências, com seus
segredos, tornaram-se o campo de ação de poderes que tinham renunciado à diferenciação
inicial por terem descoberto que a persuasão era preferível à força. As cartas e as instru'
ções que circulavam na estrutura inquisitorial assumiram frequentemente a forma de
conselhos e sugestÕes para confortar, aconselhar, encaminhar as pessoas que recorriam
a esse ftibunal: o tom "pastoral" tornou-se dominante em relação à severa consciência
do próprio duro dever e aos tons de guerra espiritual que tinham caracterizado a fase
inicial do Santo Oficio. Persuadir e convencer, e não vencer, tornara-se, evidentemente,
a questão fundamental na situação italiana.
Do conflito inicial entre os dois tribunais, pode-se dizer, portanto, que, no longo
período, passou-se às relaçÕes de colaboração substancial, em que alguma coisa de
um passou para o outro - o caráter "pastoral" da confissão no estilo dos inquisidores,
a forma escrita da denúncia judiciária na deposição oral do confessionário. Dessa
pig3t_9gg1d3de institucional.de estilos e possível fornecer aqui um exemplo no que
diz respeito à prática do recolhimento no confessionário das denúncias destinadas
à Inquisicão.
Entre os papeis reunidos no final do século XVII por um diligente inquisidor de
Aquileia, encontra-se uma coletânea de instruçoes dirigidas seja aos confessores ("para
receber certas deposições de pessoa que não podia comparecer no Santo Ofício"r),
seja aos inquisidores - para tratar "comparecentes e denunciantes em delitos não

l. Biblioteca Municipal de Ferrara, ms Cl. I, n. 118, Documenti Spenantí aLlaSanra Inquìsírione. cc. 142r e ss. Sobre o
inquisidor em questão, frei Antonio Dall'Occhio, cf. S. Cavazza, "La Doppia Morte: Resurrezione e Battesimo
in un Rito del Seicento", Quaderni Storici, n. 50, ago. 1982, pp. 551-582.
r-
532

graves"2. Trata-se, em ambos os casos, de resolver os problemas jurídicos e teológico.


-morais gerados pelas regras que determinavam passar do confessor ao inquisidor em
uma grande quantidade de casos, sortilegios e remédios supersticiosos, pactos com o
diabo, santidade visionária e suspeita, sollicitatío ad turpía. Pois bem, o resultado dessa
instrucão e que se acabou adotando a práxis de resolver tais questões diretamente no
confessionário: o confessor recebia do inquisidor os poderes formais, faziaa penitente
(a questão dizia respeito quase exclusivamente às mulheres) jurar formalmente durante
a confissão, pedia.lhe que contasse os pormenores das coisas confessadas que eram de
competência da inquisição e punha tudo por escrito depois de ter pedido permissão
à interessada. Naturalmente, as instruções previam todas as complicações possíveis:
antes de mais nada, que a penitente não podia pèrmanecer no confessionário tempo
suficiente para permitir o registro escrito de sua confissão. Então o confessor devia
registrar separadamente o que ouvira e submetê-lo depois, em um segundo momento,
à mulher convocada ao confessionárig - que se tornava, portanto, o::pry da jlltiç1-
inquisitorial - para que o assinasse. Em seguida, devia-se passar ao segundo nível, o de .t

ï-" uuËiË"ção na presença de um escrivão: mas se a mulher não aceitava, o confessor ii

devia registrar em ata a recusa e parar por ali.


Esta e a prova de,que o confessionário tinha se tornado um espaço para resolver
rapidamente uma quantidade de problemas, inclusive o problema gravíssimo da bruxaria,
sem passar pelo tribunal da Inquisição; nesse último, por outro lado, a própria coletânea 'l

de instruções mostra que uma grande quantidade de crimes não era mais penalizada,
de modo que o inquisidor tinha assumido a função protetora e pastoral que antes era
típica do confessor. Ate mesmo o crime de leitura de livros proibidos, que desencadeara
o conflito entre Felice Peretti e o governo veneziano, tornou-se rapidamente um delito
menor. Temos uma carta em que o inquisidor de Aquileia convidava a um de seus
vigários absolver um penitente que lera livros proibidos, "aplicando-lhe [...], de acordo
com o estilo do Santo Ofício (no que tange ao foro exterior) alguma penitência salutar,
ou seja, que por quinze ou vinte dias, mais ou menos de acordo com a qualidade da
pessoa, reze todo dia de joelhos pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, e uma
vez o Credo", nada de diferente do que era dito aos penitentes normais em confissão,
com excecão talvez do acrescimo final: o penitente/réu devia rezar o Credo "refletindo
mormente sobre o seguinte artigo: 'Credo Sanctam Ecclesiam Catholicam', que por
meio do sumo Pontífice seu Chefe visível proibiu a leitura de tais livros"3.

A relação entre Inquisição e confissão teve uma peculiaridade italiana, que deve
ainda ser precisada em seus particulares, mas sobre a qual não podem haver dúvidas.
No que se refere à Inquisição, o contexto em que foi criado o Santo Ofício romano
caracterizou-se por um gravíssimo alarme quanto à propagação dos fermentos da Re.
forma na ltália. Mas superada a fase inicial, o tribunal romano modificou formas e

Z. Documenti Spe*anti alla Santa Inquisitione, op. cit., c. 186r e ss.


3. Idem, carta s.d. a dom Giacomo Candido, cc. n. n.

A Confissão
r
51i

características de sua intervenção. A extensão dos motivos pelos quais era possível ser
processado em uma gama muito ampla de materias - os sortilégios, as superstições, as
práticas matrimoniais, a falsa santidade e assim por diante - levou a uma situação em
que boa parte da população teve de passar periodicamente diante desse tribunal para
"desencargo de consciência", isto é, para poder obter a absolvição do confessor. Um
uso tão extenso do tribunal promoveu comportamentos que da agressiva simulacão e
dissimulação irticial (ou "nicodemismo") passaram à aquiescência, ao fingimento e ao
conformismo. Quem se via às voltas com esse tribunal deparava-se coín uma exigência
fundamental da lnquisição, a do abandono das próprias convicções para substituí.las
pela aceitação de uma delegação total à Igreja, entendida como corporação de clérigos,
ì
"Credo quod credit sancta Mater Ecclesia".
No que se refere à confissão, a transformação do confessor em "pai espiritual"
e o uso da "coníissão geral" foram destinados a oferecer um auxílio para a elaboração
de um ltlnerai-iõGãlvtdìual rumo à santidade. Disso resultou uma forte dependência
afetiva e intelectual do confessor. O projeto de ascensão à perfeição da santidade,
que nos séculos anteriores fora perseguido atraves da escolha da vida monástica, foi
laicizado e colocado ao alcance de todos, ate dos mais humildes e ignorantes, até das
mulheres. Grandes energias'foram investidas na tentativa de manter sob controle a
população feminina encerrada nos mosteiros, sob as normas de uma rigorosa clausura:
a elaboracão de um modelo de santidade feminina precisou levar em conta ingredientes
tbrnecidos pela tradição - visões, revelações, substituição do alimento pela Eucaristia -
mas foi, de qualquer modo, uma das maneiras com que se tentou regulamentar uma
populacão feminina que se mantinha fora do mercado matrimonial. O florescimento
extraordinário do fenômeno da "falsa" ou "simulada santidade" é parte integrante
de um mesmo panorama, juntamente com os fenômenos da bruxaria e da possessão
Jemoníaca. Também nesse caso, os instrumentos de intervenção foram variados, mas
o resultado foi favorável à confissão e aos módulos cautos e pastorais da estratégia
inquisitorial, ao mesmo tempo em que tiveram que ser descartados os mecanismos
clamorosos dos processos por bruxaria e das grandes campanhas exorcistas (que no
entanto foram frequentes em países religiosamente divididos, como a França, onde
revelaram todo seu potencial de propaganda). Eventualmente, foi justamente do fe:
chamento dos espaços para a santidade visionária e profética e do adensamento das
Ìigações entre diretor espiritual e mulheres que nasceram os dois maiores problemas
que a Igreja católica teve de enfrentar internamente no seculo XVII: a sollicítatio ad
turpia no confessionário e o surgimento de um misticismo que repudiava as práticas
exteriores e ameacava dissolver a rígida estrutura de controle tridentina.
Não se tratou de um processo de direção única. Se para a Inquisição houve a
tentativa - de Paulo IV e de Pio V - de conservar-lhe o caráter rigoroso de tribunal de
I
ioro exterior e de momento da pena e da vingança, para a confissão houve a tentativa
Jos bispos tridentinos - em primeiro lugar, Carlo Borromeo - de restaurar seu caráter
I comunitário, com a prática da penitência pública. Mas no final do século XVI torna.se
i
evidente que a linha vitoriosa e a que apontara para a construcão de uma relacão es-

'Acreditar com o Coração"

f,-
534

tritamente individual e vertical entre indivíduo e autoridade eclesiástica. A autoridade


eclesiástica, por outro lado, conseguiu manter-se nesse ínterim, rompendo os vínculos da
família, da comunidade e do estado, na medida em que se ofereceu como consoladora,
branda e paciente, capaz de guiar o indivíduo até a gloria excepcional da santidade, ate
a verdadeira individualidade heroica exaltada por modelos de santos e de missionários.

O cruzamento Confissão.lnquisição representou enfim um encontro obrigatório.


Apos a fase dura do conflito entre fés adversas, mediante execuções capitais e caçada
policial contra os dissidentes, a questão que retomou com prepotência o primeiro lugar
foi a de plantar nos coracões o vínculo da autoridade e a relação de obediência: questão
que não era nova na sociedade europeia, em parte suspensa, em parte aguçada pela luta
armada entre as fés em conflito. Na direção da sociedade, o problema que ocupou rapida-
mente o lugar da contestação herética foi o do decifrar o conteúdo real das consciências.
Uniformizados por lei os comportamentos exteriores, tratou-se de compreender o que
acontecia realmente no insondável mundo da consciência - ou, como se preferia dizer,
no coracão. Sobre o coração versavam as instruções do Santo Ofício: "Pergunte-lhe se
acreditou ser lícito praticar sortilegios heréticos, valer-se da obra do Demônio e invocá-
-lo, e se com o coraçdo ade"çiu ao Demônío"a. E sobre o coração insistiam os inquisidores
ao interrogar os acusados, "Se acreditou com o coração e aceitou com a vontade ser
lícito exercer as referidas práticas"5.
Os fatos e os compoÍtamentos eram ambíguos, indecifráveis: somente a abertura
da consciência podia revelar se, ao fazer esconjuros, ao rezar e ao blasfemar, na santidade
(visões e revelações), nas possessões demoníacas, ao receber os sacramentos - o batismo
(para os judeus e outros convertidos), o matrimônio (para os bígamos), a confissão, a
comunhão - se estava sendo sincero ou se estava simulando. A imagem da janela sobre o
coracão, que circulou com particular insistência no mundo das letras e das artes, revela a
necessidade de um poder ansioso para inculcar proíundamente no íntimo um vínculo de
obediência que ao mesmo tempo se depositava lentamente nos comportamentos6. "Ler nos
coracões o que só Deus pode ver", decifrar os significados escondidos nas consciências,
era algo que escapava aos poderes úadicionais. Mas o sonho que, segundo o melodrama
de Verdi, agitava as noites de Felipe Il foi parcialmente realizado justamente na epoca do
soberano habsburguês. Havia um espaço - a confissão - onde as consciências se abriam
como que diante de Deus. As confissões dos penitentes, transíormadas em autos proces-
suais, revelavam ao menos em parte os segredos das consciências aos olhos dos poderes
interessados: a rigorosa defesa, pelo menos como princípio, do segredo e da jurisdição
eclesiástica, não tira nada da inquietante modernidade do percurso que então se iniciava.

4, Carta do cardeal Millino ao Inquisidor de Pisa, 11 nov. 1621, na causa por sortilégios heréticos contra Lorenzo
Barbieri (ear, Misc. S. Uffizio, pasta 6, cc. n. n.).
5. Dep. de Antonio Catani de Pescia, l" ort. 1622 (idem, cc. n. n.).
6. Sobre o tema da "janela sobre o coração", cf. as sugestivâs investigações de Lina Bolzoni, DtStanza dcLktMemona.
Modp.llí btterari e lconografici nell'Età della Stampd, ToÌino, 1995, cap. IV: "Fra Corpo e Anima: Lo Statuto dele
Immagini", pp. 135 e ss.

A Confissão
r
535

Coerção e conviccão misturavam-se de modo inextricável: o célebre episódio da


autoacusação de Torquato Tâsso diante do inquisidor vem à mente toda vez que se tenra
captar a natureza complexa desses meandros da consciência individual e do sentido do
pecado sobre os quais se debrucaram então os especialistas do mundo eclesiástico. Mas
Tasso, antes de conhecer a fisionomia paternal desse tribunal, tivera tempo de ver em
acão seu funcionamento cruel e sanguinário na Mântua de 1568, quando o fedor de
carne humana queimada nas fogueiras empesteara o ar da cidade?. No breve período
de anos de sua geracão, a fisionomia da Inquisição tinha mudado.
Na mais antiga e importante estrutura de governo das coisas do espírito - a lgreja
cristã - a luta pela sobrevivência tinha enfatizado o "foro exterior" da Inquisição, com
o esplendor dos suplícios, os autos de fe e todo o fero, para subjugar os
"i*amentário
corpos e aterrorizar os povos. Mas no próprio momento do triunfo dessa instituicão,
revigorada e levada das diatribes teológicas da época medieval heretica ao fragor dos
conflitos políticos e estatais da idade moderna, a violência sobre os corpos descobriu que
não podia prescindir da decifração dos corações. O dilema ficção ou realidade assaftou
um a um todos os momentos da prática dos cristãos, tornados "fiéis" e "súditos": seja
rezando, seja blasfemando, a questão decisiva íoi sempre a da "intencão" que tinham.
Na própria coercão d" p.rõn"ltd"a. i"ai"iaú"l, õ ..'"t-õ tiõ6Gtú fôi;epïópõ;tó,
íoram os sujeitos que se perguntaram se o que experimentavam era verdadeiro ou íalso.
E apinharam por isso os espaços destinados ao governo das almas e ao discernimento
dos espíritos. O resultado foi aquele que vimos: cautela, atenção aos indícios exteriores
(o corpus delictí), investigação contínua dos indícios interiores (diários, cartas). Enfim,
a Inquisição tornou.se cada vez mais uma coisa só com a confissão. Era preciso saber,
antes de mais nada.
Mas era preciso tambem dar aos coraçÕes o que pediam: despertar neles o sen.
timento de Deus, a emoção e o fervor de uma fé que não se contentava mais em ser
vínculo social comunitário e não se identificava mais com regras comportamentais
antigas. Ao lado dos espacos destinados a audição - o tribunal de foro exterior e o de
foro interior - eram necessários instrumentos para falar aos corações de toda a coleti.
vidade, ocupar.lhe a inteligência e mover-lhe a vontade.
Para isso, foi inventado algo novo: a missão.

7. A presenca de Tasso era então habitual em Mântua, aonde ia encontrar o pai. No verão de 1567 viu*e obrigado
a permanecer ali mais tempo do que costumava deúdo a uma íebre que o manteve acamado, "doente de febre",
enquanto os dominicanos todos os dias prendiam alguém "como se quisessem aprisionar todo mundo" (carta
de Mântua de Luigi Rogna, de 15 de julho de 1567: Archiüo di stato di Manrova, Archiuío GonTaga,b.2577,
cc.2l7r-215r).

"Acreditar com o Coracão"


r

TERCEIRA PARTE
Os MTSSIoNARIoS
r

XXVIII
As xoSSAS INDIAS

1. STTVPSTNO LRNOINI E A DESCOBERTA DO "EXOTICO INTERIOR''

Em 1553, o jesuíta Silvestro Landini íoi enviado à Córsega. Em sua breve, mas intensa
carreira de jesuíta (nascera em Malgrate, junto a Sarzana, por volta de 1503 e morreria
justamente na Córsega em 15541), cumpria sua missão ao lado do bispo de Módena
Egidio Foscarari, por ocasião da visita pastoral desse último, realizada entre 1550 e
1551. A associação de jesuítas'ao bispo em visita comecava a tornapse um fato normal.
Na geografia religiosa italiana daquele tempo, Módena era a capital do movimento fi.
loprotestante. Landini tinha colaborado com o bispo no decorrer da visita, primeiro na
cidade, depois na montanha. Suas cartas a lnácio testemunham uma aguerrida vontade
de desaninhar e combater a heresia. Em Módena, ao ouvir o sermão feito diante do
bispo na catedral por ocasião da festa de Sao Geminiano, notou que o pregador evitara
propositalmente chamar de "santo" o padroeiro da cidade, Landini desconfiou logo
das simpatias "luteranas" do pregador (mais exatamente pelas ideias de Martin Butzer)
e aludiu a possíveis contatos com Bartolomeo Pergola, o pregador franciscano enviado
a Módena pelo cardeal Morone em 1544 e depois processado e condenado por here-
sia2. Têndo se deslocado posteriormente para Garfagnana, Landini contou a seu geral
episódios de duros confrontos com padres e poderosos locais por simpatias calvinistas
ou luteranas. Mas em suas cartas da montanha aflora cada vez mais não tanto a ameaca
da heresia quanto uma situacão de decadência e corrupção da vida social e da prática
cristã elementar: das blasfêmias às superstições, da ignorância aos ódios entre vizinhos
e parentes, vira-se obrigado a cuidar de uma grande quantidade de problemas que não
tinham relação com a luta contra a heresia. Suas cartas a Inácio permitem acompanhar
a evolução que o conduziu da cruzada teológica em cidades hostis ao ensinamento das
noções básicas do cristianismo e à prática de intervenções assistenciais, em socorro de
uma sociedade tão pobre e ignorante quanto bem receptiva em relacão a ele. Depois

1. Um breve períil de Landini em A. Guidetti S. I., Le Missioni Popolan.I Grandí Gesuiti, Milano, 1988, pp. 21-29.
2. Um períil de Pergola no verbete "Bartolomeo della Pergola", de A. Rotondó, em DBI, vol. 6, Roma, 1964,
pp.750-757. Acarta de Landini a Inácio é de 6 de fevereiro de 1551 (em MHSI, EpistolaeMixtae, exVariis Ewopae
Locis ab Anno 1537 ad 1556 Scnptae...,tt[1549.1552], Matriti, 1899, pp. 501-502).
540

das populacões das regiões apeninas entre Toscana e Emilia, Landini foi ao encontro
das populações insulares. Seu primeiro encontro ocorreu na ilha da Capraia, após uma
travessia dlficil e por vezes dramática; o mar em tempestade, o mastro da embarcação
despedaçado, as ondas "que saltavam na proa e na popa", a absolvição coletiva na expec.
tativa da morte certa. E depois, imprevista e já inesperada, a chegada à terra e o encontro
com uma população que parecia esperar dele a salvação da almar "E, ao adentrarmos
naquela ilha, todos se confessaram e comungaram; todas as inimizades desfizeram-se,
foram feitas boas esmolas, maridos e mulheres acertaram-se, e ensinou-se a doutrina
cristã". Era gente ignorante e pobre, as igrejas estavam em ruínas, o sacerdote era um
soldado, com mulher e filhos, que nem sequer sabia a fórmula da consagração. Eram
paupérrimos. Havia gente que, aos cinquenta anos,'"nunca se saciou de pão". Andavam
descalços, mesmo no inverno; dormiam "no chão nu com um filho à direita, outro à
esquerda e outro aos pés"3. Após uma breve estada em Capraia, Landini dirigiu.se à
Corsega: e ali a renovada experiência da pobreza, da ignorância e da boa disposição dos
habitantes das ilhas deu o impulso final à sua agressiva vontade de reconquista religiosat
ali tambem a realidade era a da fome e do medo, em meio a um mar infestado de piratas
turcos, onde a vida social e a prática religiosa pareciam muito distantes dos modelos
prescritos pelo cristianismo oficial, sem que por isso se tratasse de heresias. Era gente
cheia de "mil superstições, infinitas inimizades, ódios inveterados, homicídios por toda
parte, soberbas luciferinas universais, luxúrias sem fim"4; os homens "vão à floresta
lavrar todos os dias e providenciar o sustento para seus filhos e concubinas". Pois é,
concubinas: porque as mulheres acabaram quase sempÍe como escravas na Turquia e
os homens arranjavam outras; e ate os padres tinham concubinas. Os bispos, então,
estavam ausentes e angariavam elevadas enÍadas. Escrevia Landini, que "a grita é geral,
por que os bispos gozam a enffada, mas não querem cuidar de seus bispados, e deixam
perderem-se muitas almas e serem devoradas pelos demônios infernais?" Assim, sem
saber, o pregador antiluterano repetia as palawas de Lutero:

O bispos, como quereis prestar contas disso a Cristo, vós que deixastes o povo errar tão
vergonhosamente e, nem por um momento, cuidastes do vosso ofício? Que não vos puna o juízo
por issol Proibis uma espécie do sacramento e introduzis à forca vossas tradições humanas, mas não
perguntais se sabem o Padre Nosso, o Credo, os dez mandamentos, ou alguma palawa de Deus. Ai
de vós, ai de vós por toda a eternidadel5

Como Lutero durante a visita à Saxônia, Landini descobria que "o homem do
povo, principalmente nas aldeias, não conhece nada da doutrina cristã"6. "Não sabem o

3 Carta a Inácio, 16 mar. 1553, da Bastia, idem,lll (1553), Matriti, 1900, pp. 165.175.
4 Carta a Inácio, da Córsega, 7 íev. 1553, ídem, pp.115 e ss.
5 M. Lutero, "Enchiridion. I1 Piccolo Catechismo per Pastori e Predicatori Indotti", em Scritti Religiosi, org. de
V. Vinay, Bari, 1958, pp.439440.
Iden,p.439.

Os Missionários
>v
)

ilr

Padre Nosso, nem o Credo, nem o Decálogo", escrevera Lutero; e Landini escandalizara-
-seporque nas ilhas do Tirreno "muitos não sabiam o sinal da cruz e velhos não sabem
o Pater Noster, a Ave Maria"; e desconheciam a forma "não digo dos sete sacramentos
da igreja, mas do sacramento do altar".
Porem, nessâ gente ignoÍante, pobre e violenta o jesuíta viu uma promessa extraop
dinária: o retorno em conjunto da igreja primitiva e o do paraíso terÍestre. 'Apresenta-se
aqui o paraíso terrestre em muitas delícias de bens espirituais, apresenta.se a primitiva
lgreja em muita frequentação das coníissões e das comunhões todos os dias"7. É ,r-"
associação na qual vale a pena deter-se, a ideia de que a Igreja primitiva era caracterizada
pelo fervor e pela frequência da comunhão eucarística pertencia à tradição dos refor.
madores católicos e dos "espirituais" italianos. Era urnnresultado da crise da ordenação
medieval da sociedade de acordo com os diferentes estados que reservara a comunhão
frequente ao clero e ao estado da perfeição monástica: agora, de muitas partes, avançava
a ideia de que a verdadeira Igreja era caracterizada por uma férvida devoção eucarística
dos leigos, com a comunhão frequente. E, contra os numerosos adversários dessa prática,
afirmou-se que ela era típica justamente da igreja primitiva e que só o arrefecimento e
a deformacão do fervor cristão original tinham levado ao ritmo anual de confissões e
comunhões. Ideias desse tipo foram difundidas por vários escritores de assuntos espi.
rituais, como Tullio Crispoldis e muitos outros autores; e foram praticadas em vários
cenáculos e grupos de devotose. Os jesuítas não fizeram outra coisa senão recolher e
aproprianse de uma tendência disseminada.
Mas a ideia do Paraíso terrestre estava ligada a outra coisa. A geografia do imagi.
I nário medieval havia construído variadas íantasias sobre esse lugar bíblico, colocando.o
Ì

num mundo insular. A descoberta da America enxertou nesse tronco uma vigorosa
retomada de mitos e fantasias. Na raiz disso, havia a noção da bondade natural de uma
humanidade que não conhecia o cristianismo, mas que demonstrava boa disposição a
acolhê-lo. De onde vinha a Landini a disposição de apropriar-se dessas representações e
fácil imaginar, no fragor das discussões teológicas modenenses, ele mesmo tinha escrito
que não lia "outro liwo" a não ser as cartas das Índiaslo. Era ali que via representado seu
modelo, nas histórias contadas pelos irmãos da Companhia que atuavam então junto
às populações do Extremo Oriente. Eram cartas que lhe davam "alegria [...ì e muita
confusão [...] vendo-me tão longe em comparação a essas santíssimas almas a serviço
de S. Majestade". A imagem usada por Landini era prenhe de alusões, encobertas para
nós mas transparentes para seus leitores. Era uma referência à passagem de Isaías 60,
8-9: "Quem são estes que vêm voando como nuvens e como pombas para seus pombais?

7. Carta de 16 de março supracitada à p. 198.


8. No opúsculo Alcune Intenogationi, impresso em Vetona em 1540; e, posteriormente, em muitos outtos escritos.
9. É exemplar a esse propósito a pesquisa de Gabriella Zarri, "Il Carteggio tra Don Leone Bartolini e un Gruppo
di Gentildonne Bolognesi negli Anni del Concilio di Trento (1545-1563)" , em Archiuio ltalíano per la Sroria
deLlt Piea, vol. VII, Roma, 1976, pp. 337-885; vejam.se em part. pp.459461..
10. Carta a Inácio, de Módena, 16 maio 1550, em MHSI, Epistolae Míxtde exVariis Europae Locís ab Anno 1537 ad
1556 Surptae, v (1555-1556), Matriti, 1901, pp. ó98-702.

\
\ As nossas Índias
-*:
í

j42

Porque certamente as ilhas me aguardarão, e em primeiro lugar os navios de Társis, para


reconduzir teus filhos de longe, e com eles sua prata e seu ouro, para o nome do Senhor
teu Deus". Esse voo angelico de mensageiros divinos esperados pelas ilhas para trazerem
de lá ouro e povos para a glória do Deus europeu acendera muitas imaginações desde
que tinham chegado à Europa notícias de povos e metais preciosos de facll conquista:
as ilhas biblicas e as do mar Oceano, as pombas e Colombo, o ouro e a prata, a espera
de gente nova desejosa de adorar o verdadeiro Deus, compunham uma rede de signifi-
cados simbólicos rica em atrativosll. De Colombo em diante, muitos disputaram entre
si os títulos para realização dessa profecia. Enquanto Landini escrevia, era justamente
a candidatura dos jesuítas que avançava decididamente. Em 1567, um escritor católico
dos Países Baixos, J. F. Lumnius, recordou distraidamente a obra missionária de domini-
canos e franciscanos para concluir que somente os jesuítas eram os verdadeiros "anjos"
profetizados por Isaías12. A força dessa candidatura residia no uso que fizeram os jesuítas
da propaganda: Lumnius tambem lia os volumes de cartas das Índias que a Companhia
mandava publicar e divulgar. Mas Lumnius tinha da velha Europa uma imagem total-
mente negativa, como de um continente perdido, e via aproximar-se o juízo final entre
os sinistros fulgores da rebeliao dos Países Baixos. Landini, por sua vez, tirara dessas
mesmas leituras uma conblusão diferente, que expôs em uma carta a Inácio:

Nunca experimentei terra mais necessitada das coisas do Senhor do que esta. É verdade o que
me escreveu o P. Mestre Polanco, que essa ilha será minha Índia, meritória como aquela do preste
João, porque aqui a ignorância de Deus e imensall.

A descrição continuava, com uma avalanche de coisas terríveis e extraordinárias.


Mas detenhamo.nos na imagem usada por Landini para apreender e compreender toda
aquela nova e inaudita realidade, "Essa ilha será minha Índia". É ,-" imagem impor-
tante: tinham sido descobertos os "selvagens internos".

dera a descobertal Como para todo antropólogo, certamente a experiên-


Como se
cia em campo deve ter tido um peso significativo. As diferenças culturais internas na
Europa eram de tal forma numerosas e fortes a ponto de impor'se à atenção de quem
quer que fosse. Mas para captá-las era necessário um olhar afastado, um ponto de vista

11. A passagem encontra.se registrada em c. 35rv do Libro de las Profecías de Col.ombo (cí. C. Columbus, Book of
Prophccíes,org. de Kay Brigham, Barcelona, 1991, pp. 92-94). Para a tradição do século XM, veja-se do autor
deste volume "America e Apocalisse. Note sulla 'Conquista Spiriruale' del Nuovo Mondo", Criricc Storica, XllI,
1976, pp. 1-76. Outros mitos íamosos como o de Eldorado (cf. Juan Gil, Miti della Scoperra, trad. it. Milano,
1992), mesmo tendo ingredientes básicos semelhantes na pÍomessa de riqueza e de conquistas, são desprovi-
dos do elemento da profecia e da ligação com a ideia de missão. Essa madição não é tratada no estudo de M.
Bussagli, Storia degLi Angeh, Milano, 1991.
t2. J. F. Lumnius, De Extremo Dei ludicio et Indorum Vocatione, Anwerpiae, apud Tilenium Brechtanum, 15ó7
(reimpressa em Veneza, junto a Domenico "de Farris", 1569, com o título: DeVicinitate Extremí ludicii Dei\.
13. MHSI, EpisÍoÌde Mixtae, excVanisEuropaeLocís ab Anno 1537 ad 1556 Scríptae..., U, 1553, Matriti, 1900, pp. 114.
-119; em part. pp. 115-116.

t)s Missionários
r
543

distante. Aos observadores internos faltavam os termos de comparacão: o único utili-


zável foi, durante muito tempo, o da diferenca de posição na escala das criaturas e na
ordem de idade. Os camponeses eram vistos como animais, ou como crianças: "vivem
como os bons animais domésticos e os porcos irracionais", dissera Lutero a respeito
dos camponeses da Saxônia. Assim, a diferença de cultura era vista como diferenca de
natureza. Somente com o aparecimento dos silvícolas americanos no horizonte surgiu
a noção da diferença cultural. As primeiras tímidas analogias entre os camponeses
europeus e os silvícolas das Índias apareceram justamente nos ambientes mais ligados
aos problemas da conquista, os espanhóis: o grande dominicano espanhol Francisco de
Vitoria, por exemplo, ensejou uma comparação do gênero para sustentar que no nível
mais baixo da ignorância - o dos camponeses castelhaÀos e dos índios americanos -
existia sempre a possibilidade de decorar os elementos básicos da fé cristã. A compa.
ração entre camponeses espanhóis e silvícolas da América servia para rebater aqueles
que sobre a barbárie dos selvagens baseavam a teoria de que se tratava de "escravos
por natureza"14. Com esse paralelismo concordavam inquisidores e bispos: Ludovico
de Cotes, bispo de Ampurias, na Sardenha, e inquisidor para toda a ilha, observava,
em 1546, que era mais fácil "íormar lna fe] os indígenas do Peru do que esses outros
lsardos]", pois no caso dos índios tratava-se apenas de ensinar (docere), ao passo que no
caso dos camponeses da Sardenha conhecimentos equivocados deviam ser eliminados
(dedocere)ts.Era uma comparação que partia de juízos muito negativos: na graduação
dos níveis de "civilizacão" que então comecaram a ser medidos, camponeses e silvícolas
encontravam-se no grau zero. Mas continuava sendo, mesmo assim, uma avaliacão que
mantinha essas figuras dentro da nocão de humanidade. Assim, enquanto em torno do
selvagem da America florescia a mitologia antiga da idade de ouro, o caso da imagem do
camponês resultou em uma parábola positiva. Justamente enquanto Vitoria propunha
sua significativa analogia entre camponeses e selvagens, o bispo franciscano Antonio
de Guevara mostrava em um livro de sua autoria um camponês de aspecto animalesco
e monstruoso - "um animal em forma humana" - que revelava uma inteligência e uma
eloquência extraordinárias: a obra de Guevara obteve um estrondoso sucesso editorial
e disseminou-se particularmente na ltália16. Ali, devia encontrar leitores nos ambientes
mais disparatados, até quando Giulio Cesare Croce apoderou-se do tema, com seu
popularíssimo Bertoldo. Em suma, como foi notado, o aldeão de Guevara "inaugura
um novo curso, modificando, com uma drástica restauração, uma imagem que a Idade
Média tardia fizera circular com desenvolta frequência, a do aldeão ímpio e bestial"r?.

14. Cf.AnthonyPagden, LaCadutadell'UomoNaturale..lilndianod'AmericaelzOaginidcll'EtnolngtaComparata(The


FalL of NaturaLMan, 1987\ trad. it. Torino, 1989, p. 114.
15. Cf. Raimondo Turtas, "Missioni Popolari in Sardegna tra '500 e 'ó00", Rivisra di Stoia della Chiesa in halia,
XLN, 1990, pp.369412; em part. p. 370.
16 Trata*e do L,bro Llamado Relox de Pnncipes o Lìbro Aureo deL Emperador Marco Aurelio, publicado por Guevara
em 1531 e mais tarde teimpresso e ttaduzido muitas vezes.
t7 A observação é de Piero Camporesi, "Mosttuosità e Sapienza del Villano", em Agostino Gallo ne\Ia Cukura del
Cinquecento, anais do congÌesso, org. de M. Pegrari, Brescia, 1988, pp. 193-714; em part. p. 197.

t
As nossas Índias
\
A
Fï--:

544

Por trás dos aspectos de rusticidade e de bestialidade era redescoberta então uma hu-
manidade tão mais digna de interesse quanto mais necessário revelava-se o domínio
sobre ela. Selvagens europeus e selvagens internos eram destinados a percorrer juntos
um longo trecho de estrada, ao menos no que se refere aos modos de atenção de que
foram objeto por parte das classes dominantes europeias: e nisso a religião desempenhou
um importante papel.
A respeito de quem fora o primeiro a estabelecer essa ligaçao entre camponeses e
índios da America, Landini dizia algo diferente, se Francisco de Vitoria tinha aproxima.
do a humanidade remota da mais recente, o jesuíta {azia o movimento complementar
e oposto, mostrando que era possível enxergar os camponeses e os pescadores das ilhas
do Tirreno corRo uma realidade culturalmente tãà remota e exotica como a dos povos
selvagens. Era um processo de distanciamento intelectual daquilo que estava próximo
que conferia ao missionário os olhos de um antropologo. Mas ao mesmo tempo restava
a iluminação dessa analogia, que permitia lançar sobre as plebes camponesas um olhar
curioso e suscitar uma vontade de conquista religiosa em relação a eles.
Landini queria dizer muitas coisas com essa expressão: antes de mais nada, que
teria preferido ir para as Índias verdadeiras, fazer as emocionantes experiências sobre as
quais escreviam seus confrades mais afortunados; mas queria dizer tambem que tinha
descoberto ali, a pouca distância do centro romano da cristandade, povos que, mes-
mo estando muito distantes do conhecimento da "verdadeira" religião, não the eram
hostis como os hereges e os infieis, mas estavam, como os "pagãos" do Novo Mundo,
bem dispostos a acolhê-la. Era uma verdadeira descoberta e Landini foi o primeiro a
surpreender-se com isso.
Mas não era farinha de seu saco. Era o fruto de uma estrategia que fora concebida
na cúpula da Companhia, por quem detinha, de Roma, os fios das comunicações inter-
nas: o secretário Juan de Polanco. Fora ele a ditar as regras para a escrita e circulacão
das cartas: um sistema fundamental, graças ao qual um grupo restrito e disperso pôde
alcançar o duplo objetivo de manter uma forte coesão interna e nutrir um viveiro de
devotos no exterior. Era justamente ele quem fazia chegar a Landini cópia das cartas das
Índias nas quais o missionário de Sarzana encontrara uma espécie de espelho distante
onde refletir o que estava fazendo, e foi ele quem, ao escrever a Landini que the pedia
"com rogos insistentes a missão da Índia", sugeriu-lhe habilmente uma ideia capaz de
consolá.lo e de incitálo. No final da carta de Inácio que lhe enviava para a Córsega,
acrescentou uma anotação do seguinte teor: "Seguisse com toda a generosidade de seu
zelo, pois certamente a Córsega seria para ele Índia, Moluco e Japão, onde, atuando e
sofrendo, satisfaria plenamente seu desejo"18.

18. A carta íoi perdida; a citação foi retirada da Stana della Ctmpagnia de Daniello Bartoli e soa ligeiramente diíerente
no que se refere à versão que dela dá Polanco no Chronicon: "[...] Ut verum esse experiretur, quod Roma scriptum
ipsi fuent, Indiam et Aeúiopiam (ad quam missionem P. Sylvester erat propensus) in Corsica esse inventurum"
fluan de Polanco, Vín I$útíí Iniolrc et Rer'un Socieratís Jesu Hìstoria, t. 3, 1553-1554, Matriti, 1895, p. 86, n. 157,
anot. I; idem, o trecho de Batoll). Tânto Polanco como Bartoli trabalhavam com documentos originais do arquivo
da Companhia. Aversão reproduzida por Polanco soa mais próxima do original perdido: a alusão à Etiópia referiane

Os Missionários
r
i45

E nesses mesmos dias, Inácio tornava seu e generalizava esse conceito: "Se nos
comparamos com aqueles nossos irmãos da Índia - escreveu Inácio em uma carta cir-
cular aos jesuítas da Europa - [...i não me parece que seja demasiadamente duro nosso
sofrimento. Nós também podemos ímaginar que estamos em nossas índias, que se encontr&m
por toda parte"re.
No espaço de poucos anos, a ideia acabou se impondo: da Espanha, terra de
origem da Companhia, Inácio recebeu em 1556 uma carta de Cristovão Rodriguez,
sugerindo enviar jesuítas parâ converter os moriscos, pois assim, certamente, outras
Índias seriam abertas lá20. Ainda em 1556, Diego Laínez escreveu aos jesuítas que
atuavam em Loreto como coníessores, convidando-os a pensar que ali eram as Índias
Jeles2l. Depois, a expressão tornou-se recorrente, p.otr.rÊial. Na Sardenha, em 1560,
os jesuítas falavam em "essas no'uas Í.rdi"s sardas"22. A "verdadeira Índia" era a Sicília,
segundo os jesuítas de Messina; e do Abruzzo o padre Dionísio Vazquez escreveu que
nas montanhas daquela região "havemos uma Índia em ignorância e necessidade de
auxílio espiritual"23.
A ascensão missionária acontecia por efeito de uma consideração, nos documen-
ros e através das cartas, dos empreendimentos realizados nas Índias. A partir disso, a
Jireção jesuítica fazia surgir a comparação entre as Índias longínquas e as outras "vinhas
Jo Senhor". Os próprios missionários pediam insistentemente ao geral da Companhia
os relatórios das Índias para fomentar o impulso apostólico que os movia24. Rapida'
mente, no decorrer de poucos anos, multiplicam-se os sinais do sucesso dessa imagem.
.{. busca da santidade teve, então, um início normal, graças ao impulso missionário: as

vidas dos santos canonizados mais celebres daquela epoca - são Filippo Neri, são Luís
Gonzaga - atestam isso. Mas as historias deles são apenas a ponta emergente de uma
experiência que deve ter sido familiar a muitos. Justamente nessa aspiracão à missão e
ao martírio apostolico em terras distantes inseriu-se o apelo dos guias espirituais para
aruar nos lugares próximos e farniliares, e aqui a representação jesuítica do velho mun-

ao desejo expresso por Landini de dirigir+e ao país do "Prete Gianni" e depois foi retomada na carta de resposta do
próprio Landini.
19 Carta "alumnis Societatis lesu in diversis Europae locis", 24 de2.1552 (Monumentalgnatiana, s. I, Sancd Ìgnatii
Epistolae et Instructiones, Matriti, 1906, pp. 564.565). O griío é do autor deste volume. A catta de lnácio é
certamente posterior àquela por meio da qual Landini tinha sido encarregado da "missão" na Córsega, visto
que a viagem de Landini de Gênova à Córsega íora iniciada em 16 de novembro de 1552 (cí. o relatório de
Landini de 16 de março de 1553, supracitado em nota à p. 198).
Itì. 'Abriría el Sefror aqui otras Indias, convertiendo á tanta multitud de ánimas de moriscos, que, según sus

muestras y obras, se van ai iníierno" (Litterae Quadnmestres, V, p. 296).


MHSI, Lainii Monumentd, Epistolte,l, p. 451.
Turtas, Missioni Popolari in Sardegnn, op. cit., p. 369.
Os dois testemunhos são de 1568 e fotam mencionados por P. TacchiVenturi, S. I., Storia d.ella Compagnia di
Gesüínhalia,I, Ì, Roma, 1950, pp.374-325 e367.
tJ. Em novembro de 1569, o português Francisco Antonio, como assinala Turtas (Missioni Popolai in Sardzgna,
op. cit.,p.3ó9 nota) pedia ao geral Laínez as "cartas de India [...] porque todo mueve mucho a esta gente tan
indica en las cosas de Dios y de la Compafria como los Japoneses".
546

do europeu como uma outra Índia fixou-se rapidamente, com extraordinária eficácia.
Há confirmação disso em um episódio da vida de são Filippo Neri, ocorrido por volta
de 1556. Parece que são Filippo Neri, tomado pelo desejo de dirigir-se às Índias para
enfrentar o martírio pela fé, recorria ao conselho de um religioso com fama de profeta,
recebendo a seguinte resposta: "que as Índias eram Roma"25; ttatavâ-se, ao que parece,
de um religioso cistercense. Mas, ao mesmo tempo, é certo que essa vocação missionária
fora amadurecida pela leitura dos relatorios dos jesuítas das Índias, uma leitura que era
realizada "à noite, após a oração mental, com a alma completamente exaltada"26. De
todo modo, o episodio serve para demonstrar como a direção jesuítica estabelecia-se
sobre um terreno no qual o desejo, a necessidade, a fantasia da pregação apostólica
estavam presentes e amplamente disseminados, fàmentados que eram pela força suges-
tiva das cartas das Índias impressas e postas em circulação pelos jesuítas: o efeito delas
continuou por muito tempo a produzirvocações missionárias. Os jovens fugiam de casa,
perseguindo sonhos de gloria - então como sempre. Mas então tratava-se de gloria dos
céus, a ser conquistada no campo das missões2?. Mesmo quando, seculos mais tarde,
o peso de uma burocracia sufocante e de angústias de todo tipo tornara a carreira de
missionário cinzenta e opressiva, as cartas dos países extraeuropeus publicadas pelos
jesuítas continuaram â suscitar entusiasmos extraordinários, aliás, verdadeiros "furo-
res", levando as íantasias juvenis a sonhar com povos selvagens a serem convertidos2s.
Menos simples era direcionar essas energias para o interior, substituir o exotismo
conquistador por uma disponibilidade para atuar nos próprios países com o mesmo
ardor e com a mesma disposição para o novo e o insólito. Mas havia quem se colocasse
exatamente esse problema: e, ao {azê-lo, submetia os impulsos de entusiasmo a um de-
sígnio diferente, menos simples. Voltar ao proprio país e olhá-lo com olhos distantes,
foi essa a estrategia de Polanco ao guiar os homens que, de sua sede romana, estudavam
as cartas do mundo inteiro e dividiam entre si as províncias a conquistar. Provas dessa
estrategia não faltam. O jesuíta francês, padre Edmond Auger, em um dialogo escrito
em 1556, relatou como os missionários eram escolhidos e enviados. Sua narração evoca
a seguinte cena: um grupo de jesuítas reunidos na residência de campo, nos arredores
das termas de Caracalla, em Roma, examina uma série de mapas geográficos. Há mapas
das Índias e das ilhas do Japão (dali chegavam notícias das conversões realizadas por
Francisco Xavier e por outros jesuítas); há um mapa da Etiopia, "país do Preste João,

25. L. Ponnelle e L. Bordet, San Filippo Neri e In Società Romana del suo Tempo, Roma, 1931, pp. 158-159.
26. Idem. As cattas dos jesuítas das indias ocupavam um "lugar de honra" entre as leihrras costumeiras no Oratório (cf.

A. Cistellini, Sdn Filippo Neíí. LC)ratuto ela üngregalonz (hatanana. Stona e Spíntualirri, Btescia, 1989, vol. Ì, p. 104).

27. Nesse sentido, é exemplar a biografia de Cristoíoro Castelli, fugido de Palermo em 1630 para tornar-se mis-
sionário: a respeito dele e do contexto de tais histórias veja-se a sugestiva pesquisa de Bernadette Majorana,
I-a Gloriosa Impresa. Storia e Immaglni di un Viaggjo Secent€sco' Palermo' 1990.
28. Sobre o ambiente mortiíicante dos colégios missionários de Roma e de Nápoles cf. Giacomo Di Fiore, lzttere
di Missionari dallaCina(1761.1775), Napoli, 1995. Quem sentiu "une espèce de fureur" missionário ao ler as
"lettres édiíiantes et curieuses" íoi Bernardin de Saint-Pierre: cf. Michèle Duchet, Anthropol.ogle ethísroire au
síècle des Lumières, Paris, 1971, p. 76.

Os Missionários
7

547

aonde - escreve Auger - o papa Júlio III havia mandado... um bom número dos nossos"
(e Landini tinha comparado justamente sua Índia da Córsega ao país do Preste João).
Há ate mapas da Alemanha, de onde tinham acabado de regressar Laínez e Salmerón.
Todo esse aparato de mapas e considerável à epoca: a Companhia fez sempre uma
grande ostentação de imagens do mundo, em sua ffadução pictórica e nos emblemas
em que resumiu e representou suas glórias. Os triunfos pintados na Igreja de Jesus em
Roma e os emblemas que adornam o Imago primi saeculi - publicação concebida para as
celebracões do primeiro centenário da Companhia - mostram com evidência palpável
o cenário mundial em que se passava a ação dos jesuítas: mapas-múndi, mapas, povos
de diferentes costumes. E no entanto, e notável que desde a metade dos seculo XVI esse
pequeno grupo de discípulos de Inácio tivesse o habito à" *.rru.ur e distribuir suas
forças em grandes mapas das regiões do mundo inteiro.
Diante desses cenários mundiais, Padre Auger tinha sido affaído por um mapa da
França e, ao examiná-lo, não pudera evitar um suspiro. A coisa não escapara a Polanco
que lhe dissera sorrindo: "Pois bem, mestre Edmond, [...Ì se o vosso decoro não conflita
com o vosso coração, parece-me que vós já desejaríeis estar nesse país, cujo desenho no
mapa examinais com olhos tão comovidos". E, ao ver Auger enrubescer, Polanco tinha
acrescentado: "Não deveis enrubescer por isso, meu amigo, nem nenhum de nós deve
por isso nutrir aversão por vós nem deixar de estimá-lo. O amor natural e honesto pela
pátria não pode ser ocultado nem apagado". E comunicara-lhe a vontade do geral de
mandálo justamente a essa parte do mundo para "cultivar a vinha do Senhor"ze. Tam.
bem aqui, portanto, como no caso de Landini, é evidente a dinâmica dessas escolhas
e a estrategia do secretário da Companhia: aos ânimos inflamados pelo desejo de ir às
Índias, propõe-se retornar ao proprio país para ali desenvolver o trabalho missionário.
E uma verdadeira substituição de obleto.
Os dois movimentos - para o exterior e para o interior - originavam-se, portan.
to, concomitantemente, aliás, originavam-se um a partir do outror porque projetados
para distâncias exóticas, os missionários etam capazes de lancar imagens de mundos
distantes sobre os mais familiares, afastando-os e examinando-os com olhos distancia.
dos. Na longa história das pulsões expansivas do cristianismo, a descoberta das Índias
interiores íoi certamente um momento de mudanca de curso, e a mudanca aconteceu
na Itália, na metade do seculo XVI30.

29 A conversa inédita do padre Auger é citada e reproduzida por F. Dainville , La géographíe dts humanístes, Parts,

1940, pp. 104 e ss.


l0 Não na Franca no sécu1o XWI, como aíirmava Louis Perouas, "Missions intérieures et missions extérieures fran-
çaises durant les premières décennies du XMI siècle", em Porolz et mission, n.77 , 15 out. 1964, pp. 644ó59. No
século XVll, a ligação entre missões internas e eÍernas já é um fato consolidado, cf. Marc Venard, 'Vos Indes
sont ici". Missions lointaines ou,/et missions intérieures dans le catholicisme français de la première moitié du
XVIII siècle", em Les rér,eils míssíonnaires en France du Moyn Age à nos jours (XÌÌ-XX siêci€t, Paris, 1981, pp. 8389.
Algo semelhante à situaçáo italiana ocorreu na Espanha da segunda metade do sécu1o XM, em relaçáo às mino
rias muçulmanas. Mas o íenômeno é pouco estudado, üsto que o orgulho nacionalista de certa historiografia
tradicional ibérica preferiu apresentaÍ a imagem de uma Espanha totalmente católica e conquistadora, além

fu nossas lndias
Fl* 1

548

2. Aposrolos E MISSIoNÁRTos

A pregação "à apostólica" foi um fenômeno disseminado na Itália do início do


século XVI. Eram "eremitas", pregadores irregulares, que se apresentavam de im.
proviso nas pracas gritando palavras ameaçadoras contÍa as culpas dos cristãos e
anunciando terríveis vinganças divinas. As descrições falam em homens vestidos
com "o hablto de são João Batista"3l. Não se tratou de casos individuais isolados. A
vontade de uma pregação apostólica (sem "aderecos, nem novelas, poesia, histórias
e outras vãs, superfluas, curiosas, inúteis e mais perniciosas ciências") tomou forma
de regra nas constituicões da nova ordem dos Capuchinhos32. As crônicas da nova
Ordem relatam as aparicões imprevistas desses èstranhos pregadores que saíam dos
bosques e apresentavam-se com seu vestuário singular, evocando as figuras de são
João Batista que adornavam os batisterios da época. Era o produto de um clima de
perturbação, de confusas esperancas de renovacão, de expectativas marcadas por
profecias obscuras. Chamar de volta à simplicidade do Evangelho, converter os
pecadoresr são esses os temas da pregação irregular então disseminada.
Estilo apostólico, halo profético, esperanças de renovacão encontram-se na primeira
pregacão do cristianismo às populações extraeuropeias. Foram sobretudo os franciscanos a
interpretar em termos proféticos e apocalípticos o convite de Cortes para irem ao Mexico
conquistado: o envio de doze írades por parte de frei Francisco de Quif,ones em 1523 foi
concebido como imagem de uma renovada era apostólica. Coube também aos franciscanos,
em particular, a tarefa de narrar as conquistas religiosas por meio da impressão de cartas
e opúsculos em que se sobrepunham os progressos do Evangelho e a informação etnográ.
fica. A Ordem franciscana difundiu em suas províncias - e particularmente na ltália - os
primeiros relatos sobre uma pregação de arrebatadores sucessos. Assim, a primeira forma
assumida pela conquista religiosa do Novo Mundo foi uma forma antiga, pois concenffada
na ideia da conversão como batismo. Os relatos dos franciscanos foram organizados em
torno dos vitoriosos boletins dos progressos do batismo dos índios da America.
IJma carta de frei Francesco dal Busco (Boscol) de Faenza, observante, endereçada
a certo messer Niccolò Barbauto, foi expedida da província de Michoacán em 1" de junho
de 153133. Trata-se de um documento vigoroso pelas histórias que relata e pelo tipo de

de projetada para o exteïior (é típico o texto de l-ázaro de Aspurz, oFM Cap., "[a Idea Misional Fuera de la
Península Ibérica en los Siglos XM y XVII", em Missionalia Híspanica, t, 1944, pp. 495.515).
3t. Assim é dito em uma descrição coeva do eremita que pregou em Orvieto em março de 1528: cí. Ottavia Niccoli,
Profeti e Popolo nell'balia del Rinascimento, Bari, 1987, p. 151.
32. O trecho citado é dos decretos de 1536; cf. Arsenio d'Ascoli, oFM Cap., It Predicazione deì Cappucciní nel
Cinquecento in kaLia, Loreto, 1956, p. 131. Uma vasta documentacào enconrra-se reunida agora em Ì Frati
Cappuccíni. Documentí e Testimonianze del Pnmo Secolo, org. de Costanzo Cargnoni, Roma, 1991.
A catta encontra-se consetvada na Biblioteca Estense e foi publicada
à época por Berchet (naquela Raccotta
CoLombiana queíoi o digno monumento erguido pela ltália unida a Cristóvão Coiombo, por ocasião do IV
centenáriodadescobertadaAmérica).ElapodeserlidaemNroooMondo, gliltaLiani,1492.1565,org.dePaolo
Collo e Pier Luigi Crovetto, Torino, 1991, pp.413415.

Os Missionários

'.\
r
549

observador que delineia: as adversidades da viagem, a "fortuna" marítima; a posição


física em que no momento ele está em relação a Faenza que deixou para trás ("Esta
terra e antípoda à nossa; nós temos os pes contra os vossos, e quando o sol nasce para
nos, põe-se para vos"); a semelhança do clima, temperado aqui como 1á; as analogias ou
pelo menos os elementos conhecidos que servem para descrever o desconhecido (como
esta: "suas casas não têm nem portas nem janelas, mas são como pórticos"); a diferença
dos animais e das plantas, "Todas as outras coisas são variadas; nao há nenhuma que
seja da espécie das nossas, nem animais, nem pássaros domesticos ou selvagens, nem
plantas, nem árvores". São diferentes sobretudo as religiões, ou melhor, como diz frei
Francesco, "a nossa fé" da deles - tão diferentes que quem pudesse ver a deles não
poderia senão louvar "a nossa". Segue uma descrição sinètica dos sacrifícios humanos
e da antropofagia somados e misturados com outras coisas destinadas a fazer tremer os
leitores de Faenza (como o uso de morte ritual de uma mulher, aliás de uma "fêmea", a
mais amada, em sinal de luto por um chefe que acabou de morrer). Fala-se ali no culto
dos ídolos, nas mortes rituais e na antropofagia; e também do uso de embriagar-se com
"um vinho feito de ervas, muito obscuro", cujos efeitos duravam três ou quatro dias.
"Eram feitas muitas outras coisas crueis, feias e imundas. Quis vos escrever sobre isso
para a vossa consolação" (ou seja, entenda-se, para que estejais contentes em saber que
a vossa fé e a verdadeira).
Em nome dessa fé, ãiz ftei Francesco, está contente por teï ido ate 1á, "não pre-
têria ter estado lficadoì em mil mundos a ter vindo para essa região". Há motivos para
estar contente: "todas as dificuldades são antes consolação. ]á começamos a pregar na
língua deles e, com a graça de Deus, já batizamos grande multidao de gente, homens e
mulheres de todas as condições, para que Deus seja louvado, e ensinamo-lhes o pai-nosso
e a ave-maria". No entanto, a consolação diminui no final da carta, ante a consideração
das dificuldades, as pessoas a serem convertidas são tantas, os írades apenas sessenta e se
tbssem vinte mil tambem não seriam suficientes, haveria apenas dois ou três para cada
'povo que tem governo particular". Essa gente não se separa facilmente de seus deuses,
'ainda encontram,se muitos que assim fazem lou seja, praticam os ritos sanguinários],
mas no presente de modo secreto". Nessa data de 1531, tanta consciência do recurso à
simulacão é notável; somente em 1539, com o processo contra dom Carlos de Têxcoco,
a coisa viria a ser admitida oficialmente.
Outro franciscano, cujo relato foi imediatamente publicado - o bolonhês Fran-
cesco (no século Antonio Allé) - tambem parece consciente desse recurso à simulação
e descreve.o de um modo que merece ser lido. Segundo seu relato, os sacerdotes dos
idolos teriam se reunido e decidido o seguinte: "Facamos então ao nosso Deus uma
capela ou um oratório, bem escondido: em cima dele fincaremos uma cruz e fingiremos
adorá-la, mas enquanto isso adoraremos nosso Deus". A simulação teria sido descoberta
Jepois, e na epoca do relato de frei Francesco tudo parece correr bem. Nesses anos, a
convocação do Concílio levou frei Juan de Zumarraga, primeiro arcebispo da Cidade do
\{exico, a mandar a Roma seus procuradores; foi nesse contexto que se deu a redação
Jos documentos pontifícios que por um lado regularam a administracão do batismo

As nossas Índias
550

dos neófitos americanos de modo menos simplificado e, por outro, negaÍam que esses
povos pudessem ser submetidos à escravidão como "bruta animália"34. Era a passagem
para uma nova fase menos sumária e entusiasticamente profética da conversão. Frei
Francesco de Bolonha propicia-nos uma boa descrição dos métodos usados pelos íran.
ciscanos para converter os índios:

Sobre o modo que mantivemos para restringi-los à fé, nós instituímos escolas para criancas
[...] e em muitos locais temos mil, em alguns duas mil, e assim nós as ensinamos a ler, a escrever, a

cantar, a tocar, e íazemos com que estudem porque possuem grande memória e talento [...]35.

Estamos diante das primeiras notícias nãd'só do celebre colegio de Santa Cruz
de Tlatelolco, mas tambem da aplicação dessa estrategia da conquista atraves da educa.
ção36 que devia estar voltada para a Europa cristã como um todo. Justamente na decada
de 1530 foram elaboradas as primeiras estrategias de escolas dominicais da doutrina
cristã que o padre Castellino de Castello definiu "obra da reforma cristã". A ideia de
que o cristianismo devesse ser difundido por meio das escolas reservadas às crianças
daria ensejo a muitas e tais realizacões nas decadas seguintes a ponto de parecer-nos
hoje como uma das descobertas e das inovações mais importantes do seculo da Re.
forma protestante e da católica. Mas essa ideia nascia de fato da descoberta de que o
cristianismo era algo distante e alheio não só às populações da América como tambem
das europeias. A estrategia do colegio, que os jesuítas deviam guindar à forma mais
elaborada e mais rica de resultados, tinha origem no fracasso da primeira entusiástica
pregação e dos batismos em massa que, na estrategia inicial dos franciscanos, deviam
levar a uma rapidíssima cristianização do Novo Mundo, acelerando assim o cumprimento
dos tempos e a realização do unum ouil.e et unus pestor.
O conteúdo moderno do conceito de "missão" surgiu justamente desse fracasso,
que se tornou evidente com a descoberta da prática da simulacão e da dissimulação usa-
da pelas populações indígenas. Ate então, a literatura franciscana tinha disseminado na
Europa balanços triunfais. Podemos tomar por testemunho uma rara edicão italiana de
textos franciscanos publicada em Bolonha em 1532. A pequena obra inicia.se com uma
carta do chefe dos primeiros doze missionários franciscanos, frei Martin de Valência, de
12 de junho de 1531 a frei Matteo, comissário geral cismontano. "semeamos as sementes
do Evangelho nos derradeiros cantos do mundo, junto aos índios da grande Áoi"", .rar,ra
frei Martin3?. A semeadura já propiciou uma colheita imensa: mais de dez vezes cem mil,

34. AsbulasdePaulollÌ,del53T,foramreproduzidasemAmericaPonrificíaPrímisaeculíEuangeLiTationís1493.1592,
ed. Joseí Metzler, Cidade do Vaticano, 1991, l, pp. 361.366.
35. I-aLetteraMandatadalR.PadreFrateFrancescodaBo\ognadal'IndiaouerNouaSpagna,etdallzCittàdíMexico...,
em Bologna, por Bartoiomeo Bonardo et Marco Antonio Groscio, s. a., c. 3u.
36. José Maria Kobayashi, LaEducacióncomoConquísta(EmpresaFranciscanaenMéxico),México, 1985 (1. ed. 1974).
3T. "Nos...constitutiinextremismundipartibusapudlndosinmagnaAsia"(PassioGloriosiMartlrísPeatiPatris
Fratris Andree de Spoleto..., Bologna, Giovanni da Rubiera, 1532, c. A Ìr; a carta tÌaz a data "ex conventu nos-
tro Thalmanaco prope magnan civitatem Mexicanam custodiae sancti Evangelii, die 12 mensis Junii anno


h.
r
551

cerca de cem mil para cada um dos doze, foram batizados; e todos os dozes, exceto ele,
aprenderam a língua, ou melhor, as línguas dos índios e estão pregando; e mais de qui.
nhentos jovens estão aprendendo a doutrina cristã, que depois pregam a seus pais. A esta
carta foi juntada outra, de írei Juan de Zumarraga, endereçada ao capítulo geral de Tôlosa
de 1532, ela tambem repleta de grandes números: centenas de milhares de batizados, qui-
nhentos templos destruídos, vinte mil imagens demoníacas destruídas. Segue a descrição
dos sacrifícios humanos: vinte mil jovens a cada ano. E agora, ao contrário, os jovens
seguem os ritos cristãos com devoção, mostram-se obedientes aos frades, castos, sinceros.
A pequena obra termina com o relato do martírio em Fez de frei Andrea de Spole-
to. É lr- relato da sede de martírio de frei Andrea, coroada por uma fogueira, após uma
serie de encontros e desencontros com o soberano, .orn oJ'iard"tls e com os maometanos,
alem que com os escravos cristãos (apos a fogueira, os escravos cristãos apoderaram-se às
escondidas de um pe de frei Andrea, relíquia que se mantém milagrosamente ainda não
corrompida). Trata-se de um opúsculo que mostra como, no emprego da propaganda
missionária através do moderno veículo da imprensa - com ediçoes de obras de poucas
páginas rapidamente divulgadas e rapidamente consumidas - misturavam-se ingredientes
antigos e novos, com o objetivo de consolar e provocar a admiração dos leitores europeus;
cartas edificantes e curiosas de fato. Nesse quesito, os franciscanos foram os primeiros a
tornar próprio esse instrumento bifronte, que ao informar os leitores europeus tambem
exercia sobre eles um desejo de edificaçao e de reforma moral, veículo da obra missionária
era o exotismo dos horizontes que se abriam, um exotismo que atraía entusiasmos dos
jovens e convencia-os a tornarem-se religiosos para partir para as Índias.
A literatura missionária produzida nessa primeira parte do século XVI - uma
literatura predominantemente mas não exclusivamente franciscana - pôs em relevo a
tãcilidade da pregação e o sucesso obtido pelos pregadores, como traços que remetiam
à obra da Providência e que demandavam explicação como sinais da realização de um
desígnio profético. A disponibilidade das populações indígenas em receber a nova reli-
gião, sua afabilidade, a absoluta falta de resistência são os lugares-comuns nos relatórios
dos religiosos europeus, independentemente de pertencerem a essa ou àquela Ordem.
Na tradicão dominicana, tais observações adquiriram o valor de argumentos a favor do
reconhecimento da plena natureza humana das populações descobertas. Mas também
entre os dominicanos não faltaram sublinhamentos apocalípticos e messiânicos: a carta
de frei Julian Garces, cuja publicação em 1537 repercutiu a voz oficial da Ordem do-
minicana quanto à questão da escravidão dos índios, citava a profecia de Elias e aludia
ao próximo fim dos tempos - pLenitudo gentium e plenitudo temporum3\.

1531"). Copia da obra, junto à Biblioteca Matciana (Misc. 1104/15), íoi-me indicada por Massimo Donattini,
a quem agradeço.
i3. Trata+e de um texto célebre, de ciatação incerta, mas cuja publicação em 1537 em Roma ocorre simultaneamente
à publicacão das bulas de Paulo III sobre a catequese dos índios americanos e sobre a ilicitude da escravidão (cf.
ânteÌiormente, neste capítulo, a nota 34). Falando do "emporio indico", como lugar onde adquirir proüsões
do ouro necessário para combater os turcos, Garcés sublinha o caráter providencial da descoberta "in termino
iam iam labentis seculi in quo íines seculorum devenerunt" (De Habilitate et üpacítate Gentium Siue Indmtm

fu nossas Índias
=,
rT-

552

Na segunda metade do seculo, a literatura franciscana foi substituída pela litera.


tura das cartas dos jesuítas; e de seu extraordinário sucesso dependeu, como íoi visto,
não só o florescer de vocações missionárias, mas também a eficácia e a rápida difusao
da noção de "índias interiores".
A crise do modelo de conversão dos povos que se baseava no sacramento do
batismo administrado sumariamente a coletividades inteiras, por parte de pregadores
dotados de apostolico fervor, devia levar ao surgimento de uma ideia de missão, diferente
e moderna, que íoi encarnada pela obra dos jesuítas. As regras, que impunham à nova
Ordem uma especial disponibilidade de deslocar-se para onde o papa os enviasse em
auxílio às almas, exprimiam uma consciência das tarefas de conquista religiosa como
algo que demandava uma preparação e uma dispò.ribilidade bem especiais. Foi dessa
consciência e do fracasso da primeira onda missionária de tipo "apostólico" que nasceu
a ideia da missão como empenho constante de corpos especializados a ser desenvolvida
com métodos específicos e em sedes próprias - enfim, a institucionalizacão da missão.
A visão de Inácio depositada nas páginas dos Exercícios - o mundo como um globo
onde se tratava de combater e de vencer uma batalha espiritual de conquista - reflete
de algum modo a imagem do imperio espanhol na epoca das conquistas de Cortes. As
"Constituições" e as bu{as de aprovação deviam insistir depois na disponibilidade dos
jesuítas em dirigir-se para onde quer que a vontade do papa os mandasse, com a missão
de atuar para o bem das almas. Aqui, no encontro entre a oferta dos jesuítas e a retomada
papal de uma ação de projecão universal surgiram as missões modernas, como termo e
realidade. A escolha das missões - o celebre "quarto voto" - está tão ligada à história da
Companhia a ponto de constitui, Ã" especie de marca genética da Ordem. Mas sua
origem, de certo modo, ainda permanece misteriosa. O que é certo é que o grupo inicial
dos fundadores da Companhia amadureceu suas escolhas em um clima de entusiasmo
em relacão às missões dominado pelas cartas das Índias e pelos estrondosos anúncios
que nelas podiam ser lidos. lJma carta de Girolamo Osorio, de 1537, onde se relatava a
conversão de cerca de sessenta mil habitantes do Malabar, chegou de mão em mão are
Simon Rodriguez, um dos primeiros companheiros de Inácio: e a resposta foi uma men.
sagem de Pietro Fabro, confirmando a intenção do grupo de partir para as missÕes, mas
submetida à vontade do papare. De todo modo, e certo que por volta de 1550 a esrrategia
jesuítica em materia de missÕes já se encontrava definida. Abandonado o projeto inicial
de peregrinação Jerusalém, marcado ainda pelo ideal da cruzada medieval, fora escolhido
a

um ministerio sacerdotal itinerante: as "missões", como expedições temporâneas para

Notri Mundi Nuncupati ad Fidem Chrisri Capessendd.m, etqudm Libenter Suscípíant, Romae,anno 1537, cc. n. n.).
O texto, precedido por uma dedicatória do provincial dominicano Bernardino de Minaya ao "mestre do sacro
palácio" Tommaso Badia, devia ser ÌepÌoposto sucessivamente pela literatura oficial da ordem entre as glórias
da própria atividade missionária (ele é encontrado, por exemplo, junto a uma reminiscência de Bartolomé de
las Casas, em Gio. Michele Pïò, DeLleYite degli Huomini ILLustn di san Domenico, em Bologna, por S. Bonomi,
1ó20, p. II, pp. 133.134).
39. Cf. MHSI, Docr.rrnenta Indica, ed. Josephus \íicki S. 1., vol. 1, $4A1549, Romae, 1948, pp. 7..3..Sobre o
signiíicado e sobre as origens do "quarto voto" cf. O'Malley, The Firsr lesuits, op. cit., pp. 35 e 298.301.
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q..,. Os Missionários

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L-
r
551

"auxiliar almas" onde fosse necessário. Era uma escolha de empenho ativo, que - jun-
as
tamente com a renúncia (antimonástica) à recitação do breviário - caracterizava a nova
Ordem como um organismo de grande mobilidadeao. Poucos anos separam o projeto
de partir para Jerusalem da chegada a Índia de Francesco Saverio. Mas nessa mudança
de rota percebe.se um desvio carregado de consequências. As missões foram assumidas
exatamente como tarefa pela Companhia de Jesus desde o início de sua existência: a
matéria não pertencia exclusivamente à Ordem, mas a importância que os jesuítas the
atribuíram e os instrumentos que elaboraram tornaram-nos um ponto de referência
essencial para quem desejava dedicar-se a "ajudar os outros" (a palavra de ordem deles).
Não e por acaso que os dois significados complementares de "missão" - "man-
dato apostólico de pregação do Evangelho, especialm"ht" as populaçÕes não
"tttt"
cristãs" e "sede, organização de missão em terra não cristã" - encontrem-se registrados
na literatura jesuíticaa1. O objetivo das missÕes foi a conversão dos coracões, oposta à
conversão superíicial dos batismos forçados que, por toda parte, constituiu-se numa
fonte de simulações e problemas sem fim.
É n"m" contexto que a "missão" torna-se uma realidade institucional, identiíicando-
-se não só com o dever geral da predicação, mas com o lugar e com os instrumentos em
que essa predicação se dava. No final do seculo, a coisa tinha se tornado tão importante
a ponto de exigir repetidas intervenções normativas por parte dos gerais da Companhia.
No que se refere às missões internas, o geral Claudio Acquaviva interveio várias vezes
para restabelecer.lhe o caráter apostólico e para evitar sua sedentarização. Na carta aos
superiores provinciais de 12 de maio de 1590, dispôs que em cada província fossem
escolhidos doze missionários, para serem enviados de dois em dois aos vilarejos e lugares
menos habitados: voltando ao assunto em 1599, tornou a chamar a atenção dos jesuítas,
mais uma vez, para o modelo apostólico de uma pregação itinerante, proibindo que a

missão se tornasse uma instituicão estável e uma residência fixa42.

3. A DerrsA DA FE,: O MtsstoNRRIo ENTRE BISPoS E INQUISIDoRES

De onde vinha essa nova ideia de missãol E, principalmente, qual foi sua banca de
avaliação decisiva? O cristianismo conquistador, marcado pela vontade de unificar o
mundo, de criar "um único rebanho comandado sob um único pastor", eliminando
de um modo ou de outro dissensões e diferenças, sofrera uma longa maturação no

40. A interpretação do famoso "quarto voto" como ruptura com a tradiçáo monástica é de O'Malley, The First
lesuits, oP. cit., pp. 298-301.
No Dizionario M. Cortelazzo e P. Zolli (vol. 3, Bologna, 1983, pp. 767-763)
EtimoLoglco de\Ia Lingua kaLiana de
remete-se, para as duas acepções reportadas anteriormente, a G. P. Maffei e a D. Bartoli, respectivamente.
12. Sobre as duas instruções (publicadas em Epístolae Praepositorum Generalíum ad Patrcs et Frdtres Societatis Ìesr. t. l,
Rollarii, 1909, pp. 214.27 5) chama a atenção R. Rusconi o qual lembra que Acquaviva tinha sido provincial
em Nápoles e tivesse adquirido uma larga experiência sobte os problemas dos campos do sul ("Gli Ordini
Religiosi Maschili dalla Controriíorma alle Soppressioni Settecentescher Cultura, Predicazione, Missioni", em
CLero e Società nell'kaLia Moderna, org. de Mano Rosa, Bari, 1997, pp.244'745).

554

confronto com o Islã e com o judaísmo da diáspora. Recebera da descoberta da


America um impulso e uma aceleração exaltadores e ricos em ecos milenaristas. Mas
foi no confronto com os problemas postos pela fratura da unidade religiosa europeia
e pela diíusão capilar da dissensão doutrinária entre os cristãos da Europa que se
evidenciou a nova face da atividade missionária e afinaram.se seus instrumentos.
Coube à Itália, sede do papado e de uma animada dissensão heretica, ser a primeira
a experimentar o novo modelo da "missão interna".
A obra dos jesuítas foi o instrumento de urn papado que, diferentemente daquele
do início do seculo XVl, comecou a ocupar-se de modo direto com o envio de prega.
dores. A Igreja da Contrarreforma e uma igreja que acentua os traços universalistas e
assume por si as rédeas da direção da "conquistà espiritual"43. Mais do que os desdo-
bramentos extraeuropeus foram os problemas da lgreja ocidental que determinaram
a reconversão para uso interno das energias suscitadas pela lufada de entusiasmo de
propagação da fe. As polêmicas religiosas da época da Reforma temperaram com uma
nota de obscuridade e de fortes tensões polêmicas os tons entusiásticos e eufóricos da
expansão no resto do mundo. A fratura da unidade religiosa e a urgência de prover a
defesa da lgreja de Roma conferiram novas características à ação missionária. lsso pode
ser percebido, examinando-se o modo como a "fórmula" da Companhia de jesus (1540)
foi integrada e corrigida nesse ponto decisivo pela segunda bula papal de aprovacão, a
Exposcit Debitum de Júlio III (1550): lá, onde a "fórmula" falava em "propagacão da fé",
a bula corrigiu para "defesa e propagação da fé"aa.
Nessa decada, a defesa da fe ja havia criado muitos problemas tambem à Com-
panhia. Nao thes faltaram certamente as oportunidades para engajar.se nos conflitos
religiosos que dilaceravam a sociedade italiana e que opunham entre si os partidos
no interior da Cúria romana. Nisso, os jesuítas tinham obtido sucessos, mas tambem
tinham desencadeado conflitos. Em 1541, Nicolo Bobadilla tinha pregado, confessado e
proposto leituras devotas à corte do cardeal Pole em Viterbo, colhendo - nas palawas do
próprio cardeal - "bons frutos"45. Bem mais tempestuosa foi, ao contrário, a experiência
de Alfonso Salmeron em Módena, dois anos mais tarde: o cardeal Giovanni Morone
expulsou-o da cidade em agosto, com uma providência que suscitou escândalo em Roma.
Para mitigar seus efeitos e mascarar aos olhos das pessoas o conflito doutrinário no
seio da Igreja, foi necessária a intervenção do cardeal Cervini, que organizou às pressas
uma pacificacão de fachadaa6. Esses dois casos são suficientes, de qualquer modo, para
dar uma ideia do duplo registro da ação dos jesuítas, de um lado, havia os sermões,
as confissões e comunhões, as cenas de uma devoção reavivada. De outro, havia uma

43. Falaae em "conquista espiritual", talvez pela primeira vez num documento papal, em uma proposta íeita por
Gregório XIII a Felipe Il em 1579, no sentido de instituir nunciaturas permanentes nas "Índias Ocidentais":
cí. America Pontíf ícia, tr, 384, pp. 1143-114 6.
44. O'Malley destaca apropriadamente esse aspecto, The First lesuits, op. cit., p. 5.
45. Carta de Pole de 22 de dezembro de 1541 (orig. em ARSI, Epp. Ext. 7.1,3).
46. Sobre esse episódio cf. uma ampla iníormação bibliográíica em Firpo e Marcatto (orgs.), il Process o Inquisitoiale
del" Cardinal Gioqtanni Morone, op. cir., Ì, nota 238, pp. 349.351.

Os Missionários
r
555

atenta vigilância douffinária e uma verdadeira ação policial contra os círculos suspeitos.
Era um duplo registro que se mantinha bem separado até nas cartas: basta ler as que
os padres jesuítas Domenech e Salmeron dirigiram a lnácio, de Bolonha, alguns anos
depois, para se ter a confirmação disso. Naquelas que podiam ser mostradas a todos os
amigos da Companhia, relatavam-se os resultados milagrosos da devocão: centenas de
fieis - "pessoas notáveis" da sociedade citadina - levados a comungar todos os primeiros
domingos do mês, um núcleo mais restrito de 25 ou trinta - "nobres em sua maiotia" -
convencidos a se comungarem todos os domingos e com ainda maior frequênciaa?. Nas
reservadas ao geral, contava-se que em confissão soubera-se diversas coisas a respeito dos
círculos hereticos da cidade. Havia hereges arrependidos, ou assustados com a notícia
das execuções romanas, que aguardavam a páscoa p"r" r"i.- absolvidos secretamente
de suas culpas - mesmo porque Salmeron tinha poder para isso48.
Os dois aspectos da luta contra a heresia e do despertar devoto eram complemen
tares e inseparáveis; baseavam-se na coníissão e na atuação das congregações de devotos,
incitados à caça de hereges por seus padres espidtuais4e. Homens da Igreja recorriam aos
jesuítas para incumbilos de uma obra de controle mas tambem de relançamento da vida
religiosa. Os dois aspectos encontram-se também na obra de Landini. Como foi visto,
Silvestro Landini tornou.se missicnário anteLitteram no decorrer de uma colaboração com
os bispos para uma visita das igrejas da região modenense e da Córsega. Târefas análogas,
anteriores e posteriores a ele, continuaram a chover sobre os membros da Companhia.
Não se contam as cartas dirigidas a lnácio e a seus sucessores pedindo o envio de algum
jesuíta para ser associado ao bispo em visita ou, até mesmo, para substituí-lo nessa tarefa5o.
Pedia.se aos jesuítas aquilo que não se conseguia que o clero das dioceses fizesse: sermões
e confissões, principalmente, porém, mais geralmente, uma intervencão capaz de {azer
reviver aquela nova imagem evangelica que, com frequência, era definida como a "vinha
do Senhor". A imagem era das mais usadas entre os jesuítas, que a preferiram entre todas
as metáforas da lgreja. Dessa vinha deviam ser expulsos os javalis hereges; mas era preciso
tambem cultiva-la e colher bons frutos. Era uma exigência que as incertezas doutrinárias

47. Carta de Gitolamo Domenech, 24 jul. 1546, em Lítterae Quadnmestres,I, pp. 7-11.
48. "Yo e entendido en la absolución de algunas personas occultas, que estavan en herejías ó leyan libros luthe-
rânos, y paÍa estâ pascua pienso que vendran algunos; maxime que acá se a sabido como van castigando en
Roma algunos poÌ suspectos de heresi, los quales tenían aquí muchos compagneros, y temen estos de ser
descubiertos de los de allá, y assí 1es cumple con tiempo absolverse" (carta de Salmerón a Inácio, de Bologna,
l7 dez. 1547, emEpistolne P. ALphonsi Salmeronis, I, Matriti, 1906, p. 63). Segundo o testemunho de um deles,
Giovan Battista Scotti, íoram os legados do Concí1io que encarregaram Salmerón de dar-lhes "a absolvição e
fazer a abjuração" (Firpo e Marcatto, Il Processo In4uísitonaLe dclCardinalGiouanniMorone, op. cit., II, p. 366).
49. Giovan Battista Scotti, após sua conversão, "comecou a querer reduzir todos aqueies da congregação em Santa

Lucia... E todos aqueles que não queriam segui-lo eram acusados por ele ao inquisidor" (deposição de Dome-
nico Rocca, fev. 1560, em Fitpo e Marcatto, Il Processo In4uisitonole deLCardinaLGiovanniMorone, op. cír., vol. lV,

Il Processo Dífensíuo Bolognese, pp.468469). Elementos semelhantes de controle anti-herético de congegacões


devotas encontram+e no caso de L,eonardi em Lucca, citado anteriormente no capírulo 15, nota 42.
i0. Uma coletânea das cartas desse gênero encontra+e em ARSI, Epp. Ext. tt, 7 (Epistolne Cardírutlíum 1539-1569\
e Epp. Exl 7. I.
í-**,

556

da epoca da Reforma, mas tambem as vicissitudes políticas e as rupturas civis fizeram ouvir
intensamente na ltália do seculo XVI. A noção de missão, assim como foi definida na sétima
parte das "Constituições" da Companhia, compreendia as tarefas a serem desenvolvidas
entre os infieis, entre os hereges ou entre os catolicos. O "operário da vinha do Senhor"
que tivesse sido escolhido para uma missão a ser cumprida em meio ao povo devia ajudar
o proximo seja atuando de modo itinerante, seja residindo de modo estável em lugares
determinados. Concretamente, tratava-se de cumprir a tareía cuja responsabilidade oficial
era de bispos e inquisidores. E isso ajuda-nos a compreendeÍ poÍque, com frequência, os
jesuítas enconffavam.se cumprindo simultaneamente tarefas de natureza inquisitorial e
atividades de cunho pastoral.
A "missão" deles, antes de se tornar atividadÈ autônoma da Ordem, foi uma pre.
sença de apoio às visitas das autoridades eclesiásticas: visitas episcopais e inquisitoriais.
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Foram tantas as requisições de intervenção desse tipo que a Companhia solicitou e
'l ! obteve de Paulo III a declaração formal de que os jesuítas não eram obrigados a exercer
I
I
ï o ofício de visitadores ou de inquisidores5l. Cada missão desse tipo devia passar pelo
filtro da autoridade do geral da Companhia. Era um modo de fazer frente a um excesso
de pedidos. Por volta de meados do seculo, na ltália, a emergência da luta contra a
dissensão doutrinária e à difusão dos modos "tridentinos" e pastorais de reforma leva-
ram os jesuítas a empenhar.se ativamente justo nesses dois tipos de ofício. Na sequên-
cia das visitas inquisitoriais e das verdadeiras campanhas militares entre os valdenses
da Calábria, das Apúlias e do Piemonte, como tambem entre os rnoriscos espanhois5z,
confortavam os condenados à morte, ensinavam a doutrina cristã aos convertidos,
preparando-os para os sacramentos; na sequência da visita dos bispos, ou preparando
a chegada deles - ou substituindo-os - percorriam as igrejas do campo e da montanha
com uma estrategia que pode ser exposta com as próprias palavras de Landini:

Nesses sete dias visitei cerca de quarenta terras, entre Módena e Bolonha, pregando todos
os dias, às vezes cinco, às vezes seis e às vezes sete vezes [...] Formamos uma companhia do Corpus
Domini, que se comungam todos os domingos [...] Escolhemos dois homens dos mais circunspectos,
que devem acertar cada briga, discórdia, inimizade e diíerença [...] Escolhemos o mesmo de mulheres,
para cuidar dos doentes. A primeira coisa, que se confessem e comunguems3.

Portanto, sermões, confissões gerais e comunhões frequentes, congregações e


obras pias; e, alem disso, perseguição aos "maus costumes", às práticas folclóricas mais
ou menos suspeitas ou, de algum modo, não condizentes com a depurada sacralidade
oficial. Assim, por exemplo, num castelo nos arredores de Perugia, em 1561, os jesuítas

51. No documento papal, de 18 de outubro de 1549, especifica-se que os jesuítas não eram obrigados a exerceÍ
"correctionis, seu visitationis, vel inquisitionis oííicium" (retomo a citação de Beati Petri Canisii, Epistultte et
Acra, vo1. lv, 1563.1565, Friburgi Brisgoviae, 1905, p. 255).
57 Cf. Francisco de Borjia de Medina S. 1., 'Lâ Compaflía de Jesús y la Minoría Morisca (1545-1614\", em AHSI,
L\,'II, 1988, n. 113, pp. 3-136; em part. pp. 55 e ss.
53. Carta a Inácio, de Módena, 16 maio 1550, op. cit. nota 10.

Os Missionários
r
557

empenharam-se em "abolir um mau costume", um baile popular que se costumava fazer


na noite da Ascensão5a.
Intervencões pastorais, portanto: mas havia, ainda que menos aparente, uma ação
anti-herética, em substituição ou em apoio à obra da Inquisição. Nas cartas edificantes
que vimos ate agora não se toca nesse assunto: essas cartas obedeciam às normas ditadas
por Inácio, que impunham distinguir entre as mensagens que podiam ser mostradas
a estranhos e as de natureza coníidencial. De fato, a luta contra a difusão da heresia
ocupou grande parte dos primeiros encargos destinados aos jesuítas. O cardeal J. Alvarez
de Toledo (por conta do Santo Ofício) pedira a Silvestro Landini que agisse conrra os
hereges no territorio entre Lucca e Ferrara55r e, segundo o secretário da Companhia de
Jesus, Landini cumpriu essa missão com grande diligência, fazendo chegar ao inquisidor
de Módena muitas denúncias de hereges56. Nessa mesma época, seu confrade Alíonso
Salmerón seguia em Nápoles as pistas da heresia de Juan Valdes a ponto de fomentar
suspeitas até mesmo em relação ao vigário do Santo Ofício, Giulio Pavesi. Parece que,
parâ tornar mais eficaz a luta contra a heresia, encarregava os membros da companhia
da Veneração do Santíssimo Sacramento, ligada aos jesuítas, de "observar secretamente
toda pessoa suspeita de heresia" e de passar-lhe o nomes?. Antes de Salmeron, também
atuara no Reino de Nápoles Nicolo Bobadilla, desde que, em 1540, Paulo III tinha-lhe
coníiado a missão de visitar as dioceses de Bisignano, Bobadilla ocupara-se durante
anos da Calábria, dedicando muita atenção ao problema da presença de hereges e
desenvolvendo ate diretamente funções de "inquisidor da heresia". Em virtude de sua
experiência, foi enviado pelo Santo Ofício, em 1562, em meio aos valdenses da costa
calabresa que sobreviveram aos massacres5s. Sua correspondência conserva provas de
sua solicitude em favor de mulheres e criancas, como também de hereges arrependidos,
suscitando o ressentimento de Ghislieri. Como se vê, as ligações dos jesuítas com a ln.
quisição nesse período de lutas candentes contra o perigo da heresia foram numerosas,
ainda que encobertas por modos e tons pastorais. A repressão desencadeada na Calábria
pelo exercito do vice-rei espanhol seguiu na esteira das inspeçÕes e das investigações
conduzidas por Bobadilla e talvez tenha se servido dos conhecimentos acumulados por
meio desse metodo.
No meio do caminho entre inquisidores e bispos, a serviço de ambos, os jesuítas
cumpriam tambem as tarefas de minucioso controle sobre o estado das igrejas e dos

54. Carta de Gio. Paolo Oliva, de Perugia, 23 maio 1561, em MHSI, Litterae Quaüimesrres, VÌI, 1561.1562, Roma,
1932, p.347.
)) O trabalho de pregação de Landini íoi requisitado nesse mesmo período pelo cardeal J. Alvarez de Toledo por
conta do Santo Ofício, nos territórios de Femara, Lucca e Florença proprer haeresis ínfectíonem (Juan de Polanco,
Vita Ignatii l-oiolae et rerum Societatis Jesu Hístoria, t. il, 1550.1552, Matriti, 1894, p. 23).
56. Iden, p.457.
57. Cf. Ulderico Parente, Alíonso Salmerón a Napoli (1551.1585), em Campania Sacra, )C{, 1989, pp. 1451; em
part. p. 23.
58 Cti.Idem, "Nicolo Bobadilla e gli Esordi della Compagnia di Gesü in Calabria", em I Gesuiti e ltt CaktÁq anais
do congresso organizado por Vincenzo Sibilio S. I., Reggio Calabria, 1992, pp. 19-56; em part. p. 31.

As nossas Índias
\
À
558

aparatos pertencentes normalmente ao bispo e desempenhadas pelos vigários diocesa.


nos. Silvestro Landini, por exemplo, cuidava de todas as questões relativas aos imóveis
e aos aparatos: "Manter limpos os objetos sagrados e mobílias da igreja, restaurá.los,
construir, caiar, pintar, {azer púlpitos"5e. Sua visita era, desse ponto de vista, perfeita-
mente igual a uma visita de tipo vicarial, cumprida em territórios difíceis e de escasso
interesse para bispos habituados a cuidar da cidade e a deixar os campos em segundo
plano. As pessoas tinham conhecimento disso, tanto que reagiam irritadas à presença
de figuras menores - quando depois não mudavam de opinião60. Todos esses aspectos
da "missão" de Landini acham-se condensados e exemplificados no "admonitório" que
o jesuíta publicou em Bastia em 28 de dezembro de 1553: nele se impunha, sob penas
extremamente duras, a obrigacão de não pregar ou interpretar as Escrituras sem permis.
são; de denunciar todos os hereges; de abandonar as concubinas (para os padres) e de
renunciar à poligamia para os leigos; de residir nas igrejas dos próprios benefícios; de
não receber compensacões pelos sacramentos: e assim por diante, seguindo o traçado dos
decretos sinodais que costumavam ser promulgados ao final das visitas episcopais. Mas ll

havia tambem medidas que tinham por alvo práticas culilrais muito antigas, como o ,,1

carpimento fúnebre, cujo caráter alheio ao cristianismo era ressaltado6l. Evidentemente, ïi


o olhar distante e afastado da perspectiva exótica das Índias enxergava mais longe que
o olhar de outros reformadores católicos.
As autoridades eclesiásticas, a episcopal e a inquisitorial, tinham encontrado
instrumentos versáteis para seus objetivos. A emergência do perigo herético preenchia a
obra de quem queria atuar na "vinha do Senhor". Em posicão subordinada em relação
ao detentor da autoridade, ao jesuíta cabia uma unção intelectual e espiritual específica:
atuar para o "auxílio às almas", pregando, ouvindo coníissões, ensinando a doutrina
ortodoxa, mas tambem indicando à Inquisição os suspeitos de heresia. Tratava.se de
uma funcão que devia ser desempenhada com discrição. fu informações recolhidas pelos
jesuítas eram devidas à eficácia da relação que eram capazes de criar com os penitentes
em confissão. E era na confissão, sobretudo, que os jesuítas tendiam a resolver as culpas
de heresia, recorrendo quando muito à abjuração secreta, de acordo com uma práxis
que foi amplamente seguida na Alemanha por Pietro Canisio62. Mas o que se apreendia
sobre eventuais ambientes heréticos devia ser remetido à Inquisição, ainda que através
dos mecanismos da s\ontanea comparitío. No entanto, o eventual clamor despertado pelo

59. Carta a Inácio, de Módena, 16 maio 1550,EpistolaeMixrae, op. cir., II, p. 700.
60. "Os devotos dessa terra condoíam-se muito de que monsenhor me enúasse em visita e de que os deixasse",
escrevia Landini (;drm, p. 701).
ó1. "Que não sejam levados os coÍpos mortos por aqueles que fazem esses trabalhos como infiéis, dilacerando-se
as faces, os cabelos e as carnes, mas que oscorpos mortos sejam deixados na casa deles, para que sintam o
íedor da iníidelidade de que são portadores; esse pranto desesperado é sinal de que não acreditam em nossa
ressurreição", (O texto do admonitório íoi publicado em apêndice a Polanco,Vi ta lgnatií l-oiotne, op. cir., vol. IV,
PP. 705'708).
62. Beati Petri Canisii Societatis lesu, Epistulae et Acta, ed. Otto Braunsberger, I, 1547.7556, Friburgi Brisgoviae,
1896, pp. 315-319 e 638-639 e pdssim; vol. II, Friburgi Brisgoviae, 1898, pp. 644.645. CL p. 497, nota 17.

Os Missionários
í

559

uso desse conhecimento podia ter efeitos destrutivos sobre a confiança dos penitentes.
Assim, quando as autoridades eclesiásticas ameaçavam fazer uso dessas informações por
meio de processos públicos e clamorosos, os jesuítas sentiam-se incomodados e - como
fez Nadal em 1550 - podiam recusar-se a colaborar63. Mas foi graças à colaboracão deles
que a Inquisição espanhola chegou à descoberta dos hereges de Valladolid e à dura
repressão de 15596a.
O caráter positivo, de edificaçao e de educação, da intervenção dos jesuítas, sua
busca da confiança e da confidência dos povos visitados - mas tambem o progressivo
atenuar.se da urgência da luta contra os hereges na Igreja italiana - fizeram com que
a atuação deles, com o passar dos anos, se aproximasse cada vez mais da dimensão
pastoral da visita diocesana. Os bispos que, nos u.toi do Concílio de Trento, eram
animados por desejos de reíorma ou, de todo modo, sentiam-se obrigados a fazer algo
por suas dioceses, recorreram frequentemente à Companhia de Jesus. Houve por esse
motivo frequentes envios de jesuítas com função vicária de visitadores; e a atuacão deles
íoi requisitada para pregar e catequisar a população, como preparacão ou em seguida
a visitas pastorais. A tareía deles, nessa íunção, também não era diferente da que de.
sempenhavam em apoio à Inquisição: a urgência do controle doutrinário e percebida
nas prestações de contas que, ao final das visitas, eram enviadas ao geral, onde - entre
outros resultados - recordava-se tambem a eventual descoberta de hereges65. Foi-se
criando assim um entrelaçamento de métodos e de conteúdos entre rnissão popular de
um lado e visita episcopal de outro, enquanto diminuíam as semelhanças com a obra
de policia da fé desenvolvida pela Inquisição. A crônica italiana registra desde meados
do século XVI numerosos casos de convites de bispos a jesuítas para tarefas de cura de
almas. Para recordar alguns, em l54l , o arcebispo de Sassari pediu a Inácio que the
mandasse quatro jesuítas para pregar e ensinar casos de consciência a seu clero66; em
Bolonha, o jesuíta Francesco Palmio procedeu em primeira pessoa à visita pastoral de
1554.1555 em nome do bispo Giovanni Campeggi e depois esteve constantemente ao
lado do cardeal Paleotti, primeiro como visitador depois como conselheiro na organi-
zação conjunta do governo da diocese6?; o bispo de Ascoli, em 1575, solicitou que dois
padres "visitassem sua diocese"68. O próprio ritual da recepção solene era organizado

63. O episódio é lembrado por O'Malley, Thz. First Jesuits, op. cít., p.313.
64. Cí. José Luis Gonzalez Novalín, "La Inquisición y la Compaãía de Jesús", em Anthologica Annaa, )CO(VII, 1990,
pp. 11.56.
65. Na carta quadrimestral de Bolonha, Francesco Bordon resumiu os resultados da visita de Palmio, dizendo
terem sido encontrados diversos blasíemos, jogadores, adúlteros, hereges e pestes semelhantes (carta de 14 de
janeiro de 1556, em MHSI, Litterae Quadnmestres, vol. tV, pp. 62-63).
66 Turtas, Missioni Popolari in Sardngna, op. cít., p. 37 5.
67 Sobre as visitas de Palmio cí. L.Yezzini, "La Diocesi di Bologna nel 1555 Secondo le Visite Pastorali", em
Memone deIL'Accademia de\L'Istituto di Bolngna, aula de ciências morais, s. IV, vol. 6,1943-1944, pp. 91-136; Prodi,
IL CardinaLe Gabielc Paleotti, op. cit., ad nomen. Idem, vol.11, pp.37-34, um longo relatório de Palmio ao geral
Borgia sobre a visita da região montanhosa da diocese, dominada, como nota Prodi, por "estupor e admiração"
pelo íato de visita ter sido íeita pessoalmente pelo bispo.
a

68. Da carra ânua do colégio de Loreto, 15 jan. 1576(ARSI, Rom. 126 b. I, c. 3t).

As nossas indias
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À.
Í:":

560

lugar por lugar como por ocasião da visita. Em 1583, os jesuítas convocados pelo bispo
de Camerino para visitar sua diocese, ao chegarem aos lugares habitados eram acolhidos
da seguinte maneira: "os sinos eram tocados, e todo o castelo recebia ordens de não
jogar e dedicar.se à doutrina e às coisas espirituais"6e.
A
coisa não deixou de causar problemas, de fato, caminhava.se em direcão à
suplência por parte de uma ordem religiosa num gênero de tarefas que perrenciam a
outras autoridades eclesiásticas, o bispo, o inquisidor, seus vigários. Por outro lado, os
instrumentos de que dispunha a Companhia tornavam-na particularmente apta a rea.
lizar os objetivos para os quais se voltava então a visita pastoral, não apenas um ato de
simples conffole administrativo, mas instrumento de uma verdadeira obra de conquista
religiosa: confessores experientes detentores de amplos poderes para absolver pecados
de qualquer tipo7o, mestres na arte de guiar as consciências e de estimular a devoção
com a frequência das comunhões, eles eram, além disso, pregadores de grande eficácia.
O princípio guia do "ajudar o próximo", que os diferenciava das demais ordens e con.
gregações, levava-os a se ocuparem da paciíicacão de conflitos familiares e litígios entre
facções: a instituição de congregaçoes de devotos organizadas de acordo com os ofícios ou ,ll

funções sociais permitia-lhes agregar o mundo dos leigos e manter vivas certas iniciativas
após o termino da visita, Tudo isso criou problemas. Houve resistências e conírontos
com os setores da população que resistiam aos novos modelos de vida religiosa - os
dissidentes e os hereges, naturalmente; as comunidades judaicas; mas tambem outros
grupos e círculos de orientação diferentes. Houve, principalmente, reacÕes de rejeicão
por parte de outras autoridades eclesiásticas que não toleravam os recem.chegados.
Dos problemas surgidos, alguns vêm à tona a partir dos papeis da Companhla de
Jesus, como sempre muito atenta a governar os comportamentos de seus membros e a
evitar qualquer conflito com as autoridades. Em relação à Inquisição, tomou.se uma
decisão muito rápida de manter formalmente distância, de modo a não suscitar as
suspeitas e a desconfiança dos penitentes. Quando em Roma soube-se que os jesuítas
em Goa colaboravam com a Inquisição local, o geralfez saber ao padre provincial que
a decisão da Companhia tinha sido a de não aceitar ligações com o Santo Ofício?l. Em
relação aos bispos e a seus vigários, quando os conflitos surgiam, era necessário evitar
alimentá-los e retirar-se com cautela. Houve jesuítas obrigados a abandonarem as visitas
devido à resistência de vigários desconfiados ou devido às reacões de bispos que não
concordavam com as iniciativas deles72. Chegou-se assim à decisão de separar nitida-

69. Idem,c.3l3u.
70. Antes de enviá-lo à Córsega, Polanco escÍeveu a Landini a propósito da faculdade extraordinária que lhe era
concedidaparaabsolverospenitentes(Polanco,VíralgnatiíLoiolae,op.cit.,t. I,Matriti, 1894,p.394).
7 1. "t...1 Que en toda Europa excepto en Portugal hemos procurado que los nuestros no sean consultores del Santo
Officio" (carta de Claudio Acquaviva, s. d. mas de dezembro de 1583, publicada em MHSI, Documenra Indica,
vol. Xll, org. de P. J. Wicki, Romae, 1972, p. 874).
72. Além do caso ciamoroso de Salmerón em Módena, um choque entre o vigário da diocese genovesa e o jesuíta
Emmanuel Montemayor, de 1554, é coníirmado por uma carta de Polanco a Laínez de 6 de dezembro daquele
ano (Polanco, Víta lgnatií Loiolae, op. cir., t. V, 1555, Matriti, 1897, pp. 111-1 12).

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Os Missionários
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561

mente a ação dos jesuítas da visita pastoral, e aqui as palavras ofereceram a solução. A
ação dos jesuítas íoi chamada "missão" e isso permitiu diferenciá-la da visita pastoral.
No final do seculo XVI, o processo estava concluído. As instruções, dessa época em
diante, advertiram claramente que as duas coisas eram diferentes e que em todo caso
missão e visita pastoral não deviam coincidir. Quem permanecia fiel aos usos antigos
teve de ser chamado à ordem. Foi o que aconteceu a um jesuíta experiente e de grande
capacidade, o mantuano Antonio Possevino.
Possevino era um perito nos dois aspectos desse modo de trabalhar na vinha do
Senhor que era chamado de modo variado mas que consistia na extirpacão da heresia
e na plantação de boa doutrina. Seus registros de visitador representam ao vivo o mo-
delo de visita como oportunidade para iniciar um proceôso de conversão religiosa e de
aculturação. Possevino foi convocado pelo geral da Companhia, Claudio Acquaviva,
porque - ignorando a diferença entre "visita" e "missão" - teimava em chamar de
"visitas" suas missões:

Ao chamar V. R. as missões de visitas, o que o faz estimulado por princípios zelosos de


suprir às carências ou negligências de prelados, elas pareceram ter finalidade diversa daquela a que
se prestam, e talvez o demônio, que detesta o fruto que das missões se colhe, não deixe de meter
na cabeça dos prelados, ou de outras pessoas, invejas e a crença de que V. R. esteja se metendo em
materias de jurisdiçào etc.7t.

Não há duvida de que o problema existia. O geral da Companhia tinha o dever


de estar atento e evitar todo conflito jurisdicional, e se advertia sobre a existência de
um problema desse gênero devia ter suas razões. A personalidade de Possevivo estava
entre as mais eminentes da Companhia, mas tambem entre as mais dificilmente contro-
láveis; e, por outro lado, havia muito tempo, os bispos eram os mais fieis admiradores
e utilizadores da Companhia. Por isso, a advertência era para ser levada a sério. E isso
vale tambem para quem se pergunte qual era, nessa época, o estatuto da missão popular
e que relações tinha a nova e importante realidade do mundo católico italiano com a
visita pastoral.
São relações que mais adiante fixaram-se em íórmulas rígidas e foram regisÍadas
pelos manuais dos canonistas. Então, aprendeu-se a distinguir entre missio e visitatio:
reseÍvou-se à visita pastoral a tarefa da correção e da reforma ou retorno da disciplina
à condição anterior. Quanto à missão, distinguiu-se entre aquela nos países do Orien-
te remoto ou de todo modo não cristãos e aquela diriglda ao povo cristão: a primeira
devia ocupar-se da pregação do cristianismo, a segunda, por sua vez, tinha a função de
despertar a piedade religiosa nos povos?4.

73. Carta de Acquaviva a Possevino, Padova, 5 out. 1596, em ARSI, kal. 71, c.37rv.
74. "Ad excitandam in populis pietatem" (cf. F. Lucii Ferraris..., PÍompta BibLiotheca Canoníca, Ju"idica, Moralís,
Theologica, Venetiis, apud Gasparem Storti, 1787.1794, t. VI, p. 64 (verbete missio) o verbete t,isirado encontÌa*e
no t. IX, p. 127).
562

Portanto, aprendeu-se a distinguir com precisão a visita diocesana da missão


popular, e no entanto, restou um traço das antigas relações entre as duas realidades,
pois, a propósito da missão, continuou-se a prever o envio de um tipo peculiar de mis.
sionários, os mandados pelos bispos para preparar o terreno para a verdadeira visita
pastoral, animando a devoção coletiva75. Era esse o fluxo de estimulação religiosa ins.
titucional que fora conservado pelas entusiásticas introduções de pregação apostólica
do início do seculo XVI.
Mesmo no que diz respeito às relaçÕes com a lnquisicão, no início muito estreitas,
houve um progressivo distanciamento, tanto que por fim a via apostólica da missão e
a judiciária da Inquisição chegaram a apresentar-se como antiteticas. O fato e que a ex-
periência italiana fizera amadurecer a convicção ã. u-" oposição intransponível entre
o campo do direito e da pena e o do auxílio espiritual. Ao mesmo tempo, a iniciativa
do papado no plano religioso e político reconduzia a Roma os fios do controle sobre
a conquista religiosa extraeuropeia e suscitava o problema de uma direção de metodo
único e de instrumentos institucionais comuns.
O ato mais significativo das missões no início do seculo XVI - a carta de missio aos
doze de l5Z3 - vira associados o geral dos franciscanos Quiflones e o imperador Carlos V.
A alianca entre ordems medievais e monárquicas ibericas devia durar muito tempo,
colocando um obstáculo para o início das mesmas missÕes jesuíticas na América que
tiveram de esperar bastante antes de obter a permissão espanhola?6. No entanto, já nessa
época, o papado recebera solicitações de várias partes no sentido de assumir a direção
do processo de propagação do cristianismo nas novas terras: um documento significa-
tivo, embora desprovido de eficácia imediata, é o programa de unificação religiosa do
mundo, proposto a Leão X no Libellu.s dos venezianos Querini e Giustiniani.
A oferta da Companhia de Jesus de torna?se instrumento da vontade papal nessa
direção foi certamente uma passagem fundamental para a nova presença do papado
no terreno das missões. A obra dos jesuítas destaca-se em todo relatório da história das
missões da idade moderna como a mais importante, a ponto de parecer a única. Isso,
em boa parte, e devido à obra de propaganda por meio da imprensa que a Companhia
não demorou a desenvolver com extraordinária habilidade e sucesso. Na realidade, os
jesuítas certamente não foram os únicos, em matéria de missões, no panorama das ordens
religiosas. Como foi visto, foram os franciscanos em primeiro lugar, e depois em variada
e diferente medida foram os membros de um sem-número de ordens e congregações
religiosas que investiram suas energias na obra de propagação da fé, experimentando
metodos e instrumentos, suscitando e canalizando consideráveis energias humanas
nessa direcão. Velhas e novas ordens, missões nas Índias e missões internas: antes ainda
da fundação da Companhia de Jesus, os Capuchinhos foram os protagonistas de uma

75. "Tâmquam visitationis pastoralis praenuncii" (idem).


76. Cí. Robert Ricard, Út conquête spintuelle duMéxique, Paris, 1937 (existe urna tradução para o inglês: The Sp;n-
tual Conquest of Mexico: An Essal on the Apostolate and thr EuangeLiTing Methoü of tht Mendícant Orders in Mtu
Spain: 1 5 2 3 - 1 57 2, Berkeley, 1966).

Os Missionários
r
56i

disseminada e apaixonada pregação que tomou de assalto cidades e campos na ltália e


na Europa. E, após os Jesuítas, não se contaram mais as congregacões surgidas com a
única finalidade de organizar atividades missionárias: para limitarmo-nos exclusivamente
às missões internas, é preciso lembrar os padres da Missão, fundados por são Vicente
de Paula (conhecidos tambem como com o nome de Lazaristas ou Vicencianos) e a
Congregação do Santíssimo Redentor ou Redentoristas, fundada em 1732 por santo
Alfonso de Liguori. Contudo, a novidade trazida pelos jesuítas foi terem-se oferecido
como instrumento do papado para serem enviados em "auxílio" às almas onde quer
que fosse necessário.
A oferta encontrou um interlocutor mais atento do que fora o papado no início do
século XVI. E o instrumento em que se pensou foi imaginàdo de acordo com o modelo
do organismo que tinha dirlgido a luta contra a heresia: a congregacão cardinalícia.
Era necessário "instituir em Roma uma congregação de poucas pessoas de autoridade,
ciosas e muito prudentes, que em certos dias da semana examinassem o modo de ajudar
todas as províncias só no que se refere d assuntos espirituais, cartas de edificaçao... sem tratar
de coisas de interesse, de censuras, de jurisdiçao eclesidstica"TT. A nova Congregação, enfim,
devia funcionar com base em criterios determinados por antítese em relação àqueles
que caracterizavam o Santo Ofício da Inquisição. Os sucessos obtidos na Europa, com
a política de penetração pacífica e a formação de uma elite especializada através da rede
dos colegios, sugeriam a necessidade de um controle centralizado em Roma e inspirado
em critérios não mais policiais e defensivos como os da Inquisição. Surgiu assim a tenta-
tiva empreendida por Gregório XIII de criar uma congregação cardinalícia destinada ad
coneersionem infidelíum?8. Mas não era fácil desfazer os pesados liames entre evangelização
e domínio colonial. A experiência do primeiro seculo seguinte à descoberta da America
era a de uma autoridade nominal da Igreja usada como cobertura do poder político
dos estados coloniais, baseada em um enffelaçamento de conveniências recíprocas que
não podia ser facilmente desfeito. As ordens missionárias puderam conciliar sem difi-
culdade o dever de fidelidade política ao soberano com a obediência formal ao papa.
Mas o conffole efetivo sobre a seleção e o envio dos missionários permaneceta no seio
das potências coloniais - Espanha e Portugal.
Nesse sentido, foi muito significativo o que sucedeu ao franciscano Diego Valadest
apos uma longa atividade missionária na America, na decada de 1570, Valadés dirigiu-se
primeiramente à Espanha e depois à Itália, onde elaborou um projeto de instituição
cenffalizada para a formação de missionários em Roma. Trata-se de um episódio impor-
tante no caminho que conduziu ao surgimento da congregação romana de propaganda
fide e ao colégio urbaniano, justamente pela identidade excepcional da personagem:

77. Memorial da Companhia de Jesus "a S. Santidade [Gregório XIll] para ajudar o cristianismo", s.d. (nnsl, Opp.
NN. 314, c. 76r). O griío é meu.
78. Cí. J. Metzler, "Wegbereiter und Vorlâuíer der Kongregation", em S. Congregario üPropl,gandr, Fide, 71, Romq/
Freiburg/Viena, 1971, pp. 46.52;Lajos Pásztor, "1 Francescani nell'America Latina e la Curia romana", em
Diffusione deLFrancescanesimo ne\Ie Amenche, Anais do X Congresso Internazionale della Società di Studi Fran-
cescani, Assis, 1984, pp.57.86.

As nossas indias
s64

Valades nascera e crescera nas Índias ocidentais que deviam ser evangelizadas. Por
isso, longe de ser um representante de uma concepção metropolitana e centralizada
da aculturacão, ele levava a Roma a voz genuína desses neóíitos americanos que preen-
chiam com seu entusiasmo de convertidos as estruturas e os instrumentos elaborados
pelo cristianismo europeu. Tendo ingressado na ordem franciscana, experimentara
um metodo de pregação aos índios baseado no uso das imagens como instrumento
para superar barreiras linguísticas. Como outro neófito, o judeu egípcio Gian Battista
Eliano (ou Romano), Valades era tão entusiasmado pela pregação por meio das ima.
gens a ponto de elaborar com base na experiência americana um verdadeiro manual
para pregadores europeus: eram as imagens que podiam propiciar o instrumento de
comunicacão com uma população de analfabetos du de fal"ntes de outra língua?e. Sobre
as culturas originárias dos dois neófitos haviam sido impressas as características das
ordens às quais pertenceram: se o jesuíta Eliano propôs o livro como instrumento de
conquista religiosa, o franciscano Valadés propôs modelos de sermão apaixonado, cantos
devotos, momentos de exame de consciência coletivo, com os frades que enumeravam
os pecados e os índios que faziam rapidamente o cálculo de suas culpas debulhando
grãos de milho ou utilizando as imagens distribuídas e comentadas pelos frades8o. A
:l

fl
obra do jesuíta Gian Battista Romano (ou Eliano), tambem neófito de proveniência i

extraeuropeia, como Valades, mas judeu e egípcio, portanto com horizontes geográficos ü

e culturais bem diferentes, obteve grande sucessosl. O manual de Valades, ao contrário,


quase passou em brancas nuvens: não foi impresso em Roma, como seu autor desejava,
mas em Perugia, onde Valades foi exilado por ter caído em desgraça perante o rei da
Espanha Felipe Il. A verdadeira autoridade sobre a seleção e o envio dos missionários,
segundo a opinião da corte de Madri, pertencia ao Provincial franciscano na Espanha;

79 Rhttorica Christiana ad Concionandí et Orandi usum accommodata utriusque facultatis exempLis suo Loco ínsertís, qu,ae
quidem, exlndorum maxíme de\Íomptl. sunt historiis..., Perusiae, apud Petrum Iacobum Petrutium, 1579. Provavel.
mente "mestizo", certamente em condiçôes de dominar várias línguas e culturas indígenas, Valadés foi educado
pelos íranciscanos e toÍnou-se membro dessa ordem. De passagem na Espanha, em 1571, íoi editor do mais
importante manual franciscano de preparação dos missionáúos, o hineranum CathoLicum de ftei Juan Focher
(Sevi1ha, 1574). Transferido para Roma, exerceu ali as íunções de procurador-geral da ordem. Uma revisão dos

dados biográficos, poucos e controversos, relativos a Valadés e novas pesquisas sobre o periodo italiano de sua

vida e sobte seus textos inéditos (por exemplo, das Ásserciones Catholicae e uma colaboração à comissão sobre
as Centuríae Magdeburgenses) enconffam-se no ensaio de Isaac Vazquez Janeiro oFM, "Fray Diego de Valadés.
Nueva aproximación a su biograíía", em Los Franciscanos en elNuevoMundo (siclo xvt), Madrid, 1988, pp. 843.
-871: uma anáÌise da obra principal íoi proposta por Pauline MoííittWatts, "Hieroglyphs of Conversion: Alien
Discourses in Diego Valadés's Rhetorica Chnstiana", em Memorie Domenícane, n. s., )C{lI, 1991, pp. 405433.
80. "[...] Praelegirur ilhis modus confitendi iuxta ordinem praeceptorum decalogi, quod arrectis auribus ausculhnt
et intet auscultandum granis tritici illius indici vei calculis peccata eorumque iterationes et circumstantias notant
aut figuras et imagines suas exerunt atque eo modo bene, eiare et fade confitentur" (Rhptonca Clmstiana, p.21$.
81. Trata-se da Dottrina Chnstíana nella. quale si Contengono Ií PnncipaLi Misten della nostrd fedp. rappresentati configue
per ìnstruttione de gl'ídíotí, et di quellí che non sanno lcgere, em Roma, tipografia de Vincenzo Accolti em Borgo,
1587. Para uma análise do contexto em que íoi publicado, veja-se do autor deste volume "lntorno ad un Cate.
chismo Figurato de1 Tardo 500", Quad.erní di Palazzo Te, n. 5,jan..jun. 1985, pp. 45.53; e Genoveffa Palumbo,
SpecuLum Peccatorum. Frammenti di Stona nello Specchio delle Immagtni tra Cínque e Seícento, Napoli, 1990.

Os Missionários

3.È

\
r
t6;

era de todo modo um poder que não podia sair do território espanhol. Por isso, o projeto
romano de Valades acarretou-lhe a hostilidade espanhola. Por meio de uma seca ordem
de Felipe II a seu embaixador em Roma, com data de 10 de maio de 1577, Valadés
foi destituído pelo procurador da ordem franciscanasz. Somente com a derrocada das
ambições imperiais da Espanha podia ser realizado o plano de centralizar em Roma
a autoridade de controle das missões. Mas, enquanto isso, o íavor papal em relação
à Companhia de Jesus suscitava reações de ciúme e de hostilidade não só por parte
dos estados coloniais mas tambem por parte das ordens pregadoras. O monopólio das
missões no Japão concedido aos jesuítas por Gregorio XIII e confirmado por Sixto V
deixou uma marca indelével na memória dos íranciscanoss3.
Todo projeto de concentraÍ em Roma a formação ì o .o.tttol. do pessoal mis-
sionário esbarrava no obstáculo espanhol. E tratou-se de projetos que começaram bem
antes do surgimento oficial da Congregação de propaganda fide. Foi justamente sob a
ótica romana que se realizou a fusão dos problemas missionários extraeuropeus com
os das "Índias internas". Prova disso encontra-se no memorial que o padre de Lucca
Giovanni Leonardi preparou para Paulo V em 1608, em conjunto com o jesuíta Martin
Je Funes8a. Giovanni Leonardi vinha da experiência das duras lutas religiosas de Lucca
e da colaboração com a Inquisieão na época em que se deu a emigracão forçada dos cal-
vinistas. Agora os tempos tinham mudado. O plano de Leonardi consistia na criação de

ï
seminários como local de formação de um clero secular destinado à obra de intervenção
i
nas necessidades urgentes de todas as populações em perigo. A imagem evangélica da
.,1,slha desgarrada e das 99 em segurança tinha sido revirada, o clero devia deixar em
segurança a única ovelha sob as abóbadas da igreja e acorrer em auxílio das outras 99
que não tinham igrejas ou clero a seu alcance. Ia-se desde as populações das Índias aos
hereges europeus, das minorias de judeus até as populações das zonas montanhosas
Jos países católicos. Era um projeto que tendia a substituir a obra itinerante das ordens
:eligiosas pela presença estável de um clero paroquial bem preparado. A coisa não era
:êita para depender da aprovação das ordens e, em particular, da Companhia de Jesus,
.r jesuíta Martin de Funes, renegado por seu geral, rompeu com a Companhia. Mas o
projeto seguia o modelo tridentino da ordenada gestão paroquial: nesse caminho e a
parrir da iniciativa de Leonardi devia nascer o colegio urbaniano de Propaganda Fide.
Era o sinal de tempos novos. A realização da Congregação de Propaganda Fíde e do
Colegio Urbaniano para formar os missionários devia realizar-se sob o impulso da compen
,acão católica e da guerra de reconquista religiosa europeia dos trinta anos: por isso, com

Cí. Isaac Vazquez Janeiro, Fral Diego deValad&,0p. cit., pp. 861'862.
Cf. Bernward H. Willeke oFM, 'A Memorandum oí Pedro Baptista Porres Tamayo OFM on the State of the
Missions in Japan (1625)" , ,Nchitum Franciscanum Histoncum, Doo(Vl, 1993, pp. 81-98.
i.|' Publicado, a partir do original conservado no Archivio dell'Ordine della Madre di Dio, porVittorio Pascucci,
Giouanni Izonardi. lJna Scelta Radicak. per iL Vangelo, Lucca 1991, pp. 701-244. Cí. sobre Leonardi o esrudo
de Giuseppe Piras, La CongregaTione e íl Col\eglo dí Propaganü Fide di l.B. Viues, G. Leonardi e Martín de Funes,

Roma, 1976. Sobre o início da Congregação , cl. Sacrae Congregationis de Propaganda Fíd.e Memona Rerum, ed. J.

Metzler, Freiburg im Breisgau, 1971.

As nossas Índias
í.-"'

566

um horizonte ocupado predominantemente por materias alemãs e europeias, que deviam


pesar cada vez mais no horizonte missionário após a paz de'Westfália85. No momento em
que se iniciava sob o fragor das armas um grande projeto de unificação religiosa da Europa,
instrumentos de cunho policial e formas de pregação apostólica eram chamados a somar seus
efeitos. Foi nesse clima que a ideia das "Índias internas" disseminouae até na Alemanhas6.
Na perspectiva da Guerra dos Trinta Anos, os instrumentos para a defesa e a
propagação da fé eram chamados a atuar sob formas diferentes mas com um objetivo
comum. Como na luta contra os valdenses da Calábria, os pregadores "apostólicos"
eram agora convocados em um plano mais vasto e por iniciativa direta do papado a
colaborar com seus instrumentos para a vitória do catolicismo. Foi quanto se tornou
evidente em um documento oficial de indubitavel importanciar a carta circular com
que foi anunciada oficialmente a fundação da Congregaçáo de propagandafide, de 1672:

Abarca o supremo ofício do papa tudo aquilo que à saúde das almas pode pertencer, mas
nada em maior medida do que a cura da fé católica, sendo duas em torno dessa as obras necessárias,
uma de conservála entre os fieis, obrigando-os ate sob penas a mantê-la com íirmeza, a ouffa de
disseminála e propagá-la entre os infiéis; por isso duas maneiras de proceder foram ainda tomadas
pela santa lgreja, uma judidal, motiuo pelo qual acha-se instituído o ofício da Santa Inquisiçao, a outra moral,
oumelhor, apostóLícd, motivo pelo qual as missões dos operários entre os povos, que mais necessitam,
são dirigidas continuamente; e por isso foram instituídos vários seminários, e colégios, para ensinar
aqueles que serão enviados e para dar sustentação aos novos convertidos8?.

O ofício de 15 de janeiro de 1672 em que era anunciada a todos os núncios apos-


tólicos a criação da nova congregação depropagandafide,ou de propaganda - como logo
foi referida, com simpliíicação burocrática destinada a duradouro sucesso - distinguia,
em suma, dois pesos e duas medidas. Maneira "ludicial" e maneira "apostólica" não se
diferenciavam nitidamente por âmbitos, como pareceria à primeira vista (de um lado, os
"fiéis", de outro os "infiéis"). Mesmo nas terras dos príncipes católicos encontravam-se
súditos que, apesar de não serem católicos, não podiam ser tratados como hereges: "nas
províncias católicas encontram-se judeus, e aparecem nos portos e nas praças, ou estão
nos confins dos hereges e cismáticos e dos infieis" com os quais se devia renunciar ao
uso da Inquisição e resignar.se às artes da persuasão. As indicações da Inquisição em
relacão a eles tinham sido de um fechamento tão rigoroso qual irrealista: os decretos
do Santo Ofício, sob Clemente VIII, tinham proposto a designacão de um "estado co.

85. Cf. Georg Denziet,DíePropagandakongregation inRom and die Krchr. ín Deutschl"and nach dem WestfiiLischcn Frieden,

Paderbom, 1969.
86. Cf. o testemunho relativo ao jesuíta padre Jacob Rem mencionado pelo autor deste volume em "Otras Indias".
Missionari della Controriforma tra Contadini e Selvaggi", em Scienze, Credcnze OccuLte, LiveLLi di CuLana,Fírenze,
1982, pp. 705.734; em part. p. 218.
87. Carta circular da S. Congregação aos Núncios apostólicos, 15 jan.1622, publicada em Sacrae Congregationís
d,e Propagand,a Fide Memona Rerum, org. de J. Metzler, vol. lll/2, Roma/Freiburg/Viena, 1976, pp. 656ó58. O
grifo é meu.

Os Missionários
í

567

mercial fechado", no qual devia ser severamente proibido aos hereges morar ou deter.se
estavelmente na península italiana e nas ilhas adjacentesss. Tratava.se de uma medida
que era continuamente contrariada devido a exigências políticas, comerciais e militares.
A "via apostólica" das missões estava baseada em exigências reais e inaugurava uma
estratégia diferente. E depois, a referência aos "povos que mais necessitam" deixava
aberta e livre a escolha das terras a serem abertas às "missões", que podiam ser - e que
de fato eram, à epoca - até as terras da Itália católica.

A Guerra dos Tiinta Anos não trouxe a solução ardentemente esperada pela parte
católica. A congregacão de propagandafide, ao apresentar o "relatório do estado da religiao
católica" ao papa, teve de admitir que a maior parte da EuÌopa ainda estava, no tardio
século XVII, nas mãos de "príncipes infieis e hereges". Nos próprios países católicos, o rigor
da Inquisição não era suficiente para impedir a circulacão de hereges e infiéis: estavam eles
em Madri, "em grande quantidade", mas estavam sobretudo em Roma: aliás, "em nenhum
lugar sói ser maior o número de hereges e cismáticos do que em Roma, onde não so se
encontram de passagem, mas ali se detêm por meses e anos"8e. A conclusão a que chegava
o relatório, porém, não era a de que a ação inquisitorial devia ser reforçada, pelo contrí
rio. Do "concurso de forasteiros ainda que hereges e infieis... pode.se tirar grande bem e
vantagem para a fé católica": esses turistas hereges, quando voltavam à pátria, tendiam a
manter boas relacões com os missionários católicos e os protegiam das perseguicões. Era
preciso, portanto, tratílos com gentileza, principalmente se de família nobre, controlan-
do o pessoal italiano de serviço (para evitar que se contaminasse com a peste herética).
Quanto aos estrangeiros, não se devia empregar contra eles a dureza da Inquisição, mas
a astúcia e a ternura dos missionários: a estratégia sugerida era de colocar ao lado deles
"homens doutos e prudentes que, sob o pretexto de erudicÕes ou outro, insinuando.se
em suas consciências e íamiliaridades, tentam instruí.los na virtude católica"eo.
Por isso, até Roma comecara afazer parte das "Índias internas"; ou melhor, era o
espetáculo de Roma que, de jubileu a jubileu, tinha revelado sua extraordinária capacidade
de affacão sobre hereges de boa cultura e de alto escalãoel. Os hereges, temidos durante
muito tempo a ponto de fazer pensar em um fechamento total das fronteiras e em um
bloqueio absoluto da emigracão, tinham se tornado pessoas a serem conquistadas com
astúcia e ternura, usando a "erudicão", o fascínio da cultura e da arte romana - em suma,
recorrendo ao metodo de adaptação do qual a Companhia tinha feito sua bandeira. A
experiência ensinara que mais que o apelo evangelico do missionário valia o fascínio da
religião romana, com o fausto e a solenidade de seus ritos.

s8. Cí. Paolo Simoncelli, "Clemente vlll e Alcuni Prowedimeni del Sant'Uífizio (De haLis Habítantíbtn ín partibus
Haereticorum)" , Critica Storica,xlil, 1976, pp. 779-172. Amedida "contra haerericos in locis ltaliae, vel insularum
adiacentium quovis praetextu commorantes" foi reforçada justamente pela bula de 2 de julho de 1677
Qvlagnum
Bullaríum Romanum a Beato bone Magno usque ad. S. D. N. Benedictum xlil, I.III, Luxemburgo 1727 p. 4t7).
, ,
S9 Rekttione deLLo Stato della Religione Caro\íca a Innocenzo XI, manuscrito em BAV, Vat. Lat. 12071, cc.3ru, ó0r, 6lt.
9rì Id.em, c.62r.
91, Cí. Gerard hbrot,(Jnhstntment polcmíque.l)image de Rome au temps do Schisme: 1534-1667,Lil1e,/Paris, 1978, p. 1ó3.
s68

De resto, a iniciativa missionária estava mudando de mãos. Nas terras da América


os religiosos enviados pelas autoridades romanas viam-se cada vez mais em contato com
os representantes de um novo espírito missionário, intransigente, apostólico, pronto ao
martírio, certo da própria verdade e do erro alheio, que tinha por matrizes as seiras e
as igrejas protestantes, por exemplo, homens como John Burnyeat, um resoluto comba-
tente pela reforma da moralidade cristãez. Figuras do gênero já podiam ser encontradas
finalmente ate no centro do mundo católico, onde não suscitavam mais a reação dura e
desconfiada que no seculo precedente fora reservada aos "hereges". A propósito disso,
foi exemplar o modo como foi recebida pelas autoridades eclesiásticas católicas uma
campanha missionária no mundo mediterrâneo organizada pelos quacres, por volta de
meados do século xVIl. A rede de vigilância inqììisitorial, imediatamente colocada em
estado de alarme, viu-se enfrentando uma ameaça de aparência estranhamente familiar:
pregadores de penitência, homens e sobretudo mulheres, em trajes humildes - tanto que
pareceram "vestidas com o habito franciscano" - portadores do convite ao temor a Deus
e a fazer o bem diretamente aos católicos italianos e a sua autoridade suprema, o papae3.
Os eclesiásticos de obediência romana que tiveram de lidar com os quacres viram-se refle.
tidos em uma imagem que parecia aflorar da profundeza de seu passado, evidentemente,
não foram cruéis comaqueles estranhos hereges que se definiam "verdadeiros católicos".
Em 1662, um batel inglês levou de volta à pátria Sarah Cheevers e Katherine
Evans, duas missionárias quacres desembarcadas em Livorno cinco anos antes; tinham
sido detidas pela inquisição em Malta ao tentarem atingir Jerusalem e mantidas na
prisão durante quatro anos, antes de serem libertadas. O inquisidor de Malta, de nome
ilustre - Girolamo Casanate - sugerira sua soltura visto não haver esperanca de que se
deixassem converter. O irmão de Casanate estava no batel, nessa viagem de regresso, e
parece que gostava de conversar com as duas mulheres. "Durante uma dessas conversas,
Casanate disse-lhes que, apesar de percorrerem caminhos diferentes para o Paraíso, no
final se encontrariam. Mas as duas mulheres deixaram-no em situacão dificil, respon-
dendo que Jesus Cristo, a luz do Mundo, era o único caminho que levava ao Pai"ea.
Casanate aprendeu então que "on est toujours le missionaire de quelqu'un".

4. IIvpIppTaB: MIToS EXoTICOS E PROPAGANDA


Se Roma atraía os "hereges" europeus, as Índias estimulavam as fantasias missionárias
dos católicos. As Índias tambem dominavam a política de expansão das grandes ordens,
atentas em garantir para si o monopólio do favor dos soberanos e a exclusividade no

92. "l travelled and laboured in the work of the Gospel", escreveu em sua autobiografia john Burnyeat (The Trurh
Exahed ín the !/ritings of that Eminent and FaithfuL Servant of Chnst lohn Brunleat, London, Thomas Northcon,
1691, p. l1)t seu objetivo era "the Reíormation oí the conversation from debauchery, wickedness, unrighteou.
sness, and witchcraft" (p. 33).
93 As citacões foram extraídas do liwo de Stefano Víllaní,Tremolanti e Papísti. Missíoni quacchere neLL'ItaIía del,'600.
Roma, 1996. Agradeço o autor poÌ ter-me permitido a leitura do texto.
94 Idem, p. 135.

Os Missionários
r
569

direito de enviar os próprios membros para a obra de evangelizacão. Os jesuítas, os i


últimosachegarem,tivefamqueenfrentarmuitotrabalhopafaSecolocarememgrau
derivalizar.secomosfranciscanosedominicanos,comoSagoStinianoSemercedários,
enfim, com as muitas ordens já ativas nesse empreendimento. No entanto, a originalida-
de do estilo dos jesuítas logo se evidenciou: a insistência deles na qualidade intelectual
da penetração nas culturas não cristãs foi certamente original. No impulso à conver.
são, os jesuítas trouxeram a consciência nova do fato de que não bastava a apressada
e frequentemente violenta agregação formal à lgreja para criar novos cristãos. Devia.se
mudar interiormente. A consciência das barreiras a superar foi evidente sobretudo nas
missões fora da Europa cristã; mas dali refluiu para as "Índias internas".
Em 1545, o jesuíta italiano Antonio Criminali entrou em conflito com os fran.
ciscanos em Goa devido à prática desses últimos de batizar em massa os neófitos, sem
preocupar-se em fazer com que compreendessem as nocões básicas do cristianismoe5.
Sua insistência na necessidade de compreender e fazer compreender antes de batizar
e encontrada de modo inalterado na estrategia de todos os grandes missionários je.
suítas dos seculos XVI e XVII. Não bastava batizar sem ter "convertido los animos",
como escreveu um jesuíta de origem morisca a propósito dos moriscos espanhoise6. Mas
e sobretudo a abertura dos jestÈítas para os mundos além das fronteiras (geográficas e
!
Ì
religiosas) que constitui o traço dominante de seu estilo: era preciso lograr novos fieis
I
para a religiao cristã, conquistando profundamente suas mentes, sem contentar,se em
salvar-lhes a alma com batismos indiscriminados.
1

E difícil dizer de onde provinha para os jesuítas essa atenção particular em relação
,J

aos problemas das barreiras religiosas e culturais. Entre os fundadores da Companhia


havia um "cristão-novo": assim na Espanha eram denominados os convertidos do ju-
Jaísmo e seus descendentes. Era Diego Laínez. Sua presença foi tão importante para a
vida da Companhia quanto embaracante para quem teve que escrever sua história: no
rnício do seculo XVII o jesuíta Francesco Sacchini tentou fazè-lo e teve que submeter sua
-História" a uma ediçao censurada, que subtraía
a notícia das origens de Laíneze?. Ora,
lustamente Laínez nos oferece a chave para entender araíz dessa avaliacão positiva do
novo: em um sermão de 1557 , ele afirmou que infieis e judeus eram melhores do que
r'ìs cristãos no que se refere à observância dos próprios preceitos e que, se convertidos,
saíam.se melhor do que os velhos cristãose8. Se se pensar que ele próprio era um cristão-
-novo, essas afirmações de Laínez oferecem um indício interessante: nenhum cristão mais

i. Carta a Inácio, de Módena, 7 out. 1545, em Documenta Indica, l, pp. 13 e ss.; sobre Antonio Criminali cf.
G. Schurhammer, S. 1., "Leben and Brieíe Antonio Criminali's des Erstlingsmârtirer der Gesellschaft Jesu",
Archiq)um Franciscanum Histoncum, V, 1936, pp. 731.267.
l. lgnaciodelasCasas(1550-1608),cujaspropostaseexperiênciasaesserespeitoforamestudadasporF.deBorjia
de Medina, Ln Compaíía de lesus l IaMinoríaMonsca, op. cit., p. 17.
Ji. CfrAlbettSicroflLosEstatutosdeLimpieTadeSangre.ControuersiasentrelosSiglosXVyXVÌI,Madrid, 19?9,
p.347.
èi. Otexto,inédito,éindicadoporO'Malley,Thc.FirstJesuits,op.cit.,p.T6,queolêcomoretomadadeum
tema tradicional e não o liga à condicão de "cristiano nuevo" de Laínez.

As nossas Indias
570

do que os "novos" - descendentes de judeus convertidos ou eles mesmos convertidos -


unia o ardor do neófito à abertura para o mundo não cristão. E um indício útil para
entender como a Companhia vivia o problema da conversão dos não cristãos e como
estava atenta em captar o quanto de não cristão havia na cultura dos povos evangelizados.
De resto, a de Laínez não foi absolutamente uma condicão excepcional. Tâmbem Juan
de Polanco foi muito provavelmente descendente de uma família de cristianos nueoLosee.
Secretário de Inácio a partir de 1547, foi, como se disse, o criador da rede de epistolar
e o diretor da expansão missionária; foi também o redator das regras sobre as quais os
jesuítas deviam meditar para ter sucesso e penetrar em ambientes novos e hostis. Suas
regras, também chamadas Industriae, circularam manuscritas entre as várias sedes e su.
geriram formas astutas e encobertas de penetração, ligando-as ao princípio fundamental
da "acomodação a todos". Intérprete atento e inteligente da regra inaciana, mostrou-se
particularmente sensível a esse ponto da adaptação e da simulação, justificando.o em
nome do conquistar as almas para Cristo. Que tivesse sido ele a sugerir a Landini a
comparação entre as verdadeiras Índias e as Índias internas não foi certamente fruto
do acaso. Herdeiro de uma ffadicão de diversidade que devia custar-lhe a eleicão para
o cargo de geral da Companhia, era capaz de realizar esse processo de abstração e de
distanciamento que lEvava a considerar como diferentes e não cristãos os camponeses
e os montanheses italianos, cuja pertinência à religiao oficial ninguem ate então tinha
contestado. Outros exemplos alem do dele demonstram que a transposicão de barreiras
religiosas e culturais tornava mais curiosos e atentos em relacão às diferenças de cultura
internas e externas ao mundo europeu. Recordam-se aqui os casos de Antonio Possevino
e de Gian Battista Eliano, ambos célebres missionários. Sobre as origens judaicas de
Possevino, existe de concreto apenas o fato de que foram usadas como acusação contra
ele: mas permanece indubitável que foi o próprio Possevino a lembrar polemicamente
que Jesus era judeu, em um clima em que isso tinha sabor de provocaçãoloo. Eliano,
neto de Elias Levita, veio à Italia desde o Egito para impedir a conversão de um irmão
e acabou ele mesmo por converter-se e tornar-se, com o nome de Gian Battista Roma-
no, um missionário entre os camponeses do campo romano. Trata-se de casos que se
enquadram no interior de uma política da Companhia em relação aos judeus que teve
características singulares: foi singular, em primeiro lugar, a posição pessoal de lnácio
que, à diferença das outras ordens religiosas espanholas e resistindo às pressões de
autoridades espanholas, recusou fechar as portas da Companhia aos "cristãos-novos".
Foi notável tambem a atenção e o interesse que a Companhia dedicou desde seus pri-
meiros anos à questão da conversão dos judeus, com a construcão e a gestão da "casa
dos catecúmenos" em Romalol. Outros casos entram nessa tradicão. Por exemplo, foi
um jesuíta de origem moura, Ignacio de las Casas, eu€ - usando o argumento caracte-

99. Em idem, p.10, nota-se todavia que não íoi acrescentada prova disso.
100. Cí. John Patrick Donnelly, 'Antonio Possevino and Jesuits of Jewish Ancestry", AHSI, LV, 1986, pp. 3-31.
101. O'Malley, The First Jesuits, op. cit., pp. 188-192, registra as singularidades da política da Companhia em
relação a judeus e a "cristãos-novos",

Os Missionários

\
r
571

rístico da Companhia de "converter as alunas" - fez saber ao papa Clemente VIII que
os moriscos espanhois tinham sido batizados a força e não convertidosl02.
A questão das conversões tinha um importante desdobramento na controvérsia
confessional. No contexto da luta entre Igreja romana e mundo da Reforrna, o impulso
paÍa a conquista religiosa e para a eliminação das minorias de diferentes - fenômeno
anterior à fratura religiosa europeia - assumia um significado decisivo: tratava.se não
somente de decidir quem ganhava e quem perdia, mas tambem de esmagar o adver-
sário com a evidência dos números. A "nota" da catolicidade como característica da
"verdadeira" igreja adquiriu então um peso decisivo. Somente a lgreja de obediência
romana - escrevia o jesuíta padre Francois Coster em um manual de ensino para o
encontro com os hereges europeus - é disseminada no ..rr.rdo inteiro; tentem percop
rer mentalmente o mundo inteiro e verão que os luteranos estão só na Alemanha, os
anabatistas num canto obscuro qualquer da Holanda e da Morávia: fora da Europa,
ninguém nunca soube nada de luteranos e calvinistaslo3. E aqui o padre Coster trazia à
lembrança o exemplo de conduta dos cristãos no seio do Império romano da Antigui.
dade. Os cristãos somavam muitos milhares e poderiam ter tentado impor sua religião
com a forca das armas; ao contrário, preferiram derramar o próprio sangue no martírio
do que o dos outros numa guetra religiosaloa.
A questão referente a qual Igreja era a mais disseminada no mundo era atual na
epoca: tratava-se de decidir a qual das Igrejas em conflito cabia o reconhecimento da
"catolicidade". Os modos para ponderar e avaliar a extensão variavam, naturalmente, de
acordo com o ponto de vista. Os teólogos do lado protestante respondiam, ignorando
os progressos católicos nas Índias orientais e ocidentais e fazendo os cálculos somente
no seio das Igrejas cristãs antigas. Foi justamente um reformado italiano que conhecia
bem os balanços triunfais das ordens missionárias quem objetou que a igreja romana
tinha se separado das lgrejas orientais e que por isso eram os papistas que haviam se
segregado da maior parte dos cristãos do mundo habitado1o5. Mas, no que dizia res.
peito ao campo de acão do Novo Mundo, o balanço do lado protestante permanecia,
até então, falimentar: Richard Hakluyt, refletindo sobre a atuação dos pregadores

irì2. "BautizadosynoConvertidos"(BorjiadeMedina,LnCompaniadelestuylaMinoríaMurisca,op.cit.,p. 14).


'Lì3. Enchiridíon Controversiarum pÍdecipudruÍn nostÍi temporis de religíone, in gratiam sodalitatis Beatissimae
VírgínisMariae, auctoÌe Rev. P. Francisco Costero (François Coster), Coloniae Agrippinae, in officina
Birckmannica, 1575, p.86. Sobre Coster cf. Châte1lier, L'Europe des dévots, op. cir. (que porém nâo
cita esse texto).
"Maluerunt tamen sanguinem suum profundendo crudeiter occumbere, quam sanguinem aliorum
effundendo gloriose regnare" (Enchiridion Controversiarum..., p. 16). A crítica implícita à guerra de teli-
gião toca um tema bastante discutido à época. Ver do autor deste volume "I Cristiani e la Guerra. Una
Controversia íra'500 e '700", Rivisra di Storia e Letteratura ReLí$osa, 1994, pp. 57.83.
"Papistae segregati sunt ab orbis habitati parte maxima. Si nos eis adiungamus, a maiori parte orbis
avellemur" (Mektchim id est, Reprm \ibri duo posteÍioÍes cum commentaríis Petrí Martyris r/ermilii Florentini
sac' ar Literar. in schola Tigurina et loannis Volphíi Tíguríni, Tiguri, excudebat Christophorus Froschoverus,
1571, c. 102u).

As nossas indias
&
\
572

calvinistas no Brasil, não tinha respostas animadoras para a pergunta "quantos infieis
foram convertidos" 106,
Ora, e evidente que a obra de pregação do cristianismo íora da Europa teve um
peso bem menor na Europa protestante em relação à catolica. Se limitarmos nosso
campo ao seculo XVI, é fácil notar o espaço bem diferente da América na imagem do
mundo dlfundlda nos países católicos em relação à da área protestante. A literatura da
Reforma elaborou uma geografia polêmica dominada pela luta contra o papadol0?, mas
íoi absolutamente desatenta em relação ao Novo Mundo; a literatura católica, por sua vez,
fez disso grande uso com objetivos apologeticos e edificantes, para demonstrar o caráter
"católico" da lgreja romana e para sustentar que a expansão no mundo compensava
desmesuradamente as perdas na Alemanha. As coisas deviam mudar com o início da
expansão inglesa na America do Norte. Mas não ha drivida de que a imagem da América
que se reflete na produção historiográfica e geográfica europeia no final do século X\-I
e muito diferente, dependendo se a fonte e católica ou protestante: cosmopolitismo e
vontade missionária da área católica não se encontram nos textos protestantes, fechadoe
em um pequeno mundo devoto concentrado em torno da Palestina das origens cristãr
Gravavam sobre o fechamento protestante as necessidades defensivas diante da Corr
trarreforma em armasf se necessário, como demonstrou o caso do envio de calvinistas
ao litoral do Brasil que deu ocasião à grande obra de Jean de Lery, sabiam eles também
dar prova de grande curiosidade e de entusiasmo diante da expansão do cristianismo
nas novas terras. Mas a fé na predestinação divina sustentada por Calvino propiciara
um bom argumento para não se encarregar da sorte de tantas almas de "bárbaros" e de
"idólatras", os quais - como escreveu Calvino - se não tinham tomado conhecimento
de Cristo, certamente deviam isso às próprias culpas.
Essa preclusão teologica diante dos deveres da unificação cultural do mundo
(alem das condições de debilidade inicial da Europa da Reforma) deixou a porta abena
à iniciativa da Igreja católica. Mas deve ser dito que em benefício da Igreja Íomana
pesou sobretudo a capacidade do papado de reconquistar o espaço das missões par:r
sua própria autoridade e de utilizar seu halo triunfal para finalidades apologeticas e
propagandistas na Europa.
Em um cenário dominado pela fratura religiosa europeia, pelas rivalidades entre
as ordens religiosas e pela luta em que a estrutura eclesiástica em seu conjunto estava
empenhada para a própria sobrevivência, as imagens da conquista religiosa em curso
fora da Europa foram inevitavelmente deformadas e submetidas a finalidades contrc
versistas. À prop"g"nda da fé - fides propaganda - devialigar-se intimamente o elemento

106. O trecho de Hakluyt e de 1584 e foi reproduzido por P. E. H. Hair, "Protestants as Pirates, Siavers, and
Protomissionaries: Sierra Leone 1568 and 1582" , Journal of Ecclesiastical Hiscory, )ofl, 1990, pp. 203-/?41
em part. p. 221 e nota.
107. Porexemplo,comaMappemondenouvellepapístiqre(Geneve, 15661)cujaorigemitalianaFrankLestringant
identificou (cf. "Une cartographie iconoclas te:IaMappemonde nout elb papistÍque de Pierre Eskrich et Jean
Baptiste Trento", em Géographie du monde au Moyen Age et à la Renaissance, otg. de Monique Pelletier.
Pads, 1989, pp. 99-120).

Os Missionários
r
573

de deformação ou de forçamento deliberado da realidade, quando não de verdadeiro


engano, que se tornou, enfim, um traço característico da propaganda moderna. As or-
dens religiosas diíundiram imagens triunfais de um mundo ordenado mais de acordo
com seus desejos do que com a realidade: e aquilo que no seculo XVI ainda era profecia
ou expectativa milenarista, um seculo mais tarde era dado como realidade de fato,
fronteira alcançada de uma conquista religiosa que ignorava detenções e derrotas. No
que concerne à tradição franciscana e missionária do seculo XVI na Itália, há uma boa
amostra na história geral da Ordem, escrita por Francesco Gonzaga e publicada em
1587. Esse personagem ilusffe, membro de uma família no interior da qual se produziu
ainda a opção de vida de são Luís, com seu desejo de partir para as Índias, juntou em
sua obra toda a tradicão visionária e boa parte das íontes relativas à célebre expedição
dos primeiros "doze". Mas é sobretudo em torno de frei Martin de Valência e de sua
expectativa da conversão geral diante do fim do mundo (conuertentur ad t,esperam) que a
obra se detém. Em sua ordenada descricão das províncias da Ordem, enconrra espaço
apropriado a tratação das conversões in nocro orberos. Essa tradição de história do mund.o
como espelho dos triunfos da fe (e do primado missionário da própria ordem) encontra-se
como modelo fixo na historiografia posterior: o observante frei Domenico De Guber-
natis, em seu Orbis Seraphícus, propôs uma história dos franciscanos como história do
mundo conquistado pelo Evangelholoe. E uma história imóvel no registrar contínuos
progressos; como já tinham feito os inquisidores, atribuindo a Deus no Paraíso terrestre
o primeiro processo inquisitório da história, assim agora a missão humana referia.se a
uma missio increata - aquela para a qual Cristo tinha sido enviado ao mundo - e à missio
teata dos anjos mandados ao mundo para ajudar os indivíduos e toda a Igreja. Essa
visão triunfalista da obra missionária marcou duradouramente a própria historiografia
católica por sua inesgotável capacidade de oferecer imagens consolatórias: em nosso
Iempo' a descoberta pastoral católica da descristanizacão das massas populares na Franca
produziu, entre seus reflexos, uma interpretação apologética da história moderna do
catolicismo como avancada ininterrupta da conquista missionária110.
Os usos internos, consolatórios e apologeticos da obra missionária pertencem
Jesde o início à historia das missões: e a Companhia de Jesus foi a primeira a intuir o
potencial propagandista disso. Já se disse que a própria redacão das cartas em que os
lesuítas forneciam notícias dos êxitos de sua ação foi sujeitada à regra moderníssima da
propaganda: a divisão entre textos positivos e consolatórios, para ser mostrado aos de

itl8 De Origine Seraphicae Relrgionis Franciscanae eiusque Progressibus, àe Regulrlas Obseruantíae lrctitutione, For.
ma Administrationís ac l-egíbus, Admirabilique eius PÍopl,gatione, F. Francisci Gonzagae eiusdem religionis
Ministri Generalis, et nunc Episcopi Mantuani..., Romae, 1587 (cito a partir da ediçao Venetiis 1603,
pp. 1394 e ss.).
Orbis Seraphicus. Histona d,e Tribw Ordiníbus a Seraphíco Patnarchn S. Francisco Insrirtris deque eorum progres.
sibus, et honoribus Per quatuoÍ mundi partes... De mìssíoníbus inteÍ infidelÊs tomus primus, Romae, tlpis Ioannis
Iacobi Komarek Bohemi, 1ó89.
O representante mais significativo dessa tendência é Jean Delumeau, em particular, cf. de sua autoria lr
catholícísme entre Lutlvr etVohaire, op. cic. (trad. it. Il Cattolicesimo dal xvt al xvilt Secolo, Milano. 1976).

As nossas Índias
s74

fora, e informações sobre problemas e dificuldades, reservadas às autoridades internas.


Daí partiu a decisão de publicar as cartas das Índias, foram edições de textos que desde
o título anunciavam coisas milagrosas e extraordinárias e que capturavam a atenção
dos leitores graças à desfrutação da inexaurível veia da curiosidade etnográíica. Não se
tratava de uma novidade em absolutor seculos antes, as missões franciscanas na China
tinham produzido relatórios recheados de informações etnográficas sobre costumes
estranhos e exóticos (muka m&gna et mirabílietl1). No que se refere a essa tradição, os
relatórios missionários jesuíticos acrescentaram uma forte insistência nos êxitos da obra
de cristianização. Quanto mais dificil era a penetração em culturas novas, tanto mais os
relatórios íaziam soar a corda positiva e exaltadora da conquista. Não se tratava apenas
de relatórios para publicação.
Desde o início da relação com o "Novo Mundo", a curiosidade emográfica não
se contentara com descrições e representações: plantas, animais e homens tinham sido
levados à Europa como documento dos êxitos europeus e do caráter novo, insolito e
curioso das realidades descobertas e conquistadas. Foi um privilegio dos soberanos
exibir nas cortes os selvagens da America, com suas danças e suas plumas; e justamen.
te a partir de uma experiência desse gênero devia sair uma das mais célebres páginas
de Michel Montaigne.'Ora, os jesuítas não compartilhavam o entusiasmo pelo "bom
selvagem", achavam-se pouco à vontade mesmo em meio às populações das costas
africanas e em meio à sociedade indiana. A classificação dos níveis de civilizacão que
foi proposta no final do século por Jose de Acosta expressa bem as avaliações correntes
na Companhiail2. A possibilidade de dialogar com as culturas complexas do Extremo
Oriente, ao contrário, atraía-os muito; o percurso que conduziu o jesuíta Alessandro
Valignano de Moçambique a Macau foi marcado por juízos negativos sobre os povos
africanos e indianos e pelo intenso interesse pelos povos do Extremo Oriente, por
causa de sua cultura (mas tambem por sua pele branca)lr3. Em 1585, Alessandro Va-
lignano conseguiu trazer alguns jovens justamente do Japão para a Europa, herdeiros
de poderosas famílias ("príncipes" é o termo que foi constantemente usado à época):
foram recebidos por Felipe ll e pelo papa Gregório XIII. Durante a viagem, receberam
acolhidas espetaculares nas principais cidades espanholas e italianas. A lembranca da
passagem dos jovens íoi mantida viva através de numerosas publicações, que foram
promovidas em sua maioria pela Companhia de Jesus. A fama das missões jesuíticas
no Extremo Oriente foi com isso exaltada. Solenes aparatos celebraram a passagem dos
jovens japoneses; o efeito de propaganda foi multiplicado por uma verdadeira campa.

111. Cf. os relatórios de Giovanni da Pian del Carpine e de Odorico da Pordenone, em Sinica Franciscana,
vol. I, kinera et Relntiones FratrumMinorum SaecuLi XIil et XIV, ed. P. Anastasius van den W1'ngaert, Ad
Claras Aquas, 1929.
i12. Sobte a obra de Jose de Acosta, DeNatura Noui Orbis, impressa pela primeira vez em Sevilha, em 1588,
a guisa de introdução ao tÍatado De Prccuranda Indorum Salute, cí. Pagden, I-a Caduta d,eLI'IJomo Naturale,

op. cit., pp. 708-Zl0 e 240.


113. A predileção de Valignano pelos povos de cultura complexa e também de peie btanca e mencionada por
J. F. Schutte na introdução a A. Valignano , II Cenmoniale per i Missíorwri del Giapponz, Roma, 1946, p. 20.

(Js Missionários
r
57s

nha de imprensa, na Europalla e tambem no Japãolr5. E um caso exemplar de dupla


propaganda: ao mundo europeu e em particular ao católico a organizacão apurada dessa
viagem, com as entradas triunfais dos japoneses cristianizados nas principais cidades,
devia propiciar a certificação do sucesso alcancado pelos missionários, demonstrando
que as cartas publicadas pelos jesuítas, com suas narrativas edificantes de conversões,
não mentiam. Aos japoneses, por sua vez, era preciso oferecer uma exibicão da impon
tância política das cortes europeias, de modo a íazê-los perceber - por trás da pobreza
e da humildade dos missionários - o esplendor do mundo que estava por trás daqueles
modestos representantes. A delegação dos jovens japoneses devia testemunhar nesse
sentido; e para divulgar o testemunho tambem no Japão recorreu-se ao instrumento
da imprensa. Na obra que à epoca foi impressa para os Ìeitores japoneses, forneceu-se
uma descrição da realidade política e religiosa da Europa: formas do poder político e
religioso, práticas sociais, cidades, armas e técnicas. E toda vez uma comparacão entre
a realidade japonesa e a europeia devia mostrar as diferenças profundas por trás de
aparentes semelhanças. Era um projeto ambicioso, tratava-se de construir um díptico
que propiciasse imagens cativantes da mesma realidade em duas direcões diferentes.
O resultado foi desigual: a face voltada para o mundo católico italiano obteve pleno
sucesso, a outra bem menos.'Era o êxito inevitável do etnocentrismo que inspirava
essa propaganda, por mascarado que fosse pelos elogios e pela admiração exibida em
relacão à cultura japonesa. AtraÍdos pelo desejo de participar da triunfal empresa da
propagação da fé nas "Índias", os candidatos afluíram de todos os cantos. Mas não se
viram diante de um percurso fácil nem de uma acolhida indiscriminada. O mundo
era grande e o trabalho missionário dlficil. Justamente por ser preciso conquistar em
profundidade culturas diferentes, era necessário dedicar grande cuidado à escolha dos
candidatos às missões.
Essa tornou-se então uma preocupação dominante, desde o início da obra missiona-
ria na Índia e no Japão. Quando o convite de Felipe II (1566) abriu aos jesuítas as colônias
espanholas nas Índias ocidentais, a resposta do geral Francesco Borgia foi preparada com
todo o cuidado: "Deve-se procurar ir a poucas localidades - lê-se em suas instrucões -

n4. A literatura sobre a viagem dos três japoneses e muito vasta. Cf. pot exemplo a Relatíone deLViaggio et
Arriuo in Europa, Roma e Bologna de i Serenissimi Principí Giapponesi Venuti a Dare Ubidienza sua Santità,
Bologna, por A. Benacci, 1585. Um levantamento das publicações do seculo XVI telativas à viagem.dos
japoneses foi elaborado porAdriana Boscaro, Sixteenth-Centurl EuropeanPrinted,Vorks ontheFirstlapanese
Mission to Europe, Leiden, 1973. Para os estudos realizados no século )C(, começa.se por José Toribio
Medina, Nota BibLio{afica sobre un Libro Impreso enMacao en 1590, Sevilha, 1894, para se chegar a Judith
C. Brown, "Courtiers and Christians, The First Japanese Emissaries to Europe", Renaissance Quartert'1,
vol. XLVII, n. 4, inverno 1994, pp.872-906.
115 "De missione ltgatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusque ín Europa, ac toto itínere animadversis
díalogus ex ephemeríde ipsorumLegatorum collectus, et in sermonemlatinum uersus ab Eduardo de Sande Sacerdote
in Domo Societatis Iesu cum Facultate Ordinarii, et Supenorum
Socierads lesu", em Macaensi Portu Sinici Regni
Anno 1590. Cito a partir da reprodução facsimilar (Tóquio, 1935), com introdução de H. Iwai e um
estudo crítico de K. Hamada, do qual Alessandro Arcangeli arranjou-me gentilmente uma reproducão.
Foi íeita uma tradução japonesa anotada por Yoshitomo Okamoto.

t
As nossas indias
\
}'
576

para que não se dividam em muitas os poucos que por ora podem ser enviados'116. Os
candidatos não faltavam: outra característica comum dos membros da Companhia era
justamente a vontade de pregação missionária. O próprio Borgia sabia bem disso, pois
quando era comissário.geral de Espanha e Portugal tinha escrito ao geral Lainez pedindo
para ser mandado às indias para "morrer, derramando o sangue em nome da verdade
católica"r17. Era essa a disposição que manifestaram à época todos aqueles que pediram
para ser empregados na obra missionária: não por acaso foi-lhes dado o nome de Indipetae.
Aos gerais da Companhia eram dirigidas as súplicas dos aspirantes a missionários.
A ideia de ajudar "os outros" atraves da obra missionária impulsionava por sua natureza
para terras distantes. As cartas que se acumulavam aos milhares na mesa do geral dos
jesuítas repetiam isso continuamente, quase com as mesmas palavras,

Em duas cartas que escrevi em épocas diferentes, expressei a V. Paternidade Reverenda o


desejo que Deus N. Sr. comunicou-me de ir por amor a Ele padecer de bom grado em companhia
de algum padre em alguma longínqua missãor18.

Mas frequentemente é especificado: a lonjura era a da China, do Japão, das


Índias. Os outros erarn expedientes mais ou menos tolerados:

[Faz] cerca de cinco anos que me encontro por misericórdia divina na Companhia e durante
todo esse tempo deu-me Deus N. Sr. o desejo de ir às Índias, Japão, China, e qualquer outro país.
ainda que muito distante, onde fosse para maior glória da D. Majestade, e auxílio às almas, que
não têm conhecimento da verdade, e eu pudesse sofrer alguma coisa por amor do próprio Deus [...ì
Sinto-me muito propenso à China [...]
Se bem que, não podendo isso obter, também desejo muito os outros países1re.

Os jovens que mandavam essas cartas eram movidos pelo desejo de fazer e mais
ainda pelo de padecer. Atraia-os uma vaga aspiração ao martírio:

Fosse para a maior glória de Deus, desejaria ser mandado às Índias para servir lá aos padres
e irmãos que estão trabalhando em auxílio do próximo. Também sou levado a isso por achar que
assim faria de mim um holocausto mais perfeito a Deus [...] oferecendo a vida e o sangue em nome
de Sua divina majestadel2o.

Para fazer com que a solicitação fosse acolhida, além de usar o fraseado normal e
previsivelmente mais aceito na Companhia, insistia-se nas atitudes e qualidades particu-

116. Cf.M.ScadutoS. I.,StoriadellaCompagniadiGesüinkalia,vol.Y:I)OperadiFrancescoBorgia1565-1572.


Roma, 1992, p. 113.
ll7. Iden,p. 116.
118. Carta de frei Antonio del Pitta ao geral Claudio Acquaviva, Napoli, 1" set. 1589 (ARSI, F. G. 733, c. lì.
119. Francesco Pavone ao geral Acquaviva, Napoli, 24 jun. 1590 (idem, c. 12).
120. Carta de Nardo de Bari, Napoli, 30 jun. 1590 (idem, c. 13).

Os Missionários
í

577

lares dos postulantes, que podiam destacá'los para a comunicação com povos de língua
diferente e dificil, conhecimento de línguas, habilidade para incisões e pinturas, "devido
à grande necessidade que há na China de pintores e entalhadores'r21. (O projeto de partir
como missionário nutria-se não só de cartas, mas também de imagens. A verdadeira
campanha iconográfica dos jesuítas sobre os temas do martírio missionário e o recurso
às imagens para a pregação desempenharam um papel primordial; era natural que quem
tinha talentos para as imagens o destacassetz2.) Mas o que contava era ir longe. Entrar
na Companhia significava uma reviravolta na vida, o abandono de hábitos, famílias,
parentes que pesavam sobre esses jovens inquietos: certo Nicolo Mastrilli, escrevendo
"que desejava ir à China ou às Índias", mencionava "que desejava sair do Reino por
aborrecimentos com os pais"123. Se desejos desse tipo eram capazes de aparecer até
mesmo entre as fórmulas devotas das súplicas, é bem possível entender como devia ser
forte a vontade de fuga dos contextos familiares nesses jovens candidatos às missões.
I Pensamentos e desejos alimentados pelo sonho da missão em teïra distante impreg
. navam de uma grande tensão as correspondências com quem tinha o poder de escolha

' e de envio. Bastava a passagem de um missionário de regresso de terras distantes, ou a


notícia de que se estava preparando uma expedição para que se acendessem esperanças
e fossem feitas novas ou renovadas súplicas de aspirantes: "Com a passagem por esta
cidade do Padre frei Gioseppe Maria de Parma, missionário na Etiópia, reacenderam-se
vigorosamente nossos desejos que ha muito nutrimos..."l24.
Quando as respostas às súplicas chegavam de Roma, a emoção era certamente
intensa: no espaço de uma carta, dava-se a reviravolta de uma vida, abria-se um horizonte
vasto e distante, havia quem contasse ter sentido uma perturbação tão forte a ponto de
ficar por muito tempo "como que fora de mim", a ponto de ter de "tetirar.me e apoiar.
-me a uma parede, para poder mante?me eÍn p["125. Embora a expressão de afetos e
de sentimentos seguisse as regras e as tradições das diversas ordens religiosas - cartas
mais sucintas e conffoladas entre os jesuítas, mais comovidas e ricas de imagens entre
os demais (principalmente entre os franciscanos) - nao há duvida de que em torno da
rroca de cartas com as autoridades centrais adejava uma aura de aventura e de distância
desejada. E possível compreender, então, como parecia frustrante não tanto a recusa
ou o adiamento quanto a destinação nas terras costumeiras e familiares das quais se
pretendia ir embora.
Era aqui que a analogia entre as "Índias distantes" e as "Índias próximas" desem-
penhava sua função. E a imagem, uma vez em uso, tornou-se habitual. Havia razões de

121. Carta de Alonso de Cordova, Napoli, 22 jun. 1590 (iden, c. 1l).


122. Sobre a importância da "organização iconográfica minuciosa" da Companhia de Jesus chama a âtenção
Majorana, I-a Glonosa Impresa, op. cit., p.21 nota.
123. Carta de Nápoles, 23 jun. 1590 (ARSI, F. c.733, c.tt/t).
124. Carta de frei Giovanni Battista d'Ascoli e Andrea de Modigliana de 9 de junho de 1648 (Archivio di
Propaganda Fide, S. O. C. G., L, c. Z29r).
125. Cartas do teatino dom Pietro Avitabile de 25 de maíço e de 18 de maio de 1626, de Messina (idtn, cc.
229r,233r).

As nossas Índias
r
578

oportunidade: era preciso consolar e encorajar homens desiludidos, que queriam ir às


Índias e viam-se destinados a encargos mais próximos no espaço e menos atraentes. Mas
havia ainda solicitações externas: quem percorre as cartas de bispos e outros altos prela-
dos à Companhia, dá-se conta de como a identidade da nova Ordem ia sendo plasmada
em uma densa troca entre intenções dos fundadores e oportunidades reais. Pedia-selhes
que fossem visitar dioceses, pregar, confessar: sobretudo, pretendia,se empregá-los na
obra de conversão - seja no sentido de fazer voltar ao catolicismo quem dele tinha se
afastado, seja no da conquista das minorias não cristãs: muculmanos, judeus. Pode-se
considerar exemplar nesse sentido a consideração que se lê em um despacho do núncio
pontifício em Veneza, Giovanni Antonio Facchinetti, ao cardeal sobrinho de Pio V,
Michele Bonelli, em 1569. Facchinetti, transmitindo às autoridades romanas a súplica
dos governadores venezianos da casa dos catecúmenos para receber certa indulgência
especial, acrescentava:

Fiquei por vezes mui admirado com esses padres Jesuítas, e o disse aos chefes deles que aqui
se encontram, que, passando eles muitas privações para ir a países distantes para converter pagãos à
santa fé de Cristo, como se lê nas viagens que escrevem das Índias de Porrugal, poderiam com bem
maior facilidade obter o Ínesmo aqui, onde com a multidão de turcos que continuamente aparecem,
teriam oportunidade de insinuar e praticar os ofícios convenientes para conquistá-los12ó.

Era justamente esse o resultado predominante dessas candidaturas, as Índias eram


longínquas, o número dos missionários que ali podiam ser mantidos era escasso. Ao
contrário, eram numerosas as solicitações que chegavam da ltália: em primeiro lugar,
os bispos italianos, às voltas com o problema de um clero despreparado e de um grande
trabalho a ser feito junto ao povo; mas também os numerosos admiradores (e as ainda
mais numerosas admiradoras) da obra da Companhia de Jesus {aziampressões, ofereciam
meios para novas sedes, solicitavam o envio de experientes pregadores e confessores.
Por isso, era preciso que os aspirantes a missionários se resignassem. Não lhes faltaram
argumentos de consolo. Em nome da "antiga e nova Verdade", sóror Maria Maddalena
de'Pazzi escrevia ao reitor da Companhia de Jesus em Florenca para notificar.lhe aquilo
que Cristo mandava dizer-lhe por seu intermédio; e entre as mensagens havia a de não
desprezar o trabalho que o aguardava,

Nem pareça a Vossa Reverendíssima fazer obra menor do que aquela que fazem outros padres
e frades nas Índias, ao converter muitas almas infieis a Deus, dando-lhes e conferindo-lhes o precioso
sângue de Jesus, que se observasse e considerasse, não é de menor preço e valor reencontrar uma
alegria já perdida do que encontrar uma nova127.

126. Despacho de 19 de outubro de 1569, emNunziature diVeneyia, vol. x (26 mar. 1569 - 21 maio 1571)
org. de Aldo Stella, Roma, 1972, pp. l4l-l+3.
177. lrmã Maria Maddalena de' Pazzr, Opere, vol. VII, Reno,,tatione della Chiesa, org. de monsenhor Fausto
Vallainc, Firenze, 19ó6, p. 70.

Os Missionários

u.
;rh.
í

579

A parábola evangélica da moeda perdida e reencontrada (Lucas, 15, 8-10), com


seu halo de interior doméstico, era um bom argumento para consolar quem devia
renunciar aos sonhos da empresa grande e heroica de além-mar - em primeiro lugar,
a própria Maria Maddalena de'Pazzí. Mas os jesuítas souberam fazer melhor. A tarefa
que mostravam a seus missionários na Europa cristã não era menor do que aquela que
outros desempenhavam nâs remotas Índias, pois na Europa também havia Índias: e seus
homens partiam para lugares próximos com entusiasmo e predisposição, ao conttário
de quem atravessava o Oceano.
O argumento das "nossas Índias" possuía um evidente caráter tático e consola-
tório, como se viu. Mas isso não impede que sua introdução no modo de conceber a
eliminação do dissenso e das diferenças religiosas tenha comportado uma revolução
no método.
O método dos "operários evangelicos" era por definiçao o apostólico: anunciar
a palawa de Deus e esperar confiante que fosse acolhida e frutificasse. O método
apostólico opunha,se ao método judiciario da Inquisição. O fato de a Itália ser vista
como uma "Índia" significava ter ocorrido um profundo distanciamento na posição dos
observadores: com a experiência dos povos extraeuropeus, os jesuítas aptoximavam-se
do povo dos campos e das montanhas da Europa e, pasmos, descobriam que não havia
muita diferença entre os silvícolas americanos e os camponeses italianos, entre os índios
idólatras e os monscos. Não havia nem hereges nem sequazes do demônio, mas apenas
homens e mulheres ignorantes e idólatras: que tivesse faltado a pregação do Evangelho
(como era o caso dos índios), ou que dele se tivesse perdido a lembrança, como no caso
dos camponeses da Europa, o resultado era o mesmo.
Os traços analógicos que sustentavam a comparação eram exatamente esses: a
ignorância e a necessidade de ajuda (e, subentendida, a necessidade de aceitrila). Na.
turalmente, o tom com que se falava nisso era diferente, dependendo se o desejo era
encorajar e propagandear a obra missionária, ou, simplesmente, descrevê-la em tom
confidencial e de comunicação pessoal. Nesse segundo caso, os juízos podiam ser fran,
camente negativos. E podia reaparecer, sob a imagem do "indiano" bom e disponível, a
imagem animalesca da ignorância camponesâ126. A ignorância não era uma qualidade;
nem a condição de camponês era tal de modo a ser apreciada na cultura época.
Mas em todo caso o método do missionário não podia ser o do inquisidor.

128. Assim fazia o jesuíta Benedetto PaÌmio, escrevendo em 1595 ao velho cardeal Paleotti, bispo de Sabina:
"Nenhuma gente é mais selvagem e mais incapaz do que os camponeses e montanheses dessas terras, e
em comparaçáo com os câmponeses de cá parecem animais; e seria um grande serviço a Deus e edificaçao
do mundo, ajudar essas Ítrdias romanas, como muitas vezes, quando estâva em Roma, eu costumava
dizer" (op. cit. por Prodi, Il Cardinale Gahele Paboni 11522'15971, op. cit.' II, p. 567 nota).

As nossas Índias
r

XXIX
O METoDo MISSIoNARIo

1. Cnnrns DE PAÍsrs DtsrRNrrs


Como se faz um missionáriol A literatura das ordens e das congregações especializadas
produziu continuamente manuais de método. O simples levantamento de "instrucões",
"advertências", "conselhos" redigidos por quem desejava pôr-se a serviço nas missões
ocuparia muito espaço. Mas, como se disse, o método é o caminho depois de ter sido
percorridol. No caso dos missionários, o caminho percorrido foi muito, antes que se
elaborassem normas e se constituíssem instituições2, antes que surgissem tentativas
de elaborar um método abstrato, com regras e advertências; e não se trâtou de viagens
metafóricas, mas reais. De resto, mesmo quando muitas tentativas de sistematização
metódica apareceram, a literatura produzida pelos protagonistas continuou sendo a
das cartas e a dos relatórios de viagem. No século XVIII, o triunfo das cartas missioná,
rias foi total, na Itália e fora da ltália: desde as cartas de Fulvio Fontana3 e de muitos
outros, até a obra-prima reconhecida do gênero, Lettres édifiantes et curieuses. Nunca
como no caso de ambos, viagem e metodo sobrepuseram-se e entrelacaram-se. Somente
a literatura moderna produzida por etnógrafos e antropólogos profissionais repropôs
semelhante entrelaçamento. Portanto, é inevitável que se coloque tambem para o estu-
dioso das missões o problema do qual a antropologia moderna tomou consciência com
o final da era das viagens. Desde quando o exótico deixou de existir na dimensão do
presente e o antropólogo perdeu a função de especialista da distância, perguntamo-nos
se a antropologia era algo diferente da escrita de relatos de viagens. Para o estudioso
das missões, além da descrição das biografias dos missionários, da individualização de
seus objetivos e levantamento de seus escritos, existe a questão da capacidade desses

1. A definiçao é do sinólogo Marcel Granet; é citada por C. Ginzburg no relato de seu itinerário de pesquisa
("Witches and Shamans", New lzft Reuietr, n. 200, jul.-ago. 1993, p.75).
"O século XVI é um período de orperimentações, de tentativas, de comparações', observou Carla Faralli naquele
que continua sendo o trabalho em conjunto mais amplo e preciso para a história das missões jesuíticas ("Le
Missioni dei Gesuiti in Italia (sec. XVI.XMI): Problemi di una Ricerca in Corso", Bollettino delln Societa di Stu.di

ValÀesi,n.138, dez. 1975, pp.97-116; em part. p. 101).


1. Cí. Raccolta d'Alcune ltttere Spettanti allc Missioni, Fatte in halia, e Germania, daL Paüe Fulvio Fontano üIla Con
pdgnia di Gesü, em Venezia, tip. Andrea Poletti, 1720.
582

escritos de dizerem algo a respeito das sociedades em que atuâram os missionários, de


seu estado antes da intervenção e das modificações introduzidas.
Se enfrentássemos a leitura desses documentos com o propósito de separar o
verdadeiro do falso, a descrição fiel da realidade da intenção de edificaçao e propaganda,
perderíamos nosso tempo. As fontes missionárias não foram concebidas como descrição
asséptica de realidades remotas: cada página dos relatos dos missionários encontra.se
repleta dos desejos, das esperanças e das ações praticadas para modificar as sociedades
descritas. Além disso, predispostas que foram para estimular outras vocações missio.
nárias e sobretudo para a confortar os leitores cristãos em sua identidade, investiram
muito nas finalidades de "edificação", exagerando de propósito os resultados obtidos.
Isso não significa que se deva preliminarmente ieparar descrições e prescrições como
L

o joio do trigo. A diferença e a ligação entre prescrições e descricões são fundamentais


Ì

; para decifrar as relações entre poderes e sociedade. O caso das fontes eclesiásticas não
' Írl
!ll
' é diferente dos outros. Vimos como, âté no caso do documento mais rigorosamente
reservado à descrição exata da realidade - o processo inquisitorial -, as intenções, a
vontade, a cultura das autoridades eclesiásticas infiltraram*e inevitavelmente a ponto
de compenetrar e modificar os destinatários. No caso da confissão, como momento
constituído aparentemente de pura escuta, a organização de uma cultura do penitente
foi a empresa fundamental que ocupou as autoridades eclesiásticas e que deu conte-
údo à função do confessor. Enfim, no que se refere às missões, o filtro deliberado de
descoberta do diferente e do exótico até nos lugares mais próximos - abandona-se
aparentemente o esquema rígido do saber inquisitorial - acaba, porém, por combinar a
técnica do conselho e da insinuação suave que era típica do confessor com o propósito
de estabelecer um modelo cristão de cultura no lugar do modelo "idólatra", "pagão".
Ao fazer isso, no entanto, o fluxo dos relatórios - que foi extremamente rico e fluiu
copiosamente durante séculos - trouxe consigo, amalgamada à cultura dos missionários,
uma série extraordinariamente rica em detritos e fragmentos de mundos e de culturas
associadas pelo ffaço de diversidade, a única categoria na qual se baseava sua coleta.
Trata+e, portanto, de literatura descritiva que une a coleta de informações etnográficas
ao relato das acões perpetradas para transformar os costumes descritos e conformá-
los à cultura do narrador. O que surpreende o leitor é sua extraordinária semelhanca
com a literatura científica de etnógrafos e antropólogos; é como se fosse projetado um
grande fluxo de escritos em que se misturam de modo desigual descricões de costumes
e relatos de ações: um fluxo que começa com os relatórios dos missionários e chega
até nós como literatura científica de antropologia. Permanecendo no âmbito dos rela-
tórios dos missionários e daquele seu filão específico que foi dedicado aos "selvagens
internos", será suficiente ter presente sua característica fundamental, que remete à
ambígua função do espelho do diferente: conhecer-se a si mesmo através dos ouros,
tornar os outros idênticos a si mesmo. Tratava-se, em suma, de descobrir as diferenças
registráveis em outros modos de viver no que se refere aos traços fundamentais do
modelo ortodoxo e de intervir para eliminar as diferenças. Por isso, a literatura dos
missionários é uma fonte excepcional pâra compreender em que consistia realmente

Os Missionários
r.-
583

essa "reforma" do cristianismo em torno da qual a Europa moderna tinha se dilacerado.


Para introduzir a reforma, abusou-se nesses documentos da descrição das "deformacões"
disciplinares e morais encontradas; no seculo XVII, quando se chegou a uma reposição
historiográfica dessas fontes, não faltaram protestos dos que se sentiram ofendidos por
certas descrições de sua pátria4. Mas, além do lamento pela corrupção dos costumes
e pela decadência da disciplina, também encontramos aí uma forte curiosidade pela
rparência dos lugares e pelo modo de viver e de pensar da população. Os dois aspectos
:stão combinados em proporções desiguaiss. Mesmo assim, lendo os relatórios dos
missionários jesuítas, compõe-se um quadro animado do território, de seus habitantes,
:le seu modo de viver e de pensar.
Aos relatórios dos missionários está consignada uma faèe da história italiana que
espera ser lida com atencão e paciência. E a ltália humilde dos campos e das monta-
ahas, a Itália dos pastores e dos camponeses, das mulheres e dos pobres, apanhada no
homento em que a religião oficial se debruça sobre eles, registra seus comportamen.
;os, enfrenta seus problemas e estabelece com eles uma ligação mais sólida daquela
[ue existia antes. Encontra-se aí, junto com o reconhecimento do estado das coisas, a
lescrição das mudanças que os missionários pretendiam trazer. Não se pode negligen.
:iar o fato de os relatórios serem elaborados propositalmente para estimular devocão
los leitores, aprovação nos superiores, admiração pelos milagres feitos por Deus: isso
rignifica que neles são celebrados sucessos estrondosos, de acordo com a lógica que já
:inha governado os relatórios das Índias.
Quem folheia algum, ..r.o.rtr"-rqquanto rnuito diante de relatos de viagens. Via-
Jens por mar, muitas vezes extremamentè'longas e perigosas; mas também viagens mais
:urtas, por terra. As crônicas dos capuchinhos, as cartas de franciscanos, dominicanos
: jesuítas são permeadas por longas e apaixonantes narrativas de viagens: o objetivo é
leixar memória e propagar o conhecimento das empresas e das dificuldades dos prega-
lores do Evangelho, mostrando de quais perigos foram protegidos pela mão de Deus.
\ssim, o relato tende a deter-se nos acidentes e nas descobertas da viagem. O exótico e
I maravilhoso entrelaçam-se com as informações práticas e com os conhecimentos de
tealidades novas e desconhecidas.

A segunda parte da história oficial da Companhia, de Francesco Sacchini, publicada em Anversa em 1620,
suscitou reações indignadas entre os leitores sardos pelas páginas sobre a Sardenha, consideradas "um libelo
difamatório' (cf. Rairnondo Turtas, "Alcuni Inediti di Antonio Parragues de Casrillejo arcivescovo di Cagliari",
,\rchivio Storico Sardo, )OOMI, 1991, pp. 181.197; em part. pp. 181-183).
Segundo Louis Châtellier, o aspecto etnográíico é decepcionante, pois "os jesuítas pouco se importavam em
descrever uma paisagem íamiliar e costumes que írequentemente sentiam ptóximos dos que já conheciam" (La
religlon des pauwes. Izs sources du christíanisme modeme,1993, trad. it. La Religíone Dei Poveri, Milano 1994, p. 8).
Mas é um comentário que não paÍece compartilhável e que, provavelmente, é para ser atribuído ao interesse
predominante do estudioso por outÌos aspectos dos relatórios. Esses documentos permitem indubitavelmente
"um acesso, ainda que apenas indireto, à cultura, à mentalidade, às condições de üda e aos comporramenros
religiosos das camadas populares" (Elisa Novi Chavarria, 'LAttiútà Missionaria dei Gesuiti nel Mezzogiorno
d'ltalia tra XVI e XVIII Secolo", em Per la Sroria S ocialc e Relíg1osa delMezzoglomo d'Italia, org. de Giuseppe Galasso
e Carla Russo, vol. tt, Napoli, 1987, p.4 do extr.).

O Método Missionário

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584

E difícil estabelecer quando teve início essa literatura: um experienre leitor e


editor de narrativas de viagem, como Gian Battista Ramusio, não nos ajuda nisso, por
ter escolhido lidar com navegacões e viagens fora da Europa. Contudo, é justamente
com base no sucesso desses relatórios, surgidos desde a expedição de Colombo e mais
ainda da de Cortés, que se foi destacando um filão autônomo de narrarivas de viagens
apostólicas, de pregadores do Evangelho. Os modelos que tinham antes eram dife.
rentes: viagens inventadas - as da tradição dos romances de cavalaria, que eram lidos
nos navios durante as longas travessias rumo ao Novo Mundo, as que eram atribuídas
a John Mandeville ("Giovanni Mandavilla") - e viagens autênticas de pregadores do
Evangelhor desde as viagens dos franciscanos como Giovanni de Pian del Carpine entre
as populações das estepes, até a ffadicão dos itinèrários para Jerusalem. Essa última
era certamente a mais familiar e difundida: após a conquista turca, as viagens à "terra
santa" tinham se tornado umâ oportunidade única para conhecer povos desconhecidos,
modos de vida insólitos e estranhos, doutrinas e ritos não cristãos. Quem tinha sido
prisioneiro dos turcos podia narrar e publicar suas memórias: foi o que fez o húngaro
Bartolomeo Georgievitz, prisioneiro dos turcos e depois fugitivo, que se apresenrou
com o título de "peregtino" caro tambem a Inácio de Loyola6. Foi justamente em torno
dos turcos - os "diferentes", ou melhor, os inimigos por excelência, no meio dos quais
o peregrino era obrigado a passar - que se desenvolveu uma literatura de descrição de
costumes, com base no sistema binário fundamental: nós e eles?. Os itinerários para
Jerusalem tornaram-se, desse modo, verdadeiros guias para se conhecer percursos e ta,
rifas, mas tambem para preparapse aos costumes insólitos que esperavam o peregrino.
Ora, a viagem a Jerusalém tinha sua compensação no fascínio dos lugares autênticos
da vida de Cristo, no retorno ao berço histórico da religiao. Era um retorno ao seio da
experiência cristã: e Jerusalém era, de fato, colocada no centro do mundo, nas repÍe.
sentacões geográficas. Com uma mudança cheia de consequências, a viagem fora da
Europa, rumo às novas terras da América e das Índias orientais, revirou esse modelo,
deixando para trás a "terra santa", para dirigir-se aos mundos desconhecidos dos campos
e das distantes periferias da terra.
Ao longo desse percurso, houve o encontro com o "exótico interno" (os oxímoros
constelam toda a história das "Índias próximas"). A descoberta do caráter exótico - ou
seja, desconhecido e diferente - de sociedades e culturas próximas no espaco ocor.
reu progressivamente, à medida em que os encargos recebidos levavam pregadores e
missionários a percorrer caminhos novos e a lidar com populações desconhecidas. A
expectativa do insólito, a predisposição ao exótico, ao aventuroso, ao edificante, eram
as características de uma cultura que se alimentara de Heródoto e de visões cristãs do
além, de romances de cavalaria e de hagiografias: a abertura de horizontes realmente

Opera Nuova chz Comprendz Quattro Libretti..., Bartolomeo GeorgieuitT de Croacia, detto Pellegnno Hierosolymítano
Authore, Roma, tip. Antonio Bane, 1555.
Uma descrição e catalogação sistemática íoi realizada por C. GOllner, Turcica. Die europdíschenTurckenüucke des
XVI I aLnhundcrt, Bucuresti,/Baden.Baden, 1968.

Os Missionários
r
585

novos e desconhecidos aumentou a necessidade desse tipo de narrativa. A título de


exemplo, pode.se citar o caso do cardeal Cervini, o qual mandou pedir a Francisco Xa-
vier, através de Inácio de Loyola, informações sobre os costumes dos povos do Extremo
Oriente, sobre o que comiam, como se vestiam, sobre a natureza dos lugares8. Eram
indícios de uma curiosidade disseminada, que foi alimentada por uma grande quanti-
dade de relatórios, cartas, avisos. Partindo de sua sede romana, os jesuítas atravessavam
a Itália de ponta a ponta, rumo aos lugares para os quais recebiam a missio. Era, essa
sede, "como um rio daqueles que chegam e daqueles que eram mandados para várias
bandas", conta Polancoe. A essa sede afluíam também as cartas que escreviam: e nessas
cartas encontramos os relatos de suas viagens, com os perigos de uma natureza hostil
e dos maus encontros por terra e por mar: estradas impoSsíveis, em virtude da lama,
das cheias dos rios, da neve, dos cavalos claudicantes, dos bandidos; e mais difíceis
ainda as viagens por mar, com as tempestades e os piratas turcos sempre à espreita.
Bastava deixar Roma, conta o jesuíta Erasmo Volcker em 1561, para deparaPse com
"homens vis e infames" que do alto das montanhas agrediam os viandantes, atirando-
-lhes rochedos; e, atravessando o mar de Nápoles a Palermo, eram montanhas de água
as que ameaçavam os viajantesl0. Não se tratava absolutamente de viagens de aventuras,
improvisadas e românticas: as normas que foram redigidas - as Regulae Peregrinantíum
válidas para todos e as detalhadas instruções predispostas toda vez para cada missio -
deixavam muito pouco espaço para a improvisação. Mas o olhar desses viajantes pousava
sobre as pessoas e as coisas e suas cartas eram portadoras de eloquentes retratos: podiam
ser os "pobres aldeões" que o jesuíta Maggi viu em 1558 em Montepulciano, obrigados
a se engajar por não terem "com que sustentar a si mesmos e às suas famílias"ll; oU
então, os ricos e corpulentos montanheses encontrados pelo jesuíta belga Briamont
em Altdorí junto a São Gotardo, em 1560. Briamont estava atento a recolher notícias
sobre o herege Bernardino Ochino, que chegavam ali vindas de Zurique, mas estava
mais atento ainda à fauna local - camurças, marmotas, ursos, perdizes - e ao modo de
vestir e de alimentar-se da população: fornece-nos desse modo a descrição do queijo
local "grande como o parmesão", de suas grandes gamelas de carne e de nata, dos bocais
de prata usados à mesa, de suas práticas sanitárias, como a de diriginse aos cumes para
beber o sangue quente das camurças e purgar-se dos maus humores, jogando assim
"todas as coisas ruins para baixo"12.
As informações etnográficas não eram o exercício de uma livre curiosidade de
viajantes; respondiam à necessidade de conhecer bem lugares e pessoas, com o ob'
jetivo de tornar a intervenção mais eficaz. Tratava-se de converter as almas, de fazer

Carta de Inácio a F. Saverio de 5 de julho de 1553, em MHSÌ, Monumenta lgnatiana, Epistolae, V, Romae, 1965,
p. 165.
Carta de 21 de setembro de 1560, citada por Mario Scaduto, "La Strada e i Primi Gesuiti", em AHSI, XL, 1971,
pp.3?.3-390; em part. p. 330.
Idem, pp.335 e 338.
Idem, p.343.
Idem, pp.343-i44.

O Método Missíonário
r: -,

586

frutificar a "vinha do Senhor", ou - como preferiam dizer os jesuítas - de "ajudar


os outros". Objetivos com nomes diferentes, que se cobrem, para nós, com o nome
único de "conversão". Mas os nomes diferentes indicavam diferenças profundas na
própria concepção da identidade cristã (e consequentes diferenças de métodos e de
realizacões) que seria errado ignorar. Para os primeiros religiosos que aportaram no
Novo Mundo ou que desembarcaram na Índia após os portugueses, tratava.se de bati.
zar o maior número possível de não cristãos. O método, portanto, era extremamente
simples: bastava o anúncio do Evangelho por meio da pregacão para depois passar
ao batismo. Os relatórios que chegaram à Europa na epoca tinham uma unidade
de medida do sucesso que era dada pelo número de batizados. Foram sobretudo os
franciscanos a considerar mérito peculiar de suã Ordem o número de batismos mi
nistrados nessas Índias ocidentais que, como escreveu Toribio Benavente "Motolinía"
em sua Historia de los Índíos, tinham sido destinadas a eles pela Providência. Ora, os
franciscanos foram os principais defensores de uma ideia de cristianização baseada
na tradição deles, fundada no anúncio do Evangelho - através do exemplo e da pre-
gação na forma mais simples e despojada - e na administração do batismo. A coisa
e singular, se se pensar que, na Europa, a Ordem franciscana tinha praticamente o
monopólio da confissão e da pregação popular e dedicava-se, alem disso, à direcão da
Inquisição contra a heresia. Mas não foram absolutamente os membros dos conventos
mais ricos e importantes a fornecerem as primeiras vanguardas missionárias, nem a
estimularem a ânsia de conquistar novos cristãos. Na ltália, o modelo da pregacão
penitencial voltada aos "simples" foi representado sobretudó pela nova ordem dos
Capuchinhos; mas no momento inicial da expansão missionária os Capuchinhos per-
deram a vez por duas razões muito simples: tinham surgido muito tarde e tido, logo
após o surgimento, a gravíssima desdita de um geral herege que fugiu para os países
protestantes - Bernardino Ochino. As razões dessa crise inicial eram as mesmas que
tinham feito surgir a nova ordem e que mais tarde tornaram.na uma das mais ativas
na pregação missionária: a vontade de pregar o Evangelho puro e de fazê-lo sobretudo
com o exemplo e o testemunho pessoal de simplicidade e pobreza. No entanto, nas
primeiras décadas após a descoberta da América, as primeiras experiências missionárias
inscritas nesse espaço foram realizadas por grupos de proveniência iberica. O modelo
que eles tinham em mente não era tanto o da cristianização medieval da Europa, quan-
to o modelo recente propiciado pela "reconquista" da península ibéricar a conquista
militar, a pregação, o batismo dos não cristãos. Em relação ao decepcionante caso dos
moriscos ou dos judeus espanhóis, a novidade exultante da America foi a do encontro
com populações que se deixavam batizar sem dificuldades. A ilusão da facilidade e
do sucesso consumou-se no espaço de uma geração. No entanto, essa experiência foi
proposta como modelo por um tempo muito mais longo: no final do seculo XVI, a
historiografia franciscana baseava-se ainda nos grandes números de batismos para
exaltar os feitos da Ordem. Girolamo de Mendieta encontrava antecedentes apenas
nos batizados que os franciscanos sempre tinham realizado na Bulgária em 1376, ou

Os Missionários
r
587

naqueles dos apóstolosl3. Quando se tratou de tirar licões dessa experiência para
serem aplicadas ao velho mundo, a proposta mais importante que os franciscanos
foram capazes de fazer não disse respeito, obviamente, ao batismo, mas aos modos
da pregacão, com a obra já lembrada do franciscano Diego Valades.
Na Europa, a questão da conversão não era colocada em termos de batizados em
massa: havia' e verdade, as minorias muçulmanas e judaicas, mas a resistência de ambas
a qualquer tentativa de cristianizacão e os resultados decepcionantes do uso da força
eram suficientes para tornar pouco exemplar a experiência ibérica a propósito. Entre
os cristãos, o batismo era um sacramento aceito e praticado por todos, nem sequer as
controversias teológicas da Reforma tinham modificado muito a situacão. Mas o batismo
sozinho não era mais suficiente para definir a identidade cristã.

2. CulruRR
As candentes discussões do início do século XVI sobre a fé logo cederam espaço à
questão do que deveria ser objeto de crenca. O problema que se evidenciava por toda
parte era o da ignorância: para definir-se cristão era preciso saber uma série de coisas.
Quais e quantas eram e como deviam ser aprendidas era uma questão que tinha sido
discutida de vários modos e resolvida. Mas se havia algo que diferenciava a nocão
de identidade cristã na era da imprensa e da Reforma daquela da época anrerior era
justamente a necessidade de saber e instruir. Para uma parte do corpo eclesiástico, o
sentido da urgência eia dado pela ameaça da heresia, como escreveu um dos redatores
do catecismo romano, Leonardo Marini:

um tempo em que a plebe tinha a necessidade de ser instruída quanto às cousas de


Se houve
Deus, de acordo com a verdadeira e católica religião cristã, este é o tempo, no qual tantas heresias
são semeadas por toda parte, que os pastores devem abrir muito bem os olhos, e vigiar suas ovelhas
para impedir que sejam infectadas por essas maldiçõesra.

Para todos, a questão dizia respeito à "plebe", ameaçada pela insidiosa propaganda
dos mestres de heresia. A preocupação que crescia era do tipo positivo: divulgar dou-
trinas e ensinamentos que preenchessem uma espécie de vazio ameaçador. Em termos
negativos, de controle policial e inquisitorial, o perigo da heresia era enfrentado nesse
mesmo período por meio do controle sistemático sobre os professores de todos os níveis,
desde as escolas de gramática até a universidade: a profissão de fé imposra por Pio IV
em 1564 a todos os mestres-escolas foi o ponto de chegada institucional dessa postura

ll. Cí. Pedro Borges OFM, Métodos mísiorwles enkt Cistianiwción de América, Siglo XVI, Madrid, 1960, p. 32, que
se apropria da tese do modelo apostólico revitalizado pelos íranciscanos.
14. Catecísmo O+'erc Insúutüone delle üse Pmirwrí alla Salute dellc Anime, dí C-ommíssìone àel R. mo et IIL mo S. Ctndinate
dí Mantrxla C-omposa et Publican pu Ia Cittn er Docese va por Monsenhor Leonardo Marini, bispo de Laodicea seu
Sufragâneo,emMântua,porVenturinoRuffineífi, 1555,pp.1-2,epístoladedicatóriadoautoraocardealGonzaga.

O Método Missionário
588

de desconfiança generalizada que caracterizara o mundo eclesiástico em relacão aos


"humanistas": esses últimos, considerados geralmente como os verdadeiros responsáveis
do espírito anticlerical e da dissidencia douffinária, tiveram que ver.se às voltas com
as formas de controle que foram ativadas localmente, de acordo com dinâmicas que
remetem àquelas já vistas para os tribunais da Inquisição15.
Mas, paralelamente à preocupação anti-herética, crescera a da cultura a ser divulgada
e surgira, como consequência, um problema de seleção e de tradução dos conteúdos a
serem ensinados. Era preciso escreveÍ, e escrever em estilo "baixo", como dizia ainda Le-
onardo Marini, "com todo cuidado de ser mais breve e de dizer [...] por meio de palawas
mais baixas e simples". Clareza, simplicidade e correção doutrinária eram as qualidades
necessárias a esse novo gênero; e também era preciso reprimir a irritacão e frequentemente
a repugnância de quem não tolerava rebaixar matérias tão difíceis e elevadas ao nível
do l'ulgo. Os frades dos conventos, detentores oficiais do ensino teológico, foram entre
os primeiros que precisaram se curvar às necessidades do presente, mas não pouparam
expressões de embaraço e condescendência. Homens como Leonardo Marini foram
mais desprendidos, convencidos que estavam de que cabia aos bispos retomar as redeas
da pregação e do ensino da doutrina. Mas foram sobretudo as congregacões de clérigos
regulares- e entre esses, os jesuítas - attazet um novo esdlo para esse terreno, com uma
dedicaçao que ligava o ensino da doutrina ao controle da prática e que se manifestava no
modo de usar os instrumentos velhos e novos da doutrinação eclesiástica. Se a pregação
era o instrumento tradicional, o novo foi a catequese. E um paralelo do mesmo tipo pode
ser visto até entre os sacramentos: se a pregação apostólica desembocava no batismo,
o local do controle sobre o que e como se sabia do próprio ser cristão íoi a confissão.
A questão da ignorância, contudo, e mais complexa do que possa parecer. Havia
uma predisposição antiga da cultura eclesiástica a julgar o mundo dos leigos como um
recipiente vazio a ser preenchido com doutrina ortodoxa, tanto mais se esses leigos eram
os habitantes do campo, os "rústicos", os "idiotas". Mas, com a descoberta das Índias,
a simples hierarquia do saber construída na sociedade cristã europeia complicara.se.
O julgamento positivo a respeito das qualidades morais dos selvagens e a recuperacão
da categoria mítica da "idade de ouro" primitiva pareceram destinados a subverter
os cânones da cultura douta, Bartolomé de las Casas, em sua apaixonada defesa dos
índios, destacou suas qualidades morais naturais, pondo-os bem acima dos modelos
mais celebrados de humanidade não cristã, os dos sábios da Antiguidade pagã. Não
foi esse o julgamento dos jesuítas. A síntese elaborada pelo jesuíta José de Acosta no
final do século coníeriu um nítido privilégio aos povos providos de tradicões literárias
e organizados em formas politicamente complexasló. Ora, esse julgamento negativo em

Foi exemplar, mais uma vez, o caso veneziano, em que, entre 1567 e 1568, íoi acertada a estrutura de contro
le: Vittorio Baldo (Alunni, Maestn e Scuolz in Venezía aLIa Fine del xvl Secolo, Como, s.d. mas 1977) elaborou
os dados das "proíissões de fé" venezianas ptonunciadas, em mãos do patriarca, para extrair daí um quadro
analítico do exercício do ofício de mestre.
V. cap. )0Õ/lll, nota 112.

Os Missionários
r
589

relação à ignorância e ao estado de natureza deve ser levado em consideração contra


qualquer tentação de ver na descoberta das "Índias internas" uma avaliação positiva das
culturas folclóricas. A ignorância, para os jesuítas, era uma fonte de mal inexaurível; a
ajuda a ser oferecida às populações "rústicas" era para eles tão mais urgente quanto mais
por trás das práticas populares era visível a ação corruptora do demônio. A etnografia,
assim como a praticou josé de Acosta, não se limitava à descrição de costumes, mitos e
ritos, mas ia alem, decifrando por trás das aparentes semelhanças com o mundo cristão
a obra do demônio, mestre de enganos. Na Historia Natural y Moral de las Índias, Acosta
analisou as práticas mexicanas que remetiam por analogia aos sacramentos cristãos da
confissão e da comunhão e explicou as semelhanças justamente como efeito dos enganos
urdidos pelo demônio para arruinar esses povos. Vê-se irm ponto de vista semelhante
por trás da insistência jesuítica sobre a ignorância das populações nas "Índias internas".
De resto, boa parte da decepção dos Indípetae mandados para trabalhar em território
italiano derivava justamente da consciência de que uma coisa era ir dialogar com as
culturas "superiores" do longínquo Oriente, outra ser mandado para catequizar plebes
ignorantes. A própria seleção dos candidatos obedecia, nototiamente, ao critério de
enviar apenas os mais preparados às remotas índias do Japão e da China. De tudo
isso, não procuraremos traços explícitos nos relatórios dos missionários jesuítas que
atuaram nos campos italianos. O objetivo edificante desses textos impunha limitações
precisas: basta dizer que a própria obra de Acosta, ao seÍ traduzida para o italiano
(1596), foi censurada precisamente nos pontos relativos às falsificações demoníacas
dos ritos cristãos17. Mas a preponderância do zelo catequista e mais geralmente peda-
gógico na obra dos missionários derivou da convicção de que na cultura dos rudes havia
conteúdos a serem eliminados - deíormações pagãs e superstições diabólicas - e vazios
de conhecimentos cristãos a serem preenchidos. Bem longe de alimentar um mito do
"bom selvagem", essa literatura foi a expressão de um intenso esforço de extirpação
da idolatria e de inserção de novo saber em um mundo julgado, desse ponto de vista,
de modo totalmente negativo. A contribuição original dos jesuítas foi, no máximo, o
método da "ajuda", ou seja, o estilo suave, amoroso, a insistência no caráter gradual
dos processos, o cuidado de conquistar a confiança das populações ao inves de produzir
interdições e excomunhões.
A importância da leitura, a difusão do ensino tiveram como base o ensino reli-
gioso; as companhias da doutrina cristã submeteram a antiga forma associativa laica da
tradição caritativa medieval às novas exigências. Fora da Europa, o problema do ensino
como instrumento de conquista religiosa levou os proprios franciscanos a criar escolas e
colegios, na condição de substancial monopólio de que gozaram no México. Nas Índias
orientais, onde seus metodos foram contestados por rivais novos e aguerridos - os jesuí-
tas -, a discussão investiu a solidez de conhecimentos necessária e preliminar ao batismo.

17. Cf. Donatella Ferro, Sospetti e censure nella prima traduzione italiana della Histvna NaturaL y Moral de las
Míti e Realtà deL Nuouo Mondo: Vnezia,
Indias di José de Acosta, em IL Ittterato tra iL Mondo Ibenco e I'halia, ory.
de Angela Caracciolo Arico, Roma, 1994, pp.273.282.

O Método Missionário
lrr
590

A natureza da "conversão" foi interpretada de uma nova maneira: era necessário atuar,
partindo do pressuposto de que se tratava de preencher um vazio de conhecimentos, ou
então de substituir um conhecimento parcial e equivocado pelo verdadeiro. Transferido
para o território europeu, esse modo de ver levou ao abandono da controvérsia doutrinária
e dos instrumentos da luta frontal entre verdade e erro, para substituí-los pelos métodos
da pedagogia e pelas formas não conflitantes da persuasão. Foi uma estrategia baseada na
educacão: em relacão aos países que tinham aderido à Reforma, confiou-se aos colégios a
formacão de homens e de instrumentos para a penetração e a reconquistals. Nos países
católicos, essa estrategia substituiu o confronto doutrinário aberto e litigioso por formas
de intervencão baseadas no ensinamento positivo e nas práticas caritativas, de "ajuda".
Já vimos como, no caso da pregação de Landini, o conflito doutrinário com os hereges
cedia o passo à postura pedagógica e às formas caritativas da atuação missionária. Outro
caso exemplar, a esse respeito, foi o - já lembrado - das missões jesuíticas na Calábria,
durante a guerra contra as populações valdenses: mesmo colaborando com a repressão,
os jesuítas fizeram ouvir uma voz dissonante e defenderam a convicção de que as armas
podiam forçar os corpos, mas não as opiniões. Tâis formas de persuasão suave derivavam
da ótica das "Índias internas" e diferenciaram por muito tempo a maneira da missão
jesuítica da maneira de,outras ordens. Sirva de exemplo a linguagem bem diferente do
capuchinho frei Filippo de Pancalieri que, enúado ao marquesado de Saluzzo em "missão
apostólica" para a conversão dos hereges, fazia o seguinte jogo com o nome Dronero (o
local onde organizara a caça aos hereges): "O antigo dragão com seu bafo infernal da
maldita heresia tinha infectado todo esse marquesado e estabelecido seu trono principal
neste lugar propositalmente chamado Dragonero [Dragão negro]"re.
Um jesuíta que foi bastante ativo nessas mesmas paragens, Antonio Possevino,
recapitulando no final do século XVI o que fora feito e discutido em termos de métodos e
modelos missionários, reconheceu que nesse campo imperavam a diferença e a variedade
das propostas2o. Pessoalmente, Possevino tinha preferido o método baseado na catequese.
Não se tratava de uma escolha original. No decorrer do século XVI, tratou-se com muita
frequência do ensino da doutrina cristã por meio da elaboração, publicação, distribui-
ção, leitura (até a representação e o canto) de pequenos manuais de catequização. Era o
principal caminho escolhido e seguido nos ambientes mais variados, por todos aqueles
que estavam convencidos da necessidade de "reformar" ou renovar a prática cristã, de
sistematizar e difundir o conhecimento das verdades fundamentais do cristianismo. Ele
foi seguido desde o início pela Companhia de Jesus como remédio principal contra a ig-
norância e a superstição. Possevino, no entanto, podia gabar-se de uma longa experiência.

18. Sobre essa estratégia há muitos estudos; veÍ entre os mais recentes o dedicado à obra do jesuíta Laurentius
Nicolai Norvegus por Oskar Garstein, Rome and Counter.Reformation in Scandinauia. Jesuít Educational Strateg
15 53'1622, leiden, 1992.
19. Carta ao cardeal Aldobrandini, Dronero, 30 set. 1ó02, em C. Cargnoní,1 Frati üppuccini. Documentí eTestimo
níanze dcl Primo Secolo, Roma, 1991, vol. ttt/Z, p. 4211.
20. "Gentium ubique ac praecipue in Novo Orbe iuvandarum non eadem firit ratio; neque adeo una hoc temporr
sententia est" (Bibliotheca Selecta, Coloniae Agrippinae, 1ó07, p. 400).

Os Missionários
591

,Desde 1560, jovem e ainda não oficialmente jesuíta, defendera convictamente no Piemon.
te as ideias de Emanuele Filiberto. E um episódio emblemático do entrelaçamento entre
missões, visitas pastorais e luta contra a heresia. O novo soberano, de volta ao Piemonte
após o tratado de Cateau-Cambresis, não demorou a dar ouvidos às propostas do jovem
jesuíta que the submeteu um plano de recatolicização sistemática do país. O perigo a ser
evitado era o das heresias que pudessem arruinar o estado, o exemplo de Genebra, cidade
rebelde às fronteiras do estado, não tinha sido esquecido. O projeto submetido ao duque
'por Possevino baseava-se em uma doutrinação sistemática da população por meio de
uma dedicação maciça por parte dos jesuítas: colégios, divulgaçao de liwos, controle dos
ìmestres-escolas e do clero. Era preciso chegar a "assediar esses diabos de hereges", escreveu
ao geral Laínezz|. A campanha contra partir
os valdenses dos vales'foi desencadeada a
'de fevereiro de 1560; mas, enquanto o inquisidor, o dominicano Tômmaso Giacomelli,
com o auxílio de uma companhia de arqueiros, aprisionava e mandava hereges à fogueira,
lPossevino, mesmo seguindo com interesse esses desdobramentos, dedicava-se a difundir
o catecismo de Pietro Canisio nas escolas das comunidades piemontesas. Viu-se ainda
pessoalmente empenhado, no verão desse ano, na ambígua posição de colaborador do

'núncio, com o poder delegado de absolver, em segredo, por meio de abjuração privada,
'os hereges arrependidos. A preferôncia por essa intervenção dividida entre inquisição e
confissão era a marca típica dos jesuítas. Mesmo em relação aos valdenses da Calábria
e da Apúlia devi*se dar espaço à obra dos jesuítas com poderes inquisitoriais usados às
escondidas, para reconciliar os arrependidos. Isso não significava o repúdio da força;
"se não se usar a força - escrevia Possevino em agosto - t...] e impossível [...] que essa
velha raiz que vai se espalhando ha 400 anos seja arrancada"z2. A força foi usada, em
'outubro de 1560, Antonio Possevino viu'se engajado num corpo de expedicionários
,nos vales valdenses, com a tarefa de arranjar liwos e pregadores católicos. Mas foi um
fracasso. Impôs-se, como consequência, uma estratégia baseada não mais na forca, mas
na persuasão e na doutrinação positiva: Possevivo investiu então todas as suas energias
pa impressão e na difusão de catecismos. Em janeiro de 1561, escrevia de Vercelli que
'mandara distribuir quinhentas copias da summa de Canisio "aos mestres-escolas para
iistribuir aos alunos; e o senhor vigário do bispo proclama um édito para que seja com-
prado por todos os párocos e nos dias de festa seja lido um parágrafo para as pessoas
iidiotas"z3. Por esse caminho, sempre com os olhos fixos na relação didatica de profes-
bor", párocos com escolares e analfabetos, conseguiu obter do duque um edito que
"
[mpunha a todos os mestres-escolas uma coníissão pública de íé, o texto dessa confissão
pevia ser copiado e afixado nas escolas, além de ser explicado pelos mestres (e tambem
pelas "mulheres mestras, que ensinam às meninas a ler e a coser"24). Era uma medida
)

21. Carta de 14 de fevereiro de 15ó0, citada por M. Scaduto S. I., "Le Missioni di A. Posseúno in Piemonte. Pro
paganda Calvinista e Restaurazione Cattolica 1560-1563" , em AHSI, )Oft'In, 1959, pp. 51-191; em part. p. 65.
1.7. Idem,p.74.
...03. Iden,p.l43.
b+. pai,o de 15 de janeiro de 1563, idzn, pp. 165-166.
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O Método Missionário
ì

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592

que precedia a que seria imposta e generalizada por Pio V no ano seguinte, com a obri.
gação da professio fidei. A atividade frenetica desenvolvida por Possevino que, a cavalo,
percorria os vales, distribuía liwos, provocava debates com os calvinistas, tinha enfim o
liwo como instrumento fundamental. Tratava-se de fornecer em pouco tempo as razões
para rechacar as ideias dos hereges; e era preciso {azê-lo sem demora, por se tratar da
"ajuda da ltália inteira", como o jesuíta vivia repetindo. Essa região de fronteira devia
ser municiada e o mais rápido possível. Convicções e metodos semelhantes encontram.
-se ainda na ação praticadapor Possevino em Lyon, para onde se dirigiu em 1562, para
editar catecismos em francês para as populações da Saboia. Anos mais tarde, dirigindo
na Livônia a contraofensiva católica, Possevino tornou a insistir na organização de cen
tros de íormação cultural paÍa o clero, os semináiios pareciamJhe o "único meio para
renovar o mundo e para manter viva a posse de... todas as nações mais bárbaras" em
mãos da Igreja romanaTs.Tratava-se, mais umavez, de uma zona de íronteira: a partir
da formacão missionária baseada nos mapas geográficos, Possevino tinha desenvolvido
o senso das zonas íronteiriças e dos espaços estratégicos.
Três decadas mais tarde, em 1594, Possevino desempenhou ainda uma série de
missões na Itália padânea e mais uma vez sua estratégia concentrou.se na difusão de liwos
e no ensino da doutrina cristã. Mas dessa vez ele enfrentava seu trabalho com um instru.
mental bem diferente. No ano anterior tinha publicado o preâmbulo de sua grande obra
Bíbliotheca Selecta com otítulo "Cultura dos Engenhos"26: era uma resenha ou discussão
do Examen de Ingenios para las Ciêncías, o afortunado texto de Juan Huarte, que abordara
a questão, muito em moda na época, da classificação dos intelectos ou "cérebros" (como
preferia dizer Garzoni). O projeto de Huarte era alçar o exercício das artes e profissões à
"perfeicão que mais convém ao estado"21. Possevino aplicou.o ao serviço da Igreja e, ao
propor uma classificação dos engenhos, serviu-se da obra de outro célebre jesuíta, Jose
de Acosta, que em seu De Situ Nocri Orbis tinha proposto uma tripartição daqueles que
nós chamaríamos "civilizações" - e que para Acosta eram as populações dos bárbaros'
em primeiro lugar, as mais "humanas e políticas" da China e do Japão, caracterizadas por rl

"constante República", ou seja, um Estado bem constituído, magistraturas, comércios, ri'

academias e exercícios das letras; em segundo lugar, as populações bárbaras do Novo


iii
Mundo americano que possuíam uma organizacão estatal, mas eram desprovidas da lltl

prática das letras; em terceiro, por fim, encontramos os povos selvagens, sem lei, com
costumes ferinos (antropoíagia, sodomia) e apenas com alguns vestígios de sentimentos
humanos. As classiíicações desse gênero tinham como objetivo colocar numa única escala
de valores as várias formas de vida social conhecidas: e essa escala de valores tinha no

75. Cf. F. Guida,'Antonio Possevino e la Livonia. Un Episodio de11a Controriforma (1582-1585)",emEuropa


Orientalís, II, 1983, pp. 73.105; em part. p. 97.
26. Extraída do primeiro liwo da Biblíothaca Selecta (1. ed., Roma, Tipografia Apostólica Vaticana, 1593) a obra foi
publicada em tradução italiana em Vicenza em 1598. Cf. a reprodução anastática organizada por Alessandro
Arcangeli: Antonio Possevino, Cohura degl' lngegni, Bologna, 1990.
11
Juan Huarte de San Juan, Esame degLí Ingegni, trad. it. org. por Rafíaele Riccio, Bologna, 1993, dedicada a

Felipe ÌÌ, p.41.

Os Missionários

'i'N
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593

vértice o modelo europeu cristão. Devemos levar em conta tal critério por nos dizer que
para os homens da igreja a cultura era um fato unitário, que compreendia o saber dos
liwos e o patrimônio do folclore. Mas deve-se salientar o uso que Antonio Possevino faz
do termo "cultura": cultura dos engenhos significa modo de governar, dlriglr e aumentar
o instrumental da mente. Assim como as plantas são cultivadas, podadas e direcionadas
de um modo ou de outro, do mesmo modo as mentes humanas podem ser conformadas.
Essa ideia da "cultura dos engenhos" é parente próxima de dois termos, ou duas ideias,
bastante familiares aos historiadores - dois termos que deixaram sua marca em toda essa
época, tanto que ainda hoje as pesquisas dos historiadores abrigam-se sob sua sombra
protetora: o Renascimento, a Reforma2s. Enfim, na mente e nas concepções desses ho.
mens do flnal do seculo XVI estava bem fixado o princípio de que os intelectos deviam ser
contÍolados, educados, dirigidos, até mesmo intervindo com operacões dolorosas como
extirpar certos modos de pensar nocivos e perigosos, mas sobretudo fazendo crescer a
planta do intelecto em direções corretas, adequadas a uma ideia de civilização baseada na
heranca política do Império Romano e na heranca religiosa do cristianismo. Era um modo
de pensar seguro de seus pressupostos, solidamente baseado naquilo que chamaríamos
hoje etnocentrismo, não sujeito a dúvidas quanto sua superioridade, otimista quanto à
missão que o esperava. Basta ler o balanço que Possevino faz do século em que escrevia e
que já então (1593) caminhava para o final, era um balanço triunfal, de novas e extraor.
dinárias aquisições de conhecimento (a descoberta do Novo Mundo), vitórias políticas
e militares (como a contra os Turcos em Lepanto), grandes avancos na vida da Igreja (o
Concílio de Trento, os seminários, as novas ordens, a obra missionária). Em relacão às
epocas precedentes, a do seculo XVI parecia a Possevino extremamente melhor e mais
rica em conhecimentos, Por isso, ele retomava a imagem da cultura como cultivacão: "se
no campo cultivado por ele o agricultor odeia a esterilidade, certamente Deus a odiará
muito mais na alma íeita à sua imagem"2e. Esse Deus camponês, que odeia a terra esteril,
e também o Deus que arranca as ervas daninhas - a cizânia da heresia e do erro: mostra.se
aqui a justificacão da intervenção inquisitória, do auto de fe. Em semelhante concepção
da cultura, a liberdade não e um valor positivo, pelo contrário: sobre ela, a licenciosidade
deita sua sombra. Por isso, se

[...] alguns Professores buscam a liberdade (para não dizer, a licenciosidade) de procurar e

ter opiniões, mais do que seria realmente desejável, e se esses recolhem-se dentro dos limites da me-
diocridade, e arrependem-se, que lhes seja diminuído o vigor e o poder de perspicácia e de solercia,

Em um ensaio fundamental, Gerhart B. Ladner ilustrou o simbolismo vegetal que está na origem do conceito
de Renascimento e do de Reforma e lembrou como Cesare Ripa, em sua Iconologia (1593), rapresentava a
Reíorma: uma mulher segurando os instÍumentos para podar as plantas. Cf. G. Ladner, "Vegetation Symbol-
ism and the Concept oíRenaissance", em De Artibus Opuscula XL: Essays ìnHonor of ErwinPanofsL1, New York,
1961, pp. 302.372, ora em ldem, Images and Idtas of the Míddlr Ases, Roma, 1983, pp.777.763; cí. do mesmo
autor The ld.ea of Reform, Cambridge (Mass.), 1959.
Possevino, Cohura degl'Ingegni, 0p. cit., p. Ii.

O Método Missionário
&
F Í:
594

que receberam de Deus, porém, saibam eles que os modestos e pios não devem desejar nenhuma
liberdade alem daquela conjunta com a virtude e a piedadero.

E emerge aqui a função positiva de um termo que para nós parece gravemente carre-
gado de cor negativa: a censura. Ao contrário, para Possevino, corretione, emendatione,
censura são momentos fundamentais da função de cultivar os engenhos. Para ilustrar o
que entende por censura, Possevino remete a Juan Luis Vives: 'As cândidas e pruden.
tes censuras são de grande utilidade a todos os estudos"31. Eis portanto a concepção
humanista do ofício do censor como aquele que extirpa as partes defeituosas, corrige,
expurga e pïepara a página para a imprensa. Na obra de Possevino, de fato, o capítulo
sobre a censura antecede os conclusivos sobre a"impressão dos liwos, a difusão dos
(bons) liwos, a melhor ordenação bibliografica para melhor encontrar os livros. E toda
a ciência do liwo que e amavelmente apresentada aqui, como guia para uma cultura
garantida e recomendada, sem riscos de erro ou de heresia.
Têndo partido da cultura, encontramos então a censura. E possível dizer que para
os homens desse final de seculo XVI não se produz cultura, sem seleção ou adaptação,
sem censura, enfim. Essa função positiva, de guia e de correção, confiada à censura era
plenamente aceita na Europa da epoca. Somente mais tarde, após as lutas iluministas,
uma negação catolica da liberdade de pensamento devia se opor a uma liberdade íilha
da Reforma protestante.
Com essas ideias, Possevino realizou uma serie de visitas às igrejas de Monferrato
eda diocese de Cremona entre 1594 e 1596. Trata-se de verdadeiras missões, no sentido
de que no âmbito da forma tradicional da visita pastoral já se evidenciavam as finalidades
de animação e de despertar religioso, "O principal objetivo da visita - escreveu então
Possevino - consiste na cura interior e no comando dos corações por meio da palawa
de Deus feitos oralmente e por liwos pios proporcionados a vários tipos de pessoas; e
por meio da confissão sacramental"32.
Os atos da visita confirmam ter sido essa a estratégia. O longo relatório da "mis-
são" de Monferrato, realizada com o acompanhamento e sob a proteção de Eleonora
de Médici, duquesa de Mântua, inicia-se com a declaração de pretender municiar as
fronteiras contra as heresias vizinhass3. O primeiro ato, no encontro com o clero em
San Salvatore, foi o de distribuir livros (primo Líbros dat). Logo a seguir, deu-se o encon-
tro com três mestres.escolas, tambem a eles foram distribuídos liwos, eram exemplares
do catecismo de Pietro Canisio, para ensinar nas escolas onde - anota escandalizado

30. Idem, p. 61.


31. Iden,p. 105.
32. Carta de Mântua, 6 maio 159ó, ao vigário episcopal de Cremona (ARSI, Opp. NN., 3L|/tt,Visitatio Parochíarum
Episcopaü Cremonensis, c. 128r). Cf. Mario Scaduto, "[.e 'Visite'di Antonio Posseúno nei Domini dei Gonzaga
(Contributo alla Stoda Religiosa del Tardo Cinquecento)", Archíntio Storíco Lombardo, s. VIII, vol. 10, DoÕffIl,
1960, pp. 336470.
t t- "Ut populos spiriruali cibo aÌeret ac solaretur quin etiam fines praemuniret adversus vicinas haereses" ("Missio
Montisíerratensis", em ARSI, Ven. 105.tt, cc. 356r-376qt).

Os Missionários
7

595

Possevino - não se tinha nenhuma ideia do ensino da doutrina. Para o sucesso da mis-
são fora concedida uma indulgência plenária: Possevino explicou publicamente suas
características, acentuou a importância das confissões e mandou afixar em lugares pú-
blicos breves normas para confessarse bem. No serão, hospedado na casa de um nobre
do lugar, manteve.se acordado ate tarde a conversar sobre religião com a mulher e os
filhos do anfitrião, aos quais tambem deixou de presente "livros pios". Esse esquema
repetiu-se em todos os lugares onde se deteve a pequena comitiva: se encontrava um
tipografo, deixava-lhe livros pios para imprimir; ao visitar a abadia de Lucedio, distri-
buiu um liwo sobre a vida monástica; aos mestres-escolas de Casale, além de distribuir
o catecismo de Canisio, deu instruções sobre como ler e como não ler os autores
clássicos; pois, naturalmente, devia-se tambem "extirpar a torpeza"34. Era uma revira-
volta consciente em relação ao ensino humanista e como tal era vivida pelos próprios
mestïes-escola, no ano seguinte, durante a missão de Possevino em Mântua e em Reggio
Emilia, os mestres.escolas ouviram um duro sermão que fez contÍa o costume do tempo
passado, quando eram ensinados obscenidade e paganismo nas escolas, e defenderam-
.se timidamente, observando que ate então ninguem thes tinha aberto os olhos35. O que
não era 1á muito verdade, o bispo de Reggio, Benedetto Manzoli, tinha insistido muito
na tecla da educação humanista, em seus estatutos diocesanos, mais de uma década
antes. Avisara os mestres.escolas sobre a necessidade de observar a solene professio fídei
e ordenara-lhes abandonar o ensino da cultura antiga que servia apenas para tornar os
jovens eruditos nos ritos pagãos (e não, ao contrário, nos cristãos)36. Suas advertências
baseavam-se na realidade daquele corpo docente, composto de padres e mestres-escola,
que também Possevino teve diante de si3?.
Possevino não deu apenas conselhos, deu liwos também: e muitas vezes, lir,'ros
de sua própria autoria. Para os médicos, eram lidos seus conselhos sobre como curar os
doentes e convencê-los a cuidar mais da alma que do corpo; aos soldados da guarnição de
Casale foi distribuído seu liwo sobre o "soldado cristão": enfim, as bibliografias reunidas
em sua Bibliotheca Selecta revelam aqui seu aspecto prático, de instrumentos de trabalho.
A cena que ocorreu em Montemagno resume esse aspecto de biblioteca ambulante: ali,
em uma igreja sem portas, onde os animais tinham entrada liwe, Possevino encontrou
mestres.escola, párocos, pretor e escrivão da comunidade e, abertas as cestas de liwos,
tirou dali algo para cada um38. Cenas desse tipo não devem levar a pensar em uma
espécie de bibliomania pessoal de Possevino: tratava'se de um caráter específico das
missões jesuíticas, no quadro de uma tendência geral da epoca em conceber o livro

34. No seminário, sugeriu ler apenas Horácio, Cicero, Virgílio e Têrêncio, "nil praeterea aliud". Eram os autotes
que ele tinha estudado e que agora indicava (iden, c.376u).
35. "Obscaenitas et ethnicismus in iuventutem per spatium multorum annoÍum instilÌabatur" (id,em, c.385r).
36. Constítutiones Benedicti Manzoli Epíscopi in Slnodo Diocesana Editae..., Bologna, apud Rossium, 1582.
37. A respeito, veja*e do autor desre volume, "Educare gli Educatori. I1 Prete come Proíessione Intellemrale
nell'Italia Tridentina", em Probhmes de L'listoire deI'Education, Roma, 1988, pp. 173'140.
38. "[...] Deprompti tum e cestis libri, et unicuique pïo eorum captu sunt distributi" (Missio Montisfendtensís, op.

cit., c. 368r).
596

como instrumento fundamental para a passagem das trevas do mal e da ignorância à luz
da verdade. Não foi só jesuítica a produção de textos para a educação religiosa básica,
isso e demonstrado com toda a evidência pela serie de pequenas obras que então foram
editadas pelas confrarias - as da "douüina cristã", por exemplo3e - ou por várias ordens
religiosas. Os jesuítas, porém, juntaram a produção livresca às campanhas de douffina.
ção. Uma das formas de ignorância sobre a qual se insiste em seus relatos refere-se, por
exemplo, ao fato de não saberem {azer o sinal da cruz: ora, a esse respeito, houve quem
escrevesse obras de explicação básica e quem elaborasse sermões sobre o assunto4o. Mas
foi no longo trabalho de doutrinação de lugar em lugar desenvolvido sobretudo pelos
jesuítas que os livros alcancaram seus destinatários.
Entre tudo aquilo que podia ser dito a respèito dessas populações, perceber-se-á
que só uma é continuamente mencionada, a ignorância. A constatação da ignorância
das populações é um tópos que se encontra sempre nessa literatura. Ignorância abissal,
não sabiam nada sobre os gestos, os ritos e os mitos da religião, sem falar em noçÕes
teológicas. Era essa a característica que chocava os missionários: mas era também a
qualidade que lhes permitia aproximar as plebes europeias aos índios da America.
Tomemos apenas um dos numerosos exemplos a respeito: o jesuíta Caspar Loarte,
após uma missão na Córsega, escrevera: são "pessoas tão rústicas e ignorantes que não
sabem nem entendem nada a respeito de nossa fé católica, a tal ponto que parecem
muito mais bárbaros ou infiéis do que cristãos"4r. A essência do argumento residia
nesse "a tal ponto": deixando de serem considerados cristãos, esses povos não corriam
mais o risco de serem tratados como hereges em virtude daquilo que não sabiam ou
que sabiam de forma errônea e incorreta. Pelos relatos dos missionários, a ignorância
das populacões frequentemente aparece com os traços de um radical alheamento em
relacão às doutrinas do cristianismo, a ponto de fazer pensar que essa matéria, nas
mãos de um inquisidor, poderia assumir uma forma bem diferente. Ora, a questão não
era absolutamente nova nem desconhecida. lnsistia-se na tecla da ignorância do povo
havia muito tempor confrarias e congregações tinham sido criadas para enfrentar esse
problema, que, nos mesmos anos do primeiro aparecimento público de Lutero, surgira
como verdadeira chave da reforma do cristianismo. Mas a questão da ignorância tinha
a
surgido de maneira decisiva na experiência dos frades que desenvolveram a primeira
evangelizacão das Índias: esses frades tinham acumulado os atributos de missionários
e inquisidores, no sentido de terem durante certo tempo aplicado a prática missionária
com instrumentos e poderes da inquisição. O esquema, que se apoiava na experiência
realizada na Espanha com moriscos e judeus, era extremamente simples: os pagãos das

J9 Veja-se, por exemplo, a série de publicações levantadas por M. Turrini, "Riformare il Mondo a Vera Vita Chrig
tiana: Le Scuole di Catechismo nell'ltalia del Cinquecento", AnnaLi drll'Istítuto Stonco kalo,germaníco inTrento.
vlll, 1982, pp. 407.489.
40 Cf. por exemplo a Dichiaratíone deLla Figwa delLa Croce, Dedicata aLL'Illustnssímo et Reverendissímo Card. Varmieny
fatta daM. TomasoTretero canonico d'OLomuzzo per ammaestramento d.ellz persone idiote, con un modo di direln corcrw
deLla glariosaMadonna pet uid di meditatione, em Bologna, por Alessandro Benaccio, 1576.
41. C. Loarte, Avísí di Sacerdoti et Confesson, Parma, 1579, c. 100c,.

Os Missionários

;rL
r
59ì

Índias, uma vez batizados, tornavam-se, para todos os efeitos, verdadeiros cristãos. Por
isso, se eram apanhados em falta no que se refere a questões de fé, deviam ser julgados
pela Inquisição. Foi precisamente o que aconteceu quando, em novembro de 1539,
o cacique de Texcoco, dom Carlos Ometochtzin, foi mandado à íogueira na Cidade
do México por ter adorado - após ter sido batizado - os deuses de seus ancestrais. No
entanto, após esse caso, não so o inquisidor recebeu uma admoestação formal da Espa-
nha, mas, muito rapidamente, a inquisição deixou de tratar casos de índios apóstatas
ou hereges até que, em 1571, uma ordem de Felipe II retirou os nativos das colônias
espanholas da jurisdiçao do Santo Ofício: em lugar da força e das fogueiras públicas,
entrou a capacidade persuasiva dos confessionáriosa2. Não se tratava de apostasia ou
de heresia, mas de ignorância: portanto, alavancar o tema da ignorância permitia o
emprego de uma estratégia suave, persuasiva, no lugar da dureza inquisitorial.
Trata.se de analogias profundas entre a postura amadurecida nas Índias de além-
-mar e a que se revelava mais oportuna nas Índias "daqui". E aí que se colhe o fruto desse
ver as coisas italianas atraves da lente da experiência das Índias. É nttt" experiência que
também se encontra no terreno dos instrumentos e dos metodos. Instrumento fundamen-
tal, junto com o liwo, foi a imagem. Em um liwo de conselhos dirigido ao clero, Loarte
sugeriu utilizar imagens para exf,icar os artigos íundamentais da fé. Assim, uma imagem
"na qual se mostra Deus pai com o ceu e a terra" podia servir para explicar o primeiro
artigo da fé, "que Deus pai é criador do ceu e da terra"43. O livro podia ser destinado ao
clero, mas tambem ao chefe de família, caso ele soubesse lerr podia, portanto, substituir o
missionário, uma vez que esse tivesse partido. Era essa a preocupação que estava por trás da
insistente distribuição de liwos. Chegou-se a pensar ate na impressão de e*Librí especiais,
que conservassem registro por escrito e consagrassem formalmente a função de quem
recebia o liwo do missionário com o encargo de doutrinar os outros. Eis um exemplo,

Esta Doutrina Cristã foi-me dada... para que eu e toda minha família aprendamos as coisas
da santa fé. Porém, com a ajuda de Deus hei de esforçar-me por aprendê-la, e ensiná-la a todos os de
minha casa, e serei obrigado a pregar sobre Deus nosso Senhor [...ìaa

A obra que se confiava com essas palawas à responsabilidade dos chefes de família
era o catecismo ilustrado de Gian Battista Eliano. Enquanto os teólogos encarregados

47. Cí.Jorge Klor de Alva, "Colonizing Souls: The Failure oí the lndian Inquisition and the Rise of Penitential
Discipline", em M. E. Perry e A. J. Cruz (orgs.), CukuraL Encounters. Tht Impact of the Inquísition ín Spain ond
thc New.World, Berkeley/Los Angeles,/Oxíord, 1991, pp. 3.1'2.
43. Loarte, Avisi di Sacerdoti et Confessori op. cit., c. 39v.
44. A inscrição pode ser lida no verso da capa da Dottrína Chnstiana neLlt quale si Contengono Li PnncipaLi MisteÍi

della nostra Fede Rappresentati con fígure per instruttione de gL'idioti, et di quelli che non sanno Leggere... Composta dal

P. Cio. Battista Romano deLla Compagnid di lesà, em Roma, tipografia de Vincentio Accolti, 158i. Na cópia da
Biblioteca Vaticana os espaços em branco são preenchidos com o nome di "P. Gioseppe da Fano della Com-
panhia di Giesu" (Reproduzida por Palumbo, Speculum Peccatorum, op. cit., p.71). A ediçao alemã citada mais
adiante foi impressa em Graz, por G. \Tidmanstetter, em 1589.

íÍ O Método Missionário
ï
r-l
598

pelo papa estavam elaborando o monumental catecismo definido do Concílio de Trento,


Eliano solicitava textos elementares para os escravos cristãos do Egito, para que não
esquecessem de todo o cristianismo. Enfim, acabou ele mesmo por elaborar um, que
foi divulgado nos campos italianos e, em traducão alemã, na Alemanha. Através da
comparação entre o catecismo romano e o do jesuíta torna.se evidente a divergência
entre os objetivos de controversia teológica que o texto oficial se propunha e os dos
missionários, que consistiam em assegurar um nível mínimo de conhecimentos de cate.
cismo a uma população assimilada aos índios da America. De todo modo, a realizacão
de maior sucesso oferecida pela Companhia nessa epoca foi a ediçao ilustrada do paruus
catechismus de Pietro Canisio, bastante utilizado inclusive pelo próprio Possevino.
Alem de distribuir liwos, Possevino pensava também na fundação de escolas, se-
minários para o clero, escolas para os jovens, foram as requisições que expôs ao bispo de
Casale, no encontro conclusivo da missão em Monferrato. Tratouae ainda do ensino nas
igrejas dos subúrbios e nas casas espalhadas pelos campos: e aqui evidenciou-se o modelo
das Índias. A quem lhe falava nos problemas do ensino da doutrina cristã no campo,
Possevino citou o modelo das missões jesuíticas nas Índias e sugeriu uma comparacão
com o que podia ser feito em condições semelhantes nos campos de Monferratoa5. Esse
modelo das índias apareceu ate em seus sermões, para exaltar a ação desenvolvida pela
Companhia em acordo com o papadoa6. Assim, de lugar em lugar e prestando atenção
àsvárias categorias de pessoas, a seus deveres e conhecimentos de que precisavam, foi.se
desenvolvendo a missão: a qual, pelo visto, era algo muito parecido a visita pastoral.
-uma
O jesuíta atuara sob a égide da duquesa de Mântua, mas,'tamérri tendo o bispo
de Casale como seu conselheiro e especialista. As perguntas dirigidas ao clero referiam-
-se ao número de confessados e comungados, como em uma visita pastoral normal;
tratara-se de edificar novas paróquias nos campos (por exemplo, perto de Asti) para
fazer com que os moribundos pudessem receber os sacramentos mesmo à noite, quan-
do as portas da cidade eram fechadas; foram realizadas ações de moralização do tipo
daquelas realizadas em Milão por Carlo Borromeo, por exemplo, com a expulsão de
atores e atrizes de CasaleaT. Portanto, as missões jesuíticas podiam ser desempenhadas à
sombra das campanhas inquisitoriais ou das visitas pastorais, sem substanciais mudanças
quanto aos métodos e objetivos. uma nota peculiar, que aqui mal aparece mas que fora
importante e contínua nas missões de Landini, é a das pazes entre famílias em litígio.
Outro tema tipicamente jesuítico era o da importância das confissões, em particular,
das confissões gerais: Possevino distribuiu o Guía dos Pecadores de Luis de Granada e
I
45 'Actum est de ratione docendae in civitatis suburbiis, domibusque longius per agros sparsis, christianae
I

j doctrinae [...ì Pater amrlit in medium, quid aliis in eiusmodi locis, atque adeo in Indiis, a Parribus Societaú
fieret [...]" (Missio Monris/eraúensis, op. cit., c.375r).
46. 'Addidit nonnulla de conversione infidelium, atque Indorum, qualem in primis Pontiíicis Max. et Reveren-
P. V. mentem esse intelligebat" (idcm, c.364r\.

47. "Erant histriones comici, qui noctis initio populum, ac praesertim iuvenfutem convocabant ad scaenam.
Psalttia virilem habitum induta et caeteÍa eiusmodi iníiciebant animos [...j Pater [...ì obtinuit [.,.] ut comoedia
cessarent, histriones expellerentur" (ídem, c. 365r).

Os Missionários
r
s99

convidou um mestre-escola de Asti que desejava entrar em uma Ordem religiosa a fazer
uma confissão geral, para a qual íorneceu.lhe um texto específico.
Portanto, os principais instrumentos dos missionários que se aventuraram nos cam.
pos italianos foram, de um lado, a confissão e, de outro, o ensino da doutrina cristã.
Quanto
a isso insistem concordemente os relatos das missões nas decadas entre a segunda metade
do século XVI e o início do XVIL São textos onde são descritas as atividades desenvolüdas
pelos missionários: pregações, coníissões e comunhÕes, ensino da doutrina, distribuicão
de bons li'vTos, controle do modo como eram ministrados os sacramentos, remédios contra
os abusos correntes e os defeitos morais mais arraigados. O padre Marcantonio Costanti,
em seu relato da missão em Sabina, datado de 1605, por exemplo, relatou ter descoberto
na aldeia de Gavignano que "não havia custódia onde se deve Íepousar o Santíssimo Sa-
cramento, sendo isso feito com muita indecência"48; relatou lugar por lugar os números
dos confessados e comungados (distinguindo entre confissões normais e confissões gerais).
Deteve-se em vários problemas encontrados. Mas o problema principal era, tambem para
ele, o da ignorância. Eis, por exemplo, o que se descobriu em Nerola:

Ao serem indagados sobre o sinal da cruz, poucos o faziam bem. Respondiam, ao serem inda-
gados sobre o mistério da Santíssinla Trindade, que eram a coníissão, a comunhão e o batismo, que
eram Cristo, Nossa Senhora e São Jose, que eram a fé, a esperânca e a caridade, a cruz de madeira,
Nossa Senhora [...] Quanto ao Credo e aos artigos da fé, a ignorância é realmente grande.

A coisa não dizia respeito apenas a um lugar específico: "Nota-se isso neste capítulo
como coisa geral em todos os lugares, e feito o exame em todo lugar a adultos e adultas
acerca dos preceitos da lei e da igreja, realmente não têm conhecimento do assunto"4e.
Efetivamente, todos os relatos concordavam sobre esse ponto: a coisa era "geral", para
além do próprio âmbito italiano. Poucos anos depois, na Alemanha, os camponeses inter-
rogados sobre se adoravam um único deus ou muitos deuses, deram respostas incertas e
confusas: de acordo com alguns, que confundiam Deus e os sacramentos, havia ao todo
sete deuses5o; e em meados do século XMI, o jesuíta Scipione Paolucci contava que certos
pastores, no Reino de Nápoles, ao lhes perguntarem "quantos Deuses existiam", respondiam
ora cem, ora mil, ora "outro número maior"5l. Os missionários faziam dessa ignorância
uma leitura apologetica, de quem se encontrava diante de "outras Índias", ou seja, num
território virgem, onde o cristianismo ainda não tinha penetrado. Mas seria possível dizer,
pelo próprio modo com que essa ignorância nos foi descrita, que se tratava mais de um
conflito em ação entre uma religiao tridentina, que derramava sobre seus fiéis um monte
de noções obrigatórias, e um auditório (ainda) não adestrado na aritmética do catecismo.

48. ARSI, Rom. 129.1, c. 109r e ss.; cí. c. 116r.


49. Idem, c.7l2u.
50. "Multi reperti, qui nescirent unum numen christianis, an Dii complures colerentur. Aliqui certe septem Deos
aííirmabant, quod totidem dicerent sacramenta numerari" (Bayeríschcs Haupxtaatsarchiv, München, Jesaiten
102: Litterae annuaeProuíncíaeGermaníae Supenons 1614,1619, pp. I e ss.)
ss.).
51. Cf. Ginzburg,
Ginzhrrrs Folklore,Magia,
Folllnto Mnoin Religione,
Rolia"no op. .ir pp.
nh cir., nn Áq7Á\A
657-659.
600

De todo modo, a ignorância é o tema obrigatorio dos relatos: é uma categoria


da ausência - de instrução, de hábitos, de práticas -, eue substitui a inquisitorial da
pÍesença - de ideias, práticas, hábltos em confronto com os ortodoxos. Os relatórios
articulam, desde o início, uma grande quantidade de variações sobre a afirmação
fundamental, que podemos reportar com as palavras de Tommaso Romano: 'As
pessoas são tão ignorantes por falta de instrução, que parecem não serem cristãos,
a não ser de nome"52. Lugar por lugar, a observação repete-se: os missionários da
Sabina não fogem à regra. Em Cottanello foram registrados, a par dos encantamen-
tos, "uma ignorância do povo quanto às coisas da fe" e o caso de "velhos que não
sabiam fazer o sinal da cruz" , em Montelibretti, "encontrou-se o povo extraordina.
riamente rústico"53.
Se o problema era a ignorância, mais uma vez o trabalho do missionário era
confirmado como trabalho de ensino, de "cultura". E a cultura significava hábitos
a serem implantados, comportamentos a serem submetidos, rezas e nocÕes a serem
aprendidas. A regra áurea ditada por Polanco, para o ensino da doutrina aos "rústicos"
era a do "adaptar-se à escassa capacidade que tinham"54, a d€ "dizer de um modo que
todos sejam capazes, mesmo as criancas e os homens rudes" (um par que fixa o grau
mínimo de cultura)55. '
No trabalho didatico e de animação religiosa, os missionários não eram tanto os
atores quanto os diretores de um trabalho coletivo. E isso significa antes de mais nada
que a obra dos missionários inseria-se em expectativas e disposicões favoráveis, pelo
menos na maioria dos casos (os relatórios indicam a eventual hostilidade do ambiente, e
o caso, por exemplo, de Montepulciano e de Siena, onde os primeiros estabelecimentos
dos jesuítas encontraram fortes resistências56). Grupos selecionados de devotos, reu-
nidos em congregações ou oratorios, funcionavam às vezes como suporte e animacão,
com devoções públicas. Isso, naturalmente, era mais fácil nas cidades, onde - sobre a
estrutura dialOgica do ensino da doutrina - eram implementadas ações elaboradas com
sabor teatral, como a que teve lugar em Siena em 1584:

Foram representados dois diálogos da doutrina cristã, um em nossâ igreja no dia de sua festa,
em se fazendo recitar uma oração em vulgar em louvor do santo da própria igreja e outro no hospital
com o aparato de misteriosos trajes que provocou a admiração geral, principalmente na procissão que
foi feita pela cidade antes e depois do dialogo, a qual apresentâva um mui belo triunfo da santa lgreja:
tanto em um como no outro diálogo íicaram ouvintes mui satisfeitos com a beleza, a variedade e a

52. MHSI, EpístolÁe Mixtae ex vanis Europae Locis ab Anno 1537 ad 1556 Smptae, Í. V, 1555.1556, Matriti, 1901.
p. 356 (carta de Thomas Romanus a Inácio, Bivona, i3 jun. i55ó).
53. ARSI, Ron. 129.1, cc. 170v.771r.
54. "Mirar bien el modo de enseõar los tales, acomodándose a su poca capacidad y studio", MHSI, Polanci CompL-
Madrid, l9l7, p.752.
menta. Epistol&e et Commentdnd..., II,
55. Cito a partir de uma redação italiana das Industnae de Polanco conservada em Bayer. Hauptstaatsarchiv Mün-
chen, Jesuitica 5ó0, c. 57v.
56. O relato anual de Siena, de 1584, menciona as hostilidades encontradas (enst, Rom. 126 b. t, cc. 329r.330r).

Os Missionários
r
601

utilidade das matérias tratadas nos referidos diálogos, das quais tanto os doutos como os indoutos
podiam tirar grande proveitosT.

Com o teatro, encontramos um instrumento didático que foi então amplamente


utilizado e que cada vez mais devia assumir grande importância não só nas missões mas
em todas as formas de aprendizagem disciplinada, coletiva, ritmada, quase inconsciente.
Tâmbém nesse caso, uma proposta proporcionada pela prática rnissionária e pelas tradições
da vida dos colégios universitários obteve na Companhia de Jesus um desenvolümento
extraordinariamente rico58. Juntamente com o teâtro estruturado das recitas dos colégios,
os missionários concederam amplo espaço à organização teatral da missão que foi, cada
vez mais conscientemente, planejada com grande atenção no que se refere à direção, aos
tempos, à gestualidade, às normas de dramatízação das paixões que toda uma tradição
teatral tinha elaborado. Tinha-se consciência dos benefícios que podiam ser obtidos
para a perturbação da psique por meio de formas de teatralidade controlada: e por isso
ensinava+e âos devotos gritar drarnaticamente seus sentimentos, "com gritos amorosos,
ora com os olhos voltados para o céu, ora para a terra, ora fechados, ora lacrimejantes,
com as mãos ora juntas, ora juntas cerradas em punho, ora cruzadas no peito, ora erguidas
e postas, ora erguidas e estendidas, com os braços abertos em forma de trave de cruz...
ou de tal modo unidas a ponto de excitar excessivamente o coração, seja de dor, seja de
alegria"5e. Mas os gestos e os comportamentos dos fiéis íoram previstos e concebidos como
momentos de uma representação teatral que devia ser sabiamente organizada e dirigida
pelos missionários.
A evolução da missão rumo a um espetáculo concebido como um ato teatral
regido por regras precisas foi um processo que somente atingiu pleno amadurecimento
no século XVII60. No desenvolvimento progressivo de uma teatralidade consciente de
toda ação missionária, foi reservado um lugar especial àquilo que podia dar ritmo às
suas etapas: orações coletivas, cantos e movimentos de massa (sobretudo procissões).
Desde o início, o Têrço rezado em coro propiciou o texto básico, "Propõe.se o mistério,

57. Iden,c.318r.
58. Foi estudado sobretudo o teatro jesuítico de âmbito alemão. Além das muitas contribuições levantadas pela
bibhografia de Làszlo Polgàr S. l. la Compagnie de lésus 1901.1980, Rome, 1981)
(BibLiogrophie sur I'histoire de
temetemos ao vasto repertório dedicado à produção para os países de língua alemã por JeanMarie Valentin
(I* thcatre des jésuites dnnsles pays dz.langue atlnnwnde, Stuttgart, 1983-1984) e o estudo de Ruprecht Wimmer,
luuitenthcater. Didaktík und Fest, Frankfurt am Main, 1982. Menos estudado é o teafto das missões, ao qual
nem mesmo o recente volume sobre Ì Gesuiti e i Pnmvtdi dclTeavo Barocco in Europa, organizado pelo Centro
de Estudos do Teatro da Idade Média e da Renascença, Roma, 1995, dedica pesquisas específicas.
59. O trecho, retirado da obra de Antonio Maria Cortivo dei Santi, PugnaSpiatuale..., Padova, 1620, e citado
por Ginzburg, Folklnre,Magia, Religione, op. cít., p.656, que fala de "teatralidade controlada" pelo uso que os
jesuítas fizeram de tecnicas desse tipo em suas missôes.
60. A mudança de direção no sentido de uma "piedade meridional, emotiva e cenográíica" e indicado no início
do século XMI por Mario Rosa, "Strategia Missionaria Gesuitica in Pugiia agli lnizi del' 600", Stlli di Storia
Pugliese in Onore dí Giweppe Chiarelli, vol. III, Galatina, 1974, pp. 159-186i em part. p. 181, (agora em M. Rosa,
Religione e Socíetà nelMezzogtomo ua Cinque e Seicento,Bai, 1976, p.267).
F--.-

602

daí uma parte do povo dividido começa o Pater Noster até a metade, enquanto a outra
responde, e assim a Ave Maria. Têrminado o terço, é lida uma liçao de um livro espiri.
tual". Depois dessa leitura tinha início a "conferência": grupos de quatro ou cinco por
vez eram interrogados sobre "o que tinham notado para seu proveito espiritual". Daí,
comecava o exercício das penitências em público. Era um momento muito importante
da missão. As hierarquias sociais eram colocadas de ponta cabeca, a ordem subvertida
(pelo menos no plano ritual). Eram de fato as pessoas mais destacadas do local que
exibiam sua humilhação, com grande satisfação dos jesuítas: "nisso viu-se o especial
concurso da divina misericórdia, pois com grande fervor os padres, os doutores e os
mais nobres das terras foram os primeiros a realizar essas mortificações em público, as
quais consistem em um beijar os pes do outro, re)ar alguns Pater Noster com os braços
em cruz no chão, beijar a terra e coisas parecidas"6r. Por fim, rezada uma Salve Rainha,
todos iam para casa.
O exemplo dado pelas classes dominantes era fundamental; os relatórios trazem
exernplos desse tipo em abundância desde o início do trabalho missionário. De Florença,
em 1584, eram relatados episódios como esses sobre o comportamento dos membros
da congregação de Nossa Senhora: alguns "em suas propriedades ensinam a doutrina
cristã a seus camponeses"l e, enquanto um deles "exortava seus camponeses à devoção
e honra da Beata Virgem, um desses pobres camponeses, queixando-se de que, em
virtude de sua pobreza, não tinha um terço com que rezar à Virgem, ele alegremente
deulhe o próprio terco, exortando-o a rezá,lo sem parar"6z.
Na relação entre patrões e camponeses tinha-se inserido de modo decisivo nesses
anos o projeto de cristianização do "vilão" e entre os muitos métodos planejados o de rezar
o Terço devia revelar-se o mais eficiente. Ate o feitor Bernardino Carroli, da Romanha,
que em 1581 tinha publicado um tratado sobre a "boa criacão" dos camponeses exortara
os camponeses a rezarem o Têrço: "Pega um liwo devoto, como o liwinho do Santíssimo
Rosário, no qual verás o modo de rezar o terço e quantas vezes por semana o homem ou
mulher da referida companhia é obrigado arezaf,o,,."63. Mas os camponeses, em geral, não
sabiam ler: e o Rosário oferecia um eficaz instrumento mnemônico para os analfabetos
e para aqueles que deviam trabalhar; Carroli de fato sugeria aos camponeses que não
sabiam ler pegarem o terço para rezar "devotadamente" as preces e ir "aos campos para
ver as lavouras... levando o terço na mão, e tezando-o"6a. Por isso, esse devoto proprietário
florentino que oferecia o terço não descuidava de seus negócios: mas certamente sentia a
necessidade de colocrí-los de acordo com as novas exigências da consciência atormentada
por escrúpulos que era confiada à orientação espiritual dos jesuítas.
Ensinar a doutrina significava muitas coisas. Começava-se com o sinal da cruz e
seguia-se com as orações básicas, com o Credo, com os doze artigos da fe (um para cada

61. ARSI, Rom. 126 b. Ì, c. 110{,.


ó2. Idem,c.3l4r.
ó3. Cf. Casali, Ìl VilÌano Dirozzato. Cultura, Socrea e Potere nelle Cd.mpaw Romagnole. delta C.ontronfomw op. cit., p.73.
) 64. Idcn,p.7L.
j

. Or Missionários

't\

r
603

apóstolo), com os sete sacramentos e os sete pecados mortais, com os preceitos da Igreja
e os dias de jejum; mas também com noções de boa educação e de comportamento coti.
diano, sobretudo para os "meninos"r pequenos manuais e folhas volantes reuniam sob
esse termo uma grande quantidade de coisas. Aprendê-las significava decorá-las, com o
auxílio de ritmos, cantigas, imagens, com o estímulo de prêmios, pequenos ou grandes
(Castellino de Castello dava uma maçã de prêmio a quem aprendia "mais depressa e
melhor" o sinal da Cruzó5). De todo modo, o certo é que o ensino da doutrina não signifi.
cava ensinar a ler e a escrever. fu duas coisas eram bem diferentes; não as confundiam as
diversas irmandades da doutrina cristã então instituídas e não as confundiam os jesuítas.
Eventualmente, os jesuítas punham-se o problema se a oferta de ensinar a ler podia ser
um bom meio para alcançar o fim de atrair as pessoas para o estudo da doutrina. Uma
questão desse tipo foi proposta pela província austríaca da Ordem por volta de 1584:
tratavate de decidir se era possível ensinar os membros das classes subalternas a ler e a
escrever nos dias de festa, para induzi-los com esse pretexto a estudar a doutrina cristã.
Mas a resposta foi negativa66. Não conhecemos as razões da recusa. E provável, no entanto,
que se aplicasse âte nesse caso a disseminada desconfiança eclesiástica contra o acesso
das classes subalternas à leitura: de resto, era demasiado recente a crise aberta pela Refor-
ma. A difusao dos liwos em vennáculo e o fato de que a plebe - lavadeiras, empregados
de mercearias - lesse e discutisse as doutrinas teológicas tinham reforcado um antigo
preconceito: um preconceito que estava sempre pronto a reaparecer. Até no século das
Luzes, um eclesiástico culto como Carlo M. de Attems devia ameaçar "fechar as escolas
nos vilarejos, onde camponeses não têm necessidade de aprender a ler e a escrever"67.
A relação de ensino, portanto, ligava mestres-escola que tinham livros a alunos
que geralmente eram analfabetos e destinados a permanecerem como tais. Era preciso
atraí-los, diverti-los, estimular-lhes a memória com todo tipo de subsídios didáticos. O
ensino era um fato complexo, misto de ritual e de repetição mecânica. Teatro, música,
pintura - todos os veículos possíveis do aprendizado - eram empregados de acordo
com a necessidade. Mas a relação que era estabelecida com os alunos limitava esses
últimos ao papel de eternas crianças (mesmo no caso frequente em que os discentes
eram anciãos e os docentes eram jovens quando não extremamente jovens). Mesmo
nisso eram seguidos os modelos experimentados entre as populações extraeuropeias.
Eram modelos tidos em mente com toda clareza. Na véspera da guerra dos Trinta
Anos, quando os jesuítas bávaros relataram seus sucessos de catequese em meio aos
campos e aos vilarejos, escreveram, entre outras coisas, que um de seus jovens alunos
tinha tocado o sino de uma toÍre para reunir as pessoas: advertido para não fazer
isso, decidira sair pelos arredores com uma sineta, more Indico68. Falar em mos Indicus

65. G. B. Castiglioni, Istaria dclb Scuolc della Dottrína Cnsnana, Milano 1800, p. 15 nota.
6ó. A questão dizia respeito especialmente aos "artéfices" (München, Staatsbibliothek, cod. lat. 9201, cc. 44v45ò.
67. Do dirirlo da visita da diocese de Gorizia realizada por Attems em 1751 (cf. G. De Rosa, "Il Sinodo Proúnciale
del 1768', Ado M. D'Attems Pnmo Arcivucwo dí Gonzia 17 52-1774, Attí del Conuegno, Gorizia, 1990, p. 345).
68. Bayer. Hauptstaatsarchiv, München, Jesuiten 102, p. 2.

O Método Missionário
r.--":

604

era um modo para sintetizar rapidamente uma experiência quase secular em fato de
catequeses, sobre o qual se refletia e do qual se copiavam com entusiasmo os mínimos
detalhes. Fazia parte desse modelo o uso dos jovens e dos bem jovens (pr.r.eri) como
agentes para conquistar os anciãos. E havia muito tempo isso era o núcleo de uma
série de experiências. Segundo Sahagún, nos colóquios entre os doze missionários
franciscanos e os chefes indígenas do México foi apresentada a proposta de ensinar
às crianças "a lei de Deus" para que essas, por sua vez, a ensinassem aos adultos. Em
1576, um decreto real de Carlos V estabelecia que fossem conduzidos à Espanha
algunos indios ninos para serem ensinados e mandados de volta às suas terras como
agentes eficientes da conquista espiritualóe. No que se refere a essa medida mais ra-
dical, foi posta em execução outra no sentido de prover no próprio local a instrução
das criancas como agentes ou delegados a serem empregados logo depois. Turmas
juvenis fanatizadas na obra da conquista religiosa não eram uma novidade: a violência
juvenil, que nos tempos de Savonarola tinha se desencadeado nas cidades italianas,
continuara a dar mostras de si na época da Reforma. Os jovens empolgavam-se fa.
cilmente com os convites que thes faziam os pregadores para colaborarem na obra
de reforma do mundo. Não só na inflamada realidade da Europa reformada ou na
da Franca às voltas corn as guerras religiosas, mas tambem nos cenários das cidades
católicas italianas, que imaginaríamos mais tranquilas, encontram.se turmas juvenis
vociferantes e agressivas que impunham, através da violência, os novos modelos de
comportamentoTo. Na epoca do conflito religioso mais duro, turmas de jovens e muito
jovens acompanharam os pregadores mais populares e traduziram suas palavras em
ação. Em Verona, em 1538, segundo um pregador, matchavam em turmas (turmatim)
com crucifixos, cantos e hinos, aclamando em voz alta o nome de Cristo "que pa.
rece justamente que um só os conduza à justiça"7l. No ano seguinte, um jesuíta foi
testemunha de um espetáculo idêntico: centenas de meninos seminus em procissão,
que se disciplinavam aos gritos de "misericórdia" enquanto iam ouvir Bernardino
Ochino?2. Eram espetáculos preocupantes para as autoridades de todos os tipos, que
tiraram disso a convicção de um vínculo perigoso entre entusiasmo religioso, heresia
e subversão política e social.

69. Cf. Vasco de Puga, Provisiones, Cëdulas, Iruu'ucciones paÍú el Gobierno de Io Nueua Esparia, Madrid, 1945, p. 2l
iri
(retomo a citação de José Maria Kobayashi, La Eduración como Conquista (Emyaa Franciscarw enMático), México,
,l

1985, 1. ed.1974, p. 159). ill

70. Sobre a França, cí. D Crouzet, Les gaerners de Dieu. La víob.nce du temps des troubles de relígion (ver 1525- uets
umeninos"
1ó10), Seyssel, 1990. Mas sobre a violência religiosa em relação aos e sobre o uso que foi feito disso
no século XVl, veja+e o exceìente trabalho de Ottavia Niccoli, Ìl Seme dellaViolcnza. Putti, Fanciulli eMamnroü
nell'kalia fra Cinque e Seicento, Bari, 1995, cap. IV, pp. 61 e ss.

71. Testemunho de Paolo Andrea Del Bene perante o tribunal episcopal de 21 de janeiro de 1538 (citado pelo
autor deste volume em "Seminario sulle Visite Pastorali del Vescovo G. M. Giberti", Ricerclw di Storia Sociale

e Religlosa, )oc(X, 1991, pp. 178-181).


72. O testemunho de Francisco de Estrada em uma carta a Inácio di Loyola, de Montepulciano, é citada por
Niccoli, IISeme üLIaVíolenza, op. cir., pp. ó8ó9.

Os Missionários
r
605

Normalizadas as cidades, essa violência devota - já controlada e diferentemente


orientada por pregadores íiéis a Roma - passou a ocorrer no campo do mundo inteiro.
Os franciscanos entusiastas relataram histórias de pequenos Índios empenhados na
destruição de templos e de ídolos e na delação contra os idólatras clandestinosT3. Na
Europa, tratou-se geralmente de violência verbal, ou pelo menos só essa foi proposta
como modelo nos relatórios dos empreendimentos dos jovens catequizadores. Mas
nesses mesmos relatórios podem ser lidas histórias de jovens catequizados que agrediam
as meninas que traziam amuletos no pescoço; e as de outros pueri que, de volta à casa
e encontrando carne à mesa nos dias de magro, lançavam os pratos pela janela. Esses
jovens entusiastas davam liçoes à "rústica plebe" reunida nos espaços do cemitério e da
igreja; e reproduziam com os velhos a relação que os jesuitas tinham mantido com eles,
distribuindo pequenos presentes (conseguidos por meio de esmolas) aos velhos como
prêmio se aprendiam a 1ição?4.
As formas da instrução catequética foram fixadas então de acordo com o modelo
de uma relacão entre missionários e crianças. Nas Índias ocidentais, visto que raramente
os missionários sabiam a língua local, tratou-se de fazer decorar fórmulas e orações em
castelhano, com um ensino ritualizado, em que a memória era agilizada pelo ritmo de
cantigas, por desenhos e pinturas. Em um quadro desse gênero surgiu o já recordado
projeto de ensinar às crianças para que ensinassem a seus pais, exposto aos chefes e sacer-
dotes astecas pelos "doze" franciscanos em 1524, de acordo com os Colóquios redigidos
por Bernardino de Sahagún; e de fato, em 1558, Pedro de Gante escrevia a Felipe II
que estavam procedendo ao ensino da doutrina cristã aos filhos dos mais eminentes
chefes locais para que, em seguida, esses filhos ensinassem "a sus padres y madres". Os
resultados, segundo o franciscano Motolinía, foram excelentes?5. Os jesuítas fizeram largo
uso dessa experiência, em particular da ideia de usar as crianças para atrair os adultos. Ou
vice.versa: entre as industnae de Polanco, lê-se o seguinte conselho: "atraer mochachos por
via de los padres o maestros"76. O importante era chegar à conquista das faixas etárias mais
ricas de futuro. Nessas linhas coloca,se também o que foi feito nos campos italianos entre
os séculos XVI e XVII. No centro do ensino permanecia a doutrina na forma essencial e
básica oferecida por aqueles tipos de pequenos manuais para os quais a Companhia de
Jesus deu notável contribuição. E a doumina, desde o início, esteve no centro das missões.
Nos vilarejos das Marche, em 1583, os missionários encontraram-se diante dos
problemas fundamentais das escolas de doutrina: conciliar o ensino às crianças com o
dos adultos, levar à população dos vilarejos os ritmos das escolas da cidade. A "missão
da Marca" tivera oportunidade de fazê-lo, a partir de um convite do bispo de Came-

73. Kobayashi, It Educacíón como Conquista op. cit., pp. 182-183.


74. Bayer. Hauptstaatsarchiv, München, Jes uiten 102, p. 2: o relatório é de 1614 e refere*e aos arredores de Bitburg.
75. Cf.Kobayashi,LaEducacióncomaCon4uistaop.cit.,p. lS2.Haviaumajustiíicaçãopedagógicanessaestratégia,
que, segundo os Cohqaios, baseava+e na maior ductiiidade intelectual dos jovens: "Porque vuestros hijos como
niflos y tiernos en la edad, comprendéran con más facilidad la doctrina que les ensefraremos. Y después ellos
a veces nos ayrdarán enseÃandoos a vosotros y a los demás adultos 1o que hubieren deprendido".
76. MHSI, Polanci complzmenta, II, Mâtriti, 1917, pp. 751-757.

O Método Missionário
\ ::
{
A
r
606

rino ao geral da Companhia, para "que mandasse alguns de nossos ensinadores para
ensinar a doutrina cristã"??. A rnissão durou quase um ano. Castelos, vilarejos e cidades
foram atravessados a pé, "caminhando no inverno pelas neves e debaixo de chuva, e
depois, no verão, sob grandes câlores". Ao chegarem a qualquer localidade habitada,
"tocavam-se os sinos e enviavam avisos por todo o castelo para que não jogassem, mas
que se ativessem à doutrina e às coisas espirituais". O modo do ensino era "dar duas
aulas por dia aos meninos e meninas que costumam pâssâr o dia na terra"l e relatava-se
que, se os filhos eram necessários para cuidar dos rebanhos, "os pais pegavam peões
para guardar os rebanhos para que seus filhos pudessem dedicar-se mais comodamente
ao aprendizado da douffina"; ou então, iam eles mesmos no lugar dos filhos vigiar os
animais. Sabia-se - e os teólogos ressaltavam isso quando se falava em "ignorância in
vencível" - que até os rudes camponeses eïam capazes de decorar cantigas e quadrinhas.
Por isso, à classe social dos camponeses e à faixa etária que the correspondia quanto a
meios intelectuais, a das crianças, foram destinados métodos apropriados, que tiveram
por base justamente o ritmo e a música. Mas as criancas receberam contínuos elogios
dos missionários por sua capacidade de aprendizado e por seu ativismo devoto. Uma
menina de três anos, de Paterno, e outro menino de Colmurano causaram admiração
geral por sua preparação, que não era apenas de tipo mnemônico, "eles - observava
o jesuíta - não só sabiam as coisas necessárias, mas junto com elas a declaração" (e a
excecão confirma, evidentemente, que em geral ffatavÍr-se de um aprendizado limitado
à repetição papagaial)?8. As crianças, resumindo, eram os protagonistas, por sua habi-
lidade e agressividade, "em Tolentino [...] apareceu um menino pobre de Urbisaglia e
ganhou bem, ensinando a doutrina cristã de casa em casa"7e.
Havia ainda cursos noturnos, para "o povo que universalmente sai para trabalhar l

i
fora". Era preciso usar as horas do serão: "havia o expediente de fazer uma hora de dou' l

trina à noite, depois que todos tinham jantado". As aulas ocorriam nas igrejas, cheias de
gente e iluminadas por grande quantidade de luzesr "parecia que qualquer noite dessas
fosse a sagrada noite do Natal do Senhor". O êxito, naturalmente, foi extraordináriot

Assim os homens e mulheres de idade, como também as crianças de até 3 ou 4 anos aprendiam
muito bem a doutrina que para o gáudio de quem os ouvia, esses de terra em terra e aqueles pelos
campos suando em meio a seus trabalhos, cantavam devotadamente a doutrina e cantigas espirituais
que pelos nossos foram-lhes ensinadas8o.

Depois do teatro, as cantigas. Foi por essa via que se iniciou desde o começo
o ensino da doutrina cristã. Seguindo modelos em uso, a prática jesuítica de ensino
serviu-se de técnicas mnemônicas baseadas na música. Na Sicília, em 1556, ensinava-

77. ARSI, Rom. 126.b t, c.313r.


78. Idcm,c.322r.
79. Idem, ibíd.em.
80. Idzn,ibidcn.

Os Missionários

607

doutrina "através da rima"81 e era cantada "pelas ruas"82. A proposta de "ensinar


-se a
a doutrina cristã pelo canto" circulava entre as sedes jesuíticas e encontrou defensor
em Gênova na pessoa do próprio Caspar Loarte, que tambem sugerira o uso de ima-
gens83. Tinha sido, mais uma vez, o incansável e atento secretário Polanco a sublinhar
a importância desse meio para induzir os povos de outra cultura a aprender de cor as
fórmulas da doutrina cristã8a. Anos mais tarde, nas Marche, na região de Urbisaglia,
contava-se que "dizer a doutrina interrogando-se entre eles, cantar e responder quando
the e solicitado na igreja, é algo comum a mocas casadoiras, mulheres e velhas"85. Os
relatórios missionários publicados divulgavam histórias de centros inteiros habitados
em que, durante o ensino catequista por parte dos jesuítas, ressoavam apenas cânticos
devotos e recitações rítmicas da doutrinas6. E havia ainda ielatos de músicos e cantadores
profissionais que eram atraídos e convertidos por essas recitações catequéticas, a ponto
de renunciarem às suas próprias apresentações e de se declararem prontos para queimar
seus instrumentos musicais para usufruir dessa outra música espirituals?.
Daí em diante, histórias de cantos devotos abundaram nos relatórios dos missionários.
Eram entoados por ceifeiros durante seu duro trabalho, enquanto dedicavam os feixes "à
Beatíssima Virgem, S. Inácio, S. Francisco Xaúer e ouffos santos do céu... quando antes
eram amarrados em nome de suas namoradas; e todos, ao terminar o trabalho no fim da
tarde, gritavam em voz alta, Viva Cristo, viva Maria"88. O grito de "Viva Maria" devia ecoar
muitas vezes na história italiana - no Piemonte do final do seculo XVII, nas revoltas anti-
jacobinas do final do século XVIII, ate nos ritos coletivos de "Nossa Senhora peregrina" às
vésperas da eleição de 1948 - como momento de agregação de sociedades camponesas contra

81. MHSI, EpistolaeMixtae ex vanis Europae Locís ab Anno 1537 ad 1556 Scnptae, t.v,1555-1556, Matriti, 1901, p.
133 (carta de Domenech a Inácio, Messina, 20 dez. 1556).
87,. Iden, p. 358 (carta citada de Thomas Romanus a Inácio, Bivona, 13 jun. 1556). As companhias da doutrina
usavam liwetos com sugestôes de versos e ritmos: cí. Turrini, Rifmmare il Mondo a Vera Víta Cüstiarw, op. cít.i
para uma instituição que tem origens italianas e íixa+e na França, cí. Jean de Viguerie, Une oeuwe d'éducation
sous I'Ancien Régime. Izs pères de Ia doctnne chréüenne en France et en kalie 1592-1792, Paris, 1976, p. 412.

83. Cf. a carta a Carlo Borromeo, com data de Genova, 7 jan. 1575, escrita por certo Crippa, em Castiglioni,
Istoria delle Scuole della Dottrína Cristíana, op. cit., pp. 74-75. Sobre a atividade musical dos jesuítas genoveses, cí.
Daniele Calcagno, "Musiche e Musicisti per i Gesuiti in Liguria tra XVI e XVIII Secolo', Quademi Franqoniani,
u 5, n. 7, jul.Áez. 1992, pp. 177.208, que lembra que Loarte atuaÍa em Genova entre 1554 e 1557.
84. A instrucão de 1558 é publicada por P. Leturia, "Un Significativo documento de 1558 sobre las Missiones de
Iníieles de la Compaflia de Jesús", em AHSI, \1[, 1939, pp. 102-117.
85. ARSr, Rom. 126. b r, c.320u.
86. 't...1 Gmpla, fora, porticus, noctu domus, viae divinis canticis, ad quae adhibebatur s1'rnphonia cum musicis
instrumentis, personabant" (LitteraeSocietatislesaDrlu;rrum Annorurm MDLXXXVÌ et MDL'XXX\4\adPava etFratres
eíusd.emsocíetati.s, Romae, em Collegio eiusdem Societatis, 1589, p. 32).

87. Idem,p. ll5.


88. Rektione dí umaMissione Fatta da Due Reverendi Paüi dzlla Compagnia di Giesü rwtla C*n di Bitonto dcl Regno
di Napoli nell'Anno 1646 Sqitta da D. Gio. Battísta di Elia, Trani,/Bologna, 1647, p. 34. Uma visita pastoral
no Cilento de 1755 descreve com maiores detalhes a prática da dedicação do feixe, que nessa época ocorria
somando modalidades devotas a rituais de íesta da fecundidade: cí. Pietro Ebner, Chíesa, Baroni e Popoln nel
Cilznto, Roma, 1982, p. 121 nota.

O Método Missionário
t""
608

as ideias novas provenientes das cidades: porém, mais duradouro ainda foi o sucesso da
cantiga espiritual, que devia marcar durante os séculos a devocão italiana. Os relatórios dos
missionários atestam o grande e frequente uso desses meios de aculturacão e de propaganda
religiosa. Cantigas eram entoadas antes, durante e depois dos ofícios liúrgicos; as procissões
eram acompanhadas por cantos; quanto à elaboração de letras e músicas, há - dispersos
nas bibliotecas e nos arquivos - ffaços de uma produção que foi extraordinariamente rica.
A cena desses camponeses que entoavam cantigas devotas e instrutivas assemelha-
-se quase à realização de um desejo que desde muito tempo era repeddo por escritores
italianos: ver os rústicos habitantes dos campos, as classes populares e as mulheres
acompanharem seu trabalho com cantigas devotas e com palawas das Escrituras. Era o
sonho de uma sociedade cristã sem mais fraturas, recomposta na unidade do Evangelho.
Quem havia dedicado seu trabalho à vulgarização dos Evangelhos e dos liwos da Biblia
expressara do seguinte modo seu auspício:

Pareceria algo muito louvável e santo se ainda esse lawador, governando o arado, cântasse em
sua língua materna alguma coisa dos salmos, se o tecelão, tecendo o pano, rememorando algo, com
o Evangelho consolasse sua labuta, e se o timoneiro, manobrando o timão, cantasse alguma coisa, e

assim se outros semelhantes, dedicando-se a seus trabalhos, fossem aliviando a lida com a santíssima
lauda de Deus e palawa do Evangelho, e se a reverenda matrona, dedicando.se aos afazeres domes-
ticos, ou à cabeleira, em vez de conveÍsar com sua família sobre troianos, Fiesole e Roma, recitasse
alguma coisa do Evangelho às netas e filhas pequenas [...]8e.

E um outro autor italiano, convertido à igreja de Calvino, repetia esse auspício


em versos:

o quão venturoso
poderá dizer-se aquele, que no dia a dia
ouvir o lawador guiando os bois
laudas cantar ao Senhor glorioso
e assim pelas ruas
da fiel cidade,
enquanto com mãos e olhos ocupados,
em várias obras e trabalhos,
ouvir os artesãos ardentes de puro afeto,
a Deus salmos cantart
e fazer o mesmo
pastorinhas e pastores,
enquanto seus rebanhos

89. Il Nuouo Testamento di Chisto Giesu Signme et Salvatare nosuo, dí Greco Tradotto in Língua Toscana per Antonio
Brucioli, em Venezia, por Bernardino Bindoni, 1541, dedicado a Anna d'Este, cc. n. n. Cf. a ficha de Edoardo

Barbieri, Iz Bibbie ltalíane del Quattrocento e d.eL Cinquecento, Milano, 1997, pp. ZBI-282.

Os Missionários
r
609

passamodiaâpastar,
fazendo ecoar com doces cadências
os vales e as colinas à volta,
e sombrosas ílorestas,
do santo nome do Senhor celesteeo.

Elevar o povo ate as nobres alturas da palawa de Deus era a única alternativa para
escapar à acusação de rebaixar o conhecimento sagrado ao nível do vulgo ("vulgarizar").
Na realidade, à parte as reminiscências dantescas inseridas por Brucioli, essas
eram as palavras de um autor do qual os jesuítas não gostavam, ainda que o lessem
e dele se servissem (porem, sempre ad maiorem Dei gloríam): Erasmo de Roterdãe1.
Fora ele quem expressara esse desejo na introdução à edição basileia de 1522 do
Novo Testamento em latim. Não se limitara a isso: em uma ocasião solene como a da
oferta aos pios leitores de sua edição do Novo Testamento, Erasmo tinha aventado
a possibilidade de que, do altar, um clero renovado ensinasse a doutrina cristã ao
povo. Devia ser uma doutrina simples, adequada ao povo e totalmente extraída das
Escrituras, com o acrescimo do Credo, Iucida breuitas e docta símplicitas deviam ser
as regras para juntar esse textoez. lronia da historia, dir-se-ia: os jesuítas pareciam
destinados a realizar um programa de Erasmo. Mas as coisas não estavam exatamen-
te nesses termos: o programa de Erasmo era mais amplo e apresentava pontos de
convergência, bem como pontos nào secundários de divergência, em relação à obra
desenvolvida pelos missionários. Erasmo não desejara apenas que se ensinasse às
classes populares cantos e textos devotos e preceitos catequeticos. Segundo ele, uma
íormação renovada devia levar, por parte do clero, a um estilo severo, com ritos íre-
quentes de profissões públicas de fé que estenderiam à massa dos fieis a ritualizada
e solene santidade dos votos monásticos e com o consequente desaparecimento das
obscenidades dos pregadores-bufões, e quanto a isso a Igreja tridentina e a Companhia
de Jesus estavam plenamente de acordo. Mas Erasmo sonhava ainda com um tempo
no qual se aprendessem os textos da Escritura na propria língua e desaparecesse
completamente a repetição papagaial do padre nosso e outras orações em latim. De
todo modo, uma coisa era oferecer ao povo dos analfabetos a Bíblia em vulgar, outra
presenteá-los com cantigas; tambem no mundo de frei Cipolla, havia frades que pre.
senteavam "o padre.nosso em vernáculo e a Cantiga de Santo Aleixo"e3.Como se vê,

90. Sessanta SaImí dí David, Tradotti in Ríme VoLgai lca|iane, secondo Ia c)enrà det testo hebreo. col cantíco di Simeone, e

i díeci comandnmenri dnlla lege: ogní cosa insíeme col canto, tipograíia de Gieremia Planche, s.l. 1585, c. A 6t' (a

I primeira edição apareceu em Genebra em 1560, impressa por G. B. Pinerolio: cí. P. Chaú, A. Duíour e G.
Moeckli, Ixs liwes impnmés à Genèc)e de 1550 ò 1600, Genève, 1966, ad annum).
I.
91. A propósito de Erasmo e de Vives, em 157 5, a Companhia era de opinião que se devesse abster da leitura de
ambos, "nisi si quibus interdum eoÌum usus ad maiorem gloriam Dei videretur esse necessarius" (Staatsbi-
bliothek, München, cod. lat. 9?-01, c.7r).
92. Cito a partir de Erasmo, Opera, ed. Leclerc, t. VÌÌ, Lugduni Batavorum, 170ó, dedicatória "Pio Lectori".
93. O rrecho de Boccaccio (\4I, l, 5) é Ìembrado por Gianfianco Folena, Vol.ganzzcue eTraàune, Torino, 1991, pp. 4O41.
r.'"",

610

i a diferença entre projetos erasmianos e realizaçÕes jesuíticas residia exatamente nisso,


I na ritualidade papagaial das orações repetidas e na rejeicão à Escritura em vulgar.
Sobre isso, a Igreja tridentina tinha se empenhado a fundo: a Escritura em vulgar
era um instrumento extremamente perigoso, cuja circulação devia ser evitada a todo
preço. Os decretos dos bispos ordenavam aos párocos que cuidassem para que não
fossem mantidas pelos paroquianos "conversacões sobre as coisas da sagrada escritu.
ra, principalmente por parte dos idiotas e ignorantes, advertindo ainda os povos a
não usarem as palavras da sagrada escritura como burla, supersticões ou demais usos
profanos e que não tenham livros proibidos pelo Índex"ea. E havia muito tempo que
o Índ.* excluíra qualquer circulação em vulgar da sagrada Escritura. Quanto ao Santo
Ofício, vimos como as suspeitas eram despertadas contra uma representação teatral
mesmo com base em uma simples alusão a textos evangelicoses.
A catequização das massas, portanto, deu-se por meio de mecanismos de dou.
trinação coletiva que prescindiam da leitura direta e da reflexão individual. Foi desde
o início uma doutrina cantada e ritualizada, algo em que acreditar e a ser obedecido
sem perguntar o motivo. A musicalidade facil da cantiga prestou.se a tal objetivo. fu
preocupacões de severidade e de retorno à compreensão dos textos, que tinham inspi-
rado a reforma tridenoina da música sacra, afastando-a do percurso da música profana,
íoram conturbadas por uma avalanche de musicalidade suave e sedutora. O sistema
obteve sucesso duradouro e há seculos vem sendo empregado, devido justamente aos
elementos rituais e teatrais que continha. A partir das escansões ritmadas das "doutri-
nas" em uso no final do século XVI, chegou-se à musicalidade difusa das cantigas pias
dos séculos XVII e XVIII. Nos arquivos das instituicoes dedicadas ao ensino da doutrina
cristã conservam-se ainda numerosas cópias de livretos com as cantigas e as folhas vo-
lantes com as respostas que o povo devia repetir em coro às perguntas sobre a doutrina,
alternando-as com cantigase6. Os ensinamentos "explicados em pequenas árias" abran.
giam toda a doutrina cristãe?. No grande sulco de uma pedagogia que mitigava o amargo
do aprendizado com a doçura das tecnicas utilizadas, ocorreu, no entanto, uma distinção
entre as cantigas didáticas e aquelas destinadas à pura expansão sentimental e afetiva: as
primeiras, por exemplo, explicavam como escolher um confessor e porque obedecer.lhe

94. Sao as constituições sinodais da diocese de Comacchio, impressas em Ferrara em 1579 (cito a partir de
Antonio Samaritani, "Fonti Inedite sulla Riforma Cattolico-tridentina a Comacchio", em Rauennatensiall,
Atti del Convegno dí Bolopa, Cesena, 1971, p. 519).
95. Ver o item sobre o teatro no cap. XI deste volume.
96. Cí. a tírulo de exemplo as Risposre Volgan da Ripetersi dal Popolo VícendeuoLmente Doppo Cíascuna Parte dc Cann
Sacri Preposti nell'Insegnarsi Ia Dottnna Christiana, em Ronciglione, por Egidio Torelli, s.a. (conservado, com
muitos outros opúsculos, junto ao ArchMo Storico del Vicariato, Roma, Arciconfraternita della dottrina cris.
riana, í. 440, t. 2, íasc. 4, l702-1722). No mesmo, t. 2, íasc. 6, um quadro conjunto das doutrinas "publicada-.
e vendidas" no início do século XVIII, com números que superam as dezenas de milhares.
97 . Insegnamenti delln Dottnna Crktíana Spiegati in Aiette per Uso e Capacità dei Poueri Giouínetti, em Roma, por Pietro
Olivieri, 1702. Diante das dimensões históricas do fenômeno, chama a atenção o silêncio dos esrudos e em
particlar daqueles relativos à ltália (ver, por exemplo, para a Franca, Amedee Gastoué, Iz cantíque populaíre ea
France. Ses souÍceJ, son histoíre, Lyon, 7974).

Os Missionários
r:

6ll

cegamente ("Escolhe o melhor, lconfiaJhe tudo, le toma-o por guia le conselheiro"e6);


as segundas eram cantos de louvor a Deus ("Senhor e Pai amado, lmeu bem supremo,
meu Deus lperdoai, eis meu coração lplenamente arrependido"ee), à Eucaristia ("Adoro-
.vos a todo instante, lO vivo pão celestelGrande Sacramento"l00) e sobretudo a nossa
Senhora: "E viva Maria le quem a criou | [...ì Com santos pensamentos lfoi bela e foi
morena le o sol e a lua lcingiram e ornaram-na"101.
Diante desse avanço da cultura religiosa normalizada em meio às classes popu-
lares, a questão que deve ser abordada e a da mensagem social da qual os missionários
fizeram.se portadores. As missões populares deram vida a uma "religião dos pobres"
somente no sentido de terem transmitido ao povo dos simples e dos pobres o núcleo
básico das doutrinas ortodoxasl Ou tratou-se de uma religiao dos pobres no sentido
de ter sabido responder ao desejo que tinham de justiça social? A resposta não é sim-
ples; sobretudo, não há uma resposta que valha para todo o período e para todos os
protagonistas das missões populares. Foi justamente observado que, na gravíssima crise
social que atingiu o Sul da Itália no início do seculo XVII, a estratégia missionária dos
jesuítas desempenhou uma função "estabilizadora" contra todos os conflitos sociais,
perseguindo um objetivo de manutenção socia1102. A equação pecados particulares /
flagelos públicos tinha umâ extraordinária eficácia potencial de conservacão: a essa
equação os pregadores das missões recorreram normalmente. Têrremotos, epidemias,
guerras e fome não passavam de punição divina pelos pecados do sexo e da blasfêmia: e
assim, o protesto coletivo era reduzido a penitência individual. Num plano mais geral,
empurravam para essa direção o proprio caráter do domínio exercido pela lgreja, cada
vez mais restrito ao âmbito das consciências, e a relação com o poder político que no
entanto protegia a Igreja enquanto esta empenhava-se em manter quietas e obedientes
as consciências dos súditos. Em termos gerais, seria fácil observar a esse propósito um
envolvimento do mundo eclesiástico nas formas de domínio e de desfrute no seio da
sociedade europeia semelhantes às que podem ser observadas no domínio coloniall03.
As procissões dos missionários recorreram normalmente à mensagem interclassista dos
ricos e poderosos que se flagelavam e humilhavam publicamente, com cenografias que
os colocavam abaixo dos pobres. Enfim, é inegável que o apelo penitencial e o convite
a considerar os problemas públicos como causados por pecados privados exerceram
uma função de manutenção social ou pelo menos de válr,rrla de segurança. Realizou-
-se, no plano das relações sociais, algo semelhante ao uso consolatório da religião que
encontramos no terreno do controle das consciências individuais através da confissão.
ll

I 98. Dos "tequisitos da boa confissão", na íolha volante Risposte Volgari, citada à nota 96 deste capítulo.
99. Idcm.
100. t^e Glone del SS. Sagamento, em Narni s.a. (conservado no citado fundo do Archivio Storico del Vicariato).
l0I. I-audi Spirituali ín Honore diMaría per Seruirsene inTempo del.le Missioni, s.l. n. a. (conservado no fundo do
Archivio Storico del Vicariato).
102. M. Rosa, Strategia Míssionaria Gesuitica in Puglia, op. cit., p. I74.
103. Cf. Wolfgang Reinhard, "Christliche Mission und Dialektik des Kolonialismus", em Historischzs,lahrbuch,
cx, 1989, pp.353-370.
t
O Método Missionário
\ I
.t,\
.igt
r""
6tz

A própria rebelião era uma heresia; nas execucões capitais dos hereges celebrava.se a
piedade triunfante sobre o espírito da rebelião, personificado por Luterolo4.
Contudo, se se pÍetende entender a força da ligação que os missionários conse.
guiram instaurar, e preciso ter em conta o fato de que entre as características originais
das missões nas "Índias internas" houve tambem uma vontade de proteção e de so.
lidariedade em relação aos povos paupérrimos dos campos - algo semelhante àquele
impulso generoso que impeliu Bartolomé de las Casas à sua luta solitária pelos índios
da America. Foram as terríveis condições de vida dos povos visitados que suscitaram a
piedade participante de Silvestro Landini e, depois dele, de muitos outros missionários.
O impetuoso Nicolo Bobadilla entrou em colisão direta com o cardeal Michele Ghis.
lieri quando, após as sangrentas campanhas contra os valdenses, dirigiu.se à Calábria
e, comovido com a miséria dos habitantes de San Sisto, tentou obter do vice.rei de Ná.
poles que "a miséria deles fosse provida de algum rrfti,lio"105. Seu confrade Cristoforo
Rodriguez tambem insistiu no sentido de que fossem feitas intervenções de assistência
em favor dos mais pobres, nem lhe pareceu oportuno que, enquanto esses camponeses
eram utilizados na lavoura dos campos, ele e seus companheiros permanecessem entre
eles "ociosos a comer o pão desses pobres"106. A "ajuda" era um instrumento funda.
mental da atuacão dos |esuítas: e a ajuda material, concebida como meio para atingir
a ajuda espiritual, encontrou um forte impulso nos sentimentos humanos suscitados
nos missionários pelos espetáculos de injustiça e de miseria dos quais foram observa-
dores atentos. Não só na ltália: entre as plebes de Andaluzia, o jesuíta Pedro de León
descreveu com seca amargura os espetáculos de prepotência e desfrute dos quais foi
testemunha - a multidao de "pícaros y desesperados" sobre os quais os Grandes de
Espanha erigiam suas incalculáveis fortunas, os suntuosos aparados de inquisidores que
enriqueciam espoliando os moriscosl0T.
É compre.nsível, portanto, que o povo era atraído para as pregações missionárias
por algo que não era apenas a íascinação do teatro ou a distracão sonhadora das can.
tigas sagradas. O conteúdo desses catecismos era capaz, se necessário, de submetepse
em socorro das condições do povo e das convicções mais arraigadas de sua economia
moral. Podemos ter uma ideia disso lendo como, no íinal desse ciclo historico da pre.

104. La Píetà Trionfante, Oc)ero FeLice Successo nelkt causa di quelLi honendi, e sacnleghi deLínquenti, chc. isporcavano
IesacreimagininellncittàdiBologna...CantodiFrancescoGeorgto,emBologna,porNicoÌoTebaldini, 1623.
Sobre a execução capital (1627) de Costantino Sacardino e de seuíilho, culpados de realizar um complô
contra a religião e contra o poder papal, cf. C. Ginzburg e M. Ferrari, "La Colombara ha Aperto gli
Occhi", Quadrmi Storici, )OO(MII, 1978, pp. 631.639.
105. Scaduto, Tra Inquisíton e Riformatí, op. cit., p. 13.
106. Idem, p.28.
107. Cf. Pedro de Le ór., Grandzza'J Mísena en ,\ndalucía. Testimonio de una Encrucijada HbtOrica (157 8.1616), org.
de Pedro Herrera Puga, Granada, 1981, p. 355 e passim. Sobre as coligações entre a cultura política dos
jesuítas e as dinâmicas sociais executadas por seus missionários há pontos inteÍessantes em M. Olivari,
"Lettura 'Politica'dei Resoconti Missionari di Pedro de León, Gesuita Andaluso (1580.1620)", Riv*ra
di Storia e lttteratura Religiosa, )Cü1, 1986, pp. 47 5491.

Os Missionários
613

gação missionária, tenham sido definidas as características do pecado misterioso que


agitara as consciências escrupulosas durante séculos - o "pecado contra o Espírito San-
to", de acordo com os conceitos explicados em cantigas, eram quatro os pecados "que
gritam por vingança perante Deus": o homicídio voluntário, "vício nefando lcontra a
natureza, I a dura opressão I de pobreza, I e a paga, I que não foi dada I aos operários I há de
te oprimir"108. É bastante compreensível que esse povo assim catequizado encontrasse
no canto do "Viva Maria" um momento fundamental de sua tomada de consciência
política e social.

3. Crvrr-rztÇ^o

A missão na Sabina foi desempenhada por Marcantonio Costanti e Salvatore Trotta,


entre 1605 e 1606. O primeiro encontro dos dois jesuítas foi com guardadores de re-
banhos, perto da ponte "das Mentane"; os exortaram à penitência "e assim, por graça
do Senhor, sete se confessaram". Ao anoitecer, chegaram a um lugarejo chamado "a
Cesarina"; ali moravam cinquenta homens, todos trabalhadores, pastores e guatdadores
de vacas, com eles também o convite à penitência obteve sucesso. Entre o anoitecer e
as primeiras horas da madrugada confessaram 22; foi-lhes recomendado comungarem
assim que possível, pois nas vizinhanças havia apenas "uma capela antigat' da qual
restara apenas a sineta,
Desses encontros com grupos humanos dispersos, habitantes de choupanas
em meio ao campo, em companhia dos rebanhos, estão repletos os relatórios dos
missionários. A paisagem extraurbana, nessas páginas, aparece deserta e desolada, os
poucos habitantes em condições de extrema pobreza. O isolamento social dos pastores
e pescadores é frequentemente indicado como o verdadeiro cerne do problema. Os
missionários que nesse mesmo período perambulavam na zona costeira perto de Civi-
tavecchia deixaram anotações em que a dispersão dos grupos humanos e a casualidade
dos encontros são ainda mais evidentes: os lugares relacionados são choupanas de pes-
cadores, de vaqueiros, estábulos de búfalos, currais de vacas. O diário desses encontros
ocorre sob o signo da casualidade,

Fomos um dia visitar as choupanas de pescadores e ali distribuímos muitos terços e toda
sorte de imagens com o s. Nome de Jesus, e por estar bravio o mar as pessoas confessaram sem
comungar... De Porto partimos aos 21 lde novembro de 1605] por um bairro chamado Maccarese,
e por termos de passar por matas sem caminhos levamos um guia que catregava nossas coisas.
Chegamos a Stagno distante três milhas a oeste de Porto, onde há duas choupanas, ali coníessou
um, e depois de atravessar o charco seguimos duas milhas mais adiante até a choupana de uns
l" vaqueiros, e passamos a noite com eles deitados no chão, tendo coníessado todos naquela noite,
mais três de uma choupana vizinha, e peia manhã fomos convidar os que moram num curral de
cabras distante uma boa milha dali [...ì Um de nossos caminhou uma boa milha até uma torre

108. Insegnamentí delltt Dottrina Cnstiana Spiegatí in Ariette op. cit., p. 30.
i

I
O Método Missionário
\,,
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f"
614

perto do mar para confessar uma pobre enferma há muito tempo. Foram avisados os que pescam
mariscos [...]10e.

E no íinal da missão, para atingir alguns casarios dispersos nos arredores de Primapor.
ta, "embora tivéssemos guia erramos o caminho e enfrentamos o dia inteiro muita ventania
e chuva; no caminho entramos numa choupana de ovelheiros e dois se confessaram"11o.
Era um panorama formado por moradias dispersas, igrejas "muito antigas", bo.
nitas mas não oficiadas, sem paramentos, fechadas a chave, pois "aqueles que impedem
a entrada nessa igreja (Primaporta) não querem que ali sejam realizadas confissões e
comunhões... Deus sabe quantos morrem, e por ser pequenina a igreja, são sepultados
do lado de fora, e no ano passado foram desenterrados üês cadáveres e devorados pelo
campo por cães-lobos e raposas"tlr. Dispersao e mobilidade dos homens significavam
casualidade dos encontros e das aventuras, dissolução de toda relação estável; os pastores
que vagavam com seus rebanhos pelo campo e os trabalhadores que deixavam seus lares
para ganhar algum dinheiro acabavam por gastá-lo com meretrizes que no verão circulavam
"por choupanas e matas" e terreiros onde se batia o trigo, e no inverno retiravam-se para
Cerveteri: mas chegavam ate às portas de Frascati e de Grottaferrata, ou estacionavam
nas estalagens, por exernplo, na "estalagem da Riccia". Frequentemente de casuais essas
relacões tornavam-se estáveis e as famílias eram arruinadas; a ruína econômica e moral
era acompanhada pela ameaça da sífilis e pelo escândalo dos peregrinos que por ali
passavam a caminho de Roma. Essas meretrizes públicas - anotavam escandalizados os
missionários - "são admitidas na comunhão da Páscoa". Era
difícil manter unida essa
população dispersa, tanto que os missionários não conseguiam nem sequer mantê.la
unida no lapso de tempo entre a confissão e a comunhão: bastava uma borrasca de mar
ou alguma cabeça de gado perdida para que quem tinha se confessado fosse embora,
adiando para outro momento a comunhão. Por isso, foi necessário recorrer a pequenas
astúcias: por exemplo, deram medalhas bentas a quem comungava. Astúcias pequenas
mas não inocentes. Esses veículos de proteção divina, para seÍem usados no lugar de
breves e outros objetos "supersticiosos", eram "coisas muito apreciadas por eles", como
bem sabiam e como tambem escreviam os missionários; por isso, com a promessa dessa
recompensa, as pessoas acorriam à comunhão. Mesmo em Primaporta, íoi suficiente
deixar uma "indulgência impressa" para que acorresse "gente de até três milhas de
distância". As pessoas vinham, atraídas por esses objetos e pelas promessas de proteção
espiritual, de perdão dos pecados, de ajuda. Eram movidas por grandes temores e gran-
des esperancas. O relatório lanca luz sobre os pesadelos que agitavam as pessoas dessas
choupanas: relata sobre um pastor que, à notícia da chegada dos missionários, fora to.
mado "por um grande terror e susto, e na noite seguinte, estando no campo, quase não

109. "Relatione delia Missione Fatta da Due Padri della Compagnia di Giesü [...] per il Vescovato d'Hostia
et Porto quesr'anno 1605" (ARSI, Rom. 129. I, cc. l60r.l62ri em part. c. 160v).
ll0. Id"em, c. 162r.

111. "lnformatione del Bisogno et Stato della Chiesa di Primaporta" (idem, c. l6Iru).

Os Missionários
ï

615

dormiu, com a impressão de ter-se ocupado ininterruptamente de tirar cobras vivas do


peito, que queriam devorá-lo"; de manhã, decidira ir confessar e contara ter cometido
"grandes desatinos".
Os relatórios do campo romano retomam, desse ponto de vista, os tons e as cores
daquelas da Córsega. O desolado panorama social da ilha que chocara o protomissio-
nário Silvestro Landini reaparece intacto nos relatorios do século seguinte:

As pessoas vivem por demais desunidas pelas bandas desses montes da Córsega, e sem outra
atividade que não a de morar a maioria em companhia de animais e dispersas entre pequenas vilas,
que não passam de seis ou sete choupanas que nem têm forma de casa e distantes muitas milhas essas
vilinhas umas das outras, de modo que só alguns assistem de vez em quando à missa de domingo [...]rr2.

Párocos ignorantes, povos dispersos, bispos impotentes: o panorama apresentava-


-sedesolado e sem remedio. Nem mesmo as missões podiam resolver o problema, como
o mesmo relatório lucidamente explicava:

E verdade que nas missões faz-se alguma coisa, mas não se remedeia para sempre, pois passa-
das as missões, visto que as pessoas nào possuem nenhuma cultura de espírito e nenhum habito de
virtude, deixam-se levar pelos sentidos como o cavalo pela ração, e assim passada a missão é como
uma água impetuosa que lava a terra sem penetrá-la. Esquecem logo o que foi feito, voltando a seus
antigos costumes, pois enquanto não tiverem sentimentos de virtude cristã nada poderá durar por
muito tempo.

Os costumes ferinos da população pareciam não ter remedio. Mas a sociologia


jesuítíca tinha uma proposta: era preciso "demolir esses redutos de muitas choupanas
e casebres nos quais essa gente vive tão desunida... Forçar as pessoas a viverem unidas e
íazer com que se unam para formar uma terra grande'ou cidade"113. Aquilo que o jesuíta
chamava "cultura da alma" ou "do espírito" - de acordo com as ideias de Possevino, um
governo firme do comportamento moral, sob a orientação de autoridades religiosas -
exigia para funcionar ter a "civilização" por base, ou seja, o conjunto de valores e de
habitos contidos na vida da cidade. Cultura e civitização: um binômio que devia ter um
amplo e complicado sucesso. No ato de seu surgimento, expressava a total desconfiança
em relação ao estado de natura, diante do espetáculo de povos pauperrimos, dispersos,
dedicados às vendetas, a receita era a do encaminhamento para os níveis superiores no
âmbito do esquema elaborado por Acosta. Não havia nada melhor do que a cidade: a
política das "reduções", com que eram encaminhados os índios da America à civilizacão
europeia e cristã, oferecia-se como única tambem em terra europeia. A sabedoria polí.
tica dessas reflexões era adornada por algumas galhardias de ditos celebres, "[...ì Disse
certa vez um grão-príncipe absoluto da Alemanha que tinha então os povos obedientes

ARSr, Med. 76 rr, c.4l7r.


Idcm, c. 4l2qt.

O Método Missionário
í,t
; rt.
r"
616

quando neles florescia a cultura da religiao cristã, assim como, ao contrário, descobria
por rebeldes e sediciosos todos aqueles povos que não cultuavam a lei cristã"114. Era
um conceito de marca jesuítica, já bem ilustrado por Botero, a religião cristã como
instrumento para unir as consciências na obediência ao príncipe.
Para a Córsega, isso significava consolidar o poder político genovês com um
vasto projeto de criacão de centros urbanos. Resumindo, paz aos palácios e guerra às
choupanas: era preciso "demoli-las e queimá-las para que não possam ser habitadas de
novo"l e esse era o conselho que o autor dava à república de Gênova. Ninguem seria
prejudicado, pois quem "tem sentimento humano gostará mais de viver em um lugar
melhor cheio de homens em vez de animais e ser melhor governado e defendido e ter
garantido mais a saúde da alma entre as pessoas civis do que entre as bestas e consi-
derar mais a civilização". A cidade era o lugar da civilização: e a civilizacão significava
abandono das condições bestiais, mas tambem disposição à obediência. "[...] As pessoas
nos agrupamentos e cidades são mais civilizadas, mais tratáveis, mais humanas pela fre-
quentação de muitos... Nas cidades e terras grandes não acontecem tantas insolências
e assassínios, as pessoas são mais obedientes à justiça divina e humana."

4. COIT,IUNHÃO E.COMUNIDADE: AS PAZES


As ilhas, lugar predileto da utopia, pÍestavam-se a projetos e modelos de estados cris.
tãos. Planejamentos do gênero não se encontram nos relatorios de quem se movia no
território da península. Tôdavia, até na experiência dos visitadores da Sabina, os centros
mais populosos foram aqueles onde foram obtidos os melhores resultados. Foi ali que
o plano do trabalho missionário articulou-se em sua plenitude. Isso pode ser visto na
crônica do segundo dia da missão, quando os dois jesuítas chegaram a Mentana. O
encontro com o povo, convocado pelo toque dos campanários, ocorreu ao anoitecer:
o padre Marcantonio Costanti íez um sermão e tornou pública a indulgência "com a
faculdade de absolver". Logo em seguida, os jesuítas comecaram a confessar. A noite,
"recolhidos em casa, começamos a ser minuciosamente informados acerca das inimiza-
des, de outras desordens e abusos do lugar"115.
Era uma exigência havia muito viva e sentida a de que os pregadores, em vez de
atuar por meio de refinados exercícios oratórios ou de genericas exortações morais,
fossem capazes de atacar vícios e defeitos específicos desse dado lugar onde atuavam;
era preciso, enfim, que os ouvintes se sentissem diretamente envolvidos no processo.
Para isso, as iníormaçÕes do clero local eram preciosas: e depois, com o início das con.
fissões, outra matéria seria acrescentada. Mas até para confessar era preciso saber fazer
as perguntas certas. E o trabalho principal consistia na confissão.
O roteiro da missão, repetido em cada lugar, consistia em sermões, confissões,
comunhões, exercícios devotos (oracões, ensinamentos, práticas penitenciais). Apos o

ll4. Idem, c.4l2r.


115. ARSI, Rom. 129.1,c. 125r.

Os Missionários
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6t7

"sermão" de entrada, geralmente logo começava a sequência das confissões; e aqui os


missionários queixavam-se, satisfeitos, do grande trabalho, do "indiscreto fervor" dos
povos que - como fizeram em Monteílavio - "demonstravam insatisíação quando nos
retirávamos para fazer as coisas necessárias ao sustento humano". A contagem das con-
íissões em cada lugar dava números extremamente altos se considerados os habitantes:
em Moricone, 130 confissões e oito coníissões gerais; em Monteílavio, duzentas comu-
nhões e cinco confissÕes gerais; em Nerola, trezentas comunhões e muitas confissões
gerais; em Ponticelli, cem comunhões e duas confissões gerais; e assim por diante. Um
índice do sucesso tambem era dado pelo número de reconciliações. Eram números
muito mais baixos: raramente superavam a contagem de uma ou duas. Disputas entre
parentes, litígios entre vizinhos, ofensas e vendetas: tudo isso ocasionara e continuava
a ocasionar problemas à comunidade cristã.
Era um problema antigo, que tinha seu momento tradicional de conflito visível
com o ordenamento cristão no ato da comunhão: as visitas pastorais registram fre-
quentemente casos de gente não comungada por litigios. Como a questão podia ser
abordada? A
ameaça de excomunhão era a mais dura e, após o Concílio de Trento,
não era uma ameaca apenas teorica. A estrutura de controle, baseada na paróquia, já
funcionava plenamente após a fase de experimentação tridentina. Ela permitia ter:
uma relação das almas a comungar (geralmente, atualizada com um controle de casa
em casa que era efetuado no início da semana da Páscoa); uma lista de quem se apre-
sentava na paroquia para comungar (com um sistema de bilhetes dados no momento
da confissão e retirados no momento da comunhão); uma lista dos inadimplentes,
que eram advertidos pessoalmente pelo pároco; passado o domingo in Albis, a lista era
entregue à chancelaria do bispo para as providências do caso116. Sistemas repressivos
semelhantes foram elaborados tambem pelas igrejas da Reíorma: já vimos que, em
1587, em Goppingen, no Württemberg, cabia ao magistrado civil (Vogt) processar o
septuagenário Lienhart Seitz pelo duplo crime de não participar da comunhão e não
rezar o Pater Nostro por inteiro (para não ser obrigado a formular o trecho do perdão)117.
A comunhão continuava a ser o símbolo e o momento de controle da comunidade, o '

problema era como eliminar divisões e litígios. O constrangimento não era um meio
efícaz. Em relacão a isso, os missionários atuaram propondo, nos ritos públicos, epi-
sódios de paz como o evento máximo entre todos. A morte era o argumento com que
levavam os litigantes ao abandono do conflito, a fragilidade da vida humana, a labi-
lidade das paixÕes terrenas e a contínua iminência da morte deviam convencer quem
quer que fosse a abandonar os conflitos e os ódios. Os reiatorios sobre as missoes enfim
não eram simples resumos do que acontecera, mas instrumentos para multiplicar seus

116. O esquema aqui exposto nem sempre se encontïa completo de todos os elementos nos sínodos ou nas
atas de visitas; um caso de particular completude e o do bispo de Ístria, Tommasini, cí. a respeito C.
Trebbi, "Le Chiese e le Campagne dell'Istria negli Scritti di G. F. Tômmasini (1595-1655) Vescovo di
Cittanova e Corografo", Quaderní Gíuliani di Storia, a. I, n. I, 1980, pp. 9-49; empart. pp.75-26.
tt7 Cf. cap. XIÌI.

O Método Missionário
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618

eíeitos e refratar sua imagem por toda parte. Eis um dos exempla edificantes recolhidos
pelos missionários da Sabina. Estamos em Moricone: ali, dois jovens

[...ì que se odiavam [...] não tinham comungado na páscoa passada. Tentou-se fazer com que
viessem ao sermão e à confissão. Obstinados em seus caprichos opuseram resistência. Pela manhã,
após a comunhão dos demais, no dia de santa Catarina, brigaram e aquele que tinha resistido à

confissão foi morto. Nisso fomos chamados e encontramos esse jovem [...] q,re estava morrendo.
Grande coisa realmente e considerar os juízos de Deus, na tarde anterior opôs resistência à confissão
e na manhã não tinha tempo de confessarlls.

O juízo divino, em sua versão católica, era, enfim, a punição, terrível mas pre-
visível, para quem se recusava a aceitar o convite dos missionários à reconciliação e
ao perdão. Mas o Deus dos missionários, se era capaz de assustar, não era um Deus
que condenava com facilidade: o íerido foi confessado "da melhor maneira possível".
Nem mesmo isso bastou para satisfazer os superiores dos missionários: para eliminar
totalmente o sabor de dura vingança divina que a história podia ter, a expressão "ju.
ízos de Deus" desapareceu na redação revista do texto e toda a história foi profunda-
mente reelaborada. Fioou assim: em Moricone, na casa do arcipreste os dois jesuítas
encontraram três proscritos, irmãos dele, que recusaram o convite para confessar,
adiando-o para outra ocasião. Mas eis que no dia seguinte, quando os dois estavam
se despedindo, ouviram de repente gritos de um homem ferido mortalmente, "logo
corremos precipitadamente e eis (algo digno de compaixão) que encontramos um
dos irmãos do arcipreste com uma arcabuzada no ventre". Socorrido e levado à casa
carregado, o proscrito confessou e recebeu a extrema unção: "Tão logo a recebeu viu-
-se o efeito maravilhoso do Santíssimo Sacramento: comecou a falar melhor e pediu
o padre para confessar de novo"lle. O final feliz, a mão judiciosa de uma providência
benévola, reservam outros particulares positivos: antes de partir, os jesuítas tiveram
tempo de reconciliar o ferido com quem o íerira e de aproveitar a impressão causada
pelo acontecimento para estimular à confissão aqueles que a protelavam.
Na prática da missão, entretanto, se não era possível utilizar.se dos rigores da
justiça divina, também não bastava contar doces historinhas do altar: era preciso con-
vencer, industriar-se. O missionário devia se informar sobre os conflitos da comunidade
e empenhar-se, através das confissões e de outros meios, para resolvê-los. Cabia a ele
conduzir as tratativas para chegar a um bom termo. Os dois jesuítas enviados em Sabina
dão um bom exemplo disso em seus relatórios. Em Mentana, o primeiro lugar habitado
onde chegaram, souberam que havia pelo menos duas inimizades "muito perigosas
e ruinosas". O domingo, 13 de novembro, foi dedicado à pacificação de uma delas,
"sem perdão do trabalho", como demonstração de que a mercancia da alma ignorava
as proibições do trabalho em dia de festa.

118. ARSI, Rom.129. Ì, c. 111t.


Il9. Idem, c. l78rv. A versão expurgada do relatório encontra*e às cc. 125r e ss.

Os Missionários
ï

ót*

"Era uma dessas inimizades nascidas de algumas injúrias e becmmfu &


por uma mulher, instigada pelo marido, a outra". O padre Marcantonio C-ci
conseguiu convencer a mulher ofendida a perdoar, com a única condição quc r rrúl
pedisse perdão. Mas, no instante decisivo, na presença de todos, a que devia desctfor-
-se recusou-s e a fazê.lo; a outra "imediatamente arrependida da palawa dada ao padrq
preparou.se novamente para uma nova guerra". E.aqui se desenrolou a cena principal:

Impôs-se silêncio imediatamente e câusava compaixão ver o padre Marc'Antonio ajoelhado


no meio da praça diante da igreja, pregando com lágrimas nos olhos Cristo crucificado e a lei do
amor divino e do próximo, ameaçando com o inferno os prevaricadores da lei saída da boca do pró
prio Deus. Amoleceu por fim o sangue do cordeiro o adamantino coração das mulheres inimigas e

movidas novamente pela piedade puseram-se a falar uma à outra com sinais de amor, daí o padre fez
com que, em sinal de amizade, ambas se abraçassem e, reconduzidas à igreja, toda a gente rendeu
graças ao Senhor por tâo grande beneficência.

Também a outra inimizade - era entre homens e que dizia respeito a questões de
honra - foi desfeita com dificuldade, através da intervenção do arcipreste, por meio de
preces a S. Inácio e sobretudo através da intervenção decisiva dos jesuítas, que se com-
portaram como verdadeiros mediadores, "Pegamos pelo braço um inimigo e o outro e
exortando-os pelas entranhas de Jesus Cristo a não impedirem a paz de todo o povo, por
fim puseram.se a dizer que desejavam a paz, cada um dizendo isso de própria boca"120.
Histórias do gênero reconduzem'nos sempre à questão-chave.; a conciliação
dos conflitos, o restabelecimento da paz. Era aqui que se media a capacidade da
estrutura eclesiástica de sanar as dilacerações no seio da comunidade e de oferecer,se
como instância social decisiva, com um efetivo poder de reintegração. Podia o corpo
eclesiástico apresentar algumas pretensões nessa direçãol Era um corpo criticado e
contestado, no centro de ferozes conílitos no cenário europeu; e dentro dos limites
das comunidades, todas as fontes conhecidas dizem-nos que os padres estavam en'
volvidos ate o pescoço nos conflitos. De resto, a luta entre partes era extremamente
grave por dominar a vida social e dilacerar as famílias. Era uma situação que impunha
a todos os habitantes dos burgos do condado, das montanhas e das ilhas, bem como
dos centros urbanos, a necessidade de tomar partido e, quando necessário, de com'
bater. Silvestro Landini, em suas excursões em Garfagnana e nas ilhas, não parava
de se surpreender com a violência desses conflitos entre pessoas atormentadas pela
mais negra miséria; e a mesma surpresa transparece nos relatorios de todos os que
então partiram à descoberta e à conquista da sociedade italiana. Para desarmar as
partes em conflito e para evitar ou reduzir a violência disseminada, 1á onde era mais
forte e manifesta - como nas cidades da Romanha - recorrera.se a corpos especiais
frequentemente chamados "Pacíficos"l mas a função de desarmar os ânimos para em
seu lugar implantar a "caridade" (como diziam os estatutos das Companhias do Amor

120. ldem, c. l25ru.

O Método Missionário
r"
620

Divino) era desde muito reconhecida como de pertinência exclusiva da religiao. Os


missionários da Companhia tiveram que dar prova de sua capacidade justamente no
âmbito da resolução dos conflitos e da reintegração da comunidade. Histórias de
violência dominada íazem parte integrante dos relatórios, aliás, constituem frequen.
temente seu aspecto mais ressaltado e mais significativo. Eram histórias elaboradas
geralmente sobre a mesma tramai uma briga em público, gritos, gente que acorre - e
com ela os padres missionários - e uma cena de briga violenta entre jovens armados,
com alguém no chão, morto ou ferido. A essa altura, o problema era impedir, se
possível, a conclusão sangrenta do conflito e - se mortos e feridos houvera - restabe.
lecer a paz; o perdão e a extinção da ofensa eram as condições essenciais para que o
conflito individual não deixasse uma herança de vendetas às famílias e aos parentes.
Era preciso obter a paz: e a paz não era apenas uma disposição interior. Era tambem
um documento preciso que possuía relevância penal porque podia evitar o banimento
a quem se manchara de sangue ou abrir caminho a uma composição judiciária (visto
que a lei do príncipe ou da cidade era oferecida como protetora dos direitos das
famílias): era justamente aqui que se manifestava o poder de mediacão da Igreja. E
este era representado não pelo clero local, envolvido nos conflitos, mas por alguém
I qu., vindo de fora, erà ou podia parecer acima das partes. Quando o missionário
, chegava a um lugar habitado, a primeira coisa de que era advertido era justamente da
: existência ou não de conflitos; e recorria-se a ele para tentar a pacificação. No caso
. do, jesuítas, o exercício da confissão e os poderes especiais em matéria de absolvição
constituíam um incentivo ulterior a esse tipo de mediação. Em setembro de 1607, os
missionários enviados à diocese de Tivoli foram chamados com urgência a Genazza.
no "por causa de um homicídio acontecido" de modo a tratar apazrzr. Durante essa
missão, encontraram-se no caminho com proscritos e convidaram.nos à penitência:
na hora, os proscritos "não íizeram outra coisa a não ser olhar para nossa cara", mas
no dia seguinte foram procurar os padres, confessaram e, depostas as armas, "foram
servir em certas fortalezas"tzz. Um episódio exemplar de conflitos resolvidos com as
duasintervencões,apúblícaeaindividual-apraçaeoconfessionário-podeser
lido no relatório enviado das Marcas em 1583:

Certo dia, foram ouvidas vozes na praça, então saí de casa ao ouvi-las e quando íamos remediar
apareceu um jovem com um arcabuz, ameaçando de morte, e se alguem não remediasse resultaria
um grande mal; nisso avistei um jovem da parte contrária que tinha partido voltar à praça muito
enfurecido com a espada desembainhada, como um louco, não querendo deixar ninguém se aproxi-
mar dele; tive a oportunidade de âgarrar com as mãos os adornos da espada, de modo a tirá-la dele
à força, levei-o de volta e encerrei-o em casa como um cordeiro, indo atrás dele com ela em punho,
e por obra de algumas pessoas de bem naquele mesmo dia foram feitas as pazes.

121. ARSI, Rom. 1.26 b. I, c


122. Idem, c. 262r

Os Missionários
r
ó,nr

Estando um deles ferido de morte, fui confessá-lo, e achando difkil que durasse muio, Edd
vir um notário para selar a reconciliação, ainda que a mãe quisesse que fosse selada a seu artÉria
Pouco depois, entregou a alma a Deus123.

A breve história exemplar encerra, como é evidente, um ensinamento para esti-


mular a "santa astúcia" desses mediadores profissionais que deviam lê'la, era preciso
desconfiar das mães, memória doméstica das disposições testamentárias da família e
possíveis perpetuadoras das desavenças. A igreja era a verdadeira agência superior que
devia substituir a memória das vendetas familiares.
Praça e confessionário podiam somar-se: se o jesuíta encontrava aliados nas mulhe-
res da famí|ia que se dirigiam a seu confessionário, entãó até mesmo os sangrentos casos
masculinos da praça podiam ser resolvidos no confessionário. É um desenvolvimento
que, na forma do conto exemplar, e apresentado - na carta ânua de 1584 - através da
narração de um caso acontecido em Florença: referia-se a um fidalgo florentino, "cuja
mulher era muito devotada aos nossos, e queria que o marido se coníessasse conosco".
Esse fidalgo tinha sido ferido mortalmente e mandara chamar um jesuíta "para íazer
na morte o que não fizera em vida". Foi um sucesso absoluto, por três dias - tempo
que durou a agonia - o fidalgo não só deu mostras de plena contrição e quis um jesuíta
sempre a seu lado, mas perdoou seu inimigo generosamente; aliás, "agradecia ao autor do
delito que o tinha por tal meio unido ao Senhor". Após sua morte, "a mulher redobrou
a devoção que dnha pela Companhia, ao ver a mudança que por meio dela ocorrera"124.
Em torno de casos de aversão, de ódios entre partes, de rupturas domesticas,
entrelaçam.se historias de todo tipo nos relatorios dos jesuítas. Não se trata aperÌas
de divisões políticas e de desavenças entre grupos adversos, mas de tudo aquilo que
podia dividir as famílias, os grupos de parentes' as comunidades. Emerge assim,
com toda evidência, que a reintegração da unidade perdida vinha a ser o objetivo
principal da atividade dos missionários. A indulgência extraordinária e os poderes
especiais de remissão das culpas, que os padres anunciavam como primeiro ato e
quase cartão de visita, abriam um parêntese jubilar na vida das comunidades, era o
tempo adequado para um novo início, com a extinção dos pesos deixados pelo passa'
do. A celebração solene das pazes era, portanto, um momento altamente dramático
e de grandes ressonâncias emotivas. Por isso, naturalmente, exigia'se a condição de
um evento excepcional e isolado, como podia ser a chegada dos missionários. Outra
e mais dificil empresa era fazer funcionar o mecanismo da reintegração, ou recon-
ciliação, em condições normais, ou seja, por parte de quem pertencia estavelmente
à comunidader enfim, se os missionários (não importa a que Ordem pertencessem)
podiam contar com uma excepcional situação de expectativa justamente por virem de
fora e de longe, quem trabalhava estavelmente na reconciliação dos conflitos dentro
da comunidade tinha dificuldades bem diferentes e maiores. E aqui o instrumento

tz3. Relação de Pasquasio Romaldi, Roma, 22 nov. 1583 (idem, c.32lr).


tz4. Relação datada de Firenze, 15 nov. 1584 (ídem, c.325r).

O Metodo Missionário
í

622

do confessionário e o acesso privilegiado à parte feminina da sociedade garantiam


aos jesuítas alguns pontos de vantagem. No relatório de 1584 de Florença, contam.
.se muitas histórias que confluem todas para o confessionário e para a zona de troca
social que ali se criara. Há a história de uma fidalga "encontrada pelo próprio marido
em adultério" que fugira para onde estavam os jesuítas, "enquanto o marido procu-
rava as armas para matá-la e ao adúltero". Os jesuítas tinham escondido a mulher
e aplacado o marido e a historia terminara bem: agora, escrevia o relator "os dois
frequentam os sacramentos de nossa igreja". Há tambem uma história intrincada de
uma mulher assediada por um apaixonado que, para "expugnar a pudicícia dela", dava.
-lhe presentes valiosos pondo a imprudente mulher em grave perigo: até intervirem
os jesuítas, que intermediaram a devolução das jóias às escondidas do marido ciu,
mento e chegou-se ao costumeiro final feliz, com ambos os cônjuges convertidos e
convencidos a "confessarem com nossos padres"125. E havia ainda a história de uma
mésalliance, com uma mulher "muito nobre" e vaidosa, que se deixava cortejar com
serenatas por outros nobres e tratava muito mal o marido "muito inferior" a ponto
de levá-lo ao desespero, e dessa vez íoí o marido a convencer a mulher "a vir à nossa
igreja confessar", de modo que o caso terminou com a rejeição das "vaidades" e a to-
mada de um caminho de perfeição. Como dizia o relator com uma ponta de orgulho,
"ordinariamente os casos desesperados e diflcilimos de remediar nos procuram"126.
A paz do confessionário estende-se enfim sobre os litígios: e o agente ou instrumento
da aproximacão aos jesuítas é a mulher - em igualdade de condições sociais - ou o
homem, se socialmente mais "vil".

125. Idem,c.325v.
126. Idem, c.375ru.

Os Missionários
r

XXX
RTIOS nr, PnSSAGEM

1. O MATRIMONIo

Por trás dos relatos edificantes, a leitura da economia moral dessas comunidades de.
monstra com que filtro os missionários abordavam a realidade das "Índias internas". lJm
lugar especial foi reservado às questoes matrimoniais. Os missionários tiveram que lidar
com os casos de irregularidades canônicas, substituindo nessa função o governo epis.
copal, como também de casos de bigamia, os quais eram reivindicados pela Inquisicão.
Foi uma guerra na qual o papel desempenhado pelos missionários foi aparentemente
menor e, sem sombra de dúvida, diferente em relação ao papel dos tribunais especifi-
camente dedicados às questões matrimoniais - a Inquisição, os tribunais episcopais e
criminais. Campo de grande e permanente conflituosidade, que se acentuou em uma
epoca caracterizada pelo celibato forçado e pelo aumento da idade matrimonial, o matri-
mônio chamou a atenção dos inquisidores em virtude dos abusos do sacramento e dos
juízes criminais em casos de violência e estupro. Mas a substituicão do rito eclesiástico
e somente dele no conjunto dos ritos e dos gestos que na prática social e na cultura
comum tinham representado durante muito tempo as formas habituais da ratiíicação
do matrimônio foi empÍesa de duração e complexidade bem diferentes. Mesmo apos
Trento, mesmo em pleno seculo XVII, como demonstrou Ottavia Niccoli, práticas como
o aperto de mão (com que os noivos selavam o pacto matrimonial), o dote nupcial, o
beijo eram considerados "em nível popular, como gestos constitutivos dentro do rito
nupcial"1. Autoridades eclesiásticas e juristas continuaram a discutir por muito tempo
sobre as circunstâncias e sobre as consequências do beijo e, em particular, do "beijo
violento", isto e, do uso de um dos gestos constitutivos do matrimônio para impor à
mulher renitente ao casamento uma vontade de possez
Coube aos missionários a tarefa de persuadir e prevenir no âmbito da moral
pública, tratando minuciosamente os casos que se apresentavam de modo a chegar

1. Ottavia Niccoli, "Baci Rubati. Gesti e Riti Nuziali in Italia Prima e dopo il Concilio di Trento", em Il Gesto,
org. por S. Bertelli e M. Centanni, Firenze, 1995, pp. 224-747; em part. p. 243.
2. Cf. por exemplo Tommaso Trivisano, Dicisiones Causarum Ciuilium, CriminaLium et HaereticaLiurm, op. cir., c. 106u,

em que, entre outros, cita Il Pastor Fido de Battista Guarini no contexto de uma "decisão" sobre o beijo.
r."'"

624

gradualmente à eliminacão das práticas tradicionais e à sua substituição pelas normas


tridentinas. Os textos de seus relatórios representam por um lado uma fonte para ver
as coisas com os olhos deles e, por outro - e justamente por isso - o instrumento de
que se serviram os missionários, com plena consciência, para multiplicar a eficiência
de sua atuação, divulgando justamente esse modo de ver a realidade. (Naturalmente,
não se pode ignorar o outro aspecto, o do relatório como instrumento de iníormacão
às autoridades metropolitanas a flm de provocar sua intervenção disciplinar: mas a essas
funcões era reservada, como vimos, uma iníormacão que não era destinada à publi
cação ou à circulação.) Ora, uma chave fundamental de leitura da realidade consistiu
para eles em ver defeitos e pecados individuais onde se encontravam ritos e costumes
fortemente arraigados na vida social. Era invocada uma causa "natural" - geralmente,
a concupiscência do homem, ou então a fraqueza da mulher, ou ainda outra coisa -
para explicar comportamentos que, ao contrário, obedeciam a um determinado código
social: os pecadores eram recebidos, se arrependidos, nos braços da Igreja. Nisso residia
o sucesso da obra dos missionários: as práticas, de fato, continuavam bem além da in-
tervencão corretiva. Mas acabava-se por perder a memória da norma a que obedeciam
e por considerá-las cada vez mais como culpas ou fraquezas individuais.
Um exemplo desse modo de proceder e fornecido por aquilo que os missionários
definiram como o abuso das "mulheres confiadas".
No decorrer da missão em Sabina, e precisamente em Monteflavio, onde os
missionários chegaram em 26 de novembro de 1605, foram observadas práticas ir.
regulares nos casamentos. Ali, "como na maior parte da Sabina, foram encontrados
jovens que mantêm por muitos anos as mulheres confiadas na casa dos pais delas e
agem entre eles com toda a liberdade, cometendo muitas desordens carnais e desde
que (dizem eles) poupem a honra, não se furtam a outras fornicações extra uas, alias,
nem as reputam pecado"l. Não se tratava de um dos muitos casos de irregularidade
matrimonial que abundam nos autos de visitas pastorais ou nos relatorios de missões
(até em Sabina ocorreram: por exemplo, em Montasola, encontrou-se um casamento
contratado "em má fé"; e esse problema tambem foi resolvido, recorrendo a Roma:
"providenciou-se a dispensa, fazendo com que se casassem de novo"4). Segundo os
missionários, que o registraram tambem em outras aldeias da Sabina5, o caso das "mu.
lheres coníiadas" representavam uma "desordem geral". Os matrimônios contratados
pelas famílias per uerba de futuro entre filhos em tenra idade confinavam a prometida
entre as paredes da casa de origem, como uma "mulher confiada" (aos genitores).
Para os missionários, era uma "desordem"; tratava-se, na realidade, de uma ordem
antiga agredida pelo modelo tridentino do matrimônio. A estrutura tradicional do

l. ARSI, Rom. 129.1, c. 112r. Na cópia corrigida, a frase é mais evasiva: "Foram encontrados muitos que tinham
arranjado mulher e, não as tendo levado ainda para suas casas, iam amiúde encontraÌ-se com elas em casa dos
pais delas e petmaneciam em amizade com as reíeridas noivas sem consumaÌ o matrimônio" (idem. c. 129ò.
4 ARSI, Rom. 129.1, c. l20ru.
5 Por exemplo em Petescia: c{. idem, c

Os Missionários
r
625

matrimônio baseava-se na aliança entre famílias e previa uma longa fase de passagem:
nessa fase, os jovens frequentavam-se e experimentavam sua concordância sexual sob
um teto comum, que geralmente era o dos pais de um ou de outro6. O nascimento
de um filho era o acontecimento que, em geral, modificava radicalmente a situação e
impunha a passagem à convivência regular, às vezes sob outro teto, com a assunção de
todas as responsabilidades de um casal adulto. Essa e a ordem que transparece por trás
das práticas criticadas pelos missionários. O ataque do cristianismo oficial às antigas
formas do matrimônio não se limitou à área católica ou ao mundo mediterrâneo,
nem se iniciou apenas com o advento da epoca tridentina. Na Inglaterra elisabetana, a
tentativa de levar ao tribunal comportamentos sexuais desse tipo chocou-se com uma
tolerância disseminada, confirmada tambem pela quantidade de filhos tidos pelos
casais antes do casamento (cerca de um quinto do total)7. Mas a amostra de histórias
matrimoniais descrita nos relatórios dos missionários e dos visitadores eclesiásticos
basta para dar a impressão da ausência dessa (relativa) liberdade e empreendimento
feminino que sobressai nas histórias dos tribunais ingleses: enquanto na Inglaterra as
mulheres iam viver na casa do futuro esposo e garantiam com um filho seu direito ao
matrimônio, os casos relatados pelos missionários da Sabina falam em mulheres que
permanecem na casa dos pais e que recoÍrem a práticas anticoncepcionais, pois o noivo
r1ão quer que engravidem.
De todo modo, a comparação entre duas situações diferentes como as da Italia
tridentina e da lnglaterra entre os seculos XVI e XVII mostra uma estratégia análoga
na intervenção das autoridades sobre esse terreno: os matrimônios contratados de
acordo com as formas tradicionais foram considerados ilegais, as convivências foram
julgadas imorais e as núpcias celebradas em cerimônia pública diante da autoridade
eclesiástica foram o único remedio que pareceu adequado. No âmbito católico, coube
aos missionários executar uma tarefa de normalização: mas tratou-se de um trabalho
bem demorado, pois a prática não foi erradicada com facilidade. No mundo camponês,
continuou-se ainda durante séculos a aplicar as antigas regras da convivência de longa
duração antes da celebração das núpcias8.
Quanto à itália, ainda sabemos muito pouco sobre a atividade dos tribunais dio-
cesanos em materia matrimonial, de resto, a documentacão que deixaram e tão vasta a
ponto de desencorajar qualquer pesquisador. No entanto, esse pouco e suficiente para

Ou o de um parente: o íranciscano Luca Mosconi depôs perante o bispo Feliciano Ninguarda, em 20 de junho
de 1591, ter dado hospitalidade a um jovem parente e à noiva, mesmo tendo afirmado - como acontecia nor.
malmente nesses casos - que depois da promessa, a mulher tinha dormido sozinha, ainda que sob o mesmo
teto do homem (cí. S. Bianconi e B. Schwarz, IlVescovo, íL Clero, iI Popolo. Atri &ILa Visira Personale di Feliciano
Ninguarda al.l.e Pieqi Comaschr Sotto gli Sc,ilten nel. 1591, Locarno, 1991, pp. 163 e ss.).
7. Esse é o resultado dos dados íornecidos por Martin Ingram, ChurchCourts,Sexand.MarriageínEngland, 1570'
-ló40, Cambridge, 1987, pp. 219 e ss..
8. Para a Franca do século XVÌÌÌ, Jean-Louis Flandrin(In amours paysannes. XVI.XIX siècle, Paris, 1975, pp. 101-102)
menciona dois casos de casais conviventes na casa dos pais do noivo. No primeiro caso, de 1738, os missionários
separaram os dois jovens que conviviam havia seis anos.

Ritos de Passagem
r*'
626

afirmar que o matrimônio foi questão entre as mais envidadas pelo mundo eclesiástico:
as normas tridentinas, introduzindo uma regra rigorosa e um controle efetivo, reduziram
provavelmente os litígios que decorriam dos matrimônios per verba de praesentie.Mas
a prática dos esponsais per verba de futuro seguidos pela coabitação continuou a criar
problemas por muito tempo. No início do seculo XVII, ela ainda se encontra bastante
presente nas causas matrimoniaisl0.
Nos países católicos, o conflito entre igreja e família que se abriu na epoca tri-
dentina refletiu.se nesse estado de coisas: a longa historia do matrimônio tridentino e
a história da penetração de uma ideia da relação conjugal nos costumes sociais como
contrato no qual o espaço doméstico e substituído pelo da igreja.
A luta entre costumes ftadicionais e o novo modelo eclesiástico foi mais encarni-
çada nas retaguardas dos usos e das tradições do que no fronte doutrinário e jurídico:
e, consequentemente, mais nas periferias do que nas áreas metropolitanas. Por obra
dos missionários, portadores do ponto de vista romano nas práticas dos territórios
mais afastados, íoram descobertos usos conflitantes com as normas - "abusos" - tão
disseminados a ponto de constituir a regra para populações inteiras. Tal foi o caso do
matrimônio dos eclesiásticos: na Sardenha, os primeiros missionários jesuítas informa-
ram a seus superiores algo que a Inquisição já sabia, ou seja, que ali era praticado um
rito nupcial especial para os sacerdoteslr.
Em relação a esses últimos, tratou-se de fazer aplicar a norma canônica: e aqui
a obra dos missionários foi somente uma intervencão suplementar em um campo já
largamente ocupado por bispos e inquisidores. No que se refere aos matrimônios dos
leigos, a zona de fricção e os bolsões de resistência foram mais fortes na área do noivado
(ou esponsais, ou matrimônio per uerba de futuro). As famílias continuaram a controlar

9. No que se reíere ao tribunal episcopal de Bolonha, a análise de Lucia Ferrante revelou que a maior parte das
causas matrimoniais remonta ao período pré-tridentino ("11 Matrimonio Disciplinato. Processi Matrimoniali
a Bologna nel Cinquecento", em Disciplina dell'Anima, Disciplina del Corpo e Díscíplína della Socíetà, org. por P.

Prodi,op. cit.,pp.901.927).Areduçãodasmatériasrelativasaesponsaisematrimônioclandestinonodecorer
do sécu1o XM foi registrada também na região de Vicenza (cf. Laura Megna, "ln Matgine ad Alcune Carte
ProcessualidiAreaVicentina:SponsalieMatrimoniotraX\4eXVIISecolo", emBolzanoVicentíno,Dimensíoni
del Socíale eVíta Economíca in unVillaggjo della PíaruuaVicentína (Secoh xtv.xtX), Bolzano Vicentino, 1985, pp.

309-335; em paÍt. p.323).


10. Por exemplo em Siena: cí. a vasta investigação de Oscar Di Simplicio, Peccato PenitenTa Perdono: Siena 157 5.1800.
I-a Formazione deLla Coscíenza neLl'kalia Modema, Milano, 1994, pp. 260 e ss., que ilustra os dados sienenses
com abundantes comparações entre outros contextos.
11. "Estos sacerdotes [...ì se casan públicamente con certas serimonias" (carta de Baldassare Pinnas a Lainez, de
20 de setembro de 1560, em MHSI, I-ainiiMonumenta, Matriti, 1915, p. 23q. O caso foi citado e estudado
por Antonio Marongiu, "Nozze Proibite, Comunione di Beni e Consuetudine Canonica (A Proposito di un
DocumentoSardodel 1568)", emldem,Saggi diStoriaGiurídicaePolítícaSarda, Padova, 1975,pp. 163-183.Mas
o fato de que os sacerdotes sardos eram "casados com contratos matrimoniais" foi mencionado pela primeira
vez pelo bispo de Ampurias, Ludovico De Cotes, inquisidor para a Sardenha, em uma carta ao inquisidorgeral
da Espanha, datada de outubro de 1546, descoberta e mencionada por Turtas, Missioni Popolari in Sardegna tra
l
'500 e'600, op. cit., p. 370. Digno de nota é o fato de o inquisidor estar atento aos contratos e o missionário
l às "cerimônias".
I

----
Ì:. ,

f: , Os Missionários

\
r
627

o momento da troca de promessas, deixando à igreja somente o da celebração do ma.


trimônio diante do sacerdote. Das
áreas mais diversas, por muito tempo, continuaram
a chegar descriçÕes concordantes de visitadores e missionários: as famílias construíam
alianças matrimoniais entre filhos muito jovens e adiavam o matrimônio eclesiástico
por muito tempo. Durante essa longa fase de noivado, os jovens eram essencialmente
liwes para terem relacões e quase sempre somente o nascimento de filhos levava.os a
ratificara ligação entre ambos por meio das formas exigidas pela igreja. Era uma materia
complexa: tentou-se abordála de diversos modos, impondo ao noivado, por exemplo,
uma dilacão máxima não superior a um mês12.
O pacto entre famílias, os longos noivados, todo o emaranhado de regras não
escritas que outorgavam às famílias o controle de sua formação e reprodução entraram
em choque com a nova orientação da estrutura eclesiástica. Pretendeu.se substituir
os longos e complicados rituais sociais que governavam o matrimônio como rito de
passagem de uma condição a outra por uma escansão fulminante: o consentimento
pessoal como base do contrato nupcial, tornado público atraves da ratificação diante
do pároco e consumado imediatamente. Era um ponto-chave de um sistema de governo
da vida associada que se baseava no momento da escolha, na importância do liwe-
'arbítrio como fundamento da acão individual. Ao mesmo tempo, tentava'se realizar
um modelo de sociedade onde a atração sexual confluía sem resíduos no matrimônio,
submetendo-se finalmente à lógica do controle. A moral que punha em primeiro lugar
os pecados da carne era a outÍa face do novo modelo de matrimônio: um modelo no
qual não havia mais lugar para os "esponsais" como ligação de longo período diferente
da formação efetiva da nova família indissolúvel. Nos tratados de direito canônico do
final do seculo XVI, a questão dos esponsais era abordada como uma irritante presença
residual, fonte de inumeráveis complicações: os esponsais criavam uma obrigação que
se completava com as núpcias, mas que podia ser revogada por uma serie de razões13. E
justamente pelo uso masculino de recorrer com frequência cada vez maior à revogação
do consenso derivavam graves consequências. Como notava um jurista, não se tratava
apenas das mulheres abandonadas e desonradas, às quais restava apenas o caminho
do meretrício: pelos conflitos que surgiam entre as famílias era posta em perigo por
completo a vida das comunidades, onde se desencadeavam verdadeiras guerras civisra.
A materia, portanto, era dessas que demandavam novas regras e intervenções
adequadas. No âmbito católico, as autoridades eclesiásticas antecederam as laicas nesse

12 "Dado no referido municipio de s. Giovanni haver alguns que depois de íeitas as denúncias e os esponsais
pu tterba de futuro passam muitos meses antes de proceder ao esponsalício peÍ veÍba de praesenti íoi ordenado
ao pároco publicar na igreja que no futuro pelo menos dentro de um mês devem proceder ao conffato do
casamento" (AAP, Vrsita deLla Diocesi di Pisa di Moru. Arciu. DeL Pozzo, 1597'98, c. 128u, ato de 31 de ourubro de
1598).
13 Cí. as glosas acrescentadas ao título de sponsaLíbus no manual de Gian Paolo Lancellotti, Instítutiones Iuris
Canonici, Romae, ex typographia Georgii Ferrarii, 1583, pp. 151.161.
14. T. Trivisanus, De Priuilcgiis SponsaLiorumTractatus, Venezia, 1598, p. I; o trecho é citado em Megna, InMarglne
ad Al"cune Carte Processwli di Area Vícentina, op. cit.

Ritos de Passagem
r""
62.8

! aspecto: o matrimônio tridentino foi imposto como passagem pública, consensual e

I imediata, ao estado conjugal. Porem, obviamente, uma coisa era estabelecer a norma,
] outra arraigá-la na prática social. Por muito tempo, permanecera viva mesmo na cul.
tura oficial a noção do matrimônio como uma passagem que implicava uma dilação
no tempo, um início e uma conclusão solene. Nessa configuracão, havia lugar para os
esponsais e adquiriam um sentido ate as abordagens amorosas: os noivos podiam licita-
mente não só encontrar-se e conversar, "mas até beijar-se, abraçar-se e tocar.se [...] Pois
os esponsalícios, que são princípio do matrimônio, dão ensejo aos primeiros deleites
matrimoniais"15. Havia um princípio, e havia fases diferentes reguladas com precisão na
noção tradicional. Mas com o matrimônio tridentino o rito perdia a dilaçao e as fases
preparatórias, tornava.se um ato que se consumava em um tempo pontual: o tempo
ocupado pelo rito eclesiástico do sacramento. É claro, não se realizava completamente
o modelo da subjetividade consciente e responsável das próprias escolhas que surgira
na cultura humanista, com o renascimento da moral antiga. O controle eclesiástico
da escolha e a nova medida do tempo estavam de acordo com uma ideia do ato indi-
vidual como quase indeíinidamente corrigível e remediável. Mas tendia.se a eliminar
qualquer outra regra tradicional, qualquer outra autoridade que se interpusesse entre
a norma eclesiástica e o 'ato individual. E, visto que o estado ainda era uma realidade
embrionária sem pretensões de intervir na economia moral da sociedade, o verdadeiro
conflito era com a tradição representada e defendida pela família: era a íamília que,
atraves dos esponsais, exercia o pleno controle das escolhas matrimoniais dos filhos,
ligando-os em tenra idade de acordo com critérios de conveniência (econômica, política).
Com as novas normas, o controle eclesiástico sucedia ao parental, os tempos da lgreja
substituíam os da sociedade laica.
Coube aos missionários transferir a questão das imposições autoritárias e das
discussões jurídicas à realidade das relações sociais. No que se refere ao matrimônio,
houve indubitavelmente uma guerra de longa duração entre o cristianismo oficial e as
famílias. O interesse das famílias estava ligado à garantia da sucessão: era dessa única
raiz que nasciam duas práticas duramente hostilizadas pela Igreja, a do matrimônio entre
parentes próximos e a dos longos noivados. Tratava-se de uma raiz comum, como escre-
veu em seu relatório um missionário jesuíta na Córsega: "Encontrava-se nesse povo um
abuso gravíssimo que pervertia a ordem do sagrado matrimônio, antecedendo a bênção
da Igreja com o uso perverso, e passara tão alem esse erro maligno que os parentes mais
próximos eram eles os primeiros a experimentâ-Lo". Eram, portanto, verdadeiros matri-
mônios, ratificados pelas famílias sem a intervenção da Igreja e praticados sobretudo
por parentes. Tinham longa duração antes de se tornarem públicos: de dois a catorze
anos. E tudo isso era algo tão disseminado que ninguem parecia envergonhar-se disso,
ou melhor, o abuso chegara a "ter forca de lei". Era íeito às escondidas para evitar
o mau-olhado ou, como era chamado, "os bruxedos (pois que assim chamam certas

15. A opinião é de Martin de Azpilcueta, o célebre canonista: cí. Di Simplicio , Peccato PenitenTa Perdono, op. cit.,
p. 265 nota.

Os Missìonários
r !
I

679

vãs supersticóes sem fundamento)". Portanto, por "interesses temporais" chegara-se à


endogamia e à prática disseminada do matrimônio de fato, mantido em segredo por
muito tempo16. Para erradicar esse tipo de prática, os jesuítas recorreram a pregações
ameaçadoras, falando dos perigos da danação eterna.
Quando os missionários chegavam, logo prorrompiam as convocações aos jovens
que viviam longos noivados com o consenso das famílias e a tolerância dos confessores
locais. Os "casos notáveis" reportados nos relatórios das missões têm quase sempre
um núcleo de histórias desse gênero. O relatório dos rnissionários da Sabina não é
absolutamente o único a mencionar esse tipo de problema. Entre os pontos abordados
no relatório ao provincial da Toscana para 1583 e recolhidos durante uma missão nas
Marche, encontra-se a seguinte história: "lJm jovem, que antes do esponsalício praticara
más ações com uma jovem que lhe fora prometida, foi levado o mais cedo possível... a
celebrar os esponsais e atraves deles livrou-se do pecado juntamente com a mulher"l7.
No relatorio, a história era explicada mais detalhadamente: o jovem tinha pedido a
moca em casamentoi mas "por certos motivos justos precisava que a coisa fosse mantida
em segredo por um tempo, o pai concedeu-lha por se tratar de um bom partido. Após
a palavra, o jovem, quando não havia ninguém em casa, ia encontrar-se com a moca,
sem que ninguem jamais percebesse, e tendo esse negócio durado alguns anos, achava
o jovem que isso não era pecado". O jovem teve de mudar de opinião e aceitar o ponto
de vista do jesuíta, para o qual, ao contrário, o "negócio" devia ser considerado um
verdadeiro pecado. O missionário, que tinha sabido tudo da moça (provavelmente em
confissão), superando "enormes dificuldades" levara o casal a casapse de acordo com
as íormas estabelecidas pelo concílio, de modo a poder anunciar: "foi celebrado publi.
camente o matrimônio, casado e levado à casa"18. Entre as dificuldades encontradas,
tambem houve provavelmente a resistência do clero local. Ainda antes do concílio de
Trento, a questão do matrimônio e dos esponsais estivera no centro de uma idêntica
dinâmica de oposição entre clero local e visitadores que chegavam de fora, como fre.
quentemente registram os autos das visitas pastorais. A questão que vem à tona de seus
documentos e a do conflito entre a moral oficial e os emaranhados viscosos de relações
e de hábitos que a íamília e o grupo parental tinham aumentado. Havia uma moral
da honra familiar que conquistara ate o clero local. No conflito, formavam fileiras, de
um lado os enviados vindos de fora e, de outro, o fronte das famílias com o clero local.
De fato, antes e depois do concílio, apesar das medidas tomadas para regular a
materia e para trazer ao conhecimento do clero local as normas eclesiásticas sobre o
matrimônio atraves dos decretos de importantes concílios provinciais - o florentino
de 1517, os milaneses de Carlo Borromeo - e de muitos sínodos diocesanos, o clero
secular das paróquias continuou a legitimar as práticas correntes, dominadas pelas
necessidades e pelas diretivas das famílias. O noivado como fase preliminar da forma-

16. ARSÌ, Rom. 129.1, c.533u.


17. ARSI, Rom. 126 b. I, c.3134).
18. Idem, c.373r.

Ritos de Passagem
r.""
630

ção da nova família estava demasiadamente arraigado nas tradições e nas necessidades
reais, para que pudesse ser eliminado de imediato. A atuação dos missionários podia
: apenas encaminhar a mudanca pretendida. No final do século XVII, o bispo de Marsico
i lembrava que fora ordenado muitas vezes "que os esposos que tinham contraído os
. esponsais entre si não deveriam manter comercio entre si até contraírem o matrimônio
I de acordo com a forma prescrita pelo Sagrado Concílio de Trento", mas que, de fato,
I essa proibicão ainda não era observadale. Ainda em meados do século XVIII, Alfonso
de'Liguori inseria a seguinte advertência em suas instrucões aos confessores: "Seja
sobretudo advertido o confessor a não absolver os esposos que vão à casa das esposas,
e as esposas e seus pais que admitem isso; pois que facilmente tais esposos em tais
ocasiões pecam mortalmente [...1"20. Portanto, a luta continuava. O recurso à excomu.
nhão pertencia ao armamentário dos eclesiásticos mais intransigentes ao abordarem
a prática dos longos esponsais e da coabitação pré.matrimonial: tinha sido, mais uma
vez, Carlo Borromeo a introduzir a sanção e foi a ele que se remeteram todos os bispos
que legislaram sobre o tema. Seu nome encabeca a lista das autoridades citadas por
Francesco Frosini, arcebispo de Pisa, no sínodo diocesano de 1708; segundo Frosini,
deviam ser considerados excomungados tanto os noivos que mantinham relacões
sexuais antes do casamento como suas famílias2l: era a prova de que não se tratava de
cedimentos morais individuais, mas de uma tradição que tinha raízes profundas nas
regras não escritas do governo das famílias.
Os missionários não tinham ameaçado excomunhões; limitaram-se a submeter
essas práticas a uma luz diferente, a do pecado individual. Deve-se a isso, como foi dito,
seu verdadeiro e duradouro sucesso. O esforço eclesiástico de introduzir uma disciplina
de novo tipo atingiu seu objeiivo na medida em que conseguiu transformar em transgree
são individual o pecado - a ser debitado à "fraqueza da carne" - dos comportamentos
que na realidade obedeciam a regras sociais muito antigas. Tratou-se de uma verdadeira
estrategia mais ampla, que não se limitou à prática dos esponsais.
Ora, falar em estratégia não significa que o corpo eclesiástico em seu conjunto
tinha consciência do que fazia. De fato, se se pretendia transcrever as novas regras na
vida da sociedade - que colocavam a mediacão eclesiástica no centro de todas as pas-
sagens fundamentais da vida - era preciso que fossem rompidas as regras antigas e que
os fragmentos delas conservados nos comportamentos individuais fossem subtraídos
da cultura e transferidos à natureza, ou seja, privados de sua memória e reduzidos a
sinais de fraqueza individual. Essa mudança de estatuto que abrangeu toda uma série de

19. O édito, de 1693, é reprouzido por Giovanni Antonio Colangelo, Ì.:rDiocesí diMarsico nei Secoli XvLxwil,
Roma, 1978, pp. 181 e ss.
20. Confessore Diretto per Ie Confessioni della Gente di Campagna, em Bassano per i Remondiní, 1773, p. 408.
27. Slnodus Dioecesana ab lllustrissimo. D. Francisco Frosini... habíta,Pisis,ex typogr. F.
Bindi, 1i08, p. 55. Um sínodo
de Malta, de 1703, estabeleceu uma série de normas para regulamentar os enconÍos dos namorados, fixando
inclusive o número e a dilação' mas a matétia constituiu um tema obrigatório para as fontes normativas, sG
bretudo eclesiásticas (cf. C. Conain e P. Zampini, "Documenti Etnograíici e Folkloristici nei Sinodi Diocesanr
della SiciÌia", emPalestra del Clero, vol. XLV, Rovigo, 1965, pp. Z7.Z8).

Os Missionários
r
63t

comportamentos, de mitos e de ritos, deve ser levada em conta sempre que se coloca o
problema do sucesso da atuação eclesiástica ou de seu fracasso. Os relatórios dos missio-
nários listam continuamente sucessos extraordinários, tanto para as missões europeias
como pelas extraeuropeias. Mas, ao lado desses boletins de vitórias ininterruptas, há o
dado de íato da longa sobrevivência de práticas sociais e de costumes aparentemente
eliminados e, no entanto, sobreviventes ao processo de aculturação. Entretanto, algo
certamente mudou, se não nos comportamentos, no modo como eram concebidos.
Quando essas práticas voltavam à tona, eram consideradas como pecados individuais:
ninguém se lembrava mais das antigas regras.
Quanto às estratégias missionárias, o plano conjunto em que se colocam e adqui-
rem significado as inumeráveis ações individuais não foi absolutamente invencão dos
missionários; tinha surgido muito antes e as missões foram um dos muitos instrumentos
de sua realizacão. Em determinados aspectos, tinham razão os missionários quando se
apresentavam como portadores de um cristianismo ainda não penetrado na vida daque.
les povos culturalmente e por vezes fisicamente tão remotos em relação ao mundo das
cidades. Mas não se tratava do cristianismo original, evangelico, mas eventualmente de
um cristianismo depurado na epoca tridentina e adaptado às necessidades de controle
social de uma lgreja ameacada.

2. NRSCTIT,IENTO E MORTE

Junto com o matrimônio, os ritos do nascimento e da morte foram aqueles a


respeito dos quais os relatórios dos missionários recolheram mais informacões curio.
sas - na descrição das tradições folcloricas - e listaram o maior número de intervenções
edificantes. Trata-se dos momentos da vida que toda uma tradicão de estudos deter-
minou como os mais marcados por ritos de passagem: a passagem de um grupo social
para outro é um momento de tensão e de perigo; o rito tem a função de proteger do
perigo e de fazer com que a passagem aconteca com sucesso. A afinidade entÍe os ritos
funerários e os do nascimento e do matrimônio foi indicada por um historiador das
civilizações antigas, H. Diels, que apontou como característica comum dos três grupos
de ritos o fato de todos implicarem uma purificação22. Suas sugestões foram reunidas por
um estudioso das culturas primitivas, Robert Hertz, a quem se deve uma caracterização
precisa dos "ritos de passagem",

Em nossa civilização, a existência de um indivíduo parece correr do nascimento à morte de


modo quase uniforme, as sucessivas etapas de nossa vida são debilmente diferenciadas e sempre
deixam entrever a trama contínua da vida individual. Ao contrário, as sociedades menos avancadas,
cuja estrutura íntima e compactâ e rígida, concebem a vida humana como uma sucessão de fases

22. H. Diels, Slbilinische BLltter, Berlin, 1890, pp. 4849. Sobre Diels e sobre as orígens do conceito de "rito de
passagem" é íundamental o texto de C. Ginzburg, "Saccheggi Rituali. Premesse â una Ricerca in Corso",
Quademi Storici, tXV, 1987, pp. 626.629.
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I
Ritos de Passagem
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637

heterogêneas de contornos íixos e acreditam que a cada uma delas corresponda uma classe social
deíinida e diversamente organizada.

Enfim, ao tempo cíclico e repetitivo da sociedade tradicional adequam-se ritos


de passagem de uma faixa.etária a outra: da classe dos uivÀQdos mortos (e vice-versa);
da classe das moças nubeiì@as mulheres.ïr"d"r,ì d", .núh.r.s viúvas; e assim por
diante. Toda vez, o acesso à nova condição e marcado por ritos caracterizados por um
início simplificado, uma fase intermediária de iniciação e um solene ritual conclusivo23.
No início das reflexões de Hertz, para sua aceitacão, esteve uma observação
de um jesuíta francês, o padre Joseph-François Lafitau: "junto a muitas populações
selvagens -
observara Lafitau - os corpos dos defüntos são inicialmente colocados em
um sepulcro numa especie de depósito provisório, só depois de um certo tempo são
celebrados novos funera.is mediante os quais, com novos ritos fúnebres, extingue.se o
debito devido ao deíunto"2a.
A observação de Lafitau e uma árvore a mais na floresta de notas reunidas pelos
jesuítas em seus relatórios dos países de missão. Mesmo nas "Índias internas" dos campos
italianos, os missionários não demoraram a registrar práticas, mitos e ritos caracterizados
pelo mesmo esquema: um ingresso na nova condição com rituais simplificados, uma
dilação e um rito solene conclusivo. Assim para o matrimônio - esponsais (com coa-
bitaçao) e rito solene de bênção - assim tambem para os ritos de nascimento e morte.
Desde muito, os sacramentos e os ritos cristãos tinham feito alianca com essas
práticas antigas. Mas a intervenção dos missionários foi orientada para uma organizacão
diíerente do sagrado oficial. Abolida no limite do possível toda dilacão, a passagem reve
de coincidir com o tempo pontual ocupado pela administïação do sacramento poï parre
da autoridade eclesiástica. Alem disso, no lugar da presença protagonista do corpo so
cial - a família, a aldeia, as faixas etárias - tentou-se de todos os modos pôr o indivíduo.
Os sacramentos deviam dar ritmo não ao repetir-se imóvel e cíclico da vida coletiva,
mâs a um percurso único e não repetível, ao longo do qual o indivíduo devia percorrer
os degraus ideais de um processo de ascensão rumo à perfeição cristã e à outra vida.
Com uma robusta podadura, as práticas sociais que tinham revestido e enraizado
no costume os sacramentos cristãos foram desbastadas, a partir de uma "reforma" que se
afastava dos ritos e crenças ligadas ao caráter físico da vida, aos cultos da fecundidade, ao
corpo social como entidade superior ao indivíduo, à sobrevivência da sociedade como
valor superior ao valor da salvacão da alma individual. O lugar onde se encontram os
múltiplos fios da ação dos missionários e o dos novos ritos construídos em torno dos
sacramentos. Já vimos, no que se refere ao matrimônio, as características essenciais da
"reforma" de um desses ritos, o que representava a passagem do mundo dos jovens ao
dos adultos, da sociedade dos solteirosã.dos casados.

23 "Sulla Rappresentazione Collettiva della Morte (1907)", trad. it. em Robert Hertz, La Preminenza deLla destta:
aLtrí Sasi, Tôrino, 1994, pp.53'136; em part. pp. 98-99.
74. Idem, p. 54.

Os Missionários
v

6i1

Esses ritos
e essas elaborações pareceram como abusos ou deformações aos refor-
madores que - com base em uma nocão nova e fortemente intelectualizada da religião,
assistidos nisso pela introdução da imprensa e da difusão do liwo - empreenderam a
longa luta que deu vida às formas modernas do cristianismo: tanto mais modernas e
inovadoras quanto mais mascaradas sob o veu obrigatório do retorno às origens.
O ç{9,t!p!sryo aglessivo da época"d,as Reformas protestante e catolica tratou de
abolir decididamente a dilação e de impor ritos imediatamente consecutivos ao evento
natural (nascimento e morte) e à mudança de status; mas, enquânto a Reforma pro-
testante divorciava.se claramente das tradições folcloricas com uma podadura drástica
dos sacramentos e dos rituais, o catolicismo depurado da epoca tridentina baseou-se na
posição mais moderada que consistia em concentrar a dilação e em reduzir o sacramento
a uma consagração pontual e imediata da mudança ocorrida na realidade.
O caso mais evidente dá-se com o batismo, isto e, com o sacramento que per-
maneceu válido para todas as Igrejas cristãs, constituindo sua condição preliminar de
existência. Dois temas dominaram então o horizonte da prática social desse sacramento
e as preocupações eclesiásticas a respeito: a distância do batismo do nascimento e a re-
gulamentação do apadrinhamento. Já foi notada a importância do ataque desferido pela
igreja tridentina e em particular por são Carlo Borromeo contra a prática de apresentar
o recém-nascido para o batizado acompanhado de um elevado número de padrinhos,
mas a interpretação desse fato ainda não é satisfatória. Ressaltou-se em geral o aspecto de
aproveitamento da ocasião do batizado para reforçar alianças sociais25. Entretanto, isso
não e suficiente para explicar os valores simbolicos inscritos em numerosos momentos
da prática do apadrinhamento. A tendência que teve início a partir do seculo XVI foi
a de reduzir a importância do apadrinhamento26. É uma tendência que se apoia em
outra, a de realizar o batismo do recem-nascido o mais rápido possível, frequentemen'
te no proprio instante do nascimento, por parte da parteira - e, portanto, vencendo
com isso a reserva no que se reíere a confiar funções sacerdotais a figuras femininas. A
escolha dos padrinhos, a coleta dos presentes para o recém-nascido demoravam tanto
tempo que, como observava um estatuto de Avinhao de 1337, a criança corria o risco
de morrer sem batismo. Justamente essa dilação foi combatida pelo catolicismo triden-
tino. Pari pdssrú, tendeu-se a reduzir ou a abolir o período de impureza correspondente,
para a mãe, ao ato do nascimento2T. Impureza e dilação são os traços que aproximam
os ritos do nascimento e da morter como a morte inaugura uma íase de impureza e
de ameaça que deve ser exorcizada mediante ritos apropriados, assim o nascimento

?,5 O ptincipal estudioso do tema, John Bossy, Íebateu essa interpretaçào em vários ensaios: cí. John Bossy, "Blood

and Baptism", em Derek Baker (org.), Studies in ChurchHistory, Oxford, 19i3, x, pp. 13-35; IdBm,"The Counter-
.Reíormation and the People of Catholic Europe", PatanÀPresent,XL\4l, i970, pp. 57 e ss.; Idem, "Padrini e Madrine:
Un'Istituzione Sociale del Cristianesimo Popolare in Occidente", Qrndcmt StoÍici, XLI, 1979, pp. 440449.
26. Cí. Bossy, "Padrini e Madtine", op. cit., p.447. Características otiginais, permanências e mudanças íoram
estudadas por Agnès Fine, Parains, marraines. Itt parenté spirituel.le en Ewope, Patis, i994.
z7 O tema é pouco estudado; mas cf. David Cressy, "Puriíication, Thanksgiving and the Churching oíWomen
in post-Reformation England", Past and Present, CXLI, 1993, pp. 106-146.
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634
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representâ uma brecha perigosa aberta para o mundo dos espíritos não viventes - dos
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mortos. É .o- eles que se deve tratar. E no folclore europeu o padrinho não é senão :Li1

uma máscara da Morte, poder emanante e regulador da vida28. Nas culturas primiti- .l.

vas, a distância entre o nascimento biológico e os ritos de admissão na sociedade dos


vivos e do mesmo gênero da que intercorre entre a morte física e as segundas exéquias
solenes; há outros elementos comuns que valeria apenas ressaltar: por exemplo, o
banquete que conclui o rito do fechamento definitivo da passagem. Mas aqui deve.se
apenas destacar o aspecto mais evidente da ação eclesiástica a partir do século XVI: a
redução do intervalo de tempo entre nascimento e batismo e o tendencial desapareci.
mento da figura do padrinho em vantagem dos genitores naturais. É o mesmo tipo de
intervencão que encontramos no outro extremo da existência individual, nos rituais
para os defuntos. Aqui também, tratou-se de abolir a noção de um longo período de
passagem entre a morte física e a admissão definitiva do defunto no mundo dos mortos.
A Europa reformada experimentou-o de modo radical, eliminando toda ligação entre
vivos e mortos e negando a possibilidade da intercessão e do sufrágio, ao passo que no
mundo católico foi seguida por uma linha mais moderadar nele a ligação entre vivos e
mortos permaneceu parte integrante e frequentemente dominante da vida religiosa. Mas
atuou'se com decisão contra a prática das duplas exequias, em todas suas formas. E é a
propósito disso que a obra dos missionários permite-nos reconstruir alguns momentos
em que a proposta religiosa oficial esteve realmente em contato com as práticas sociais
preexistentes e tentou modificá-las sem aplicar o rigor abstrato das proibições oficiais.
Os relatórios dos missionários insistem nos aspectos positivos, nos sucessos,
nos casos individuais bem resolvidos de sua atividade. Um dos pontos fundamentais
em que se detêm é o dos sucessos obtidos no ensino das práticas do morrer bem. A
arte de morrer bem consistia na preparação para a morte, tema tradicional da devocão
desde o final da Idade Media. Mas na aplicação que dela fizeram os jesuíras, a arte íoi
alçada a seu refinamento máximo, com um sábio controle dos sentimentos que levava
seus assistidos à confissão íinal, verdadeira porta de acesso ao mundo celeste. Desde o
início de sua pregação nas cidades e nos campos italianos, os jesuítas foram chamados
à cabeceira dos moribundos, nos hospitais, nas prisões e nos patíbulos para dar prova
de sua capacidade de levar as pessoas ao arrependimento final. Leiamos, por exemplo,
esse relatório de Florença, correspondente a 1585:

Nesse ano, mais do que nunca, nossos estiveram ocupados em confessar os enfermos dos hos-
pitais
e os presos das prisões, especialmente quando eles deviam ser executados, o que muito edificou

a Companhia dedicada à ajuda deles, e muito mais os próprios condenados; e entre outros, contarei
o exemplo de um jovem que, tendo sido condenado à morte, deixara-se tomar pelo desespero, que
não queria de modo algum escutar que se the falasse das coisas de Deus, negando sua divina provi.
dência, e que se entregara ao diabo, e não tendo bastado muitos homens virtuosos e religiosos para
reconduzi-lo, resolveram por fim mandar chamar alguns dos nossos, os quais, embora por algumas

28. Jacob e Wilhelm Grimm, Le. Fiabe del Focolnre, Torino, 1986, p. 154.

Os Missionários
r
635

horas parecia que se extenuassem em vão, conseguiram por fim conduzi-lo como â um cordeiro a

aceitar de bom grado a morte, julgando-se digno de pena maiorze.

O tema do condenado "conduzido" ao arrependimento e à aceitação da pena


como punição de seus pecados é exemplar e recorrente na literatura missionária. Não
lr
I

pertence tão somente a ela, tendo suas origens na tradição das funções desempenhadas
pelas conírarias de justiça. Mas, no caso dos jesuítas e de seu exercício da confissão,
tratou-se de um tema exemplar pela possibilidade que oferecia de fazer confluir na
confissão todas as contas da vida, mesmo aquelas da justiça terrena: foro interno e foro
externo sobrepunham-se e compensavaÍÌ-s€r â sentenca do juiz terreno valia como pena
dos pecados secretos, a aceitação da sentença abria as portas do Paraíso. A edificaçao
dos fieis era garantida: as cenas que se repetiam nas prisões e nas praças exaltavam a
função do confessionário. A prisão e o patíbulo transformavam-se em confessionário.
A proposta exemplar sugeria que todas as culpas podiam ser lavadas, que até o mais
inveterado delinquente, o mais horrível pecador encontravam na confissão o lugar do
perdão. O próprio dlabo podia ser perdoado, ou pelo menos quem levava seu nome: era
chamado Satanás o bandido das Marche que, em 1585, em Macerata, teve uma morte
cristã exemplar, passando sern fraquezas pelos mais terríveis tormentos e aceitando
todos eles em retribuição de seus pecados,

Têndo antes com muito sentimento coníessado geralmente sobre toda sua vida e tendo se
reconciliado ainda cinco ou seis vezes antes de morrer, como realmente esquecido de si mesmo, dizia
não poder por mais que quisesse pensar em outra coisa que não na misericórdia de Deus que contra
todo seu merito tinhalhe propiciado tão boa ocasião e esperança de saúde3o,

Os relatórios estão repletos de narrações de conversões na hora da morte. Os


jesuítas davam de bom grado mostras de sua capacidade especial de resolver os casos
mais difíceis. As instrucões contidas no pequeno tratado publicado sobre esse tema pelo
secretário Polanco chamavam a atenção para o conforto dos condenados como caso
exemplar de conforto dos moribundos3l: e, por conseguinte, os relatórios esforçaram-
-se em ressaltar os sucessos obtidos a respeito. Nem todas as histórias, na realidade,
redundaram em sucessos. Entre as derrotas houve uma, celebre: íoi a sofrida por todo
um batalhão de confortadores, jesuítas e de outras ordens, chamados numa noite de
fevereiro de 1600 para lutar contra a "maldita obstinacão" de Giordano Bruno de Nola3z.

29. ARSr, Rom. 129 b. r, c.246v.


30. Idem, c.339rqt.
li. Foram íeitas publicações destinadas a tal íim, como a seguinte : Awertimenti per Confortar et Aíutar Coloro, chz
son conda"nnati 0, moïte, per gtustitia. RaccoLti daLlnl.unga p'rdttíca, et ispenenry d'almní, che in cíó sí sono esserciúri.

Et caqtati dal trattato d'aiutar aben monre dÊI R. P. Giouan d,i Pobncq delln Compagnía di Gíesu, Macerata, tip.
Sebastiano MaÍtellini, 1576.
32. A anotação da Irmandade romana de san Giovanni Decollato íoi publicada por Domenico Orano, Liberi
Pensatori Brucíatí in Roma dal xvt aI xwil Secolo, Roma, 1904, pp. 88.89.

Ritos de Passagem
r .--

636

Porem, ainda que preferissem histórias com final feliz, era importante em tais
circunstâncias o significado assumido pelo instante extremo da vida. A narracão edi.
ficante era destinada a lembrar que mesmo o último instante tinha uma importância
decisiva para obter a "conversão" desejada. (Quanto às obras exteriores, tão importantes
em tese para as doutrinas do catolicismo pós-tridentino, tudo era remetido ao mundo
interior das intenções: para o condenado à morte, era a execucão que podia desse modo
t assumir o valor de obra.) O ponto era esse: ate um homem-diabo podia ter a esperança
I
I de ir diretamente da forca ao Paraíso. E por isso, podiam ser-lhes dedicados os ritos do
I
I
I sufrágio e as invocações que se faziam às almas santas do Purgatório. Por conseguin.
te, a sombra do justiçado não devia mais aterrorizar os vivos: esse tema, herdado das
confrarias medievais de justiça, os jesuítas empenharam-se em introduzi-lo nas cidades
onde a devoção do conforto dos condenados não existia. Lutava-se contra o medo que
rodeava os mortos antes do tempo, os assassinados, as criancas não batizadas, eníim, as
figuras da "cavalgada selvagem", os mortos que em vez de deixarem os lugares habituais
detinham-se neles indeíinidamente com a permanente ameaca de levarem consigo os
vivos durante seu sombrio e implacável vagar sobre a terra33.
No centro da proposta devota estava, portanto, a luta contra a tenaz representação
da morte como passagem. E aí não havia apenas o caso extremo do condenado à morte,
ainda que justamente para isso os relatórios edificantes dos missionários chamassem
de bom grado a atenção. Todos os homens, como moribundos, deviam dar-se conta
de estarem condenados pelas próprias culpas. Por isso, o caso do condenado à morte
tinha um valor exemplar cujo efeito dramático os jesuítas aproveitaram em suas missões.
Um ponto essencial da nova concepção da morte e o da aboliçao da lamentação
pública. A longa fase de luto e sua elaboração socialmente compartilhada e controlada
tiveram que ceder lugar às exéquias cristãs. A lamentação foi a primeira a sofrer as con-
sequências disso. Imediatamente apos o concílio de Trento, os lamentos públicos foram
atacados nos editos eclesiásticos. A dureza do ataque e provada pelo íato de que em
certos casos as autoridades eclesiásticas chegaram a impor às mulheres permanecerem
trancadas em casa durante o funeral, sob pena de excomunhão e com a ameaca de não
"retirar o corpo" por parte do clerosa. Nas missões populares, os modos de intervenção

13. "Estão convencidos - escrevia o jesuíta T. Romanus de Messina em 23 de junho de 1556 - de que as almas dos
justicados vêm molestar os que os acompanharam à morte" (uHst, Ep*tolae Míxtae, t. V, 1555.1556, Matriti,
1901, pp. 354.355).
J4 "Soiam as mulheres acompanharem os mortos e faziam muito ruído e gritavam, e batiam com as mãos e

dilaceravam o rosto, e por isso ordenamos que os corpos mortos não fossem levados à igreja, caso elas não se

calassem pâra que os padres pudessem cantar as exéquias; vimos por experiência que isso não adianta e por-
tanto convimos proibir as reíeridas mulheres de Marsico, como de toda a diocese, sob pena de excomunhão.
de acompanharem os corpos mortos à igreja, mas como se íaz em Nápoles e em muitas outras nobres cidades
da ltalia que permaneçam em suas casas e se elas não quiserem assim proceder... que os padres não levem dali
o coÌpo morto, mas deixem-no na casa" (Giovanni Colangelo, In Diocesi diMarsíco nei Secoli XVI-XVÌIÌ, Roma,
i978, p. 140. O documento e de 1567). Cf. também G. De Rosa, Vscouí, Popolo eMagla nel Sud, Napoli, 1971.
pp. 70-71.

Os Missionários
r

637

foram os da persuasão mais do que os da imposição rigorosa. Tratou-se de explicar que


a lamentação em formas exasperadas era contrária à esperança cristã; o resultado devia
ser ritos mais severos e mais simples. Mas, ao registrar o que andavam fazendo sobre
esses temas, os missionários referiram tambem alguns aspectos das práticas que eles
tentavam modificar ou abolir. Havia, por exemplo, uma prática das exequias baseada
no modelo da dupla sepultura, com um longo rito de passagem durante o qual as regras
sociais do luto funcionavam de acordo com o modelo que nos é íamiliar pelos estudos
sobre as culturas primitivas. Justamente entre as plebes do mundo cristão encontram-
.se vestígios consistentes do rito da segunda sepultura em epoca muito próxima da
nossa. Nos relatos de uma missão desempenhada pelos jesuítas em 1627 na Suíça - na
Valmaggia - encontra-se descrito o seguinte rito fúnebret

Quando retiram o morto de casa, acendem um pouco de palha, e gritam pelas ruas, "para
onde vai o corpo, vá também o espírito". Fazem um certo trigésimo pela alma dos defuntos, e vão ao
lugar do defunto, e 1á chegando, seguram a cabeça entre as mãos e começam a chorar copiosamente,
com tantos gritos que fazem rir. Mantêm todos os mortos expostos em pilhas, e as cabecas em certas
caixas, e amiúde as mulheres as pegam, lavam, e põem-se a gritar feito loucas35.

('abusos"
A intervencão dos *irrio.rerios contra esses foi decisiva:

Mandaram levar imediatamente as referidas cabeças e ossos de mortos e pediram que falássemos
tambem às mulheres, que demonstravâm apresentar mais diíiculdade. Falamos e tamanha éa estima
em que nos têm que, âo ouvirem-nos dizer que esses abusos deviam desaparecer, e o que deviam fazer
para sufragar as almas de seus parentes, olhavam admiradas umas para as outras.

3. A CONFISSÃo

As práticas sociais tradicionais foram combatidas, sendo ffansformadas em


pecados individuais. Mas aí vinha a propósito uma característica essencial da missão:
introduzir no tempo ordinário da comunidade uma suspensão jubilar, abrindo a todos
o caminho do perdão. A missão culminava justamente nas confissões; e o missionário,
vindo de fora, desempenhava as funções do pregador quaresmal de antes. Alem disso,
dotado como era de poderes extraordinários, podia redimir qualquer pecado. Se os
pecados eram enormes, mortais, reservados, os poderes dos missionários estavam à
altura das necessidades. Porem, à diferença do antigo pregador quaresmal, o missioná-
rio oferecia um projeto de conversão, de vida nova individual e coletiva: contemplava
a sociedade local com o olhar forasteiro de quem vinha de um outro mundo trazendo
consigo regras sociais diferentes daquelas locais e superiores a elas. E aqui se colocava
um problema de conhecimento e, ao mesmo tempo, de eficiência: o sucesso dependia

35. M. Signorelli, Sroría della Valmagja, Locarno, 1972, p. 4?-7 .

Ritos de Passagem
r "'
638

da capacidade do missionário de agir certeiramente, de mover-se com seguranca no


universo moral da comunidade. A confissão era a gazua para entrar no mundo fechado
da sociedade local e {azer explodir conivências e cumplicidades. Atraves da confissão,
o missionário era posto imediatamente ao corrente de tudo aquilo que lhe importava:
podia desse modo atacar com maior segurança abusos e imoralidades, seja mediante a
intervencão pública dos sermões, seja pelas vias mais secretas e pessoais.
As histórias de confissões constituem o cerne dos relatórios missionários. São
histórias de diferenças e de conflitos, entre a religiao (as normas sociais) dos missio-
nários e as locais, entre o clero enviado por Roma e portador da norma "correta" e o
clero local, baseado em outras posições. No relatório enviado das Marche em 1583, um
caso narrado mostra como o sistema moral administrado pelo clero das paróquias era
homogêneo em relação aos valores e aos sistemas de vida locais:

Era uma mulher de vida honesta que, tendo arranjado marido para a filha, antes de con-
sumarem, a mãe, enganada pelo demônio, começou a praticar más ações e a pecar com seu genro;
disso arrependida, foi lancar-se aos pés do confessor. Recebeu a pobrezinha a seguinte resposta: "É
melhor fazer assim do que ir o jovem atrás de outras mulheres fora de casa". Ao ouvir isso, a pobre.
zinha duvidou e encarou d confessor, para ver se era ele que dava tal conselho; e reconhecendo.o,
enganada assim em lugar de contrição retirou-se dali com ânimo resoluto de perseverar no pecador6.

Somente a intervenção do jesuíta restaurou a norma canônica, subvertida pela


lógica profunda da estrutura familiar. A voz de Roma fez-se advertir concretamente
através do geral da Companhia, que mandou "dispensa através de Roma"; e assim a
família das Marche liwou-se "desses e de muitos outros pecados mui enormes".
Os pecados "mui enormes" eram os do sexo, conforme a nova estrutura assu.
mida pela moral; e quanto mais eram enormes, mais eram referidos nos relatórios dos
missionários. A enormidade deles punha em relevo a importância da conversão e os
méritos de quem a tinha procurado. Mas por essa via as histórias contadas no confes.
sionário - as mais carregadas de violência e de sexo - perderam grande parte de seu
secretismo; entretanto, para intervir na culpa da família das Marche, o missionário-
-confessor teve que remontar da penitente individual à sua família. E percebe.se aqui
algo que não e dito, algo não novo no panorama dos usos inquisitoriais da confissão:
um interrogatório inquisitorial, nomes e endereços, qualidade das culpas, convocação
dos membros culpados da família, pedidos de dispensas a Roma - enfim, um trâmite
burocrático, no decorrer do qual
{11::t1-"::" o véu do caïáter secrero da confissão.. De
rii

resto, mesmo por outras vias essas vicissitudes contadas no confessionário tornavam.se
públicas. Transformavam-se em "casos notáveis", contados com finalidade edificante.
A íunção deles era essencial para construir a narração da missão - uma narração que
era parte integrante da própria missão. Aqui tambem, o conhecimento do historiador
é devedor de um uso do relato que era essencial à obtençao dos objetivos do missie

36. ARSr, Rom. 126b. r, c. 323T.

Os Missionários
r"

639

nário. Essas histórias, narradas e disseminadas, estendiam a eficiência da missão para


além dos limites materialmente atingidos pelo missionário com sua presença. Quando
não havia casos a relatar, os missionários eram os primeiros a se decepcionarem. (Jm
jesuíta mandado a Ragusa em 1607 escreveu que não podia mandar "pontos" notáveis
porque os padres que encontrara no lugar tinham-lhe contado apenas histórias muito
comuns: mas a culpa, escrevia ele, era do fato de que esses padres tinham permanecido
sozinhos na cidade, cultivando somente algumas devotas, sem fazer "nenhuma incursão
pelos lugares deste território"3?. Era com um misto de curiosidade pelo novo e de desejo
de conquista que se ia em busca de casos mirabolantes: e imaginavam que eram mais
frequentes longe da cidade, lá onde se estendiam as "Índias europeias". É claro, de todo
modo, que o coníessionário é o lugar nativo do relato: é ali que o ouvinte prepara-se
para tornar-se narrador. E não só narrador, mas tambem e antes de mais nada ator,
as histórias contadas pelos penitentes encontram não só um ouvinte atento e que já
antegoza o prazer de tornar-se por sua vez narrador de coisas secretas e inauditas, mas
tambem um deus exmachína, um homem ao qual Deus concedeu o poder de endireitar
os tortos, consolar os sofredores, eliminar o mal do mundo. Não existe pecado enorme
_t
que não nossaf ser perdoado. Eis um, contado em um coníessionário da Córsega:

Um velho foi um dos o.r-"r.o. a vir confessar, dizendo que tinha nos esperado com muita
vontade, para que o livrássemos das garras do demônio, por quem era gravemente tentado e con.
tinuamente estimulado por desespero a enforcar.se. Já por dezenove anos vivia pertinazmente em
excomunhão com contumácia, cometendo vários pecados mui execrandos: fazia encantamentos,
como ele dizia, para curar enfermidades por meio de palawas supersticiosas e ímpias, sem manter
no entanto comércio aberto com o diabo. Tinha diversas obrigações de restituir coisas alheias, rou-
bando francamente quando podiar guardava no coração ódios mortais profundamente gravados,
tinha tentado com ato próximo violar ate a própria íilha e outra parente de seu sangue. E apesar dos
muitos desatinos, não se abstivera de procurar sacrilegamente os santos sacramentos da confissão e

comunhão, por temor humano, na Páscoa; na última, porem, desse ano, tendo recebido o santíssimo
sacramento teve a impressão de ter recebido uma chama ardente que lhe queimava a boca e também
o estômago; motivo pelo qual ficou sobremaneira assustado [...Ì]u.

Sobre o susto e sobre o terror tinha agido o sermão dos missionários, baseado
na parábola do filho pródigo. A estrategia da brandura fazia aparecer os mais sombrios
recônditos familiares e revelava os universos escuros das consciências.
Histórias dramáticas e entrechos venenosos emergem do fechado universo fami-
liar. Ate venenos reais, não metafóricos. É .tt" o caso, narrado pelos missionários na
Córsega, de um emaranhado de traições e de vendetas revelado e vazado no confes-
sionário. E a história de uma mulher casada e adúltera, que encontrou na confissão
geral o modo de livrar sua consciência e de contar seus medos quanto a uma vingan.

37. Carta do padre Agostino Vivaldi ao geral, Ragusa, 28 dez. 1607 (ARSI, Rom. 129 . I, c. Z25t).

38. Idem,c.554t.

Ritos de Passagem
r
640

ça do marido; e o medo não era iníundado, como revelou uma parente da mulher,
sempre no confessionário. Essa segunda mulher contou ter aconselhado o marido a
desembaracar-se secretamente da mulher adúltera, matando.a por envenenamento;
"coisa que, tendo ele tentado uma vez, por disposição do ceu não tinha conseguido".
Apesar disso, "teimava a desatinada conselheira que era conveniente, em vista do mal
menor, {azê-la morrer de tal modo, para que não tivesse o marido que matar o adúltero
e que disso não decorressem inconvenientes mais graves: parecendo entre eles princípio
irrefutável que em causa de honra seja necessário 'derrubar' como eles dizem, algum,
alias non expietur. Não foi preciso pouco para dissuadi-la dessa por ela considerada pia
cooperação ao mal menor"3e. As razões de economia domestica da conselheira tinham
raízes fincadas no universo da família e nas confusões entre leis de honra e casuística
moral da igreja. A obra do missionário, tambem nesse caso, revela-se capaz de usar o
ií confessionário como um tribunal secreto onde os membros culpados da família são
convocados, interrogados, postos diante dos resultados de outros interrogatórios, con.
vencidos de sua culpa e, mediante atuação paciente, levados ao arrependimento e ao
abandono das práticas condenadas.
Esses casos revelam ainda que já estamos longe do panorama das "Índias" que
Landini presenciara nessas mesmas terras no seculo anterior. Os pecados graves e se-
cretos não mais possuem apenas a característica da violência bestial de uma natureza
não tocada pelo conhecimento do cristianismo; são pecados que têm origem no hábito
externo às obrigações tridentinas (a confissão anual) e na interiorizacão do sentimento
de culpa decorrente de determinados pecados apresentados como tais pelo clero dio-
cesano. A impressão é confirmada por um outro caso, narrado logo em seguida àquele
do velho feiticeiro. E a história de uma mulher que tinha "em tenra idade cometido
algo contra a castidade, sem pensar na hora que aquilo fosse pecado"l mas depois, "em
idade mais adulta", não só tinha descoberto que seu ato era um pecado, como tambem
se convencera de "que aquilo tinha sido uma culpa enorme, cuja taciturnidade inva-
lidava sacrilegamente as confissões". Essa nocão, absorvida evidentemente a partir de
ensinamentos catequeticos e sermões, não a impedira de continuar a confessar; já vimos
que a fama pública de uma mulher exigia que a confissão fosse feita regularmente e sem
complicacões socialmente perceptíveis. Assim, mesmo a mulher corsa tinha confessado
regularmente durante vinte anos, mas com a conviccão de estar cometendo sacrilégio.
Finalmente, a cotlissao geral resolvera a confusão. A regra que goveïna essas histórias
romanescas, registradas no confessionário e divulgadas para maior glória de Deus, e a
do final {eliz a providência divina é a de um padre bondoso que suspende a acão na
beira do abismo, estende a mão a quem caiu, extingue culpas enormes de uma tacada.
sem elucubrar se quem está confessando fálo por verdadeira contricão ou por medo
(do inferno, do marido ou de outra coisa qualquer). Nada se perde, nem sequer o suor
dos missionários debaixo do sol da Córsega; cada gota desse suor, "sob o açoite do sol
com o revérbero das pedras e do mar próximo", esvai-se "para refrigerio das almas do

39. Idem.

Os Missionários
r-
641

Purgatório"ao. Essa economia salvífica e confirmada pelo fato de que a selecão das his-
tórias, entre as muitas possíveis sobre o íundo ensanguentado das vendetas corsas, não
registra nenhum caso de morte; tudo fica protegido pelas paredes do confessionário,
onde as coisas são ditas e acertadas, sabidas mas não divulgadas (ou pelo menos, não
no ambiente que, porém, com muita frequência, já tem conhecimento delas por conta
propria) e onde quem sabe pode intervir, resolvendo cautelosamente até os "pecados
mui enormes".
solução provinha da amplitude dos poderes conferidos aos missionários. O
A ì

primeiro ato oficial com que se apresentavam à comunidade era justamente o anún-
cio dos poderes extraordinários que os autorizavam a absolver em confissão qualquer
pecado. Eram poderes concedidos em funçào da obra missionária fora da Europa e
encontravam justificação oficial na distância da sede apostólica romana, io^ conse-
"
quente impossibilidade para os habitantes de se dirigirem a Roma41. Porem, o conceito
de "Índias internas" revelava aqui sua utilidade, permitindo a aplicação desses poderes
extraordinários nas "remotas" populações dos campos. O relatório das missões em
Sabina do ano de 1607 diz isso muito claramente: "O modo mantido nessa missão e
o seguinte: tendo-se chegado a uma terra, procurava-se reunir o povo para dar ciência
daquilo que se pretendia íazer a.o tornar pública a indulgência plenária e a autoridade
apostólica de absolver"42.Eraum ponto importante: os jesuítas, exaltando a amplitude
dos poderes concedidos, abriam aos ouvintes uma perspectiva excepcional de perdão,
como aquelas que os peregrinos iam buscar em Roma nos anos de jubileu. Amplíssimas
indulgências, e sobretudo faculdades extraordinárias para a remissão dos pecados. As
indulgências eram tornadas públicas de muitos modos e descritas em impressos apro-
priados que exaltavam as vantagens correspondentes para quem se apoiava em uma ou
outra Ordema3. As faculdades especiais paÍa os coníessores, ao contrário, eram concessões
que constituíam o patrimônio cioso e invejado de todas as ordens religiosas dedicadas
às confissÕes: tão cioso e controverso que nas regras sobre as missões recomendava-se
aos jesuítas manter reservadas essas suas faculdades e impedir que caíssem em mãos
exteriores, eclesiásticas ou laicas que fossemaa.
A colheita não podia faltar. Acompanhemos ainda, a título de exemplo, os mis-
sionários da Sabina. Em Palombara, onde chegaram em 17 de novembro de 1605, entre

40. Iden, c.556r.


41. Para uma das periódicas confirmações das concessões extÍemamente amplas feitas por Paulo III aos jesuítas,
cf. a bula Cum Sícut Accepimus de Gregório XIII (B set. 1573) publicada em Ameríca Pontificia Primi Saeculi
Euangelizatíonís, ed. Josef Metzler, op. cit., vol. II, pp. 962-964.
42. ARSI, Rom. 129.1, c.255r.
43. Veja.se, para o jubileu de 1575, a coletânea de textos Instruttioni per iL Sanro Giubil.eo, Bologna, 1576. Para as
concessões individuais às ordens, a literatura é vasta e inexplorada. Trata-se geralmente de liwos que descrevem
as indulgências para as almas do Purgatório, como o Sommarìo deLL'Indulgenze per Li Morti che Acquistano i Fratelli
Aggregati aLLa Religlone de' Padrí Chíenci Regolnri Teatini, em Monaco, por Luca Straub, 1661.
44. "[...] Secum accipiant libeilum facultatum nostratum, quem diligentissime cavebunt ne extemi üdeant, sive saeculares
sive ecclesiastici sint" (Cautelae circa Missiones, ms do sec. XVI, Hauptstaatsatchiv, Munchen , Jesuíten 561, c. 3r).

Ritos de Passagem
r--
642

as várias confissões gerais, ouviram uma de uma mulher iníanticida: "Tinha ela muitos
anos antes concebido e parido um filho e por medo de que soubessem, esquecendo.se
da piedade, tornando-se ocultamente carrasco da própria carne, retalhara em pedacos o
filho foi recebida com todo secretismo, '(sem
e sepultara-o sob a terra"45. Sua coníissão
manchar-lhe a honra". Não se tratava apenas de honra, o infanticídio era um crime,
punido com a morte. Entende-se que o poder que os missionários tinham de reintegrar
secretamente na comunidade cristã quem rompera as regras mais severas devia garantir-
-lhes uma função e um sucessos sem pares. Não se tÍatava apenas de competir com os
tribunais criminais; havia também matérias inquisitoriais entre aquelas ffatadas em
coníissão pelos missionários. Foram assim resolvidos problemas de magias, superstições
e bruxarias. Em Nerola, anotam os jesuítas, íoram encontradas "várias especies de breves,
sortilegios, encantamentos para curar anima's"46' em Petescia, "foram queimados alguns
breves supersticiosos"4i' em Aspra, veio à tona que havia superstições e "observacões de
Cecco de Ascoli, que eram observadas ate essa época"48; em San Polo foi encontrada
"uma diabolica bruxa": mas esse caso não parece ter sido resolvido no lugarae; em Ma.
gliano, mais superstições; mas também "encontrou-se um que tinha duas mulheres"5o;
em Tarano, "foram tiradas muitas superstições" e em Rochetta, além das superstições,
íoram tirados "remédios contra armas"51. Em Cottanello, a mesma anotacão: "foram
tiradas muitas superstições e encantamentos"5Z, A queima dos breves "supersticiosos"
criou alguns problemas, uma mulher de Petescia, revelou em coníissão usar um breve
no pescoco, que tirou por ordem do confessor e entregou-o a ele. Mas desencadeou-se
imediatamente uma crise: "Começou a berrar e a gritar como um animal de modo a
fazer'se ouvir por boa parte da tetra". O outro jesuíta, que acorrera à gritaria, arranjou
logo o remédio apropriado: "Pegando uma imagem do beato Estanislau Kostka ordenou-
-lhe em nome de Deus e pelos meritos do dito beato que se calasse": e a mulher sarou5l.
No mesmo lugar, ocorreram casos semelhantes no dia seguinte: duas mulheres, ambas
tambem tomadas por conr.rrlsões e visões assustadoras, sararam pendurando no pescoço
imagens de são Estanislau no lugar dos breves "supersticiosos". E as variadas e múltiplas
irregularidades são incontáveis.
Casos do gênero não eram absolutamente insólitos. Nos campos sienenses,
vários anos antes, um missionário tinha topado com o caso de uma íamília "muito

45. ARSI, Rom. 129.1, c.727r.


46. Iden, c. 113r. "Os que conseguimos obter - especificam os jesuítas - levamos conosco".
47. Idem, c. 114t. Na cópia corrigida, a queima de "muitos breves diabólicos dos quais se seviam para a saúde dos
animais" é registrado em Montorio (c. 134r).
48. Idem, c.777rq).
49. Aíirma-se de fato que o nome da feiticeira "está registrado com os das outras 117o): um esclarecimento
sobre as iníormações não edificantes registradas à parte.
50. Idem, c. 118r,.
51.. Id.em, c. ll9u.
52. Idem, cc. 119u-120r.
53. Iden, c.734u.

Os Missionários
r
ôri

atormentada por obra diabOlica de um feiticeiro, que os convencera de que fazia


coisas milagrosas, atuando evidentemente por intermedio do demônio"; mas ba5.
tou a intervenção do jesuíta para esconjuÍar os "gravíssimos danos de almas e de
corpos" que ameaçavam aquelas pessoas54. Não sabemos por quais meios foi obtido
o sucesso sobre o feiticeiro: e não se pode excluir que fossem fornecidos, a pedido,
pelo arsenal da lnquisição. Mas, como se viu no caso da mulher de Petescia, a ma'
gia feiticeira era combatida por meios oíerecidos e garantidos pela religiao oficial
como lícitos e, ao mesmo tempo, mais poderosos. Era uma luta com armas se não
iguais, pelo menos homogêneas. O certo e que não se tratava de eliminar a magia e
substituí.la por razões mundanas, pois, aliás, apoiar-se na razão e rejeitar a religião
era justamente o máximo de dissensão herética concebível. Era fato corriqueiro os
religiosos sustentarem, contra a ciência da época, a superioridade dos meios sagrados,
como se vê em outro caso acontecido em Siena. Uma fidalga sienense tinha um filho
febril e chamara um medico para curá-lo e um jesuíta para visitá.lo e ministrar'lhe
"maná de s. Andre". Não é claro que gênero de preparado distribuía esse jesuíta'
mas o relatório enaltece sua superioridade em relação aos remedios mundanos,
"[...] foi tamanha a fe dessa mulher que, apesar de ter estado ali o medico e ter ele
encontrado a crianca com febre, tão logo foi-lhe dado um pouco desse maná a febre
passou sem voltar mais"55.
Enquanto curavam as doencas, competindo com a medicina popular' como os
eclesiásticos que na América colonial trabalhavam ao lado dos curanderos56, os missio'
nários ocupavam.se ainda e sobretudo das aílições das consciências. Mas na prática o
confessionário tornava.se um lugar de mediação e solução de conflitos. Havia, sobretudo,
um problema de reintegração da comunidade e de reconquista da paz social, através
da persuasão ou do isolamento de quem a perturbava. E, acima de tudo, tratava-se
principalmente de mulheres, com as quais todos os missionátios, mas principalmente
os jesuítas, tiveram o que fazer. Um ponto capital da sociedade e da vida religiosa da
época - a gestão dos afetos e das relações do mundo feminino - não só adquiriu mati'
zes e tonalidades peculiares no ambiente dos jesuítas, como também mereceu da parte
deles uma atenção bem especial.
De lnácio em diante, os jesuítas exerceram um íascínio extraordinário sobre o
mundo feminino; e no entanto - ou melhor, justamente por isso - nas regras internas
da Companhia repetiam.se continuamente advertências de cautela e de distanciamento.
Não deviam fazer visitas a mulheres a não ser em casos excepcionais e em companhia de
alguém, advertiu o geral Francesco Borgia; e Mercuriano reafirmou que nem confissÕes
nem visitas a mulheres deviam ser muito assíduas; quanto a Acquaviva, a proibição
das visitas a mulheres esteve no centro de suas instruções para os confessores redigidas
entre 1605 e 1607. No que se refere aos missionários, era-lhes categoricamente proibido

54. Relatório do padre Girolamo Costa, Siena, 28 out. 1584, ARSI, Rom 126 b. I' c.330r.
55. Iden.
56. CÍ. S. Gruzinski, GIi l.lominrÀi,t del Messíco, trad. it' Roma, 1987.
I
I
I

Ritos de Passagem
r=-
644

visitar mulheres5?. O contracanto que os relatórios missionários íornecem a esse respeito


mostra ao menos que tantas cautelas eram perfeitamente justiíicadas. Enquanto Claudio
Acquaviva preparava suas instruções, teve certamente diante dos olhos os relatórios dos
padres empregados na missão de Perugia de 1605: um deles, o padre Giacomo Muffeti,
relatou ao padre provincial os sucessos de sua expedicão a Recanati e os problemas que
tinham surgido a partir do ininterrupto movimento de mulheres no pátio onde estavam
alojados os missionários. Essas mulheres vinham buscar água no poço do convento e
aproveitavam para ir às celas dos religiosos, pedir esmolas. Era uma relação composta
de antiga familiaridade entre mulheres e religiosos de passagem; mas nesse caso, ao que
parece, os homens - longe de nutrirem suspeitas ou ciúmes - tinham total confiança
nos jesuítas e não impediam as mulheres que desejavam encontrá.los. Daí o perigo,
que o jesuíta esboça com espírito:

Há um grande número de mulheres jovens e de boa aparência, talvez tantas quantas haja em
qualquer terra de toda a Itália. Todos os homens coníiam em nós, ranto o clero quanto os seculares.
As muiheres ficam mui afeiçoadas; nós não somos mais santos que Davi, mais sábios que Salomão,
nem mais fortes que Sansão58.

As mulhere, lu- dos missionários devido à fama de santidade que os


"tra,
circundava; eram sobretudo elas que confessavam, de acordo com a tendência que
apontamos, relativa a uma feminilização crescente desse sacramento. Do contacto no
confessionário originavam-se muitas coisas, que podiam ir na direção de vocações de.
votas excepcionais, mas podiam tambem desembocar na gestão de conflitos familiares
e de problemas da comunidade.
Ao lado de intervenções extraordinárias nos casos de possessas, de bruxas e de
santas, houve numeïosos e quase coddianos atos de intervencão nos problemas femini.
nos: tratou-se sobretudo de mediação nos conflitos familiares aos quais os missionários
foram chamados pelas proprias penitentes. Era um aspecto particular do problema mais
geral dos conflitos, e já vimos como no confessionário vinham se concentrando os nós
dos conflitos matrimoniais, dos litígios, das traições.
No íim da missão, era feito o balanço dos resultados seja na forma mais ampla do
relatório, seja na sintética de um "compêndio breve". As características dos relatorios
já foram vistas; era um relato edificante, redigido com atenção e corrigido antes de ser
aceito. O texto do "compêndio breve" ou dos "pontos mais notáveis" retomava sinteti-
camente os dados e os episódios mais significativos. Em ambos os casos, tratava-se de
textos destinados à circulação e por isso constituídos de modo a propiciar um modelo
para os imitadores e uma oportunidade de conforto devoto para todo leiror. No "com.
pêndio breve das coisas mais notáveis", redigido no final da missão em Sabina, eram

57. Remeto para as indicações a uma densa nota de Guy Philippart S. I., Visiteurs, commissaires etinspecteurs dans
lt Compagnie de Jésus de 1540 à 1615, Roma, 1969, pp.773.224.
I 58. ARSI, Rom. 129.1, c.46r (ctrta de 14 de junho de 1605, anexada ao relatório da missão de Perugia, cc. 44r ss.).
:

Missionários
ri

64s

relacionadas e quantificadas com precisão "comunhões... confissões gerais de toda a


vida, de sessenta, de cinquenta, de quarenta, de trinta, de vinte e mais e menos anos"l
quanto às "confissões de cinco, de dez, de dois e de um ano" afirmava-se que tinham
sido em "surpreendente quantidade"; e acrescentava.se:

Foram apaziguados ódios, disputas e outras sortes de inimizades, e reduzidos à caridade


fraterna. Foram feitas pazes públicas n. 12.
Foram eliminadas supersticões, várias sortes de encantamentos, breves, observações e outras
especies semelhantes de magias.
Foram tiradas muitas excomunhões papais [...ì

A lista continuava com "restituições de várias sortes de coisas e de fama", instituições


de confrarias, "conversóes a uma vida melhor", remédios "para várias desordens e abusos"5e.
Quase quarenta anos mais tarde, houve outra missão em Sabina; e mais uma vez,
lugar por lugar, a lista dos comungados apresentou dados de um verdadeiro sucesso de
massa. Seguiam-se depois descrições de casos particulares: e a maior parte deles referia-
-se a pazes estipuladas. Um jovem que mantinha uma grave inimizade com o matador
de seu irmão; outro que tentara por muito tempo matar um inimigo; duas famílias
dlvididas por um conflito inveterado; eníim, concluía o relatorio, eram inumeráveis as

inimizades que tinham sido extintas60.


O pecado era uma doença a ser curada; a confissão e a comunhão totnavam-
-se, nesse quadro, instrumentos de integração da sociedade. Tudo isso, porém, tinha
uma consequência importante no que se refere à "maneira ludiciária" de enfrentar as
divisões e os conflitos de fe.
Vimos que entre os pecados "enormes" figuravam materias pertinentes a tribu-
nais de foro externo - a inquisição, por exemplo. E entre as cartas que os missionários
mandavam para obter dispensas e poderes especiais afloram delicados problemas de
limites. Em 1607, o jesuíta Valentino Mangioni, enviado juntamente com o irmão
Lucio Trigona à diocese de Palestrina, recorreu várias vezes ao geral para pedir licen-
ças e dispensas especiais em casos matrimoniais; mas pediu também instruções sobre
como comportar-se com quem tinha sido acusado de "bruxarias com pacto expÍesso
com o demônio, abusando ainda de sacramentos como o batismo e a eucaristia"6l. Por
trás dos rodeios e das formas hipotéticas, entende-se perfeitamente que havia o caso
concreto de uma pessoa que resolvera no íoro confessional as questões pessoais de
seus pactos com o demônio e abusos de sacramentos. O problema era se ele devia ser
levado ou não a denunciar os cúmplices, de acordo com a norma inquisitorial. Nao
se sabe qual tenha sido a resposta de Roma; mas, no entanto, é evidente que a prática

59. ARSI, Rom. 126 b. 1, c254.


60. ARSI, Rom. 132 I, cc.28r-79v ("missio facta in Episcopatu Sabino", i643).
61. Cara de Genazzano, 1607, ARSI, Rom. 129.1, c. 235r. Uma carta precedente, com as solicitações de dispensas
matrimoniais de Palestina, jun. 1ó07, cc.226rv.

Ritos de Passagem
r"*
646

do confessionário e os poderes dos missionários invadiam o terreno teoricamente


controlado pela Inquisição.
lnvadiam-no em muitas direcões: pode-se citar como típica em sua brevidade a
notícia dada em 1584 pelos jesuítas de Siena "de termos sido requisitados para um
julgamento do espírito de algumas pessoas que são tidas por santas, e outras tidas por
possuídas"62. Mesmo essa práxis foi-se difundindo; e não somente por solicitações de
baixo: discernir os espíritos, distinguir enfim entre a santidade e a possessão demoníaca
(e o fingimento humano) foi uma tarefa cada vez mais geralmente atribuída aos jesuítas.
Pode-se entrever desse modo um percurso no fim do qual a matéria das doutrinas
hereticas foi tratada em via normal mediante a confissão. O balanco do grande ano
jubilar de 1600 que os relatórios dos jesuítas traçaram no calor do momento mostrou
o grande sucesso de um retorno em massa dos hereges.

O ano de 1600, dada a afluência de pessoas para o Jubileu, propiciou aos Padres extraordinária
matéria para exercer os ministerios da Companhia. Certo padre absolveu em duas mil confissões
gerais franceses, cuja piedade foi demonstrada no desejo e avidez de confessar. Entre esses houve
muitos que nâs revolucões de Franca tinham-se envolvido em pecados gravíssimos6l.

Na Franca, haviam sido cometidos muitos pecados então. O espetáculo terrível


das guerras religiosas colocara em crise as certezas sobre a superioridade europeia. Os
corpos dilacerados e devorados por odio religioso na noite de Sao Bartolomeu tinham
propiciado um espetáculo de uma antropofagia mais injustificável do que a das culturas
primitivas no Brasil: com base nisso, teve início o processo de crítica da própria noção
de "barbárie". Mas na cautela obrigatória do relatório, que não entrava no mérito da
natureza de tais pecados, o leitor e orientado a aceitar o balanço triunfal de um retorno
em massa à fé católica dos "erros" do calvinismo.
Um balanço tambem triunfal foi o esbocado no volume que celebrava outro ano
jubilar, o centenário do nascimento da Companhia. A consciência de uma história
nova, onde os sinais do projeto divino deviam ser decifrados nos empreendimentos
individuais de conquista do mundo terreno, expressou.se então na transferência do
modelo do jubileu para eventos históricos individuais. AAlemanha luterana festejou, em
1617 , o centenário daquela que parecia ser a data do início dareformatio do cristianismo.

Em 1640, enquanto a Europa ainda se consumia no terrível incêndio da guerra dos


trinta anos, foram os jesuítas que comemoraram seu primeiro século. Em seu relatório
apologetico, o balanço da quantidade de mundo conquistada pende decididamente a
favor deles: os luteranos não saíram da Europa, ao passo que a Companhia expandiu-
-se na Asia, America, Africa. Mas qual é o segredo da obra de conquista? A resposta é
indicada no uso especial que os jesuítas fizeram da confissão. Foi no próprio seio da
Companhia que o uso da confissão demonstrou a força e o valor desse instrumento: abrir

62. "Punti degli Annali del Collegio di Siena del Anno 1584", ARSI, Rom. 126 b. r, c.33Or.
63. ARSI, Rom. 129.1, c. 30r. ("Punti degli Annali 1597.1605": passagem reíerente a "Coníessioni").

Os Missionários
rt

647

ao proprio superior e guiar os sentimentos mais íntimos do ânimo, os movimentos e as


perturbações do coração, com a sinceridade total que a confissão exige, e um remédio
sem igual. O princípio guia dos jesuítas íoi o recurso à confissão não como tribunal
mas como instrumento de cura. O coníessor e um médico, não um juiz; as culpas são
doenças da alma; reveÌar as doenças ao médico e o início da cura64.
Na história das missões, tentou-se transferir esse princípio para a relação entre
missionário e comunidade visitada: a nova disciplina, para a qual a confissão era um
instrumento essencial, baseava-se na noção de transparência das consciências abertas
pela multidao de fieis ao olho paterno do missionário. lnterrogando com discrição e
com ternura, o confessor {azia penetrar seu olhar nas tramas morais mais intrincadas,
tomava em suas mãos seus fios, desfiando-as. Para {azê-lo, devia porem ultrapassar os
limites oficialmente impostos ao modelo tridentino de confissão: devia individuar os
cúmplices do pecador, seus familiares, seu ambiente; devia telacionar as confissões de
mais pessoas, devia provavelmente contar a um o que tinha sabido a seu respeito por
outro para leválo ao arrependimento. Em suma, devia usar os instrumentos do juiz
com a ternura do médico. Mas sua vontade de saber podia criar problemas. A grande '

-óããiiõ"érsia
suscitada no seculo XVIII pela questão do "sigilismo" em Portugal nasceu
justamente disso, de acordo com a relação que, na época, Ludovico Antonio Muratori
fez a respeito aos leitores italianos: tratou-se, segundo ele, de um conflito entre o clero
ordinário das dioceses e os missionários. O clero, frequentemente culpado de envolver-se
com as habitantes dos conventos femininos, não tolerava a intervenção dos missioná-
rios e difundira contra eles boatos caluniosos, em particular o de violar o "sigilo" da
confissão por quererem saber dos pecadores os nomes de seus cúmplices no pecado.
Ademais, observava Muratori, o confessor é ao mesmo tempo médico e juiz: e por isso
e direito dele interrogar o pecador a respeito do nome e da condição de seu cúmplice65.
Assim, conciliavam.se - pelo menos na aparência - as duas funções da confissão sobre
as quais toda a época tridentina tinha longamente discutido: como o duplo gume da
a

espada encantada, a confissão podia ser usada para consolar o penitente, bem como I
i
para golpear a sociedade culpada. E nessa tentativa de conciliacão tinha sido prodiga- 1
I
I
lizada a obra do missionário.

64 "Morbos animi aperire, initium est salutis" (Ìmago Pri mi SatcuLi Soctetnns le;u a Prwíncia FlandroBeLgíca eiusdem Societatis

Reprdesentdtd,Anwerpiae, ex oíficina Plantiniana Balthasaris Moreti, anno societatis saeculari 1ó40, p. 98).
65. L. A. Muratori, Lusítanae EccLesiae ReLiglo ín Admínistrando Poenitentiae Sacromento, et DecretaLis ea de Re Sanctis'

simi Patris Benedicti XIV. Pontíficis, Roboreti, ex tlpographia Marchesani, 1769, pp.323-321 e passim (agradeço
â Cecilia Nubola e Giuliana Nobili Schiera poÍ terem indicado e providenciado esse texto). Muratori fornece
exemplos para explicar de que modo juiz e médico podiam sobrepor-se na íigura do coníessor, entre outros,
o da empregada que revela em confissão ter sido submetida ao pecado em seu lugar de trabalho. O confessor
informa*e, descobre que há telação com o íilho do patrão, ouve esse úitimo em coníissão e depois vai ter com

o pai para aconselhá-lo a despedir a empregada.

Ritos de Passagem
XXXI
A VNcEM DO PPNPCRINO,
n PnoclssÃO DO MISSIONARIO

T ogo depois da chegada à Europa das extraordinárias notícias das conquistas de


LCor,., e Pizatro, ate os reinos celestes da vida eterna comecaram a brilhar com as
luzes mundanas das pedras preciosas que os aventureiros espanhois encontravam alem-
.mar. Decerto, existia um parentesco entre os países descritos nos relatos de viagem e
nas cartas dos conquistadores e o reino dos ceus cristãos descrito no Conlessronale novo
do padre romano Girolamo Messi:

[...] Todos fieis, que podem ser verdadeiros cÍistãos, [...] tentarão com todo o íervor da mente
querer conquistar esse santo e novo lugar e toÍnar-se nele afáveis à congregacão da mente para co-
nhecer a claridade e a esplênclida luz e a suavidade e os odores que se encontÍam no ataviado lugar
[...] N"
novo pais [...] residem a glória e o repouso sempiterno; lá se encontram edifícios com paredes
resplendentes de ouro puríssimo adornadas de pedras preciosas [...] Nesse lugar jamais anoitece, ali
toda tristeza é afastada inteiramente, as harmonias e sons ardem no amor de Deus, lá as cadeiras são de
ouro adornadas de gemas preciosas cobertas de nobres clouraduras e tecidos bordados, cadeiras essas
nas quais sentam-se todos aqueles que se comprazem de ter labutado e conquistado esse novo país [...ì1

Muitos anos mais tarde, no final do seculo XVIII, outro homem de igreja recor-
reu às mesmas imagens para descrever os atrativos da Cidade Eterna, meta do cristão:

E enquanto eles andavam por esse lugar obtiveram mais gozos do que em partes mais Íemotas
do reino ao qual se dirigiam; e chegando mais perto da Cidade, puderam vê-la mais distintamente. Ela
era feita de pérolas e de pedras preciosas e as ruas eram pavimentadas de ouro; de modo que dada a

magniíicência cÌa cidade e do reflexo dos raios do sol nela, Cristiano caiu doente do desejo de ali entratr.

A historia de Cristiano estava destinada a um sucesso extraordinário; nascida do


intento moralizador de um fervido batista na lnglaterra do seculo XVII, ela forneceu uma

l. Cont'essíonale Novo, del Reverendo M. Híerorymo Messi, op. cit., c. A ÌVrt'.


2. John Bunyan, The Pilgïimt Progres (cf. a edição org. por Roger Starrock: Grace Abounding to tire Chie/ofSinners,
and The Pilgnm's Progress /rom this \YorI'J to that whìch is to come, Lon.lon, 1966). As citaçoes são da trad. it. ÌÌ
PeLLegnnagjo deL Crístiano, Gênova, 1855, p. 211.
F*-
650

imagem persuasiva da vida humana no mundo e, ao mesmo tempo, modelou uma trama
romanesca que imprimiu sua marca na literatura profana. A viagem de Cristiano e a
aventura de um homem que deixa mulher e filhos e embrenha-se, contra a opinião geral,
num caminho dificil, repleto de perigos, afastando-se da cidade terrena de "Destruicão"
em busca da cidade santa de Sion. Durante a viagem, vê-se exposto a mil dificuldades,
a encontros perigosos: o caminho da Cidade celeste atravessa o vale da Sombra da
morte e a cidade de Vaidade, onde tem lugar durante todo o ano a Feira da Vaidade. E
nessa feira, "o primeiro lugar e das mercadorias de Roma", particularmente apreciadas,
segundo o autor, pelos consumidores ingleses. Aventura solitária de um homem que
rejeita o descanso, o deleite, para seguir o caminho correto, cantando suas cancões de
peregrino ("Quero ser, ele disse, cristão peregrino. I Nem espírito nem fantasma do
correto caminho I desvia.o, pois ele almeja seu reino no céu. I O que quer que diga
ou faça quem dele se aproxima, I Por nada ele se move: dia e noite I Segue animado,
aumentando seu zelo") a viagem de Cristiano poderia tambem ser vista por aquilo que
pretende ser: a fervorosa retomada de uma antiga imagem da condição humana.
If Entre todas âs metáforas da condicão humana, a da viagem e a mais ligada ao
ï cristianismo. O mundo romano ignorava-a3: o ingresso automático dos deuses de cada
cidade conquistada no,panteão da cidade sede do imperio era garantia contra tensões
religiosas e desequilíbrios rituais. Não por acaso a nocão do percurso cristão da civitas
terrena à celestial devia esperar a queda de Roma para afirmar-se: foi santo Agostinho
que fez ressoar a advertência de que a cidade dos cristãos não era a terrena e que para
eles não podia haver na terra uma manens ciuitas. Exilados na terra após a expulsão do
Paraíso terrestre - como ressaltou Sulpício Severo nessa mesma épocaa - os cristãos
só podiam ser presenças inquietas, animadas pela nostalgia do retorno: "Inquietum
est cor nostrum donec requiescat in te" (S. Agostinho). No tema espiritual da viagem,
da presença transitória do cristão no mundo, inseriram-se outros, só aparentemente
irmanados mas na verdade concorrentes, como os das viagens rituais aos lugares da
Paixão de Cristo e os das paixões dos mártires. Esse complexo nó de práticas salvíficas,
viagens rituais, busca da proximidade com os corpos santos ou da posse de relíquias
desses mesmos corpos devia caracterizar durante os seculos a história do cristianismo.
De fato, a viagem do peregrino que se firmou como prática coletiva a partir do
seculo XI uniu diversas características: viagem de expiação para obter o perdão garantido
pelas indulgências e para receber os efeitos beneficos ligados à proximidade dos corpos
santos, foi se tornando tambem viagem de conhecimento e de conquista; voltada ao
passado - a cidade santa hebraica de Jerusalem - mas direcionando ao mesmo tempo
para o futuro: a conquista da cidade celeste.
Desse emaranhado tinha nascido a propria ideia da missão em meio aos infieis.
E, por fim, de todo esse intrincado e árduo deslocarse de massas humanas do Ocidente

i. Cf. as observações de Nicole Beiayche, em Jean Chélini e Henry Branthomme, Histoire fus pélzrinages non chrétieru.

Entre maglque et sacré, Paris, 1987, pp. 136-154.


4. Retomo a citação de Arturo Graí Mil, Itgend.e e Superstíyioni delMedio Evo, Milano, 1984, p.47.

Os Missionários
r
651

europeu para o Oriente, tinha sobrado - com o fim das cruzadas e com o fracasso das
guerras religiosas - o movimento ritualizado de grupos humanos no percurso sagrado
da procissão.
Nos países católicos, a procissão foi o instrumento básico para o sucesso das missões
e foi, em geral, o aspecto dominante da ritualidade do século XVII. As procissões organi-
zadas pelos mais célebres missionários tiverarn imensa notoriedade no mundo católico do
seculo XMI; a habilidade do diretor consistia em sua capacidade de fazer viver no breve
percurso da procissão uma vida ideal de penitência como reparação pelos pecados que
tinham marcado o percurso real da úda. A missão penitenciária, à diferença da catequética,
serviu-se normalmente de formas dramáticas para levar os fieis "à contrição", e entre essas
a procissão foi a mais usada5. Mas as procissões não eram realizadas apenas por ocasião
das missões; pelo contrário, no decorrer do século X\llI, a organização e realização delas
ocuparam em medida cada vez mais ampla a vida social dos países católicos. Várias vezes
os bispos tiveram que interúr com decretos para regulamentar um aspecto da vida religiosa
que tendia a escapar-lhes ao controle: mas o limitado efeito de suas intervenções pode ser
mensurado pelas clamorosas "querelas" em matéria de precedências que explodiram repe-
tidamente e quase regularmente por ocasião das procissões. Que se fizesse tanta questão de
figurar com honra no ordenamento das procissões é só um indício da importância desses
eventos na vida social; mas por que eram tão importantes e um problema ainda em aberto.
A questão e muito mais ampla do que a parte que aqui nos interessa - justamente
a da relação entre missões católicas e procissões. Mas ambas têm a ver com a ritualização
do espaço, assim como foi praticada na Europa cristã naquela epoca. Para os cristãos,
o percurso mítico no espaço era paralelo àquele que a história sagrada configurava no
tempo: uma síntese e uma experiência pessoal do evento da Redenção. Como o ano
litúrgico sintetizava os tempos do evento, assim a relação ritual com o espaço devia
repercorrer seus lugares. A forma mais celebre e disseminada na Idade Média, a da pe-
regrinação aos lugares santos, mostrou com o recorrente aforar do espírito de Cruzada
como o conffole ritual do espaço sagrado podia tornar-se conquista de espaços reais.
Mas essa prática, alem de se tornar cada vez menos fácil após a queda de Constantinopla
nas mãos dos turcos, apresentava o inconveniente de ser dificilmente controlável pelo
corpo eclesiástico: daí a imposição de percursos simbolicos e de devoções específicas,
como as que se traduziram na construção dos Montes Sagrados.
Ora, que os missionários fizeram uso em terra católica foram outras
as procissões de
tantas repropostas do modelo dos Montes Sagrados, ia-se, em geral, de uma igreja dentro
do centro habitado a um lugar sagrado externo e durante o percurso eram representados
momentos da Paixão, historias de santos e de mártires. Eram histórias que o missionário
devia evocar com o poder da oratória, enquanto os fiéis, frequentemente organizados
em confrarias, cuidavam de sua representação teatral. A participação coletiva era macica:

5. Sobre a distincão entte missão penitenciária e missão catequética insiste justamente P. Giuseppe Orlandi,
"Missioni Parocchiali e Drammatica Popolare", Spicilzglum Historicum Congregatíonís SSmi Redemproris,X[, 1974,

pp. 313.348.

A Viagem do Peregrino, a Procissão do Missionário


r--
652

mas as íormas dessa participação eram objeto de contínuas intervenções eclesiásticas,


pela tendência que tinham em fugir dos modelos penitenciários. Os decretos diocesa.
nos a partir do final do seculo XVI voltam continuamente ao tema da organização das
procissões: era preciso evitar que fossem realizadas mais do que aquelas previstas e que
fossem feitas com ritos diferentes dos aprovados. Eram suspeitos sobretudo os elemen-
tos teatrais: havia spectacul.a non approbata' que surgiam de improviso em meio ao canto
das ladainhas. Além do teatro, havia ritos suspeitos que sabiam a paganismo - diziam
os bispos educados no modelo de são Carlos Borromeo - como todos aqueles em que
eram usados írondes e flores. Houve quem proibisse expressamente que se jogassem
flores sobre as procissões do alto das janelas e que as pessoas ficassem às janelas para
acompanhar o espetáculo da procissão como se estivesse no teatroT.
De fato, encobrindo com a sanção oficial das missões essas formas antigas de
cultura, a igreja catolica permitiu uma ritualização do espaço que devia caracterizar uma
área vasta do mundo europeu: percursos coletivos, ritmados por um misto de penitência
cristã e de festa pagã, sob a direcão de um clero todo especial (não o secular e estável da
paróquia, mas um setor especializado em suscitar e dirigir grandes emoções coletivas,
destinado a periodicas incursões rápidas). Ao longo desses percursos eram estimuladas a
vontade de penitência e a preocupação com a sorte da alma individuals; mas ao mesmo
tempo a tensão era conduzida para resultados controlados pela instituição. O horizonte
da comunidade recompunha.se pacificamente à partida dos missionários.
Em comparação, a viagem âventureira e louca do protagonista do Pílgrím's Progress
e de um gênero bem diferente. Seu modo de explorar o espaço do mundo terreno em
busca da salvação e da penitência e o de um viajante solitário, desconfiado, que tende
somente ao conhecimento e à conquista como patrimônios individuais. Em suas páginas
percebe-se o grande alento dos horizontes mundiais abertos pelas descobertas geográfi
cas e faz pressentir o íascínio de personagens como Robinson Crusoe. Risco, aventura
e solidão tambem tinham sido os ingredientes do caso dos missionários católicos,
dentro e fora do continente europeu; mas a atuação deles tinha por objetivo eliminar
os perigos da escolha individual da vida dos povos aos quais se dedicaram. Somente o
missionário vinha de longe e ia longe: seus fieis, ao contrário, deviam permanecer no
espaço fechado de suas paróquias, contentando-se com a ampliação imaginária propi.
ciada pelo ffopel das procissões.

6. Constítutiones et Decreta Perillust. et Reterendiss. Domini D. PeLLegríni Bertacchii. Mutinensis Episcopi, Mutinae, 1612,
apudJulianum Cassianum, p. 175; mas cí. todo o decreto DeProcessíonibus, que retoma os decretos baixados
pelos bispos precedentes (iden, pp.174 e ss.).
7. O costume de levar rosâs nas procissões e a respectiva proibiçao são atestados por um descreto do bispo de
Piacenza Filippo Sega, cf. Synodus Díoecesana..., Placentiae, 1589, p. 169. A proibição de assistir dos balcões às
procissões como se íossem espetáculos teatrais encontÍa-se no decreto De Processíonibu.s do Srnodus Diocesana
Regiensis, Parmae, 1698, p. 182.

Nas noites insones de um adolescente que vivia em Recanati no início do século XIX, os assíduos temores do
escuro ligavam-se à cena penitenciária da "disciplinação noturna dos missionários" (Giacomo Leopardi, "Ricordi
d'Infanzia e di Adolescenza", emTuttelz Opere, Firenze, 1969, t, p. 360).

Os Missionários
r

INorcr, Dos LuCRRES

Abbiategrasso 335n11 Basiieia 62, 83, 84, 90, lZl, Z00


Abruzzo 545 Bastia 558
AciTrezza 373 Bellinzona 384
l+Iba lI7, 469 Bérgamo 66, 85, 136,139, I40,165,166, 180,
Albaicin 63 182, 183,185, 189
Alcala de Henares 503n5 Besançon 249
Alemanha 80, 83, 91, 99, 102, l4Z, l5Z,304,306, Besozzo 333
394, 487n18, 507, 547, 558: 566, 571, 572, Biasca 308
598,599,615,646 Bisignano 557
Alexandria 146 Bolonha 84t41,86, 88, 91, 103, 106, 108,
Altdorf 585 149n137, 150n147, 158-61, 16lr.16, 167,
Amalfi 206 l6Zn\9, 735, 750n6, 309, 313, 313n17 , 371,
America, ver também Índias ocidentais 64, 83, 377, 336, 338, 358, 359, 362n51, 399n76,
403n87, 541, 543, 544, 548n33, 550, 554, 406n7, 417 n5, 443, 451, 458, 468, 470, 550,
562, 563, 564, 568, 571, 572, 574, 584,586, 559,676n9
596, 598,612,615 Bondeno 221
Ampurias 543,676n11 Brasr,l572,646
Andaluzia 612 Brescia 130, 133n76, 134, 136,322
Angera 328 Bruges 102
Apt 180 Bulgária 586
Apúlia 65, 66,68,69, 115, 145, 556 Cabrieres 103
Aquileia 139, 167, 707n47, 405, 418, 429, 537, C^diz Z9l,293
512 Calábria 61, 62, 65,68, 69, ll4, 115, 116, 145,
Aragão 94,506 205n57,439, 455, 556, 557,566, 590, 591
Argélia 112 Caiahorra 786n17
Argenta 219, ZZz Calcinaia 525
Ariano 220 Camaldoli 75
Ascoli 559 Camerino 560, 605-06
Aspra 359, 642 Canalnuovo 222
Asti 598, 599 Capodistria 136,139,165, 180, 181, 198
Augusta 195 Capraia 540
Avane 519, 520 Capua 295
Avinhão 103, 103n49, 104, 104n50, 294 Carpi 218, 390
Badia em Ripoli 429 Casale 595, 598
r.-'-'

654

Casarsa 365 518, 545, 547n30, 563, 564, 564n79, 565,


Casentino 416n3 569, 570, 596, 597,604, 612,626nrl
Castelfranco 366 Estrasburgo 111, 200
Castelnuovo di Garfagnana 218 Etiópia 546, 577
Castelvetro 372 Fabbrica 413
Catanzaro 455,455n52 Faenza 187, 548,549
Cateau-Cambrésis 86, 145, 591 Fermo 353n17
Cavour 146 Ferrara 87, 88, 89, 91, 106, 107, 111, 123n48,
Cerveteri 614 138n101, 150n142, 162n18, l8Z, l9I, 199,
Chaníoran 61 202, Zl8, ZI9nl4, Zl9, ?.21,773, 310, 310n3,
China 574, 576, 577, 589, 592 342,378, 489, 557
Chioggia 164, 380 Fez 551
Cidade do Mexico 597 Ficarolo 221
Cilento 607n88 Finale 218
Cipro 136 Fivizzano 510
Cirradella 445 Flandres 147,143
Cividale 139, 167, 417, 417n6 Florenca 73,89, lll, lZ0, l7\ 122,127n46, 123,
Civitavecchia 613 lZ3n48 e rr49,124, lZ4n5l e n52, 125, 133,
Colmurano 606 145, 175n5, 179, 2l6nII,236,265, 265n49
Comacchio ZI9,610n94 e n50, 350, 359, 379n5, 405n7, 406, 425,
Como 180, 183,392,394 476, 427nl8, 428, 429n75, 430, 439, 444,
Concórdia 429 448, 449, 450n41, 454, 524n31, 578, 602,
Consandolo 221 6Zt,622,634
Constantinopla 651 Forli 206n61, 218,335
Copparc 221 Formigosa 311
Corbetta 335n11 Fossoli 508n25
Córdoba 443 França 68,88,94, 95,95n25,99, 100, 103, 104,
Coneggio 229 105, 106, l4Z, l5Z, 190,7.62,306,336,361,
Córsega 69, 539, 540, 544, 545n19, 547, 555, 369, 371,389, 390, 4Zl, 445, 457, 458, 514,
560n70, 596, 615, 616, 628, 639, 640 533, 547, 547n30, 573, 607n82, 610n97,
Cprtona 423,424,424n7 625n8,646
Cosenza 62 Francolino 272
Costanza 90, 157 Frankfurt 395n62
Cottanello 600,647 Frascati 614
Cremona 147 nl3l, 213, 2l3nl, 340, 524n29, 594 Fuscaldo 62
Crépy 11? Garfagnana 539,619
Desio 334 Gavignano 599
Deventer 501 Genebra 97, 1ll, 177n61, 146, 169, 193, 197,
Dronero 590 235n77 , 361, 591,609n90
Egito 65, 66,69,598 Gennazzano 620
Eldorado 542nll Gênova 130, 131, 149, l5l,15lnl44,169,170,
Emilia 88 183, 184n32, 264n48, 797n35, 342n39, 37 0,
Empoli 495n45 407n9, 465n4,485n13, 513, 520n1, 573,
Espanha 64,94, lI3, 115, 116, 117, 118, ll9, 170, 526n35, 607, 607n83, 616
158, 198, Zl4, 215, 215n9, 779, 256, 756n24, Giornico 308
?.57, 796, 3lZ, 361, 371, 374, 3gIn17, 4lZ, Goa 560, 569
446, 456, 464n3, 502, 504, 505, 506, 509, Goppingen 3I3,617

Tribunais da Consciência
r-
655

Gorgonzola 333 Maiorca 160n13


Gorizia 603n67 Malabar 552
Granada 63, 169, 291, 293, 502, 503 Malgrate 539
Grottaferrata 614 Malta 149, 149n139,568, 630n21
Guardia 61, 68 Manresa 482
Gubbio 294,321 Mântua 105, 110, 123n48,124n51,185, 186n42,
Holanda 571 192, 203, 728, 228n10, 304, 407n84, 535,
Imbersago332 535n7, 594, 595, 598
Írnola 276, 776n19, 350, 351, 352, 47 5 Marche 215,605,607, 620, 629,638
Índias 69, 483, 539-79,586, 588, 589, 596, 597, Marsico 3Zl, 630, 636n34
598 Massa Fiscaglia 222
indias ocidentais 354, 541, 542, 571, 597 Matera 523
Índias orientaís 354, 571, 584, 589 Melegnano 333
Ingiaterra 94, 142,285, 305n13, 361, 421', 5lZ, Mentana 616, 618
625 Merindol 103

Japáo 544,546,565, 574, 575, 576,589, 592 Mesolcina, valle 304, 383, 384
Jerusalém 552, 553, 584, 650 Messina 61,545
Jesí 454n49 México 64, 4A3, 548,604
Lanciano 168 Michoacan 548
Lausanne 335,335n14 | Milão 81, 94,102,107, 111, llZnlí,115, 116-19,
Lavello 162 125, 133,144, 180, 181, 203, 218,262n38,
Lecco 381 274, 304, 308, 311, 3Zl, 322, 326, 327, 328,
Lepanto 593 329, 331, 334, 335, 336, 338, 355, 357, 368,
Leventina 335,383n22 381, 443, 446, 448, 450n41, 45ï
Lima 439 Moçambique 574
Lisboa 116 Módena 90, 90n11 e n12, 91, 92,95,108, 111,
Livônia 592 133, 150, 159, 169, l9l, 192, 216, Zl7, Zl8,
Livorno 428 719, 225,229n12, Z9l, 293n38,294, 309,
Lizzano in Belvedere 380 321, 322n7 , 338, 339,339n31, 340, 340n33
Lodr 409,426 e n34, 346, 368, 371, 372, 392, 398, 459,
Lombardia 529 459n60, 47 5, 47 5n8, 497, 508, 508rJ5, 539,
Lorena 169 554, 556, 557, 560n72
Loreto 280 Molfetta 424n8
Lorgnano 526n37 Molucas 544
Loudun 457, 457n56 Monferrato 390, 594, 598
Lucca 92, 95, 101, 108, 111, 111n14, lZ5, 126, Montalto 62
127, 130, 133, 192, Z5l, 310, 337n24, 344, Montasola 624
4lZ, 469, 555n49, 557 Monte Tortore 508n25
Lucchesia 337 Montecalvoli 779n26
Lucedio 595 Monteflavio 617, 624
Lugano 766 Montelibretti 600
Luni 343 Montemagno 595
Lyon 169,592 Montepulciano 406, 585, 600
Macau 574 Montereale 346
Macerata 635 Montório 642n47
Madri 187, 448, 576n35, 564, 567 Montserrat 482,483
Magliano 642 Morávia 571

indice dos Lugares


r"*
656

Morricone 617, 6LB Portogruaro 258n28, 27 3


Muggiasca 334 Portugal 94,215n9, 359,386n29,490, 518, 563,
Muhlberg 129 576, 578, 647
Münster 100 Praga 91
Nápoles 65, 68n15, 73,74,81,92, 107, lll-16, Primaporta 614, 6l4n1ll
117, 118, 119, tZ5, 126, 144, t45, t79,713, Ragusa 109, 639
251,271n6,295n46, 317 ,342, 343,357 ,361, Ravenna 322
397n67 , 464,511, 546n28,553n42,557 , 585, Recanati 496, 497, 644, 652n8
599, 612,636n34 Reggio Calabria 449
Nepi 153, 183 Reggio Emilia 264n48, 301, 3zl, 371n7, 322n7,
Nerola 617,642 327, 409, 595
Nuremberg 317 Rimini 344,362n51
Orvieto 548n31 Riva 165
Pádua 84n41, 133, 135, 136, 142, 198, 275nl5, Rocchetta 642
310, 368n75 Romagna 715,347, 619
Países Baixos 63,77, 116, ll7, ll7n33, ll8, IZ5, Ronciglione 610n96
t5z, 542 Rosate 333
Palermo 454, 526n35, 546n77, 585 Sabina 359,579n128, 599, 600, 613,616,618,
Palestina 572 624, 625, 629, 64t,644, 645
Palombara 641 Saboia 123n48, 145, 149, 180, 592
Pamplona 482 Salamanca 252,284
Panzano di Carpi 508n25 Salerno ll3, 291, 295, 344n43, 422, 422n2
Papozze 222 Saluzzo 590
Paris 100 San Gimignano 430,539
Parma 3i5n22, 340, 340n33 San Ginesio 69
Paterno 606 San Miniato 296n48, 425n9, 428n27
Pavia 734 San Polo 642
Peccioli 413 San Sisto 61,62,68,612
Pécs 169 San Vigilio in Mais 481n2
Peru 63, 440, 446, 529, 543 Sant'Onofrio 429n25
Perúgia 159, 315, 316, 526n37 , 556, 564, 644 Santa Croce sull'Arno 425
Pesaro 180, l8l, 325, 470, 470n21, 471, 574n32 Santa Severina 166n31, 175r.5, I79nl7, 265n50.
Petescia 674n5, 642, 643 379n5,406n4
Piacenza 77 , ll7nl6,
734, 317 ,400, 409 Santiago 280
Piemonte 68, 145, 146, 556, 591, 607 Sardenha 83, 107n6, 115, 3I3, 543, 545,583n4,
Pietrafitta 430 626nIl
Pietrasanta 703, 265, 471 Sarzana 343, 457 , 539
Pieve Santo Stefano 124, 125n55, 166,359,375 Sassari 559
Pisa 1 16n32, l?l, 124, 14 5 nlZ5, 2lIn7 0, TZ9nlZ, Savignano sul Panaro 339
276n17 ,279n26,310, 315, 344n44, 360,361, Savona 526n38
406, 4lZ, 4ILnZl, 413,428, 457n55,498n53, Saxônia 307,378, 540, 543
519, 520, 524, 576n36, 534n4,630 Sermoneta 508, 5Zz
Pistoia 379n5 Serravalle 273
Polônia 143,451n42 Sevilha 503
Pontelagoscuro 221 Sião 650
Ponricelli 617 sicilia 112, tl5, zt3, zl4, 254, 545, 606
j Pordenone 758nZB Siena 61, 160, Zl4, 714n7, 775, 275n15, 776,

*fTribunais da Consciência
r
657

276n18, 777, 345, 407n10, 600, 600n56, Valadoli 503, 503n7, 559
626n10, 643,646 Valcamonica lZ9, 134, 390
Sorrento 113 Valência 116, 116n31, 509
Spezzano J66,367 Valmaggia 637
Spira 99, 100 Valtellina 393
Squillace 455 Vêneto I3Z,496
Stilo 439 Veneza 75, 80, 84, 85, 87, 101, 102, 104, 111,
Suíça 92, 95,308,637 lZ7-44, 152, 154, 154nl57 e n153, 159,
Sutri 183 l64nZ7 ,165, 166,167 ,168n34,179, 180, 181,
Tanno 642 187, 196, 197, 198, Z0l,204,209,709n65,
Tarragona 267n34, 267 n53 235n26, 256, 257, 271, 273, 274, 297n49,
Tivoli 620 337n25, 368, 368n75, 378n5, 387, 397., 4ll,
Toledo ll7, l2Z,187, 313n18, 361,465n4,503n7 412,458,464n2 e n3, 485, 508n25, 514, 527 ,
Tolentino 606 57.8
Tolouse 551 Vercelli 591
Torre Pellice 173n1 Verona 165,3ll,3Zl, 327, 466, 505, 506, 514,
Tortona 390 604
Tortosa 169 Vicenza 102n45, 136, 297 n49, 361, 37 0, 49 5n46,
Toscana 116, 122, 125, 180, 214, 345, 414, 428, 626n9
629 Yico 735n27
Trecenta 220 Viesti 113
Treggiaia 315 Villanova 378
Treviso 199 Viterbo 554
Trezzo 330 Yoghenza 772
Triora 407 Volterra 345, 413
Turim 145, 145n123, 151n144, 179 Volturara 65
Turquia 540 Westfalia566
Udine 139, l5O,2Ol,7OZ '!íittemberg 243
Umbria 215 '!7ürttemberg 313, 313ú7, 617
Urbino 85 York 286
Urbisaglia 606, 607 Zurique 111,585

Índice dos Lugares


-":
lF

Íxnrcr oxotVtASTICo

Abad, Camilo Maria 478n15, 503n5, 504n10 Alexandre VII, papa 459,519n}l
Abbagnano, Nicola 288n22 Alfonso II d'Este 153,449n33
Acosta, Antonio de 477nll Alfonso Maria de Liguori, santo, veÌ Liguori, Al-
Acosta, José de 440n15, 461, 574, 574n717, 588, fonso Maria de
589,592 Alighieri, Dante 84n41
Acquaviva, Claudio 448, 449n35, 477, 477n10, Allé, Antonio (frei Francesco de Bolonha) 549
489, 490, 507 n24, 553, 5 53n42, 560n71, 561, Alonso de Córdova 577nl2I
561n73,576n118 e n119, 643,644 Alvarez de Toledo, Juan, cardeal 177,557,557n55
Adorni, Caterina (santa Caterina de Gênova) 78 Alvarez, B. ,150n39
Adorni-Braccesi, Simonetta 101n43, 111n14, Amabile, Luigi 62n1 e n3, 113n19 e n20, 115n28,
126n57 e n60, 251n9 e n10,344n44 Z7ln6
Adriano VI, papa 288n21 Amato, Angelo 292n36
Aggeo, proíeta 192 Ambrogio de Milão, {rei 134n77
Alberigo, Giuseppe 162n18 Ambrose, lsaac 5lZ, 5I7n5
Alberti, Leandro 84,159n4,160, 161, 161n14, Ameyden, Theodorus 77n16
250n6 e n7,39In44 Amiel, Charles759n29
Albertini, Arnaldo 260 Amigoni, Ferrante 186n42
Albicocco, Fabio 127n61 Amorosa, Argenta 396n67 ,408n14
Albino, Gentile 90n11 Anatra, Bruno 313n15
Albizzi, Francesco l27r.6I, 178, 178n63,1'29, Andrea de Asola 148
129n66, 137 n9 6, 178n 14, 713n3, 215, 3 47n37 Andrea de Modigliana 577nI24
Albrisio, Basilio 439 Andrea de Spoleto, frei 551
Alcala Galve, A. 503n6 Andreâ, Valentin 316
Alciati, Francesco 336nI9 Angelerio, Francesco 526n37
Alciato, Andrea 394n60, 438 Angelieri, Giorgio 385n75
Aldobrandini, cardeal 590n19 Angelo di Lorenzo, vulgo Riccio 275,276,276r.16
Aldrovandi, Ulisse 235 Ankar Ioo, Bengt 386n29
Aleandro, Girolamo, cardeal 9 4, 9 5, I0l, l0ln42, Anna d'Este 608n89
108,130, 130n69 Antonelli, Vittorio 4lZn24
Alessandro de Florença, írei 423,424 Antonia de Ferrara 397, 40I
Alessandro de Médici 345n41,359,37 5,375n100 Antonia di Bernardo 406n6
Alessandro de Riva l42nll6 Antoniano, SiÌvio 306n15
Alexandre VI, papa (Rodrigo Borgia) 174,389, Antonio de Brugnato, ftei,428, 428n70
390 Antonio de Faenza, frei 184
660

Antonio de Portese 327n79,466n9 Barbieri, Lorenzo 534n4


Anzilotti, A. 123n47 Barbieri, Nicolo 354
Arcangeli, Alessandro 3 56n26, 575n 1 1 5, 592n76 Barchi, Pietro 450n41, 515
Arcella, Fabio, arcebispo 29 5, 79 5n47 Baroni Capannini, Lisabetta 425n9
Arcieri, Amelio 511, 511n2 Baroni, Pellegrino, vulgo Pighino 339
Arcimboldi, Giovan Angelo, arcebispo 311 Baronio, Giovanni, cardeal 128
Arditi, Ottavia Angela (sóror Ottavia) 495n45 Barre, Antonio 584n6
Ariosto, Ludovico 72 Bartoli, Daniello 544n18
Armaroli, Fabrizio 205 Bartoii, Flaminio 301n4
Armogathe, J.-R. 451n43 Bartoli, Flavio 301n4
Arquer, Sigismondo 83, 83n38 Bartolomea de Antonio de Pistoía 406, 407n8
Arrigoni, Pompeo, cardeal 2l6n1l, 406n7, Bartolomea Golizza de Farra d'lsonzo 417
429n27 Bartolomeo de Medina 253,753n17,777, 498,
Ascarelli, F.79n2l 498n54
Ascoli, Arsenio d' 548n32 Bartolomeo di Buto 474-25
Aspurz, Lazaro de 548n30 Basino de Tossignano, Elisabetta de Z76nl9, 47 5
Astrain, A. 503n7 Basso, Giovanni 308, 308n74
Attems, Carlo M. d'603, ó03n67 Bataillon, Marcel 440n l4
Aubert, AÌberto 114n26 Battaglia, Ãntonio 222
Audisio, Gabriel 180n22 , Battelli, Gn:lto 429n24
Auger, Edmond 546, 547, 547n29 Battista "de Episcopis" 764n26
Aviles Fernandez, M. 503n8 Battista "de Tepis" 351n9
Avitabile, Pictro 577n 125 Battista de Crema, frer 76, 442, 485, 485nL3
Azpilcueta, Martin de, vulgo doutor Navarro Battistella, A. 160n13, 405n1
263n46, 350n3, 47 8, 6Z8nL5 Baudot, G. 403n87
Azzolini, Girolamo 219 Bauduin, François 100
Bacchelli, Franco Z94n4l Bayle, Pierre 88n6
Bachaud, Francesco 146, l46nl79 Bazachi, Giovanni 27 8n25
Badia, Tommaso, cardeal 95, 108, 429. Beadle, John 512, 512n5
557n38 Beccadelli, Ludovico 96n29,109, 130n68, 137,
Bagnara, Filippo 362, 367.n50, 370n81 117n93, 138, 138n98 e n100, l4t,32ln7
Bainton, Roland H. 197n26 Beccadelli, Tommaso Maria 160, 161
Baker, Derek 633n25 Beccari, Antonio 219
Baldassare de Fagagna 271n7 Beemon, F. E. 118n35
Baldinucci, Antonio 506n l9 Bekker, Balthasar 386n28, 430n30
Baldinucci, Filippo 512n4 Belayche, Nicole 650n3
Baldisseri, Lorenzo 123n49 Bellarmino, Roberto, cardeal (Roberto BelÌarmi'
Baldo, Vittorio 588n15 no, santo) 402, 434, 434n2, 453n47, 466n8,
Bambacari, Nicolao 453, 453n47 477, 508
Banchi, Mariotto 424n7 Belmas, E. 361n44, 371n84
Baõez, Domingo 504 Beltrame, Niccolo 358n37
Ilaratti, Danilo 379n7 Bembo, Pietro 79, 80n24, 165
Barbauto, Niccolo 548 Benacci, Vittorio 340n34, 350n1
Barberini, Francesco, cardeal 188, 188n52, Benedetto d'Asolo, blspo 199
424n8, 477, 5Zl Benedetto de Bistagno, frei 340n33
Barbieri, Ecloardo 109n11 Benoffi, Antonio L75n56
Barbieri, Giuseppe 219 Benrath, Karl 173n1

i:rhunaÍs Ja Consciência
r-"
661

Bento XIV papa 479, 5Zb Bisbiach, Assuero 468


Benvèglienti, Fabio 152 Bitossi, Carlo 513n8
Benzoni, Girolamo 35Znl5, 387, 387n31 Bizzocchi, R. 353n15
Benzoni, Rutilio, bispo 496, 497n47 Bizzoni, Gian Battista 369
Berchet, Giovanni 548n33 Blado, Antonio 72n3
Berengo, Marino 101n43 Bloch, Marc 485
Berinzaga, Isabella 443, 448 Blumenthal, Peter 350n4
Bernardi, Giovambattist a 176n57 Bobadllla, Nicolo 554, 557,612
Bernardini, Pietro 79n21 Boccaccio, Giovanni 84n41, 358, 609n93
Bernardino de Feltre, frei 488 Bodin, Jean 395
'Wietse
Bernardino de Minaya 552n38 Boer, de 321n5, 332n2,333n5,334n9,
Bernardino de Sahagun 64n6 335n16, 505n 17, 507 nZL, 508n25
Bernardino de Siena, são 310 Boero, Giovanni Domenico 340n33
Bernardo de Como 392, 392n51,393,394, Boesch Gajano, So{ia 734n23
394n61,395 Bollani, Domenico 353n16
Bernardo de Dosso 332,333 Bolognetti, Alberto 143, 143n120, 209n65, 4ll
Berneri, Girolamo 279nll Bolzoni, Lrna 534n6
Berni, Benedetto 391 Bonaini, F. 120n40, l2ln47
Berni, Francesco 89n8 Bonardo, Bartolomeo 550n35
Bernini, Gian Lorenzo 452 , Bonavente, Toribio, ver Toribio Bonavente
Bertelli, S. 623n1 Bonaventura d'Amelia, írer 457n55
Berti, Giuliana 439n12 Bonaventura de Viadana frei 508n25
Berti, Nicola di Lorenzo 428 Bonelli, Giacomo 61
Bertolotti, Maurizio 386, 391n47, 394n60, 398 Bonelli, Michele, cardeal 142n113, n115 e nl16,
n71 145ú25, 187n49, 378n4, 578
Bertora, G. 131n71 Boni de Castiglione, Francesco Benedetto, frei
Besomi, Ottavio 84n40, 255n'Zl, 379n39 508n25
Bethencourt, Francisco 91n14, l50nl4l, 154 Boniíácio VIll, papa ZZ7,278
n153, 193n16, 215n9, 264n48,301n3, 386 Bonnici, Alessandro 149n138
r.29 Bonollo, Rosa 508n25
Betti, Claudio 309n1, 317 Bonomo, G.4Z6nl7
Beze, Theodore 88 Bordet, L. 546n75
Biagio di Totulo de Buttinicco 81, 82, 82n34, 85 Bordon, Francesco 559n65
Bianchini, Scipione 159, 159n4 Borges, Pedro 587n13
Bianconi, A. 74n11 Borghese, Camillo, cardeal, ver Paulo V papa
Bianconi, Sandro 266n51, 308n23, 329n34, Borghese, Paolo 405
625n6 Borghini, Vincenzo 350, 350n4
Biel, Gabriel 290 Borgia, Francesco, santo (Borjia de Medina, Fran-
Bindi, F. 630n21 crsco) 442, 449n37, 503, 556n52, 569n96,
Bindoni, Bernardino 608n89 571n107, 575, 576,643
Binsfeld, Peter 394, 395, 395n67, 396 Borgia, Rodrigo ver Alexandre VI, papa
Biondi, Albano 194n18, 7I6nl3, 270n15, 779 Borgo, Giovan Battista 400
nl}, 264n46, 794n44, 339n31, 340n33, Bori, P. C.197n26
341n35, 347n52, 391n43, 474n8, 439t73, Borjia de Medina, Francisco, ver Borgia, Francesco
445n73 Borra, Seraíino 339n31
Biondi, Gnzra 150n747 Borromeo, Agostino 107n6, 304n8, 383n72,
Bisanti, Paolo 405, 418 384n24,399n73

Índice Onomástico
Borromeo, Carlo, cardeal, (Carlos Borromeo, san- Buonarroti, Michelangelo 78, 174
to) 114, ll4n23, ll5n27, 123n48, l74n5l, 146, Buondelmonti, Baccio de Manente 125n55
146n, 148, 148n, 167, 168n34, 170, 170n40, 171, Burali, Paolo 317, 318, 370n80
l7In42, 203n50, 254n21,303, 304, 304n11, Burke, Peter 3 54n18, 3 56n27,368n7 4, 37 9n7
305, 307, 308, 313, 314, 3l4n2l, 315ú7, 318, Burlamacchi, Francesco 125
319, 321, 377, 322n9, 323, 326, 327, 327 n28, Burnyeat, John 568, 568n97
328, 3Z8n3l, 329, 331, 337, 332n2,333.38, Burton, Robert 509, 509n29
344, 355-59, 360, 360n42, 37 9, 37 9n6, 38043, Buschbell, Gottfried 86n47,94n20, 158n2 e n3,
384, 384n23, 429, 429n25, 446, 467, 47 3, 47 6, 161n16, 163n20, 196n24, Z30nl4, 236n29
496, 505, 506, 515, 533, 598, 607r.83, 629, Busdraghi, Vincenzo 337 n24
630,633,657 Bussagli, M.542nll
Borromeo, Federico 3I4n20, 379, 443, 449-5I, Butzer, Martin 159, 402, 539
529n44 Buzio de Montalcino, Giovanni, frei 200n36
Borsatti, Francesco 221 Cabantous, Alain 483n9
Borsetti, Giovanni Domenico 218 Cacciaguerra Bonsignore 782, 282n3
Boscaro, Adriana 57 5nll4 Caiazza, Pietro 344n43 , 422n2
Bossuet, Jacques-Bénigne 155 Calandra, Endimio 185
Bossy,John 284n6, 285n17,305n14, 326n24, Calandrino, Michele, frei 508n25
465n5, 493n40, 507n2, 515n13, 633n25 e Calbetti, Arcangelo 229n17, 339n31
n26 Calcagno, Daniele 607n83
Botero, Giovanni 152, 616 Calcagno, Francesco 141
Botio, Sigismondo 258n27, 274,774n12, 466n6 Calino, Muzio 168n35
Botticini, Agostino 219 Calvino, João 88, 88n6, 120, l2l, 193, 195, 197,
Bottoni Pavese, Cesare 278n25 198, 198n29, 200, 299, 351, 356, 361, 402,
Botturnio, Anselmo 77 438, 44r, 445, 572, 609
Bozza,T.327n27 Cambiagi, G.279n28
Branthomme, Henry 650n3 Camilla de Simone 4lZ-13,414
Brasavola, Antonio, vulgo Musa 391n45 Camilli, Camillo 385n25
Braunsberger, Otto 487n18, 558n62 Camillo de Lellis, são 468
Brecht, Ma:lcín 474n4 Campa, Angela 227
Brenz, Johannes 99 Campana (Campanina), Olimpia 277, 278,
Bresciani, Pietro 250n7 278n73
Brigham, Kay 54Znll Campanella, Tommaso 226, 439
Brilli, A. 509n29 Campanelli, Marcella 427 r.l9
Brocadelli, Lucia de Narni 444 Campeggi, Alessandro, bispo 103, 103n48, 162
Brondi, Maria Caterina (detta la santina di Sar- Campeggi, Annibale 319n1
zana) 453, 453n47, 457, 457n55 Campeggi, Camillo 153, 185n39,214
Brooks, Peter Newman ll7n34 Campeggi, Gian Battisra 159n5, 160n13
Brown, Judith C. 575nll4 Campeggi, Giovanni 123n49, 559
Brucioli, Antonio 109, 609 Camporesi, Piero 543n17
Brugnalesco, Valeria 378n5 Cancila, Orazio 214n4
Brunetto, Orazío 289n25 Candido, Giacomo 532n3
Bruno, Giordano lZ8, 202, 635 Canisio 487n18, 556n51, 558, 558n62, 591, 594,
Buffardi, Adriana 297 n49 595, 598
Buiato, Daniele 365 Cano, Melchor 284, 284n7 ,485, 503
Bullinger, Heinrich 200n37 Canosa, Romano 103n47, ll5n29, lI9n37,
Bunyan, Johr. 649n2 178n64, 131n71, l45nl2Z, 407 n8, 465n4

Tribunais da Consciência
r
66i

Cantelli, A. 475n8 Cassese, Michele 295n46


Cantimori, Delio 79n21, 197 n28, 198n31, 241 n 1, Cassiano de Modigliana 225n2
249ú,364n60 Castagna, Gian Battista, ver lJrbano VII, papa
Cantini, Alessandro 497 Castaldi, Giovanni Tommaso 383n20
Cantu, C. 180n21, 794n44 Castaneda Delgado, Paulino 465n4
Cantwell Smith, tü(/. 78n20 Castelli, Cristoforo 546n27
Capone, Antonio 27 0, 271n6 CastelÌi, Gian Battista, bispo 314, 315n72,344,
Caponetto, Salvatore 172n44 469
Caporali, Paolo 150n143 Castellino de Castello 550, 603
Caprariis, Vittorio de 80n27 Castellion, Sébastien (Sebastiano Castellione) 97,
Capucci, Maria Carolina 776n4, 339n31, 47 ln72 t93, 197
Capys, Eliseo 470 Castenario, Ambrogio 201
Caracciolo Aricò, Angela 443n18, 589n17 Castiglione, Baldassarre 72
Caracciolo, Antonio 271n6 Castiglione, Beatrice 408n 14
Caracciolo, Francesco (Francesco Caracciolo, são) Castiglioni, G. B. 603n65, 607n83
516n15,579 Castro, Alfonso de 176, 191, 191n8, 197, 197n77
Caracciolo, Galeazzo Z35nZ7 Castro, Scipio de 213
Caracciolo, Marino 61 Cataldo, Paolo l45nl22
Carafa, Gian Pietro, cardeal, ver Paulo IV papa Catani de Pescia, Antoni,o 534n5
Carcel, Ricardo Garcia 116n31 ,36trn46 Caterina de Racconigi 445
Carcereri, Girolamo 164n74 Cattaneo, E. 338n29
Carcereri, Luigi 163n20, 170n40, l7ln43 Cattaneo, Rocco 135
Cardini, F. 425n9 Cattani de Diacceto, Francesco 378
Carena, Cesare 150, l5lnl43, 372n88, 509n31, Cavalicci, Caterina 277, 277n22
511n1 Cavallieri, Carl'Antonio 221
Cargnoni, Costanzo 548n32, 590n19 Cavazza, Silvano 86n46, 195n19, l96n2Z,289
Carlini, Giovanni 219 nZ3,53lnl
Carlo Borromeo, santo, ver Borromeo, Carlos Cavedoni, Ludovico, vigárro 372
Carlos V de Habsburgo, imperador 72, 86, 88, Cecco d'Ascoli 642
91,102,108, 112, 117116, ll7n33, lL9,129, Centanni, M. ó23n1
l44nl7l, , 159, 190, Z5Z, 562, 604
157 Centolani, Girolamo 219
Carnesecchi, Pietro 121, I22, 172n45, 185, 191, Centurione, Agostino 166, 169,170
207,208n64,209 Ceracci de Velletri, Agostino 206n58
Carpani, Roberta 355n73 Cerretani, Bartolomeo 80n25, 84, 439n17
Carranza, Bartolomé de, arcebispo Cerruti, Antonio 778n10
187n48 Cervantes, Gaspare, arcebispo 344n43, 422,
Carrara, Stefano L23n49 422n2
Carrari, Vincenzo 467 nlZ, 468, 468n14 Cervini, MarcelÌo, ver Marcelo
Carrive, Lucien 97n30 Cesare d'Este, duca 366
Carroli, Bernardino 365n62, 602 Cesare del Bano 524
Caruso, Carlo 25 5n}l, 329n39 Cestaro, Antonio 3l2nl2
Casali, Elide 365n67, 403n86, 602n63 Ceva, Gian Battista l45nl75
Casanate, Girolamo 568 Chabod, Federico 89n9, 95n23, ll2nl6, 117n33,
Casas, Bartolomé de las 552n38, 588,612 183n28, 750n7, 324n16, 368n75
Casas, Ignacio de las 569n96, 570 Chaix, P. 609n90
Cascetta, Annamaria 355n23 Chalmette, L.2Z9nl3
Cassani, Giulian 340n33 Chambers, D. S. 111n13

Índice Onomástico
r

Chaney, Edward de 73n9, 188n52 Conti, Natale l44nl2l, 274, 274n13, 27 5


Chastel, Jean 445 Conturbia, Giovanni Antonio 328
Chatellier, Louis 493n38, 571n103, 583n5 Conversini, Benedetto 160
Cheevers, Sarah 568 Coppola, Gauro 309n2
Chélini, Jean 650n3 Coquelines, CaroÌus 249n4
Cherubino de Spoleto 306 Cordeses, Antonio 450n39
Chillini, Battista 352 Cordoba, Martin de, bispo 169
Chiodi, L. 165n30 Corelli, Girolamo 365n67
Chizzuola, Ippolito 181, 181n24 Cornaro, Giorgio 123n49
Chracas, Gio. Francesco 209n66 Corni, Francesco 192n12
Christin, O.369n77 Corrain, Cleto 374n17, 37 9n6, 468n13, 630n21
Ciammitti, Luisa 237 n32 Corsi, Pietro 83
Ciampoli, Tommaso 4l2nZl Corsini, Domenico Andrea 218
Cibo, Caterina 444 Cortelazzo, M. 553n41
Cícero, Marco Túlio 595n34 Cortes, Herman 548,552, 584,649
Cioni, E. 374n18 Cortese, Gregorio, cardeal 108
Cioni, Fabio 276 Cortini, Giuseppe Forrunato 351n9
Ciotti, Gio. Battista 376n25 Cortivo, Antonio Maria 601n59
Cipriano de Udine 508n25 Corvisieri, C. 173n1
Cisneros, Diego 477n11, 483n11 Cosimo I de Medici, príncipe lZ0, 121, lZ?., lzz
Cistellini, A.546n26 r45 e n46, lZ3, 123n47, lZ4n5l, 175, l5Z
Cittolini, Alessandro 273 Cospi, Antonio Maria 408n12, 425,426,426n12
Clemente VII, papa (Giulio de Médici) 71,92, Costa, Girolamo 643n54
95n75, 131n73,378 Costabili, Paolo 153, 764,301
Clemente VIII, papa 178n14, 427, 476, 477n10, Costanti, Marcantonio 599, 613, 616, 619
566,57t Coster, Francois (Francisco Costero) 493, 494,
Clesio, Bernardo 481n2 494n43, 571,57lnl03
Cloquemin, A.493n39 Costil, P. 169n38
Cobbett, G.155ú54 Courtney, T.783n6
Cocciano, Augusto 249n3 Covillonius, Joannes 502n4
Codronchi, Battista 467 Cozza, Laurentius 508n27, 518n20, 529n44
Cohen, Elisabeth S. 359n37, 398n70 Cozzi, Gaetano 134n79, 154n151, 343n41,
Cohen, T. V. 359n37, 398n70 368n75
Coiangelo, Giovanni Antonio 3ZIn6, 324n19, Cozzi, Luisa I54nI5l, 343n41
630n19, 636n34 Crespin, Jean 103n49, 200, 200n38
Colet, John 97, 197 Cressy, David 633n27
Collo, Paolo 548n33 Criminali, Antonio 569, 569n95
Colombo, Cristóvão 64,83, 394, 542, 542n11, Criscito, 4.479ú7
548ú3,584 crispoldi, Tullio 282, 506, 506n20, 541
Colonna, Marco Antonio 2l3,7l3nl e nZ Cristoforetti, G. 481n2
Colonna, Vittoria 174 Croce, Bened etto 242, 357, 357 n28
Colvius de Dordrecht, Andreas 127 Croce, Giulio Cesare 543
Contarini, Francesco 102, 782 Croce, Lucio 62
Crouzet, D. 604n70
Contarini, Gaspare, cardeal 7 5, 81, 95, 96, 108, Crovetto, Pier Luigi 548n33
109, 131, l3ln7 3, 160, 287 n19 Cruz, A. J.597n42
Conti, Francesco 370n80 Cruz, Francisco de la, frei 440,441, 461

Tribunais da Consciência
r
665

Cruz, Magdalena de la (sóror MadaleÍa) 443 730n15, 271n7, 777n8, 289n25, 365n66,
Cupis, Gian Domenico de 137n95 390n41
Curione, Celio Secondo 125, 169,169n38, 194, Del Monte, Innocenzo, cardeal 138n100, 149
194n18, 198,351 n137, 16l, 161n16, 162, 165, 236n29
D'Addario, Arnaldo l2ln43, l45nl72 Del Rio, Martin 408, 461n63
D'Agostino, Mari 3 29n38 Delcorno, CarIo 254nZl
D'Alessandri, Paolo 384n23 Delfino, Giuseppe l52nl45
D'Ancona, Alessandro 356n25 Del1a Casa, Giovanni 130, 139
D'Haussy, Christiane 97n30 Del1a Corgna, Fulvio, cardeal 315
Da Mula 167, 167n37 Della Porta, Gian Battista 387
Da Ponte, Ltigi325nZ3 Della Rovere, Giulio Feltrio 424
Dainville, F. 547n29 Delminio, Giulio Camillo 273
Dal Legname, Francesco, bispo 378 Delumeau, Jean 244, 244n3 e n4, 245n6, 284n10,
' Dall'Occhio, Antonio 531n1 3 56n77, 361n44, 429n28, 573n I 10
, Dall'Olio, Guido 149n137, 150n142,161n14, Denzler, Georg 566n85
250n6, 292n32, 399n7 6, 47 0n20 Derosas, R. 368n75
' Dalla Tôrre, Giuseppe 434n7,435, 435n4 Desiderata, Francesca 311
Dalle Donne, Sebastiano 306n15 Di Fiore, Giacomo 546n78
Dalmases, Candido de 482n8 Di Simplicio, Oscar 777n20, 626n10, 628n15
Dàn, R.438n11 , Diels, H. 631,631n22
Dandino, G. 138n98, 141n110 Dini, Giovanni Camillo 444
Davidico, Lorenzo 769, Z69nl, 27 0, 485 Dionisotti, Carlo 72n5 e n6, 7 5, 7 5n14
De Antoni, Dino 380n10 Diotisalvi de Foligno 310
De Biasio, Luigi 82n33, 201n42,207n45,237 Ditchfield, Simon 105n2, 190n3
n10, 508n25 Dittrich, F. 131n73
De Bujanda, J. M. 97n33, 118n36, 139n102, Dulcino, frei 88
755n73, 256n74,312n10 Dollinger, Ignaz Von 242, 497n48
De Caro, G. 511n2 Domenech, Girolamo 555, 555n47 ,607n81
De Cotes, Ludovico, bispo 543, 626r.ll Domenichi, Ludovico lZ0,IZl, lZ3
De Frede, CarIo 204152 Domenico de Ímola, írer 2?8n24,294, 322n7
De Funes, Martin 565 Domenico de Treggiaia 279n76
De Gubernatis, Domenico, ftei 573 Domenico di Simone 315
De la Fratte, Giovanni 81n31 Donà, Francesco 129
De Leva, Giuseppe 174n3 Donattini, Massimo 551ú7
De Luca, Giovanni Battista, monsenhor 213, Doni, Anton Francesco 84,351
ZÍ3n3,214, Zl5, 577n40, 528n43 Donnelly, John Patrick 570n100
De Luca, Giuseppe 174, 174n2, 457n44 DoraÌice de Siena 4l7n2l
De Luca, Maddalena 174n2 Dotti Colla, Giovanni Tommaso 219
De Maio, Romeo 282n3,4Z7nl9 Douais, C. 99n37, 190n4
De Rosa, Gabriele 86n47 ,92n16, 3l2nl2, 379n6, Drei, G. l55nl55
603n67, 636n34 Duchet, Michele 546n28
De Sanctis, Francesco 356 Dudith, Andreas, bispo 169, 169n38
De Simone, R. 146n128, 180n20 Dufour, Gérard 479n18
Dedieu, Jean-Pierre 313n18, 361n46, 465ú Duke, Alastair ll7n34
Del Bene, Paolo Andrea 604n71 Durelli, Giuseppe 219
Del Col, Andrea 129n67, 134n77, 135n84, 136 Duval, André 288n}l, 297n36
n88 e n91, 139n103, 141n111 e nllZ, Z0ln44, Ebner, Pietro 607n88

Indice Onomástico
r'"
666

Eck, Johann 99, 99n39, 288, 288n21, 482, 482n3 Fatinelli, Pietro, 125
Eliano (depois Romano), Gian Battista, 66,564, Fausti, D. 324n18
570 Favilla de Mezzana 225,367
Ellero, G. J65n66 Febwe, Lucien Z4Z, 243, 244, 249, 249n2, 385
Emanuele Filiberto, duca di Savoia 145, 146,591 Felici, L. 107n5
Equicola, Mario 72n6 Feo, Michele 324n18
Erasmo de Roterdã 83, 89n10, 97, 176,181, 194, Fernandez, Ernesto Garda 286n17, 3lZnl3
197,284,482,501,501n1, 609, 609n91 e n92 Fernando da Áustria 449n33
Erba, Achilie 145ú26 Fernando de Aragão 111
Ercole II d'Este, duque de Ferrara 74,87n2,88, Fernando de Bourbon 155n155
88n5, 90n11, 95n24 Ferrante, Lucia 626n9
Ercole, Domenico Antonio 325n73 Ferrareòi, Guerino 310n3
Ernst, Germana 394n60 Ferrari, Giovanni Battista 27 2, 27 2n9
Escamilla-Colin, Michèle 227n7, 388n34, 394 Ferrari, M. 612n104
n59, 509n30 Ferraris, Lucio 369n78, 561n74
Escandell Bonet, B. 503n6 Ferrazzi, Giuseppe 219
Escobar del Corro, Juan 229n13, 47 4n4, 509n32 Ferrero, Pier Francesco 140n105
Estrada, Francisco de 604n72 Ferri de Massafiscaglia, Andrea 223
Evangelisti, Claudia 368n74 Ferro, Donatella 589n17
Eymeric, Nicolau (Nicolaus Eymericus) 227, Fieschi, Luigr 272
227n6, 234,735n75, 237.38, 763n44, 363, Fieschi, Niccolo, bispo 114, ll4n23,ll5n77
363n53, 370,399 Filipe II de Habsburgo, rei da Espanha 63, Il5,
Fabbri, Tommaso 219 115n30, 117, 118, 185, 187, 213n2,371,403,
Fabbroni, Francesca (sóror Francesca) 457, 403n87, 446, 448, 534, 554n43, 564, 565,
457n54 574, 57 5, 592n27 , 597 , 605
Fabri, Baldassare 103n48 Filippi, Lucrezia 3Z5nZl
Fabris, Giobatta de, fter 527 Filippo de Pancalieri 590
Fabro, Pietro 552 Filippo Neri, são 5lZ, 545, 546
Facchinetti, Giovanni Antonio 104n51, 147, Fine, Agnès 633n26
l4Znll3, n115 e n116, 143n117,186n45, Fiore di Francesco de Crespoli 378n5
t87, 4t7, 578 Fiorini de Pescia, Stefano 225n3
Faelli, Stefano 357, 357nll Fiorini, Vincenzo 461n63
Faello, G. 8.196n75 Firpo, Luigi 188n53, 202n46, 703n52
Falcioni, A. 367n51 Firpo, Massimo 83n38, 90n11, 91n13 e n15,
Fanini, Fanino, de Faenza 107, 107n5, 182, 92n16,95n74 e n76, ll4nZ6, I58nZ,159n7,
182ú6, t9t, 196, 198, 199 174, l7 5n4, l79nl7 ,181n23, 201n40, 231n 18
Fanti, M. 160n11, 380n9 e nl9, 235n27, 249n3,450n38, 486n14,
Fantinelli, Giovan Battista 706n59 554ú6, 555n48 e n49
Fantini, M. P. 381n12, 497n52 Fisher, John 288n21, 303
Fantucci, Francesco 344n44 Flacio Illirico, Matteo 434n3
Fara, Giuseppa 417n5 Flaminio, Marcantonio 7 6, 77 3, 351n9
Faralli, Carla 581n2 Flaminio, Sebastiano 351, 35In9
Farina, Giuseppe Maria 218 Flandrin, Jean-Louis 625n8
Farinelli, Giuseppe 382n15 e n18 Flynn, Maureen 361n47, 364n59
Farnese, Alessandro, cardeal, ver Paulo III, papa Focher, Juan, frei 564n79
Fasani, Antonio 311n9 Folena, Gianfranco 609n93
Fasano, Elena lZZn45 Fontana, Bartolomeo 87n 1, nZ e n4, 88n6, 107n4

Trit unais da Consciência


r
667

e n5, 162n18, 191n11, 199n33 Gamba, Maddalena 451


Fontana, Fulvio 581 Gambara, Gian Francesco, cardeal 204
Fontana, Giovanni 4lln19 Gante, Pedro de 605
Fontana, Vincenzo 179nl7 Garcés, Julian, frei 551, 551n38
Fontanini, Benedetto 76 GardaVilloslada, Ricardo 482n7
Fonzi, Fausto l45nl24 Gartison, James D. 512n3
Fornari, Callisto 74,89, l9Z Garzoni de Bagnacavallo, Tommaso 106, 106n3
Fornari, Martino 489 Garzoni, Tommaso 592
Foscarari, Egidio, bispo 169, 170,250,264, Z9l, Gastoné, Amede 610n97
293,294, Z94n4l, 539 Gatti, Anna Maria 313n15
Foucault, Michel 515n13 Gavanti, Bartolomeo 529
Foxe, John 62,200 Generali, P. 451n47
Fracassuto, Giorgio 230 Gentilcore, David 381n14
Fragnito, Gigliola 96n29, 108, 108n8, 111n15, Gentili, Alberico 187
122n45 e n46, 159n4 Gentilini, Sebastiano 219
Frajese, Vittorio 306n15, 45ln4Z Georgievitz, Bartolomeo 584
Franceschino de Trieste 366 Gerardo, Paolo 351n5
Francesco Borgia, santo (Francisco Borjia de Me, Gerson, Jean 437, 440
dina), ver Borgia, Francesco Gervais, Pierre 48ln 11

Francesco Caracciolo, são, ver Caracciolo, Fran- Gherardini, Tommaso 508n25


cesco Ghidini, G. 340n33
Francesco dal Busco (Bosco), ftei 548, 549 Ghislieri, Michele, cardeal, ver Pio V papa
Francesco de Casteldurante 80 Giacomelli, Tommaso 591
Francesco de Meleto 79 Gianguardi, Paolo 498n53
Francesco de Mozzanica 488n21 Giannetti (Giannettini) de Fano, Guido 104, 142
Francesco I de Médici 214,714n7, 345, 345n47 Giannone, Pietro 120
e n48,449n33 Giazzotto, Matteo 366, 366n69, 367, 367n73,
Franchi, G. 184n32 368
Francisco de Sales, sao 244 Giberti, Gian Matteo, bispo 166, 303, 311, 319,
Francisco I de Valois, rei da França 94, 100, 157 321, 3Zln7, 337, 337n25, 379, 379n8, 466,
Francke, Auguste Hermann 512 505, 506
Franco, Niccolo 114 GigÌi, Marcantonio 159n5
Frati, L. 367n51 Gil, Juan 542rll
Frattina, Isabella 27 Z, 27 3, Z7 3nl0, 274 Giimont, Jean François 200n38
Freggia, Enzo 343n42 Ginori, Francesco Maria 365
Frellon, P. 493n39 Ginzburg, Carlo 85n43, I}ln4l, 138n97, 250ú,
Frosini, Francesco 630 263n46, 2? 6n19, 326n25, 339n32, 346n51,
Fumaroli, Marc 447n27 351n9, 360n41, 379n7 e n8, 385, 385n27,
Gabbrielli, Caterina 430 386, 387,387n30, 388, 388n33, 389n38,
Gaeta, Franco l0ln42, 130n68 390n39, 391n46, 397, 397n49, 394n61,
Gaetano Maria de Bérgamo 517n19, 527n24 397n69, 398n71, 405n3, 429n73, 490n26,
Gaffarel, P. 103n49 507n3, 505n15, 581n1, 599n51, 601n59,
Gagliardi, Achllle 443, 448 617n104,63lnZZ
Galass, Giuseppe 374n15, 357 nZ8, 583n5 Giolito de' Ferrari, Gabriele 86n47, 506n20
Galeota, Mario 707n67 Giolito, G. 181n25
I

i
Galilei, Galileu 127 Giorgi, Roberta 516n15, 530n47
I Gallo, Gabriele 508n25 Giorgio di Montelauro 325n20

t
Índice Onomástico
r "'
668

Giorgio Siculo, monge 158, 166, 169, 198,202, Grandi, Giulio 199, 199n33
35t Granet, Marcel 581n1
Gios, Pierantonio 311n7, 377n1 Grassetto, Niccolo J77n I
Gioseppe de Fano 597n44 Grattarola, Marco Aurelio 452, 453,453n46
Gioseppe Maria de Parma 577 Greco, Micheie 275
Giovanni Battista de Ascoli 577nlZ4 Gregori, D. 155n154
Giovanni Battista de Crema, r.'r-rlgo il Cremaschi- Gregório de Bornate 287, 482
no 162 Gregório IX, papa 362n51
Giovanni Battista de Ferrara 452n45 Gregório XI, papa 399n74
Giovanni Battista de Milão 209n65 Gregório XIII, papa 234, 313, 314, 376, 343, 401,
Giovanni Battista de Pistoia 519 554n43, 563, 563n77, 565, 574, 64ln4l
Giovanni de Fano 176,196,197 Gregório XV, papa 410, 509n37
Giovanni de Módena 81n32 Gregory, T.97nl6
Giovanni de Pian del Carpine 574nI11, 584 Grendler, Paul F. 83n39, 129n65, 140n106,
Giovanni de Roma 180 141n111
Giovanni de Rubiera 550n37 Griani d'Urcisoni, Aurelio, frei 166, 175,175n7
Giovanni Gioacchino de Passano 272 Grigoni, Alessandro, frei 218
Giovanni Stefano de Crema 526n38 Grillo, Giovan Matteo 104, 104n50
Girolamo de Correggio, cardeal 105, 185 Grimani, Giovanni 139, 166, 167-69
Girolamo de Michelagn oIo 424n7 Grimm, Jacob 634n28
Girolamo de Solana 73n8 Grimm, \üíilhelm 634n28
Giuliani, Angelo 150n143 Griot, Pierre 180
Giulio de Brescia 137n93 Grisonio, Annibale l8ln24
Giulio de Milão 182 Groscio, Marco Antonio 550n35
Giulio de Tiene 136 Grossi, Paolo 374n98
Giunti, Filippo 350n4 Gruzinski, S. 643n56
Giunti, Iacopo 350n4 Gualandi (Gualano), Ranieri 270, Z7ln6
Giustiniani, Tommaso 7 5, 567 Gualteruzzi, Carlo 96n29, 109n11, 110n12
Giustiniani, Vincenzo 153 Guarini, Battista 623n2
Gleason, Elisabeth G. 75n13 Guerrero, Pedro, arcebispo 169, 291,293, 502,
Goller, 8.297n34 503,504
Gollner, C. 584n7 Guerrini, Paolo 322n8
Gomez de Morais, Francisco ll6n3Z Guevara, Antonio de 543n16
Goncalves de Câmara 482 Guggisberg, H. R. 241n1
Gonzaga, Ercole, cardeal 164, 165n28, 185 Gui, Bernardo 190
Gonzaga, Ferrante l8lnZ4 Guibert, Joseph de 491n31
Gonzaga, Francisco, cardeal 89, 105n1, 111,573, Guicciardini, Francesco 80,80n27, 84, 89n8
573n108, 587n14 Guida, F.592n25
Gonzaga, Giulia 112 Guidetti, A. 539n1
Gonzaga, Luís (Luís Gonzaga, são) 545 Guidi, Elisabeua223
Gonzalez de Mendoza, Pedro 293, 293n38, 303 Guidiccioni, Bartolomeo, cardeal 95, 101, 111,
Gonzalez Novalin, José Luis 756n24,559n64 177
Gonzo, Girolamo 361, 370 Guidiccioni, Giovanni 81n30
Gra( Arturo 650n4 Guyon, Madame 452
Graf, F. 387n31 Haemstede, Adrian van 200n39
Grandi, Antonio Marra 7ZZ Hair, E. H. 572n106
Grandi, Casimira 309n2 Hakluyt, Richard 571, 572n106

Tribunais da Consciência
r.
669

HaÌe, J. R. 140n107 Isidoro de Sevilha 355


Haliczer, S. 381n12 Isolani, Isidoro, {reí 394
Halkin, L. E. 200n38 Iwai, H. 575n1ï5
Hamada, K. 575n115 Jacobelli, M. C.354nZl
Hansen, J. 390n39 Jacobson Schutte, Anne 165n28
Harmening, Dieter 397n69 Jalla, G. l45nl23
Hartmann, lrilfried 353nl5 James I Stuart 477
Hausmmann, S. 284n8 Jechil de Bassano, Alessandro 202n47
Henner, Camillo 190n4, 259129, 261n34, Jedin, Hubert 7 5, 7 5n13, 94n22, 95n24, llZnl7,
263n44, 767 n53, 389n37, 396n66, 47 3nZ 147 nl3l, 157 nl, 164n22 e n23, 20ln4l, 283 ,
Henninger, C. 98n34 283n4, 286n17, 292n32, 793n38, 309n2,
Henningsen, Gustav 190n5, 759n29, 386n29, 3Z3nl2, 326n76, 359n36
388n34 Jobe, Patricia H.759n29, 399n74
Henrique IV de Navarra 445, 514 Jorge da Saxônia 99n39
Henrique VIII, rei da Inglaterra, 94,285,286, Juan de Pedraza, frei, ver Pedrazza, Gio
Z88nZl Júlio II, papa 79
Heródoto 584 Júlio III, papa 137, 146,153,166,167, l9l,
Herrera Puga, Pedro 371n85, 6lZnl07 191n11, 199, 249, 250, 269, 369, 369n7 8,
Hertz, Robert 631, 632, 632n73 s47, ss4
Heynck, Valens 290n27 ,
Justiniano, imperador 100
Hieronymus Marius 200n37 Kaíka, Franz 225
Hierro, Francisco Del 479n18 Kagan, Norman 446n24
Hilgers, Joseph 97 n33, 1 18n36 Kaplan, 5.355n22
Honoré, L. 477 n10, 479n17 Kessel, Peter van 321n5
Honório 99 Klaniczay, Gabor 390n42
Horácio Flaco, Quinto 595n34 Klar, Karl-Joseph 284n8
Horzara, Giovanni dell' 67n11 Klor de Alva, Jorge 597n42
Hosio, Stanislao 169 Kobayashi, José Maria 550n36, 604n69, 605n73
Huarte, Juan 592n27 e n75
Hudon, \ü7i11iam 108n7, 158n3 Kostka, Estanislau 642
Huss, Jan 168 Kreiser, Robert 421n1
Huxley, A. 457n56 Kremer, Heinrich 390
Ilarione de Gênova 282, 502n3 Kremer, Johannes 350n4
Inácio de Loyola, santo 66, 69n18, 76,782, Kreuz, Reinhard G. l52nl47
449n32, 482, 482n7 , 483, 485,487n18, 490, Kroon, M. de 99n39
496,539,540,540n3 e n4, 541n10, 542,545, Kuntz, Marion L.443n18
545n19, 552, 555, 555n48, 556n53, 557, Labrot, Gerard 567n9I
558n59, 559, 569n95, 570, 584,585, 585n8, Lachi, Matteo 181n23
600n52, 604n72, 607n81, 619 Ladner, Gerhart B. 593n28
Ingram, Martin 625n7 Laíitau, Joseph-François 632
Inocêncio III, papa 99 n36, 283, 3lZ, 399 n7 4, 466 Laguna, Andrés de 387
Inocêncio IV, papa 259 Laínez, Diego 168, 291,486,486n18, 502,545,
Inocêncio VIII, papa 390 545n24, 54? , 569,569n98, 570, 576, 591
Inocêncio X, papa 353n17 Lambertini, Prospero 516, 526, 526n36
Ioly Zorattini, Pier Cesare 378n5 Lancellotti, Gian Paolo 627n13
Iseppo de Carpenedoìo 429n26 Lanci de Reggio, Battista 264n48
Isidoro de Montauro, monge 123 Lanci, Ludovico 219

Índice Onomástico
7.'" rll
,i

670

Landini, Cristoforo 555, 556, 557, 557n55, 558, Locatelli, Giacomo Z06n6l
558n60, 560n70, 570, 612, 619 Locati, Umberto 105, 105n2, 189n3, 233, 233nZZ,
Landini, Silvestro 69, 539-42, 544, 545nI8 e nl9, 234, 750n5, 25Ztl3, 259n30, 302, 302r.5,
547,590,598,615 336, 336n21, 400, 400n78, 401
Lando, Ortensio 83, 199, 200n36 Loffredo, bispo 312
Lanzoni, Francesco 187n50 Lombardo, Leonardo 139n104
Laorca, Raffaella 383nZZ Lopez, Luis 441
Lauchert, Friedrich 164n27 Lopez, Pasqual 207 n67, 3I7 n29 , 406n5
Laurerio, Dionisio, cardeal 95 Lordaux, V.755nZl
Lauro, Vincenzo l45nl74 e n125, 151n144, Loredano, Lorenzo, fteí 772
186n44 Lorenzetti, Pietro 78
Lavin, Irving 161n17 Lorenzini, Antonio 321n7
Le Roy Ladurie, E.3Z3nl3 Loschi, Agostino 169
Lea, Henry Charles 242, 242n2, 244, 279n27, Lotti, Ottaviano 89
3Z3nl4, 336n70, 388n34, 503n8 Lucia de Narni, ver Brocadelli, Lucia de Narni
Leandro de Capugnano 367 Lucrezia del Peloso 407n8, 468
Leão, X, papa 71, 435,562 Lucrino, Vincenzo 306n18
Lefèwe d'Etaples 243 Ludolfo il Certosino 449n36
Leites, Edmund 305n13, 493n40 Luis de Granada 364,364n61, 598
Lemaitre, Nicole 183n29 ' Luís Gonzaga, são, ver Gonzaga, Luís
León, Lucrecia de 446,448 Luis XIV, rei da França 336
León, Pedro de 371n85, 617,612n107 Lumnius, Giovanni Federico 542, 542n12
Leonardi, Giovanni 7 6, 7 6n15, 306, 5 5 5n49, 5 65, Lupatino, Baldo, frei 135,196
565n84 Lupi de Bérgamo, Ignazio 767r.54
Leonardo di Pasquino de Loro 175n55 Lurati, Maria Luisa 332n3
Leone de Dozza776,475 Lurati, Ottavio 327 nZ8, 332n3, 335nll, 379n6
Leoni, Paolo, bispo 489 Lusitano, Giovanni 406
Lerri, Michelangelo, frei 339n31, 340, 340n34 Lutero, Martinho 71, 7 lnl, 7 2, 7 3, 7 3n9, 7 5, 76,
Léry, Jean de 572 77, 78, 80, 80n29, 81, 82, 90, 96, 97, 98, 100,
Lestringant, Frank 241n1, 57Znl07 l0Z, 133, l47nl3l, 164, l64nZ3, 194, 241,
Leturia, P. 607n84 243, 247 , 254, 284, 285n10, 288, 289, 299,
Levita, Elia 570 302, 371n7, 378, 402, 436, 437, 438, 441,
Leyva, Virginia de 474n5 442, 445, 481, 482, 488, 501, 501n1, 502,
Liénhard, M. 99n39 540, 540n5, 541, 543, 596,612
Lievsay, John 84n41 Lutz, Heinrich 161n16
Lightbown, R. W. 188n52 MacCrie, T. 196n74
Liguori, Alfonso Maria de (Alfonso Maria de Li- Maceratini, Ruggero 98n34
guori, santo) 373, 374n96, 563, 630 Maceroni, Giovanni 379n6
Linguardo, Francesco 162 Macfarlane, Alain 512n5
Lippomano, Alvise, bispo 94n20, 158, 487n18 Mack, Peter 188n52
Lippomano, Francesco 133n76 Maddalena de Ferrara 398, 398n70
Llamas Martinez, Enrique 443n19 Madruzzo, Cristoforo, cardeal 164, 169, 186
Llorente, Juan Antonio 276,726rt5 Maffei, Bernardino, cardeal 130n68, 269n1
Maffei, G. P. 553n41
Loarte, Caspar 484, 596, 596n41, 597n43, 607, Magagnini de Calci, Rosa 524, 525
607n83 Magnavacca, Marco 191, 192
Locatelli, Eustachio, frei 168 Mainardi, Faustina 454

'- --\'.,
'' - nhunais da Consciência
I
r
671

Majorana, Bernadette 546n77, 577 nlZZ Marucci, F. 509n29


Malena, AdeÌisa 457n54 Masaniello 213
Mancino, Michele 353n15 Maselli, D. 148n133, 304n9
Mandeville, John 584 Masini, Eliseo 189, 19 0n3, 227, 227 n8, 738, 260,
Manefi, Pietro 138, 139, l5Z,249,250,250n7, 260n33, 261, 261n3 6, 267n41, 3 40, 3 40n3 4,
353117 350, 366n70, 401,407
Mangioni, Valenrino 645 Massarelli, Angelo 162, l67nl9, 163n20, 164
Manunta, Bruno C. 449n34 Massari, G. 200n37
Manzoli, Benedetto, bispo 595 Mastrilli, Nicolo 577
Manzoni, Giacomo 191n9 Mazzarino, Giulio 148, 308, 328, 446,447n27,
Maqueda Abreu, Consuelo 203n49 449,450, 507
Maquiavel, Nicolau 100, 152, 375,511 Mazzei, Maria Domenica 444
Maracco, Iacopo 139, 139n103, 140n105, 230 Mazzinghi, Carlo 413, 414,414n26
Marcatto, Dario 90n11, 9ln13 e n15,95n24 e Mazzone, Umberto 313n16
n76, 158n7, 159n7, 17 5n4, 17 9n17, 181n23, McNair, Philip 147n131
201n40, Z3lnl9, 235n27, 249n3, 270n1, Medici di Casinalbo, Giacomo 508n25
554n46, 555n48 e n49 Medici, Anna Maria Vittoria de' 444,445
Marcello de Santo Stefano 210 Médici, Eleonora de' 594
Marcello, Nicolo 134n81 Médici, Gian Angelo, cardeal, ver Pio IV, papa
Marcelo II, papa (Marcello Cervini) 94n70,109, Médici, Giulio de', cardeal, ver Clemente MI, papa
137,137n92 e n94, 158, 161n16, 162, 162n19, Médici, Sebastiano 359, 359n39
l63nZ0, 164n25, 165, 236n29, 294, 794t42, Medina, Jose Toribio 440n14,488, 488n22,
371., 321n7, 327, 554, 585 57 5nll4
Marchesi, Domenico Maria 150n143 Megna, Laura 362n50, 370n83, 676n9,627n14
Marchesi, Vincenzo 171 Meisenbein (Weisenbein), Anna 395
Marchetti, PaoIo 237nZl Melâncton, Filipe (pseud. de Philipp Schwarzerd)
Marchetti, Valerio 124n50 e 51, 1601112,2l4n5 83,482
e r.7,345n46 Mellini, Angela 237, 237n32
Marchi, R.444n70 Mendieta, Girolamo de 586
Marco de Riva 272n8 Menghi, Girolamo 427, 422n3, 424, 4ZB
Marco deila Frattina de Portogruaro 272 Menghini, Tomaso, fret 342, 401, 402, 415, 416,
Marescandoli, Giandomenico 49 5n45 422,422n4
Marescandoli, Salvatore 495n45 Mentzer, Raymond A. 95n25, 285n13, 337 nZZ
Marescotti, Giorgio 306n17 Mercati, 4.278n24
Margolin, J. C.241ú Mercuri, L.363ú7
Maria, a Católica (Mary I Tudor, rainha da Ingla- Mercuriano, Everardo 447n27 e n28, 450n39,
terra) 84n41, 285n1i 643
Marini, Leonardo 168, 503, 587, 587n14, 588 Mercurio, Scipione 376n25
Marongiu, Antonio 626nll Merigi, Francesco 222
Marot, Clement 87, 88 Merkle, S. 201n41
Marotti, Ferruccio 354n19 Merlo, G. G.347n54
Marshall, Peter 285n14 e n15, 286n18 Messi, Girolamo 290n29, 649
Martellini, Sebastiano 635n31 Metzler, J. 550n34, 563n78, 565n84, 566n87,
Martin, loho 129n64, 141n111, 367 n7l 64ln4l
Martinengo, Celso 181, l8ln24 Michelet, Jules 513, 513n7
Martinez Burgos, Matias 364n61 Migale, Chiara (sóror Chiara) 455
Martyribus, Bartolomeo de 303 Mignanelli, Fabio 101n42

Índice Onomástico
r"-
677

Milani, Marisa 141n108 e n111, 378n5, 406n5, Muffeti, Giacomo 644


4lln70 Mugnaini, Vincenza Angiola (sóror Vincenza)
Millani, Giovan Giacomo 271 495n45
Millino, Giovanni Garcia, cardeal 409, 426, Mriller, G. 89n8
476n17, 47 1n27, 508, 51 1n1, 534n4 Münster, Sebastian 83, 83n38, 84
Minali, Donaro Matteo 170 Muratori, Ludovico Antonlo 647, 647n65
Minturno, Antonio 81, 81n30 e n31 Murray, Margaret 385
Minutoli, Carlo 251n9 Musselli, L. 340n33
Mirandola, Candido della 222 Musso, Cornelio 86, 86n47, 168, 235, 235n28
Mofíitt Watts, Pauline 564n79 Muzio, Girolamo 138, 181, 181n25
Molina, Luis de 324 Muzzarelli, Girolamo 138, 161, 250n7
Molinari, Franco 370n80 Nacchianti, Iacopo, bispo 163, 764,164n27
Momigliano, Arnaldo 97r.31, 197n26 Nadal, Jeroni (Girolamo Natale) i18, 559
Monardes 387, 387n31 Nannini, Giovan Battista 344n44
Mongardini, Ludovico 357nLZ Nannipieri, Siïvia 4ZBIZ2
Mongitore, Antonino 454n51 Napoli-Signorelli, Pietro 25 4nZ0
Montagu, Ashley 361n43 Nardo di Bari 576n120
Montaigne, Michel de 574 Narducci, Domenica 444
Montanari, Domenico Zl8, 353n16 Navagero, Bernardo, cardeal 182, l8ZnZ7,189,
Monteceneri, Andrea 319n I 235,735n27
Montemayor, Emmanuel 560n72 Navarra, Bernardo 222
Monter, \7ilham 190n5, 203n48, 300n2, 352n10 Navarro, dottore, ver Azpilcueta, Martin de
Montesanto, Vincenzo 148 Negri, Francesco 182, 196, 198, 199
Montichiari, Francesco 405n2, 417r.7, 4l9nl0, Negri, Girolamo 198, 380
510 Negri, Paola Antonia 443, 450, 482,495
Monticone, A. 128n63 Neri, Filippo, ver Filippo Neri, são
Moore, R.255nTl Niccoli, Ottavia 7 9 n23, 2 59 n30, 42lnl, 4 57 n5 4,
Morales, Sebastiano 447, 447n78, 448 477 nlO, 47 9n17,548n31, 604n70, 673, 673n1
Morato, Pellegrino 80, 80n28 Nicolau V, papa 389
Mordenti, Raul 80n25 Nicolini, B. 101n42, 195úl
More, Thomas 197,285, Z85nl4, 316 Nicolini, Domenico 253n17, 488n22
Morigia, Paolo 258, 258n27, 388n34, 483n10, Nicolini, Ugolino 316n24
486, 486n17, 488, 494n47, 5l4nll Nicosia, Andrea 505n16
Moro, Cristina 773n10 Niggl, Günter 512n5
Morone, Giovanni, cardeal inquisidor 91,95, Ninguarda, Feliciano, bispo 625n6
108, 111, 160, 168, 169, 173, L73nl, 174, 17 5, Nobili Schiera, Giuliana 6471165
181n23, 182, 185, 201, Z0ln40, 208, 230.32, Noguera, Jacopo de 168
735n27,236,278n24, 294, 371, 3ZZr7 , 338, Northcott, Thomas 568n92
339, 539, 554 Novi Chavarria, Elisa 513n7, 583n5
Moronessa, Q. Iacopo 86n46 Nubola, Cecilia 647ú5
Morrill, John 305n13 O'Malley, John'u7. 65n8, 449n36, 483n11.
Mortimer, R. C. 283n6 490n29, 552n39, 553n40, 554n44, 559n63.
Mosconi, Luca 625t6 569n98, 570n101
Mosconi, Natale 503n7 O'Neil, Mary 381n12, 398n70 e n71
Moya, Alonso 205n55 Ochino, Bernardino 7 4, 92, 9 5, 9 6, lIZ, 17 6, 19 5.
Mozzato, Pietro 164n25 l95nZI, 270, Z7l, 27h6,444,585, 586, 604
Muchembled, R. 386 Odericus de Portu Naonis 574nlll

Tnbunais da Consciência
r
673

Odescalchi, Bernardo 183 Panella, A.755n73


Odescalchi, Paolo 146 Panigarola, Arcangela (sóror Arcangela) 443
Odoardi, G. 86n47 Panrzzi, Valente 378n4
Oliva, Gio. Paolo 557n54 Panvinio, Onofrio 355, 355n24
Olivari, Michele 371n85, 6IZn107 Panzini, Giacomo di Aurelio 360n47
Olivieri, A. 210n68 Paolin, Giovanna 4l8n I I
Olivieri, Pietro 610n97 Paolucci, Scipione 599
Olivo, Caldo 429n73 Papino, Girolamo, frei 106, 107n4 e n5, 162n18
Olivo, Camillo l8ln24 Papon, Jean 369
Ometochtzin, dom Carlos, cacique de Texcoco Paralupi, Anna 311
549,597 Páramo, Luis de 92,92n18, 177,I78n15
Onofri, Francesco 450n41 Parente, Ulderico 557n57
Onzarelli, Ulisse 218 Parigino, Giuseppe 512n4
Orano, Domenico 203n52, 635ú2 Parisetto, Ludovico 80, 80n26
Orazio, P. 152n148 Parisini, Alessandra l50nl47
Orioli, Raniero 362n5I, 375n 101 Parisio, Pietro Paolo, cardeal 95
Orlandi, Giuseppe 651n5 Parks, G. B. 85n41
Ormaneto, Carlo 377n9 Pascal, Blaise 474
Ormaneto, Niccolo 203n50, 355n73,506, 507 Pascale, Gian Luigi 61
Ortolani, Oddone 208n64 Paschini, Pio 71n2, 80n24, 136n91, \37r'96,
Osio, Gian Paolo 474n5 140n106, l42nll5, 165n30, 166n31, 167 n32,
Osorio, Girolamo 552 168n35, l7 5n7, I77nl3, 181n25
Oswald, Stefan 128n64 Pascucci, Vittorio 76n15, 565n84
Ozment, Steven E. 284n10, 285n15, 306n16 Pasini, Hamil carc 315n77
Paccagnini, Ermanno 382n15 e n18 Pasquali, Carlo 145n125
Pace, G. 429n24 Pasquinelli, Ottavio 334n10
Pacheco, Pedro, cardeal 204 Passaro, Giuliano 754n20
Pagano, Marco (depois Antonio) 495,495n46 Pastor, Ludwig von 95n27
, 148n135, 150n140,
Pagano, Sergio 105n1, 123n48,185n37, 186n42, 176n8, 177n13, 178n15, 179n18, 182n77,
192n14, Z03n5l, 228n10, 304n 10 183n31, 190n7, 779nll, 230n17, 235n77,
Pagden, Anthony 543n14, 57 4n1,17 253n15 e n16, 369n78 e n79, 370n81,
Paglia, Vincenzo 228n9 403n86, 473n5', 427 nl7, 466n7, 497 n49,
Paiva, Jose Pedro 386n29 503n7,50,1n11, 507r.23
Palazzi, Orneila 412n23 Pàsztor, Lajos 563n78
Paleotti, Camillo 443, 451 Patschovsky, Alexander 363n53
Paleotti, Gabriele 327,336,336nI9 e n21, 338, Pattina, Livia 27 7, 77 8nZ3
358, 359, 363n54, 365, 366n68, 559, 579 Paula, Vicente de 579
n128 Paulo lII, papa (Alessandro Farnese) 86n47, 87,
Paleotti, Rodolfo, bispo 3 17, 321, 372n7, 33 6n27, 89, 90, 92,95, 102, 103, 103n47, 108, 111,
340, 340ú4, 350, 350n2 lZ5, 126, 158n3, 159, 174, I82nZ7 , 191,251,
Pallavicini, Giambattista 130n69 794n43, 550n34, 551n38, 556, 557, 64ln4l
Palmio, Benedetto 579n178 Paulo IV papa (Gian Pietro Carafa) 90,91,92,
PaÌmio, Francesco 559, 559167 94, 95, 108, 109, 111, Il3, Il4, 114n76, 123,
Palmucci, Giovanni Battista 5ZZ, 523 147, 1481134, 149, I5I, 166, 167, 170, 171,
Palomba, Ippolita 408n14 173-75,177, l77nl3,178, 178n14, 179, 180,
Palumbo, Genoveffa 49 5n44, 564n81, 597 n44 181n23, 182, 183, 185, 189, 190, 199, 203,
Panebianco, Santo 295n45 e n47 208, ZZ8, 230, 231, 23 5, 23 5n77, 249.53, 25 5,

indice Onomástico
r"
674

256, 770,272, 273, 274,292, 292n32, 308, Pianati, CarIo ZZZ


319,336,369,487n18, 503, 504, 533 Piccaglia, Giovanni Battista 5l5nl4
Paulo V papa (Camillo Borghese) 236,423,508, Piccolomini, P. 95n28
5t4 Pico della Mirandola, Gian Francesco 390, 391,
Pautillo de Ferrara 508n25 391n43, 445 , 445n23
Pavesi, Giulio, bispo 113, ll3nZl, 114,295n46, Pietro Antonio 160
5s7 Pietro de Lucca 79, 85
Pavone, Francesco 57 6nll9 Pietro di Ugolino de Vieri 179
Pazzi, Maria Maddalena de' (sóror Maria Madda- Pighini, Sebastiano, cardeal 251
iena) 449, 578, 578nlZ7, 579 Pilar Hernandez Aparicio 465n4
Pedraza, J. (frei Juan de Pedraza) 385n75 Pinamonti, Gio. Pietro 450n40, 491,491n31 en3Z
Pedro de Tôledo, vice-rei 112 Pinci, Gio. Pietro 85, 85n42
Pegrari, M. 353ni5, 543n17 Pincino (Pinzino), Francesco 258, 258n28, 273
Pelagatti, Lucia 338n26, 473nI Pini, G. 4.457n55
Pellegrini, Bartolomeo 85, 166 Pinnas, Baldassarre 626nll
Pellietier, M. 572n107 Pinto Crespo, Virgílio 756n74
Pefr a, Francisco 191, ZZ7, 727 n6, 234, 23 5, 7.38, Pio lV, papa ll4, 115, lZ1, 123n49, 147, 149, 16l,
259 n29, 263, 263n44, 363, 37 0, 394, 394n61, 167, 168,171, 178, 178n15, 203,261,261n37,
399,399n74, 409 303, 487n18, 504, 587
Percoto, Pietro 201n44 , Pio V, papa, santo (Michele Ghislieri) 65.70,104,
Pereira da Silva, Antonio 479n18 104n51, 109, 114,118, 121, 123n49, 137 , 140,
Peretti, Felice, ver Sixto V, papa 147,146, t48, t66,167, l7t, t75, t76, t77,
Perez de Ayala, Martin Z9L,293n38 e n40 178,179,181n23, 182, 183, 184, 184n34,185.
Perez Garcia, Pablo 361n45 88, 191, t9Z, 203, 207, 208, Zt6, 234, Z5t,
Perez Villanueva, Joaquín 503n6 255, 257 , 257n76, 258, 761n37, 267, 274,
Perez, Fernando 477nll Z9Z, 292n3 5, 294, 299, 302n5, 342n39, 3 58,
Pergola, Bartolomeo 539, 539n2 366,382, 466, 466t7 , 467 , 469n19,485ni3,
Peri, Marco 378n4 487n18, 490, 533, 557, 578, 612
Perini, L. 73n9,394n60, 501n1 Pio VI, papa 155n155
Perino de Arezzo, Gregorio 205n57 Pio, Giovanni Michele 557n38
Perouas, Louis 547n30 Piozza-Donati, Marie-Jeanne 366n69, 367 n73
Perrone, Lorenzo 80n29, 86n46 Piras, Giuseppe 565n84
Perry, M. E. 597n42 Pirnat, A. 438n11
Perseghina, Marietta 397150 Pirri, P. 448rr29, 449n35
Perusco, Giovanni Battista 447 Piselli, Clemente P. 530n47
Pesci, U. 294n42 Pissavino, P. 213n1
Peters, Edward M. 399n73 Pitta, Antonio del 576n118
Petrarca, Francesco 79, 84n41 Pizarro, Francisco 649
Petri, H. 83n38 Pizarro, Maria 439, 441, 461
Petrocchi, M.427n16 Plaisance, M. 359n38, 360n40
Petrucci, Pier Matteo 454, 454n49 Pola, Agostino 222
Peverada,Enrico 310n4, 378n2 Polacco, Giorgio 458n59, 460, 460t62
Peyronel Rambaldi, Susanna 213n1,346n49 e Polanco, Juan de 146, 146n177, 487n19, 542,
n51 544, 544n18, 546, 547, 557 n55, 558n61,
Pezzana, Niccolo 450n40, 49ln3l 560n70 e n77,570,585, 600, 600n55, 605,
Pfeilschifter, Georg 288n21 607, 635
Philippart, Gq 644n57 Pole, Reginald, cardeal 100, 165,

fribunais da Consciência
r-"
675

l8Z, I85,235n27, 250,273, 287,290, 554, Rampazetto, Francesco 514n1 I


554r.45 Ramusio, Gian Battista 584
Poletti, Andrea 411n19, 581n3 Ranft, Patricia 5l4nl2
Polgar, Laszlo 601n58 Ranialdi (ou Rinaldi), Girolamo 89n10, 160
Poloni, Francesco 279n26 Rapolla, Diego 213n3
Polverini Fosi, lrene 74n10 Raponi, Nicola 171n1
Ponnelle, L. 546n75 Ratti, Achille 307n70
Pontio, Paciíico 5l5nl4 Rebiba, Scipione, cardeal lZ3 n48, 174, 14 5 n174,
Ponzinibio, Francesco 394 148, 148n133, 185n39, 186n44, 204, 275115,
Portone, Paolo 382n17 297n49,381,382, 384
Poschmann, Bernard 283n6 Reeves, Marjorie 440n15
Possevino, Antonio 146, l46nlZ7, 477, 561, Reghezzi de Tabia, Giovanni Vincenzo 470,
561n7 3, 570, 590, 591, 591n71, 592, 592n25, 470n2I,471
593, 593n29, 594, 595, 598,615 Regino, Girolamo 485
Possevino, Gian Battista 316n75, 317 r'27 Regnault, Valère (Reginaldus) 244
Postel, Guillaume 132, 132n75,443 Regozza, Giovanni Battista 517n19
Poutrin, lsabelle 436n6, 5l2rt4 Reichert, B. M. 147n131
Pozzi, Giovanm 379n39, 358n34 Reinhard, \Tolfgang 337 n22, 61ln103
Premoli, M. l5Znl48, 482n4 Rem, Jacob 566n86
Preto, Paolo 139n101, 203n50 r Renata de França, duquesa de Ferrara 87, 88, 121
Priori, Giacomo 219 Renato, Camillo (pseud. de Lisia Fileno), ver
Priuli, Matteo 297 n49, 3l4nZl Ricci, Paolo
Pfiuli, Michele 314n21 Renda, Francesco 63n5, 107n6
Prodi, Paolo 109, 109n9, 140n107, 188n51, Ressa, Alessandro 85n41
309n2, 313n17, 322n7, 328n32, 335nI7, Reusch, F. H.487n18, 497n48
336n19 e n21, 338n30, 352nI5, 358n35, Rhegius Urbanus l95nt9, 286
361n49, 3 64, 3 64n58, 424n8' 469 nI9, 47 4n3, Ricard, Robert 567n76
559n67, 5791128, 626n9 Ricasoli, Pandolfo 454
Ptolomeo, Claudio 82, 361n48 Ricci, Giovanni, cardeal 359
Puccioni, Francesco 524 Ricci, Paolo (Renato Camillo) 91, 159, 159n10
Puga, Vasco de 604n69 Ricciardi, Pietro Martire 407n84
Puggioni, Giuseppe 313n15 Riccio, Raífaele 592n27
Pulzatti, Sante 219 Righi, Carla Zl6nI3
Putelli, Romolo 311n8 Rinaldi, Ottaviano 392n48
Quaglioni, D.202n46 Rinuccini, Gio. Battista, arcebispo 353n17
Quinones, Francisco áe 548, 567 Ripa, Cesare 97, 97 n32, 437, 593n28
Quirini, Pietro 444 Rispoii, Alfonsina 771n6, 436
Quirini, Vincenzo 75,8I, 562 Rizzardi, Gian Maria 514n9
Rabus, Ludwig 200 Rocca, Domenico 159n8, 555n49
Raffaele de Como 176 Roccâtagliata, Benedetto 465n4
Raggi, P. 403n85 Rodolfo Pio de Carpi, cardeal 270
Ragusio, Bartolomeo 370n82 Rodriguez, Cristóvão 65, 66, 67, 68, 69, 545, 612
Ragusio, Simone 370n82 Rodríguez, Simon 552
Rainaldo, Giovanni Battista 424n8 RodriguezOcana, Rafael 350n3
Rainaldo, Oderico 256n24 Rogna, Luigi 535n7
Rambalducci de Verucchio, Francesco 265n49 Romandi, Pasquasio 67lnl23
Ramirez, Juan 503n5 Romano, Francesco 230n15

Índice Onomástico
r"-
676

Romano, R. 127n61, 360n41 Salomoni, Angiolo 1 15n30


Romano, Tommaso (Thomas Romanus) 600, Salvago, Agostino, arcebispo 170
600n52, 607n82,636n33 Samaritani, Antonio 610n94
Romei, Giovanna 354n19 Sanchez Ortega, Maria Helena 381n112
Romeo, Giovanni 1 13n19, 210n69, 758n27, 761, Sanchez, Thomas 469n19
Z6In35, 265n50, 795n46, 371n86, 383n21, Sandys, Edwrn 242
397 n67, 407n8, 408n14, 412n23, 4ZZIZ, Sangallli, Maurizio 330n40
436n7 ,469n18 Sanotto di Correggio, Pietro 230n14
Roncaglia de Sarteano, Marcello 324n18 Santoro, Giulio Antonio, cardeal 126, 166, 179,
Roncagliolo, Secondino 306n 19 l79nl7, 187n46, 396, 396n67, 464
Rosa, Mario 553n42, 601n60, 611n102 Sanuto, M. 73n8
Rosi, Michele l3ln72, 407 n9 Sarpi, Paolo 120, 127, I27n6l, 128, lZ9, 154,
Rossi, G. 326n24 154nl5l e 1152, 157, l57nl, Z4Z,287,290,
Rossi, Paolo 74n12, 9lnl5, 764n47, 338n28 291, 307, 307 nZl, 343, 343n41, 474
Rosso, Francesco 80n28 Sarrin Mora, Adelina 504n13
Rosso, Pietro 104n50, 209n67 Sartorelli, Clemente lZ5
Rotelli, Rafíaella 85 n43, 27 6n19, 3 5I n9, 3 5 ZnlO, Sauli, Alessandro 358
47 5n6 Sauli, Caterina 272
Rotondò, Antonio 89n10, 122n45, IZ7n6l,178 Savelli, Giacomo, cardeal, 124, 345
n63, 159n6 e n10, 16Qnll, 161n15 e n16, Savonarola, Girolamo 90, 192,390, 445,604
208n64, 764n47, 3 51n6, 539n2 Sbrana, C. 313n14
Rotterdam, Pierre 386n28 Sbriccoli, Mario 98n35, 396n65
Rowland, Robert 386ú9 Scaduto, F. 449n32
Ruífinelli, Venturino 176n10, 587n14 Scaduto, Mario 62n4, 65ú, 66n9, 69n16,
Ruffini, Francesco 241n1 146nlZ7
Ruggeri, Bonifacio 9lnl3, 9 5n24 Scaglia, Desiderio 383, 409, 414, 415,429, 458,
Rurale, Flavio 26 2n3 8, 308n72, 3 ZBn3l, 4 4 6nZ 5, 460,46t
449n31 Scanaroli, Gian Battista 408, 408n11
Rusconi, Roberto 310n6, 488n21, 553n42 Scandella, Domenico 346
Russo, Carla 374n15, 583n5 Scaramella, Pier Roberto 78n 18, 1 13n 18, 150n142,
Saba,Agostino 444n20 295n45, 409n14, 464n3
Sabbatini, Domenico Z75nl4 Scarpetta, Giovanni 360
Sabean, David \Tarren 3l3nl7 Scevolino, Gian Domenico 140
Sacardino, Costantino 6l2nl04 Schilling, Heinz 3 37 nZZ
Sacchini, A. 449n35 Schmuckher, Aidano 152n145
Sacchini, Francesco 69n16, 569, 583n4 Schneider, Gerhard 351n8
Sadoleto, Iacopo, bispo de Carpentras e cardeal Schreiber, G eor g 29 0n27
103,294,294n43, 438 Schreiner, Karl 473n3
Sahagun, Bernardino de 403, 604,605 Schurhammer, G. 569n95
Saitta, Armando 213n1 Schutte, Anne Jacobso n 460n62, 464ú
SaÌa-Molins, Lurs 227 n6 Schütte, J.F.574nll3
Salato de Amalfi, Annibale 206n60 Schwartz, Reinhard 474n3
Saldanha de Setúbal, Antonio 209n65 Schwarz, Brigitte 266n51
Salimbeni, Fulvio 405n1 Sciuti Russi, Y. Zl3nZ
Salmann, J. 406n5 Sclopis, Federico 231n18
Salmerón, Alfonso Z9l, 547, 554, 555, 555n48, Scoto, Girolamo 81n30
557, 560n72 Scotti, Bernardino, cardeal 204

Tribunais da Consciência
r
677

Scotti, Giovan Battista l59,Z3lnl9,555n48 e Sonnino, E. 313n14


n49 Soranzo, Vittore, bispo 139, 140, 165, 166, 182,
Scotti, Tommaso de Vigevano 178, 181, 181n23 183, 185, 189,195n21
Scullica, Têofilo 178 Sorgia, G. 107n6
Scupoii, Lorenzo 486 Sorrentino, A.358n34
Sebastiani, Ltcia 73 4n73 Soto, Domingo de 257, Z5Znl3, 416
Sega, Filippo, bispo 652n7 Sousa, Antonius de 191n10,263n47
Segneri, Paolo jr 514n9 Sozzini, Lelio 351, 351n6
Segre, Renata 304n11 Spener, Philipp Jacob 454,517
Seguenny, A.99n39 Spessato, Giovanni Antonio 338,338n76, 473
Seidel Menchi, Silvana 78n19, 83n39, 200n36, Spiera, Francesco 198, 198n31, 445
701n43,790n76, 497n47 Spierenburg, Peter 196n23
Seitz, Lienharr 313, 617 Spinola, Andrea 513, 51,4
Senesi, Paola 413n25 Spinola, Matteo 317
Serafino de Fermo 434,442,485 Spinola, Publio Francesco 142, l42n1l5
Serchi de Certaldo, Maddalena 431n37 Sprenger, Jacob 390
Serguidi, Vito 345 Stabile, G. 309n1
Seripando, Girolamo, bispo 113, 189, 201, Stancaro, Francesco 84, 84n40, 107n46
20ln4l, 249n3, 290, Z9l, 295, 295n46, 312, Staring, Adrianus 130n69
4ZZ , Starrock, Roger 649n2
Sermartelli, Bartolomeo l52nl46 Stella, Aldo 104n51e n52, 138n99, l4Znl13,
Serrano, M. 293n38 143n170, 186n45, 187 n49, 411n18, 57 8n126
Servet, Miguel (Michele Serveto) 82, 97, 100, 193, Stella, Tommaso, bispo, rllgo Todeschino 158,
194, 197, 198,361, 467 158n3,162
Sestan, Ernesto 474n5 Storti, G. 369n78
Sforza Pallavicino, Pietro 353n17 Straub, Luca 641n43
Sforza, G. 129n65 Strauss, Jacob 285n15
Sibilio, Vincenzo 557 n58 Stringari, Girolamo 306n15
Sicrofí Albert'4l 4n4, 569n97 Strozzi, Alessandro 123
Signorelli, M. 637n35 Stumpo, E.5lZn4
Signorotto, G. 213n1, 579n46 Stürmer, ìíolfgang 283n5
Simancas, L. 352, 352n14 Suarez, Francisco 418,478n14 e n15,497
Simon, Pierre, bispo de Ypres 438 Sulpício, Severo 650
Simoncelli, Paolo 159n9, l7 5r.7, 19 5nZI, Z7 ln6, Susta, Josef 171n47
567n88 Szczucki, Lech 169n38
Simone di Simone 209,210,210n68 Szepessy, T. 169n38
Simoneta, G. M. 192n15 Tabacchi, Giovanni Battista 219
Sinistrari, Ludovico (Ludovicus M. Sinistrarius) Tacchi Venturi, P. 95n23, 109n10, I48n134,
412, 412n22,517n18 166n31, 175n7, 545n23
Sirleto, Girolamo 177 nl3 Taddei, Ilaria 335n14
Sixto V papa (Felice Peretti) 109, 140, 168,175, Tallon, Alain 162n19, l63n2l, 170n42
176, L76n8, 178, 182, 256,257 ,258n77 ,767' e n43
Z7l,274, 278, 396, 466, 491n30, 503n7 , 532, Tamassia, Nino 305n12
565 Tamburini, Filippo 297n34
Slack, Paul 305n13 Taraceni, Giovan Carlo l44nl2I, 274n13
Solíaroli Camillocci, Daniela 72n4, 264148 Târilli, Domenico 381, 381n13
Somasco, Gio. Battista 106n3 Tâssi, Anna Maria 379n6

Índice Onomástico
r "'
678

Tasso, Tôrquato 535, 535n7 Trotta, Salvatore 613


Taurisano, l.179n17 Trotti, Ercole 219
Tavelli, Giovanni 310n3 Trusen, !íinfried 98n36, 283n6
Taverna, cardeal 508 Tully, James 305n13
Taviani, Fernando 356n25, 357 n78 Turato, Giovanni Angelo 453n46
Tebaldini, Nicolo 6l2nl04 Turchetti, M. 100n41
Têdeschi, John 147 nl3l, 190n5, 200n36, 759 n29, Turchini, Angelo 313n16, 338n29, 340n34,
300n2, 372n88 e n89, 383n20, 386n79, 347 n53, 3 50n2, 3 5 5n23, 403n85
399n72, 406n7, 407n 10, 409n16, 4Z6nl3, Turlino, Damiano 502n3
458,458n58, 460n62 Turrini, Miriam 474ú, 596n39,
607 n82
Tellechea ldigoras, Ignacio I. 187n48 Turtas, Raimondo 543n15,545n22 e n24,559
Tender, Thomas 284n9 n66,583n4, 6Z6nll
Tenenti, Alberto 466n8 Tusa, Matteo Maria 454n48
Teodósio, imperador 99 Tuzzi, C.363n57
Teofilo de Gattinara l47nl3l Tyndale, \üüilliam 285, Z85nI4
Têrpstra N. 160n11 Uberti, Cipriano 175n6
Têrtulliano, Quinto Settimio Fiorente 357 Ugolini, Zanchino 399
Thomas, Keith 305n13 Ugoni, Agapito 464n2
Thomas, !íilliam 7 5n9, 84, 84n41 Uranio, Eusebio 200
Thompson, E. P.440n15 , Urbani, Prospero, frei 214n7
Tiepolo, Paolo 132, 359n36 Urbano VII, papa (Gian Battista Castagna)
Tinti de Lodi, Giacomo, frei 459n60 t75ú,297n49, 464n3
Tiraboschi, Girolamo 309n1 Urbano VIII, papa 427, 435
Todorov, Tzevetan 64n6, 403n87 Valadés, Diego 563, 564, 564n79, 565, 587
Tognetti, Livio 425n9 Valdes, Juan de 74, Il2, 207, 250, 256, 270,
Tolomei de Osimo, Giovanni Maria 519 77016,447,557
Tomas y Valiente, Francisco ll9n38,247nl Valência, Martin de, írei 550, 573
Tomasi Velli, Silvia 355n74 Valenti, Filippo 107n5, 162n18
Tommasi, Francesco 306n17 Valentin, Jean-Marie 601n58
Tommasi, Girolamo 251n9 Valentini de Coira, Filippo Z94n4l
Tômmasini, bispo 617n116 Valentini, R. 83n37
Torelli, Egidio 610n96 Valeriani, Marchesino 765, 265n50
Toribio Bonavente, r,'ulgo Motolinia 586, 605 Valerio de Bolonha Zlln?]
Torre, Angelo 324n17 Valerio, Adriana 444nZl
Toschi, Paolo 356n25 Valier, Agostino 514
Traina, R. I I ln 14 Valignano, Alessandro 574, 574nll3
Tranquille, P.457ú6 Vallainc, Fausto 578n127
Trebbi, G.617n116 Valle, Claudio de 179
Trechsel, Gaspar 82n35 Vannini, Caterina 329, 329n36
Trevisan, Giovanni 709 t6 5 Vannino de Empoli 482n3
Trevor-Roper, Hugh 390 Varano, Giulia 444
Trexler, Richard 355n22 Vasconi, Antonio 219
Trigona, Lucio 645 Vasto, Alfonso d'Avalos, marquês de, governador
Trimarchi, Girolamo, ftei 576n35 de Milão 94,95n23,102, 103, llZnlí
Trivisano, Tommaso (T. Trivisanus) l43nll9, 253 Vauchez, A.97nl6
nl9, 263n45, 673n7, 677 nl4 Yazquez, Dionisio 545
i
l Trivulzio, Antonio, cardeal 164n27 Vazquez, Janeiro Isaac 564n79

:d.
Trit unais da Consciência
* ."
lF,.

679

Veit, Dietrich 501n1 Vives, Juan Luis 594, 609n91


Vekene, Emile van der 128n63, 399n72,401n82 Vogel, C. 283n6
Venard, Marc 103n49, 294n43,313n16, 547n30 Volcker, Erasmo 585
Venier, Girolamo ZOl, 201n44, 7OZn45 Volpe, Francesco 312n12
Venturi, Girolamo 365n62 Volpi, Benedetto 351n5
Venturini, Leonardo 526n35 Voltaire (François-Marie Arouet) 242
Verallo, Girolamo 130, 137n93 Volterrani, Caterina de Ponsacco 428,4Z8IZZ,
Vereecke, Louis 245n5 429
Verga, E. ll9n37 Vouet, Simon 516n15
'!íalker
Verga, Giovanni 373 Bynum, Caroline 442n16
Vergerio, Pier Paolo, bispo (Atanasio) 139, 146, !íalker, D. P.421n1, 426n14
'!7appler, Paul 99n38
146n130, 158, 164, 165, 165n78, 167, 181,
'!7eiss, Nathan ael 9
198,200n37,3lZ 4nTl
Verhelst, D.255nZl \íhitehead, Lydia 285n11
Vermigli, Pietro Martire 92, lZ5,147 !íicki, P. J. 552n39,560n71
'!7ier,
Vernazza, Battistina 74, 74nll Johannes 395
Vernazza, Ettore 73, 74, 7 5, 78 !7illeke, B. H. 565n83
'Wimmer, Ruprecht 601n58
Verstegan, Richard 193
Vex, Lorenzo 201 Wolfius, J. 200n37
Vezzini, L.559n67 Wool{ Daniel 305n13
Vicente de Paulo, são 481 Wyclií John 168
Vida, Girolamo 322 Xavier, Juan 62, 65n7, 69
Vignerie, Jean de 607n82 Xavier, Francisco 546, 553, 585, 607
Villani, Pasquale ll3n}l, ll5nZ7 Yoshitomo, Okamoto 57 5nll5
Villani, Stefano 568n93 Zagorin, Percz 263n46
Villanueva, Joaquin Perez Il9 n38, 247 nl Zambonati, Carlo 722
Vinay, V. 540n5 Zampini, Pier Luigi 324n17, 379n6,468n13,
Vincenzo di Franco 464 630n21
Vinta, Francesco 123 Zanelli, Giuliana l40n l4
Violati, Pietro 220 Zanetti' Agostino, bispo 103, 160
Viotti, Erasmo 340n33 Zannettini, Dionisio, urlgo Grechetto 163
Viotti, Seth 340n33 Zardin, Danilo 378n33, 353n15
Vique, Diego de 371 Zarlari, Francesco 275, 226
Viret, Pierre 335 Zarri, Gabriella 259n30, 433n1, 434n7, 436n6,
Virgilio Marone, Publio 595n34 458n59, 460n67, 46h64, 49 5n46, 541n9
Visconte de Tabia, Pietro 301 Zecca, Pellegrina 417 n5
Visconti, Carlo 118 Zemon Davis, Natalie 207n63
Vitale, Gaspare 4l7nZ3 Zilettus, F.260n32
Vitoria, Francisco de 543,544 Zolli, P. 553n41
Vivaldi, Agostino 639n37 Zorza, Bernardino della 702, 202n45
Vivaldo, ourives de Siena 27 5, 776, 276n16,277 , Zotto, Marino 235n26
277nZl,475 Zuane di Nicolò 272, 272n8
Vivanti, Corrado 127 r'6l, I 57 nl, 249 n2, 79 1 n3l, Zumarraga, Juan de, {rei 549,551
307nZl,360n41 Zwingli, Huldrych 299, 402

Índice Onomástico
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lmagem daHaeresia, de C. Ripa, Iconologta, Roma' 1593


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**f*rra:s€E*rr:i::igï?***::ãar;o,"u"utl.rìãni,r'fr"r.

2. Socictas-/esu totoOrbeDíffusalmpletPropheriamMalachiae, da lmago PrimísaecuLiSocieraris-/esri, 1640, t. I, p. 318.


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1. OrbitaProbitatís, cìe J. David, Veridicas Christianas, 1601


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Lorenzo Lotto, A Queda dos Hereges, 1524, particular. Trescore (Bergamo), (Jratório Suardi
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':8,'4:,: É*iil; ,.*

5. grafite de um prisioneiro dos Cárceres da h-rquisição de Palermo, século XVIÌI. Palermo,


Semper Tacui,
Cárceres da Inquisição, Cárceres Filipinos.
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tC&ti/.:z3t e. j'* j".:rr :.Í'ra:=;h. I llrl'.; ite't

6. O Exame de Consciêncía, dos Exercitia SptrítuaLía A. lgnatíi LopLae, Roma 1663.


7. Um írontispício de manuai cla Ìnquisição (Sacro Arsenale, C)vero Prattíctr deLl'Officío delLa S. Inquìsi7íone
Ampliata, Roma, 1639).
8. Escola florentina, terceirâ cena cla Históría de Antonío dí Giuseppe Rinaldeschi ("Joga o esterco na cara da
Santa Virgem, imprecando, e íoge na vila"), 1501. Florenca, Museu Stibbert.
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9. PubLícação das Sencenças Pronuncìadas peLo Tnbunal da Inquístçao, ilustração do século XVll. Milão, Coleção
Cívica Bertarelli.
lA. Amestrar os lgnoranres, de Giovanni Battista Romano (ou Eliano), Doctrina Christiana, Roma, 1587.

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11. Antoon van Dyck, Uma Bruxa emPaLermo, cerca de 1625.


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12. Giovan Francesco Barbieri, dito o Guercir"rct, Cttbeça eTorso de uma Brzxa Sinriesca. Vindsor, Biblioteca Real
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13. C iovan Francesco Barbieri, dito o Guercino , Uma Bruxa Condenada pelo Tribunal da Inquisiçao, cerca de 1625.
14. Domenico Beccaftrmi, Cena de Tortura. Paris, Museu clo Lourre, Departamento deArtes Gráficas.
15. Giovan Francesco Barbieri, clito o Guercino, Srio Pedro Martír, 7647. Bolonha, Pinacoteca Nacional.
16. Carlo Bonomi. O Anjo da Guarda, final da terceira décacla do seculo XVII. Ferrara, Pinacoteca Nacional
do Palazzo dei Diamenti.
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17. E. von Schayen, Os Poderes Mrigicos dos Feiticeiros e do CLero e Dú+iidas do Médíco. ex-voto do médico e íilósoío
de lmola Giovan Battista Codtonchi (1564.1626). Ìmola, Pinacoteca Municipal.
r

18. Giuseppe Maria Crespi, A Comunhão, cerca de Dresden, Staatiche Kunstammlugen, Gemáldegalerie
Alte Ìv{eister.
r

19. Giuseppe Maria Crespi, Sao Joao Nepomuceno Con/essa a Ratnha da Boêmia, cerca de 1740. Turim, Galeria
Sabauda.
r

20. Giuseppe Maria Crespi, A Missrio, cerca de 1730-1740. Heidelberg, Kurpíâlzisches Museum.
21. Aureliano Milani, A Missão, segunda década do século \iII. Bolonha, Coleção MolinariPradelli
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22. Jircques Callot, Os Mrírtires dolapao, cerca cle 1ó30. Nancy, Museu Histririco Lorrain
TítuLo Tnbvtvis da Corcciêncis. Inquísidores,
Confessores, Missiondrios
Autor Adriano Properi
Tradutor Homero Freitas de Andrade
Produçã.o Marilena Vzentin
Projeto Grdfico Marcelo Masuchi
Liris Tribuzzi
Capa Nívea Pascoaloto
Editoraç,lo Eletrôniu Liris Tribuzzi
Bruno Tènan
NÍvea Pascoaloto
Reuísao Técnica e de Traduçao Adone Agnolin
Reeisão àn Texto Marilena Vizentin
Revisão de Protas Hermelino Barboza
MariÌena Vizentirr
Dívulgaçõ,o Regina Brandâo
Cinzia de Araujo
João Argentin Neto
Bárbara Côrtes
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FoÍmdto 18x26cm
Tipologíd Goudy Old Style
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