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Adriano Prosperi
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l' lk'L'J,1\·l'i, J'l'ílllr,ll:-. '11:-.tllrtll.L: LÍfico:-. que,
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t,,rr,,,11111, L·,t1mul,, p,1r.1 ,, apn>lundamen-
TRIBUNAIS
DA CONSCIÊNCIA
[§JJ UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente Rubens Ricupero
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Antonio Penteado Mendonça
Chester Luiz Galvão Cesar
Ivan Gilberto Sandoval Falleiros
Mary Macedo de Camargo Neves Lafer
Sedi Hirano
TRIBUNAIS
DA CONSCIÊNCIA
Inquisidores, Confessores, Missionários
Tradução de
Homero Freitas de Andrade
Apresentação de
Adone Agnolin
Copyright ~ 1996 Giulio Einauldi editore s. p.a., Torino
Prosperi, Adriano .
Tribunais da consc,~noa inquisidores., confessores, mission6rios /
Adriano Pr01rcri; traduçto de Homero F~itas de Andrade. - SAo Paulo:
Editora da U nivcrs,dndr Je SAo Paulo. 2013.
70<4 p .; 26 cm.
CDD 272.2
PRÓLOGO - A EXPERIÊNCIA CALABRESA .................. .. ..... .... ... .... ........... ............. 61
I - A FÉ ITALIANA .............................................................................................. ... 71
II - O NASCIMENTO DA NOVA INQUISIÇÃO ...... ..... .. ..... .... ....... ........... .. ... . ......... 87
III - INQUISIÇÃO ROMANA E ESTADOS ITALIANOS .. ... ...... ... ................. .. ... ........ 105
1. O Processo Conciliar de Gionanni Grimani.. .. ....... ...... ... ... .... ....... .. ........ ..... ... .... 167
2. O Caso de Agostino Centurione..... .. ..................... ........................................ ...... 169
V - 0 DESENVOLVIMENTO DA CONGREGAÇÃO DO SANTO OFÍCIO ................. 173
VI - A CRUEL INQUISIÇÃO ........... .................. ..... ...... ... .. ............ ............ ..... .... .... 189
,\ \ VII - O ÂMBITO INQUISITORIAL: OS FUNCIONÁRIOS ... ........ ............. ..... ........... 213
\. , • [ VIII - O ÂMBITO INQUISITORIAL: AS REGRAS ............. .... ........................... ..... ... 225
10
PREMISSA - QUESTÕES DE CONSCIÊNCIA .............. .... ......... ... ... ... ...... ........ ......... 241
IX - INQUISIDORES E CONFESSORES: PRESCRIÇÕES .. .. ....... ......... ... ...... ......... ... . 247
X - INQUISIDORES E CONFESSORES: DESCRIÇÕES .. .. .. .... ...... .. .. ... ... ... ..... .......... . 269
XI - A CONFISSÃO NO CONCÍLIO DE TRENTO ... ........ .... ... ...... ........ ......... ........... 281
Xlll - RITOS DE PASSAGEM , PASSAGENS OBRIGATÓRIAS .. ......... ... ... ............. ....... 309
1. O Teatro ..... .................... ...................... ... ................ ........ .. ................... .. ............ .. 354
2. A Blasfêmia . .................... ... ........ .................................. ... ........... .... ........ ....... .. .... 360
XVII - CRER EM BRUXAS: BISPOS E INQUISIDORES DIANTE DA "SUPERSTIÇÃO" 377
XVIII - PEDAGOGIA INQUISITORIAL ......................................... ..... ... ..... .... .. ......... 405
XIX - UMA INQUISIÇÃO "PASTORAL"? ...................... ... ........... ..... .. ...... ... .. ..... .. ..... 415
XX - INQUISIDORES E EXORCISTAS ........................... ...... ....... .. .. ..... ..... ... ... ........... 421
XXI - SANTIDADE VERDADEIRA E FALSA .................. ... ............... .... ..... .. .. ............. 433
XXIII - FORO INTERIOR, FORO EXTERIOR ............ ........ ................ ..... ...... .. ...... .. ... 473
XXV - INQUISIDORES E CONFESSORES: A S0LLICITATI0 AD TURPIA .... ...... .. ... ... 501
Sumário
BREVE APRESENTACÃO
, DO
AUTOR E DA OBRA PARA
A EDICÃO
, BRASILEIRA
A presentar -:'"dri~no Prosperi e_~ livro em questão para o público brasileiro é tarefa de
.f""\.grande sat1sfaçao e responsabilidade, mas não, exatamente, árdua. Isto porque, apesar
de tratar-se de autor de importantes textos historiográficos cuja densidade foi-lhes sempre
intrínseca, sua capacidade analítica e sua escrita (cristalinas e, ao mesmo tempo, elegantes)
sempre tiveram o privilégio de conseguir na empreitada sem fazer emergir ou pesar, em
seus trabalhos, a profunda complexidade histórica e historiográfica enfrentadas. O fato é
que a elegância da respiração literária, que tece as análises propostas, representa sempre
a garantia e a dádiva de uma leitura prazerosa, além de nos oferecer a ímpar riqueza de
sua própria interpretação historiográfica. Não é por acaso que o autor ganhou, também,
com sua obra, vários concursos nacionais de literatura, na Itália, como o Prêmio Nacional
Literário, em Pisa, em 1997, e o Prêmio Literário Viareggio, em 2009, na Seção Ensaios,
além de ser membro da importante Accademia Nazionale dei Lincei.
Por consequência, se nos trabalhos do historiador emerge sempre uma extra-
ordinária erudição, esta, surpreendentemente, pode ser acompanhada com um passo
de leitura solto, leve, prazeroso, apesar, muitas vezes, da complexidade dos percursos
historiográficos confrontados ou propostos: estes, enfim, encontram, em sua escrita,
o feliz e equilibrado conúbio entre profundidade da análise e extraordinária agilização
do acesso para o leitor: um verdadeiro convite à leitura!
Por tudo isso, se a apresentação do autor não se configura como incumbência
árdua, todavia assume as características de uma tarefa de grande responsabilidade. E
isto porque se trata de um percurso e de uma obra bastante consistentes e relevantes
no panorama historiográfico contemporâneo: justamente por isso, causa certo estra-
nhamento o fato paradoxal que um historiador como Adriano Prosperi precise, ainda,
de uma apresentação para o leitor e historiador brasileiro. Ainda bem que, pelo me-
nos, junto a esta edição de Tribunais da Consciência, o esforço editorial brasileiro está
começando a corrigir o descompasso, abrindo algum espaço para outras importantes
obras do autor, a começar pela edição de Dar a Alma 1 e pela publicação do capítulo:
"As Missões no Brasil Vistas de Roma", no livro Contextos Missionários : Religião e Poder
1. Original: Dare l'Anima: Storia di un Infanticídio, Torino, Giulio Einaudi editor, 2005. Edição brasileira: São
Paulo, Companhia das Letras, 2010.
14
2. Livro publicado pela Hucitec/Fapesp, São Paulo, 2011, resultado das contribuições apresentadas por ocasião do
Congresso Internacional - do qual participou o próprio Adriano Prosperi - organizado pelo Núcleo "Religião
e Evangelização", no interior do Projeto Temático "Dimensões do Império Português", do Departamento de
História e da Cátedra "Jaime Cortesão" FFLCH-USP, projeto apoiado pela Fapesp.
3. Publicada na Itália pela editora Laterza, Roma/Bari, 1991, e traduzida em língua portuguesa pela editora
Presença (Lisboa, 1995).
4. Milano, Feltrinelli, 2000.
É O caso, ainda, de uma obra como Dare l'Anima: Storia di un Infanticídio (Prêmio
Nacional Literário, Pisa 1997)5, à qual o autor, segundo quanto nos revelou, dedicou
quase duas décadas de indagações, partindo de documentos de arquivo relativos a
um processo por infanticídio, intentado em Bolonha, em dezembro de 1709, contra
a jovem e pobre mãe Lucia Cremonini: além da atenção para com a protagonista
central do processo, a indagação proposta pela obra busca realizar a ambição de uma
tentativa de compreensão histórica que possa, de algum modo, superar o limite do
olhar de um único observador, até procurar entender o que é possível conhecer de
quem (como a protagonista) permaneça às margens de uma sociedade ou, ainda, de
quem ingressa no tempo da vida pelo brevíssimo espaço de um nascimento, subita-
mente seguido pela morte (o filho, vítima do infanticídio): e, neste caso, o trabalho
envereda, entre outros percursos, numa extraordinária análise relativa às doutrinas das
Igrejas - remetendo, muitas vezes, para além delas, até a Antiguidade - com relação
à alma, às disputas surgidas a seu redor entre diferentes contraposições religiosas ,
particularmente durante a Idade Moderna e no âmbito do surgimento e da afirmação
de sua nova concepção científica.
É o caso, finalmente, de um dos últimos trabalhos, Giustizia Bendata. Percorsi
Storici di un'lmmagine (prêmio Viareggio, em 2009, no âmbito Ensaios)6, mais uma
indagação historiográfica que procura alcançar, num outro plano, a proposta de tecer
a novidade de uma investigação que escape do objetivo tradicional de desenvolver-se
ao redor de um personagem central, mas, neste específico caso, possa efetivar-se, pelo
contrário, numa profunda análise das imagens da justiça, que, nessa viagem, manifesta
toda sua capacidade de sintetizar emblematicamente um rico patrimônio de emoções e
de valores, tanto dos indivíduos quanto das sociedades: um duplo emblema, aquele de
uma justiça vendada ou, ao contrário, caracterizada por um olhar agudo e previdente,
sintetiza os vários percursos e representações que a projetam e a expressam eviden-
ciando, em diversos momentos históricos, ora sua loucura, ora sua imparcialidade.
E a plasticidade da simbologia em questão pode ser colhida, justamente, na falta de
uma unilateralidade ou correspondência imediata entre as características que lhe são
atribuídas e os símbolos através dos quais se pretende representar essa justiça em suas
várias imagens, ao redor das duas representações guias, estreitamente necessárias con-
forme as diferentes abordagens interpretativas de sua função: a imparcialidade de uma
cegueira, da justiça vendada, e o olhar aberto e agudo, de uma justiça que deve enxergar
claramente e em profundidade.
Esses, dizíamos, são apenas poucos exemplos para acenar a algumas das ricas carac-
terísticas e propostas investigativas sugeridas e elaboradas pelo autor, sem levar em consi-
deração, ainda, algumas de suas obras mais clássicas, mas não menos estimulantes em seu
exercício historiográfico. Entre essas é apenas possível apontar, aqui, para a Storia Moderna e
5. Esse texto, como já apontamos,encontra-se traduzido finalmente em edição brasileira: cf. citação, na nota 1.
6. Torino, Giulio Einaudi editor, 2008.
Breve Apresentação
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Contemporanea 7 e Il Concilio di Trento: Una lntroduzione Storica8• Não por último, não podem
ser esquecidos alguns de seus trabalhos seminais e hoje já clássicos, como o artigo, publicado
em 1976, "America e Apocalisse: Note sulla 'Conquista Spirituale' del Nuovo Mondo" 9 ou
aquele de 1982, "'Otras Índias': Missionari della Controriforma tra Contadini e Selvaggi"10,
e outras numerosas e importantes contribuições, algumas das quais foram recolhidas, em
1999, numa preciosa edição de ensaios que leva o título de America e Apocalisse: e Altri Saggi 11.
Nessa direção e com esses trabalhos, enfim, emerge a proposta de uma circula-
ridade preciosa e atenta que pode ser encontrada nos vários percursos de nosso histo-
riador: isto é, a emergência de um contínuo ecoar do geral no detalhe e dos detalhes
nos contextos históricos gerais. Detalhe e contexto, particularidade e generalidade
se constroem, enfim, em uma dialética (histórica, não lógica, evidentemente) que faz
emergir uma contínua evocação e provocação entre os sujeitos históricos (os indivíduos)
e as orientações culturais de uma época (os contextos), mas também, uma renovação
no olhar distanciado do historiadpr.
Estas são, muito limitadamente, algumas das características, mesmo que muito
gerais, da escrita historiográfica de Adriano Prosperi, encontradas em algumas de suas
obras principais que, por sua relevância e seu interesse, sem dúvida acreditamos merece-
doras de maior atenção editorial no Brasil. E, para além dos trabalhos citados até aqui,
e do artigo, brilhante e precursor de uma nova perspectiva historiográfica relativa ao
problema da missionação americana, "America e Apocalisse" (América e Apocalipse),
ainda queremos destacar: Tra Evangelismo e Controriforma. Gian Matteo Giberti (1495-1543) ,
Roma 1969; Giochi di Pazienza. Un Seminario sul "Beneficio di Cristo" (escrito com Carlo
Ginzburg}, Torino, 1975; L'lnquisizione Romana. Letture e Ricerche, Roma 2003 ; e, entre
os últimos trabalhos: Eresie e Devozioni: La Religione Italiana in Età Moderna (coleção de
ensaios em 3 vols.), Roma, Edições de "Storia e Letteratura", 2010; junto com Vincenzo
Lavenia e John Tedeschi organizou o precioso Dizionario Storico dell'lnquisizione , Pisa,
Edizioni della Normale, 4 vols., 2010; e, enfim, seu mais recente trabalho, Le Ürigini
dell'lntolleranza, Roma/Bari, Laterza, 2011.
No que diz respeito à especificidade da presente obra, neste breve espaço e em
conclusão, vale a pena destacar que, como o próprio autor nos declarou , ela nasceu do
tema crucial da Missão, que representava, inicialmente, o coração do livro 12 • Mas, para
7. Obra em dois volumes, o primeiro dos quais escrito por Prosperi, com o subtítulo: Dalla Peste Nera alia Guerra dei
Trent'Anni, e o segundo, com subtítulo: Dalla Rivoluzione Inglese alia Rivoluzione Francese, escrito conjuntamente
com Paolo Viola. Torino, Giulio Einaudi, 2000.
8. Torino, Giulio Einaudi, 2001.
9. Publicado em "Critica Storica", XIII, 1976, pp. 1-67.
10. Em Scienze, Credenze Occulte, Livelli di Cultura, Firenze, Olschki, 1982, pp. 205-234.
11. Pisa/Roma, lstituti Editoriali e Poligrafici lntemazionali, 1999. Quatro são as sessões que recolhem estes en-
saios, e dão a medida, de algum modo, dos vários interesses historiográficos do autor. Trata-se de: l. Culture
dell'lntolleranza. La Missione; 2. La Giustizia; 3. Eresia e Folklore; 4. Misticismo, Santità, Immagini.
12. En passant, aqui, é com gratidão e satisfação que apontamos, a esse respeito, as generosas palavras que o pro-
fessor Adriano nos enviou, quando se abriu, inicialmente, a possibilidade de tradução dessa obra: palavras do
Tribunais da Consciência
17
desvendar a peculiar interpretação historiográfica desse núcleo central, o estudo teve que
deter-se, nas primeiras duas partes do trabalho, ao redor de dois temas , a Inquisição e a
Confissão, propostos como momentos de reflexão densos e prenhes de consequências
para entender melhor o projeto missionário da primeira modernidade, sobretudo em
sua revolucionária versão jesuítica.
A tese que se encontra na base do livro de Prosperi diz respeito à presença da
Igreja na Itália moderna, assim corno se tornou perceptível não somente em termos de
poder político, mas também em termos de conquista das consciências.
Não vamos nos deter, aqui, sobre as consequências implícitas, até nossos dias,
dessa embaraçosa presença da Igreja na sociedade italiana. Isto porque conseguimos
ver aqui realizada, com grande satisfação, a presente proposta da versão ed itorial da
última edição italiana da obra (realizada em fin al de 2009), na qual aparece um Prefácio
inédito proposto pelo próprio autor que atualiza o contexto e a perspectiva do traba-
lho, a dezesseis anos de sua primeira publicação, destacando justa e brilhantemente,
entre outras coisas, esse impacto social da Igreja no contexto político, social, cultural e
intelectual 13 da península. São esses, de fato, os frutos maduros e as consequências que
podem ser vistos desprendendo-se da profunda análise histórica da obra em questão.
O percurso proposto pelo volume reconstrói, enfim, com grande clareza e brilho
analítico, as formas e os tempos de afirmação da hegemonia católica na Itália depois da
ruptura da unidade religiosa europeia. A problemática é abordada através da an álise de
três tipos de presenças institucionais da Igreja: a Inquisição romana, primeiro tribunal
centralizado da península entendido como poder policial e repressivo; as novas fo rmas
próprio autor que revelam, de fato, a centralidade do tema da missão enquanto estímulo e ponto de partida
fundamental do estudo. Esses os termos: "[ ... ] e penso que para um livro como este meu você seria, de qual-
quer maneira, o historiador mais apropriado (especialmente no que diz respeito ao tema crucial da missão que
era o núcleo do qual nasceu o 1it1ro) do qual poderia desejar uma apresentação: e com o olhar de fora da Europa
e com a plena experiência direta da realidade italiana" ("[ ... ] e penso che per un libro come il mio tu saresti
comungue lo storico piu esperto [specialmente quanto ai cruciale tema della missione che era il cuore da
cui il libro e nato] dai quale potrei desiderare una presentazione. E con lo sguardo da fuo!i Europa e con la
piena esperienza diretta della realtà italiana").
13. Vejam-se, a esse respeito, as extraordinárias indicações relativas à manifesta vontade de marginalização (e conde-
nação), por parte dessa Igreja, das obras de Benedetto Croce e do historiador das religiões Raffaele Pettazzoni,
fundador e mestre referencial indiscutível da História das Religiões, em sua vertente especificamente italiana
(importante vertente de nossa própria formação historiográfica, diga-se de passagem). Além de compartilhar
esse comum destino de uma anacrônica discriminação junto à Igreja italiana da época, observamos todavia
como os dois historiadores laicos encontravam-se diferentemente orientados com relação à concepção da
autonomia da análise histórica em relação ao "objeto religioso": negada por Croce, apontada enquanto
possível e fundamental por Pettazzoni. A figura do historiador/ etnólogo Ernesto De Martino que se destaca,
justamente, entre os dois mestres é emblemática dessa diferença. De fato, foi curiosamente a influência do
próprio Pettazzoni que produziu a autonomização do percurso historiográfico de De Martino, com relação
à sua perspectiva de formação, influenciada por Benedetto Croce (responsável da primeira fo rmação do
historiador-etnólogo napolitano), em direção a seu novo percurso de indagação histórico-religiosa: passagem
que já estava se tornando evidente desde a publicação de Il Mondo Magico, de 1948, trabalho orientado pelo
antigo mestre, Benedetto Croce.
Breve Apresentação
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Tribunais da Consciência
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Breve Apresentação
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pelo brilhante texto que, finalmente, temos a satisfação de ver entregue ao público dos
historiadores e dos leitores brasileiros.
Adone Agnolin
História Moderna e História das Religiões
Departamento de História - FFLCH-USP
Tribunais da Consciência
PREFÁCIO 1
questão que se coloca no começo deste livro - lembrada há mais de dez anos - está
A entre as mais antigas e recorrentes na história da Itália: quais seriam, as razões
históricas da hegemonia da Igreja de Roma sobre a sociedade italiana? Ela foi colocada,
entre outros, por Benedetto Croce em sua Storia dell'Età Barocca in Itália, escrita na Itália
pós-liberal de 1924, enquanto a vitória política de Mussolini acontecia com a marca da
aliança entre trono e altar contra a ameaça de revolução social. Essa mesma questão
reapresentou-se em nossa mente diante da profunda crise das instituições da República
italiana na época do choque social e político ocasionado pelo caso Moro. Diante desse
contexto, pareceu inevitável no trabalho dos historiadores que se voltasse a indagar as
fontes com novas perguntas em relação àquelas dominantes nas muitas pesquisas de his-
tória da Igreja desenvolvidas no segundo pós-guerra e mais ou menos reconduzíveis sob
a insígnia da Reforma católica - uma insígnia oposta em relação à que figurava no título
da obra de Benedetto Croce. A reconstrução de um país derrotado e destruído não só
materialmente dera-se então sob a condução de um forte partido católico. O sopro de
crescimento econômico e de esperança social e política tornara-se perceptível também nos
estudos históricos, que conheceram à época o início de um intenso período de discussões
e de abertura internacional. Mas logo tornou-se evidente, na junção entre guerra e pós-
•guerra, o surgimento de novos interesses em torno da história religiosa italiana e da fase
tridentina do catolicismo, aquele que se tinha encarnado nas paróquias e nas dioceses. A
décadas de distância, no momento da crise, enquanto surgiam as profundas resistências
internas e internacionais do encontro entre o centro católico e a esquerda, encontro levado
adiante por Aldo Moro, veio à tona uma fisionomia diferente ~o catolicismo italiano, a do
poder monárquico do Papa-Rei. Uma fisionomia antiga tornava a aparecer, ainda que em
condições históricas profundamente alteradas pelas duas realidades que se enfrentavam:
alteradas tanto para a Itália, que de país atrasado tornara-se uma moderna democracia
1. Dezesseis anos após a publicação da primeira edição deste livro - já um clássico da historiografia, não somente
italiana, mas finalmente europeia - sobre as problemáticas da Reforma e da Contrarreforma, o Autor elaborou
o presente prefácio como acréscimo necessário para atualizar o leitor em relação ao conteúdo da obra: esta
versão nos foi adiantada, pelo próprio autor, para ser incluída nesta edição brasileira da obra e encontra-se
atualmente publicada, com pequenas diferenças redacionais, na edição da obra reeditada, em formato de bolso,
pela Editora Einaudi, Torino, em 2009 (Nota: Adone Agnolin).
industrial, como para a Igreja católica que, com o Concílio Vaticano II, acertara as contas
com a idade da Contrarreforma e apresentava-se no mundo com um grande capital de
prestígio e um renovado impulso para a abertura internacional. Nesse contexto, porém,
não tinha significado menor para o governo da Igreja católica a exigência de exercer uma
soberania especial sobre a Itália que se valia agora de outros meios em relação àqueles da
mediação de um partido que se reportava à democracia ainda que cristã.
Era um poder que fazia ouvir sua voz na crise das instituições estatais, mas que
estava, ao mesmo tempo, em condições de agir direta e profundamente nas consciências.
Para entender como e quando se tornara possível a criação dessa profunda nervura da
sociedade italiana, percebia-se a necessidade de indagar o que tinha acontecido no pe-
ríodo em que, em uma Itália politicamente dividida, o desafio da Reforma protestante
fora acolhido pela Igreja de Roma. Juntamente com a restauração e o fortalecimento
da rede fixa de governo dos povos constituída pelas dioceses e paróquias surgia a estru-
tura institucional do controle das consciências com seu ministério romano da verdade
concentrado no Santo Ofício - o organismo que tentara bloquear a difusão do novo
'partido comunista com a excomunhão culminada em 1° de julho de 1949 - e o aparato
móvel das missões organizadas para a conquista das massas populares, que logo depois
(em maio de 1950) levou em périplo por todas as paróquias do país a estátua de Nossa
Senhora peregrina para comemorar a vitória da democracia cristã nas eleições de 1948;
tanto em um como no outro caso surgira no início da república democrática italiana
uma forma da presença da Igreja católica no pais que tinha tido origem em um mo-
mento histórico bem diferente. A obra de controle e de governo das consciências com
o Santo Ofício da Inquisição e com as campanhas missionárias remontavam ambas à
época da Reforma e da Contrarreforma e tinham permanecido durante séculos as duas
faces do governo romano da sociedade italiana. Ambas tinham como base a conversão
e a confissão, pelo menos desde que as reformas iluministas do século XVIII e, no sé-
culo XIX, o Estatuto do novo Reino saboiano da Itália tinham eliminado a utilização
. do coercitivo "braco secular" a servico das excomunhões e das sentencas eclesiásticas .
.., J J •
Nas duas pontas de uma história iniciada no século XVI encontrava-se um mesmo fio :
o de uma defesa da sociedade diante dos perigos da liberdade de consciência que,
suscitando movimentos coletivos em torno de imagens de devoção e governando as
escolhas individuais por meio da confissão dos pecados, tendia a mobiliar estavelmente
o mundo interior dos indivíduos com imagens e pensamentos de uma disciplina da
obediência e da fé. Sermões de missionários e ensinamentos de párocos encontravam
- ~o momento da confissão a ocasião pedagogicamente mais eficaz para instilar uma
devocão obediente, verdadeira muralha contra a ameaca do individualismo e contra a
' '
ideia e a realidade da liberdade de consciência que era expressão desse individualismo.
Nos limites do sistema vigiava uma magistratura de comissários da fé, ou como se cha-
maram de inquisidores, destinada a exercer funções de vigilância contra os perigos da
desobediência e da escolha pessoal - a heresia. No sistema de disciplina social que as
diversas confissões do cristianismo europeu, mesmo divididas e em luta entre si, foram
obrigadas a construir, tratava-se de interceptar e atacar crimes e pecados para edificar
Tribunais da Consciência
23
uma sociedade obediente e moralizada não só por contrições externas, mas também e
sobretudo pelas normas interiorizadas da autodisciplina. Nisso a obra da Igreja católi-
ca _ ou, como preferiam dizer os protestantes, da Igreja de Roma - distinguiu-se por
colocar em funcionamento um poder autônomo de repressão e de punição por parte
do corpo eclesiástico ao qual os governos seculares deviam prestar ajuda.
Colocados diante de um projeto institucional de longa duração, tratava-se de
compreender melhor como, na situação europeia da época da Reforma, doutrinas e
instituições por si mesmas não novas tinham encontrado o novo ordenamento que lhes
garantiu a duradoura eficácia sobre a realidade italiana.
Foi esse, portanto, o escorso do trabalho. Tratava-se de estudar melhor o início
e a evolução de formas da presença da Igreja que, renovadas e reforçadas no século
XVI em um momento de perigo e de choque, tinham garantido a longa hegemonia dos
séculos da idade moderna e reapareciam no século das massas com renovado vigor após
o eclipse da época liberal do reino da Itália: a confissão, a inquisição, a missão. Formas
que tinham marchado paralelas para atacarem unidas, concordes no resultado mas di-
ferentes na estratégia: era essa a hipótese de pesquisa. Durante o trabalho, seguindo as
linhas do plano, deu-se a surpresa de uma descoberta: as linhas paralelas tinham tido
um momento de convergência, ou melhor, de intersecção e de subordinação.
As descobertas são o fruto que por vezes premia o trabalho dos historiadores,
semelhantes nisso em seu pequeno e não costumeiro laboratório aos cientistas que
estudam as leis da natureza. E, como o mundo da natureza, também os depósitos das
lembranças do passado permitem descobertas dos mais variados gêneros, algumas ca-
pazes de complicar as configurações conhecidas, outras de esclarecer e simplificar o já
conhecido. A descoberta de que se fala nesse livro pertence ao segundo tipo. O título
Tribunais da Consciência foi escolhido para indicar o núcleo da descoberta.
Esse título não era original: foi sugerido pela lembrança involuntária de um cé-
lebre texto, como descobriu em seguida o autor graças à observação de um experiente
leitor. Fora cunhado por Tommaso Campanella em 1604. É uma passagem que vale a
pena ser lida por extenso:
Vê-se ainda que hoje não se vive apenas com as leis de Cristo, mas com as leis civis, porque
a maldade e a fragilidade não se espera observá-las, mas a lei de Cristo tem os tribunais da consciência
perante os quais cada um deve penitenciar-se das culpas, fazendo em si justiça voluntária, e bem-
-aventurados seríamos se não houvesse necessidade de outro tribunal, e cada um demandasse pena
de sua culpa, sem esperar que outrem o acuse, e chame testemunhas. E isso foi desejo de Sócrates, e
dizia que assim quer a razão natural, e que não haja oradores para defender as causas, nem legistas
glosadores, como menciona Platão. Não disse apenas isso Sócrates, mas que tampouco deve-se o
homem defender e desculpar, e se condenado por erro, deve receber a sentença com humildade,
esperando de Deus recompensa após a morte. E isso fez e disse Sócrates, imitando Cristo, que ele
não conhecia em carne, mas em natureza racional2.
2· Tommaso Campanella, L'Ateismo Trionfato, org. de Germana Ernst, Edizioni della Normale, Pisa, 2004, vol. 1,
Prefacio
24
Os tribunais de que fala Campanella são os da confisão, como lugar onde se recebe
a penitência por culpas espontaneamente confessadas. É na confissão cristã , segundo
Campanella, que impera a lei de Cristo e de Sócrates, superior às leis civis, assim como
a justiça voluntária é mais elevada e mais verdadeira do que aquela ministrada pelos
juízes do Estado. Mas a confissão descrj ta por Campanella é a voluntária e e~ ontânea
... -- ---------
r"dos pecados, mais_par~ J ~ ~nos naquela ép; c~ - c9m ~-ver~ão protestante da
-. -- -- -
con fissão cristã do que co~ a católica. Nessa última, o tribunal ficava nas mãos de um
--
juiznumario,p~~ ve.ze; -i~ dicado como um médico das doenças da alma mas sempre e de
todo modo dotado de poderes e de regras para a administração de uma justiça especial.
Em suas mãos, a palavra "confissão" e a outra que frequentemente vinha associada a
ela - a "orientação espiritual" - tinham acabado por se tornar um poder: não pequeno,
aliás, de acordo com uma célebre definição, "o mais completo existente no mundo" 3.
Esse poder, é claro, podia parecer inconsistente e o sacerdote que o admin istrava po-
dia parecer um pequeno empregado do culto colocado ali para distribuir perdões sem
~ nhuma condição. Nos tempos de Campanella distanciava-se a lembrança do uso
l
t que dele fizera Carlo Borromeo para torná-lo um ~ orali?ade pública"4;
e avancava um uso banalizador da penitência sacramental cg_mo apta a absolver de
r - - _ ! -- - - ----- - -
qualquer pecado ao cust~ _~e algu111as_preces a s~r ruminada distraidamente desde que
o pec;for ~ e~ç!:._e_yj~ sir-Édwin S~ s_- "perm~i:-eça_n_a__ Igrej-ª, cfe~endo obediência ao
5
papa" • Desse modo, o muiidoitaliano co meçava a tornar-se, na imagem circulante no
-----..:....
munâo anglo-saxão, o de uma s~ Q . C .tit~~ de~ i_cada a obscenidades encober-
--·
tas pela devoção. O turvo repertório exibido por Richard Burton em sua Anatnomy of
..... - - .. ..---
Melanchoíyera certamente exagerado mas não desprovido de bases reais: os documentos
de governo eclesiástico mostram que já no fim do século XVI o confessionário inven-
tado por Borromeo como estrutura física dedicada a separar e a controlar as pulsões
eróticas produzidas pelos discursos sobre sexo era usado nos conventos como espaço
para bacanais e "farras" noturnas de freiras e frades 6 •
p. 114 (o grifo é meu). O manuscrito autógrafo traz uma versão eliminada: "defender as culpas" em vez de
"defender as causas" (vol. 2, pp. 192-193). Agradeço ao amigo Tommaso Cavallo pela indicação.
~ Jules Michelet, II Prete la Donna e la Famiglia, trad. it. org. por M. Sanfilippo, Lerici, Cosenza, 1977, p. 176.
~ Cf. W ietse De Boer, The Conquest of the Soul, Brill, Leiden, 2001 ; sobre os protestos e as resistências diante das
0 formas de penitência pública ver pp. 321-323. Da tradução italiana de Aldo Serafini, Einaudi, Torino, 2004.
Cito a partir da trad. it. da Relazione feita por frei Paolo Sarpi e publicada em Genebra em 1625 (Paolo Sarpi,
- Opere org. de Gaetano e Luísa Cozzi, Ricciardi, Milano/Napoli, 1969, p. 304).
6. A "orgias que eram feitas no quarto dos confessores e farras nos confessionários" (che si facevano nella camera
di confessori et trebi neli confessionali) refere-se uma minuciosa "Instruttione" para o duque de Ferrara, redigida
por volta de 1590 (cf. Lorenzo Paliotto, Giovanni Fontana Vescovo di Ferrara (1590-1611) , Seminario diocesano
di Ferrara-Comacchio, edizioni Cartografica, 2002, pp. 287-291; ver p. 287). Sobre os mosteiros católicos cf.
Richard Burton, The Anatomy of Melancholy , p. 1, sec. III mem. 2, subs 4 (ed. H . Jackson, New York, 2001 ,
pp. 418-419). Sobre a criação do confessionário é fundamental o ensaio de Wietse De Boer, "Ad Audiendi non
Videndi Commoditatem. Note sull'lntroduzione del Confessionale Soprattutto in ltalia", Quaderni Storici, n.s.,
LXXXXVII, 1991, pp. 543-572.
Tribunais da Consciência
j
25
--------- --
Mas se a consciência__p__Qdia sair ilesa daquele tribunal, havia outro que
-
usava sistemas mais eficientes: ; -da lnquisÍçã-9. Tommaso Campanella, que
- - -- - - -
tive~ ~ experiência pessoal c~m ele, s-abia bem disso: uma experiência
familiar à época para muitos que, irul_o___cQnf<:ssar o ~ e c a d o s , viam:_
-se encaminhados pelo confessor ao inquisidor se o que sabiam de si ou dos --~
outn; s 7 ug; riam leituras ou ideíãs- ~ i-cas-:- Mas, escrevendo no cárcere e
empregando a pena em uma obra apologética na tentativa de demonstrar-
-se arrependido e convertido, foi levado a exaltar o caráter livre e voluntário da
- - - ---- - -- -----· _ _ , , - - - - -
"justiça por si" _gue~ra feita na confissão sacramentâ[ Assim, o exame âas próprias
q.1lp;~ el_2_Pecado; -acabava :por c~incidir_com o "tribunal ~a consciência--,,-
da lei natural. Por essa via, tornava-se possível aproximar Sócrates ae Cristo: o que
já tinha sido feito antes de Campanella por um autor que lhe era muito familiar,
Erasmo de Rotterdam, que invocara o filósofo pagão com a ladainha Sancte Socrates
ora pro nobis . Mas era realmente livre e voluntária a tal "justiça por si" feita com __
a confissão cristã? Não. Já no século XIII, o papa Inocêncio III , com o Concílio
- .,.__:__:__ ___ __ ------=- -
LateraI!_e_nse IV emanara o d~s reto _que tornava sua prática obrigatória pelo menos
.---- ~ - - - -~- ----- - - - ---- -
1
Oa primeira tese de Lutero sobre as indulgências, a definição ãàpenitência e de
seu lugar na vida do cristão tornou-se o problema principal. Disso devia sair uma
profunda transformação da~ prátic~s tradici~n~is. ~m teoria, a confissão continuava
sendo um momento essencial na vida do cnstao que se reconhecia essencialmente
como pecador. Mas no concreto da evolução do cristianismo moderno na Europa
as formas assumidas então pelas práticas para denunciar e eliminar as culpas foram
muito diferentes de igreja para igreja. No mundo católico, confi~ se o caráter
sacramental da penitência e conferiu-se, portanto, um poderferlor~~t~ às palavras
rituais do confessor ao eliminar as culpas. Mas mesmo aqui foi em um contexto
de cada vez mais nítida separação entre vida religiosa e vida civil, entre cristão e )
súdito, entrepecado e crime que .2-E9der de .::missão a-os- pecãOos foi obrigad_o a .
Prefácio
26
Ll
559 o emp-r~go da confissão para fins de polícia inquisitorial é a fonte primária da
escoberta que se encontra no cerne deste livro.
A medida estava em gestação fazia tempo. Tinham ocorrido episódios anteriores
de inquisidores que recorreram à pressão violenta para impor aos conf! ssores a revelação
daquilo que tinham ouvido. A tendência tornara-se irresistível- naf ase aguda do con-
flito entre Reforma e Contrarreforma. Em Messina, -e~ 555 , um édito do inquisidor
impus~-;~b-penaâeexcõmunhãÓ. ~ brigação de denunciar os suspeitos de heresia e
proibira aos jesuítas de absolver quem não o fazia. Mas o resultado, visto com os olhos
dos jesuítas, tinha sido o de afastar as pessoas da confissão, um sacramento que ocupava
um lugar central na experiência religiosa deles e em sua estratégia de conquista das almas.
Quando apareceu o documento de Paulo IV, o jesuíta Juan de Palanco criticou-o como
) uma armadilha, um laço "con que se enlazavano muchas animas" 9 • Esse laço, contudo,
funcionava: a providência demonstrou logo sua eficácia no âmbito dos estados italianos
mais sujeitos ao governo papal da religião. Em 1561 , o núncio pontifício na Toscana
pôde escrever ao cardeal Michele Ghislieri que "com o aproximar-se dessa semana santa"
tinham sido descobertos muitos possuidores de livros proibidos 10 •
A providência tomada por Paulo IV em 1559 não foi um ato isolado, um bloco
errático na planície sedimentada pela longa duração da religião e de seu governo. Ela
7. Sobre a história da distinção entre pecado e crime consultar Paolo Prodi, Una Storia della Giustizia, Bologna, li
Mulino, 2002 e a Vincenzo Lavenia, L'Infamia e il Perdono. Tributi, Pene e Confessione nella Teologia Morale della
Prima Età Moderna, Bologna, II Mulino, 2004.
8. Para Milão, veja-se de Wietse De Boer, The Conquest of the Soul trad. it.: La Conquista dell'Anima. Fede, Disciplina
e Ordine Pubblico nella Milano della Contrariforma (2001), Torino, Einaudi, 2004. Em Milão também, assim
como no caso do modelo de Genebra sobre o recurso do uso da excomunhão e da confissão pública perante
a comunidade, eram modelos antigos da penitência que reapareciam. Para a tradição fundada por Calvino
cf. os ensaios recolhidos em Sin and the Calvinists: Moral Control and the Consistory in the Reformed Tradition. Ed.
Raymond A. Mentzer ( Sixteenth Century Essays and Studies, vol. XXXII, 1994).
9. Cf. do autor deste volume "Anime in Trappola. Confessione e Censura Ecclesiastica all'Università di Pisa tra
'500 e '600", em_, L'Inquisizione Romana. Letture e Ricerche, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura 2003,
pp. 263-296; ver pp. 264-267.
10. Idem, p. 266.
Tribunais da Consciência
27
Prefácio
28
------·----
~ à v ~n~role externÕ os pensamentos e as convicções secretas ~u, co mo se
dizia então, o "coiâçãõ''clo.nõme-m. - "Considerada a natureza das co isas" - escrevi a -
Vincenzio Borghini, um homem que lera Maquiavel - "as que se encontram nas mãos
dos príncipes podem por assim dizer serem regulamentadas por meio da autoridade e
da força, como não portar armas, vestir-se de um modo e não de outro etc. Mas essa la
religião] que é mista, consistindo principalmente no coração do homem que não está
sujeito a nenhum príncipe terreno, e no culto exterior secundariamente, afirm o que
nisso que é secundário sempre se pode interferir com a autoridade do príncipe, mas e
no primeiro? E quem impõe lei ao coração?" A resposta possível era apenas um a: uma
intervenção da autoridade eclesiástica na confissão. Impor leis, criar "laços da cons-
ciência" como se fazia com o sistema dos casos reservados, mesmo então, era objeto
de crítica. Mas Borghini rejeitava as críticas: "Como se controlam as crianças... assi m
deve-se fazer com os jovens pelo intelecto, como são a plebe e as mulheres etc. se mpre
deverão ser controladas" 14 • A plebe, as mulheres: como a modenense Dalida C arandi-
ni, que confiou ao jesuíta Bonsio de Bonsii suas ideias sobre a vida religiosa - ideias
tiradas sobretudo da leitura de Erasmo - e que pouco depois se viu contestada pelo
inquisidor de Módena, tendo o jesuíta se encarregado de transmitir em uma denúncia
à Congregação do Santo Ofício os pensamentos de sua "filha espiritual" 15• Portanto,
na Itália, mesmo a Companhia de Jesus, que tinha especial consideração pelo caráter
sigiloso da confissão, por conferir a esse sacramento um lugar central em sua estratégia
missionária, não hesitava em trair a confiança de quem revelava seus pensamentos
diante da aparente brandura do jesuíta.
O caminho escolhido, então, foi o da confissão regulada por um sistema que não
só restringia o acesso ao perdão com a multiplicação dos casos reservados - como tratou
de estabelecer são Carlos Borromeo, modelo do novo tipo de bispo - mas impunha a
tra~ jncia dos segredos ~ eia ao tribunal de foro externo da Inquisição.
'- "------ ---- -- -
não de heresia (cf. Angelo Rundine, lnquisizione Spagnola. Censura e Libri Proibiti in Sardegna nel '500 e '600.
Sassari, Stampacolor, 1996, p. 176).
14. Maria Fubini Leuzzi, "II Trattatelw delle Cose di Religione di Vincenzio Borghini. Uno Scritto lgnorato", em
Archivio Italiano per la Storia della Pietà, vol. 20, Roma, 2007, pp. 23-40; ver p. 40.
15. A carta de Bonsio de Bonsii encontra-se conservada em versão original na pasta do processo a "Dalida Caran•
dini" (Modena, Archivio di Stato, lnquisizione 6.6) e em cópia no arquivo do Santo Ofício romano, St.st. D
4 g. (cf. do autor deste volume "Una Esperienza di Ricerca ai S.Uffizio", em_, L'lnquisizione Romana, op.
cit. , p. 256).
Tribunais da Consciência
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Assim foi possível construir um sistema de poder que foi exercido principalmente
sobre as consciências das classes populares e que pôde permitir à Igreja oferecer ao
poder político um serviço essencial, o de ligar os corações à obediência, como escreveu
Giovanni Botero.
A proposta de fazer uma releitura da história da presença da Igreja na Itália à luz
dessa descoberta suscitou duas objeções originadas de pressupostos de tipo diferente,
ou melhor, oposto: de um lado, houve uma reação de cunho apologético por parte de
quem, para defender a autonomia de confissão e confessores, "pontos de referência
fundamentais na vida cotidiana", negou que "possam ser encontrados ... testemunhos
convincentes do exercício concreto, por parte dos inquisidores italianos, de alguma
forma de hegemonia sobre os confessores" no mesmo momento em que reconhecia que
há "milhares de comparecimentos espontâneos de penitentes não absolvidos registrados
nos arquivos inquisitoriais italianos" 16 ; no extremo oposto dessa posição apologética
confessional coloca-se a apologética laica de quem acusou uma conivência do historiador
com os inquisidores ao mascarar a dureza sob os traços de uma insinuante brandura 17•
Contra um e outro desses pontos de vista chocava-se a prova documental do fato de que
a Inquisição perseguiu o objetivo de impor o domínio sobre as consciências, recorrendo
até às artes sedutoras da confissão.
Naturalmente, resta acompanhar a evolução desse ato de fechamento/fortaleci-
-
m~to do poder papal ao abrigo das redes policiais do Santo O f í c =
,,...---,
medida extrema tomada em um momento de dramática sensação de perigo por parte
- - - - - --- - - - - - - - - .. ---
de um papa fanático e em seguida abandonada mais ou menos silenciosamente? Ou
então, essa medida pertenceu a um processo de evolucão geral rumo à centralizacão dos_
~
't , , ,_____
Prefácio
30
da ~ avanço do poder eclesiástico de redimir os pecados teve que ser pago com
r' ~ nção religiosa da morte por via de justiça e com a estrita aliança da religião oficial
1 com o poder político. Mas, se a Igreja no confronto com os poderes laicos conseguiu
) garantir o sigilo dos pecados a quem os revelava ao confessor, sua defesa falhou quando
j se adiantou a ameaça da rebelião herética. A heresia foi definida "crime de lesa-majestade
- divina" e ocupou lugar no vértice da pirâmide dos crimes. Nesse caso, todas as garantias
e as regras da administração da justiça foram suspensas. E com isso deixaram de existir
também o sigilo e a voluntariedade da confissão.
Encontram-se e conjugam-se no ponto da confissão as três diretrizes geralmente
distintas nos livros de história do mundo católico moderno: a do modelo católico tri-
dentino de vida religiosa, que tinha por protagonistas os bispos, a do nascimento e do
crescimento das missões católicas na Itália e no mundo e a da polícia da fé confiada à
Inquisição Romana reorganizada. Em todos os três casos, a consciência forneceu o campo
a~ log i~a~~ ~Jos três diferentes protagonistas da empresa, o missionário, o confessor,
e
o inquisidor: para educá-la Implantar-lhe as novas formas de devoção, para explorar os
p~ ado;-;e~ etos-a em redimidos, para usufruir do ~ov.h_e. cimento del~ ra fins de
repressão
~=---
do dissenso.
·,
s d1v"êrsos d~ver~ s dÕstrest:i;os de homens de Igreja, reunidos
e sobrepostos -a p_o_·s--a reforma tridentina e a decisão de Paulo IV, tornaram-se conexos e
estreitamente coordenados a ponto de poderem ser desenvolvidos até por uma única e
mesma pessoa. O missionário que· pregava aos povos nas Índias de além-mar como nas
Índias por acá, o confessor que dirigia as consciências e colhia as confidências de mulheres
piedosas e de aspirantes a santos podiam suspender as confissões e remeter ao tribunal
da inquisição quem tinha informações úteis ou heresias a abjurar; 5podiam transformar-
-se em vigários da Inquisição para colher depoimentos ~ tos d e hereges arrependidos
ou fazer chegar à Inquisição denúncias de opiniões heréticas e de livros proibidos. Por
outro lado, nos conventos onde o ofício inquisitorial tinha sede era normal o inquisidor
desempenhar a função de confessor 19 • A possível unidade física das três funções era
acompanhada de uma atenta divisão formal e ritual dos deveres. Isso decorria da tutela
da garantia de sigilo graças ao qual a confissão sacramental podia demandar a sinceri-
dade sem limites das declarações do penitente. Nasce daí a questão jurídica do valor do
testemunho do confessor no tribunal: questão que foi resolvida a princípio, excluindo
taxativamente a própria possibilidade de recorrer a uma deposição semelhante. Mas
para além do princípio teoricamente reafirmado de uma rigorosa separação formal dos
18. Cf. Misericordie. Conversioni sotto il Patibolo tra Medioevo ed Età Moderna, organizado pelo autor do presente
volume, Pisa, Edizioni della Normale, 2007.
19. Ainda que a Inquisição tenha se preocupado em impedir a seus comissários exercer o ministério de confessor
(como pontifica Elena Bonora em L'Archivio dell'Inquisizione e gli Studi Storici: Primo Bilanci e Prospettive a Dieci
Anni dall'Apertura em Rivista Storica Italiana, CXX, 2008, pp. 968-1002), tratou-se de uma preocupação que se
originava exatamente de uma realidade de intersecções. Em Turim, em 1576, o inquisidor ainda podia "absolver
os hereges in foro conscientiae", como atesta uma carta do núncio que solicitava a ampliação desse poder até
"receber os relapsos, que viessem espontaneamente" (carta do núncio datada de 17 de maio de 1576, citada
por Lavenia, L'lnquisizione del Duca, p. 447n).
Tribunais da Consciência
31
Prefácio
32
Tribunais da Consciência
33
20. O texto que segue foi apresentado como relatório introdutório ao encontro internacional "Storia e Archivi
dell'lnquisizione. A Dieci Anni dall'Apertura dell'Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede",
realizado em Roma (21-23 fev. 2008).
Prefácio
34
Que tenha havido no passado uma ligação especial com a Itália é algo que não
precisa ser lembrado. O primeiro sinal de alarme no caminho que levou ao nascimento
do novo organismo apareceu em 1536 quando, em Roma, descobriu-se que a "heresia
luterana" tinha ultrapassado as fronteiras geográficas italianas e materializara-se na
corte de Ferrara. Foi então que pela primeira vez o papado deu-se conta realmente
da gravidade do perigo e apressou-se a procurar uma solução. A criação desse novo
organismo deu-se em um ano crucial, 1542, quando o fracasso da pacificação religiosa
tentada por Carlos V afastou o espectro da convocação de um concílio que soava como
ameaça à autoridade papal. Recorreu-se então à Inquisição, ou melhor, à constituicão
de um tribunal supremo de poderes especiais capaz de modificar em profundidad~ 0
ordenamento tradicional da polícia da fé. Note-se que nessa época havia duas Inquisições
de poderes político-religiosos excepcionais concentrados nas mãos de uma autoridade
central: tinham surgido na Espanha e em Portugal em função antijudaica, instrumentos
de duas monarquias em ascensão que pretendiam usar a alavanca da unidade religiosa
para fins políticos. Não havia nada disso na Itália, onde a antiga rede dos conventos
franciscanos e dominicanos hospedava inquisidores sem que nenhum poder político
demandasse o endurecimento e a centralização do sistema em função de uma guerra
religiosa. Mas foi Gian Pietro Carafa, um cardeal que depois se tornou papa e que foi
o principal executor e criador da Inquisição Romana, a falar em "guerra espiritual".
Portanto, na Itália foi o papado a querer a reforma do sistema de polícia religiosa e a
dar-lhe uma ordenação especial, aplicando o modelo espanhol e português na própria
casa. Nesse ato inicial revelam-se as duas almas do papado, a do poder temporal e a do
universalismo espiritual, hospedadas no corpo único do soberano Pontífice, como nos
explicaram os estudos de Paolo Prodi.
Na Itália, portanto, uma diferença substancial em relação às Inquisições ibéricas
foi constituída pelo caráter do poder que dispôs e requereu o instrumento da Inquisição:
trata-se aqui de uma autoridade que é, ao mesmo tempo, religiosa e política, ao passo
que na Espanha e em Portugal enfrentavam-se dois sujeitos diferentes, o soberano e o
pontífice, que regulavam suas relações na seleção do supremo inquisidor. Do enfrenta-
mento surgem dois dados: não só o caráter especial da autoridade papal tal como era
reivindicada por seus apoiadores, mas também uma inegável realidade de fato , a da
hegemonia papal sobre os estados italianos que se firmou depois do período das guerras
da Itália, durante as quais o papado tinha posto a República de Veneza na defensiva e
irradiado seu domínio direto sobre a Itália central e na região padana. Tudo isso teve
consequências concretas na eficácia especial que, no espaço italiano, revelou o órgão
teoricamente universal que dominava o controle da ordoxia. Houve, portanto, desde
o início uma ligação especial entre o Santo Ofício da suprema e universal Inquisição
Romana e a Itália.
Falta compreender nos detalhes como funcionou essa ligação. E uma primeira
constatação com base nos estudos existentes é que ela esteve ativa nas duas direções ,
por parte do organismo de controle de um lado e por parte da sociedade italiana de
outro. Não se tratou apenas de uma correia de transmissão de uma autoridade central
Tribunais da Consciência
35
para órgãos periféricos, como foi em geral o caso das Inquisições ibéricas, mas de um
entre os muitos trâmites de uma relação substancial de aliança e de troca que foi a que
todos os poderes e as ambições da sociedade italiana construíram então com a última
grande capital restante na península e com seus recursos especiais de comunicação
com o resto do mundo. Se o novo príncipe do estado toscano, Cosmo I, queria saber
quantas hóstias eram distribuídas nas igrejas de seu domínio não era absolutamente
por sua devoção especial: o "príncipe novo" era dominado pela insegurança e pelo
temor do que se ocultava nas mentes e nos corações dos súditos. E a religião era, e
sobretudo aparecia então, como um instrumento especial de poder, "consistindo prin,
cipalmente 'a religião' no coração do homem que não está sujeito a nenhum príncipe
mundano", como escreveu o douto beneditino Vincenzio Borghini que, não à toa, foi
homem de confiança de Cosmo I nesses assuntos. Para ele e para seu tempo a heresia
era sinônimo de discórdia e de dissensão, ameaça à solidez do corpo da sociedade e
do estado. E nada foi mais assegurador para os poderes dos Estados italianos do que
confiar aos ouvidos dos confessores e aos interrogatórios dos inquisidores o controle
sobre as opiniões dos súditos. Essa exigência foi típica de uma época da história eu,
ropeia em que a centralização do poder caracterizou a formação dos grandes estados
nacionais e os monarcas, ainda desprovidos de uma polícia própria, entregaram,se de
bom grado aos instrumentos de controle e de persuasão da Igreja. Mas fizeram isso,
geralmente, criando Igrejas nacionais para seus fiéis. E diante da dificuldade de con,
cordar as opções políticas com as normas da moral e da religião, valeram,se de especiais
"conselheiros da consciência do rei". O caminho seguido pelos estados italianos foi
diferente: quando Cosmo III de Médici colocou,se o problema de como governar os
comportamentos sexuais de seus súditos e pôr um freio nos abortos, recorreu dire,
tamente ao Santo Ofício de Roma. Era o mais aparelhado e autorizado "ministério
da consciência" disponível na Itália, capaz de unir conselhos de consciência, normas
de verdade e estruturas de polícia porque podia fornecer respostas baseadas na "ver,
<ladeira" doutrina e encaminhar de modo competente as organizações especiais de
confessores e de inquisidores que atuavam no interior dos estados italianos, seguindo
as diretrizes romanas. Formou,se assim um hábito de colaboração interessada que
se coloriu de ambos os lados de oportunismo político e de adaptação às relações de
forca e de conveniência. Aquele que se qualificava teoricamente como um organismo
'
rigorosamente eclesiástico, regido por razões superiores e determinado a atingir seus
objetivos sem se curvar diante de nenhum poder, entrou como protagonista no circuito
da política italiana.
A essa especificidade italiana da Inquisição Romana referem,se as observações
necessariamente sintéticas que serão feitas a seguir. Não falaremos muito nos resultados
das pesquisas analíticas que estão sendo desenvolvidas em sedes particulares, em seus
arquivos e sobre contextos e questões determinadas. Seria longo tentar fornecer aqui
uma síntese adequada da enorme quantidade de conhecimentos novos que se tornaram
disponíveis e das novas fontes que emergiram de arquivos locais. Aquilo que alguns
de nós puderam ver a partir do observatório de um Dizionario Storico dell'Inquisizione é
Prefácio
36
um panorama variado e rico de limites muito mais amplos daqueles antes familiares a
quem abordava esse tipo de temas.
O aspecto sobre o qual desejaríamos concentrar a atenção aqui é o que diz respeito
ao espaço que a relação com a Itália ocupou na obra do Santo Ofício.
Após a fase inicial, o empenho maciço da nova instituição concentrou-se em casos
italianos de "hereges" de Ferrara, Módena, Lucca e assim por diante; mas foi sobretudo
dedicado a combater a componente moderada e conciliadora no corpo cardinalício. O
caso da detenção e do processo do cardeal Giovanni Morone, estudado por Massimo
Firpo, foi o monumento judiciário de um conflito totalmente italiano entre posições
religiosas no seio da Igreja 21 • O longo itinerário desse caso ocupa toda a parte central
da obra do Santo Ofício e conclui-se apenas com o pontificado de Pio V. Em seguida,
para proteger a fortaleza italiana dos riscos de infecção herética foram elaboradas re-
gras especiais, como aquelas que no final do século XVI limitaram a possibilidade para
mercadores e traficantes italianos de se dirigirem além dos Alpes em direção dos países
protestantes. A tendência a considerar o espaço italiano como espaço judiciário especial
teve sua origem no fenômeno bem conhecido da italianização do papado e das estruturas
centrais romanas da Igreja, incluindo aí as congregações romanas que, no início da idade
moderna, foram especialmente compostas por italianos. Houve um poder de direção
e de influxo decorrente da pertença dos pontífices e de seus conselheiros, além dos
diversos membros das congregações cardinalícias romanas, à sociedade italiana. Dessa
situação de fato resultou uma proximidade particular às realidades italianas, ou melhor,
um verdadeiro ar de família que se respira no interior dos órgãos idealmente universais
prepostos à luta contra a heresia e ao controle da imprensa. As análises minuciosas e as
pesquisas prosopográficas que estudiosos como Hermann Schwedt vêm realizando há
anos nos fornecerão muitos dados para uma reflexão mais atenta a esse respeito, mas a
avaliação do conjunto que aqui se propõe aparece no estado dos conhecimentos pelo
menos fortemente provável. A herança medieval da rede inquisitorial dos conventos
contribuiu para criar o sentimento de uma identidade italiana comum por ter-se ofere-
cido como uma estrutura pronta para passar tranquilamente do antigo ao novo estilo,
ou seja, de .uma dependência teórica do papado e de um regime baseado nas nomeações
por parte dos superiores da Ordem a um novo regime de delegação por parte da suprema
Congregação. Constituiu-se desse modo uma rede que falava a mesma língua e tinha
os mesmos circuitos de formação e de carreira. Os percursos das carreiras que levaram
membros de ordens religiosas a tornarem-se bispos, cardeais e papas após um período
de atividade inquisitorial são ilustrados por casos célebres, como os de Pio V e Sisto V.
A estrutura que se estabeleceu entre centro e periferia não sofreu abalos particularmente
graves. E tranquila foi a vida cotidiana do corpo dos inquisidores. Por mais que sobre
suas insígnias figurasse sempre a imagem de São Pedro Mártir e a profissão de defender
21. Para uma primeira síntese do autor da vasta pesquisa de arquivo por ele realizada que renovou O quadro de
nossos conhecimentos a respeito, cf. Massimo Firpo, Riforma Protestante ed Eresie nell'ltalia dei Cinquecento,
Roma/Bari, Laterza, 1993.
Tribunais da Consciência
37
a fé até o martírio fizesse parte de sua linguagem oficial, na realidade italiana os últimos
riscos foram corridos nos campos padanos e nas cortes italianas de meados do século
XVI quando na Mântua dos sicários mataram a apunhaladas dois dominicanos (Natal de
1567) e o inquisidor de Ferrara foi obrigado a recorrer à escolta armada. Mas depois de
então suas correspondências falam em vidas tranquilas, em relações gratificantes com os
poderes, em trocas de doações e recomendações (teoricamente proibidas). Serve à guisa
de representação de sua condição de privilégio, as imagens que pretenderam fixar nas
paredes das salas conciliares dos conventos. A de São Domingos de Bolonha é particular-
mente solene e sugestiva e rivaliza com as séries de retratos de bispos que naquele período
começaram a ser pintadas nos palácios episcopais. O estilo da vida cotidiana levada nas
sedes italianas emerge dos resíduos epistolares, mas é fixada de modo particularmente
preciso pelos relatórios enviados a Roma em resposta às periódicas investigações requi-
sitadas pela Congregação romana. Porém, para nós, o aspecto mais importante dessas
investigações não é a resposta mas a pergunta: a rica série de dados que os comissários
locais da Inquisição mandaram a Roma revelam-nos muitas coisas concretas sobre o
estado da administração dessa justiça especial da fé em cada lugar22 • Mas é o olhar do
poder central sobre as ramificações locais que parece especialmente significativo por
um dado que daí emerge com absoluta evidência: o caráter territorialmente definido da
instituição que, teoricamente universal, foi e permanece fundamentalmente italiana. A
consistência que atingiu no espaço de 150 anos pode ser vista pelo Catalogo delle lnquisi-
tioni, Inquisitori e Vicarii datado de 1706 23 • Nele encontram-se enumeradas 55 inquisições
locais, divididas em inquisições de primeira classe (Milão, Bolonha, Faenza, Gênova,
Florença, Pádua, Siena, Pisa, Treviso, Údine e outras mais), de segunda e terceira classes.
Aparecem apenas quatro sedes fora da Itália: Avinhão, Besançon, Toulose e Colônia.
Por volta de 1748 houve uma segunda sondagem. E mais uma vez o panorama das
ramificações da Santa e Universal Inquisição romana leva-nos quase somente dentro
das fronteiras da península italiana. E aí as formas de colaboração e de envolvimento
buscadas pelos príncipes e repúblicas desenham um panorama onde se desfazem todas
as fronteiras entre poderes laicos e eclesiásticos. Aprendemos assim que tinha durado
bastante o hábito da Inquisição florentina de "informar ao Sereníssimo Grão-duque
sobre a pauta do dia do Santo Ofício" e que em Veneza e em Gênova perdurou esta-
velmente a intervenção de magistrados e de funcionários dos governos nas práticas
inquisitoriais que imaginaríamos ciosamente protegidas pelo sigilo eclesiástico. De
um lado os "conselhos dos sábios para a heresia", de outro os assim chamados "pro-
tetores" do Santo Ofício. A dimensão do poder estatal como algo diferente do poder
eclesiástico, a distinção entre temporal e espiritual não tiveram cidadania na história
do antigo regime italiano.
22. Remeter-se para isso aos verbetes individuais do Dizionario Storico dell'Inquisizione, dirigido pelo autor. Pisa,
Edizioni della Normale, 2009.
23. ACDF, Sala histórica, II 2-h: Catalogo delle Inquisitioni, lnquisitori e Vicarii. II Registro dos Anos '50-'60 do '800.
Conservado neste lugar, ST. II, 5-y.
Prefácio
38
Tribunais da Consciência
39
Seguindo o fio do controle das ideias, a época mais próxima de nós fornece um
exemplo de como a Itália continuou a estar especialmente presente nas preocupações
do Santo Ofício mesmo após o advento do estado unitário. No panorama do século XX,
um caso desponta de modo especial: o das condenações da obra de Benedetto Croce
e de Giovanni Gentile. Com~ mostrou Guido Verucci 24 , considerou-se necessário à
época atacar os dois filósofos, apesar do apreço que ambos tinham manifestado quan-
to à função social da religião católica e apesar da posição que assumiram na época da
condenação vaticana do modernismo. Com uma iniciativa que não encontra paralelo
em outros países, as atenções da Suprema Congregação concentraram-se na década de
1930 em diversos aspectos da cultura italiana: por um lado, houve o empreendimento
cultural da Enciclopédia Treccani, onde foram reconhecidas heresias modernistas nos
verbetes escritos por colaboradores não ortodoxos como Alberto Pincherle, Raffaele
Pettazzoni e Adolfo Omodeo. Por outro, houve a condenação de manuais escolares de
história e de filosofia (de Angelo Pernice e Carlo Capasso em 1931), e a abertura de
um inquérito especial sobre os "manuais escolares para as escolas italianas": volumes
"extremamente perigosos para a integridade da fé da juventude estudiosa", em relação
aos quais foi tomada em consideração uma tratativa direta realizada entre P. Tacchi
Venturi e Mussolini, mas que foi resolvida antes graças à docilidade dos autores. Mas
os golpes mais duros foram reservados a Benedetto Croce: sua Storia d'Europa nel Secolo
Decimonono foi condenada em sua primeira edição (1932). E uma nota pessoal do então
cardeal Pacelli, membro da Congregação, propôs que fossem condenados Contributo alla
Critica di me Stesso e outras obras de Croce. A revista dos jesuítas, La Civiltà Cattolica ,
acompanhou a discussão no âmbito do Santo Ofício com quatro artigos, que coloca-
vam sob acusação o "abuso do fraseado religioso que parece inventado para ocultar a
irreligião e a incredulidade" 25 • A Storia d'Europa foi tachada como obra "de suprema
impiedade" pelo consultor Padre Guglielmo Arendt da Companhia de Jesus. No decorrer
da fase de instrução da prática relativa à condenação proposta das obras de Gentile e
24. Guido Verucci, Idealisti all'lndice. Croce, Gentile e la Condanna dei Sant'Uffizio, Bari, Laterza, 2006.
25. Idem, p. 146.
Prefácio
40
de Croce, é notável a observação que foi feita então por P. Agostino Gemelli, de que
teria se tratado da primeira vez que a Santa Sé teria condenado um sistema filosófico
o que não acontecera antes nem em relação ao positivismo nem ao materialismo. E'
trata-se de algo realmente notável: isso indica uma atenção em relação à Itália de um
tipo diferente à vingente para as outras nações e as outras culturas.
Tribunais da Consciência
41
pareceu óbvio O motu proprio com que o papa Paulo VI transformou aquela que então
era chamada Congregação do Santo Ofício (com base na reforma ocorrida sob Pio X
em 1908) em Congregação para a Doutrina da Fé. Com o novo nome e após a demissão
do prefeito Cardeal Ottaviani, pareceu encerrada então uma longa história e concluída
para sempre a atividade da instituição, com todas as atribuições que lhe eram inerentes -
como por exemplo a censura de livros e as intervenções belicosas nos acontecimentos
políticos, sobretudo italianos. Não era assim. Hoje sabemos que essa data e esse ato
foram interpretados de modo demasiadamente apressado como conclusivos da longa
história da instituição. A atuação da Congregação a partir de 1965 foi não só intensa,
como também foi colocada decisivamente em uma linha que seu atual prefeito, o cardeal
Willam Joseph Levada, definiu como de "renovação na continuidade" . É fácil dar,se
conta disso para quem folheia os 105 documentos reunidos no volume publicado pela
própria Congregação em 2006. As matérias tratadas em uma ação normativa que se
tornou progressivamente mais intensa pertencem completamente à tradição histórica da
atuação do Santo Ofício: baste pensar na questão da sollicitatio ad turpia, presença fixa
há quase cinco séculos na jurisprudência e na atividade processual do Sagrado Tribunal.
E há naturalmente a excomunhão por apostasia e heresia, uma atenção especial quanto
às relações com os fiéis de outros credos, uma vigilância quanto às tendências políticas
e às ideologias como a "teologia da libertação" . Mas o que se destaca é sobretudo a
firme defesa da insubstituível função da Congregação como ministério da verdade: os
documentos emitidos pela Congregação e "expressamente aprovados pelo Papa parti,
cipam do magistério ordinário do sucessor de Pedro" , ou seja, entram nas condições
estabelecidas pelo dogma da infalibilidade papal26.
Diante desses documentos, o pensamento do historiador remonta à relação que
no século XVI ligou a atuação do Concílio de Trento à do Santo Ofício. O patrimônio
dos decretos conciliares e do repositório de experiências constituído pelos atos do
concílio foi confiado então à interpretação das congregações romanas em cujo topo
encontrava,se o Santo Ofü:io. A séculos de distância algo similar parece repetir,se. O
ministério da verdade e o guia das consciências retornam formalmente às mãos que
os exerceram nos últimos séculos. Tivemos um sinal importante desse retorno a uma
linguagem pré,conciliar com a recente formulação da prece para a conversão dos judeus.
São inúmeros os traços que os papéis do Santo Ofício trazem da obsessiva vontade de
conversão dos judeus a partir do século XVI nas diretrizes da Igreja. Derivou daí a prática
dos batismos de crianças judias arrancadas de suas famílias e algo de mais impalpável
mas não menos importante: o sedimento na mentalidade italiana de um hábito de
desconfiança e de desprezo em relação à minoria judaica que teve seu peso na vergonha
das leis raciais fascistas de 1938.
Há ainda outros sinais não negligenciáveis de um retorno de algo que já conside,
rávamos ultrapassado. Na longa duração de uma instituição da Igreja o ritual tem sua
26. Congregatio pro Doctrina Fídeí, Documenta, inde a Concilio Vaticano Secundo expleto edita (1966-1985), Libreria
Vaticana, 2006, pp. 1-2.
Prefácio
42
importância: por isso não negligenciemos o valor simbólico do recente discurso do papa
Bento XVI na sessão plenária da Congregação para a Doutrina da Fé de quinta-feira,
31 de janeiro de 2008: um discurso cujo conteúdo também foi significativo (tratou-se
nele de correções das "formas do diálogo ecumênico" e dos problemas da bioética),
mas do qual ressaltamos aqui apenas um dado simbolicamente sugestivo: o renovar-se
da antiga congregação da quinta-feira quando o Santo Ofício reunia-se solenemente
em feria quinta coram Sanctissimo.
Podemos assim concluir esse exame dos estudos históricos com uma constatação e
uma pergunta. A constatação é esta: o caso italiano se insere, com certeza, em um mais
amplo processo. Paolo Prodi, em uma nota de leitura deste livro, lembrou que o caso
italiano é somente um capítulo do percurso que na história do Ocidente vai da ética
ao direito 27 • Ora, no que diz respeito ao direito europeu, historiadores como Harold
J. Berman e Maria Sbriccoli recontruíram a virada que, entre o Quatrocentos e o Qui-
nhentos, levou das práticas tradicionais de justiça negociada a uma justiça hegemônica
fundada sobre o processo inquisitório e concentrada nas mãos do poder político 28 • No
panorama de uma Europa onde o poder político subordinou a si mesmo, de várias for-
mas, aquele das igrejas (desde a área protestante, onde o poder do clero foi cancelado,
até a área católica ibérica e francesa, onde se tornou instrumento daquele do rei) , o
caso italiano destaca-se como o único onde tenha havido um decidido reforço do poder
religioso e político do papado: um poder que foi exercido nos estados da península
através de uma variedade de instrumentos e de modos , mas especialmente através da
Inquisição Romana enquanto tribunal supremo. E a pergunta é: aquela de que estamos
falando é uma intituição do passado ou é um organismo vivo e em plena atividade? A
questão tem sua importância, não só para os historiadores e não só para os italianos.
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA
27. Paolo Prodi, Chritianisme et Monde Modeme. Cinquante ans de recherche, Paris, SeuiVGallimard, 2006, p. 326.
28. Veja-se, do autor deste livro, Giustizia Bendata. Percorsi Storici di una Immagine, Torino, Einaudi, 2008.
Tribunais da Consciência
PREMISSA
ste livro é dedicado a um aspecto da história italiana da idade moderna nada novo nos
E estudos: a presença da Igreja católica, o modo como a estrutura eclesiástica enfrentou e
superou a fratura da unidade religiosa europeia na época de Lutero, conseguindo manter e
consolidar seu prestígio e seu domínio sobre a sociedade. Trata--se de um problema antigo,
evocado inúmeras vezes nas polêmicas civis e nos debates políticos e, consequentemente,
abordado muitas vezes nos estudos históricos: como diagnóstico desolado dos defeitos
profundos do país por parte de quem dava importância, no século XIX democrático e
liberal, aos modelos da França ou da Inglaterra e, mais tarde, à eficiência estatal e militar
alemã; como reivindicação fascista de um pretenso patrimônio cultural latino e católico
de obediência hierárquica, em comparação à desagregação individualista dos países de
ordenação democrática; como alusão às tradições de suplência assistencial e solidarística das
instituições católicas - a diocese, a paróquia, as associações e congregações dos leigos, até
mesmo a família - quando o poder estatal não cumpriu suas obrigações ou desestruturou-se
vergonhosamente. E seria possível continuar: como repúdio das moralidades católicas da
tradição e tentativa de uma sociedade modernizada e consumista de reatar-se ao "mundo
perdido" de antiquíssimas culturas folclóricas pré-cristãs; como - por fim - desconsolado
abandono de toda chave unitária de leitura da presença da Igreja, historiograficamente
reduzida à indecifrável soma de micropoderes pelo olhar de historiadores imersos num
mundo político ilegível e confuso. O caráter prospectivo do olhar histórico, de que falava
Tolstoi, revela--se a cada passo também nesse terreno.
Ora, não há dúvida de que a Igreja tenha vencido: não de uma vez por todas,
claro, mas encontrando em cada crise histórica do país Itália antigas e novas razões de
hegemonia. Porém, os diagnósticos historiográficos da vitória obtida no momento da
crise mais radical e perigosa - a da época de Lutero e de Calvino, que foi para a Igreja
católica a época da luta, da "Contrarreforma" - foram e continuam sendo extremamente
diferentes. Para alguns, a crise foi superficial: somente uma minoria teria sido tocada
pelo avanço do individualismo religioso e da secularização, permanecendo intacta a
força da tradição na vida religiosa do povo. Para outros, ao contrário, somente o uso
sistemático da violência e das fogueiras teria permitido à Igreja romana esconjurar um
perigo mortal. Nesses diagnósticos pesaram, além dos pressupostos gerais dos historia-
dores, os problemas emergentes em seu presente: da questão da unidade política da
44
29. O original em italiano do presente livro foi publicado em 1996 (N. do T.).
30. Período histórico compreendido entre o início de 1800 e 1870, no qual a Itália readquiriu sua independência
e conquistou sua unidade como nação (N. do T.).
Tribunais da Consciência
45
tifício") - e que de fato foi a criação do papado italiano entre os séculos XV e XVI -
ocorreu também a crise aberta no cristianismo europeu pela Reforma: pois, o próprio
papado que estava empenhado no plano político e militar em superar o duro confronto
com os demais estados italianos e depois com as maiores monarquias europeias pelo
domínio da península, teve de enfrentar nos mesmos anos e frequentemente com
os mesmos instrumentos a questão da dissensão religiosa, na Itália e no exterior.
Com os mesmos instrumentos: o sistema das congregações cardinalícias, instrumento
essencial de governo da monarquia papal, foi inaugurado e dominado pela do Santo
Ofício da Inquisição. E o grandioso trabalho de sistematização conceituai de um Ro-
berto Bellarmino, voltado para o combate das consequências da Reforma protestante,
tem em vista principalmente os fundamentos italianos do poder político do papado.
De resto, não só na Itália religião e política eram então incindíveis. Os soberanos
puniam o crime de heresia como o maior delito político, o de lesa-majestade. Divergir
da religião do príncipe era uma forma de sedição. Sobre esse terreno, como responsável
supremo pela fidelidade religiosa dos povos sujeitos a príncipes particulares, o papado
pôde portanto construir uma forma especial de exercício do poder acima das fronteiras
estatais: mas pôde fazê-lo somente nos estados italianos, os únicos nos quais o tribunal
do Santo Ofício romano exercia de fato sua função.
Premissa
46
31. De Francesco Crispi (1818-1901), estadista conservador que exerceu cargos no governo italiano como Ministro
do Interior, Ministro do Exterior e Presidente do conselho de ministros de 1887 a 1896 (N. do T.).
32. Relativo a sanfedismo: associação de cunho reacionário e antiliberal surgida no Estado Pontifício após a restau-
ração de 1815; por extensão, tendência reacionária, antiliberal e clerical (N. do T.).
33. Bem mais fértil, comparativamente, mostrou-se a investigação sobre os "hereges italianos" de Delio Cantimori:
esses hereges da cultura humanista, mestres da dúvida e da dissimulação, obrigados a se moverem no sufocante
afunilamento de ortodoxias eclesiásticas opostas e igualmente intolerantes, tinham algo a ensinar a quem vivia
nas sociedades totalitárias do século XX e não queria renunciar a decifrar as linguagens da propaganda e as
insistentes imposições das ortodoxias ideológicas. Bastariam a vitalidade e as metamorfoses de termos como
"nicodemismo" para revelar o quanto estava viva e sensível a corda tocada por essas pesquisas.
Tribunais da Consciência
47
sempre à nossa frente o problema de uma compreensão melhor e mais aprofundada das
razões e das características da relação que se criou então entre a Igreja e a Itália. Se a
força da repressão serviu para sufocar a dissensão e a heresia, será preciso entender em
que consiste tal força. Nesse caminho deparamos com a instituição à qual é dedicada a
primeira parte da pesquisa reunida neste volume: a Inquisição. É um nome de ecos sinis-
tros: seu halo sombrio é o resíduo histórico das polêmicas batalhas que acompanharam
a longa vida da instituição. À Inquisição, desde o século XVI, recorreu-se para explicar
o aniquilamento das ideias da Reforma e o reordenamento agressivo da Igreja católica.
Fala-se desse assunto há séculos, mas não se sabe muito. Uma aura de mistério
circunda essa instituição, alimentando lendas de toda espécie. A "lenda do Grande
Inquisidor" de Dostoiévski é somente a mais conhecida entre as muitas imagens que de
seus temidos horizontes futuros o mundo moderno transpôs no passado. Testemunha
a desculpa das mais variadas funções, a Inquisição foi usada nas polêmicas sobre os
estados policiais, sobre os sistemas totalitários de nosso século, sobre o extermínio dos
judeus e assim por diante. Os romances históricos do século XIX em diante nutriram-
-se dela continuamente; ao contrário, a pesquisa histórica na verdadeira acepção da
palavra permaneceu por muito tempo detida em alguns grandes afrescos do século XIX, ·
construídos quase exclusivamente sobre a história da "outra" inquisição, a espanhola.
Naturalmente, a ignorância é inevitável ao menos em certa medida quando as
portas dos arquivos permanecem fechadas para os estudiosos: e a Inquisição romana
talvez seja hoje a única instituição histórica no mundo a esconder ainda seus arquivos
(ou a abri-los somente para seus asseclas, tendo em vista determinadas e bem contro-
ladas operações, como aquela para "reabilitar" Galileu Galilei, por exemplo). Mas esse
fechamento irredutível do poder eclesiástico às razões da pesquisa histórica não é sufi-
ciente para explicar a superficialidade das noções circulantes em matéria de inquisição
eclesiástica. Se se levar em consideração que por pelo menos dois séculos o Santo Ofício
da Inquisição foi o único poder central em operação na península italiana, reconhecer-
-se-á que nenhuma história da Itália moderna estará completa enquanto não tivermos
um conhecimento melhor desse tribunal, de seu modo de operar, de seu arraigamento
na sociedade e nas instituições dos estados italianos antes de sua união.
Mas não é uma história da Inquisição o que se pretende oferecer. Já foram escritas
muitas 34 • Uma nova e mais precisa pesquisa poderá ser feita no dia em que, extintos o
secular fechamento e o pavor eclesiástico, o arquivo romano do Santo Ofício for acessí-
vel a todos os estudiosos e seu exemplo for seguido pelos muitos arquivos eclesiásticos
34_ Uma resenha, cheia de lacunas e já envelhecida, em Emile van der Vekené, Biblioteca Bibliographica Historiae
Sanctae lnquisitionis, Vaduz, 1982. Genérico e de pouca utilidade o volume de Miroslav Hroch e Anna Skybo-
rova, Die Inquisition im Zeitalter der Gegenreformation, Stuttgart, 1985. Da vasta literatura existente dá conta o
amplo quadro de Francisco Bethencourt, L'lnquisition à l'époque moderne. Espagne, Portugal, ltalie Xyf-XJX' siecle,
Paris, 1995. Para a Inquisição Romana, além das investigações de Massimo Firpo sobre o caso Morone (cf.
Inquisizione Romana e Controriforma. Studi sul Cardinal Giovanni Morone e il suo Processo d'Eresia, Bologna, 1992),
são fundamentais os estudos de John Tedeschi, parcialmente reunidos em The Prosecution of Heresy, Collected
Papers on the lnquisition in Early Modem ltaly, Bínghamton, New York, 1991.
Premissa
48
menores espalhados por toda a Itália. Somente assim será possível sair da estéril diatribe
entre as apressadas reabilitações, em moda nesse fim do século XX, e as sumárias con-
denações de outrora. E no entanto, não esperaremos os resultados de uma pesquisa do
gênero para saber que nenhum tribunal, nenhum sistema policial é suficiente para dar
conta de uma vitória histórica como essa que implantou a Igreja católica no centro do
sistema italiano. Trata-se de compreender como a Inquisição romana conseguiu exercer
seu poder e por que conseguiu fazer isso somente na Itália. Que não se tratasse somente
de poder, de resto, é evidente, se se pensa na extensão dos territórios governados por
Roma e se considere que em batalhas de religião e de cultura vale mais que em outras
o princípio de que não basta vencer se não se sabe convencer. A relação entre poder
e persuasão acompanhou a Igreja em sua história a partir da Antiguidade tardia 35 , ou
seja, de quando ofereceu ao Império Romano uma aliança prenhe de futuro 36 • No sé-
culo XVI, em relação a esse distante início, os termos do problema parecem revirados:
reduzida a área geográfica, mas multiplicados os obstáculos pela concorrência no mesmo
terreno de variantes cristãs frequentemente mais eficientes ou mais afeitas aos poderes
políticos, a Igreja de Roma precisou recorrer a energias capazes de emular as da época
apostólica. Não se tratava apenas de eliminar ideias e livros heréticos, abolir modos de
pensar, golpear inimigos: dos modelos de santidade até as práticas para a fertilidade dos
campos havia todo um mundo de valores e de representações que precisava ser difun-
dido nos cantos mais remotos da sociedade. A esse aspecto da questão - a "persuasão" ,
justamente, pelas vias da confissão ou da missão, mas também pelas vias do tribunal
da Inquisição - é dedicada a segunda parte da presente pesquisa.
35. Período compreendido entre os séculos III e VIII d.C. (N. do T.).
36. Cf. Peter Brown, Power and Persuasion in Late Antiquity, Princeton, 1992.
Tribunais da Consciência
49
37. Giovanni Pietro Pinamonti, Opere, Venezia, Niccolà Pezzana, 1792, p. 134.
Premissa
50
madores - leigos disciplinados, clero ortodoxo - é, como o dos céus de Dante, fechado
em si e contido num empíreo que permanece imóvel: a Igreja católica não modifica sua
identidade, apenas a reafirma vigorosamente. As exigências apologéticas, como também
o empenho presente da Igreja em recuperar a hegemonia sobre as massas , orientaram
esses estudos para os trâmites ordinários do governo eclesiástico sobre a maioria or-
todoxa da população: os bispos, os párocos, a rede capilar de instituições paroquiais
e diocesanas, irradiada sobre o território, a sociologia dos sacramentos - reflexo no
passado daquilo que no presente é denominado o "catolicismo sociológico" . A historio-
grafia italiana acentuou nesses estudos os aspectos de história da atividade "pastoral"
dos chefes ordinários do rebanho católico - o bom pároco, o bom bispo - e foi atraída
pelas formas institucionais de governo confiadas ao clero secular. Estudar a história da
Igreja na Itália significou quanto muito, nesse segundo pós-guerra, descrever estruturas
da organização eclesiástica diocesana: paróquias e dioceses , bispos e cardeais, sistema
de benefícios, visitas pastorais, seminários para o clero, registros paroquiais e assim por
diante. Pode-se intuir o quanto tenha influído sobre isso o caráter contemporâneo de
uma igreja que se tornou, com seus bispos e seus párocos, uma estrutura organizativa
para a orientação política das massas católicas. De qualquer modo , a verdade é que esse
caminho acabou levando a colocar na sombra ou a esquecer completamente os aspectos
de controle duro e policial da ortodoxia que foram retomados à época no tribunal da
'
Inquisição - e de fato bem poucos traços dessa realidade encontram-se nas histórias da
Igreja de orientação confessional e apologética.
Foram os hereges e os mártires da Reforma que experimentaram esses aspectos:
o ordenamento inquisitorial, as estruturas policiais e judiciárias da repressão . Demo-
nizada pela polêmica protestante, atacada com determinação pelos iluministas até
desativar sua ligação com o "braço secular", a Inquisição atraiu em seguida as fantasi as
românticas que na total compenetração de religião e poder intuíram a prefiguração
de moderníssimas formas de controle político. Herdeiros da imagem demoníaca do
"grande Inquisidor" , os historiadores de nosso tempo forneceram algumas respostas
concretas, com base em pesquisas, às hipóteses dostoievskianas (relações genealógicas
entre Inquisição e totalitarismos modernos; função determinante da Inquisição no
processo de evacuação do mágico e de mundanização do sagrado). Em outro sentido,
porém, voltou-se a dar atenção ao sistema de controle inquisitorial instaurada pela Igreja
medieval e chamada para novas tarefas no século XVI. A importância dessas estruturas
emergiu indiretamente dos estudos orientados para a religião das classes subalternas,
o mundo mágico e folclórico: processos como a descolonização de um lado, o esva-
ziamento dos campos italianos de outro, alimentaram uma forte demanda de história
dos "selvagens", internos e externos à sociedade europeia, de reconhecimento de seus
mundos mentais: os universos da diversidade, da dimensão espacial foram transferidos
para a temporal. Relegados no passado por um mundo orientado para se tornar uma
aplainada "aldeia global", fizeram ouvir na Itália talvez mais do que em outro lugar o
apelo profundo da nostalgia e do remorso - tanto mais profundo quanto mais brusca
foi a ruptura e rápido o afastamento. Os testemunhos mais nítidos daquele mundo
Tribunais da Consciência
51
38. Período de 1720 a 1861 em que parte da península esteve sob domínio da casa de Saboia, sob a denominação
Reino do Piemonte-Sardenha (N. do T.).
39. A frase de Santoro é referida em uma carta do embaixador florentino Giovanni Niccolini, de dezembro de
1596; Cf. Giuliano Procacci, Machiavelli nella Cultura Europea dell'Età Moderna, Roma/Bari, 1995, p. 112.
Premissa
52
40. O texto de Possevino, sem data mas endereçado ao superior geral da Companhia de Jesus Claudio Acquaviva
para ser submetido a Clemente VIII, por ocasião do projeto de reforma das ordens religiosas, intitulava-se:
Che il modo di ridurre le religioni alia pe-rfettione non solo consiste nel ridurle ad osservare i primi loro precetti et regole,
colle quali furono da Dio istituite, ma anco in osservar quelle che caminano bene, accioché non se sviino (Archivum
Tribunais da Consciência
53
Romanum Societatis Iesu Opp. NN., 314, cc. 32r-37v). É evidente o eco tácito do primeiro capítulo do livro
terceiro dos Discursos; no texto do memorial, a referência se faz ainda mais intensa.
41. B. Croce, Storia dell'Età Barocca in Italia, Bari, 1967, pp. 19-20.
4 2. Luigi Morandi, La Religione Necessaria alia Probità. Ragionamento... Ove Anca si Prova, che la Civile Società dee Aver
Cura della Religione, Bologna, 1803.
Premissa
LISTA DAS ABREVIACÕES
'
18. Giuseppe Maria Crespi, A Comunhão, cerca de 1712. Dresden, Staatliche Kunstam-
mlugen, Gemãldegalerie Alte Meister (p. 693).
19. Giuseppe Maria Crespi, São João Nepomuceno Confessa a Rainha da Boêmia, cerca de
1740. Torino, Galeria Sabauda (p. 694).
20. Giuseppe Maria Crespi, A Missão, cerca de 1730-1740. Heidelberg, Kurpfãlzisches
Museum (p. 695).
21. Aureliano Milani, A Missão, segunda década do século XVII. Bologna, Coleção
Molinari-Pradelli (p. 695).
22. Jacques Callot, Os Mártires do Japão, cerca de 1630. Nancy, Museu Histórico Lorrain
(p. 696).
'
Tribunais da Consciência
PRIMEIRA PARTE
A INQUISIÇÃO
PRÓLOGO
A EXPERIÊNCIA CALABRESA
E ntre 1561 e 1563, o cenário da cristandade italiana é ocupado pelos últimos, intensos
e um tanto difíceis anos de trabalho da assembleia de bispos reunida em Trento. São,
na Itália, anos de lutas intelectuais, de contrastes e debates de tons ameaçadores: mas,
após a guerra de Siena e após Cateau-Cambrésis, a paz estabelecida pelo domínio espa-
nhol não parece mais prejudicada. No entanto, na outra extremidade da península, na
Calábria, há uma guerra em curso. Não uma guerra espiritual, de escrituras e de batalhas
teológicas, mas uma guerra combatida por um exército regular contra populações inermes,
mulheres, velhos, crianças; combatida até contra os cemitérios e os ossos dos mortos, que
foram desenterrados e espalhados. Foram vítimas dela os habitantes de alguns vilarejos
da costa tirrena da Calábria, Guardia e San Sisto: em junho de 1561, um corpo de infan-
taria sob comando do governador Marino Caracciolo destroi as colheitas, abate as casas,
degola e enforca os habitantes, manda-os à fogueira, mata-os lançando-os do alto de uma
torre. Não foram poupados sequer os ossos dos cemitérios. É um pequeno episódio, que
poderia ser confundido com o ramerrão de revoltas e de repressões armadas que marca a
vida dessas sociedades, sempre expostas aos riscos do banditismo: o tribunal instituído no
local, que condenou à morte os que escaparam do extermínio, recorreu para isso, entre
outras coisas, à acusação de rebelião e de porte de armas. Mas a acusação mais pesada era
a de heresia. Os habitantes dos vilarejos calabreses eram valdenses e portanto hereges:
chegados em levas sucessivas à Itália meridional, tinham sido capazes de não despertar
desconfiança, simulando e dissimulando. Haviam mantido a própria fé à sombra e no
silêncio, protegidos pelos senhores feudais do lugar. Mas com a adesão dos valdenses à
profissão de fé reformada, no sínodo de Chanforan (1532), as coisas tinham mudado.
Terminada a época da simulação, tinha início a da profissão ou "confissão" pública. A
decisão do sínodo fora levada ao conhecimento dos valdenses da Calábria por meio da
inflamada pregação de alguns pastores vindos do norte. O destino trágico desses pasto-
res - Giacomo Bonelli morreu na fogueira em Messina (1560), Gian Luigi Pascale foi
enforcado e queimado em Roma no mesmo ano - é um sinal de mudança dos tempos.
Havia começado a era confessional, no duplo sentido da palavra: aderir a uma "confissão
de fé" significava aceitar uma série de doutrinas contidas num documento escrito e dar
prova disso publicamente, lutando em prol da vitória da própria opção religiosa sobre as
demais. Não eram mais possíveis a ocultação e a simulação, que durante séculos tinham
permitidü às úHllllnidades valdenses sobreviwrem. Enqunnto Pascnle ia parar junto com
um companheiro nús dtX·eres de FuscnlJo, o povo de San Sisto rt:belava-se contra o Mar-
quês dt> Mültalto: e a reação das autoridades politkas e religiosas não se fez espernr. Os
tr1ass1:\('res e as fugueims que deram fim à história desses "enclaves" valdenses foram um
passo à fu!nte na direçfü.l daquela uniformidade religiosa cujas características doutrinais
esrnvam sendo elaboradas pelo concilio de Trt'nto.
Dos tnúrtos. mártires cnnsdt'ntes e vítimas ignnrns , não resta muito a ser dito.
Mas não fornm \)S únkos apagados da história . Quem sobreviveu o suficiente para ser
pwcessado, consignou pensamentos e palavras nos autos processuais: os autos , trans-
mitidos a Rmna pdos inquisidores, ainda têm sido ignorados , devido ao que um histo-
riador do século XIX deno1ninou "tolo ciúme" do poder eclesiástico' . Mas o que Roma
escondia, a Europa reformada não demorou a saber. As publicações difundidas pela
propaganda dos adversários traziam notícias do fato e celebraram seu martírio: apenas
dois anos mais tarde, em Basileia, era publicada a narrativn de John Fox 2• A batalha
travada pelas milícias espanholas contra as populações desarmadas trnnsferia-se para o
campo da propaganda religiosa: e o que fora uma fácil vitória militar transformava-se
numa derrota de efeitos duradouros . A intolerância da monarquia espanhola tornou-
-se conhecida da opinião culta europeia e os nomes das vitimas foram venerados como
mártires da fé.
Mas na Calábria a vida era retomada sob a égide da nova ordem . As campanhas
das publicações em outros países da Europa de nada valeram contra a repressão local.
O documento mais eloquente é uma lista de familias elaborada por razões fiscais em
1561: "foi morto nesse verão passado como luterano" , "está preso em Cosenza por ser
luterano". "está em fuga por ser luterano"; e as casas, quando não eram queimadas,
eram requisitadas pela Cúria; e, se ainda eram habitadas por mulheres ou adolescentes,
bastava frequentemente um vestígio da presença dos bandidos ("a cama é grande e vê-
•se [. .. J dormiram ali mais pessoas"), para atear fogo em tudo 3 • Nem todos morreram,
de qualquer modo: houve os que sobreviveram durante um tempo - o tempo de um
processo e de uma condenação - e os que foram deixados vivos . Dois jesuítas se ocupa-
ram dos condenados, os padres Lucio Croce e Juan Xavier, com a tarefa de "reduzi-los" ,
ou seja, fazê-los morrer não como rebeldes, mas arrependidos e resignados . Os jesuítas
eram mestres nesse tipo de coisa. Seu relatório ao superior geral da Companhia dá
conta de um sucesso total: "[. .. J Todos os que foram sentenciados ... foram reduzidos;
e em seguida nós os confessamos e acompanhamos um de cada vez ao suplício, foram
todos degolados e esquartejados"4.
1. Luigi Amabile, II Santo Officio dell'lnquisitione in Napoli, Narrazione con Molti Documenti lnediti, Città di Casrello,
1892, vol. I, p. VII.
2. Rerum in Ecclesia Gestarnm, quae PostTemis et Periculosis his Temporibus Evenerunt. .. , Basileae, 1563, p. II, liv. li, f. .137.
3. "Numerazione dei Fuochi nel 1561 ", publicada por Amabile, li Santo Officio dell'lnquisitione in Napoli, op. cit. ,
vol. II, Documenti, pp. 83-92 .
4. Cf, Maria Scaduto S. 1., Tra lnquisitori e Riformati. Le Missioni dei Gesuiti tra Valdesi della C'..alabria e delle Puglie,
em AHSI, XV, 1946, p. 9 do extrato.
A Inquisição
63
5. Francesco Renda (La Fine del Giudaismo Siciliano. Ebrei Marrani e lnquisizione Spagnola Prima, durante e dopo la
Cacciata del 1492, Palermo, 1993, pp. 148 e ss.) sugeriu essas observações, estudando as listas dos nomes de
1890 sicilianos inquiridos por judaísmo entre 1492 e 1572.
na época da Reforma; mas entre todos foi o estado espanhol que reconheceu nele um
objetivo fundamental, a ponto de aplicar nisso todos os seus recursos. Em um estado
que agregava uma grande quantidade de povos diferentes por língua, tradições, reli-
gião, a causa da unidade religiosa era a da unidade do estado; não se podia permitir
aos mouros de Granada celebrarem as núpcias com seus ritos, usarem a língua árabe,
vestirem-se de determinados modos sem serem vistos como inimigos internos, aliados
daqueles piratas muçulmanos que devastavam as costas mediterrâneas. E o mesmo valia
para os protestantes ou para os adoradores americanos do sol. A guerra e o massacre dos
rebeldes não resolviam o problema - mesmo porque a política cristã do rei de Espanha
não pretendia a destruição dos diferentes, mas sua conversão. Por isso, a persuasão e a
conquista cultural foram tarefas mais importantes ainda do que a repressão.
A conversão é a palavra que domina a história do mundo unificado pelas des-
cobertas e conquistas europeias. Do significado de origem hebraica, de volta atrás,
à verdade de uma tradição abandonada e traída, havia muito o termo passara, com
o cristianismo, a significar uma guinada, uma mudança para uma verdade nova e
conquistadora. Mas como se dava a conversão? No grande cadinho da Espanha da
"reconquista", o sinal da mudança tinha sido o batismo cristão imposto às populações
relutantes. Mas o efeito frustrante, a contínua incerteza e ansiedade no que se refere à
sinceridade daquela mudança imposta pela força haviam minado a sociedade espanhola
e conferido características raciais ao antigo ódio cristão pelos judeus. A descoberta
da América com suas populações dóceis e acolhedoras tinha entusiasmado os frades
1 habituados a bater de frente com a resistência dos judeus: haviam sido difundidos en-
tusiásticos relatos sobre aqueles povos que pareciam tão naturaliter cristãos a ponto de
merecerem um recrutamento em massa sob a nova fé , com ritos batismais simplificados
e administrados rapidamente a multidões de indígenas. Tão fácil parecia essa expansão
mundial do cristianismo a ponto de reacender antigas expectativas milenaristas: um
mundo unido como um único rebanho sob um único pastor - eis o sonho que de
Colombo em diante encontrou muitos dispostos a sonhá-lo. Era uma prática da con-
quista de tipo sumário, baseada numa confiança absoluta no mágico efeito do batismo
administrado. Mas a desilusão não se fez esperar: quando, em 1539, descobriu-se no
México que um príncipe tolteca sob sua nova identidade de convertido - chamava-se
don Carlos - alimentava às escondidas o culto dos antigos deuses , até os mais fervidos
defensores dessa evangelização tiveram de admitir que nem o batismo nem o nome
latino eram suficientes para criar a nova identidade. Desde então, foram desenvolvidas
uma discussão teológica e uma prática disseminada que tentaram determinar os ins-
trumentos para obter uma transformação efetiva da personalidade, não uma simples
mudança dos indícios externos de caracterização. De um lado, representou o triunfo
da investigação etnográfica e, de outro, da catequese como ensinamento, conquista
cultural, colonização do imaginário 6 •
6. Sobre a prática etnográfica (em particular, a de Bernardino de Sahagún) e mais geralmente sobre a questão do
"outro", remete-se a Tzvetan Todorov, La Conquête de l'Amérique. La question de l'autre, Paris, 1982.
A Inquisição
65
Advirto ainda a V.R, que uma coisa é ser confessor, outra é ser juiz: o confessor crê em tudo o
que lhe é dito: 0 juiz desconfia sempre da verdade do réu, et massime in hoc genere causarum; e porque
7. Carta de Xavier de 25 de junho de 1561, em Scaduto, Tra Inquisitori e Riformati, op. cit. , p. 11.
8. Cf. John W. O'Maley, The First ]esuits, London, Cambridge (Mass.), 1993, pp. 20 e passim.
V. R. escreve-me que se se usasse de muito rigor etc ... que fugiriam do lugar, prouvesse a Deus que
tal geração nunca tivesse ali entrado 9 •
Uma rede de imagens e uma extensa série de argumentos circundavam essa regra
fundamental: fazia-se referência à arte médica de curar os ferimentos - e a figura do
médico é das que mais aparecem quando se trata de definir a função do eclesiástico
nessa época. Mas prevalecia a imagem do juiz, que portava tons ainda mais graves do
que aquela também severa do médico impiedoso. A exortação a duvidar e a desconfiar
até o fim apoiava-se no conhecido hábito da dissimulação a que eram propensos os
hereges. Esses valdenses tinham conseguido sobreviver por tanto tempo, graças à sua
habilidade em dissimular- "andar com fraudulência e ... enganar os católicos" - escon-
dendo a herança de ideias recebidas de "seus ancestrais". Era preciso desmantelar sem
piedade esses artifícios. Naturalmente, algumas concessões táticas podiam ser feitas ;
por exemplo, devia-se exumar os ossos dos mortos para queimá-los, segundo as regras
da Inquisição, mas não era preciso fazê-lo de imediato, se isso ofendia e aterrorizava
quem estava entre a conversão e o recrudescimento herético: "cuidamos primeiro dos
vivos, e depois faremos o que deve ser feito em relação aos mortos" .
A oposição entre confiança e desconfiança, suavidade e violência, não era um
detalhe secundário dessa história. Era, na realidade, a expressão de um problema
fundamental na estratégia da Igreja daquela época. De resto, os dois interlocutores es-
tavam aptos, pelas posições que ocupavam e pelos deveres que comumente cumpriam,
a representar com extrema clareza as escolhas implícitas na oposição entre confessor e
juiz. Um - o cardeal Michele Ghislieri - era o juiz por excelência, o "grande inquisidor"
que de Roma controlava e suspeitava. O outro pertencia a uma congregação de clérigos
regulares que, embora de surgimento recente, já fizera uma escolha decisiva a favor da
confissão. O nobre lfiigo de Loyola, desde que decidira tornar-se Inácio, "o peregrino",
tinha experimentado na própria pele a dureza intolerável da suspeita inquisitorial;
sua Companhia optara pelas artes da persuasão e por uma obra de evangelização que
tinha conduzido seus membros entre os não cristãos de todo o mundo. Os resultados
estavam inscritos nas experiências daqueles dois interlocutores: se Ghislieri precisara
fugir precipitadamente da território cristão de Bérgamo para salvar sua vida, Rodriguez
chegava em 1563 à Apúlia, recém-chegado de uma viagem ao Egito, durante a qual ele e
seu ~ompanheiro Gian Battista Eliano, judeu convertido, tinham podido viver tranqui-
lamente entre mulçumanos e judeus e reconduzir à prática religiosa os escravos cristãos.
Esses homens tinham, naturalmente, muito em comum: sobretudo, comparti-
lhavam o objetivo de combater contra o demônio e de arrancar-lhe as almas para salvá-
-las. Os jesuítas tinham se constituído em companhia justamente para combater sob o
estandarte de Cristo contra o exército do demônio: Inácio tivera uma visão do mundo
dividido entre os dois exércitos e tinha exposto essa visão no início de seus Exercícios
Espirituais, para explicar a necessidade de formar fileiras e de dedicar a própria vida
9. Carta de 8 de setembro de 1563, em Scaduto, Tra lnquisitori e Riformati, op. cit., pp. 44-46, em particular a p. 45.
A Inquisição
67
naquela luta sem quartel que tinha por objeto as almas. Frei Michele Ghislieri sabia,
portanto, que podia contar com a compreensão de Rodriguez ao lhe escrever sobre os
"novos labirintos" nos quais o demônio fazia cair suas vítimas e sobre a necessidade de
levar até o fim a atividade inquisitorial:
Porém, visto que o Senhor Deus escolheu-me como instrumento para ajudá-las, e o demônio
quis impedir obra tão santa por meio de seus ministros, deveis animar-vos muito mais, para que Jesus
Cristo, nosso redentor, seja vitorioso 10 •
por sua vez, estava convencido de que o verdadeiro arrependimento era medido pela
colaboração efetiva oferecida pelos arrependidos com revelações e denúncias e que so-
mente nesse caso era possível conceder descontos de pena. A organização herética que
ele queria desfazer estendia-se da Apúlia ao Piemonte e à França; e por isso insistia em
exigir que todos confessassem quem eram seus "cúmplices, não somente de sua terra,
mas de todos os outros lugares, na Apúlia, Piemonte França, ou onde quer que seja,
porque do contrário seria pior para eles, que seriam falsamente convertidos , e quando
descoberta a verdade de que se tinham calado maliciosamente seriam punidos por
relapsos" 14 • Em suma, para Rodriguez bastava o arrependimento da confissão, ao passo
que Ghislieri queria algo diferente.
Não era uma oposição radical: dizia respeito aos meios , não aos fins . Tanto é
verdade que os dois colaboraram com recíproca satisfação. Ao fim e ao cabo, Rodriguez
pôde finalmente experimentar sem reservas sua estratégia do arrependimento secreto,
da renúncia às formas penais do juiz. Isso ocorreu no final de seu trabalho nas terras
dos valdenses. Arrumadas as coisas na Apúlia, Rodriguez fora mandado à Calábria, às
aldeias de Guardia e de San Sisto, cinco anos após a sangrenta expedição militar. O
tempo transcorrido não tinha sido suficiente para apagar a lembrança daqueles terrí-
veis dias ; mas tinha sido tempo bastante para que as crianças crescessem e os jovens
de então se tornassem adultos. Esses jovens, essas crianças haviam sido poupadas por
terem aceitado abjurar sumariamente os ensinamentos recebidos. Era legítima a des-
confiança de que algo da "erva daninha" tivesse permanecido dentro deles; Rodriguez
apresentou-se àquele povo que tentava retomar uma existência normal e pediu que
completassem o que ficara faltando nas abjurações passadas. Tinha em mãos uma ga-
rantia da congregação romana do Santo Ofício de "que não seriam punidos , dizendo a
verdade sobre o que havia faltado naquelas agitações" , era um documento escrito, que
podia ser exibido, coisa que Rodriguez fez : "E enviada que foi a dita asseguração para
que seja mostrada a eles ... se dispuseram, tendo confessado a verdade do que faltara
dizer então em seus exames" .
Cerca de novecentas pessoas dispuseram-se a confessar: "graça mui especial tanto
para a saúde de suas almas , como para o perigo que corriam de serem punidos, que
concedeu a Igreja depois das grandes perturbações que atentaram" . Era, ao fim e ao
cabo , uma espécie de ressarcimento póstumo e tardio. Mas era também um compro-
misso e uma redução da confissão inquisitorial a confissão secreta e sem consequências
penais , o que alterava substancialmente o estatuto da práxis inquisitorial. Rodriguez
tinha tanta consciência disso a ponto de solicitar que a coisa não viesse a ser conhecida
nem sequer no interior da Companhia: "E esta última parte por ser coisa rara, é bom
que mesmo de nossos poucos a saibam" 15 •
Mesmo encoberto pelo segredo, o episódio não devia permanecer isolado.
Encontram-se traços de uma história muito similar em um documento interno da Com-
A Inquisição
69
16. É Scaduto (idem, p. 22) a contar essa história, reconstruída com base em um relatório inédito do padre Silveri
ao padre Sacchini da Companhia de Jesus.
17. Carta de 22 de agosto de 1561, idem, p. 12.
18. "Nunca vi terra mais necessitada das coisas do Senhor do que esta [... ) Esta ilha será minha Índia, digna de
mérito como aquela do preste João", carta a Inácio de Loyola, em MHSI, Epistolae Mixtae, ex variis Europae
locis ab anno 1537 ad 1556 scriptae ..., III (1553), Madrid, 1900, pp. 115 e ss. V. neste volume o cap. XXVlll,
parte lll.
A Inquisição
I
A FÉ ITALIANA
A muitos pareceu coisa fácil a fé cristã, a qual alguns ainda põem entre as virtudes como
suas companheiras, o que fazem porque não a provaram com nenhuma experiência, nem jamais se
deleitaram de tanta virtude que nela existem 1•
Com essas palavras podemos considerar postas as premissas da nova vida que
o instituto medieval da Inquisição conheceu no século XVI. A matemática medieval
das virtudes é subvertida; a fé desvincula-se da esperança e caridade, torna-se difícil,
para poucos. Era o necessário para que a instituição antiga anteposta às coisas de fé
conhecesse uma nova juventude.
Colocada assim, na abertura do texto mais revolucionário do monge saxão,
essa afirmação surge como o reconhecimento do caráter de uma nova era. A fé , desse
momento em diante, esteve no centro das discussões e dos conflitos: "sola fide" para
quem concordou com Lutero, a fé formada ou enriquecida pela caridade, segundo
as posições defendidas pela ortodoxia católica, que tentavam salvar a tradição. A
esperança ficou em posição ainda mais subordinada, ignorada por quem defendia a
certeza da salvação eterna e por quem sofria o terror da eterna danação. Entretanto,
eram justamente esperança e caridade a dominar as experiências religiosas da socie-
dade italiana. Na Roma de Leão X, cardeais e altos prelados , mercadores e homens
de letras eram os membros da "Companhia da Caridade", fundada em 1519 pelo
cardeal Giulio de Médici, o futuro Clemente VII 2• O ponto capital, solenemente
1. [Lutero] Opera Divina della Christiana Vita nuovamente Stampata, s.l. n.a., c. A Ir.
2. Cf. P. Paschini, "Le Compagnie del Divino Amore e la Beneficenza", em __, Tre Richerche sulla Storia della
Chiesa nel Cinquecento, Roma, 1945, p. 51.
72
3. Gli Statuti dei/a Compagnia della Charità di Roma, por Antonio Biado, Roma s.a. (1535), pt. II, cap. XI, c. C IVr.
4. "(.. .] Colocando como premissa uma amadurecida e unânime deliberação, e um consentimento, foi const i,
tuído, e ordenado que esta Companhia chame-se perpetuamente a Companhia da caridade dos cortesãos
[... ]" (idem, pt. II, cap. I, c. B IVr). Fala-se em "societas charitatis curialium" na redação latina. Statutorum seu
Constitutionum Societatis Charitatis de Urbe, Romae 1547, c. 711. (Agradeço a Daniela Solfaroli a indicação desse
trecho).
5. Cf. C. Oionisotti, "Chierici e Laici", em Geografia e Storia dei/a Letteratura Italiana, Torino, 1967, PP· 47-73-
- ~0 1· 1·denti-
6. II No110 Corteggiano de Vita Cauta et Morale, s.a. n. 1 (Venezia, 1530?), c. O III11. O autor d o texto nao .
ficado. Há uma possível atribuição a Mario Equicola, que porém não convenceu totalmente Cario Dionisortt
(cf. Gli Umanisti e il Volgare fra Quattro e Cinquecento, Firenze, 1968, p. 112 n.).
7. Gli Statuti della Compagnia della Charità di Roma op. cit. , cc. C I111-C IIIr.
A Inquisição
73
aos deserdados, não pretendia porém eliminar as barreiras sociais e queria garantir
seus membros da vergonha da desclassificação. Até nisso, a companhia romana refletia
perfeitamente as preocupações das classes dominantes italianas e o deslocamento da
cultura mercantil das cidades para os modelos aristocráticos de um patriciado que estava
disposto a inclinar,se para os pobres (para ganhar o Paraíso), mas não a se confundir
com os pobres.
A companhia da caridade dos cortesãos era composta "dos homens importantes
e em grande número desta Corte, que cresce a cada dia em quantidade, devoção e
entrada para a obra da caridade, que assim se denomina" 8 • E não era absolutamente
uma resposta improvisada ao desafio do obscuro monge saxão. "Plantar a caridade
nos corações" fora a palavra de ordem das Companhias do Amor Divino, as associa,
ções confraternais criadas por obra do infatigável tabelião genovês Ettore Vernazza
e rapidamente difundidas em Nápoles e Roma. Ocupavam,se com hospitais e com
moças casadouras, com condenados à morte e sifilíticos; mas faziam isso de modo
diferente daquele publicamente exibido pelas confrarias medievais. O efeito de sua
intervenção era o de fazer funcionar solidaristicamente a sociedade urbana, de acor,
do com a tradição daqueles hospitais que, por muito tempo, foram admirados pelos
viajantes estrangeiros. Lutero, durante sua viagem a Roma em 1510, ficara tocado pela
assistência que "esposas honestíssimas" prestavam espontaneamente nos hospitais
citadinos e pelo tratamento paternal que era oferecido na cidade de Florença aos
recém,nascidos abandonados 9 • Mas, com Vernazza e com o estilo genovês, secreto e
lacônico, de suas Companhias, a caridade tornara,se quase exclusivamente um modo
para aperfeiçoar,se espiritualmente e predispor,se a uma experiência direta e íntima da
relação com Deus. A história das várias companhias do gênero criadas na Itália entre
os séculos XV e XVI ainda permanece parcialmente encoberta para nós pelo segredo
em que elas quiseram atuar: mas é evidente que não se tratou somente dos muitos
ramos nascidos de uma semente por mágica fertilidade. Naquele período, confrarias de
origem antiga modificaram seus ordenamentos e viram surgir em seu interior grupos
restritos que almejavam não o exercício tranquilo de tradicionais obras assistenciais
e sim atingir novos objetivos que podem ser resumidos numa palavra: a perfeição. É
o caso das confrarias de derrotados que se dedicavam ao conforto dos condenados à
morte: por volta da segunda metade do século XV, surgem no interior delas grupos
restritos, especializados nos colóquios com os condenados que se torna, de coral e
rumorosa exortação à morte cristã, um diálogo pessoal, um momento de intensa e
difícil experiência espiritual. Uma dessas confrarias, a companhia florentina dos Ne,
gros, transferida para Roma e auxiliada por pontífices favoráveis à "florentinização"
8. Carta de Girolamo da Solana aos confrades de Veneza, 1° out. 1524, em M. Sanuto, I Diarii, Venezia 1879-
-1903, t. XXXVII, p. 36.
9. M. Lutero, Discorsi a Tavola, trad. it. de L. Perini, Torino, 1969, p. 272 (1° ago. 1538). Sempre aos hospitais
florentinos foi dedicado o amplo elogio de William Thomas, The History of ltalie ... , London, 1549, p. 138 (cf.
Edward P. de G. Chaney, uGiudizi lnglesi su Ospedali ltaliani", 1545-1789, em Timore e Carità. I Pooeri nell'ltalia
Moderna, Cremona, 1982, pp. 77-101).
A Fé Italiana
74
10. V. do autor deste volume "II Sangue e l'Anima. Ricerche sulle Compagnie di Giustizia in ltalia", em Quaderni
Starici, LI, 1982, pp. 959-999. Irene Polverini Fosi ("Pietà, Devozione e Política: Due Confraternite Fiorentine
nella Roma dei Rinascimento" , em Archivio Starico italiano, CLIX, 1991, pp. 119-161), estudando os modos
do estabelecimento romano das companhias florentinas, destacou o estilo mais individualista da piedade da
confraria de San Giovanni Decollato em relação ao estilo "nacional" de sua rival.
11. As reminiscências de Battistina Vernazza foram editadas por A. Bianconi, I.:Opera delle Compagnie dei Divino
Amore nella Riforma Cattolica, Cidade de Castello, 1914, p. 66.
12. Ver do autor deste volume "Le lstituizioni Ecclesiastiche ele Idee Religiose", em P. Rossi (org.), Il Rinascimento
nelle Corti Padane. Società e Cultura , Bari, 1976, pp. 125-166; em particular p. 136.
A Inquisição
75
13. H. Jedin, "Contarini und Camaldoli", em Archivio Italiano per la Storia della Pietà, II, 1959, pp. 51-118. Cf.
Elisabeth G. Gleason, Gasparo Contarini, Venice, Rome and Reform, Los Angeles, Berkeley, 1993, que fala de um
conflito de valores entre cultura humanista e espiritualidade tardo-medieval (p. 22).
14. Dionisotti, Chierici e Laici, op. cit.
A Fé Italiana
76
15. Trattado della Charità Utilissimo, agora em V. Giovanni Leonardi Pascucci, Una Scelta Radicale per il Vangelo,
Lucca, 1991, pp. 250-261 ; em particular p. 254.
A Inquisição
77
devia ser justamente a exaltação do sistema assistencial como prerrogativa não italiana
mas romana: e na Roma da Contrarreforma, apinhada de peregrinos para o jubileu,
um advogado dos Países Baixos devia exortar à admiração dos triunfos da caridade, já
identificada tout court com a própria religião, ou ao menos com a pietas 16 •
Essa que definimos como a "religião da caridade", com seu vasto e exuberante
sistema de iniciativas, associações, instituições, estava fortemente enraizada na socie-
dade italiana: e era ligada por mais fios àquela que poderíamos chamar a "religião
da esperança" . A capacidade de ligar a relação com Deus à relação com o bem do
próximo (fazendo resultar o todo em um processo de aperfeiçoamento de si mesmo)
dizia respeito também aos mortos. A ação dirigida aos defuntos que Lutero excluía,
eliminando as indulgências, era a ponta emergente do sistema da caridade. Onde Lu-
tero via o arbítrio de um papado esquecido da palavra de Deus, outros, ao contrário,
viam a resposta benéfica a uma demanda de esperança que se projetava na vida futura.
Ir em busca "dos perdões" era um grande rito social, no qual as crônicas das cidades
italianas detêm-se de bom grado: era o surgimento de uma difusa necessidade coletiva
de eliminação do passado, de novo início. Era uma necessidade que , se numa época
não distante explodira em movimentos devocionistas de grande amplitude, agora tinha
sido como que canalizado pela oferta institucional de momentos e rituais precisos
para obter individualmente a abolição das cargas de culpa acumuladas passo a passo.
Se na sociedade italiana do século XVI encontravam-se apenas raramente movimentos
devocionistas como aquele medieval dos Brancos 17, a causa deve ser procurada também
na contínua oferta de indulgências gerais e especiais, que todo pregador tinha em seu
equipamento quando se dirigia a um lugar para desenvolver o ciclo do Advento ou da
Quaresma. Um dos primeiros polemistas italianos contra Lutero, o agostiniano An-
selmo Botturnio, usou como prova da eficácia das indulgências um episódio que lhe
acontecera enquanto pregava para o Advento em Piacenza: dois cônjuges, que tinham
recebido oportunamente um "perdão" especial para si mesmos, voltaram depois para
se queixarem de que sua casa estava infestada de espíritos. O protesto dos visitantes
noturnos devia-se ao fato de ambos terem se esquecido de obter a indulgência para seus
mortos; somente depois de ter sido sanada a falha, os espíritos hostis tinham voltado a
ser os bons e silenciosos protetores da família . O sistema das indulgências - ou, como
se preferia dizer então na Itália, dos "perdões" ou das "perdoações" - oferecia encontros
periódicos a quem desejava apagar o passado e retomar esperança no futuro (inclusive
o futuro depois da morte). Apagá-lo para deixar o homem diante de si mesmo, com o
peso de seus erros, com a ligação cortada com seus mortos, contradizia radicalmente o
sistema vigorosíssimo das trocas sociais, daquelas entre os vivos como daquelas que os
vivos mantinham com os mortos. Nas cidades italianas, um rico passado falava através
A Fé Italiana
78
18. Cf. Pier Roberto Scaramella, Le Madonne dei Purgatorio. Iconografia e Religione in Campania tra Rinascimento e
Controriforma, Gênova, 1991.
19. Cf. S. Seidel Menchi, Erasmo in ltalia 1520-1580, Torino, 1987.
20. Cf. W. Cantwell Smith, The Meaning and End of Religion. A New Approach to the Religious Tradition of the Mankind,
New York, 1964.
A Inquisição
79
21. Sententia contra don Petrus de Lucca qui novam Mantue predicavit heresim, Romae, 1511. Cf. F. Ascarelli, Anna!i
Tipografici di Giacomo Mazzochi, Firenze, 1961, p. 50. Consultei a cópia conservada na Biblioteca Corsiana de
Roma. Do sermão de Pietro Bernardini, Delio Cantimori sublinhou a proposta de fórmulas que garantiam
a salvação imediata a quem as pronunciava, sem necessidade de indulgências (cf. "Le Idee Religiose del Cin-
quecento. La Storiografia", em Storia della Letteratura Italiana, vol. V, Milano, 1967; agora em Eretici ltaliani dei
Cinquecento e altri Scritti, Torino, 1992, pp. 591-595).
22. Referência ao padre dominicano Girolamo Savonarola (N. do T.).
23. Cf. O. Nicoli, Profeti e Popolo nell'ltalia dei Cinquecento, Bari, 1984.
24. "Sua Santidade anda mui atarefado (com o concílio) e naturalmente causa-me infinita piedade ... Não obstante
eu dizer que nosso Senhor está repleto de trabalho, mesmo assim, ele conversa todas as noites por duas ou
três horas conosco, seus servidores. Na outra noite, entre outras, refletiu-se sobre as opiniões de V. S. sobre a
A Fé Italiana
80
diurnas , cumpre notar - contra antigas e novas tendências em especular sobre "partidos"
religiosos no interior da Cúria - o caráter periférico das questões teológicas (incluindo
a Reforma luterana) na ótica política e italiana dos papas e de seus cortesãos.
Justamente em oposição a esses papas e ao sistema de poder que representavam - ao
poder, dizia Francesco Guicciardini , dos "malditos padres" - dava-se ouvidos às novida-
des que vinham do norte, de além dos Alpes, lugar perigoso de novidades nas profecias,
mas também lugar de proveniência dos exércitos invasores. Um dos primeiros sinais de
interesse pelas ideias de Lutero é encontrado no escrito de um florentino : nele se conta
a viagem imaginária de dois savonarolianos que, em 1521, rumam para o norte para
saber pessoalmente quem era o tal Lutero, que lhes parece o realizador das profecias de
frei Girolamo 25 • A longa crise florentina na passagem da república ao principado tornou
a cultura política capaz de perceber com antecipação e extraordinária lucidez temas e
problemas que deviam tomar conta de toda a Itália. A viagem imaginada circunscreveu-
-se ainda na busca do já conhecido: mas a carga antipapal e anticlerical constituiu uma
força real no surgimento de uma opinião filoluterana na Itália. Poucos anos mais e ao
Lutero duramente rebelde nas ideias quanto à Igreja de Roma deviam chegar apelos
e reprovações. "Se tivesses continuado assim como tinhas começado, limitando-te à
purificação dos costumes do clero, sem desencadeares batalhas de doutrina - mandava
dizer a Lutero o humanista de Reggio Ludovico Parisetto - não te teria privado de meu
favor" 26 • E Guicciardini, com mais intensidade: "Teria amado Martino Luther tanto
quanto a mim mesmo" 27 • E ao contrário, "aquele frade Martinello Luterio - escrevia em
1526 o humanista Pellegrino Morato - com seu barro e lama em nosso tempo cobriu de
tal modo nossa fé que quase toda ela foi mudada" 28 •
As novas ideias pareciam encontrar terreno fértil sobretudo entre os humanistas
e mestres-escolas. A circulação dos livros, veículo extremamente eficaz das novas ideias -
como as autoridades eclesiásticas logo viram com clareza - colocava ao alcance de muitos
a possibilidade de fazer uma ideia sobre os conflitos de religião e sobre o vasto incêndio
que estava acontecendo na Alemanha. Foi justamente um mestre-escola, Francesco de
Casteldurante, que iniciou, em Veneza, em 1526, a longa lista daqueles que deviam
provar a repressão antiluterana. Investigado por suspeita de simpatias luteranas, escapou
às penas graças a uma abjuração 29 • A força do sentimento anticlerical atravessava toda
a sociedade e podia unir humanistas e populares, mercadores e nobres. As guerras da
língua [... J" (Carta de Giacomo Soranzo a Pietro Bembo, 29 de julho de 1530, em P. Paschini, "Un Vescovo
Disgraziato nel Cinquecento Italiano: Vittore Soranzo", em Tre Ricerche sulla Storia della Chiesa nel Cinquecento,
Roma, 1945, p. 104).
25. Bartolomeo Cerretani, Dialogo della Mutatione di Firenze, org. de Raul Mordenti, Roma, 1990, pp. 18 e ss.
26. Joannis Ludovici Pariseti, Regiensis Epistolae, Regii per Antonium Viottum 1541, e. B Illr.
27. Ricordi n. 28 (F. Guicciardini, Opere, org. Vittorio De Caprariis, Milano/Napoli, 1961, p. 103).
28. lspositione della Oratione Dominicale detta Pater Noster e della Salutatione Angelica Chia mata Ave Maria por Pellegrino
Morato, Ferrara, Francesco Rossa de Valenza, 1526, e. A lllr.
29. Sobre esse processo, ver do autor deste volume "Lutero al Concilio di Trento", em Lorenzo Perrone (org.),
Lutero in Italia. Studi Storici nel V Centenario della Nascita, Casale Monferrato, 1983, pp. 106-107.
30. Carta a Giovanni Guidiccioni, de Messina, 10 maio 1529 (Lettere di Meser Antonio Mintumo, em Vineggia,
junto a Girolamo Scoto, 1549, cc. 15v-16v).
31. "Que a seita luterana continue aumentando - escrevia ainda Minturno - não pode ser nada bom; não fosse
essa a oportunidade para pôr ordem na república cristã" (carta de Minturno ao senhor Giovanni Da le Fratte,
Palermo, 20 ago. 1531, idem, c.23r).
32. Carta, s.d., a Giovanni da Modena (idem, c. 60v).
A Fé Italiana
82
ele respondia: "Toda a terra é sagrada, como uma igreja; o senhor Deus está no céu
e assim se eu vou dormir no meio de um prado, assim aquele prado é sagrado como
uma igreja" 33 • Era a voz da fé luterana, que rompia as barreiras e ameaçava os bastiões
da Igreja. Houve necessidade de tortura para dobrar o jovem; e foi durante a tortura
que lhe fizeram a pergunta decisiva - qual acreditava ser a verdadeira fé , a italiana ou a
luterana ("quam credat esse veram fidem, an italicam an lutheranam"). A resposta foi
a seguinte: "Senhores, sempre segui a verdadeira fé italiana e sempre a mantive por ser
perfeita e todos os anos tenho me confessado, e nunca comi carne nos dias de quaresma,
nem de vésperas, nem de sexta-feira e nem de sábado" 34 •
A "verdadeira fé italiana" era uma denominação cunhada pelo inquisidor: Biagio
di Totulo tornou-a sua pelo mecanismo da pergunta autoritária e da resposta submissa - o
mecanismo fundamental daquele como de qualquer outro tribunal. Mas é singular que
viesse à cabeça do inquisidor uma denominação do gênero. Uma identidade religiosa
comum para toda a população italiana era, então, uma questão em aberto, não uma
realidade pacífica.
Para os viajantes que a atravessavam com os olhos bem abertos, a Itália era, à
época - e continuou sendo por muito tempo - , o país caracterizado justamente por
suas profundas diferenças internas, mesmo em matéria de práticas religiosas. Que era
essa a imagem da Itália, podia se inferir pelo testemunho do médico espanhol Miguel
Serveto. Esse agudo e irreverente observador, obrigado a se esconder por causa do rumor
provocado por seu tratado contra a doutrina da Trindade, manteve-se trabalhando por
algum tempo na indústria tipográfica: e assim preparou para publicação uma edição
da Geografia de Ptolomeu, atualizando suas informações com nítidas e cortantes pas-
sagens sobre a Europa de seu tempo. No capítulo que dedicou aos habitantes da Itália,
descreveu-os como diferentes em termos de língua e de costumes de uma região para
outra, distintos até fisicamente , unidos apenas pelo desprezo e pela antipatia com que
se consideravam reciprocamente - além de caracterizá-los pelo parco valor bélico e pelo
preconceito de se considerarem superiores aos ultramontanos. Segundo Serveto, os ha-
bitantes da península italiana - que para ele não passava realmente de uma expressão
geográfica - não possuíam ritos e convenções religiosas em comum: se alguns, como os
toscanos, eram muito supersticiosos, outros eram capazes de blasfemar de tudo o que
havia de sagrado. Em suma, se havia uma característica comum a todos os italianos,
era a de serem supersticiosos e não muito corajosos na guerra 35 •
Evidentemente, Serveto não nutria simpatia pela Itália, que lhe parecia submis-
sa ao papado. Suas simpatias iam para os rebeldes e para os derrotados : recusou-se
33. Do testemunho prestado em 12 de maio de 1531 por Gaspare "quondam Francisci de Fanna", publicado por
Luigi De Biasio, "lnquisizione a Cividale nel 1531. II Primo Processo in Friuli", em Forum Iulii, anuário do
Museu Nacional de Cividale do Friuli, XVI, 1992, pp. 9-29; em particular p. 25.
34. Depoimento de Biagio di Totulo em 9 de maio de 1531, ivi, p. 23.
35 . Claudii Ptolemaei Alexandrini Geographicae Enarrationes libri octo ex Bilibaldi Piickeymheri tralatione, sed ad graeca et
prisca exemplaria a Michaele Villanovano secundo recogniti, prostant Lugduni, apud Hugonem a Porta, excudebat
Gaspar Trechsel, Viennae, 1541 (a primeira edição é de 1535).
A Inquisição
83
36. "Rusticorum agricolarum misera conditio [...) Hinc factum est ut nostris temporibus rusticorum viderimus
seditionem, et in nobiles coniurationem: sed succumbunt semper miseri" (idem, c. 158v).
37. Defensio pro ltalia ad Erasmum Roterodamum, Blado, Roma, 1535. Cf. R. Valentini, "Erasmo di Rotterdam e
Pietro Corsi. A Proposito di una Polemica Fraintesa", em Rendiconti dell'Accademia dei Lincei, aula de ciências
morais, s. VI, XII, 1936, pp. 896-922 (preocupado em defender a "integridade da raça" e a "virtude da raça" ,
Valentini é mais um herdeiro tardio daquela contenda do que um estudioso).
38. Sebastian Münster, Europa. Prima Nova Tabula, Basileae, 1540; _ _ , Cosmographia. Beschreibung aller Liinder,
H. Petri, Basileia, 1544 (depois traduzida também em italiano em 1558). Sobre o caso de Sigismondo Arquer,
cf. Massimo Firpo, "Alcune Considerazioni sull'Esperienza Religiosa di Sigismondo Arquer", em Rivista Storica
Italiana, CV, 1993, pp. 411-475.
39. Ortensio Lando não economizou em seus escritos as críticas ao mundo italiano (cf. Paul Grendler, Critics of the
ltalian World (1530-1560). Anton Francesco Doni, Nicoli, Franco & Ortensio Lando, Madison/London, 1969); mas
as raízes de suas críticas afundam numa identidade religiosa ainda controversa (v. a mais recente intervenção
sobre a questão por parte de Silvana Seidel Menchi, "Chi fu Ortensio Lando?", em Rivista Storica Italiana, CVI,
1994, pp. 501-564).
A Fé Italiana
84
de alguém que vivia como estrangeiro no próprio país e não se reconhecia na religião
dominante. Em suma, enquanto Doni publicava seus escritos e a tipografia de Henric
Petri na Basileia estampava a versão italiana da Cosmografia de Münster, a questão sobre
qual era a "verdadeira fé italiana" estava prestes a ser resolvida. Mas, por volta de 1530
tinha sido particularmente a fé luterana a exercer uma função unificadora decisiva,
'
pelo menos nos setores mais inquietos da população, os que levavam a formulações
mais radicais as confusas esperanças de uma renovação geral da sociedade. Já se viu
como - de acordo com o testemunho de Bartolomeo Cerretani - entre os savonarolianos
florentinos tinha se difundido a convicção de que o monge saxão estava destinado a
realizar os anúncios do profeta morto. Outro testemunho diz respeito ao modo como,
no cadinho da Reforma, o milenarismo cristão e o judeu podiam chegar a se fundir:
foi o hebraísta Francesco Stancaro a polemizar contra um grupo de hereges venezianos,
que somavam - segundo ele - os erros dos judeus e os dos anabatistas e diziam "que
viria outro Messias, e reinaria temporalmente, et in virga ferrea". Era, de acordo com
Stancaro, o mesmo "erro abominável, e condenável dos judeus, que fingem diante do
juízo geral que a igreja deve ter um governo terreno, e civil, no qual reinariam todos
os ímpios, e ocupariam todos os impérios": e Stancaro afirmava ter denunciado essas
ideias às autoridades venezianas 40 •
Trata-se de indícios sobre as potencialidades unificadoras que a lufada da Refor-
ma tinha no diversificado contexto italiano. A violência da polêmica doutrinária e da
luta entre as fés opostas devia promover o resto, obrigando todos a tomarem posição.
40. Cf. Opera nuova di Francesco Stancaro Mantovano della riformazione, si della dottrina christiana, come della vera
intelligentia dei sacramenti ... , em Basileia, 1547, dedicada "ao sereníssimo príncipe Donato e à ilustríssima
senhoria de Veneza", c. 3v: pp. 460 e 552-553. Aqui Stancaro remete ao texto onde demonstrara as analogias
entre messianismo rabínico e milenarismo anabatista: trata-se de uma folha solta, intirulada Rabinorum et
Anabaptistarum falsa opinio de duobus Messiis , priscorum Thalmudistarum autoritatibus confutata per Franciscum
Stancarum Mantuanum, Neoburgi Danúbio, apud Johannem Kilianum, 1546 (Ottavio Besoni, a quem agradeço
cordialmente, arranjou-me cópia do texto conservado na Zentralbibliothek de Zurique).
41. Antes de morrer no patíbulo de Maria, a Católica, Thomas - que, de 1545 a 1549, havia vivido e estudado
em Bolonha, Pádua e Veneza - teve tempo de publicar até uma gramática do italiano, destinada "à melhor
compreensão de Boccaccio, Petrarca e Dante" (cf. John Levsay, The Englisman's ltalian Books 1550-1700, Fila-
A Inquisição
85
fez Pinci4 2, submetia os dados naturais à herança de uma tradição literária e histórica tão
ilustre quanto remota. Por trás dos esquemas de uma historiografia pragmática e de uma
geografia naturalista, o discurso sobre a religião dos italianos permanecia à sombra - salvo
quando aparecia de improviso em testemunhos como o de Biagio di Totulo.
De fato, por volta de meados do século XVI, a oposição entre católicos e evan-
gélicos adquiriu uma acentuada coloração nacional, desdobrando-se naquela entre "fé
italiana" e "fé ultramontana" ou "alemã". Nas vendas das cidades italianas, discutia-se
quem eram os verdadeiros cristãos, se os alemães ou os italianos: e um certo gosto pelo
auto-aviltamento misturava-se às tomadas de posições em matéria de fé: "Os verdadeiros
cristãos são a gente da Alemanha[ ... ) - dizia um herege da Romagna - Os italianos são
fariseus, homens sem fé e sem piedade 43 .
Desse nacionalismo retórico fazia parte a consciência de que a oposição entre
luteranos e católicos era uma oposição entre fé italiana e fé alemã, ou ultramontana,
ou, como diziam alguns, "bárbara". Podia-se apoiar uma ou outra das duas posições,
mas os termos da escolha eram esses. A quem pensava como o herege da Romagna,
dirigia-se o apelo de um padre de Bérgamo em 1553: "Escutai, todos vós que habitais
na Itália - escrevia dom Bartolomeo Pellegrini - escutai vós também que amais e
elogiais amiúde esses bárbaros para vossa danação [... ) esses bárbaros não sabem fazer
outra coisa se não invejar os italianos [... ) procuram somente obscurecer o esplendor e
a honra do nome italiano" 44 . O autor tinha ouvido o célebre pregador Pietro de Lucca,
que pregara em Bérgamo em 1520 e ali profetizara os flagelos bíblicos - peste, fome
e guerra, e a morte violenta para muitos - que depois tinham se realizado 45 . Durante
anos e anos, os exércitos tinham atravessado a cidade, depredando-a e obrigando os
cidadãos a sofrerem vexações ilimitadas. Eram bárbaros, que não se detinham diante de
nada: assim, o corpo de soldados enviado a Veneza em 1529, sob o comando do duque
de Urbino e do conde Gaiazzo, com o encargo oficial de proteger a cidade, tinham-na
saqueado. Eram soldados alemães, infectados pela "raiva luterana" : esses "bárbaros
setentrionais" tinham destruído igrejas e conventos, e não se detiveram diante do
delphia, 1969, p. 6). Sobre William Thomas, cuja obra histórica foi reeditada (The History of ltaly [1549], org.
de G. B. Parles, lthaca, 1963), cf. Dictionary of Nacional Biography, vol. LVI, pp. 193-196.
42. Gio. Pietro Pinci, De Confinibus ltaliae, V. Ruffinello, Mantova, 1546.
43. Cost., 25 jun. 1551, de Alessandro Ressa de Ímola (o documento é reproduzido por Raffaella Rotelli, Il Tribunale
del Sant'Uffizi,o a Imola dalla Formazione al 1578, Tese de Graduação, Faculdade de Letras da Universidade de
Bolonha, orientada por C . Ginzburg, 1973-1974, p. 150).
44. "Audite haec omnes Bergomenses, auribus percipite omnes qui habitatis ltaliam, nonnulos qui hos barbaros
diligitis, et eos in condemnationem vestram aliquando laudastis, discutite nomen et intelligite mores nunquid
alio convenientiori vocabulo appellari poterant, quam ut barbari dicerentur... Illi autem aliud nesciunt nisi
invidere italis, et quantum ad eorum attinet voluptatem, semper cumpiut splendorem ac decus italici nomi-
nis obscurare [... ] neque in alio magis studio se exercerent quam ut populum Christi sanguine redemptum
a catholica, apostolicaque romana ecclesia separent (... )" (Opus divinum de sacra, ac fertili Bergomensi vinea, ex
diversis, autenticis, catholicisque libris, et scripturis, diligenti cura collectum... per reverendum dominum presbyterum
Bartholomaeum de Peregrinis, Brixiae, apud Ludovicum Britannicum, V Idus lulii 1553, e. 5lro).
45. Idem, cc. 39v-40r.
A Fé Italiana
86
pudor das mulheres ou da majestade dos nobres e do clero. Portanto, os italianos que
demonstravam simpatia para com as ideias desses bárbaros e, por sua vez, criticavam a
Itália e a igreja católica, deviam perceber que esses hereges usavam o nome de Cristo
somente para seduzir e arruinar o mundo, e que, tal verdadeiros bárbaros germânicos
não desejavam outra coisa se não denegrir o nome da Itália, separando o povo cristão'
da igreja católica, apostólica romana. "A nossa pátria é a igreja católica - escrevia um
controversista - [... ] Os verdadeiros cidadãos são aqueles que em ditos e feitos opõem-se
à temeridade deles" 46 • Era um cânone propagandista que fixava a identidade nacional
italiana em termos destinados a uma longa duração. Mas fora a evolução da situação
política dos estados italianos a levar as coisas a esse ponto.
Entre a coroação imperial de Carlos V em Bolonha, em 1530, e a paz de Cateau-
-Cambrésis, o horizonte político italiano tinha se livrado de qualquer ilusão. O nacio-
nalismo retórico da "liberdade da Itália" que fora objeto propagandístico da iniciativa
política e militar do papado chegara ao fim : se até as guerras da Itália tratara-se de evitar
a supremacia de uma única potência, agora tratava-se de aceitar como dado indiscutível a
ascensão do papado acima dos outros estados italianos. Um pregador de grande sucesso,
o franciscano Cornelio Musso, afirmou isso de modo claro, refletindo sobre as tarefas
que os bispos italianos tinham pela frente no concílio reunido em Trento:
A parte mais sã - escreveu Musso - desejará defender com o próprio sangue a
grandeza da Sé apostólica, pois certamente quase não temos outro bem; e, perdido
ou diminuído este, somos todos presa, não de imperadores e de reis, mas de qualquer
senhorzinho 47 •
46. li Modello di Martino Lutero, por Q. Iacopo Moronessa, Venezia, Giolito, 1555, c. Vir. Sobre Moronessa, mon-
ge da Congregação Celestina, cf. Lauchert, Die ltalienischen literarischen Gegner Luther, pp. 633-639 e Silvano
Cavazza, "Luthero Fidelissimo lnimico de Messer Jesu Christo. La Polemica contro Lutero nella Letteratura
Religiosa in Volgare della Prima Metà dei Cinquecento", em Lutero in Italia ... Studi Storici nel V Centenario della
Nascita, org. de Lorenzo Petrone, Casale Monferrato, 1983, pp. 67-94 e 91-93.
47. Carta ao cardeal Alessandro Famese, 11 abr. 1546, em Gottfried Buschbell (org.), Concilium Tridentinum. Diario-
,um, Actorum, Epistolarnm, Tractatuum Nova Collectio, vol. X, Freiburg im Breisgau, 1916, p. 451. Cf. G. Odoardi,
"Fra' Comelio Musso, OFM (1511-1574), Padre, Oratore e Teólogo ai Concilio di Trento", em Miscellanea
Francescana, XLVIII, 1948, P• 466. Em seus sermões publicados, Musso insistiu na genealogia latina e romana
da fé contra os "Germânicos", que uma nota editorial de Giolito - por ele não compartilhada - denominou
"sinagoga de Satanás" (cf. Gabriele De Rosa, "II Francescano Cornelio Musso dai Concilio di Trento alia
Diocesi di Bitonto", na coletânea de ensaios do mesmo autor Tempo Religioso e Tempo Storico, Roma, 1987; I,
pp. 395-442).
A Inquisição
II
0 NASCIMENTO DA
NOVA INQUISIÇÃO
m um documento oficial do papa que deu vida à nova Inquisição, Paulo III Farnese,
E lê-se um grito de alarme: as fronteiras da Itália tinham sido atravessadas pela "peste
da heresia" luterana. Num breve endereçado ao inquisidor de Ferrara em 8 de maio de
1536 o papa comunicou a novidade da situação: a notícia da difusão da heresia luterana
na Itália era tão mais alarmante quanto mais, até então, uma tal peste ali permanecera
estranha 1• O arrazoado era capcioso (havia anos, chegavam a Roma avisos de casos de
luteranismo, principalmente de Veneza), mas era bem escolhido.
A Itália constituía para o papa uma área de respeito especial: e justamente na
Itália, em Ferrara, em circunstâncias ainda hoje misteriosas, ganhara corpo a ameaça da
infecção herética. E dessa vez era uma coisa séria: não se tratava de qualquer mestre,escola
nem de qualquer mercador. O documento papal mostra que em Roma compreendeu-
-se toda a gravidade do caso. O que acontecera? Acontecera que a sexta-feira santa
daquele ano de 1536, certo "Gianetto, cantor francês", da corte da duquesa Renata,
no momento da adoração da cruz, "tendo cada um, segundo o costume, ido adorar a
cruz, o referido Ginetto não só não foi, mas ... partiu, demonstrando desprezar e ter
(pouca) consideração pela fé de Cristo" 2• Isso fizera surgir um emaranhado de reações:
o próprio duque e depois o inquisidor de Ferrara tinham intervindo. Teve início aqui
uma questão destinada a arrastar-se por muito tempo: a da corte de Renata3, cujos
componentes eram, no dizer do duque seu marido, "maculados de heresia" . Entre eles
havia o poeta Clément Marot, extremamente ligado a Renata: em um poema, Marot
tinha contado que ele, poete gallique, viera ver "le pays ltalique" para saudar Renata, a
mulher que seguia fielmente o ensinamento de Cristo4.
1. "[ ...] Quod Dei benignitate hactenus nec etiam auditum fuerit ut huiusmodi pestis in ltalia pullulaverit sed
ah ea procul permanserit... " (publicado na minuta vaticana por Bartolommeo Fontana, Rena ta di Francia Du-
chessa di Ferrara ... [1510-1536], Roma, 1889, pp. 501-503; o original está conservado no "Archivio dei Residui
Ecclesiastici" junto à Cúria de Ferrara, S. Domenico, I).
2. Carta de Ercole II, duque de Ferrara ao orador de Este na França, 5 maio 1536 (Fontana, Renata di Francia, op.
cit. , I, 1889, pp. 318-320).
3. Renée Valais Orléans (N. do T.).
4. "[ ... ] Si tu imites/ de ton Saulveur la vraye intention", cf. Fontana, Renata di Francia, op. cit., 1, PP· 249-251.
88
A Inquisição
89
duques de Ferrara, como feudatários da Santa Sé. Mas não era novidade que em muitos
lugares da Itália (in multis ltaliae locis) se espalhasse a heresia luterana. As autoridades
romanas tinham admitido oficialmente o fato desde 1532: é o que se lê no breve papal
de nomeação através do qual um célebre pregador agostiniano de Piacenza, Callisto
Fornari, foi nomeado inquisidor-geral para toda a Itália 7. Mas, com o novo pontificado,
a questão assumia um peso diferente: a iniciativa política de Farnese mirava em direção
diferente daquela do papa da família Médici, obcecado pela questão de Florença8 •
A partida política que era jogada desde muito na área dos ducados padanos devia
encerrar-se para Ferrara com sua devolução à Santa Fé em 1598. Nessa partida, a carta
da fidelidade religiosa tinha seu peso e Paulo lll, político hábil e isento de preconceitos
como poucos, evidentemente não a subestimava.
Por outro lado, também era verdade que a inquietação religiosa crescia e que
os sinais de alarme se multiplicavam. Enquanto o concílio era adiado com qualquer
pretexto, avançava a necessidade de averiguar diretamente as diferenças doutrinárias e
de apropriar-se através de um exame pessoal dos elementos necessários para escolher
a própria verdade. Como escreveu Ottaviano Lotti ao cardeal Gonzaga, era hora de
"saber, estudando a sagrada escritura" , qual era a verdadeira fé 9 • Mas a opção de per-
guntar a verdade aos livros podia contemplar os indivíduos, não as instituições. Assim,
enquanto os pregadores viam suas pregações mais concorridas do que habitualmente -
sobretudo se eram novos, da escola dos capuchinhos, que se inspiravam textualmente
nos evangelhos - e enquanto os leigos eram capazes de frequentar escolas de grego e
de latim para buscar a verdade 10 , as autoridades eclesiásticas e as políticas tomavam
suas medidas.
Éditos, medidas policiais, detenções e processos por motivos de religião não são
suficientes, no entanto, para construir um percurso explicativo até o documento com
o qual, em 21 de julho de 1542, teve origem a congregação cardinalícia destinada a
ocupar-se da questão da heresia em toda a cristandade.
A bula do papa Paulo Ill Farnese Licet ab lnitio , apesar da linguagem pomposa da
chancelaria pontifícia e das distorções impostas pelas necessidades políticas, é um texto
cuja leitura atenta vale a pena: o papa - como é dito na bula - mesmo tendo desde o
7. O breve de nomeação, datado de 4 de janeiro de 1532, foi publicado por B. Fontana, "Documenti Vaticani
Contro l'Eresia Luterana in ltalia" , em Archivio della R. Società Romana di Storia Patria, X:V, 1892, pp. 71-165 e
365-474 (em particular pp. 127-128).
8. Sobre os horizontes políticos do papa florentino e sobre o modo em que condicionaram seu comportamento
em relação à questão luterana, a tradição é unânime, de Francesco Guicciardini (e de Francesco Berni) até a
historiografia recente: ver, entre todos, o volume de G . Muller, Die Romische Kurie und die Reformation 1523-
-1534. Kirche und Politik wiihrend des Pontifikates Clemens' VII , Heidelberg, 1969.
9. Cf. F. Chabod, "Per la Storia Religiosa dello Stato di Milano durante il Dominio di Cario V" (1938); agora
em F. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano nell'Epoca di Cario V, Torino, 1971 , P· 307 n.
10. Como fez o artesão bolonhês Girolamo Ranialdi, processado em 1543, que possuía O Novo TeSt ªmento lati-
no organizado por Erasmo e ia à escola de um professor para aprender a lê-lo (cf. A. Rotondó, "Per la stº ria
dell'Eresia a Bologna nel Secolo XVI" , em Rinascimento, s. II, XIII , 1962, PP· 107-153; em particular P· 138 ).
11. Carta de Gentile Albino, chanceler do governador de Módena, ao duque d'Este, 2 ago. 1542 (em M. Firpo e
D. Marcatto (orgs.), ll Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone, Roma, 1981; vol. III, pp. 152-153).
12. "Nosso Senhor[ ... ] elegeu seis cardeais ligados à Inquisição de Módena" (carta de G . Albino supracitada).
A Inquisição
91
da Inquisição" e a coisa fora entendida como relacionada ao clamor suscitado pelo caso
do herege Camillo Renato entre Bolonha, Módena e Ferrara 13 •
O concílio, enfim, era a única alternativa verdadeira à guerra religiosa. Excluindo
o concílio, sobrava a guerra: não a que Carlos V deveria combater na Alemanha dali
a pouco, mas a "guerra espiritual" - expressão cara ao principal sustentador da opção
inquisitorial, o cardeal Gian Pietro Carafa. Na realidade, a política papal tinha impe,
dido de todos os modos a convocação do concílio; e essa medida, apresentada como
provisória, na expectativa de uma futura composição dos conflitos religiosos, era uma
opção de guerra. A Inquisição romana surgiu, portanto, como instrumento de emer,
gência, inserido numa estrutura tradicional para torná,lo mais eficiente e destinado
oficialmente a uma duração limitada no tempo: desse ponto de vista, sua diferença das
inquisições ibéricas não podia ser maior. Em Roma, a novidade apresentava,se em trajes
de continuidade 14 • Nada mais definitivo que o provisório, deveria ser dito: a Inquisição
romana não só deveria durar por muitos séculos, mas acabaria por suplantar o concílio
como lugar de busca da verdade e por impor de modo estável sua lógica policial nas
matérias de fé . Seu caráter fundamental era o da centralização: e, embora na bula papal
o território onde exercer o poder não fosse limitado em modo algum, era evidente para
todos que a coisa dizia respeito exclusivamente aos estados italianos.
Uma questão é a de como, sob quais pressões e com quais objetivos se chegou
à formação dessa congregação especial; e aqui, não obstante o estado lacunoso das
fontes, pesquisas não faltam. Outra questão, que pode ser considerada de maneira
independente, é a das características do instrumento que então foi inventado. Sobre
essa última chamaremos novamente a atenção aqui. No que se refere à reconstrução do
contexto em que amadureceu a escolha papal, basta dizer que a atenção dos estudiosos
dirigiu,se gradualmente às características da situação religiosa italiana ou às coalizões dos
partidos curiais: de um lado, o crescimento da dissensão herética nas cidades italianas,
com discussões, inquietações, incertezas, denúncias que se tornaram particularmente
dramáticas em Módena ("Esta cidade inteira ... está maculada, infectada pelo contágio
de diversas heresias como Praga. Pelas vendas, esquinas, casas etc. todos ... d iscutem
sobre fé, livre arbítrio, purgatório e eucaristia, predestinação" , escrevia o vigário do car,
deal Morone em novembro de 154015 ); do outro, a divergência do colégio cardinalício
entre duas tendências, variadamente denominadas à época e em seguida (evangélicos,
"espirituais", erasmianos, irênicos etc. opostos a intransigentes, contra,reformistas) com
a vitória final do partido liderado por Gian Pietro Carafa e determinado a conduzir
uma "guerra espiritual" contra os hereges. Ora, como observou o estudioso que mais
13. A fonte é uma carta do embaixador de Este em Roma, Bonifácio Ruggeri, a Ercole II, datada de 16 de julho de 1541
(em Firpo e Marcatto (orgs.], II Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone, op. cit, vol. II, pp. 1031-1032).
14. A observação é de Francisco Bethencourt, L'Inquisition à l'époque modeme. Espagne, Portugal, Italie Xyf-XJXE siede ,
Paris, 1995, p. 30.
15. V. do autor deste volume "lstituzioni Ecclesiastiche e Idee Religiose nei Domini Estensi all'Epoca dell'Ariosto",
em Paolo Rossi (org.), Il Rinascimento nelle Corri Padane, Bari, 1978, p. 156. O documento encontra-se atualmente
reproduzido em Firpo e Marcatto (orgs.), Il Processo Inquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone, op. cit, vol. II, p. 897.
recentemente e com maior riqueza de dados deteve-se sobre a questão , naquele verão de
1542 as duas estradas se encontraram: "enquanto a heresia luterana parecia espalhar-
-se não somente em Módena, mas também em Lucca , em Nápoles e em muitas outras
cidades italianas, o esvaziamento das margens de compromisso e de ambiguidade sob
a égide de um genérico esforço de renovação religiosa e a progressiva polarização de
grupos contrapostos mesmo nos vértices da instituição eclesiástica já se delineavam com
toda a evidência" 16 • Como a onda de cheia criada pelo confluir de dois cursos d ,água,
a reação inquisitorial iniciou seu percurso ameaçador.
A eficácia imediata, ou pelo menos os primeiros, clamorosos esclarecimentos
daquele dramático verão - o popularíssimo pregador Bernardino Ochino, geral da
nova ordem dos capuchinhos, convidado à Roma , fugiu para a Suíça; o douto teólogo
agostiniano Pietro Martire Vermigli fez o mesmo - encobriram diversas questões, antes
e depois do documento de 21 de julho. Depois, faltam-nos as documentações da nova
instituição, não só no sentido das fontes escritas produzidas por sua atividade , mas
também no sentido de um percurso visível e contínuo de suas intervenções. Antes, há
os documentos nos quais o cardeal Carafa deixou testemunho de suas ideias: e aqui é
possível encontrar um núcleo sólido do futuro Santo Ofício. Por exemplo: no memorial
enviado ao papa Clemente VII em 1532 sobre a reforma da igreja e sobre a repressão
da heresia luterana (De Lutheranorum Haeresi Reprimenda et Ecclesia Reformanda), Carafa
insistiu na necessidade de eliminar os privilégios monásticos que criavam empecilhos à
ação dos inquisidores , propondo um modelo de poder não limitado por nenhum vín-
culo na ação contra a "peste herética" 17; e foi ele ainda a evocar o modelo da Inquisição
espanhola nas discussões que precederam a criação da comissão cardinalícia de 1542;
que, em sua mente, o projeto fosse - coerentemente com esse modelo - orientado para
a figura de um super-inquisidor e que a habilidade política do mundano papa Farnese
se servisse do instrumento da congregação cardinalícia para frear e reequilibrar com
contrapesos o alvoroçado e prepotente cardeal napolitano, não é difícil de imaginar.
De fato , o instrumento inventado com aquela bula papal era tão tradicional na
aparência quanto completamente novo e sem precedentes na essência. Luís de Páramo,
inquisidor espanhol na Sicília no fim do século e primeiro historiador da instituição,
tentou inserir essa estrutura no horizonte imóvel da história sagrada: mas , além do
modelo inquisitorial fornecido pelo diálogo entre Deus e Adão na Gênesis, quando
chegou ao Santo Ofício e tentou encontrar seus precedentes nos séculos da história
cristã, encontrou somente o da concessão de poderes extraordinários contra a here-
sia a um cardeal1 8• Seu ponto de vista, próximo que está temporalmente das origens
do Santo Ofício, oferece-nos alguns pontos de apoio para entendermos não tanto as
16. M. Firpo, "Riforma Protestante ed Eresie nell'ltalia dei Cinquecento" , em G . De Rosa, T. Gregory e A. Vauchez
(orgs.), Storia dell'ltalia Religiosa, vol. II, Bari, 1994, p. 108.
17. O memorial foi publicado em Concilium Tridentinum, Friburgi Brisgoviae, ed. W. Friedensburg, 1901, vol. XII,
pp. 67-77.
18. Segundo Luís de Páramo (De Origine et Progressu Officii Sanctae lnquisitionis, eiusque Dignitate et Utilitate, ex
typographia regia, Matriti 1598, pp. 124-125), um ... precedente da medida pode ser encontrado na nomeação
A Inquisição
93
para inquisidor-geral do cardeal Orsini, em 1263. Mas o ponto de vista de Luís de Páramo é o de um inquisidor,
convencido do caráter providencial e eterno da instituição.
19. Fontana, Documenti Vatican i Contro l'Eresia Luterana, op. cit. , p. 74.
20. Carta de Alvise Lippomano ao cardeal Cervini, Bologna, 16 nov. 1547 (em Gottfried Buschbell, Refcrrmation
und lnquisition in Italien um die Mitte des XVI. ]ahrhundert, Paderborn, 1910, p. 289.
21. Cf. o clássico estudo de Nathanael Weiss, La chambre ardente. Étude sur la liberté de conscience en France sous François 1
et Henri 11 (1540-1550), Paris, 1889.
22. Hubert Jedin, Storia dei Concilio di Trento, vol. 1, Brescia, 1949, p. 367.
A Inquisição
95
mãos o castigo dos hereges 23 • Era uma proposta que não podia ser aceita por Roma,
onde naqueles dias estava de volta da dieta de Ratisbona o cardeal Gaspare Contarini
e concluía-se com balanço negativo o projeto de concórdia com os luteranos; toda
iniciativa imperial sobre os temas de conflito de religião estava destinada a enfrentar
a desconfiança das autoridades romanas. Se com os hereges era preciso usar maneiras
fortes, essa tarefa cabia aos poderes eclesiásticos. Mas a questão era efetuar medidas efi-
cazes. Discutiu-se "se deveriam observar as ordens dadas pelos cânones ou então, como
24
foi feito em França pelo referido rei, proceder com rigor e exceder as constituições" •
No caso francês, as imunidades e os privilégios garantidos pelo direito canônico tinham
sido atropelados pelos poderes excepcionais conferidos aos tribunais reais , aos quais o
papado reconhecera desde muito o direito de tratar os casos de heresia 25 • Se desejavam
obter resultados, era preciso seguir esse caminho. E assim foi dada a Carafa e a Aleandro
a missão de se dedicarem à "administração universal da Inquisição". A providência devia
calar os protestos e garantir intervenções eficazes nas situações mais graves, como as de
Módena e de Lucca. Os dois cardeais enfrentaram a situação em Módena, assinando
juntos a sentença de condenação do modenense Bertari 26 • A morte de Aleandro deu
a Paulo III a possibilidade de fazer outras nomeações e de aumentar o número dos
responsáveis pela Inquisição, dissolvendo numa verdadeira comissão cardinalícia o
poder pessoal de Carafa. Em 4 de julho de 1542 ocorreu a nomeação dos seis cardeais
inquisidores 27 • De qualquer modo, o nome de Carafa encabeçava a lista que aparecia
na bula: seguiam-no os de Giovanni Morone, Pietro Paolo Parisio, Bartolomeo Guidic-
cioni, Dionísio Laurerio e Tommaso Badia. Na geografia curial, a composição é legível
como um compromisso entre a tendência conciliadora e aberta liderada por Gaspare
Contarini (Morone, Badia) e a tradicionalista e curial (Guidiccioni). Mas as questões
mais importantes continuaram a passar pelos canais políticos e curiais tradicionais.
Um dos primeiros e mais significativos atos da nova gestão centralizada das questões
doutrinárias foi a convocação a Roma do célebre pregador Bernardino Ochino: a carta
convocatória, datada de 15 de julho de 1542, leva a assinatura do cardeal Farnese 28 •
Em agosto de 1542, a morte do cardeal Contarini e a decisão de Bernardino Ochino
de interromper a viagem em direção de Roma e de fugir para a Suíça assinalaram uma
23. Cf. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano, op. eit., pp. 321-322; a carta de Vasto foi publicada por P.
Tacchi Venruri, Storia della Compagnia di Gesu in ltalia, Roma, 1931, I, 2, pp. 127-129.
24. Carta do embaixador de Este Bonifacio Ruggeri a Ercole II, 16 jul. 1541 (o importante documento foi assinalado
por Jedin, Storia del Concilio di Trento, op. cit., vol. I, p. 393, nota 2; é reproduzido, sem remissão a Jedin, por
Firpo e Marcatto (orgs.], Il Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giooanni Morone, op. cit. , vol. II, pp. 1031 e ss.).
25. Raymond Mentzer A. ("Heresy Proceedings in Languedoc, 1500-1560", em Transactions of the American Philo-
sophical Society, LXXIV, 1984, p. 44) assinala a bula de Clemente VII, de 1525, que abria a porta à intervenção
dos juízes leigos nos processos de heresia na França.
26. Cf. o dossiê dedicado a Bertari em Firpo e Marcatto (orgs.), II Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni Morone,
op. cit., vol. I, p. 301.
27. Cf. L. von Pastor, Storia dei Papi, vol. V, Roma, 1931, p. 673.
28. Publicada por P. Piccolomini, "Documenti Vaticani sull'Eresia in Siena durante il Secolo XVI", em Bullettino
Senese di Storia Patria, X.V, 1908, pp. 299-300.
Que Deus vos ajude com vossos novos inquisidores, diante dessas novas heresias, eu vos direi
a verdade, eu decido que mais são é crer com as mulherzinhas e estudar Aristóteles e Platão, que ir
se enredando em tantos novos dogmas e tão perigosos 29 •
Percebe-se por esses indícios que o modelo que se tinha em mente, ao se dar
vida à Inquisição romana, era o de um poder central capaz de varrer os obstáculos re-
lativos a privilégios e imunidades canônicas e de afirmar sua exclusiva autoridade. Era
o papado que, através da luta contra a heresia, propunha sua função de poder central
no ordenamento político italiano. Nos estados italianos, a longa agonia da "liberdade
da Itália" - no sentido de equilíbrio entre os estados maiores e não intromissão das
monarquias ultramontanas - foi contemporânea à difusão das ideias da Reforma. Era
portanto inevitável que os novos ordenamentos políticos da península serevelassern e
fossem transpostos no plano religioso. Se no caso espanhol a junção unitária da penín-
sula foi procurada, enfatizando-se a ameaça do judeu como inimigo interno, no italiano
aproveitou-se para o mesmo objetivo o perigo da heresia luterana.
29. Carta de Ludovico Beccadelli a Cario Gualteruzzi, Bologna, 20 jul. 1542 (cf. Gigliola Fragnito, "Gli 'Spirituali'
e la Fuga di Bernardino Ochino", em Rivista Storica Italiana, LXXXIV, 1972, pp. 777-813; em particular p. 799,
mas todo o ensaio é fundamental) .
A Inquisição
97
proposto por Erasmo, seu pacífico "punhal (Enchiridion) do soldado cristão". Entre os
dois, foi o modelo do catecismo de Lutero que se impôs na prática social, justamente
porque oferecia não uma meditação para os espíritos eleitos do humanismo cristão,
mas elementos nítidos e certos de coisas para crer e formas rituais bem escandidos. A
derrota da proposta erasmiana representava ainda o fim, para aquela época, da tentativa
mais ambiciosa da cultura humanista: a de substituir a noção teológica de heresia por
uma noção de tipo prático e moral. Alguns, como o pio humanista inglês John Colet,
haviam formulado a proposta em termos formais e em sedes específicas 30 ; outros ha-
viam se limitado a desacreditar com a ironia o controle exercido pelas grandes ordens
e pela Sorbonne sobre as definições doutrinárias. Mas com o retorno a São Paulo que
caracterizou a época de Lutero também voltaram à atualidade as definições paulinas
de heresia: eram justamente as que tinham marcado a guinada decisiva em relação à
interpretação tolerante da diferença de opiniões no mundo antigo 31 • Somente diante
dos êxitos sanguinários e intolerantes do movimento de reforma, a proposta humanis-
ta voltou a ser atual; mas quando o humanista saboiano Sébastien Castellion tornou
a propô-la logo depois da fogueira de Serveto em Genebra, ele o fez com grave risco
pessoal, escondendo-se atrás de um pseudônimo.
Portanto, com Lutero, a ameaça maior no horizonte das autoridades romanas
voltava a ser justamente a heresia no sentido codificado por São Tomás e pela tradição
inquisitorial dominicana: "erro do intelecto, ao qual a vontade adere obstinadamente" ;
uma definição que no final do século a Iconologia de Ripa trazia em apoio à imagem
simbólica da heresia proposta aos pintores - "uma velha extenuada de aspecto assusta-
dor, soltará pela boca chama fumacenta , terá os cabelos desgrenhados e hirtos, o peito
descoberto, como quase todo o resto do corpo, os seios secos e bem caídos, segurará
na mão esquerda um livro entreaberto, de onde parecem sair serpentes, e com a mão
direita demonstre espalhar várias espécies deles" 32 • O livro, pois: eis a ameaça e o veí-
culo fundamental da heresia. A luta contra a leitura e a circulação de toda forma de
livros proibidos logo ocupou a congregação romana. Entre seus primeiros atos houve
um decreto - de 12 de julho de 154 3 - que está na origem da batalha católica contra
a hidra da heresia e as infinitas serpentes que as tipografias criavam 33 •
30. Cf. Lucien Carrive, "Le statut pénal de l'hérésie en Angleterre au dix-septieme siecle", em Christiane D'Haussy
(org.), Ortodoxie et hérésie, Paris, 1993, pp. 25-37.
31. Cf. Arnaldo Momigliano, "Empietà ed Eresia nel Mondo Antico" , Rivista Storica Italiana, LXXXIII, 1971, pp.
499-524, agora em Sesto Contributo alia Storia degli Studi Classici e del Mondo Antico, Roma, 1980, pp. 437-458.
Momigliano demonstrou que a guinada cristã referente à tradição antiga situa-se nas duas passagens dos Co-
ríntios XI, 18-19 - onde a heresia é apresentada como uma inevitável diferença de escolhas - e de Gálatas V,
19-21 - onde as dissensões são vistas como obras da carne. Em Gálatas I, 8-9 surge a expressão que deveria
voltar mais tarde com insistente continuidade na tradição normativa da igreja: "anathema".
32. C. Ripa, Iconologia, Venezia, Cristoforo Tomasini, 1645, p. 255.
33. O decreto foi publicado por Joseph Hilgers, Der Index der verbotenen Bucher, Freiburg im Breisgau, 1904, pp.
483-486 (cf. ainda a "introduction historique" de J. M. De Bujanda, lndex de Rome 1557, 1559, 1564, Les pre-
miers index romains et l'Index du Concile de Trente, Sherbrooke/Geneve, 1990, pp. 27-28, onde se reporta a data
inexata de 12 de junho de 1543).
34. Cf. C. Henninger, Beitriige zur Organisation und Competenz der piipslichen Ketzergerichte, Leipsig, 1890, p. 354
nota. Mas ver agora Ruggero Maceratini, Ricerche sullo Status Giuridico dell'Eretico nel Diritto Romano-cristiano e
ne! Canonico Classico, Padova, 1994.
35. Estudando a história do crime político por excelência, o crimen lesae maiestatis, o historiador do direito Mario
Sbriccoli esclareceu como, justamente na época moderna, os dispositivos jurídicos que o tornaram um delito
de exceção, diante do qual não vigoravam mais as tutelas tradicionais, foram postos a serviço de um poder cada
vez mais exigente. Em última análise, chegou-se - escreve Sbriccoli - à "politização de muitos crimes 'comuns"',
com um efeito de "transbordamento da esfera do político para o nível da sociedade civil" (M. Sbriccoli, Crimen
Lesae Maiestatis. Il Problema de! Reato Politico alie Soglie della Scienza Penalistica Moderna, Milano, 1974, p. 257).
36. As sugestões mais convincentes sobre os mecanismos jurídico-formais de início do processo inquisitorial foram
colocados prioritariamente por um estudioso do direito canônico, Winfried Trusen ("Der lnquisitionsprozess.
A Inquisição
99
Seine historische Grundlagen und frühen Formen", em Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechts-
geschichte, Kanonistische Abteilung, LXXIV, 1988, pp. 168-230), que lhe destacou as premissas no
processo por mala fama da alta Idade Média: procedendo não ex evidentia mas ex fama e pedindo
ao suspeito uma purgatio canonica que consiste no juramento, são elaboradas formas processuais
que se encontram depois no modelo inquisitorial que vemos em ação na época de Inocêncio lll -
formas que combinam a tradição alemã do juramento com a romana da investigação escrita.
37. "Postquam fuerint de haeresi per episcopum loci, vel per aliam ecclesiasticam personam quae potestatem
habeat, condemnati" (C. Douais, Documents pour servir à l'histoire de l'lnquisition dans le Languedoc, Paris, 1900,
reimpressão de 1977, pp. VI-VII.
38. Cf. Paul Wappler, Inquisition und Ketzerprozesse in Zwickau zur Reformationszeit. Dargestellt im Zusammenhang mit
der Entwicklung der Ansichten Luthers und Melanchtons über Glaubensund Gewissens.freiheit, Leipzig, 1908, p. 56.
39. Cf. a carta de Eck a Jorge da Saxônia, de 25 de novembro de 1527, muito explícita a esse respeito (reportada
por A. Seguenny, "Historia Magistra Vitae", em Horizons européens de la Reforme enAlsace, mélangesJ. Rott, org.
por M. de Kroon e M. Liénhard, Strasburg, 1980, p. 109).
40. "Haec compendiosissima et optima via est haereticos impugnandi, ut tantum Evangelio et Sacrae Scripturae
hoc duellum adversus haereticos committatur [... ) Nam si quis ob incredulitatem et haeresim statim morte
Essas fontes e essas controvérsias não cessaram com a dieta de Spira; quando
a questão voltou à baila após a condenação de Serveto, François Bauduin - como
grande jurista - concentrou suas pesquisas nas fontes antigas, tentando demonstrar a
interpolação dos termos "último suplício" no código de Justiniano. Mas já nessa data
o rigor e o caráter sumário dos processos judiciais contra os anabatistas tinham levado
a refletir novamente sobre a ligação entre teólogos e juízes no processo inquisitório 41 •
Diante das razões políticas e sociais que levaram a tirar do tribunal eclesiástico as
causas relativas à heresia dos anabatistas, o comportamento de Lutero e de Melanchton
foi de substancial consenso: sobre o fundo chamejante de Münster, até a simples heresia
desprovida de rebelião política ou social foi considerada punível com a morte. Mas há
outro fato, bem mais significativo, a assinalar: com a lei imperial de 1529 chegava ao
fim, ao menos para uma parte da Europa, toda a longa temporada da Inquisição tal
como fora conhecida na Idade Média. Fora uma fase marcada pelo fato de que entre o
poder político e o herege - personagem considerado perigoso para a sociedade cristã -
havia se interposto o tribunal eclesiástico. Agora, ao contrário, com os argumentos
mais variados, os poderes estatais tendiam a se apossar novamente da função de julgar
e abater todo tipo de subversão, inclusive a religiosa, que aliás parecia a mais perigosa.
Depois do Império, foi a França a cortar pela raiz a velha norma: Francisco I, logo após
a difusão em Paris dos placards contra a missa, impôs que os hereges fossem julgados
pelos Parlamentos. As razões eram aquelas habituais em qualquer ocasião em que são
modificados os mecanismos da justiça: a ineficiência dos velhos sistemas, a necessidade
de fazer frente a um grave e urgente perigo. Mas não resta dúvida de que esse sinal de
alarme atingiu, em Roma, quem se preocupou em reformular de uma nova maneira
o modelo de funcionamento da Inquisição.
No que se refere aos elementos de continuidade secular, parece justificado,
portanto, assinalar os de ruptura que orientam o surgimento da Inquisição romana.
Foi nesse contexto que o vértice romano da Igreja viu-se obrigado a reexaminar
a relação com os poderes existentes na cristandade: e no âmbito deles uma conside-
ração específica foi reservada aos estados italianos, desde muito ponto de referência
obrigatório para o papado. Insistiu-se, com base num plano geral, na busca de proteção,
elaborando e aperfeiçoando seus argumentos teóricos e articulando cada vez melhor os
dispositivos diplomáticos. A ligação necessária entre poder e verdade cristã foi invocada
infinitas vezes: e foi nesse contexto que começou a longa desdita de O Príncipe de N i-
colau Maquiavel, recém-publicado sob a distraída égide de um papa Médici. É apenas
aparentemente paradoxal, que coubesse a uma vítima da Inquisição, o pio cardeal inglês
Reginald Pole, dar início à lenda negra de Maquiavel como vulto demoníaco (literal-
mulctandus esset, ille non corporali solum vita privaretur, sed de animae quoque salute in discrimen veniret
[...]" (Adversus Anabaptistas Philippi Melanchtonis ludicium. Item an magistratus iure possit occidere Anabaptistas,
Johannis Brentii sententia. Item articuli inspectionis ecclesiarum Saxoniae emendati, Hagenau, 1528, cc. o IIIv-D JVr).
41. Cf. M. Turchettí, Concordia o Tolleranza? François Bauduin (1529-1573) e i "Moyenneurs", Geneve/ Milano, 1984,
pp. 162 e ss.
A Inquisição
101
42. Infelizmente, restam apenas fragmentos dos despachos de Fabio Mignanelli, cuja nunciatura cobriu um período
crucial (alguns fragmentos foram reconstituídos por B. Nicolini, Lettere di Negozi de! Pieno Cinquecento, Bologna,
1965): para os de Aleandro, cf. F. Gaeta (org.), Nunziature di Venezia, I (12 mar. 1533 - 14 ago. 1535), Roma,
1958, e II (9 jan. 1534 - 9 jun. 1542), Roma, 1960.
43. Cf. M. Berengo, Nobili e Mercanti nella Lucca dei Cinquecento, Torino, 1965; e ver agora Simonetta Adorni-
-Braccesi, "Una Città Infetta". La Repubblica di Lucca nella Crisi Religiosa de! Cinquecento, Firenze, 1994.
hcrcg~s. En:\ Bruges, em 1540, o enviado veneziano Francesco Contarini ficou sabendo
pdn legadn papal que ern Ro ma tinham sido recebidas notícias frescas de Veneza "de
qut• t'tn rnuitos locais dessa cidade criavam-se redutos e conciliábulos para aqueles que
ouvt'.'m a seirn luterana"; em preciso então - assim era sugerido por Roma - que as
auto ridades wnezianas tomassem providências "e não deixassem que um fruto podre
estragasse os outros que são bo ns" . Seguiam considerações sobre o que ensinava a his-
tória co ntemporânea: "A quem não provê esses primeiros princípios depois acontecem
coisas, que se vee m hoje na Alemanha e na Inglaterra, que não seguem a religião e nem
obedecem aos senhores temporais"44 • Em termos não diferentes, em 1545, - ou seja, após
a criação da congregação romana - Paulo III dirigia-se ao doge e ao senado de Veneza:
quem não é fid a Deus não pode ser fiel aos homens, logo os hereges constituem um
perigo para o estado 45. Eram argumentos aos quais ninguém se opunha - excluindo-
-se poucos indivíduos ou grupos isolados e duramente combatidos. Após a guerra dos
campo neses e a escolha de Lutero de alinhar-se com os príncipes, após a sangrenta
repressão da "Nova Jerusalém" anabatista, argumentos do gênero tinham se difundido
de um lado e de outro das barreiras confessionais. Os reformadores protestantes, por
sua vez, esforçavam-se para explicar aos príncipes que a reforma evangélica não mirava
a outra coisa se não a fazer com "que os povos sejam submetidos a seus príncipes, e
paguem-lhes seus tributos" 46•
Ao dirigir-se aos príncipes, o poder eclesiástico romano assumia a função de atento
e paternal admoestador, deixando ao poder secular o papel de distraído e renitente
executor. Por trás dessa ficção formal , havia quase sempre uma realidade bem diferente:
a de uma Roma capital de um corpo eclesiástico protegido pelos "três muros" de seus
privilégios - como os denominara Lutero em um de seus escritos de maior sucesso. E,
visto que na maior parte das vezes a heresia era praticada no mundo eclesiástico - parti-
cularmente, entre as ordens religiosas - os poderes laicos achavam-se de mãos atadas por
um emaranhado de privilégios que Roma evitava cortar. O representante de Carlos V
em Milão, o marquês del Vasto, teve muito que se queixar e ameaçar recorrer a medidas
drásticas por esse motivo. Mas a ligação histórica entre o papado e as grandes ordens
religiosas resistia a qualquer ataque. Muitas e muitas vezes, por exemplo, foi reforçada
44. Carta de 26 de junho de 1540; ASVen. , Capi dei Consiglio dei Dieci, Lettere di Ambasciatori, b. 8b.
45. Eis o que se lê num documento papal dirigido ao Doge e ao senado vêneto em 1° de maio de 1545, a propósito
da difusão da heresia em Veneza: "Nec vero fugit sapientiam vestram, quae singularis est, ... etiam ad divisiones
factionesque illius civitatis animadvertendum esse, ne, ad veteres haec nova superaddita, causam novitatibus
adirumque defectionibus aliquando praebeat: cum sicut nostis vel hec sola religionis dissensio multis in locis
obedientiam ac fidelitatem excusserit" (Fonta na, Documenti Vaticani contro l'Eresia Luterana, op. cit. , pp. 398-400).
46. Francesco Stancaro, lspositione de la Epistola Oznonica di S. Giacobo Vescooo di Gierusalemme ... , Basileae, 1547, p. 121.
A lnquisiçào
103
naqueles anos a norma segundo a qual os frades menores não estavam sujeitos à juris-
dição dos inquisidores e podiam ser processados apenas por seus superiores: e se, sob
a pressão de intervenções como as do marquês del Vasto, Paulo III chegou em janeiro
de 1542 a uma anulação das isenções com as quais leigos e eclesiásticos subtraíam-se à
ação dos inquisidores, logo depois (março de 1542) reforçou todos os privilégios dos
frades menores, subtraindo-os à ação inquisitorial per universum orbem 47 •
Pois bem, havia uma Roma capital de organismos eclesiásticos supra-estatais
que atava as mãos das autoridades políticas desejosas de varrer de seus estados quem
difundia a cizânia herética. Mas havia também uma Roma capital de um estado sujeito
à autoridade temporal dos pontífices romanos: e esse território compreendia uma im-
portante cidade universitária como Bolonha, onde circulavam livros e estudantes de
todo tipo, e o território de Avinhão, com seus enclaves religiosos valdenses. Como se
comportaram os papas em sua função de príncipes territoriais? A resposta é bastante
simples: tanto no caso de Bolonha, como no de Avinhão e de seu território, a repressão
da heresia foi entregue aos poderes temporais e não aos espirituais. Tomando como
ponto de referência os anos próximos a 1542, o quadro é o seguinte: em Bolon ha, não
foi o bispo Alessandro Campeggi, ausente, nem seu vigário Agostino Zanetti, nem o
inquisidor de San Domenico a agir contra o fermento da heresia que grassava entre
nobres e populares, entre doutores de direito e trapeiros 48 , mas o governador da cidade,
que mandou encerrar nos cárceres citadinos, chamados "do Torrone", um volumoso
grupo de hereges e os processou. E em Avinhão, não foi o bispo lacopo Sadoleto (que
recebera de Paulo III, em 1538, também a autoridade de inquisidor-geral), mas Alessan-
dro Campeggi, como representante e vice-delegado do governador Alessandro Farnese,
que conduziu uma tentativa de repressão militar contra os valdenses de Cabrieres e de
Mérindol: os protestos de Sadoleto, contrário ao uso das armas e decidido a defender
a própria jurisdição em matéria de heresia, foram candentes mas não fo ram ouvidos
em Roma 49 • O fato de que o poder temporal em Avinhão fosse representado pelo bispo
de Bolonha tem a ver, aliás, com as contradições do sistema de benefícios romano.
Anos depois, na França dominada pelas guerras religiosas, quem desejou voltar ao
catolicismo tomou o rumo de Avinhão e ali procurou não o bispo nem o inquisidor,
47. CF. Fontana, Documenti Vaticani contro l'Eresia Luterana, op. cit., pp. 383-384 (breve de 14 de janeiro de 1542);
idem, pp. 386-388 (breve de 6 de março de 1542); e pp. 158-161 (breve de 15 de dezembro de 1537), com o
qual Paulo III renovava os privilégios tradicionais dos menores observantes. Parece inexata, portanto, a inter-
pretação de Romano Canosa (Storia dell'lnquisizione in ltalia dalla Metà del Cinquecento alia Fine del Settecento, I,
"Modena", Roma, 1986, p. 8) que vê no documento de 14 de janeiro de 1542 a primeira fase do processo de
centralização que levou à instituição da congregação do Santo Ofício.
48. Para a situação bolonhesa e para a carta de Baldassare Fabri em que se fala de "trapeiros" hereges, cf. mais
adiante, cap. IV, nota 13. Sobre Alessandro Campeggi cf. o verbete (de quem escreve) em DBI, vol. XVII, Roma,
1974, p. 434.
49. Para Avinhão, o longo eco da repressão militar contra os valdenses vai dos contemporâneos (como Jean Crespin)
até nossos dias. Uma reconstrucão dos fatos pode ser encontrada em P. Gaffarel, "Les massacres de Cabriêres
et de Mérindol", Rewe Historique, CVII, 1911, pp. 241-271. Ver agora o vasto estudo de Marc Venard, Réforme
protestante, Réforme catholique dans la province d'Avignon. XVI' siecle, Paris, 1993, pp. 329 e ss.
50. "[ ...] Parti de Adge para vir a Avinhão[ .. .] para abjurar publicamente meu erro perante Monsenhor Ilustríssimo
e Reverendíssimo Cardeal de Armanhaque" (carta de Giovan Matteo ao irmão Matteo, em Abiuratione di molti
errori heretici, fatta publicamente, et spontaneamente dal sig. Gio. Matteo Grillo gentilhuomo salemitano innanzi a Mons.
Illustriss. Cardinale di Armignac... , por Pietro Rosso, Avignon, 1568, c. B Ir).
51. Carta de Pio ,; a Giovanni Antonio Facchinetti, 27 jul. 1566 (Nunziature di Venezia, vol. VIII, org. de Aldo
Stella, Roma, 1963, p. 86).
52. Cf. Aldo Stella, "Guido da Fano Eretico del Secolo XVI ai Servizio dei re d'lnghilterra", Rivista di Storia della
Chiesa in ltalia, XIII, 1955, pp. 196-238; V. p. 227.
A Inquisição
III
INQUISIÇÃO ROMANA E
ESTADOS ITALIANOS
" paz muitos anos - escrevia em 1567 o cardeal Girolamo de Correggio - que em
diversos lugares da Itália considerou,se estabelecer o tribunal da Inquisição, e em
alguns foi feito, mas por pilhéria"; somente agora tinha se tomado uma coisa séria. Vinte e
cinco anos antes em Mântua, por exemplo, ninguém sabia "o que significava lnquisição" 1•
Agora aprendiam, às próprias custas. Mas era um bem, escrevia o cardeal; para convencer,
,se disso, bastava olhar, além dos Alpes, o espetáculo da França.
Acreditais que se em França tivesse havido uma vigorosa Inquisição aquele rei se encontra-
ria agora no aperto em que se encontra e aquele pobre reino estaria na miséria em que está? ... E
estabelecei que abjurações e castigos são as coisas que poupam aos príncipes recorrer aos exércitos.
Tendo em França aumentado o fato da heresia, os principais fizeram muito bem ao pensar
em impedir tal contágio, vendo como os povos eram seduzidos e armados a pretexto de religião e
depois por tal meio alguns poderosos aspiravam a ocupar aquele reino. Por isso os grandes da Itália,
temendo a si mesmos, foram obrigados, o que antes haviam negado, a proferir seu apoio ao S. Ofício
da Inquisição de heresia 2 •
1. Carta de 20 de dezembro de 1567 a Francesco Gonzaga de Novellara, em Sergio Pagano, ll Processo di Endimio
Calandra e l'lnquisizjone a Mantooa nel 1567-1568, Cidade do Vaticano, 1991, pp. 50-51.
2. [Umberto Locati] Italia Travagliata novamente Posta in Luce, nella qual si Contengono tutte le Ou.erre, Seditioni, Pesti-
!entie et altri Travagli ... , Venezia, Daniel Zanetti e cols., 1576, p. 218. Sobre a cultura histórica de Locati, cf. Simon
Ditchfield, "Alla Ricerca di um Genere: Come Leggere la 'Cronica dell'Origine di Piacenza' dell'lnquisitore
Piacentino Umberto Locati (1503-1587)", Bo!!ettino Storico Piacentino, LXXU, 1987, pp. 145-167.
106
eclesiástica. Mas seu ponto de vista ajuda-nos também a compreender como, para os
contemporâneos , a afirmação definitiva do novo organismo era colocada por volta
da década de sessenta daquele século. O contexto das guerras de religião na Franca , .
portanto, foi aquele em que se verificou um deslocamento decisivo na relação entre
poder político e tribunais eclesiásticos. Mais alguns anos e, tendo em vista os êxitos da
estrutura inquisitorial ramificada por toda a Itália, Tomaso Garzoni de Bagnacavallo
convidava, com uma expressiva hipótese, a admirar "esta velha robusta Igreja Romana
mais jovem do que nunca na força e no vigor contra os insultos daqueles (os hereges) e
que, à guisa de um valoroso Anteu, tira dos golpes e das pancadas poder maior e com
mais honra revigora-se" 3•
Esses triunfais balanços traçados por homens que somavam o ofício das letras
à profissão eclesiástica dão-nos conta de uma única estrutura inquisitorial, aquela do-
minada pela congregação romana do Santo Ofício: e essa estrutura aparecia aos olhos
' deles como a continuação natural, ou melhor, a retomada providencial da inquisição
monástica medieval. Continuidade de homens, de sedes , de práxis. Nas cidades italia-
nas, os locais da Inquisição eram os de sempre: réus e testemunhas ainda deviam bater
à porta dos conventos franciscanos e dominicanos; e os processos que se desenvolviam
nesses conventos eram regidos pelos mesmos procedimentos indicados nos manuais
redigidos séculos antes, que ora eram atualizados e publicados. A questão parecia,
portanto, muito simples: a Inquisição era uma realidade única e antiquíssima, que
encontrara e continuava por vezes a encontrar obstáculos entre as autoridades leigas,
mas que, se deixada funcionar bem, tornava a levar à vitória da fé. Eram impressões
enganosas. A Inquisição romana era a tal ponto uma instituição de tipo novo que a
própria antiga aliança entre papado e ordens religiosas teve de ser posta à prova: o
privilégio de franciscanos e dominicanos nomearem os inquisidores teve de levar em
conta os poderes da congregação cardinalícia nesse sentido. Não se tratava apenas de
poderes das ordens: o privilégio reconhecido aos conselhos citadinos ou aos príncipes
de escolherem eclesiásticos de sua preferência para as funções mais importantes - os
vigários episcopais, os pregadores para os grandes ciclos da Quaresma e do Advento -
estendia-se também aos inquisidores: para o exercício desse privilégio, eram necessários
contatos epistolares e verdadeiras embaixadas, nos quais entravam em jogo muitos
fatores de pressão. Foram necessários anos para que os poderes de nomeação do Santo
Ofício fossem de fato exercidos com uma certa independência pelos mecanismos de
promoção interna às ordens e pelas recomendações dos poderes políticos. No caso do
inquisidor de Ferrara, frei Girolamo Papino, por exemplo, podemos seguir quase dia a
dia a longa batalha que ele conduziu para ser nomeado inquisidor de Ferrara: Papino
tinha o apoio do duque de Ferrara, que, desde 1540, mandara cartas de solicitação
nesse sentido ao Capítulo geral dos dominicanos. E, em 1547, quando foi mandado
a Bolonha como legado de Este ao Concílio, aproveitou para interpelar os mais ilus-
3. Tomaso Garzoni de Bagnacavallo, La. Piazza Universale di Tutte le Professioni del Mondo, Venezia, Gio. Batti5ca
Somasco, 1589, p. 532 (discurso "De gli Heretici et lnquisitori").
A Inquisição
107
tres juristas da Universidade sobre sua nomeação para inquisidor4. Em seu caso, o
apoio do duque e as promessas e os empenhos obtidos "pela via de Roma" a seu favor
foram redondamente ignorados pelo geral dos dominicanos, cuja autoridade ainda
parece decisiva naqueles anos; mas igualmente decisiva era a autoridade do príncipe
quando se tratava de julgar seus súditos por heresia. Demonstra-o suficientemente o
fato de , em 1549, devendo encetar em Ferrara o caso de Fanino Fanini, o duque ter
inserido no tribunal inquisitorial três conselheiros de justiça da corte 5 • Só por volta
da metade do século XVI os inquisidores encarregados começaram a receber cartas
oficiais de encargo da congregação romana e, consequentemente, a ver modificados
seus títulos. Mas para que um sistema de nomeação da cúpula de um poder central
substituísse o mecanismo longamente experimentado do acerto entre poderes políticos
e poderes eclesiásticos, fundado no respeito dos interesses locais, foi necessário um
tempo muito mais longo.
4. Cf. as cartas de Papino citadas por B. Fontana, Renata di Francia Duchessa di Ferrara, Roma, 1893, II, pp. 231
e ss.; em part. pp. 234-235.
5. Sobre o agitado evento relativo à nomeação de Papino cf. Filippo Valenti, "Il Carteggio di Padre Girolamo
Papino lnformatore Estense dal Concilio di Trento durante il Período Bolognese", em Archivio Storico Italiano,
CXXN, 1966, pp. 303-417. O breve papal de nomeação foi liberado pelo papa em 20 de outubro de 1548
"communicatio negotio curo Reverendo Magistro Sacri Palatii": cf. Fontana, Renata di Francia Duchessa di
Ferrara, op. cit., pp. 507-509. Papino, finalmente, recebeu o encargo oficial da Congregação romana do Santo
Ofício em 23 de janeiro de 1552 (cf. Bartolomeo Fontana, Documenti Vaticani contro l'Eresia Luterana in Itália,
op. cit., p. 423). Sobre o caso Fanino cf. o verbete de L. Felice, DBI, vol. 44, Roma, 1994, pp. 589-592.
6. Sobre a Inquisição na Sicília existe uma vasta literatura; cf. o estudo de Francesco Renda, La Fine de! Giudaismo
Siciliano. Ebrei Marrani e Inquisizione Spagno!a prima durante e dopo !a Cacciata de 1492, Palermo, 1993; sobre a
da Sardenha, cf. G. Sorgia, Studi sull'lnquisizione in Sardegna, Sassari, 1961 e Agostino Borromeo, "Contributo
allo Studio dell'lnquisizione e dei suoi Rapporti con il Potere Episcopale nell'ltalia Spagnola", em Annuario
dell'lstituto Storico Italiano per l'Età Moderna e Contemporanea, XXIX·XXX, 1977-1978, pp. 219-276.
7. Mas sobre a composição da congregação e sobre a alternância dos nomes em seu interior, como notou William
Hudon (Marcello Cervini and Ecclesiastical Govemment in Tridentine ltaly, Dekalb, 1992, pp. 116-117) não é fácil
lançar luz.
8. G . Fragnito, "II Nepotismo Farnesiano tra Ragion di Stato e Ragioni di Chiesa", em Continuità e Discontinuità
nella Storia Política, Economica e Religiosa. Studi in onore di Aldo Stella, Vicenza, 1993, pp. 117-125; em particular
p. 123.
A Inquisição
109
9. P. Prodi, II Sovrano Pontefice. Un Corpo e Due Anime, Bologna, 1988, pp. 169-185.
10. Cf. Pietro Tacchi Venturi, "Diario Concistoriale di Giulio Antonio Santori Cardinale di S. Severina", em Studi e
Documenti di Storia e Diritto, XXIII, 1902, pp. 297-347; XXIV, 1903, pp. 73-142 e 205-272; XXV, 1904, pp. 89-135.
11. Carta a Carlo Gualteruzzi, 2 abr. 1556, em E. Barbieri, Le Bibbie italiane dei Quattrocento e dei Cinquecento,
Milano, 1992, I, pp. 173-175.
pastoral. Propunha, em virtude disso, que lhe fosse reconhecido o poder, diante de even-
tuais casos como esse, de "poder absolvê-los e uni-los à santa Igreja sem estardalhaço"tz_
Nesse episódio, era emblematicamente representada uma oposição antiga entre clero
secular e clero regular, entre milícias especiais e governo local da Igreja; mas havia
também uma oposição de tipo novo , referente às estratégias de controle da sociedade
que a Igreja devia escolher. A nova instituição , portanto, criava desde seu nascedouro
um problema de poderes no interior da Igreja.
Mas a Igreja na Itália devia acertar-se com as muitas autoridades políticas dos
vários estados italianos. Também para com eles colocou-se a questão de quem devia
controlar a disciplina religiosa da população, questão essa que no plano europeu mais
geral estava então na ordem do dia. A questão era de natureza extremamente delicada:
tratava-se de estabelecer o direito de um tribunal externo - o romano - de citar, processar
e condenar súditos de outros soberanos ou cidadãos de repúblicas livres. Evidentemente,
nem tudo é claro naquilo que aconteceu na época, tendo em vista o desaparecimento
ou a indisponibilidade das fontes . Mas a pluralidade de sistematizações que vemos em
funcionamento uma vez superada a metade do século XVI constitui por si própria um
documento do modo como se tinham composto os conflitos em questão. Naturalmente,
em razão das relações de força , não se tratou de sistematizações definitivas. A tratativa
foi insistente, quase contínua e as normas jurídicas precisaram se ajustar às mudanças
de situação. Mas a relativa estabilidade do quadro italiano na longa fase que vai da me-
' tade do século XVI ao início do XVIll proporcionou o suporte à estabilidade (também
ela relativa) do ordenamento inquisitorial.
Em torno da Inquisição, entretanto, não se desencadearam conflitos jurisdicio-
nais entre Igreja e Estado; aliás, a questão se agregou às muitas a propósito das quais
eram enredadas tratativas e abertas negociações entre os estados italianos e Roma. Se
isso não fosse levado em consideração, não compreenderíamos por que não é possível
retraçar nenhuma relação entre importância do estado, sua potência política e militar
e capacidade de manter-se livre da jurisdição inquisitorial romana.
Foi, portanto, na relação entre Igreja romana e estados italianos que se definiu
a sistematização da nova Inquisição. Essa palavra - Estado - é carregada de riscos por
fazer pesar sobre os eventos do início da idade moderna uma imagem anacrônica, a de
um poder forte sobre o território, de uma autoridade zelosa de suas prerrogativas e capaz
de opor-se a outra entidade nitidamente distinta de si mesma, a Igreja. Não era esse
o estado das coisas na Itália do século XVI. Em Roma, o papa tinha geralmente como
interlocutores personagens que estava habituado a encontrar à sua volta para múltiplos e
complicados negócios pessoais, que dependiam dele como de uma alta senhoria feudal,
que tinham necessidade de favores, de benefícios, de graças. Mais do que pelos prínci-
pes e pelos governos laicos, os assuntos eclesiásticos eram tratados pelos membros da
igreja daquele estado residentes em Roma. O sistema atingia a perfeição quando havia
um cardeal membro da família reinante: um Gonzaga para Mântua, um Médici para
A inquisição
111
Florença, um Este para Ferrara. Competia a ele garantir a mediação para os assuntos
eclesiásticos. Como bem entendera já no século XV o cardeal Francesco Gonzaga, era só
residindo em Roma que os assuntos eclesiásticos do Estado podiam ser conduzidos 13 • A
Inquisição não mudou as regras do jogo. O Santo Ofício, instituído contra as "heresias
e máximas de Módena, Nápoles e Lucca" , no início não conseguiu realmente intervir de
modo direto em nenhuma dessas três cidades. Quando, em 1542, tratou-se da heresia
em Módena, coube ao cardeal Morone ocupar-se do assunto. E quando, alguns anos
mais tarde, tornaram-se insistentes as acusacões de "infeccão" herética contra Lucca,
' '
a tentativa de Carafa de introduzir a Inquisição na cidade toscana foi imediatamente
bloqueada pela intervenção de um cardeal que era do partido intransigente, além de
ser membro da congregação do Santo Ofício, mas que era em primeiro lugar cidadão
de Lucca: Bartolomeo Guidiccioni 14 • O episódio é significativo também pelo modo
completamente personalista com que Gian Pietro Carafa dirigia os negócios da con-
gregação romana. De Roma, partiu em 1549 uma "comissão" para dois dominicanos
do convento San Romano de Lucca: a cidade, que criara em 1545 um "Ofício sobre a
religião" para demonstrar sua capacidade de enfrentar de modo autônomo o problema
da heresia, enviou imediatamente um embaixador ao cardeal Guidiccioni. O cardeal,
informado pelo embaixador em 24 de setembro, caiu das nuvens: "não sabia nada desse
breve". Paulo III também reagiu com estupor ao saber do breve: "e quem o mandou?
Eu não sei de nada". Em 28 de setembro, o cardeal Alessandro Farnese ordenou por
escrito a Gian Pietro Carafa "que a ordem seja revogada" 15 •
Porém, se as turbulências religiosas de Módena e Lucca ameaçaram no panorama
italiano uma forma local daquela "reforma das cidades" que na Europa da época viu os
casos de Zurique, Estrasburgo, Genebra e tantos outros ainda, o panorama político da
península era dominado por realidades bem diferentes: os estados de Nápoles, Milão,
Veneza e outras poucas entidades territoriais de menor dimensão. Era ali que se devia
resolver o problema do controle religioso, nos termos em que se estava propondo em
toda a Europa.
13. Cf. D. S. Chambers, "A Defense ofNon-Residence in the Later Fifteenth Century: Cardinal Francesco Gonzaga
and Mantuan Clergy", The ]oumal of Ecclesiastical History, 36, 10/1985, pp. 605-633.
14. Sobre a história da relação entre Lucca e a Inquisição romana, remeter-se às pesquisas de Simonetta Adomi-
-Braccesi, "La Repubblica di Lucca e l'Aborrita lnquisizíone", em L'lnquisizione Romana in ltalia nell'Età Moderna,
Roma, 1991, pp. 233-262.
15. Retomo as citações dos despachos reportados por Fragnito, "II Nepotismo Farnesiano ... ", op. cit. , pp. 123-124.
16. Para Milão, cf. a carta de Carlos V ao marquês dei Vasto, datada de Magonza, 11 ago. 1543, e publicada na
minuta de F. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa, op. cit., pp. 408-409. A questão mencionada na carta é a dos
poderes de um inquisidor não reconhecido pelo Santo Ofício. O auxílio do braço secular deve ser total, escreve
Carlos V em outra carta de 11 de abríl de 1552, ao pretor de Piacenza, relativa aos procedimentos inquisitoriais
contra os hereges, com o objetivo de evitar sedições e tumultos (Archivio di Stato di Parma, Culto, b. 101, S.
Uffizio 1570-1781, cc. n. n.).
17. Sobre a cultura napolitana do início do século XVI é útíl ainda a volumosa monografia de H. Jedin, Girolamo
Seripando. Sein Leben und Denken im Geisteskampf des 16. ]ahrhunderts, Würzburg, 1937.
A Inquisição
113
18. Cf. G . Romeo, Inquisitari, Esorcisti e Streghe nell'ltalia della Controriforma, Firenze, 1990; P. Scaramella, "Con la
Croce a! Cuore". lnquisizione ed Eresia in Terra di Lat1oro (1551 -1564), Napoli, 1995.
19. Amabile, I! Santo Officio della lnquisizione in Napoli, op. cit.; G. Romeo, "Una Città, Due Inquisizioni: !'Anomalia
dei Sant'Ufficio a Na poli nel Tardo 500", Rit1ista di Storia e Letteratura Religiosa, XXIV, 1988, pp. 42-67 (retomado
em Romeo, Inquisitari, Esorcisti e Streghe, op. cit., pp. 7 e ss.).
20. Cf. Amabile, I! Santo Officio dell'lnquisizione in Napoli, op. cit., !, pp. 147 e 224.
21. Entre as lacunas mais graves, destaca-se aquela relativa justamente à nunciatura de Pavesi (cf. Pasquale Villani,
"Origine e Carattere della Nunziatura di Napoli (1523-1569)", Annuario dell'lstituto Starico Italiano per l'Età
Moderna e Contemporanea, IX-X, 1957-1958, pp. 285-539; em particular p. 317).
principal para os negócios que requeriam poderes delegados por Roma, incluindo a luta
contra a heresia, pôde ser visto nos fatos : o sucessor de Pavesi, Niccolo Fieschi, enviou
circulares aos bispos e a seus vigários, apresentando-se como a autoridade delegada pelo
~ papa para ajudar os ordinários na obra de extirpacão de "tão perniciosa semente"22.,
'
pôde contar com os capitães de justiça leigos para a detenção de eclesiásticos suspeitos;
foi o instrumento das extradições quando o Santo Ofício considerou-as necessárias;
tratou diretamente, de um lado com as autoridades do vice-reinado, de outro com 0
cardeal sobrinho Carlo Borromeo, todas as questões relativas aos hereges (por exemplo,
o sequestro de seus bens e as pretensões da Câmara apostólica sobre eles). Em suma,
representou para todos os efeitos o poder papal do qual era legatário e foi um ouvido
atento voltado para as ameaças de heresia 23 • Nas instruções redigidas pelo novo núncio,
em maio de 1566, figurava em primeiro lugar o convite a
[... )permanecerem vigilância máxima naquelas partes da Calábria e naqueles lugares vizinhos
a Nápoles, onde se viu no passado alguma infecção de heresia, que os ordinários tenham vigários
não menos exemplares de vida quanto de inteligência, os quais usem de toda indústria e diligência,
para saber o modo e a vida que levam seus diocesanos e que proíbam conventículos, reuniões e con-
gressos noturnos, e também os diurnos , [... ) e para ter certeza daqueles que não vivem catolicamente
e não fazem obras e ofícios de cristãos, e para poder mais facilmente ou obrigá-los a se emendarem
ou remediar para que não infetem outros, seria bom persistir no modo e nas ordens já iniciadas e
providenciar que S. E. ordene aos governadores das províncias e dos lugares particulares que forneçam
sua ajuda e braço secular com segredo e prontidão aos bispos e seus vigários que os pedirem etc. ,
sabendo o senhor vice-rei que isso tende não menos à conservação, e paz daquele Reino, do que ao
serviço de Deus e à satisfação de S. Beatitude 24 •
A Inquisição
115
27. "Esse povo demonstra hostilidade, duvidando ainda que a inquisição não lhe seja imposta" (Fieschi a Cario
Borromeo, Napoli, 18 dez. 1564; em Villani, "Origine e Carattere della Nunziatura di Napoli", op. cit. , p. 531).
28. Minuta de carta ao vice-rei de Nápoles, datada de 23 de junho de 1549, citada por Lopez, lnquisizione Stampa e
Censura nel Regno di Napoli, op. cit. , p. 38. Sobre a revolta de 1510, cf. Amabile, ll Santo Officio della lnquisizione
in Napoli, op. cit. , pp. 103-119.
29. Cf. Romano Canosa, Storia dell'lnquisizione in ltalia, vol. IV, Milano e Firenze, Roma, 1988, pp. 37 e ss.
30. · Um apelo do Senado de Milão a Felipe II contra a introdução da Inquisição, de 1565, pode ser encontrado
em Angiolo Salomoni, Memorie Storico-diplomatiche, Milano, 1806, reed. 1975, pp. 159-166.
l
116
Por quais razões os estados italianos eram tão hostis? Diz-se que por medo do
sistema inquisitorial espanhol, pela fama de dureza que o circundava. Mas é uma respos-
ta superficial: a dureza que assustava as classes dirigentes não era aquela temida pelas
potenciais vítimas. É verdade que o medo daquele tribunal era grande. No mundo dos
imputados, nos discursos e nos julgamentos referidos nas sessões da Inquisição romana,
aludia-se frequentemente às diferenças entre um tribunal e outro, sobretudo quando
se tratava de pessoas que podiam cair sob a jurisdição da Inquisição espanhola. Por
exemplo, um espanhol de Valência que residia na Toscana e era acusado de praticar
encantamentos e magias com uso de hóstias consagradas, respondeu assim a quem 0
ameaçava mandá-lo de volta a Valência se não parasse de praticar coisas semelhantes:
"Em Valência eu não praticaria pois a inquisição de lá é mais rigorosa e não é tão amável
como aqui" 31 • Os judeus que emigraram da Espanha e se estabeleceram na Toscana -
onde podiam praticar abertamente sua religião - ao se encontrarem falavam do "grande
rigor de justiça que se usa em Espanha e Lisboa" 32 • Mas o ponto de vista das vítimas
não tinha muita importância. Não lhes cabia decidir. No Reino de Nápoles, a repressão
violenta contra a minoria religiosa dos valdenses, na Calábria, em 1561, e os processos
por heresia conduzidos pelos bispos com o auxílio das autoridades espanholas não
suscitaram qualquer reação de caráter geral e não diminuíram a fidelidade à Espanha.
Tratou-se de intervenções para eliminar, através da força , as minorias religiosas, que
tiveram caráter idêntico à violenta ação conduzida contra os mouros. Eram operações
cirúrgicas que suscitavam amplo consenso por parte do grupo religioso majoritário.
Mas não estavam-se dispostos a tolerar outras características do modelo espanhol: ele
fazia pesar a ameaça de um poder que não fazia caso das redes locais do privilégio, que
golpeava sem respeitar nem sequer os níveis elevados das hierarquias sociais, que pro-
cedia rapidamente ao confisco dos bens dos condenados: todos aspectos considerados
intoleráveis por quem tinha bens e prestígio a defender.
Não foi por medo da dureza do tribunal da Inquisição que se rebelaram os nobres
dos Países Baixos. E é justamente para a revolta dos Países Baixos - um acontecimento
de peso bem maior na história espanhola e europeia que as discussões italianas sobre
a introdução da Inquisição - que se deve chamar a atenção. Trata-se de um fato que
esteve ligado aos assuntos italianos. Os Países Baixos e o estado de Milão tiveram a
sorte singular de se apresentarem sempre contrapostos, como alternativos entre si, na
história das possessões dos Habsburgos. A imposição da Inquisição aos Países Baixos - e
a decisão de não implantá-la na Itália - acabou por resolver um problema que já se havia
colocado em várias ocasiões à política dos Habsburgos: o da escolha entre os domínios
italianos e os dos Países Baixos. Desde a época de Carlos V a questão foi tratada em
31. Denúncia anônima de 23 de setembro de 1579, em Archi1.1io Arci1.1esco1.1ile di Pisa(= MP), S. Uffizio, f. I, cc. n.
n. É um juízo confirmado pelo ótimo estudo de Ricardo Garcia Cárcel (Herejía y Sociedad en el Sigla XVI. La
lnquisición de Valencia 1530-1609, Barcelona, 1980, p. 216), segundo o qual o tribunal de Valência esteve "entre
los más duros del Santo Oficio".
32. Depoimento de Francisco Gómez de Morais, 4 jun. 1613, à inquisição de Pisa (MP, S. Uffizio, f. 4, cc. n.n.).
A Inquisição
117
várias ocasiões pelo imperador e por seus conselheiros. É uma história interessante,
por revelar também quais eram as posições espanholas em relação à Itália e aos Países
Baixos. É sabido que Carlos V teria preferido ocupar os Países Baixos, aos quais era
mais ligado e de cuja fidelidade sentia-se seguro, enquanto era mais desconfiado dos
domínios italianos, ou melhor, dos italianos em geral (para Carlos V, era possível contar
com a amizade dos italianos somente enquanto tudo corria bem). A escolha colocou-se .
após a paz de Crépy, em 1544, quando se tratou de optar entre duas alianças matrimo-
niais diferentes que custariam para Carlos V a renúncia a Milão, ou então a renúncia
aos Países Baixos e ao Franco-Condado. Nessa ocasião, foi o próprio duque de Alba
a sustentar que se devia manter Milão por ser "la puerta para ir y venir a Alemafia y
Flandes" , enquanto o arcebispo de Toledo e todo o partido castelhano insistiram nos
perigos, dificuldades e custos do domínio de Milão: pareciam mais seguras as posses-
sões hereditárias dos Países Baixos e mais fiel aquela população, ao passo que parecia
prudente abandonar os estados italianos com suas divisões , com a duvidosa fidelidade
da população e com os custos das longas guerras travadas . Havia até um julgamento
negativo sobre os italianos que era bastante difundido na cultura espanhola: um povo
dividido , inconfiável, de escasso valor militar33 •
A escolha de 1544 permaneceu em estado de projeto. Mas os argumentos usados
à época mostram a segurança que se tinha em relação aos neerlandeses e a desconfiança
em relação à Itália. A realidade histórica dos séculos sucessivos devia demonstrar quanto
estavam erradas as reflexões do partido castelhano representado pelo arcebispo de Toledo
e como a consolidação do poder espanhol na Itália estava ligada ao controle de Milão.
O momento da escolha entre Milão e os Países Baixos ocorreu no início do rei-
nado de Felipe II. Foi então que o mesmo projeto de instalar a Inquisição espanhola
foi aventado para os domínios italianos e para os Países Baixos. Na Itália, fracassou ;
nos Países Baixos, ao contrário, foi executado. Na Itália, houve somente ameaças de
revoltas; nos Países Baixos, ao contrário, a revolta aconteceu e levou ao desligamento
final desses territórios da coroa espanhola. Logo, é evidente que à introdução - ou à
fracassada introdução - da Inquisição espanhola deveu-se uma reviravolta política de
considerável importância para toda a história da Europa: os territórios italianos perma-
neceram fiéis à Espanha por pelo menos outros 150 anos. Ao contrário, as possessões
hereditárias dos Habsburgos nos Países Baixos tornaram-se independentes e o curso
da história europeia mudou. Existe um fio comum que liga esses acontecimentos: por
exemplo, as resistências napolitanas e milanesas fizeram-se bem presentes para quem
dirigiu o protesto dos Países Baixos contra a Inquisição: o exemplo de Nápoles foi citado
explicitamente nas capitulações subscritas pelos protestantes dos Países Baixos em 1565 34•
33. Cf. Federico Chabod, "Milano o i Paesi Bassi? Le Discussioni in Spagna sulla 'Alternativa' dei 1544", em
Carlo V e il suo Impero , Torino, 1985, pp. 187-224.
34. Cf. Alastair Duke, "Salvation by Coercion: The Controversy Surrounding the 'lnquisition' in the Low Countries
on the Eve of the Revolt'' , em Peter Newman Brooks (org.), Reformation Principie and Practice, Essays in Honour
of Arthur Geoffrey Dickens, London, 1980, pp. 137-156.
35. Cf. F. E. Beemon, "The Myth of the Spanish lnquisition and the Preconditions of the Dutch Revolt", em
Archiv für Reformationsgeschichte, 85, 1994, pp. 246-264.
36. "Aviso" de Roma, relativo à reunião de 14 de janeiro de 1559 do Santo Oficio, em J. Hilgers, Der Index der
1559
verbotenen Bücher, Freiburg, 1904, citado a partir de Index des litJTes interdits, vol. VIII, Index de Rome 1557, •
1564, org. por J. M. De Bujanda, Geneve, 1990, p. 45 n.
A Inquisição
119
seculares" e por isso o papa perderia seu poder sobre o corpo eclesiástico italiano; nem
se devia dar crédito às declarações de fidelidade e de obediência da Inquisição espanhola
à de Roma, pois o exemplo do processo contra Bartolomé Carranza falava claro 37 •
Sobre a natureza real da Inquisição espanhola, sobre o fato de ser principalmente
um organismo político e estatal ou , ao contrário, um organismo eclesiástico, foram
aventadas hipóteses de vários tipos: foi observado com justiça que se tratou de um
organismo de natureza "mista" , que para se afirmar soube usar em cada caso específico
o instrumento do poder estatal e o de sua natureza eclesiástica 38 • Nos estados italianos,
o que se temia da Inquisição era um poder que ignorava qualquer privilégio e qualquer
isenção, capaz de proceder contra qualquer um. Preferia-se que em seu lugar houvesse
uma autoridade eclesiástica ordinária, dependente de Roma: melhor se fossem os bispos,
ligados às famílias dominantes.
As coisas aconteceram realmente dessa maneira. Não obstante novas tentativas
de introduzir a Inquisição "ao modo de Espanha" , de fato permaneceu em vigor um
sistema complicado, no qual os bispos agiam em assuntos inquisitoriais sob o controle
e a direção da congregação romana do Santo Ofício e com o auxílio dos inquisidores
nomeados por Roma. Disso resultou que a luta contra a heresia não foi conduzida pela
Inquisição espanhola, mas pelas autoridades eclesiásticas ordinárias, tanto em Milão
como em Nápoles. A questão da ameaça da heresia retorna continuamente na corres-
pondência entre o vice-rei de Nápoles e a corte, desde os tempos de Carlos V. Mas a
repressão da heresia foi confiada aos tribunais dos bispos, estimulados e assistidos pelos
poderes políticos locais. Em Roma, não sendo possível instituir um tribunal do Santo
Ofício específico, recorreu-se ou ao tradicional instrumento diplomático de presença e
de pressão política - o núncio - ou a uma presença mascarada da congregação romana
por meio de um seu representante semioculto.
A Inquisição, portanto, tanto em Milão como em Nápoles e em outros estados
italianos, foi um tribunal eclesiástico presidido por uma autoridade central: a congrega-
ção romana do Santo Ofício em cujo vértice havia o papa. Foi a única forma de poder
centralizado que funcionou na Itália durante toda a Idade Moderna. Isso deixou traços
importantes não só na história, mas também na realidade política italiana: uma forma
de alta soberania do papa sobre a Itália ainda é visível.
Quanto às características da ação inquisitorial de controle da sociedade italiana,
elas dependeram da natureza do sistema de controle: por se tratar de um poder totalmen-
te eclesiástico, em certa rivalidade com os tribunais laicos mais ou menos declarada, a
Inquisição preferiu formas brandas de intervenção, recorreu muito raramente ao braço
secular e serviu-se de maneira sistemática do auxílio dos confessores para conseguir
37. A carta, de 1563, foi publicada por E. Vega, "Il Município di Milano e l'Inquisizione di Spagna 1563", em
Archivio Storico Lombarda, s. 3, VIII, 1897, pp. 102 e ss. Cf. também Canosa, Storia dell'Inquisizione in Italia, 110!.
IV, op. cit., p. 35.
38. V. o lúcido ensaio de Franco Tomás y Valiente, "Relaciones de la Inquisición con el Aparato Institucional del
Estado", em La Inquisición Espanola. Nueva Visión, Nuevos Horizontes , org. por Joaquín Perez Villanueva, Madrid,
1980, pp. 41-60.
penetrar nos segredos das consciências. Sua função de impor uma disciplina à socie-
dade realizou-se principalmente no que se refere às superstições e às práticas mágicas
populares, aos excessos no culto dos santos e nas devoções. Graças a um sólido sistema
de ligações com a igreja, a nobreza e o patriciado urbano não precisaram temer ameacas
particularmente graves por parte do poder da Inquisição. ·
Por todas essas razões, na tradição intelectual italiana, a imagem da Inquisicão
ligou-se à Igreja. De Paolo Sarpi a Pietro Giannone, a polêmica contra a Inquisição é u~a
polêmica contra a intromissão eclesiástica no campo dos poderes do estado: uma batalha
quase que só defensiva, de caráter anticlerical. É possível talvez encontrar nessa história
apenas sumariamente esboçada aqui, a explicação da diferença de orientação existente'
entre os historiadores italianos e os espanhóis: na Itália, os hereges foram preferidos
como tema de estudo por seu valor de testemunhas da liberdade de pensamento contra
um sistema de submissão das consciências que se valia de meios brandos, insinuantes,
invasivos. Na Espanha, ao contrário, sempre foi percebida por trás dos aspectos isolados
da história da Inquisição a presença de um poder monárquico central e de um projeto
de unificação estatal.
.
2. FLORENCA
Em Florença, capital de um "Príncipe novo" como foi indubitavelmente Cósimo I,
parece ter atuado por algum tempo uma magistratura específica, a dos "inquisidores
e comissários sobre as heresias". Não sabemos quase nada a esse respeito. Mas é certo
que ainda estavam em atividade muitos anos após a criação do Santo Ofício romano.
Em 1551, portanto quase uma década após o início oficial da nova Inquisição, a ma-
gistratura criminal de Florença - os Otto di Guardia e di Balia 39 - examinou a causa
pendente contra Ludovico Domenichi, acusado de heresia. Ocuparam-se do caso, ao
que parece, alguns "inquisidores e comissários sobre as heresias" , evidentemente uma
magistratura laica constituída por Cósimo I para fazer frente ao problema emergente
da difusão das ideias da Reforma 40 • E o caso em que aparecem seus nomes é de grande
interesse pelo entrelaçamento de propaganda religiosa e relações políticas que expõe.
Ludovico Domenichi, natural de Piacenza, foi literato original e espírito inquieto,
bom representante nesse aspecto do mundo das letras italianas da metade do século.
Gracas à nova relacão entre escrita e tipografia, criada pela difusão da imprensa, havia
boa; possibilidade~ de trabalho para tradutores e divulgadores: e Ludovico Domenichi
dedicou-se justamente ao ofício de tradutor e editor. Mas, para sua estreia, escolheu um
texto perigoso como nenhum outro: Excuse à messieurs les Nicodemites de Calvino,
um violento panfleto contra todos aqueles que, tendo abraçado as ideias da Reforma,
39. Antiga magistratura florentina, composta de oito cidadãos, que cuidava dos assuntos criminais e policiais da
República de Florença e depois do grão-ducado (N. do T.).
40. Dessa magistratura, que é indicada no documento publicado por Bonaini (cf. mais adiante, nota 40), desco-
nheço as vicissitudes.
A Inquisição
121
41. Cf. C. Ginzburg, Il Nicodemismo. Simulazione e Dissimulazione Religiosa nell'Europa del 500, Torino, 1970,
pp. 122-124.
42. Publicado por F. Bonaini, "Dell'lmprigionamento per Opinioni Religiose di Renata d'Este e di Lodovico
Domenichi e degli uffici da essa fatti per la liberazione di lui secondo i documenti dell'archivio centrale di
stato", em Giomale Storico degli Archivi Toscani, III, Firenze, 1859, pp. 268-281 ; em particular pp. 272-273 .
43. Arnaldo D'Addario, Aspetti della Controriforma a Firenze, Roma, 1977, p. 159.
era certamente a relação que ligava desde muito tempo Roma e Florença - era possível
chegar a colocar juntas a extradição de Carnesecchi com a abertura aos judeus portu-
gueses, declarada por Cósimo em 1558 e reforçada com a Constituição de Livorno de
1593. De resto, as crônicas florentinas contam como as sentenças contra os hereges
eram dosadas ao arbítrio de Cósimo, que era capaz de punir exemplarmente os "menos
nobres de sangue" , poupando os mais nobres (e "a muitos pareceu que faltava justiça",
anotou um cronista da época 44 ) . São anotações que revelam um aspecto importante
da justiça principesca e da inquisitorial especialmente: o príncipe não podia deixar ao
poder eclesiástico um instrumento como a Inquisição contra a heresia, sem renunciar
ao exercício não tanto de um poder estatal abstrato quanto do sistema concreto de
relações sobre o qual se apoiava sua hegemonia.
Por outro lado, a punição dos hereges fazia parte do ideal de príncipe cristão de
Cósimo I : empreendê-la primeiro e mais rapidamente do que os outros - os detestados
príncipes d 'Este, por exemplo - era um de seus objetivos. Não foi por acaso, prova-
velmente, que o título de inquisidor florentino tornou-se o de inquisidor da Toscana
mais ou menos no mesmo momento em que o inquisidor de Ferrara recebia o título
de responsável por todo o estado de Este 45 • Mas justamente por estar convencido de
que a subversão religiosa era a porta da subversão política - e bem sabendo, graças a
seus espiões, que em Roma a divergência religiosa era controlada e utilizada instrumen-
talmente em termos políticos - Cósimo quis manter-se ao corrente das investigações
inquisitoriais: príncipe "novo", temeroso de complôs e conjurações, queria ter um ouvido
no interior desse tribunal eclesiástico do qual, por princípio, era excluído. Além disso, o
sistema inquisitorial devia ser, segundo Cósimo, dirigido a partir da capital do ducado:
e isso em virtude de um plano de centralização e de eliminação da divergência que antes
ainda de ser religiosa era política. Por isso, nas relações com o tribunal da Inquisição,
pretendeu-se garantir ao soberano um poder de conhecimento das causas em curso que
foi menos formal do que o veneziano, mas nem assim menos eficaz. Ao cardeal de Tole-
do, que lhe demandava assistência para a execução das ordens do Santo Ofício, Cósimo
respondeu solicitando que os inquisidores lhe enviassem as informações que tinham "e
ele mesmo pensará em punir os hereges" 46 • Ora, as informações da Inquisição deviam
permanecer secretas para as autoridades não eclesiásticas: esse era o ponto principal em
toda a definição da natureza daquele tribunal. Mas no caso florentino, há numerosos
44. Do "Diario di Firenze dal 1536 al 1555", em Salvatore Caponetto, Aonio Paleario (1503-1570) e la Rifarmo.
Protestante in Toscana, Torino, 1979, pp. 235-237.
45. Cf. do autor deste volume "II Budget di un lnquisitore: Ferrara 1567-1572", em Schifanoia, II, 1986, pp. 31-
-40. Sobre Pietro Camesecchi cf. o verbete de A. Rotondo, em DBI, vol. XX, Roma, 1977, pp. 466-471 (a ser
completado com os dados revelados por Gigliola Fragnito, "Un Pratese alla Corte de Cosimo I. Riflessioni e
Materiali per un Profilo di Pierfrancesco Riccio", em Archi11io Storico Pratese, LXII, 1986, pp. 31-83; em particular
pp. 4 3-45 e notas). Sobre a construção do sistema estatal de Cosi mo I é fundamental o estudo de Elena Fasano,
Lo Stato Mediceo di Cosimo I, Firenze, 1973.
46. Arquivo Estatal de Florença, Carteggio Uni11ersale di Cosimo I, XXVI, f. 323, n. 5. Sobre o complexo jogo político
que se deu em tomo da Inquisição, v. Fragnito, "Un Pratese alla Corte de Cosimo !", op. cit.
A Inquisição
123
47. Cf. A. Anzilotti, La Costituzione Interna dello Stato Fiorentina sotto il Duca Cosimo I de'Medici, Firenze, 1910,
pp. 190-193.
48. "[ ...] Que houvesse a intervenção de alguns leigos da cidade nos processos, valendo-se nesta demanda do
exemplo ora do duque de Saboia, ora dos Venezianos, ora de Florença, finalmente de Ferrara ... " (Carta de
Carlo Borromeo ao cardeal Rebiba, 28 fev. 1568, a propósito das solicitações feitas pelo duque de Mântua,
em Pagano, II Processo di Endimio Calandra, op. cit. , p. 81.
49. Fatti Attenenti all'lnquisizione e sua Istoria Generale e Particolare di Toscana (que apareceu anônima em Florença,
pelo editor Anton Giuseppe Pagani, 1782, mas de Francesco Becattini, cujo nome aparece na edição suces-
siva, Milão, 1797), pp. 127-128. O breve de designação dos comissários, datado de Roma, 24 dez. 1551, foi
descoberto em ASV, Minute di brevi, Giulio III, arm. 41, n. 62, 1043, c. 339ro, por Stefano Carrara, a quem
agradeço pela indicação. Sobre a estrutura do tribunal, na época de Pio IV e Pio V, ver do autor deste volume
"L'lnquisizione Fiorentina dopo il Concilio di Trento", em Annuario dell'lstituto Storico Italiano per l'Etd Moderna
e Contemporanea, vv. XXXVII-XXXVIII, 1985-1986, pp. 97-124 e 100-102. Uma atividade processual dos primei-
ros núncios em Florença, Giovanni Campeggi (1560) e Giorgio Comaro (a partir de 1561) foi registrada por
Lorenzo Baldisseri (La Nunziaura in Toscana, Cidade do Vaticano, Guatemala, 1977, pp. 44, 103 e ss.) com base
em algumas sentenças.
grão-duque era diretamente informado pelos cardeais do Santo Ofício romano: Scipione
Rebiba primeiro, Giacomo Savelli depois mantiveram correspondência constante com
os grão-duques, aos quais faziam chegar pedidos para encarcerar e "mandar dessa vez"
a Roma as pessoas suspeitasse. Outras e mais detalhadas informações sobre os compor-
tamentos dos inquisidores no estado chegavam ao grão-duque através de seus juízes.
Aliás, era justamente esse controle substancial dos casos específicos que interessava aos
príncipes italianos: eram exigidas informações prévias ao encarceramento dos suspeitos
e informações sobre o que vinha à tona nos interrogatórios - e isso podia ser garantido
também mediante formas não institucionais, se, por exemplo, o notário que redigia os
autos do processo não era um frades 1• As autoridades de polícia do estado reservavam-
-se o direito de prender e perseguir os acusados de delitos inquisitoriais somente com
base em um consentimento que devia ser requerido a cada vez: e de Roma chegavam ao
tribunal florentino indagações preocupadas quanto ao tipo de informações que eram
dadas às autoridades laicas sobre as questões inquisitoriaiss 2• Por outro lado, a aprovação
das autoridades policiais era indispensável: se em Florença bastava controlar através
do alcaide quais pessoas tinham sido enviadas às Stinche pela Inquisição, na periferia
não se perdeu a ocasião de lembrar aos frades que o auxílio do "braço secular" devia
ser negociado caso a caso. Em Pisa, os frades de São Francisco, que em 1582 tinham
organizado uma solene abjuração de bruxas em sua igreja, tiveram que mandar as pes-
soas de volta para casa de mãos abanando porque o capitão dos esbirros recusou-se a
levar as duas rés da prisão à igreja, por falta de uma ordem específica do grão-duque
e, diante dos protestos dos frades, para cúmulo do desprezo, montou a cavalo e partiu
para o campo onde tinha coisas mais importantes para fazers 3 • No campo, por outro
lado, parece ter sido práxis normal para o inquisidor florentino ter relações com os
vigários do grão-ducado para executar as ordens do Santo Ofício. Prova disso é o caso
de um processo por bruxaria realizado em Pieve Santo Stefano, em 1603: o inquisidor
50. Cf. a documentação indicada por Valeria Marchetti, "Ultime Fasi della Repressione dell'Eresia a Siena nel
Tardo Cinquecento" , em Rassegna degli Archfoi di Stato, XXX, 1970, pp. 58-90.
51. Essas eram as solicitações do duque de Mântua em 1568: "que as capturas fossem comunicadas antes pelo
inquisidor; ... que se pegasse um notário que não fosse frade" (cf. a carta de Carla Borromeo supracitada, na
nota 48). Em Florença, Cósimo ordenou o depósito dos autos dos notários no arquivo público, em 1569 (e
por conta disso os depoimentos dos processos inquisitoriais foram, ao menos parcialmente, conservados no
arquivo do príncipe: cf. Valeria Marchetti, 'TArchivio dell'Inquisizione Senese. Rendiconto di una Ricerca
in Corso", em Bollettino della Società di Studi Valdesi , 93, 1972, pp. 77-83.
52. Em uma carta de 11 de outubro de 1577, o Santo Ofício romano solicitava ao inquisidor de Florença "que, tendo
sido observado [...] que seja necessário capturar, faça o Inquisidor a S. Alteza memorial a respeito, explicando
distintamente que recomendação tem a fazer o Inquisidor a S. Alteza, quer lhe fale em geral ou nomeie alguém,
que seja prestada conta do mérito da causa e dos indícios, se tal diligência deve ser feita para cada pessoa a ser
capturada ou só para algumas e para quem, se nisso surge alguma dificuldade imposta por alguém e por quê"
(ACAF, Miscell. S. Uffizio, b. 14: "Ristretto delle cose notabili cavato dalle lettere della S. Congregazione").
53 . O episódio, do qual restou documentação pontual nos calhamaços da Inquisição de Pisa (AAP, S. Uffizio, f. 3,
cc. n. n.), já foi narrado por Francesco Becattini, Fatti Attinenti all'lnquisizione e sua Istoria Generale e Particolare
di Toscana, Firenze, 1787, p. 143.
A Inq uisição
125
54. Membro da magistratura criminal florentina denominada "Otto di Guardia e di Balia" (N. do T.).
55. Arquivo de Estado de Florença, Segreteria di Gabinetto 155, fase. 8: "lnquisizione in processo di streghe fabbri-
cato da ser Leonardo Pasquino Pasquini da Loro, notaio del malefício dell'Illmo. Signor Baccio da Manente
Buondelmonti, nobile fiorentino, vicario dela Pieve S. Stefano, 1603".
56. Uma lista com os respectivos títulos foi elaborada por frei Antonio Benoffi, Series lnquisitorum Tusciae , cód.
698 da Biblioteca Antoniana de Pádua.
57. Carta dos Anciãos ao orador Giovambattista Bernardi, 9 jan. 1544, reportada por Simonetta Adorni Braccesi,
"Una Città lnfetta", op. cit., p. 160.
58. Carta datada de Roma, 18 nov. 1589, conservada em Bruxelas, Archives générales du Royaume, Archives
ecclésiastiques 1928 3ter, cc. 464r-467v.
59. "Gonfaloniere di Giustizia": magistrado instituído em 1298, em Florença, para tutelar os direitos do povo
(N. do T.).
60. Cf. S. Adorni Braccesi, "La Reppublica di Lucca e l'"Aborrita" lnquisizione: Istituzioni e Società", em
L'lnquisivone Romana in lta.lia nell'Età Moderna, anais do seminário internacional (Trieste, 18-20 maio 1988),
Roma, 1991, pp. 233-262.
A Inquisição
127
3. VENEZA
Entre os estados maiores, Veneza ocupava um lugar especial: única autêntica potência
italiana, sua capacidade de unificar politicamente a península fora definitivamente
bloqueada pelo papado com a batalha de Agnadello. Mas continuava a ser um estado
de muita importância; dentre outras coisas, por suas relações comerciais e por sua
posição geográfica era ligado mais do que qualquer outro estado italiano ao mundo
alemão e, por conseguinte, estava exposto à difusão das ideias da Reforma. Por isso,
as relações que ali foram criadas entre inquisição eclesiástica e inquisição de estado
foram , tanto na época como depois, objeto de discussões e análises contínuas. O mo-
mento mais alto foi registrado pelo relato de Paolo Sarpi sobre as origens e o caráter
do ofício da Inquisição em Veneza: a obra de Sarpi, que a primeira edição impressa
em 1638 apresentava como "pia, douta e curiosa, muito necessária a conselheiros,
casuístas e políticos" 61 defendia a tese do caráter misto do tribunal veneziano como
decorrente de uma longa tradição de governo autônomo da vida religiosa. Fruto
póstumo de um conflito que vira pela primeira vez pôr em discussão os poderes da
inquisição em um estado italiano, o texto de Sarpi, porém, estava destinado a circular
somente fora da Itália e a chegar a mãos italianas só por caminhos complicados. Foi
traduzido para o latim, garantindo-lhe assim ampla circulação, por Andreas Colvius
de Dordrecht, que vivera em Veneza de 1620 a 1627 no séquito do enviado holandês
e tivera relações com Sarpi e com Galileu 62 • Como já acontecera com a mais célebre
61. Paolo Sarpi, Historia della Sacra lnquisitione Composta dal R. P. Paolo servita, ed hora la prima oolta posta in luce,
opera pia, dotta e curiosa a consiglieri, casuisti e politici molto necessaria, Serravalle, Fabio Albicocco, 1638; a obra,
que chegou imediatamente às mãos do Santo Ofício, foi vista como produto da "ímpia forja" calvinista de
Genebra, como observa Francesco Albizzi em sua Risposta all'Historia della Sacra lnquisitione Composta dal R. P.
Paolo Servita..., publicada em Roma, em 1678, mas "escrita certamente quarenta anos antes" (A. Rotondo, "La
Censura Ecclesiastica e la Cultura", em R. Romano e C. Vivanti [orgs.), Storia d'ltalia, vol. V, I Docurnenti,
Torino, 1973, pp. 1399-1492; ver p. 1476 n).
62. Historia lnquisitionis P. Pauli Veneti. Cui adiuncta est Confessio Fidei, quam ex ltalica língua Latinam fecit Andreas
Colvius, Roterdam, typis Arnold Leers, 1651.
lstoria del Concilio Tridentino , também nesse caso a obra de Sarpi estimulou uma res-
posta polêmica e apologética por parte de Roma, de autoria de Francesco Albizzi,
um prelado que à longa e direta prática em questões inquisitoriais pôde acrescentar
o recurso "à pura, e sincera fonte dos registros originais , depositados nos Arquivos
Apostólicos" 63 • A questão que esteve no centro da polêmica dizia respeito aos direitos
da jurisdição inquisitorial em relação a uma grande quantidade de matérias das quais,
segundo Sarpi, o estado tinha tradicionalmente direito de controle. Era um problema
delicado e fundamental , que podia ser posto somente na Itália pela concomitante
presença de um poder romano centralizado e exclusivo em matéria inquisitorial e de
um estado como o veneziano que conservava zelosa memória de um modo diferente
de governar as muitas vertentes da vida social que , por fim, passaram a pertencer ao
âmbito inquisitorial e eclesiástico. Mas as condições da sociedade italiana eram tais
que a discussão foi sufocada ao nascer: a obra de Sarpi foi publicada fora da Itália,
como foi dito. Quanto à resposta de Albizzi, tinha o mérito de apoiar-se na pesquisa
erudita das fontes documentais, segundo o modelo que a historiografia católica tinha
imposto já com Baronio, na discussão com os autores das Centúrias de Magdeburgo.
Mas essas fontes permaneceram fechadas, na época e depois , à investigação histórica
e a própria obra de Albizzi sofreu os efeitos da desconfiança que então pesava sobre
qualquer forma de conhecimento histórico.
A polêmica sarpiana contra o papado romano e sua invasão deixou uma marca
duradoura na historiografia relativa à Inquisição: à acusação de Sarpi, que via nas
instituições de controle da ortodoxia o projeto de um domínio total (totatus) con-
cebido em Roma, que avançava ameaçadoramente nos estados italianos, a historio-
grafia católica oficial respondeu, na época e depois, afirmando de um lado a tese da
excepcionalidade do perigo herético que se corria em Veneza - tão grave a ponto de
determinar o uso de meios extraordinários, como era a congregação romana do Santo
Ofício - e de outro o caráter normal, tradicional da jurisdição eclesiástica sobre os
crimes de heresia.
Não iremos mencionar nem sequer em linhas gerais os resultados das muitas
pesquisas existentes sobre a Inquisição veneziana e sobre as muitas matérias que pas-
saram por suas mãos - desde o problema do controle das publicações ao dos judeus,
até os casos individuais de particular importância (como foi a extradição de Giordano
Bruno) 64 • Mas a questão que aqui nos diz respeito não se pode dizer que tenha sido
ainda completamente esclarecida: trata-se, enfim, do modo como o controle da ortodoxia
63. Francesco Albizzi, Risposta all'Historia dela Sacra lnquisitione, op. cit. , p. 3. A obra, cuja primeira edição foi pu-
blicada por volta de 1670, teve uma segunda edição (de onde provém a citação) "corrigida dos erros passados"
por volta de 1678, pela Tipografia di Propaganda: cf. E. van der Vekené, Bibliotheca Bibliographica, n. 4024,
4026, 4027. Sobre Albizzi, ver o verbete de A. Monticone em DBI, vol. 2, Roma, 1960, pp. 23-26 e sobretudo
o já citado ensaio de A. Rotondo, "La Censura Ecclesiastica".
64. Último volume a tratar de toda a questão é o de Canosa, Storia dell'lnquisizione in Italia, op. cit., vol. II, "Veneza",
Roma, 1987. Sobre os luteranos alemães em Veneza, o estudo de Stefan Oswald (Die Inquisition, die Lebenden
und die Toten. Venedigs deutsche Protestanten, Sigmaringen, 1989) é genérico e pouco atualizado. Mas veja-se
A Inquisição
129
agora, sobre o contexto social da heresia em Veneza, John Martin, Venice 's Hidden Enemies. ltalian Heretics in a
Renaissance City, Berkeley/Los Angeles/London, 1993.
65. Decreto ducal de 22 de abril, em G. Sforza, "Riflessi della Controriforma nella Reppublica di Venezia", em
Archivio Storico Italiano, 92, 1935, p. 196; sobre a magistratura o estudo prosopográfico de P. F. Grendler, "The
Tre Savi Sopra Eresia 1547-1605: A Prosopographical Study", em Studi Veneziani, n .s. 3, 1979, pp. 283-340,
demonstrou que foram chamados a participar os patrícios venezianos mais importantes e de maior autoridade.
66. Cf. Francesco Albizzi, Risposta all'Historia della Sacra Iriquisitione, op. cit. , pp. 52-54 e 86-87.
67. Cf. Andrea Del Col, "Organizzazione, Composizione e Giurisdizione dei Tribunali dell'lnquisizione Romana
nella Repubblica di Venezia (1500-1550)" , em Critica Storica , XXI/, 1988, pp. 244-294.
inquisidores, tornou-se explícita a referência a "uma parte velha já tomada por conta
dos feiticeiros em Brescia" 68 •
Mesmo então não se tratara de opor à Inquisição eclesiástica instrumentos e
métodos mais cautelosos e atentos em relação aos acusados: como se veria com fre-
quência em matéria de bruxaria, os governos laicos eram favoráveis - mais do que os
juízes eclesiásticos - a intervenções drasticamente punitivas que iam de encontro aos
anseios da população. Das dificuldades e dos conflitos que se desencadearam então
tinha-se saído com uma solução que se devia revelar com muito futuro : tinham sido
conferidos poderes de supervisão e de controle inquisitorial ao núncio pontifício. Com
os núncios sucessivos - Girolamo Aleandro, Girolamo Verallo , Giovanni Della Casa -
a autoridade do núncio como juiz de primeira e de segunda instância e, sobretudo,
como mediador institucional na relação entre Roma e Veneza revelou-se no impulso
dado à atividade inquisitorial nos anos da luta contra os "luteranos" 69 • Ao aumento da
importância de semelhantes matérias deve-se a criação da magistratura veneziana dos
três "sábios" sobre a heresia (1547): eles foram redutivamente apresentados corno "me-
ros assistentes" desprovidos de poderes judiciários, mas eram obviamente muito mais,
levando com sua presença, se não a voz, ao menos os olhos e os ouvidos do governo
veneziano em todas as passagens da atividade inquisitorial. Na realidade, houve até a
participação ativa dos membros laicos na ação do tribunal: mas suas intervenções, por
comum acordo, não foram registradas 70 •
Essa questão da presença de leigos é a questão que a ótica jurisdicional mais tardia
do conflito Estado-Igreja carregou de implicações não justificadas. Não se tratava de
opor uma legislação estatal em matéria processual a uma legislação eclesiástica, nem de
evitar que os membros de um estado fossem julgados por autoridades de outro poder
externo a esse. Tratava-se mais simplesmente de garantir toda informação ao governo
sobre o que surgia na atividade desses tribunais . Para isso, os governos republicanos
recorreram à presença de delegados laicos, expressos pelos órgãos consiliários de go,
verno citadino, enquanto os governos principescos recorreram a meios de outro tipo.
A presença de membros laicos caracterizava as inquisições de Veneza e Gênova
(ao passo que em Lucca, como foi visto, os laicos eram os titulares de uma magistratura
autônoma em matéria de heresia). Não era certamente uma variante de pouca importân-
cia em relação ao modelo romano de procedimentos. Eram feridas duas características
fundamentais do processo inquisitorial, o segredo e a exclusiva competência eclesiástica.
Ainda assim, em Roma essas variantes em relação ao esquema fundamental tinham sido
68. Referência de Ludovico Beccadelli em carta a Bernardino Maffei, 5 set. 1551 (Nunziature di Venezia, vol. V, org.
por Franco Gaeta, Roma, 1967, p. 280).
69. Sobre a obra de Aleandro como inquisidor em matéria de heresia, ver as fontes em idem, vol. I (1533-1535),
Roma, 1958. Ali, em particular, os despachos relativos aos exames dos textos na causa por heresia contra o
pregador Giambattista Pallavicini (sobre o qual cf. Adrianus Staring, "Giambattista Pallavicini, O. Carm. e la
eterodossia italiana nel Cinquecento", em Carmelus, XN, 1967, pp. 142-183).
70. Cf. Andrea Del Col, 'Tlnquisizione Romana e il Potere Político nella Repubblica di Venezia (1540-1560)",
Critica Storica , XXVIII, 1991, pp. 189-250.
A Inquisição
131
aceitas para poder contar com a colaboração desses governos. Quanto às rachaduras
nas normas fundamentais da práxis que tais deformidades implicavam, cuidava-se de
regular as coisas no plano formal de modo a limitá-las o máximo possível: os delegados
laicos estavam obrigados ao segredo e a presença deles não significava colaboração na
condução dos processos. E, no entanto, visto que representavam o governo, era óbvio
que aquilo que era tratado no tribunal da Inquisição destinava-se a ser relatado o quanto
antes às autoridades das duas Repúblicas. Em Gênova, conforme uma "memória" do
inquisidor redigida por volta de meados do século XVI, o procedimento era informar
dois representantes do governo (os "protetores do S. Ofício") somente quando uma
investigação secreta preliminar trouxera à tona indícios tais a ponto de tornar necessária
a captura do acusado; a partir desse momento , os "protetores" assistiam às fases suces-
sivas do procedimento e podiam, se solicitados, exprimir seu parecer (que era levado
em conta) aos membros eclesiásticos do tribunal7 1• Os "protetores" eram constituídos
por uma magistratura surgida por volta de 1539, numa fase em que ao governo genovês
parecera que o inquisidor era "pessoa .. . fria e um tanto tímida" 72 • Este era um lugar
comum da oposição entre a justiça do estado, que se pretendia rápida e exemplar, capaz
de satisfazer às exigências dos súditos, e a pouca eficácia visível dos procedimentos ecle-
siásticos. Tentara-se então manter sob o controle da república a gestão da luta contra a
heresia, propondo a escolha de um inquisidor que não fosse "forasteiro", mas cidadão,
e que fosse ladeado por uma comissão de nomeação política.
Exigências análogas em Veneza levaram à presença de delegados laicos no tribunal
do Santo Ofício.
Para entender as razões dessa verdadeira guinada ocorrida em 1547 , mais que re-
percorrer a longa série de interpretações e de polêmicas jurisdicionais que surgiram daí,
é necessário tentar entender o clima interno veneziano da época e a posição política da
República no sistema das potências europeias. A guinada de 1547 coincidiu com a vitória
de Carlos V contra os protestantes alemães. É evidente que não houve necessidade de
uma dose particular daquele realismo político, que fazia a fama do governo veneziano,
para perceber que na Itália o jogo era conduzido pelos Habsburgos segundo o princípio
da luta contra a heresia e, portanto, em necessária coligação com o papado. As coisas
tinham mudado muito desde os tempos da Liga de Cognac, quando o embaixador
veneziano Gaspare Contarini ainda tentava afastar o papa da aliança com Carlos V,
com o argumento de que o papa devia cuidar mais da "Igreja universal" e menos de
sua condição de "príncipe da ltália" 73 • Mas deve-se ainda levar em conta o alarme
71. A memória foi publicada por G. Bertora S. l., "II Tribunale Inquisitório di Genova e I'lnquisizione Romana
nel '500 (alla Luce di Documenti lnediti)", em La Citiiltà Cattolica, 18 abr. 1953, n. 2468, pp. 173 e ss. Ver
também Canosa, Storia dell'lnquisizione in ltalia, op. cit., vol. III, pp. 131 e ss.
72. Cita-se uma carta das autoridades de governo genovês ao vigário-geral dos dominicanos, 14 abr. 1539, em M.
Rosi, "La Riforma Religiosa in Liguria e l'Eretico umbro Bartolomeo Bartoccio", em Atti della Società Ligure
di Storia Pátria, XXIV, 1892, p. 67.
73. O discurso foi feito nesses termos por Contarini a Clemente Vil, em 2 de janeiro de 1529 (F. Dittrich, Regesten
und Briefe eles Cardinais Gasparo Contarini [1483-1542), Braunsberg, 1881, p. 41).
74. Cf. despacho de Francesco Contarini de Bruges, de 1540, supracitado, cap. II, n. 45.
75. Essa parte do processo de Postei foi registrada e conservada em cópia (ASVen., S. Uffizio, b. 160).
A Inquisição
133
76. o episódio é contado por Francesco Lippomano, podestade de Brescia, aos chefes do Conselho dos Dez (carta
de 3 de setembro de 1543 , em ASVen. , S. Uffizio , b. 160, cc. n. n.)
decidido a tutelar a fé , intervindo nas muitas matérias em que percebia uma ofensa à
ortodoxia: a blasfêmia, as práticas de bruxaria e agora, por fim , a heresia. Não se tratava
de uma defesa anacrônica dos direitos do estado como entidade abstrata: nesses ter-
mos , a questão devia se apresentar muito mais adiante no tempo. O fato era que quem
tramava contra os antigos ordenamentos representava um perigo para a manutencão
do sistema existente: e era o suficiente para que o governo oligárquico da repúblic~ se
preocupasse com isso, sem fazer distinção entre religião e política. Justamente porque se
tratava de preparar remédios eficazes e não de defender razões de princípio abstratas, as
intervenções venezianas nos processos por heresia tenderam, na variedade das formas , a
garantir ao governo o pleno conhecimento do que era feito e pensado no território da
República. O instrumento preferido foi o da presença de representantes próprios durante
o desenvolvimento dos processos, sem qualquer rigor formalista : podiam ser leigos ou
eclesiásticos 77 ; quanto às suas intervenções no mérito durante o processo - intervenções
mal toleradas pelos inquisidores por razões de princípio, pois eram a prova formal de que
o tribunal da heresia não era composto só por eclesiásticos - as autoridades venezianas
aceitavam de bom grado e às vezes determinavam que não fossem averbadas 78 •
Sobre o cuidado com que Veneza se dedicou ao controle das opiniões e das
práticas religiosas , os documentos são abundantes. Já se fez menção ao fato de que,
enquanto surgia no horizonte a questão luterana, os reitores venezianos tinham se
confrontado com os inquisidores no decorrer da sangrenta caça às bruxas em Val
Camonica. E, no que diz respeito às blasfêmias, uma magistratura especial criada pela
república cuidara do assunto a partir de 1537 79 : da ofensa a Deus temia-se a vingança
divina sobre as instituições e a vida civil veneziana e as terríveis vicissitudes militares
do início do século XVI foram interpretadas como sinal da ira celeste. Não se podia
tolerar "que as brigadas dirigissem palavras contra a honra de Deus" , escreviam os
reitores de Brescia em 1542 80 ; e em relação aos crimes de blasfêmia intervinha-se
também contra eclesiásticos, ainda que através do auditor do núncio 81 • Quanto ao
controle da imprensa, o principal e mais temido veículo das ideias perigosas, as nor-
mas estatais precederam de muito as eclesiásticas. Dessa função do governo veneziano
demonstraram-se convencidos até os bispos do domínio e seus vigários, que diante
77. Dei Col ("L'lnquisizione Romana e il Potere Politico nella Repubblica di Venezia" , op. cit. , p. 198) assinala o
caso do processo contra frei Ambrogio de Milão (1545) para o qual o Conselho dos Dez solicitou a presença
de um eclesiástico de sua própria designação.
78. Também para isso, cf. idem.
79. Cf. Gaetano Cozzi, "Religione, Moralità e Giustizia a Venezia: Vicende della Magistratura degli Esecutori contro
la Bestemmia (Secoli XVI-XVII)", Ateneo Veneto, CLXXVIII, 1991, pp. 7-95 (reedição com atualização bibliográfica
da primeira edição dessa pesquisa fundamental, lançada em forma de apostila universitária em 1968).
80. Carta de 9 de janeiro (ASVen. , b. 160 do fundo S. Uffizio) .
81. Padre Nicolo Marcello foi condenado em 15 de dezembro de 1542 a três anos de prisão e depois banido,
"por ter o referido padre blasfemado muitas vezes o nome de Deus onipotente e da gloriosa Virgem Maria
em circunstâncias não apropriadas e de péssimo exemplo, que não são lícitas de serem expressas" (carta dos
Executores contra a blasfêmia aos chefes do Conselho dos Dez, 4 ago. 1543, ivi).
A Inquisição
135
ao Conselho dos Dez: pela carta deles deduz-se que em Pádua o bispo "sufragâneo"
(ou seja, vigário in spiritualibus) era o "juiz primário em tal formação de processos de
heresia" 87 • E foi aos reitores de Pádua que o conselho dos dez ordenou em fevereiro de
1544 que executasse a prisão de um herege , de acordo com a exigência das autoridades
eclesiásticas, mas com a cláusula de que o processo fosse atentamente acompanhado por
elesªª. No ano seguinte, em uma parte relativa a Cipro, os Dez exigiram a intervenção
do reitor veneziano nos processos por heresia contra leigos; e a norma foi confirmada
nas instruções enviadas aos reitores de Vicenza, em 31 de maio de 1546, para o processo
contra o conde Giulio de Tiene e outros hereges 89 • Configurava-se assim uma linha
de governo da matéria: em relação aos leigos, as autoridades do estado deviam exercer
sua jurisdição, intervindo plenamente nos processos ; em relação aos eclesiásticos,
deixava-se a tarefa às autoridades eclesiásticas, desde que o governo veneziano tivesse
ampla informação de tudo . Foi assim, por exemplo, que no processo contra o bispo de
Capodistria, Pier Paolo Vergerio, os Dez arranjaram um modo de sequestrar e controlar
secretamente a "caixa das escrituras" do acusado 90 • Mas, devido ao que acontecia nas
cidades do território , o aumento dos processos por heresia levou à concessão de uma
certa autonomia aos reitores: aos de Brescia e de Bérgamo, em 1548, e em seguida aos
reitores de todas as cidades de terra firme (1550) foi atribuída a função que em Veneza
competia aos "sábios da heresia" . Os dois reitores, juntamente com dois doutores lai-
cos, deviam ter assento como membros do tribunal, ao lado do inquisidor e do vigário
episcopal91 • Mas as instruções aos reitores expedidas com a concessão eram claras: os
processos importantes pelas pessoas envolvidas e pelos riscos de escândalo e tumultos
deviam ser enviados ao Conselho.
O contato e a colaboração com a parte eclesiástica eram procurados de preferên-
cia com os bispos e com seus vigários; para as relações com Roma, o interlocutor era o
núncio. Quanto às ordens que choviam de Roma para os inquisidores, não se deixou
passar nenhuma oportunidade para reforçar a plena autoridade veneziana.
O trabalho mais difícil, nessa situação, era o do núncio: devia manter em
pé um sistema de boas relações , aparando as arestas, traduzindo as mensagens e
atenuando os tons. Era necessário explicar frequentemente a Roma que o governo
de uma república, como era o de Veneza, era constituído por muitas cabeças e, por-
A Inquisição
137
tanto , era mutável, inconfiável, de tal modo que era preciso agir com destreza; ao
contrário, os assuntos de religião estavam sempre prestes, como escrevia o núncio
Ludovico Beccadelli, a desencadear o "zelo desordenado" de quem suspeitava que
todo o senado veneziano estivesse cheio de luteranos e por qualquer coisa de some-
nos queria que o núncio "ficasse em brasa" e fosse correndo protestar no Colégio 92 •
Não era apenas nos ciosos do lugar que o núncio pensava. Seu trabalho ordinário
tinha como ponto de referência, para assuntos de heresia, o tribunal veneziano da
Inquisição, composto pelos Três Sábios, pelo inquisidor ordinário - franciscano - e
pelo auditor do próprio núncio ; mas podia acontecer - como aconteceu no verão
de 1550 - que lhe enviassem inesperadamente um inquisidor extraordinário com
poderes especiais, designado por Roma na pessoa de um dominicano: e o núncio
devia enfrentar todas as reações do mundo veneziano 93 • Correndo os olhos pelos
despachos nervosos , impacientes , irritados que lhe chegavam de Roma , percebe-se a
rápida mudança que estava ocorrendo naquele mundo. Ao núncio chegavam cartas
em nome da congregação do Santo Ofício, junto com cartas do comissário, frei
Michele Ghislieri, e tinha que responder todas: mas não ousava explicar-lhes o que
mencionava ao escrever a quem , como Cervini, era membro da congregação, mas
também homem de vasta e variada cultura humanista, com o qual era possível falar
livremente: que , "embora esses senhores (venezianos) deem respostas boas e gentis ,
não lhes apraz no íntimos que seus súditos sejam convocados ao tribunal fora do
Domínio" 94 • Logo , toda questão se arrastava por muito mais tempo do que Roma
estava disposta a tolerar.
Algo acontecera em Roma se os tons tinham se tornado tão duros e urgentes.
Mas também em Veneza a lição da experiência teve de ser aceita; não tinham mudado
somente as relações de força internacionais. O argumento sacado a cada passo pelos
defensores daquele tribunal - que se devia ajudá-lo por todos os meios, pois, como
escrevia Beccadelli, "previne ao mesmo tempo a manutenção da religião e do estado
temporal" 95 - encontrara prova lancinante na descoberta de uma ampla organização de
anabatistas na Itália centro-setentrional e sobretudo no território da República.
A reconstrução das tratativas que se desenvolveram entre Roma e Veneza a propósi-
to dos "sábios" traz à tona um momento decisivo no segundo semestre de 1551: Júlio lll,
que perante os venezianos recorrera novamente ao tema tradicional dos riscos de
subversão política inerentes à heresia - "com a mudança da religião muda-se também
o estado" 96 - pôde dar uma demonstração convincente do que escrevia com o depoi-
92. Carta ao cardeal Marcello Cervini, Venezia, 12 mar. 1552, em Nunziature di Venezia, op. cit. , vol. VI, Roma,
l 1967, p. 69. Sobre rumores de listas de nobres luteranos, idem, p. 59 (carta a Cervini, 27 fev. 1552).
93. Cf. carta de Beccadelli a Verallo, 14 set. 1550, em Nunziature di Venezia, op. cit., vol. V, p. 125; o dominicano
ment_o do padre Pietro Manelfi, natural das Marche, em dezembro desse ano97. O
depoimento era o fruto mais clamoroso da estratégia do Santo Ofício roman J, .
O: U 110
III , com a bula de 1º de abril daquele ano, oferecera a garantia de impunidade
a quem
depusesse espontaneamente - no prazo de três meses - tudo o que sabia sobre d'f
a l U-
~ão da heresia. Era uma medida excepcional, sinal e documento de uma legislação que
movava sem pestanejar, ignorando o existente e subvertendo-o: com esse método devia
ter continuidade, como veremos, não obstante modificações substanciais, a tradicional
prática inquisitorial do édito "de graça" . As autoridades ordinárias foram ultrapassadas
suscitando os protestos do núncio e da República de Veneza, que receberam a notíci~
com grande atraso e pela via inusitada dos frades da Inquisição 98 • Mas dessa medida
de exceção colheu-se logo um fruto também excepcional, graças ao qual a controvérsia
jurisdicional passou para o segundo plano. Frei Girolamo Muzzarelli, enviado especial
do papa a Veneza, entregou em 18 de dezembro, numa reunião reservadíssima, o texto
das revelações de Manelfi, onde era mencionada a organização secreta dos anabatistas
vênetos: foi ouvido por cerca de duas horas "com atenção e admiração"; era, como
escreveu Beccadelli, "uma conspiração de malfeitores contra o estado do Paraíso e 0
mundo" . E Girolamo Muzio, que acompanhava o caso com grande atenção, confir-
mou vitorioso a tese romana do herege como subversivo político: "Esses malfeitores -
escreveu Muzio - [... ] demovem as autoridades de qualquer senhoria e pregam uma
liberdade cristã, a de que não devemos nos sujeitar a ninguém, diretamente contra e
para a destruição de todos os estados" 99 • Na mesma noite do dia 18, partiram ordens
secretas de prisão para todos os nomes que constavam da delação: e os processos que
seguiram, decorreram sob a égide da máxima colaboração veneziana com a Inquisição.
Os detidos foram submetidos a um interrogatório preliminar "por conta do estado" e
depois entregues ao tribunal inquisitorial "para as coisas da fé" 100 •
Por muito tempo, Veneza continuou a ser um laboratório especial para os difí-
ceis problemas de funcionamento da Inquisição. As razões são evidentes: do ponto de
vista político, o abandono das ambições hegemônicas sobre a península italiana não
eliminara o fato de que Veneza continuava sendo o único estado italiano não absorvido
pela potência habsburguesa. A salvaguarda da segurança interna exigia que se ficasse
de olho em todas as ameaças: a verdadeira obsessão da conspiração, alimentada por
supostas revelações e verdadeiras chantagens que choviam continuamente nas mesas
do governo veneziano 101 deram ensejo, entre outras coisas, a sistemas de espionagem
97. Cf. Carlo Ginzburg, I Costituti di Don Pietro Manelfi , Firenze/Chicago, 1970.
98. Cf. a carta de Beccadelli a G. Dandino, 2 ago. 1550, e a resposta de Dandino, de 9 de agosto: sob
protestos do núncio, respondeu-se concedendo uma prorrogação da data a partir da qual contar os três
meses (Nunziature di Venezia, op. cit. , vol. V, pp. 101 e 106).
99. Cf. A. Stella, Dall'Anabattismo al Socinianesimo nel Cinquecento Veneto, Padova, 1967, pp. 87-88.
100. Carta de Beccadelli a lnnocenzo Del Monte, 2 jan. 1552, em Nunziature di Venezia, op. cit. , vol. VI, P· 34.
101. Basta dar uma passada de olhos nas correspondências diplomáticas para encontrá-las: na que vinha de
Ferrara, por exemplo, encontra-se uma carta de um servidor do duque de Ferrara, certo Reginaldo ou
Raynaldo, que diz ter condições de revelar os detalhes de um complô para incendiar o Arsenal: uma nota
A Inquisição
139
elaborados e penetrantes. Nada mais óbvio que se quisesse saber o que era revelado
pelos textos e pelos acusados de heresia: mesmo porque a inquietação e O desejo de
novidade religiosa podiam ser - e às vezes eram realmente - veículos de novidade polí-
tica e social. Se acontecesse, então, de ; ecair a acusação de heresia sobre um bispo - e
isso aconteceu em Veneza em muitos casos, dos quais três de grande repercussão, os de
Vergerio, bispo de Capodistria, de Vittore Soranzo, bispo de Bérgamo e do patriarca de
Aquileia, Giovanni Grimaldi - os ecos políticos eram fortes , como de resto era inevitável
que fossem: o episcopado pertencia legitimamente à classe governamental, tanto em
Veneza como em outro lugar. Do ponto de vista cultural, Veneza sempre continuava a
ser a capital da atividade editorial; e o avanço descomedido da atividade inquisitorial
em direção ao livro impresso mede-se pelos índices dos livros proibidos, que em Veneza
foram controlados pelo Monsenhor Della Casa 102• Do ponto de vista econômico, Veneza
era uma área de fronteira, ligada por fortes interesses comerciais ao mundo alemão
e ao ortodoxo e muçulmano do Mediterrâneo oriental, além de etapa obrigatória do
itinerário de fuga dos judeus da península ibérica; como consequência, apresentava
continuamente situações problemáticas. Mas era sobretudo a natureza dos ordenamentos
políticos do estado veneziano que exigia uma gestão diferenciada dos assuntos religiosos
em relação aos modos correntes nos principados. O choque representado pela descoberta
da organização anabatista a partir da delação de Manelfi foi forte , mas não imprevisto:
foi a demonstração da periculosidade da heresia e da ameaça política representada
por algum indício de vontade de mudança. Não por nada, quando o vigário episcopal
da diocese de Aquileia, lacopo Maracco, chegou a Udine em 1557 decidido a pôr em
movimento o mecanismo de controle naquela delicada área de fronteira , trazia consigo
uma cópia da delação de Manelfi; foi com esse documento que se inaugurou o arquivo
da Inquisição no local 103 • De qualquer modo, deve-se notar que logo no início de um
processo contra hereges de Cividale, bastou um recurso do provedor vêneto ao Conselho
dos Dez para bloquear a tentativa de processá-los fora da cidade e diante de um único
inquisidor (aliás, "um único frade", como escrevia escandalizado o provedor 104) . Mais
tarde, quando Maracco devia deter alguém, precisava sempre enfrentar as resistências
do "braço secular". As autoridades venezianas contrapunham-lhe o dever de escrever
adverte que a carta foi apresentada em 23 de maio de 1551 (ASVen., Capi del Consiglio dei Dieci, Lettere
di Ambasciatori, b. 8 a. Ferrara, n. 37-39). O episódio é recordado num contexto de casos análogos por
Paolo Preto (I Servizi Segreti di Venezia, Milano, 1994, p. 161 e nota) que conta como realmente o Arsenal
foi posteriormente destruído por um incêndio em 1569.
102. A literatura a propósito é bem vasta; remete-se indicativamente ao volume organizado por J. M. De
Bujanda, Index de Venise 1549 Venise et Milan 1554 (Index des livres interdits, op. cit., III), Geneve, 1987.
103. Mas sobre o modo complicado e diferenciado através do qual foi exercido o controle inquisitorial na
Pátria do Friuli, antes e depois do início do vicariato de Maracco, remete-se a um volume de Andrea Del
Cal a ser publicado, I.:Inquisizione nel Patriarcato e Diocesi di Aquileia (1557-1562). Agradeço a Andrea Del Cal
por ter-me permetido a leitura do material datilografado (O volume foi publicado em 1998, pela EUT,
com o título I; Inquisizione nel Patriarcato e Diocesi di Aquileia [1557-1559] [N. do T.)).
104. Carta de Leonardo Lombarda aos Chefes do Conselho dos Dez, 17 jan. 1559 (ASVen., S. Uffizio, b. 160).
primeiro a Veneza para pedir a autorização para prender; de modo que, durante a
espera, era possível acontecer a fuga do acusado. Em casos de emergência, Maracco
usava de astúcia: em outubro de 1560, por exemplo, precisando deter um frade, certo
Gian Domenico Scevolino, diante da relutância do lugar-tenente, mandou chamar
o acusado à sua presença, com uma desculpa qualquer, e prendeu-0 105 • São situações
típicas, ou seja, situações que se apresentaram na época toda vez que o estado - não só
o veneziano - quis forçar o segredo dos processos inquis itoriais.
Veneza podia, portanto, resistir a Roma: a introdução da Inquisição romana
não era inevitável. Em Veneza, as propostas romanas foram rejeitadas toda vez que
razões políticas mostraram ser necessário. E o confronto podia ser muito duro: e o foi
toda vez que o Santo Ofício romano esteve em mãos de personalidades autoritárias e
intransigentes, decididas a impor a lógica de um poder que ignorava qualquer limite.
Particularmente importante foi o conflito que opôs Veneza a dois frades que o rigor
inquisitorial devia conduzir ao trono pontifício: o dominicano Michele Ghislieri e o
franciscano Feiice Peretti. Com Ghislieri, o conflito teve por objeto o processo contra
o bispo de Bérgamo, Vittore Soranzo (do qual se tratará mais adiante).
Outro caso de duro conflito foi o que opôs o governo veneziano a frei Feiice Pe-
retti, ratificado como inquisidor-geral em Veneza, em fevereiro de 1560: a hostilidade do
Conselho foi flagrante e conseguiu obter, após um longo braço de ferro , a substituição
de Peretti, mascarada de alternância geral dos frades franciscanos pelos dominicanos 106•
Os argumentos com que se justificou a rejeição foram essencialmente baseados na regra
da alternância que vigorava para os cargos políticos: era oportuno, dizia-se em Veneza,
que também a Inquisição mudasse de mão a cada ano, como se fazia em todos os órgãos
da república. Tratava-se, em suma, de evitar um excesso de poder nas mãos de uma ,
única pessoa por tempo demasiado: e o caso de Peretti parecia feito de propósito para
justificar os temores venezianos, tendo em vista a decisão e o rigor com que, durante o
período em que esteve no cargo, manobrara os instrumentos em seu poder.
Contra o novo estilo romano dos papas da Inquisição insurgiam-se continuamente
as resistências do governo veneziano, garante e herdeiro de uma tradição profundamen-
te diferente no que dizia respeito aos ritos e às manifestações da vida religiosa 107 • O
momento mais evidente em que essa tradição se mostra, no que se refere aos assuntos
da Inquisição, é o momento das execuções das sentenças capitais.
105. A história do caso é contada por Maracco em carta a Pier Francesco Ferrero de 11 de outubro de 1560,
publicada juntamente com o processo por A. Del Col, I.:Inquisizione nel Patriarcato, op. cit., pp. 389 e ss.
do material datilografado.
106. Cf. Paschini, "Due Episodi della Contro-Riforma in ltalia", em Archivio della R. Società Romana di Storia
Patria, XLIX, 1926, pp. 314-320; e, sobre os documentos do Conselho dos Dez, Del Col, "L'lnquisizione
Romana e il Potere Político", op. cit. Sobre o contexto do controle da imprensa, ver P. F. Grendler, The
Roman Inquisition and the Venetian Press, 1540-1605, Princeton, 1977 (trad. it., Roma, 1983).
107. Sobre as formas da vida religiosa veneziana e sobre suas características originais é fundamental o ensaio
de Paolo Prodi, "The Structure and Organization of the Church in Renaissance Venice", em J. R. Hale
(org.), Renaissance Venice, London, 1973, pp. 409-430.
A Inquisição
141
Como para toda a justiça penal de antigo regime , a pena de morte fazia parte do
horizonte regular do trabalho dos inquisidores. Por isso, a história do tribunal da fé foi
marcada por execuções capitais, que foram mais frequentes no século XVI para diminuir
em seguida e desaparecer no decorrer do século XVIII 108 • Porém, mais do que a morte
em si, o que despertava interesse e discussão era a organização do rito da execução.
Roma desejava e esperava o máximo de publicidade das condenações à morte por
sentença do tribunal da fé : era exigência da pedagogia do terror com seu axioma funda-
mental - matar um para educar mil - e, ao mesmo tempo, era decorrência da necessidade
política de mostrar o estado veneziano como aliado e executor obediente da vontade
da Igreja de Roma. Igual e oposta, a vontade veneziana de não se mostrar inclinada aos
desejos de um tribunal de frades não teria, sozinha, sido suficiente para impedir os "autos
de fé" públicos, ainda que decerto tivesse limitado o número deles; mas um motivo mais
forte, arraigado nas formas do poder patrício, exigia que os rebeldes e os dissidentes não
tivessem nenhuma oportunidade de dar espetáculo e de semear seu exemplo pernicioso.
Só raramente, portanto, o núncio podia escrever a Roma que finalmente fora cumprido
algum rito público de abjuração e, ainda mais raramente, que um herege fora executa-
do: se e quando acontecia, o respiro de alívio do representante de Roma era atenuado
por uma série de limitações desagradáveis. A abjuração pública de um schiavone 109 e a
degradação em São Marcos do padre Francesco Calcagno, em 1550, "na presença de
tanta gente quanta podia caber na igreja" eram boas notícias 110; e com o mesmo respiro
de alívio - "finalmente!" - em 11 de novembro de 1553, Ludovico Beccadelli contava a
execução capital de um anabatista suíço, execução impedida até o último momento pelas
resistências de quem, pensando nos Grisões aliados - fazia disso um "caso de estado" . E
acrescentava que, mesmo se por mérito até daqueles "santos assistentes do tribunal" (os
Três Sábios) ele fora finalmente condenado à morte, tinha-se preferido, todavia, afogá-lo
à noite "para que ninguém se escandalizasse com sua obstinação"lll. Temia-se, em suma, a
propaganda de ideias subversivas da ordem política e social: uma preocupação constante
do governo veneziano, que justamente por isso excluiu para os hereges a condenação
aos remos nas galés 112 • Tanto a prisão como a execução tinham de ser isoladas e secretas.
As autoridades do Santo Ofício, se obtiveram com algum custo a execução capital para
108. Não completamente, como mostra a pesquisa de Andrea Del Cal e Marisa Milani, "Senza Effusione
di Sangue e Senza Pericolo di Morte. Due Condanne Capitali dell'lnquisizione di Venezia nel 1704,
con un Excursus su quelle Veneziane del Cinquecento", a ser publicada em breve na Rivista di Storia e
Letteratura Religiosa. Agradeço aos autores por terem me permitido a leitura do material datilografado.
109. Soldado dos corpos de infantaria denominados Schiavoni ou Ultramarinos, provenientes de lstria e da Dal-
mácia, que atuavam na marinha vêneta em defesa da cidade e da República de Veneza em geral (N. do T.).
110. Nunziature di Venezia, op. cit., vol. V, p. 170 (carta a G. Dandino, 22 nov. 1550).
111. Idem, VI, pp. 284-285. Sobre as execuções capitais em Veneza, a lista fornecida por P. F. Grendler (The
Roman Inquisition and the Venetian Press, 1540-1605, Princeton, 1977, p. 57) e a de J. Martin (Venice 's
Hidden Enemies. Italian Heretics in a Renaissance City, op. cit. , p. 69) foram modificadas e acertadas por
Del Cal e Milani, "Senza Effusione di Sangue e Senza Pericolo di Morte", op. cit.
112. "Parte" de 3 de fevereiro de 1559, citada por Del Cal, "L'lnquisizione Veneziana e il Potere Político",
op. cit., p. 220.
certas categorias de hereges - por exemplo, os "relapsos" - tiveram porém que se resignar
a aceitar o rito veneziano para as modalidades de execução: não o fogo , mas a água da
Laguna, não a praça e a luz do dia, mas a noite e o segredo. "Esses senhores - escrevia
em 1566 o núncio Giovanni Antonio Facchinetti - estão acostumados a mandar afogar
os hereges, e assim dar-lhes morte secretamente ... Dizem que a pertinácia de alguns deles
que morrem inspira mais compaixão nas almas simples do que terror nos infelizes" 113 •
A questão apresentou-se com frequência: mas também no pontificado de Pio V,
mais do que outros fiel à ideia de que os hereges deviam ser queimados em praça pú-
blica, os representantes romanos tiveram que se resignar a aceitar as execuções secre-
tas. Na longa discussão que se desenvolveu a propósito da sorte do humanista Publio
Francesco Spínola, condenado como herege relapso, o núncio Facchinetti expôs na
ordem todos os argumentos "para que ele fosse queimado publicamente": antes de mais
nada, o doge era obrigado a fazê-lo devido ao juramento solene de posse no próprio
cargo; mas, sobretudo, era oportuno fazê-lo para que todos vissem que em Veneza os
hereges não eram tolerados (e isso - acrescentava - "seria de mui grande edificação para
os católicos de França e de Flandres, pois que nessas províncias os huguenotes, para
impressioná-los, andam espalhando que Veneza, chave da Itália, é amiga deles devido
à tolerância que se vê dos alemães do Fondaco 114 e dos escolares de Pádua") 115 • Mas
não conseguiu nada: na noite de 31 de janeiro as águas da laguna engoliram Spinola.
E só a custo, alguns meses mais tarde, foi possível obter que, após abjurar, um herege
fizesse publicamente a penitência com o sambenito diante da basílica de São Marcos:
os sábios da heresia tinham feito objeção, pedindo que a penitência não fosse pública
"pela qualidade da pessoa" 116 •
Tratava-se justamente de pessoas: o discurso do estado que houve à época a pro-
pósito da Inquisição e dos modos de seu funcionamento na República de Veneza era
entendido concretamente pelos interlocutores em relação aos interesses e aos riscos
das classes hegemônicas. Os representantes de Roma não paravam de brandir a ameaça
da heresia como causa de mutações de estado, sedições e revoltas sociais, mas quando
queriam realmente dobrar a opinião dos governantes venezianos, sabiam onde atingir.
Quando foi discutida a extradição do herege Guido Giannetti de Fano, o núncio Gio-
vanni Antonio Facchinetti apresentou um vasto memorial onde, em tom comovido,
convidava os senadores venezianos a levar em consideração o "estado aflito" do cris-
tianismo - "dividida a França, perdida a Inglaterra, herética a Alemanha, próxima da
113. Carta de Giovanni Antonio Facchinetti a Michele Bonelli, 31 ago., em Nunziature di Venezia, op. cit.,
vol. VIII (mar. 1566 - mar. 1569), org. de Aldo Stella, Roma, 1963, p. 99.
114. Edifício que, na Idade Média, servia de armazém e de alojamento para os mercadores estrangeiros nas
cidades marítimas. Em Veneza há o Fondaco dei Tedeschi, citado no texto (N. do T.).
115. Facchinetti a Bonelli, Venezia, 1° fev. 1567, em idem, pp. 165-167. Sobre Spínola, cf. P. Paschini, "Un
Umanista Disgraziato nel Cinquecento: Publio Francesco Spínola", em Nuovo Archivio Veneto, s. n.,
XXXVII, 1919, pp. 65-186.
116. Facchinetti a Bonelli, Venezia, 17 maio 1567, em Nunz:iature di Venezia, op. cit. , p. 217 (tratava-se de
Alessaandro de Riva, advogado, ligado aos ambientes do patriciado de Verona).
A Inquisição
143
Ainda não se sabem muitas coisas sobre a história da Inquisição em Veneza. Suas
fontes processuais, conservadas no arquivo veneziano dos Frari (os frades inquisidores)
esperam uma investigação exaustiva que ultrapasse o breve mas intenso período da luta
contra os anabatistas e luteranos. Outros tribunais eclesiásticos (por exemplo, o do Pa-
triarca, do qual ninguém até o momento estudou adequadamente o fundo remanescente
de processos 118) e sobretudo outras magistraturas laicas ocuparam-se de assuntos que mais
tarde, paulatinamente, deviam parecer de pertinência exclusivamente inquisitorial: a
moralidade individual e pública, os comportamentos rituais , o uso da palavra impressa
e da expressão verbal. Desde então, a cultura jurídica veneziana examinou muito aten-
tamente as práticas do tribunal da fé que em teoria deviam ser secretas: já no século
XVI ocorreu o único caso conhecido de publicação de sentenças e pareceres relativos à
lnquisição 119 • Porém, mais do que outras fontes extraprocessuais são os despachos dos
núncios que oferecem uma abundância de informações. Em Veneza, o problema para o
t!
novo tribunal, com sua rígida dependência de Roma, era evidentemente o de encontrar
Íl
o espaço de composição dos interesses: para isso, a figura do núncio era a mais indicada
pelas garantias que oferecia. Representante do papa, dotado de grandes poderes, aliviava
li as incumbências judiciárias, permitindo, de um lado, superar os contrastes entre inqui-
11 sidores e autoridades eclesiásticas ordinárias e, de outro, reduzir ao mínimo os casos
de extradição para Roma, que feriam a sensibilidade da classe governamental e lesavam
os interesses dos súditos. Por volta de 1581, segundo a descrição do núncio Bolognetti,
em Veneza os assuntos da Inquisição eram tratados por núncio, patriarca e inquisidor,
que se reuniam três vezes por semana, juntamente com o auditor do núncio, o vigário
do patriarca e com três senadores "mais importantes" (os "sábios contra a heresia"), ao
passo que nas cidades do domínio o tribunal era, formado por bispos ou seus vigários,
inquisidores e reitores, ou seja, podestade e capitão 120• É essa função de mediação polí-
117. Memorial anexado por Facchinetti à carta de 20 de julho de 1566 (idem, p. 78).
118. São dois volumes de processos conservados em Veneza, Archivio Storico del Patriarcato, Fondo Segreto
S. Uffizio.
119. Refiro-me à obra de Tommaso Trivisano (Decisionum Causarum Civilium, Criminalium, et Haereticalium,
Venetiis in palatio Apostolico luridice Tractatarum, Thomae Trivisani I. C. Praestantissimi ac Nonnullorum DD.
Eiusdem Palatii Auditorum libri duo, Venetiis, apud Bemardum Basam, sub signo solis 1595); trata-se de um
caso isolado e tão mais singular quanto mais rigorosas eram as normas sobre o segredo inquisitorial,
que excluía a publicação de sentenças e pareceres.
120. A relação de Bolognetti foi publicada por A. Stella, Chiesa e Stato nelle Relazioni dei Nunzi Pontifici a
Venezia, Cidade do Vaticano, 1964; cf. pp. 290 e ss.
tica e judiciária desempenhada continuamente pelo núncio que remete à raiz política
da questão: esse tribunal eclesiástico que reivindicava regras canônicas extremamente
rigorosas, tradições antigas, orgulhosa autonomia e incontestabilidade absoluta, devia,
na realidade, aceitar todo tipo de irregularidade a cada vez que as autoridades estatais
consideravam necessário. A discussão a respeito foi contínua, mesmo recebendo desta-
que público apenas em alguns momentos. Já os historiadores do século XVI assinalaram
alguns episódios das resistências venezianas - em particular o que se verificou logo após
as pressões papais sobre Milão em 1564: estava vivo então o "mito de Veneza", feito
de admiração pela capacidade veneziana de resistir e de manter inalterado um modelo
antigo, refratário à mudança. Assim, a habilidade veneziana de evitar modificações no
sistema existente das relações com o poder eclesiástico e, em particular, de impedir o
aumento dos poderes do tribunal da Inquisição parecia digna de nota, se comparada à
disponibilidade bem diferente dos estados italianos menores 121 •
Mas não há dúvida de que - se a fórmula dos "sábios contra a heresia" limitou os
poderes do Santo Ofício - a república veneziana aceitou que em seu território atuasse
um tribunal eclesiástico dotado de amplos poderes e diretamente governado por Roma.
Isso foi suficiente para tornar muito mais frágeis as resistências de outros estados italia-
nos , mais recentes ou mais necessitados do apoio papal. Voltemos, pois, à constatação
inicial: na Itália, a soberania do estado, que em outros lugares tinha concentrado nas
mãos do poder laico o controle das ideias e dos comportamentos, encontrou uma ex-
pressão absolutamente original, a de reconhecer um direito de controle judiciário de
determinados assuntos ao soberano que ocupava o trono de Pedro. Começa a partir
disso a unificação moderna da Itália: e começa também, ou pelo menos adquire formas
adequadas à época, a longa tradição da alta soberania papal nos estados da península.
121. "Mas eles [os venezianos], considerada a coisa com maturidade, e prevendo o perigo no qual estavam
prestes a cair, se em seu estado fosse dado abrigo a tão dura e rigorosa inquisição, pois que o reino de
Nápoles pela mesma razão quase se rebelou contra o imperador Carlos V, e os milaneses pouco antes
constantemente recusaram-na, sem querer porém dar a impressão de opor resistência aberta a sua
Santidade[ ...) evitaram o quanto puderam para resolver[ ... )". (Natale Conti, Delle Historie de 'suoi Tempi
(popularizado por Giovan Cario Taraceni), Venezia, Domenico Zenaro, 1589, e. 384v.
A Inquisição
145
muito diferentes como o dos Médici e o dos Saboia. Em Florença, coube à nunciatura
recém-instituída uma posição proeminente na condução dos processos da Inquisiçã 0 122 .
Aconteceu o mesmo em Turim nos anos sucessivos ao tratado de Cateau-Cambrésis
quando Emanuele Filiberto reorganizou a matéria, confiada precedentemente ao Par-
lamento de Turim de acordo com a orientação francesa em questões de heresia 123 • E,
tanto em Turim como em Florença, o núncio teve de garantir a informação e o con-
sentimento do príncipe e do Santo Ofício romano no que se refere aos casos tratados
pela Inquisição. O comissário local da Inquisição recebia a seguinte advertência: "nos
casos importantes não se meta a fazer nada" 124 sem a participação do núncio, que devia
informar o caso ao soberano; e o núncio em assuntos do gênero devia manter dupla
correspondência, com o cardeal sobrinho e com o Santo Ofício 125 • A situação dos do-
mínios de Emanuele Filiberto era particularmente complicada, mesmo porque ali os
limites políticos e os eclesiásticos não coincidiam. Era um problema de caráter geral,
típico de uma época dominada pela questão das relações entre dinâmicas religiosas e
eclesiásticas e poderes do estado. No caso dos domínios dos Saboia, havia uma área de
1
tradições gálicas, a Saboia, que não aceitava submeter-se a Roma nas formas em uso
~
no Piemonte: e ali a Inquisição romana encontrou constantes oposições 126 • A gestão
~
das questões doutrinárias deparou-se com a alternância de propostas e intervenções
n diversas, geralmente conflitantes. As estratégias da repressão violenta e da persuasão
11 determinaram seus argumentos em uma situação caracterizada pela presença de núcleos
organizados de divergência religiosa: os valdenses dos vales alpinos, que tinham aderido
ao calvinismo, impunham ao poder soberano o mesmo desafio que os valdenses da
Calábria e da Apúlia. Mas as comunidades do Piemonte não eram isoladas como as
do Reino de Nápoles: colocadas em uma posição de fronteira natural e de fronteira
religiosa, ofereciam uma resistência bem diferente à repressão militar. Campanhas mi-
litares e tentativas de conversão pacífica alternaram-se. Também ali a intervenção dos
122. Uma sentença emitida pelo núncio florentino como juiz detegado em causa de heresia é reproduzida por
Arnaldo D'Addario, Aspetti della Controriforma a Firenze , Roma, 1972, p. 501. O acusado era o magister
Paolo Cataldo, ou Cataldi, sobre cujo processo veja-se R. Canosa, Storia dell'lnquisizione in ltalia, op. cit.,
vol. IV, pp. 121-124.
123. Cf. G . Jalla, Storia della Riforma in Piemonte Fino alia Morte di Emanuele Filiberto, 1517-1580, Firenze,
1914; Canosa, Storia dell'lnquisizione, op. cit. , vol. III; sentenças do Parlamento de Turim em matéria de
heresia e magia na segunda metade da década de 1550 foram indicadas por M. Scaduto, "Le Missioni
di A. Possevino in Piemonte: Propaganda Calvinista e Restaurazione Cattolica", em Archivum Historicum
Societatis lesu, XXVIII, 1959, pp. 31-191, em part. p. 82 nota.
124. Carta de Scipione Rebiba a Vincenzo Lauro, 3 mar. 1570, em Nunziature di Savoia, vol. I (15 out. 1560 -
29 jun. 1573), org. de Fausto Fonzi, Roma, 1960, p. 246.
125. "Fez bem_ escrevia O cardeal neto Michele Bonelli a Vincenzo Lauro, em 12 de setembro de 1569, a pro-
pósito de abjurações feitas por Gian Battista Ceva e Cario Pasquali diante do núncio - em mandar para as
mãos do sr. card. de Pisa [Scipione Rebiba, membro do Santo Ofício] o processo deles; e daqui em diante
f deverá sempre prestar contas desses assuntos a S. S. Ilma" (Nunziature di Savoia, vol. I, op. cit., p. 211).
126. Cf. Achille Erba, La Chiesa Sabauda tra Cinque e Seicento. Ortodossia Tridentina, Gallicanesimo Savoiardo e
Assolutismo Ducale (1580-1630), Roma, 1979, P· 37.
jesuítas foi caracterizada pela busca de formas de conquista não violenta. O mantuano
Antonio Possevino fez a Emanuele Filiberto - nos encontros que mantiveram no iní-
cio de 1560 - a proposta de abrir as portas aos não católicos, com o oferecimento de
uma anistia geral: e de Roma, padre Juan de Polanco relançou a ideia, sugerindo que
"a abjuração poderia ser secreta" 127 • O resultado foi a entrega dos negócios relativos à
inquisição ao núncio Francesco Bachaud, bispo titular de Genebra, que teve o poder de
absolver da excomunhão os hereges arrependidos mediante uma abjuração feita particu-
larmente e a custo de penitências secretas: tais poderes podiam também ser delegados a
bispos ou outros eclesiásticos 128 • E no entanto, logo que se soube em Roma do acordo
fechado em Cavour entre os representantes do duque e os dos vales valdenses, em 5 de
junho de 1561, o cardeal sobrinho Carlo Borromeo reprovou o núncio por não se ter
oposto àquela política de tolerância e enviou ao Piemonte o terrível cardeal Ghislieri,
com amplíssimos poderes - para que "lembre, ordene, disponha como lhe parecer"
não apenas na diocese de Alexandria, da qual era titular, mas com poderes de "general
superintendente" em todas as demais , em matéria de pregação anti-herética 129 - o que
significava uma forte limitação dos poderes do núncio.
O recurso à figura do núncio apostólico com poderes especiais para os casos de
heresia apresentou-se como a escapatória mais apropriada para todos os países onde
não era pensável a introdução da Inquisição romana. A atuação das nunciaturas nos
países onde ocorria a difusão das ideias da Reforma representou a alternativa possível
para a estruturação oficial da Inquisição. Naturalmente, os primeiros a reagirem a
semelhante ameaça foram os próprios seguidores da Reforma. Quando o papa Júlio
III enviou aos Grisões o núncio Paolo Odescalchi, o breve papal de nomeação foi
imediatamente publicado e comentado num panfleto do exilado italiano Pier Paolo
Vergerio; insistindo habilmente sobre o prejuízo aos poderes políticos trazido pela
intervenção do papa, Vergerio tentou alimentar uma oposição à ratificação daquele
tipo de acordo 130•
A questão fundamental era a relação entre a autoridade central do papa e as au-
toridades constituídas dos corpos políticos individuais no interior dos quais a primeira
devia ser reconhecida. Era inevitável que se procedesse através de compromissos e que
esses comprometessem em primeiro lugar a uniformidade da ordenação do tribunal.
O papa podia conceder tudo, nesse âmbito; e fazia-o livremente, por meio da congre-
gação do Santo Ofício ou por outras vias. As concessões disseram respeito não apenas
aos estados territoriais ou citadinos que fossem, mas também a sujeitos de caráter não
territorial, como, por exemplo, as ordens religiosas.
127. Carta de Palanco a Possevino, 20 mar. 1560, em Scaduto, "Le Missioni di A. Possevino in Piemonte",
op. cit., p. 71.
128. Idem, p. 72; cf. também R. De Simone, Tre Anni Decisivi di Storia Valdese (1559-1561) , Roma, 1958.
129. A carta de Carla Borromeo a Francesco Bachaud, de 12 de junho de 1561, está publicada em Nunziature
di Savoia, vol. 1, op. cit., pp. 66-67.
130. Atanásio (pseudônimo de Pier Paolo VergerioJ, Delle Commissioni et Facultà che Papa Giulio llI ha dato a
M. Paolo Odescalco comasco suo nunzio et inq_uisitore in tutto paese di Magnifici Signori Grisoni, s.L, 1554.
A Inquisição
147
E aqui a questão era complicada, no plano formal , por uma tradição de privilégios
que permitiam às ordens lavar a roupa suja em casa; no plano do conteúdo, esses pri-
vilégios eram o resultado de uma relação privilegiada com o papado que as pretensões
centralizadoras da Inquisição romana ameaçavam comprometer. De fato , para além
das declarações oficiais, o avanço da jurisdição inquisitorial nesse terreno deu-se a
passos lentos e silenciosos. Durante anos e anos depois de 1542 os atos capitulares das
grandes ordens continuaram a se ocupar de questões relativas a membros suspeitos de
heresia. Até no plano formal foi reconhecido o direito a uma certa autonomia sobre
o assunto. A coisa não é de espantar, tendo em vista as duas grandes ordens que for-
neciam o pessoal, as sedes e os meios para o trabalho inquisitorial. Para dominicanos
e franciscanos tratou-se, quanto muito, de regular as coisas de modo a evitar atritos
dentro dos conventos entre o inquisidor e outras autoridades da ordem. Seja como
for, é notável o fato de que a sucessão de casos de heresia, ocorrida, por exemplo, no
caso dos agostinianos, não comprometeu os tradicionais privilégios em questão. O
caso mais singular é o dos cônegos regulares lateranenses que , não obstante a suspeita
lançada sobre eles pela fuga de Pietro Martire Vermigli, continuaram por muito tempo
a administrar a justiça em casos de heresia através de um sistema autônomo de penas e
de juízes 131 • Aliás, não se tratou de um caso excepcional, pelo contrário. A autonomia
das ordens religiosas nessas matérias era coberta por concessões e autorizações papais.
Em 13 de julho de 1558, Paulo IV promulgou um decreto de confirmação de uma
norma aprovada pela congregação da ordem beneditina de Montecassino que acabara
de eleger dois comissários para atuarem contra os leitores de livros "luteranos": mes-
mo aprovando, Paulo IV estabeleceu procedimentos mais rigorosos. Três anos depois ,
Pio IV concedeu à mesma congregação o privilégio de escolher inquisidores entre os
131. A primeira disposição de caráter geral contra hereges e livros proibidos encontra-se nas atas do capítulo
geral de 16 de maio de 1546 em Cremona (Biblioteca Classense de Ravenna, Acta Capituli Gene-ralis Ca-
nonicorum Regularium, ms 222, c. 86v; mas cf. uma primeira menção em 11 de maio de 1536, idem, c. 4r).
Depois as normas são repetidas e tornam-se periodicamente mais rigorosas: em 1551 (idem, ms 223, c.
18r); em 1554 (idem, ms 223, c. 4lr); em 1557 (idem, ms 224, c. 27r); em 1571 (idem, ms 225, c. 103v). Não
se trata apenas de disposições gerais, mas também de ordens de captura e prisão de membros hereges e
apóstatas da ordem (no capítulo de 1554 foi ordenado que não se economizasse para capturar dom Teofilo
de Gattinara). Somente no final do século uma ampla investigação do Santo Ofício eliminou a autonomia
da poderosa ordem agostiniana (cópias das atas foram conservadas no fundo lnquisizione do Arquivo da
Cúria Arcebispal de Pisa). Notícias sobre os Cônegos Lateranenses, e sobre a penitenciária de Tremiti onde
eram encarcerados os confrades condenados, em Philip McNair, Peter Martyr in ltaly, Oxford, 1967 (cito a
partir da trad. it. Pietro Martire Vermigli in Itália. Un'Anatomia di un'Apostasia, Napoli, 1971, pp. 236-237).
Para os agostinianos, as atas de direção da ordem na época de Lutero foram estudadas por Jedin, Gerolamo
Seripando, op. cit. Para os dominicanos cf. Acta Capitulorum Generalium Ordinis Praedicatorum, ed. B. M.
Reichert, Roma-Stuttgart, 1901-1902. Somente em 1597, uma série de "ordens gerais" elaboradas pelo Santo
Ofício de Roma e transmitidas a franciscanos e dominicanos por meio dos respectivos cardeais protetores
regularam de modo analítico os comportamentos dos comissários locais da Inquisição em questão financeira
e disciplinar no que se refere às exigências dos conventos onde atuavam (as "ordens" foram recentemente
publicadas e estudadas por John Tedeschi, "New Light on the Organization of the Roman lnquisition",
em Annali di Storia Moderna e Contemporanea, li, 1996, pp. 265-274).
membros da ordem e de elaborar os autos dos processos por monges beneditinos a'
' s
cujas escrituras se devia dar fé como se dava àqueles escritos pelos notários públicos 132.
Enfim, quando , poucos anos mais tarde , descobriu-se que uma perigosa heresia neo-
pelagiana havia conquistado toda a congregação de Montecassino, a rápida e rigorosa
operação policial de que foi encarregado o poderoso cardeal Cario Borromeo - e que
levou a prisões e destituições que atingiram o próprio presidente da Congregação,
dom Andrea de Asola - não eliminou completamente o antigo privilégio: "Embora
seja do conhecimento de S. Santidade que o Ofício da Inquisição não foi exercido
por eles com o zelo e diligência exigidos - escreveu o cardeal Rebiba em nome do
Santo Ofício - nem por isso tira-lhes a autoridade de inquirir, colher informações e
depoimentos, encarcerar e constituir processos e o que for necessário" . Porém, esse
privilégio foi cercado por tais e tantas limitações que , de fato , a ilha jurisdicional da
Ordem acabou sendo apagada do mapa da Inquisição 133 • As coisas seguiram caminho
diferente para uma ordem nova, a Companhia de Jesus , que recebeu um amplo indulto
em matéria de heresias e livros proibidos, conseguindo mantê-lo até mesmo com os
papas que lhe foram mais hostis 134 •
Na relação com as ordens religiosas agia uma aliança com o papado que impunha
frequentes rupturas às regras gerais. Isso se deu, particularmente, na matéria do contro-
le dos livros proibidos, que atingia diretamente as bibliotecas das grandes ordens e as
leituras dos corpos especializados no ensino, na pregação e nas confissões. As normas
extremamente rígidas que impuseram repetidamente a revogação de toda permissão para
ter e ler livros proibidos foram rompidas por exceções e privilégios. Uma forte margem
de discricionariedade continuou a envolver esse gênero de matérias, motivo pelo qual
nem mesmo os decretos mais drásticos são tomados ao pé da letra. Assim é, por exemplo,
no que se refere ao decreto com que Pio V determinou que os religiosos que recorriam
ao Santo Ofício não podiam ser punidos de modo nenhum por seus superiores por
um período de cinco anos 135 • Quando, em 1591, o jesuíta Giulio Mazzarino apelou à
Inquisição contra a autoridade de seus superiores, foi ouvido pelo comissário geral do
Santo Ofício (o dominicano Vincenzo Montesanto) que registrou seu depoimento. Mas
logo depois decidiram mandar o acusado a seus superiores e rasgar a aquela ata "para
132. Cf. Bullarium Casinense seu Constitutiones Summornm Pontificum, por D. Com. Margarinum, Tuderti, 1670,
pp. 465-467.
133. A carta de Rebiba a Carla Borromeo, de 5 de maio de 1568 (publicada por D. Maselli, Saggi di Storia
Ereticale Lombarda ai Tempo di S. Cario, Napoli, 1979, pp. 179-181), estabelecia de fato que cópia autên-
tica de todos os processos internos fosse enviada dali em diante ao Santo Ofício e que os inquisidores
podiam proceder ordinariamente contra os monges. Além disso, estabelecia que os monges que fossem
dirigidos com denúncias e depoimentos ao Santo Ofício não fossem punidos pelos superiores.
134. Por exemplo, com Paulo IV, que o confirmou por ocasião da publicação de seu rigoroso Índex. O texto
do indulto, publicado por P. Tacchi Venturi em 1905, foi publicado agora no Index des livres interdits, vol.
VIII, op. cit., pp. 45-46.
135. Decreto de 7 de agosto de 1567, publicado por Pastor, ''Allgemeine Dekrete der Rõmischen lnquisition
aus denJahren 1555-1597", em Historisches]ahrbuch, 33, 1912, pp. 479-549; ver p. 30 do extrato.
A Inquisição
149
que o nome desses padres [... ] n ão seja posto e mantido entre os nomes dos réus do S.
Ofício" 136 • O ato de favor, portanto, podia comportar não só a concessão de inquisições
internas, mas também a destruição dos vestígios dos erros cometidos por membros de
ordens religiosas , em nome da honra de toda a corporação. Era preciso evitar tudo
o que pudesse ser "causa de desonra para a Religião e de escândalo público" 137 • Era
preciso ocultar os arcana de uma ordem pelas mesmas razões que era preciso proteger
· as ordenações existentes do poder.
A realidade variegada dos poderes políticos e dos privilégios sociais reflete-se
portanto nas estruturas da Inquisição: os resultados , muito diferentes entre si, tive-
ram em comum a necessidade de limitar autonomia e segredo dos inquisidores com
a introdução de outras figuras no tribunal. Um caso exemplar foi o de uma Ordem
religiosa que dispunha também de um poder territorial: os Cavaleiros de Malta 138 • A
Ordem havia se insurgido contra a intenção de Paulo IV de estabelecer um tribunal
inquisitorial em Malta; mais tarde, um compromisso fora assumido com Pio IV, que em
1561 - seguindo um caminho já trilhado com a República de Gênova, com o duque
de Saboia e com os Magistrados helvéticos - tinha concedido ao grão-mestre da ordem
o privilégio de assistir nos casos de heresia à atuação de um tribunal constituído pelo
bispo, pelo prior da igreja do convento e pelo vice-chanceler. O compromisso foi minado
por conflitos entre bispos e autoridades da ordem: o resultado final foi o envio de um
inquisidor estável (a partir de 1574), que atuou com a assistência do bispo apenas nos
casos em que nobres não estivessem implicados. As instruções que eram redigidas para
ele constituem um documento das muitas faces que podia assumir a presença inquisi-
torial numa situação como a de Malta: afora os judeus e os mulçumanos de passagem
e a escassa população da ilha, o problema principal era a irascível e violenta sociedade
dos cavaleiros, "jovens pouco habituados à disciplina e dados à licenciosidade"; e
portanto era preciso "destreza", "não se fiar em ninguém", "amabilidade e afabilidade
com todos" ; sobretudo, era preciso a cada vez consultar-se antes com o grão-mestre e
proceder protegido 139 •
Por essa via era possível dar vida a tantos tipos diferentes de tribunais quantos
eram os interlocutores; todo rigor formal da práxis dissolvia-se numa densa e contínua
série de tratativas detalhadas. Não é por acaso que a série documentária mais importante
para a reconstrução da história da inquisição seja constituída pelas cartas trocadas entre
a congregação romana e os comissários locais. O dever de informar continuamente de
tudo foi estabelecido por decreto do Santo Ofício em 18 de junho de 1564 (tornando
sistemática uma prática experimentada) 140 e foi reforçado a cada passo pelas autoridades
centrais: foi esse o eixo de encontro do sistema. Um eixo vertical: a relação fundamental
foi efetivamente com a cúpula romana, à qual deviam afluir todas as comunicações
e à qual competia dar a resposta decisiva. A flexibilidade das tratativas epistolares e
o fluxo contínuo das informações não podem ocultar, de fato , a novidade do projeto
institucional. Um sistema de poder judiciário centralizado substituíra a circulação hori-
zontal de opiniões e de informações que tinha caracterizado as organizações judiciárias
e inquisitoriais dos séculos precedentes 141 •
De Módena, nas primeiras décadas do século XVII, escrevia-se com uma frequência
quase semanal, de Udine com ritmos apenas mais lentos 142 • Quando tivermos a possibi-
lidade de ler todas as séries de missivas e respostas trocadas entre Roma e as sés locais,
teremos uma via de acesso ao funcionamento da justiça inquisitorial bem mais concreta
que a dos tratados dos canonistas e dos teólogos. Não é de admirar, portanto, que quando
se colocou o problema de redigir um regulamento para os vigários da Inquisição teve-se
que levar em consideração a chuva contínua de instruções, sugestões, conselhos. As
cartas do Santo Ofício romano constituíram a fonte da literatura de instruções e durante
muito tempo levaram a melhor sobre os tratados de caráter jurídico e teológico - até
porque, na época, a norma romana substituiu a tradição. É um aspecto particular do
verdadeiro triunfo da carta como instrumento do poder que caracteriza toda a época.
Instrumento flexível de comando, as cartas permitiam adequar o comportamento dos
vigários à situação do momento e às relações de força concretas. Importantes manuais
impressos, como o de Cesare Carena, utilizaram cartas da congregação romana para
ilustrar pontos específicos da práxis inquisitorial; manuais inteiros foram elaborados,
retalhando e juntando essas mesmas cartas de modo a oferecer uma resposta para cada
problema 143 • As razões romanas ao insistir nesse tipo de relação são evidentes: elas são
A Inquisição
151
de tipo semelhante àquelas das inumeráveis burocracias que, à época, foram sendo
construídas com mecanismos e articulações do mesmo gênero. Não somente os vigários
da inquisição em relação ao centro romano , mas os vigários em relação aos bispos, os
missionários das Índias em relação às sés metropolitanas, os enviados diplomáticos em
relação às autoridades políticas de origem, em suma, todos os que deviam exercer algu-
ma forma de governo por conta de autoridades centrais mantinham aberto o canal da
comunicação através das cartas: só assim os endereços de governo podiam tomar nota
da mudança das situações concretas. Isso torna evidente o aspecto de domínio político
e cultural do qual a Inquisição era instrumento. Não havia uma definição doutrinária
rígida a ser inflexivelmente aplicada; a propósito de tudo podia ser iniciada uma trata-
tiva, de modo a adaptar as definições doutrinárias às dobras da realidade.
Nisso, os poderes políticos locais estavam de acordo; era uma via que deixava
brechas para compromissos vantajosos. Em troca, naturalmente, garantia-se ao papado
o reconhecimento de algo que , no entanto, tinha acontecido, ou seja, a redução da
doutrina da fé a assunto de polícia governada diretamente pelo papa. Nem as faculdades
de teologia nem os bispos tinham mais voz em capítulo sobre esse assunto: e portanto o
papado obtivera bem mais do que podia dar no terreno dos regulamentos formais dos
tribunais. Por outro lado, a ordem eclesiástica em seu conjunto tinha encontrado no
papado o baluarte capaz de garantir-lhe uma esfera de privilégio: a bula ln Coena Domini
na versão bastante ampla e agressiva que lhe deu Paulo IV ergueu uma barreira espessa
de excomunhões sobre tudo aquilo que dizia respeito ao clero, seus bens e privilégios.
A grande variedade das instituições judiciárias que existem por trás do nome
Inquisição romana mostra o quanto era difícil, mesmo nos estados italianos fracos ,
estabelecer um tribunal da fé, supra-estatal e eclesiástico, construído segundo um mo-
delo único. Mas o âmbito italiano recebeu uma consistência juridicamente reconhecida
justamente pela extensão ao menos nominal da autoridade do tribunal romano. O há-
bito costurado em Roma adaptava-se às deformidades do corpo italiano. Se um herege
escapava da captura por fraqueza das malhas inquisitoriais de um dos estados italianos,
era sempre possível preparar-lhe uma armadilha num outro 144. Por outro lado, a ausência
de resistências reais em relação a semelhantes instituições mostra não só o interesse dos
vários estados em garantir um controle eficaz das doutrinas e das práticas religiosas,
mas também a convicção geral de que era necessário ter com Roma um diálogo intenso
e contínuo sobre esses assuntos. Como disse em 1582 um cônego genovês diante do
conselho Menor, discutindo-se a lei aprovada então pelo governo de Gênova contra
os hereges: "A experiência tem demonstrado que onde aparecem tais pessoas surgem
de Letras da Universidade de Bolonha, 1972-1973). Para Carena, cf. seu Tractatus de Officio Sanctissimae
lnquisitionis et Modo Procedenti in Causis Fidei, Cremonae, 1655.
144. Por exemplo, tratando-se em 1569 de deter em Turim um francês suspeito de heresia para mandá-lo a
Roma, o núncio Vincenzo Lauro sugeriu superar os obstáculos à extradição, mandando capturá-lo em
Gênova com um estratagema (Nunziature di Savoia, vol. I, op. cit., pp. 166-167).
grandes distúrbios e tormentos" 145 • Ninguém, que tivesse olhos para ver, podia então
contradizer semelhantes afirmações: por motivos de religião ocorriam até guerras e isso
parecia uma prerrogativa dos cristãos, algo que os antigos tinham ignorado, como obser-
vou Fabio Benvoglienti 146 • Esta preocupação do peso político da religião nos é familiar
através da insistência difundida pela literatura política, de Maquiavel a Botero e além
deles. Toda a tradição da "razão de estado" , que forneceu a justificação do poder e as
sugestões para sua tradução em instituições de governo, insistiu durante toda a Idade
Moderna em confiar ao príncipe não só o dever de garantir a segurança temporal, mas
também o de controlar que os súditos se comportassem como bons cristãos 147•
Mas não era apenas um tema do pensamento político. Preocupações muito con-
cretas a esse respeito angustiavam também os titulares do poder: o incêndio da Alema-
nha luterana e depois o da França huguenote e dos Países Baixos calvinistas não eram
fatos para aplacar tais preocupações. E, antes ainda, o papado, ao pedir ajuda para seus
inquisidores, tinha feito esvoaçar diante dos titulares do poder nos estados italianos
o espectro de uma nova e poderosa causa de divergência, que podia ser acrescentada
às muitas divisões daquelas turbulentas cidades. Não por acaso , Cósimo I - soberano
recente - tinha uma visão clara das instituições eclesiásticas e das práticas religiosas de
seu estado. Por isso, era bem aceita a atuação vicária desempenhada pela Igreja para
manter a ordem e a ortodoxia entre os povos. Mas , tendo em vista que a Igreja coinci-
dia com uma potência política que tinha seus interesses na Itália, os estados italianos
desejavam seguir de perto aquilo que o sistema inquisitorial descobria nos segredos das
consciências de seus súditos.
Portanto, longe de opor defesas jurisdicionais abstratas, os estados italianos ti-
nham uma necessidade real de fazer funcionar os poderes flexíveis, atentos e penetrantes
145. Retomo a citação de Giuseppe Delfino e Aidano Schmuckher, Stregoneria, Magia, Credenze e Superstizioni
a Genova e in Liguria, Firenze, 1973, p. 5.
146. Discorso di M. Fabio Benvoglienti, per qual cagione per la Religione non sia fatta guerra fra ' Gentili, et perche si
faccia tra Christiani ... , Firenzi, tip. Bartolomeo Sermartelli, 1570.
147. Cf. Reínhard G. Kreuz, "Überleben und gütes Leben. Erlaüterungen zu Begríff und Geschíchte der
Staatsrãson", em Deutsches Vierteljahresschrift für Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, LII, 1978,
pp. 173-208.
148. Cf. P. Orazío M. Premolí, Storia dei Bamabiti nel Cinquecento, Roma, 1913, pp. 94-97.
A Inquisição
153
possível pela proclamação extraordinária de graça anunciada por Júlio III - constituiu
a prova das possíveis vantagens que o governo da República podia obter das eventuais
organizações eclesiásticas de vigilância: tratava,se apenas de poder acompanhar seu
funcionamento - e isso foi concedido, como é sabido. Nada estranho, portanto, que
os estados quisessem pôr,se a salvo de semelhantes perigos e não se sentissem mais
protegidos adequadamente pelas defesas tradicionais; as barreiras das disposições esta,
tutárias que o mundo citadino anterior à Reforma elevara contra hereges, blasfemos e
sacrílegos 149 pareciam inadequadas diante das dimensões da divergência religiosa e de
suas devastadoras consequências para os vínculos políticos e sociais. Não é de se admi,
rar, portanto, que os estados empregassem para isso todos os meios de que dispunham,
inclusive os meios colocados à disposição da estrutura eclesiástica. Do encontro entre
a necessidade de estabilidade dos estados italianos e a afirmação do papado na Itália e,
através da Itália, na Igreja, surgiram as características da estrutura inquisitorial.
Trata,se de uma fusão de interesses que pode ser visivelmente captada em um
documento a seu modo exemplar: aquele com que o duque Alfonso II d ' Este ratificou
a nomeação do novo inquisidor de Ferrara em 1569. O documento oficial, conser,
vado no que resta do arquivo da Inquisição de Ferrara, tem a estrutura de um texto
que engloba e comenta outro: um longo preâmbulo e um comentário conclusivo do
duque envolvem de fato a carta oficial de designação que Vincenzo Giustiniani, geral
dos dominicanos, endereçara a Paolo Costabili, novo inquisidor,geral dos domínios
de Este; sua nomeação dava,se em substituição ao inquisidor precedente, Camillo
Campeggi, não aceito pela sociedade local por sua engenhosidade policial e por isso
promovido a bispo de Nepi. Era, portanto, um caso delicado e por isso deu,se muita
atenção às formalidades. A nomeação do novo inquisidor era feita com base na au,
toridade apostólica delegada ao geral da Ordem dominicana e não por intervenção
direta da congregação do Santo Ofício; a ratificação ducal tinha o ensejo de tornar
executiva aquela nomeação e fazia,o seguindo a seguinte trama de argumentação: a)
deveres do príncipe católico em relação à tutela e à propagação do culto divino; b)
méritos particulares do governo de Este a respeito, seja para a organização de contro,
i le estatal posta em ação, seja para a indicação de inquisidores adequados (Camillo
Campeggi - leia,se aqui - teria sido proposto pelo duque ao papa para ser nomeado);
c) documento de nomeação de Costabili; d) ratificação do documento por parte do
duque e convite a todas as autoridades do estado para reconhecer,lhe os poderes, para
prestar,lhe auxílio para a execução de seu ofício e para assistir,lhe e a seus vigários,
fiscais, notários e a todos por ele designados 150 • Era um complexo jogo de formas,
149. Veja-se, a título de exemplo, o que estabeleciam os estatutos bolonheses de 1454 em matérias como a
heresia, a blasfêmia contra o nome de Cristo, as ofensas às imagens da Virgem, a disputatio contra fidem
(Statuta Civilia et Criminalia Civitatis Bononiae, Bononiae, 1735, t. I, pp. 429430 e 465).
150. Pode valer a pena, dada a dispersão desse gênero de documento em relação àqueles emanados por auto-
ridades eclesiásticas, reportar o incipit do documento para oferecer uma amostra do fraseado burocrático
empregado então por um príncipe italiano: "Catholicum Principem decet non solum religiosa tutari,
sede et ea omnia efficere, quibus Dei cultus reverentia introducatur, dilatetur ac vigeat, et de more
custodis atque exploratoris vigilantissimi christifidelium et orthodoxae fidei observatorum viis praeesse,
ne illos pravi invadant; eiusdem sunt partes praecipuae et sanae dogmatum doctrinae adversantibus
omni conatu se opponat, horumque coercendorum ministris concilio, favore ipsoque brachio seculari
perpetuam opero ferat [... ]" (Ferrara, Archivio dei residui ecclesiastici della Curia, fundo S. Domenico, I,
ata de 1º de março de 1569).
151. Parecer "ln Materia di Crear Novo lnquisitor di Venezia", publicado por Gaetano e Luisa Cozzi, em P.
Sarpi, Opere, Milano/Napoli, 1969, pp. 1202-1211; em part. pp. 1207 e 1209.
152. "Nota dos negócios pendentes no S. Ofício de Roma de outubro de 1624", memorial para as congregações
do Santo Ofício (Biblioteca Nazionale di Napoli, BNN, ms. Branc. I B7, Atti d'lnquisizione, cc. 71r-731!;
em part. c. 73r.}. O memorial faz clara referência à solicitação do Senado no sentido de ter inquisidores
súditos de Veneza - exatamente a questão tratada por Sarpi em seu parecer.
153. F. Bethencourt (I.:Inquisition à l'époque moderne, op. cit., p. 137} assinala outras controvérsias entre Roma
e Veneza a esse respeito.
A Inquisição
155
ameaça agitada pela apologética católica para dissuadir de qualquer passo rumo a um
ordenamento diferente das relações entre política e religião. Argumentos desse tipo
dominaram, por exemplo, na grande controvérsia entre Roma e Veneza nos anos do
Interdito. A imobilidade foi a virtude exaltada diante daquilo que Bossuet chamou as
variations das Igrejas protestantes, seu irrequieto modificar-se sem jamais poder encontrar
uma ordenação estável. A estabilidade oposta à mutabilidade: esse esquema apologético
obteve grande sucesso durante toda a Idade Moderna na Europa católica. Foi aplicada
às vicissitudes políticas e às doutrinas religiosas, mas encontrou lugar até nas econô-
micas. Tão logo a Revolução Industrial inglesa surgiu no horizonte, seus efeitos foram
descritos como devastadores justamente pela mudança contínua que introduziam na
sociedade 154 • A Inquisição era a guardiã da ordenação existente, a garantia de que os
fundamentos doutrinários seriam mantidos sempre iguais a si mesmos nas mentes dos
súditos. As declarações solenes, repetidas nos documentos oficiais, podem ser lidas
como uma representação autêntica daquilo que se esperava dessa estrutura:
Nem todos estavam de acordo: havia quem preferisse "a Igreja e a república dentro
de seus limites". E as reformas do século XVIII que aboliram a Inquisição ou limitaram
seus poderes deixaram os estados às voltas com o problema do controle dos costumes
e das ideias: a police des moeurs e os poderes ampliados da polícia estatal minaram as
bases de apoio da Inquisição eclesiástica. Mas isso não impede que aquelà promessa de
imobilidade continuasse a exercer seu profundo fascínio e estivesse pronta a oferecer-se
como tranquilizante em qualquer momento e em qualquer ordenamento político em
que prevalecesse o temor da mudança e o medo da história.
154. Veja-se, por exemplo, G . Cobbett, Storia della Riforma Protestante in lnghilterra ed in Irlanda la quale Dimostra
come un tal'avvenimento ha impoverito e degradato il grosso del popolo in que' paesi ... , trad. it. de D. Gregori,
Roma, F. Bourlié, 1825.
155. Citação do acordo entre dom Fernando de Bourbon e papa Pio VI, 28 jul. 1780 (reproduzido em G .
Orei, "Sulle Relazioni tra la Santa lnquisizione e lo Stato nei Ducati Parmensi", em Studi di Storia e di
Critica Dedicati a Pio Carlo Falletti dagli Scolari Celebrandosi il XL Anno del suo lnsegnamento, Bologna, 1915,
pp. 577-610; em part. p. 601.
A bula Licet ab lnitio tornou explícita uma oposição fundamental, aquela entre concílio
.r-\.e inquisição. Eram, naquela época, duas ideias, duas imagens sugestivas, ainda não
incorporadas pelas instituições. Mas a oposição entre ambas era clara para todos. Eram
duas vias diametralmente opostas para fazer frente aos problemas da crise religiosa. Foram
percorridas em rápida sucessão: em 22 de maio de 1542 tinha sido lida em consistório
a bula papal de convocação do concílio em Trento lnitio nostri Pontificatus; em 29 de
junho, a bula fora publicada, numa situação internacional já agitada por incidentes que
prenunciavam o reinício da guerra entre Francisco I e Carlos V. A declaração de guerra
situa,se entre a publicação da bula de convocação do concílio e a bula que instituiu a ln,
quisição romana. A sequência das datas é por si só eloquente, ainda que os historiadores
do concílio não a tenham evidenciado 1• A via da guerra - a empreendida pelos exércitos
e a espiritual - era a alternativa ao concílio.
E no entanto, quando três anos mais tarde, encerrado o conflito militar, o con,
cílio reuniu,se em Trento, nem por isso a Inquisição romana deixou de funcionar, pelo
contrário. Sinal de que o papado tinha razões profundas que o impediam de abraçar
sem reservas a via do concílio. Mas a alternativa entre concílio e inquisição formulada
na bula era bem fundada na realidade, ou pelo menos nas representações mentais. O
concílio que devia se tornar, como escreveu frei Paolo Sarpi em seguida, um instrumento
essencial para estabelecer e reforçar a autoridade papal era temido como o mais "eficaz
meio para moderar o exorbitante poder" do papado. O concílio reunido era a verdadeira
instância em questões concernentes à fé: ele era visto como a assembleia que resolveria
as controvérsias doutrinárias e restabeleceria a paz na cristandade. O concílio era o lugar
da paz, onde ninguém devia ter medo: exatamente o contrário do tribunal da Inquisição,
que era o lugar e o instrumento da guerra espiritual. Certamente, a morte de Huss na
fogueira em Costanza era um lúgubre aviso destinado a manter viva a desconfiança em
relacão ao Concílio. Mas em Trento procurou,se fazer um caminho diferente: e assim,
'
no ato da convocacão do concílio, um salvo,conduto garantiu a todos a possibilidade
de ir até lá e vir e~bora, sem ter que temer detenção ou qualquer processo por ideias
1. Nem Sarpi, por exemplo (cf. Istoria del Concilio Tridentino, vol. l, l. l, org. de Carrada Vivanti, Torino, 1974, I,
p. 172), e nem H . Jedin (Storia del Concilio di Trento, vol. I, trad. it., Brescia, 1973, p. 510).
158
pessoais. E no entanto, mais que o salvo-conduto foi justo a esperança de poder expor
finalmente as próprias ideias à Igreja reunida com seus bispos que levou a Trento não
poucos espíritos inquietos: monges apóstatas como Giorgio Siculo, bispos e políticos ilus-
tres como Pier Paolo Vergerio. Na primeira fase de sua atividade, a assembleia conciliar
desiludiu essas esperanças com a definição da doutrina da justificação, que estabeleceu
uma rígida fronteira entre verdade e erro e congelou com seus anátemas as esperanças
de conciliação que restavam. A polêmica ausência do cardeal legado Reginald Pole nessa
sessão reforçou o significado de reviravolta do decreto sobre a justificação. Coube a
outro cardeal legado que também era membro da congregação romana da Inquisição,
Marcello Cervini, recolocar o concílio no sistema e na lógica do controle romano em
matéria de fé : quando os bispos obedientes ao papa transferiram-se para Bolonha, vozes
insistentes demandaram um uso exemplar dos instrumentos inquisitoriais. E dessa vez
o papa era chamado a dar um sinal evidente de seu poder de soberano: como e mais
que outros soberanos, devia eliminar a heresia de seu estado. Devia fazê-lo justamente
na cidade onde se reunia a assembleia conciliar, antigo e tradicional poder central da
cristandade em matéria de doutrina.
De dentro do próprio concílio, os expoentes do partido curial alçaram a voz para
pedir providências exemplares. Alvise Lippomano, bispo intransigente e inflamado
polemista antierasmiano e antiluterano, perguntava ao cardeal Cervini:
Por que em todas as terras da Igreja não se estabelece uma severíssima Inquisição contra esses
tristes luteranos e não são castigados de acordo com seus méritos? No momento não quero falar de
Roma: falarei apenas de Bolonha. Não há ali um número infinito deles? ... Dizem que as inquisições
de Espanha e Portugal são demasiadamente severas, e eu replico que são muito úteis ... 2
Quando acontecesse ... a instituição de uma poderosa mas não menos caritativa inquisição
contra os hereges, de modo que nas outras terras da Igreja ... creio que, além do exemplo que seria
para outros estados, arrancar-se-ia a raiz de tal pestilência em grande parte 3 •
2. A carta é datada de 16 de novembro de 1547 (Gottfried Buschbell, Reformation und lnquisition in ltalien, op. cit.,
p. 289; é reproduzida também em M. Firpo e D. Marcatto (orgs.), ll Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giaoonni
Morone, op. cit. , II/1, pp. 247-248 nota).
3. Portanto, cinco anos após a bula de Paulo III, a recém-nascida Inquisição romana não havia modificado subs-
tancialmente os procedimentos e ordenações existentes, nem mesmo no estado da Igreja. A carta de Tommaso
Stella é datada de 10 de dezembro de 1547; é reproduzida por Buschbell, Reformation und Inquisition, op. cit.,
p. 67 nota. Cf. William Hudon, Marcello Ceroini, op. cit., pp. 116 e ss.
A Inquisição
159
apreensões pela difusão de doutrinas heréticas. Mas era também a segunda cidade do
Estado da Igreja e assumira uma função de cenário solene para grandes representações
de poder com a coroação de Carlos V. Era uma função que não perdera mais; os festões ,
as estátuas, os arcos do triunfo e as escritas celebrantes que foram preparadas para a
passagem de Paulo III em 1541 reproduziram no auge os cenários de 1530: seu autor,
Scipione Bianchini, era um homem intimamente ligado aos círculos que ele mesmo
chamava "esses nossos novos cristãos", onde se lia a literatura da Reforma e se esperavam
mudanças da lgreja4. À entrada da cidade, a representação alegórica da fidelidade e da
obediência 5 recordava o triste caso da dura punição de Perúgia de apenas um ano antes
e atribuía a Bolonha a função de filha exemplar de Roma. E se a obediência escancarava
a porta da cidade, dentro reinavam as imagens da religião, da fé e da caridade.
A realidade não correspondia a essas imagens de fachada : mesmo em Bolonha
novas inquietações religiosas agitavam círculos intelectuais e ambientes populares: o
herege siciliano Paolo Ricci, também conhecido como Lisia Fileno ou Camillo Rena,
to, marcara com sua passagem o mundo citadino 6 • Os fragmentos restantes do grande
arquivo bolonhês da Inquisição mostram que esses ecos permaneceram por muito
tempo. Não se tratou apenas de ecos: centros ativos de agitação e de organização da
dissensão como o que se percebe em torno do mercador Giovan Battista Scotti revelam
a importância de Bolonha na geografia da dissensão anticatólica na Itália 7• A cidade
enchia,se de "livros proibidos luteranos e repletos de mil heresias"ª. E essa notícia che,
gava longe, se se pensa que Martin Butzer manteve uma série de contatos epistolares
com os grupos de Bolonha, de Módena, de Ferrara e de Veneza9 • Na Universidade de
Bolonha, a presença de Camillo Renato fomentava discussões sobre as "superstições"
a serem erradicadas e sobre a autoridade do papa: e na ação inquisitorial contra ele,
o conflito entre o inquisidor dominicano, o vigário do bispo e o legado papal abria
brechas para a fuga do acusado 10• Nas confrarias citadinas, onde a dimensão social da
vida religiosa continuava a se exprimir, a nova religiosidade cristocêntrica entrou em
clamoroso choque com as formas tradicionais de culto da Virgem e dos santos. Justa,
mente no oratório de santa Maria della Vita, em 14 de janeiro de 1543, o boticário
4. Carta de 30 de dezembro de 1542, publicada por G. Fragnito, "Gli 'Spirituali' e la Fuga di Bernardino Ochi-
no", op. cit., p. 799. Bianchini é apontado como autor do programa por Leandro Alberti, Historie di Bologna,
ms. it. 97 da Biblioteca Universitária de Bolonha, vol. IV, c. 319r.
5. "Mais abaixo do Rheno havia uma grande mulher de veste longa com um cão aos pés e o letreiro Dum memor
ipsa mei. Chamavam-na fidelitas; Savena abaixo outra grande mulher que tinha a mão esquerda em cima do
\ buraco de uma colmeia de abelhas, e o letreiro: 'Tu qui res hominunque deumque aeternis regis imperiis'",
foi denominada obedientia (carta de Marcantonio Gigli a Gian Battista Campeggi de Bolonha, 1º out. 1541,
em Archivio di Stato di Bologna, fundo Malvezzi-Campeggi, s. III f. 530, cc.n.n.).
6. Cf. Rotando, "Per la Storia dell'Eresia a Bologna nel Secolo XVI", op. cit., PP· 107-154.
7. Firpo e Marcatto (orgs.), li Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op. cit., passim.
8. Testemunho de Domenico Rocca, idem, IV, p. 466.
9. Cf. Paolo Simoncelli, "lnquisizione Romana e Riforma in Italia", Rivista Storica Italiana, C, 1988, pp. 1-125.
10. Cf. Camillo Renato, Opere. Documenti e Testemonianze, org. de Antonio Rotando, Firenze/Chicago, 1968,
pp. 314 e ss.
11. Dos fragmentos do processo (conservados no ms B 1927 da Biblioteca dell'Archiginnasio) resulta que o inter·
rogatório é conduzido pelo vigário do bispo. O episódio foi narrado em Rotondo, "Per la Storia dell'Eresia a
Bologna", op. cit. , pp. 137 e ss. Ver também as observações posteriores de Rotondo a esse respeito em "Anticristo
e Chiesa romana. Diffusione e metamorfosi d'un libello antiromano del Cinquecento", em Forme e Destinazione
del Messaggio Religioso. Aspetti della Propaganda Religiosa nel Cinquecento, org. de Rotondo, Firenze, 1991, pp. 81,
86 e ss. Sobre a confraria bolonhesa, cf. M. Fanti, La Confraternità di S. Maria della Morte e la Conforteria dei
Condannati in Bologna nei Secoli XIV e XV, Perugia, 1978: um quadro do conjunto das confrarias bolonhesas é
oferecido por N. Terpstra, l..ay Confratemities and Civic Religion in Renaissance Bologna, Cambridge U.P., 1995.
12. Dos depoimentos do processo citados por Valério Marchetti, Gruppi Ereticali Senesi del Cinquecento, Firenze,
1975, pp. 51 e ss.
13. A carta, de 2 de fevereiro de 1543, é dirigida a Gian Battista Campeggi, bispo de Majorca, e está conservada
no Archivio di Stato di Bologna, fundo Malvezzi Campeggi, s. III, f. 531, cc. n. n. Sobre a situacão bolonhesa
daqueles anos, cf. A. Battistella, Il Santo Officio e la Riforma Religiosa in Bologna, Bologna, 1905.·
A Inquisição
161
hereges de todo tipo foi deixada - ao que parece - nas mãos das autoridades temporais.
Leandro Alberti, contando as histórias desses anos , mencionou que fora O próprio go-
vernador a tomar a iniciativa, "percebendo que muitos disputavam sobre assuntos da fé
católica, até os sapateiros e outros vis artesãos e diziam coisas heréticas" 14. Houve uma
intervenção da congregação romana, todavia, a respeito do campo delicado e urgente da
censura dos livros: entre os primeiros atos do Santo Ofício houve de fato o decreto de
12 de julho de 1543 , datado de Bolonha, através do qual se aviava na cidade a vigilância
em matéria de publicações heréticas. Justamente por ser matéria difícil e os meios de
intervenção do Santo Ofício não permitirem fazer mais - como se lê no documento -
decidia-se partir da cidade de Bolonha e confiar a Beccadelli e a seu substituto Leandro
Alberti a tarefa de manter a vigilância sobre a difusão dos livros heréticos 15 •
Mas foi sobretudo por ocasião da transferência do concílio para Bolonha que a
questão assumiu caráter de emergência, como prova de que se exigia dessa cidade uma
função exemplar, de espelho; e por isso, urgiam medidas anti-heréticas em Bolonha,
para mostrar o que o papa sabia fazer em seu estado.
A denúncia não caiu no vazio. É certo que os protestos continuaram: ainda em
1549 o novo inquisidor Girolamo Muzzarelli, homem de confiança do cardeal legado
Del Monte e mais tarde magister Sacri Palatii, declarava ter encontrado em Bolonha "um
grande emaranhado de heresias" 16 • Mas durante todo o tempo em que o concílio - em
sua componente de obediência papal - continuava a reunir-se em Bolonha, a questão
não era de fácil solução: o papa era chamado a escolher entre o rosto doce do pai
comum dos cristãos e o duro e decidido do soberano de um estado que, como outros
e mais do que outros, devia afastar a mácula da heresia. Não que houvesse incertezas
a respeito: era uma questão de poder e como tal devia ser resolvida. A linguagem das
imagens demonstra-o, ainda que através do véu das fábulas pagãs: a praça Maggiore de
Bolonha, sob Pio IV, foi povoada por imagens de um poder soberano firme e inexorável 17 •
Mas esse poder não estava em condições de manifestar-se abertamente na situação que
se criara durante o período bolonhês do concílio: a presença da assembleia conciliar
ao lado das instituições inquisitoriais criava uma possibilidade de conflitos que em
Trento - terra do Império e portanto desprovida de Inquisição - não havia. Conflitos
14. Leandro Alberti, Historie di Bologna, vol. IV, Biblioteca Universitária de Bolonha, ms 97/ IV, c. 330v (retomo a
indicação do estudo ainda inédito de Guido Dall'Olio, Eretici e lnquisitori a Bologna nel '500 (1525-1580). Tese
de doutorado em História da sociedade europeia, Universidade de Estudos de Veneza, 1993-1994.
15. Rotondó ("Anticristo e Chiesa Romana" , op. cit. , p. 84) sublinhou a origem bolonhesa do decreto da Inqui-
sição romana.
16. Carta do cardeal Dei Monte a Cervini, Bologna, 21 fev. 1549 (em Concilium Tridentinum, XI, org. de Buschbell,
Freiburg I. B., 1937, p. 494). Cf. Rotondó, "Per la Storia dell'Eresia", op. cit., p. 136. A falta de clareza que
existe a respeito do titular do ofício inquisitorial em Bolonha naqueles anos foi ressaltada por Heinrich Lutz
(Nuntiaturberichte aus Deutschland nebst erganzenden Aktenstücke, vol. XIV, Nuntiatur des Girolamo Muzzarelli. Sen-
dung des Antonio Augustin. Legation des Scipione Rebiba [1554-1556], Tübingen, 1971, pp. X e ss.), que é eloquente
quanto às condições em que se desenvolvia o trabalho do Santo Ofício.
17. A observação é de Irving Lavin, Passato e Presente nella Storia dell'Arte, (Princeton, 1993), trad. it., Torino, 1994,
cap. III: "Bologna e una Grande Intrecciatura di Eresie", pp. 93-124; em part. P· 118.
entre muitos e diversos poderes, não só entre concílio e inquisição: isso pôde ser visto
num episódio que teve como protagonista o bispo de Lavello, o dominicano Tommaso
Stella. A convite dos legados ao concílio , Stella - denominado o "Alemão" - começou
a fazer sermões em San Petronio contra as doutrinas heréticas. Mas outro dominicano,
Giovanni Battista de Crema, denominado de "Cremasco", subiu ao púlpito e atacou-o
abertamente, contando com a proteção do poderoso convento dominicano da cidade.
Era um confronto entre pregadores, um episódio nada novo no gênero. Mas a liberdade
de discutir publicamente e de disputar os favores do público não era mais tolerável à
sombra de um concílio que devia se ocupar da definição e da defesa da ortodoxia. De
resto, o concílio tinha baixado um decreto sobre a pregação, aprovado havia mais de um
ano: mas , como observou incomodado o cardeal legado Del Monte, ninguém parecia
ter se dado conta disso. Foi preciso o concílio pedir ao papa um breve que obrigasse
ao cumprimento do decreto; depois disso , o bispo de Bolonha Alessandro Campeggi
ordenou a Giovanni Battista que não pregasse mais sem sua permissão. Resolvida a
questão de impor um mínimo de disciplina, restava julgar o mérito das doutrinas
propostas e discutidas pelos dois pregadores. E para isso o cardeal legado "congregou
todo o Concílio ... e propôs as heresias ditas pelo dominicano de Crema ... E por decisão
unânime do Concílio foi proibido de pregar" 18 •
O episódio confirma o quanto a situação em Bolonha era confusa. Mas o concí-
lio, ou pelo menos o que sobrara dele após a transferência determinada pelo papa, não
estava absolutamente em condições de impor a respeito de questões do gênero uma
autoridade própria diferente daquela do papa. A solução foi induzir o concílio a tornar-
18. Das cartas de Girolamo Papino ao duque de Ferrara, carta de 14 de janeiro de 1548 (B. Fontana, Renata di
Francia Duchessa di Ferrara, vol. II. Roma, 1893, p. 236). Cf. Filippo Valenti, "11 Carteggio di Padre Girolamo
Papino Informatore Estense dal Concilio di Trento durante il Período Bolognese", emArchivio Storico Italiano,
CXXN, 1966, pp. 303-417, em part. p. 346. Giuseppe Alberigo (I Vesco11i Italiani al Concilio di Trento [1545-
-1547], Firenze, 1959, pp. 313-329) colocou acertadamente o episódio no contexto dos problemas da pregação
enfrentados pelo Concílio.
19. Uma carta de Cervini a Massarelli, de 17 de julho de 1548, a propósito de alguns "hereges encarcerados" em
Bolonha contém as diretrizes da congregação do Santo Ofício a serem transmitidas ao inquisidor de Bolonha;
está conservada em ASV, Concilio 139, e foi publicada por Alain Tallon, "Le Concile de Trente et l'lnquisition
Romaine", Mélanges de l'École Française de Rome, CVI, 1994, pp. 129-159; em part. p. 132 nota.
A Inquisição
163
20. Carta de Massarelli a Cervini, Bologna, 2 dez. 1548 (Buschbell, Reformation und lnquisition, op. cit. , pp. 308-309).
· · C arceren· ocupou-se d os casos dos livreiros investigados então, "Cristoforo Dossena, Francesco Linguardo
Lmgt
. d ano, Lºb
e un G 10r · p
1 rat, rocessa
tt' per Eresia a Bologna (1548)" , em L'Archiginnasio, V, 1910, pp. 177-192.
21. Tallon, "Le Concile de Trente et l'lnquisition Romaine", op. cit. , P· 147.
lação, Nacchianti suscitou violentos clamores da sessão ao afirmar que era ímpio colocar
no mesmo plano a sagrada Escritura e as tradições 22 • Era uma linguagem que lembrava
a de Lutero 23 • Nacchianti foi repreendido por Roma, teve de se justificar e suspender a
participação no Concílio. Não se dirigiu a Roma, onde o processo o esperava; mas de
Roma partiu uma ordem secreta ao secretário do concílio para proceder a uma investigação
local. E Massarelli, em dezembro de 1548, dirigiu-se a Chioggia e reuniu uma documen-
tação processual que enviou a Roma no mês seguinte 24 • Era uma documentação repleta,
segundo ele, de "coisas muito, muito feias e ímpias" 25 • Outra documentação, reunida no
outono de 1549 por dois comissários do Santo Ofício e que pode ser lida entre os papéis
venezianos, apresenta testemunhos de uma população escandalizada: o bispo criticava
as indulgências - dizia: "por que tantos perdões? por que tantos perdões?" - implicava
com os cônegos que levavam em procissão um menino de carne e osso, criticava o culto
dos santos, mas dizia também que era impossível Cristo estar na hóstia consagrada, pois
"seria preciso que a hóstia fosse de nosso tamanho" 26 •
Não se conhece o êxito desse processo; de fato, Iacopo Nacchianti saiu livre das
acusações, visto que voltou anos mais tarde à cena do concílio. Mas deve ter permane-
cido por muito tempo dominado pelo medo , tendo em vista as exibições de ortodoxia
que forneceu nos escritos que publicou 27• As acusações que pesavam sobre ele lembram
muito de perto as que tinham sido reunidas algum tempo antes a propósito de um
bispo que também entrara em conflito com as ideias de seu clero e da população de
sua diocese: Pier Paolo Vergerio. Ora, foi justamente no caso de Vergerio que as espe-
ranças no concílio e a realidade das relações de força mostraram-se com maior clareza.
Vergerio, que do concílio podia legitimamente sentir-se um promotor, chegara a Trento
em janeiro de 1546, perseguido por citações e denúncias. Não fora convidado para o
concílio, mas achava que sua condição de bispo lhe garantisse o direito de participar.
Dirigia-se a ele "para submeter-se ao julgamento da igreja", como escreveu o cardeal
Gonzaga ao recomendá-lo ao poderoso cardeal Madruzzo, que em Trento era o anfi-
trião. Devia ser protegido, segundo Gonzaga, até a conclusão da causa que pesava sobre
ele e que devia ser resolvida "ou pelo Concílio como um todo (corno o tinham sido
22. Cf. Jedin, Storia del Concilio di Trento , op. cit., vol. II, Brescia, 1962, pp. 105-106.
23. "Parece que se está ouvindo Lutero falar" , comentou Jedin (idem, p. 81).
24. Cf. Girolamo Carcereri, "Fra Giacomo Nacchianti Vescovo di Chioggia e fra Girolamo da Siena lnquisiti per
Eresia ( 1548-1549)", em Nuovo Archivio Veneto, n. s. XI, 1911, pp. 468-495.
25. Carta a Cervini de 12 de janeiro de 1549; reproduzo a citação da monografia de Pietro Mozzato, ]acopo Nac•
chianti un Vescovo Riformatore (Chioggia 1544-1569), Chioggia, 1993, p. 67.
26. Idem, p. 142 (cost. 11 de octubre de 1549 do canônico Battista "de Episcopis").
27. Um violento ataque contra os "falsos evangelistas luteranos" ("de lutheranis loquor, aliisque pestibus monstri.s-
que") pode ser lido na abertura de seu Opus Doctum ac Resolutum, in Quattuor Tractatu.s, seu Quaestiones Dissectum,
Venetiis, apud losephum Vicentinum, 1557 (dedicado ao cardeal Antonio Trivulzio), onde polemiza contra as
teses de Pomponazzi sobre a mortalidade da alma. Na edição de suas obras publicada pelos Giunti em Veneza
0 5~7), ª vontade de conformar-se "ad piae, atque ortodoxae fidei veritatem" é declarada já no título. Sobre os
escntos de Nacchianti cf. Friedrich Lauchert, Die ltalienischen literaturiscen Gegner Luthers Freiburg i. B., 1912,
pp. 584-612. '
A Inquisição
165
tantas outras de bispos, acusados de vários pecados), ou por vós, cardeais, reunidos" 28•
Enfim, o processo devia ser conduzido em Trento e não em Roma. Se essas eram as
expectativas que até mesmo um cardeal nutria em relação ao Concílio, a realidade não
demorou a desmenti-las. Vergerio não pôde fazer ouvir sua voz aos padres conciliares,
mas apenas ao cardeal legado Marcello Cervini e a seus colegas Del Monte e Pole; foi-
-lhe dito que antes de ser admitido no concílio devia submeter-se a processo senão em
Roma pelo menos em Veneza. Teve que se afastar de Trento e, de sua estada forçada em
Riva, descreveu o concílio como "uma criança que ainda não sabe andar nem falar" 29 •
Mas essa fraqueza, que Vergerio considerava apenas inicial, não foi mais superada: seu
processo - um dos mais imponentes e complexos conservados no arquivo veneziano
da Inquisição - foi realizado em Veneza e não em Trento, e enquanto os documentos
iam se acumulando o acusado amadureceu lentamente a decisão de abandonar a Itália
e a Igreja romana.
Perseguido por espiões e por inquisidores, o inquieto bispo de Capodistria
tinha feito uma breve aparição na cena tridentina. Fora tratado com astuta gentileza:
era evidente que, se fosse empurrado para o caminho da apostasia, Roma teria um
adversário temível. Assim foi: sua fuga da Itália devia propiciar à Inquisição Romana
um de seus críticos mais ásperos; mas não houve alternativas reais. Aliás, o caso de
Vergerio serviu para confirmar a posteriori que o partido intransigente tinha conside-
rado a questão corretamente. Com isso, as suspeitas contra as correntes mais abertas
do episcopado que já circulavam em Trento saíram reforçadas. Mas o caso de Vergerio
teve principalmente o significado de esclarecer em definitivo a quem cabia o poder de
julgar em causas de heresia. Dali em diante, ficou evidente que esse poder não estava
com o Concílio de Trento.
28. A carta de Ercole Gonzaga foi publicada já à época_ por Vei:gerio, após s~a fuga, de mo~o substancial~ente
correto (cf. Anne Jacobson Schutte, Pier Paolo Vergerw e la Ríforma a Venezia 1498-1549) (Pier Paolo Vergeno: The
Making of an Italian Reformer, Geneve, 1977), trad. it. , Roma, 1988, p. 319 e nota 75).
29. Idem, p. 321.
30. P. Paschini, "Un Vescovo Disgraziato nel Cinquecento Italiano: Vittore Soranzo", em Tre Ricerche sulla Storia
. ne1e·mquecen to, Roma , 1945 , p · 126 · Mas ver agora L. Chiodi, "Eresia Protestante a Bergamo nella
della ehiesa
Prima Metà del' 500 e il vescovo Vittore Soranzo. Appunti per una Riconsiderazione Storica", Rivista di Storia
della Chiesa in ltalia, XXXV, 1981, pp. 456-485.
por Gian Matteo Giberti: restauração da disciplina eclesiástica, visita pastoral à cidade
e à diocese (cujas atas se encontram reunidas em nove tomos no arquivo da diocese),
reforma da vida religiosa no sentido de eliminar tudo aquilo que parecia supersticioso
ou ridículo: um édito de sua autoria é endereçado contra a tradição de citar os próprios
inimigos in vallem ]osaphat. Mas surgiram suspeitas a seu respeito; em abril de 1548
foram afixados manifestos pela cidade de Bérgamo em que era acusado de heresia.
Bérgamo foi então teatro de um duro conflito que se desenvolveu entre a Inquisição
romana e o bispo, apoiado por Veneza. Tornou-se célebre ao menos um episódio desse
confronto, que teve como ator principal frei Michele Ghislieri: o frade , na qualidade
de comissário do Santo Ofício, foi enviado a Bérgamo por Júlio III e pelos cardeais do
Santo Ofício e colheu informações a respeito de Soranzo. Seus biógrafos contam que
homens armados tentaram agredi-lo ou intimidá-lo, sem sucesso. Escondido o dossiê
inquisitorial, Ghislieri fugiu à noite do convento suburbano de Santo Stefano, graças
à ajuda do franciscano Aurelio Griani que lhe arranjou montaria. Parece que desse
episódio originou-se a estima particular que o cardeal Carafa teve por Ghisleri e daí
a rápida carreira que devia levar o frade ao cardinalato e, em seguida, ao pontificado.
É evidente que Ghislieri mostrou lembrar-se de bom grado do episódio: um de seus
primeiros atos logo que se tornou papa foi conferir uma diocese a frei Aurelio, no
consistório de 8 de novembro de 1570. E Giulio Santoro, que conhecia bem a história
do Santo Ofício, anotou em seu diário que se tratava de um agradecimento a quem
lhe havia dado "montaria e ajuda" na missão empreendida contra Vittore Soranzo 31 •
Um eco das turbulências doutrinárias daqueles anos em Bérgamo pode ser en-
contrado na crônica da cidade publicada em 1553 por padre Bartolomeo Pellegrini:
uma obra de celebração das glórias citadinas e dos ilustres pregadores do Evangelho,
que tinham tornado Bérgamo uma vinha fértil para os operários da palavra de Deus.
31. Paschini, Tre Ricerche, op. cit., pp. 132-133. A anotação do cardeal de Santa Severina está no "Diario Concis-
toriale" , ed. op. cit. De Tacchi Yenturi, em Studi e Documenti di Storia e di Diritto, XX.III, 1902, p. 317.
A Inquisição
167
32. A carta do embaixador veneziano Da Mula, datada de 21 de fevereiro de 1561, é reproduzida por P. Paschini,
"Giovanni Grimani Accusato d'Eresia", em Tre Illustri Prelati dei Rinascimento, Roma, 1957, pp. 155-158.
33. Carta de 22 de fevereiro de 1561, idem, p. 160.
Nem sua Serenidade [o doge] deveria pois acreditar que este Santíssimo Tribunal de Rom a,
no qual estão tantas personalidades de muita virtude , integridade e doutrina , fosse acusar o Patriarca
de coisas das quais o concílio não fosse fazer o mesmo, e talvez com maior severidade e rigor 34.
Em todo caso, decidiu-se fazer pesar sobre a cabeça de Grimani uma citação ad
comparendum diante do Santo Ofício, a ser entregue apenas se fosse visto de partida
para Trento. Foi imprescindível a habilidade de outra vítima ilustre da Inquisição, 0
cardeal Morone, para concluir a questão. O compromisso a que se chegou com dificul-
dade, após meses de atentas manobras , consistiu em confiar a questão não à assembleia
conciliar inteira, mas a uma comissão que reunia prelados de várias "nações" junto
com alguns gerais das ordens religiosas presentes em Trento: a comissão, designada
em 19 de julho de 1563, reuniu-se na casa de Morone em 13 de agosto. Cada um dos
membros emitiu oralmente seu parecer, que depois foi registrado por escrito, a pedido
de Morone. A sentença formal foi pronunciada em 5 de setembro e tornada pública
no dia 17; mas já em 26 de agosto uma carta de Trento relata o conteúdo do parecer
emitido pela comissão dos deputados , "os quais pronunciaram de comum acordo que
nos escritos de monsenhor Patriarca não haviam encontrado coisa alguma que não
estivesse conforme a verdade católica" 35 • Era uma conclusão diametralmente oposta
àquela do Santo Ofício. É natural que se pergunte "por que a carta de Grimani, julgada
herética pelos teólogos de Roma em 1561, pôde ser considerada isenta de erro pelos
teólogos de Trento em 1563" 36 • A leitura do que restou de ambos os processos pode
nos ajudar a entender melhor37 •
Diante de Pio IV, na sessão do Santo Ofício, tinham sido lidos os votos escritos
do geral dos jesuítas Laínez, do franciscano frei Felice Peretti (depois papa Sixto V), de
frei Cornelio Musso, do bispo de Lanciano Leonardo Marini, de Jacopo de Noguera, do
geral dos dominicanos frei Eustachio Locatelli. Laínez tinha antecipado considerar que
Grimani era pessoalmente um filho obediente da Igreja; e no entanto, tinha cometido
em boa-fé erros doutrinários graves, proferindo afirmações escandalosas e temerárias que
retomavam a heresia de Pelágio. Para Peretti, tratava-se contudo de erros já condenados
em Wyclif e Huss. Cornelio Musso observou que - após o esclarecimento prestado
pelo Concílio sobre essas questões - a carta parecia "de heresi lutherana vehementer
suspectam"; apenas Jacopo de Noguera não encontrou nada que não estivesse de acordo
com as ideias católicas, mas fez saber ainda que tinha conhecimento de uma anterior
abjuração de vehementi feita anteriormente por Grimani; a reunião foi encerrada com o
voto do dominicano Locatelli, o mais duro, que se concluiu solicitando que se passasse
34. Carta de Borromeo ao núncio em Venezia, 21 mar. 1562, idem, pp. 178-179.
35. Carta de Muzio Calino, citada por Paschini, "Giovanni Grimani Accusato d'Eresia", op. cit., p. 189.
36. Idem, p. 193.
37. No arquivo romano da Companhia de Jesus é conservado um processo que reúne, em cópia e na ordem, as
atas da comissão de Trento de 1563 e os registros da congregação do Santo Ofício de 16 de setembro de 1561
(Processus S. lnquisitionis sub Pio IV 1563 contra errores Patriarchae Aquileiensis in materia iustificationis et votum P.
lacobi Lainez circa eosdem errores, ARS!, Opp. NN. 207).
A Inquisição
169
38. A carta a Curione, desconhecida por P. Costil (André Dudith Humaniste Honwois, Paris, 1935) foi publicada por
Lech Szczucki e T. Szepessy (Andreas Dudithius, Epistulae, pars 1, 1554-1567, Budapeste, 1992, pp. 55-61).
39. "[...) Non solum esse catholicum sed etiam catholico sensu scriptum. Confirmat enim Deum non esse maio-
rum causam, docet insuper ita arbitrii libertatem, ut et paedestinatus possit aliquando peccare et praescitus
ad tempus benefacere" (voto datado de 15 de agosto de 1563, Processus, op. cit. , cc. 35v-36r).
Donato Matteo Minale, tesoureiro do papa; mas depois decidira dirigir-se a Trento. E
aqui considerações políticas de vários tipos - sobretudo, a possibilidade de reconduzir
à igreja, através de Centurione, alguns dos muitos calvinistas que tinham formado em
Gênova uma verdadeira igreja - foram alegadas pelos legados para reforçar a oportu-
nidade desse processo : mas também nesse caso tomou-se cuidado para não lesar as
prerrogativas do poderoso organismo romano do Santo Ofício. Recorreu-se então a um
subterfúgio legal: Centurione foi julgado em Trento, mas pelo arcebispo de Gênova,
Agostino Salvago, "juntamente com um par desses prelados" 40 • Como dizer que se
tratava de um processo normal diante da autoridade ordinária, e que só o acaso fazia
com que se desenvolvesse em Trento? Essas e outras considerações análogas chegaram
ao conhecimento do Santo Ofício, seja diretamente, seja através da influente e hábil
mediação do cardeal sobrinho Carla Borromeo. E naturalmente o processo foi concluí-
do do modo desejado por Centurione. Porém, mais do que a conclusão, o que parece
mais significativó é o confronto que ocorreu então entre o Santo Ofício de Roma e os
cardeais legados do concílio. Esses últimos , ao defenderem seu feito , não se referiram
à autoridade do Concílio, mas refugiaram-se atrás da antiga oposição entre bispos e
frades : os quatro prelados responsáveis pelo processo, "não podemos negar - escreveram
os legados - que não sintam muito mal que os mencionados Cardeais da Inquisição
demonstrem de certo modo (como eles dizem) confiar mais no frade inquisidor de
Gênova do que neles" . Era uma defesa bastante frágil; mesmo assim, os legados não
escondiam uma crítica substancial aos procedimentos do Santo Ofício, demasiadamente
duros e não adequados à época: estavam convencidos de "que nos tempos que correm
não era conveniente usar de rigor, que , ao contrário, era necessário com modos bran-
dos e amáveis mostrar o desejo de que os desviados voltassem ao bom caminho e se
juntassem à santa Igreja, fazendo com que soubessem que ela, como benigna e piedosa
mãe, estava de braços abertos para receber a todos com caridade" 41 •
Era uma oposição fundamental: mas o tom do protesto era de quem devia su-
portar um poder superior e temível, que não se podia nem sequer roçar com as críticas.
De resto, entre aqueles juízes conciliares havia alguns julgados pela Inquisição (Egidio
Foscarari) e isso era suficiente para tornar claras as relações de poder.
40. Carta dos legados a Borromeo, Trento, 7 jan. 1563, citada por Luigi Carcereri, "Agostino Centurione Mercante
Genovese Processato per Eresia e Assolto dal Concilio di Trento (a. 1563)", em Archivio Trentino, XXI, 1906,
p. 6 do extrato.
41. Carta de 8 de março de 1563, idem, pp. 15-17 do extrato. Cf. também A. Tallon, "Le Concile de Trente et
l'lnquisition Romaine", op. cit.
A Inquisição
171
ciam bem essas coisas por meio da confissão, a colocar os legados diante do problema
da reconciliação dos arrependidos. Os legados, com cautelosas indagações a Roma,
obtiveram a licença para uma absolvição coletiva que foi dada no dia de Pentecostes de
156142 • Mas que se devia recorrer a Roma - até mesmo quando o poder de absolver os
hereges estava oficialmente entre as faculdades dos legados - era evidente para todos; e
0 comportamento cauto e desconfiado do papa Pio IV e de seu sobrinho não foi capaz
de apagar a lembrança recente de Paulo IV. A estrutura inquisitorial, fortalecida pelo
poder finalmente conquistado, chegou ao ponto de recusar qualquer colaboração com
Trento: o que pôde ser visto claramente quando um notário de Bérgamo, Vincenzo
Marchesi, herege relapso e fugido das prisões da inquisição milanesa, dirigiu-se a Trento
em 1563 e apresentou aos legados uma comovente súplica - "levou-nos verdadeiramente
à piedade e à compaixão por ele" , escreveram a Borromeo 43 • Foi necessária uma verda-
deira obra de persuasão por parte de Pio IV para convencer Michele Ghislieri a expedir
aos legados os autos em seu poder.
A esperança de um concílio capaz de sanar as fraturas religiosas e não de exacerbá-
-las demorou muito a morrer. Mas a alternativa entre inquisição e concílio foi resolvida
rapidamente pelo papado a completo favor da inquisição. Aquela congregação cardi-
nalícia da Inquisição que, em 1542, era oficialmente apresentada como uma medida
provisória à espera do concílio, vinte anos mais tarde era a titular de um poder que o
concílio mal ousava roçar.
42. A questão é tratada na correspondência dos legados com Carla Borromeo 0osef Susta, Die Rõmische Kurie und
das Konzil oon Trient unter Pius lV, Viena, 1904-1914, I, pp. 17 e 19. Cf. também Tallon, "Le Concile de Trente
et l'lnquisition Romaine", op. cit., p. 134).
43. L. Carcereri, "Appunti e Documenti sull'Opera Inquisitoriale del Concilio di Trento nell'Ultimo Período
0561-1563)", Rivista Tridentina, x, 1910, pp. 65-93; e Tallon, "Le Concile de Trente et l'lnquisition Romaine",
op. cit., pp. 142-143.
1. A opinião de seu editor, C. Corvisieri, de que se tratava justamente de um "Compendio dei processi del Santo
Uffizio di Roma da Paolo III a Paolo IV" (em Archivio della Società Romana di Storia Patria, III, 1880, pp. 261-290 e
449-471) foi contestada lucidamente por Karl Benrath ("Das Compendium lnquisitorum", Historische ?.eitschrift,
XLIV, 1880, pp. 46047 5) que reconheceu a verdadeira natureza do documento. A leitura comparada do compendium
e da cópia ad defensionem do processo Morone (consultada graças à cortesia do prof. Nicola Raponi, junto ao arquivo
particular Gallarati Scotti de Milão) levou o autor a resultados que foram expostos numa comunicação, apresentada
no Congresso de Estudos sobre a Reforma, realizado em Torre Pellice (1972), que permaneceu inédita; surgiu então
o projeto - não realizado _ de uma edição, pelo Corpus Refonnatorum Italicomm, dos autos processuais de Morone que
utilizasse O Compendium para decifrar os nomes omitidos nos próprios autos. Seguiram esse caminho, com novas e
aprofundadas pesquisas e com excelentes resultados, os modernos editores do Compendium e do processo Morone,
M. Firpo e S. Marcatto, Il Processo [nquisitoriale del Cardinal Giooanni Morone, vol. 1: "O Compendium" , Roma, 1981.
174
Morone para preparar sua defesa foi possível abrir uma brecha na luta dentro do colé io
cardinalício em meados do século XVI. Outros documentos, talvez mais significativ!s
quando se tornarem acessíveis enriquecerão a história do conflito que opôs então, e~
Roma, homens muito diferentes e concepções opostas sobre a Igreja e sobre a relacão
com os "hereges" da Reforma. Desde já, é possível entrever o documento-chave d~ssa
história naquele processo inquisitorial que foi construído a mando do cardeal e depois
papa Carafa contra o cardeal inglês Reginald Pole - o homem que preferiu não participar
da sessão do concílio de Trento em que foi aprovado o decreto sobre a doutrina da jus-
tificação, momento capital da ruptura teológica com a Reforma: o processo contra Pole
existe e foi lido - no século XX - por um estudioso ao menos (dom Giuseppe De Luca2)
que, infelizmente, não teve tempo de deixar pistas dele. Provavelmente, as tensões e as
emoções que envolvem a ruptura da unidade religiosa da cristandade ocidental são ainda
extremamente fortes , para que a Igreja romana decida-se a tornar de domínio publico as
intensas lutas que, naquela época, opuseram cardeais poderosos, candidatos ao papado:
mas é certo que esses cardeais dividiram-se não só em razão da aspiração à conquista
do poder papal, mas também do modo como pensavam usar esse poder voltado para o
mundo da Reforma.
Como evidenciou M. Firpo, reconstruindo a história do processo inquisitorial
contra o cardeal Morone, foi justamente no interior e na cúpula da Igreja que o Santo
Ofício revelou-se instrumento versátil de poder: a exclusão do papado de Reginald Pole,
o cardeal inglês amigo de Michelangelo e de Vittoria Colonna, e a onda de processos
e de suspeitas contra membros do colégio de cardeais, ilustres prelados e homens de
cultura encontraram em primeiro plano a função da congregação do Santo Ofício. A
constituição de um centro de poder desligado das instituições do governo ordinário e
coberto pelo segredo modificou substancialmente as regras do jogo. E foi justamente
no conclave aberto em virtude da morte de Paulo III que Gian Pietro Carafa lançou a
acusação de heresia contra o rival inglês: Reginald Pole suportou-a, segundo ele mesmo,
com a paciência de uma besta de carga, tal era sua boa consciência 3 • A acusação de
heresia não era, por si só, mais eficaz do que a de simonia, que não impedira Rodrigo
Borgia de tornar-se papa e de permanecer como tal; o jogo dos conclaves continuou a ser
dominado pelo peso das grandes potências e dos partidos cardinalícios. Mas os mapas
de acesso ao colégio cardinalício tiveram que dar lugar a um novo percurso, aquele que
passava através da polícia da fé. E foi justamente Giampietro Carafa, eleito papa, a ditar
a regra que excluía do direito de voto ativo e passivo em conclave os cardeais suspeitos
ou investigados por heresia: uma regra que atingia em cheio o cardeal Morone, mas que
também explicitava a nova identidade do papado da Contrarreforma4.
2. Algumas observações manuscritas de dom Giuseppe De Luca a esse propósito me foram dadas a ler pela
senhorita Maddalena De Luca, a quem muito agradeço.
3. Cf. Giuseppe De Leva, "La Elezione di Papa Giulio Ili" , Rivista Storica Italiana, I, 1884, pp. 22-38; ver P· 28.
4. A bula Cum ex Apostolatus Officio é de 15 de fevereiro de 1559 (Bullarium Diplomatum et Privilegiorum Sanctorum
Romanorum Pontificum, VI, Augustae Taurinorum, 1860, pp. 551-556). Sobre o contexto e sobre as interpretações
A Inquisição
175
que foram dadas ao documento na época, cf. Firpo e Marcatto, II Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giovanni
Morone, vol. I, op. cit., p. 139 e nota.
5. Carta circular ao inquisidor de Florença do cardeal de Santa Severina, 15 set. 1610, por ocasião da eleição de
Urbano VII (Bruxelas, Archives générales du Royaume, Archives ecclésiastiques, 1828 3ter, e. 311v).
6. Cf. Cipriano Uberti, Tavola delli lr14uisitori, Novara, Francesco Sesali, 1586.
7. P. Simoncelli ("lnquisizione Romana", op. cit. , pp. 74 e ss.) sublinhou, através da leitura da Tavola del!i Ir14uisitori,
a função de promoção desenvolvida pelo ofício inquisitorial nas carreiras dominicanas do século XVI. Quanto
ao caso de frei Aurelio, cf. Pietro Tacchi Venturi S. 1., "Diario Concistoriale di Giulio Antonio Santori", op.
1re R·1cerche su lia Storia della Chiesa nel Cir14uecento, op. cit., pp. 132-133.
c1·t ., p. 317 ; pase h·101,· -r.
8. O episódio é relatado por biógrafos de Sixto V; cf. L. von Pastor, Storia dei Papi, vol. x, Roma, 1928, pp. 25-26
e 649-650.
9. Publicado em Bolonha por Faello, em 1532.
10. Publicado em Veneza por Venturino Ruffinelli, em 1543.
11. Venezia, ad signum spei, 1549.
A Inquisição
177
12. Ou "teólogo do papa", conforme denominação vigente a partir de Paulo VI (N. do T.).
13. Cf. Pastor, "Allgemeine Dekrete", op. cit., passim. Sobre a questão da simonia, foi Girolamo Sirleto quem reco-
lheu material e levou Paulo IV a usar a segure da Inquisição contra o pestiferus {ructus dessa erva daninha; um
tratado de sua autoria sobre O tema é mencionado por P. Paschini, "Guglielmo Sirleto Prima del Cardinalato",
em Tre Ricerche sulla Storia della Chiesa nel Cinquecento, op. cit., PP· 230-231.
14. Essa bula de Paulo IV foi modificada por Clemente VIII, que remeteu ao arbítrio dos inquisidores também os
casos mais graves (cf. Albizzi, Risposta all'Historia, op. cit., p. 287).
15. Ainda Páramo fornece também os elementos de documentação (breve de Pio IV Cum nos per nostrum) e sugere
a interpretação (De Origine et Progressu, op. cit., p. 126). Todavia, a documentação mais útil para reconstruir 0
funcionamento do Santo Ofício é a editada por Pastor, "Allgemeine Dekrete", op. cit. (trata geralmente dos
mms. Barb. Lat. 1502 e 1503 da Biblioteca Apostólica Vaticana).
16. "[ ... ] Tam haeresim manifestam quam scismata, apostasiam a fide, magiam, sortilegia, divinationes, sacra-
mentorum abusus et quaecumque alia quae etiam praesumptam haeresim sapere videntur" (const. "Immensa
Aeterni Dei", Magnum Bullarium Romanum, t. IV/4, Romae, 1747, pp. 392-401.
A Inquisição
179
17. Sobre o cardeal de Santa Severina, Giulio Antonio Santoro, cf. Firpo e Marcatto, Il Processo lnquisitoriale dei
Cardinal Giooanni Morone, op. cit., vol. I, pp. 39-49. Quanto à figura do comissário ou subdelegado, cf. Vincenzo
M. Fontana, Sacrum Theatrum Dominicanum, Tinassi, Roma, 1666, pp. 540 e ss.; uma lista dos comissários
foi publicada: I. Taurisano, "S. Congregatio S. Officii, Series Chronologica Commissariorum S. Romanae
lnquisitionis ab Anno 1542 ad Annum 1916", em Hierarchia Ordinis Praedicatorum, Roma, 1916. pp. 67-78.
18. São dados retirados das atas das congregações do Santo Ofício, publicadas por Pastor, "Allgemeíne Dekrete",
op. cit., pp. 15-18.
19. Archivio di Stato dí Firenze, Tribunale della Nunziatura Apostolica, Atti criminali, f. 972, cc. 40v-41 r.
como se viu , foram os núncios junto aos duques de Saboia e de Toscana que exerceram
esse poder nas campanhas contra os valdenses ou na primeira implantação de um sistema
centralizado de controle da ortodoxia; fora da Itália, foram os núncios pontifícios na
França das guerras religiosas a fornecerem seus poderes de mediação numa realidade
dilacerada, em que a heresia era tratada pelos tribunais reais como rebelião contra a
autoridade monárquica 20 • A lição aprendida nos estados italianos teve serventia mais
tarde na relação com outros parceiros estatais. Política e direito, relações reais de força
e tradições teológicas e jurídicas são ingredientes dificilmente separáveis dessa história.
A observação vale em particular quando se examina a relação entre Roma e
os outros estados italianos: e aqui a variedade das soluções formais que compôs 0
panorama italiano do século XVI avançado foi a abertura de várias relações de força e
de conveniência recíproca. O tempo acabou por selecionar e ordenar de acordo com
linhas homogêneas o que fora tentado nos difíceis anos do início: no fim , as redes
monásticas que cobriram boa parte da península acabou desenhando urna estrutura
fortemente centralizada e passavelrnente homogênea. Mas no começo, a necessidade de
obter imediatamente resultados eficazes, de um lado, os obstáculos interpostos pelos
poderes estatais, do outro, levaram os responsáveis do Santo Ofício a se moverem para
diversas direcões. Uma delas ao menos merece ser recordada: trata-se da norneacão de
' '
inquisidores laicos. É o biógrafo de Paulo IV Carafa quem conta essa história:
O S. Ofício de Roma dispôs de valentes e zelosos inquisidores, servindo-se ainda por vezes
de seculares zelosos e doutos, para auxílio da fé, como verbi gratia de Odescalco em Como, do conde
Albano em Bérgamo, de Muzio em Milão, Pesaro, Veneza e Capodistria. Essa resolução de servir-se
de seculares foi tomada porque não só muitos bispos e vigários, frades e padres, mas também muitos
dos próprios inquisidores eram hereges 21 •
Não há dúvida de que a desconfiança de Carafa em relação aos frades era enorme;
e, por outro lado, a maior parte dos casos de heresia tratados nas duas primeiras décadas
após o início do protesto luterano foi justamente de origem conventual e monástica.
Entretanto, também é verdade que a estrutura inquisitorial dispunha de homens bem
adestrados para decifrar as heresias e expor as astúcias dos hereges. O dominicano
Giovanni de Roma, que em 1532 processou o ancião valdense Pierre Griot em Apt, foi
extremamente hábil em extrair-lhe uma descrição precisa da organização e das ideias
valdenses no momento de passagem à confissão reformada 22 • Mas, independentemen-
te do fundamento do julgamento, ele nos restitui algo da sensação de perigo que foi
percebida à época por homens corno Carafa; e confirma-nos que, naqueles primeiros
20. A bula de designação do núncio concedia-lhe os poderes de comissário pontifício para as questões referentes
à heresia nos domínios de Saboia; cf. De Simone, Tre Anni Decisivi di Storia Valdese, op. cit., p. 274.
21. O trecho de Caracciolo é citado por C. Cantu, Gli Eretici d'Italia. Discorsi Storici, Torino, 1865-1867, II, p. 339.
22. Cf. Gabriel Audisio, Le barbe et l'inquisiteur. Proces du barbe vaudois Pierre Griot par l'inquisiteur Jean de Roma (Apt.
1532), Aix-en-Provence, 1979.
A lnquisição
181
movimentos do Santo Ofício romano, procedeu-se sem nenhum respeito aos modelos
tradicionais, conferindo-se encargos especiais para investigações secretas e recorrendo-se
até mesmo aos laicos. Como em qualquer polícia secreta, a figura do agente munido de
poderes especiais era prática comum na estrutura inquisitorial. Sabe-se, por exemplo,
que os dominicanos mais hábeis e preparados - como Tommaso Scotti de Vigevano e
Matteo Lachi - foram destinados ao desempenho de missões especiais, para as quais
lhes foram conferidos poderes excepcionais (menos conhecidos, por enquanto, são
justamente os usos desses poderes e o desenvolvimento dessas missões secretas 23) . Mas
os dominicanos pertenciam institucionalmente aos corpos especiais da Igreja destina-
dos à luta contra a heresia. Mais surpreendente é o fato de que se recorresse a alguns
laicos. Mas as provas disso, de resto, estão há tempo diante dos olhos de todos: aquele
que é mencionado aqui como o inquisidor laico para Milão, Pesaro, Veneza e Capo-
distria, Girolamo Muzio, fez ele mesmo publicar os documentos dessa sua atividade
inquisitorial. Suas Vergeriane referem-se à luta contra o bispo de Capodistria Pier Paolo
Vergerio; e suas Lettere Catholiche reúnem os testemunhos epistolares de uma assídua
atividade de organização policial e de vigilância doutrinária sobre pregadores como Celso
Martinengo e Ippolito Chizzuola nos anos em torno de meados do século 24 • Emerge
claramente dessas cartas que o recurso a Muzio tornara-se oportuno não só por sua
argúcia policial, mas também porque podia garantir o favor das autoridades estatais
para providências que, entregues às autoridades eclesiásticas, podiam suscitar suspeitas
e repulsas. Havia outro aspecto relevante: os lugares da heresia coincidiam com os da
cultura laica e do saber livresco - os lugares do livro impresso, ou seja, as livrarias.
E quem melhor que um homem de letras para poder espionar o que se dizia nesses
lugares? Muzio, literato e amigo de literatos, prestava-se bem ao objetivo. Podia, desse
modo, espionar os discursos de Vergerio e combatê-los com os mesmos instrumentos:
a imprensa, as cartas. Eram cartas de delação pública, polêmicas literárias que tinham
por objeto a verdade doutrinária e que serviam ao duplo objetivo de auxiliar o trabalho
secreto da Inquisição e desenvolver uma propaganda pública como antídoto. E, como
bom literato, podia colorir com palavras e imagens as cenas do duelo, que se tornavam
selvagens provas de força contra a besta feroz do herege: "Ele [Vergerio] permanecia na
livraria da insígnia de Erasmo, e (segundo o que diz o Salmo) qual leão em espelunca
. as garras a este e aque
esten dia . 1e "25 .
23. Tommaso Scotti esteve ao lado de frei Michele Ghislieri a partir de 1553 e sucedeu-o como comissário-geral da
Inquisição romana em março de 1557. Matteo Lachi foi nomeado "secretus e peculiaris nuncius" (com amplos
poderes) por Paulo IV em 25 de outubro de 1557, logo depois de ter deposto no processo contra o cardeal
Morone (cf. as fichas pontuais de Firpo e Marcatto, Il Processo Inquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op.
cit. , vol. II, pp. 173, 260-261 e nota).
24. Cf. Lettere Catholiche del Mutio Iustinopolitano, Venezia, 1571, p. 103 (carta a dom Ferrante Gonzaga, de 16
de abril de 1551 ·sobre Celso Martinengo); p. 104 (a Annibale Grisonio, de 18 de abril de 1551, ainda sobre
Martinengo); p. 145 (a Camillo Olivo, de Venezia, 16 de fevereiro de 1552, sobre lppolito Chizzuola); e passim.
• Le "vergenane,
25 . G . M uz10, • por G . o,·olito e Irmãos, Venezia, 1550, e. 34r. Cf. P. Paschini, Píer Paolo Vergerio il
.
G iovane e la sua Apostasia.
· Un Ep,·sodi'o delle Lotte Religiose nel Cinquecento, Roma, 1925, p. 137.
A Inquisição
183
Reverendo Padre, não sei que fé eu possa dar de V. R. P. ao escrever, tendo-me vós muitas
vezes escrito que encontrais os magníficos reitores e o r. Vigário mui favoráveis , e por outro lado,
vós me escreveis terdes condenado Lazarino d 'Ardesio, herético relapso, às galés por três anos ... Não
sei de onde V. R. P. obteve autorização para poder formar tal sentença e quão ela esteja em confor-
midade com os sagrados cânones. Quem vos deu autoridade para perdoar um relapso, cousa que
jamais pretendeu a Sé Apostólica, nem este sacrossanto tribunal tem autoridade para poder fazê-lo?
E se isso tinha acontecido por desejo dos reitores vênetos, então "eles são inqui-
sidores e vós testemunha". Se era assim, a conclusão era uma só: "Este ofício não é para
V. R. e para descargo de vossa consciência será melhor escreverdes a vossos superiores
que lhe providenciem outro, do contrário ele será providenciado por cá."
Não era suficiente: segundo o estilo da Inquisição, a "culpa" jurídica era também
um pecado moral. O inquisidor de Bérgamo era convidado por Ghislieri a examinar
a própria consciência, por que se realmente tinha emitido uma sentença injusta para
"comprazer" às autoridades venezianas, então tinha incorrido também na excomunhão 30 •
Restou-nos um dossiê epistolar de Ghislieri, o dos despachos enviados por ele ao
inquisidor de Gênova. Ao folheá-lo, tem-se uma forte impressão do estilo do homem 31 •
Encontramos ali ordens detalhadas, muito precisas, sobre o que ser feito com cada um
dos réus: da tortura (o "rigoroso exame") à transmissão dos documentos processuais,
os aspectos da práxis são tratados com grande nitidez. Mas não se trata de definições
28. Sobre o caso dos cônegos, cf. o memorial anônimo e s.d. publicado por F. Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa,
pp. 43le ss.
29. Cf. Nicole Lemaitre, Saint Pie V, Paris, 1994, pp. 53 e ss.
30. Carta de 30 de novembro de 1555, conservada em cópia em ASVen., Sant'Ufficio, b. 160, cc. n.n.
31. Cf. Pastor, Storia dei Papi, op. cit., vol. VI, p. 486.
abstratas : as regras gerais que podem ser colhidas dessas cartas são poucas. Somente as
fundamentais: por exemplo, que o inquisidor deve investigar apenas os casos de suspeita
de heresia (quae sapiunt haeresim) "e não outros delitos, que se referem ad crimen lesae
maiestatis ou a outros erros" 32 • O que se evidencia é o trabalho a ser feito em terreno
delimitado com tamanha clareza: e o trabalho diário é o trabalho duro e odioso do
esbirro. É preciso arrancar a verdade das testemunhas, com ameaças:
Que se lhes advirta que não faltem à verdade, pois se forem apanhados mentindo serão
castigados mais duramente do que se fossem hereges; e hoje, aqui em Roma, está sendo fustigado
um frei Gio. Antonio de Faenza, da ordem dos Servos, por ter deposto em falso contra um frade de
sua religião 33 .
Quem não dá ouvidos aos convites dos inquisidores é para ser punido, aliás,
"merece todo o mal" ; e se há alguém que se gaba de ter "enganado o Ofício" , Ghislieri
quer ter testemunhos precisos do fato , "pois faria com que outras vezes não tivesse do
que se vangloriar" 34 • O "Ofício" sobrepõe,se, como deve sobrepor,se, a todos os pen,
sarnentos do inquisidor: "Esperamos então servir ao Senhor neste santo Ofício não
apreciando calúnias, porque convém pressupor que quem entra nesse Ofício torna,se
odioso ao mundo; mas tanto quanto o mundo tem ódio dele, tanto o Senhor haverá
de nos resguardar e seremos amados por ele" 35 • Para servir ao "Ofício" era preciso co,
nhecer e aplicar as leis; era preciso sobretudo indagar, conectar as pistas, desenvolver
um verdadeiro trabalho policial, de esbirro; Ghislieri o fazia. Suas cartas mostram como
seguisse as pistas dos suspeitos, levando em conta cada indício e determinando instruções
precisas para interrogar as testemunhas sobre bem determinados pontos. Quando se
passava às punições, mostrava,se duro, inexorável: se um frade tinha sido herege durante
anos e ensinara coisas erradas, não se podia tolerar que lhe fosse concedida permissão
para abjurar secretamente "por respeito a ele e à sua religião. Devia ele ter respeitado
a honra de Deus e a saúde do próximo". Por isso, abjuração pública e solene para o
frade; mas, ao mesmo tempo, broncas para o inquisidor que perdera tempo escrevendo
para Roma em busca de conselho e tentara ajudar o culpado 36 •
O Grande Inquisidor devia se tornar papa: mas sem esquecer nada do estilo e das
convicções amadurecidas nos anos anteriores. Seu dever de juiz supremo em matéria
de heresia absorveu,o mais do que tudo. "Vê todos os processos e lê todos os escritos",
32. Carta de 3 de dezembro de 1552 a Girolamo Franchi, inquisidor de Gênova, em Biblioteca Universitária de
Gênova, ms. E. VII. 15, c. 6r.
33. Carta de 7 de novembro de 1554, idem, c. 13r.
34. Carta de 5 de março de 1556, idem, c. 40r. Que a coisa incomodasse Ghislieri pode ser visto na carta seguinte,
em que torna a pedir uma verificação testemunhal "das palavras com que ele maculou o Ofício" (carta de 2
de abril de 1556, idem, c. 41 r).
35. Carta de 28 de maio de 1556, idem, c. 47r.
36. Carta de 20 de agosto de 1556, idem, c. 65r.
A inquisição
185
Se considerássemos por bem fazer em pedaços todos os frades de são Domingos, nem por
isso teríamos medo nem deixaríamos de seguir com galhardia por esse bom caminho que tomamos
37. Carta à cunhada Chiara; reproduzo a citação de Sergio Pagano, Il Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 36.
38. Idem, p. 144.
39. Carta do cardeal Rebiba ao inquisidor Camillo Campeggi de 27 de março de 1568, citada em idem, pp. 144-
-145.
40. Idem, p. 54.
de tentar debelar os hereges. Nós estamos no mundo para guiar os homens até o céu: tanto rn .
ais
nós também devemos tentar chegar a ele: o que se faz por via de martírios, como fizeram esses d .
Ots
padres, cujas almas subiram diretamente aos céus 41•
A Inquisição
187
seriam resolvidos pelo Deus dos exércitos 46 • Era uma concepção da guerra santa mais
feroz e intransigente da que se atribuía aos turcos. Tanta dureza e tão feroz fanatismo
suscitavam perplexidade e discussões nos próprios ambientes da Cúria romana. Pelo
menos, observaria alguns anos mais tarde Alberico Gentili, os turcos combatiam apenas
os que consideravam infiéis e não faziam guerra contra seus hereges, os persas 47 •
A pureza da fé tornou-se um traço essencial do poder papal, o próprio fundamento
da ideia do primado romano: foi essa a herança permanente que Pio V deixou a seus
sucessores. A tutela dessa interpretação do primado teve importantes consequências
políticas. O caso do processo contra Bartolomé de Carranza, arcebispo de Toledo, detido
em 1559 pela Inquisição espanhola e objeto de um longo conflito entre Madri e Roma,
foi o ponto de confronto da interpretação romana das tarefas do tribunal da fé 48 • Pio V
inaugurou seu pontificado com uma guinada significativa: Carranza devia ser transferido
para Roma para ser julgado. Nas doutrinas atribuídas a Carranza, processava-se todo
um período de incertezas doutrinárias e de evangelismo anti-institucional. Mas com a
instauração do processo de um arcebispo espanhol em um tribunal eclesiástico romano
e não no correspondente sujeito ao rei de Espanha, Pio V indicava a afirmação de um
princípio que , tendo Roma como capital supra-estatal do corpo eclesiástico, era assim
subtraído até do mais católico dos reis. Esse princípio esteve no centro da dura batalha
travada com os estados católicos para impor a publicação da bula ln Coena Domini: hou-
ve, para isso, tensões notáveis, que ameaçaram prejudicar as alianças contra os turcos e
contra os huguenotes franceses , questões que no entanto interessavam ao papa. Entre
os estados italianos, Veneza conseguiu opor alguma resistência somente resguardando-
-se (como escreveu o núncio G . A. Facchinetti) "com o escudo do rei Felipe que porta
o nome Católico e possui teólogos mui eruditos junto de si" 49 •
O papa era também soberano de um estado territorial: e aqui a música era
diferente. A brandura e os escrupulosos procedimentos judiciários acionados para
Carranza não encontram nenhuma correspondência com os procedimentos utilizados
para reprimir a dissensão herética e as autonomias citadinas no Estado pontifício: em
Faenza, o conselho citadino foi decapitado; seus membros mais importantes foram
processados e mandados ao patíbulo em Roma 50 •
Dizia-se que a heresia minava o poder desde· as bases: mas o único a ser verda-
deiramente ameaçado com isso era o poder do papa, em sua dupla natureza. As "duas
46. A discussão é referida pelo cardeal Giulio Santoro (Tacchi Venturi, "Diario Concistoriale di Giulio Antonio
Santori", op. cit., pp. 338-339; pp. 44-45 do extrato).
47. Veja-se do autor deste volume "La Guerra Giusta nel Pensiero Politico Italiano della Controriforma", em
Odrodzenie i Reformacja w Polsce, XXXIX, 1995, pp. 31-49.
48. Sobre o caso de Carranza, é obrigatório o recurso à imponente documentação publicada por Jgnacio 1. Tellechea
ldígoras; cf. particularmente Fray Bartolomé Carranza. Documentos Históricos, vol. 5, Madrid, 1962-1976; e para
a fase romana El Processo Romano del Arzobispo Carranza (1567-1576), Roma, 1988.
49. Despacho a Michele Bonelli de 10 de dezembro de 1569, em Nunziature di Venezia, vol. IX, 26 mar. 1569 - 21
maio 1571, org. por Aldo Stella, Roma, 1972, p. 169.
50. Cf. Francesco Lanzoni, La Controriforma nella Città e Diocesi di Faenza, Faenza, 1925.
51
almas" que habitavam o corpo da autoridade papal encontravam-se ali • As fogueiras
acesas pelo papa Pio V e sua política da guerra santa - mais contra os hereges do que
contra os infiéis - estiveram estritamente ligadas a seu uso da Inquisição como "santo
ofício" a predominar sobre todos os demais. Depois dele, ninguém mais interpretou em
termos tão absolutos e universalistas uma tal concepção da pureza da fé . Uma herança
permanente que esse período de luta sem quartel contra o erro doutrinário deixou ao
poder papal foi, quanto muito, a possibilidade de usar o argumento da heresia como
uma espada de dois gumes: podiam ser punidos os hereges como autores de atentado
contra a dignidade papal e os autores de atentado contra a pessoa do papa como hereges.
E ambos os usos encontram-se amplamente comprovados no decorrer do século XVII.
Quando o cardeal Barberini teve de explicar às autoridades inglesas por que a Inqui-
sição romana mantinha preso durante três décadas um pobre eclesiástico anglicano,
culpado de ter chamado o papa "Anticristo", aferrou-se ao argumento de que o insulto
atingia sua Santidade como príncipe temporal, mesmo sem considerar sua dignidade
de chefe da Igreja 52• E, por outro lado, quem organizava conjuras contra a pessoa do
papa era condenado à morte com o argumento tradicional da Inquisição contra os
hereges, a acusação de lesa-majestade divina e humana 53 . Mas era um uso estritamente
defensivo, que não tinha mais a grandeza do projeto de fanática e agressiva intolerância
do Grande Inquisidor.
51. A imagem é de Paolo Prodi, II Sovrano Pontefice. Un Corpo e Due Anime, op. cit.
52. A carta do cardeal Barberini, de 26 de novembro de 1536' é citada por R• W . L·1ghtb own, "The p rotestan t
Confessor, or the Tragic History of Mr. Molle", em England and the Continental Rena1ssance.
· Essays m
· Honour
od ]. B. Trapp, org. por Edward Chaney e Peter Mack, Woodbridge, 1990, pp. 239-256; em part. p. 247. Molle
fora capturado enquanto acompanhava um nobre pupilo numa viagem educativa à Itália.
53. Cf. o caso descrito por Luigi Firpo, "Esecuzioni Capitali in Roma (1567-1671)", em Eresia e Riforma nell'Italia
dei Cinquecento, Miscellanea I, Firenze/Chicago, 1976, pp. 309-342; em part. p. 318.
A Inquisição
VI
A CRUEL INQUISIÇÃO
por ser divino e celeste o encargo que ele tem, deve consequentemente mostrar-se muito íntegro
ao proceder judicialmente, muito secreto ao encaminhar as coisas, caridoso ao governar os detentos,
cauto ao acreditar no que dizem as testemunhas, condescendente ao defender os réus, maduro ao
decidir os casos, benigno ao receber os penitentes, grave ao sentenciar os culpados, severo ao punir
os pertinazes, constante ao executar as sentenças, e tal por fim que em todas suas ações à dignidade
3
da personagem junte sempre uma angélica pureza de Paraíso •
Prattica deU'Officio della S. Inquisitione de Eliseo Masini lê-se: "Inquisidor maravilhoso foi Deus abençoado" (cito
a partir da edição Roma, tipografia da R. Câmera Apostólica, 1705, p. 1; aqui, à p. 3, a passagem sobre como
deve "se mostrar" o inquisidor). Sobre a atividade literária de Locati, cf. Simon Ditchfield, "Umberto Locati
O. P. (1503-1587). lnquisitore, Vescovo e Storico", Bollettino Storico Piacentino, LXXXIV, 1989, pp. 205-221.
4. "lnquisitor igiturvelut iustus iudex, sic teneat in condemnationibus penalibus rigorem iusticie quod non solum
in mente servet interius, sed etiam in facie ostendat alterius compassionem, ut per hoc vitet notam indignationis
et iracundie, que argumentum et notam crudelitatis inducit" (Practica Inquisitionis Heretice Pravitatis, auctore
Bernardo Guidonis ... , ed. C. Douais, Paris, 1886, p. 233; retomo a citação de Camillo Henner, Beitritge zur
Organisation und Competem: der Papstlichen Ketzergerichte, Leipzig, 1890, p. 58).
5. Cf. William Monter e John Tedeschi, "Toward a Statistical Profile of the Italian lnquisitions, Sixteenth to
Eigteenth Centuries", em G. Henningsen e J. Tedeschi (orgs.), The Inquisitions in Early Modem Europe, Studies
on Sources and Methods, Dekalb, 1986, pp. 130-157.
6. Cf. Locati, ]udiciale Inquisitorum, op. cit., pp. 209-210.
7. Ato de 29 de abril de 1557, publicado por Ludwig von Pastor, Allgemeine Dekrete, p. 21.
A Inquisição
191
sabido, o tribunal da Inquisição não se manchava com o sangue dos réus: a sanção mais
dura que podia infligir era a excomunhão. Quando se tratava de mandar à morte os
condenados, havia sido encontrada a escamoteação de uma fórmula de entrega na qual
não só não se falava em morte física (mas apenas de excomunhão), bem co mo ainda por
cima os juízes eclesiásticos pediam à autoridade secular para moderar a punição flsica
e abster-se de derramar sangue. Segundo o franciscano espanhol Alfonso de Castro,
essa fórmula queria dizer exatamente o que estava escrito ali : os julzes eclesiásticos não
só não pediam a morte do herege, como pediam justamente o contrário 8• Mas, para
além dos esquemas formais - e que se tratasse de puro formalismo era reconhecido até
pelos especialistas em procedimentos inquisitoriais, como Francisco Pena - a realidade
era bem diferente: quando Pio V condenou Pietro Carnesecchi à morte, estava bem
decidido a vê-lo morto, embora no final da sentença contra o protonotário florentino
estivesse escrita a ordem de "moderar nossa sentença relativa à pessoa em questão, sem
risco de morte e efusão de sangue" 9 •
Na realidade, as coisas aconteciam de modo bem diferente de como essa imagem
de fachada queria fazer crer. De um lado, no plano prático, as autoridades da Inquisição
sempre fizeram de tudo para conseguir que os hereges excomungados fossem condenados
à morte com a máxima solicitude e da maneira mais clamorosa; de outro, a jurispru-
dência inquisitorial tratou explicitamente da questão de como obrigar as autoridades
laicas a mandarem à morte os hereges. O "braço secular" tinha sua própria autonomia a
respeito, motivo pelo qual não era infrequente o caso de sentenças de excomunhão que
demoravam a transformar-se em condenações capitais. Mas a jurisprudência inquisitorial
tinha suas astúcias policiais: as autoridades renitentes sempre podiam ser acusadas de
amizade suspeita com os hereges e submetidas por sua vez a processo inquisitorial 10 • De
fato, na práxis aquela entrega equivalia à condenação à morte: o herege excomungado
e entregue ao braço secular era executado, geralmente na fogueira. Se as autoridades
políticas tergiversavam e adiavam a execução, então chegavam as gritas pressantes de
Roma. No célebre caso de Fanino Fanini, o duque de Ferrara - que tinha aproveitado
a situação de sede vacante entre Paulo III e Júlio III para suspender a execução de Fa-
nino - foi convidado com dura insistência a mandar cumprir essa morte, que era tão
grata (vehementer gratam) ao papa 11 •
As razões de humanidade veem-se apoiadas mais pelas autoridades políticas.
, Quando o herege de Módena Marco Magnavacca foi condenado pela Inquisição, 0
conselho da cidade de Módena apelou ao duque de Ferrara em nome dos sentimentos
8. Alfonso de Castro, De Iusta Haereticorum Punitione, Venetiis, ad signum spei, 1549, e. 14.
9. "Estratto del Processo di Pietro Carnesecchi", org. por Giacomo Manzoni, em Miscellanea di Storia Italiana,
Torino, 1870, pp. 572-573.
10. Essa era a sugestão de Antonio de Sousa, ''Aphorismi lnquisitorum", Tournoni, 1633, liv. lll: De Paenis Haere,
ticorum, pp. 413 e ss.
11. "Fades enim rem ipsi Deo et nobis vehementer gratam tibique honorificam , et populis tuis, ut in fide catholica
conserventur, admoêlum salutarem" (carta de Júlio lll, de 31 de maio de 1550, em B. Fonta na, Rena ta di Francia
Duchessa di Ferrara, II, Roma, 1893, pp. 520-521).
A Cruel Inquisição
192
de "compaixão pela mísera mulher e seus cinco filhos pequenos, incapazes de ganharem
o sustento" 12• Mas não são expressões que devam ser tomadas muito ao pé da letra.
Neste caso, não seria possível entender por que sentimentos do gênero não encontravam
espaço quando se tratava de mandar executar os condenados pelo tribunal criminal.
No mesmo documento, há um sinal que pode apontar o caminho certo: é dito que a
cidade não desejaria assistir a um espetáculo "tal que em nossa memória ainda não foi
visto por aqui" . Ora, é evidente que outras execuções tinham ocorrido e outras deve-
riam ocorrer, como se pode observar na lista de justiçados de Módena 13 • Aqui se faz
referência a um aspecto específico da execução pública do herege: da heresia a entidade
coletiva que era a cidade deduzia, evidentemente, uma mancha, uma nota de infâmia
que se tentava evitar a qualquer custo ou pelo menos esconder. Um acordo com Roma
permitiu chegar a uma solução de compromisso: Magnavacca foi estrangulado durante
a noite na prisão para depois ser queimado na fogueira em praça pública. Sinal de que
não se tratava tanto da "desumanidade" da execução, mas do caráter do ritual público,
que de qualquer modo era considerado desonroso para a coletividade.
O episódio de Módena encontra confirmação em todas as controvérsias em
matéria de heresia e de inquisição que então opuseram os estados citadinos italianos
à sé romana. Já vimos como se opunham, no caso veneziano, uma vontade romana de
organizar autos de fé públicos e a surda resistência veneziana em relação a tais exibi-
ções. É uma oposição que se encontra mais ou menos nos mesmos termos em muitos
episódios relativos a outros estados italianos. Lucca resistiu vitoriosamente, como
vimos, à introdução da Inquisição romana porque não tolerava a mancha da "infec-
ção" herética. Em Mântua, em 1568, um pregador franciscano elogiou publicamente
a cidade e delongou-se em "chamá-la católica"; o inquisidor, apoiado por Pio V, reagiu
imediatamente, considerando o elogio "uma mentira perante este Santo Ofício e ao
próprio papa" 14 • Ora, nas representações tradicionais da cidade, a candura imaculada da
fé sempre desempenhara papel destacado. No que se refere a Mântua, basta remontar
a 1541 para encontrar a publicação de um sermão do cônego regular Callisto Fornari,
dedicado à exaltação da cidade como identidade coletiva, protegida por Deus por ser
local de culto sem nódoa. Era, vale a pena notar, um sermão sobre o texto de Aggeo
de evidentes ecos savonarolianos 15 • Desde os tempos de Savonarola em Roma, eram
toleradas de má vontade esse gênero de representações, pois de modo mais ou menos
explícito a antítese entre a cidade santa e a Babilônia infernal sugeria sempre uma com·
paração negativa com a sé papal. Por volta de meados do século XVI, o papado teve força
para derrubar o esquema tradicional e impor um modelo novo que atribuía a Roma
a missão de guardiã da fé, capaz de desencavilhar a peste herética de todas as outras
12. Carta de Francesco Comi, 6 set. 1568 (Archivio de Stato di Modena, lnquisizione, b. 4).
13. Conservada no Arquivo Municipal de Módena, Vacchetta delli Giustiziati.
14. Pagano, II Processo di Endimio Calandra, op. cit., pp. 73 e ss.
15 • Expositione di Aggeo propheta, nel Duomo de Mantua predicata per il Reverendo Padre Don CaUisto Placentino..., Padova,
G. M. Simoneta de Cremona, 1541.
A Inquisição
193
16. Uma comparação entre cerimônia romana e cerimônia ibérica do auto de fé é proposta por F. Bethencourt,
num estudo que dedica grande e talvez excessiva importância aos aspectos cerimoniais (l:Inquisition à l'époque
modeme, op. cit., pp. 306 e ss.), mas que acentua justamente o désinvestissement cérémoniel italiano como elemento
representativo das dificuldades de afirmação simbólica da Inquisição romana em um contexto de multiplicidade
de poderes.
17. Theatrum Crudelitatum Haereticorum nostri Temporis, Antverpiae, apud Adrianum Huberti, 1592, p. 69: "lnquisi-
tionis Anglicanae et facinorum crudelium machiavellanorum in Anglia et Hibernia a Calvinistis protestantibus,
sub Elizabetha etiamnum regnante peractorum, descriptiones" ·
A Cruel Inquisição
194
I
das fronteiras confessionais o episódio de Serveto estava destinado a causar tais !/
polêmicas , devemos reconhecer que a guinada desse episódio era o resultado que
ocorrera tempos antes . I
,J
18. Pasquino in Estasi Nuovo e Molto Piu Pieno ch'el Primo, Roma (aliás, Venezia), 1546, e. L 8rv; cf. A. Biondi, "Il
Pasquillus Extaticus di C. S. Curione nella Vita Religiosa Italiana della Prima Metà del '500", Bollettino della
Società di Studi Valdesi, n. 128, dez. 1970, pp. 29-38 (e do mesmo o verbete "Curione", em DBI, vol. 31, Roma,
1985, pp. 443-449). .
A Inquisição
195
professarem a verdade evangélica" 19 • Era o que se lia num escrito consolatório, elaborado
originalmente para os luteranos alemães após a dieta de Augusta e traduzido para os
italianos após a reviravolta de 1542. Mas os homens da primeira fase do movimento
reformador, quase sempre de cultura monástica, não se escandalizavam facilmente com o
recurso à violência. O que os ofendia era a traição da verdade evangélica, o acúmulo de
erros e superstições que viam nos adversários, contra os quais invocavam de bom grado
a ira de Deus e a dos homens. Num dos textos mais populares da nova fé , a questão era
apresentada com as palavras de santo Atanásio contra os arianos: melhor fugir que ser
perseguido, melhor esconder,se que morrer 20 • A questão devia mudar de aspecto com
o duro ataque de Calvino a quem não professava abertamente sua fé.
No entanto, no momento do conflito, prevalecia a exaltação do desafio, a con,
fiança na vitória: "Sejam feitas inquisições, apreendam,se os livros - escrevera o exilado
Bernardino Ochino - que agora multiplicou,se de tal modo a bendita semente de
Abraão [...] que qualquer remédio que se tente em contrário resultará inútil, e disso o
processo que se verá a cada dia dará enorme testemunho" 21 • Quando aquela confiança
na vitória cedeu lugar ao medo da derrota ou à resignação diante de uma ruptura con,
solidada e de uma longa e cansativa guerra de posição, aquele tribunal já visto como
instrumento do Anticristo foi reconhecido como o responsável pela frustrada vitória
da Reforma. O cárcere e o patíbulo, a tortura e a confissão de fé diante do inquisidor e
do carrasco tornaram,se os temas exaltantes de uma nova Igreja apostólica. A Reforma
tinha encontrado a Inquisição. Da literatura de propaganda que adentrava os muros
das prisões até as relações das execuções capitais das novas testemunhas da fé, cresceu e
agigantou,se a sombra carregada de uma potência diabólica. Era uma novidade absoluta;
é certo que também os hereges dos séculos precedentes - cátaros, valdenses, "espirituais"
ou fraticelli - tinham visto na Inquisição uma criatura do Anticristo. Mas dessa vez as
dimensões do conflito eram bem diferentes; e a literatura de propaganda pôde contar
com as tipografias clandestinas dos países católicos e com as suíças e alemãs conquis,
tadas pela Reforma. A crueldade da Inquisição e o heroísmo dos mártires renovaram
pelo contrário as inflexões da Igreja dos primeiros séculos. O cárcere e a tortura de um
lado, a firme resistência do mártir do outro: é este o quadro que se encontra e se repete
em opúsculos e cartas transmitidos de mão em mão, manuscritos e impressos. Era uma
19. (Urbanus Rhegius] Libretto Consolatorio a li Perseguitati per la Confessione de la Verità Evangelica, Milano, 1545
(mas provavelmente Venezia: cf. Silvano Cavazza, "Libri in Volgare e Propaganda Eterodossa: Venezia 1543-
-1547", em Libri, Idee e Sentimenti Religiosi nel Cinquecento Italiano, Módena, 1987, p. 22.
20. "Nam si fugere malum est, perrsequi multo deterius, Hic quidem ne moriatur, absconditur" (Unio Hermani
Bodii divini verbi praeconis vocalissimi ex Ecclesiae doctoribus selecta, Lugduni, Janum Mounier et Jacobum
Charretier, 1533, c. 212v).
21. Carta de Bernardino Ochino a um tal B. D., s.d. mas correspondente "aos primeiros dias da estada em Gene-
bra", segundo Benedetto Nicolini, Aspetti della Vita Religiosa Politica e Letteraria dei Cinquecento, Bologna, 1963,
pp. 90-97, ver p. 91. A carta é conservada num códice que pertenceu a Vittore Soranzo (BAV, Vat. Lat. 10755,
·a de documentos chamou recentemente a atenção P. Simoncelli, "Inquisizione
c. 158 t1): sob re essa cres to matl
Romana", op. cit.
A Cruel Inquisição
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!
literatura que surgia de imediato e divulgava-se prontamente, no próprio lugar onde 0 f
mártir era preso e morto: frei Baldo Lupetino, encarcerado em Veneza por heresia, era
interrogado em outubro de 1547 e em dezembro daquele mesmo ano era publicado em
Veneza o texto reelaborado de seu interrogatório 22 • Fanino Fanini era mandado à morte
em 1550 e logo saía publicado o relato de seu caso, por obra de Francesco Negri. A
partir de então, os cárceres e os patíbulos da Inquisição tornaram-se um lugar familiar
para os leitores de toda a Europa: a experiência prisional, no início, foi experiência di-
reta ou imaginária dos cárceres da Inquisição 23 • O mundo de imagens e de sentimentos
elaborado à época pairou por muito tempo sobre as interpretações da Reforma, de seus
sucessos e, sobretudo, de seu fracasso na Itália. Os historiadores que se ocuparam do
assunto entre os séculos XIX e XX 24 consideraram que o confronto das forças podia ser
esquematicamente remetido a esses dois termos, de um lado a Inquisição e do outro a
Reforma. Sobre esse fundo , insinuou-se ainda outro tema, mais especificamente italiano,
dessa tradição, o que insiste na difusão das ideias da Reforma somente nos círculos dos
homens de letras, círculos que pareceram caracterizados por uma substancial fraqueza
moral. Essas duas vertentes do discurso - a pressão inquisitorial e a fraqueza moral
dos italianos - têm raízes distantes, na publicística dos primeiros anos de atividade do
Santo Ofício na Itália.
Mas a questão dominante que teve de ser respondida já naquela época dizia
respeito justamente à relação entre a violência e o Evangelho, entre o uso da força e
as questões de fé. No âmbito teórico, o armamentário tradicional dos teólogos tinha
os argumentos prontos para a resposta: mas não se tratava apenas de conduzir uma
discussão entre teólogos profissionais. A repressão da heresia adquiria rapidamente
características de grande amplitude e assim também o protesto e a reação das consciên-
cias ofendidas. Os teólogos afanaram-se para explicar seus raciocínios, descendo até o
terreno da polêmica em vernáculo: os hereges devem ser queimados, escreveu o fran-
ciscano Giovanni de Fano, assim corno se queima a má semente da zizânia quando se
colhe o trigo 25 • A imagem, tirada da parábola (Mat. 13, 24-30), podia na realidade levar
à direção oposta: Cristo tinha dito para não arrancar a zizânia para não correr o risco
de arrancar também a boa semente. Mas desde muito a parábola evangélica tinha sido
virada na direção exegética mais coerente em relação às novas características assumidas
pela questão da heresia e da impiedade no mundo cristão em relação à tradição do
22. "Articoli proposti a fra Baldo preggione in San Marco, con la risposta de essa frate" : cf. Cavazza, "Libri in
Volgare", op. cit., p. 23 e nota 75.
23. A historiografia moderna sobre a prisão, ao contrário, não leva em consideração isso; cf., por exemplo, Pie-
ter Spierenburg, The Prison Experience. Disciplinary lnstitutions and Their lnmates in Early Modem Europe, New
Brunswick/London, 1991, que, no entanto, faz referência ao texto de Mabillon sobre as prisões das ordens
religiosas (p. 14).
24. Cf., por exemplo, T. MacCrie, Histoire des progres et de l'extinction de la Reforme em Italie au seizieme siecle, Paris/
Geneve, 1831; Buschbell, Reformation und lnquisition in Italien, op. cit.
25. Opera Utilíssima Volgare Chiam.ata lncendio di Zizanie Lutherane, Cioe contra la Pemitiosissima Heresia di Martin
Luthero, Bologna, tip. G. B. Faello, 1532.
A Inquisição
197
Os hereges são lobos em vestes de cordeiros, e por isso devem ser mortos [... ] Os hereges devem
ser queimados e a igreja communiter que ima-os, como queimou aquele homem diabólico, Joanne Huss,
favorito de Lutero, o qual merece etiam ele ser queimado [... ] Isso deveria ser feito etiam àqueles que
possuem os livros do perdido Lutero [... ]
26. Sobre a tradição exegética cf. Roland H. Bainton, "The Parable of the Tares as the Proof Text for Religious
Liberty to the End of the Sixteenth Century", em Church History, n. 1, jun. 1932, pp. 67-89 e, do autor deste
volume, "Il Grano e la Zizzania: L'Eresia nella Cittadella Cristiana", em L'Intolleranza: Uuguali e Di11ersi nella
Storia, org. de P. C. Bori, Bologna, 1986, pp. 51-86. Sobre a reviravolta cristã em relação ao mundo antigo,
veja-se o ainda fundamental estudo de Arnaldo Momigliano, Empietà ed Eresia nel Mondo Antico, op. cit.
27. Alphonsus a Castro, De lusta Haereticorum Punitione, op. cit.
28. Ver o clássico estudo de Delio Cantimori, Eretici Italiani del Cinquecento (1939), nova edição, Torino, 1992.
A Cruel Inquisição
198
29. O tema foi desenvolvido por Calvino em sua Defensio Orthodoxae Fidei (Calvini, Opera, VIII, pp. 453-644).
30. Sobre ele, veja-se do autor deste volume "Echi ltaliani della Condanna di Serveto: Girolamo Negri", Riliista
Storica Italiana, 90, 1978, pp. 233-261.
31. Sobre o caso de Spiera e sobre a discussão que seguiu-se a ele, remete-se a Cantimori, Eretici Italiani del Cinque-
cento, op. cit.
A Inquisição
199
execução. Narrava-se ali que Fanino, preso pelos ministros do Anticristo, chamados
"lnquisidores" 32 , permanecera preso muito tempo e que por fim somente a insistente
solicitação feita pessoalmente por Julio III através de repetidas cartas ao duque de Ferrara
levara à execução da sentença de morte. Francesco Negri relatava ainda as tentativas feitas
até O fim para convencer Fanino a abjurar. Os companheiros de prisão exortaram-no a
pensar em sua família , que ficaria abandonada e desprotegida; mas Fanino retrucara que
Deus jamais abandona seus eleitos e seus argumentos tinham comovido e convertido os
demais presos. Até mesmo o frade que viera confessá-lo e o carrasco que o recebera no
patíbulo tinham ficado tocados por aquele modelo de morte cristã. Fanino não somente
recusara-se a confessar, como também a beijar o crucifixo que lhe fora oferecido à saída
da prisão: não precisava de um pedaço de pau feito pelos homens, porque Cristo estava
dentro dele. Era um modelo de morte cristã: esses mártires enfrentavam a morte com
beatitude, coisa que aqueles dominicanos que os enviavam ao patíbulo, verdadeiros
ministros do Anticristo, jamais fariam .
O relato de Francesco Negri era preciso e rico em pormenores: a crônica daqueles
dias, os diálogos travados durante a execução entre o condenado e os vendedores da
praça, mas também os bastidores de dura determinação das autoridades romanas foram-
-lhe comunicados por fontes bem informadas. Os documentos de arquivo revelaram a
verdadeira saraivada desferida de Roma pelo cardeal Carafa e o papa Júlio III para fazer
com que o duque de Ferrara ordenasse essa execução capital, não obstante as cartas
suplicantes da mulher. Enquanto Júlio III mandava cartas oficiais pedindo a morte de
Fanino, Carafa enviava mensagens por meio do orador de Ferrara Giulio Grandi: entre
insinuante e ameaçador, dizia zelar pela honra do duque, aludia à contaminação herética
que ameaçava a própria duquesa, relatava discursos de "reprovação" feitos pelo papa
na congregação do Santo Ofício e terminava oferecendo sua proteção 33 • A chantagem
funcionou: o duque respondeu que provaria ser "príncipe cristão e católico" e indicou
que o faria justamente "no caso desse Fanino de Faenza, que se encontra preso nesta
terra" 34 • No dia 22 de agosto, o "corpo abrasado" de Fanino, morto "por consenso da
Sagrada Inquisição ... foi lançado ao Pó como merecia" 35 •
Depois da segunda metade do século, martirológios protestantes e literatura
variada difundiram continuamente imagens terrificantes da obra da Inquisição. Em
1552, Ortensio Lando publicou um Catálogo dos Modernos Mortos por Fogo que ia do
nome de Savonarola ao de um tal "N. de Asola, de Treviso ... queimado por ser ana-
batista", no qual justamente se reconheceu o bispo anabatista Benedetto d'Asolo,
mandado à fogueira em Treviso em 17 de março de 1551; em 1554 foi publicada em
32. "Ab Antichristi ministris lnquisitoribus, quos vocant" (De Fanini Fat1entini, ac Dominici Bassanensis morte, qui
nuper ob Christum in Italia Rom. Pon. iussu impie occisi sunt, bret1is historia, Francisco Nigro Bassanensi authore, Cla-
vennae, 31 out. 1550, c.4).
33. Despacho de Giulio Grandi de 18 de julho de 1550, publicado por Fontana, Renata di Francia Duchessa di
Ferrara, II, op. cit., pp. 278-279.
34. Carta de 29 de julho, idem, pp. 276-277.
35. Anotação do registro dos executados, idem, p. 279.
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200
36. Sobre Lando cf. Silvana Seidel Menchi, "Spiritualismo Radicale nelle Opere di Ortensio Lando Attomo al
1550", Archiv für Reformationsgeschichte, LXV, 1974, pp. 210-276; em part. p. 274. Sobre Giovanni Buzio de
Montalcino, cf. o verbete redigido por John Tedeschi, DBI, vol. 15, Roma, 1972, pp. 632-634.
37. Hieronymus Marius, Eusebius CaptitJUS, SitJe Modus Procedenti in Curia Romana contra Lutheranos ..., Basileae,
1553; restaurado em Zurique, por J. Wolfius, em 1597. O autor é o médico de Vicenza G. Massari, exilado da
Itália em 1551, com recomendação de Vergerio a Bullinger (cf. Opera Calvini, XV, CR 43, col. 45); a carta de
recomendação de Vergerio, datada de 30 de abril de 1551, está em Heinrich Bullinger, Korrespondenz mit den
Graubündem, publicada por Traugott Schiess, Nieuwkoop, 1968, vol. I, p:'200.
38. Cf. Jean Crespin, Histoire des ways tesmoins de la vérité de l'Evangile qui de leur sang l'ont signée, depuis Jean Hus
jusques au temps present, reimpressão anestética a partir da edição de 1570, org. por L.-E. Halkin, Liege, 1966.
Sobre Crespin e sobre os martirológios da Reforma cf. Jean-François Gilmont, "Les martyrologes du XVIE siecle",
em "Ketzerverfolgung im 16. und frühen 17. Jahrhundert", em Wolfenbütteler Forschungen B. 51, Wiesbaden,
1992, pp. 175-192.
39. Sobre esses e outros martirológios da Reforma (como o de Adrian van Haemstede) cf. Gilmont, "Les martyro-
loges", op. cit. , pp. 175-192.
A Inquisição
201
procedimentos realizados por Gian Pietro Carafa 41 • Mas a contestacão mais dura foi a
movida pelas vítimas, que opuseram à justiça da Inquisição a pala;ra do evangelho: e
talvez a formulação mais precisa desse argumento foi a do ferreiro Ambrogio Castenario,
do Friuli, segundo o qual "não se encontrava absolutamente no novo testamento que
Deus tenha ordenado que alguém deva ser morto por sua fé" 42 •
Diante desse fogo cerrado de acusações , a instituição inquisitorial parece inflexível
e entrincheirada em suas certezas. A própria predileção pelas execuções públicas parece
demonstrar que não se tinha medo de exibir espetáculos de morte e exemplos de martírio.
No entanto, sabia-se bem que esses espetáculos eram perigosos e tinham efeitos ambí-
guos: aterrorizavam, certamente - e nisso estavam em sintonia com os mecanismos da
justiça penal da época e com sua dura pedagogia dos suplícios - mas, à diferença dessa,
oferecia aos olhos das multidões não ladrões e assassinos punidos por seus crimes e, sim,
homens que tinham escolhido morrer por suas ideias. Eram espetáculos odiosos; de resto,
as crônicas medievais contam sobre inquisidores agredidos e mortos, sobre multidões
tumultuantes a favor de condenados por heresia. E bastava ler os autos dos processos
para descobrir que os acusados desejavam ter essa ocasião para manifestarem suas ideias.
Lorenzo Vex, um luterano processado em Veneza, em 1566, afirmou "que de malgrado
morreria em água salgada, porque não seria visto; mas que desejava ser queimado em
praça pública, porque diria tudo o que tinha a dizer" 43 • Esse desejo não se realizou. Mas
outros conseguiram. O sapateiro Girolamo Venier, condenado a ler sua abjuração na
catedral de Udine no domingo, 15 de abril de 1544, leu, ao contrário, boa parte de um
texto em que reivindicava suas ideias e protestava contra a violência a que fora submetido,
declarando-se "vencido por assédio do mesmo modo como são vencidas as cidades e os
castelos por fome"; depois tentou escapar, enquanto a multidão gritava "Fuja, fuja" 44 •
40. Morone observou "quod retroactis annis officium santae lnquisitionis negue hic Romae negue alibi tam
dilenter et rigide exercebatur ut nunc exercetur" (7 out. 1577, em M. Firpo e D. Marcatto [orgs.], I! Processo
Inquisitoriale dei Cardinal Gio11anni Morone, op. cit., vol. II, segunda parte, p. 619).
41. Seripando falou em nota de diário da Inquisição de um começo moderatum et mite a uma prática tal "ut nullibi
toto terrarum orbe horribilia magis magisque formidolosa iudicia esse existimarentur": para ele, a responsa-
bilidade por isso devia-se à severidade de Gian Pietro Carafa nulla humanitate aspersa (Concilium Tridentinum,
2: Diariorum pars Altera, org. Por S. Merl<le, Freiburg im Breisgau, 1911, p. 405). A opinião de Seripando é
confirmada, segundo seu biógrafo, pelo modo como foram tratados os casos dos agostinianos suspeitos (Jedin,
Girolamo Seripando, op. cit., 1, pp. 271 e ss.).
42. Cf. Luigi De Biasio, "Atti di un Processo per Eresia de 1568 contro il Fabbro Udinese Ambrogio Castenario",
em Regione Autonoma Friuli-Venezia Giulia, 1000 Processi dell'Inquisizione in Friuli, Udine, 1976, pp. 129-130.
43. Citado por Silvana Seidel Menchi, "Theorie und Wirklichkeit der Verfolgung in norditalienischen evangelis-
chen Kreisen 1540-1570", em Ketzer11erfolgung, op. cit:, p. 206 e nota.
44. O texto das duas abjurações, a preparada pelas autoridades eclesiásticas e a escrita para Girolamo Venier pelo
patrício udinense Pietro Percoto, encontra-se publicado em apêndice ao ensaio de Andrea Del Col, "L'abiura
A Cruel Inquisição
202
Eram situações de risco para as autoridades: o caso de Venier mostra o despreparo com
que naqueles primeiros anos eram enfrentadas as cerimônias públicas de abjuração. Em
seguida, casos do gênero tornaram-se se não impossíveis certamente muito mais difíceis:
sempre em Udine, o anabatista Bernardino della Zorza tentou, em 1567, modificar 0
texto da abjuração com o simples artifício da substituição do termo "abjuro" pela palavra
"confirmo". Mas o vigário patriarcal fez uma verificação antes da cerimônia e sequestrou
o texto modificado 45• E de resto, para impedir os culpados de propagarem suas ideias
na hora da execução recorreu-se sem demora a medidas bastante severas. Se em Ferrara,
em 1551, Giorgio Siculo conseguiu falar ao povo e declarar suas ideias, fingindo querer
abjurar, houve por outro lado o caso bem mais famoso de Giordano Bruno, cuja língua
foi presa por tenazes para impedi-lo de falar à multidão no percurso da execução 46 • Um
sistema penal - não só eclesiástico - baseado em penas exemplares e terrificantes revelava-se
arriscado e contraproducente quando se tratava de crimes de opinião: o testemunho de fé
do condenado, suas falas à multidão, até mesmo a simples enumeração de suas heresias
podiam abrir horizontes novos e perigosos para os presentes. Não havia saídas: e em geral
a instituição eclesiástica mostrou-se confiante no efeito de horror e de execração decor-
rente da descrição das heresias condenadas. Os juízes mais escrupulosos preocupavam-se
em acrescentar, ao final das sentenças, exortações aos presentes para que esquecessem as
opiniões que tinham ouvido condenar47 •
Mas o que pensava de si mesma a instituição inquisitorial? E como respondia à
campanha de duras críticas de que era alvo? Os inquisidores tinham familiaridade com
a escrita polêmica e com as diatribes teológicas. Basta percorrer os textos publicados
por quem se viu exercendo um cargo nesse tribunal para encontrar os fundamentos de
uma historiografia providencialista, dedicada a exaltar a eternidade, a imutabilidade
e o caráter necessário e desejado por Deus dessa instituição. Mas os inquisidores esco-
lheram um momento mais ligado à própria atuação de seu tribunal para responder às
críticas: a leitura pública das sentenças.
Por razões pedagógicas, Roma dava grande importância, como se viu, aos rituais
públicos. Assim como os tribunais criminais da época, o da Inquisição considerava ne-
cessário desfrutar ao máximo o espetáculo dos corpos martirizados e queimados para
trasformata in propaganda ·ereticale nel duomo di Udine (15 aprile 1544)", em Metodi e Ricerche, revista de
estudos regionais, n. 2-3, maio-dez. 1981, pp. 57-72.
45. Cf. na mesma fonte anterior, p. 64, nota 24, que esclarece a menção de Luigi De Biasio, "L'Eresia Protestante
in Friuli nella Seconda Metà dei Secolo XVI", em Memorie Storiche Forogiuliesi, LII, 1972, pp. 71-154; em part.
p. 109. Bernardino della Zorza foi condenado à morte com base na abjuração que ele transformou em profissão
de fé, mas conseguiu fugir. Girolamo Venier, por sua vez, conseguiu se livrar com penas leves.
46. Cf. o aviso de Roma de 1° de fevereiro de 1600 publicado em Luigi Firpo, Il Processo di Giordano Bruno, org.
por D. Quaglioni, Roma, 1993, pp. 355-356.
47. "Post publicationem articulorum suprascriptorum P. lnquisitor admonuit populum vulgariter illos articulos
partim falsos esse partim erroneos, scandalosos et partim haereticos, ne memoriae mandarent et tenerent,
Deumque deprecatum est, quia sunt contra animae salutem et fidei veritatem" (sentença pronunciada pelo
Inquisidor do patriarcado de Aquileia em 29 de dezembro de 1571 contra o anabatista Alessandro Jechil de
Bassano: Arquivo da Curia arquiepiscopal de Udine, S. Officio, b. 58, Setentiarium Libri, cc. 39r-40v).
A Inquisição
203
assustar e dissuadir. Para isso, tinha serventia não só a execução capital como também
a cena da abjuração pública. Na revisão do tradicional juízo de crueldade foi dito, entre
outras coisas, que a Inquisição romana diferenciou-se da espanhola por "não ter o hábito
de praticar a humilhação pública dos réus convictos diante de grandes multidões" 48 • A
observação não é de todo exata. Em Roma acreditava-se na importância da "humilhação
pública" e tentava-se impô-la, não só para as execuções capitais, como se viu, mas também
para as abjurações. Eram os estados italianos que resistiam. A preferência bem espanhola
pela "procissão de ignomínia" , como momento essencial de uma religião militante capaz
de unir solidamente a sociedade 49 , encontrou na Itália ecos favoráveis apenas nos rituais
romanos. E a insistência romana na necessidade de rituais públicos era vista pelos estados
italianos como uma imposição politicamente perigosa. Somente um forte poder monárqui-
co poderia impor humilhantes rituais de abjurações públicas aos membros dos patriciados
citadinos. O papado tentou isso; mas entrou em choque com a resistência de um amálgama
de poder local que compreendia príncipes, aristocracia laica e clero secular. Se Paulo IV
tinha conseguido humilhar e fazer morrer em público personagens de alto coturno, seus
sucessores tiveram que se dar conta de quão forte era a resistência das classes privilegia-
das. Sob o milanês Pio IV, em Milão, num domingo de junho de 1564, foram obrigados
a abjurar "cinco hereges marciais", dos quais pelo menos dois pertenciam a famílias da
nobreza: "um de Visconti e outro de Pietrasanta, que foi filho de um senador" 50 • Foi uma
abjuração pública, mas a igreja escolhida ficava "nas partes extremas da cidade", a despeito
da vontade do inquisidor de Milão que desejava realizar a cerimônia na catedral. O conse-
lho da Inquisição "por respeitos mui convenientes" pensara num primeiro momento em
marcar a abjuração para um dia de trabalho e em caráter "muito mais privado em respeito
à condição dessas duas pessoas"; mas ao final fora escolhido um compromisso - o dia de
festa e a igreja periférica - capaz de satisfazer as exigências abstratas da justiça inquisitorial
e as dos "muitos interessados de sangue" das duas famílias nobres. A abjuração era uma
)
matéria difícil. Em Mântua, em 1567-1568, uma áspera polêmica entre o duque e o papa
Pio V teve como tema justamente o modo de proceder às abjurações. O papa demonstrou
grande firmeza ao desejá-las públicas, ao passo que o duque solicitava que ao menos para
seus servidores mais próximos elas fossem realizadas "em capítulo e não na igreja" 51 • O
1
f triunfo da vontade de Pio V foi total à época: seu pontificado, de resto, foi o que fez maior
uso dos grandes rituais de execuções públicas de hereges 52 •
48. William Monter, Riti, Mitologia e Magia in Europa all'lnizio dell'Età Moderna (Ritual, Myth and Magic in Early
Modem Europe, 1983), trad. it. Bologna, 1987, p. 93.
49. Cf. Consuelo Maqueda Abreu, El Auto de Fe, Madrid, 1992, p. 254.
5o. De uma minuta de carta de Niccolo Ormaneto a Carlo Borromeo, Milano, 19 jul. 1564, publicada por Paolo
Preto, "Corrispondenza tra Niccolo Ormaneto, Vicário di San Carlo Borromeo, e Alcuni Vescovi dell'ltalia
Settentrionale", em Contributi alla Storia della Chiesa Padovana nell'Età Moderna e Contemporanea, l, Padova,
1982, PP· 9-31; em part. p. 15.
51. Pagano, Il Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 29.
52· Cf. Domenico Orano, Liberi Pensatori Brueiati a Roma dal XVI al XVIII Secolo, Roma, 1904, integrado por Luigi
Firpo, "Esecuzioni Capitali in Roma {1567= 1671)", em Eresia e Riforma nell'Italia del Cinquecento, Miscellanea 1,
A Cruel Inquisição
204
Como não houve severidade em São Paulo excomungar e nas mãos de Satanás entregar o
incestuoso Coríntio porque isso trouxe saúde a seu espírito, assim não hás de considerar rigor ou
crueldade praticada por nós contra ti, pois que para a saúde da tua alma por nós buscada veio à luz
e sucedeu que, tendo sido informados por deposição de teus cúmplices e também por haver visto
documentos com cartas de consolo, exortação e persuasão em querer perseverar nas opiniões heré-
ticas escritas aos teus cúmplices, que tu, Gio. Paolo Gnitio, livreiro natural de Brescia e residente
53
em Veneza[ ... ] [e aqui seguia o relato dos fatos decorrentes do processo e dos tópicos de acusação] .
Firenze/Chicago, 1976, pp. 309-342. Sobre os rituais romanos cf. Carlo De Frede, "Autodafé e Esecuzioni di
Eretici a Roma nella Seconda Metà del Cinquecento", em Atti della Accademia Pontaniana, n. especial, XXXVIII,
1989, pp. 1-41.
53. Trinity College, Dublin, ms 1224, cc. 152r-153r (consultados a partir da cópia microfilmada da Biblioteca
Vaticana, microfilme n. 15).
A Inquisição
205
São Paulo é naturalmente o autor predileto nesse contexto. Eis como ele é usado
na sentença contra "Francesco Gotifredo Luxemburgense" :
Porque não somente somos perante Deus encarregados de conservar em nossos corações sua santa
Fé, mas também com externa confissão a loco et tempo confessá-la, segundo testemunho de São Paulo
que para tanto deixou escrito Carde creditur ad iustitiam ore autem fit confessio ad iudicem, querendo dizer
que totalmente não somente no coração, mas também nas palavras e reflexões feitas com os outros deve
o verdadeiro cristão abraçar de todo o coração, com feitos e palavras, a sã doutrina da fé católica [... ]54
E ainda:
Diz o Apóstolo São Paulo, Diletíssimos e caríssimos irmãos, rogo-vos observar e atentar bem
àqueles que dentre vós semeiam divisão e discórdia com escândalos, e afastar-vos deles, porque com suas
doces argumentações e tantas bênçãos quantas vos prometem seduzem o mero e puro coração das almas
simples, querendo inferir que os enganadores e os falsos cristãos devem separar-se dos outros bons 55 •
O Nosso Salvador quis reduzir de seus grandes pecados da cidade de Jerusalém e fez isso abrindo-
-lhe sua larga mão e grande liberalidade, concedendo-lhe muitos dons e graças, tocando seu coração
com suas boas e santas inspirações, embora a maior parte não consentia em aceitá-las, opondo-se de
vontade própria a ele, e ensina-nos com isso que temos o livre-arbítrio, e não deixa Deus de chamar-
-nos, e que a luz da fé é dom de Deus, mas de nós vem o erro e a falha 56 •
Com uma certa desenvoltura no uso das Escrituras, típica de resto de quem as
tratava com familiaridade na própria função de homem da Igreja, às frases evangélicas
de Cristo podiam ser atribuídos significados que nada tinham a ver com o original:
Jesus Cristo nosso Salvador deu em São Mateus uma regra a seus discípulos por meio da
qual deviam ser governadas as coisas pertinentes à santa Fé católica, dizendo-lhes: se for encontrado
quem dê mau exemplo a verdadeiros e puros fiéis que acreditam em mim, deve, com uma pedra no
pescoço, ser atirado no fundo do mar, pois que por dar mau exemplo em coisas pertinentes à Santa
Fé Católica romana merece a morte 57 •
A Cruel Inquisição
206
O Apóstolo São Paulo refletindo sobre os mais santos e mais firmes em perfeição cristã dizia:
Devereis vós os mais perfeitos e mais repletos de caridade suportar a falta de firmeza e de perfeição
alheias; não diz porém que se devessem deixar vícios, pecados e demais erros sem castigo ou punição,
mas, como dizem os santos reitores, quer nos ensinar que mesmo ao punir, ou seja, ao corrigir, sejam
usadas para com o réu piedade e misericórdia 58 •
Diz o Apóstolo São Paulo que se um Anjo descesse do céu e nos pregasse doutrina contrária
e nos ensinasse coisa diferente do que revelou o Espírito santo nas sagradas escrituras, que não lhe
deem crédito pois não nos foi enviado por Deus, querendo inferir que aquele que se opõe aos dizeres
das sagradas escrituras de santos concílios e doutores da Igreja não merece crédito, e como temerário,
presunçoso e excomungado deve ser punido60 •
Fiel e prudente, como diz o Senhor, é o servo que instituiu Deus no governo de sua família;
e ministra-lhe o verdadeiro alimento que nos convém. Sucede então que nestes dias miseráveis, nos
quais os rebentos do demônio sustentam e ensinam falsas, errôneas e heréticas doutrinas, precisam
que lhes seja ministrado o alimento salutar de acordo com sua conveniência e isso para a saúde dos
delinquentes e instrução de alguns 61 •
A Santa Igreja católica e os sumos Pontífices Romanos demonstraram tanto desejo e empe-
nho de que seus filhos não tenham culpa ou mancha de heresia, que ordenaram que não somente
58. Idem, cc. 16lr-162r (sentença contra o agostiniano frei Agostino Ceracci de Velletri, de 31 de maio de 1567).
O acusado foi condenado a dez anos de galé.
59. Idem, cc. 169r-170r. Sentença contra Giovan Battista Fantinelli de Forli, 31 maio 1567: "Ensinando o Apóstolo
Paulo a seu caro e obediente discípulo Timóteo, disse que se deve com modéstia corrigir e refrear aquele que
resiste à verdade, ensinamento ao qual queremos nós (como somos obrigados) obedecer não sem imenso pesar
de nossa parte [... ]"
60. Idem, cc. 165r-166r (contra Annibale Salato de Amalfi, ex-beneditino, mestre-escola em Nápoles; condenado
a dez anos de galé).
61. Idem, cc. 173r-174v; sentença de 31 de maio de 1567 contra mestre Giacomo Locatelli, torneiro natural de
Bérgamo, morador de Forli; foi condenado ao emparedamento perpétuo. Sua sentença ordenava também que
sua casa, onde lia a Tragédia do Livre-arbítrio, devia ser "destruída e arruinada, e marcada com algum sinal para
memória eterna de tal fato, de modo que outros se abstenham de tais horrendos e abomináveis crimes".
A Inquisição
207
os hereges mas também os suspeitos dela, os escandalosos, os temerários e os homens que querem
contender sobre a fé possam e devam ser condenados como culpados, se no prazo que lhes for con-
cedido não purgarem por meios justos e ordens devidas e legítimas sua alegada inocência e afastarem
das mentes dos superiores e do povo cristão as causas das suspeições e maus exemplos contra eles,
por terem sido considerados por sua culpa hereges escandalosos e suspeitos 62•
62. Idem, cc. 155-158 (sentenca contra Mario Galeota, 12 de junho de 1567; foi publicada por Pasquale Lopez, ll
Movimento Valdesiano a N:poli. Maria Galeota ele sue Vicende col Sant'Uffizio, Napoli, 1976, PP· 174-179).
63. Cf. Natalie Zemon Davis, Storie d'Archivio. Racconti d'Omicidio e Domande di Grazia nella Francia dei Cinquecento
(ed. or. Fiction in the Archives, 1987), trad. it., Torino, 1992.
A Cruel Inquisição
208
a ausência do cardeal Morone deu ensejo a muitos boatos. A condenação à morte foi
marcada pela cerimônia do sambenito amarelo estampado com línguas de fogo . E nessa
ocasião, Carnesecchi encontrou um modo de reforçar sua fama de grande refinamento
de estilo, fazendo a alguém próximo o seguinte comentário sobre seu estranho traje:
"Padre, e lá vamos nós vestidos de libré como se fosse carnaval" 64 •
O caso de Carnesecchi era exemplar pela vontade de Pio V de retomar o caminho
percorrido por seu predecessor Paulo IV, consolidando a linha da severidade e da sus-
peita em relação a certos círculos bem radicados no mundo romano e na própria Cúria.
Mas sua sentença pode ser lida também como proposta de caráter geral por parte do
Santo Ofício que, enquanto se mostrava pronto para acolher com benevolência o herege
arrependido, não tolerava ao contrário quem escolhia o caminho do fingimento e da
astúcia para manter obstinadamente as próprias convicções. A longa sentença parece,
desse ponto de vista, uma persistente proposta do modelo do herege arrependido e urna
contínua repreensão a Carnesecchi por ter continuamente decepcionado as expectativas
da Igreja, mãe paciente mas não disposta a tolerar quem não se lhe entregava:
Tu te mostraste duro e renitente em confessar livremente tuas falsas opiniões contra a santa fé
católica [...] Perseveraste na mesma negativa [... ] E enquanto esperávamos de ti sinais de penitência .. .
ousaste tantas vezes escrever muitas e várias cartas furtivamente.
Todos os dias vemos por experiência ocorrer o que o divino Apóstolo São Paulo, escrevendo
a Timóteo, predisse: "erit enim tempus cum sanam doctrinam non sustinebunt; sed ad sua desideria
coacervabunt sibi magistros prurientes auribus; et a veritate quidem auditum avertent, ad fabulas autem
convertentur" (Tim. 2, 4, 3-4). Como nestes infelizes e calamitosos tempos vê-se continuamente fazer
por muitas celeradas seitas de hereges, com irreparável prejuízo para a República cristã, e perdição
de infinitas almas, e particularmente pode-se considerar na presente causa.
A impiedosa sentença de morte que fechava o longo texto era obscurecida por
passagens paulinas e justificada com as duras necessidades de defesa da "república 1
cristã". O modelo romano era, portanto, o de uma pedagogia exercida através dos 1
"autos de fé", as sentenças e seus rituais públicos. De resto, essas palavras encontra·
vam uma pontual e terrível confirmação nos fatos: as execuções capitais, pública s,
solenes e marcadas pelo ritual do consolo completavam essa pedagogia, na qual 0
terror era o instrumento para instilar a necessidade da confidência e do abandono
aos braços maternais da Igreja. A estratégia romana do Santo Ofício favoreceu 0
desenvolvimento de cenários análogos mesmo nas sedes diferentes daquela romana.
64. Cf. Oddone Ortolani, Pietro Camesecchi, Firenze, 1963, p. 159. Mas cf. também O já citado verbete "Carnesecchi
Pietro", redigido para o DBI por A. Rotondà.
A Inqu isição
209
65. Trinity College, Dublin, ms. 1224, cc. 104r-109r, sentença emitida em 25 de fevereiro de 1580 por Alberto
Bolognetti, legado apostólico no domínio vêneto, Giovanni Trevisan, Patriarca de Veneza e Mestre Gio. Bat-
tista de Milão, inquisidor-geral delegado para todo o domínio vêneto, contra Antonio Saldanha de Setúbal:
"Entre os santíssimos e para nós utilíssimos documentos que nos deixou o salvador do mundo, lembrou-nos
especialmente com os dizeres: 'estote prudentes sicut serpentes, et simplices sicut columbe', tal como está
escrito em s. Mateus no décimo caput. Por isso o senhor quer que seus cristãos sejam perspicazes e prudentes
ao máximo quanto a saberem proteger-se das insídias do inimigo da natureza humana, mas também os quer
puros, límpidos, transparentes e sinceros de coração, pois como está escrito no Eclesiastes no segundo caput
[14]: 'Ve duplici carde et peccatori terram ingredienti duabus viis' e Oseias no décimo caput: 'Divisum est cor
eorum, nunc interibunt', ou seja, ai daquele que tem duplo coração e ai do pecador que caminha sobre a terra
com duplos e simulados percursos, e por terem o coração repartido e dividido serão destruídos, arruinados e
aniquilados (...]" .
66. Na expectativa de uma coleta sistemática desse tipo de texto, veja-se, a título de exemplo, a Relazione Copiosa,
Distinta e Verídica della Nasci ta, Vita, e Morte Oprobriosa, et lnfame di Domenico Spallacini Impiccato, et Abbrugiato in
Roma nel dí 18 luglio 1721 in vigore della dilui condanna fatta dai supremo tribunale della Santa Romana, et Universale
Jnquisizione ..., em Roma, 1721, tipografia de Gio. Francesco Chracas, junto S. Marco ao curso, com licença.
67. Um único exemplo, também nesse caso: Abiuratione di molti errori heretici, fatta publicamente, et spontaneamente
dai Sig. Gio. Mattheo Grillo gentilhuomo Salemitano ..., Avignon, por Pietro Rosso, 1568.
A Cruel Inquisição
210 1
1
Acho - disse Simone - muito estranha e amarga esta sentença que me condena à morte
. , porque
eu sei que sou bom cristão e ia à missa sempre que podia. E ao Nosso Senhor não há de apete
cerque
um corpo em condições de poder combater contra a fé seja mandado à morte mais cedo, em vez de
ser mandado para combater contra os infiéis, e especialmente nessa guerra 68 •
68. ASVen., Sant'Uffizio, b. 29, fase. "Contra Simonem Vicentinum", cc. n.n. Sobre o círculo dos hereges de
Vicenza, onde Simone não parece ser conhecido, cf. A. Olivieri, Riforma e Eresia a Vicenza nel Cinquecento,
Roma, 1992 (v. em part. p. 291).
69. Cf. o estudo de G. Romeo, Aspettando il Boia. Condannati a Morte, Confortatori e Inquisitori nella Napoli della
Controriforma, Fírenze, 1993.
A Inquisição
211
70. Depoimento de 16 de novembro de 1582 de frei Valerio de Bolonha, ermitão de Santo Agostinho, diante do inqui-
· b. I, f:ase. 6·. n
s1·dor de p·isa (AAp, S. U'a;,zio = in Qiusa Fratris Egidii Senensis et Fratris Valerii de Bononia, e. 372).
n....----us
11
A Cruel Inquisição
VII
0 ÂMBITO INQUISITORIAL:
OS FUNCIONÁRIOS
1. Awertimenti di Don Scipio di Castro a Marco Antonio Colonna quando Andó Vicere in Sicilia, org. por Armando
Saitta, Roma, 1950, p. 69. Quanto a Cremona, o juízo do podestá, de 1594, é reportado por Susanna Peyronel
Rambaldi, "lnquisizione e Potere Laico: 11 Caso de Cremona", em Lombardia Borrornaica. Lombardia Spagnola
1554-1659, org. por P. Pissavino e G. Signorotto, Roma, 1995, pp. 579,617; v. em part. p. 567.
2. Relação de M. A. Colonna a Felipe II de 13 de novembro de 1577, citada por V. Sciuti Russi, Astrea in Sicília,
Napoli, 1983, p. 142.
3. Discorso di Monsignor De Luca Sop,ra l'Uso de' Patentati e Ministri dei S. Offitio nello Stato Ecclesiastico, BAV, Vat. Lat.
10852, cc. 334r,342t1 (em part. e. 337r). A resposta de Albizzi é reproduzida em cc. 342r-360t1. Sobre De Luca
falta um estudo adequado. Cf. Diego Rapolla, Dei Cardinale GiOtJanni Battista Di Luca Giuresconsulto Venosino ,
dei suo Tempo e della sua Patria, Portici, 1899.
214
operaram na ilha até nossos dias"4. Entretanto, mesmo nesse caso não se inventou nada
de novo: as associações de laicos em defesa dos inquisidores na luta contra os hereges
tinham aparecido na Itália centro-setentrional desde o século XIII. Porém, mais uma ve z,
por trás da aparente permanência do antigo, encontra-se uma realidade completamente
diferente: não corpos organizados de cidadãos em defesa do p~rtido da Igreja, mas grupos
de poder que tentavam manter e aumentar seus privilégios. E uma evolução semelhante
àquela mais geral das confrarias de laicos, que sofreram nessa época um difuso processo
de aristocratização: a retomada feudal e o desaparecimento das formas tradicionais de
luta política nas cidades traduziram-se numa modificação substancial das características
desse gênero de corpos coletivos. Pertencer à confraria dos Cruxati ou "Cruzados" com-
portava indulgências capazes "de, fazendo parte dela, mandar voando imediatamente
para o céu" , escrevia o governador de Siena em 15795 • Mas comportava também privi-
légios e vantagens mundanas de toda ordem: isenções fiscais , direito de porte de armas,
faculdade de não ser julgado por outro tribunal que não o da Inquisição. Não é difícil
de entender que havia os que tentavam apropriar-se disso tudo, fazendo valer poderes
de classe e prepotências pessoais. Os próprios inquisidores tiveram muita dificuldade de
estender a esses sua autoridade: na segunda metade do século XVI, o dominicano Camillo
Campeggi precisara intervir com certa dureza para impor o respeito de sua autoridade
aos cruzados, que tinham se acostumado a cooptar outros membros - e a distribuir-lhes
esses privilégios - ignorando completamente o direito de designação do Inquisidor6•
Segundo De Luca, contudo, no final do século XVII o problema não tinha mais a ver
1 com os estados italianos; tinha se tornado um problema do Estado da Igreja. Na falta
de dados seguros, é difícil fazer julgamentos a respeito. Certamente, no que se refere à
Sicília, os vice-reis não podiam deixar crescer em tal medida a categoria dos isentos sem
verem anulado todo poder de governar; e a coroa de Espanha não renunciou a cortar
gradativamente os ramos de uma erva daninha muito vigorosa. Nem os estados princi-
pescos italianos originários da crise dos ordenamentos republicanos e citadinos podiam
tolerar a existência de poder~s desse tipo. É exemplar quanto a isso o caso do grão-ducado
de Toscana, onde a tentativa de implantar uma confraria do gênero por parte de um
engenhoso inquisidor de Siena deu origem, em 1579, a um duro confronto político. O
grão-duque Francesco I percebeu imediatamente o risco de um retorno aos antigos con- ,,
flitos citadinos da época comunal: "inflamar os populares com a fala dos pregadores ,
distribuir as cruzes vermelhas da confraria no final de sermões inflamados, e ainda por
cima "numa cidade parcial como aquela" significava renovar lutas de facção intoleráveis
em um estado principesco: "em nossos estados não queremos outros patrões a não ser
nós" 7• De fato, uma vez afastado esse perigo, a concessão de "patentes" e de privilégios
parece ter encontrado algumas brechas na sociedade toscana do século XVII. Mas era
4. Orazio Cancila, Cosi Andavano le Cose nel Secolo Sedicesimo, Palermo, 1984, p. 30.
5. Citado em Valerio Marchetti, "Ultime Fasi della Repressione dell'Eresia a Siena", op. cit. , p. 75.
6. Cf. do autor deste volume "II Budget di un Inquisitore. Ferrara 1567-1572", em Schifanoia, 2, 1987, PP· 314~·
7. Da carta de Francesco I ao inquisidor de Siena frei Prospero Urbani, 20 dez. 1579, reproduzida por Valerio
Marchetti, "Ultime Fasi della Repressione dell'Eresia a Siena", op. cit., pp. 75-76.
A Inquisição
215
justamente no Estado da Igreja que a situação era grave. Pela ata de uma congregação
do Santo Ofício de 1624 resulta que entre as questões urgentes estava na ordem do dia
justamente esse ponto: tratava-se da necessidade de "estabelecer o número dos familiares
e ministros do S. Ofício nas Províncias, em particular na Úmbria, Marca e Romanha,
havendo desordem na qualidade e muito mais no número, que é supérfluo, excessivo,
e prejudicial ao bom governo de todo estado" 8 • Admissão significativa, que demonstra
ao menos a consciência do problema. Mas justamente por serem muito consistentes os
interesses que se ocultavam por trás da concessão do título de "familiar", não faltaram
vozes em sua defesa, mesmo no interior do próprio Santo Ofício.
A estrutura dos familiares do Santo Ofício era simplesmente uma continuação da
antiga estrutura das confrarias, como sustenta o cardeal Francesco Albizzi, defensor de
ofício de todos os privilégios da Inquisição, que, quase aos noventa anos, tomou a pena
para responder às críticas de De Luca. Mas sua remissão às origens não é suficiente para
responder ao duro e pontual ato de acusação de De Luca. Não se trata apenas das con-
frarias dos cruzados: estão em jogo - escreve De Luca - todos os cargos de consultores,
chanceleres, chefes dos esbirros, mandatários. Esses cargos são conferidos a pessoas ricas e
tituladas, a "mestres das armas" - gente que se faz isentar "de encargos públicos", ou seja,
não paga as taxas, não está sujeita aos tribunais ordinários, está autorizada a portar armas.
Livres para fazer o que querem, sem temer qualquer autoridade - "como não sujeitos
nem aos bispos, nem aos governadores, mas ao inquisidor, que é um frade isento, sem
prática do foro e que costumam ser indulgentes com seus titulares" - esses "familiares"
formam um corpo completamente incontrolável; além disso, não se contentam em gozar
esses privilégios, mas os estendem "a seus parentes, familiares e dependentes". Poderes
e privilégios criam corrupção: De Luca insinua a suspeita de que esses frades concedem
os títulos de familiares muito provavelmente por dinheiro. Mas, sobretudo, é evidente a
injustiça extremamente grave resultante disso em relação "aos pobres, aos quais cabe suprir
às necessidades públicas com seu suor" e que, ainda por cima, têm de sofrer prepotências
e injustiças sem poderem reagir. No ato de acusação de De Luca percebe-se um sentido de
estado e uma consciência política do problema que, no geral, não se manifestaram nos
estados italianos, onde nenhuma autoridade central foi capaz de impor uma providência
de limitação do número dos "familiares", como a que foi tomada na Espanha em 1553 9 •
Nos territórios sujeitos à Inquisição romana, não sabemos nem por aproximação
qual era e como variava no tempo o número de pessoas que, por motivos vários, preten-
diam ter acesso aos privilégios desse foro. As listas dos "titulares e oficiais" que as sedes
locais deviam expedir periodicamente a Roma não são de grande ajuda, limitando-se
(ao que parece pelos casos conhecidos) ao registro do pessoal judiciário e consultores 1°.
8. BNN, ms Branc. I B 7, cc. 71rv: Nota de' negotii pendenti nel S. Ufficio di Roma di ottobre 1624.
9. Sobre a questão dos "familiares" em Portugal, Espanha e Itália e sobre a política dos atos reais de "concórdia", que
fixavam O número com base em critérios demográficos, cf. Bethencourt, L.:Inquisition à l'époque moderne, op. cit, pp. 53-69.
10. Uma lista de 1657, relativa ao domínio florentino, foi publicada pelo autor deste volume ("Vicari dell'lnquisizione
Fiorentina alla Metà del Seicento. Note d'Archivio", em Annali del lstituto Storico ltalo-germanico in Trento, VIII,
1982, pp. 298-302).
A sociedade que gravitava em torno do tribunal não era apenas a dos que go.
zavam de sua proteção e privilégios; era também a de quem pretendia por motivos
vários influenciar seus procedimentos, lançando-os contra seus próprios inimigos e
afastando-os de seus clientes: é uma dinâmica que nesses termos pertence à história d
, e
todo poder judiciário. E possível imaginar que essa dinâmica ocorresse no âmbito das
atividades da Inquisição, mesmo sem deduzi-lo da insistente exortação a ignorar qualquer
recomendação que chegasse de Roma às ramificações locais do tribunal em questã 0 11
Como era constituída a "selva" inquisitorial? É necessário imaginá-la em seu con~
junto, como uma pequena sociedade tal como foi , para tirar os "grandes inquisidores"
de seu romântico isolamento. Solidariedade corporativa, privilégios comuns, defesa
recíproca nos momentos de risco são também elementos úteis para saber o que unia
entre si pessoas de origem, cultura e posição social diferentes e permitia sua colaboração.
Naturalmente, nas relações corporativas influíram as diferentes situações históricas;
uma coisa era oferecer um cavalo a frei Michele Ghislieri, ameaçado de morte em
1560, outra era mandar galinhas e frutas da terra ao inquisidor metropolitano da parte
dos vigários nos ociosos anos do início do século XVII toscano 12 • Em ambos os casos,
contudo, os comportamentos obedecem ao senso de pertinência a um mesmo corpo:
solidariedade, camaradagem, pequeno investimento para cair nas graças dos superiores
e agilizar a própria carreira, enfim, sentimentos e cálculos que partem do dado de fato
de uma linha divisória entre quem é membro da corporação e quem não é.
Mas quantos eram membros efetivos e quantos não? E como era composta essa
sociedade? Em que medida o âmbito da sociedade inquisitorial expandiu-se e chegou a
envolver os mais vastos conjuntos sociais cuja vigilância encabeçava? Para responder a
perguntas desse tipo seria necessário dispor de pesquisas bem diferentes das que foram
realizadas até agora. Mas é possível fazer algumas sondagens.
Em Módena, no início do século XVIII (quando "a estrutura estava testada e em
funcionamento" 13) o pessoal efetivo era formado por 204 pessoas, das quais 61 para
o tribunal da cidade e 143 para os vicariatos extraurbanos, espalhados por uma vasta
área que compreendia planície, colina e montanha da região de Módena. Quanto às
11. Reproduzo aqui um exemplo: "Rev. Padre - escrevia o cardeal Arrigoni ao inquisidor de Florença em 4 de
fevereiro de 1606. - Para manter a integridade, que convém ao tratamento e à ciência das causas da Santa
Inquisição, Sua Santidade, na Congregação do Santo Oficio, a 8 de dezembro próximo passado, ordenou
que se escrevesse a todos os Inquisidores que na execução e conhecimento das causas do Santo Ofício não
respondam a cartas de recomendação de qualquer pessoa, seja eclesiástica ou leiga, de qualquer dignidade, e
proeminência, e que não levem em consideração e não respeitem de modo nenhum tais cartas no despacho
das causas sob pena da privação do cargo e outras ao arbítrio de Sua Santidade. Porém, advirto V. R. para
que não deixe de observar inviolavelmente tal ordem e informe sobre ela a seus vigários, fazendo registrar ª
presente nos livros dessa Inquisição para instrução de seus sucessores ... " (ACAF, Misc. S. Uffizio, 7, 113).
12. Intercâmbios epistolares que aludem a doações desse tipo encontram-se difusamente documentados na corres-
pondência dos vigários toscanos da Inquisição com o Inquisidor florentino (ACAF, Misc. S. Uffizio, passim).
13. Carla Righi, 'Tlnquisizione ecclesiastica a Modena nel' 700, em Formazione e Controllo dell'Opinione Pubblica ª
Modena nel' 700, org. por A. Biondi, Modena, 1986, pp. 53-95; em part. p. 55 (do ensaio citado foram colhidos
dados que acompanham a situação de Módena durante o século XVIII.
A Inquisição
217
relações de poder, era uma estrutura que dependia do inquisidor de Módena e por ele
era selecionada e autorizada: o inquisidor recebia formalmente a própria autoridade
por delegação especial do papa, mas dependia também do consentimento do duque,
sem o qual não teria sido possível proceder à sua designação. Suas funções de governo
colocavam-no de fato numa posição de prestígio quase semelhante àquela do bispo:
outra e mais complicada era a questão de direito. Mas na série das precedências era
reconhecida a do inquisidor sobre a do vigário do bispo.
Esse poder tornava-se palpável graças à atuação de uma série de conselheiros e
de executores que compreendia:
um vigário-geral;
um pró-vigário;
seis consultores teológicos;
quatro consultores canonistas;
quatro consultores "legistas";
um "mandatário" (aquele que mandava efetuar as ordens de comparecimento,
busca e detenção, ocupava-se da afixação dos editais e assim por diante);
um mandatário substituto;
um mandatário dos subúrbios;
um chefe de esbirros para as operações policiais; e este podia contar com:
um executor;
um executor dos subúrbios;
um procurador fiscal; e aqui entramos em plena zona processual, onde encon-
tramos também:
um advogado dos réus;
um chanceler.
O mundo das prisões inquisitoriais era confiado a:
um inspetor das prisões;
um médico físico;
um médico cirurgião;
um barbeiro (que devia, inclusive, fazer a barba do inquisidor e de seu vigário);
um farmacêutico;
um provedor dos prisioneiros.
Ao mundo da imprensa eram delegados:
um tipógrafo (para aquilo que o inquisidor precisava publicar por dever de ofício);
um fiscal de embrulhos e caixas na alfândega e
um fiscal às portas da cidade.
Para as obras que deviam ser examinadas para obtenção de licença de publicação
podia-se contar com:
um revisor de teologia;
um de filosofia;
um de leis;
um de medicina;
le V rie
14. Os dados por Ferrara são tirados de uma lnformazione sopra lo Stato della S. lnquisizione di Ferrara, circa ica S.
e Patentati della Medesima, em Archivio dei residui ecclesiastici della Curia diocesana di Ferrara, fooclo
Domenico, I. A Informação, sem data, foi redigida ao redor de 1734 em vista de uma redução do número
das vicárias.
A Inquisição
219
15. O documento, constante no relatório, intitula-se Nomina de Sogetti per li Vicariati Foranei della Santa Inquisizione di
Ferrara, per l'Offieio di Vicario, Notaro e Mandatario e foi redigido por volta de 1683. Sobre o sistema dos vigários
da Inquisição e sobre sua relação de imitação e de competição com O sistema vicarial diocesano, cf. A. Bioocli,
"Lunga Durata e Microarticolazione nel Territorio di un Ufficio del Inquisizione: 11 'Sacro Tribunale' a Modena
(1292-1785)", emAnnali deU'lstituto Storico ltalo-germanico in Trento, VIII, 1982, pp. 73-90. Sobre a situação roscana
no século XVII, cf. do autor deste volume, "Vicari dell'lnquisizione Fiorentina", op. cit., pp. 275-304.
A Inquisição
221
vigário distrital do bispo de Ferrara, dois sacerdotes desprovidos de bens (um "vive da
missa e com metade dos ganhos extras, e com o que calha") e " outros padres que mal
sabem dizer a Missa" . Em Copparo, não havia "nenhum notário registrado e nenhum
clérigo" . Havia um capelão de um oratório vizinho, que porém era "tido como um tan-
to inquieto" . Também em Pontelagoscuro a situação era deficitária: nenhum notário
registrado , nenhum clérigo; havia um pároco que tinha acabado de sofrer a pena de
dez anos de galé. No entanto, ali havia necessidade de vigário e notário porque, como
explicava o relatório , Pontelagoscuro era um porto fluvial onde "pode acontecer que,
por causa do mal de livros ou outros, haja necessidade da presença do notário, sem ter
que mandar chamar um" . As propostas de nomeação, portanto, eram obrigadas a se
dirigirem a pessoas bem distantes dos requisitos exigidos: clérigos jovens, pouco mais
que rapazes, que viviam na casa do pai e mantinham-se com a colheita da propriedade
paterna; havia pessoas como Francesco Borsatti, clérigo de 25 anos, de Bondeno, filho
de um capataz, que não tinha "vontade de estudar, mas de caçar" ; e outras como Carlo
Antonio Cavallieri, clérigo de Ficarolo, 22 anos que era "tido como jovem boêmio" .
Quando possível, escolhia-se uma pessoa "sensata e prudente", como o arcipreste de
Consandolo, mesmo que não tivesse títulos de doutor. Dava-se muita atenção às ma-
ledicências: um vigário mal falado era o que havia de pior. E a respeito dos clérigos da
diocese os falatórios eram abundantes. As informações, divulgadas no tom discreto e seco
do relatório, deixavam entrever poucas alternativas: somente a presença de mosteiros
dominicanos ou franciscanos resolvia de modo satisfatório o problema de encontrar
um vigário e uma estrutura de apoio para as funções de vigário; do contrário, era a
estrutura de governo secular da igreja, já sobrecarregada com muitas outras tarefas,
que devia intervir.
Uma rede frágil, portanto: pessoas pouco preparadas, expostas a todas as tentações
oferecidas por um poder temido e temível. A atenção ao escolher pessoas que "viviam
de suas posses", de idade não muito exposta às tentações da carne, que conheciam
bastante bem direito e teologia, não era suficiente para garantir que essas pessoas, no
exercício de seu poder, não se deixassem seduzir pelas oportunidades.· O problema
era do mesmo gênero daquele que na época pós-concílio de Trento fora detectado em
toda a estrutura do clero secular: era necessário que esse corpo de tutores das almas
oferecesse um bom exemplo, fosse irrepreensível, não se expusesse mais às críticas de
imoralidade e despreparo. A literatura pastoral tinha examinado a fundo quanto a isso
todos os argumentos que remetiam à famosa imagem evangélica do "sal do mundo";
que fazer se sal evanuerit? Não havia remédio. Era preciso, portanto, que esse sal fosse
obrigado a se manter salgado, ou que pelo menos se fingisse acreditar nisso - mesmo
ao preço de esconder cuidadosamente os defeitos aos olhares de fora. Uma certa dose
de hipocrisia era ineliminável do esforço de manter o corpo eclesiástico acima do laico
não só em termos de poderes e dignidades, mas também em termos de virtudes. No caso
dos "oficiais" da Inquisição, isto significava uma vigilância atenta do comportamento
deles por parte do próprio tribunal que serviam. Temos uma prova disso nos registros
dessa mesma inquisição de Ferrara que avaliava tão atentamente seus candidatos.
16. Cf. Registro de' Spediti dall'Anno 1653 all'Anno 1672, em Archivio dei residui ecclesistici della Curia diocesana
di Ferrara, fundo S. Domenico, I. O registro está em forma de rubrica, não completo (chega à letra S).
A Inquisição
223
coube a Andrea Ferri de Massa Fiscaglia cumprir pena pelo mesmo delito. Em 1669,
Elisabetta Guidi compareceu perante o tribunal por ter insultado Lucia de Codigoro,
chamando-a "bruxa" . Já então a acusação de bruxaria, pouco tempo antes tão perigosa,
tornara-se matéria de litígios entre mulheres e o tribunal criado para combater a bruxaria
intervinha para proteger a honra das mulheres ofendidas com esse título.
É de se perguntar qual era a utilidade restante da estrutura do Santo Ofício
em termos de defesa, real ou imaginária, da comunidade; quais fossem os "diversos"
contra os quais se erguera aquela barreira; qual a correspondência entre investimentos
e produto, do ponto de vista dos titulares do poder. A resposta evidencia-se imediata-
mente quando se lê o registro que resume os casos "expedidos": dos cerca de mil casos
tratados em menos de vinte anos - o que já é um dado eloquente do funcionamento de
um tribunal - a maioria absoluta diz respeito, de um lado, aos judeus, e, de outro, aos
feitiços e superstições. Para os judeus, os motivos de choque com o Santo Ofício eram
infinitos: bastava infringir em algum momento as barreiras que deviam separá-los dos
cristãos. E as ocasiões para romper essas barreiras eram frequentes: das relações com
prostitutas cristãs ao uso de criados e servos cristãos, do misturar-se aos cristãos nas
ocasiões festivas e nos divertimentos (danças, jogos de cartas) a qualquer outra forma
de familiaridade. Além disso, crimes mais graves eram perpetrados em todas as ocasiões
em que os membros da comunidade judaica entravam em choque com as práticas e os
símbolos da religião dominante. E aqui a casuística é extremamente ampla: judeus que
falam contra a penitência, que não demonstram a devida reverência à cruz ou às imagens
da Virgem, que não se retiram a tempo quando passam as procissões, que impedem a
conversão de outros iudeus. A presença da comunidade dos judeus de Ferrara reflete-
-se na exuberante di'nâmica documentada por essas listas e diferencia o Santo Ofício
de Ferrara do de outras cidades italianas onde a presença judaica era mais exígua ou
completamente inexistente.
Ao contrário, a luta contra superstições, encantamentos e feitiços que transpa-
rece do documento é idêntica em suas grandes linhas àquela que empenhou então as
estruturas inquisitoriais na Europa católica: o tribunal é atulhado de casos de feitiços
para conquistar o amor, encontrar tesouros, garantir a própria saúde e a dos amigos
e prover a desgraça (maleficium) aos inimigos. As pessoas que se apresentam diante do
inquisidor ou de seus vigários têm muitas vezes por objetivo denunciar espontaneamen-
te a si mesmas ou a outras (sponte comparentes), mas sua espontaneidade é fruto quase
exclusivamente da coerção exercida pelos confessores.
A heresia consciente, como foi dito, configura-se finalmente como um fenôme-
no marginal, como se tivesse desaparecido do mundo dos pensamentos pensáveis no
mund o cato, 1·1co. Pore'm , sa- 0 bastante numerosos os casos de blasfêmias heréticas: mas
• b •m no aumento desmedido dos casos de superstição - refletem-se os
aqui - como tam e .
- do tribunal de suas regras e dos mecanismos de controle,
resu lta d os d e uma evo luca
, 0 '
à qual devemos agora voltar nossa atenção.
que sabiam os acusados sobre o tribunal que os processava? Muito pouco, a julgar
O que chama a atenção nesse breve diálogo não é a resposta, mas a pergunta. Por
que o tribunal da Inquisição perguntava o que os acusados sabiam sobre ele?
Entretanto, um rápido exame permite excluir que se tratasse de uma pergunta
casual. Nos últimos decênios do século XVI e durante o século XVII a pergunta era
feita amiúde aos acusados, sem distinção entre iletrados e homens cultos. Uma rápida
verificação num calhamaço de documentos inquisitoriais qualquer é suficiente para
confirmar isso. Perguntava,se, por exemplo, "se sabe por que o Santo Ofício mete as
pessoas na prisão" 2; "quais sejam as causas e os crimes que competem ao s. Ofício
julgar" 3 ; e assim por diante.
As respostas variavam: se Favilla de Mezzana não soube dizer nada, outros esbo,
çaram respostas mais ou menos satisfatórias. Em 12 de junho de 1620, o inquisidor de
Módena estava interrogando um jovem notário da cidade, Francesco Zarlati, acusado
de ter lido e feito ler livros proibidos. A primeira pergunta foi a ritual, se sabia ou pelo
menos imaginava a causa de sua convocação. A resposta foi bem seca: "Senhor, só pos,
so saber se me disser" . Mas o inquisidor não podia dizer, devia perguntar; e seguia-se
uma segunda pergunta de caráter mais geral ainda: se Zarlati sabia contra quais tipos
de pessoas atuava o Santo Ofício? "Creio - respondeu o notário - que o S. Ofício atua
contra os hereges, e contra bruxarias e outros malefícios" . E aqui o inquisidor precisou
suspender momentaneamente as perguntas, para esclarecer e informar: o raio de acão
do Santo Ofício era muito mais amplo; atingia também os blasfemos, os supersticio;os ,
os possuidores ou os leitores de livros proibidos, quem comia carne nos dias proibidos:
que dissesse, portanto, se conhecia alguma pessoa nessas condições ou se tinha ele
mesmo livros proibidos4.
Um diálogo desse tipo transgredia a regra fundamental dos interrogatórios ,
segundo a qual cabia ao acusado responder e explicar, competindo ao juiz apenas as
perguntas. E a coisa é tão singular a ponto de necessitar que se lhe dedique mais atenção.
4. ASM, lnquisizione, Processi, b. 57 , e. 165. Agradeço a Maria Carolina Capucci, que me fez ler sua dissertação de
graduação sobre esse processo (Libri Poibiti, Librai e Lettori nella Modena dei Primo Seicento, Universidade dos
Estudos de Bolonha, 1988-1989, vol. 1, p. 67) e forneceu-me gentilmente posteriores indicações.
5. "Este segredo es el alma dei sistema inquisitorial. Sin él no seria tan terrible, ni triunfaria la arbirrariedad, ~a
· · 1a superst1c1
1gnoranc1a, · 'ó n, eI f:anattsmo
· y 1as pass1ones
· personales de los jueces y subalternos" Ouan Antonio
Llorente, Historia Critica de la lnquisición en Espana, Madrid, 1980, vol. I, p. 178).
A Inquisição
227
6. N. Eymeric e F. Pena, Manuel des Inquísiteurs, ed. crítica organizada por Luis Sala-Molins, Paris, La Haye, 1973,
pt. Ill, cap. 41.
7. Como sublinha corretamente Michele Escamilla-Colin, "L'lnquisition espagnole et ses archives secretes", em
Histoire économique et sociale, IV, 1985, pp. 443-477.
8. Masini, Sacro Arsenale, op. cit., p. 4.
9. Cf. Yincenzo Paglia, "La Pietà dei Carcerati ". Confratemite e Società a Roma nei Secoli XVI-XVIII, Roma, 198º·
lo• "T10dos os d·ias aguem
1 · chega a San Domemco · e por não se ter jamais notícia de quem a11· ve10,
· aquele lugar
pode ser chamado inferno" (carta de Antonio Cerruti ao castelão de Mântua, 25 jul. 1567, citada por Pagano,
li Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 9).
A inqu isição
229
central recebeu em 1593 uma sede que se tornou definitiva 11 . Quanto às diversas sedes
locais, a consistência e a gestão de seus arquivos foi periodicamente controlada: no ato de
nomeação de um novo inquisidor, esse recebia do predecessor a consignação do arquivo,
descrito analiticamente na ata que era redigida; também as sedes vicariais eram obriga-
das a transmitir periodicamente as relações de seus documentos. Os vigários podiam
manter na sede apenas as coisas de menor importância e deviam expedir imediatamente
ao inquisidor os processos originais e todos os anexos. Não é por acaso que justamente
nessa época tenha tido início uma atividade de inventariação dos papéis existentes e de
controle de seu caráter secreto que devia ocupar dali em diante, de modo obsessivo, os
membros do referido tribunal' 2• O cuidado para com o segredo não chegou na Itália
aos ápices atingidos na Espanha, porque não houve ali nada equivalente à obsessão
bem espanhola da limpieza de sangre: e foi justamente em torno das provas de limpieza
que se desencadearam na Espanha tanto as calúnias e as investigações inquisitoriais,
como as tentativas de penetrar no segredo dos documentos processuais para utilizá-los
em proveito do poder pessoal e da eliminação dos adversários a partir da devastadora
acusação de descender de "cristãos-novos" 13 • Mas, de qualquer modo, proteger o segredo
dos documentos inquisitoriais não foi um problema de pouca monta também na Itália.
Toda essa preocupação com o segredo tinha como alvo o "réu". A condição do
acusado no momento em que se apresentava diante do juiz era - ou pelo menos deveria
ser - a de alguém que se voltava para si mesmo em busca da verdade, sem se deixar
distrair pelas paixões dos litígios humanos. Não devia ser distraído por nada: nem pelas
paixões externas nem pelos litígios pessoais. Era por isso que os testemunhos de acusação
deviam jurar, segundo a norma antiga, não serem movidos pelo ódio pessoal; nem o
acusado podia conhecer os nomes de seus acusadores, pois se devia evitar o despertar
de ódios pessoais e desejos de vingança.
Trata-se de condições ideais: na realidade, a denúncia, se não era necessariamente
fruto do ódio pessoal, era sempre sua semente. Por isso, a inquietação foi o sentimento
mais familiar aos acusadores: "Cuidai bem Vossa Senhoria em que no desejo de seguir
o que reza a justiça ... eu não seja nomeado", escrevia em 1549 um frade de Correg-
gio ao denunciar ao inquisidor um confrade; temia, justamente, ser vítima de "uma
11. Através de decreto de 23 de março, o cardeal Girolamo Berneri foi encarregado de cuidar da construção do
arquivo na sede do Santo Ofício (Pastor, "Allgemeine Dekrete", op. cit. , p. 52).
12. É conhecido o caso dos inventários redigidos por Calbetti em Módena (cf. A. Biondi, "Lunga Durata e Microar-
ticolazione nel Territorio di un Ufficio dell'lnquisizione", op. cit. , pp. 73-90; em part. pp. 81 e ss. Um inventário
analítico da sede de Pisa, redigido em 12 de fevereiro de 1586, enumera os documentos de acordo com o ano de
redação (AAP, S. Uffivo, f. 1, cc. n. n.): mais difuso é o critério de relação por tipos de documentos: um inventário
da sede florentina redigido em 1645 registra parte por parte os processos (37 volumes de processos "ligados") e
as cartas ("muitos maços de cartas") recebidas da congregação romana desde 1568 (ACAF, S. Uffivo, b. 11).
13. A "Suprema" estendeu a obrigação do caráter secreto a todas as denúncias e a todos os depoimentos em maté-
ria de limpieza e precisou reafirmar muitas vezes que quem violava o segredo incorria na excomunhão maior:
duas circulares sobre essa matéria, de 1607 e de 1628, foram publicadas por Juan Escobar dei Corro (Tractatus
Bipartitus de Puritate et Nobilitate Probanda Secundum Statuta S. Officii lnquisitionis, autor D. D. Joanne Escobar
em Corro, Lugduni, sumpt. Rochi Deville et L. Chalmette, 1733, p. 119).
Morone mal acabara de entrar na antecâmara, as portas foram fechadas, comparecendo em seguida
o cardeal Carafa, que comunicou ao colega que o papa tinha ordenado sua prisão no Castelo S. Ângelo[ ... )
portanto pelo corredor coberto que une o Vaticano ao Castelo S. Ângelo, o cardeal foi levado à prisão 17-
14. Carta de frei Pietro Sanotto de Correggio, 12 jun. 1549, publicada por Buschbell, Reformation und lnquisition,
op. cit., pp. 311-312.
15. Depoimento de Francesco Romano, 2 ago. 1557 (Archivio Arcivescovile di Udine, fundo S. Uffizio, b. 1, pro-
cesso n. 2; pude consultar sua edição organizada por Andrea Del Cal, ora no prelo, L'Inquisizione nel Patriarcato
e Diocesi di Aquileia, op. cit.).
16. Idem.
17. Pastor, Storia dei Papi, vol. VI, Roma, 1922, pp. 499-500.
A Inquisição
231
Portas fechadas , corredores cobertos, vozes abafadas: e aquele que era um dos
mais poderosos e conhecidos membros do colégio de cardeais vê-se na prisão de uma
hora para outra. Dão testemunho do espanto dos contemporâneos os informes que de
Roma circularam pelas cortes europeias e acabaram nas mãos de leitores estupefatos 18 •
Os autos de seu processo - ou pelo menos da cópia que o próprio Morone leu , pois
os originais, se existem, permanecem envoltos no mesmo segredo da época, no lugar
onde foram redigidos - revelam que durante anos , enquanto o cardeal frequentava a
corte papal, recebido com todas as honras , depoimentos contra ele eram colhidos e
indícios comprometedores procurados encarniçadamente 19 • Essa prisão foi excepcional
e pouco nos revela acerca das condições ordinárias do funcionamento da instituição.
A nenhum outro aconteceu , nem à época nem depois , ser aprisionado enquanto se
achava no centro da cena mais vistosa da cristandade, iluminada plenamente por um
aparato de informantes que estavam em contato cotidiano com os poderosos de toda a
Europa: nem ocorreu para outros a mobilização política e diplomática que houve ime-
diatamente para Morone. Mas, antes que o papa Paulo IV fosse obrigado pela insistência
unânime de poderosos como o imperador e o rei de Espanha a formalizar o processo
e a enviar juízes à cela do acusado , o cardeal Morone viveu no clima de incerteza e
de medo típico de qualquer outro prisioneiro do Santo Ofício. Sabemos qual era seu
estado de espírito pela "apologia" que escreveu e entregou em 18 de junho. Não havia
passado nem um mês desde a prisão, o isolamento foi interrompido em 12 de junho,
quando da visita dos cardeais aos quais o papa confiara a causa: no entanto, Morone
devia confessar que "devido à aflição na qual me encontro, perdi quase completamente
o sono". Esse tempo fora passado - segundo suas palavras - "a pensar e repensar" 20 : e
o resultado desses pensamentos foi um longo documento , composto de lamentações
e protestos, de meias admissões e de apaixonadas defesas; uma "apologia" , gênero
literário comum na tradição dos documentos processuais e sobretudo na tradição da
Inquisição. Se esse era o resultado de poucos dias de detenção para um homem de vasta
experiência e de consumada habilidade, além de dotado de amplas e poderosas redes
de relações, pode-se imaginar o que podia acontecer em condições normais. Decerto,
boa parte desses angustiantes pensamentos do período de detenção agitavam-se em
torno dos possíveis delatores. No caso de Morone, temos um testemunho preciso: na
cópia dos resultados processuais a seu respeito que lhe foi entregue para que pudesse
preparar sua defesa, os nomes das testemunhas de acusação, encobertos rigorosamente
pelo anonimato, foram reconstruídos pelo acusado com poucas incertezas. Os nomes
inseridos nos espaços interlineares no lugar do N . de ofício constituem o vestígio do
trabalho da memória que todo acusado teve que empreender - para defender-se melhor
18. Cf. a "Captura dei Cardinal Morono", publicada por Federico Sclopis, Le cardinallean Morone. Étude historique,
Paris, 1869, p. 90. Outros "informes" e despachos diplomáticos são utilizados por M. Firpo, lnquisizione Romana
e Controriforma, Bologna, 1992, pp. 266 e ss.
19. A pasta do processo de acusação abre-se com o depoimento de Giovan Barrista Scotti, de 1552: cf. Firpo e
Marcatto, Il Processo lnquisitoriale dei Cardinal Giooonni Morone, vol. 11, op. cit., p. 245.
20. Idem, p. 504.
das acusações , mas também para salvar o salvável de uma rede de relações sociais já
dilacerada pela desconfiança.
e ~
~ Cf. a respeito a ampla e importante pesquisa de Paolo Marchetti, Testis contra se. L'lmputato come Fonte di Pro1,1a
~ ne! Processo Penale dell'Età Moderna, Milano, 1994.
A Inquisição
233
O inquisidor é alguém que busca, indaga, quer descobrir a verdade: os manuais não
se cansam de repetir isso. Inicia seu processo movido essencialmente por uma única razão:
a suspeita. Certamente, os manuais distinguem corretamente as três formas de início:
a fama, a confissão, a denúncia; formas diversas, que entram parcialmente em ação no
processo de tipo acusatório. Mas, de fato , em todos esses casos a reação profissional que
é estimulada no juiz,policial é sempre a da suspeita. E a suspeita é a chave do processo.
Sobre o suspeito, recolhem,se indícios; quando se considera oportuno, manda,se prendê,lo.
Na prisão, aquele que já é definido "réu" permanece por todo o tempo que o inquisidor
julga necessário - para colher testemunhos ou, ainda, só para enfraquecedhe a resistên,
eia. Depois, ele é convocado diante do inquisidor: e aí começa propriamente o processo.
Quem tenha lido ainda que um único processo inquisitorial não esquecerá nunca
a pergunta inicial que o juiz faz ao "réu" (isto é, o acusado, que deve demonstrar ser
inocente): se sabe ou imagina a razão por que está ali, a culpa de que é acusado. A esse
ponto, o réu pode decidir confessar, ou então tentar defender,se, negar: mas a pergunta
já lhe disse que o juiz sabe.
Desde as primeiras frases , o diálogo entre inquisidor e inquirido é uma luta, uma
prova de força; sobretudo uma prova de astúcia. Não faltam motivações teológicas: o inqui,
sidor é advertido de que deve levar em conta a natureza do adversário. O demônio é o pai
da mentira. O inquisidor, se quer lutar com ele, deve ren'unciar à candura das pombas e
aprender a astúcia da raposa. E por isso, ainda que lhe seja proibido dizer mentiras explícitas,
não deve dizer o que efetivamente conclui. Pertencem às regras do jogo a duplicidade e a
bondade fingida do inquisidor. O acusado pode desabar logo; mas também há aquele que
se recusa a confessar. Com ele, deve,se tecer uma complexa teia de aranha. O acusado deve
acreditar que o inquisidor é bom e misericordioso. Pessoas serão mandadas para tentar
induzi,lo a confessar, dizendo,lh,e que se o fizer poderá provar a bondade do juiz. Ademais,
desde o início do processo, o juiz usará para com o acusado palavras boas e fingirá conhecer
suas culpas mas compadecer,se dele; só se lhe pede que confesse, que diga os nomes dos que
o induziram à heresia. Em troca, promete,se,lhe tratá,lo com brandura. O acusado persiste
na negativa? Então o juiz pegará o processo e o folheará diante dele, dizendo: mas como
pode negar todos esses depoimentos das testemunhas contra você? Porém, jamais cometerá
a ingenuidade de entrar nos detalhes, permanecendo nas generalidades, de modo que o
acusado não se dê conta de que o inquisidor mente. Se o acusado não cede nem assim,
deve,se ameacá,lo com uma longa permanência na prisão; e se ainda persiste na negativa,
deve,se multi~licar as perguntas de modo a fazê,lo cair em contradição, colhendo assim
indícios suficientes para poder submetê,lo à tortura. Enfim, sempre pode ser posto na
cela dos espiões, possivelmente antigos amigos do acusado que depois se arrependeram: o
guarda da prisão ou até O próprio inquisidor escutarão às escondidas num local contíguo
(ainda que, a rigor, 0 inquisidor não devesse escutar o acusado a não ser em juízo). São
22
esses, literalmente, os conselhos que se leem no manual de Umberto Locati •
22. U. Locati, ]udícíale Jnquisitorum, Romae, apud haeredes Bladii, 1568. No exórdio da obra, Locati menciona
uma primeira redação da obra em vernáculo, que todavia não foi encontrada.
23. Veja-se do autor deste volume "Madonne di Città e Madonne di Campagna", em Culto dei Santi. lstituzioni e
Classi Sociali in Età Preindustriale, org. por S. Boesch e L. Sebastiani, Aquilla, 1984, pp. 623 e ss.
24. Tractatus Illustrium in utraque tum Pontificii, tum Caesarei Iuris Facultate lurisconsultorum. De Iudiciis Criminalibus
S. Inquisitionis, t. XI, pars II, Venetiis, F. Zilettus, 1584.
A Inquisição
235
25. Nicolaus Eymericus, Directorium lnquisitorum, Romae, in aedibus Populi Romani, 1587 (a primeira edição é de
1578), p. 422.
26. Carta ao Pe. Marino Zotto, inquisidor de Veneza, de Pádua, 12 nov. 1549 (BAV, Borg. Lat. 300, f. 151).
27. Despacho de Navagero de 28 de outubro de 1557 (Biblioteca Universitária de Pisa, ms 15, c. 569v.). Pastor,
que tirara outra lição desse célebre despacho, viu nele apenas uma reação de Paulo IV à fuga para Genebra de
Galeazzo Caracciolo, marquês de Vico e seu parente por parte de irmã (Pastor, Storia dei Papi, VI, p. 508). Havia
muito mais coisa: tratou-se - como notaram Firpo e Marcatto, Il Processo lnquisitoriale del Cardinal Giovanni
Morone, op. cit., II, p. 35 - de um longo e ameaçador desabafo do papa contra a "escola maldita" de Pole e de
Morone, contra a qual prenunciou rigorosas medidas: "Estamos prontos a agir e a dar uma surra".
28. Carta de C. Musso citada anteriormente, nota 26.
estudava" 29 • Os homens do Santo Ofício não eram insensíveis a esses apelos. Nas cartas
aos inquisidores locais, encontra-se frequentemente referência à obrigação de prover
os acusados pobres de defensores públicos: "Se por pobreza não tiverem condições de
arcar com as despesas do advogado e do procurador, queira V. Rev. providenciá-los ex
officio para que não fiquem indefesos" , escrevia o cardeal Borghese (depois papa Paulo
V) ao inquisidor de Florença em 1603 30 • E, no entanto, o objetivo ao qual tudo estava
subordinado era a obtenção da verdade. Na mesma carta, o cardeal Borghese explicava as
passagens formais que aquela causa particular devia ter, reforçando porém a cada passo
que tudo visava a um único objetivo: "chegar com maior clareza à verdade", "encontrar
a verdade" , "encontrar melhor a verdade" 31•
A verdade devia sair da boca e do coração do acusado . O juiz não podia sugerir
nenhuma resposta. O periculum suggestionis devia ser evitado a qualquer custo; por
isso, nada de perguntas sugestivas e nada de induções de respostas , nem mesmo na
forma do apressado remate de respostas (praeire). As respostas deviam ser decifradas ,
desentranhando-se todas as muitas formas sob as quais a mentira podia se ocultar: da
reserva mental às respostas equívocas, os manuais dos inquisidores trazem um rico
repertório da retórica da mentira.
Ao campo das meias admissões, das armadilhas verbais, da falsa ignorância, das
piscadas para conferir um sentido diferente às palavras, o acusado era fatalmente con-
duzido, uma vez descartada a estratégia da oposição frontal - ou seja, quase sempre.
Se a grande maioria dos acusados movera-se decididamente rumo à abjuração, deve-se
dizer no entanto que não encontraram um caminho fácil pela frente. O perdão era
concedido a quem se arrependia, não a quem tentava enganar e ocultar ainda que só
parcialmente a verdade: eram esperados sinais indubitáveis do arrependimento - listas
de cúmplices, revelações de tramas ocultas. Se esses sinais não ocorriam, o réu era
considerado fortemente suspeito ou até mesmo "herege negativo". A escavação do in-
terrogatório dirigia-se em profundidade aos impulsos da consciência, à intenção com
que tinham sido feitas ou ditas certas coisas. Nos processos, a pergunta super intentione
ocupou um lugar cada vez mais importante no decorrer do tempo. Mais do que a rea-
lidade de certos atos - por exemplo, o pacto com o demônio - importava a intenção
subjetiva de quem o praticara.
29. Carta do cardeal Del Monte ao cardeal Cervini, Bologna, 17 ago. 1549, em Buschbell, Reformation und Inqui-
sition, op. cit., pp. 312-313.
30. Carta de 16 de agosto de 1603 (Bruxelas, Archives générales du Rcryaume, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, c.,560r).
31. Até mesmo uma irregularidade no processo em questão - ter promovido a acareação entre acusados e teste·
munhas "contra o estilo do S. Ofício" - podia servir para tal objetivo.
A Inquisição
237
32. "Convocada oficialmente, Angela apresenta-se em 22 de outubro de 1698 diante do inquisidor. Declara não
saber do que se ocupa o Santo Ofício"; e o inquisidor explica-lhe que o tribunal ocupa-se não só de quem
ofende a Deus de vários modos, mas também "de his qui sub specie sanctitatis aliquod malum faciunt et
sanctitatem affectant" (Luísa Ciammitti, "Una Santa di Meno. Storia di Angela Mellini", Quademi Storici, n.
41, maio-ago. 1979, pp. 603-639; em part. pp. 604 e 634).
ric e nas anotações de Pena não há qualquer indicação que nos ajude; e nem quando
mais tarde, foram preparadas instruções e modelos de processos para ajudar vigários~
inquisidores na execução de suas práticas, essa pergunta foi prevista. O difundido Sacro
Arsenale de Masini propunha interrogatórios do tipo: a um acusado de heresia, após
a pergunta inicial se sabia ou imaginava a causa de sua captura, devia-se perguntar se
conhecia hereges, magos, feiticeiros , encantadores, blasfemos , leitores ou possuidores
de livros heréticos, ou outros que tivessem as mesmas características dos suspeitos de
heresia33 • Mas a fórmula variava. Em uma causa por bigamia, devia-se perguntar ao
acusado se conhecia alguém que dissesse ou praticasse algo contra a santa fé católica _
por exemplo, alguém que tivesse mais de uma mulher 34 .
É evidente o esforço de dirigir a atenção do acusado para o crime que lhe diz
respeito. É um esforço para dizer e não dizer ao mesmo tempo: era preciso dirigi-lo
para o caminho certo sem sugerir-lhe a resposta. Mas, se era o inquisidor a descrever
os contornos do campo, acabava por sugerir ao acusado qual era a acusação contra ele,
chamando sua atenção justamente para aquele tipo de crime. E situa-se aqui uma das
razões pelas quais, na práxis dos tribunais italianos, espalhou-se bem depressa o hábito
de pedir ao acusado para enumerar ele mesmo os crimes de âmbito inquisitorial. Mas
há ainda mais duas razões ao menos, dessa aparentemente marginal inovação proces-
sual: uma reside na vocação pedagógica da Igreja tridentina (era preciso que os leigos
soubessem a quais autoridades eclesiásticas estavam sujeitos e por quê) e outra no fato
de que os limites do campo inquisitorial tinham sido ampliados desmesuradamente
em relação ao início; era necessário verificar se isso era ou não sabido. Em todos esses
casos, torna-se evidente a nova e decisiva importância da relação entre o juiz e a cons-
ciência do réu.
33. "An cognoscat aliquos haereticos, magos, sortilegos, incantatores, blasphemos, libros haereticales tenentes ac
legentes, et alios huiusmodi suspectos de haeresi" (Sacro Arsenale, Overo Prattica dell'Officio della S. lnquisitione,
op. cit., p. 131).
34. "An cognoscat aliquam personam dicentem, aut facientem aliquid, quod sit contra sanctam fidem catholicam,
et praesertim plures simul uxores habentem" (idem, p . 238).
A Inquisição
SEGUNDA PARTE
A CONFISSÃO
PREMISSA
QUESTÕES DE CONSCIÊNCIA
1. Cf. Ruth Lindemann, Der Begriff der conscience im franzõsischen Denken, (Berliner Beitriige zur romanischen
Philologie hsg von E. Gamillscheg und E. Winker, B. VIII, Heft 2), }ena/Leipzig, 1938; e recentemente La
liberté de conscience, XVIE et XVIIE siecles, org. por H. R. Guggisberg, F. Lestringant e J.-C. Margolin, Geneve,
1991. Mas deveriam ser recordados ao menos, para a tradição italiana, as obras de Francesco Ruffini e a de
Delio Cantimori.
l
242
ção liberal encarnada por Benedetto Croce chegou até a avaliar positivamente a obra da
Igreja - no sentido de hierarquia eclesiástica - pela função que desempenhara ao impor
uma disciplina ao povo e - no caso italiano - ao manter a unidade da fé de um povo
politicamente dividido.
A confissão é um ponto obrigatório para tratar desse problema mais geral. No
confronto entre a penitência como "conversão" , volta para si mesmo, caminho para
Deus, e a confissão como tribunal das culpas está contido o conflito mais amplo entre
uma religião da consciência e uma religião da autoridade. O confronto, no entanto, não
é traduzível em uma simples e clara justaposição de igrejas diferentes, mas perpassa no
interior as igrejas, mesmo a católica. Isso se torna evidente finalmente pelos resultados
de muitas e importantes pesquisas.
Uma breve história da questão , que não é possível estender aqui além de refe-
rências sumárias, encontra um ponto firme na Historia del Concilio Tridentino de Frei
Paolo Sarpi: os debates de Trento sobre a confissão foram narrados por ele com sua
extraordinária capacidade de transformar os documentos em um discurso vivo, ilumi-
nado por profundas convicções pessoais, que no entanto nunca se separam do assunto
da narração. Foi protagonista de sua narrativa, onde são tramadas continuamente as
fontes colhidas com cuidado, o espírito de "dominação" e de "avareza" dos padres
tridentinos. A imagem da confissão como um rito esvaziado de toda capacidade regu-
ladora dos comportamentos morais, reduzido à prática repetitiva por um povo a que
ninguém pedia realmente para mudar e por um clero contente de ter restabelecido
seu poder é a que A Relation of the State of Religion de Edwin Sandys colheu a partir do
testemunho de Sarpi e divulgou na Itália sujeita ao papado. A história dos conflitos
religiosos do século XVI, vista primeiro como luta entre verdade evangélica e anticristo,
depois como luta da razão contra a superstição (Voltaire), encontrou no fio do poder
indicado por Sarpi o indício mais consistente quando foi necessário tratar a questão
da confissão: A History of Auricolar Confession and lndulgences in the Latin Church, de
Henry Charles Lea, é o monumento, com um século de idade mas ainda não supera-
do, desse tipo de historiografia 2 • A questão tal como vista por Lea foi justamente a da
confissão como domínio das consciências exercido por uma casta. E as pesquisas de
Ignaz von Dõllinger sobre as controvérsias de teologia moral do século XVI não partiam
, de modelos muito distantes.
! Todavia, a questão não era só de poder, ou de exercício deliberado do controle
de uma casta sobre o resto da população; era também a de interpretar as necessidades
às quais a oferta eclesiástica respondia, em competição e em conflito com outras. A
· historiografia do século XX, que encontrou seu campo nos fatos mentais, não podia
ignorar esse aspecto da questão. E, no entanto, por ora não são muitos os resultados que
podem ser enumerados nesse ainda que breve balanço. Um pelo menos, todavia, deve
1 ser lembrado, o de Lucien Febvre, a cujo memorável ensaio de 1929 sobre as origens
1, da Reforma deve-se a clara explicitação sobre o que garantiu o sucesso da Reforma: ª
ij
2. Henry Charles Lea, A History of Auricolar Confession and Indulgences in the Latin Church (1896), New York, 1968•
A Confissão
243
3. Cf. Jean Delumeau, Le péché et la peur, 1983. Trad. italiana Il Pecato e la Paura. L'Idea di Colpa in Occidente dai
XIII ai XVIII Secolo. Bologna, 1987, p. 12.
4. Cf. Jean Delumeau, I.:aveu et le pardon, 1990. Trad. italiana La Confessione e il Perdono. Le Difficoltà della Confessione
dal XIII ai XVlV Secolo. Cinisello Balsamo, 1993, p. 40.
A Co nfissão
245
5. Cf. para um quadro geral da evolução da teologia moral, Louis Vereecke, De Guillaume d'Ockham à saint A!phonse
de Liguori: études d'histoire de la théo!ogie mora!e modeme 1300-1787, Roma, 1986.
6. Cf. Jean Delumeau, I.:a\leu et !e pardon, op. cit, ed. it., PP· 41-42.
1. A observacão é de Francisco Tomás y Valiente, "Relaciones de la lnquisición com el Aparato Institucional del
Estado", e~ La lru:Juisición Espanola. Nueva Visión, Nuevos Horizontes, org. de Joaquín Perez Villanueva, Madrid,
1980, pp. 41-60, em part. p. 59.
248
que fosse . Mas, ao lado de processos de longa duração, houve também intervenções
deliberadas do alto: as autoridades da Igreja católica foram particularmente solícitas no
uso do canal da confissão ou como meio para resolver sem violência os casos se heresia ,
ou como instrumento policial para reconhecer os hereges ocultos.
Na literatura normativa da época, ocorre um dilúvio de ordens e de proibições
que encontram o único êxito possível na relação com os confessores. É como um duplo
movimento, descendente - ordens da autoridade ao povo - e ascendente - informações
do povo à autoridade. Por um lado, trata-se de regular a válvula da absolvição para obri-
gar à observância de determinadas ordens quem , de outro modo , não teria dado a elas
a devida atenção, por outro, trata-se de aproveitar o conhecimento que é despejado no
ouvido do confessor para saber aquilo que de outro modo permaneceria secreto. Todas
as autoridades de todo tipo estavam interessadas em um e outro movimento; mas, de
fato , apenas as autoridades eclesiásticas tinham legítimo acesso aos mecanismos que
disciplinavam os confessores. De todo modo, ambos os movimentos baseiam-se em um
dado de fato , tão óbvio e macroscópico que poderia nos escapar: a absoluta necessidade
que tinham os homens da época de obter periodicamente a absolvição das culpas.
O confessionário atraiu (e frustrou) muitas curiosidades, estimulou fantas ias
romanescas, mas sempre acabou parecendo sigiloso aos historiadores pelo duplo sigilo
da oralidade e do segredo. O resultado foi o de limitar o olhar dos historiadores aos
dados mais grosseiros e exteriores - o controle eclesiástico do mundo dos leigos, a luta
entre autoridade e liberdade de consciência. Houve o esquecimento, em épocas mar-
cadas pelo conflito de poder entre Estado e Igreja, de um aspecto da confissão que no
entanto deveria ter estado sempre presente: o rito da periódica eliminação das culpas
não depende apenas de uma longa obra de persuasão e de imposição do exterior, mas
apresenta um profundo e vasto enraizamento que já na época em questão emergia da
comparação etnográfica. Em suma, a Igreja trabalhava no sentido de modelar uma
matéria que já encontrava disponível. A oferta de confessores e de incentivos à confis-
são manteve-se com dificuldade perseguindo a demanda: por isso, a difusão de uma
rede capilar capaz de oferecer escuta e perdão a quem queria aliviar-se de suas culpas
precisou seguir pari passu com uma regulamentação atenta do fenômeno, capaz de
controlar seus impulsos potencialmente eversivos. Quando for possível acompanhar os
desenvolvimentos teológicos, jurídicos, institucionais e sociais da confissão na longa
Idade Média das sociedades pré-industriais europeias, poderemos também começar a
compreender melhor quão grande era o espaço ocupado por essa história e que vazio
deixou à idade sucessiva.
Era inevitável que os tribunais de gênero diferente tentassem aproveitar-se disso,
tanto mais que a confissão tinha a sinceridade do penitente entre suas características ori-
ginais. O discurso dirigido a Deus através do confessor devia ser sincero, sem reticências.
Muitas e muitas vezes encontra-se registrada nos autos da Inquisição a declaração dos
acusados quanto ao desejo de serem sinceros como diante do confessor. Era justamente
dessa sinceridade absoluta do penitente que os inquisidores queriam usufruir. Era ali
que desaparecia a opacidade ordinária daquele mundo das intenções e dos pensamentos
A Confissão
249
secretos que tornava tão laboriosa a atuação do tribunal da fé . Mas como captar o fluxo
oculto dos pensamentos, liberado mas ao mesmo tempo protegido pelo segredo da
confissão? Naturalmente, não eliminando o segredo, condição essencial da sinceridade.
Mas podia-se abrir e fechar com controle a porta do perdão: visto tratar-se de poderes
internos ao mundo eclesiástico, foram os tribunais eclesiásticos que alavancaram o po-
der reconhecido à Igreja de incluir ou excluir dos sacramentos, de conceder ou negar o
perdão das culpas. Assim, podia acontecer de um tribunal eclesiástico valer-se do poder
de excomunhão para tornar mais eficiente aos olhos laicos seu serviço em matéria de
cobrança das dívidas: é o caso estudado por Lucien Febvre, do tribunal episcopal de
Besançon que, em pleno século XVI, recorria à ameaça de excomunhão para obrigar os
devedores ao pagamento - e, graças a esse poder, podia rivalizar em condições de van-
tagem com os tribunais laicos que tratavam do mesmo assunto 2• Quando conhecermos
um pouco melhor o funcionamento das cúrias episcopais contemporâneas, o caso de
Besançon poderá resultar menos extravagante. Mas não é de excomunhão que devemos
nos ocupar aqui, e sim de confissão: e, nesse terreno, deve-se logo registrar a concorrên-
cia bastante ativa entre bispos e inquisidores para estabelecer a quem competia usar o
poder de abrir e fechar a torneira das absolvições.
Ao uso judiciário - no sentido de "foro externo" - da confissão, opunha-se já
então um uso da Inquisição em forma de escuta paternal e compreensiva, de clemência
e perdão, em forma de "foro íntimo".
Em Roma, em 1552, dizia-se que o cardeal Carafa pretendia mudar de método
e "proceder doravante com brandura" ; e por isso desejava "investir muitos confessores
aos quais todos podem ir confessar seus pecados e receber a absolvição" 3 • Não é fácil
imaginar o feroz e desconfiado inquisidor inclinado a pensamentos de brandura. Mas
se refletirmos sobre o contexto em que essa afirmação era feita, talvez seja possível
reconhecer-lhe certa dose de verossimilhança. Era recente, então, a lembrança do golpe
mortal desferido no movimento da Reforma na Itália graças à delação do padre origi-
nário das Marche (e bispo anabatista) Pietro Manelfi. O sucesso estrepitoso fora obtido
justamente graças à estratégia da brandura: o estandarte da misericórdia, hasteado pela
nova política de Júlio III, garantia aos arrependidos a abjuração secreta e a absolvição
plena4. Era um momento de prestação de contas: quem tivera alguma responsabilidade
no movimento reformador e vira com simpatia as ideias "luteranas" devia escolher entre
um reingresso O mais indolor possível e a fuga para fora da Itália. O rigor demonstrado
pelo tribunal romano fazia desejar uma mudança de rota para quem, decepcionado e
2. L. Febvre, "Un Abuso e il suo Clima Sociale: La Scomunica per Debiti in Franca Contea", em Studi su Riforma
. •
e Rmasc1mento e altn· SCTI·rt·1 su P~oblemi
•
di Metodo e di Geografia Storica, trad. Corrado Vivanti, org. por Delio
Cantimori Torino, 1966, pp. 205-231.
Gi·rolamo Seripando Roma, 24 dez. 1552, em M. Firpo e D. Marcatto, ll Processo
3. earta d e A'ugusto C occ1ano
•
a •
lnquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op. cit., vol. II, P· 57 3 nota.
. . M· . , d 5 d ·unho de 1550 (Bullarum, Privilegiorum ac Diplomatum Romanorum Pontificum
4. Ah ula Ili1us qu1 1sencors e e e1
. . lle . d' Caroli Coquelines, Romae, 1745-1747, ed. Anast. Graz, 1965, vol. IV/ 1,
Amp!1ss1ma Co ctw, opera et sru LO
col. 266 e ss.).
vencido, esperava poder reingressar na vida ordinária da sociedade, sem ter que pagar 0
duro preço de abjurações públicas ou pior ainda. E não faltavam vencidos . Ainda que a
propaganda protestante continuasse a alimentar esperanças, o movimento reformador
na Itália estava em retirada em todas as suas variantes: desde a antitrinitária e anabatis-
ta, destruída após a delação de Pietro Manelfi, àquela que seguia os modelos luterano
ou "sacramentário" (zwingliano ou calvinista), até o confuso mundo dos "espirituais"
que liam Valdés e confiavam no cardeal Pole. Até mesmo a mais moderada tendência
de reforma disciplinar e moral da igreja católica não atravessava um momento positivo
sob o pontificado de Júlio III. Para todos aqueles que tinham razão de temer, a alter-
nativa entre brandura e rigor traduzia-se em termos institucionais numa escolha entre
confissão e inquisição - ou, mais precisamente, entre a confissão no foro penitencial
e a confissão no foro contencioso: a diferença era que na primeira o perdão estava ga-
rantido , ao passo que a segunda acarretava uma pena 5 • Cancelar a culpa da heresia no
segredo da confissão e assim escapar da prisão e da tortura, da deshonra da abjuração
pública, quiçá da própria morte: era uma solução libertadora para muitos que tinham
razão de temer. É provável que, além da abjuração de Manelfi, um repicar de ocorrências
menores tenha levado então os membros do Santo Ofício romano a prosseguir nesse
caminho 6• Parece que, nessa época, os inquisidores iam ao encontro dos arrependidos
com um sorriso nos lábios, aliás, "com muita caridade e alegria" 7•
Para quem detinha o poder eclesiástico, a política da misericórdia também podia
parecer uma escolha oportuna, por razões de sensibilidade - o perdão evangélico, a acolhida
festiva às ovelhas tresmalhadas, - ou simplesmente por motivos de cálculo político: reduzir
a esfera da dissensão, permitir aos incertos, aos temerosos, aos vencidos um reingresso sem
riscos. Razões desse tipo eram certamente ouvidas no mundo eclesiástico italiano, onde
tinham vindo à tona já antes e onde cada vez mais deviam retornar a ser propostas. A mesma
divisão entre concílio e Inquisição no que se refere à abordagem de casos individuais de he-
resia encontra-se nessa oposição de métodos: em termos gerais e salvo exceções e preferências
individuais, opunham-se o modo pastoral e o judiciário de abordar a questão do herege.
Por trás dos dois modos havia corporações e poderes constituídos, opunham-se formações
intelectuais e forças reais. Havia, por exemplo, uma oposição entre a ordem dominicana,
fiel à sua tradição de guardiã da fé, e o clero que se dedicava à cura das almas - bispos e
párocos. Mas é impossível traçar linhas nítidas de divisão. Houve bispos pertencentes à
ordem dominicana, como Egídio Foscarari, que defenderam a oportunidade da maneira
5. Uma definição ponrual das formas da confissão segundo o foro que julga é fornecida por Umberto Locati (Praxis
Judiciaria l114uisitorum F. Umberti Locati Placentini Episcopi Balneoregiensis, ord. praed., Venetiis, apud Damianum
Zenarium, 1583, c. 50r).
6. Duas absolvições pronunciadas pelo inquisidor de Bolonha, frei Leandro Alberti, em 1551 foram documentadas
por Dall'Olio, Eretici e l114uisitori, tese op. cit. , pp. 155-156.
7. Fato atestado por Pietro Bresciani a propósito da acolhida recebida pelo inquisidor Girolamo Muzzarelli (cf.
Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano, op. cit. , p. 411). Devia ser verdade: nas atas do depoimento de
Manelfi lê-se que o inquisidor bolonhês frei Leandro Alberti recebeu-o, em 17 de ourubro de 1551, com ama-
bilidade e sorrindo (libenti animo et hilari fronte): cf. Ginzburg, I Costituti di Don Pietro Manelfi, op. cit. , P· 31.
A Confissão
251
8. Cf. "Prólogo", nota. 9.S . della Storia di Lucca ... con Sce lta degl'ln d·1cat1. Document1,. org. d e Car lo M·muto11,·
9. Girolamo Tommas1, ommano . Ad .B . U e· , I ♦. .
m é referida por S1monetta orm- racces1, na ttta nietta, op. ctt. ,
Firenze, 1847, PP· 165-168 (ª passage
pp. 320-321.
.B . Una Città Infetta, op. cit., p. 326. . . .
10. Adom1, raccesi, . d d L cca em Roma, em que a proposta e mencionada, data de 6 de Janeiro
11. Idem, p. 335 (acarta do embaixa or e u
de 1554). .. . l de 26 de junho de 1555).
12. Idem, p. 339 (resumo da audiencia papa
Mas esse sinal de interesse no que se refere à confissão por parte de Gian Pietro
Carafa, ou seja, do maior defensor da Inquisição, demonstra que na metade do século
XVI os dois sistemas - o do perdão e o da vingança - não podiam mais conviver lado
a lado, ignorando-se: chegara o momento de uma prestação de contas. O encontro era
inevitável: o poder de absolver as culpas em confissão estava solidamente nas mãos
do clero, mas o poder da estrutura eclesiástica em seu conjunto estava ameaçado pela
heresia . E a heresia significava sedição política, subversão da ordem . O sistema de
pensamento da segunda escolástica, elaborado pelos dominicanos espanhóis em sua
fortaleza de Salamanca, com sua moderníssima atenção às questões do poder, lançara
as bases teóricas do problema da relação entre confissão e tutela da ordem existente.
Opunham-se aqui duas exigências conflitantes: de um lado, a necessidade de enfrentar
a heresia , de outro a tutela do caráter secreto da confissão. A ameaça da heresia era a
mais grave entre quantas se podiam imaginar: era um crime de lesa-majestade humana
e divina, subvertia a ordem pública. Os heresiarcas eram por sua natureza perverso-
res do povo. A exigência da defesa da ordem constituída abria brechas no muro do
secretismo absoluto da confissão: o confessor podia denunciar o herege que tentara
conquistá-lo com suas ideias, mesmo se isso tinha acontecido durante a confissão. Se,
ao contrário, o herege arrependido revelava-lhe nomes de cúmplices e conventículos
secretos, o confessor - tinha ensinado Domingo de Soto - devia exortar o penitente a
revelar a identidade dos cúmplices; e o penitente era obrigado a revelá-los se sua culpa
prejudicava o estado (in perniciem Reipublicae) 13• Ora, é verdade que, ao menos segundo
alguns, todos os pecados prejudicavam a sociedade (in perniciem publicam). Mas, de fato ,
já então era geralmente aceita a distinção entre o caráter privado da quase totalidade
1 dos pecados e a periculosidade pública de duas culpas, a de heresia e a de traição polí-
' tica. Somente nesse último caso era obrigatório intervir imediatamente, denunciar as
tramas em andamento, descobrir os cúmplices (a menos que, no entanto, eles tivessem
abandonado suas opiniões). Por outro lado, era absolutamente indispensável proteger
o segredo da confissão: a qualquer custo, mesmo mentindo e jurando falso, mesmo ao
preço da própria vida. O sigilo da confissão era de iure divino: isso significava que nem
mesmo o papa, nem mesmo toda a igreja tinha o poder de dispensá-lo. Se o segredo
fosse retirado, então ninguém mais se confessaria; e sem a confissão, a religião cristã
arruinar-se-ia e com ela a moral coletiva. Domingo de Soto era o confessor do imperador
Carlos V: e esse título, exibido até no frontispício de sua obra, era suficiente para recordar
aos leitores quanto o poder do confessor colocava-se acima das hierarquias humanas 14 •
13. "Nullus convictus de proprio crimine debet interrogari de occultis sociis 1... 1Excipitur casus quando crimen est in
pemiciem publicam, sicut est haeresis et proditio 1...1lmmo, quamvis non interrogaretur, admonendus esset a con-
fessore ut proderet socios: et ille tenetur prodere [... ]" (Domingo de Soto O. P., Relectio de Ratione Tegendi et Detegendi
Secretum, Salmanticae, 1541, membr. 2, q. 6, concl. 4, 56v-57v). Segundo o dominicano Umberto Locati, no caso
hipotético do proselitismo herético no confessionário eram defensáveis tanto a tese da obrigação do confessor de
denunciá-lo, como a oposta, da obrigação de proteger o segredo a todo custo (Praxis Judiciaria Inquisit01Um, c. 60r).
14. Relectio F. Dominici Soto Segobiensis Theologi ordinis Praedicatorum, Caesareae Maiestatis Caroli V a Sacris Confessio-
nibus de Ratione Tegendi, et Detegendi Secretum, Brixiae, apud Petrum Mariam Marchetum, 1582.
A Confissão
253
necessário, portanto, manter firme o limite entre foro íntimo e foro externo, até mesmo
para garantir a plena sinceridade da confissão.
De fato , os inquisidores eram tentados a não respeitar esse limite justamente por-
que a partir das confissões sacramentais, secretas e portanto presumivelmente sinceras ,
podia-se chegar a preciosas informações. Bem antes que a Reforma luterana fizesse vir à
tona o problema em termos novos, dos lados da Itália onde se estabelecera a Inquisição
espanhola tinham chegado notícias aterradoras. Uma crônica da época narra que em
1510 muitos frades e padres tinham abandonado a Sicília para escapar aos maus-tratos
de inqu isidores à caça de hereges (ou seja, à época, de judaizantes):
O Inquisidor queria que os monges e os padres revelassem os pecados daqueles que se tinham
confessado com eles, e o Inquisidor mandara prender alguns padres, martirizara-os, dando-lhes os
dados na mão , e outros martírios, até que os tivessem revelado 20 •
A vontade de saber era tanto mais forte quanto mais elevado era o senso de perigo: e
o senso de perigo que se espalhou nas cúpulas da estrutura eclesiástica italiana em meados
do século XVI não foi absolutamente menor do que o armado pela Inquisição espanhola
contra os judeus, à procura de falsos convertidos. A ameaça era a de uma heresia que
dilacerava a cristandade: não uma das heresias experimentadas pela Europa medieval,
uma rebelião limitada a um grupo humano, a um país, mas uma série de doutrinas que,
surgidas a partir de Lutero (e daí o uso genérico e coletivo do termo Lutherana haeresis),
tinham se espalhado por toda parte, revelando uma extraordinária capacidade de conquista
de populações inteiras e de seus príncipes. Era uma realidade completamente nova: e
não era suficiente para esconder tanta novidade o fato de que, para condenar as novas
doutrinas, fossem apresentadas como reformulações de antigas heresias já condenadas.
À novidade da situação adaptavam-se as imagens tradicionais, como a que equiparava o
perigo da heresia ao da peste. Era a última em ordem de tempo: antes da Peste Negra de
1348, fora precedida das imagens de outras doenças temidas e repugnantes - a escabiose,
a lepra. Era uma imagem de implicações muito fortes. Sugeria imediatamente o recurso
às normas sanitárias que o mundo citadino mediterrâneo tinha elaborado para enfrentar
as ameaças mais graves à saúde pública: separar os sãos dos infectados, isolar e queimar
os veículos de contágio. Não se tratava apenas de imagens e de analogias, mas de realida-
des que na linguagem das autoridades eclesiásticas eram apresentadas como munidas de
um liame causal, genético. A heresia era a causa da peste e de qualquer outra maldição
divina - aridez e carestia, guerra e discórdia 21 • Por isso, devia-se combatê-la sem piedade.
20. Do Giomale de Giuliano Pássaro, citado por Pietro Napoli-Signorelli, Vicende della Coltura nelle Due Sicilie dalla
Venuta delle Colonie Straniere sino a' nostri Giomi, vol. IV, Napoli, 1810, p. 33.
21. Onde se permite a liberdade de difusão à heresia, - pregava San Cario Borromeo - "quid mirum postea, si iis in
locis [... ] pestes exoriatur, agri fruges non ferant, coelum imbres contineant, civiles oriantur discordiae, omnia
denique malorum genera adveniant [... ]?" (S. Caroli Borromaei, Homiliae, Mediolani, 1747, vol. III, p. 232).
Trata-se de um aspecto da denominada "pastoral do medo" (cf. Carla Delcorno, "Forme della Predicazione
Cattolica fra Cinque e Seicento", em Cultura d'Élite e Cultura Popolare nell'Arco Alpino fra Cinque e Seicento,
A Confissão
255
Quando começa a peste e dois ou três casos são descobertos - disse Michele Ghislieri ao em-
baixador florentino em fevereiro de 1559 - imediatamente os príncipes, para a saúde de toda a cidade
e de seu domínio, mandam queimar todas as coisas encontradas nas casas infectadas, para que não
haja oportunidade de infectar outras e não levam em consideração o prejuízo sofrido pelos afetados 23 •
org. de Ottavio Besomi e Carlo Caruso, BaseVBoston/Berlin, 1995, pp. 275-301 ; em part. p. 294). Sobre a
imagem da heresia como peste cf. R. I. Moore, "Heresy as Disease", em The Concept of Heresy in the Middle Ages
(11 th-13 th C.), org. de W. Lordaux e D. Verhelst, Leuwen - The Hague, 1976, pp. 1-11.
22. Técnicas desse tipo são descritas em um livro que é um modelo de propaganda disfarçada: o Dialogo di Giacopo
Riccamati Ossanese nel qual si Scuoprono le Astutie con che i Lutherani si Sforzano d'lngannare le Persone Semplici , s. 1,
1558. Sugere-se aí a publicação de obras de propaganda religiosa "com um titulo, qual o artifício do raciocínio
conseguisse: ou seja, que não assuste os homens escrupulosos, mas convide-os a lê-las"; depois, para que fossem
lidas, "atirar pelos caminhos algumas cópias de tal modo que possam parecer perdidas; poderiam ser deixadas
por viandantes nas estalagens como se esquecidas" (pp. 38-39).
23. Citado por A, Panella, "l.;lntroduzione a Firenze dell'Indice di Paolo IV", Rivista Storica degli Archivi Toscani,
I, 1929, p. 17. Cf. agora). M. De Bujanda, "lndex de Rome 1557, 1559, 1564. Les premiers índex romains et
l'index du Concile de Trente" (Index des livres interdits, v. VIII), Geneve, 1990, p. 39 nota.
24. Cf. José Luis Gonzáles Novalín, El Inquisidor General Fernando de Valdés (1483-1568) , Oviedo, 1968-1971, vol. 1,
pp. 308-309, vol. 2, pp. 335-337; e ver também Virgilio Pinto Crespo, Inquisición y Control Ideológico en la
Espaiía dei Sigui XVI, Madrid, 1983. Por um capricho do destino, a bula papal de resposta, de 5 de janeiro de
1559 - documento que pode ser considerado como origem do multissecular relevo cárstico no que se refere à
circulação das ideias na Espanha e na Itália - permaneceu ignorada pelos historiadores da censura aos livros (cf.
J. M. De Bujanda, Index de l'Inquisition espagnole 1551, 1554, 1559, Sherbrooke, 1984, pp. 98 e 637-640). Pode
ser encontrada em Annales Ecclesiastici ... Auctore Oderico Raynaldo, vol. 15, Lucae, typis Leonardi Venturini,
1756, pp. 29-30.
A Confissão
257
não só aos comissários da Inquisição, mas também e sobretudo aos confessores, através
dos gerais das Ordens: em 25 de janeiro de 1559, o já então todo-poderoso Cardeal
Ghislieri enviou ao geral dos franciscanos uma carta em que lhe era categoricamente
ordenado transmitir uma ordem a todos os frades concebida pela "mente de Nosso
Senhor". A ordem determinava que os frades
[.. .) que não devam nem presumam absolver qualquer um que tenha direta ou indiretamente,
por conhecimento próprio ou alheio, ouvido de qualquer pessoa infectada ou suspeita de heresia,
ou que mantenha livros proibidos, se antes a pessoa que vier confessar não tiver denunciado juridi-
camente aos ministros do Ofício da Santa Inquisição o que sabe ou escutou em prejuízo ou perigo
da Fé Católica.
27. A carta, endereçada a frei Sigismondo Botio, está conservada na Biblioteca Antoniana de Pádua, ms 698, cc.
lOrv e foi parcialmente publicada por G. Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit., p. 194. O volume de
Paolo Morigia, cuja publicação foi aprovada por Peretti, é a Opera Chiamata Stato Religioso, et Via Spirituale, em
Venetia, por Nicolo Bevilacqua de Trento, 1559: o capítulo sobre a confissão começa em c. 342r.
28. "[ ... ] Quando se pertence àqueles que comeram carne, os confessores não devem fazer nenhuma distinção,
por não serem eles que julgarão isso [... ] O mesmo soem fazer os juízes seculares, no caso em que se mata um
homem para defender a saúde do corpo, que desejam e assim costumam que o assassino se apresente a eles,
e quando consideram que o homicídio foi praticado sem culpa nos casos permitidos pela lei civil e natural
absolvem-no; assim também procederemos nós quando os confidentes obedecerem" (carta de frei Francesco
Pinzino, vigário-geral da Inquisição de Portogruaro, ao capitão de Pordenone, 9 mar. 1559, conservada em
ASVen., Sant'Ufficio, b. 160, cc. n. n.). O vigário previa a possibilidade de denúncias por escrito "a exemplo
do paralítico, outros devem mandá-la por ele escrevendo o que fazia para bem da verdade".
A Confissão
259
29. Cf. Henner, Beitriige, op. cit., pp. 235-245. Sobre a questão De Tempore Gratiae, o jurisconsulto Francisco Pena
elaborou textos, que permaneceram manuscritos, nos quais propõe aplicar o "tempo de graça" nas áreas pro-
testantes - Inglaterra, França, Império - que desejassem voltar ao catolicismo, bem como aos CTistianos nuevos
(cf. Patricia H. Jobe, "Inquisitorial Manuscripts in the Biblioteca Apostolica Vaticana: A Preliminary Handlist",
em Gustav Henningsen, John Tedeschi e Charles Amiel [orgs.], The Inquisition in Early Modem Europe. Studies
on Sources and Methods, Dekalb [Illinois], 1986, pp. 33-53; em part. pp. 39-40 e 53).
30. Como observa O . Niccoli ("II Confessore e l'Inquisitore: A Proposito di un Manoscritto Bolognese del Seicento",
em Finzione e Santità tra Medioevo ed Età Moderna, org. de Gabriela Zarri, Torino, 1991, pp. 412-434; em part.
p. 426), que lembra a propósito os conselhos de Locati ("lnquisitores [...] confessiones sacramentales libenter
audire non debent, ne Inquisitionis officium deludatur, et sacramentum poenitentiae contemnatur"). O risco
era duplo: para a dignidade do sacramento da confissão, bem como para a eficácia da caça aos hereges.
31. É esse o significado de um voto da Congregação do Santo Ofício de 23 de agosto de 1628: "Poenitentes, qui
contra aliquem in Sancto Officio deposuerunt, vel veritatem tacuerunt ne inquisitis damnum facerent non
possunt a confessariis absolvi in foro conscientiae sed hortari debent ad deponendum in Sancto Officio a quo
in utroque foro absolventur" (BAV, Borg. Lat. 558, c. 503r).
O herege absolvido no foro da consciência, etiam dio pelo próprio pontífice romano, se depois
é acusado no foro exterior nem por isso evita as penas devidas aos hereges; pois por meio da pena
proposta no foro interior satisfaz a Deus e com ele se reconcilia: mas a pena do foro exterior cabe à
vingança pública e à satisfação da República 33 .
32. O tratado De Agnoscendis Assertionibu.s Catholicis et Haereticis foi publicado em Tractatu.s Illu.strium in utraque
tum Pontificii, tum Caesarei luris Facultate lurisconsultorum, De ludiciis Criminalibu.s S. Inquisitionis, vol. XI, pars II,
Venetiis, F. Ziletti, 1584, pp. 52 e ss. O título III, De Absolutione, acha-se às cc. 128r e ss.
33. Masini , Sacro Arsenale Overo Prattica dell'Officio dela S. lnquisizione, Roma, 1705, p. 356.
A Confissão
261
que a absolvição dada a um herege por um confessor ignorante mas de boa-fé liberava
o primeiro de suas culpas 34 • Ao contrario, desde os primeiros atos da nova Inquisição,
tinha se evidenciado o desejo de transformar as confissões sacramentais e orais em
denúncias escritas, que podiam ser utilizadas para fins processuais. Era por exigências
desse gênero, como notou Giovanni Romeo , que devia se generalizar o recurso ao as-
sim chamado "comparecimento espontâneo" 35: o penitente que tinha algo a dizer em
termos inquisitoriais era obrigado pelo confessor a se apresentar diante do tribunal da
Inquisição para fazer uma denúncia - ou uma autodenúncia - que era definida como
"espontânea" , mas que estava longe de sê-lo. A passagem do "comparecimento espon-
tâneo" era indispensável para obter a absolvição .
Uma simples leitura dos aforismos que resumiam a ciência jurídica da Inquisição
no século XVI mostra que o critério da "saúde pública" acabou por levar a melhor sobre
aquele que , de todo modo, sustentava a validade da absolvição. A posição recolhida por
Masini, e lembrada anteriormente, é reforçada por indicações como esta: "não têm os
sacerdotes, nem mesmo in foro penitentiae, autoridade para absolver os hereges penitentes
da excomunhão a que incorreu devido ao crime de heresia, sendo essa reservada ao
Sumo Pontífice, e por sua Santidade concedida tal autoridade de absolvição somente aos
bispos e inquisidores no foro exterior" . E mais: "quem é mestre em heresias é respon-
sável por altíssima ruína, não somente a própria, mas também a dos outros e de toda a
república. Portanto, deve ser punido com intenso rigor não somente como herege, mas
como inimigo da república" 36 • Naturalmente, não é dito que os confessores sempre se
ativessem a ordens do gênero: para todas as prescrições, muito numerosas e repetidas
na sociedade de antigo regime, vale o princípio de que uma coisa era ordenar, outra ser
obedecido. Além disso , foram concedidas atenuações e limitações em casos específicos
das normas mais rigorosas. Pio IV, por exemplo, concedeu ao cardeal de Médici para
a arquidiocese de Pisa a permissão de delegar a confessores de sua escolha a faculdade
de poder absolver "qualquer um que tivesse livros proibidos" 37• E pode-se imaginar a
importância dessa concessão numa sede universitária.
A função do confessor era delicada e importante: por isso, não é de se admirar
se de uma ordem importante como a dos Jesuítas, que demonstrou particular interesse
em relacão às confissões, vieram indicações de consenso só aparente. A Companhia
era isen~a, por privilégio e indulto papal, da jurisdição ordinária da Inquisição; mas
aqui O problema referia-se às pessoas que, atraídas pelos privilégios da Companhia,
apinhavam-se em torno dos confessores jesuítas. O que era necessário dizer a todos
que esperavam a possibilidade de serem readmitidos na comunhão católica com uma
simples confissão feita a um padre jesuíta, ainda que tivessem delitos heréticos próprios
34. Assim ficou disposto no concílio de Tarragona de 1242 (Henner, Beitrage, op. cit. , p. 237).
35. G . Romeo, Jnquisitori, Esorcisti e Streghe nell'ltalia della Controriforma, op. cit., pp. 191-194.
· · Sacro Arsena1-
36 . M as1n1, 1-e ,
op • cit. , Aforismo 136, pp. 357-358. Aforismo 255 , p. 375.
37. Acarta do cardeal Ghislieri ao cardeal de Médici é datada de Roma, 12 de abril de 1562 e encontra-se registrada
entre os Atu· Straord·mar1· do arquivo arquiepiscopal de Pisa, I, c. 18rv.
[... ] os penitentes a se dirigirem aos inquisidores, onde houvesse, para revelar os cúmplices; e
vá ou não, deve entender [o penitente] que está absolvido no foro interior diante de Deus, mas não
no exterior, pois que se houver indícios, poder-se-ia proceder contra ele através do juiz eclesiástico,
embora já tenha sido absolvido diante de Deus 38 •
Podia-se imaginar um escamoteio desse tipo por parte de quem temia o processo
inquisitorial e não encontrava segurança suficiente na absolvição a ele concedida por
seu confessor: fazer-se absolver pelo próprio inquisidor, que nunca deixava de ser
um membro de ordem religiosa. Mas eis a norma para impedir essa via de fuga: "Os
inquisidores não devem se intrometer nos assuntos pertencentes ao foro da consciên-
cia, escutando os culpados em confissão sacramental, mas devem proceder aos atos
jurídicos de acordo com a responsabilidade que lhes impôs a Santa Sé Apostólica" 41 •
A razão era de oportunidade: proibia-se aos inquisidores ministrar confissões sacra•
mentais devido ao perigo de que o herege, absolvido em tal circunstância, pudesse
38. Carta do geral da Companhia ao reitor de Milão, de 23 de novembro de 1568, reproduzida por F. Rurale, I
Gesuiti a Milano. Religione e Política nel Secando Cinquecento, Roma, 1992, p. 80. O grifo é meu.
39. Decreta et Litterae Apostolicae pro Sancto Officio, BAV, Barb. Lat., 1503, p. 39.
40. O decreto, de 2 de janeiro de 1586, é reproduzido em idem, p. 38.
41. Masini, Sacro Arsenale, op. cit., Aforismo 174, p. 363.
A C onfissão
263
ser denunciado por outra via e se insinuasse desse modo a suspeita de que o inquisi-
dor tivesse revelado O conteúdo da confissão . Consequentemente, estabelecia-se que
as confissões, ouvidas pelo inquisidor durante o "tempo de graça" , não deviam ser
confundidas com as sacramentais 42 •
O sistema de pesos e contrapesos aparenta plena segurança: os sacerdotes não
podem absolver em confissão do crime de heresia, só os inquisidores e bispos podem
fazê-lo - com a diferença, como foi dito, de que os bispos não podem delegar os vigários
e os inquisidores podem.
42. Cf. Antonio de Sousa, Aphorismi lnquisitorum in Quatuor Libris Distributi, Turnoni, sumptibus Laurentii Durand,
1633, pp. 545-546.
43. Sessione XXIV, c. 6 De Reformatione.
44. A anotação de Pena aparece na edição de 1595 do tratado de Eymeric: sobre ela chamou a atenção Henner,
Beitriige, op. cit., p. 239 e nota.
45. "Poenitens, fartasse hac intentione sibi in iudicio de illa [confessione] inserviendi, propterea potuerit ille po-
enitens non verum dixisse" (Tommaso Trivisano, Dicisiones Causarum Divilium, Criminalium et Haereticalium ... ,
Venetiis, apud Bernardum Bassum, 1595, c. 4rv).
46. Sobre a reserva mental e O tratado de Martin de Azpilcueta Commentarius in Cap. 'Humanae Aures'... et de Arte
Bona et Mala Simulandi (Roma, 1584) cf. Perez Zagorin, Ways of Lying Dissimulation, Persecution, and Conformity in
Early Modem Europe, Cambridge (Mass.), London, 1990, pp. 165-179. Para as discussões e as práticas do século
XVI relativas ao assunto, continua fundamental o estudo de Carla Ginzburg, Simulazione e Dissimulazione Reli-
Que sejam diligentes - diz um édito geral genovês de 1590 - em perguntar a seus confidentes
no início das confissões, se têm notícia ou conhecimento de hereges ou apóstatas, ou seja suspeitos
de heresia, ou apostasia ... fazendo-os entender a obrigação que têm de torná-los evidentes ao santo
ofício, que haverá de mantê-los em segredo: nem serão absolvidos até que não tenham dado a devida
satisfação à santa lnquisição 48 .
giosa nell'Europa del'500, Torino, 1970, como também a ampla discussão empreendida por Albano Biondi, "La
Giustificazione della Simulazione nel Cinquecento", em Eresia e Ri forma nell'ltalia del Cinquecento, Miscellanea I,
Firenze/Chicago, 1974, pp. 7-68.
47. Cf. Albano Biondi, "Streghe ed Eretici nei Domini Modenesi all'Epoca dell'Ariosto", em ll Rinascimento nelle
Corti Padane. Società e Cultura, org. de Paolo Rossi, Bari, 1977, pp. 165-199, em part. pp. 193-194. Sobre o contexto
de Módena naquela época cf. Antonio Rotondo, "Atteggiamenti della Vita Morale Italiana dei Cinquecento.
La Prattica Nicodemitica", Rivista Storica Italiana, LXXIX, 1967, pp. 991-1030, em part. pp. 1018-1030.
48. Editto Generale per il Santo Uffitio di Genooa, promulgado pelo dominicano frei Gio. Battista Lanci de Reggio,
inquisidor-geral de Gênova, 3 mar. 1590 (Archivio di Stato di Genova, Acta Senatus 1334; agradeço a Daniela
Solfaroli Camillocci a indicação). Um édito análogo publicado em Reggio Emilia em 1598 é citado por Be-
thencourt, L'lnquisition à l'époque moderne, p. 178.
A Confissão
265
49. Editto Generale del Sant'Uffizio di Firenze, promulgado pelo inquisidor-geral frei Francesco Rambalducci de
Verucchio, em Florença, na tipografia Stella, 1672 (cópia em ACAF, Misc. Sant'Uffizio, b. 12, n. 232).
50. Carta do cardeal de Santa Severina ao inquisidor de Florença, 11 maio 1591 (em Archives Générales du
Royaume, Bruxelas, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, 1, c. 43: sobre esse documento deteve-se também Romeo,
lnquisitori, Esorcisti e Streghe , op. cit. , p. 197). Dom Marchesino foi processado e os autos de seus "exames" foram
enviados a Roma, conforme informação contida numa carta posterior do cardeal de Santa Severina de 29 de
junho (Archives ecclésiastiques, op. cit. , c. 44r).
.._ Concluindo, a tomada sobre a confissão pela Inquisição foi devida a uma situ-
ação de emergência. Os inquisidores tinham absoluta necessidade de se apoderar das
informações filtradas no segredo da confissão. Esse conhecimento era inacessível para
eles devido àquele mesmo princípio que servira para excluir a credibilidade do teste-
munho do confessor em favor dos inquiridos. Muitas coisas eram ditas no segredo do
confessionário e seria útil sabê-las para ampliar e tornar mais eficaz o ataque inquisitorial
às más doutrinas e às práticas heréticas: porém, se o sacerdote devia ser considerado
simplesmente o ouvido de Deus, seu testemunho, cuja utilização em prol dos acusados
tinha sido negada, não podia ser ouvido nem mesmo em proveito deles - até por que
a sagrada e terrível lei do segredo opunha-se a isso. É bem verdade que mesmo na tra-
dição medieval tinham sido inventados mecanismos para tornar possível uma coleta
51. Cf. Sandro Bianconi e Brigitte Schwarz, Il Vescovo il Clero il Popolo, Locamo, 1991, pp. 177-178; cf. também p. 31.
52. No capítulo geral dominicano de 1601, ficou estabelecido que a bula não fosse aplicada no mundo das ordens
religiosas, cujos membros "dispositioni suorum praelatorum subiecti sint" (Haec sunt acta capituli gene-ralis Romae in
Omventu Praedicatmum Sanctae Mariae super Mineroam celebrati, Romae, ap,,ul Carolum Vulliettum, 1601, pp. 10-11).
A Confissão
267
53. O confessor, segundo O concílio de Tarragona de 1242, devia inquirere de facto haeresis, pôr por escrito o que
lhe era confessado (fideliter corucribant) e depois relatar, com o consenso do penitente; se faltava o consenso,
devia pedir instruções (Henner, Beitriige, op. cit. , p. 238).
54. "lnquisitor reo sibi denunciatominime credere tenetur [... ] Confessarius vera credit poenitenti tam pro se
quam contra se dicenti [...)" (lgnazio Lupi de Bérgamo, Nooa lux in edictum S. lnquisitionis ad Praxim Sacramenti
Poenitentiae .. ., Bergomi, sumptibus Marci Antonii Rubei, 1648, "annotationes generales", N ; "discrimen inter
Reverendiss. lnquisitorem et Confessarium ...").
55. Embora com a advertência de que nem sempre é bom lançar mão desse poder (idem, dedicatória ad lectorem).
S e era essa a cadeia de comando, uma verificação de fundo de seu funcionamento pode
ser procurada nos autos processuais que dela se originaram. A primeira coisa que se
descobre é que, se na visão do poder os mecanismos pareciam nítidos e automáticos,
na base para aqueles que se sentiam em perigo tudo parecia incerto e problemático. A
confissão tornara-se, ao mesmo tempo, necessária e insuficiente. Era preciso confessar-se,
pois bastava o simples abandono da prática da confissão para tornar quem quer que seja
suspeito de heresia; mas ir confessar-se já não era suficiente. Aliás, revelava,se um passo cada
vez mais arriscado: o confessor tornara-se o "braço espiritual" do inquisidor e contar-lhe os
próprios pecados era expor a si mesmo e aos outros a consequências penais imprevisíveis.
O traçado institucional era complicado e enriquecido, por volta de meados do
século, por novas articulações: o desenvolvimento da organização inquisitorial e os de-
cretos do concílio de Trento contribuíam, de um e de outro lado, para a mudança de
clima. Terminara o tempo das livres curiosidades; discussões e leituras matizavam-se
de perigo e de suspeita. Bastava se confessar? Ou era preciso fazer algo diferente? Na
incerteza, multiplicavam-se as medidas de cautela, entremeando e sobrepondo medidas
penitenciais e práticas judiciárias que extrapolavam o esquema das regras que vinham de
cima. Nos casos concretos que então foram tratados em tribunal, surgem testemunhos
da realidade vivida de sacramentos e inquisições - uma realidade que nenhuma história
abstrata elaborada do ponto de vista das intenções do poder jamais permitiu imaginar.
Um caso particularmente intricado é o do padre romano Lorenzo Davidico,
que em sua carreira de escritor de temas devotos, pregador, e sobretudo de intrigante
frequentador de ambientes cardinalícios, viu-se desempenhando muitos papéis na
comédia: antes de tudo, o de confessor habilitado a acolher e a reconciliar hereges
arrependidos· e em consequência disso, o de chefe de uma rede de informacões
' ' ,
secretas, disposto a fornecê-las à Inquisição; finalmente, o de inquirido ele mesmo,
obrigado a "bater-se com a Inquisição" para defender a própria vida. Lorenzo Davidi-
co recebera de Júlio III o título de "pregador apostólico" e a ele tinha sido conferido
oralmente o poder de absolver in utroque foro 1• Quando foi conduzido a Roma perante
1. Segundo O depoimento de Davidico, ele solicitara a concessão daquele poder por escrito, mas o cardeal Maffei
respondera-lhe: "Não é bom, para não parecer que quereis vos bater com a Inquisição. Quem quer saber o que
270
a inquisição, Davidico ofereceu-se para levar a depor um bom grupo de devotos seus
e utilizá-los como espiões da Inquisição. Eram, pelo que dizia, pessoas praticantes dos
sacramentos e que depositavam nele muita confiança: e assim ele poderia, se requisi-
tado fosse , "exortar esses coros de filhos espirituais de lugar em lugar" e impeli-los a
recolher informações secretas, com as quais, segundo ele, seria possível "fazer chegar
às vossas mãos 200 ou mais" 2• Podia-se contar com os conhecimentos desses seus fi-
lhos espirituais, mesmo por que muitos deles tinham sido hereges e haviam abjurado
secretamente por meio dele. Eles tinham prometido obedecer cegamente a Davidico,
"mais do que o monge ao abade" : assim, graças a esses potenciais "depoentes" podiam
ser descobertos "não só os cúmplices que tinham em Roma, mas também em várias
cidades" 3 • Se no início de seu processo, Lorenzo Davidico declarara orgulhosamente
"que meu costume é confessar meus próprios pecados e não os alheios"\ no decorrer
de seus depoimentos mostrou-se, entretanto, disposto a utilizar as redes de penitentes
para transformá-los em espiões da Inquisição. E, quanto a si mesmo, teve a cautela de
declarar que fizera suas primeiras confidências "por desencargo de sua consciência"
a um confessor cuidadosamente escolhido: o cardeal Rodolfo Pio de Carpi, um "dos
senhores deputados" do Santo Ofício 5 •
Inquirido e espião da Inquisição, confessor de hereges e herege, mestre de devoção
implicado em estratégias policiais dos poderes romanos: a condição de Lorenzo Davidico,
ainda que extremamente singular, é indicativa dos aspectos turvos e intricados que a
realidade daqueles tempos de luta sem quartel podia assumir. Mas o caso dele não foi
isolado. O curso rápido das coisas, no decorrer de uma década, podia transformar os
simpatizantes das novas ideias em testemunhas de acusação e até mesmo em delatores:
moralidade individual, solidariedade e amizades, bem como sacramentos e institui-
ções não eram poupados. A confissão sacramental era vista como um instrumento
entre outros para perseguir os hereges. O napolitano Ranieri Gualano (ou Gualandi),
ex-simpatizante das ideias valdenses, passou para os teatinos napolitanos seus conhe-
cimentos a respeito daqueles ambientes: e os teatinos usaram a confissão para saber
dele e do médico Antonio Capone "tudo o que conheciam a respeito desses hereges
ocultos" - ou seja, como uma espécie de canal para interceptar comunicações. Esse
modo de passar à Inquisição as informações obtidas em confissão, longe de parecer
discutível, foi considerado um título de mérito de Gian Pietro Carafa por parte de
seu biógrafo, que atribuiu apologeticamente aos teatinos e a seu fundador o mérito de
terem posto em funcionamento uma rede de vigilância dos seguidores napolitanos de
Juan de Valdés e de Bernardino Ochino na qual se fazia uso das notícias apreendidas
A Confissão
271
6. Em sua Vita di Paolo IV, Antonio Caracciolo narra: "O modo[ ... ] foi o seguinte: sabe-se que Raniero Gualardo
e Antonio Capone, médico, praticaram com Valdés e Ochino, e confessavam-se com os nossos em San Paolo, porém
os nossos que estavam desconfiados, fizeram com que lhes contassem tudo o que sabiam sobre aqueles hereges escondi-
dos. Desse modo, os nossos tomaram conhecimento da má semente que eles semeavam e dos conventículos
secretos de homens e mulheres, que descobertos por eles, e referidos por escrito ao Cardeal Teatino em Roma,
esses chefes hereges fugiram todos de Nápoles" (o grifo é meu). O trecho foi mencionado por Paolo Simoncelli,
Evangelismo Italiano del Cinquecento. Questione Religiosa e Nicodemismo Político, Roma, 1979, p. 171, nota 25; sobre
Gualano, "espião dos teatinos", cf. Luigi Amabile, Il Santo Officio dell'Inquisizione in Napoli, op. cit. , vol. I, pp.
139 e 143; sobre suas sucessivas aventuras inquisitoriais, que o levaram, já em idade avançada, a cuidar do
caso de "reconhecida santidade" de Alfonsina Rispoli, cf. C. De Frede, Notizia d'un Valdesiano Pentito con una
Digressione sul Processo d'una Visionaria (Ranieri Gualanti e Alfonsina Rispoli), Napoli, 1990.
7. O documento, conservado em ASV, Sant'Uffizio, b. 14, proc. "Pre Baldassare da Fagnana", encontra-se em vias
de publicação no apêndice de A. Del Col, L'lnquisizione nel Patriarcato e Diocesi di Aquileia (1557-1559), op. cit.
Agradeço a Andrea Del Col por ter-me revelado sua existência e permitido a leitura.
8. Encontram-se reproduzidas em apêndice ao livro de De Col, op. cit. , as de Zuane di Nicolo, de abril de 1559,
e Marco da Riva, de 21 de junho de 1559.
9. ASV, Sant'Uffizio , b. 14, proc. "De Ferrari Gio. Battista".
A Co nfissão
273
Em sua casa foram recebidos literatos com fama de heterodoxos, como Alessandro
Cittolini, que também fora escolhido por sua mãe para ser seu preceptor. Cittolini
tinha frequentado em Serravalle Marco Antonio Flaminio, expoente máximo daquela
"seita" odiada por Paulo IV que se reunia em torno do cardeal Pole; e tinha aplicado a
técnica do "teatro da memória" de seu mestre Giulio Camillo Delminio, para difundir
mensagens antirromanas. Portanto, Isabella Frattina fora criada em um ambiente re-
pleto de efervescências heréticas. Vítima das suspeitas que assaltaram principalmente
sua mãe, foi conduzida diante da Inquisição de Veneza em 1568. Mas Isabella não
esperara aquele encontro: aos primeiros sinais de suspeita, "rasgados e queimados" os
livros heréticos, confessara-se com um sacerdote, que lhe tinha "perdoado e absolvido"
o pecado. Não satisfeita, "tendo ouvido que a absolvição de seu confessor talvez não
fosse suficiente" , dirigira-se ao frade que exercia a função de vigário da Inquisição em
Portogruaro - justamente frei Francesco Pincino, o intransigente defensor dos poderes
de seu tribunal - e fora absolvida por ele. Portanto, frei Francesco Pincino, ao mesmo
tempo em que escrevia essa ordem para os demais confessores, absolvia a fidalga Isa-
bella Frattina da culpa de ter lido livros proibidos. Eis a história como foi contada em
seguida pelo advogado de defesa de Isabella:
Tendo ouvido que a absolvição de seu confessor talvez não fosse suficiente, foi procurar o
inquisidor, na presença do qual como a juiz legítimo acusou sua falta e revelou seu pecado, e por ele
foi com salutar penitência absolvida 1°.
10. A arenga do advogado de defesa de lsabella, redigida em 1569, foi publicada em apêndice a um estudo de dom
Luigi De Biasio, editado postumamente aos cuidados de Cristina Moro ("La Difesa di Comelio Frangipane per
Isabella Frattina davanti ai Sant'Uffizio Veneziano", em Memorie Storiche Forogiuliesi, LXXIII, 1993, pp. 149-158
e 159-183; a "Oratione in Difesa de la Signora lsabella Frattina Fatta dai Signor Comelio Frangipane", idem,
p. 164).
estava escrito o nome de Isabella e de alguns outros , que por esse inquisidor foram
11
absolvidos, e que ele anotara como recordação" •
O caso de Isabella Frattina mostra que o encontro entre Inquisição e confissão
trazia algo de novo para ambos os tribunais: idêntica a culpa, idêntico o ritual, idêntica
até a pessoa - pois que, para maior garantia, escolhia-se como confessor o frade que
também atuava como vigário da Inquisição - as diferenças diziam respeito aos poderes.
O inquisidor agia não como simples confessor, mas como "juiz pontifício e delegado
de Sua Santidade": mesmo recebendo uma confissão sacramental, o frade fazia seu re-
gistro por escrito e revelava seu conteúdo a terceiros. Além disso, do ponto de vista de
quem tinha algo a ser perdoado, a coisa se apresentava com um halo de ambiguidade.
A estratégia seguida por lsabella Frattina foi a do acúmulo de absolvições e, sobretudo,
de testemunhos para lembrança futura . Mas o dela era um caso especial, como se viu:
tratava-se de constituir previamente argumentos defensivos na expectativa de um ataque
inquisitorial que era previsto e previsível.
Em outros casos, de pessoas menos expostas, pode-se facilmente imaginar que a
estratégia escolhida foi a do silêncio. De resto, era o que esperavam as próprias autori-
dades eclesiásticas. Uma admissão precisa nesse sentido encontra-se na já referida carta
de frei Felice Peretti, comissário da Inquisição em Veneza, a frei Sigismondo Botio.
Peretti, após ter descrito as ordens por ele dadas aos confessores, acrescentava que não
se limitara a predispor a rede para captar as denúncias, mas também ordenara a todos
os pregadores que informassem a população a respeito do que devia fazer quando ia
confessar: mas o resultado era que "a maior parte deixa de confessá-los" 12 •
Era possível, portanto, subtrair-se a essa confissão das consequências judiciárias;
e - visto que não era possível deixar de ir se confessar - podia-se ao menos recorrer à
autocensura, escondendo do confessor justamente aquilo que interessava aos inquisidores.
A pergunta que o documento faz - quão realmente eficazes eram aquelas medidas - é
difícil de responder. Naturalmente, o uso agressivo que Carafa, Ghislieri e Peretti teriam
gostado de fazer do confessionário como anexo do tribunal inquisitorial teve que levar em
conta as práticas sociais de longa duração, com relações antigas entre penitentes e confes-
sores aos quais era difícil impor viradas bruscas. Mas esse direito, uma vez reconhecido,
não foi mais desconsiderado. Quanto muito, tratou-se de moderar os pontos extremos
a que chegaram inquisidores exagerados ao exigirem a arregimentação dos confessores.
Houve resistências, não há dúvida. Mesmo em Milão, onde como alternativa à
ameaçada introdução da Inquisição espanhola recorreu-se ao engajamento em massa dos
confessores. Natale Conti, um historiador da época, narra: "Foi ordenado aos confes-
sores que, sob pena de excomunhão, obrigassem os confidentes a revelar se conheciam
algum herege; mas nenhum foi acusado por essa via" 13 •
A Confissão
275
14. Archivio di Stato di Siena ASS, "Notarile Cosimiano 2777", Atti Giudiziari Rogati da Domenico Sabbatini, Processi
alia Nazion Tedesca.
15. O auto dos "processos à nação alemã" começa com uma carta do cardeal Rebiba de 16 de julho de 1568, que
acompanha a cópia do depoimento de um flamengo preso em Pádua, onde se menciona o nome de outro
flamengo que havia se transferido para Siena (idem, c. n.n.).
Após essa meia denúncia , Riccio, que pretendia ter certeza do que lhe dizia respeito ,
foi falar ainda com um padre da Catedral de Siena e com um "reatino" (talvez um jesu-
íta?). A resposta era sempre a mesma. E enquanto isso o nome de Vivaldo continuava
provavelmente a passar de boca em boca. A essa altura, Riccio decidiu-se: dirigiu-se à
Inquisição, acompanhado de seu empregado Michele, e apresentou a denúncia. Daí,
finalmente , foi se confessar: e ao frade , que imediatamente "exortou-o" a denunciar
Vivaldo, pôde responder que já o denunciara: o frade , não satisfeito, "por pouco não
lhe pedia provas para ter certeza de poder absolvê-lo" 16 • Assim Vivaldo foi preso e, por
ordem do Santo Ofício de Roma, foi enforcado 17 •
De seu depoimento, veio à tona outro aspecto dessa confissão, reconstituída pela
intervenção inquisitorial. Vivaldo declarou ao inquisidor de Siena que havia se confes-
sado, sim, mas fizera-o para ocultar os aspectos secretos de sua vida, o modo como tinha
se tornado seguidor das ideias calvinistas apesar de continuar mantendo na aparência
comportamentos católicos: "Confessei-me para não dar a perceber que era luterano[ ... ]
e comunguei para mostrar que era bom cristão" 18 • A confissão, enxertada no tronco de
um sistema policial e levada ao tribunal como prova de defesa, mudava de constituição.
Tornava-se exibição ritual, prova de conformidade e, por-tanto, ato de conformismo. E
o que Vivaldo dizia de si mesmo - ter confessado para enganar as autoridades - outros
suspeitaram e disseram de amigos e de vizinhos. De um suspeito herege de Ímola, Leone
de Dozza, dizia-se , por exemplo, que ia à missa "para ser visto" 19 • Ouvir missa - um ato
tão profundamente ligado à cultura italiana - tornara-se então o momento de máxima
cisão entre ser e parecer. Abria-se o caminho para a dúvida e a desconfiança: os atos
que antes indicavam uma profunda devoção, agora podiam significar exatamente o con-
trário. Em uma denúncia contra o senês Fabio Cioni lê-se que ele tinha se confessado
e comungado "sem ter nenhuma fé nem crença no santíssimo sacramento". E o fizera
"não por acreditar na confissão ou mesmo para observar o preceito da santa Igreja, mas
sim para demonstrar ao mundo que era bom cristão, sendo falso herege". Subvertia-se
o valor do sinal do sacramento: uma inesperada prática devota dos sacramentos por
parte de certas pessoas tornava-se sinal de uma escolha herética. Se Fabio Cioni era
julgado suspeito antes de se confessar, depois de fazê-lo revelava-se "falso herege": "é
16. Depoimento de 26 de julho de 1570: "Resolve-me - respondeu Riccio - porque no começo da quaresma,
ouvindo diversas pessoas falarem que ninguém que tivesse praticado ou conhecesse algum suspeito de heresia
podia ser absolvido, e se não o revelasse ao Santo Ofício incorria na mesma pena; e porque eu tinha visto
o referido Vivaldo comer carne no sábado e não ir à missa, coisas que me provocavam escrúpulo, então fui
conversar com um frade de S. Francisco, baixinho e alegre, que me disse que, sendo preso e descoberto o tal
Vivaldo, eu incorreria na mesma pena por tê-lo abrigado em minha casa" (idem, cc. n. n.)
17. Carta do cardeal de Pisa, 17 jun. 1570, idem, c. 25 bis.
18. Depoimento do flamengo Vivaldo, 27 jun. 1570, diante da inquisição de Siena, idem, e. 33v.
19. Denúncia de Elisabetta do Basino de Tossignano, Ímola, 13 mar. 1578 (em Raffaella Rotelli, "11 Tribunale del
Sant' Uffizio a Imola dalla fondazione al 1578", Tese de graduação, or. C. Ginzburg, Università degli Studi
di Bologna, 1973-1974, p. 416). Segundo a testemunha, Leone teria dito abertamente que não ia à missa "de
boa vontade". "Se não fosse para mostrar que vou à missa, não iria."
A Confissão
277
disso - escrevia O denunciante - sinal mui evidente o fato de não ter revelado a seu pai
espiritual as próprias heresias" 2º.
A planta da suspeita crescia vigorosa sobre a ambiguidade de sinal introduzida na
prática dos sacramentos; e encontrava alimento na ruptura dos vínculos sociais produ-
zida por essa alteração da confissão dos pecados . O ourives flamengo Vivaldo, quando
se vira descoberto , pensara numa traição de um amigo e colega de ofício, Alessandro.
Encontrando-o na Piazza del Campo, em Siena, "na porta de San Martino", investira
contra ele com violência: "Quando alguém vai confessar, confessa os próprios pecados
21
e não os alheios" • Era uma ideia da confissão com a qual Bartolomeo de Medina teria
concordado, como vimos. Mas essa ideia, que encontrava apoio oficial na literatura para
os confessores, era completamente superada e subvertida pela intervenção da Inquisição.
De fato , a confissão tornara-se o lugar das delações e das denúncias secretas. Quem se
recusava a prestar-se a isso, pagava pessoalmente. Alessandro não tinha traído o amigo;
aliás, "por não revelar" , não fora absolvido e não pudera comungar. Era uma grande
prova de amizade e naquela noite os dois festejaram a confiança recuperada com uma
ceia na estalagem. Mas tiveram de pagar caro a tal ceia: pouco depois, encontraram-se
ambos diante da Inquisição.
20. ASS, "Notarile Cosimiano 2777", e. 64r (dep. de 27 fev. 1568). Sobre a questão, ver agora a ampla pesquisa de
Oscar Oi Simplicio, Peccato, Penitenza, Perdono. Siena 1570-1600, Milano, 1994.
21. Depoimento de Vivaldo, 30 jun. 1570, ASS, "Notarile Cosimiano 2777", e. 47r.
22. ACAF, Misc. S, Ufficio, b. 2-3, f. 478r (ata de 4 de maio de 1736). Em 17 de maio, Cavalicci foi reconvocada
· , · d o Inqms1
pe 1o vtgano · ·d or, reci·rou a abi·uracão
, e recebeu uma penitência leve (rezar a terça parte do Rosário
. - e a comunhão nas quatro festas principais do ano).
uma vez por semana, a conf tssao
Quando fosse indagada pelo Inquisidor a respeito dessas coisas, que era necessário, ao fazer 0
juramento, jurar dentro de si mesma não dizer a verdade, dizendo que então não é pecado. Disse-me
também que, quando se vai confessar, não é preciso dizer senão aquilo que queremos que saibam e
que depois é preciso esperar um Jubileu para que então os pecados sejam perdoados 23•
Campanina era perita em feitiços e dizia não ter medo do diabo ; mas esses seus
conselhos, dados além disso em um ano jubilar - 1600 - não eram baseados nas artes
diabólicas , mas nas sugestões de bem intencionados homens do clero. A estratégia é
clara: aproveitar as próprias ocasiões oferecidas pela Igreja para navegar sem riscos entre
os escolhos do sistema. E a abundância de jubileus e de indulgências extraordinárias
fala claro a esse respeito; já nos anos candentes da luta contra a heresia "luterana",
a estratégia dos suspeitos e também de hereges notórios fora a de receber "o perdão
mandado por Sua Santidade" 24 • Nesse sentido, o grande jubileu conclamado por Sixto v
para 1585 assinalou uma reviravolta: retorno descarado aos faustos jubilares que tinham
celebrizado o de Bonifácio VIII em 1300, esse evento pretendeu encerrar entre parêntesis
a época recente do Saque de Roma e da Reforma luterana.
A Roma saqueada e vilipendiada tornou-se a meta de apinhadas peregrinações:
e em todas as cidades ao longo do percurso, as confrarias citadinas ressuscitaram as
) tradições de hospitalidade aos peregrinos. O retorno à tradição encerrava novidades
substanciais: a peregrinação de uma Europa dividida, onde as próprias nações católicas
eram dilaceradas por guerras religiosas, resolveu-se substancialmente numa peregrina-
ção de italianos rumo à única cidade cosmopolita que sobrara na península. Por outro
lado, seguindo e acentuando a tradição jubilar tardo-medieval, tornaram-se acessíveis
a todos as vantagens espirituais da peregrinação: até para os que não arredavam pé de
casa. Numerosas instruções explicaram, diocese por diocese, em que condições podia
ser obtida a eliminação das culpas e das penas prometida aos peregrinos: assim, se Roma
tomou definitivamente o lugar de Jerusalém, em cada cidade houve igrejas equiparadas
às basílicas romanas, do ponto de vista das oportunidades jubilares. E essa foi a opor-
tunidade também para os muitos reingressos tácitos ou pelo menos secretos de quem
cultivara pensamentos heréticos: "o Jubileu torna os pecados reservados não reservados",
observava, com a proteção da autoridade de Gaetano, um solerte barnabita de Pavia:
o qual, publicando sua obra dois anos após o jubileu de Sixto V, propunha que este
fosse estendido indefinidamente no tempo 25 • A interpretação do barnabita mostra como
tinha sido bem compreendida a oferta de Sixto V e tentava-se prolongá-la além da data
23. Depoimento de 13 de novembro de 1600 (ASM, lnquisizione, b. 14, I/2, "Contra Liviam quondam Andreae de
Tortis ... appellatam Liviam Pattinam, et Olimpiam Campanam seu Campaninam", cc. n. n.).
24. Carta de frei Domenico de Ímola ao cardeal Morone, Módena, 26 nov. 1567, publicada por A. Mercati, Il
Sommario dei Processo di Giordano Bruno, com Appendice di Documenti suU'Eresia e l'lnquisizione a Modena nel SecolD
XVl, Cidade do Vaticano, 1942, p. 143.
25. M. R. P. Dom Cesare Bottoni Pavese, C. R. da Congregação de Somascha, Osservationi Soprai Giubilei et in
Particolare sop,ra quello Dato da N. S. Papa Sisto V l'Anno MD.XXCV,. .. em Piacenza, tip. Giovanni Bazachi, 1587,
sob licença da Santíssima Inquisição, p. 178.
A Confissão
279
do jubileu. Desse ponto de vista, típica a questão relativa a um hipotético pecador que,
tendo por malícia calado alguns pecados mortais "reservados" na confissão feita por
ocasião do Jubileu" , pergunta-se agora se pode se dirigir a um confessor qualquer, ou
se deve confessá-los a quem tem a faculdade de absolver casos reservados: por trás do
caso imaginário, reconhece-se facilmente o perfil do herege que se confessou durante
0 jubileu - quem sabe, por conveniência nicodemista - mas calou-se justamente sobre
sua heresia. Com uma acrobacia jurídica, o barnabita demonstra que o jubileu ainda
estende sua sombra protetora até mesmo sobre quem fez uma confissão não válida ou
sacrílega: "quando a confissão também foi falsa" , o pecador poderá obter igualmente
a absolvição "de qualquer confessor admitido pelo Ordinário, ainda que tivesse passa-
do o Jubileu; infelizmente, não se pode estender a concessão aos pecados reservados
cometidos após o Jubileu, mas no fundo o que importa é essa possibilidade de usar o
Jubileu para passar uma esponja nos erros dos turbulentos anos passados. Não faltam
provas concretas e precisas de que se tenha feito tal uso do jubileu de 157 5. Há atestados
de confessores que declaram ter "absolvido [... ] ín foro. conscíentíae pela autoridade do
santíssimo jubileu ultimamente emanado por N . Sr" penitentes culpados ou suspeitos
de heresia 26 •
Após essa primeira experiência, perdeu-se a conta dos jubileus: a estratégia de
quem esperava prazos desse tipo para livrar-se dos pesos mais graves e complicados estava
destinada ao sucesso. Jubileus extraordinários em rápida sucessão marcaram o final do
século XVI 27• E não cessaram no século seguinte. Não só eventos extraordinários - o
fim de uma epidemia de peste, de uma guerra, de uma carestia - mas também aconte-
cimentos políticos normais e bastante comuns ou até ocorrências religiosas particulares
eram motivo suficiente para ensejar o jubileu. Na Itália do século XVIII , chegou-se assim
a sobrepor o tempo excepcional do jubileu ao tempo ordinário da confissão anual e o
jubileu não passou de incentivo ou, como disse um observador toscano, de "atrativo"
para "fazer com que os fiéis ficassem mais predispostos à confissão e à comunhão": e
discutiu-se então se era possível com apenas uma confissão e uma comunhão "granjear o
Jubileu e satisfazer aos preceitos da Confissão anual e da Comunhão pascoal" 28 • A Igreja,
em suma, facilitava por todos os meios o dever da confissão e não mais se preocupava
em afirmar o poder da Inquisição. Mas, antes ainda de se chegar a esses incrementes, o
modelo tridentino de uma igreja controlada por instituições territoriais permanentes -
párocos e inquisidores - demonstrara não ter vida fácil. A força das Ordens religiosas,
antigas e novas, manifestara-se justamente na possibilidade de abrir seus braços aco-
lhedores aos pecadores e aos hereges arrependidos. Os laicos puderam contar, desse
26. MP, S. Uffizio, b. 2, e. 89: "Carta de Francesco Poloni ao Inquisidor de Pisa", de Montecalvoli, 23 jul. 1574,
relativa a Domenico de Treggiaia
27. Cf. H. C. Lea, A History of Auricular Confession, op. cit., vol. III, pp. 232-233.
28. Apologia di alcune riflessioni dei prete Gaspero Bertelli sul dubbio se concorrendo il tempo dei Giubbileo col tempo pasquale,
cioe dalla domenica delle Palme a tutta Domenica in Albis, si possa con una medesima confessione e comunione, fatte in
quel tempo, e acquistare il Giubbileo, e sodisfare ai precetti ... , Firenze, G. Cambiagi, 1776, p. 11 (do mesmo cf. ainda
uma Continovazione dell'Apologia, Firenze, 1779).
ponto de vista, com uma ampla variedade de ofertas: havia os frades com seus ciclos de
pregações e de confissões; havia os locais de peregrinação - Roma , Loreto, Santiago e
muitos outros - onde os confessionários funcionavam sem parar e os confessores eram
munidos de poderes discricionários; havia as faculdades dos núncios, que garantiam a
quem tinha dívidas com a Igreja a possibilidade de reingresso sem muitos obstáculos.
Sem falar da pregação itinerante dos missionários, que traziam consigo - como veremos
mais adiante - privilégios e amplíssimos poderes no âmbito da confissão.
A Co nfissão
XI
A CONFISSÃO NO
CONCÍLIO DE TRENTO
Q
uem tinha derrotado a heresia na Itália, a Inquisição ou a confissão? De acordo com
o assim chamado Catechismo Tridentino, não havia dúvidas: a cidadela que protegera
a Igreja contra os assaltos da heresia tinha sido a confissão 1• Esse julgamento, redigido
logo depois do Concílio de Trento, encontra-se em um texto encomendado pelo concílio
e lançado sob a égide do concílio, mas elaborado e autorizado pelo papado: e isso deve
ser levado em consideração ao se avaliar julgamentos do gênero. Evidentemente, se a
confissão desenvolvera seu poder de barrar a heresia, não tinha sido por uma espécie de
efeito automático da autoridade dos bispos e de outros prelados reunidos em Trento.
Por outro lado, as ações de autoridade sobre o corpo da confissão - as do concílio e as
romanas - tinham encontrado sua razão de ser na vitalidade real daquilo sobre o que
agiam. Se é necessário levar em conta os decretos do Concílio, é necessário mais ainda
lê-los no pano de fundo do que se tornara a confissão na vida da sociedade cristã naquela
época. Portanto, é necessário estender o olhar ao menos para as linhas principais das
transformações sofridas naqueles anos pela confissão nas propostas e nas práticas cor-
rentes. De qualquer modo, o Concílio de Trento propicia uma boa oportunidade para
o exame dessas transformações e de seus processos mais gerais e pode ser utilizado como
uma espécie de observatório avançado.
Deve-se partir de uma constatação elementar: o século do renascimento da In-
quisição é também o do renascimento - ou do primeiro verdadeiro nascimento - da
confissão auricular de massa.
Não é exagero falar em um primeiro verdadeiro nascimento da confissão auricular
como experiência coletiva. É verdade que já em 1215 o Concílio lateranense IV tinha
estabelecido, com o cânone Omnes utriusque Sexus, a obrigação da confissão anual. Mas
não bastava um decreto conciliar para mudar a vida de toda uma sociedade: para que
a prática efetiva se modificasse, era preciso algo bem mais determinante da expressão
de uma vontade ainda que poderosa nesse sentido. Essa vontade de controle regular
da prática dos leigos viera à tona por ocasião de um violento confronto com a heresia:
um paralelismo semelhante entre o fortalecimento da Inquisição e o da confissão é
evidente no século XVI. E ao retornar sobre uma norma como a que sancionava a obri-
gação para todos de se confessar pelo menos uma vez ao ano e de comungar pelo menos
na Páscoa, foi preciso enfrentar as resistências e as dificuldades de uma estrutura que
se estabelecera sobre certos equilíbrios e encontrava dificuldade de modificá-los. Nos
anos em que o Concílio de Trento tornou a propor a questão, estava-se no auge de uma
discussão aberta e extremamente incerta sobre a prática sacramental - uma discussão
muito mais complexa do que se imaginaria, com o confronto ordenado entre batalhões
de ortodoxos e patrulhas de hereges, bem cerrados em suas fileiras .
Na primeira metade do século XVI , em um caderno de recordações, um patrício
veneziano da família Contarini anotou durante alguns anos , juntamente com a con-
tabilidade da casa, também a contabilidade da alma: ano após ano, de 1506 a 1530,
encontra-se o registro de onde e quando fora feita a confissão anual e a comunhão,
segundo um esquema repetitivo do tipo: "1506, no dia 15 de março confissão na Carità
com m . Seraphin, no sábado de ramos , comunhão no dia 20 de março" 2• Anotações
do gênero não são raras; mesmo nas visitas pastorais entre o século XV e a primeira
metade do XVI, a prática da confissão e comunhão anual é registrada como um hábito
coletivo passavelmente respeitado. Portanto, não pareceria que o concílio de Trento
devesse ter muita dificuldade de impor o respeito a uma norma desse tipo. E contudo,
a um exame mais atento, surgem algumas diferenças entre o que as pessoas faziam
antes do concílio e o que lhes foi proposto - ou imposto - fazer em seguida. No pla-
no dos comportamentos, a primeira convicção a entrar em crise foi a de que bastasse
confessar-se e comungar uma vez por ano. Inúmeras vozes levantaram-se para propor
uma prática intensificada da comunhão ou da confissão: místicos como Bonsignore
Cacciaguerra, homens inquietos entre ortodoxia e heresia, como Tullio Crispoldi, pro-
puseram a prática da comunhão frequente , para grande escândalo dos tradicionalistas;
e nem mesmo Inácio de Loyola ficou livre de suspeitas quando reconheceu a utilidade
da confissão frequente. A proposta da comunhão frequente associou então místicos e
mestres de vida espiritual de todo tipo: sob essa bandeira acharam-se unidos visioná-
rios, profetas e os que buscavam receitas fáceis de santidade e perfeição. O misticismo
beneditino de um Ilarione de Gênova viu-se ao lado do agostinismo severo de Tullio
Crispoldi, defensor de duras teses predestinacionistas 3 . Não é fácil ordenar a confusa
série de vozes que se levantaram sobre esses temas na Itália do início do século XVI. Daí
se deduz, pelo menos, que a norma antiga não era mais suficiente para quem estava à
procura de um novo ordenamento da vida religiosa. E contudo, não se deve esquecer
que o Concílio de Trento não tomou a si a tarefa de entrar no mérito da legitimidade
dessa ou daquela devoção: do ponto de vista das autoridades eclesiásticas, o problema
era definir a norma geral e cuidar de sua observância. Ora, pelo caderno de notas do
2. Ricordi di Casa Contarini, ms lt, VII. 1268 (7511) da Biblioteca Nazionale Marciana; o esquema se complica nos
últimos três anos, nos quais são registradas numerosas confissões e comunhões.
3. Falta um levantamento dessa literatura. Veja-se, a título de exemplo, a produção literária de Bonsignore Cac-
ciaguerra, estudada por Romeo De Maio (Bonsignore Cacciaguerra; un Místico Senese nella Napoli del Cinquecento,
Milano/Napoli, 1965).
A Confissão
283
patrício veneziano, sabe-se que o confessor era escolhido a cada ano , de acordo com as
simpatias por um ou outro convento. E a comunhão, de todo modo, acontecia numa
igreja diferente daquela onde fora feita a confissão. Uma liberdade de escolha desse
tipo não foi mais permitida após o concílio: sobretudo, a assembleia de bispos reunida
em Trento não teve nenhuma dúvida quanto ao fato de que a confissão e a comunhão
tivessem que se tornar um dever rigorosamente controlado pelos párocos. Preocupações
"pastorais", de orientação das almas rumo à salvação, e preocupações de luta ferrenha
contra as rachaduras profundas que , após a Reforma, ameaçavam o edifício eclesiástico,
misturaram-se para tornar mais rígida a obrigação da confissão anual.
Como em muitos outros aspectos, também no caso da confissão a obra do
concílio foi uma obra de "conservação" , segundo a definição de Jedin, no sentido de
que conservou "quase todas as instituições jurídicas que tinham vindo à luz na Idade
Média"4. Essa obra de conservação, porém, teve efeitos profundos na reorganização
do corpo eclesiástico e na disciplina dos leigos. As medidas mais importantes, desse
ponto de vista, foram a rigorosa defesa do caráter sacramental da confissão privada e
a reafirmação do dever (sancionado por Inocêncio III) da confissão e comunhão anual
para todos os batizados. Ambas as medidas tiveram consequências importantes no re-
ordenamento das relações de poder entre o clero e a sociedade: foi sobre essa base que
a relação entre confessor e penitente tornou-se um canal obrigatório e fundamental
para qualquer comunicação. Uma vez colocadas essas premissas, era inevitável que a
Inquisição tentasse passar das esporádicas ações de rapina a uma consistente apropriação
desse meio de poder tão capilar e eficaz.
De resto, a confissão e a Inquisição possuíam ligações antigas. No que diz respeito
às raízes, o pecado e o poder estavam ligados reciprocamente por um vínculo estreito,
na tradicão
, intelectual da cristandade medieval: para uma humanidade pecadora, ha-
via necessidade de um poder instituído por Deus, capaz de golpear, punir e refrear 5 •
O sistema das penas tinha um valor reparador e regulava a inclusão e a exclusão da
comunidade dos cristãos. O surgimento do instituto eclesiástico da confissão privada
(assim como o desenvolvimento do processo inquisitorial) foi uma espécie de enxerto,
um ramo inicialmente menor, no tronco de um sistema que concebia o pecado como
um crime, uma ruptura do vínculo com a comunidade 6 •
4. H. Jedin, Riforma Cattolica o Controriforma? (ed. or. Katholische Reformation oder Gegenre{ormation?, 1945), trad.
lt. Morcelliana, 1957, p. 74.
5. Wolfgang Sturmer, "Peccatum" und "Potestas". Der Sündenfall und die Entstehung der herrscherlichen Gewalt im
mittelalterlichen Staatsdenken, Sigmarigen, 1987.
6. A literatura historiográfica sobre a penitência e a confissão é extremamente vasta. Sobre as origens da penitência
privada é útil ainda R. C. Mortimer, The Origins of Pri11ate Penance in the Western Church, Oxford, 1939, junto
com O mais recente C . Vogel, Le pécheur et la pénitence au mcryen-âge, Paris, 1969; também Bernard Poschmann,
Penance and the Anointing of the Sick (Toe Herder History of Digma) tradução e organização de T. Courtney,
Freiburg/London, 1964. Para as origens do processo inquisitorial, W. Trusen ("Der lnquisitionsprozess. Seine
historischen Grundlagen und frühen Formen", em Zeitschrift der Sa11igny-Stiftung für Rechtsgeschichte, a. 105, Ka-
nonistische Abt., LXXIV, 1988, pp. 168-230) propôs recentemente uma datação mais elevada que as tradicionais
e colocou-o no interior da relação comunitária como gerado pela necessidade de livrar-se de uma condição de
má fama. Mas o ensaio mais penetrante, que renovou os estudos sobre a questão da penitência na época da
Reforma, é o de John Bossy, "The Social History of Confession in the Age of the Reformation" , em Transactions
of the Royal Historical Society, s. 5, XXV, 1975, pp. 21-38.
7. Melchioris Cani Opera, Patavii, typis Seminarii, 1734, p. 496.
8. Sobre esse ponto, no que se refere à teologia dos reformadores, concorda o autor de uma recente síntese sobre
a história da penitência: Karl-Joseph Klãr, Das kirchliche Bussinstitut von den An/iingen bis zum Konzil von Trient,
Frankfurt am Main/Berna/New York/Paris, 1990, pp. 200-201 (que remete a S. Hausammann, Busse aLs
Umkehr und Emeuerung von Mensch und GeselLschaft. Eine theologiegeschichtliche Studie zu einer Theologie der Busse,
Zürich, 1975).
9. "Sacramental Confession Provided a Comprehensive and Organised System of Social Control", em Thomas
Tender, Sin and Confession on the Eve of the Reformation, Princeton, 1977, p. 345.
10. O resumo mais abrangente dessa literatura foi propiciado por Jean Delumeau (Le péché et la peur, op. cit.)
que, graças à gazua da "mentalidade coletiva", interpretou as imagens horripilantes difundidas pela literatura
eclesiástica como um espelho da consciência comum. A função aterrorizante da cultura da penitência foi ate-
nuada nos estudos seguintes de Delumeau (Rassurer et protéger. Le sentiment de securité dans l'Occident d'autrefois,
Paris, 1989; Vaveu et le pardon. Les difficultés de la confession Xlll-XVIII' siecle, Paris, 1990) que, por sua vez,
colocaram em primeiro plano a função tranquilizante e reconfortante da confissão. Já Steven E. Ozment (The
A Confissão
4
285
O novo modelo de crente foi oferecido em sua forma heroica por aqueles condenados
à morte por motivo de sua fé que subiram as escadas do patíbulo recitando o salmo
Miserere mei Deus , talvez na forma vernácula e sem mediações eclesiásticas 11 •
Se tinha sido essa a proposta e se os seguidores da Reforma permaneceram com
os olhos fitos nesse modelo consolador e libertador, a realidade das realizações institu-
cionais foi diferente. Existia um problema de controle da moralidade pública ao qual
nenhum poder era indiferente. De resto, a interpretação luterana defendeu a importância
da confissão pública para as culpas que prejudicavam a comunidade, como o assassínio, ,,
o furto , o adultério, o falso testemunho , deixando ao segredo da relação íntima com
Deus o arrependimento pelos pecados do coração 12 • E este do pecado como quebra de
uma disciplina social era um dos aspectos fundamentais - se não o mais importante -
da tradição cristã da confissão dos pecados. Embora a prática tardo-medieval tivesse
acentuado o aspecto da confissão privada, restava no pano de fundo o problema da
disciplina da sociedade: os êxitos que a questão teve na moralidade calvinista e no uso
do consistório apoiavam-se desse ponto de vista em bases sólidas 13 •
Alguns sublinharam-lhe os aspectos de tribunal duro e indiscreto: para William
Tyndale, a confissão auricular pesava nas consciências como um carrasco ameaçador
e cruel; e também para Thomas Moore, a ideia de contar as próprias culpas a certos
confessores era muito pouco agradável 14 • Mas não demorou muito, ao se definir a nova
relação entre obediência religiosa e fidelidade política, para que a ligação entre confessores
e penitentes parecesse cada vez mais atraente ou preocupante devido às possibilidades
que oferecia para usos de propaganda e de poder. Nas regiões da Europa onde a estru-
tura eclesiástica e o poder romano tinham sido subvertidos, os confessores foram vistos
como representantes de uma força hostil que podiam fazer propaganda contra o poder
legítimo. A ligação especial entre confessores e mulheres foi vista como um instrumento
subterrâneo de domínio sobre as famílias: os confessores que na Quaresma perguntavam
às mulheres se tinham dormido com seus maridos foram acusados de impelir os homens
ao adultério 15 • Porém, podia-se temer algo bem pior que essas conversas secretas a temer.
Na Inglaterra, onde Henrique VIII manteve a confissão auricular, os reformadores viram
Reformation in the Cities. The Appeal of Protestantism to Sixteenth-Century Germany and Switzerland, New Haven,
197 5) defende a tese de que a Reforma de Lutero oferecia uma resposta à ânsia gerada pelo sistema da confissão
tardo-medieval.
11. Sobre o uso do salmo na época de Maria, a Católica, cf. Lydia Whitehead, "A Poena et Culpa Penitence, Confi-
dence and the Miserere in Foxe's 'Actes and Monuments" , em Renaissance Studies, IV, 1990, n. 3, pp. 287-299.
12. Cf. Bossy, "The Social History of the Confession in the Age of the Reformation", op. cit. , pp. 26-27.
13. Cf. para algumas sondagens nesse sentido a coletânea de ensaios organizada por Raymond A. Mentzer, Sin
and The Calvinists. Morals Contrai and the Consistory in the Reformed Tradiction, Kirksville, 1994 (vol. 32, Sixteenth
Century Essays and Studies).
14. Retomo as citações de Tyndale (The Obedience of a Christian Man) e de Thomas Moore (Dialogue Concerning
Heresies) da obra de Peter Marshall, The Catholic Priesthood and the English Reformation, Oxford, 1994, pp. 9 e ss.
15. A acusação, de Jacob Strauss, é citada por S. Ozment, The Reformation in the Cities, op. cit., p. 53. Conselhos
do gênero dados no confessionário figuraram entre os itens de acusação contra um padre inglês em 1543: cf.
Marshall, The Catholic Priesthood and the English Reformation, op. cit., p. 25.
A Confissão
287
19. Adversus Ca!umniantem ad Sacramentalem Confessionem, Dfoino lure non Teneri Adu!tum Christico!am G[regorii]
Bomati Monachi Casinensis Opusculum, Venetiis, typ. Thomam Ballarinum de Temengo Vercellensem, 1535
(cópia junto a BAV, Stamp. Barb. V. XIV. 28). É dedicado a Gaspare Contarini, recém-eleito cardeal.
da penitência para os pecados cometidos após o batismo como realidade muito dife-
rente (multo aliam) da penitência do batismo, como "segunda tábua" a ser diferenciada
da primeira. Mas desse contexto, o decreto tridentino mantinha a proeminência do
problema da justificação, da penitência como disposição subjetiva do homem cristão
decidido a começar uma nova vida ("inchoare novam vitam") , que não se esgotava na
prática do sacramento.
Em 1551, a questão é vista de um ponto de observação bem diferente: trata-se
então de questões de poder, de uma matéria que é o próprio cerne do poder de gover-
no na sociedade cristã. Está em jogo a christiani populi disciplina 20 • Como havia escrito
Johann Eck em um texto familiar aos padres tridentinos , a confissão era o nervo da
disciplina cristã 21 • Mas no texto de Eck, "disciplina" tinha um matiz de significado
diferente em relação à "disciplina" de que fala o decreto tridentino: era a ideia clássica
da disciplina como governo de si, que Eck retomava da cultura humanista e arcaizante
de que se nutrira e que misturava sem dificuldade aos textos de teologia. Tratava-se,
enfim, de autodisciplina, ligada ao conceito de consciência - esse também elaborado
com base em fontes clássicas por Eck, boa testemunha da cultura hegemônica no início
do século XVI 22 •
A "disciplina" em que os padres tridentinos pensavam em 1551 era algo diferente:
os textos que discutiram e aprovaram tinham em mira o modo como o povo cristão
podia ser disciplinado, no sentido de posto sob controle. Na distância que separa esses
dois empregos do mesmo termo, é possível medir o impacto que a proposta luterana teve
e a reação que suscitou em um corpo eclesiástico que sentiu seu poder em perigo. As
duas vertentes abertas pela polêmica de Lutero e de seus seguidores foram justamente
essas: de um lado, o abandono de um conceito de penitência ritualizado e contabiliza-
do para provocar a expansão do sentimento de culpa sobre a vida inteira e exigir uma
"conversão" como reorientação radical da vida; do outro, o ataque à autoridade papal
e eclesiástica. Em um texto cuja eficácia é atestada pelo número de edições e sobretudo
pela circulação nas mãos de leitores registrada nos processos inquisitoriais, a Dottrina
20. Sessio XIV. De Poenitentia, cap. VII: De Casuum Reseroatione (Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Bologna, 1973,
p. 708).
21. "Cum confessio sit nervus disciplinae christianae .. ." (do memorial a Adriano VI, publicado por Georg Pfeilschif-
ter, Acta Reformationis Catholicae Ecclesiam Germaniae Concementia Saeculi XVI, I, Regensburg, 1959, p. 122. Reto-
mo a citação de André Duval, Des sacrements au Concile de Trente, Paris, 1985, p. 153). Sobre o mesmo conceito,
Eck insistiu no assunto no texto por ele publicado, que retomou a Assertio surgida sob o nome de Henrique VIII
e foi o mais amplo e significativo da parte romana: "[ ... ) Ut revera confessio ilia quae hodie fit in ecclesia
catholica, sit nervus religionis nostrae, et disciplinae christianae" (De Poenitentia et Confessione Secreta Semper
in Ecclesia Dei Observata contra Ludàerum Libri II, Romae, tip. Iacobum Mazochium, 1523, c. P Ir; a Biblioteca
Arquiepiscopal de Bolonha conserva a cópia com dedicatória de Eck a John Fischer). ·
22 . Uma história do valor semântico do conceito de disciplina revelou suas ascendências monásticas: mas seus
ecos estoicos não devem ser negligenciados. Já no' que se refere ao conceito de "consciência", o emaranhado de
valores estoicos e valores cristãos é um dado acertado em geral, mas falta uma pesquisa adequada à época de
que nos ocupamos. Cf. por enquanto o verbete "Consciência", no Dizionario di Filosofia de Nicola Abbagnano,
Torino, 1964, pp. 178-187.
A Confissão I
289
Verissima de Urbano Regio , ª oposição das duas doutrinas é organizada de acordo com
0 seguinte critério: ª "doutrina nova" a propósito da confissão é a da obrigacão da con-
fissão anual est abelecida pelo cânone Omnes utriusque Sexus , ao qual é associada a reserva
dos casos; a doutrina velha - ou seja, a autêntica, a evangélica - é a que consiste em
confessar a própria injustiça e em correr de volta em prantos aos pés de Jesus Cristo 23 •
A primeira gera escrúpulos devido à obrigação de lembrar todos os pecados; além disso,
a distribuição dos poderes e o sistema das leis "são feitos para atar as consciências ...
São invenções que arruínam as consciências de muitos" 24.
Portanto, o quadro dos problemas que se colocavam no grande arquipélago da
confissão podia ser sintetizado em dois itens principais: 1) um conflito entre promessa
de liberdade e exercício de governo eclesiástico; 2) um desafio a quem respondia melhor
à necessidade, reconhecida por todos , de consolar as consciências aflitas, livrá-las dos
escrúpulos e da ameaça do desespero devido ao peso dos pecados. Também não falta-
vam os que , ante o avanço de uma concepção completamente privada e individualista
da confissão, tentavam opor ainda um modelo comunitário de remissão recíproca e
fraterna das culpas 25 •
É no quadro de tais contrastes que se enquadra a resposta tridentina. E não
há dúvida sobre o fato de que - se no debate sobre a justificação o problema de ofe-
recer uma resposta às consciências aflitas foi proeminente - nas discussões sobre o
sacramento da penitência veio à tona sobretudo a questão do poder. O desafio lute-
rano aqui era particularmente difícil. Da parte deles, oferecia-se conceder liberdade
aos cristãos, não atar suas consciências, devolver aos cristãos aquela liberdade dos
filhos de Deus como liberdade interior que Lutero prometera com o mais célebre e
mais popular de seus escritos. Da parte católica, fazia-se valer a necessidade de guia
e de ajuda dos pecadores penitentes. Podemos perceber esse gênero de argumentos
no testemunho exemplar que se lê em um confessionário publicado nos anos do
concílio por um padre romano, "a confissão das pessoas luteranas e hereges, que
têm a opinião de que não são obrigadas a querer contar seus pecados a seu padre de
penitência". O autor atestava com base em sua experiência pessoal, acumulada "con-
fessando muitas e infinitas pessoas nos tempos pretéritos", que a ignorância reinava
soberana na matéria: as pessoas confessavam-se sem saberem "recitar seus pecados" ,
confessavam a duras penas uma vez por ano, não faziam "nenhum esforço em unir
23. Dottrina Verissima et Hora Nuovamente Venuta in Luce, tolta dai cap. IV a' Romani a consolare [ermamente le afflitte
'
conscienze dal peso de i peccati gravata ... , autor U. R. , 1547, pp. 5 e ss. Sobre o texto e sobre sua eficácia em
"fazer o leitor penetrar no próprio coração da doutrina luterana da justificação" cf. Silvano Cavazza, "Libri
in Volgare e Propaganda Eterodossa: Venezia 1543-1547", em Libri, Idee e Sentimenti Religiosi nel Cinquecento
Italiano, Módena, 1987, pp. 9-28; em part. pp. 22-23.
24. Dottrina Verissima, op. cit. , p. 11.
25. "[... ] Recordai _ escrevia Orazio Brunetto numa carta publicada em 1548 - que devemos remir entre nós
as culpas dos pecados passados, de modo que não ocorram penas, mas que nossas dívidas sejam satisfeitas"
(cf. Andrea Del Cal, "Note sull'Eterodosssia di fra Sisto da Siena, i suai Rapporti con Orazio Brunetto e un
Gruppo Veneziano di 'Spirituali", em Collectanea Franciscana, XLVII, 1977, PP· 27-64; em part., p. 53).
26. Confessionale Novo, del Reverendo M. Hieronymo Messi Prete Secular, Prior de Santa Felicita in Romano Redrizato
alia S. de Papa Paulo lll et a Tutti li Fidelissimi et Buoni Christiani, s. a. n. 1, cc. A Ilr-A Illr. Sobre as formas de
"confissão alternativa" praticadas nessa época por dissidentes religiosos italianos cf. Seidel Menchi, Erasmo
in ltalia, op. cit., pp. 168-175.
27. CF. Valens Heynck OFM, "Zum Problem der unvolkommenen Reue auf dem Konzil von Trient", em Georg
Schreiber (org.), Das Weltkonzil von Trient. Sein Werden und sein Wirken, I, Freiburg i. B., 1951, pp. 231-280.
28. É destacado também em idem, p. 273.
29. Entre as declarações preliminares indicadas na confessio generalis proposta por Girolamo Messi encontramos:
ter tido contato com excomungados sem sabê-lo e a frase: "Meu padre, eu me considero culpado de não vir a
esta sagrada confissão e sagrado sacramento com contrição" (c. A VII v.).
A Confissão
291
30. Cf. Concilium Tridentinum, Actorum pars quarta volumen prius, Friburgi Brisg., 1961, p. 241 nota ("non
pauci circa historiam errares inveniuntur, quos singillatim emendare impossibile est ... Haud raro de poe-
nitentia agunt aliqui patres, cogitantes tantummodo de poenitentia in genere, non autem de sacramento
poenitentiae").
31. Istoria dei Concilio Tridentino, org. por Corrado Vivanti, Torino, 1974, I, p. 562.
-. ..
292
ria romana, que havia muito estava no centro de todas as acusações dos reformadores ,
católicos e protestantes que fossem . O difusível fenômeno da apostasia dos religiosos
legitimado pelo sistema das dispensas da Penitenciária criara uma situação não mais
tolerável em tempos de desordem disciplinar e dissídio teológico. Num memorial de
1532, Gian Pietro Carafa lançara,se contra os "cães raivosos" da Penitenciária, responsá-
veis a seus olhos por culpas gravíssimas; era por causa dos abusos romanos que o antigo
significado de apostasia como saída da ordem religiosa e o novo , de abandono da fé ,
tinham se sobreposto e identificado 32 • A escolha romana de atuar através do tribunal
do Santo Ofício tirou a razão de ser das súplicas e dos apelos dirigidos à Penitenciária
por quem queria escapar do rigor inquisitorial3 3 • A reforma empreendida por Pio V em
1569 consistiu em atentar para a nova situação, limitando ao foro interno a atuação
da Penitenciária 34 • Porém, que não se deveria reconhecer-lhe "nenhuma superioridade
ao Ofício da S. Inquisição" já fora dito havia muito tempo 35 •
Ora, no que se refere aos usos correntes em matéria de confissão, as deliberações
tridentinas selecionaram rigorosamente só a forma da confissão privada e, polemi-
zando com a Reforma protestante, reconheceram o caráter judicial (actus iudicialis) da
confissão sacramental e definiram seu direito divino (ius divinum 36 ). Porém, tentaram
fazer desse ato judicial um instrumento de politia externa , como reza o documento,
com o objetivo de tornar eficaz a disciplina christiani populi. Foi com tal objetivo que se
previu a reserva dos casos, como ato de externa politia que devia valer também coram
Deo 37 • Esse capítulo do documento conciliar mostrou-se controverso na aplicação, mas
32. O memorial de Carafa foi publicado com o título "De Lutheranorum Haeresi Reprimenda et Ecclesia Refor-
manda", em Concilium Tridentinum, XII, pp. 67-77. A validade do julgamento de Carafa é demonstrada por
Guido Dall'Olio, "La Disciplina dei Religiosi all'Epoca del Concilio di Trento: Sondaggi Bolognesi", em
Annali dell'Istituto Storico ltalo-germanico in Trento, XXI, 1995, pp. 93-140. Sobre a questão da reforma dos reli-
giosos continua fundamental o vasto ensaio de Hubert Jedin, "Per una Preistoria della Riforma dei Regolari
(Tridentino, sess. XXV)", em Chiesa della Fede, Chiesa della Storia. Saggi Scelti, Brescia, 1972, pp. 227-273.
33. Súplicas do tipo são mencionadas por Filippo Tamburini, Santi e Peccatori. Confessioni e Suppliche dai Registri
della Penitenzieria dell'Archivio Segreto Vaticano (1451 -1586), Milano, 1995, p. 29.
34. Cf. E. Gõller, Die piipstliche Ponitentiarie 110m ihrem Ursprung bis zur ihrer Umgestaltung unter Pius V, Roma, 1907.
Cf. o recente F. Tamburini, "La Riforma della Penitenzieria nella Prima Metà del Sec. XVI e i Cardinali Pucci
in Recenti Saggi", Rillista di Storia della Chiesa in ltalia, XLIV, 1990, pp. 111-140.
35. Carta de frei Michele Ghislieri ao inquisidor de Gênova, de 3 de janeiro de 1555, a propósito de uma inter-
venção da Penitenciária para comutar uma penitência aplicada em dois acusados da inquisição (Biblioteca
Universitaria di Genóva, ms E. VII. 15, c. 28r.
36. Cf. André Duval, Des sacrements au Concile de Trente, op. cit. , pp. 209 e ss., onde se discute a tese de Angelo
Amato (l Pronunciamenti Tridentini sulla Necessità della Confessione Sacramentale nei Canoni 6-9 della Sessione XV
[25 n011. 1551]. Saggio di Ermeneutica Conciliare, Roma, 197 5), segundo o qual o ius divinum refere-se à integridade
da confissão.
37. "Magnopere vero ad christiani popoli disciplinam pertinere sanctissimis patribus nostris visum est, ut atrociora
quaedam et graviora crimina nona quibusvis, seda summis dumtaxat sacerdotibus absolverentur, unde merito
pontífices maximi pro suprema potestate sibi in ecclesia universa tradita causas aliquas criminum graviores sue
potuerunt peculiari iudicio reservare. Nec dubitandum est. .. quin hoc idem episcopis omnibus in sua cuique
dioecesi 'in aedificationem' tamen, 'non in destructionem' liceat pro illis in subditos tradita supra reliquos
A Confissão
293
demonstrou ser também imediatamente controverso pelo modo como fora redigido .
E as controvérsias sobre sua redação como aquelas sobre sua interpretação permitem
ver quais candidaturas adiantavam-se então na igreja, quando se tratava de garantir a
"disciplina" do povo. O combativo bispo de Cádiz contou em sua autobiografia que
0 acréscimo sobre o poder de reserva, "mas só para edificação e não para destruição"
(2 Cor. 10, 8; 13 , 10) tinha sido inserido no texto da doutrina por proposta de sua
autoria e de Foscarari, mas que ela se referia ao papa; a presidência do concílio man-
dara eliminá-la e depois , ante os protestos dos bispos espanhóis que chegaram até
Carlos V, tornara a inseri-la, mas referida aos bispos - e foi dessa forma que o texto
foi aprovado 38 • Mas não foi somente esse indício textual que mostrou que o papado
não pretendia deixar aos bispos poderes de politia externa em suas dioceses. Pedro
Guerrero, de volta à sua diocese de Granada, valeu-se do poder de absolver em casos
de heresia para reconciliar com a Igreja um herege penitente: mas foi imediatamen-
te chamado a observar a norma que reservava ao inquisidor o poder de julgar em
semelhantes casos . As intenções dos bispos tridentinos mais atentos a seus deveres
de governo das consciências eram assegurar para si mesmos a plenitude de poderes
no exercício da confissão, como se viu nas solenes afirmações do sexto capítulo De
Reformatione circa Matrimonium aprovado na XXIV sessão de 11 de novembro de 1563.
Lê-se no texto que os bispos podem absolver (diretamente ou mediante um vigário) os
fiéis , seus súditos, de qualquer pecado oculto, ainda que reservado à Sé Apostólica:
e acrescenta-se nele que esse princípio é válido também nos casos de heresia, ainda
que com uma importante limitação: que os hereges podem ser absolvidos somente
pelo bispo em pessoa, sem possibilidade de delegação 39 • Sobre a defesa desse ponto
manifestaram-se de modo especial os bispos espanhóis, para os quais , como anotou
Pedro González, os tempos antes demandavam o uso da misericórdia evangélica dos
bispos do que o do poder judiciário dos inquisidores 40 •
inferiores sacerdotes auctoritate" (cf. "De Casuum Reservatione", cap. VII da Doctrina aprovada na sessão 14:
Conciliornm Oecumenicornm Decreta, p. 708).
38. "El obispo de Modena y yo la compusimos, y mudaron cierta cosa de sustancia en la doctrina acerca de los casos
reservados, contra la voluntad de los diputados, y era yo uno de ellos y el que habia insistido en que se pusiese;
es a saber: que el papa podría reservar casos ad aedificationem; y, ofendido de este atrevimiento y tirania, cuando
vine a tratarse la sesión de Ordine, que no se hizo, habiéndome senalado por diputado, no lo quise aceptar";
a questão era importante, para Ayala, que advertiu o imperador através de Vargas "de aquella cláusula y cuán
perniciosa era y cuán escandalosa seria a los herejes" (a autobiografia foi publicada por M. Serrano y Sanz, em
NBAE, II, Madrid, s.d. [1927], pp. 211-238; aqui cita-se a partir de Martin Perez de Ayala, "Discurso de la Vida", em
Pedro González de Mendoza, E! Concilio de Trento, Buenos Aires, 1947, p. 43. Cf. H. Jedin, "Die Autobiographie
des Don Martin Pérez de Ayala", em Kirche eles Glaubens Kirche der Gerschichte, II, 282-292).
39. "Idem et in haeresis crimine, in eodem foro conscientiae, eis tanrum, non eorum vicariis, sit permissum"
(Conciliorum Oecumenicornm Decreta, p. 764).
40. "Dei sexto canon se quitó lo de la lnquisición, porque en estos tiempos es grande inconveniente que los obispos
non puedam absolver los herejes que vinieren a sus pies arrepentidos de su yerro, pidiendo misericordia, pues el
inquisidór ordinario y el más legítimo pastor de las almas es el obispo" (Pérez de Ayala, "Discurso de la Vida", op.
cit., p. 144).
41. Cf. supra pp. 261-262. Sobre Foscarari falta uma pesquisa adequada; um rápido mas exaustivo levantamento
do estado dos conhecimentos sobre ele é oferecido por Franco Bacchelli, "Oi una Lettera su Erasmo ed Altri
Appunti da Due Codici Bolognesi", em Rinascimento, s. II, XXVIII, 1988, pp. 257-287, em part. pp. 257-259,
que menciona diversos documentos comprovantes do posicionamento tolerante e aberto de Foscarari para
com os suspeitos de heresia e publica entre outras coisas (pp. 282 e ss.) duas cartas de Filippo Valentini de
Coira, de 1562, relativas a uma oferta de salvo-conduto com amplas garantias.
42. Para os estatutos sinodais cf. U. Pesei, I Vescovi di Gubbio, Perugia, 1919, p. 115. Uma reconstrução e avaliação
atenta da obra de Cervini desse ponto de vista encontra-se no recente volume de William Hudon, Marcello
Ceroini and Ecclesiastical Govemment in Tridentine ltaly, op. cit.
43. O breve papal é datado de 5 de junho de 1538; a declaração de intenções de Sadoleto está contida numa
carta que escreveu ao cardeal Farnese de 29 de julho de 1539. Cf. Marc Venard, Réforme Protestante, Réforme
catholique dans la province d'Avignon. XVI' siecle, op. cit., pp. 330-331.
44. O breve de 1° de fevereiro de 1568, mencionado no final do século XIX por C . Cantú, é citado por A. Biondi,
"Streghe ed Eretici", op. cit., p. 194 nota.
A Confissão
295
Outros bispos tiveram que inventar para si mesmos percursos capazes de aprovei-
tar os conhecimentos do tribunal da confissão para desentocar os hereges ocultos. Mas
acabaram apelando à tendencial transformação da confissão anual obrigatória em um
tribunal de foro externo. Na sobreposição dos dois tribunais, houve quem não se conteve.
Em 1552, Fabio Arcella, arcebispo de Cápua, passou uma lista de mulheres suspeitas
de heresia a um cônego, ordenando-lhe "que devia confessar todas essas mulheres que
constavam da lista" , interrogando-as e certificando-se bem "se tinham sido hereges". Num
primeiro momento, o cônego recusou-se, mas, diante de uma ordem categórica, curvou-se.
Foi uma confissão singular: as mulheres foram convocadas e obrigadas a confessar "todos
os seus pecados e especialmente se tinham incorrido em algum erro de heresia contra
a Santa Madre Igreja e Santa Fé cristã" . Naturalmente, foi preciso explicar quais eram
as heresias: e aí surgiram notáveis complicações. O cônego perguntou àquelas mulheres
"se alguma vez lhes fora dito que não rezassem o terço, que não se confessassem ou que
não acreditassem no Santíssimo Sacramento da comunhão" . Muitas mulheres pediram,
preocupadas, "que lhes dissesse se haviam cometido o erro ao rezar o terço, confessar-se,
comungar, ir à igreja" : e o cônego teve que explicar "que tudo era correto e sagrado" 45 •
Em Salerno, em 1558, o agostiniano Girolamo Seripando informou o comissário
napolitano do Santo Ofício sobre a questão de um penitente culpado de heresia que
estava à espera da absolvição: o comissário ordenou que se passasse do oral ao escrito
e que o penitente anônimo transformasse a confissão (já feita) em uma autodenúncia
escrita, fazendo-o "especificar os cúmplices, e se tem notícia de qualquer pessoa que
esteja infectada pela heresia ... ", explicando detalhadamente "como incorreu em tais
erros, nomeando quem o induziu a isso". Somente depois da abjuração formal , o pe-
nitente podia ser absolvido 46 •
É evidente, enfim, que a urgência da luta contra os hereges em meados do século
XVI dobrava os antigos equilíbrios entre foro de consciência e o da justiça penal em
novas direções. Houve uma clara vontade, por parte de Roma, de desfrutar o veículo da
confissão para realizar a caça à heresia. Mas essa vontade juntou-se à iniciativa de bispos
que, para retomar o controle da ortodoxia de seus povos, não hesitaram em utilizar-se
do uso coercitivo e policial dos sacramentos: a comunhão 47 e a confissão.
Era uma situação de emergência: era necessário que os leigos manifestassem
sua fidelidade à estrutura eclesiástica de modo verificável - e para isso nada era mais
45 . Depoimento do cônego Santo Panebianco, de 1º de fevereiro de 1564 (publicado por Pier Roberto Scaramella,
Con la Croce ai Core. lnquisizione ed Eresia in Terra di La11oro [1551 -1564), Napoli, 1995, pp. 19 e 147).
46. A carta do vigário do arcebispo e comissário da Inquisição em Nápoles, Giulio.Pavesi, a Seripando foi publi-
cada por Michele Cassese, L'Attività Riformatrice di Giro/amo Seripando Arcivescovo di Salemo (1554-1563) nella
Conispondenza con Vescovi Meridionali, Tese de Doutorado, Università degli Studi di Pavia, 1987-1988, doe. 139
do apêndice. A importância da carta para o cruzameno confissão-inquisição foi mencionado por G. Romeo,
lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit., pp. 191-192.
47. Antes de obrigar O canônico Santo Panebianco à confissão obrigatória das mulheres suspeitas, Fabio Arcella
havia publicado um "bando" que impunha a obrigação da comunhão da Páscoa (cf. Scaramella, Con la Croce
al Core, op. cit., p. 18).
48. Para se ter uma ideia, reproduzimos atestados como o concedido a um soldado da fortaleza florentina de San
Miniato em 1566: "Eu, frei Joseph, frade de São Francisco da Observância, certifico e dou fé que é verdade
que confessei Martino da Cidade de Castello, bombardeiro, ao menos duas vezes por ano, e também dou fé
que ele sempre como bom cristão e verdadeiro católico sempre reza o terço, e é homem de boa consciência
pelo que ouvi em confissão [... ) Dou fé ainda que ele todo ano comungou ao menos duas vezes" (Archivio
di Stato di Firenze, Tribunale della Apostolica Nunziatura, 593, cc. n. n.). O segundo atestado, conservado no
referido arquivo, foi concedido na mesma data a Martino pelo capelão da fortaleza de San Miniato: declara-se
nele que "ministrei muitas vezes confissão ao bombardeiro Martino no decorrer dos quatro anos que passei
na referida fortaleza e reconheci nele que leva uma vida cristã e, durante esse tempo, vi nas partes exteriores
sinais manifestos de que é um homem muito bom e cristão, isto é, que é todas as manhãs o primeiro [a estarl
na igreja diante da imagem do crucifixo e na primeira missa, e muitas vezes também na segunda, e [mantém]
em seu quarto continuamente a lanterna ou lume diante da imagem da mãe de Nosso Senhor Deus[ ... ]".
A Confissão
297
O Concílio de Trento fora convocado para resolver as controvérsias de fé; era óbvio,
portanto, que sua convocação reforçasse nos bispos a consciência de serem chamados
a governar seus povos para mantê-los na fé ortodoxa, para desentocar e punir os here-
ges. E isso estava em desacordo com as pretensões do Santo Ofício romano , que não
deixava passar nenhuma oportunidade de fazer chegar a esse ou àquele bispo a ordem
categórica: "não se intrometa em nenhum caso ou de modo nenhum em assuntos de
fé" 49 - o ql:).e para um bispo causava mais estranheza do que se podia imaginar. Tanto
mais que os "assuntos de fé" não se limitavam à luta contra as doutrinas da Reforma,
mas tendiam a estender-se a muitas outras matérias, à medida em que a emergência do
conflito de religião cedia a passagem, pelo menos na Itália, aos problemas do controle
do cotidiano dos comportamentos e das ideias.
49. A citação foi retirada de uma carta do cardeal Scipione Rebiba ao núncio de Veneza Gian Battista Castagna,
de 15 de dezembro de 1573, na qual - em nome da congregação do Santo Ofício - solicitava "que V. S. Com
· e convemen
mo dês na · t e ocasi·a·o faça saber a mons · o bispo de Vicenza que não se intrometa em nenhum caso
e d e mo do nen h um em ass Untos de 1•e1·" (Nunziature di Venezia, vol. XI, 18 jun. 1573 - 22 dez. 1576", org. por
·
Ad nana Bu ff:ard 1,· Rorna, 1972 , p . 113)· Matteo Priuli era o bispo de Vicenza.
2. Mas, enquanto isso, deve-se ter presente o estudo de John Tedeschi e William Monter, "Toward a Statistical
Profile of the ltalian lnquisitions, Sixteenth to Eighteenth Centuries", agora em J. Tedeschi, The Prosecution °f
Heresy , pp. 89-126.
A Confissão
301
édito geral que o inquisidor publicava no início de sua atividade. Mas também nesse
caso, se lermos e confrontarmos mais éditos distantes só poucos anos um do outro,
temos a impressão de um movimento rápido de expansão , uma espécie de prolifera,
ção dos poderes ou pelo menos das pretensões desse tribunal. O édito geral de 1568,
assinado por Paolo Costabili, inqu isidor,geral de todo o território de Este, era muito
breve: redigido em duas línguas (latim e italiano), explicava em não mais de dez linhas
os deveres dos fiéis súditos do duque:
Ordena,se em primeiro lugar que quem souber de alguma pessoa que se desvie da fé católica
e da doutrina da Santa Igreja Romana, seja herege, defenda ou aprove dogmas e coisas heréticas,
ensine,as ou realmente acredite nelas:
se alguém igualmente souber quem tenha, leia livros proibidos por heresia, ou por qualquer
outro motivo seja infame, ou suspeito de heresia;
ademais se alguém souber quem faça sortilégios, malefícios e bruxarias, com abuso e vilipên,
dio dos sacramentos, ou culto e adoração de demônios, ou que tenha livros que realmente tratem
de tais coisas:
deverá no prazo máximo de vinte e quatro dias manifestar-se e denunciá-los ao R. P. Inquisidor
ou, em sua ausência, a seu vigário, do contrário incorrerá em excomunhão 3•
Apenas trinta anos mais tarde, o édito geral é bem diferente. O que foi publicado
em Reggio Emília pelo inquisidor Pietro Visconte de Tabia em 20 de outubro de 1598
reúne em capítulos diferentes as indicações pelas categorias específicas de crimes: "Os
hereges e suspeitos de heresia" ainda são a primeira categoria e a mais analiticamente
descrita. Mas vêm em seguida: "Bruxas, magos, feiticeiros , encantadores e supersticiosos
[.. .] Livros proibidos[ ... ] Os blasfemos[ ... ] Os judeus[ ...] Os impedientes e detratores do
Santo Ofício [... ] Os protetores e cúmplices dos supracitados delinquentes"; e no final
há um apêndice de "admoestações, preceitos e inibições" relativos a "denunciantes e
testemun h as ", "presos ", "·impressores, t·ivreiros,
· co bra d ores de impostos
· ", "reveren d os
·
parocos e presi·d entes ", "reverend os prega dores ", "reveren dos conressores
e " 4.
3. A cópia impressa está conservada em ASM, lnquisizione, b. 270. Sobre os éditos inquisitoriais e sobre sua evolução
cf. Bethencourt, L'lnquisition à l'époque modeme, op. cit., PP· 176 e ss.
4. O édito, publicado em Reggio por Flavio e Flaminio Bartoli, está conservado no já citado fundo de Módena,
b. 270.
O historiador e inquisidor Umberto Locati talvez tenha descrito melhor do que outr .
" ,e • • os.
tratava-se d e re1orrnar a cidade e corte de Roma, e a Cnstandade ... reduzir O clero ao
antigo candor de doutrina e vida pura ..., extirpar a semente perniciosa da heresia; !. .. ]
impedir e castigar os enormes pecados que provocam a ira de Deus" 5 • Um projeto de
reforma, portanto, estava por trás da atuação dos mais conscientes e ativos membros do
tribunal: o que não é particularmente original em um século que já vira outros projetos
de reforma bem diferentes. No interior da Igreja católica, outros instrumentos e outros
projetos orientaram-se para a tentativa de reformar modos de pensar e comportamentos.
Era inevitável que competissem entre si até se sobreporem e criarem obstáculos uns
aos outros. Veremos alguns casos, sem pretensões de completude: somente quando a
atividade dos tribunais criminais eclesiásticos e laicos dessa época tiver sido investigada
teremos a medida exata da marcha institucional da Inquisição romana. Mas pelo menos
um ponto sobressai com absoluta clareza: nesse primeiro meio século de vida da Inqui-
sição romana, cumprira-se o breve ciclo de urna proposta diferente de organização e de
controle da sociedade cristã, a que tivera como base os bispos e a estrutura diocesana.
Os projetos de reforma moral e de reorganização da disciplina no clero e na
sociedade que se tinham enfrentado na primeira metade do século encontraram uma
caixa de ressonância nos documentos do Concílio de Trento: certa ideia da ordem
social e dos costumes individuais tinha estado estritamente ligada à imagem do bispo
corno pastor, que vigiava paternalmente seu rebanho. A respeito dessa ideia do bispo,
todas as correntes de reforma do início do século XVI estiveram de acordo: até Lutero,
quando se dedicara à reorganização das instituições eclesiásticas em sua visita às igrejas
da Saxônia, tinha rebatido que, na raiz da depravação que tornava conta dos costumes,
havia a responsabilidade de bispos que não tinham sido pastores mas lobos rapaces. A
ideia de sociedade que servia de base a esse apelo ao bispo-pastor trazia quase sempre
a marca de uma severidade e de um ascetismo de modelo agostiniano: e isso tornou
possível nas correntes reformadoras italianas do início do século XVI a confluência de
posições individuais que mais tarde deviam seguir caminhos diferentes, cindindo-se
entre ortodoxos e "luteranos". A obra do Concílio de Trento ainda ecoa intensamente
essas tendências: o pessimismo difuso na raiz profunda do mal inclina os decretos tri-
dentinos de reforma para o projeto de urna sociedade regida - se preciso, corrigida - por
um corpo eclesiástico bem preparado, mas sobretudo solidamente radicado nos lugares
onde mora o rebanho a ser guardado: portanto, um corpo de padres e de bispos, que
conhecem suas ovelhas para que possam manter urna contínua e precisa administração
e estejam em condições de remediar as más inclinações específicas de suas regiões. Ao
contrário, a desconfiança circundava a errática pregação dos frades, devido à tolerância
de sua prática penitencial. Quanto à Inquisição, viu-se como, a partir de vários sinais,
aflorava no concílio um sentimento difuso de hostilidade e de temor em relação aos
membros e aos modos desse tribunal de frades governado por Roma: embora nem todos
5. [Locati), ltalia Travagliata, op. cit., p. 218. Locati descreve nele os objetivos que, com a eleição do papa Pio V
Ghislieri, pareciam-lhe próximos de realizar-se.
A Confissão
303
deviam recordar aos penitentes a obrigação da denúncia 8• A medida era idêntica àquela
inventada pelo Santo Ofício poucos anos antes. Mas o modelo instituído por Borromeo
era, num certo sentido, mais completo. Não se tratava apenas de indagar se havia hereges
ou protetores de hereges: a lista das coisas a respeito das quais se devia fazer "diligente
inquisição" abarcava muitas outras matérias, desde a organização das escolas de doutrina
cristã à presença de superstições, dos pecadores públicos aos judeus, da administração
dos conventos de monjas à limpeza dos petrechos sagrados 9• Uma obra do gênero deman-
dava inclusive a colaboração com a Inquisição; e de fato , bem no início dos decretos do
Concílio Provincial lê-se um convite ao clero para que colabore com os inquisidores. No
entanto, o modelo de sociedade estritamente vigiada em que pensava Borromeo ligava-se
não tanto à eficiência da polícia inquisitorial quanto à vigilância dos bispos e do clero
secular, à sua obra de administração severa e paternal. Não se tratava apenas de palavras.
Quando necessário, Carlo Borromeo interveio contra bruxas e hereges, prescindindo dos
instrumentos ordinários da Inquisição e mostrando de quanto rigor e rapidez podia ser
capaz o bispo-pastor na defesa da ortodoxia de seu rebanho. Da investigação contra os
hereges de Mântua em 1568 àquela contra a seita "georgiana" no interior da congregação
cassinense da Ordem beneditina, até a perseguição às bruxas da Mesolcina, o modelo de
polícia da fé oferecido por Borromeo foi caracterizado pelo recurso à Inquisição somente
como instrumento para uma função de governo que permanecia solidamente nas mãos
do bispo 10• O estilo do bispo podia revelar-se ainda mais duro que o do inquisidor: tão
estorvado este último pelas regras do direito e pelo controle das autoridades superiores
romanas, quanto era imediata e desprovida de incertezas a participação desejada pelo
bispo, que se sentia chamado pela vontade de Deus a exterminar os lobos agressores de
suas ovelhas. Chegou-se ao ponto, como veremos mais adiante, em que as bruxas conde-
nadas pelo cardeal arcebispo de Milão deveram sua salvação à intervenção da Inquisição.
Do ponto de vista do bispo, a ameaça de heresia era apenas uma entre muitas:
tratava-se de absorver ou eliminar os focos de diversidade ou de dissensão doutrinária - por
exemplo os judeus, contra os quais Carlo Borromeo antecipou as medidas de recrudesci-
mento adotadas em seguida pela política papal 11 ; era preciso impedir a circulação de livros
e de homens, em uma terra que mantinha fronteiras com o mundo europeu da heresia: e
surgem medidas nas mais variadas direções, dos mercadores que vinham de terras suíças
aos contatos dos jovens lombardos com a Alemanha por motivos de estudo. Mas, em
geral, tratava-se de instaurar um modelo de vida cristã constituída de severa moralidade,
de ordem social e respeito às hierarquias como premissas necessárias para um intenso
ascetismo. A luta contra os elementos de desordem interna somou-se à organização de
8. Cf. Agostino Borromeo, "L'Opposizione all'Eresia", em Il Grande Borromeo tra Storia e Fede, Cinisello Balsamo,
1984, pp. 225-251; em part. pp. 226-227.
9. Cf. o "Ricardo di alcune cose delle quali principalmente si ha da fare diligente inquisizione", publicado por
Domenico Maselli, Saggi di Storia Ereticale Lombarda al Tempo di s. Cario, Napoli, 1979, pp. 184-186.
10. Cf. idem e S. Pagano, Il Processo contra Endimio Calandra.
11. A observação é de Borromeo, "L'Opposizione all'Eresia", op. cit., p. 234; ver também Renata Segre, "Il Mondo
Ebraico nel Carteggio di Carla Borromeo", em Michael, 1, 1972, pp. 162-260.
A Con fissão
305
defesas contra a ameaça da "peste" herética do exterior. A proposta positiva de uma reno,
vada religiosidade individual e coletiva foi a outra face da medalha em relação às medidas
repressivas e de controle. Quanto a essas, o projeto global composto por seu conjunto é o
de uma cidadela ortodoxa, cercada de muros espirituais e materiais, protegida por milícias
celestes mas também terrenas, por polícias sagradas e por um bem lubrificado sistema de
espionagem: uma comunidade imóvel e desprovida de trocas, sobre a qual o bispo devia
exercer sua vigilância. A relação era entre a autoridade eclesiástica e o indivíduo, com a
exclusão de qualquer outro sujeito. Todas as formas coletivas da tradição medieval pare-
ciam suspeitas e a serem reformadas: de modo particular as confrarias, com sua tendência
a uma sociabilidade devota que escapava à organização territorial planificada do modelo
episcopal. A paróquia é a célula base desse sistema: e, ao estabelecer sua diretriz, os bispos
tridentinos querem-na livre das formas associativas ligadas ao parentesco. O projeto da
paróquia - explicitou Carlo Borromeo - devia recortar de modo regular e controlável o
espaço habitado, sem seguir o desenho móvel das alianças parentais. E aqui surge um dos
principais obstáculos que a diretriz reformadora teve que enfrentar: a família.
A batalha em torno da família foi um momento essencial da relação entre Igreja
e sociedade italiana na época do Concílio de Trento: a quantidade de poderes e funções
sedimentadas nas organizações parentais na época era tamanha que só a literatura jurí-
dica permite fazer uma ideia dela 12 • Mas a afirmação das novas dimensões da presença
da Igreja perpassava a construção de uma relação individual com cada cristão como fiel.
E a pessoa reassumia-se e concentrava-se na consciência como lugar secreto, acessível
apenas ao confessor ou, de qualquer modo, ao poder eclesiástico: por outro lado, o
efeito do poder sobre esse lugar evidenciou-se cada vez mais na série de imagens e termos
judiciários (tribunal, provas, indícios, probabilidade, exame etc.) com que a consciência
tornou-se pensável na literatura dos "casos" dedicada a seu governo 13 •
O choque entre Igreja e família foi duro e disse respeito, em primeiro lugar, aos
sacramentos, dos quais a diretriz tridentina tirou o caráter de ritos de consagração das
redes familiares: a drástica podadura do número de padrinhos de batismo, a reforma
do matrimônio e a disciplina dos votos religiosos foram apenas alguns dos pontos de
atrito 14 • O modelo episcopal de reforma a esse respeito , na falta de poderes reais, en-
controu sua expressão em uma literatura de conselhos, admoestações e propostas de
12. E por isso é preciso recorrer ainda à obra de Nino Tamassia, La Famiglia Italiana nei Secoli Decimoquinto e
Decimosesto, Milano/Palermo/Napoli, s.a. (1910).
13. Uma arguta observação sobre esse ponto, que mereceria um desenvolvimento mais amplo, é fornecida por
James Tully, "Governing Conduct", em Edmund Leites (org.), Conscience and Casuistry in Early Modem Europe,
Cambridge/Paris, 1988, pp. 12-71; em part. p. 29. Sobre a casuística vista sob a perspectiva da Inglaterra
moderna, cf. Keith Thomas, "Cases of Conscience in Seventeenth-Century England", em John Morril, Paul
Slack e Daniel Woolf (orgs.), Public Duty and Prioote Conscience in Set1enteenth Century Eng!and, Essays Presented
to G. E. Aylmer, Oxford, 1993, pp. 29-56.
14. Sobre o conflito entre igreja tridentina e familia, remete-se ao ensaio fundamental de John Bossy, "The
Counter-Reformation and the People of Catholic Europe", Past and Present, 1970, trad. it. em M. Rosa, Le
Origini dell'Europa Moderna. Rioolu~ione e Continuità, Bari, 1977, pp. 281-308.
modelos exemplares. Dirigia-se, a esse respeito, aos pais de família, como responsáveis por
determinados deveres ou "ofícios": deviam ocupar-se da realização da proposta eclesiástica
com um controle pontual dos filhos , das mulheres e dos criados. Foi desenvolvido sobre-
tudo o aspecto da educação, em uma literatura pedagógica dedicada a delinear as formas
da "educação cristã" a ser praticada na vida familiar; família e igreja podiam estabelecer
uma aliança apenas para impor a obediência ao herege sedicioso, visto como um menino
desobediente 15 • Mas bastaria um confronto sumário com a literatura dedicada ao pai de
família na Alemanha luterana 16 para mostrar o grau de desconfiança com que se olhava
para os membros da casa familiar no mundo católico: uma desconfiança que se torna
perceptível não só e não tanto nas ásperas reprimendas dirigidas a pais e mães pelos bispos
e pelos eclesiásticos da época, mas sobretudo no silêncio que envolve o assunto. Numa
sociedade citadina substancialmente dominada pelas organizações das famílias, chama a
atenção a escassa presença do tema nas fontes eclesiásticas. E, se a literatura sobre o pai de
família adaptou seus preceitos aos temas emergentes da época - por exemplo, incitando o
pai a controlar a religião dos filhos como o rei devia fazer com a do povo 17 - a instituição
familiar como tal não foi um interlocutor ao qual as autoridades eclesiásticas dedicaram-
-se em particular. Sua presença foi escassa também na literatura espiritual, onde as Regole
de Cherubino de Spoleto (repropostas na época do Concílio de Trento) limitavam-se a
garantir também aos cônjuges a possibilidade da salvação de acordo com a ótica de uma
divisão medieval dos estados de perfeição 18 • Somente na obra de Giovanni Leonardi,
de Lucca, e na de seus seguidores é dada uma atenção específica à família: o que pesou
nisso foi o modelo dos "modernos hereges na Alemanha, França e outros lugares", com
sua insistência na leitura doméstica para doutrinar os jovens 19 • Mas na longa série de
conselhos e sugestões dadas a pai e mãe para a construção de uma vida familiar edifican-
te encontram-se também outros elementos, fundidos em uma nova proposta motivada
pela urgência do desafio luterano; de um lado, a rica tradição da literatura dos livros de
família e dos "tratados dos ofícios" da cultura humanista (não só italiana) e, de outro, a
experiência pessoal que o autor teve da realidade viva da família na sociedade de Lucca.
Resta o fato de que, no projeto de reforma episcopal, o cristão foi visto como
indivíduo isolado, a ser educado e controlado. E o instrumento fundamental para
atingir o objetivo foi identificado na confissão.
15. A obra de Sílvio Antoniano, Tre Libri deU'Educazione Christiana dei Figliuoli, Scritti ad Instanza di Mons. Iliustrissimo
Cardinale di S. Prassede Arcfoescot10 di Milano, Verona, junto a Sebastiano Dalle Donne e Girolamo Stringari
compagni, 1584, foi dirigida pelo autor aos "pais de família". Cf. Vittorio Frajese, II Popolo Fanciullo. Silt1io
Antoniano e il Sistema Disciplinare della Controriforma, Milano, 1987, p. 46.
16. Cf. Steven Ozment, When Fathers Ruled. Family Life in Reformation Europe, Cambridge Mass./London, 1983.
17. A relação entre pais e filhos é incorporada ao "regimento régio" por Francesco Tommasi, Reggimento dei Padre
di Famiglia, Firenze, tipografia de Giorgio Marescotti, 1580, p. 128.
18. Regole dela Vita Matrimoniale Utili a qualunche Persona che Desidera Vivere nel Timor di Dio, et Stato dei Santo
Matrimonio, Roma, junto a Vincenzo Lucrino, 1553.
19. lnstitutione di una Famiglia Christiana... Composta dai M. R. P Giooanni Leonardi, di nuooo Tistampata ad instanza
di Agostino Rispolo napolitano a commune utilità, Napoli, por Secondino Roncagliolo, 1642, p. 11.
A Confissão
307
Também nesse caso, Carlo Borromeo surge como modelo de uma tendência
disseminada. Juiz severo no tribunal da consciência, como queriam os bispos reforma,
dores de Trento, o confessor esboçado por Borromeo devia escutar descrições precisas,
distribuir sentenças proporcionais às culpas, solicitar quando necessário reparações
públicas. Se antes dele outros bispos já tinham se dirigido aos confessores, assinalando
o que deviam transmitir na relação a dois com o penitente, é com Carlo Borromeo que
o confessor torna,se um guarda aduaneiro que deve pedir contas aos penitentes, antes
de passar adiante, de como observaram os éditos, os admonitórios e os anúncios em
série emitidos pelo arcebispo. Nos Avvertimenti per li Confessori de Borromeo, lê,se entre
outras coisas: "Também não sejam absolvidos ... os que não notificaram o que sabem de
coisas, que tenham sido avisados a notificar por édito público, admonitório papal ou
arquiepiscopal, se antes não fazem a notificação e expiação" 2º. A precisão na descrição
das culpas era necessária para que pudessem haver intervenções e remédios apropriados.
Nisso, Carlo Borromeo demonstrava ter cumprido o espírito da reforma tridentina:
o confessor era entendido por ele como um juiz. Durante os debates tridentinos, essa
severa concepção do confessor provocara dúvidas e hostilidades: e em sua Istoria frei
Paolo Sarpi retomou tais críticas e acrescentou as suas. Que sentido tinha fazer do con,
fessor um juiz se o que dele se requeria não era uma sanção penal mas um ato de graça?
[... ] O ofício do juiz é tão somente declarar inocente aquele que o é, e culpado o transgressor.
Mas fazer do delinquente justo, tal como se atribui ao sacerdote, não sustenta a metáfora do juiz.
Concede o príncipe graça da pena aos delinquentes, restituindo à fama: a ele mais se assemelha
quem faz do ímpio justo [... ]2 1•
Mas o uso que os bispos tridentinos mais consequentes - e são Carlo Borromeo
depois deles - pretendiam fazer da confissão era justamente esse: um tribunal que inves,
tigasse atentamente as culpas para aplicar penas adequadas e para solicitar reparações
pontuais, um lugar enfim onde fosse possível fazer justiça, reconduzir a uma norma
exata as relações sociais. A estrutura territorial do governo eclesiástico devia permitir
isso: os párocos deviam governar a rede das relações sociais através da confissão, os bis,
pos deviam sabiamente ampliar ou restringir as redes do sistema dos casos reservados.
Vejamos bem como, a par do tribunal da Inquisição, tinha se delineado um tri,
bunal paralelo no foro confessional - ao menos na interpretação que os bispos triden,
tinos faziam desse foro. Nesse terreno, não foram seguidos pelas ordens religiosas que
conheciam bem as motivações profundas da confissão. Os penitentes que se apinhavam
em torno delas durante a Quaresma, não buscavam justiça, mas perdão; não retribuição
exata, mas eliminação e esquecimento da culpa; não terror, mas consolação. Não foi por
acaso que as resistências mais fortes a Carlo Borromeo vieram da ordem que escolhera
20. Awer~e... ai Confessori della Città, et Diocese sua, Milano, por Paolo Gottardo Pontio, 1574 (em Acta Ecclesiae
Mediolanensis, ed. Achilie Ratti, Mediolani, 189()..1896, vol. II, col. 1887).
21. Paolo Sarpi, Istoria del Concilio tridentino, org. de C. Vivanti, Torino, 1974, p. 583.
0 terreno da confissão corno seu. O pregador jesuíta Giulio Mazzarino criticou com
ásperas ironias a vontade centralizadora do arcebispo: em seus sermões milaneses de
1579, Mazzarino disse entre outras coisas "que se ele tivesse sido confessor, não teria
sabido confessar por causa da quantidade de casos reservados que ali eram publicados"zz_
Desencadeou-se um conflito que foi resolvido com o afastamento de Mazzarino:
mas a vitória do cardeal arcebispo de Milão foi efêmera. O fato é que o alinhamento
em campo de urna densa rede de casos reservados tornara a confissão uma fronteira de
conflitos contínuos. A declaração de guerra nesse terreno tinha sido feita por Paulo IV
Carafa, quando formulara a casuística da bula ln Coena Domini. O sentido do poder
eclesiástico, de suas prerrogativas e responsabilidades , que transparece nos atos de
Carlo Borromeo e que o levou ao duro embate contra o governo laico espanhol, tivera
sua manifestação mais intransigente e severa na decisão de Paulo IV de usar a exco-
munhão como instrumento para submeter à vontade eclesiástica os comportamentos
das autoridades civis. Para avaliar as consequências que podia ter um documento do
gênero nas mãos de um arcebispo como Borromeo, basta percorrer a correspondência
daqueles seus vigários encarregados por ele de transmitir sua vontade ao clero local e
às autoridades civis. A correspondência do padre de Biasca Giovanni Basso com Bor-
romeo volta continu.a mente aos problemas postos pela bula ln Coena Domini: nas Tre
Valli italianas da Suíça, havia uma grande quantidade de pessoas que descobriam ter
incorrido na excomunhão por terem feito simplesmente o que estavam habituadas a
fazer 23 • E quem se achava culpado de casos reservados devia providenciar uma viagem
a Milão para ser absolvido: coisa que frequentemente não estavam dispostos a fazer;
em Giornico, foi necessário o jubileu de 157 5 para resolver o problema de três homens
que tinham renunciado à confissão "por serem seus casos reservados, e nunca terem
querido apresentar-se em Milão nem ao vigário" 24 •
A situação de quem não queria se conformar à disciplina episcopal tornara-se
difícil: o sistema da reserva dos casos já se unia, sem deixar qualquer passagem, à rede de
controle de malhas cerradas estendida em torno dos espaços e dos tempos da confissão.
22. Citado por Flavio Rurale, I Gesuiti a Milano, op. cit., p. 234.
23. Cf. Sandro Bianconi, "Dall'Epistolario di Giovanni Basso", Archfoio Storico Ticinese, XXVIII, 1991, n. 110,
pp. 261-294.
24. Carta de G. Basso de 30 de setembro de 1575, idem, p. 257.
A Confissão
XIII
RITOS DE PASSAGEM,
PASSAGENS OBRIGATÓRIAS
arece que, lá por meados do século XVI, o professor Claudio Betti, docente de filo,
P sofia moral da Universidade de Bolonha, afastava-se da família e da cidade na Qua-
resma e dirigia-se a Módena, "e acreditava-se que ele o fizesse para furtar-se ao preceito
da comunhão pascal" 1• O caso de Betti pode servir para resumir emblematicamente o
novo e dramático significado assumido nessa época pela relação com os sacramentos na
Páscoa e sobretudo pela relação com um determinado território. Permanecer ou partir
era sinônimo de submeter-se ao controle ou escapar das malhas de uma rede, a rede dos
registros paroquiais.
O estudo dos registros paroquiais recebeu um notável impulso em épocas recentes
na Itália, estimulado por interesses relativos à história da população. Sobre a gênese des-
sas fontes , ou seja, sobre as razões que levaram as autoridades eclesiásticas à implantação
do sistema de controle baseado no registro de certos dados , não houve muita discussão:
prevalecem há muito as hipóteses gerais sobre os "motivos burguês-burocráticos" 2 que
mantiveram na sombra seus aspectos, por assim dizer, "feudal-repressivos". Longe de
qualquer generalização, é possível dizer que se sabem mais coisas sobre os registros de
batismo, de casamento e de morte do que sobre os destinados ao registro das confissões
e comunhões nos períodos obrigatórios do ano - ou seja, exatamente daqueles cum-
primentos religiosos que então assumiram um valor de indicador seguro da ortodoxia.
Trata-se precisamente do registro como instrumento burocrático que pressupõe uma
organização territorial do controle e uma série de funções e de regras: algo diferente
e moderno no que se refere à atenção relativa aos modos e às épocas da prática dos
sacramentos, que é um fato de origem mais antiga. Quanto à confissão e à comunhão,
a obrigação de praticá-las ao menos na Páscoa fora sancionada conforme desejo do papa
Inocêncio lll pelo Concílio Lateranense IV. Mas o problema tinha sido, durante muito
1. Girolamo Tiraboschi, Biblioteca Modenese, Módena, 1781, 1, pp. 267-272; em part. p. 270. Sobre Betti, autor do
pequeno tratado De!la Cena del Signore e de um Trattato della Verità e della Bugia (manuscritos conservados na
Bibl. comunale dell'Archiginnasio, Bologna, ms B. 3434), que mereceriam um estudo adequado, cf. também
o verbete de G . Stabile, em DBI, vol. IX, Roma, 1967, pp. 713-714.
2. O termo, de Hubert Jedin, é retomado por Paolo Prodi, "11 Concilio di Trento e i Libri Parrocchiali", em La
"Conta delle Anime". Popolazioni e Registri Parrocchiali: Questioni di Metodo ed Esperienze, org. de Gauro Coppola e
Casimira Grandi, Bologna, 1989, p. 14.
310
3. "( ...} Utrum bene vivant ad conveniendum ad audiendum divina, et an semel confiteantur in anno vel Eu•
caristiam recipiant in Paschate" (questionário para as visitas pastorais de Giovanni Tavelli, bispo de Ferrara,
publicado por Guerrino Ferraresi, II Beato Giooanni Tat1e!li da Tossignano e la Riforma di Ferrara nel Quattroeento,
Brescia, 1969, vol. III, p. 93).
4. Enrico Peverada, LA Visita Pastora/e dei Vescooo Francesco Dai Legname a Ferrara (1447-1450), Ferrara, 1982, De·
putazione Provinciale di Storia Patria, sec. Monumenti, vol. VIII, p. 152.
5. A diferença entre os dois sacramentos é sublinhada por Miri Rubin, Corpus Christi, The Eucharist in LAte Medietl'11
Culture, Cambridge, 1991, p. 84.
6. Cf. Roberto Rusconi, "II Sacramento della Penitenza nella Predicazione di san Bernardino da Siena", Aewm,
XLVII, 1973, pp. 235-286; em part. p. 265.
A Confissão
311
com familiares , quem vivia em concubinato, quem tinha o hábito de blasfemar e de passar
o tempo na estalagem não se confessava, mas sobretudo não comparecia no momento
da comunhão anual7. Comportamentos desse tipo encontram-se documentados por
muito tempo: na primeira metade do século XVI , foram redigidas listas pontuais de não
comungados com a indicação dos motivos. Em geral, eram blasfemadores, jogadores,
amancebados. Não faltavam as mulheres, ainda que em minoria. Por exemplo, em 1544,
em Formigosa, região de Mântua, havia três mulheres que não comungavam: uma - Anna
Paralupi - por desejo de vingança, por sua filha ter sido assassinada; a outra, Francesca
Desiderata, por sua filha levar vida desonesta e ela ser considerada responsável por isso.
Havia finalmente certa Margherita, que vivia em concubinato. Foram convocadas à
presença do visitador: Anna recebeu a ordem de perdoar a homicida e um prazo para
que comungasse até o dia de Todos os Santos; quanto a Francesca Desiderata, permitiu-
-lhe receber a comunhão, mas se a filha reincidisse no pecado, ela seria punida com
três meses de prisão e depois exposta diante da igreja em atos de penitência pública.
Margherita, enfim, teve que prometer deixar seu companheiro dentro de um mês 8 • A
economia moral revelada por esse tipo de registro girava em torno da comunhão como
momento de solução dos conflitos e de eliminação dos pecados clamorosos. Por parte
dos bispos ou de seus vigários, tratava-se de aplicar a obrigação da prática anual dos
sacramentos, sancionada pelo Concílio Lateranense IV: não havia, ou de todo modo
não prevalecia, um uso instrumental dessa prática para verificar a ortodoxia. O bispo
de Verona Gian Matteo Giberti, que propiciou a muitos de seus contemporâneos um
modelo de bom pastor, ordenou aos párocos o registro dos não confessados e não
comungados e a indicação da causa de tal comportamento; mas no caso dele, já nos
' encontramos em um terreno diferente: o da proposta de uma recorrência frequente aos
sacramentos, confissão e comunhão, como instrumentos de aperfeiçoamento progres-
sivo. Por isso, não se contentou em exigir a cedula non eucharistiatorum9 e em intervir
pessoalmente para convocar os não comungados, mas recomendou de todos os modos
que recorressem com maior frequência à comunhão.
Como quer que seja, tratava-se de uma vontade de controle que tinha outras carac-
terísticas que não a pura vigilância anti-herética. É justamente essa função de desentocar
os hereges que, ao contrário, aparece em um édito de 1554, publicado conjuntamente,
em Milão, pelo arcebispo Giovan Angelo Arcimboldi e pelo comissário apostólico contra
a heresia. O édito referia-se à leitura e à pregação e ditava medidas bem severas contra a
difusão dos livros proibidos; prometia, entre outras coisas, a absolvição e a penitência
secreta a todos aqueles que se apresentassem para confessar suas próprias culpas ou
7. Cf. Pierantonio Gios, ll Graticolato Romano nel Quattrocento. LA Visita Pastorale di Diotisalvi da Foligno a Norckst
di Padooa (1454), Padova, 1995, pp. 50-53.
8. Romolo Putelli, Vita, Storia ed Arte Mantooana nel Cinquecento. li. Prime Visite Pastorali alia Città e Diocesi, Mantova,
1934, p. 52.
9. Esta é a denominação encontrada nas visitas pastorais (cf. a ata da visita de Santa Maria in Chiavica, de 9 de
março de 1541, publicado em Riforma Pretridentina della Diocesi di Verona. Visite Pastorali dei Vescooo G.M. Giberti
1525-1542, org. de Antonio Fasani, Vicenza, 1989, vol. lll, p. 1681).
para denunciar cúmplices. Além disso , quem contribuía para a detenção de cúmplices,
podia esperar como compensação receber uma parte dos bens sequestrados aos hereges.
No final do édito vinha publicado um amplo índex dos livros proibidos. Mas, antes
de passar à lista como tal, o édito ordenava que se provesse a realização da obrigação
da confissão e comunhão anual por ocasião da Páscoa: todos os padres responsáveis
pela cura das almas eram intimados a informar o povo do dever estrito de confessar e
comungar na Páscoa. Os contraventores teriam seus nomes publicados com ignomínia,
seriam excomungados e "expulsos das igrejas com grande vitupério" e, se pertinazes,
incorreriam nos rigores da justiça eclesiástica e da secular 10 • Era um endurecimento do
cânone de Inocêncio III Omnes utriusque Sexus , cujo objetivo de luta contra a Reforma
foi logo denunciado pelo exilado Pier Paolo Vergerio 11 •
Desde esse momento, pode-se dizer que o caminho estava escolhido. Não se
tratava mais de uma simples exigência de controle da prática sacramental, como a que
fora manifestada em muitos éditos e decretos sinodais. A associação de bispo e inqui-
sidor tinha levado essa passagem anual a tornar-se uma espécie de pente para desfazer
os nós heréticos ocultos. Mas antes que prevalecesse a exigência da identificação dos
hereges , a medida tinha conservado uma função de disciplina não limitada somente à
luta contra a dissensão doutrinária. O bispo Loffredo, da província de Salerno, ordenou
em 1537 o registro diferenciado e analítico de não confessados e não comungados e a
entrega das listas ao vigário-geral da diocese até a oitava de Páscoa: mas não parece que a
preocupação inquisitorial fosse a causa da providência 12 • Ordens urgentes nesse sentido
partiram também de Girolamo Seripando em 1554. Certamente, em muitas medidas
de tipo "pastoral" havia latente um potencial de vigilância anti-herética. De resto,
tinha sido na Espanha da "reconquista" que se começara a controlar o cumprimento
da obrigação estabelecida pelo Lateranense IV com registros destinados a identificar os
mal convertidos 13. Percebe-se aqui a função policial que esse tipo de informações podia
assumir: uma possibilidade que se desenvolveu na época da Reforma quando o ataque
protestante à confissão auricular deslocou a atenção das autoridades eclesiásticas para
esse sacramento como filtro obrigatório para identificar hereges. Assim, se os registros
de tipo cartorial - os destinados a registrar os batismos da população - começaram a se
alastrar muito rapidamente pela Itália, os referentes à confissão e comunhão aumenta-
ram consideravelmente somente na época tridentina. Em Roma, "as primeiras ordens
dirigidas aos párocos de registrar por escrito os confessados e os comungados durante
10. O édito foi reproduzido em fac-símile no volume de J. M. De Bujanda, Index de Venise 1549. Venise et Milan
1554 (Index des livres interdits, vol. III), Geneve, 1987, p. 459.
11. "( ...] Onde o dever exigiria que vós não alterásseis tais penas e aos nossos irmãos que não querem vir às vossas
confissões e comunhões outro mal não fizésseis além daquele que vossa lei impõe, vós a pretendestes modificar
e aumentar [... ]" (Catalogo del Arcimboldo Arcivescovo di Melano .., em 1554, c. 4v).
12. Cf. Francesco Volpe, "Strutrura dei Libri Parrocchiali fra Cinquecento e Seicento", em Il Concilio di Trento nella
Vita Spirituale e Culturale del Mezzogiomo tra XVI e XVII Secolo, org. de Gabriele De Rosa e Antonio Cestaro,
Venosa, 1988, vol. 1, pp. 65-82; v. p. 72.
13. Cf. o estudo de Ernesto Garcia Fernandez, Catecismos y Catéquesis Cristiana (v. cap. II, n. 18).
A Confissão
313
14. C. Sbrana, "Origini ed Evoluzione dei Libri Parrocchiali Romani con Particolare Riferimento allo Stato delle
Anime", em C. Sbrana, R. Trai na e E. Sonnino, Gli "Stati delle Anime" a Roma dalle Origini ai Secolo XVII, Roma,
1977, p. 52.
15. Cf. Bruno Anatra, Anna Maria Gatti e Giuseppe Puggioni, "Cinque Libri nella Sardegna Centto-meridionale",
em La "Conta delle Anime", op. cit., pp. 124-133; em part. a tabela à p. 122. Alguns registros anteriores a essa
data contêm somente relações nominais da população (cf. Fonti Ecc 1esiastiche per lo Studio della Popolazione della
Sardegna Centro-m.eridionale, Roma, 1983, org. de Bruno Anatra e Giuseppe Puggioni, p. 635). F. Volpe (Struttura
dei Libri Parrocchiali, op. cit., p. 73) afirma ter encontrado um único registro de estato de almas no século XVI
para a área napolitana e salernitana: o de Pagani, que remonta a 1575.
16. Marc Venard, "Le visite pastorali francesi dal XVI al XVIII secolo", em Le Visite Pastorati, org. de Umberto
Mazzone e Angelo Turchini, Bologna, 1985, pp. 13-55; em part. p. 32.
17. Para Bolonha, cf. Paolo Prodi, Il Cardinaie Gabriele Paleotti (1522-1597), Roma, 1967, ll, pp. 184-185; para
Wurttemberg, cf. David Warren Sabean, Power in the Blood. Popular Culture and Village Discourse in Early Modem
Germany, Cambridge, 1984, pp. 38 e ss.
18. Para a região de Toledo, é esta a conclusão de Jean-Pierre Dedieu, "Christianisation en Nouvelle-Castille.
Catéchisme, communion, messe et confirmation dans l'archevêché de Tolede, 1540-1650", em Mélanges de la
Casa de Velazquez, Xv, 1979, pp. 261-293 .
dos visitadores apostólicos de Gregório XIII - era caracterizado por uma extrema com-
plexidade burocrática. Sigamos o modelo proposto por Carlo Borromeo. O confessor
oficial é o pároco. A ele deve se dirigir o fiel que quer confessar-se e comungar-se. E aqui
surge imediatamente o problema dos que não têm domicílio fixo , que se deslocam por
motivo de trabalho, que mudaram de casa nos últimos meses. Trata-se de identificá-los
com precisão: mas é evidente, de um lado, que a estabilidade da população é um ingre-
diente fundamental para implantar um controle eficaz e, de outro, que os nômades e
os marginais são suspeitos como tais.
O pároco deve manter um registro dos residentes em ordem alfabética, separado
do livro das almas. Nesse registro "quando vêm se confessar, marque com um ponto ou
traço o nome dele ou dela, que tiver confessado; ou, então, quando ministrar a confissão,
tenha consigo um pequeno quinterno 19, e quando a tiver ministrado a alguém, escreva
nele o nome e sobrenome do confessado, ou da casa onde está" . Se o fiel confessou em
outro lugar, deve trazer um atestado - uma "fé" - redigido pelo confessor de acordo com
um modelo determinado. Nesses casos, o confessor que não é pároco deve , de qualquer
modo, ter aprovação do bispo e manter consigo uma relação exata das fés que de quando
em quando terá de emitir, "para que possamos saber melhor se as fés não foram fraudadas
por um inconfesso". As fés devem ser entregues ao pároco pelo menos três dias antes da
comunhão da Páscoa, para que haja tempo de fazer as devidas verificações e controlar
os casos suspeitos 20 • No momento da comunhão, tem-se a conclusão de tanto trabalho.
Quem se apresenta para comungar, traz um "boletim" com seus dados de identidade:
nome, sobrenome, endereço. O sacerdote celebrante é assistido por um clérigo ou por
um leigo de boa fama, que recolhe os boletins e lê com voz clara os nomes escritos.
No final do rito, o pároco assinala em sua lista os nomes dos boletins. Os que faltam à
chamada sem justificação válida recebem penas graves: afixação dos nomes nas portas
das igrejas, admoestações públicas, finalmente comunicação dos nomes ao bispo para
as providências necessárias (excomunhão, processos).
Encontram-se por toda parte variantes secundárias do modelo: por exemplo, a
lista dos comungados podia ser elaborada com o simples registro dos nomes durante a
comunhão pascal. Mas, visto que a lista devia ser feita durante a comunhão, isso exigia
o auxílio de um clérigo (ou pelo menos de um leigo de boa fama) que devia escrever os
nomes com a máxima rapidez (quam celerrime 21 ). A lista confrontada com o registro das
almas, depois, devia permitir ao pároco identificar os faltantes e denunciá-los. O visi-
tador apostólico Gian Barrista Castelli, educado na escola de Borromeo, ofereceu uma
19. Conjunto de cinco folhas de papel dobradas em dois e colocadas uma dentro da outra (N. do T.).
20. As citações foram tiradas dos "Awertimenti", em Acta Ecclesiae Mediolanensis, organizados por Federico Bor-
romeo (edição Lugduni, 1682, pp. 654 e ss.).
21. Constitutiones et Decreta Promulgata in Dioecesana Synodo, Celebrata sub Reverendiss. D. Michaele Priolo Episcopo
Vicentino, Anno... 1583, Vincentiae, apud Perinum Bibliopolam et Georgium Gracum socios, 1584, c. 6Cw.
Michele Priuli segue aqui, como declara expressamente, o modelo do concílio provincial de Carlo Borromeo;
nas primeiras Constitutiones pós-tridentinas de Matteo Priuli essas normas não aparecem e trata-se apenas do
clero diocesano (Constitutiones et Decreta ... 1566, Patavii, Laurentius Pasquatus excudebat).
A Confissão
315
descrição do mecanismo de controle tão precisa que chega a ser pedante: o pároco, ao
distribuir a eucaristia, devia ser precedido de um passo ou dois por um clérigo, ao qual
quem desejava comungar devia entregar a schedula com nome e sobrenome anotados:
nada de ficha , nada de comunhão 22 •
Um episódio emblemático ocorreu em Pisa, em maio de 1573: o pároco de Treg-
giaia, durante as festas da Páscoa, advertira o povo "de que quem não tivesse confessado
durante toda a oitava e recebido o santíssimo sacramento do corpo de Cristo seria sub-
metido ao procedimento ordinário" , com a denúncia e a consequente excomunhão 23 •
E logo um leigo da paróquia considerara seu dever ir contar ao padre que
Domenico di Simone, ferreiro do referido lugar I... J estando em via pública e proferindo na
presença de outras pessoas I... ] disse o referido Domenico que a confissão e comunhão eram uma
cerimônia mundana e que o homem podia se salvar sem essas santíssimas circunstâncias, e disse não
querer confessar nem comungar e assim o fez , até a presente data I...]
22. Decreta Generalia a... Patre D. lo. Baptista Castellio... Aedita, Parmae, apud Erasmum Viottum, 1594, pp. 18-19.
Castelli tinha sido vigário-geral de são Cario Borromeo e presidira o terceiro concílio provincial; a visita apos-
tólica a Parma acontecera em 1578 (cf. Hamilcare Pasini, Applicazione del Concilio di Trento in Diocesi di Parma
nella Visita Apostolica di Mons. G. B. Castelli, Parma, 1953).
23. AAP, lnquisizione, b. 2, ff. 2lr e ss.
mental praticada pelo capelão de Perúgia: "Eu o absolveria daqueles pecados que pu-
desse absolver" 24•
Nem por isso a tentativa de cerrar as fileiras da estrutura diocesana quanto a
esse ponto de contato decisivo entre clero e laicos foi abandonada. Após o concílio ,
as visitas apostólicas organizadas e impostas por Gregório XIII foram um momento
significativo de verificação. Pareceu claro, então, que o mecanismo que se queria impor
baseava-se no nexo estreito entre confissão, comunhão e clero paroquial. Se a liberdade
tradicional fosse mantida, a relação anárquica com frades de passagem teria tornado r
incontrolável o efetivo cumprimento da obrigação. Era uma modificação que subvertia
completamente os costumes tradicionais: não mais objeto de livre escolha com base em
afinidades espirituais, a relação com o confessor tornava-se a malha fundamental de
uma rede de controle lançada pela autoridade eclesiástica sobre a prática sacramental.
Mas a partir do novo modelo também surgiam problemas novos. Entretanto, o
sistema de fichamento burocrático aplicado à confissão corria o risco de tornar trans-
parente o julgamento que o confessor-juiz formulava ao término do interrogatório. Se
um penitente afastava-se do confessionário, sem levar consigo a ficha a ser devolvida
na hora da comunhão, todos os presentes podiam entender que não recebera a absol-
vição. Era aqui que se revelava a intenção de uma sociedade governada por um corpo
de funcionários rigorosos, onde os confissionários funcionavam como tribunais da
moralidade coletiva e os pecadores públicos eram publicamente banidos na hora da
comunhão. Porém, tudo isso entrava em choque com o caráter secreto da confissão
auricular reforçado em Trento e com o caráter consolador e ciosamente privado que a
confissão das culpas tinha assumido cada vez mais; por isso, acabou-se permitindo que
os párocos entregassem o cartão de absolvição também para os não absolvidos, para
evitar escândalos 25 •
Além disso - e esse não era um problema de pouca monta - a estrutura territorial
do governo pastoral ligava sua eficácia à estabilidade, ao ordenamento local. O fiel de-
finido pelas normas tridentinas era sobretudo uma pessoa com residência fixa, que não
se afastava da paróquia por períodos demasiadamente longos, que voltava para ela pelo
menos para cumprir seus deveres de frequência sacramental. Era o sonho de um mundo
fechado e imóvel, que, no entanto, não ficava confinado à imaginação da utopia, mas
tentava tornar-se a realidade cotidiana da vida. Os mundos imaginários sonhados pelos
utopistas e pelos reformadores da época, desde a ilha inventada por Thomas Moore
até a Cristianópolis de Valentin Andreã, foram mundos fechados e estáticos, onde o
controle capilar era exercido sobre comunidades circundadas por muralhas intranspo-
24. Cf. Ugolino Nicolini, "La Visita Apostolica Post-tridentina", em Storia e Cultura in Umbria nell'Età Moderna
(Sec. XV-XVII) . Atti dei Convegno di Studi Umbri, Gubbio 18-22 maggio 1969, Gubbio, 1972, pp. 457-473; v. em
part. pp. 468-469.
25. Mas estudou-se uma complicada estratégia para recuperar a cedula: cf. lo. Baptistae Bernardini Possevini Man·
tuani, De Officio Curati, ad Praxim, Praecipue circa Repentina, et Genera!iora, Venetiis, ex typographia Salicata,
1618, p. 137. Idem, pp. 56-61, a casuística do comportamento a ser seguido ao ministrar os sacramentos aos
pecadores públicos e ocultos.
A C onfissão
317
26. Constitutiones Editae, et Promulgatae in Synodo Dioecesana P!acentina, quam Illustrissimus et Reverendissimus D. D.
Paulus de Aretio, SRE Presbyter Cardinalis ... Habuit, Placentiae, apud Franciscum Comitem, 1570, p. 118.
27. "[ ... ] dum modo non vagetur, ut evidat iudicium proprii parochi" (Possevino, De Officio Curati, op. cit. , p. 114).
28. Memorial de 4 de agosto de 1572, in Biblioteca dell'Archiginnasio, Bologna, Litterae Sacrae Congregationis s.
Officii, vol. C, n. DOO(.
29. Retomo as citações de Pasquale Lopez, Clero, Eresia e Magia nella Napoli dei Viceregno, Napoli, 1984, pp. 74-75.
Burali tinha razão: como verdadeiro discípulo de Carlo Borromeo, não fizera
outra coisa a não ser aplicar a metodologia rigorosa do controle territorial sobre a
administração da confissão, elaborada pelos bispos que estavam mais preocupados em
usar esse instrumento para impor uma nova moralidade coletiva. Por isso, o despreparo
específico dos confessores parecera grave, tanto que o próprio Burali tinha publicado
um douto e minucioso catecismo penitencial para ser estudado pelos sacerdotes das
cidades. Era convicção disseminada que não se podia mais aceitar a forma tradicional
dos pregadores quaresmais de passagem, que ministravam a confissão como um ritual
periódico, sem levarem em conta o objetivo de transformar a penitência em ascese
cotidiana. O rigorismo episcopal pretendia aproveitar a confissão para reformar em
profundidade a moralidade coletiva. E a Inquisição inseriu aí suas exigências.
A Confissão
XIV
INSTRUMENTOS E OBSTÁCULOS:
O CLERO DOS CONVENTOS
E DAS PARÓQUIAS
º proposta episcopal de reforma não permite incidir nos dois erros, opostos e com-
plementares, de considerá-lo um caso absolutamente excepcional, ou então, um expoente
típico de toda uma época. Certamente, o panorama esteve congestionado de situações
muito diferentes entre si; mas os modelos de direção episcopal que brilharam no horizonte
dos bispos italianos do século XVI foram encarnados por poucas figuras: Gian Matteo
Giberti para a geração dos anos do concílio e Carlo Borromeo para a época pós-conciliar.
Era ingrediente fundamental desse modelo a ideia da obrigação de residência: ideia
amplamente difundida, que contava entre seus mais convictos defensores com o próprio
pai da Inquisição romana, Gian Pietro Carafa. Tão logo se tornou papa, foi Carafa quem
tentou tentou resolver também esse problema com o modo de agir abrupto e autoritário
que o caracterizava: a bula com que impôs aos bispos, em 1559, o abandono imediato da
corte e a ida às próprias sedes, encheu a cúria de caras fechadas e de barulho de esporas 1•
Sempre por vias centralizadoras e com burocrática dureza, Carafa propôs-se a regular em
consistório o modo "como esses bispos deverão governar seus cônegos e padres" 2• No
entanto, mais do que semelhantes penadas autoritárias, foram outros fatores a impelir os
bispos às suas sedes: de fato, a opção do jovem cardeal Carlo Borromeo de deixar Roma
não obedeceu a constrangimentos externos, mas a convicções pessoais. Porém, logo que
os bispos se transferiram para suas sedes, colocou-se o problema da relação entre um
desejo de regulamentação da sociedade de acordo com certos critérios e os instrumentos
disponíveis: não só as instituições tradicionais do poder de jurisdição - os tribunais das
cúrias episcopais, de cuja atividade nesse período sabe-se muito pouco - mas sobretudo
os homens, as redes de padres e frades que envolviam o território diocesano. A primeira
reação dos bispos ao contato com suas sedes, nos anos do Concílio de Trento, foi a busca
de auxílios para remediar as carências encontradas no clero local. Foram numerosos os
apelos que chegaram às recém-nascidas congregações de clérigos regulares e, em particular,
1. "[ ... ] Ouve-se um rumor de botas e esporas, com certos rostos sombrios e, como se costuma dizer, mal encarados"
(carta de Andrea Monteceneri a Annibale Campeggi, Roma, 8 mar. 1559, em Archivio di Stato di Bologna,
fundo privado Malvezzi Campeggi, s. Ili, Lettere, vol. 13/536bis, cc. n. n.).
2. Idem.
320
à Companhia de Jesus: cardeais e bispos faziam tratativas para obter o envio de alguns
desses clérigos às suas dioceses, para desempenharem missões de alto controle do clero:
visitas pastorais, atividades de estimulação religiosa, mas principalmente ensino - como
pregar, como ministrar os sacramentos, sobretudo como confessar. E aqui nos deparamos
com a questão da ignorância do clero, acusação tão generalizada nos documentos da época
quanto fonte de mal-entendidos no âmbito histórico.
De fato , a acusação de ignorância foi uma das formas assumidas então pela luta
para levar às extremas periferias as linguagens elaboradas no centro. Não é o caso de
falar de ignorância em termos absolutos: a enérgica presença dos religiosos de várias
ordens nas discussões religiosas das cidades italianas na primeira metade do século XVI
mostrou que existia um problema de indisciplina, não de ignorância. E o mesmo vale
para o universo das paróquias: as crônicas e as memórias redigidas pelos párocos do
século XVI, ainda pouco estudadas, comprovam não só a cultura literária frequentemente
notável dos autores , bem como a forte ligação que mantinham com suas comunidades 3•
Mas é justamente este o ponto. O que se exigia, essencialmente, era a correção de um
modo de formação do clero que garantisse uma disciplina uniforme e a eficiência na
transmissão ao povo de determinados modelos. Era preciso um novo tipo de cultura:
e nesse sentido a importância dos jesuítas residiu justamente na flexibilidade e pres-
teza com que souberam propiciar o necessário, assim como tinham feito em outro
plano com sua proposta do colégio no quadro da crise do ensino universitário. Mas
era sobretudo uma questão de poder: o padre devia inserir-se na cadeia de comando
eclesiástica, destacando-se da sociedade na qual costumava mover-se e com a qual se
identificava, nas práticas cotidianas, no modo de vestir e de falar. Durante anos e
anos, as queixas e reprimendas das autoridades eclesiásticas a propósito do clero das
paróquias bateram nas mesmas teclas de acusação: padres que se vestiam como leigos,
que exerciam profissões de leigos, que jogavam cartas nas estala~ns ou gritavam nas
praças e nos mercados com as mesmas inflexões dialetais e com as mesmas expressões
vulgares da gente do povo. Em vez disso, o padre devia representar o corpo eclesiástico
aos olhos do povo e transmitir sua mensagem de modo correto e uniforme - com um
vestuário determinado, com ritos uniformes, com uma pregação que devia receber a
aprovação do bispo e não a do povo: era uma verdadeira inversão de perspectiva. O
fato é que o clero das paróquias tinha uma relação própria com os detentores do direito
de patronato sobre os benefícios: com os administradores dos bens móveis e imóveis
da igreja, com a família que detinha o juspatronato4 e, em todo caso, com os poderes
radicados no próprio local onde era exercida a orientação das almas. Despojá-los dessa
ligação e obrigá-los a relacionarem-se com o novo poder episcopal foi empresa dura e
demorada, nem sempre coroada de sucesso. Conhecemos pouco do lento processo de
3. Veja-se, do autor deste volume, para uma apresentação sumária de alguns casos, "Un Vescovo e il suo Pievano:
Feliciano Ninguarda e Domenico Tarili", Archivio Storico Ticinese, n. 116, dez. 1994, pp. 231-243.
4. Instituto jurídico do direito canônico, que consiste em uma série de privilégios e deveres atribuídos, por dis-
posição da autoridade eclesiástica, aos fundadores de igreja ou benefícios e a seus herdeiros (N. do T.).
A Confissão
321
colonização que retirou do clero das paróquias seu papel de pequeno mas importante
ofício de prestígio, articulado solidamente entre as realidades locais e habituado a
relacionar-se com elas. Foi necessária uma complicada pedagogia, que por vezes pôde
servir-se de escolas especiais - os seminários - mas que tentou , por todos os meios ,
obrigar o baixo clero a mudar completamente sua orientação: uma coisa era ganhar a
eleição para um determinado benefício, conquistando o favor dos paroquianos ou dos
poderosos do lugar, outra coisa era demonstrar ao bispo possuir as qualidades neces-
sárias. Foi uma mudança de cultura, mas foi principalmente uma orientação diferente
imposta à bússola do clero paroquial. A luta contra a "ignorância" do clero era uma
luta contra uma cultura e um poder que deviam ser derrotados: a cultura que servia ao
pároco para obter o consenso de seus paroquianos, dos administradores da igreja, da
família que possuía o juspatronato da paróquia, não era a mesma que o bispo estava
disposto a valorizar. O exame dos sermões que Carlo Borromeo mandou preparar para
o clero de suas paróquias traz à tona o dificultoso processo de reconversão cultural e de
poderes que ocorreu então 5 • Afastar o baixo clero das dinâmicas dos poderes locais não
foi empresa breve nem fácil, até por não se tratar somente de substituir pela dimensão
piramidal e hierárquica da estrutura eclesiástica a estrutura horizontal das pegajosas
ligações comunitárias de povoado. No âmbito dos poderes havia outros concorrentes: se
em Milão Carlo Borromeo teve de enfrentar as organizações nobiliárias de sua diocese,
problemas não demasiadamente diferentes foram enfrentados pelo bispo de Marsico,
quando tentou reconduzir sob sua jurisdição um clero ligado ao baronato local e capaz
de promover causas contra ele nos tribunais romanos 6 •
O problema do clero dominou as preocupações dos bispos da época tridentina.
Isso não quer dizer que a questão da "reforma do povo cristão", como se dizia à época,
fosse negligenciada; pelo contrário. Vimos como eram vastas as ambições do modelo
episcopal de reforma. Em seu interior, colocava-se também a questão da heresia e do
controle doutrinário stricto sensu. A própria estrutura inquisitorial outra coisa não foi,
no início, senão um dos instrumentos disponíveis para os bispos reformadores. Todos
aqueles que, a exemplo de Borromeo, chegaram às respectivas dioceses com anteriores
experiências de poder paroquial e com privilégios adequados enfrentaram as questões
de seu governo, sem fazer muita referência ao tribunal inquisitorial. Foi esse o caso de
Giberti em Verona, de Cervini em Reggio Emília e Gubbio, de Morone em Módena, de
Paleotti em Bolonha: alguns desses pessoalmente, outros através de seus vigários, trata-
ram diretamente dos casos de heresia 7• A vigilância doutrinária foi expressa em éditos
5. Um estudo exemplar a respeito é o de Wietse de Boer, "The Curate of Malgrate or the Problem of Clerical
Competence in Counter-Reformation Milan, em The Power of lmagery, Essays on Rome, ltaly and lmagination, org.
de Peter van Kessel, Roma, 1992, pp. 188-200 e 300-316.
6. Cf. Giovanni Antonio Colangelo, La Diocesi di Marsico nei Secoli XVI-XVIII, Roma, 1978, p. 26.
7. Para Giberti, veja-se do autor deste volume "Un Processo per Eresia a Verona Verso la Metà dei Cinquecento",
Quademi Storici, XV, 1970, PP· 773-794. Quanto a Cervini, entre as cartas que Ludovico Beccadelli escreveu-
-lhe de Reggio Emília, algumas dizem respeito ao caso de Antonio Lorenzini, comissário de Cervini para a
visita diocesana de 1543: Lorenzini tinha lido uma obra de Lutero, motivo pelo qual - escreve Beccadelli - "os
Que não vos seja penoso, portanto, avisar-me oportunamente [... ] sobre usuras e contratos
feneratícios ; sobre a blasfêmia; sobre a inobservância das festas ; sobre concubinatos; sobre usurpado-
res de bens eclesiásticos ; sobre o vestuário e hábito pouco religioso dos sacerdotes; sobre os hereges ,
feiticeiros e supersticiosos , e muitos outros delitos dignos da censura eclesiástica 9 •
confessores dizem que está excomungado e há necessidade de autoridade apostólica. Rogo a V. S. Rev.ma
que me conceda a autoridade de absolver ao menos desta vez[ ... ]" (carta de 9 de fevereiro de 1543, Biblioteca
Palatina di Parma, Pai. 1009, c. 109r). Quanto a Morone, as cartas que lhe foram enviadas de Módena relatam
casos semelhantes ao do jovem modenense que, "achando-se envolvido em algumas heresias", passara "treze
anos sem confissão e comunhão" e, desejando voltar ao "bom caminho", contava com os poderes do cardeal
para ser absolvido do modo mais breve (carta de 28 de novembro de 1565, de Módena, de frei Domenico de
Ímola a Morone, publicada por A. Mercati, Il Sommario del Processo di Giordano Bruno, con Appendice di Documenti
sull'Eresia e l'lnquisizione a Modena nel Secolo XVI, Cidade do Vaticano, 1942, p. 139; cf. ainda idem, p. 141, onde,
entre outras coisas, frei Domenico admite que, devido à sua predileção por esses métodos, o povo considera-o
"demasiadamente brando". Com os mesmos métodos, Beccadelli, vigário de Marcelo Cervini em Reggio Emilia,
ia submetendo ao cardeal os casos de quem, caido em heresia, queria retornar sem estardalhaço à comunhão
eclesiástica. Para Paleotti, cf. P. Prodi, Il Cardinale Gabriele Paleotti, Roma, 1962-1968.
8. Éditos publicados por Paolo Guerrini, Atti della Visita Pastorale dei Vesco110 Domenico Bollani alia Diocesi di Brescia,
vol. II, Brescia, 1936, p. VIII.
9. Carta a Carlo Ormaneto, vigário-geral de Carlo Borromeo, Cremona, 27 ago. 1564 (Biblioteca del Seminario
di Padova, cód. 350, c. 78r).
10. Decreta prOt1incialis synodi Ra11ennatis, [... ] domin. Iulio Feltrio de Ru11ere, Romae, apud haeredes Antonii Bladii,
1569, cc. 5v-13v.
11. "Episcopis atque aliis sacrae lnquisitionis ministris auxilium, fa11orem et consilium praebeant" (idem, c. 511).
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323
12. H. Jedin, "Delegatus Sedis Apostolicae und bischõfliche Gewalt auf dem Konzil von Trient", em Kirche des
Glaubens Kirche der Geschichte, Freiburg im Breisgau, 1966, vol. II, pp. 414-428.
13. A imagem é de E. Le Roy Ladurie, Le Frontiere dello Storico (Le territoire de l'historien, Paris, 1973), trad. it. Bari,
1976, p. 44.
14. Nota-o Henry Charles Lea, A History of Auricolar Confession and lndulgences in the Latin Church (1896), New
York, 1968, vol. 1, p. 408.
O conflito tinha origem também na simples questão relativa a quem devia ficar
com esses donativos, se o clero ou o bispo: foi o que ocorreu, por exemplo, no que se
refere às doações de círios deixados em testamento por moribundos a quem os assistia 19 •
15. Somente no final do século XVI começa-se a dispor de "indicações mais específicas" sobre os direitos adquiridos
pelos párocos no que se refere a itens teoricamente proibidos pela legislação sinodal, como "a administração dos
batismos e a celebração dos casamentos", observava Carla Russo em sua importante pesquisa sobre "l Redditi
dei Parroci nei Casali di Napoli: Struttura e Dinamica (XVI-XVIII Secolo), em Pe-r la Storia Sociale e Religiosa dei
Mezzogiorno d'Italia, org. de Giuseppe Galasso e Carla Russo, 1, Napoli, 1980, pp. 1-178; em part. p. 101.
16. Cf. Federico Chabod, "Stipendi Nominali e Busta Paga Effettiva dei Funzionari dell'Amministrazione Milanese
alla Fine dei Cinquecento" (1958), em Cario V e il suo Impero , Torino, 1985, pp. 281-450; em part. pp. 300-302.
O documento estudado por Chabod mostra uma grande defasagem, nos níveis inferiores, entre "oficiais"
do estado e clero, em detrimento desse último: "os proventos quase insignificantes de várias capelanias, e
totalmente insuficientes para o sustento de uma pessoa", observava Chabod (p. 315). Falta, portanto, estudar
como sobreviviam os capelães.
17. Não existe nenhuma pesquisa sobre esses aspectos extrajurídicos dos proventos do clero paroquial. Dados e
informações como as reunidas por C. Corrain e P. Zampini (Documenti Etnografici dai Sinodi Diocesani Italiani,
Bologna, 1970) devem ser lidos no contexto das situações sociais e políticas específicas; cf., para um exemplo de
pesquisa nesta direção, o estudo de Angelo Torre, II Consumo di Devozioni. Religione e Comunità nelle Campagne
dell'Ancien Régime, Venezia, 1995 (cf. em part. pp. 64-65).
18. De La Confessione dello Smarrito, de 1338, de Marcello Roncaglia de Sarteano (tomo a citação de Michele Feo,
"La commedia popolare senese dei Cinquecento come letteratura antiumanistica" em Umanesimo a Siena.
'
Letteratura, Arti Figurative, Musica, org. de E. Cioni e D. Fausti, Siena, 1994, pp. 111-147; em part. p. 129.
19. Cf. o decreto sinodal de 1567, reproduzido por Colangelo, La Diocesi di Marsico, pp. 137-141.
A Confissão
325
20. Depoimento de Giorgio de Montelauro, testemunha, 5 jun. 1579 (Archivio diocesano di Pesaro, lura Civilia
et Criminalia, vol. II, c. 16v).
21. Dep. de Lucrezia Filippi, 6 jun. 1579 (idem, c. 28v).
22. "Em minha paróquia sei que há muitos que não se confessaram nem comungaram na Páscoa próxima passada"
(dep. de dom Clemente, 3 jun. 1579, idem, c. 13r).
23. P. Luigi Da Ponte, S. I. , Il Sacerdote Perfetto Overo del Sacramento dell'Ordine, dello Stato e della Perfezione che
Appartiene a tutti gli Ecclesiastici, Roma, por Domenico Antonio Ercole, 1691.
24. "L'ordine della messa il quale deve tenere il Sacerdote quando celebra senza canto, et senza ministri, secondo
!'uso della Santa Romana Chiesa [...) per il R. M. Giovanni Burcardo [... ), Con alcuni awertimenti aggiunti
nel fin·e", em Bolonha, por Gio. Rossi impressor Episcopal à rua de S. Mamo lo, 1567, Awertimenti, cc. 80v-81 r.
Sobre o uso da missa como poder contra alguém, cf. John Bossy, "The Massas a Social Institution 1200-1700",
Past and Present, n. 100, ago. 1983, pp. 29-61.
25. Scipione Mercurio, De gli Errori Popolari d'ltalia Libri Sette, Venetia, junto a Gio. Battista Ciotti sienense, 1603,
c. 260v. Sobre a "camisa" ou placenta e sobre seus usos, cf. C. Ginzburg, I Benandanti. Stregoneria e Culti Agrari
tra Cinquecento e Seicento, Torino, 1972.
26. H. Jedin, Il Tipo Ideale dí Parroco Secondo la Riforma Cattolica, Brescia, 1950.
A Confissão
327
mília: no batismo, o catecúmeno não podia ter mais de dois padrinhos; no casamento,
que ocorria dentro da igreja e não no sagrado, a vontade de quem pretendia se casar
tomava decididamente o lugar - ao menos em termos legais - das alianças projetadas
e pretendidas pelas famílias .
Sobre esse fundo , a relação entre os bispos e os inquisidores assumiu nessa primeira
fase o caráter de um confronto entre governo do território por parte de uma autoridade
ordinária que nele residia e incursões ocasionais de organizações monásticas. Cervini,
que também era membro da congregação do Santo Ofício, fora incapaz de ordenar ao
inquisidor de sua diocese de Reggio Emilia que se abstivesse dos sermões e de perma,
necer em seu posto, para não provocar "escândalo nas almas" 27 : um tipo de relação
bem diferente daquele que devia se fixar em seguida, quando o sermão do inquisidor
implicaria a suspensão automática de todos os outros. O fato é que nas fases iniciais
do Concílio de Trento, o decreto sobre a pregação tinha marcado um momento de
afirmação do poder dos bispos em relação ao clero regular. Mas nos mesmos anos veio
a ser progressivamente constituído um modelo de tipo bem diverso, sob impulso curial
e romano. Era um modelo que, com os mesmos ingredientes, levava a resultados muito
diferentes. E também a Inquisição, radicando,se estavelmente no território, modificava
seu primeiro caráter e construía um novo tipo de relações com a autoridade episcopal.
Gabriele Paleotti e Carlo Borromeo propuseram, em Bolonha e em Milão, um
modo de governar a vida e as ideias religiosas que tinha no bispo o principal ponto de
referência. Tornou,se célebre então e ainda mais em seguida o modelo proposto por Carlo
Borromeo. Ele perseguiu esse projeto, que previa uma periodicidade fixa dos concílios
provinciais (três anos) e dos diocesanos (um ano) , durante os breves mas intensos anos
de seu governo episcopal. A visita pastoral era o instrumento de contato com os fiéis e
de controle da execução dos decretos sinodais; um levantamento atento dos compor,
tamentos transgressivos devia propiciar a base para as intervenções repressivas e para
as medidas de controle. Foram compostas listas de superstições e de comportamentos
nocivos localmente determinados: uma obra de sociologia da transgressão, elaborada com
vistas à eficácia da intervenção 28 • Pretendia,se fornecer aos pregadores uma informação
pontual para tornar seus sermões mais precisos e eficazes. Não era uma ideia nova: já
antes do Concílio de Trento, o bispo de Verona tinha reunido e impresso informações
do mesmo tipo, dedicando,as aos párocos e pregadores 29 • Por sua natureza, o projeto
tendia a eliminar a pregação itinerante e seus modelos genericamente penitenciais
com vistas a uma obra pontual de correção moral e de doutrinação, desenvolvida por
um clero ligado à paróquia, ou pelo menos de tal modo precisamente informado das
deficiências morais da população local a ponto de comportar,se como um pároco. Até
as instituições destinadas à doutrinação e à formação cultural eram alimentadas por
27. Carta de 10 de janeiro de 1544, em T. Bozza, Nuovi Ntudi sulla Riforma in Italia. I. II Beneficio di Cristo, Roma,
1976, pp. 62-63.
28. Cf. O. Lurati, "Superstizioni Lombarde (e Leventinesi) del Tempo di San Cario Borromeo", em Vox Romanica,
XXVII, 1969, pp. 229-249.
29. Per li Padri Predicatori, Verona, por Antonio de Portese, 1540.
30. Carta de 7 de setembro de 1577; cf. do autor deste volume "Chierici e laici nell'opera di Cario Borromeo",
em Annali dell'Istituto Storico Italo-germanico in Trento, XIV, 1988, pp. 258-259.
31. Sobre a história das relações entre Borromeo e os jesuítas cf. Flavio Rurale, I Gesuiti a Milano, op. cit.
32. Sobre esse aspecto, muito pouco estudado, uma sondagem de grande interesse é a de Paolo Prodi, "Note sul
Problema della Genesi dei Diritto nella Chiesa Post-tridentina ... ", em Legge e Vangelo, Brescia, 1972, pp. 191-223.
33. Citado por Danilo Zardin, "Et subito esseguiró quanto la mi ordini". Contesto locale, vicari foranei e Curia
arcivescovile di Milano sul finire dei Cinquecento, em La Città di Angera Feudo dei Borromeo (Sec. XV-XVII/) ,
Angera, 1996, pp. 253-289; em part. p. 255.
A Confissão
329
34. Isto foi adequadamente indicado por Sandro Bianconi, I Due Linguaggi. Storia Linguistica della Lombardia Svizzera
dai '400 ai nostri Giorni, Bellinzona, 1989, pp. 102 e ss.; ver ainda do mesmo autor, "Fonti per lo Studio della
Diffusione della Norma nel'Italiano non Letterario tra Fine '500 e lnizio '600", Studi Linguistici Italiani, vol.
XVII, Roma, 1991, pp. 39-54.
35. Pietro Bembo (1470-1547), cardeal, poeta, teórico da literatura. Foi um dos principais responsáveis pelo esta-
belecimento do italiano da Toscana como modelo de língua literária (N. do T.).
36. Segundo O testemunho de uma colega de Vannini, de 1623, Sandro Bianconi, op. cit., p. 45 .
37. "li praecipue observentur, qui vitiosas quasdam inflexiones voeis habent, quas a patria secum extulerunt"
(Institutiones ad universum seminarii regimen pertinentes a Sancto Carola confectae, iussu Federici card. Borromaei editae
anno 1599, Milano, 1885, p. 23).
38. O uso do vernáculo a esse respeito é oficialmente autorizado nos estatutos sinodais sicilianos do século xvn,
relativos ao ensino do catecismo: cf. Mari D'Agostino, La Piazza e l'Altare. Momenti della Política Linguística della
Chiesa Siciliana (Secoli XVI-XVlll), Palermo, 1988. .
39. Cf. 0 estudo fundamental de Giovanai Pozzi, "L'ltaliano in Chiesa" , em Cultura d'E!ite e Cultura Popolare ne!l 'Arco
. 1..,a c·mque e Se1cen
Alpmo · to, org. de Ottavio Besomi e Cario Caruso, BaseVBoston/Berlín, 1995, pp. 303-343.
1
vernácula de seus paroquianos, coube aos vigários forâneos controlar e levar aos mais
distantes rincões da diocese o ponto de vista e a cultura do bispo - por exemplo, na
matéria delicada e então muito frequente dos milagres e das aparições, com a conse-
quente proliferação de novos cultos. Em 1597, o vigário forâneo de Trezzo informava 0
visitador da zona que os homens de S. Gervasio tinham praticado atos de culto de uma
imagem milagrosa de Nossa Senhora, contra as ordens que tinham sido dadas; e tudo
isso "com conhecimento do cura do lugar para interesse próprio e que nunca me avisa
de coisa alguma" 40 . É um caso emblemático: as orientações do governo eclesiástico e do
pessoal intermediário que o representava entravam em choque não só com o problema
de uma religiosidade popular impregnada de fenômenos extraordinários e de busca
do milagre, que devia ser enfrentada com os novos e severos critérios tridentinos, mas
eram obrigadas a levar em conta as ligações instauradas pelo clero das paróquias com
aquele povo e com suas necessidades . Desse modo, a inadequação dos instrumentos
disponíveis para o governo episcopal abria as portas às milícias monásticas da Inquisição.
'
40. Cf. Maurizio Sangalli, Miracoli a Milano. I Processi lnformativi per Eventi Miracolosi nel Milanese in Età Spagnola,
Milano, 1993, p. 187.
A Confissão
XV
CONTROLE DAS CONSCIÊNCIAS E
CONTROLE DO TERRITÓRIO: REDES
EPISCOPAIS E REDES INQUISITORIAIS
C omo vimos, o modelo de uma sociedade cristã não era ameaçado, aos olhos do bispo,
apenas pelo perigo da heresia. E é aí que se entende a diferença essencial no que se
refere ao controle inquisitorial. Os externos tolerados - ciganos, judeus - e os internos
transviados por pecados públicos e clamorosos - blasfemos, usurários , concubinários -
deviam ser isolados, afastados ou obrigados a dobrar,se à "verdadeira" norma cristã. Por
isso, previa,se que os pecadores públicos que se apresentavam para a comunhão pascal
não pudessem ser admitidos se antes não tivessem dado sinais claros de seu propósito de
mudar de vida. O pároco, por sua vez, não podia afastar os pecadores que se mostrassem
como tais somente a ele - evidentemente, para não ferir o princípio do secretismo da
confissão. Mas podia adiar a absolvição à espera de sinais certos do arrependimento do
pecador - por exemplo, a anulação dos contratos de usura por parte dos agiotas.
Volta,se, portanto, à confissão: e aqui a diferença entre o uso inquisitorial e o uso
episcopal parece evidente. Ao inquisidor interessava somente apoderar,se dos conheci,
mentos secretos para tornar eficaz sua obra de caça ao herege. Ao bispo, ao contrário,
a confissão servia como instrumento de regulação de toda a sociedade: para eliminar
as culpas morais, para reduzir à ordem cristã quem dela se afastava, para dar exemplos
eficazes de conversão. O projeto tomou várias formas: mas entre todas, a que teve mais
importância na vida cotidiana da população foi a prática da ampla reserva dos casos e
a, parcialmente relacionada, das penitências públicas. Ambas encontravam uma origem
comum na vontade de obrigar os pecadores a mudarem de vida. Carlo Borromeo não
tinha proposto uma penitência de malhas largas: nem sua ideia da confissão dos pecados
tinha algo em comum com a função consoladora, de remédio contra os terrores e o
desespero do pecador, que para outros era essencial. Isso pode ser visto principalmente
na amplitude que assumiu em seu governo o sistema de reservar à autoridade do bispo
uma grande quantidade de pecados. O Concílio de Trento, como vimos, tinha aprova,
do a contragosto O princípio do recurso à reserva: ocorreram equívocos, discussões e
maus humores contra um princípio que, tornando mais dificil o perdão dos pecados,
fazia temer consequências desastrosas. E, por isso, fora solicitado que se fizesse um uso
moderado do poder de reserva, "para edificação e não para destruição". As mesmas
palavras encontram,se nas advertências de Carlo Borromeo aos confessores, mas 0
significado delas é totalmente diferente. A preocupação do arcebispo de Milão era que
332
Se a coisa é pública, vós o fareis permanecer em dia de festa pública à porta da igreja com uma
corda no pescoço, durante as missas, e vós exagerareis o fato no altar com um sermão. Se ele por causa
de febre benzeu outros, ou ensinou a outros como a benzer, vós o fareis cumprir penitência em dobro 3•
A série dos casos reservados estabelecida pelo primeiro concílio provincial ( 1565)
era composta por doze e ia do rapto de meninas à falsificação de moedas, de balanças,
de medidas. Trata-se de uma relação que se complicou nos anos sucessivos e foi enri-
quecida por uma casuística nova. No segundo sínodo diocesano milanês (1568), Carlo
Borromeo acrescentou para sua diocese uma dezena de outros casos, entre os quais o de
quem conhecia e não denunciava hereges ou leitores de livros heréticos 4• Ora, sobre a
1. Acta Ecclesiae Mediolanensis, ed. Ratti, op. cit. , vol. II, col. 1904-1908.
2. Sobre a public morality como característica do modelo milanês de são Carlo Borromeo insistiu justamente
Wietse de Boer, The Uses of Confession in Counter-Reformation Milan, Tese de Doutorado, Universidade Erasmus
de Rotterdam, 1995, pp. 112 e ss.
3. Carta de 1º de março de 1572, publicada parcialmente por Maria Luisa e Ottavio Lurati, "Guaritori Popolari
e Magia dei 'Segnare", em Folclore Svizzero, LXIII, 1973, pasta 1, p. 7.
4. Cf. Acta Ecclesiae Mediolanensis, ed. Ratti, op. cit., vol. II, col. 53-54 e 821-822.
A Confissão
333
eficácia dessas relações e sobre seus efeitos na vida social da arquidiocese milanesa não
sabemos muito: porém, o suficiente para poder dizer que o rigor da norma penitencial
imposta por Borromeo teve que se ver com a reacão "de baixo" da sociedade e com a
das autoridades superiores, políticas e religiosas. ,
A reserva dos casos tinha como consequência o fato de que o confessor devia
expor ao cônego penitenciário da cúria milanesa o caso com que se deparara e soli-
citar o poder de absolver o culpado e a indicação da pena a ser aplicada. Do ponto
de vista da pessoa que se confessava, isso significava o risco concreto de que, nesse
ínterim, a família e a comunidade adivinhassem sua condição e talvez até seu pecado.
Naturalmente, nessas trocas de cartas entre confessores e penitenciários multiplicam-se
os cuidados para impedir que isso aconteça: os nomes dos interessados são omitidos;
na escolha das penas a serem aplicadas, faz-se distinção entre pecadores públicos e
culpas ocultas nas consciências . Estratégias do segredo eram determinadas em casos
de pecados graves , mas que não eram de conhecimento público: os de incesto eram os
mais evidentes. Em 1571, por exemplo, uma viúva que tinha confessado um incesto foi
punida com seis meses de jejum a pão e água, com ordem de não dizer a ninguém as
razões de seu jejum. Em 1579, ocorreu em Besozzo outro caso do gênero. Tratava-se
de um homem que confessara ter mantido relações sexuais com a irmã da mulher com
quem depois se casara. Esse casamento devia ser considerado nulo , segundo as normas
canônicas. Optou-se todavia por pedir secretamente a dispensa, determinando-lhe que,
enquanto isso, se abstivesse das relações conjugais: "mas se procurado [pela mulher],
devia ceder", porque a mulher devia permanecer na ignorância de tudo 5 • A questão
das culpas notórias era outra coisa; aqui exigia-se uma penitência pública, além da
imediata interrupção da prática culpável. Os nomes dos pecadores são explicitados na
correspondência entre o arcebispo e os párocos, assim como suas culpas (como vimos
antes, no caso de Bernardo de Dosso). A publicidade das penas e das confissões devia
servir para inculcar no povo o cumprimento das normas: assim, no caso de práticas
disseminadas, como a blasfêmia, uma investigação efetuada por Carlo Borromeo trouxe
à tona uma grande quantidade de usos intimidativos da penitência pública por parte
do clero. O pároco de Gorgonzola, por exemplo, tinha usado um remédio com um
blasfemo e jogador "fazendo-o dizer sua culpa publicamente na igreja, durante a missa,
na presença do povo antes de ouvi-lo em confissão"; e o de Melegagno recorria ao
sistema de não permitir a comunhão dos blasfemos no dia de Páscoa 6 • Mas o projeto
de Borromeo teve que se confrontar com a resposta da sociedade. E a resposta foi
de nítida rejeição no caso das práticas sociais de longa data, arraigadas no costume e
nas necessidades das pessoas. É il\dicativo das resistências suscitadas o fato de que as
denúncias anônimas, encorajadas com a afixação de caixinhas criadas para isso, não
deram nenhum resultado: em Roma, em um ano de exposição da caixinha, recolheu-
5. Retomo este e os casos seguintes da importante pesquisa de de Boer, The Uses of Confession, op. cit., p. 226.
6. Cf. Ottavio Lurati, "Pene ai Bestemmiatori, Indulgenze, Reliquie e 'lmmagini Profane' nella Diocesi Milanese
(e nelle Tre Valli) ai Tempi di San Cario, Folclore S11izzero, LX, 1970, fase. 4, pp. 41 -52; em part. p. 45.
7. Idem, p. 46.
8. Idem, p. 44.
9. Observação do penitenciário Pocalodi, em de Boer, The Uses of Confession, op. cit., p. 234.
10. Ottavio Pasquinelli, "Peccati Riservati a Milano dopo San Carlo (1586-1592)", em LA Scuola Cattolica, CXXI,
1993, pp. 679-721 ; em part. p. 713.
A Confissão
335
11. A observação é do pároco de Corbetta e refere-se ao convento de Abbiategrasso (Lurati, "Pene ai Bestemmia-
tori" , op. cit. , p. 45).
12. "Remédio para os blasfemos com a ameaça de proceder contra eles por meio da inquisição" (idem, p. 46).
13. Idem.
14. Sobre O caso de Lausanne, cf. Ilaria Taddei, Fête, jeunesse et pouvoirs. J;Abbaye des Nobles Enfants de Lausanne,
Lausanne, 1991, p. 79.
15. Constitutioni Sinodali per la Città, et diocesi di Forlí, con una breve instruttione in fine per i curati semplici, con licenza
della Santíssima Jnquisitione, em Bolonha, por Alessandro Benaccio, 1565, p. 59.
16. Esse documento também foi revelado pela pesquisa de Wietse de Boer, The Uses of Confession, op. cit., p. 239.
17. Cf. P. Prodi, "Riforma lnteriore e Oisciplinamento Sociale in san Cario Borromeo", lntersezioni, vol. v, n. 2,
ago. 1985, pp. 273-285; em part. p. 283 .
A Confissão
337
22. Algumas referências úteis na coletânea organizada por Mentzer, Sin and the Calvinists, op. cit., (mas o título
promete mais do que realiza). Para a vertente católica, mas com ótica comparativista, cf. agora Wolfgang Rei-
nhard e Heinz Schilling (orgs.), Die katholische Konfessionalisierung, Münster, 1995.
23. Na Itália medieval, termo eclesiástico que designa a igreja principal de uma circunscrição eclesiástica menor,
que mantinha sob seu controle outras igrejas e capelas, depois substituída pela igreja paroquial (N. do T.).
24 . eompetenc1as
• • e d everes d os pri·ores encontram-se analiticamente descritos nas Regole per le Classi de' Sacerdoti,
e per Ogn'altro Chierico della Città e Diocesi di Lucca..., de Alessandro Guidiccioni, bispo de Lucca, em Lucca,
junto a Vincenzo Busdraghi, 1588.
25 • ro;s1m
A- • r . . d
101 exp11ca o por
o 1·b er t'1 em relatório apresentado em 1542
. . ao Conselho dos Dez em Veneza; veja-se
,-: E
d o autor este vo ume Ira vange 1sm0
1· e Controrif,orma ' G. M. G1bert1 (1495-1543), Roma, 1969, p. 214.
d l
26. Cf. Lucia Pelagatti, "Gli lnizi della Riforma Cattolica in una Pieve Rurale Lombarda. Le Congregazioni dei
Clero a San Donato in Diocesi di Milano (1567)", Studi e Fonti di Storia Lombarda. Quademi Milanesi, XV, 1995,
pp. 69-96; em part. pp. 72 e 80. Logo que foi eleito, em 1567, Spessato tinha escrito a seu bispo uma carta de
trepidante autoacusação sobre sua carreira precedente: tratava-se de uma verdadeira "conversão", no sentido
de uma nova orientação, da· escolha de um ponto de vista diferente.
27. Relativo às pievi; ver nota de tradução (N. do T.).
28. Sobre a reforma das congregações cf. do autor do presente volume "lstituzioni Ecclesiastiche nei Domini
Estensi nell'Età dell'Ariosto", em Il Rinascimento nelle Corti Padane. Società e Cultura, org. de Paolo Rossi, Bari,
1977, pp. 160 e ss.
29. Cf. E. Cattaneo, "lnfluenze Veronesi nella Legislazione di San Carlo Borromeo", em Problemi di Vita Religiosa
in Italia nel Cinquecento. Atti del Convegno di Storia della Chiesa in Italia (Bologna, 1958), Padova, 1960, PP· 165
e s.; e cf. agora Angelo Turchini, "Officiali Ecclesiastici fra Centro e Periferia. A Proposito dei Vicari Foranei
a Milano nella Seconda Metà dei XVI Secolo", Studia Borromaica, VIII, 1994, pp. 153-213.
30. Cf. P. Prodi, "Lineamenti dell'Organizzazione Diocesana in Bologna durante l'Episcopato dei Card. Gabriele
Paleotti (1566-1597)", em Problemi di Vita Religiosa in Italia nel Cinquecento, op. cit., pp. 323-394.
A Confissão
339
pontualmente "contra quais pessoas procedia o Santo Ofício da lnquisição" 31• A lista
tinha um caráter prático e sintético e era elaborada com base em uma experiência
direta de governo de um determinado território . Eram seis as categorias de crimes
suJ:,metidos à !,nquisição: os hereges , os suspeitos de heresia, os simpatizantes de he-
reges , os "magos , bruxos e feiticeiros" , os blasfemos, os que "se opõem a este Santo
Ofício e a_seus oficiais". A primeira categoria, a dos hereges propriamente ditos , é
a menos -problemática de ser definida , remetendo a fórmulas estereotipadas: abarca
todos aqueles "que dizem , ensinam, pregam ou escrevem contra a Sagrada Escritura,
os artigos da Santa fé , os santíssimos sacramentos e ritos , ou seus usos , os decretos dos
Santos Concílios , e determinações feitas por sumos pontífices, a suprema autoridade
do sumo pontífice , as tradições apostólicas , o purgatório e indulgências , o estado
das religiões aprovadas , e outras coisas que tais" . Mas uma nota explicativa informa
que nesse capítulo incluem-se "ainda aqueles que dizem e sustentam que cada um se
salva na própria fé" . Ora, remontava justamente ao início da restauração eclesiástica
tridentina nos campos de Módena a descoberta de tal heresia nas afirmações de um
moleiro de Savignano sul Panaro, Pellegrino Baroni, vulgo Pighino. Pighino afirmava
que "todo homem era obrigado a estar sob sua fé , seja ela a judia, a turca e qualquer
outra fé" 32• Em relação à sua heresia, as autoridades diocesanas tinham entrado em
choque com as inquisitoriais. Pighino fora identificado como herege justamente no
decorrer de uma visita vicarial do território modenense realizada por determinação
do bispo Giovanni Morone em 1565; e depois a Inquisição se encarregara dele. Mas
era sobretudo nas demais categorias de crime que a prática concreta dos casos tra-
tados pelo tribunal modenense feria em cheio as definições oficiais, não tanto nas
categorias quanto nas exemplificações. Assim, na segunda categoria, a dos suspeitos
de heresia, encontramos exemplos de doutrinas antitrir:iitárias ("como quem afirmava
ser o filho da Santíssima Trindade menor que o Pai.. . ou Deus ter-se feito criatura
na Encarnação") , de teses iconoclastas ("ou quem afirmava serem papel, madeira ou
pedra as imagens de N. Senhor ou dos santos") que tinham sido tratadas por aquele
tribunal; e encontramos sobretudo os primeiros sinais de uma avalanche de práticas
mágicas e supersticiosas: o abuso dos sacramentos (o bastante disseminado batismo
do ímã, por exemplo) e das coisas sacramentais ("água benta, velas, folhas ou ramos
de oliveiras bentas, cruzes, palavras, sentenças ou salmos da sagrada escritura"). A
matéria atinge o quarto ponto da lista: e ali encontramos descrições pontuais dos
esconjuros ("cinco dedos ponho no muro, cinco diabos esconjuro") e das várias
categorias de orações:
31. Conservada em ASM, Jnquisizione, b. 295, cc. 4 numeradas; o amigo Albano Biondi, a quem agradeço, informa-
-me que "o texto é de Calbetti ou de Lerri". Arcangelo Calbetti foi inquisidor em Módena entre 1600 el 1607;
sucederam-no Serafino Borra (1607-1608) e Michelangelo Lerri (1608-1616). Em uma carta de Calbetti a Borra,
de 17 de dezembro de 1607 (idem, b. 288; agradeço à dra. Caterina Capucci a indicação), faz-se menção a uma
instructio para 05 vigários, compilada por ele, que é, conforme todas as evidências, nosso documento.
32. Cito a partir de Carlo Ginzburg, Il Formaggio e i Vermi. Il Cosmo di un Mugnaio del Cinquecento, Torino, 1976,
p. 145. O processo é de 1570.
- para ser amado por amor desonesto , como são as orações de S. Daniel, de S. Marta, de
S. Helena ;
- para saber coisas futuras ou ocultas, como a "Anjo santo, anjo branco" etc. , a "Doce Virgem",
e que tais. E os confitemini de Nossa Senhora;
- as que contêm nomes incógnitos, cujo significado nem é sabido, e caracteres ou círculos, ou
triângulos etc. , que são trazidos junto do corpo, ou para ser amado por mulheres, ou por príncipes,
ou por quem quer que seja, ou para se proteger das armas dos inimigos, ou para não correr nenhum
perigo, ou para não confessar a verdade nos suplícios, ou para outros fins .
A casuística que se apresenta aqui e nas outras seções do documento pode servir
de índice temático das práticas desviantes das quais as autoridades modenenses deviam
se ocupar nesses anos.
A relação fez sucesso, tanto junto aos inquisidores como junto aos bispos. Foi
publicada em 1608, em Módena, pelo inquisidor frei Michelangelo Lerri como seção
de uma informatione mais ampla destinada aos vigários, que por sua vez tornou a ser
publicada depois, em Cremona e em Parma, em 1628 33 • Por sua clareza analítica e
pelo modo prático e concreto da identificação das categorias cada vez mais imprecisas
e numerosas, a relação foi juntada em 1612 aos "avisos" de Rodolfo Paleotti, bispo de
Ímola, e encontrou finalmente uma sistematização definitiva no manual mais difundido
e de maior sucesso da Inquisição romana, o Sacro Arsenale de Eliseo Masini (1621)3 4•
33. Bretie lnformatione dei Modo di Trattare le cause dei S. Officio per li molto retierendi tiicarii della Santa Inquisitione,
instituiti nelle diocesi di Modona, di Carpi, di Nonantola, e della Garfagnana, Módena, tipografia de Giulian Cassani,
1608 (uma edição anastática foi organizada por Albano Biondi, Ferrara 1991). A edição parmense (Bretie lnfor-
matione dei Modo di Trattare le cause dei S. Officio per li molto retierendi tiicarii dei/a Santa lnquisitione, instituiti nelle
diocesi di Parma, e di Borgo S. Donnino, Parma, junto a Seth et Erasmo Viotti, 1628; a dedicatória aos vigários é
assinada por frei Benedetto de Bistagno inquisidor de Parma), reproduz exatamente a modenense, inclusive no
que se refere à dedicatória "aos reverendos senhores vigários" da qual se atualiza somente a data e a assinatura;
contudo, foram omitidas duas seções "Do modo de examinar os réus" (que até na edição modenense estava
inserida, às pp. 27-46, com a advertência de que o exame dos acusados era de norma reservado ao inquisidor
e não era permitido aos vigários a não ser em condições excepcionais) e "Algumas ordens recebidas da Sagrada
Congregação( ...]", pp. 53-56, que se referem às tarifas de custos judiciários vigentes em Módena. Uma cópia
da edição parmense é conservada no Archivio di Stato di Parma, fondo "Culto" , b. 101. Não pude examinar
se a Bretie Instruttione in Cui si Prescritie il modo e la forma che detiono tenere i tiicari foranei dei S. Officio di Patiia...,
publicada no final do século XVII, com o nome de frei Giovanni Domenico Boero, Pavia, por G . Ghidini s.d.
(indicado por L. Musselli, "11 Tribunale dell'lnquisizione a Pavia", Annali di Storia Patiese, 18, 1989, pp. 103-111 ;
cf. p. 104 nota) é também uma reedição do texto modenense.
34. Episcopale della Città e Diocese d'lmola, Bologna, por Vittorio Benacci, 1616, pp. 200-205. A data de redação é a
indicada por Angelo T urchini, lnquisitori e Pastori, Cesena, 1994, p. 35 (que propõe o cotejo pontual com o Sacro
Arsenale: cf. pp. 111 e ss.). A identidade essencial dos textos de Paleotti e de Masini foi observada por Giuliana
Zanelli (Streghe e Società nell'Emilia e Romagna dei Cinque-Seicento, Ravenna, 1992, pp. 102-108; em part. p. 105)
que levanta a hipótese de uma fonte comum, que poderia ser a própria Bretie Informatione dei Modo di Trattare
le Cause dei S. Officio, publicada por frei Michelangelo Lerri em Módena. Não se pode excluir, naturalmente,
que o texto de Lerri retome a divisão das categorias de um édito geral elaborado pela congregação romana.
Mas o colorido local da casuística é inegável.
A Confissão
341
Os fatos relativos a esse breve texto trazem à tona um dado de inegável importância: a
irradiação da rede de vigários no território já permitia aos comissários da Inquisição
o exercício de um controle minucioso, capaz de competir vitoriosamente com a rede
paralela das instituições diocesanas e de influenciar seu funcionamento . Porém, deveria
se falar menos de rivalidade e mais de sobreposição e confusão.
Em teoria, a confusão estava excluída das normas estabelecidas pela Congregação
do Santo Ofício. Uma regra fundamental impunha escolher os vigários no seio do clero
regular e proibia atingir o clero secular das paróquias. Não está claro quando foi for-
mulada pela primeira vez, contudo é certo que não foi observada. De resto, em 1640, o
cardeal Barberini, mesmo reforçando-a formalmente , observou que a norma valia "toda
vez[ ... ] que no mesmo lugar existirem pessoas regulares aptas ao exercício de tal ofício" ,
e que na ausência dessas pessoas podiam ser nomeados os párocos, desde que solicitada
a devida permissão à Congregação romana 35 • De fato , fora dos maiores centros urbanos,
a rede dos vigários foi constituída por párocos, "o que - como foi observado - não é
desprovido de significado para as formas de comunicação da fé" 36 • Não é difícil com-
preender por que , para a congregação romana, devia-se evitar a sobreposição: durante
séculos os conventos tinham produzido pessoal munido da cultura teológica necessária
e abrigado em suas celas os instrumentos do ofício - desde os livros e arquivos até os
cárceres. Mas a tendência da estrutura inquisitorial em relação à presença disseminada
no território era demasiadamente forte para deixar-se deter pela eventual ausência de
conventos. E assim, não obstante os vetos formais, também o clero das paróquias foi
arrolado e, como decorrência, frequentemente o vigário do bispo e o do inquisidor
romano foram a mesma pessoa. A convergência das duas estruturas é o resultado de
uma tendência à sobreposição das funções , que mostra o quanto a Inquisição tinha se
transformado desde o momento de seu renascimento.
Sua intervenção deixou de ser ocasional e estremecedora, realizada apenas na pre-
sença de desvios isolados e graves ou de específicas organizações heréticas, mas tornou-se
contínua e quase cotidiana. Devia-se poder recorrer à Inquisição a qualquer hora, de
acordo com o mesmo impulso que levava cada fiel ao confessionário. E o inquisidor -
como veremos melhor mais adiante - também modificou as formas elementares de
seu trabalho: não mais o édito de graça e o de justiça, mas um só édito geral e muitos
éditos particulares; não mais graves punições públicas, mas uma miríade de "penitências
salutares" frequentemente secretas, ou, como quer que seja, não vistosas; e, entre as
formas de início do processo, ao lado das tradicionais da fama e da acusação, passou a
destacar-se em primeiro lugar a da spontanea comparitio, também chamada "desencargo
de consciência" - ou seja, um sistema de impulso individual codificado e generalizado
(encorajado, também, pelas formas leves de pena) que de fato tornou inútil o édito de
35. Carta circular de 28 de janeiro de 1640, conservada em ACAF, S. Uffizio, b. 11, n. 102. Sobre a situação real
em duas áreas-modelos vejam-se os estudos do autor deste volume ("Vicari dell'lnquisizione Fiorentina", op.
cit.), e de Albano Biondi ("Lunga Durata e Microarticolazione", op. cit.).
36. Biondi, "Lunga durata e microarticolazione", op. cit. , P· 87.
graça 37• Presente de modo difuso e estável em todo o território, o vigário viu crescer cada
vez mais o aspecto burocrático de seu trabalho: à medida em que a estrutura eclesiástica
reunia uma grande quantidade de conhecimentos, principalmente através das malhas da
confissão, e encaminhava aos vigários da Inquisição os que deviam submeter a própria
consciência a um desencargo, eles viam diminuir as tarefas de investigação policial e
aumentar as de arquivamento e transmissão de dados. Para ver num relance como tinha
mudado a natureza da presença territorial de inspetores eclesiásticos no território no
decorrer do século XVII , basta confrontar as instruções modenenses lembradas anterior-
mente com um opúsculo redigido para os vigários da Inquisição na região de Ferrara
no final do século XVII. As Regale del Tribunale del Sant 'Officio, publicadas em Ferrara
por frei Tommaso Menghini "para esclarecimento dos vigários de sua jurisdição", não
perdem tempo relacionando os crimes a serem indagados, mas concentram-se na apre-
sentação da abordagem burocrática a ser seguida para a autuação dos vários momentos
do processo, desde a denúncia e o interrogatório das testemunhas até a sentença 38 •
Mas, visto que estamos observando os modelos de conhecimento e controle do
território revitalizados pela retomada episcopal da época tridentina, seria bom sublinhar
desde já duas maneiras diferentes de sobreposição da polícia inquisitorial aos modelos
"pastorais" do governo episcopal: não somente a Inquisição propôs, onde lhe foi pos-
sível, modelos de vigilância calcados nos modelos diocesanos, mas investiu de funções
inquisitórias as instituições de governo episcopal, sobretudo - mas não só - nas regiões
da Itália onde a Inquisição não foi oficialmente admitida. Como vimos, a área mais
vasta e mais importante desse ponto de vista era a do reino de Nápoles. Ora, a presença
do núncio apostólico e a atuação do comissário do Santo Ofício em Nápoles podiam
garantir uma informação imediata e uma ação de espionagem eficaz para uma Inquisição
Romana preocupada essencialmente com a condução de uma luta sem quartel contra os
hereges. Mas as coisas complicaram-se quando, com a mudança de tarefas e de funções,
surgiu o problema do controle minucioso do território; por isso, acabou-se recorrendo
justamente aos bispos, obrigando-os a encobrir com o véu da ação "pastoral" atos precisos
de tipo inquisitorial. "Onde os Inquisidores não estão presentes, os ordinários podem e
devem atender à execução do decreto do Santo Ofício" 39 : essa regra, estabelecida para a
realização do Índice romano de 1559, pode ser tomada como norma do funcionamento
da Inquisição romana, Há provas disso em muitos autos, particularmente nas áreas onde
37. "[... ] Havendo os sumos Pontífices concedido aos réus, que compareçam espontaneamente a qualquer mo-
mento, ou digam inteiramente a verdade a respeito de suas culpas e de seus cúmplices, desde que não sejam
prevenidos, a graça das penas às quais seriam condenados, não se reputa mais necessário publicá-lo [o édito
da graça], por nele ser restrito a poucos dias esse tempo, que é perpétuo" (a observação é de Albizzi em sua
Risposta all'Historia della Sacra lnquisitione Composta già dai R.P. Paolo Servita, op. cit. , p. 324).
38. Regole dei Tribunale de! Sant'Officio, Praticate in alcuni casi imaginarii da F. Tom.aso Menghini d'Albacina, inquisitore
generale di Ferrara, e suo Ducato, per lume de' Vicarii della di !ui giurisditione, segunda impressão, em Ferrara, pelo
herdeiro de Giglio, tipógrafo do Santo Ofício, 1687.
39. Carta do cardeal Michele Ghislieri ao inquisidor de Gênova, 10 mar. 1559, Biblioteca Universitaria di Genova,
ms E. VII. 15, c. 94r.
A Confissão
343
não foi possível construir uma rede institucional de comissários da Inquisição. Em uma
relação dos "negócios pendentes" perante o Santo Ofício romano em 1624, tem-se notícia
de como fora resolvido o problema de uma "determinada superintendência" no território
do Reino de Nápoles: decidira-se "enviar aos bispos do Reino as minutas do édito do
Santo Ofício, com ordem de publicá-lo como ordinários, inserindo nele o conteúdo dos
éditos que soem publicar como bispos". Em suma, era preciso ocultar o caráter centralista
e policial do édito do Santo Ofício romano atrás das formas da presença pastoral, que
se presumia ligada aos problemas locais e portanto diversificada em termos de tempos e
espaços. Por isso, além de omitir qualquer referência ao Santo Ofício no texto do édito,
os bispos tinham recebido ordem de modificar o início do texto e proceder esparsamen-
te, "sem alterar a forma, lugares e tempos com que cada bispo costuma publicar" 40 • Mas
expediente semelhante podia vir a calhar também nos lugares onde a Inquisição, mesmo
presente, era contida pelo controle estatal: assim, nos decretos sinodais das dioceses veneras
o olhar agudo e desconfiado de Sarpi detectou, nessa mesma época, a presença de decretos
do Santo Ofício romano que, não tendo sido acatados "nos ofícios da inquisição deste
Domínio com a assistência dos representantes públicos", tentavam passar por outras vias 41 •
Outro exemplo é oferecido pela visita episcopal, instrumento cuja função "pasto-
ral" desde então recebeu destaque até se tornar uma espécie de sigla da assim chamada
"reforma tridentina". A função da visita como instrumento de conhecimento e de
intervenção foi de fato central na cultura e no governo eclesiástico da idade moderna.
Mas a intervenção pastoral foi assumindo no decorrer da segunda metade do século XVI
um perfil diferente daquele que tivera nos séculos anteriores, até à época do Concílio
de Trento: a visita do bispo tinha sido um momento de conhecimento e de governo por
parte de uma autoridade eclesiástica ordinária, isto é, consolidada e presente em meio
à população; o caráter ritual da visita fora usado também para estimular a renovação
religiosa dos fiéis , com sermões, indulgências, administração dos sacramentos. Com base
nessa tradição introduziu-se a prática das visitas ditas "apostólicas": atos de delegados
papais, enviados primeiro nas dioceses do estado da Igreja e depois no resto da Itália, as
visitas apostólicas ordenadas pelo papa Gregório Xlll realizaram o ideal de unidade da
península italiana que o pontífice fez representar nos mapas da Galeria Vaticana. Era
uma solução para o grave problema da fragmentação de poderes e de jurisdições que
freava a ação dos bispos e que constituíam a maioria dos "impedimentos de residência"
denunciados pela assembleia conciliar. A mesma não coincidência entre fronteiras ecle-
siásticas e fronteiras políticas provocava problemas significativos: se tomarmos o caso da
diocese de Luni-Sarzana, com suas 287 paróquias divididas entre sete estados territoriais
maiores e uma infinidade de feudos menores 42 , podemos ter uma ideia da dificuldade
que qualquer bispo teria de desenvolver uma ação eficaz em meio a tal emaranhado de
poderes. Mas havia - no interior de cada estado - interesses de corpos constituídos em
condições de frear a determinação moralizadora dos bispos. Por isso, houve entre os
imitadores de Carlo Borromeo quem pensasse em impor o cumprimento das normas
tridentinas e dos decretos sinodais a golpes de excomunhão 43 ; mas a resistência romana
em relação a esse método - que levava ao fortalecimento da autoridade de bispos e arce-
bispos e, em geral, das estruturas de governo das igrejas locais - deixou caminho aberto
somente à intervenção de autoridades delegadas diretamente pelo papado.
Surgiram assim as visitas apostólicas. As resistências dos poderes políticos e as
controvérsias que pontuaram seu desenvolvimento mostraram que havia sido bem
entendida a vontade de estabelecimento de uma autoridade central e o uso do modelo
tridentino como um esquema unificador. Porém, desse modo, o projeto de um periódico
momento de renovação religiosa e de encontro entre o "pastor" de uma determinada
igreja e seu rebanho foi sendo substituído por uma inspeção de caráter administrativo
e policial, realizada por delegados que não tinham qualquer ligação com as igrejas visi-
tadas e destinada a verificar somente o grau de uniformidade, de decência, de correção
dos paramentos, dos ritos , das práticas religiosas. O caráter não pessoal mas delegado
da autoridade do visitador e sobretudo a atenção exclusiva aos desvios e às resistências
em relação a um modelo uniforme aproximavam esse gênero de controles às visitas
inquisitoriais e, em âmbito mais geral, às funções dos comissários nas monarquias do
início da idade moderna.
De resto, no decorrer daqueles anos, a sombra da inquisição estendeu-se sobre a
visita apostólica não só em termos de genérica analogia formal. Conhecemos a respeito
um episódio significativo, relativo à cidade de Lucca. Lá, como vimos, a Inquisição ro-
mana não foi aceita; a república de Lucca opôs-se por todos os meios ao que parecia uma
dura lesão infringida às regras de funcionamento do estado citadino. Contudo, Lucca
era vista por Roma como uma capital da infecção herética e o papado não renunciava a
tentar de todos os modos introduzir ali o controle inquisitorial. Foi assim que se recorreu
ao envio de um visitador apostólico ao qual foram conferidos os poderes de inquisidor:
Gian Battista Castelli, bispo de Rimini, fez sua visita de maio e a novembro de 1575, e
durante ela, mesmo sem o governo de Lucca ter concedido o exequatur ao breve papal que
lhe conferia poderes inquisitoriais, recebeu secretamente denúncias escritas, vindas de um
grupo de cidadãos particularmente determinados a lutar contra os hereges: a partir delas
foram instaurados processos e mais processos 44 • Esse exemplo evidencia como o instituto
43. Sobre a tentativa feita nesse sentido pelo arcebispo de Salerno Gaspare Cervantes, cf. Pietro Caiazza, Tra Stato
e Papato. Concili provinciali post-tridentini 1564-1648, Roma, 1992, pp. 95-101.
44. Cf. S. Adorni-Braccesi, La Repubblica di Lucca, pp. 258 e ss. Sobre a dinâmica das denúncias, eis o que referiu
um dos conjurados de Lucca, Francesco Fantucci, em seu depoimento perante o inquisidor de Pisa de 2
de julho de 1576: tinha sido abordado por Giovan Battista Nannini que o fizera jurar segredo e lhe dissera
"que queria que eu fosse um dos outros sete ou oito que estavam de acordo em denunciar e acusar ao Mons.
Visitador os hereges sodomitas e maus cristãos de Lucca, para que prevalecesse a honra de Deus sobre tudo
isso ... que como os outros estavam de acordo com isso eu também devia ir ao visitador dizer o que eu sabia,
A C o nfissão
345
mostrando também que eu devia fazê-lo por muitas razões: ao qual respondi que não era mais aquela época
em que eu ficava a perseguir os aflitos com os outros espirituais, mas que, tendo mulher e filhos , parecia-me
devido cuidar de minha família e não da vida alheia, mas, enfim, não soube santo [= tanto) safar-me, que
lhe prometi estar com os outros e, tendo-me dito para pensar durante a noite e põr por escrito o que sabia,
resolvi não escrever, mas dizer de viva voz ao Visitador o que sabia[ ... ) e nas três vezes em que falei com Mons .
Visitador sempre veio esse padre Gio. Battista à minha casa para levar-me ao dito Visitador e agora passo pelo
desgosto de que por causa dessas coisas a cidade esteja de pernas para o ar. Cidade essa que me parece católica
de corpo e alma, embora alguns membros estivessem infectados, e a intenção do príncipe é muito boa" (AAP,
S. Uffizio, f. 1, c. n.n.).
45. Cf. nota 35 deste capítulo.
46. Cf. Marchetti, Ultime fasi della repressione dell'eresia a Siena, op. cit., pp. 82-83.
47. Carta de Francesco 1 a Alessandro de' Médici, 13 de fevereiro de 1581, op. cit. , p. 86.
48. "[ ... ) Os ordinários que amam O serviço de Deus têm em consideração de serem ajudados pelos inquisidores ou
por seus vigários. Os quais, por não se ocuparem de outro assunto, podem atender melhor a este serviço do
que os ordinários" (carta a Francesco 1, Roma, 24 de dezembro de 1580, op. cit., p. 84).
O nome do lugar
Se é terra, castelo ou vila, grande ou pequeno
Sob qual domínio ou jurisdição, seja em temporal
Sob qual diocese ou jurisdição, em espiritual
Se algum é governado por marquês ou conde etc.
Se é por potestade, ou não, ou seja se tem governador, ou comissário
Com que domínios confina
Se é na planície ou na montanha
1... l
49. Susanna Peyronel Rambaldi, "Podestà e inquisitori nella montagna modenese. Riorganizzazione inquisitoriale
e resistenze locali (1570-1590)" , em Vlnquisizione Romana in ltalia nell'età moderna, Roma, 1991, pp. 203-231;
em part. p. 217.
50. Eclesiásticos responsáveis pela pieve (N. do T.).
51. Cf. Ginzburg, II Fonnaggio e i Vermi, op. cit., p.4; Peyronel Rambaldi, "Podestà e lnquisitori", op. cit. , pp. 218 e ss.
A Confissão
347
A Confissão
XVI
BISPOS E INQUISIDORES:
SOBREPOSICÕES E CONFLITOS
'
e ostuma-se ver nas tendências do final do século XVI um abandono, quando não
uma traição, das aspirações de reforma do início do século: à reforma opõe-se a
Contrarreforma, à simplicidade do Evangelho o aparato constritivo e autoritário de
uma hierarquia opressiva. Na realidade, os decretos e as medidas policiais das autori-
dades eclesiásticas em fins do século XVI não fizeram outra coisa que realizar os desejos
contidos nos memoriais produzidos pelas tendências reformadoras e rigoristas do início
do século. A verificação é simples. No que diz respeito ao governo episcopal, podemos
tomar como comprovação os decretos do primeiro concílio provincial milanês para ver
resumidamente os comportamentos transgressivos sobre os quais se tentava intervir: eram
aqueles que havia décadas tinham sido denunciados por uma literatura de orientação
reformadora, com tonalidades diferentes - desde o lamento penitencial da sempiterna
corrupção humana às cores dramáticas da profecia, passando pela prosa severa e contida
de quem tinha responsabilidade de governo. Tratava-se de blasfemos, feiticeiros , gente
que pervertia a palavra de Deus ou desobedecia publicamente a seus preceitos. O olhar
dos bispos lançado ao mundo laico apreendia uma quantidade de erros e aberrações cada
vez mais vasta e preocupante. Os estatutos sinodais, juntamente com os antigos cânones
sobre a vida e os costumes do clero (de vita et honestate clericorum), viam aumentar cada
vez mais a parte dedicada às denúncias do que não ia bem na vida do povo cristão. E,
naturalmente, a heresia acabava sendo o ponto principal e a síntese das aberrações do
mundo. Dos primeiros sinais de preocupações anti-heréticas por parte dos sínodos da
época tridentina passa-se rapidamente a descrições precisas e amplas sobre as formas
da heresia, sobre os veículos de sua difusão (mestres-escolas, livros) e sobre o modo de
combatê-la. A leitura comparada de manuais da Inquisição e de fontes normativas de
origem episcopal evidencia que o inimigo a ser combatido é o mesmo. Isso é bastante
óbvio, por determinados aspectos. O ponto de vista das duas autoridades era o mesmo,
ou pelo menos encontrava-se no centro da questão, que era a da proteção do bonum fidei .
Mas, se isso permite compreender a sobreposição tendencial de sua atividade na luta
contra O erro doutrinário, há outras razões que tornaram necessário esse encontro num
terreno mais amplo.
Essas razões personificam-se na figura do herege assim como fora concebida e
imaginada: 0 herege era essencialmente um mau cristão. A pertinácia de sua desobe-
350
1. Episcopal.e della Città e Diocese d'lmola, por Vittorio Benacci, Bologna, 1616, pp. 200-205 (cf. cap. XV, notas 33 e 34).
2. O texto de Paleotti é citado por Turchini, lnquisitori e Pastori, op. cit., p. 111.
3. "Verbum dissidentes[ ... ] includit non solum dissidentes a fide, sed etiam a communi conversatione honesta"
(Martinus ah Azpilcueta, Commentarius Utilis in Rubricam de ]udiciis, Romae, apud Tomerium et Bericchiam,
1585, p. 139, n. 93; uma exposição resumida da doutrina do doutor Navarro sobre o julgamento inquisitório
é fornecida por Rafael Rodríguez-Ocana, "Notas sobre el Juicio lnquisitorio", em Estudios sobre el Doctar NatJarro
en el IV Centenario de la Muerte de Martin de Azpilcueta, Pamplona, 1988, pp. 387-400).
4. O trecho, em Vincenzo Borghini, Opere, por Filippo e lacopo Giunti, Firenze, 1585, p. 563, é citado por Johannes
Kremer, "Ketzer, Zauberer und Homosexuell", em Peter Blumenthal e J. Kremer, "Ketzerei und Ketzerbekãmpfung
in Wort und Text", em Zeitschrift fur Franzõsische Sprache und Literatur, b. 14, Sruttgart, 1989, p. 19.
A Confissão
351
5. Carta de Benedetto Volpi, de Como, 31 ago. 1544, em Paolo Gerardo, Novo Libro di Lettere Scritte dai piú Rari
Auttori et Professori della Lingua Volgare Italiana, por Comin de Trino, Venezia, 1544, c. 136v.
6. Cf. Lelio Sozzini, Opere, edição critica org. por Antonio Rotondô, Firenze, 1986, pp. 134 e ss.
7. Quattro Lettere Christiane, con uno Paradosso, Bologna (mas Basileia), por M. Pietro e Paulo Perusini fratelli, 1552,
pp. 21-22.
8. Cf. Gerhard Schneider, Il Libertino. Per una Storia Sociale della Cultura Borghese nel XVI e XVII Secolo (Der Libertin,
1970) trad. it. Bologna, 1974.
9. Dep. de Battista "de Tepis", de Castel San Pietro, 20 maio 1588; o documento, que não pude conferir no
manuscrito do arquivo episcopal de Ímola, é reproduzido por Raffaella Rotelli, Il Tribunale dei Sant'Uffizio a
Imola dalla Fondazione ai 1578, Tese de Graduação, Università degli Studi di Bologna, orientador C. Ginzburg,
1973-1974, p. 188. Sobre Flaminio, primo do mais conhecido Marco Antonio, e sobre os processos de Ímola
chamou a atenção pela primeira vez Giuseppe Fortunato Cortini, La Riforma e l'Inquisizione in Imola (1551 -1578)
e Marco Antonio Flaminio Luterano, imola, 1928, PP· 28-34.
tinha familiaridade com judeus, era sodomita: e por isso o inquisidor reuniu testemu-
nhos sobre todos esses pontos, que, todavia , não entravam em seu campo. Mais adiante
tornou-se normal também para a inquisição atingir os sodomitas e quem frequentava
'
judeus 1°. A fama de sodomita podia surgir como consequência de um juízo negativo a
respeito de certas profissões: o preceptor, o homem de teatro. A inquisição de ,.,Ímola
reuniu - sempre em 1558 - rumores e acusações a respeito de certo Battista Chillini,
que era conhecido como "um grande comediante" 11 , no sentido de que se dedicava a
compor comédias . Mas em Ímola era considerado "um grande trapaceiro, um malvado
e um grande sodomita" , diziam que não se confessava nem comungava jamais, que ca-
çoava da religião , que enganava os parentes, chegavam a defini-lo "o maior blasfemo e
renegador da fé de Cristo que pode haver no mundo" 12 • Mas o processo não conseguiu
apurar nada mais concreto que boatos . E os boatos tinham origem num dado de fato
real - escrever comédias, ter relações com o teatro - e no projetar o próprio modelo de
vida no dos outros: a suspeita era gerada pela diferença. Para o médico Stefano Faelli,
Chillini parecia "todo mal vestido"; e ainda por cima, acrescentava Faelli, "eu nunca o
vi em igreja alguma e vou à missa todas as manhãs, além de frequentar outras igrejas" 13 •
Desse modo , enquanto a estrutura territorial da Inquisição copiava a da diocese,
os bispos copiavam as instruções inquisitoriais para ensinar ao próprio clero como
defender a fé. Reconduzir à norma da vida católica era o objetivo comum dos bispos e
inquisidores: e nesse terreno comum produziram-se repetidos choques sobre a prioridade
de uns ou de outros - prioridade nos poderes e nos deveres, mais frequentemente nos
'
direitos, sobretudo os de precedências cerimoniais. Mas era consciência disseminada
que as matérias de intervenção de uns e de outros eram as mesmas: para os tratadistas
da Inquisição, era evidente que a intervenção dos inquisidores tornara-se necessária
devido à ineficácia da intervenção dos bispos: por ausência, indolência ou imperícia
deles, como explicava Simancas 14 • Mas os bispos mais ativos e preparados dedicavam-se
às mesmas matérias e sentiam-se chamados a intervir para restaurar o mesmo modelo
ortodoxo de vida ao qual também se referia a Inquisição. Por um certo trecho do ca-
minho os dois percursos foram comuns, tanto que os rastros documentários deixados
por esses dois poderes quase sempre são difíceis de distinguir. Quando soubermos mais
sobre a atividade desenvolvida pelos tribunais diocesanos 15 , as sobreposições destes com
10. A tese de uma lenta assimilação do crime de sodomia ao de eresia, proposta por E. W. Monter, "La sodomie
à l'époque moderne en Suisse romande", Annales, E. S. C., XXIX (1974), pp. 1023-1033, é examinada nos casos
de Ímola por Rotelli, Il Tribunale del Sant'Uffizio, op. cit.
11. Depoimento do médico Stefano Faelli, 21 maio 1558 (idem, p. 235).
12. Depoimento de Ludovico Mongardini, 25 maio 1558 (idem, p. 236).
13. Idem, ibidem.
14. "Propter varias episcoporum curas, sive propter quorundam absentiam vel ignaviam, vel imperitiam" (1.
Simancas, "De Catholicis lnstitutionibus", em Tractatus Universi luris, XI, 2, Venetiis, 1584, p. 150).
15. De fato, como constatou Prodi, não existe "nenhum estudo na Itália que nos diga ainda que seja para uma
única diocese como funcionava a cúria diocesana do ponto de vista judiciário" ("Tra Centro e Periferia: Le
lstituzioni Diocesane Post-tridentine", em Cultura Religione e Politica nell'Età di Angelo Maria Querini, org. de G.
A C o nfissão
353
Alguns casos concretos poderão mostrar como se dera a competição entre inqui-
sidores e bispos. Vejamos alguns, sem pretender exaurir uma casuística que foi bastante
vasta, coincidindo praticamente com os próprios limites da vida social. A reforma pro-
movida pelos membros mais ativos do episcopado tridentino teve como alvo não só as
convicções individuais, mas também e principalmente os comportamentos da praça e
da venda, as práticas da festa e do mercado. Nisso, sua ação inseriu-se em uma corren-
te mais vasta, que abarcou os reformadores ativos nas várias confissões cristãs. Quem
Benzoni e M. Pegrari, Brescia, 1989, pp. 209-223; em part. p. 217). Para uma análise exemplar da administração
da justiça nas cúrias episcopais do século XV, cf. R. Bizzocchi, Chiesa e Potere nella Toscana del Quattrocento,
Bologna, 1987, pp. 245 e ss. Para época muito mais remota, cf. Wilfried Hartmann, "Der Bischof als Richter" ,
Romische Historische Mitteilungen, XXVIII, 1986, pp. 103-124. Recentemente, foi analisada por Danilo Zardin "La
Struttura della Cu ria Arcivescovile al Tempo di Cario Borromeo", Studia Borromaica, VIII (1994), pp. 123-152.
Uma análise eficaz do entrincheiramento pós-tridentino dos tribunais eclesiásticos em defesa da "honra" do
clero foi proposta por Michele Mancino, "Giustizia Penale Ecclesiastica e Controriforma. Uno Sguardo sul
Tribunale Criminale Arcivescovile di Napoli" , em Campania Sacra, 23, 1992, pp. 201-228.
16• Assim
· escrevia . o pod es t ade de Brescia em 1569 ' elogiando a obra do bispo Domenico Bollani (cf. D. Montanari '
Discip!inamento in Terra Veneta, Bologna, 1987, PP· 56 e ss.).
17· o·10. Batt1sta
. R·mucc1m, . . arce bi'spo e príncipe de Ferroo, Della Dignità et Offitio dei Vescovi , Roma, por P. Manelfi '
1651 : d a d ed 1catona a Inocen
. . . • ci·o X (Ferroo 23 nov. 1650) e do preâmbulo "aos leitores". A obra é precedida
, •
por uma aprovação entus1ast1ca.. . d e Pietro Sforza Pallavicino.
tentou uma relação das matérias que entraram na ótica dos reformadores juntou listas
d~ seguinte gênero: "atores, bailes, fantoches , baralhos, charivari, charlatões, brigas de
caes contra ursos , corridas, dados , danças , adivinhações, feiras , livros populares, magia
1
máscaras, menestréis, predição do futuro , contos populares, bruxaria e tabernas"1s
Ora, justamente o campo da festa e do espetáculo esteve no centro de uma disputa d~
métodos e de uma prova de força entre bispos e inquisidores.
1. O TEATRO
Na época pós-tridentina acenderam-se ásperas polêmicas sobre a moralidade do tea-
tro e sobre os perigos contidos nos espetáculos teatrais . Uma arte que tinha fortes
raízes na "representação sacra" e que era profundamente ligada à vida social não
podia escapar aos rigores da iminente "reforma" . Os homens de teatro protestaram
justamente contra o moralismo daqueles que , não podendo mudar a realidade,
investiam contra suas representações : "O que chamamos documento, outros cha-
mam mau exemplo" , devia dizer de modo lapidar o comediante Nicolo Barbieri em
1629; e acrescentava: "A autoridade encobre os defeitos , ou lhes muda o nome" 19.
O próprio fato de que os comediantes pudessem dizer tais coisas mostra que no
tempo de Barbieri o vento tinha mudado . Mas em seu início a nova severidade
eclesiástica tinha sido um fenômeno nada superficial. Antes de tomar como alvo as
representações teatrais , atacara também os ritos sagrados no intuito de depurá-los
e eliminar deles qualquer elemento teatral que pudessem ter.
A luta contra a teatralidade sacra comportou, por exemplo, uma profunda
modificação das procissões, enrijecidas em uma exibição de papéis e dignidades do-
minantemente eclesiástica. A cronologia da supressão de festas como a do episcopello 20
acompanha o estabelecimento dos novos modelos tridentinos; e essa que foi saudada
apologeticamente como "a salutar influência do Concílio de Trento" 21 modificou cer-
tamente em profundidade a relação entre ritualismo eclesiástico e tradições folclóricas.
É verdade que, no âmbito das missões, recorreu-se abundantemente ao teatro para
os enormes empreendimentos de aculturação que se abriam dentro e fora do mundo
cristão, dentro e fora da Europa. Os relatórios dos religiosos enviados às Índias ocidentais
e orientais - mas sobretudo nas ocidentais, entre as populações americanas - meneio-
18. Peter Burke, Popular Culture in Early Modem Europe, London, 1978, trad. it. Cultura Popolare nell'Europa Moderna,
Milano, 1980, p. 204.
19. A citação foi tirada do prólogo do lnavertito (cf. Ferruccio Marotti e Giovanna Romei, La Commedia dell'Arte
e la Società Barocca. La Professione dei Teatro, Roma, 1994, pp. 568-569).
20. Trata-se de uma antiga festa medieval, de caráter profano e licencioso, que se realizava em datas religiosas. O
bobo da aldeia (ou o menino mais ingênuo) era paramentado como um padre ridículo (o episcopello) e levado
em procissão até o lugar onde seria realizada uma missa blasfema. O episcopellc rezava as partes da missa,
parodiando o texto verdadeiro. Na consagração da hóstia, o episcopellc era obrigado a comer excrementos e a
beber urina, em meio às risadas dos presentes (N. do T.).
21. M. C. Jacobelli, ll "Risus Paschalis" e il Fondamento Teolcgico dei Piacere, Brescia, 1990, p. 35.
A Confissão
355
nam O uso ba st ante frequente de representações teatrais de temas sagrados, às quais era
confiada a tarefa de colonizar o imaginário dos mundos n ão cristãos 22 • Voltaremos a
essa contradição latente decorrente da diferença de objetivos e de meios entre métodos
inquisitoriais e missões . Mas, entretanto, deve-se notar que o teatro missionário era um
gênero didático, solene e severo - pelo que se pode inferir a partir das descrições dos
missionários - que tinha bem pouco em comum com a teatralidade efervescente das
representações sacras. Nessas últimas, a invenção dramática, os elementos cômicos, a
inversão de papéis, a irrupção da vida cotidiana em todos os seus aspectos desencadea-
vam motivos de escândalo e de perplexidade nos novos titulares do poder eclesiástico,
bem decididos que estavam a depurar e castigar os costumes.
O governo da festa implicava o governo de toda a vida social: não à toa, os con-
selheiros de Borromeo encaminhavam-lhe memoriais "para a vida honesta de Milão"
que miravam a propostas de novas regulamentações dos tempos e espaços públicos:
estalagens e prostíbulos, procissões e modo de comportar-se na igreja 23 • Os éditos
mencionavam regras de "vida política e cristã" , ou seja, da disciplina das manifestações
sociais, assunto sobre o qual as ideias dos bispos reformadores deviam levar em conta
os poderes estatais e as exigências das classes dominantes. Nos momentos mais ásperos
do confronto, tem-se quase a impressão de assistir a uma renovada tentativa de realizar
na terra uma sociedade cristã ideal - uma sociedade imobilizada por uma série fechada
de regras, certamente bastante distante das conturbações do início do século XVI, mas
sempre filha dos mesmos impulsos religiosos. Projetava-se um modelo de convivência
caracterizado por uma nítida divisão entre sagrado e profano, com uma hierarquia moral
dominada pelas cores da penitência e pelos valores do decoro e da severidade. Por isso,
o espetáculo - junto com o baile, o jogo, as diversões caracterizadas pela devassidão
e pela licenciosidade sexual - era visto como uma prática social perigosa, passível de
regulamentação. Sobre o teatro incidia uma antiga proibição: como mostra o tratado
de Onofrio Panvinio sobre os ludi e sobre as representações teatrais da Roma antiga,
redigido por volta de 1564 embora publicado mais tarde, iniciava-se então, na cultura
eclesiástica e romana, uma vigorosa retomada de uma antiga ideia da ligação entre teatro
e paganismo (que tinha sido expressa por Isidoro de Sevilha a partir da aproximação
entre "circense" e a feiticeira Circe) 24 • Carlo Borromeo manifestou-se obstinadamente
22. Richard Trexler, "We Think, They Act. Clerical Readings on Missionary Theatre in 16th Century Mexico", em
Understanding Popular Culture: Europe from the Middle Ages to the Nineteenth Century, org. de S. Kaplan, Berlin,
1984, pp. 189-227, reeditado em Trexler, Church and Community 1200-1600. Studies in the History of Florence and
New Spain, Roma, 1987, pp. 577-613.
23. Um memorial anônimo com esse título, atribuído a Niccolà Ormaneto, é citado por Angelo Turchini, "11 Go-
verno della Festa nella Milano Spagnola di Cario Borromeo", em La Scena della Gloria. Drammaturgia e Spettacolo
a Milano in Età Spagnola, org. de Annamaria Cascetta e Roberta Carpani, Milano, 1995, pp. 509-544; em part.
p. 520.
24. Sobre as vicissitudes do texto de Panvinio, cf. o recente ensaio de Silvia Tomasi Yelli, "Gli Antiguari intorno
ai Circo Romano. Riscoperta di una Tipologia Monumentale Antica", Anna!i della Scuola Norma/e Superiore di
Pisa, Letras e Filosofia, s. m, XX, 1990, pp. 61-168; em part. PP· 139-140.
contra a ameaça de sobrevivências pagãs ocultas nas festas e no teatro. Mais geralmente ,
a hostilidade em relação ao teatro era muito mais forte quanto mais contagiosa e peri-
gosa parecia a representação em relação à realidade. De resto , a hostilidade em relação
às representações, ou pelo menos a tendência a limitar seu âmbito e a submetê-las a
funções educativas, caracteriza amplamente as orientações do episcopado reformador
italiano da época, como se vê , em particular, nas discussões sobre a pintura ou naquelas
sobre as características e os objetivos da oratória sacra.
Quanto ao teatro , tratava-se de submetê-lo no sentido de fazer dele um instru-
mento de comunicação e de propaganda dos valores aprovados , purificando-o de todos
os germes de valores e modos de viver e de pensar considerados licenciosos, errados ou
indecentes: daí a proibição de misturar sagrado e profano, alto e baixo. Como decor-
rência, discussões , protestos, memoriais de reformas; mas também um florescimento
de propostas positivas 25 • Com o teatro mirava-se um momento essencial da festa: ora,
justamente o tempo festivo e sua relação com o tempo ordinário tornaram-se o centro
de modelos e propostas que tinham como alvo a orientação da vida do cristão em seu
conjunto. Tratava-se de substituir uma concepção do tempo de tipo cíclico, ligado aos
ritmos da natureza, por um sentido linear e severo do uso do tempo , em relação a uma
ideia da vida como peregrinação e aperfeiçoamento moral progressivo. Juntamente com
o teatro em sentido estrito, foram objeto de cuidadosa regulamentação - não só no
mundo católico - toda uma série de comportamentos coletivos mais ou menos ligados
à festa : o baile, em particular, objeto de repetidos ataques e de uma polêmica jamais
interrompida por parte dos eclesiásticos 26 , mas também a celebração da abundância de
alimentos em um mundo de penúria, os rituais festivos do cortejo, os ritos de passa-
gem. Todas essas coisas eram então vistas com desconfiança pelos reformadores como
oportunidades de devassidão e de licenciosidade sexual. No mundo católico italiano,
a época dominada pelo Concílio de Trento é a época em que os sinais do conflito de
valores parecem mais evidentes. Mas a história do conflito entre a nova Quaresma e
os antigos carnavais ainda não está plenamente esclarecida, não obstante os muitos
estudos que imergiram a antiga imagem de Francesco De Sanctis nas fontes da época.
Como em todas as batalhas, o desenho das estratégias gerais que podem ser feitas
de cima e de longe poderia parecer claro: de um lado, o "mundo popular" , os "com-
portamentos coletivos" 27 , de outro uma cultura oficial dominada por tons sombrios
e severos de um cristianismo reformado, o de João Calvino ou de Carlo Borromeo.
2.5. A história do teatro popular na Itália, desde a época de Alessandro d'Ancona encontra-se no centro dos estudos
historicos. Além da obra de Paolo Toschi, Le Origini de! Teatro Italiano, Torino, 1955 (em part. pp. 85 e ss.),
para a commedia dell'arte remete-se aos estudos de Fernando Taviani, em particular La Commedia dell'Arte e la
Società Barocca. La Fascinazione de! Teatro, Roma, 1969.
26. Cf. Alessandro Arcangeli, "L'Opuscolo controla Danza Attribuito a Cario Borromeo", Quadrit1ium, n. s., 1,
1990, pp. 35-76. Mas cf. principalmente, do próprio Arcangeli, a vasta pesquisa reunida na tese de doutorado,
ainda inédita, La Polemica sulla Danza, Secc. XN-XVII, Università di Pisa, 1993.
27. Cf. La mort des pays de Cocagne. Comportements collectifs de la Renaissance à l'âge classique, org. de Jean Delumeau,
Paris, 1976; e Burke, Cultura Popolare nell'Europa Moderna, op. cit.
A Confissão
357
28. Benedetto Croce, I Teatri di Napoli dal Rinascimento alla Fine del Secolo Decimottavo, Bari, 1916; cito da edição
org. Por G . Galasso, Milano, 1992, pp. 43-44. E cf. Taviani, La Commedia dell'Arte , op. cit.
29. "Quae fideles ad pietatem excitare debent, pro nostra corruptione, ut in his solet, ad cachinnum et contemptum
commoveant" (Constitutiones seu Decreta Provincialis Synodi Neapolitanae, Napoli, ex Officina Salviana, 1580,
p. 8; retomo a citação de Croce, I Teatri di Napoli, p. 40).
30. Tipo de servo astuto, grosseiro e bufão da Commedia dell'Arte (N. do T.).
31. O texto do anúncio é reportado por Gentile Pagani, "Dei Teatro in Milano avanti il 1598", extrato de Teatro
llustrato, Milano, 1884, pp. 31-32 do extrato.
nomeado por ele. Que se alguma coisa nos referidos cenários houvesse de imodesto
ele mesmo, o santo, de próprio punho anotava" 32 • De fato , uma ordem do governador'
traz a informação de que Borromeo exercia a censura prévia através de Alessandro Sauli,
preposto de San Barnaba, assistido por um delegado do poder político: o objetivo era,
como declarava o texto do decreto, eliminar "as coisas que pervertem o bom viver e
corrompem os bons costumes" . A relação das normas em que tal exigência obteve uma
descrição analítica foi redigida por volta de 157 2-157 3 pelos titulares do setor de censura,
que se tornaram três: os comediantes deviam , em primeiro lugar, evitar "usar de modo
algum trajes pertinentes a sacerdotes ou a outras pessoas sagradas, nem paramentos de
igreja de espécie alguma, nem tampouco qualquer sorte de traje que tenha semelhança
com as supracitadas" ; nem se devia "falar de modo algum da sagrada escritura, e de
temas nela contidos" ; e não devia ser dita nenhuma palavra que pudesse dar ensejo a
"interpretação sinistra acerca das coisas da santa Fé católica ou que pudessem induzir
qualquer superstição a simples ouvintes, nem encantamentos nem outras feitiçarias".
Também não se devia tratar de amor de maneira lasciva ou pouco "honesta"; e, ao lado
das matérias, os lugares e os tempos: proibidos os dias festivos e as horas de missas, eram
explicitamente proibidas as representações "nos locais habitados por judeus", devido
à proibição geral de "conversação entre cristãos e judeus" 33 • Critérios extremamente
severos, portanto: o princípio a que obedeciam era o mesmo que inspirara a censura
imposta após o Concílio de Trento aos textos literários, sobretudo aos mais conhecidos
e divulgados. O Decamerão de Boccaccio, por exemplo, tinha sido expurgado de modo a
eliminar qualquer referência crítica a eclesiásticos: os padres no centro de acontecimentos
J amorosos tinham sido substituídos por mestres-escolas 34 • As preocupações de Borromeo
atingiram os tons mais ásperos logo após a terrível peste de 1576: em seu "memorial"
aos milaneses, o arcebispo apontou justamente a devoção aos espetáculos teatrais como
uma das causas da ira divina. Não se tratou apenas de pregações e de éditos: a comissão
criada para controlar os textos teatrais e para depurar preventivamente os espetáculos
do que tinham de licencioso e de indecente parece ter trabalhado intensamente a fim
de garantir seriedade, correção formal e respeito à doutrina ortodoxa.
A voz de Borromeo não permaneceu isolada: a hostilidade em relação ao mundo
imaginário que o teatro era capaz de criar e que se prestava a fantasias subversivas foi
então um sentimento disseminado para além das fronteiras do mundo católico. Para
ficar no âmbito da Igreja italiana, uma tentativa semelhante de chegar à proibição das
comédias foi feita em Bolonha por Gabriele Paleotti que, já em setembro de 1567, .
escreveu a Pio V, pedindo para "acabar com elas" 35 • Essas "loucuras" lhe pareciam pre-
A Confissão
359
judiciais à moral, representadas por pessoas de má vida, nos dias de festa que deviam
ser dedicados a Deus. E não era possível nem sequer submeter à censura preventiva o
texto das comédias, tendo em vista o hábito dos comediantes de recitar "de improvi-
so". A proibição foi obtida, mas resultou impossível de ser respeitada, não obstante ser
Bolonha - como notou Cario Borromeo, que acompanhava com atenção as tentativas
de Paleotti - uma cidade do "estado eclesiástico". A sociedade ignorava as reprovações ,
as exortações, os sermões. O teatro levava sua ameaça até aos povoados mais remotos.
Em 1574, em Aspra , um pequeno vilarejo da Sabina, foi representada no Carnaval uma
comédia que reunia todas as características do teatro combatido pelos reformadores:
era uma história de necromantes e de divindades pagãs, de eremitas e de ninfas. O
fato ocorreu a pouca distância de Roma; mas não foi o Santo Ofício a ocupar-se dele.
Houve intervenção do cardeal Giovanni Ricci, bispo da Sabina. Ricci, homem "mui
amável e prático das coisas mundanas", como o julgava um contemporâneo 36 , n ão era
certamente um reformador nem nutria simpatia pela Inquisição (como núncio papal
em Portugal, tivera de travar uma dura luta contra os métodos dos inquisidores por-
tugueses). Advertido por uma denúncia anônima do que tinha acontecido, ordenou
ao podestade de proceder à prisão. E o processo foi conduzido não pelo Santo Ofício,
mas pelo tribunal do Governador3 7• Portanto, também os tribunais laicos podiam se
ocupar de teatro. Sobretudo ocupavam-se dele os bispos, como momento normal de
seu governo da sociedade. Há outros exemplos. Um édito promulgado pelo arcebispo
de Florença Alessandro de' Médici em 21 de maio de 1581 proibiu a representação
de "comédias, tragédias, farsas , tragicomédias ou outros espetáculos tanto de temas
sagrados quanto profanos" nos oratórios das confrarias; fora dos espaços sagrados, o
édito permitia a representação de "farsas e representações espirituais e edificantes",
mas desde que antes fossem "vistas e aprovadas por S. S. Reverendíssima ou por seu
vigário-geral" 38 . O vigário em questão, cujo nome figurava no final do édito, era oca-
valeiro de Santo Stefano Sebastiano Médici: seu nome já é um indício da relação que se
criara em Florenca entre autoridades diocesanas e inquisicão. Autor de uma edicão dos
' ' '
estatutos sinodais florentinos de 1573, comentados à luz das normas canônicas, Médici
também publicou um importante tratado sobre as heresias, escrito com a pretensão
de oferecer um manual aos guardiães da ortodoxia 39 • Mas, apesar de sua indubitável
preparação, suas relações com o inquisidor no âmbito da censura não foram muito
fáceis . Justamente na época do édito, verificara-se o caso de uma "obra não relativa a
36. Paolo Tiepolo, embaixador veneziano, em relatório de 1569; cf. Hubert Jedin, "Kardinal Giovanni Ricci ( 1497-
-1574)", em Misce!lanea Pio Paschini, II, Roma, 1949, pp. 269-348 (agora em Idem, Kirche des Glaubens Kirche der
Geschichte, op. cit. , vol. 1, pp. 207-269).
37. O caso é narrado por Thomas V. e Elizabeth S. Cohen, Words and Deeds in Renaissance Rome. Triais before Papal
Magistrates, Toronto/Buffalo/London, 1993, PP· 243-277.
38. O édito foi reproduzido por M. Plaisance, "Littérature et censure à Florence à la fin du XVI• siecle: le retour
du censuré'', em Le pouvoir et la plume. lncitation, contrôle et répression dans l'ltalie du XVJE siecle, Paris, 1981 ,
pp. 233-252; em part. pp. 249-250.
39 · Sebas tº1anus Medºices, Summa Omnium Haeresum et Catalogus Schismaticorum, Firenze, officina Sermartelliana ' 1581 ·
heresias", aprovada por Médici, mas proibida pelo inquisidor: sinal evidente do desejo
da Inquisição de superar os limites da luta contra a heresia para intervir em matérias
de moral e costumes 40 •
A pouca distância de tempo e de lugar do édito florentino , tinha havido outro édito
dedicado ao teatro: mas dessa vez tratava,se de um ato emitido pela própria Inquisição.
Publicado em Pisa, em 20 de julho de 1579, era dedicado aos atores da commedia dell'arte
e proibia "todos os comediantes" de "representarem qualquer coisa, fosse escritura do
velho testamento ou do novo, fosse escritura sagrada ou santa, fosse assunto eclesiástico
ou religioso [... ] nem tampouco representar ou escrever peça sobre necromancia" 41 • O
édito concluía um caso processual. Tinha chegado a Pisa a companhia de um comediante
veneziano, Giovanni Scarpetta, que divulgara um manifesto impresso com o programa
de suas comédias. Os títulos eram ll Figliol Prodigo [O Filho Pródigo], La Commedia degli
Spiriti [A Comédia dos Espíritos], ll Negromante [O Necromante]. Isto foi o suficiente para
que Scarpetta fosse chamado à presença do inquisidor para justificar,se. O ator teve de
explicar que nessas comédias não se cometia "vilipêndio nem de exorcismos nem de coisas
da santa igreja" ; aliás , ciente dos riscos que corria em tempos desfavoráveis ao teatro,
Scarpetta tentou engabelar o inquisidor pisano com a história de uma autorização que
lhe teria sido concedida justamente por Carlo Borromeo 42 • Mas esse argumento também
se revelou uma defesa frágil diante da clara vontade do tribunal inquisitorial de ocupar,se
diretamente de questões desse tipo. Portanto, se à época o teatro suscitava as suspeitas e
a vontade de censura das autoridades eclesiásticas em geral, o édito pisano prova que a
Inquisição estava preparada para tornar seu esse terreno. Na substituição da autoridade
que se ocupava da questão, havia também um deslocamento dos critérios de interven,
ção: não se tratava mais de reformar a vida social, conferindo,lhe um estatuto severo e
abolindo o riso e a festa; a questão referia,se ao controle de uma vontade deliberada de
atacar a Sagrada Escritura e a autoridade da Igreja. Com esse deslocamento na ótica da
autoridade, dava,se a passagem de uma obra de conversão religiosa a uma intervenção
burocrática e policial, mais imediatamente eficaz quanto mais destinada a modificar os
comportamentos sem agir sobre as convicções profundas.
2. A BLASFÊMIA
A história da blasfêmia constitui um caso exemplar de terra de ninguém, onde poderes
eclesiásticos e laicos sentiram,se no dever de interferir. Como vimos, os não confessados
e não comungados eram frequentemente blasfemos habituais. A intervenção do bispo
A Confissão
361
43. Cf. Ashley Montagu, The Anatomy of Swearing, New York/London, 1967.
44. Cf. E. Belmas, "La montée des blasphêmes à l'âge moderne du Moyen Age au XVII' siêcle", em Menta!ités, II,
lnjures et blasphêmes, org. de Jean Delumeau, Paris, 1989, pp. 13-33.
45. Pablo Perez Garcia, La Comparsa de los Malhechores. Valencia 1479-1518, Valência, 1990, pp. 96-100.
46. Cf. Ricardo Garcia Carcel, He-rejía y Sociedad en el Sigla XVI. La lnquisición en Valencia, 1530-1609, Barcelona,
1980, e Jean-Pierre Dedieu, "El Modelo Religioso; las Disciplinas dei Lenguaje Y de la Acción", em lnquisición
Espatiola: Poder Político y Control Social, Barcelona, 1981, PP· 208-230.
47. O caso é citado por Maureen Flynn, "Blasphemy and the Play of Anger in Sixteenth-century Spain", Past and
Present, n. 149, nov. 1995, pp. 29-56; em part. P· 32.
48. "Iuramentis et blasphemiis in Deum horrendis passim utuntur" (De Italia, em Claudii Ptolomaei Geographicae
Enarrationis Libri Octo, ed. M. Villanovanus, Lugduni, C. Trechsel, 1535).
49. Boneventure d'Argonne, citado por P. Prodi (cf. mais adiante, nota 58), p. 362.
centenas de blasfêmias "porque tem esse costume toda vez que joga"; "blasfema toda
vez que perde, e - acrescentava o acusador, Filippo Bagnara - perde quase sempre". A
essa altura o acusador considerou conveniente declarar que ele não jogava baralho de
bom grado por não querer "ter predisposição de ouvir blasfemarem" 50 .
Se nos afastamos do terreno da prática efetiva da blasfêmia para o da percepção
que dela tiveram as autoridades e o das intervenções normativas e punitivas, encontramos
um panorama muito sobrecarregado e confuso. Nos estados italianos tinha se iniciado
muito cedo uma caça à blasfêmia que empenhara poderes eclesiásticos e tribunais laicos.
Os estatutos comunais acolheram solicitamente as disposições papais que previam penas
específicas, bem diferenciadas (uma coisa era blasfemar contra Deus e Nossa Senhora,
outra contra os santos). E as penas podiam ser muito duras (até o corte da língua)5 1•
Os éditos que ameaçavam os blasfemadores com o pelourinho e as histórias de pessoas
punidas com a língua "pregada" pontuam as crônicas das cidades italianas. A repetência
delas e o agravamento contínuo das penas deixam entrever a dificuldade de resolver o
problema por essa via. Ausentes as autoridades eclesiásticas ordinárias, muito pouco
eficazes as civis, o recurso à Inquisição impôs-se como um resultado natural. De sua
parte, a Inquisição acampara desde o início no terreno da blasfêmia com ambições
hegemônicas. Mas durante muito tempo, mais se tratara de espelhar na heresia algo
da odiosidade da blasfêmia do que incluir a blasfêmia num âmbito da heresia. Em
suma, a heresia era apontada como caso específico de blasfêmia, para sustentar sua
punibilidade: como escrevera são Tomás, toda heresia tem como ingrediente a blasfê-
mia, dado que tira de Deus algo que lhe pertence 52 • Diferente e oposto é o movimento
com que, a partir do final do século XIV em diante, o tribunal da Inquisição recorta no
continente da blasfêmia uma região chamada "blasfêmia herética" e a partir daí avança
pretensões de domínio exclusivo de toda a área. A justificação teórica foi encontrada,
detectando uma categoria de blasfêmias heréticas diferente da categoria da blasfêmia
pura e simples. Não era uma invenção parida pelo desejo de poder dos juízes: a blasfêmia
fazia parte do discurso sobre Deus ou dirigido a Deus - uma parte negativa, irregular,
subalterna. Na blasfêmia, podiam se refugiar os herdeiros derrotados das religiões ou
50. Da denúncia de Filippo Bagnara, reportada por Laura Megna, "Vita Religiosa e Pietà di Popolo in una Co-
munità Rurale Vicentina d'Ancien Régime: Lisiera e Centri Limitrofi nell'Età Moderna", em Lisiera. lmmagini ,
Documenti per la Storia e Cultura di una Comunità Veneta, Vicenza, s.a., pp. 167-211; em part. p. 171. O processo
relativo ao episódio pisano de 1581 encontra-se em AAP, Sant'Uffizio, b. 2, cc. n. n.
51. Os estatutos de Bolonha de 1250, incorporando a norma emanada por Gregorio IX (e. 2, de maled. V, 26: cf. F.
Friedberg, Corpus luris Canonici, II, Leipzig, 1879, col. 826-827) atingiram os blasfemos com a pena da fustigação
pública (cf. L. Frati, Statuti di Bologna dall'Anno 1245 all'Anno 1267, Bologna, 1869, I, p. 301); successivamente
(1288 e 1389) previram penas mais graves, até a amputação da língua para os reincidentes (cf. Raniero Orioli,
"E Nol Porave Fare Dio... Documenti dell'lnquisizione Bolognese", em Atti della Accademia Navonale dei Lincei,
s. VIII, Rendiconti della Classe di Scienze Morali, Storiche e Filologiche, vol. XLIII, fase. 7-12, jul.-dez. 1988, pp. 173-233;
em part. pp. 187-188). Os Estatutos de Rimini também estabeleciam uma pena de 25 liras de Ravenna para quem
blasfemava contra Deus e Nossa Senhora, a metade para quem blasfemava contra os santos: quem não pagava a
multa era ameaçado com o corte da língua (cf. A Falcioni, Bellaria e la Signoria Malatestiana, Rimini, 1992, p. 55).
52. "Omnis haeresis blasphemiam includitur, cum aufert a Deo, quod sibi attribuitur" (Secunda Secundae, qu. 13, par. I).
A Confissão
363
53. "Haec distinctio vera est, et communiter a nostris nunc recepta" (N. Eymericus, Directorium Inquisitorum
[ ... ] cum Commentariis, Francisci Pegnae, Romae, 1587, p. 334). Cf. também, a propósito da jurisprudência
inquisitorial, Quellen zur bomischen Inquisition im 14. Jahrh., org. de Alexander Patschovsky (MGH, Quellen zur
Geistegeschichte, II), Weimar, 1979, p. 272. Idem, p. 268, é o recurso ao decreto pontifício de maledicis que
confia ao bispo o julgamento da blasfêmia.
54. Gabriele Paleotti, "lnstruttione per tutti quelli, che Havranno Licenza de Predicare nelle Ville, et Altri luoghi
delta Diocese di Bologna 1578", em Episcopale Bononiensis Civitatis et diocesis, Bologna, por Alessandro Benacci,
1580, cc. 32v40v; em part. c. 36v.
55. Idem, c. 36r.
56. Idem, ibidem.
57. L. Mercuri e C. Tuzzi, Canti Policiei Italiani 1793-1945, Roma, 1962, I, p. 201.
58. Cf. P. Prodi, II Sacramento de! Potere. Il Giuramento Politico nella Storia Costituzionale dell'Occidente, Bologna, 1992,
p. 384.
59. Nesse sentido orienta-se também a interpretação de Flynn, Blasphemy and the Play of Anger, op. cit.
60. Cf. D. Cantimori, "Au cour religieux du XVI• siecle", em Anna!es ESC, maio-jun. 1960, pp. 556-568 (ora em
Cantimori, Eretici ltaliani dei Cinquecento e altri Scritti, Torino, 1992, pp. 559-560).
61. Luis de Granada, Guía de Pecadores, org. de Matias Martínez Burgos, Madrid, 1942, p. 122.
A Confissão
365
em relação aos campos. A igreja que vinha estendendo sua presença nos campos teve
que enfrentar O problema do comportamento a ser assumido diante do ordenamento
social existente. Era preciso encontrar os argumentos para responder àqueles camponeses
pobres que , segundo Gabriele Paleotti, queixavam-se de serem tratados por Deus como
"filhos ilegítimos" , obrigados que eram "à labuta e ao suor, onde muitos outros neste
mundo têm comodidade e repouso em abundância" . Moralistas e canonistas tiveram
de enfrentar a questão - da qual certamente se falava na confissão - se era lícito ao
camponês ressarcir-se ocultamente pela exagerada exploração de que era vítima 62 • Porém,
muito mais grave para o mundo eclesiástico era outra acusação, que tocava no centro
de uma religião que se tornara um sistema de noções, uma cultura livresca: ser pobre e
trabalhar o dia inteiro - diziam os camponeses - significava ser "desprovido de letras,
de ciências e de condições de dedicar-se aos exercícios sagrados" , de modo a "parecer-
-lhe vedada a via de acesso ao Paraíso" 63 • Quase dois séculos mais tarde , outro bispo ,
o nobre florentino Francesco Maria Ginori, achou por bem republicar as observações
e os conselhos de Paleotti para replicar a discursos desse tipo, que continuavam a ser
difundidos entre "as gentes ignorantes do campo" 64 . As respostas foram encontradas na
oferta dos prêmios do além para quem suportava com paciência as aflições. Mas fez-se
também largo uso das proteções que a Igreja podia oferecer contra granizos e tempes-
tades: "benzer a casa, conservar o ramo santo, a vela benta para certos casos, benzer
o pão, os frutos dos campos, e outras cousas ... "65 • Mas, como o surdo rumor de um
trovão , o protesto das classes populares acompanhava ao fundo os sermões de um clero
que frequentemente não se distinguia da classe dos patrões e quase sempre justificava
a violência e a exploração que praticavam. É um protesto que toma a forma de uma
rebelião a um Deus injusto. "Cristo virará um diabo de tantas chuvas que manda" , disse
Daniele Buiato, um camponês de Casarsa, no verão de 1596: a mulher doente, um boi
doente e as chuvas insistentes que lhe arruinavam a colheita tinham-no convencido de
que Deus tinha deixado o diabo agir livremente, ou melhor, que ele próprio tinha se
tornado um diabo 66 • E a blasfêmia foi frequentemente um protesto contra a injustiça de
um sistema que se apoiava em Deus e em seu clero. Esse Deus que mandava o granizo
sobre as lavouras era injusto, porque depois só os camponeses pagavam com a fome
62. A questão é proposta de modo exemplar na obra de Bernardino Carroli da Romagua: "Se o patrão me obriga
a fazer algo além do trabalho ordinário, ou seja, se no trabalho eu sou sobrecarregado além do que é justo e
honesto, por que não devo, ou não posso reparar às escondidas o dano sofrido, com os bens do patrão, não
podendo ser pago com justiça (por via de razão), considerando que não quero nem posso brigar com o patrão,
para não ser expulso da propriedade?" (Instrutione dei Giovane ben Creato, Ravenna, junto a Girolamo Corelli e
Girolamo Venturi, 1581, p. 199. Cf. sobre Carroli o estudo de Elide Casali, II Villano Dirozzato. Cultura, Società
e Potere nelle Campagne Romagnole della Controriforma, Firenze, 1982).
63. Episcopale Bononiensis Civitatis, c. 36r.
64. Lettera Pastorale e Altri Avvisi Utilissimi per amministrare con friato la parola di Dio alle genti rozze di campagna
nuovamente da tt• m
• luce per uso de' parochi e predicatori della diocesi di Fiesole, Moucke, Firenze, 1770, p. 72.
65. Episcopale Bononiensis Civitatis, c. 39v.
66. Cf. Andrea Del Col, "Streghe e Bestemmiatori nei Processi dell'lnquisizione", em Ciasarsa. San Zuan, Vilasii,
"versuta, org. d e G . Ellero, u· d m
. e, 1995 , pp · 191-206; em part. pp. 192-193.
) provar o crime de heresia no Santo Ofício admitem-se filho contra pai e pai contra
filho , mulher contra marido, marido contra mulher, servo contra patrão, patrão contra
servo" 70 • Também não fica claro o que havia de herético nas blasfêmias desse camponês
modenense. Com certeza, Matteo Giazzotto era um mau cristão; tinha comido um
frango durante o jejum das quatro têmporas; era violento; quando ficava com raiva
dizia à mulher coisas do tipo: "seja maldito esse padre do cão que te confessa e mete a
hóstia em tua boca" (e devia ter seus motivos para implicar com quem, evidentemente,
minava seu domínio sobre a mulher e a família). Mas, se na confissão o padre sabia
o que fazia, o tribunal da Inquisição foi bem além, ouvindo os testemunhos de acu-
sação contra ele da mulher Lucrezia e da filha Camilla. A filha confirmou que o pai
era homem duro e violento: uma tarde batera nela até tirar-lhe sangue do nariz. Ora,
sobre tais testemunhos haveria muito a dizer: evidentemente, o alargar-se do campo
inquisitorial passava através de uma crise profunda do instituto da família. Os maridos
que, a exemplo do costureiro Franceschino de Trieste, surravam as mulheres quando
A C onfissão
367
voltavam da confissão, faziam-no porque estavam cientes do uso que a Inquisição fazia
71
do confessionário • Mas parece mais importante sublinhar, todavia, a dinâmica através
da qual se chegara à denúncia e o modo como fora acolhida. Ora, o aparecimento de
um édito do Inquisidor que dedicava grande espaço à blasfêmia ( 1598) levou a mu-
lher do camponês modenense a dirigir-se ao vigário da Inquisição e a denunciar seu
marido como blasfemo. Até os camponeses sabiam que não se podia blasfemar contra
Deus, aliás sabiam que "comete um grande pecado quem blasfema contra ele" : assim
disse Favilla de Mezzana, camponês pisano, ao inquisidor daquela cidade em 1575.
Mas era difícil explicar que , ao dizer "Deus chifrudo" , como fizera Favilla, acabava-se
na Inquisição e a habitual confissão não bastava 72 • De qualquer modo, _o fato é que o
avanço da Inquisição no terreno da blasfêmia foi rápido e agressivo no final do século
XVI. Por isso, ocorreu também uma rápida mudança nos comportamentos. A mulher
de Matteo Giazzotto explicou ao vigário que seu marido sempre fora um blasfemo, mas
que só então ela decidira denunciá-lo: não falara antes porque o padre dizia do altar
que era preciso confessar os próprios pecados e não os alheios; porém, visto o édito,
compreendera que devia denunciar também os pecados do marido. Era uma mudança
significativa na tradição da confissão individual dos pecados; e era um conflito evidente
entre as advertências do pároco e o édito da Inquisição.
Lucrezia tinha se apresentado diante de frei Leandro de Capugnano, que fazia os
sermões da quaresma em Spezzano. Durante a quaresma fora também publicado o édito
da Inquisição e frei Leandro divulgara-o durante os sermões. Era essa sua obrigação, de
acordo com o édito de Reggio de 20 de outubro de 1598:
Aos Reverendos confessores, que tenham todos uma cópia desses éditos, e que sejam diligentes
ao interrogar os penitentes de acordo com o expediente que julgarem, e encontrando-os culpados
71. o caso, documentado na b. 48 do fundo veneziano do Santo Ofício, é mencionado por John Martin, "Out
of the Shadow: Heretical and Catholic Women in Renaissance Venice", ]oumal of Family History, primavera de
1985, pp. 21-33, em part. p. 25, que vê o episódio como prova da esfera de liberdade que a confissão representa
para as mulheres.
72. V. cap. VIII, nota 1.
73. Piozza-Donati, "Procês contre Matteo Giazzotto", op. cit., P· 932.
de terem cometido algum desses delitos ou de não terem denunciado os delinquentes não deverão
absolvê-los se antes não prestarem contas ao Santo Ofício tão logo seja possível.
De fato , sabe-se pelo processo que o pároco, dom Girolamo, aconselhara a mu-
lher a denunciar o marido (e, coisa que ela não diz, negara-lhe a absolvição enquanto
não fizesse a denúncia) . O pregador frei Leandro acolheu a denúncia de Lucrezia para
poupá-la de uma viagem até Módena - motivação "econômica" que encobre uma trans-
formação do papel do pregador de penitência. De fato , desse modo o pregador torna-se
um inquisidor e a quaresma - época tradicional do perdão - torna-se a época da suspeita
e da acusação. Entretanto , resta o fato de que , no confronto entre as penas do tribunal
laico e a penitência imposta pelo eclesiástico, Matteo Giazzotto saíra ganhando.
Outro crime, que permite medir a longa duração do senso mediterrâneo da honra
e da vergonha e seu sobrepor-se com os progressos da alfabetização no século XVI , era 0
do insulto ou do "libelo famoso" 74 : é provável que houvesse alguma relação entre a defesa
da honra dos homens e a da honra de Deus. Mas é certo, contudo, que a questão da
blasfêmia foi uma questão bem diferente e constituiu um problema específico de grande
importância do ponto de vista dos tribunais. Em Veneza, nas três primeiras décadas do
século XVI , o Conselho dos Dez chegou a se manifestar oito vezes sobre a questão e em
Milão os repetidos decretos documentam a mesma vontade incessante de castigar os
crimes de blasfêmia 75 • Encontramos a definição de são Tomás repetida em termos apa-
rentemente tradicionais, mas na realidade novos, como é nova a pretensão de submeter
ao inquisidor os crimes de língua: "Diz-se blasfêmia herética aquela que dá a Deus algum
atributo que não lhe convém, ou tira-lhe algo que a ele pertence, como 'Deus traidor',
'na presença de Deus' etc." 76 • Ora, visto que as blasfêmias geralmente ofendiam atributos
divinos , não há como ignorar o vasto âmbito de atividades que se abria ao tribunal da
Inquisição. E o exemplo de blasfêmia citado dá uma ideia da arbitrariedade dos crité-
74. O ensaio de Peter Burke, "Insult and Blasphemy in Early Modem ltaly" (em Idem, The Historical Anthropology
of Early Modem ltaly. Essays on Perception and Communication, Cambridge, 1987, cap. VIII; trad. it. Scene di Vita
Quotidiana nell'ltalia Moderna, Bari 1988, pp. 118-138) trata predominantemente dos processos do Tribunal do
Governador de Roma. Das relações entre esse crime e os progressos da alfabetização, com o correspondente
aumento de um "sentimento de si" no mundo popular, trata Claudia Evangelisti ("Libelli Famosi: Processi
per Scritte lnfamanti nella Bologna del '500", Annali della Fondazione Einaudi , 26, 1992, pp. 181-239).
75. Sobre Veneza, é fundamental a bela pesquisa de Gaetano Cozzi, "Religione, Moralità e Giustizia a Venezia:
Vicende della Magistratura degli Esecutori controla Bestemmia", publicada como apostila de um curso uni-
versitário em Pádua (1968) e agora reeditada com uma nova introdução e uma atualização bibliográfica em
Ateneo Veneto, CLXXVIII, 1991, pp. 7-95. Cf. também R. Derosas, "Moralità e Giustizia a Venezia nel'S00-'600:
Gli Esecutori contro la Bestemmia", em Stato, Società e Giustizja nella Repubblica Veneta (Secc. XV-XVIII) , org.
de Gaetano Cozzi, Roma, 1980, pp. 433-528. Sobre o aumento dos decretos governamentais em Milão, cf. F.
Chabod, Lo Stato e la Vita Religiosa a Milano, op. cit. , p. 268 nota.
76. "Blasphemia haereticalis est qua vel aliquid Deo tribuitur quod illi non convenit, vel aliquid ah eo aufertur,
quod convenit, ut 'Dio traditore', 'Al dispetto di Dio' etc." (De casibus reserva tis Eminentiss. et Reverendiss. D. D.
lacobo tit. S. Mariae in Via SRE Presb · Card· Boncompagno, Bononiae,
. typ1s . lo. Antonii Sass1. 1mpress.
. arehiep ·• s.
a., p. 4).
A C unfissão
369
77. Cf. O . Christin, "L'iconoclaste et le blasphémateur au début du XW siecle", em Mentalités , II, 1989, pp. 35-47.
78. Cf. Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit. , pp. 17 e 18. Sobre as formas de Júlio lll cf. o verbete Blasphemia, em Lucio
Ferraris, Prompta Bibliotheca Canonica, Jurídica, Moralis , Theologica ... , Venetiis, apud G . Storti, 1782, t. 2, p. 2.
79. Decreto de 3 abril de 1585 , publicado por Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit. , p. 40.
esses que se tem a prova do emaranhado de normas que oneravam a matéria: as penas
espirituais anunciadas pelos bispos geralmente fazem referência, para ulterior ameaça,
não só às normas eclesiásticas, aos decretos dos concílios, às bulas papais, mas também a
"outras penas impostas pelos decretos e leis imperiais, ducais, ou demais potestades civis"ªº.
Nessa situação registrou-se o avanço da Inquisição. Pena, comentando o manual
de Eymeric, subverteu-lhe a distinção entre blasfêmias heréticas e não heréticas: todo
blasfemo, através de seu comportamento, tornava legítima a suspeita de heresia. Esse
argumento revelava as ambições hegemônicas do Santo Ofício em direção do ilimita-
do território da blasfêmia. Foi uma verdadeira mudança da natureza desse tribunal. E
deve ter se tratado de um fenômeno geral, a julgar pelas repetidas tentativas do Santo
Ofício romano no sentido de diminuir e especializar o trabalho dos comissários locais.
É significativa, a esse respeito, uma manifestação da congregação romana a propósito
de Gênova: uma deliberação de 25 de julho de 1590 estabeleceu que para os crimes
de blasfêmia devia se proceder distinguindo nobres de viles , aplicando aos primeiros
penitências salutares e multas em dinheiro e, aos segundos, a obrigação de exibir-se
diante das portas da catedral com a língua "enganchada" e uma vela acesa na mão. Mas
havia no decreto uma advertência significativa: o inquisidor devia proceder somente
nos casos de blasfêmias heréticas 81 •
Era uma tentativa de retirada: exatamente naqueles anos, a disseminação de con-
frarias especializadas em intervenções contra a blasfêmia - as companhias "do Nome
de Deus" 82 - mostra que se pretendia antes seguir o caminho da persuasão do que o do
tribunal. Mas, enquanto a estratégia antiblasfêmia se complicava e ampliava, não diminuiu
a atuação dos inquisidores, ao contrário. As razões são evidentes: o sistema inquisitorial
era de uma minuciosidade extraordinária na investigação do crime, à diferença dos outros
tribunais. E isso por ter como base a confissão obrigatória e o encaminhamento feito pelo
confessor ao inquisidor. Por exemplo: em Vicenza, em 1640, certo Girolamo Gonzo foi
denunciado porque quem o ouvira blasfemar tinha ido depois se confessar e o pároco
o obrigara a dirigir-se ao inquisidor porque "seria excomungado se não denunciasse" 83 •
Além disso, a estratégia das punições fazia com que, diante da escolha entre tribunais
laicos e tribunal inquisitorial, as pessoas preferissem decididamente o último.
80. Ordini et Precetti contra i Violatori delle /este, et contra i biastematori per l'illustrissimo et reverendíssimo cardinale et
vescovo di Piacenza [Paolo Burali], Piacenza, junto a Francesco Conti, 1573, p. 6: "Ordine contra la biastema,
et biastematori". Um apelo às autoridades políticas e civis para condenar os blasfemos pode ser encontrado
nos estatutos de Burali: Constitutiones Editae, et Promulgatae in Synodo Dioecesana Placentina ... 1570, Placentiae,
apud Franciscum Comitem, 1570, p. 16. Testemunhos a esse propósito são mencionadas por Franco Molinari,
ll Card. Teatino Beato Paolo Burali e la Riforma Tridentina a Piacenza (1568-1576), Roma, 1957, p. 328 e nota.
81. Decreto publicado por Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit., p. 47.
82. Cf., por exemplo, os Capitoli, Ordini et lndulgenze della Venerabile Compagnia del Santíssimo Nome di Dio instituita
dai sacr'ordine delli /rati predicatori, per estinguere il pessimo vitio della bestemmia et inutili giuramenti, Urbino, junto
a Bartholomeo et Simone Ragusii fratelli, 1589 (outra ed. 1594).
83. Do depoimento de Filippo Bagnara de 24 março de 1640, citado por Megna, Vita Religiosa e Pietà di Popolo,
op. cit., p. 171.
A Confissão
371
processos formais : "É preciso ir diminuindo o hábito aos poucos, do contrário a coisa
sairia do controle". Portanto, de acusação civil e inquisitorial, a blasfêmia começava a
tornar-se matéria de confissão (ainda que ministrada por esse confessor especial que
era o vigário da Inquisição); tanto mais que o vigário, prevendo "a grande afluência de
pessoas que viriam em busca de absolvição" , solicitava a possibilidade de "conferir tal
autoridade aos párocos de minha Congregação nos casos necessários , para aliviar-me
de tanto fastio" . A afirmação do poder inquisitorial nesse terreno resolvia-se, portanto,
em um fastio suplementar de tipo burocrático: poderes delegados , correspondências
entre os vicariatos e as autoridades centrais. Transformar os costumes, "reformar" de
modo cristão os comportamentos impunha-se como objetivo à estrutura eclesiástica:
mas a blasfêmia mantinha-se profundamente arraigada. Quanto muito, a dureza das
punições dos tribunais laicos obteve o efeito de tornar desejada a justiça eclesiástica,
inquisitorial ou ordinária. A blasfêmia não herética era considerada de foro misto
pelos próprios inquisidores 88 • Mas a arbitrariedade e o caráter efêmero dos limites
entre os vários tipos de blasfêmia deixava ampla margem às controvérsias: segundo os
tribunais laicos, por outro lado, os réus acusados de blasfêmias heréticas pertenciam à
inquisição somente até o momento da abjuração e depois deviam passar às suas mãos
para receberem penas adequadas 89 •
O édito da Inquisição de Módena em matéria de blasfêmia previa um limite
de doze dias no decorrer dos quais era necessário denunciar os casos de que se tivesse
conhecimento. Mas como observá-lo quando se vivia em um ambiente onde todos
blasfemavam cotidianamente? Em 1643, diante de Ludovico Cavedoni, vigário em
Castelvetro, apresentou-se um soldado forasteiro para confessar-se; mas , antes da confis-
são, no preâmbulo dedicado à verificação da existência de eventuais excomunhões por
razões heréticas, reconheceu ter ouvido "muitos outros soldados amigos, mas de nações
diferentes, blasfemarem nos meses passados muitas vezes de modo herético". Não os
denunciara "porque os blasfemos eram amigos, e também por lhe parecer muito difícil
obedecer ao édito entre soldados, que labutam juntos e estão acostumados a ouvir todos
os dias semelhantes blasfêmias heréticas, sendo uma empresa muito árdua denunciar a
todos"; e por isso o padre, que estava evidentemente de acordo com as considerações
do soldado, requeria a faculdade de absolver da excomunhão todos aqueles que se
encontravam em condições semelhantes 90 .
No terreno dos modelos elaborados pelos teólogos, quem folheia a literatura para
confessores e para inquisidores depara-se continuamente com a tentativa de definir os
limites entre a blasfêmia herética e a não herética. Algumas tentativas de regulamen-
tação ocorreram com os manuais elaborados para os confessores e para os consultores
do Santo Ofício no século XVII: nessas sumas destinadas a ordenar a consciência com
88. Cf. Tedeschi, Th.e Prosecution of Heresy, op. cit., p. 98, que remete a C. Carena, Tractatus de Officio Sanctissimae
lnquisitionis, Bologna, 1668, p. 123.
89. Cf. Tedeschi, Th.e Prosecution of Heresy, op. cit., p. 123, nota 46.
90. Carta de 29 de janeiro de 1643, (ASM, lnquisizione, b. 286, cc. n. n).
A Confissão
373
91. lnstructio Catholica pro Confessariis ad Discemendum inter Lepram et Lepram, ex Manuali Qualificatorum Sanctissimae
Inquisitionis Desumpta, Perusiae, ex typographia episcopali, apud Angelum Laurentium, 1664, pp. 46-51 ; em
part. p. 47.
92 . No início da série, os epítetos de Deus (santo, pobrezinho) encontram-se flexionados no grau aumentativo de
modo ridículo e pejorativo; o mesmo se dá com a expressão "na presença de" (al conspetto di) e com o nome
de Maria (N. do T).
93. "Sunt omnes, praeter al conspetto, haereticales" (Reverendissimi Patris Francisci Bordoni Parmensis S. T. D.
Collegiati, Sanctae et Universalis lnquisitionis Qualificatoris, Tertii Ordinis Sancti Francisci Ex-Generalis
Manuale Consultorum in Causis S. Officii contra Haereticam pra11itatem refertum, quamplurimis dubiis no11is, et 11e-
teribus resolutis cui accessit discursus. De concursu et examinatione clericorum ad benefitia 11acantia. Opera posthuma,
- J ·quaque abso lu t·1ss1·ma, nunc primum edita • Parmae, sumptibus losephi ab Oleo per Hippolyrum et fratres de
Unue
Rosatis, 1693, par. 70; mas veja-se toda a seção sobre blasfêmia, com interessantes observações sobre a diferença
de critérios entre a Inquisição espanhola e a romana, PP· 341-371).
94. lnstructio Catholica pro Confessariis, op. cit., P· 49.
95 . Local onde se passa a ação do romance Os Malavoglia (N. do T.).
Dizer "ó Deus, não fazeis as coisas justas" , se isso fosse dito como verdade , tratar-se-ia de uma
blasfêmia herética , que deveria ser denunciada ao bispo por quem a ouve dizer dentro de um mês
'
no máximo 96 .
96. Alfonso de' Liguori, Omfessare Diretto per le Con[essioni della Gente di Campagna, Bassano, Remondini, 1773, p. 82.
97. Denúncia apresentada ao Inquisidor de Florença em 1650 "contra Petrum Natan Gallum medicinae profes·
sorem" (ACAF, Misc. S. Uffizio, b. II, n. 170).
98. Remeter-se, a propósito, aos estudos fundamentais de Paolo Grossi; cf., por exemplo, II Dominio e le Cose.
Percezjoni Medievali e Modeme dei Diritti Reali, Milano, 1992.
A Confissão
375
devido à fa~ta d~' sorte no jogo: e nisso , mais do que os camponeses, estavam implicadas
as classes ncas. Yehementer suspecti de heresi" eram, para a Inquisição, todos os que
tinham o costume de blasfemar durante o jogo 99 • E a propósito, ouvindo a variada série
de ofensas a Deus ditas nas mesas de jogo, tem-se a impressão de que o Deus cristão
devesse sofrer o desafio de uma divindade mais antiga, a divindade pagã da fortuna : o
jogador que , nos dados ou nas cartas, tentava a sorte, sentia a necessidade de desafiá-la e
de combatê-la: "a fortuna é mulher" , escrevera Maquiavel, tentando explicar em termos
familiares o caráter prometeico do desafio aos decretos divinos para impor a "virtude"
individual. E algo como um titânico desafio aos céus encontra-se nas blasfêmias dos
jogadores; como nessa que em 1663 levou Alessandro de' Médici, cavaleiro de Santo
Stefano, e muitos outros nobres e ricos senhores florentinos à Inquisição:
Cristo eu te amaldiçoo e não me fazes perder a alma, a luz dos olhos, Cristo eu te amaldiçoo
e não me mandas urna seta, não me quebras o pescoço, Cristo tenho a ti e aos que creem em ti em
meu cu [... ] contra a tua vontade hei de vencer mais urna [... ]1 00 •
A partir disso ocorreu um violento conflito entre o Santo Ofício e um dos mais
poderosos grupos da sociedade do grão-ducado. O mundo dos jogadores de azar sempre
fornecera farta colheita de clientes à Inquisição, desde as origens medievais do ingresso
desse tribunal no mundo da blasfêmia; a novidade documentada por esse processo não
era, portanto, relativa ao crime, mas à fisionomia social dos acusados. A Inquisição
atingia até os nobres e os próprios membros da casa reinante: e isso certamente era
importante para fixar na consciência popular de um país católico o senso de certa
autonomia e imparcialidade do poder eclesiástico.
Por outro lado, a avalanche de denúncias e de processos por blasfêmia não
significava que se estendesse aos acusados - na maioria camponeses, jogadores e pros-
titutas - o rigor de que dera prova o tribunal da fé ao perseguir luteranos, calvinistas,
antitrinitários. Desde o longínquo início da época medieval, quando tinha ingressado
nesse campo, o tribunal da fé, uma vez reconhecida a falta de "pertinácia" herética do
blasfemo, tendia, como se disse, a recuperar "o conceito penitencial subtendido à norma
canônica" e a impor não uma pena mas uma penitência 101 • De fato, o tribunal de foro
externo começava a utilizar meios e condutas próprios do tribunal de foro interno, a
confissão. Esse processo não se limitou ao campo da blasfêmia. Foi na exploração do
bem mais vasto e incerto continente das práticas e das crenças mágicas e feiticeiras que
os dois tribunais tiveram de pôr à prova seus meios de análise e de intervenção.
I
XVII
CRER EM BRUXAS: BISPOS E INQUISIDORES
DIANTE DA "SUPERSTICÃO"
,
Nesse terreno, a Inquisição impôs seu domínio até fazer dele um setor extre,
mamente mais vasto do que os outros de sua competência. Mas sua candidatura para
ocupar,se desses crimes não fora única nem irresistível. Havia, desde muito, a dos
bispos. Como ocorreu com a blasfêmia, o território da "superstição" revelou entre os
séculos XV e XVI sua insólita capacidade de atração. Almejavam a seu controle as novas
levas do episcopado, esses tipos de "inquisidores e mui solertes castigadores" 1 que se
aventuravam à conquista de suas dioceses, prontos para detectar remanescências pagãs
e presenças diabólicas nas práticas folclóricas e, em particular, nas formas da medicina
popular. Mas a questão parece mudar de aspecto na medida em que se avança das visitas
pastorais do século XV àquelas do século XVI.
1. É a definição que um vigário episcopal paduano do século XV, N icolà Grassetto, deu de si mesmo (cf. P. Gios,
L:lnquisitore della Bassa Padovana e dei Colli Euganei 1448-1449, Candiana, 1990).
)78
2. Cf. Peverada, La Visita Pastorale del Vesco110 Francesco Del Legname, op. cit. , p. 254.
3. ACAF, Visite Pastorali. Atti della Visita di Giulio de' Mediei, cc. 1r ss. (ata de 10 de julho de 1514).
4. Discorso del Reverendo M. Francesco de Cattani da Diacceto gentil'huomo et canonico di Firenze et protonotario apostolico
Sopra la superstizzione dell'arte magica, in Fiorenza, tip. Valente Panizzi e Marco Peri, 1567 (da dedicatória ao
cardeal M. Bonelli). A obra conta com a aprovação do inquisidor e do vigário episcopal.
5. A coisa é evidente no que se refere às cortesãs venezianas, mas também o é em outros lugares. Para Veneza,
remete-se aos estudos de Marisa Milani (cf. , por exemplo, os documentos sobre Streghe e Dia11oli nei Processi del S.
Uffizio. Venezja 1554-1592, org. de M. Milani, Padova, 1989, e sua edição do processo contra Valeria Brugnalesco,
de 1587 , em apêndice a Processi del s. Uffizio di Venezia contro Ebrei e Giudaizzanti (1587-1598), org. de Pier Cesare
Ioly Zorattini, vol. VIII, Firenze 1990, pp. 176 e ss.). Entre os papéis da Inquisição florentina, encontra-se uma
súplica à congregação romana de uma certa Fiore di Francesco de Crespoli, de 1593. Relata-se ali que Fiore,
A Confissão
379
originária das montanhas de Pistoia, foi mandada ao exílio depois de um processo realizado em Pistoia "na
corte do bispo" contra diversas meretrizes que tinham sido condenadas como "bruxas e benzedeiras" (Archives
Royales de Bruxelles, Archives ecclésiastiques 19283 ter, I, cc. 54-55; a cópia da carta foi mandada pelo cardeal de
Santa Severina ao inquisidor de Florença em 27 de fevereiro de 1593, para o esclarecimento do caso).
6. Cf. Cleto Corrain e Pier Luigi Zampini, Documenti Etnografici e Folkloristici nei Sinodi Diocesani, Bologna, 1970
(reed. de uma série de artigos publicados em Palestra dei Clero, 1964-1967). Tratou-se, de todo modo, de convites,
não de ordens taxativas; a partir desse ponto de vista, foi feita a distição entre hereges de um lado, feiticeiros e
bruxas do outro (cf. um sínodo de 1645 resumido por Giovanni Maceroni e Anna Maria Tassi, Società Religiosa
e Civile dall'Epoca Postridentina alie Soglie della Rivoluzione Francese nella Diocesi di Rieti, Rieti, 1985, p. 345). A
dificuldade de contextualizar as referências a práticas folclóricas em documentos como os sínodos é provada
também pelas pesquisas de Gabriele De Rosa, Vescovi, Popolo e Magia nel Sud, Napoli, 1971. Sobre os dados
reunidos por Borromeo, a pesquisa apoia-se essencialmente em O. Lurati, Superstizioni Lombarde (e Leventinesi)
dei Tempo di san Cario Borromeo, op. cit.
7. Cf. C. Ginzburg, "L'Inquisitore come Antropologo", em Studi in Onore di Armando Saitta dei suoi Allievi Pisani,
Pisa, 1989, pp. 23-33 . Para os aspectos etnográficos do governo das dioceses Peter Burke ("Le Domande del
Vescovo e la Religione del Popolo", Quademi Storici, XLI, 1979, retomado com modificações no volume do
mesmo autor The HistoricalAnthropology, op. cit., trad. it. Scenedi Vita Cotidiana nell'ltalia Moderna, 1987) mostrou
o caráter decepcionante dos atos de visita e propôs um esquema interpretativo que foi atentamente verificado
por Danilo Baratti por meio de uma investigação em um contexto específico (Lo Sguardo dei Vescovo. Visitatori
e Popolo in una Pieve Svizzera della Diocesi di Como. Agno, XVI-XIX sec., Lugano, 1989).
8. Trata-se do Breve Ricardo de G. M. Giberti, publicado em Verona em 1530; cf. Ginzburg, l Benandanti, op. cit., p. 26.
de tornarem a aparecer entre os séculos XVII e XVIII nos relatórios dos missionários
ou, no século XIX, nas documentações etnográficas. No entanto, é a presença do
clero paroquial que perpassa toda essa história: como confessores, como mediadores
das ordens da Inquisição, como informantes dos missionários ou como autores em
primeira pessoa dos relatórios sobre os "erros populares" da era napoleônica. De fato
somente a estrutura paroquial tinha condições de atingir as populações do campo e da'
montanha, as mais periféricas, aquelas onde as formas arcaicas ou proibidas de ritos
e de mitos religiosos encontravam terreno mais propício à existência e à resistência:
nada podia substituir um mediador como o confessor. Quando, depois de ausências
seculares, os bispos animados pelo espírito da reforma tridentina apareceram pela
primeira vez nos burgos perdidos nas montanhas italianas ou para lá mandaram
seus vigários, as atas registraram as declarações de párocos e confessores a respeito
de como podia ser administrada a matéria da superstição. Em 1566, em Lizzano in
Belvedere, no Apenino bolonhês, o pievano respondeu à pergunta sobre as superstições
declarando que ali havia "algumas mulheres que costumam praticar certos feitiços e
superstições, que prometeram em confissão não praticar mais"; não lhes lembrava os
nomes, mas prometeu entregar uma lista deles "escrita de próprio punho" 9• É evidente,
por esse único caso, como a rede de presenças eclesiásticas no território diocesano e
o instrumento da confissão estavam prontos para entrar em ação, de acordo com as
novas exigências de controle dos comportamentos e de pureza da fé.
Apenas um cuidadoso recenseamento poderá nos dizer quais foram as caracterís-
ticas e os resultados do esforço direto dos bispos nesse terreno. Daremos aqui só dois
exemplos, um justamente célebre de Carlo Borromeo e outro, menos conhecido, do
veronês Girolamo Negri, bispo de Chioggia de 1572 a 157910• Negri, após uma visita
pastoral, na qual colhera abundantes indícios de "práticas supersticiosas" (em particu-
lar no uso dos Agnus Dei, na leitura de livros e nas práticas matrimoniais), promulgou
em 14 de dezembro de 157 3 um édito dirigido a todos os confessores da cidade e da
diocese. De acordo com ele, os confessores eram obrigados a interrogar os penitentes,
fazendo-lhes perguntas como: que orações e devoções faziam, quais leituras, se tinham
Agnus Dei e de que tipo, como tinham se casado, que sinais e rituais (signis et coeremo-
niis) usavam ao fazer o sinal da cruz, ao se ajoelharem, ao dizerem suas preces: e assim
por diante. Livros, Agnus Dei, orações e tudo o que soubesse a superstição devia ser
entregue à Cúria: e com isso o bispo esperava que a erva daninha da superstítio cedesse
lugar às frondes vigorosas da verdadeira religião 11 • Desse momento em diante uma
longa série de mulheres (com uma minoria de homens) apresentou-se ao tribunal do
bispo, contando e fazendo registrar _uma grande quantidade de jaculatórias, de rezas e
9. Cf. M. Fanti, Una Pieve, un Popolo. Le Visite Pastorali nel Temtorio di Lizzano in Belvedere dal 1425 al 1912, Lizzano
in Belvedere, 1981, p. 41.
10. Cf. Dino De Antoni, Vescooi, Popolo e Magia a Chioggia, Sottomarina, 1991, pp. 53 e ss.
11. "Ad Offitium afferant libros, Agnus Deos superstitiosos et orationes prohibitas uc superstitiosa religio invete-
rascat et sancta virescat et florear" (idem, p. 55 nota). De Antoni pergunta-se se offitium deve ser entendido no
sentido de Inquisição; mas os processos examinados por ele são do tribunal episcopal.
A Confissão
381
12. Um exemplo de coleta de materiais desse gênero dos autos de uma Inquisição italiana foi dado pela
tese de uma estudiosa americana elaborada com base nos processos do fundo modenense: Mary O'Neil,
Discerning Superstition: Popular Errors and Orthodox Response in late Sixteenth Century ltaly, Ann Arbor, 1982.
Uma primeira apresentação dos resultados de sua pesquisa, com o titulo "Magicai Healing, Love Magic
and the lnquisition in late sixteenth Century Modena", foi publicada em lnquisition and Society in Early
Modern Europe, org. de S. Haliczer, London, 1987, pp. 88-114. Para a Espanha cf. Maria Helena Sánchez
Ortega, "Sorcery and Eroticism in Love Magic", em Cultural Encounters. The lmpact of the lnquisition in
Spain and New Word, Oxford, 1991, pp. 58-92. Sobre esse tipo de fontes cf. também M. P. Fantini, Orazioni
e Scongiuri tra le Carte dell'lnquisizione Modenese, 1568-1602, Tese de Graduação, Università degli Studi di
Pisa, a.a. 1992-1993 .
13. Domenico Tarilli (1533-1593) manteve um livro paroquial rico em anotações de crônicas (D. Tarilli, Notizie dal
Cinquecento, org. de D. e T. Petrini, Lugano, 1993); cf. p. 161 e as observações da introdução, pp. 70-71, onde
se menciona um indício de práticas semelhantes, com a significativa substituição de São Pedro por Caronte.
14. Cf. David Gentilcore, From Bishop to Witch. The System of the Sacred in Early Modern Terra d'Otranto, Manchester/
New York, 1992.
de terem cometido "toda sorte de luxúria com seus Demônios íncubos" 15 • Borromeo ,
horrorizado com esses crimes - que as mulheres confessaram sob tortura - mostrou-se
imediatamente determinado a condená-las e a levá-las à punição de modo a "fazer disso
exemplar demonstração" 16 • Porém, havia um problema: as mulheres não eram "relapsas".
Por isso, se se procedesse contra elas através da Inquisição, não podiam ser entregues à
corte secular para enviá-las à morte. Em vez disso, o bispo queria recorrer a uma justiça
sumária: e visto que o tribunal episcopal não era atrelado às regras da Inquisição, pensava
poder fazê-lo . Mas Roma , o Santo Ofício, criou um impasse inesperado. Uma carta do
cardeal Rebiba, escrita em nome da congregação cardinalícia, informou a Carlo Borro-
meo que sua carta - justo aquela que propunha a "exemplar demonstração" - fora lida
na presença de Pio V. O papa ouvira, tinha até "louvado merecidamente a diligência e
o zelo" do cardeal milanês. No estilo curial, essa melíflua condescendência prenunciava
uma dura freada. Pio V mandara escrever a Borromeo que "em matéria das bruxas, que
verificados antes os corpos de delitos , depois Vossa Reverendíssima faça justiça" 17 • O antes
e o depois da verificação e da condenação não se encontravam evidentemente em seus
devidos lugares nos processos milaneses.
Mas era sobretudo a ordem de verificar o corpus delicti que barrava o caminho ao
tipo de justiça sonhada por Borromeo: em vez do percurso que ia do crime espiritual à
condenação à morte, propunham-lhe a necessidade de distinguir entre crimes de heresia
e de apostasia, atingidos pelas sentenças do tribunal eclesiástico, e crimes de malefício
verificáveis - venefício, infanticídio, homicídio - contra os quais era possível fazer uso
da justiça secular. A história do caso demonstra que o obstáculo interposto pelo Santo
Ofício romano não foi fácil de contornar. Decepcionado e irritado, Carlo Borromeo
ainda elucubrou em suas cartas aqueles que tinham sido seus projetos:
Depois de terem sido admitidas no Santo Ofício para a abjuração , pensava eu em proceder
como ordinário às penas que de direito mereceriam por crimes tão enormes e tão qualificados , e
também remetê-las à corte secular [... ]1 8•
15. Carta de 9 de março de 1569, em BibliotecaAmbrosiana, Milano, ms P 4 inf. (minutas de São Carlos Borromeo),
f. 64r. É reproduzida por Giuseppe Farinelli e Ermanno Paccagnini, Processo per Stregoneria a Caterina de'Medici
1616-1617, Milano, 1989, p. 86.
16. Carta de 23 de fevereiro de 1569 (op. cit., p. 85).
17. Carta citada por Paolo Portone, "Un Processo di Stregoneria nella Milano di Carlo Borromeo (1569)", a sair
no volume de anais do simpósio Stregoneria e Streghe nell'Europa Moderna, Pisa, 1996. A carta está conservada
no Archivio arcivescovile de Milano, Archi11io Spirituale, dez. XN, vol. 246, f. 13. O grifo é meu.
18. Carta de 9 de março de 1569 (Farinelli e Paccagnini, Processo per Stregonenia, op. cit., p. 86).
A Confissão
383
dos advogados de defesa complicaram novamente a questão, até provocar uma nova
intervenção do Santo Ofício romano: e mais uma vez o órgão supremo da Inquisição
concentrou o exame dos documentos processuais na questão do corpus delicti . No início
de 1570, um Carlo Borromeo ansioso devido às dilações do processo e com medo de
que as bruxas ficassem impunes, viu chegar a resposta que assinalava sua derrota: nem
todos os crimes tinham sido provados.
Suas cartas dão a medida de como os interlocutores falavam línguas diferentes.
Carlo Borromeo não achava necessário perder tempo com a investigação dos crimes. A
condenação, segundo ele, não devia atingir os crimes de homicídio, mas os de apostasia
e de heresia 19 • Era uma evidente divergência das linguagens e das estratégias entre bispo
e Inquisição. Mas era também uma mudança de postura do Santo Ofício em matéria de
bruxaria. A obrigação de apurar a existência do corpus delicti é uma dessas normas que,
no início do século XVII , deviam ser reunidas na fundamental lnstructio pro Formandis
Processibus in Causis Strigum et Maleficiorum de Desiderio Scaglia: um documento que
ratificou conquistas jurídicas decisivas na história da caça às bruxas 20 • Já o modelo
episcopal de solução do problema da bruxaria oferecido por Carlo Borromeo era a
expressão de um fervor devoto de luta contra a presença do demônio no mundo que
seguia uma direção completamente diferente: as do santo arcebispo, como foi dito com
justiça, eram "posições muito rigorosas, seguramente minoritárias na igreja italiana de
seu tempo" 21 •
Carlo Borromeo lidou com bruxas também em Val Mesolcina, resultando em
uma série de processos concluídos com várias condenações à morte: aqui o êxito foi
justificado pelo próprio Borromeo com o argumento de que os tribunais locais teriam
feito muito pior, tendo em vista "o extremo ódio e horror que têm às bruxarias" 22 •
Mas sua ação nesse terreno é emblemática no que se refere a um projeto de reforma
geral das características da sociedade em que a bruxaria era apenas uma e não a mais
importante entre as formas assumidas pelo mal. Uma dureza, uma "sagrada" dureza e
impaciência, era parte essencial do estilo com que os reformadores de todo tipo enfren-
taram então o mundo das superstições e da magia. A "cura das almas" continuava a ser
a preocupação dominante: os sofrimentos dos corpos não importavam, aliás, podiam
ser um instrumento útil para a salvação das almas, as das bruxas e as do povo que as via
19. "[ ...] Conquanto à notificação dos homicídios confessados por elas não tenha sido dada maior importância,
embora nem todos tivessem sido verificados, não foram condenadas por isso, mas como apóstatas e hereges
impenitentes" (idem, p. 88 e nota 116).
20. Em sua obra De Potestate Angelica (Roma, 1651), Giovanni Tommaso Castaldi, o primeiro editor da Instructio
indica que ela consistia de uma collectio de normas já em circulação nas instruções internas; cf. Tedeschi, The
Prosecution of Heresy, op. cit., p. 214, que levanta a mesma hipótese.
21. Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit., P· 52.
22. Carta citada pora A. Borromeo, "L'Opposizione all'Eresia", em II Grande BO'ITomeo tra Storia e Fede, op. cit.,
pp. 225-251, em part. p. 246. Sobre O rigor das magistraturas laicas em matéria de processos por bruxaria nos
cantões católicos, cf. os estatutos de Leventina reportados por Raffaella Laorca, Le tre Valli Stregate, Locamo,
1992, pp. 142 e ss.
morrer. É uma postura que decorre evidentemente do modo como Borromeo recebeu
o relatório sobre a execução das bruxas de Mesolcina. O relatório foi-lhe enviado pelo
jesuíta que tinha "confortado" as moribundas. As mulheres, amarradas em uma mesa
tinham sido jogadas de "ponta cabeça" sobre o monte de lenha. Ateou-se fogo à lenha:'
"viu-se uma labareda horrível, que reduziu todos os seu ossos e membros a cinzas".
Havia uma enorme aglomeração de gente e "todos gritavam Jesus a plenos pulmões, e
ouviam-se ainda elas [as bruxas] gritarem e invocarem o santíssimo nome em meio às
ardentes labaredas, tendo cada uma delas seus rosários no pescoço com a Ave Maria
abençoada" . Portanto, era de se esperar que as almas das mulheres mortas tivessem
se salvado: o jesuíta, que as tinha "reconciliado" quando já se encontravam "estiradas
e amarradas" , exprimia a devota convicção "da saúde de todas" . E Carlo Borromeo, de
Bellinzona, agradeceu ao jesuíta aquele informe que lhe trouxera consolatione e convidou-o
a seguir aquele caminho e "a fazer abundante colheita espiritual dessas sementes" 23 •
Além dos esquemas formais que regulavam as relações entre bispos e inquisidores 24 , é
evidente a diferença de estilo e de interesses entre o fervor religioso de Borromeo e as
cautelosas verificações do Santo Ofício.
Do exame ainda que sumário da questão, vieram à tona dois pontos proble-
máticos. Um diz respeito ao uso da confissão: o filtro mais oportuno que se ofereceu
também aos bispos reformadores para conhecer e intervir com conhecimento de
causa nas zonas "deformadas" da vida social foi a confissão. Mas podia a confissão
ser também o lugar de uma composição secreta do conflito entre a religião oficial e
a "supersticiosa"? O problema dizia respeito não só à estrutura ordinária de governo
da Igreja, mas também à estrutura policial da Inquisição dirigida por Roma. Outro
ponto digno de atenção é a cautela máxima que parece inspirar o comportamento do
Santo Ofício em matéria de bruxaria em comparação com o de Borromeo. E aqui se
coloca a questão das formas e dos tempos do avanço da Inquisição nessas matérias.
Com respeito ao estilo da reforma episcopal da magia, o da Inquisição romana
resultou - em contraste com Cario Borromeo - mais cauto e atento às regras do
direito. A justiça, segundo a advertência que Rebiba mandou a Carlo Borromeo,
devia seguir só depois da verificação do corpus delicti. Nesses anos, análogos sinais
de cautela e de moderação por parte do Santo Ofício se multiplicam. Ora, justa-
mente nesses anos ocorreu o avanço mais decisivo da Inquisição no terreno da luta
contra as "superstições", progressivamente absorvidas no interior da acusação de
bruxaria. Por razões que permanecem misteriosas, o paradigma da bruxaria atingiu
sua plenitude teórica no mesmo momento em que a estratégia inquisitorial mudou
de método e de direção.
23. A carta do jesuíta, de 8 de dezembro de 1583, e a resposta de Cario Borromeo, de 9 de dezembro, foram publicadas
em Atti di s. Carla Riguardanti la Suizzera e i suoi Territori. Documenti Raccolti dalle Visite Pastorali, dalla Corrispondenza
e dalle Testimonianze nei Processi di Canonizzazione, org. de Paolo D'Alessandri, Locamo, 1909, p. 358.
24. Uma sistematização precisa, para os domínios espanhóis na Itália, é fornecida por Agostino Borromeo, "Contributo
alio Studio dell'Inquisizione e dei suoi Rapporti col Potere Episcopale nell'Italia Spagnola del Cinquecento", em
Annuanio deU'lstituto Storico Italiano per l'Età Moderna e Contemporanea, XXIX-X:XX, 1977-1978, pp. 219-276.
A Confissão
385
Devemos nos deter agora nesses dois aspectos do problema: o estilo da confissão
e os modos do avanço inquisitorial.
"Acredita em tudo o que dizem das bruxas?" : esta era a pergunta que os confesso-
res deviam fazer aos penitentes, segundo as instruções de um manual de fins do século
XVI 25 • Trata-se de uma pergunta que poderia ser dirigida aos historiadores: o que se
sabe e no que se acredita (saber) , não só a respeito da bruxaria, mas sobre esse conjunto
de mitos e de ritos que durante uma longa fase da história europeia pertenceram ao
mundo do proibido e causaram perseguições aos suspeitos dessa prática. Durante muito
tempo , os historiadores responderam com uma só palavra: bobagens. (Lucien Febvre,
que se fez a pergunta de como se tinha deixado de crer nessas bobagens, respondeu
que fora necessária uma "revolução mental" .) Algumas vezes, também os juízes e outros
contemporâneos pensaram e disseram a mesma coisa: invencionices, "zombarias" , como
disse um nobre de Friuli diante das histórias que lhe eram contadas a propósito dos
benandanti 26 ; eram histórias e boatos que logo se configuraram como um "núcleo de
tradições e de mitos ... absolutamente desprovido de correspondências com o mundo
culto" 27 • Não se reconheciam, nesses relatos , os traços da religião do demônio descrita
pela literatura inquisitorial; quando se propagou a ideia de que os tais benandanti não
passavam de uma variante da conhecida seita de bruxos, a coisa foi tratada com mais
atenção. Através dos traços incertos do desconhecido , os juízes tinham encontrado
uma realidade familiar.
No entanto, até esse núcleo mais sólido de certezas despertava discussões e dúvi-
das: admitido e dado como certo o pacto com o demônio , as discussões começavam tão
logo se abordava a questão da realidade do sabá. Era verdade que as bruxas se dirigiam
fisicamente e realmente ao rito noturno? Ou tratava-se de alucinação? Os historiadores,
que se debruçam sobre os documentos dos inquisidores e que dependem de suas infor-
mações, herdaram da cultura desses juízes a questão da realidade da bruxaria, mas ten-
dem geralmente a não enfrentá-la. A tese da realidade do culto das bruxas como religião
alternativa efetivamente praticada, após ter convencido os juízes eclesiásticos, encontrou
alguns ecos entre os historiadores: Margaret Murray primeiro, Carlo Ginzburg depois -
de modos muito diferentes - consideraram que não se pode ignorar o forte sabor de
realidade das narrativas das presumidas bruxas. A tese de que as bruxas eram pobres
mulheres iludidas - por si mesmas ou pelo demônio - ou ainda vítimas fabricadas pela
violência legal, pela intolerância e pelos preconceitos, custou a se impor entre os inqui-
sidores, mas finalmente foi aceita e traduzida em regras particulares de procedimento:
25. Somma, ÜtJer Brwe [nstruttione per Confessori , per Saper bene Amministrare il Sacramento della Penitenza, de R. P.
F. Gio. Pedrazza, novamente traduzida da língua espanhola por Camillo Camilli, Venezia, Giorgio Angelieri,
1584, c. 13r (uma edição espanhola da Summa de Casos de Conciencia de frei Juan de Pedraza foi publicada em
Alcalá de Henares em 1568).
26. Nos séculos XVI e XVII, em Friuli, pessoas que conheciam e celebravam ritos antigos para propiciar a fertilidade
dos campos e livrá-los de eventuais feitiços (N. do T.).
27. Ginzburg, I Benandanti, op. cit., pp. 6 e 54.
28. Todavia, também quem afirmava, come Balthasar Bekker, que "plus on se trouve éloigné du Paganisme ... et
moins on ajoute de foi à toutes les choses qui regardent le diable et son pouvoir" (e, naturalmente, segundo
ele, o mundo da Reforma era o que mais tinha se afastado do paganismo) reconhecia honestamente, a pro-
pósito do sabá, que havia "beaucoup d'écrivains papistes qui nient que cela soit" (Le monde enchanté, trad. fr. ,
Amsterdam, chez Pierre Rotterdam, 1694, introdução n. n. e p. 283).
29. Cf. os estudos de John Tedeschi, reunidos em The Prosecution of Heresy, op. cit. E, para um panorama atualizado,
cf. Early Modem European Witchcraft. Centres and Peripheries, org. de Bengt Ankarloo e Gustav Henningsen,
Oxford, 1990 (onde figura um ensaio do próprio Tedeschi sobre "Inquisitorial Law and the Witch", pp. 83-
-118, depois retomado e reelaborado na coletânea supracitada). Ali, Robert Rowland ("Fantastical and Devilish
Persons: European Witch-beliefs in Comparative Perspectives") propõe uma leitura comparativa do fenõmeno
em um quadro europeu. Para o mundo espanhol, cf. Gustav Henningsen, L'Awocato delle Streghe (The Witches
Advocate: Basque Witchcraft and the Spanish Inquisition (1609-1614), Reno, 1980) trad. it. Milano, 1990; para
Portugal, F. Bethencourt, O Imaginário da Magia. Feiticeiras, Saludadores e Nigromantes no Século XVI , Lisboa,
1987, e seu orientando José Pedro Paiva em um trabalho ainda inédito (Bruxaria e Superstição num Pais sem
"Caça às Bruxas". Portugal 1600-1774, Tese de Doutorado, Universidade de Coimbra, 1996) defenderam a tese
de uma hierarquia eclesiástica empenhada em uma obra de cristianização, paciente e tolerante em relação ao
mundo mágico popular.
A Confissão
387
Este já referido ato nefando aumentou de modo que muitos e muitas iam fisicamente a um
lugar deserto, que é mantido particularmente para tal fim, para onde o demônio os leva pelos ares
à noite, e lá adoram o demônio enquanto gozam seus deleites carnais com diabos em forma de
homens e de mulheres.
30. A história das experiências desse tipo não foi concluída à época; cf. Ginzburg, I Benandanti, op. cit., p. 23 nota.
31. Idem, "Gli Europei Scoprono (o Riscoprono) gli Sciamani", em Klassische Antike und neue Wege der
Kulturwissenschaften,Symposium Karl Meuli, org. de F. Graf, Basileia, 1992, pp. 111-128 (idem, pp. 111-112, as
citações de Benzoni e Manardes).
vestígios de lugares do gênero. Deve-se dizer, contudo, que não se tem nenhuma notícia
de eventuais descobertas de rituais de bruxaria ocorridos nesses lugares.
Uma semelhante mistura de realismo e de ilusão é encontrada na explicação do
poder de matar crianças atribuído às bruxas. As bruxas matam as crianças a pedido do
demônio; mas não são vampiros, não sugam o sangue das crianças; são apenas assassinas
que, com o auxílio de um hábil e astuto colaborador como o demônio entram nas casas
de noite e sufocam as crianças.
[... ] Empenham-se em sufocar as crianças à noite, fazendo o demônio os pais e as mães ador-
mecerem profundamente: não para sugar-lhes (como pensa o vulgo) o sangue, mas para agradar a
Satanás, que concede os melhores lugares, favores e honras em suas festas e reuniões a quem mata maior
número de infantes. Mas todavia na casa onde havia cruz, crucifixo ou imagem de Nossa Senhora, não
podiam causar dano nem às crianças, nas quais a mãe, ao pô-las para dormir, tivesse feito o sinal da
cruz. Disso já foram informados os inquisidores e a justiça de Navarra. Creem alguns que entrem nas
casas enquanto as portas e janelas estão fechadas , e é erro diabólico atribuir aos membros do inimigo
as virtudes do corpo glorioso. A verdade é que o demônio abre-as muito devagar, a fim de entrar, e
depois volta a fechá-las , ao sair. E crer ainda que mudem a feição que Deus lhes deu , transformando-
-se em pás, vassouras ou gatas, é contra a fé , e esta é a determinação do Concílio. Mas o demônio
engana-lhes de tal modo a imaginação, que lhes parece ter outra feição 32•
A Confissão
389
heresia de que falara Alexandre VI 39 • Não sabemos, todavia, que efeitos concretos teve
a coisa . Não só os tribunais episcopais mas também as autoridades laicas continuaram
a processar pelo crime de bruxaria e reivindicaram tranquilamente o direito de fazê-lo :
"é de minha natureza perseguir e inquirir os delinquentes e malfeitores", escreveu em
1456 o potestade de Tortona, para justificar o procedimento contra Sibilia, uma velha
enviada à fogueira como bruxa 4°. A presença da justiça laica nessas matérias se fez sentir
por muito tempo, não só na França onde acabou por dominar sozinha toda a matéria,
mas também nos estados italianos. Além disso , mesmo nos casos em que a Inquisição
atuou com seus homens, os poderes políticos quiseram reforçar seu direito de inter-
venção e supervisão, como em matéria de importância primária para a segurança e a
tranquilidade dos súditos. Basta lembrar o caso da intervenção das autoridades laicas
na grande caça às bruxas e aos feiticeiros de Valcamonica em 1518 41 •
Nessa época, em matéria de bruxaria já era dominante a interpretação consa-
grada pela bula de Inocêncio VIII , Summis Desiderantes Affectibus (1484), e comentada
pelo Malleus Maleficarum de Heinrich Kremer (H. Institoris) e Jakob Sprenger (1487):
a conjuração demoníaca, o culto disseminado do inimigo de Deus na forma do sabá
das bruxas. Foi uma vitória prenhe de terríveis consequências: não só as autoridades
eclesiásticas, como também príncipes e magistraturas citadinas empenharam-se nesse
terreno. Não se tratou , para esses últimos, de opor à Inquisição eclesiástica instrumentos
e métodos mais cautos e atentos em relação aos acusados: como se veria com frequência
em matéria de bruxaria, os governos laicos eram favoráveis - às vezes ainda mais que os
juízes eclesiásticos - a intervenções drasticamente punitivas, que quase sempre iam de
39. A bula papal (em J. Hansen, Quellen und Untersuchungen zur Geschichte des Hexenwahns und der Hexenverfolgung
im Mittelalter, Bon, 1901, p. 19) é citada por Ginzburg, I Benandanti, op. cit., p. 17 nota.
40. Ver do autor do presente volume "La Circolazione delle Idee Religiose", em Le Sedi della Cultura nell'Emilia
Romagna. L:Epoca delle Signorie: le Città, Milano, 1986, pp. 117-133.
41. Cf. Dei Col, Organizzazione, Composizione e Giurisdizione dei Tribumali dell'Inquisizione Romana, op. cit.,
pp. 244-294.
42. Protestantesimo e Trasformazione Sociale, trad. it. Bari, 1969. A propósito dos modelos interpretativos da bruxaria -
questão de que não nos ocupamos aqui - indica~e a recente obra de Gábor Klaniczay, The Uses of Supernatural Powers,
Cambridge, 1990, onde se propõe uma correspondência com O surgimento do estato assoluto (cf. pp. 153 e ss.).
A Confissão
391
interferiu pessoalmente nos processos inquisitoriais daquele que foi denominado "o
pogrom antibruxas da Mirandola do ano de 1522-1523" 43• Por vezes, as intervenções dos
poderes políticos foram justificadas pela pressão popular e pela demanda de punições
exemplares contra a ameaça representada pelas bruxas. Mas o caso dos processos de
Mirandola demonstra justamente que o rigor monástico, compartilhado por Pico, era
fruto da convicção da existência de um complô de forças demoníacas capazes de ações
extraordinárias e milagrosas, como o voo noturno das bruxas. Da parte da população,
ao contrário, no início do século XVI , estava ainda prestes a renascer uma velha anti-
patia em relação à Inquisição, que datava da época dos cátaros e dos fraticelli . Durante
os processos de Mirandola, a amplitude e a violência sanguinária da repressão , com
fogueiras de dezenas de pessoas , suscitaram de fato críticas gerais: "Começaram mui-
tos a dizer com palavras injuriosas, que não era justo esses homens serem mortos tão
cruelmente ... Dia a dia, cada vez mais, esses murmúrios cresciam no meio do povo" 44 •
A fama da personagem principal do grupo , dom Benedetto Berni, durou muito tempo
como sendo a de alguém "que tinha comércio com o diabo e sempre batizou em nome
dele todas as crianças por dezoito anos" 45 •
A ideia de uma seita dos ritos noturnos dedicada à adoração do demônio , que
estava na base da noção de heresia por bruxaria, unificou e atraiu para seu âmbito
práticas, mitos e ritos de diversos tipos. A elaboração de uma leitura unitária de um
mundo variado e disperso, estranho e incompreensível, é o trabalho a que se dedica-
ram os inquisidores. E o fascínio dessa grande simplificação - a chave única de leitura
propiciada pela noção da "heresia por bruxaria", do complô diabólico no rito noturno
do sabá - foi tanto que somente hoje o trabalho dos historiadores vai se livrando dele
a muito custo, aprendendo a seguir os fios individuais das crenças e dos ritos que os
inquisidores fizeram confluir em sua construção: os antigos ritos de povos caçadores
que afloram nos processos modenenses do início do século XVI, o xamanismo dos
povos das estepes e os cultos de fertilidade na série de processos friulanos contra
os benandanti no final do século XVI 46 • A interferência da Inquisição teve o efeito
de impor - não apenas por meio de livros, mas por meio da rigorosa pedagogia dos
tribunais - o modelo simplificante da bruxaria aos "mil fios que ligam o conjunto de
práticas e de crenças arraigadas nas massas da Europa cristã ... às religiões e às culturas
que floresceram em épocas arcaicas, ou simplesmente pré-cristã" 47 • Outra questão é se
depois essa interferência conseguiu realmente eliminar ou transformar e·m profundi-
dade as crenças pré-cristãs e impor-lhes os traços da demonologia cristã: somente um
estudo aprofundado das fontes inquisitoriais poderá fornecer uma resposta à questão.
43 . A. Biondi, "Introduzione" a Gian Francesco Pico della Mirandola, Strega o delle Illusioni dei Demonio, Venezia,
1989, p. 9.
44. Leandro Alberti, idem, p. 52.
45. Antonio Brasavola [Musa), Vita di Christo, ms 1862 da Biblioteca Universitaria di Bologna, terceira parte, c. 43r.
46. Cf. M. Bertolotti, "Le Ossa e Ia Pelle dei Buoi. Un Mito Popolare tra Agiografia e Stregoneria", Quademi Storici,
n. 41, maio-ago. 1979, pp. 470-499; Ginzburg, I Benandanti, op. cit.
47. Bertolotti, op. cit., p. 492.
48. ASM, lnquisizione, Processi, b. 108, processo "Contra Filippum de Guerris" , depoimento de 26 de novembro de
1638 de Ottaviano Rinaldi.
49. C. Ginzburg, "Stregoneria e Pietà Popolare. Note a Proposito di un Processo Modenese dei 1519", (1961) agora
em Miti Emblemi Spie, Torino, 1986, pp. 3 e ss.
50. Ver os processos "contra Helisabeth Estensem de herbariis et maleficiis" (1500), contra Marietta Perseghina
de herbariis (1516), contra Lucrezia, Fiorina e Taddea, de herbariis, contra "a Turca", de superstitionibus (1518), e
contra "Paula malefica et herbaria" ( 1529) no Archivio Patriarcale di Venezia, Archivio Segreto, b. I, cc. 156r-157v,
188r-213v, 249r-279v, 348r-353v). A partir da introdução da Inquisição romana, os processos de maleficiis et
superstitionibus são realizados diante do inquisidor (cf. idem, vol. II, cc. 48r-57v, processo "contra Joannam Me-
diolanensem cognominatam 'la strologa'", 1564; idem, cc. 119r-140v "contra Peregrinam de maleficiis" , 1568).
51. "Praedicta autem strigiarum secta pululare cepit tantum modo a centum quinquaginta annis citra, ut apparet ex
processibus inquisitorum antiquis, qui sunt in archiviis inquisitionis nostrae Comensis" (Bernardo de Como,
·um et H·1eronymum fratres Mettos,
Lucerna lnquisitorum Haereticae Pravitatis ' Mediolani , apud "aleri
v, · 1546, e. 94r) ·
52. "Quidam insurgunt [... ] quod fantastice ac 1·11usori·e t · ·· · · d · h ·
e m somnus eis omma prae icta contingant et m ums
opinionis suae fomentum adducunt textum can. Ep·1scop1· [. ..]" (·d 1 em, e.
92 v). '
A Confissão
393
para pessoa: por sua vez , as confissões conduzidas pelos inquisidores em toda a Itália
descreviam sempre as mesmas coisas. Como se podia duvidar da realidade delas? Havia
também as confissões espontâneas de crianças, como a de certa Antonia, de oito ou dez
anos , reportada pelos pais: contara-lhes que de noite fora acordada pela tia Maddalena
e levada ao sabá53 • De confissões como essa, recolhia-se uma quantidade impressionante
de detalhes sempre iguais, a ponto de convencer os mais incrédulos: descrição dos ritos ,
dos lugares, dos cúmplices, com extrema precisão. E o inquisidor verificara a veracidade
de tudo , por meio de reconhecimentos nos locais indicados (em Valtellina, por exemplo)
e de confrontação dos testemunhos.
A convergência dos testemunhos convencera-o da gravidade da coisa: a seita existia,
seus rituais eram reais e não imaginados, a quantidade dos seguidores do demônio era
impressionante. É verdade que uma regra antiga impunha não aceitar os testemunhos
dos confessados contra outros; mas essa regra não valia nos processos de lesa-majestade
e menos ainda nos processos de heresia54 • Portanto, as referências a co-réu feitas pelas
bruxas deviam ser aceitas. O inquisidor, naturalmente, não devia mencionar nomes
ao interrogar as bruxas sobre seus cúmplices no sabá; devia também ter presente a
possibilidade de que as pessoas vistas pela bruxa no sabá fossem imagens ilusórias
produzidas pelo demônio. Mas não podia ignorar esses depoimentos. Chamava sua
atenção uma característica desses depoimentos (que devia revelar-se importante também
para os historiadores): sua extraordinária conformitas, ou seja, o fato de se encontrarem
neles descrições idênticas feitas por pessoas que não se conheciam, a propósito de
fatos acontecidos em tempos e lugares remotos entre si, bastava para ele desmontar a
tese dos que viam nisso apenas sonhos e ilusões 55 ; Bernardo vira processos e processos,
realizados em toda a Itália por inquisidores dominicanos, e o caráter estereotipado dos
depoimentos chamara sua atenção: tudo concordava, não havia nada da vagueza e da
casualidade dos sonhos 56 • Portanto, a única conclusão possível era que estava aconte-
cendo um complô, um ataque subterrâneo à verdadeira religião dirigido pelo diabo . O
horror do ataque diabólico que emerge dessas páginas é da mesma natureza daquele que
se percebe no célebre Malleus Maleficarum: o inquisidor é consciencioso na aplicação
das regras processuais. Mas é o fato de ter como adversário o próprio "pai da mentira"
que o instiga ao rigor na avaliação das provas: "Reparai bem - diz Bernardo de Como
a seu leitor-inquisidor - e estai bem atento para não sugerir nomes ao interrogar sobre
, 1·ices... "57 .
os cump
58. "Libertatem novam accepit diabolus quam nunquam antea accepisse legimus ... Neque ista sunt parvipendenda,
cum in diocesi Comensi provinciae Lombardiae ducatus Mediolani, anno Dommi MDXIII plusquam sexaginta
ex talibus maledictis hominibus sint ignibus crema ti ... " (I. Isolani, De lmperio Militantis Ecclesiae Libri Quattuor,
apud G. Ponticum, Mediolani, 1517, c. b !Vr). Do arquivo da Inquisição de Como não se têm notícias.
59. Escamilla-Colin, Crimes et chatíments, op. cit. , II, p. 6.
60. Sobre os teólogos, juristas (Alciato em particular) e humanistas que interferiram no assunto, há muitos estu-
dos. Momentos dessa discussão constituem o tema central do trabalho (inédito) de Maurizio Bertolotti, La
"Quaestio de Strigibus" di Bartolomeo Spina e il Dibattito sulla Stregoneria in ltalia nel Primo '500, Tese de Graduação,
Università degli Studi di Firenze, or. L. Perini, a. a. 1975-1976. Mas veja-se também Germana Ernst, "I Poteri
delle Streghe tra Cause Naturali e Interventi Diabolici. Spunti di un Dibattito", em Giomn Battista Della Porta
nell'Europa del suo Tempo, Napoli, 1990, pp. 167-197.
61. "Sed Franciscus Ponzinibius nescio quo spiritu ductus hanc communem sententiam solus (quod ego sciam)
in dubium revocans tractatu de lamiis conatus est defendere eas non ferri corporaliter" (Bernardus Comensis,
Lucerna 11U]uisitorum cum Annotationibus Francisci Pegnae, Additi... duo tractatus loannis Gersoni, unus de protestatione
circa materiam fidei, alter de signis Pertinaciae haereticae pravitatis, Vincentius Accoltus, Romae, 1584, p. 155.
Pena declara ter usado para essa edição o exemplar manuscrito do tratado de Bernardo conservado em Roma
no Santo Ofício).' N:~ vi a ediç~o Venezia, 1596, citada por Ginzburg, J Benandanti, op. cit., p. 17 nota, onde
parecem ter surgido incertezas de Pena a esse propósito.
A C o nfissão
395
62
notável sucesso : eram razões fundamentadas nas confissões das bruxas, lidas através
de urna grande quantidade de teologia escolástica e urna visão sombria do acelerar-se
da história humana rumo ao fim . A polêmica era dirigida contra a tese (de Johannes
Wier) do caráter ilusório do pacto com o demônio e do voo noturno das bruxas. Para
consolidar suas razões Binsfeld utilizava exatamente os argumentos de Bernardo de
Como, isto é, a concórdia dos depoimentos das acusadas, o pernicioso postulado da
sinceridade infantil, a exatidão das coincidências de lugares , datas e pessoas, a preci-
são das confissões. A ciência demonológica de Bodin conciliava-se, em suas páginas,
com as informações reunidas pelos muitos processos que conduzira: histórias trágicas,
como a de Anna Meisenbein (ou Weisenbein), denunciada pelos filhos , capturada e
processada em 5 de outubro de 1590, submetida a "moderada tortura" e queimada viva
no dia 20 do mesmo mês; ou a de Maria, queimada em 10 de novembro de 1588 63 •
Tanto empenho desse tipo de escrita tornava-se necessário diante do avanço de novas
tendências, céticas em relação ao pacto com o diabo , inclinadas a uma pesquisa mais
atenta de provas independentes das confissões.
62. Na feira de Frankfurt a obra foi requisitadíssima, conforme relata o autor no prefácio à terceira edição: cf.
Tractatus de Confessionibus Maleficorum et Sagarum ... An et quanta Fides iis Adhibenda Sit?, auctore Petro Binsfeldio
suffraganeo Trevirensi, Ooctore Theologo, Augustae Trevirorum, ex officina typographica Henrici Bock, 1595.
Mas a dedicatória é datada de 1° de setembro de 1596 (a primeira edição, em alemão, tinha saído em 1590).
63. Idem, pp. 36-70.
64. Idem, pp. 614-615.
do poder que se admitia ter traído 65 • Mas era também a prova fundamental de que
o crime ocorrera, a única condição graças à qual as suspeitas e os indícios podiam se
tornar certeza. Mas como obter essa prova? As confissões espontâneas de que falava
Binsfeld eram, na realidade, resultado do emprego da tortura, ainda que "moderada".
Na falta de confissões espontâneas, partia-se das acusações e dos indícios e tentava-se
obtê-las em número adequado para poder chegar à captura do réu. Pregos, invólucros
de peles, gordura e outras coisas do gênero, encontradas em casa de acusadas ou, como
contava Binsfeld, nas vísceras de um homem morto, bastavam para provar o malefício.
Nessa altura, com inspeções e perquirições, procedia-se à coleta ulterior de indícios,
até atingir o objetivo real, o da tortura do "réu".
A tese de um caráter herético e de uma apostasia verdadeira e absoluta presentes
nas crenças e nas práticas de bruxaria acabou atraindo também o mundo dos sortilégios
e das "superstições" para a órbita da inquisição. Essa tendência de ampliar a interferência
inquisitorial atingiu seu ponto mais alto com o papa-inquisidor Sixto V, que combateu
pessoalmente na guerra contra adivinhos e astrólogos. É conhecida sua intervenção
contra a astrologia judiciária, com o decreto Coeli et terrae Creator de 5 de janeiro de
1586. Mas nessa época a ação inquisitorial já se estendera sobre todo o vasto conjunto
das "superstições" , assumindo as características que devia conservar durante toda a
idade moderna: não tanto caça implacável contra específicas formações doutrinárias
("heresias") quanto campanha de conhecimento e de intimidação. Por isso, a definição
dos poderes da Inquisição na constituição Immensa Aeterni Dei (22 de janeiro de 1587)
representou mais a consagração de um avanço já ocorrido no terreno da magia e dos
feitiços do que a abertura de novas frentes. Nesse documento, Sixto V confirmou todos
os privilégios de que a congregação fora dotada, reconheceu e consolidou a tradição
segundo a qual o próprio papa devia presidir suas reuniões e também definiu em um
leque mais amplo e preciso as matérias de competência da Inquisição: heresia manifesta,
cisma, apostasia, magia, sortilégios, adivinhações, abusos de sacramentos e qualquer
outra matéria que permitisse a suspeita, mesmo remota, de heresia {"praesumptam
haeresim sapere viderentur"). A expressão praesumpta haeresis sancionava a mudança da
antiga norma que falava de manifesta haeresis 66 • Entretanto, nessa mesma época, quando
homens como Binsfeld condenavam à fogueira sem incertezas, a práxis inquisitorial
tomava, na área italiana, o rumo da cautela e da desconfiança em relação às confissões
das supostas bruxas. O cardeal Giulio Antonio Santoro, em nome do Santo Ofício,
decretou a invalidade dos depoimentos de bruxas confessas contra outras mulheres que
tinham sido vistas indo "junto com elas aos jogos diabólicos" 67 •
65. Cf. Sbriccoli, Crimen Lesae Maiestatis. Il Problema del Reato Politico, op. cit. , pp. 158-162.
66. "[ ...] Tam haeresim manifestam quam scismata, apostasiam a fide, magiam, sortilegia, divinationes, sacramen-
torum abusus et quaecumque alia quae etiam praesumptam haeresim sapere videntur" (const. "Immensa Aetemi
Dei" ; cf. Henner, Beitriige, pp. 308-310).
67. "Todas as confissões feitas por elas - escreveu Santoro, em nome do Santo Ofício - ainda que provem contra
elas próprias, não provam contra Argenta, porém, por serem depoimentos de coisas vistas enquanto iam a esses
jogos diabólicos, podendo em tais jogos terem sido iludidas pelo demônio no intuito de caluniar o próximo";
A Confissão
397
carta de Giulio Antonio Santoro, cardeal de Santa Severina, ao vigário de Nápoles, Roma, 5 de fevereiro de
1588, relativa ao caso de Argenta Amorosa (cf. Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit. , pp. 18-19).
68. Cf. do autor de;te volume l.:Inquisizione Fiorentina dopo il Concilio di Trento, op. cit., pp. 120-121.
69. Sobre as subdivisões tradicionais na cultura eclesiástica antiga e medieval a esse respeito cf. Dieter Harmening,
Superstitio. Uberlieferungs - und theoriegeschichtlich Untersuchungen zur kirklich-theologischen Aberglaubensliteratur
eles Mittelalters, Berlin, 1979. Para os historiadores, que devem sempre utilizá-las, é importante lembrar que
as categorias da hierarquia eclesiástica - do "proposto", do "prescrito", do "tolerado", do "proscrito" - são
historicamente mutáveis (Cf. Ginzburg, "Premessa Giustificativa", Quademi Storici, n. 41, maio-ago. 1981,
pp. 393-397; em part. p. 396).
das pessoas. É difícil precisar quando esse trabalho teve início; na realidade, a coleta de
informações sobre mitos e ritos era antiga na história da defesa eclesiástica da fé : mas ,
na tradição inquisitorial, tinha se tornado uma função secundária da caçada a adver-
sários determinados - hereges e bruxas. Como todo pesquisador, o juiz da Inquisição
seguia as pistas de hipóteses bem definidas e acolhia ou descartava de acordo com sua
pertinência ao desenho do crime. Consequentemente, os comportamentos sociais eram
focalizados no decorrer de sua pesquisa só pelas ligações que propiciavam a aspectos
bem determinados de crime: para a bruxaria, o emergir do sabá como formação cultu-
ral, por volta de meados do século XV, exerceu um efeito libertador sobre a atividade
repressiva desenvolvida pelos inquisidores e também serviu para encaminhar para esse
paradigma todo fragmento suspeito de mito e de rito que apresentasse qualquer ponto
de sustentação. Ora, percorrendo as documentações de qualquer fundo inquisitorial
pós-tridentino, uma observação remete à quantidade e à qualidade das informações
recolhidas: o universo da "superstição" vem à tona a partir da reunião de inúmeros
fragmentos , alguns recolhidos imediatamente, outros deixados de lado para serem even-
tualmente retomados anos mais tarde, quando se vislumbra sua função num desenho
mais amplo. Mas permanece o fato da coleta, que foi vasta e profunda na medida em que
era vasta a fratura que se abrira entre o cristianismo purificado, reelaborado ou, como
quer que se diga, "reformado" e tudo o que se lhe opunha nas práticas sociais correntes.
O inquisidor não era o único a desenvolver esse trabalho: junto com o seu, outros
tribunais, eclesiásticos e laicos, acumularam em seus arquivos processuais informações
do mesmo tipo. As orações a São Daniel e a Santa Marta, para atrair o amor de alguém
ou o retorno da pessoa amada, podiam conduzir não só ao inquisidor mas também ao
tribunal laico quem as ensinava. Se Maddalena de Ferrara foi denunciada ao inquisidor
de Módena em 1552 por esse motivo, poucos anos depois, em Roma, a cortesã Lucrezia
foi conduzida ao tribunal do Governador sob a acusação de ter recitado a oração de São
Daniel7°. E os bispos, reproduzindo instruções estereotipadas da Inquisição, podiam
enriquecê-las com a descrição de esconjuros e ditos populares de suas dioceses.
Os documentos reunidos nos processos foram até agora examinados apenas su-
perficialmente por uma pesquisa dominada durante muito tempo pelos modos e pelo
gosto da descrição curiosa da cor e do folclore local; só mais recentemente foram feitas
investigações baseadas na comparação sistemática dos materiais 71 • Visto que aqui não
tratamos disso, valerá a pena considerar o modo como os inquisidores refletiam sobre
os materiais coletados. Os resultados desse trabalho, que tem muitas analogias com a
pesquisa histórica e antropológica, encontram-se nos conhecimentos depositados nos
70. O caso de Lucrezia é objeto de um processo publicado (em tradução inglesa) por T. V. e E. Cohen, Words and
Deeds in Renaissance Rome, op. cit., pp. 189-199; para o de Maddalena de Ferrara (conservado em ASM, Inqui-
sizione, b. 3, f. 3) cf. Mary O'Neal, Discerning Superstition:Popular Errors and Orthodox Response in Late Sixteenth
Century ltaly, Tese de Doutorado, Stanford University, 1982, p. 130.
71. Cf. Ginzburg, I Benandanti e Storia Notturna, op. cit.; M. Bertolotti, Camevale di Massa 1950, Torino, 1991. Já 0
caminho da investigação sistemática em um único arquivo - no caso, o fundo modenense da Inquisição - foi
seguido por O'Neal, Discerning Superstition, op. cit.
A Confissão
399
manuais, nos éditos e nos vários tipos de instruções circulantes no mundo da Inquisição.
É uma literatura que, por ser tão vasta e dispersa, demandaria uma pesquisa autônoma:
os levantamentps existentes limitaram-se por enquanto a uma lista de títulos , aos quais
não corresponde a não ser esporadicamente uma investigação analítica 72 . Por outro lado,
embora se apresentando em uma aura sem tempo como instrumentos da eterna luta
entre verdade e erro, esses textos permanecem fortemente ligados à sua época. Assim,
para dar um exemplo, a questão da bruxaria é dominante nos manuais do século XV e
do início do XVI , ao passo que a questão da heresia é posta nitidamente em evidência
nas obras que surgiram na época da Reforma: a essa fase corresponde o trabalho edi-
torial que os novos inquisidores realizaram com base nos textos antigos - Pena no de
Eymeric 73 , Campeggi no de Zanchino Ugolini - e o trabalho de gabinete dos especia-
listas em direito com base nas fontes medievais. Como os historiadores modernos que
tentam se orientar na floresta das fontes er:n busca de uma pista dos procedimentos,
os jurisconsultos do século XVI aventuraram-se entre as fontes medievais por incum-
bência das autoridades eclesiásticas 74 • Nessa fase ocorreu ainda a proliferação de uma
literatura teológica complementar sobre a necessidade de punir os hereges e sobre o
melhor modo de reconhecê-los. E reconhecê-los significava identificar sua genealogia,
com base no princípio de que a verdadeira refutação da heresia consistia em reconduzi-
-la à sua origem 75 • Mas, a par da lição dos antigos , foi a experiência que alimentou o
crescimento da jurisprudência inquisitorial. As instruções e as ordens emanadas pela
congregação romana seguiam o perfil concreto dos negócios tratados localmente: e
das cartas da congregação romana os inquisidores o resultado de verdadeiros manuais
sistemáticos 76 • Os manuais reuniram, portanto, normas antigas e recentes, informações
de cima e experiências processuais concretas.
72. Cf. E. Van der Vekené, Bibliotheca Bibliographica Historiae Sanctae Inquisitionis, Vaduz, 1982-1983. Mas para uma
autêntica introdução às fontes veja-se principalmente as densas páginas de Tedeschi, The Prosecution of Heresy ,
op. cit. , cap. III ("Inquisitorial Sources and their Uses").
73. Cf. Edward M. Peters, "Editing Inquisitors' Manuais in the Sixteenth Century: Francisco Pena and the Direc-
torium lnquisitarnm ofNicholas Eymeric", Library Chronicle, XL, 1974, pp. 95-107 e A. Borromeo, "A Proposito
dei Directorium lnquisitarnm di Nicolas Eymeric e delle sue Edizioni Cinquecentesche", Critica Storica, XX, 1983,
pp. 499-547.
74. Por encomenda do Santo Ofício, Pena publicou em 1579 uma colleção de Litterae Apostolicae em matéria
de heresia recolhidas dos registros papais da época de Inocêncio III em diante (cf. Borromeo, "A Proposito
dei Directorium ]nquisitarnm", op. cit.). Em janeiro de 1582, Pena recebeu ainda o encargo do Santo Ofício de
compor um índice e um sumário dos documentos sobre a Inquisição a partir do registro das cartas do papa
Gregório XI, na Biblioteca Vaticana (o resultado pode ser lido no ms Branc. 1 B7 da Biblioteca Nazionale di
Napoli, cc. 75r-84r). Sobre a obra de Pena, Patrícia H. Jobe está realizando uma pesquisa geral.
75. "Haereses suam ad originem revocasse, refutasse est": esta epígrafe, tirada de San Girolamo, pode ser lida na
abertura do De Vitis, Sectis, et Dogmatibus omnium Haereticarnm, qui ab orbe condito, ad nostra usque tempora, et
veterum et recentium authorum monimentis proditi sunt, elenchus alphabeticus, por Gabrielem Prateolum Marcossium,
Coloniae, apud Gervínum Calenium et haeredes J. Quente!, 1581.
76. Guido Dall'Olio (I Rapporti tra la Congregazione dei Sant'Ufficio e gli lnquisitori Locali nei Carteggi Bolognesi, op.
cit. , pp. 261-262) registrou O caso de um manual elaborado para a atuação da Inquisição de Bolonha a partir
de uma compilação sistemática das cartas da congregação romana do Santo Ofício.
Por muito tempo , durante a segunda metade do século XVI , a linguagem dessas
fontes fala ainda quase que exclusivamente de heresia. Para dar só um exemplo, o édito
geral publicado pelo inquisidor milanês frei Giovan Battista Borgo em 1582 tem como
alvo exclusivo combater a heresia, à qual se refere em termos tradicionais: proibição de
crer de modo diferente da Igreja romana em matéria de sacramentos e outras coisas,
proibição de alinhar-se com os hereges nas "controvérsias que há hoje em dia entre
católicos e hereges" , proibição de ter Bíblias vulgares de qualquer tipo ou outros livros
em língua vernácula sobre doutrinas controversas; e no entanto, ainda que mantenha
na ordem do dia a grande batalha sobre a verdade da fé , o édito é redigido no tom pa-
ternal e sereno de quem se prepara para receber a rendição de um inimigo derrotado 77 •
Mas nessa época outras vozes já se tinham feito ouvir na literatura dos manuais. Na
segunda metade do século, os manuais inquisitoriais assumiram cada vez mais o caráter
de descrição de práticas concretas e começaram a oferecer repertórios de "superstições"
redigidos com bastante precisão e conformidade em relação à realidade. Umberto Locati,
inquisidor em Piacenza, em seu ]udiciale Inquisitorum , não se limitou a sustentar em geral
a pertinência das práticas supersticiosas a seu tribunal, mas descreveu-lhes atentamente
rituais e fórmulas : por exemplo, era para ele "manifestamente herética" a divinatio que
se praticava para saber os segredos ou para descobrir quem tinha roubado algo - e essa
divinatio era realizada com uma vela benta, água benta e com um menino ou menina
virgem que olhava em um recipiente de água e rezava a oração "Anjo branco, Anjo
santo, pela tua santidade e pela minha virgindade" 78 • A experiência tinha mostrado a
Locati que havia outras fontes de erro, mais próximas e mais insidiosas que a propagan-
da herética. Não bastava processar os luteranos ou censurar a expressão sola [ides nos
escritos publicados 79: o demônio podia assumir a forma de uma inesperada devoção
) coletiva suscitada por uma visionária que afirmava ter falado com Nossa Senhora. E o
inquisidor citou em seu manual parte dos autos do processo com que, em dias que se
imaginam bem difíceis para ele, tinha não só dominado o fluxo tumultuoso da devoção
coletiva, incluindo aí as forças do clero secular e do poder político, como bloqueado
e impedido a construção de um santuário 80• Portanto, a presença do erro podia advir
de dentro do povo cristão, não ter origem apenas na infecção herética proveniente dos
77. Cópia do édito, publicado em Milão por P. Gottardo Pontio em 1582, está conservada em ASM, S. Ufficio ,
6. 270.
78. "Nota quod divinatio ad inveniendum furta, vel ad sciendum aliqua secreta, quae fit cum candeia benedicta
et aqua similiter benedicta, ac puero vel puella in phiala aspiciente et dicente haec vel similia verba, videlicet" ,
"Anjo branco, anjo santo, pela tua santidade e pela minha virgindade etc.", sapit haeresim manifeste" (Umberto
Locati, Opus quod ludiciale lnquisitornm Dicitur... , Romae, 1570, p. 85. A passagem é citada também por Tedeschi,
The Prosecution of Heresy, op. cit., p. 250 nota).
79. Talvez colando em cima de um texto diferente, como se pode ver na obra do bolonhês Tiresio Foscarari, Con-
versio Divi Pauli, s. 1. n. a. (cópia da Biblioteca Universitaria di Bologna, A. y tab. 1. H . I. 36) onde O original
que dizia: "Sola fides opera et quae sunt venera ta tonantem / Haec pote sunt nostros habiles efferre labores" ,
teve as duas primeiras palavras substituídas por "Ipsa fides" (c. A Ilr).
80. Ver cap. VIII, p. 232, nota 23.
A Co nfissão
401
países da Reforma. Outras experiências do gênero revelam-se por trás da exatidão dessa
transcrição do esconjuro ao Anjo.
A transformação completou-se no final do século XVI: a partir das visitas apos-
tólicas iniciadas por Gregório Xlll , ficara claro que os responsáveis pela ação contra
qualquer forma anômala de religião não eram os bispos, mas as autoridades inquisitoriais
delegadas por Roma. Há uma espécie de recapitulação conclusiva sobre essa matéria na
série de manuais e de instruções para vigários da Inquisição, redigidos em base local,
que já foram lembrados. São textos que aparecem como a redefinição de limites após
uma mudança nas relações de força . Era preciso, portanto, fornecer a esses vigários
uma definição precisa das matérias de sua competência, para colocá-los em condições
de resolver as controvérsias que podiam se apresentar com os vigários forâneos dos
bispos. Na Breve lnformatione modenense, quando se fala em magos, bruxas, encantado-
res , a descrição pura e simples é introduzida por explicações elaboradas, que parecem
responder ao porquê de certas matérias insólitas comparecerem entre as competências
inquisitoriais. No que se refere à categoria de magos e bruxas, um preâmbulo adverte:
"Por semelhantes espécies de pessoas abundarem em muitos lugares da Itália, e mesmo
fora dela, mais convém ser diligente; e por isso deve-se saber que esse artigo comporta
todos aqueles que fizeram pacto com o diabo, implícita ou explicitamente, para si ou
para outros" 81 • O pacto implícito com o diabo é uma acusação que permite reunir nessa
categoria uma vasta e dispersa série de práticas: não só a oração "Anjo branco, anjo
santo" incriminada no manual de Locati, mas também as orações "de São Daniel, de
Santa Marta e de Santa Helena" feitas para atrair o amor; e ainda quem traz consigo
breves e escritos protetores de tipo mágico, e até mesmo os que "olham, ou fazem com
que olhem as mãos para saber coisas futuras ou passadas". Portanto, não mais só as
quiromantes como Antonia de Ferrara, mas também seus clientes estavam expostos
finalmente à caça inquisitorial.
Esse era o esquema operacional dos inquisidores no início do século XVII. E sua
validade era geral, como demonstra o fato de o texto ter sido reproduzido literalmente
no manual mais amplamente utilizado nessa época: o Sacro Arsenale de frei Eliseo Masini,
que o atualizou apenas no que dizia respeito à categoria dos "suspeitos de heresia" 82 •
Por volta do final do século XVII, em suas Regale del Tribunale del Sant'Officio,
Tommaso Menghini tinha diante de si uma situação ainda mais clara: blasfêmias, sor-
tilégios e remédios "supersticiosos" ocupam praticamente todo o horizonte da Inquisi-
ção. Totalmente desaparecida a heresia culta ou teologicamente prevista, em seu lugar
colocam-se práticas cuja natureza herética não se distingue mais com muita sutileza;
na prática, toda blasfêmia, assim como toda reza "supersticiosa" são de competência
do Santo Ofício e basta. Trata-se apenas de lembrar aos vigários que "por suspeitos de
81. Breve lnformatione del Modo di Trattare le Cause de! S. Officio, op. cit., P· 11.
• lum
82 . On d e me • cnmes
• qu e estavam aparecendo na práxis corrente, como a poligamia, o abuso dos sacramentos,
o ce leb rar missa sem ser padre e ass,·m por diante·' cf. Sacro Arsenale, Overo Prattica dell'Officio della Santa Inqui-
.
sitione, 1. ed., Gênova, 1621 (sobre as várias edições, cf. Van der Vekené, Bibliotheca Bibliographica, op. cit.).
Foi posto o primeiro fato de sortilégio, porque esses casos pestilenciais se estenderam, com
tal frequência e com a ruína de tantas almas , por todo o Cristianismo que ... os juízes da Santa Fé ...
lidam continuamente com eles 83 •
E interessava tanto, afinal, essa matéria aos inquisidores que o opúsculo oferecia
até mesmo uma "Nota sobre algumas pequenas obras e histórias proibidas", onde se en-
contravam listadas em uma tentativa de levantamento "Histórias", "Lendas", "Orações"
e rezas "supersticiosas", tornadas quase as únicas encarnações da imprensa "herética",
junto a comédias, livros de sonhos, livros de cartas de amor. Eram materiais selecionados
a partir da riquíssima série de éditos que os inquisidores tiveram de publicar em matéria
de livros e escritos de publicação proibida, assinalados pela Congregação do Índex. Mas
deve-se ressaltar o fato de que de toda essa série considerou-se necessário recapitular so-
mente uma literatura que tinha como destinatário e, às vezes, como comitentes, as classes
populares: escritos de poucas páginas, em caracteres grandes, baratos, de conteúdo entre
o maravilhoso sagrado e o profano, por vezes ligados a formas de devoção que tinham
se originado em confrarias e oratórios 84 • Trata-se de um atento controle da cultura das
classes populares, em suas formas cotidianas e, sobretudo, em sua escolha das expressões
devotas. Dos antagonistas que um século antes dominavam o horizonte inquisitorial -
Lutero, Calvino, Zwingli, Butzer e todos os seus continuadores, cujos escritos a própria
Congregação do Índex tanto perseguira - não se considerou necessário lembrar.
A literatura inquisitorial do século XVII oferece contínuas confirmações dessa
nova hierarquia das matérias: o crescimento da "superstição" parece desenfreado; o
levantamento das práticas de tipo mágico empenha a atenção desse tribunal e de seus
especialistas. Por isso, também, a literatura inquisitorial privilegia o título Prattica. Não
havia necessidade de elucubrações teológicas de alto nível - como aquelas reunidas
nas Controversiae de Bellarmino - mas de um paciente trabalho de bricolage entre os
passatempos de mulheres, camponeses, frequentadores de mercados e de feiras. Aberta
ao acaso uma Prattica, podem ser lidas descrições como esta:
A Confissão
\
403
Para atrair homens para suas casas [... ] dão nós em fitas enquanto estão na missa, centenas de
nós, e ao fazê-los dizem palavras desconhecidas ou conhecidas, mas lascivas [... ] Abusam de água e de
velas bentas, rezando a oração de São Daniel, de Santa Helena e outras parecidas que tais chamam, em
que invocam os santos para conseguirem seus intentos [... ] Fazem o sortilégio da jarra usando menino
ou donzela virgem , ou mulher grávida, e fazendo com que digam: Anjo santo, Anjo branco, por tua
santidade, por minha pureza [... ]85
85. Prattica di Procedere nelle Cause dei S. Officio, ms in Biblioteca Comunale di Forlí, fundo Piancastelli, ms VIII/81.
Cf. A. Turchini, "Acculturazione Religiosa e Pastorale", em Storia di Forlí, III, I.:Età Moderna, Bologna, 1991,
pp. 105-127, que remete à tese de P. Raggi, Processi di Magia a Forlí fra '500 e '600, Tese de Graduação, Università
degli Studi di Bologna, a. a. 1974-1975 (que não pude consultar).
86. O dever do inquisidor de queimar os "livros supersticiosos" é declarado no decreto do Santo Ofício de 25 julho
de 1590 (Pastor, Allgemeine Dekrete, op. cit., p. 47). Quanto às práticas substitutivas, elas abarcam um campo
muito vasto, limitando-se quase sempre a cristianizar superficialmente o que era proibido. No mundo católico
europeu, por exemplo, a astrologia condenada, com poucas modificações, é substituída por uma "astrologia
cristianizada (cf. E. Casali, "Noceto Nocente" e "ll Ligure Risvegliato", Studi Secenteschi , 34, 1993, pp. 287-329;
v. part. p. 322).
87. Veja-se a respeito T. Todorov, La Conquista dell'America, Torino, 1982, p. 290; G. Baudot, Utopia e Storia in
Messico. l Primi Cronisti dela Ci"iltà Messicana (1520-1569), Milano, 1992, pp. 426 e ss. Filippo II "chegava a
esconder dos membros do Conselho das Índias a última localização que escolhera" para os livros que tratavam
das religiões pré-cristãs na América (idem, P· 429).
1. Carta de 2 de dezembro, já citada por A. Battistella, II Sant'Officio e la Riforma Religiosa in Friuli, Udine, 1895,
pp. 41-42; publicada por F. Salimbeni, em Le Lettere di Paolo Bisanti Vicario Generale do Patriarca di Aquileia
(1577-1587), Roma, 1977, p. 349.
2. Carta de Francesco Montichiari ao inquisidor de Florença, Fivizzano, 5 mar. 1623 (publicada pelo autor deste
volume em Vicari del!'lnquisizione Fiorentina, op. cit. , PP· 303-304).
3. Ginzburg, I Benandanti, op. cit. , p. 17 nota.
406
que então foram acumulados nos arquivos dos tribunais inquisitoriais reúnem traços
de alarmes contínuos a respeito dessas matérias e oferecem-nos a percepção do quanto
eram intrincadas. No final do século XVI, as cartas do Santo Ofício ao inquisidor de
Florença narram histórias de caçadores de tesouros , de encantadores de tempestades, de
um grupo de "sectários diabólicos" de Montepulciano, "que se entregavam ao demônio
e subscreviam-se em um papel com o próprio sangue" 4; a busca da fortuna e do amor, a
vontade de dominar as forças da natureza davam forma a uma impressionante variedade
de práticas, que o Santo Ofício unificava em sua jurisdição, mas às quais já tinha desis-
tido de dar uma forma única 5• E à obra de vigilância dessas matérias acrescentava-se a
necessidade de enfrentar as solicitações de justiça que afluíam de muitas partes contra
bruxas e magos: documentos quase sempre comoventes, como o da mãe enlutada com
a morte de um filho que buscava vingança contra a suposta responsável pelo malefício
e, diante da inércia do tribunal local, apelava diretamente ao Santo Ofício 6• Mas era
sobretudo a dimensão cotidiana e ordinária do recurso aos esconjuros e aos malefícios
que levava a formas de intervenção cautas e ponderadas, de tipo pedagógico.
Houve, em primeiro lugar, uma pedagogia negativa, destinada a evitar o contágio
herético, que consistia em ocultar as informações consideradas perigosas ao povo cristão:
tratava-se basicamente, como se lê em uma instrução do Santo Ofício, de "não referir
os modos de sortilégio e magia" que tinham vindo à tona durante o processo no texto
da sentença que devia ser lido em público, "para que aqueles que estiverem presentes
na abjuração não tenham ocasião de aprendê-los" 7•
Se as intenções eram de tipo educativo, deve-se dizer que certamente a obra
educativa ocorreu: mas, como sempre acontece aos bem intencionados pedagogos, não
ocorreu na direção conscientemente perseguida, ou pelo menos não só nela. Houve
também uma difusa pedagogia involuntária em direção das regras e das formas do mundo
demoníaco e subterrâneo que se pretendia combater. Sermões, éditos e sobretudo a dura
pedagogia processual dos interrogatórios e da tortura disseminaram o conhecimento do
sabá e do pacto com o diabo. A máquina azeitada com a colaboração de pregadores e
confessores deu resultados em larga escala: podemos considerar exemplar o aviamento
dessa spontanea comparitio de certa Bartolomea di Antonio de Pistoia, oferecida diante
do inquisidor de Pisa frei Giovanni Lusitano em 20 de abril de 1582: "Tendo estado
dias antes em Santa Maria quando vós pregastes e entendido quão grande é o pecado de
fazer ou mandar fazer feitiços, encantamentos e sortilégios com a jarra, e a grande pena
4. Archives Generales du Royaume, Bruxelles, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, r, c. 18ro (carta do cardeal de Santa
Severina de 30 set. 1588) e passim.
5- As já lembradas pesquisas de M. Milani sobre o mundo vêneto, devem-se acrescentar os muitos trabalhos sobre a
Itália meridional, , de Pasquale
. o.• nella Napoli del v·1ceregno, Napo 1·1, 1984, a J. saII mann,
Lopez, Clero, Eresia e Mama
Chercheurs de tresors et Jeteuses de sorts. La quête du sumaturel à Naples au XVI siecle, Paris, 1986.
6. Archiv~s Generales du Royaume, Bruxelles, Archives ecclésiastiques 1928 3ter, I, c. 37r: carta s.d. em cópia de
Antonta de Bernardo ao Santo Ofício .
. 7.
IHnstruções ~o ca rd eal Pompeo Arrigoni ao inquisidor de Bolonha, 18 fev. 1612 (cf. Tedeschi The Prosecution of
eresy, op. c1t., pp. 229-230 e 244). '
A Confissão
407
que cabe àqueles que sabem e não revelam, que são excomungados, vos digo [... ]" 8 • Os
sermões do inquisidor eram um momento de informação para o povo que também era
convocado a escutá-lo por meio de éditos apropriados. E aprendia-se muito com esses
sermões; como explicaram os anciães da comunidade de Triora em 1580 , no comeco '
da campanha antibruxaria quem tinha informado sobre as regras do jogo e sugerido as
respostas às suas futuras vítimas fora o próprio inquisidor:
O vigário da santa Inquisição desde o princípio pregou em púlpito público deste local para
a audiência de todo o povo o que podiam fazer semelhantes bruxas, e nos graves tormentos podia-se
duvidar que dissessem o que ouviram pregar sobre aquilo que eram suspeitas de ter feito 9•
8. MP, [fU/uisizione, f. I, c. 406. A denúncia de Bartolomea levou ao processo contra Lucrezia de Peloso, acusada
de "fazer feitico com a jarra". O caso foi assinalado e estudado por Romano Canosa, Storia dell'lnquisizione,
IV, "Milano e Firenze", Roma, 1988, pp. 157-210 e por Giovanni Romeo (Inquisitori, Esorcisti e Stregue, op. cit.,
pp. 169-180), que vê justamente na surpresa e na indignação da investigada o indício da "reviravolta silenciosa,
mas de alcance incalculável" nos procedimentos inquisitoriais.
9. A carta, endereçada ao doge e aos governadores de Gênova, foi publicada por Michele Rosi, Le Streghe di Triora
in Liguria. Processi di Stregoneria e Relati11e Quistioni Giurisdizionali nella Seconda Metà del Secolo XVI, Roma, 1898,
pp. 62-64.
10. Cf. Tedeschi, The Prosecution of Heresy, op. cit., PP· 205 e ss. Sobre a data de redação e de primeira circulação,
foram formuladas diferentes hipóteses, que tendem a retrodatar o documento em relação às primeiras citações
de sua circulacão. De resto, em uma carta do Santo Ofício ao inquisidor de Siena de 3 outubro de 1626, é
mencionada c~mo uma "instrução antiga" (idem, p. 218).
Pedagogia Inquisitorial
408
como válida a designação de co-réu para quem, confessando ter participado do sabá
trazia à baila os nomes de outros culpados. '
A importância do documento não reside todavia em uma vontade de estabelecer
normas objetivas válidas em geral e muito menos em uma postura de piedade para com
os "réus", do gênero daquela que inspirou as obras de caridade para os encarcerados
(e depois tomou forma nas normas para processos e prisões ditadas pelo piedoso bispo
Gian Battista Scanaroli 11 ) . Em tudo prevalece um ceticismo radical que se evidencia
sobretudo, na definição do corpus delicti: deve-se levar em conta que, nessa época, os'
juízes laicos continuavam a considerar pistas evidentes da atuação de bruxaria, inserindo-
-as consequentemente na tipologia do corpus delicti , uma variada tipologia de indícios:
imagens, escritos, sementes, penas ou bolas de gordura nos colchões e nos travesseiros.
Havia quem aconselhasse nada menos que verificar se das camas das crianças vítimas de
malefício erguia-se "uma névoa de ar denso e verde" 12• Não havia, portanto, uma diferen-
ça entre juízes laicos e juízes eclesiásticos, mesmo porque os juízes laicos inspiravam-se a
respeito dessa matéria nas magicae quaestiones de Martin Del Rio, considerando-o "não
só como teólogo e canonista, mas como jurista" 13 • Tudo isso é excluído radicalmente
pelo olhar cético e desconfiado do autor da lnstructio. Onde outros enxergam demônios
e anjos , ele enxerga engano ou, no máximo, autoengano.
O fato singular que atrai a atenção é a insistência nos ambientes monásticos e
conventuais como lugar de origem dos enganos e da simulação de presenças diabólicas.
Dir-se-ia que a protagonista não é mais a bruxa da aldeia, mas a monja: é ela, com sua
incapacidade de suportar clausura e castidade, que cria o cenário da possessão, que se
entrega aos cuidados do exorcista e, frequentemente, que o envolve como cúmplice
consciente em sua rede de simulações. Como se chegara a essa conclusão? Caso fosse
possível um exame sistemático dos autos dos Santos Ofícios e das instruções enviadas
continuamente pela Congregação romana aos comissários locais, poder-se-ia tentar re-
construir melhor a origem desse diagnóstico: mas, por enquanto, deve-se levar em conta
que em Roma as questões de bruxaria e as de malefício apareciam estritamente ligadas
às de possessão demoníaca. Na visão do corpo eclesiástico - que era sempre um corpo
de poderes rigorosamente masculinos - havia uma tendência de suspeitar das mulhe-
res como tais, fracas e por isso mais facilmente enganáveis pelo mestre dos enganos, o
demônio. E justamente com esse argumento, já no final do século XVI, foi estabelecido
que não deviam valer os depoimentos de bruxas confessas contra outras mulheres vis-
tas indo "junto com elas aos jogos diabólicos" 14 . Mas o engano diabólico difundiu-se
11. lo. Baptistae Scanaroli Mutinensis, De Visitatione Carceratorum Libri Tres, Romae, typis Reverendae Camerae
Apostolica, 1655 (cf. em part. lib. II, par. 3).
12. Cf. Antonio Maria Cospi, II Giudice Criminalista, in Fiorenza, tipografia de Zanobi Pignoni, 1643, p. 355 (mas
ver todo o capítulo XLII, "De Corpi de' Delitti ne' Malefizii, o Malefiziati", pp. 354-356; a matéria dos indícios
que o juiz deve reunir encontra-se disseminada em toda a obra).
13. Idem, p. 369.
14. V. cap. XVII, nota 67. O caso em questão era o de Argenta Amorosa, denunciada por lppolita Palomba e Beatrice
Castiglione à Inquisição napolitana. A carta citada, do card. Santoro, é O documento a partir do qual Giovanni
A Confissão
409
A Santidade de Nosso Senhor, tendo ouvido o parecer desta sagrada Congregação do Santo
Ofício, ordenou expressar a V. S. que a matéria dos malefícios em si, além de ser falaz, é tão perigosa
quanto nociva, seja na verificação dos malefícios seja na busca de seus autores.
Romeo desenvolveu uma ampla pesquisa sobre o background da postura "moderada" assumida dali em diante
e cada vez mais claramente pelo Santo Ofício romano em matéria de bruxaria (cf. Romeo, Inquisitori, Esorcisti
e Streghe , op. cit. A carta foi reproduzida por P. Scaramella, em Carteggi dell'Inquisizione Romana con i Tribunali
dei Sant'Ufficio Napoletani, 1567-1625, no prelo).
15. BNN, ms Branc. 1 B 7, cc. 51r-54v.
16. Cf. Tedeschi, The Prosecution of Heresy, op. cit. , PP· 215-216 nota.
Pedagogia Inquisitorial
410
.
menos desde que as novas regras tinham entrado em circulacão sabiam muito bem o
'
quanto era difícil atribuir a morte de alguém a poderes mágicos. De fato, não parece que
os tribunais inquisitoriais italianos tenham modificado seus comportamentos após esse
decreto: e, de resto, não esperaram o aparecimento da Instructio para seguir u•ma práxis
tendencialmente pouco sanguinária, quando não completamente branda no que se refere
às bruxas. Uma pesquisa sobre a história da Inquisição na segunda metade do século XVI
demonstrou a disseminação de posturas e comportamentos inclinados à compreensão e
A Confissão
411
à brandura em relação a quem caía nas malhas do tribunal pelos crimes de magia e en-
cantamentos 17. Essa postura não dependia tanto do ceticismo ou da atitude racionalista
em matéria de ação diabólica, mas de uma combinação de realismo e de paternalismo.
O realismo aparece continuamente na avaliação dos moventes concretos que
levavam homens e mulheres a fazerem uso da magia. O núncio em Veneza Alberto
Bolognetti, ao concluir sua malfadada nunciatura (1581), apresentou um quadro da
atividade do tribunal da Inquisição empenhado em
[... ] várias matérias de heresia entre as quais as mais frequentes , ou pelo menos as que o
mantiveram mais ocupado, foram duas: superstições de encantamentos e infidelidade de cristãos
judaizantes. Os encantamentos - observava Bolognetti -, embora a maioria deles tivesse aquelas
circunstâncias que os tornavam matéria de Inquisição, ou seja, adoração de demônios , orações e
defumações de incenso de bálsamo, de enxofre, de assa-fétida e de outros odores bons ou tristes,
não decorriam, ao que se podia ver, de inclinação à heresia, mas tendiam àqueles dois fins , ou seja,
amor ou ganhos, que podem tanto nos homens levianos 18 •
Amor e ganhos: era por esses motivos que se recorria ao demônio e tentava-se pôr
à prova o poder do príncipe das trevas. Os homens de igreja registraram por muito tempo
a duração desse princípio extremamente forte na recorrência ao demônio 19• O núncio
Bolognetti contava ainda que dos processos tinham vindo à tona histórias incríveis,
como as "que se leem nas fábulas dos romances". Eram histórias verdadeiras, no duplo
sentido de realmente acontecidas e de um real envolvimento de forças demoníacas:
mas também era verdadeira a combinação de literatura e de realidade, "de fábulas de
romances" e de paixões e necessidades reais a que aludia o núncio.
Os processos venezianos da época confirmam o entrelaçamento entre literatura
e vida real e confirmam também a realidade do pacto com o diabo. Em 10 de abril de
1590, por exemplo, foi recolhido na água de um canal veneziano uma folha de papel
onde os estupefatos leitores encontraram um verdadeiro ato formal de culto ao demô-
nio por parte de certo Andrea, que pedia em troca de sua alma o amor da mulher de
seu patrão. Houve interferência da Inquisição e Andrea foi identificado e interrogado;
admitiu tudo e declarou que, desesperado de amor, tinha copiado de uma Vita di San
Basilio o texto do contrato com o demônio e o assinara com o próprio sangue. Mas
depois, assustado com o que fizera, jogara-o fora "na cloaca, que foi dar no canal" 20 •
Como se vê, se os núncios liam romances de cavalaria, os artesãos e a gente humilde
liam vidas de santos e pescavam suas informações sobre o diabo na literatura devota.
Talvez por esse fato, também que denotava de todo modo o terreno favorável à religião
Pedagogia Inquisitorial
412
oficial em que se dava a batalha, as punições não eram tão duras como aquelas contra
os verdadeiros hereges. Penitências salutares e um período de afastamento de Veneza
foi tudo o que o ato de Andrea, teoricamente tão grave, causou ao culpado.
A postura de compreensão pelas "inclinações" dos acusados de que dera exemplo
o núncio Facchinetti traduzia-se em penas leves: abjurações públicas e penitências salu-
tares. (Era importante a abjuração pública, notava o núncio , porque podia contribuir
para a educação do povo no que se refere àquelas práticas de magia.) Era a difusão
dessas práticas, sua normalidade social, que sugeria posturas desprovidas de rigidez.
Até os que se dirigiam ao tribunal da Inquisição pedindo justiça sumária eram mais
frequentemente clientes decepcionados de bruxas e feiticeiras do que cristãos obcecados
pela ameaça do demônio 21 • Dessa combinação de conivência, compreensão e ceticismo
resultou de todo modo uma postura branda que devia caracterizar por um longo período
o comportamento dos tribunais inquisitoriais italianos. Um fervoroso teórico da linha
dura, o franciscano observante de Novara Ludovico Sinistrari, teve de admiti-lo com
amargura: na Itália - escrevia Sinistrari em 1700 - as bruxas quase nunca iam acabar
na fogueira , ao passo que fora da Itália era a pena ordinária 22 •
A relativa brandura italiana é atestada, de resto, também nos níveis inferiores da
estrutura inquisitorial, onde se confundia variadamente com níveis de cultura diferentes
dos que caracterizavam o ponto de vista romano.
Um caso concreto talvez nos ajude a decifrar melhor algumas das características
do trabalho inquisitorial no que se refere aos casos de magia e bruxaria. Tomemos um
exemplo entre os papéis da Inquisição de Pisa. Tratava-se de um tribunal com fama
de relativa brandura: um espanhol que fazia encantamentos e magias reconheceu que
jamais faria o mesmo na Espanha "porque a Inquisição de lá é mais rigorosa e não
é tão branda como a daqui" 23 • Essa brandura maior decorria também do confronto
com as práticas do tribunal laico da vizinha república de Lucca, onde ocorreram então
condenações à morte por bruxaria 24 • No entanto, a experiência vivida por Cammilla
21. Um único exemplo dentre os muitos que se poderiam dar: em 2 de setembro de 1609 foi endereçada ao
inquisidor de Pisa a denúncia contra uma bruxa, Doralice de Siena, por certo Tommaso Ciampoli, que a
acusava de ter-lhe "prejudicado, ou melhor, embruxado o filhinho" e pedia "que justiça seja feita por tamanho
malefício"; soube-se depois que Ciampoli levara o filho doente a Doralice para que o curasse e que somente
o fracasso da cura levara-o à denúncia (MP, lnquisizione, f. 4, cc. 38r e ss.).
22. "Regulariter extra Italiam, suspendia et incendio punitur. ln ltalia autem, rarissime traduntur huiusmodi
malefici ab inquisitoribus Curiae saeculari" (Ludovici M. Sinistrari, De Delictis et Poenis, Venetiis, apud Hie-
ronymum Albriccium, 1700, p. 277, cap. "De Poenis Sagarum").
23. O documento, citado anteriormente, cap. III, nota. 31, está guardado em MP, Inquisizione, f. r, cc. n. n. O
nome do espanhol era Gaspare Yitale e a denúncia contra ele foi apresentada em 23 de setembro de 1579. A
passagem não escapou a Romeo, lnquisitori, Esorcisti e Streghe, op. cit. , p. 178 e nota. Para uma leitura conjunta
dos processos pisanos do período, cf. Ornella M. R. Palazzi, Alcuni Processi per Stregoneria e Magia a Pisa nella
Seconda Metà dei Cinquecento, Tese de Graduação, Università degli Studi di Pisa, a. a. 1988-1889.
24
· Os processos de Lucca foram tema de vários estudos. Uma transcricão dos documentos e um estudo foram
objeto do trabalho de Vittorio Antonelli, Processi per Stregoneria a Lu~ca dai 1571 a 1605 Tese de Graduação,
Università degli Studi di Pisa, a. a. 1990-1991. '
A Confissão
413
"Não sei, se tivessem me visto em forma , o que diriam?" Então, diante da palavra em forma
fiquei muito desconfiado, por me parecer termo da arte, e disse-lhe: "O que quer d izer em forma? "
"É, replicou ela, porque dizem que vou em forma de gata" - como se antes tivesse querido dizer: "se
tivessem me visto em forma humana o que diriam, já que não puderam me ver desse modo porque
vou em outra forma" . E minha conjectura - concluía Mazzinghi - é que entre eles ir em forma sig-
nifica por excelência ir em forma humana.
Agora O remédio que a isto se poderia aplicar, ao que me parece (remetendo-me sempre ao
vosso saber e juízo), seria V. S. conversar e dizer-lhe que é muito bem informada, que não se resolve a
25 . AAP, S. Uffizio, f. 4, 1610-1614, cc. 193 r. e ss. Sobre esse processo cf. a tese de graduação de Paola Senesi,
Camilla da Fabbrica, Università degli Studi di Pisa, a.a. 1994-1995.
Pedagogia lnquisitorial
414
confessar tudo por ter sido distraída e perturbada pelas pessoas malignas que gostariam que morresse
em uma prisão e tivesse os braços amarrados, dando-lhe a entender que seria morta e queimada,
mas que isso está longe da verdade, porque no Santo Ofício não se procede com tal rigor como nas cortes
seculares; e que nesta corte são aplicadas apenas penitências tal qual também é feito na confissão secreta e que
V. S. quer benevolamente que ela confesse tudo e peça perdão, e que, sobretudo, V. S. pede-lhe que
o faça para que aquelas crianças doentes sarem, e que prometa não mais fazer mal no futuro , e que
ela depois verá que V. S. procederá com ela humanamente de acordo com a justiça 26 •
E finalmente, tendo-lhe feito tal discurso, se a Secreta não impetrar o que foi pedido, será
necessário erguer a voz, ir ao Prefacio e deter-se no Sursum corda, onde será necessário que ela padeça
ou diga a verdade.
26. As duas cartas de Mazzinghi estão conservadas em idem, cc. 22lr-223v. O grifo é meu.
27. Idem, cc. 214r-215r.
A Confissão
XIX
UMA INQUISIÇÃO "PASTORAL"?
emeaçadoras, às quais correspondia uma prática bem mais moderada: uma rápida
rondagem sobre os processos efetuados por volta da metade do seculo XVII mostra que
a absolvição era garantida para todos os que se arrependessem e que eventuais rigores
Jos tribunais locais eram objeto de reprovações e de chamadas à ordem por parte do
Santo Ofício: as orientaçÕes romanas eram que as mulheres acusadas não somente de
simples encantamentos bem como de bruxaria deviam ser punidas por meio de "pe.
nitências salutares"5. A estrategia das ameacas terrificantes visava a obter o abandono
Je práticas disseminadas, no centro de um uso social extremamente intenso. Era uma
estratégia eíicaz foi justamente por ter ouvido dizer que queriam "queimar... todas as
t'ruxas que existem no povoado, caso não se convertam" eqe B"rtolomea Golizza, de
Farra d'Isonzo, {oi ter com seu confessor em Cividale, em marco de 1648, e depois se
apresentou ao inquisidor; o dela não era arrependimento verdadeiro, apenas "temor do
tbgo que a ameacava", advertia o pároco ao apresentar o caso. Entretanto, não obstante
a enormidade dos crimes coníessados, Bartolomea foi deixada em liberdade, com as
'costumeiras penitências "salutares"6.
O fato e que esse campo era vasto e complicado, a ponto de parecer incontrolá.
vel, coincidindo com as formas mais difundidas da cultura popular. Naqueles mesmos
ânos, um vigário do domínio florehtino pedia a seus superiores permissão para designar
alguns deputados para acatar e resolver sumariamente denúncias de blasfêmias hereticas
e supersticÕes, "porque as pessoas distantes, na maioria camponeses, não podem vir"?.
Assim, severa na teoria, a ameaça traduzia-se em benevolência paternal para com os
temerosos penitentes que apinhavam tribunais e confessionários.
Enquanto editos e "práticas" marcavam os novos limites da ação do Santo Ofício,
os arquivos da Inquisição comecaram a ficar repletos de descrições detalhadas de ritos,
oracÕes, receitas: os notários transcreveram-nos com muita paciência a partir da viva
r-o: de testemunhas ou de acusados. Denúncias e autodenúncias chegavam sem parar:
eram padres, que recorriam ao inquisidor para obter de sua autoridade a intervenção
'eficaz contra leigos suspeitos, o que alguns anos antes era de competência dos bispos;
era sobretudo um número incalculável de mulheres que ultrapassavam as soleiras clos
'lrcariatos da Inquisição, levadas - diziam elas - por escrúpulos e arrependimentos: na
lrealidade, eram enviadas oficialmente ao tribunal por seus confessores, sob ameaca de
"Expedi'la com admoestacões e penitências salutares e libertá-la da prisão": foi esta a ordem que a congregacão
Jo Santo Oficio Bolonha, por meio de carta datada de 25 de janeiro de 1649, no caso de Pellegrina
íez chegar a
Zecca acusada de bruxaria e submetida a um procedimento que em Roma foi julgado "demasiadamente rigo.
roso" (sobre esse processo, conservado no Arquivo Arquiepiscopal de Bolonha, e sobre o contexto dos casos
Je hetesia e bruxaria tratados por esse tribunal no século XVII, cf. Giuseppa Fan, IiAnivitd del s. Offfzio deltn
InquisiTioneaBoLogna(1635-169q,TêsedeGraduação,UniversitádegliStudidiBologna, a.a. 1974.1975;àp.
117 encontra-se a carta supracitada).
.{rchivio della Curia arcivescovile di Udine, S. O/ficio, b. 29, íasc. 18, cc. n. n. A carta do pároco de Cividale - um
significativo testemunho da rotina instaurada entre confessores e inquisidores - é de 4 de abrii de 1ó48.
Carta de Francesco Montichiari, de Fivizzano, 5 mat 1623, publicada pelo autor do presente volume em Vrcari
deLL'Inquisíxione Fiorentina allaMetà del Seicenro, op. cit., p. 304.
i,$p..rl..ao
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419
cuidado e atenção, deixando passar tudo aquilo que não se chocava diretamente contra
a disciplina da sociedade cristã. Nos níveis inferiores do corpo eclesiástico encontrava-se
disseminada a tranquila ceïteza de que, na luta contra os poderes mágicos, a Igreja podia
descer sem temor no terreno de um confronto direto. Mesmo o último dos clérigos
podia enfrentar vitoriosamente o poder de magos e bruxas e derrotar as aÍtes diabólicas
com os poderes conferidos pelas potências celestiais atraves dos canais de uma ordenada
hierarquia: não só derrotá-los, mas até emulá-los, oferecendo a quem precisasse uma
proteção superior. Se "mesmo entre as pessoas boas" recorria-se a poderes mágicos e a
práticas supersticiosas, como admitiam os vigários da Inquisiçãor0, isso significava uma
necessidade grande e difusa de veículos do gênero para garantir para si a saúde, a sere-
nidade, o amor, a riqueza. Pois bem, a lgreja encontrava-sè presente justamente nesse
terreno com meios adequados, ela podia oferecer não uma religiao intelectualizada e
racionalmente depurada, mas os imensos poderes e os inúmeros veículos do sagrado
legítimo. Se o mal se individualizava e cada um tinha seu demônio, havia sempre um
Anjo da guarda para cada um; e, de resto, o poder dos demônios era enfrentado e batido
cotidianamente em espetáculos públicos pelo poder dos exorcistas.
Naturalmente, o uso indiscriminado e repetido desses poderes criava alguns pe-
rigos para a ordem da hierarqula: o confronto dramático e espetacular entre potências
do bem e potências do mal de que podiam dar prova os exorcistas não combinava com a
orientação tranquila da hegemonia católica na situação italiana. Por isso, a intervenção
da Inquisição tornou-se necessária tambem nesse terreno.
)o(
INeursrDoRES E ExoncISTAS
ì
pressão social sobre a Inquisição revela.se de modo todo especial no âmbito da-
quela matéria das "possessões demoníacas" e dos exorcismos que aumentou então
incontrolavelmente, trazendo problemas novos e de extrema gravidade às autoridades
de todo o tipo. Também nesse caso é difícil distinguir se o crescimento do fenômeno
era aparente ou real, ou seja, se era devido a uma alteração das escalas de leitura da
realidade por parte dos tribunais e corpos constituídos ou remetia a modificações
eíetivas dos comportamentos sbciais. E futo que a casuística revelada pelas fontes
a partir da segunda metade do século XVI e durante todo o XVII é de uma riqueza
impressionante. Não se tratou de um problema especificamente italiano. Quanto
às interpretaçÕes desses dados, a alternativa que as fontes da época nos deixaram e
a da escolha entre simulação e realidade. Uma comparação atenta entre os casos de
exorcismos que ocorreram então na França e na Inglaterra colocou em evidência o
uso instrumental dos casos de possessão por parte das autoridades eclesiásticas para
fins de propaganda religiosa: tratava.se, em situações de conflito confessional, de
aproveitar o clamor dos ritos públicos de exorcismo e de fazer com que os demônios
desempenhassem a missão de apologetas da fé1.
Na ltália, a incidência dos fenômenos de possessão e das práticas de exorcismo foi,
tambem, bastante elevada. Ela pode ser percebida, indiretamente, pelas próprias fontes
inquisitoriais. Se a Inquisição adentrou o terreno das possessões, foi justamente para
fazer frente a um fortíssimo aumento de histórias clamorosas e para impor o próprio
controle ao corpo dos exorcistas de ofício. A atitude cauta, desconfiada, destinada a
esfriar e a isolar o fenômeno, impedindo seu aumento epidêmico, desenvolveu.se na
estrutura inquisitorial em razão direta de uma pressão social insolitamente aguda, e
isso remete à questão das causas que tornaram o estado de possessão uma formação
cultural característica dessa época - ainda que não limitada a ela.
1. Cf. D.P. Walker, Possessione ed Esorcismo. Francia elnghiltenafraCinque eSeícento (edição original UncbonSpints,
Philadelphia, 1981) trad. it. Torino, 1984. Cf. sobre este iiwo as profundas observações de Ottavia Niccoli,
"Esorcismi ed Esorcisti tm Cinque e Seicento", Socierà e Storia, )oCüI, 198ó, pp. 409418. Para uma época dife-
renre, mas sempre seguindo o fio dos usos políticos e apologéticos de determinados fenômenos psíquicos, cí.
RobertKreiser, Miracles, Contulsioru andEccltsíasticalPotiticsinEarlyEighteenth'CenturlPans, Princeton, 1978.
422
Quaisquer que fossem suas causas, é certo que no interior da instituição inqui.
sitorial não demorou muito a ser usada para esse propósito uma linguagem completa-
mente diferente daquela que prevalecia entre os exorcistas ou mesmo entre os juízes
laicos. Enquanto os tratados para exorcistas desenvolviam uma ciência especial dos
sinais, abrindo um caminho que devia pôr em comunicação os poderes humanos do
exorcista com as potências do outro mundo - e presumia-se que os corpos dos magos
Ì, ! e endemoniados fornecessem os sinais da eficácia da comunicação -, a literatura
inquisitorial oferecia apenas umas poucas indicações de procqdimentos, advertindo
frequentemente sobre o risco de excessiva credulidade. Ate mesmo nas advertências
para o clero, redigidas por bispos decididos a eliminar os abusos, o problema de
como reconhecer os verdadeiros endemoniado, i-|0, uma lógica que não encontra
similaridade na literatura inquisitorial, por sua natureza orientada em outra direção.
Segundo Gaspare Cervantes, o sucessor de Seripando em Salerno que demonstrou
especial atenção nessa matéria, devia-se admitir que certa pessoa era um verdadeiro
endemoniado quando se comportava de determinados modos, por exemplo, quando
"fala em alguma língua que aquela pessoa antes não conhecia"2. Mas foram sobretudo
os exorcistas de ofício que se aventuraram nesse terreno. A Menghi - e a seu celebre
Compendio dell'Arte Essorèística, et Possibílítà delle Mirabili et Stupende Operationi delli
Demoni - pode.se opor Menghini, autor de um pequeno tratado de prríxis inquisito-
rial que listava superstições e preces a serem evitadas. De um lado, uma angelologia
mirabolante, uma ciência das metamorfoses e das operações mágicas no tempo e no
espaco, um olhar ávido lançado sobre a vida cotidiana dos anjos do abismo, com uma
inexaurível riqueza de detalhes (por exemplo, sobre as línguas diabólicas, que - apren-
demos - são tantas quantas as diferentes regiões dos homens, com uma exceção para
a Itália: "os Demônios [...] podendo falar entre si sem voz, [...] exercitam-se e falam
com as línguas de todas aquelas gentes, embora os demônios que habitam entre nós,
italianos, possam íalar todas as outras línguas; mas soem fazer isso mui raramente,
e com imensa dificuldade"'). De outro, uma serie de instruções burocráticas sobre o
modo de colher os testemunhos e as confissões, onde a ciência dos anjos e substituída
por poucas regras de prudência quanto ao modo como tratar a crescente matéria das
"superstiçÕes"a. É uma diferença substancial que traz muitas consequências: a ciência
dos espíritos fornecida pelos manuais para exorcistas podia tambem ser usada em pro-
veito próprio - e eis o exorcista competindo com os magos, rezando a oração ao Anjo
?,. Awertimenti per lr Persone Ecclesíastiche, et Massime per Li Curati deLln Diocese Me*opoLitana dí SalBrno et come si
dowannoportdreconlorostessi, eto,ncoÍÕ,conLisuoiparochianiinpublico,etnelsacramentodel.laPenítentía,emRoma,
pelos herdeiros dos Dorici, s. a., c.45t). Sobre a caneira de Cervantes no âmbito da Inquisição antes e depois
do episcopado de Salerno cí. Caiazza, Tra Stato e Papato, op. cit., pp. 59-60 e 79-80 e passim. Sobre a "diagnosi
impietosa" do estado da exorcística traçada por Cervantes chama a atenção Romeo, Inquisitori, Esorcisti e StregÌu,
op. cit., p. 135.
Cí. Girolamo Menghi, Compendio dell',\rteEsorcistica, etPossibíLía dalleMirabili etStupende Ope"rdtioni delLiDemoní,
et de' Malefici, Bologna, G. Rossi, 1576 (ed. Restaurada, Gênova, 1987), p. 55.
4. Menghini, Regoln delTríbumle fuISant'Offício, op. cit.
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branco, usando Satanás na busca a tesouros ou para seduzir a mulher amada. Coube
justamente aos inquisidores ressaltar essa possibilidade: e pode-se facilmente imaginar
que o fizessem de bom grado. Era uma questão de poder, os exorcistas dispunham de
um campo de atuação vastíssimo, seu crédito apoiava-se nas sólidas bases de uma religião
dos espíritos amplamente compartilhada e facilmente acreditada; a presença demoníaca
no mundo e a ciência dos poderes que podiam ser extraídos daí tornavam-se perceptí.
veis por meio do exorcista, numa visível e sugestiva atuação cotidiana de combate aos
demônios. Era por isso tambem que os conventos franciscanos da Observância, onde
eram habitualmente recrutados, gozavam de uma atração religiosa arraigada durante
séculos no seio da população, mais que a paróquia e infinitamente mais que os vica.
riatos da Inquisição. A autoridade ordinária do bispo pàdi" f"r"r muito pouco para
controlar sua atuação; por outro lado, toda a estrutura eclesiástica diocesana, ligada
aos fenômenos locais e aos movimentos da sociedade que a continha, estava por sua
própria natureza disposta a deixar.se envolver nas dinâmicas do evento excepcional,
talvez para aproveitar com finalidade apologética as manifestações públicas da potência
dos espíritos. Embora na sociedade italiana o uso do exorcismo para fins de propagan-
da religiosa contra os hereges tivesse motivos bem menores do que em outras regiões
europeias, isso não significa que a atração exercida pelas dramáticas cenografias de
um alem que irrompia na cena cotidiana fosse desconhecida. A voz do possuído ou
do endemoniado era chamada a coníirmar os ensinamentos eclesiásticos e a decifrar
os misterios do mal e da aversão na vida cotidiana: o espírito do mal, enquanto se
submetia ao poder sagrado do exorcista, revelava cúmplices e adeptos, documentava
tramas de bruxarias e iniciava processos em que toda a comunidade compartilhava
a ilusão de participar de atos de justiça providencial. Ausentes ou disponíveis as au-
toridades ordinárias, não se devia esperar muito nem mesmo do reordenamento de
toda a matéIia dos ritos sagrados a que chegou o Rituale Romanum do papa Paulo V5.
A uniformidade sobrepôs.se à variedade e à improvisação. Mas, apesar das repetidas
recomendações sobre a preparação e os costumes do exorcista, alem da imposição da
presença do medico, o campo para o dlalogo entre o exorcista e os espíritos sobre a
presença de bruxas e suas identidades permanecia liwe.
Com muita írequência, os ritos do exorcismo dependiam da capacidade de im.
provisação e do senso de oportunidade dos exorcistas: a improvisação era obrigatória
naquela que pretendia e parecia ser um embate gladiatorio entre o lutador de Deus
e o do diabo. Forte devido à presença divina da qual era portador e estimulado pelas
presenças do espírito maligno, mas tambem do público, o exorcista improvisava; e nem
todos - principalmente entre os eclesiásticos presentes - achavam corretas tais improvi
sações. Frei Alessandro de Florença, processado pelo bispo de Cortona em t579, curava
as monjas endemoniadas do monastério das Santucceí de Cortona da seguinte maneira:
Inquisidores e Exorcistas
424
Pegou nossos Exorcismi catholici, jogou-os no chão e nos íez pisoteáìos com o pe esquerdo.
Depois jogou o missal no chão e mandou íazer o mesmo com ele, e ao ordenar-lhe que saísse, disse
com muita arrogância: "se és duro, minha cabeça e de ferro e se és gtande, eu sou maior do que tu".
Não usava o livro dos exorcismos, mas "certos exorcismos de sua autoria escritos
a mão"; tinha "um papel que se sabia ter sido arrancado de um Iivro in'oitaq.to, escrito
a mão com uma bela caligrafia antiga, contendo os anjos de patriarcas e profetas, e ao
final dizia: "eu te ordeno em nome de... que apareças neste espelho"l e essas misteriosas
folhas volantes deviam parecer tão suspeitas para os inquisidores, quanto atraentes para
quem, entre os presentes, tentava se apoderar do poder misterioso das palavras sagradas.
E, de fato, resulta dos autos do processo que írei Alèssandro tinha entrado em contato
com um astrólogo de Cortona, perito na arte de encontrar objetos roubados. Além das
palawas sagradas, frei Alessandro não hesitava em recorrer aos proprios sacramentos:
costumava dar à possuída "o Santíssimo Sacramento na mão e fazê-la jurar em cima
dele"; e chegava até mesmo a pôr "o cálice embaixo das roupas das mulheres e encostá-
'1o nas partes pudendas". Obrigara uma monja a tÍazer consigo dia e noite uma hóstia
consagrada fechada numa caixinha, ate que a monja, que não conseguia dormir por causa
da caixinha, fosse falar cÒm seu confessor?. Essas práticas continuaram: a confianca no
poder dos sacramentos e, em particular, da eucaristia era tal que as hóstias continuaram
durante muito tempo a atrair o interesse dos exorcistas, não diferentes dos necromantes
e das bruxas nesse aspecto. Aos limites extremos que separavam o exorcismo do sacrilegio
chegou, por exemplo, um monge que costumava dar "a alguns possessos, exorcizados por
ele, partículas nas quais escrevia as palawas da consagracão, para que as comessem"s.
O choque era inevitável, se Menghi, dedicando seu Compendio ao cardeal Giuho
Feltrio Della Rovere, protetor da Ordem Franciscana (no dia "dos santos estigmas do
beato padre S. Francisco") denominava-o "uma armaria contra os insultos do Diabo",
os inquisidores estavam determinados a valer-se de seu "sagrado Arsenale". Não era
apenas questão de tratados, porque esses diferentes saberes eram chamados a exibir seu
valor diante dos problemas vitais de afecções e doenças que não se sabia como curar.
Mesmo após a publicação do Rituale, portanto, os exorcistas continuaram a dispor
de um vasto campo de ação e a desencadear localmente fenômenos de caça às bruxas.
Podia acontecer com qualquer um o que aconteceu em 1643 a Caterina, fllha de Bar
7. Depoimento de 16 de janeiro de 1578 do cônego Mariotto Banchi, que declara ter tomado conhecimento de
tais coisas por tê-las ouvido das monjas e de sua abadessa "como confessor das teíeridas monjas". A passagem
-{ Confissão
r
425
tolomeo di Buto, de Santa Croce sull'Arno: Caterina tinha onze ou doze anos à epoca
e era portadora, segundo consta de sua pastâ processual, de "um mal muito esquisito,
com írequentes quedas no chão e outros acidentes". Os médicos falaram em um mal
não "natural". Foi chamado um exorcista que, apos ter-se certificado de que a menina
estava "capacitada para o exorcismo", tentou entrar em comunicacão com o hipotético
espírito, ordenando.lhe que se deslocasse para um braço. O braço tinha feito "certo
movimento", mas tudo íicara nisso. Por isso, o exorcista estava inclinado a pensar que
se tratava de doença "natural". Nessa situação incerta, impôs-se a certeza do pai de ter
identificado a autora do "íeitiço", teve origem então um caso de bruxaria, que passou
das mãos do tribunal episcopal para as da lnquisição, indo dar em nadae.Portanto,
Caterina e seus pais tinham passado do exorcista ao bispìo e deste ao inquisidor: sinal
de uma incerteza entre os súditos, mas tambem de um conflito entre os titulares do
poder. Foram poupados, ao que parece, de passar pelo tribunal criminal do prÍncipe:
mas esse quarto posto do poder não se manteve absolutamente afastado de tal prática
na epoca. Em Florença, na segunda decada do século XVII, o tribunal criminal dos Oito
teve de trabalhar muito com casos de íeitiços e bruxarias: na mesma época, a cúria ar.
quiepiscopal florentina organizou uma verdadeira congregação de exorcistas para {azer
frente a urnâ enorme quantidade de casos de suspeita possessão demoníaca1o. Assim,
a materia genericamente reunida sob a etiqueta "superstição" era objeto de diversas
candidaturas por parte dos poderes laicos e eclesiásticos - sinal de uma emergência,
atestada de resto pela grande quantidade de queixas e de denúncias acumuladas entre
os papéis da Inquisição. Antonio Maria Cospi, um juiz que então tratou de muitos
casos de bruxaria e necromancia em nome do tribunal grão-ducal, deixou-nos em uma
obra postuma um quadro inquietante das convicçÕes com que atuara em seu trabalho
de juiz: ele acreditava na eficácia malefica de preparados à base de "gorduras de meni-
nos assassinados [...ì ou de outros homens vítimas de morte violenta ou mortos pela
mão da justiça"; procedia à busca de "agulhas, alfinetes, espinhos, estacas, pregos [...]
anéis, imagens, caracteres, lâminas de chumbo"; registrava os ritos e os esconjuros dos
ligamentos para causar a impotência sexual; debruçava-se fascinado sobre o caráter e os
limites dos poderes diabólicos, apoderando-se copiosamente da literatura exorcística11.
O caso íoi instruído na cúria episcopal de San Miniato, mas um resumo foi p".", ìo arquivo da Inquisição de
Florença (ACAF, Misc. S. Uíido, b. 35: "Compendio e Sunto delli Inditii che Vegliano neÌ Processo Fabbricato...
contro Polita Baroni e Lisabetta sua madre da S. Croce ptesunte steghe e maliarde"). Cf. do autor deste volume
"lnquisitori e Streghe ne1 Seicento Fiorentino", em aa. w., Gostanza,IaStrega di SanMíniato, org. de F. Cardini,
Bari, 1989, pp. 241 e ss. Não me foi possível consultar o processo original, conservado no arquivo diocesano
de San Miniato (cí. Livio Tognetti, "Polita e Lisabetta Baroni le Streghe di S. Croce suÌl'Arno", Bollettino üLLa
Accademia degLi Eutelcti, n. 58, dez. 1991, pp. 105-1i0). De acordo com a sentença, publicada por Tognetti, o
processo iniciado em 24 de abril de 1643 foi concluído em 16 de setembro com leves medidas policiais contra
a principal acusada, Lisabetta Baroni Capannini, condenada a un ano de exílio fora da diocese.
l0 Remeto a propósito ao já citado ensaio "lnquisitori e Streghe".
ll As diíerentes íontes da cultura desse singular juiz-policial são indicadas no tírulo de sua obra, publicada
postumamente pelo sobrinho Ottaviano Carlo Cospi' Antonio Maria Cospi, IL Gíudice C-riminalisto... dove con
O caso toscano dessa época deu ensejo a uma correção da postura da Inquisição
em toda essa matéria, que ia da magia e da possessão demoníaca ate a bruxaria como
tal. Contra a atividade de Cospi, considerado "juiz incompetente", e ao mesmo tem-
po para obstar as interferências eclesiásticas de outro tipo (os exorcistas, os ffibunais
episcopais), o cardeal Giovanni Garcia Millino, por ordem do Santo Ofício, expediu
t de Roma a Instructio pro Formandis Processibus elaborada por Scagliatz. E e aqui que ve-
\ mos atestado o que se pensava dos exorcistâs nos ambientes do Santo Ofício: vítimas
í
(ou aproveitadores) de enganos femininos, urdidos sobretudo por monjas incapazes
i
1
de suportar a clausura e a castidade. Como era apropriado a um ato do Santo Ofício,
ele não se reíeria apenas a Florença, mas fazia parte de uma vasta carnpanha destinada
a deter os efeitos devastadores da crenca no -au]olhado e na bruxaria. A Inquisição
tendia a considerar como uma questão única aquilo que os exorcistas e os juízes laicos
como Cospi esfalfavam.se em separar em infinitas espécies diferentes: e partia mais
dos efeitos terrenos do que das causas ultraterrenas. De fato, referiam-se a ela como
"matéria dos malefícios" e consideravam-na - como escreveu o próprio cardeal Millino
ao inquisidor de Lodi - uma materia "falaz e por demais incerta"ll. Materia rica em
enganos e erros, portanto: e para sair de um emaÍanhado de erros que tinha posto à
prova a propria autoridâde da Inquisição, decidia-se adotar como único criterio de juízo
o dos resultados concretos desses crimes, os "malefícios", suspendendo qualquer juízo
sobre a existência de pactos com o diabo, sobre voos noturnos e outros elementos típicos
do paradigma da bruxaria. O demônio citado nesse documento não era o anjo negro
de amplos poderes dos manuais de exorcistas, mas o espírito da mentira e do engano;
escapar de suas armadilhas só era possível permanecendo firme no terreno da prática: e
em nome da experiên cia, rerum maglstra, eram iniciadas as tais instruções. Tirava-se daí
a impressão de que o mundo ultraterreno tinha se tornado menos decifrável. Natural-
mente, o demônio era o pai da mentira: mas a prática do Santo Ofício atinha-se mais
às capacidades humanas de mentir e de distorcer. E justamente a
partir da prática com
as mentiras e com as falsas aparências do mundo humano parece ter-se iniciado aqui o
declínio do inferno que dominou então a cena teológica europeia14.
Entre os mentirosos - ou pelo menos entre aqueles que eram vítimas mais
fáceis dos enganos de mulheres (visionárias, possuídas, bruxas) - eram recordados
os membros das corporações eclesiásticas especializadas sm discernir e controlar os
espíritos: e, em primeiro plano, estavam os exorcistas. Quanto às provas, remetia-se
à experiência amadurecida nos procedimentos inquisitoriais; e de fato, nos arquivos
da Inquisição não faltam indícios de como foram acertadas as contas com os exop
dottrina teoLoglca, canoníca, ciuíln, filosofica, medica, storica e poetica si discorre dí tutte quelle cose che aI gludíce dcIle
l-
i
:{\ A Confissão
r.
{l;
15. Nos processos do século XVII, enconffam.se ftequentemente casos de exorcistas inquiridos. Um exemplo é
fornecido por algumas pasras conservadas no fundo remanescente da Inquisição boionhesa, ms B. 1888 da
Biblioteca Comunale dell'Archiginnasio di Bologna.
16. Uma relação sumátia é íornecida em M. Petrocchi, Stona dB.Lla SpírítuaLíta haLiana, Secc. XÌII-XX, Roma, 1984,
pp. 157 e ss.
Cí. Pastot, Al\gemeineDekreteop. cit., p.48.
Carta de 1. de dezembro de 1657 ao inquisidor de Florença, conservada em ACAF, Misc. S. U/Ízio, b. tt.tlt,
doc. n. 135.
19. IllnclüestadilnnocenzoXsuíRegolniinhalía. ITeatini,org.deMatcellaCampanelii,Roma, 1987,p. 171.Ainda
não foram estudados os inventários da investigação do íinal do século XM, mencionados por Romeo De Maio,
Riforme e Miti nella Chiesa del Cinquecento, Napoli, 1973, pp. 365 e ss.
I n qu is i dors e Lu.rcr.tr.
lr"-"
428
20. 't...1 Considera-se culpado e acusa também ter dito a Pasquarino de Valle di Casana, diocese de Brugnato, que
as palawas -iesus transiens per medium illorum tèm a grande virrude de proteger, para que os submetidos à tortura
não coníessem, ou que comendo na manhã da toÍtuÌa um pâpel onde estejam escritas as palawa s Cotsumatum
est, não confessaria nada" (Comparecimento esponrâneo de 20 de maio de 1622, AAp,S.l.Jffizio í. 6, cc. n. n.).
21. ACAF, Misc. S. U/fixio, b. ttatt, doc. n. 29 (autodenúncia de 21 de julho de 1650).
22. Arquivo episcopal de San Miniato, CiviLe del|'Anno 1ó42, processo contra Caterina Volterrani de Ponsacco
(Silvia Nannipieri, que me cedeu gentilmente o texto, prepaÌa a publicacão desse material).
A Confissão
r
419
como exigia a"instructio" de Scaglia - mas tambem porque o inquisidor já tinha testado
em um caso dramático a disponibilidade dos acusados de confessar sob tortura coisas
não verdadeiras. Anos antes, no tribunal da Inquisição de Concordia e Aquileia, um
acusado confessara ter participado do sabá e ter provocado a morte de muitas crianças:
os pais dessas crianças todavia desmentiram tudo. O acusado, apavorado por "ter dito
mentira no tribunal [...] enforcou-se"23. A tortuïa e o suicídio tentado pelo acusado
íriulano pouparam então outros sofrimentos à pobre Caterina Volterrani.
O que precisava ser desfeita era a ligacão entre a ciência dos espíritos cultivada
nos conventos e a creduhdade de um povo ateÍrorizado pelos feitiços e pelas doencas.
A peste de 1630, por exemplo, levou à difusão de um antigo instrumento de protecão,
os "breves" devocionários: era costume carregá-los .o.rtigo contra todos os tipos de
agressão24. Mas essa prática, que nos seculos precedentes alimentara o funcionamento
de tipografias monásticas como a de Badia em Ripoli, tornara-se finalmente intolerável
para uma religião depurada, na qual a Inquisição assumira o papel de herdeira e instru.
mento da luta de são Carlo Borromeo contra as superstições. E foi justamente o modelo
de Borromeo a ser evocado nas instruções expedidas de Roma, por ocasião da peste
de 1630, para a publicação de um édito contra essas "vãs superstições"25. Certamente,
as tipografias trabalhavam desde muito na producão não só de breves devocionários,
mas tambem na de materiais de necromancia: as primeiras incursões inquisitoriais no
mundo da tipografia veneziana tinham revelado casos significativos nesse sentido26. Mas
logo não se fez mais distincão entre oracÕes de necromancia e breves devocionários: a
ordem íoi para que se fizesse "queimar em público os referidos escritos de sortilegio e
magia e registrar em processo tal ato"z1.
A caça às formas irregulares da prece e da devocão que se desenvolvia de tal modo
no mundo católico foi apresentada como o equivalente do que acontecia nesse ínterim
no mundo protestante: um processo paralelo de depuração e de intelectualização da fé
ocorreu indubitavelmente nos dois lados da muralha que opunha as confissões cristãs
na Europa28. Realmente, os inquisidores vestiram com frequência as vestes de pacien.
tes pedagogos, em seu esforço de tirar da cabeça de denunciantes e de denunciados
a fé nos poderes mágicos. O próprio tom de seus editos muda substancialmente por
23 Carta do inquisidor írei Ludovico, de Pisa, 12 de junho de 1647 Gden). O."ro dJ íeiticeiro friulano Olivo
Caldo é relatado por Ginzburg, I Bemndanti, op. cít., pp. 148.151.
?,4. E, pelo menos uma vez, íoram encontrados com qu.rn o, ,r".'u, É o caso do documento encontrado e publicado
por Giulio Battelli, "Tre 'Brevi Devozionali del' 500. IJn nuovo testo del 'Pater noster'di San Giuliano",
em
Miscellanea dí Studi Marchiglani ín onore di Febo AIIÊui, org. de G. pace, Agugliano, 19g7, pp. 23 e ss.
!5 A carta, do cardeal de Santo Onoírio, dirigida ao inquisidor de Florenca, é datada de 28 de setembro de 1ó30;
acompanha um édito que não íoi conservado e comenta-o, observando que tais supersticões "como tais
íoram
proibidas também por s. m. de São Carlo Borromeo" (Rcer, M*c. S. lJffizio,b. II.ÌII, n.
42).
26. Como o de dom Iseppo de Carpenedolo, processado em 1534 (Archivio Patriarcale di
Venezia, S. lJffízio,b. Z,
cc. 455r-501u).
)7. Carta do cardeal Arrigoni de 23 de agosto de 1608 (ACAF, Misc. S. U/Írio, b. Il.tti, n. 1).
:8 E a conhecida tese de Jean Delum eau,It catholicisme entre Luther etVohaire,Paris, 1971 (trad. it.
Milano, 1976).
volta do final do seculo XVl, no momento em que sua ação se volta para os terrenos
ì da blasfcmia e da superstição:
Por não termos outro intento - advertia frei Pietro Visconte de Tabia em 1598 - a não ser
a honra de Deus e a saúde das almas, convidamos e convocamos, com caridade paternal, a todos
os anteriormente nomeados infratores em penitência a comparecerem por livre e espontânea
vontade ao S. Ofício e livremente confessarem seus erros e prometemos.lhes usar de misericórdia,
recebendo-os com benevolência, absolvendo-os e impondo-lhes penitências secretas sempre que
possível e conveniente?e.
h\=- I
!;' \ I C..nilr.ão
[íi,
r
4ll
Naturalmente, isso não significa que se podem arregimentar sem outras distin-
çÕes as milícias da Inquisição sob a bandeira da razão:
e nem as analogias entre a luta
contra as superstições no mundo católico e no protestante devem fazer esquecer as
diferenças. No campo católico, por exemplo, junto com os breves, os "Agnus Dei" e
oS terços bentos considerados como "supersticiosos", havia os 'Agnus Dei", os breves,
as medalhinhas e a água benta considerados como ortodoxos: não e insólito o caso de
discussões e objeções promovidas por supostos magos e bruxas junto a inquisidores
embaraçados32. A importância dos veículos sensíveis do sagrado, o poder que palavras
e objetos tinham na liturgia católica de transformaÊse e transíormar eram fatores que
impediam qualquer interiorização e intelectualização da fe religiosa tão radical quanto
a perseguida no cristianismo da Reforma. Diferenciai o heretico do ortodoxo' nesse
tipo de práticas - uma vez abandonado o caminho da demonologia dos exorcistas -
significou percorrer ate o fim um caminho mais harmonioso para uma instituição bu-
rocrática e fortemente centralizada: era ortodoxo (ou era herético) o que a autoridade
eclesiástica definia como tal. Quem se detinha nas semelhanças entre ritos ortodoxos
e práticas supersticiosas já se encontrava no perigoso caminho da heresia. A fórmula
da abjuração - Credo quod credit sanctaMater Ecclesia - era uma rendição incondicional
. o abandono de todo exeroício autônomo do pensamento.
32. Ao inquisidor que lhe perguntava por que Ìecorria a terços bentos, Maddalena Serchi de Certaldo respondeut
"O padre disse no altar que eles têm grande virtude e devoção, que soubéssemos disso" (dep. de 11 de julho
de 1625; veja+e do autor do presente volume "lnquisitori e Streghe"' op. cit., p. 232)'
[,
{
r:
XXI
SNxIDADE VT,nONDEIRA r, FRmn
1. Cf. G. Zani, Le Sante Vive. Profezíe di Corte e Deuozíone Femminile rro '400 e'500, Torino, 1990.
t:
434
oficial da religião leva a dramatizar e a considerar com desconfianca toda uma serie de
manifestações que já tinham pertencido ao patrimônio do cristianismo medieval: entre
elas, a santidade milagrosa e taumatúrgica.
A crítica da "superstição" foi acompanhada por uma crescente polêmica contra
a busca de guias carismáticas em lugar da hierarquia oficial. Pregadores ilustres como
Serafino de Fermo advertiam contra o excesso de curiosidade em relação aos "espiri-
tuais" - que ele, de modo depreciativo, chamava "espiritados"l mas os "espirituais"
gozaram de tamanho prestígio a ponto de fazer sombra à igreja institucional. A busca
de "sinais" visíveis - profecias, miiagres, poderes extraordinários como a levitação, o
voo, as aparições - caminhavapari passu com o descredito que a crítica humanística,
ampliada e intensificada pela polêmica reformadora, tinha lançado sobre toda essa
serie de coisas. E sobre este fundo que se deu o avanço da lnquisição no território
da santidade.
No início do século XVII, o avanço estava virtualmente concluído. As primeiras
solenes celebrações seiscentistas de novas beatificações fecharam um longo parêntese
Ì de incerteza e de suspense. Mas, na epoca dessa retomada, o Santo Ofício mantinha
I sob rígido controle a atividade da congregação cardinalícia responsável pelas causas
i dos santos
Não podemos dizer que conhecemos detalhadamente a história de como tinha
se consolidado esse tipo de controle. No plano doutrinário, a fundamentação foi pro-
piciada por Roberto Bellarmino: se o papa tem o poder de definir a verdade da fé e
de decretar quem são os hereges, consequentemente tambem tem o poder de indicar
quem são os santos a serem venerados. Portanto, da precedência na luta contra a heresia
deriva especularmente o direito de decidir quem são os santos2. Bellarmino captava com
precisão um fenômeno característico da história da Igreja nesse período. Os polemistas
da Reforma protestante tinham atacado a "falsa religião" romana e proposto o modo
de identificar os sinais característicos da "verdadeira religiao"3. O ataque protestante foi
rechaçado; mas se no plano doutrinário e institucional não houve incerteza quanto a
confirmar a "verdade" remana, diferente e mais complicado foi o problema das formas
que a "verdadeira" religiao devia assumir no nível de sua expressão máxima: a santidade;
o patrimônio da tradição medieval pertencia ao passado e, depois que a borrasca da
"Proponere toti Ecclesiae quid sit credendurn, et quid agendum in iis quae sunt religionis" é poder do papa
"qui toti Ecciesiae praeest. Item ex contrario, declarare, qui Sint haeretici, ita ut a tota Ecclesia pro talibus
habeantur, est summi pontificis, ut ante ostendimus, ergo declarare qui sint sancti et colendi, eiusdem erit
summi pontificis" (Roberto Bellarmino, De Controuersiis Chnstianae Fídci Adqtersos huiw Tempons Haereticos, IV,
DeEccltsiaTnurnphante, em Opera Omnia 2, Napoli 1857, 1. I, c. MlI, 2; a passagem e assinalada num estudo de
Giuseppe Dalla Torre, "Santità ed Economia Processuale. IlEsperienza Giuridica da Urbano MII a Benedetto
XIV', em Finzìone e Santità tra Med"ioeqto ed Età Moderna, org. de Gabtiella Zarri, Torino 1991, pp. 231-263; em
part. p. 2i4 e nota).
Exemplar, pelos tons da polêmica, o título de um texto de Matteo Flacio lllirico, Clnrissimae quaedtmNotae,
Verae et Falsae Religionis, atque Adeo ipsir.rs Antichristi , ex quibus etiam rudiores... statuere queant nostram doctnnam
esse oerdm dc ipsiís ChÍisti, Papísrarum vero falsam et plane ipsius Antichristi, Magdeburgi, 1549, op. cit.
À Confissáo
r.=
435
crítica humanística tinha passado sobre ele, devia ser inventariado. Além disso, as for-
mas sociais assumidas pela santidade como fato cultural foram tais e tantas a ponto de
demandarem - não menos do que a bruxaria - uma intervenção cuidadosa mas decisiva.
Ora, a santidade não era outra coisa a não ser o ponto de definição máxima
da relígião e da fe. Visto que o instrumento e o local específico de elaboração da
vonrade papal em materia de definição da heresia era o Santo Ofício, era óbvio que
esse instrumento também fosse usado para controlar a produção de santos por parte
da sociedade cristã. Analogias do processo canônico com o processo inquisitorial
foram identificadas no plano formal - por exemplo, na introdução do promotor fidei
desde a época de Leão Xa. Mas pretendemos assinalar aqui somente as ocasiões em
que a.reforma das "vias legais para a santidade" susciàou intervenções específicas
de controle por parte do Santo Ofício. lJm momento decisivo e, do ponto de vista
íormal, totalmente evidente, e o da verificação da ortodoxia doutrinária por meio
do exame dos textos: já que o santo, na concepção que se firmou entre os séculos
XVI e XVll na Igreja catolica, era um modelo exemplar de virtude proposto para toda
a Igreja - deixando de ser, portanto, o taumaturgo protetor de uma determinada
comunidade - a qualidade preliminar a ser constatada era a pureza da fe. E assim, o
primeiro e decisivo movimento do processo canônico passou através da congregação
do Santo Ofício. Mas foi em um plano mais geral que o trabalho do Santo Ofício em
prol da ortodoxia veio a ocupar o terreno da santidader "seguramente ate a década
de trinta do seculo XVll - escreveu Giuseppe Dalla Torre - em essência, o Santo
Ofício ocupou.se diretamente com a materia pertinente à veneração dos santos, seja
no que se refere à repressão dos abusos, seja no que se refere - de modo mais positi-
vo - à aprovação do culto público"5. Ao longo desse caminho, encontram-se outras
prescrições mais sutis: por exemplo, as de Urbano VIII relativas à confecção e ao uso
das imagens de santos, graças às quais até mesmo o florescente culto das imagens
teve de passar pelo beneplácito da Inquisição.
Tudo isso tinha a ver com o culto dos santos mortos, o tradicional enfim. Mas
restava o fronte da santidade como atributo de pessoas vivas. Os novos modelos de
santidade que entraram em circulação no decorrer do século XVI levavam a diferentes
direções: havia a busca da experiência do martírio pela fé, que impelia os jovens a entrar
nas ordens missionárias e a embarcar para terras não europeias. Nq que se refere a essa
santidade heroica, masculina e conquistadora de mundos novos, reservada a poucos, a
alternativa era constituída, sobretudo (mas não exclusivamente) para as mulheres, por
uma prática devota feita de exploração do mundo interior, que culminava em êxtases
e arrebatamentos. Em torno de quem se acreditava ter um certo grau de familiaridade
com o alem.mundo, íormava-se um fluxo de seguidores, de clientes e de curiosos. A essa
altura, os fenômenos interiores repercutiam no mundo exterior, com a característica
subversiva de mensagens que pretendiam vir diretamente do além-mundo.
436
Uma presença típica dos novos tempos, impensável na epoca da luta contra Lute,
ro, é a da santidade falsa ou íingida. Impensável, certamente: ninguém teria imaginado
que a estrutura edificada para resistir ao ataque de uma serie de "heresias" feitas de
cortantes e agressivas "verdades" teológicas, nascidas de um atormentado e agostiniano
senso de culpa, ver,se.ia combatendo multidoes de candidatos à santidade, obedientes à
C{. Zarrí (org.), Finlione e Santítd tra Med.íoeuo ed Età Mod.ema, op. cit. No que se refere ao mundo espanhol, as
íontes foram estudadas em uma importante pesquisa de Isabelle Poutrin (Le voiLetlapLume. Autobiographie et
sainteté. féminine dans L'Espagne mod"erne, Madrid, 1995), que coloca em primeiro plano a questão da autobio-
grafia feminina.
Cf. G. Romeo, "Una 'Simulatrice di Santità'a Napoli nel '500: Alfonsina Rispola", em Campanra Sacro, MII-X,
I
197 7'197 8, pp. 159-218.
&i
r-t--*.=tft.
\ Confissão
I
7
4l;
percebido com profunda seriedade: era preciso proteger os homens dos enganos do
pai da mentira, do espírito das trevas capaz de encenar as características dos espíritos
da luz. E por isso, o trabalho da discretio spirituum consistia em dar ao diabo aquilo que
lhe cabia, descobrindo seus enganos e impedindo os fiéis de caírem em seus engodos.
Eram esses os dados tradicionais: uma síntese deles, fundamental e largamente
utilizada, foi fornecida por Jean Gerson. Mas no final do seculo XVI a questão do dis-
cernimento dos espíritos complicou-se. Ao lado do engano demoníaco, capaz de câtivar
a confianca do homem, impôs-se a noção do fingimento humano. A experiência da
luta entre as várias igrejas saídas da crise da Reforma ensinara que os homens tinham
aprendido bem a arte do engano e que não havia necessidade de recorrer à ação direta
do demônio para explicar as refinadas alquimias da *eàtira. Foi provavelmente a expe'
riência acumulada no descobrir por detrás das aparências e dos enganos as verdadeiras
convicções dos indivíduos que pôs os inquisidores no encalço do que devia se tornar
um de seus principais objetos de investigação: a hipocrisia, ou seja, a santidade fingida
ou simulada.
O que e a hipocrisia? É a arte do ator, que repïesenta um papel diante dos espec-
tadores e não so com palavras mas também com os atos indur@ òrËdiãtrno que não é
verdadeiro. Assim um eruditd tratado sobre a questão da verdade tentava explicar em que
consistia a mentira. Ainda que seja possível distinguir muitos tipos de hipócritas, eles têm
um único objetivo: obter louvores e fama de santidade através do exercício de virtudes
fingidas: falsos jejuns, exibições de devoção às imagens sagradas, preces em público (para
ser visto e ouvido por todos), suspiros e lágrimas íingidas ao rezar (quando a verdadeira
prece e feita com o coracào, quase sem mover os hbios). Ora, visto que a verdade não
consiste apenas de palawas, mas repousa sobre a união das palavras com os fatos, o grau
mais elevado da mentira e dado pela hipocrisia e o grau mais elevado da hipocrisia e
a santidade fingida. lmagem do íalso santo e o diabo - escreve o autor - pintado em
trajes de homem piedoso, quando vai seduzir Cristos. No repertório contemporâneo de
Ripa, a imagem da hipocrisia e, de fato, a de um devoto, com o terco numa das mãos e a
outra ocupada em dar esmola, mas sob a longa veste do devoto desponta o pe caprino. E
uma imagem que, sozinha, basta para medir a distância dos anos da luta contra Lutero:
então, o pé caprino despontava sob a batina de Lutero e os chifres de bode furavam a
máscara com os traços do reíormador.
Em menos de um século, o inimigo - o Inimigo por antonomásia - mudara pro-
fundamente. As muralhas da instituição eclesiástica não eram ameacadas pelo desafio
dos teólogos e o estrondo das armas, mas pela serena, sussurrante devoção de muitos
buscadores da perfeição. Como era possível tanto alarme por causa de inimigos que,
mais do que atacar frontalmente o edifício da devoção, apresentavam-se como praticantes
talvez exagerados, mas entusiasmados, das vias de aperfeiçoamento espiritual garanti-
8. Petri Simonis Tiletani Episcopi Yprens is, De Ventate Libri Sex et Reliqua eius quae supersunt, muhae eruditìonis et
pietatís Opera. CoIIe.gít et recensuit, pro suo in amicum defunctum ffictu P. Ioannes David., Soc. Iesu sacerdos, Anwerpiae,
ex Officina Plantiniana, 1609, pp. 132 e ss.: De Hlpocnsi eiusqueNatura.
438
das pela lgreja? Uma pequena demonstração pode nos ajudar a entender as razões do
alarme. No início dessa historia há a imagem evangelica do lobo predador sob a pele de
cordeiro: a passagem de Mateus 7 ,15 fora usada continuamente na literatura contra os
seguidores de Lutero. Ele é aplicado agora aos "falsos santos"l esses dois inimigos, tão
diferentes entre si, tinham em comum o poder de seduzir o povo. "Falsos profetas, em
trajes de cordeiros", seduziam as multidões; demonstravam grande afeição pela plebe
ignorante, a simplicem indoctamque pl,ebem mas só para usufruir o sucesso. Verdadeiro
inimigo de todos, o hipócrita e um lobo para o homem, lupus est igltur homo nlis homi-
nie. E visto que estamos em uma cultura que pensa por imagens, eis outra imagem rica
em atributos e força evocativa: a de uma mulher vestida de púrputa e ouro e enfeitada
com gemas e perolas. Ela segura na mão direita um cálice cheio do abomÍnio de sua
superstitio: e a falsa e fingida religiao (fíctareligio)to. Não havia necessidade de mencionar
o nome de quem tinha sido o primeiro a propor essa imagem: tratava-se de Andrea
Alciato, o autor mais íamiliar a uma cultura que estava cotidianamente habituada aos
emblemas. E singular o fato de que, enquanto Pierre Simon aplicava aos hipocritas a
imagem dafíctareligío, ainda não se tinha perdido a lembrança de quando essa imagem
referia-se à Igreja de Roma. Em um mosteiro udinense, um grupo de monjas rebeldes
no início do século XVII cantava os versos do emblema dedicado por Alciato à ficta
religio, e identificavà a uer& religio com a de Calvinoll. Pierre Simon tambem conhecia
bem esse clima e em parte ainda se movia nele: um de seus escritos é dedicado à defesa
da "verdade" católica das opiniões do cardeal Sadoleto contra as "falsidades" de Calvi-
no. Mas, finalmente, a versão mais urgente e atual da oposição entre verdadeira e falsa
r' .- jáìra
religião
.> a que circulava em torno da santidade.
Se abandonamos o ponto de vista inquisitorial, concentrado na questão do
engano e do fingimento, e tentamos decifrar as características sociais do fenômeno,
encontramo-nos diante de muitos traços não novos. Trata-se, em geral, de grupos e
grupelhos, comunidades pequenas (mas por vezes também muito ramificadas e extensas)
reunidas em torno de figuras carismáticas caracterizadas por maniíestaçÕes excepcio-
nais - revelações de acontecimentos futuros, visões, poderes taurnatúrgicos - arraigadas
em um poder pessoal de acesso ao mundo divino. Fenômenos do gênero, em seus
traços tipológicos, acompanham frequentemente, como um ruído de fundo, a face
ortodoxa do cristianismo historico: são a eterna tentação da perfeição, da experiência
excepcional e suprema de contato direto com Deus. Porém, não se pode negligenciar
o potencial de subversão de tais manifestaçÕes, sua capacidade de construção de novas
íormas de organização social e de exercício do poder. A instituição eclesiástica como
corpo regido por vínculos jurídicos, como sistema de poderes estruturais e transmitidos
9. Idem, p. 138.
L0. Idem.
11. V.doautordopresentevolume"ljUmanitàdiCristorraDevozioneedEresia",emAntimnitananismíntlrcSecond
Holf of tlv 16th C*ntury, org. por R. Dàn e A. Pirnat, Budapeste, 1982, p. 707; o texto da canção "falsa religião"
é reproduzido em apêndice ao amplo estudo de Giovanna Paolin, "llEterodossia nel Monastero delle Clarisse di
J
Udine nella Seconda Metà del '500", em Colbcnnea Francíscano 50, 1980, pp. 107-167; em part. p. 1ó0.
ilr*,*
r{ Contissão
í-
439
de acordo com normas impessoais, era ameaçada por uma tal de religiao de santos e de
personagens carismáticas; mas não era menos ameaçada por ela a solidez dos vínculos
e dos poderes políticos, pela carga de contestação diretamente política e social que
essas realidades exprimiam em seu próprio constituir-se como "verdadeiras" formas
de organizacão cristã.
A luta foi longa; a história da "falsa" ou "fingida" santidade foi uma componente
essencial dessa luta. Dos tempos dos fraticelli e dos savonarolianos ate as devoções mís.
ticas do século XVII e as revoluçÕes dos "santos" puritanos, o campe de definiçao da
santidade foi um campo de batalha. No mundo católico, coube à estrutura eclesiástica
e a seus instrumentos de vigilância e de repressão - a inquisição em primeiro lugar -
manter sob controle as ameacas políticas e sociais alimentadas pela religiao. Tratou-se de
pulsões que atravessaram todo o espectro social, desde os grupos marginais ("monjas e
camponeses, frades e outros adivinhadores", como os denominava depreciativamente um
historiador florentino do início do seculo XVI12) até os ambientes de cortes cardinalícias
e principescas. Havia sobretudo mulheres, frades e outros guias carismáticos, unidos pela
profecia: e ao redor deles, príncipes e soberanos que indagavam suas visões, ou então
um círculo de "simples", todos atraídos pela presença viva e visível da santidade - ou
até mesmo de Deus em pessoa.'A personagem central desses grupos e geralmente uma
personagem dupla, o santo como portador da divindade e seu profeta - um homem
e uma mulher, no caso mais simples, ou de todo modo uma copresenca de elementos
masculinos e femininos. Do monge Têodoro e de sua companheira Maria que, em 1515,
foram processa{os e condenados em Florença, ao médico de Reggio Basílio Albrisio
que, por volta de 1559 , {ez-se passar por Cristo reencarnado e teve um séquito de doze
monjas ("figura" da lgreja apostólica)13, o fenômeno represent&se variadamente nas
decadas centrais da epoca da Reforma. Retorna e torna-se mais denso a partir do final
do seculo XVI: e aqui os casos já são incontáveis. Enquanto se impunha e era reprimido,
o fenômeno perdeu seus tracos mais abertamente heréticos e radicais, que no entanto
não deixaram de aparecer: conservou constantemente o caráter de pequena comuni.
dade, reunida em torno de uma viva presença divina, dirigida ou mediada pelo santo.
Mas a ameaca subversiva das mensagens proféticas e das comunidades de "santos" fez.se
perceber no final do século XVI com novas tonalidades no próprio cerne do mundo
católico e das cidadelas da ortodoxia.
Profecia e política eram indissoluvelmente ligadas: das visões do futuro, ga.
rantidas pelo céu, surgiram verdadeiras conspirações. Como a de Stilo, na Calábria,
dominada pela personalidade de Tommaso Campanella; e antes ainda, a que foi pro-
tagonizada por uma visionária peruana, Maria Pizarro, que trazia no nome a tradicão
dos conquistadores, ao redor dela, os protagonistas da "conquista espiritual" - do-
minicanos e jesuítas. Para a Inquisição de Lima, a história teve início em 1571 e foi
Bartolomeo Cerretani, Dial,ogo dellaMutatione di Firenze, org. por Gíuliana Berti, Firenze, 1993, p. 15.
Cí. os textos reunidos pelo autor deste volume e por Albano Biondi em "ll Processo al Medico Basilio Albrisio.
Reggio 1559", em Contribati della Bíblioteca Panizzi di Reggjo Emilía, 4, 1978.
440
t4. Cf. M. Bataillon, "l-a Herejía de Ftay Francisco de ia Cruz y la Reacción Antilascasiana", em Ê.tuàes sur Bartolomé
àe las Casas, Paris, 1963, pp. 109-374. O processo íoi mencionado e estudado pela primeira vez por Toribio
Metlina, ElTribunoldelttlnquísicíónenLima(1569-1820), (1887), com preí. de Marcel Bataillon, Santiago do
Chile, 1956, cap. V, pp. 63 e ss.
15. J. de Acosta, DeTemponbus Nouissimis Libn Quatuor, Romae, aplrd Tornerium, 1590; ver do autor deste volume
"New Heaven and New Earthr Prophecy and Propaganda at the Time oí the Discovery and Conquest oí the
America" em Marjorie Reeves (ory),PropheticRomeintfuHighRenaissance Penod, Oxíord, 1992,pp.779-30);em
part. p. 301. Sobre os resultaclos revolucionários das tendências úsionárias e apocalípticas, cí. E. P. Thompson,
lTirness against rheBeast, London, 1993, trad. it. Apocalisse eRir,ol"uzione, Milano, 1996, ttad. bras.Tesremunha
contra aBesta, São Paulo, Edusp, no prelo.
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A Confissâo
ú"
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441
Santidade Verdadeira e
7
442
16. Cf. a importante pesquisa de Caroline 'Walker Bynum, HoIy Feast and Ho\ Fast. The Religioas Significance ol
Food. to Medieval. Women, Berkeley/Los Angeles,/London, 1988.
17. "Nos trezentos primeiros anos da fundacão da Companhia não tinha sido danado, nem devia sêìo nenhum
dos que tinham vivido, viviam então e viveriam depois, perseverando nela até morrer" ("Rivelazione Fatta
a San Francesco Borgia intorno a quelli che Muoiono nella Compagnia di Gesú", ms Gesair. 1494, xu da
Biblioteca Nazionale de Roma, c. 3r).
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.4. Confissão
r
443
18. Cf. Marion L. Kuntz, "Europa Catalizzatrice tra Oriente ed Occidente nel Pensiero di Guglielmo Postello,
in Il Letterato tra Miti e Realtà del Nuovo Mondo: Venezia, il Mondo Iberico e I'ltalia", Atti de| Convegno di
Vrc7ía, A. Caracciolo Aricò (otg.), Roma, 1994, pp. 24I-255; em part. p. 249.
"Nunca vez me acuerdo de ella que no tiemble" (citado por Enrique Llamas Martinez oCD, Sanra Teresa de
I esús 1 la Inquísición Espaíola, Madrid, 197 2, p. I 5).
visitaram mulheres com íama de santidade, mantiveram relações epistolares com elas,
estudaram'nas com um misto de devocão e curiosidade2o. Com frequência, essa ligação
de amor "divino" revelou traços humanos, demasiadamente humanos para a instituição
eclesiástica: e prorrompeu a acusação, a perseguição pública ou secreta, a luta contra
as comunidades nascidas daquele vínculo.
Ora, mesmo sem esquecer que cada uma dessas histórias teve características diíeren-
tes porque foram diíerentes os protagonistas e os contextos, deve.se admitir, no entanto,
que o aspecto familiar é o mesmo. Sobre o fundo dos interiores principescos de dinastias
reinantes ou dos mosteiros femininos, as figuras de "santas" dotadas de dons proféticos e
de forte ascendente espiritual são enconffadas com caàcterísticas semelhantes no intervalo
de seculos. Se Lucia de Narni e as outras "santas vivas" de seu tempo garantiram a seus
protetores a seguÍanca que decorria do conhecimento antecipado que tinham dos aconte-
cimentos, o mesmo fizeram muitas outras mulheres entre os seculos XM e XVIII. À espera
de que a história de todas elas (que não íoram poucas) seja reconstruída do modo analítico
que as fontes inquisitoriais poderiam permitir, pode.se aproximar o caso de Domenica
Narducci, mística florentina do início do século XVl, do caso de Maria Domenica Mazzei,
camponesa visionária na Florenca do século XVIII. A primeira, que se definia "horteloa"
e
20. Cf. Agostino Saba, Federico Bonomeo e i Mistici d.el suo Tempo. Con b Vita e Ia Conispondcnxa Inedita dí Catarina
Vannini da Siena, Firenze 1933; agora também R. Marchi, Fed,enco Bonomeo eIe ClaustraLí,Firenze, l99Z.
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21 O episódio é narrado por Adriana Valerio, Domenica da Paradiso. Profezia e Politica in wwMistica del Rinascimento,
Spoleto, 1992, pp. 79 e ss.
.{ Cerntissão
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44s
que mora no morro"2z. Não se sabe o que era dito nas cartas, pois - contou a fidalga
de' Médici - "eu as queimava imediatamente". Tratava.se, segundo ela, de curiosidades
inocentes; por exemplo, podiam referir-se aos acontecimentos da vida cotidiana da corte
florentina: "Quando a princesa Violante devia ir embora, conforme se dizia, perguntei
o que ia acontecer" (e Maria Domenica teria respondido "que eu não me preocupasse,
pois seria fogo de palha, como de fato foi"). Mas com certeza a situação tinha mudado:
a presenca da Inquisição, o sequestro e a destruição dos escritos, a prisão do confessor, a
acusação a uma fidalga pintam um quadro mais severamente disciplinado, onde o insur.
gir inalterado de necessidades de ffocas sociais e de atribuição das próprias apreensões
a mulheres "santas" capazes de "ver" o futuro era cada vez mais controlado pelas organi.
zações ordinárias do governo eclesiástico. Controlado, com o signo dominante alterado
(que agora e o masculino, do confessor), mas sempre vivo, ou melhor, revivescente e não
eliminado. Sua permanência, como a de muitas outras formas antigas, dá a essa sociedade
e à sua vida religiosa um sabor arcaico, de um ressurgimento do antigo como que fora
do tempo, à sombra de uma sociedade eclesiástica que fizera da conservação sua glória.
Essa impressão de arcaísmo religioso encontra enfim um bom fundamento na
realidade histórica da Italia daquela época, em que a experiência por vezes dramática e
violenta da epoca da R{orma fora colocada como entre parênteses. A Inquisição, que
surgira para se ocupar com os seguidores da antropologia negativa de Lutero e Calvino,
não teve mais oportunidade de processar pessoas como Francesco Spiera, o advogado
de Cittadella que se deixou morrer porque estava convencido de ter cometido o pecado
contra o Espírito Santo, a culpa imperdoável. Experiências desse tipo tiveram ocasião de
surgir em outros lugares: por exemplo, na consciência do jovem Jean Castel, um aluno
dos jesuítas convencido calvinianamente de estar predestinado à danação, que cometeu
um atentado contra Henrique IV na França. Mas na história italiana, os documentos
inquisitoriais mostram que o senso do pecado como infração misteriosa e imperdoável
de uma proibição sagrada era muito menor. O perigo maior foi representado por quem
tinha adquirido muita familiaridade com o mundo dos santos e dos perfeiros a ponto
de ameacar de subversão a imperfeita realidade dos ordenamentos exisrentes.
Ora, a ciência dos santos tinha uma solida tradição no que se refere às regras
para discernir santidade verdadeira e falsa, espíritos bons e maus..A possibilidade de
distinguir o verdadeiro do falso nesse campo era conviccão até mesmo de laicos como
Gian Francesco Pico, acólito de Savonarola e de Caterina de Racconigi, inimigo jurado
de bruxas e superstições: para ele, a transíerência noturna de Caterina de um lugar para
outro muito distante constituía um milagre, ao passo que o voo noturno das bruxas da
Mirandola era um poder diabolico que merecia a fogueira23. A partir desse embasamento
seguira-se adiante, na tentativa de colocar sob controle uma vida religiosa que batia à
porta do divino com manifestações do amplo eco social.
zz. Depoimento de 2 de fevereiro de 1i18, em ACAF, Misc. S. Uífido, b. 31, pasta 338
1J. Cf. a introdução de A. Biondi a Pico della Mirandola, Strega, op. cít.
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Santidade Verdadeira e Falsa
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446
A
defesa da "verdadeira religião" estava de acordo com a defesa daquilo que
em seguida seria chamado "ordem pública". As visões e revelações, que constituíam
grande parte do íascínio popular dessas mulheres, eram uma perigosa porta aberta
para o futuro: o futuro irrompia no presente com a garantia da verdade e ameacava
derrubar os donos do poder. Filipe II fez submeter a rígido controle a jovem madri-
lense Lucrecia de León, cujas visões sobre o futuro da Espanha, reunidas entre 1587
e 1590, preanunciavam desgraças causadas pelo mau governo e alimentavam portanto
o descontentamento contra o rei24. Mas o caso de Lucrecia e só o mais conhecido do
que deve ter sido um pulular de visÕes e de revelações: como já durante a crise política
dos pequenos estados italianos, as "santas viva{' tinham oferecido seu escudo protetor
ao ameaçador precipitar das guerras, assim o declínio irrefreável do grande imperio
mundial dos Habsburgos foi acompanhado de vozes de profetisas e visionárias que
se erguiam das províncias mais distantes. Do estado de Milão ao Peru, houve um en-
trelaçamento de vozes e visões femininas, que davam corpo e ameaçador destaque às
inquietacões disseminadas: por trás dessas mulheres existia todo um sistema de escuta,
composto de intérpretes e seguidores.
Citemos alguns exemplos, em Milão, em 1579, a Companhia de Jesus foi pressio-
nada pela hostilidad'e surgida entre o jesuíta Giulio Mazzarino, pregador brilhante, e o
cardeal arcebispo Carlo Borromeo25. Não e o caso de nos determos nas razões desse em-
bate, ainda que certamente não tenham sido nem poucas nem de somenos importância.
Bastaria dizer que não fora um simples embate de caracteres, nem um conflito entre a
obsessiva centralização do cardeal e a tendência das ordens religiosas de asseguraremce a
própria autonomia por meio dos ordinários. O estilo novo e atraente do pregador jesuíta
ridicularizara a ritualidade exterior da cidade contrarreformista. Eis, a título de exemplo,
uma das afirmações que lhe foram contestadas, a propósito das estações da via sacra:
Pretendia mostrar uma estacão que teria sido mais útil e írutuosa, que não sâo as estações
postas na cidade, que era descer ao inferno com o pensâmento, e íoi dito incisivamente e soou es-
candaloso, parecendo detrair as estaçôes, que são fundadas no sangue do Senhor26.
E quanto ao que Ìhe atribuem ter dito contra chorar publicamente pela paixão de Cristo,
não há dúvida nenhuma de que o Padre não quis dizer, nem condenar as lágrimas exteriotes: mas
24. Cí. Notman Kagan, Lucrecia's Dreams. Politícs and Proplwq in Sixteenth-Cenury Spain, Berkeley/Los Angeles,/
Oxford, 1990.
25. Cí. Rurale, I GesuítiaMiltnoeCarlnBonomeo op. cit., pp.217 ess.
2ó. ARSI, Hist. Soc. 164,f. 40l
-*,
A Confissão
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447
disse que ele não tinha talento para aquela mocão dos afetos que faz o povo gritar e chorar, e que se
esforçava para fazer sentir a Paixão de Cristo dentro de cada um, e se alguns quisessem gritar e chorar
que procurassem outro pregador [...] Quanto a ter dito que os gritos que o povo costuma dar em tais
sermões quando não são acompanhados de sentimento íntimo não despertam muita aprovação, isso
não seria algo repreensível o que, porém, não íoi ditoz?.
Digo que não se portou bem ao tratar com algumas mulheres devotas nossas, algumas das
quais sabem coisas mui extraordinárias, tratando com elas com frequência e indagando em demasia
para ouvir delas coisas futuras, dandolhes demasiado crédito, e alimentando-lhes esse procedimento
com dar-lhes livros de semelhante matéria [...]28,
z7 Carta do padre Parra a E. Mercuriano sobre G. Mazzarino, Milano, 22 abr. 1579 (conservata em cópia em
I Gesuiti aMilano op. cit., pp. 225 ess; quanto às escolas
ARSI, Htsr. Soc. 164, c. 8r). Mas cf. sobre isso Rurale,
de retórica dos jesuítas cí. o vasto estudo de Marc Fumaroli, lâge d,e I'éLoquence. Rhitonque er res literaria de Ìa
Renaíssance au seuil del'époque classíque, Genève, 1980.
28 Carta de Sebastiano Morales ao padre Everardo Mercuriano, Milano, 25 mar. 1579, em ARSI, Hist. Soc. 164,
cc. 16r-17r.
29. A carta de 7 de julho de 1593 foi publicada por P. Pirri S. 1., il P. Achitle Gagliardi, In Dama Mil.anese, Ia Rifomw
dello Spinto e íLMouimenro degLi ZeLatorí, AHSI, XIV, \945, pp. l-72; em part. p. 59
iii
:* rt
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449
duas filhas de Fernando da Áustria, que se casaram respectivamente com Francesco de' Médici e Alfonso II d'Este.
ì14 "Quase todas as fidalgas mais importantes coníessavam.se com os nossos" (B. Palmio ao Geral, de Forli, 29 nov.
1565, idem, p. 285). Um episódio tardio dessa tendência de ionga duração é tema do estudo de C. Manunta
Bruno, Una Regtna e íL Confessore. Inrere Inedíte di Marid CLotilde di Francía Reglna di Sard"egna aLI' ex Gesuíta G.
{ Confissão
\
r
451
uMonentur
42 mediante eorurn P. Generali ne accedant ad domos mulierum, praesertim poenitentium, sine
urgenti et necessaria causa, non audiant domi earum coníessiones occasione infirmitatis nisi aliquo praesente
non tamen audiente; non agant in coníessionario nisi de spectantibus ad sacramentum confessionis, nec
dent licentiam paenitentibus ad sacramentum Euch. accedere nisi praevia reconciliatione" (enst, Irur. 174,1,
Collectio Diversorum DecretorumSacrae Congregationis s. Officii, c. 199u). Sobre os Monita Secrera, publicados pela
primeira vez por volta de 1615 na Polônia por um ex-jesuíta e depois continuamente reeditados, íalta um estudo
adequado. Sobre o contexto do "mito jesuítico", cf. Vittorio Frajese, Sarpi Scettico: Stato e Chiesa a VeneTia tra
Cinque e Seicento, Bologna, 1994, pp. 179 e ss.
43, Cí., por exemplo, J. -R. Armogathe,b quié.tisme, Paris, 1973.
\,à"
Santidade Verdadeira e Falsa
!T-
452
44. Dom Giuseppe De Luca, Introduzione alla Storía àtlla Píetà, Roma, 19ó2, p. 40.
45. É o caso, paÍa dar um exemplo, do Semplice Racconto deLlaVita AmmirabíIz di Perfettionelntema deLlll dívotd. uerglne
CatennnMancini della cíttà d'Asco\i suor di casa centurata mantellnta Agostinidnd mcrtd nelL'anno 1653, de frei Lorenzo
di San Gio. Battista de Ferrara, Agostiniano Scalzo, manuscrito da Biblioteca Ariostea di Ferrata, cl. I, n. 31.
\ Confissão
r
453
extraordinárias da relação com o além peca por "fervor indiscreto" e expõe.se aos
engodos do demônio. E o demônio engana, segundo ele, seguindo uma serie precisa
de passagens: "primeiro com esplendores visíveis", por meio dos quais o fiel pode
ver repentinamente durante a prece "resplandecer todo o aposento"; depois, ter.se.á
a impressão de ouvir uma voz que fala diretamente ao coracão e o devoto acreditará
ser Deus quem está dizendo à sua alma: "tu es minha esposa"l seguirá uma aparição
visível do demônio em íorma de anjo, de Cristo ou de Nossa Senhora e ter-se-á a ilusão
de músicas celestes; passar-se-á em seguida ao momento em que o demônio oferecerá
"falsas revelacões, manifestando coisas secretas do passado, do presente e mesmo do
futuro"; e ainda êxtases e arrebatamentos religiosos, dersejo intenso pela "comunhão
cotidiana", "grandes excessos de amor", impressão de ter estigmas, certeza de ter "a
inteligência da sagrada escritura". E "finalmente sabe achar um modo de fazer milagres
falsos e aparentes"46. Essa casuística era extraída, como de resto prometia o título da
obra, da prática da "vida espiritual". Ela poderia se sobrepor a muitas histórias de
vida: mesmo após o ato de acusação de Grattarola e os inúmeros processos inquisito-
riais que o precederam e o seguiram, foi ao longo dessa progressão que se dispuseram
muitas histórias de intentada santidade; e, ainda que divididos entre desconfianca e
te, os eclesiásticos continuardm a reunir documentos a respeito. Esses mesmos sinais
que, segundo Grattarola, denunciavam o engano diabólico foram, para o cônego de
Lucca Nicolao Bambacari, os vestígios autênticos de uma relação especial com Deus,
manifestada na experiência da "santinha de Sarzana" Maria Caterina Brondi, visões,
revelações de segredos, profecias, alimentação reduzida à Eucaristia, possibilidade de
dar uma olhada nas almas do Paraísoa7.
Não há dúvida, entretanto, de que as formas assumidas então pela prática devota
preocuparam e assustaram não pouco as autoridades eclesiásticas. Os tons da cautela,
as incitações à moderação e à desconfianca, a exigência de uma santidade que estivesse
confinada ao âmbito da prática moral ordinária, são outras tantas notas recorÍentes na
ìiteratura dos pais espirituais e diretores de consciências. Na primeira fileira encontramos
os jesuítas; e podemos considerar emblemática esta página de um autor da Companhia,
dirigida justamente às monjas:
Não desejais absolutamente íavores extraordinários do Ceu, sobretudo aqueles que trazem
aigum apelo e algum sinal externo de santidade. Como seriam os milagres, as predições, as exalta-
ções místicas e os êxtases. Que se receberdes algum deles sem terdes pedido, não vos acrediteis nada
melhores e não faleis jamais a respeito, a não ser com muita confusão. Não tinha Judas o poder
Je fazer milagres? Caifás não profetizou? O mago Simão não ficou suspenso no ar à vista de todos?
4ó. Marco Aurelio Grattarola, Prattica deLl"a Vita Spírituale per Le Monachr et d"Ltre PeÍsone..., Como, junto a Gio.
Angelo Turato, 1617, caps. 38 e 39, pp. 118 e ss.
47. Onde viu, enffe outros, Roberto Bellarmino, íornecendo a autenticação de uma santidade canonizada (ela que
tinha uma de natureza suspeita); cf. C. N. Bambacari, Memorie Istoríche dell"e Vírtü ed ATioni diMana Caterina
Brondi, Vrglne Sarzanese, Lucca, 1743 e o verbete "Brondi", redigido pelo autor deste volume em DBI, vol. 14,
Roma, 1972, pp.457459.
454 i
Quando mais oculta se mantém a virtude, mais firme ela é. Mais vale um pouco de bom e deuoto interior, do ii;
48. Glt
'\rcani deLla Vira ReLigtosa scoperti ad una dc+,ota Novizia da un suo Padre Spmtua\e della Compagnia di Giesà,
nadottí daL francese... per comandamento delL'ill. mo e R. mo Moruign D. Giuseppe Miglìaccio arcir.'escovo di Messina, e
dn esso driTTati aILe religlose deLta stessa città e sua diocesi, em Messina, na Cam. d'Amico, 1716, pp. 53.54 (o grifo
consta do original). A aprovação para a impressão é de Matteo Maria Tusa S. I.
49. b ContemplnzioneMístíca, de Pier Matteo Petrucci, padre do Oratório e bispo de Jesi, depois cardeal, foi
publicada em Iesi em 1681.
50. A abjuração deu-se em 28 de novembto de 1641 no reíeitório do convento de Santa Croce: uma descrição da
época encontra-se no manusctito do Archivio di Stato di Firenze, Segretena d,í Gabinetto 155, pasta 3.
51. Reíerido por Antonino Mongito re, IJAtto Pubb\tco dí Fedc Solcnnemente Celcbrato nella Cittd di Palzrmo a 6 Apaln
l 1724 dalTribunalp. del s. Ufftzio di Sicilia, Epiro, Palermo, 1724.
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' .\ Confissào
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4s5
l-'x
Santidade Verdadeira e Fals
r':"
456
relações com o exterior, isola a mulher que obriga a {alar de si, submete-a a um regime
de isolamento e de observação.
Na Espanha dos alumbrados, a lnquisição mantivera esses íenômenos sob um
controle muito atento. Ali foi experimentado, no caso celebre de santa Teresa, o mé-
todo que devia ser amplamente utilizado, tanto na epoca como depois, tambem na
Itália: inquéritos discretos, amplo uso cle escritos autobiográficos, encomendados e
controlados pelo confessor, investigações longas, minuciosas, secretas, que podiam, se
necessário, desembocar em processos formais. Era a renúncia ao simples esquema de
divisão entre verdade e erro que durante seculos fora familiar à Inquisição e que fun-
cionara plenamente na caça aos seguidores da Reforma protestante. No próprio coração
da vida religiosa, no terreno próprio e específico da piedade religiosa, assim como uma
longa evolução o clefinira, estava-se diante de ambiguidades indeciíráveis. Era preciso
escarafunchar atentamente as histórias contadas por essas mulheres, examiná-las com
íriezae isenção - daí a importância do escrito - parâ chegar à decisão qllanto à natureza
dos espíritos que as agitavam.
A materia era das mais frequentes: e um manual manuscrito de materias inqui-
sitoriais, em uso na Companhia de Jesus, propunha a respeito uma instrução do Santo
Oíício "para restâbelecer a saúde de sóror N. N.": a irmã de que se trata não superou
os exames a que foi submetida no passado, suas pretensões de manifestações excepcio-
nais do Espírito ora encontram crédito somente em um pequeno grupo de seguidores
dentro e fora do mosteiro, onde ela "vive quase desesperada". Estamos, portanto, em
um estágio mais avançado do percurso desses acontecimentos: nesse caso também, o
instrumento de que se vale o Santo Ofício para intervir é o bispo, ao qual pertence a
jurisdição ordinária sobre os mosteiros femininos. Eis a série de medidas indicadas,
1) O bispo, antes de mais nada, deverá visitar o mosteiro "em momento propí-
cio" - isto e, ocultando, sob um pretexto plausível, o objetivo específico de sua vinda.
2) "Colocará sóror N. em outra cela individual, na qual haja a imagem de Nossa
Senhora". Nessa cela, a irmã não será deixada sozinha: "dormirá com ela alguma monja
das mais velhas, para que observe seu comportamento" (e, naturalmente, alem de velha
a monja deveria ser escolhida entre as não seguidoras de N.).
3) Recorrer.se.á ao controle medico, com purgações oportunas e salutares. Mas,
alem do corpo, também a alma deverá ser purgada" E aqui interfere o confessor, que
naturalmente deverá ser escolhido pelo bispo.
4) "Indicará à reGrida sóror N. um douto e prudente confessor, que com suavi-
dade e modos faça com que ela se disponha a descarregar sua consciência". O confessor
devia ser a única presença humana ao pé da reiigiosa; qualquer outro contato devia
ser impedido. Particularmente, a instrução detém-se na necessidade de bloquear todo
intercâmbio, mesmo só epistolar, com pessoas de fora e, de modo particular, com dois
de seus protetores. Uma cortina de silêncio devia ser estendida ao redor da religiosa
para tornaÊlhe inofensivas as turbr-rlências. E nisso era preciso envolver também as
demais religiosas, para convencêlas a não falarem mais dela:
A Confissáo
r
45?
Se os defeitos de sóror N. são evidentes no mosteiro, seria bom fazer saber às monjas que todos são
decorrentes da Melancolia e do temperamento natural da mesma, que não há mal nisso, e recomendar-
-se-á às referidas monjas que não falem neles, nem em demônios nem em ilusões5l.
it, 53. ARSI, Ìnst. 174,1, cc. 6r-7v (Collectio Diuersorum Decretorum Sacrae Congr. S. O/Íci;).
54. Instruçáo aos coníessores de Fabbroni, citada por Niccoli, IL Confessore e L'Inquisítore, op. cir., p. 419. Sobre
Francesca Fabbroni cf. o verbete de Adelisa Malena in DBI, vol. 43, Roma, 1993, pp. 673.676.
55 Cópias de cartas do Santo Ofício sobre Btondi e uma caÍta de seu confessor, ftei Bonaventura d'Amelia
encontÌam.se no Archiüo di Stato di Pisa, Ospedah 3242, cc. n. n. No mesmo local, uma carta âo arcebispo de
Pisa escrita por G. A. Pini e datada de 9 de Florença, setembro de 1719 (poucos meses após a morte de Brondi)
menciona uma "ordem dada à Inquisicão de não deixar publicar nada nem em louvot nem em execracão de
Maria Caterina".
56. Sobre o caso de Loudun, os exorcistas que estiveram envolvidos chegatam a publicat relatórios impressos: é o
caso do "Fedele rapporto", publicado em 1634 por P. Tranquille, lembrado também por A. Huxley, I Diavoli
díLoudun, trad. it. Milano, 19ó0, p. 135.
Esta S. Congregação não se induz facilmente a acreditar que os sinais expressos no relatório e os
movimentos e retorções feitos pelas monjas tenham origem em causa sobrenatural e em maquinações
do demônio, pois descobriu sempre que, nâ maioria das vezes, tudo advém de humores melancólicos
de monjas descontentes e introduzidas contra sua vontade nas clausuras.
Era, portanto, opinião da Congregação que não "deva acontecer em Franca nada
diferente do que acontece na Itália, porque as fêmeas são fêmeas em toda a parte, haverá
vícios sempre que houver homens"s?. E os homents sob acusacão pertenciam justamente
às duas categorias dos exorcistas e dos confessores: como os primeiros não resistiam ao
fascínio das monjas, assim os segundos eram presa fácil de suas "filhas espirituais". Essas
conclusões eram tiradas de um documento bastante significativo que vinha atrelado
ao manuscrito: uma Prattica per Procedere nell.e Cause del Sant'Uffi1io, que John Têdeschi
atribuiu com boas razões a Desiderio Scaglia58. Em um capítulo central, a Prattica abor.
dava justamente a "santidade presumida" como uma das manifestações da capacidade
feminina de enganar.'Os inquisidores eram intimados a desconfiar e a proceder com
muita prudência. Constituía um grave perigo para a estrutura eclesiástica, segundo o
autor. Outros compartilharam tal preocupação, diante da alarmante disseminação de
uma religiosidade extática e visionária. Quem atuava em estreito contato com o mundo
dos mosteiros femininos atestava isso continuamente. Não é de espantar que, após um
breve período de tempo, justamente um vigário preposto aos mosteiros (de dioceses
importantes, como Bolonha e Veneza) retomasse as análises da Prattica, ressaltando
como daqueles fenômenos de "hipocrisia" decorriam "grandes danos e escândalos na
santa lgreja, nessa nossa época"5e. Ao contrário, é provável que tenha sido a mudança
de orientação da cultura e da religião oficial - a favor, agora, de uma santidade feita de
rigorosa e de pouco mirabolante prática de virtudes morais - a responsável por confinar
a santidade extática e milagrosa em uma zona suspeita e, portanto, por fazë.la emergir
com tracos negativos. É l'r-" hipótese que recentemente parece encontrar credito em
uma revisão geral de nosso passado disposta a reconhecer também à Igreja católica uma
capacidade modernizadora, uma espécie de propensão à racionalidade. Mas é necessário
diferenciar: a luta entre religiao e magia, que conheceu ásperos conflitos em outras
áreas europeias, assumiu no coração do catolicismo uma fisionomia toda particular.
Tratava-se, aqui, de uma luta de poder, reconhecer aos veículos do sagrado uma eficácia
independente e autônoma em relação à estrutura ordenada da hierarquia era extrema-
mente perigoso para um corpo eclesiástico já suficientemente alarmado com o ataque
)
(1638), citado em Zarri (org.), Finrione eSantità, op. cit., p. 21 e nota.
l5*',', j
h-
1 .',È
A Confissão
r
459
60. Edito de írei Giacomo Tinti de Lodi, inquisidor de Módena (ASM, In4uisixion e,b. 270).
61. Declaratio et Deuetum Sanctissimi D. N Alexandrí Popae VII super indulgentiis, quae tam a Sanctitate sua, quam ab eius
p'roedecessoribus, coronís, rosanis, granis, cabuLis, crucibus, numismatibus, meda\íis vulgo nuncupatis, et sacris imaginibus
benedictis hnctenus concessae sunt et in posterum a Sanctítate sua concedentw, Romae, qpis Reverendae Camerae
Apostolicae, 1657 (a cópia por mim consultadâ encontrir-se no citado fundo modenense da Inquisicão, b. 2?0).
460
Toda forma de recorrência direta e não controlada pelas fontes dos poderes sagrados
pareceu grave e preocupante, tal foi, sem dúvida, o caso dos fenômenos reunidos
sob o rótulo de "santidade presumida". O tom cauteloso e concreto da Prattíca e a
estrategia nela proposta devem ter parecido convincentes nos ambientes eclesiásticos
mais responsáveis.
Embora permanecesse manuscrita, a Prattica circulou amplamente no interior
da estrutura inquisitorial naqueles anos: e foi ponto de referência para todos os que
tentaram conter possessões demoníacas e santidades visionárias, recorrendo o mínimo
possível aos poderes dos exorcistas. A citada Prattícaremeteu' por exemplo, o já lembrado
vigário das monjas, Giorgio Polacco, quando, por volta d,e 1643, precisou defender'se
dos ataques dos que defendiam a intervenção dè exorcistas no interior dos conventos
"endemoniados"ó2.
De todo modo, a vitória da Inquisição não foi fácil nem imediata. Tudo somado,
de tudo o que aconteceu à época nos mosteiros sabe-se bem pouco. Provavelmente,
a exploração do vasto continente da experiência religiosa, sobretudo feminina, levará
a modificar bastante nossos conhecimentos. Não se pode negligenciar o fato de que
a Inquisição, por sua natureza, interferia apenas nos casos que suscitavam algum
clamor. Entretanto, h'li indubitavelmente um traço que caracteriza o modo de agir da
Inquisição nos campos em que foi estendendo sua atividade: de um lado, uma certa
rigidez teologica que levou a reduzir as margens de práticas toleradas e a ampliar a
quantidade de ingredientes indispensáveis para reconhecer a ortodoxia (e nisso deve
se reconhecer o efeito duradouro do choque com a Reforma protestante em nome do
qual a Inquisição foi ressuscitada); de outro, uma grande cautela nos procedimentos e
uma tendência a reduzir ao máximo o espaço deixado ao miraculoso e ao extraordini
rio. Fosse o espírito do direito romano a produzir esses resultados ou fosse realmente a
experiência acumulada por quem atuava no núcleo central de uma vasta organização,
o que e inegável e o resultado tendencionalmente cetico, concreto e cauteloso que se
vê em sua prática processual.
62. E íoirepreendido por isso, de acordo com seu B.íeue Raccontamento di quanto g\i è Occorso nel Corso dì wenta sei
(indicado
anní continuí mentre è stato confessor deLLe venerand.e monache di Santa Lucía dí Vneüa, Venezia, 1ó43
por Tedeschi, The Prosecutíon of Hereq, op. cít., p.238 e nota 57). Sobre a obra e a carreira de Polacco cí. Anne
Donne e Disciplina nel1a Venezia del Seicento", em
Jacobson Schutte, "Tra Scilla e Cariddir Giotgio Polacco,
Donna, DiscipLína, Creanza Cnstiana üL xv aI XVIÌ Secolo. Studi e Testi a Stampa, org. de Gabriella Zarri, Roma,
1996, pp. Zl5-234.
ì
\ A Confissão
r
461
rl Solícito mediator pelo conhecimento do caso foi outro jesuíta, Martin Del Rio, (DísquisítionumMagícarum
Librí Sex, 1" ed. 1599.1600; cf. a edição Venezia, junto a Vincenzo Florini, 1616, pp. 503J06).
Veja-se do autor deste volume "UElemento Storico nelle Polemiche sulla Santità", em Zarri (org.), Finzione e
XXII
OsrucAR A CoxprssÃo,
CoxTRoLAR OS CONFESSoRES
l. Veja-se um desse, sobre essas matérias, emACAF, Misc. S. Uffirio, b. 27, pasta 19.
\
464
história teológica por uma historia pura e simples, deve-se, enfim - como dizia Lucien
Febwe - reincorporar a teologia à historia. E portanto, em vez de seguir as laboriosas
argumentações com que se tentou atrair determinados comportamentos para a orbita de
um crime de tipo conceitual, parece mais útil tentar seguir a história de como, quando e
em que medida esses crimes entraram no campo de ação inquisitorial. Isso significa, por
exemplo, tentar entender as inusitadas dimensões assumidas nessa época por práticas
sacramentais antigas, como a confissão, ou a nova realidade social que o rito tridentino
do matrimônio expressava. O horizonte da Inquisição no século XVII e ocupado cada vez
mais pelas materias de magia e bruxaria, pela impostura de santidade, pelos judaizantes
e pela serie de crimes ligados aos sacramentos: solicitação, celebração da missa sem orde,
nação sacerdotal, bigamia2.
Naturalmente, não se pode negligenciar de todo o possível conteúdo real dos
argumentos inquisitoriais: não se pode excluir, em suma, que a heresia, a dissensão
doutrinária perseguida e eliminada na forma de proposições intelectualmente elaboradas,
fossem ocultadas e encontrassem expressão em comportamentos sociais divergentes da
norma. De resto, esse caminho foi seguido justamente pelos membros da congregação
romana do Santo Ofício, que se preocuparam sobretudo com a apuração das inten.
cões: tratava-se de compreender se os acusados tinham se comportado de certo modo
por convicçÕes intelectuais ou cedendo a impulsos de outro gênero. Por exemplo:
numa carta de instruções de 1586, o cardeal Giulio Santoro ordenou ao arcebispo de
Nápoles, em nome do Santo Oíício, apurar com a tortura da corda a "intencão" no
caso de certo Vincenzo di Franco, acusado de bigamia. Se o acusado confirmava sob
tortura "ter tomado a segunda mulher por paixão", o caso devia ser concluído, para a
Inquisição, com uma simples e leve abjuração, deixando o arcebispo liwe para atuar
em outra sede. Mas não se podia excluir uma recusa intelectual deliberada do caráter
sacramental do matrimônio3.
E f^to que a religião dessa epoca derramou na cabeça de seus seguidores uma
quantidade tão abundante de preceitos e de ensinamentos a ponto de tornar todo o
âmbito da vida social um espaço potencial de confronto entre verdade e erro. Alem
disso, a matéria dos sacramentos fornecia, ao mesmo tempo, uma visível linha de di
visão entre ortodoxia e heresia e um mecanismo regulador da sociedade. A questão é
particularmente evidente no que diz respeito aos ritos de conciliação anual da confissão
e os matrimoniais. Em materia de matrimônio, e difícil no estágio atual das pesquisas
Esses são os resultados da sondagem eíetuada por Anne Jacobson Schutte sobre a casuística tratada pelo inqui'
sidor Agapito Ugoni em Veneza entre 1663 e 1670 ("i Processi de1l'lnquisizione Veneziana nel Seicentot La
Femminilizzazione dell'Eresia", emlln4uisifioneRomanainkalíanell'EtàModerna, op. cit., pp. 159'173).
A carta deveser publicada em breve no já citado volume de P. Scaramella , Cartegi deLL'Inquísiqione Romana con í
TríbunaLi deLsant'ufficioNapoLetani, 1567'1625. A coníirmação de que pot voita dessa época o modelo espanhol
de jurisdiçao inquisitorial sobre a bigamia teve larga circulação na Itália pode ser obtida em Repertoríum Inqui'
sítorum Prauitatis Haereticae,Venetiis, apud Damianum Zenarum, 1588. Foi editado em Veneza com correções
e acréscimos, aiém de dedicatória a Gian Battista Castagna, que parece tê-lo levado à Itália de sua legação na
Espanha. Sobre a bigamia cf . iden, p. 409.
r
465
ter uma ideia, ainda que aproximada, do papel desempenhado pela inquisicão nesse
que foi um campo ilimitado, em que tribunais laicos e eclesiásticos foram chamados a
Jisciplinar os mecanismos da união conjugal. No que se refere às Inquisições ibéricas
que - estimuladas pela experiência de formas de poligamia legitimadas por religiões não
cristãs - não demoraram nem um pouco a introduzir o crime de bigamia em sua lista,
a situação italiana parece caracterizada por uma origem decididamente pós-tridentina
do ingresso da lnquisição nessas materias e por um insistente confronto tanto dos
rribunais laicos quanto dos episcopaisa.
A verdade e elaborada e transmitida por uma rede de poder, que chega a cada
indivíduo (ou tende a isso): e, chegando ao destinatário, atranca-o do cálido abraço
da tradiçao em que vive imerso para impor-lhe uma nova regra5. Assim, os critérios da
madição social e familiar, os comportamentos da oficina e do mercado, as regras que
rradicionalmente presidem à relação com os outros - todos os outros, inclusive Deus e os
santos - entram em uma zona obscura, a desconfianca, a crítica são as posturas prelimi.
nares que a autoridade assume. Por conseguinte, o primeiro ato exigido do súdito/cristão
e a confiança na autoridade da Igreja entendida justamente não como comunidade tradi.
cional, mas como autoridade,alta e distante, Esse movimento conjunto, que reorganiza
toda a rede das relações, articula-se em dois momentos: primeiro é a separação do corpo
eclesiástico de sua base social e a imposição de uma disciplina rigorosa da obediência e da
uniformidade; depois, esse corpo adquire atitudes e funções de mediação e de transmis-
são de cima para baixo da sociedade.Todo esse mecanismo comporta numa sociedade -
dominada por um sistema de poder eclesiástico - uma contínua oscilação do sistema de
valores entre fé e moral e uma enfatização crescente do conffole policial uma polícia da
fé que propicia um perfil mutável e ffansforma-se continuamente em políce des moeurs.
A moralização
da vida cotidiana, a longa marcha da religiao em meio aos com.
portamentos individuais e coletivos foram as premissas da desmesurada expansão do
campo inquisitorial: questoes muito amplas, que aqui só podem ser esboçadas como
em transparência, por trás do avanço da Inquisição e o deslocamento de seus limites.
Cí. os dados analisados para a Inquisição de Toledo por Jean-Pierre Dedieu, IJadministratíon dp.la foi. lllnquisitíon
üTolède (xvl'xvln Madrid, 1989, p. 770 e passim. A jurisdição inquisitorial sobre a bigamia foi suspensa
siècle),
por Carlos III em 1770 (idem, p. 749\. Para a área colonial, cf. Paulino CastaÃeda Delgado e Pilar Hernández
Apaticio, "Los Delitos de Bigamía en la Inquisición de Lima", em Missionalia Hispaníca,XLl| 1985, n. 1,72,
pp.241-774. Para os estados italianos, na falta de estudos pontuais sobre os riquíssimos fundos de arquivos
das causas matrimoniais das cúrias episcopais, devemos nos limitar a registrar a presença episódica de casos
de bigamia nos fundos inquisitoriais e os indícios de conírontos entÍe os diversos tribunais nessa matéria; em
Gênova, por exemplo, em 1662, certo Benedetto Roccatagliata íoi processado por bigamia pelas autoridades civis
não obstante os protestos do inquisidor (cf. R. Canosa, Stona del.L'Inquisizione in kalia dnllà Metà del Cinquecento
aLIa Fíne delSettecento, vol. iII, ïbrino e Genova, Roma, 1988, pp. 176.177). De resto, o Santo Oíício admitia a
jurisdição do juiz secular nas causas de poligamia e reservava4e apenas o exame da intenção (cf. a nota relativa
a um câso de 1609, em Biblioteca Casanatense, ms. 2653, Deoeta Magls Praecipua, c. 518r).
Sobre isso insistiu acertadamente John Bossy, Christianitl in rhe West 1400-17 00, Oxford, 1985, tr rd. it.llOccídente
Cnstiano 1400-1700, Torino, 1990.
I
r':'
466
deve ao menos fornecer um esboço. Para atrair determinadas materias para a esfera de
competência do Santo Ofício era preciso subtraí,las de outros tribunais e a coisa não
era tão simples. Porém, mais que a história dos contrastes de jurisdição - que tambem
e importante para iluminar a partir do interior da vida social os projetos e as ambiçÕes
de velhos e novos poderes - o que se pretende aqui e acompanhar o modo como o
crescimento e a transformação profunda da Inquisicão na realidade italiana estiveram
ligados à sua capacidade de adaptação aos instrumentos que a estrutura eclesiástica the
propiciava. Entre todos, como se viu, foi fundamental a confissão.
Viu.se como a confissão tinha revelado, nos debates tridentinos, sua dupla na-
tuiezar instrumento de poder e de consolação, cJnal de formação e de informação. Do
ponto de vista da lnquisição, como hmbem dos bispos reformadores, era o aspecto da
informação que contava. Era preciso que todos se confessassem para poder haver um
filtro eficaz e minucioso, um espaço obrigatorio para a reunião dos conhecimentos. E
somente o conhecimento exato dos males - os males morais como os doutrinários -
podia garantir a eficácia da intervenção. Mas não precisara muito para entender que,
se a confissão devia ser transíoïmada em espaço de delação das culpas alheias, era
necessário vencer resìstências profundas. Como declarou frei Felice Peretti, a maior
parte "abstinha-se de confessat"6.
Devia-se obrigá.los: o corolário de tantas obrigaçóes feitas para os confessores
em função da Inquisição era que a população fosse realmente obrigada, querendo ou
não, a confessar.se. Nesse caminho, os sinais foram claros e contínuos: a Itália dessa
época conheceu, através de suas instituições eclesiásticas de todos os tipos, a obrigação
da confissão periodica. Isso era dito pelos decretos conciliares, repetido pelos sínodos
diocesanos; e inculcado pelos pregadores, párocos, mestres. Até os médicos foram
envolvidos. Deve.se a Pio V uma obstinada perseveranca neste caminho. Valendo'se
de normas que remontavam a Inocêncio III (e retomadas nas discussões tridentinas)
foi Pio V que impôs aos medicos, com um motu proprio de 1566, o juramento de negar
tratamento aos doentes que não se tivessem preliminarmente confessado?. Tratava'se da
i irrupção de um método policial e autoritário no campo da preparação à morte, em que
se registrava então um complicado processo de generalização e laicização de modelos
monásticos8. A novidade estava no estilo, não na coisa em si. O bispo de Verona G. M.
I Giberti também ordenara aos medicos "não curar do corpo de quem antes não tivesse
curado a alma", mas - segundo admitiu - com escassos resultadose. Mas o verdadeiro
l
8. Cí. sobre isso as observações de Alberto Tenenti, Ìl Senso della M orte e I'Amore dcllaVita nel Rinascimenro, Torino,
1989, cap. IX: "Da MicheÌangelo a Bellarmino".
9. A menção aos médicos "que não obedecem ao decteto" nesse ponto está contida em Per Li Padi Predícaton,
ímpresso em Verona por Antonio de Portese, 1540, c. B. IVr.
.{ Confissão
r
467
precedente da medida tomada por Pio V foi constituído pelo decreto de Carlo Borromeo,
aprovado no primeiro concílio provincial milanês: ali ficara estabelecido que os medicos,
após terem intimado devidamente os doentes à confissão, iniciassem o tratamento e
.. suspendessem, caso quatro dias depois o paciente ainda não se tivesse confessadolo.
Pio V, ao generalizar a norma da arquidiocese de Milão, tornou-a mais rigorosa e mais
apra ao controle inquisitorial (vale lembrar, de fato, que o projeto perseguido por Borro.
meo tinha no centro uma figura de confessor que tendia a coincidir com a do pároco).
A obsessão do controle dos pensamentos mais secretos dos homens atingia assim
a tronteira extrema de sua vida e ali era presidida por um corpo especial da alfândega,
:ormado por médicos e confessores. Para os médicos que. tivessem desobedecido a essa
.rrdem estavam previstas penas bem rigorosas. Nao faltaàm repercussões na literatura
piedosa nem formas de propaganda no interior da corporação medica: o médico de
lmola Battista Codronchi, em nome de seus colegas, aceitou prontamente a ordem da
rrreja para desenvolver um trabalho de persuasão. Os colegas medicos deviam exigir
a confissão do doente não só por medo do pecado mortal e das sanções eclesiásticas,
mas também em nome da ciência. As ligações entre o corpo e a alma fazem com que -
escrevia Codronchi - a confissão dos pecados possa ser considerada um medicamento
tísico, pois quem se confessa b cura a alma tambem consegue muitas vezes benefício
para o corpo11,
As relações instauradas então pela religiao oficial com a medicina foram de grande
importância tanto no terreno das representações mentais quanto no das instituições e das
relações de poder e não se pode dizer ainda que tenham sido devidamente estudadas: a
função dos medicos tornou-se então decisiva em muitos campos, antes de mais nada no
exame das operações demoníacas no que dizia respeito ao mundo da bruxaria. A corpo-
ração dos médicos, identificada pelo título universitário e pelo consequente juramento
solene da fides Tridentina, encontrou uma identidade cultural e uma função social respei-
tada e garantida na aliança com o mundo eclesiástico: isso permitiu aumentar a distância
social em relação ao mundo dos "práticos" - os cirurgiões, os barbeiros - e a doutrinária
em relação à medicina paracelsiana. Se o mundo dos médicos expressara inquietações
científicas e verdadeiras heresias no terreno religioso no início do século XVI - pense-se
no caso de Michele Serveto - na nova situação viu-se associado à estrutura eclesiástica,
votado à defesa da visão ortodoxa do mundo e da ordem social existente. Os privilégios
Jos medicos, como são descritos na literatura do final do século XVI, aparecem refor'
çados, profissão civil, ligada ao âmbito urbano12, o ofício do medico levava a contínuos
contatos com o mundo eclesiástico. Alem disso, enquanto o clero era rigorosamente
10. Acta EcclesiaeMediolanensis, a Carolo Card. S. Praxedis Archiepíscopo condita..., Milano, apud Pontium, 1599,
pp. 1O11.
1l DeChnsnana acTutaMedendíRationeLiMDuoYanaDoctnnaReferti... Opus piis medicis praecipiueítemque aegotis,
et minístns, atque etiam sacerdotibus ad confítendum admissis utilissimum, ductore Baptìsta Codronchio phílasoph'o, ac
medico Imob.nsi, Ferrariae, apud Benedictum Mammarellum, 1591, pp. 4849.
O médico não é obrigado a tratar dos rústicos, pontifica Vincenzo Carrari (DeMedico etIIIius Erga Aegros Oficio
Opusculum, Ravennae, apud Andream Miseroccum, 1581, pp. 148'149)'
13. Iden,pp.107-110.AproibiçãodospárocostrataÌemaspessoasdoentes,medianteousosuspeitodesacramen'
tais, os sínodos diocesanos Íetornam constantemente. Cf. Cieto Corrain e Pier Luigi Zampini, "Documenti
Etnografici e Foikloristici nei Sinodi Diocesani dell'Emilia Romagna", emPaLesta del Clero, XLIII, 1964, n- 15'
.17 , p. 5.
14. "De medico spirituali animarum, idest de ipso confessario..." (Carrari' DeMedíco, op. cit., p. 105).
15. "Qui sacerdotii ofíicio funguntur, debent esse valde cauti in curatione, ac administratione aegrotantium, ne
quid faciant ve1 omittant, cuius causa irregularitate aíficiantur..." (idem, pp. 152.153).
16. Após a hospitalização, Assuero fora "examinado como de costume" pelo confessor. Para mascarar e iustificar
a denúncia íeita pelo coníessor à Inquisição, uma intervenção subsequente acrescentou no manuscrito que o
*"-. I
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I { Contissão
I
t
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469
exame acontecera "fora da confi ssío" (lJn Auroiaíé in BoLogna il. 5 novembre 1618. Documento Oríglnab Pubbticato
470
20. O ediro encontr&se conservado no Archivio Arcivescovile di Bologna, MiscellaneeVecchie 774, c. 113; retomo
a indicação de Dal1'Olio, Eretici e Inquisiton a Bol.ory nel'500, op. cit., p. 313.
21. 'A qualquer pessoa, que ler ou úr esta nossa, eis que o R. P. f. Giovanni Vincenzo Reghezza de Tâbia, acual prior
de S. Domenico de Pesaro e ügário.geral do s. Oíício desta cidade e sug diocese, convocados à sua presença,
na própria cela, todos os confessores, tanto regulares, como seculares da mesma cidade, após ter-nos feito uma
paternal e amoÌosa exortação, mosrando-nos quanto podem os Padres coníessores servir ao S. Ofício por
ocasião das confissões, onde não há nenhuma pessoa tão ímpia que, prostrada ao pé do confessor, não tenha
nenhum sentimento de obedecer a esse conêssor, nas cousas pertinentes à própria saúde, e quão úteis são os
refêridos confessores para fazer com que os penitentes apresentem íielmente as listas ou anotação de seus liwos
[...] bem como ordenar aos penitentes que devem denunciar todos os hereges, suspeitos de heresia, maleíícios,
visto que desses últimos muitos são descobertos, com grave prejuízo à honra divina, em detrimento da S. Fé
católica e dano de muitos com malefícios de assassínios; e pÕrtanto ordena-nos exptessamente o supracitado
R. P. Vigário que não devemos absolver qualquer pessoa que não tiver apresentado a lista de seus liwos, ou
levado os liwos indicados nas listas ao S. Ofício, muito menos absolver as pessoas que tiverem conhecimento
de algum herege, suspeito de heresia ou maléfico, se antes não tivetem realmente denunciado os deiinquentes
ou ao Ilmo. Monsenhor o Bispo ou ao S. Ofício" (ASM, inqrisirion€,b.295/N).
A Coníissão
í
471
mente. As coisas não tinham acontecido exatamente assim; parece que Reghezzi, além
de ordenar que lhe fossem mandados todos os penitentes que tivessem algo útil a dizer
à Inquisição, ajuntou uma "proibição especial de mandá.los ao tribunal do bispo", o que
causou uma confusão e determinou uma intervenção romana22. Para remediar, o frade
exigiu e obteve uma declaração assinada perante o notário do Santo Ofício por doze
confessores na qual o episódio era descrito de forma correta e aceitável para o bispo.
Escaramuças secundárias: o busílis era que os confessores eram postos às ordens dos
inquisidores, para os quais deviam atuar como coletores de informações e instigadores à
delação. Do ato subscrito pelos confessores de Pesaro é possível extrair não só quais eram
as características "normais" das relações entre "íórum interior" e "fórum exterior", como
também tinha mudado o horizonte da instituição no decàrrer das últimas cinco décadas.
Há outros indícios do costume dos inquisitores de convocar os confessores e
de ordernarlhes não absolverem os penitentes em casos de heresia ou, de todo modo,
sujeitos ao tribunal da Inquisição. Era uma prática normal; tem-se notícias dela so.
mente nos casos em que os inquisidores foram alem dessa solicitação. Aquele vigário
da Inquisição que em Pietrasanta, em 1591, apresentou aos confessores uma lista de
pessoas que não deviam ser absolvidas porque processadas por ele23 cometeu o erro
de usar formas excessivamente grosseiras e por isso foi repreendido; mas na essência
mostrou ter entendido quais eram as relações de poder entre confessores e inquisidores.
22. "Esses Ilustrissimos Senhores desejam ser informados por vós de tudo o que se passa nesse particular" (Carta
do cardeal Millino de 25 abril de 1615, ASM, Inquisirione,b. T52). Agradeço a Carolina Capucci a indicação
deste caso.
Ver p. 263.
I
r
XXIII
Fono IxrEnIOR, FORO ExrE,nIoR
l. Cí. a carta s.d., mas do início àe 1567 , citada por Pelagatti, Gli Ìnízi &LIa Riforma Cattolica, op- cit., p.70 nota.
i. Cf. Henner, Beitrtige, op. cit., pp. 235 e ss.
l. Cf. Kari Schreiner, "Die Lehrverpflichtung und ihre Auflosung. Rechtglaubigkeit als 'Band der Gesellschaít'
474
and'Grunllage des Staates"', em Bekenntnis und Eínhnit der Kirche, org. de Martin Brecht e Reinhard Schwartz,
Stuttgart, 1980, pp. 351.379. Mas ver sobre toda a questão Prodi, Ìl Sacramento delPotere, op. cit.
4. A tese é do deíensor da licitude da divisão racista da sociedade espanhola enre cristãos "novos" (udeus conver.
tidos) e "veÌhos", o teólogo Juan Escobar del Corro, no primeiro de seus Tì'actatus Ties Selzctissimi er Absolutissimi.
L In quo ostendítur nullam díffercnaam ad.esse inter fontm conscíentiae et forum exteT iorem, Cordubae, apd Salvatorem
de Cea Têsa, 1642 (sobre ele cf. Albert Sicroíí Los Estatutos de LimpieTa de Sangre. Controntersías entre los Siglos XV
l xvlÌ,Madrid, 1979).
5. A tese é proposta por Miriam Turrini em um liwo tão estimulante quanto discutíve\: Itt Coscíenza e Ie l-eggl.
Morale e Dintto nei Testi per la Confessione della Prima Età Modema, Bologna, 1991. A variante católica da socio-
logia weberiana coníirma que é um destino de todas as discussões sobte a "modernidade" o de circular entre
modelos abstratos, lançados arbitrariamente no curso da história (algo do gênero era observado há muitos anos
por Ernesto Sestan, quando ainda estava na moda discutir sobre o modelo weberiano de gênese do capitalismo
pela ascese protestante). Salvo querer considerar Gian Paolo Osio um modelo da autonomia moral do indivi
duo moderno, o qual, para convencer a monja Virginia de Leyva a deixá-lo entrar em sua cela, recoÍreu a um
manual de casos de consciência. Come nota a propósito M. Turrini, "o homem ao qual se Íemete a casuística,
de íato íoi declarado menor de idade" (p. 174) - observação plenamente partilhada pelo autor deste volume. E
não basta Íemeter à ambiguidade dos processos acionados pela casuística para pôr de acordo o câso concreto
com a tese gera1.
A Confissão
r
47s
confirmado por uma expressão que se encontra repetida nos processos inquisitoriais:
"dizer os pecados dos outros".
"Eu não achava que se devia dizer os pecados dos outros", exclamou Elisabetta
de Basino da Tossignano, quando foi obrigada a se dirigir ao inquisidor dominicano
de Ímola para testemunhar contra Leone de Dozza6. Seu testemunho foi registrado
como denúncia "espontânea", feita - como registrou o notário - "pto exoneratione
suae conscientiae et zelu fidei"; mas a consciência dessas testemunhas parece mais car- ï
regada, ao praticar o ato imposto, pela sensação de trair uma norma moral e religiosa
profundamente introjetada. Como disse o ourives Vivaldo, "quando se vai confessar,
coníessam-se os próprios pecados e não os alheios"T. Abandonar esse critério significava
transformar-se em espião da inquisição e com isso prejuâicar principalmente os entes
mais próximos: pais, amigos, vizinhos - ou seja, pessoas cujas ideias e comportamentos
eram mais bem conhecidos. Entretanto, desses estreitos vínculos comunitários da vida
social que as novas regras ordenavam infringir decorriam complicações que os juízes
tiveram que avaliar: havia o medo de que os denunciados pudessem adivinhar a identi-
dade do denunciante, resultando em uma fissura ainda maior no já rompido baluarte
do segredo da confissão. Para documentar uma situação que deve ter ocorrido com
bastante frequência, apresentatnos o seguinte caso, exposto ao inquisidor de Módena
por um confessor em 1615: um penitente revelara em confissão ter ouvido seis pessoas
blasfemarem. Fora intimado a suspender a confissão e a fazet seu "comparecimento
espontâneo" diante do juiz de foro exterior. Mas o penitente tinha sido assaltado por
dúvidas e dissera estar disposto a denunciar apenas três das seis pessoas "porque diz
haver entre eles dois parentes seus, e um ou dois companheiros, e tem certeza de que
se os denunciar, logo vão achar que foi ele e que disso poderá advir algum mal". Diante
desse risco, o penitente recusou-se a seguir as ordens do confessor, permanecendo "obs.
tinado e sem confissão"8. Decorre implicitamente desse exemplo que se não se tratasse
de parentes e amigos o penitente não teria tido dificuldade alguma de denunciar: e isso
mostra o potencial destrutivo de um sistema que encorajava sutilmente a denúncia,
mesmo de uma simples blasfêmia. Nada mais fácil que denunciar os inimigos pessoais
e confiar ao tribunal da Inquisição a missão de executor das próprias vinganças.
Os termos com que era denominado o documento de denúncia - '-dg.l:_l"tg,g.
de consciência" ou spontanea comparitio, isto é, a denúncia feita por quem tinha sido
confessor ao tribunal da Inquisição - mascaravam e falsificavam
"nvraAõçfãóprio
hipocritamente a realidade de uma transferência do foro da penitência para o da vin.
gança: a consciência é aliviada com uma denúncia, ou seja, com um ato de foro exterior,
o penitente comparece perante um juiz não espontaneamente, mas por que obrigado
pelo confessor. Porem, justamente o uso abundante de semelhantes mecanismos acabou
produzindo uma reviravolta imprevista no tribunal inquisitorial que, de tribunal de
ó Depoimento de 13 de março de 1578, publicado por R. Roteili, IlTribunale deL Sant'Uffíno a Imola, op. cít., p. 476.
ì Ver cap. X, nota 21.
i Carta de Antonio Cantelli ao inquisidor de Módena, de Medolla, 29 mar. 1615 (ASM, Inquisíríuw, b. 286, c. n. n.).
"foro exterior", foi transformando cada vez mais em um observatório dos movimen-
se
tos das consciências e habituou-se a interferir com os mesmos meios utilizados pelos
confessores. As confissões adiadas ou "comparecimentos espontâneos", documentos
desconhecidos pela tradição medieval, acumularam-se diante dos juízes que se valeram
deles quanto muito como meio para conhecer cada mínimo indício, para intervir de
modo cauto e secreto, para modelar e guiar as consciências: penas leves, penitências
"salutaÍes", abjurações secretas concluíram a maior parte dos procedimentos iniciados
por tais denúncias.
As sobreposições e as ambiguidades eram inevitáveis: foram mascaradas com perí-
frases cautelosas, com distinções apuradas de formas e de poderes, mas foram mantidas.
O poder de adentrar o segredo das consciências era demasiadamente precioso e, ao
mesmo tempo, demasiadamente perigoso para não suscitar novos problemas periodica.
mente. Indicaremos aqui somente dois episodios dessa história que não se referem tanto
ao conflito de poderes entre juízes de tipo diferente - inquisidores e confessores - mas
a um aspecto específico da confissão: o de tribunal de moralidade social, conforme a
interpretação que the deu são Carlo Borromeo.
a) Uma questão debatida no final do século XVI foi se era possível fazer uso
para fins de governo dos conhecimentos adquiridos em confissão. Era um problema
muito preciso, que dizia respeito à prática da reserva dos casos e à sua aplicação den-
tro das ordens religiosas. A diferença do que acontecia na vida social das paróquias e
das dioceses, no interior das ordens religiosas a reserva dos casos punha nas mãos do
superior os meios para manter sob conffole seus adversários e mantê-los distantes dos
centros do poder. Sinais desse problema continuaram aparecendo. Deve.se dizer que
o segredo da confissão foi defendido com decisão: embora seja necessário sublinhar
que se tratou de uma obrigação parcial e unilateral por não dizer respeito ao penitente
nem ao conteúdo da confissão - que podia e frequentemente devia ser confiado a uma
denúncia escrita - mas só ao confessor. Ao menos no plano teórico, não houve dúvidas
nem hesitaçoes. Domingo de Soto tinha dito com toda a clarezar desvelar os segredos
!l da confissão e sacrilégio para o qual não vale nem sequer a dispensa papal; muito
menos podem valer argumentos como o da defesa do bem público ou da luta contra
tti
o mal - por exemplo, o mal da heresiae. Salvaguardar de toda suspeita quem escutava
as confissões era decisivo para garantir a solidez do sistema. (Isso, naturalmente, não
impedia as várias ordens de se caluniarem reciprocamente na materia.)
Se seguirmos o aspecto da relação entre os conhecimentos que o confessor podia
adquirir através de seu ministério e o poder que podia extrair disso, descobriremos que
aqui não foram feitas concessões de qualquer gênero. Foi Clemente VIII que proibiu aos
membros das ordens religiosas, que fossem contemporaneamente confessores e superiores,
qualquer uso de notícias obtidas em confissão no âmbito do exercício de seus poderes.
9. "Nec praetextu cuiuscumque boni publici, nec ut malo, quamvis haereticae pravitatis, occurtant" (DeRatione
l Tegendi et Detegendi Secretum, op. cit. Ver cap. X, nota 13).
{
Ëì A Confissão
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4n
Nessa época, discutia-se muito o problema da sollicitatio ad turpia, de que falaremos mais
adiante; e provável que a linguagem generica da norma acobertasse uma referência espe-
cífica tambem aos problemas que surgiam quando no interior de uma ordem religiosa
era necessário atribuir encargos - por exemplo, de confessor - a membros dos quais se
sabia, por intermedio de confissão, que tinham se tornado culpados de insídias sexuais
em confessionário. E fato, de todo modo, que o impulso mais forte em direcão da sal.
vaguarda do segredo confessional chegou ao papa da parte dos jesuítas. Como glosou o
seral dos jesuítas Claudio Acquaviva, havia uma distância que não podia e nem devia
ser preenchida entre o sacramento e a gestão das coisas humanaslo. Todo um dossiê de
pareceres a esse respeito íoi elaborado pelos jesuítas em 1588; nele eram relacionados
os riscos enfrentados pelo segredo de confissão ."ro q.r.-tpossuía a chave dele tambem
Jesempenhasse funções de governo. Por exemplo, se um confessor negava publicamente
seu voto ao proprio penitente, os frades certamente extrairiam disso suspeitas sobre even-
ruais culpas de conhecimento apenas do confessor. Portanto, formalmente, arriscava-se
a quebra do sigilo do secretismo. Na essência, contudo, o que preocupava os jesuítas era
\) caráter de instrumento de governo da comunidade quea confissão assumiria, em total
Jetrimento de seu aspecto de consolação e de ajuda ao pecadorll.
Segundo o jesuíta Antonio Possevino, por exemplo, não se deviam atribuir fun-
cÕes de confessores aos consultores escolhidos pelo prior do mosteiro para assisti-lo no
Eoverno. De fato, era inevitável que os subordinados se recusassem a abrir suas cons-
ciências a esses confessores que podiam fazer uso, nos setores de governo do mosteiro,
los conhecimentos obtidos em confissão; e de todo modo, esses confessores estariam
mais preocupados em executar a vontade dos superiores do que consolar e curar as
rtlicões das almas12.
Conhecimento e poder: conhecer os segredos das pessoas confere um poder notá-
rel. E isso permite entender por que o problema do uso dos conhecimentos adquiridos
em confissão continuava a se apresentar, com resultados diferentes. Em torno do segredo
las consciências a que os confessores tinham acesso giravam poderes determinados a
á:er de tudo para apoderanse dele. A Conspiração das Pólvoras, em 1605, custou a vida
Jo jesuíta inglês padre Garnett, enforcado por não ter denunciado os conspiradores e
:eus planos, conhecidos atraves da confissão: e a questão esteve no centro da celebre
rolêmica que opôs James I Stuart ao cardeal Roberto Bellarmino. Tratava-se de esta-
i'elecer se a segurança do soberano e do estado eram motivo suficiente para romper o
regredo da confissão ou não13. O poder eclesiástico sobre as consciências e a fidelidade
r!ì estado seguiam caminhos separados, pelo menos no mundo católico. A doutrina
Sobre o decreto de Clemente VIII cf. L. Honoré, Le Secret de la confession. Etud,e hístonque-canonique, Bruxelas,
1974, cap.5, pp. 81 e ss.i o texto de Acquaviva íoi indicado no ensaio de Niccoli, "11 Confessore e I'lnquisitore",
op. cir., p. 425.
O dossiê encontraae reunido em ARSI, Opp. NN. 158, cc.98r-ll?r (pareceres de Fernando Perez, Diego Cisnetos
e Antonio de Acosta).
De Casibus Reseruaris (enst, Opp. NN. 314, cc. 181r.202qt).
Ct. Honoré, h secret dekt confession, op. cit., pp. ?3 e ss.
oficial firmou.se na defesa {o mgp_d-g interior como campo reservado, imune ao poder
. àËiã;r'Ëãã;tr"Tgi""d. síntese tãõlõlica de Suarez dedicada à confissão rejeitou
rigorosamente que a lei humana pudesse dizer respeito aos acttís internosr4: mas, ao mes.
mo tempo, deixou aberto o caminho para a intervenção dos poderes eclesiásticos nesse
campo, em rermos que revelam o alcance da divisao moderna entre Igreja e Estado.
A pergunta era se, por parte dos confessores, podia ser feito uso dos conhecimentos
adquiridos em confissão para impedir o mal: o problema tinha surgido, em termos
concretos, no âmbito da discussão sobre o crime de sollícitatio. A resposta de Suarez
deixou aberta a possibilidade - ainda que ao custo de infinitas precauções - de um
uso por assim dizer policial da confissãor tratava-le, essencialmente, de exigir o nome
da pessoa que tinha sido socia criminís, para desencadear em relação a ela uma ação
repressiva. Naturalmente, o segredo da confissão devia ser garantido de mil maneiras:
por exemplo, pedindo permissão ao penitente para fazer uso do que fora revelado, ou
então, fazendo com que tudo fosse repetido fora do sigilo da confissão. Mas no plano
geral a questão era que a autoridade eclesiástica delimitava para si no foro da consci.
ência um âmbito reservado, subtraído aos poderes políticos mas sujeito de todo modo
a uma lei e a um sistema judiciario que atuavam para fins de bom governo e do bem
público - fins paralelol diferentes em relação aos estatais15'
^",
A questão se era lícito para o confessor obter a revelação do nome do cúmplice
foi um problema central nas discussões de teólogos e canonistas, como confirmação de
quão forte era a tendência de utilizar a confissão como canal para o governo da socieda,
de, na encruzilhada entre as identidades de juiz e de médico, que the eram atribuídas,
.1r
{
tl o confessor foi chamado a escolher não só, em geral, entre a brandura e a dureza, mas,
,Í mais concretamente, entre as funções eminentemente judiciárias e a paciente obra de
i consolador de almas aflitas. O célebre doutor Navarto, por exemplo, não teve dúvidas
em defender o direito do penitente de não revelat os cúmplices. Mas a orientação das
autoridades eclesiásticas foi muito imprecisa a esse propósito: durante muito tempo,
a doutrina oficial esfalfou,se à procura de uma solução que permitisse salvaguardar o
secretismo da confissão e a intervenção contra os crimes secretos conhecidos através da
confissão. A experiência dos confessores parecia cada vez mais a dos médicos e cada vez
menos a de juízes: demonstra.o o fato de que aqui os tratados dos canonistas cederam
o lugar a coletâneas de aforismosl6. Reunindo a opinião prèdominante, um decreto do
14. P. Francisco Suarez S. 1.., Commentaiorum ac Disputationum in Tetiam Partem Divi Thomae, t. IV, Lugduni,
sumptibus Horatii Cardon, 1613. O tratado De Poenítentia, publicado pela primeiravez por Suarez em 1602,
encontra-se no t. )CüI da edição Vives.
15. Cf. Camilo Maria Abad, "Una 'Lectura' de Suarez lnedita'utrumLíceat aliquando uti scientia confessionis"', em
P.
Miscetlanea Comillas,lX, 1948,pp. 135-190; em part. p. 138. O texto da le.ctura de Suarez indica com precisão
sua origem da quaestio sobre o peccatum ilLud de so\Ilcítatione (p. 178).
t6. Naqueles célebres e difundidos do jesuita português Emanuel Sá, a questão do uso da ciência adquirida em
confissão é resolvida com o reconhecimento de que o confessor pode avisar as autoridades sobre eventuais
perigos para o estado ou para a comunidade que the foram revelados em confissão, mas desde que o nome do
penitentepermaneçaoculto(AphonsmiConfessanarumexDoctorumsententiisCollcctae,Venetiis, 1640'pp.9697\.
A Confissão
r
479
Santo Ofício de 18 de novembro de 1682 estabeleceu que se podia fazer uso da scientia
exconfessione acquisita, desde que não prejudicasse o penitentelT. Porém há de se notar
que nessa epoca era o Santo Oficio que legislava sobre a matéria: e o interesse da ln.
quisição em conhecer os segredos da confissão era inquestionável. A coisa é muito mais
evidente se levarmos em consideração a rigorosidade com que o segredo da confissão
foi defendido em todas as outras direções que não tinham a ver com o funcionamento
da Inquisição.
A
questão do uso da ciência adquirida em coníissão seguiu, desse modo, um
percurso específico, de refinada questão teológica. Mas em sua raiz havia um conflito
de interpretacão sobre a natureza e sobre os deveres da confissão. Uma coisa era pensar
na confissão como ocasião de uma relação estritamentetindividual, para ajudar quem
vivia na afliçao das próprias culpas; outra concebê-la como um instrumento de refor
ma da sociedade. A ideia de que os conhecimentos obtidos pelos confessores podiam
ser utilizados como instrumento de governo e de polícia moral estava arraigada na
estrutura diocesana reorganizada da época tridentina. E foi nela que reapareceu de
quando em quando.
17 Sobre o decreto, citado de modo parcial e ambíguo por A. Criscito no verbete "Segreto" áa Enciclopedia Cat
tolica, cí. Honoré, It secret dela confession, op. cit., p. 98. Cf. de recente Niccoli, ILConfessore eI'Inquisítme, op.
cit., pp. 427.428.
18. Demonstrao a coletânea dos documentos oíiciais que foi organizada à época: cf. Collecçao lJniversal de todns os
Papeis, qu!. se Tem Publicadn nesta Cofte sobre a Pro.xe dc .Algunos Con/essores, que Perguntavão na ünfissao
'\bomimuel
ao Penítente peln Complíce de seuPeccado..., Madrid, na Officina dos herdeiros de Francisco del Hierro ,1746,vo1.3.
O episódio foi o resultado final de toda uma orientação doutrinária: do contexto em que oconeu se ocupou em
um amplo trabalho Antonio Pereira da Silva, OFM, A Qrcstrio do Srgilismo em Pmtugal no Século X%II; um Abuso na
ConfissdoReprouadapuBentoXlV,Braga, 1964. Idem,pp.Tess.,umareconstituiçãodosprecedentesdoséculo
XM e das raízes teológicas espanholas (no ensaio de Gérard Dufour, Clero I Sexto M and.amíento. La Cont'essíón enla
Espanl dzlSiglo X\4tI, Valladoli, i996, não são encontrados, porém, traços das repercussões espanholas do caso).
seus comparsas. No entanto, os que apoiavam essa práxis defendiam sua validade com
considerações que se alinhavam com o decreto do Santo Ofício de 1682: tratava.se,
na opinião deles, de conduzir ativamente uma batalha para a eliminação do pecado.
Assim, tendo os nomes dos cúmplices habituais dos pecadores, podia-se ir atrás deles
para reconduzi-los ao bom caminho. Mas, por trás dessas boas intenções, vislumbrou-se
em Roma o espectro de uma prática que havia séculos a Inquisição combatia: a de um
uso das coisas ouvidas em coníissão para enredar sexualmente não so os penitentes
como também seus comparsas. Como veremos, justamente sobre essa prática da solli
citatio tinha ocorrido um decisivo acerto de contas entre a autoridade dos confessores
e a dos inquisidores.
Pode.se considerar esse episódio como a deÀadeira manifestacão de uma ideia da
confissão como poder de controle, instrumento de vigilância policial por parte de uma
autoridade à qual não se devia opor nem sequer a barreira da consciência. Tratava-se
de uma tentação intrínseca à ideia tridentina de confessor,juiz, insaciável registrador
de particulares, policial determinado a perseguir a culpa e os culpados, a apanhá-los e
a puni-los. Mas essa ideia da confissão fora derrotada por uma imagem do confessor
como pai espiritual, apoio misericordioso, psicagogo capaz de reerguer o pecador e
colocálo no caminho da perfeição.
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A Confissão
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XXIV
CoxnssÃo coMo CoxsomcÃo
E AuxÍLro. A OnRA Dos JrsuÍrns
ão Vicente de Paulo, ao que parece, quis ser enterrado perto do coníessionário dos
jesuítasr. E um dos muitos sinais deixados na história pelo extraordinário sucesso do
metodo jesuítico de orientação das consciências. Era um sinal de que o coníessionário
podia ser escola de santidader pelo menos assim o entenderam os hagiógrafos. Mas e
sobretudo um documento entre os muitos da ligaçao possível de ser criada por meio
da coníissão, do auxílio para viver que se podia tirar dela. 'Auxílio" é tetmo dos mais
tiequentes no vocabulário específico da Companhia de Jesus, uma especie de chave
unitária de um empenho de gênero variado: ffate-se de hereges e de infieis, de missões
extraeuropeias, de organização de colégios para filhos de príncipes ou de congregaçoes
para artesãos, íala-se sempre em "auxílio". E entre todos os "auxílios", aquele que era
dado em confissão destacou-se como o mais importante.
Nao foi uma descoberta sem prenúncios. Na época, todos sabiam que a confissão
era importante. E, já que estamos tratando da Inquisição, valeria a pena lembrar que
são justamente os autos da lnquisição que fornecem a prova da importância social da
confissão. As atas demonstram como uma grande quantidade de experiências e de prá-
ticas reuniam-se em torno da confissão: o lugar do perdão parece ter sido buscado com
ânsia e com uma participação insólita. Do grande debate do século sobre a penitência,
que atingiu com Lutero o tom mais elevado, os reflexos nas experiências de indivíduos
e de grupos foram extraordinariamente numerosos e variados; não se tratou tanto de
um conflito em torno da confissão entendida como pedido de perdão do pecador a
Deus, mas muito mais em torno do direito do confessor de fazer com que o peniten-
re the contasse em pormenores as próprias culpas. Bem depressa, disseminaram-se e
generalizaram.se práticas da confissão que tendiam a fazer com que coincidisse com
uma autoacusação generica, evitando a enumeração das circunstâncias e das especies de
pecado2. Mesmo a discussão que os processos inquisitoriais permitem-nos acompanhar
não dizem respeito à confissão, mas ao direito e ao poder dos eclesiásticos de serem
SaintVincent de PauL, par I'abbé Maynard, Paris. 1860, vol. w, pp. 96-97.
"[...] Conquestus etiam fuit dominus plebanus quod fere omnes confiteantur [...] tantumodo in generali fotma,
nec quicquam specifice et com suis circunstantiis debitis volunt coníiteri amplius [...]" (visita de 21 de janeito de
1538, de Bernardo Clesio a San Vigilio in Mais, publicada por G. Cristoforetti, La Vísita PatoraLe deL Cardínale
B ernardo Cb sio al.l.a Di o cesi di Trento 1 5 37' 1 5 38, Bologna, 19 89, p. 327 ).
rn-
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3. Depoimento do taverneiro Vannino de Empoii, de abril de 1567, em Archivio di Stato di Firenze, NunTíatura
B42,cc. n. n. Era contra
esse modello de confissão que os controversistas católicos tinham saído em campo
desde os primeiros textos de Johannes Eck (veç por exemplo, a obra indicata mais adiante na nota 5).
4. Cf. O. Premoli, Stona dei Bamtbiti nel Cínquecento, Roma, 1913, pp.94-99.
5. V. cap. XI, nota 19.
6. De Poenitentía et Confessíone Secreta semper in Ecclesia Dei Obseruata contra Ludderum Librí II, Romae, por
Jacobum
Mazochium, 1523.
7. Segundo o mais recente e meticuloso biograío de santo Inácio, Ricardo García-Villoslada S. I. (Sant'Ignazio
di Lo'1ob, ed. or. Madtid, 1986, trad. it. Torino, 1990, p. 171) a ptática datava pelo menos do século XI e era
aprovada e aconselhada por teólogos e moralistas.
8. MHSÌ, Fonres Nanatiq.,i de S. Ignatio de Lo'joìa, org. de Candido de Dalmases, I, Roma, 1943, p. 38ó.
A Confissão
r'
481
Ora, no que tange à confissão pública e àquela entre leigos, haveria muito a ser
dito sobre a raiz profunda de tais práticas e sobre a necessidade em que se viram as
proprias autoridades eclesiásticas de permitirem a sobrevivência delas, pelo menos em
casos excepcionais - apesaÍ da tendência geral de fazer da confissão um ato privado,
não comunitário: tal era, por exemplo, não só a confissão do soldado, mas também
a do marinheiro. Ainda no começo do século XVII, o manual para párocos de Gian
Battista Possevino propunha estender a noção de agonia a toda a viagem por mar, de
modo a colocar os marinheiros na condição do moribundo que demanda a absolvição;
e as histórias de navegantes que na hora do perigo recorrem à confissão coletiva não
são absolutamente excepcionais na época da viagem às Índiase.
A prática da confissão geral e o espaço que ocupou i" obr" dos jesuítas impõem
problemas -"ir.offií"áárlÉ-úi que começa uma outra história ou, pelo menos, que
se tem uma reviravolta na historia plurissecular do rito cristão da coníissão dos pecados.
No entanto, deve ser dito que, na experiência de Inácio, a questão da confissão, de sua
validade, de como ter uma lembrança completa das culpas passadas, assumiu formas e
tons de dilacerante intensidade, de resto, em sintonia com os problemas de seu tempo.
^A. sensacão angustiante do pecado, que esteve na origem da reação luterana, domina
9. Cf. Alain Cabantous, b ciel dans Ia mer, Paris, 1990, p. 107 (que reproduz também o trecho de Possevino, a
partir de uma edição francesa de 1619).
.l rt. PaoloMorigia, OperaChíamataSratoReligioso, etViaSpirítuale,Venezia,porNiccoloBevilacqua, 1559,p.343.
Ì 1. John W. O'Malley (The First Jesuits, op. cit., p. 138) lembra justamente a influência da deuotio moderna sobre o
abade Cisneros. Cí. tambem Pierre Gervais, "lgnace de Loyola etla confession génétale", em Communio, ed.
írancesa, VU, 1983, pp. 69-83.
17. "Le técit de ses íautes est pénible; on veut les couwir, et en charger quelque auúe: c'est ce qui donne le pas
au Directeur sur le Confesseur" (Is caractères oules moeurs dz ce siècLe, Paris, 1931, Il, p. 41; mas cf. também
(j pp.117-113 e 127).
Ht A Confissão
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13. Condenação confirmada por Michele Ghislied em uma caÍta ao inquisidor de Gênova de 15 de agosto de
1553: "As obtas de frei Jo. Battista de Crema são expressamente proibidas e a respeito disso mando-vos uma
sentença autêntica" (Biblioteca Univetsitaria di Genova, ms E. \'ÌI. 15, c. 9d.
14. Ver o estudo de Massimo Firpo, Ml labinnto del.Mondo. Lorenzo Dauidico.tra Santí, Eretící, Inquisitorí, Firenze,
1992, que reconstituiu com grande riqueza de novos dados uma peÌsonagem secundária de notável interesse.
15. "Vera conversio ad Deum est per poenitentiam sacramentalem" (Breuis Regub. ad. Confessani' et Confitentis,
Munus Rite Obeundum, Composita aVincentioMazzoLio..., Lucae, ex typis Vincentii Busdraghi, 1590, p. 21).
16. Religioso da ordem de São Jerônimo, fundada na Itália em 1360 pelo beato Giovanni Colombini e extinta
em 16ó8 (N. do r.).
Paolo Morigia, II GioíeLLo de' Chrístíani... díviso in cinquelibn. Ne' qualì si tratta dcLl'enormírd deL peccato, del.I'essamíne
deLll conscienza, dzlla cogníríone di se stesso, dzll.a conmtíone, delle parti dellt confessione, dcLmodo dí sapersíben confessare,
junto a Gio. Antonio delli Antonii, 1581 (mas a obra tinha sido concluída
et deLla perfetta penitenza,Venezia,
quatro anos antes, confotme aíirmação do autor na dedicatória), íí.71u,83't'84r.
18. "sciant se ab omni excomrnunicatione, suspensione et interdicto posse absolvere etiam externos, tum ab
omnibus etiam casibus reservatis, non episcopis solum, sed Summo Pontiíici modo ne sint casus vel censurae
.í ,i in Coena Domini reservatae" (P. Diego Lainez, De Mod"o Audiendi Confessiones, em ARSI, Opp. lrtl.55, cc. 109t
H.' A Confissão
t.h
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487
e fácil ter uma noção exata dos poderes da Companhia a propósito disso: os jesuítas
mantiveram uma postura muito reservada em torno dos documentos oficiais de seus
lrivilegios, para os quais chamaram, no entanto, a atenção dos penitentesle.
Embasados nisso, os jesuítas puderam contar com um crescente sucesso em
sua obra de confessores. Durante anos e anos, os relatórios dos jesuítas descreveram
as imensas multidões que se apinhavam junto aos confessores da ordem, as pesadas
:essÕes no confessionário a que eram obrigados. É sobre esse fundo que devem ser
Ì.rdas as insistentes advertências, que não demoraram a ser dirigidas aos membros da
Companhia por seus superiores, apontando na direção da qualidade das confissões
e não da quantidade. As instruções dos jesuítas aos confessores são extremamenre
:iaras a esse respeito; os confessores não devem propor.rà o objetivo de ouvir catervas
je penitentes para liquidá-los após uma penitência sumária. Ao contrário, devem ter
Fresente o modelo do medico que busca e cuÍa feridas secretas - são os médicos da
:lma20.
Ig_"ggr qg:_f=t1o{12111 i.9l!i_:1o c.t_11:.Na história da ordem fundada
por Inácio, a proposta da confissão geral devia tornar-se uma das mais importan.
:es, ela encarnava melhor que qualquer outra prática devota o movimento que das
profundezas da abjeção levava ao desejo de resgate, do conhecimento de si mesmo
r vitória sobre os próprios instintos culpados - e portanto, do abismo do pecado à
;úspide da perfeição. Era preciso partir da reconsideração dos erros passados em toda
sua extensãor para recuperar periodicamente o impulso para um novo início. Mas
rão se tratava de uma meditação moral tradicional: era uma prática feita a dois. O
;ristão devia pôr nas mãos do proprio psicagogo todos os fios imperfeitos do tecido
Ja própria vida, para obter com a ajuda dele uma transformação radical. Assim, o
confessor tornava-se algo bem diferente em relação ao distribuidor ocasional de um
I E opinião verdadeira e corÍeta de todos os católicos que aquele que se confessou bem uma
I
I vez não venha a se confessar uma outra, e não há lei humana que obrigue ao contrário. De onde
ì/
I
se segue que aqueles que dizem ser necessário fazer confissões gerais ensinam uma doutrina falsa e
errônea: pois que ou as confissões passadas foram válidas ou não foram; se foram válidas e erro e má
doutrina dizer que seja necessário íazer outras confissões gerais: se foram inválidas, é verdade que
todas devam ser reiteradas e feitas de novo, não porque as particulares não bastem, mas por não terem
sido válidas: por isso, ensinar que todos têm necessidade de fazer coníissão geral é erro ensinado por
homens com pouca prática na cura das almas.
21. A acusacão é do observante Francesco de Mozzanica, em sua Breuissíma Introductione impÌessa em 1510; retomo
a citação do amplo e íundamental estudo de Roberto Rusconi, Con/essÍo GeneraLis. Opuscoli per la Pratica
Penitenziale nei Pdmi Cinquanta Anni dalla Introduzione della Stampa", em Ì Frati Minori tra'400 e'500.
Attidelxlt Congresso InternazionalB,Assis, 1986, pp. l9l-277; empaÌt. p.725.Cí. tambémMorigia, ILGioiella
de' Chnstianí, op. cit., c.9lr.
7.2. Breuelrunuttione de'Confessori, come síDebba AmministrareilSaqamento dellaPenitenza..., do M. R. P. F. Bartolomeo
í de Medina, em Venetia, iunto a Domenico Nicolini, 7582, cc.48u49r.
A Confissão
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489
?.3. DecretaetConstítutíonesPenLLustnsetReuerendíssimiinChnstoPanisetDomíníP.PauLíLeoníi...EpiscopiFenaríensis,
Ferrariae, Victorius Baldinus typographus Ducalis, 1588, pp. 16-17.
1.4. Institutío Confessariorum ea Contínens, quae ad Praxim audiendí confessiones, et promouendi poenitentes ad clvístíanom
per f ectionem p e'í tinent..., Romae, cpud Barthoiomaeum Zannettum, 1610.
"[...] Maximam ex tentationibus hauriri utilitatem" (idem, p. 98).
vencer a tentação, sugerindo-lhe as passagens bíblicas que levem a uma adesão passiva
às doutrinas da lgreja, a uma recusa a querer saber as coisas "altas"2ó. O mesmo vaie
para a blasfêmia. Mas para que o confessor possa intervir toda vez em que haja neces.
sidade, é preciso que a relação com ele seja estável e não esporádica. O segundo livro
comeca pelo fim da coníissão: o penitente que procedeu a uma verdadeira e profunda
rejeicão do pecado não deve ser deixado ir embora com uma simples absolvição. Deve
ser convencido a fazer uma confissão geral e a pôpse no caminho da milícia espiritual:
é aqui que se realiza o progÍessus in uia Domíni, o aumento progressivo do controle de
si mesmo e a orientação para o bem da propria pessoa. E esse é o "caminho da purga.
ção", ao qual se segue, no terceiro livro, o "camin\o da iluminação". A relação casual e
esporádica do penitente com o confessor tornou-se a ligação estreita e contínua de um
discípulo com um mestre sempre pÍesente, sempre atento aos movimentos interiores
do discípulo, capaz de ajudar aquelas forças já presentes nele que podem conduzi.lo
ao caminho da perfeição religiosa.
A linguagem sistemática dos manuais, de resto, corresponde à linguagem mais
informal das instrucões internas. Em uma delas, redigida por Claudio Acquaviva em
1588, explica-se em que consiste o exame de consciência (ou ratío conscientiae) a ser feito
diante do superior; e ne'cessário - observava Acquaviva - abrir o estado da propria alma,
evidenciar defeitos, paixões, simpatias, tentacões, até mesmo virtudes, enfim, tudo o que
e necessário para fazer com que se conheca bem a si mesmo: e deve.se fazer isso com fre.
quência, não em datas marcadas uma ou duas vezes ao ano27. É decisivo, de todo modo,
o critério fr,rndamental fixado por Acquaviva: e preciso que o penitente desvele o estado
de sua consciência não como se estivesse diante de um juiz, mas como diante de um pai28.
Confirma-se portanto o que Ghislieri tinha escrito ao jesuíta Rodriguez: o inquisidor,
como juiz, não tem nada a partilhar com o confessor. A confissão e o lugar da escuta
e c1a confiança: e os jesuítas foram os mais conscientes defensores desse princípio. Isso
não os impediu de colaborar com o tribunal da fe e até mesmo de dar ouvidos à oferta
do rei de Portugal de entregar a eles a direção da Inquisição naquele país2e. Os hereges
tinham sido combatidos: quanto a isso não restavam dúvidas. Mandar à morte um ou
outro podia funcionar como um bom sistema de dissuasão, mesmo segundo lnácio de
Loyola. Mas a "vida nova" do cristão iniciada pela confissão geral apoiava.se não no
terror das penas, mas na conversão interior: e foi por isso que os jesuÍtas seguiram o
caminho clas confissões e não o dos processos inquisitoriais. Tâmbém por isso, sempre
z6 Idrm, p. 100. Cí. C. Ginzburg, "LAlto e il Basso. ll Têma della Conoscenza Proibita nel Cinquecento e Sei.
cento", em ldem,Míti, Emblemi, Spie. MoÍfoLogta e Stona, Torino, 1986, pp. 107.132.
27. "[...] Statum animae suae, nimirum defectus, passiones, propensiones, tentationes, virtutes ípsas et quaecum.
que ad períectam sui cognitionem facere possunt, ei manifestare, cui se ad maiorem Dei gloriam ditigendos
tradiderunt" (Iurructioad.Faci\ioremReddendamConscientíaeRationema R. P. N. Clatdio CuidnmVisitato'riData
Anno 1588, da redação manuscrita, conservada em Hauptstaatsarchiv, Muniqu e, lesuíten 9, c. 57 e ss.).
28. "Se non tanquam iudici suam coscientiam superiori, sed tanquam patri maniíestare' (idem).
79_ Um quaclro claro e coreto da questão, normalmente pouco aproíundada nos estudos sobre a Companhia, é
fornecido por O'Malley, Thr First.lesuits, op. cit., pp. 310-320i em part. p. 312.
r
491
10. Sob Sixto V, em uma das muitas ocasiões em que o indulto concedido aos jesuítas íoi limitado e precisado,
estabeleceu.se que os confessores da Companhia deviam enviar ao Santo Oíicio os hereges "maniíestos"
("Haereticos manifestos Patres Soc. Jesu sub praetextu cuiusvis priúlegii non absolvant in confessionibus et
in íoro conscientiae, sed illos ad S. Ofíicium transmittant, quia Sixtus V quos talem privilegium habebant,
illud revocavit et abstulit 1585" t Forma procedendi ìn causís Sancti Officii ac haereses omnes a R. P. M. Lturentio a
Laurea Santiss. D. N. Papae cotxu\tore dispositae et ìn unum coLle.ctae, BAV, Borg. Utt. 5 59, c. 48v).
31. Gio. Pietro Pinamonti, "11 Direttore. Metodo da Potersi Tenere per Ben Regolare le Anime nella Via della
Peíezione Cristiana", em Opere, Pezzana, Venezia, 1767, pp.607-710; em part. p. 607. Sobre a impottância da
orientação espiritual para os jesuítas cí. Joseph de Guibert 5.I., b. spiritualíté de ln Compagnie de lésus. Esquisse
hístorique, Roma, 1953, pp. 301-304.
12. Pinamonti,IlDirettore, op. cit., p. ó08.
)3. Idcn,p.617.
total das consciências e penetrar seus recônditos. A teoria dos temperamentos era tida
como o abecê da prática confessional por exemplo, com os que sofriam de melancolia
era preciso evitar a severidade sob risco de estimular uma tendência natural ao deses-
perol4. Como se vê, aprofundando a estrategia do controle da consciência, o confessor
põe.se diante das pessoas como um cientista que experimenta em laboratório o modo
de determinar certos efeitos. Daí, a análise científica da relação enffe causas e efeitos
substitui a dinâmica medieval do confronto entre anjos e demônio em torno do pecadort
as potências extra.humanas não são eliminadas ou excluídas, mas são introjetadas ou
consideradas como agentes secundários que se inserem em processos internos ao ser
humano. É por.ss. caminho que, progressivamente, o Tentador de asas de morcego
que esvoaça ao redor do pecador e substituído por energias naturais existentes dentro
do individuo. Em lugar da Têntação como ato promovido por forças sobrenaturais se
não diretamente por Deus ("não nos deixeis cair em tentação") encontra-se cada vez
mais a Paixão como produto do movimento natural da psique humana: força natural,
poÍtanto, e por isso positiva. "O que seria o mar se não fosse agitado de quando em
quando por ventosl Seria um pântano sem fim, mas pútrido, que empestaria a terra.
E o que seria uma alma sem tentações? No máximo um receptáculo de soberba e por
meio da soberba um reCeptáculo de vícios"35. Como a névoa que se ergue das planícies
e das águas paradas para o alto das montanhas, assim a paixão nasce das potências
inferiores do corpo e ergue-se ate as superiores, do intelecto e da imaginação: a arte do
diretor da consciência consistirá, poÍtanto, em dominar o conflito de forças dentro
do individuo. Assim, o pecado deixa de ser um fenômeno misterioso e dramático para
tornar-se o resultado previsível de inclinações naturais que, aumentando progressiva-
mente em virtude de erros de estrategia, podem chegar ao resultado extremo do pecado
mortal - extremo, mas não derradeiro, porque sempre há um remedio, uma saída, um
tirar proveito do erro.
uma estrategia desse gênero, aplicada em larga escala, modificou radicalmente as
características medievais da confissão e conferiu à relação com o confessor um lugar cen-
tral na vida social. Os confessores com que nos deparamos na epoca pós-tridentina são
personagens que sabem como entrar no íntimo de seus "filhos espirituais", acompanham-
.lhes momento a momento as vicissitudes, fornecem conselho e auxílio, vivem indi
retamente as vidas alheias. A ligação estreita que são capazes de criar com seus filhos
espirituais alimenta-se de contatos e conversas contínuas, diferentes do encontro em
confissão. Uma devota anônima do final do século XVII aconselhava aos penitentes
que mudavam ocasionalmente de confessor que não maniíestassem ao novo sua vida
interior assim como faziam ao diretor espiritual. Havia o risco de que o confessor
ocasional fornecesse indicações diferentes em relação ao normal; e havia ainda o
problema do tempo, "exigindo-se longo tempo para declarar o estado interior de uma
alma, ou entediaríeis o confessor, que não é o vosso habitual, ou então impediríeis
A Confissáo
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493
), 36 Strad.a di SaLute Breve, Facile e Sicura Insegnata Nuoçamente da un Religloso Scalzo Eremitano ad una sua Penitente,
em Bologna, por Longhi, 1679, p. 145.
)1, "Ne prius admittas somnum, quam cuncta diei,/Acta ter excuÍras, bona, seu mala notando", advertia um
anônimo Methodus Con/essionis, hoc Esr, Ars,
Srue Ratio, et Brevís Via Confitendi, Lugduni, apud Theobaldum
Paganum, 1546, p. 307.
; 38. À sua obra é dedicado o volume de Louis Châtellier, IlEurope des üuots, Paris, 1987 (trad. it. Milano, 1988)
que íaz referência à traduçáo francesa do LibeLLus SodaLitatis (Izliwe dela Compaígníe c'est'ààireLes Cínqlívres des
irutitations cl'trestíennes, dressé.s pour I'usage de Ia conftéie de la très'hcureuse Vierge Marie, Anvers, Plantin, 1588).
39. "Qui autem in cotidiano examine vespertino distincte, breviter, et simul quae sunt eiusdem rationis peccata,
scripto notaret [...] cum est accedendum ad coníessionem [...] quod notavit, in memoriam redigat" (Líbellus
Sodalitatis, hnc Esr, ChnstianarumlnstitutíonumLíbrí Quinque, P. Frellon et A. Cloquemin, Lugduni, 1594, liwo I,
cap. I: "De Mod.o Insrituendte Con/essionis quae Octavo quoque Díe Fieri SoleC', pp. 1-2).
40. Sobre a passagem de uma â outra e seus efeitos, cí. John Bossy, "Moral Arithmetic. Seven Sins into Ten Com.
rnandments", em Conscience and Casuístry in Earfu Modern Europe, org. de Edmund Leites, pp. 214-254.
Hercules. Elaboram.se esquemas mnemônicos que dos pecados capitais derivam famílias
inteiras de pecadosr seis filhas da Acídia, sete as da vanglória, oito da luxúria; e era
as
necessário perquirir cada filiaçao, vendo por exemplo se, na busca por novidade, - uma
das filhas da vangloria, justamente - não se cometera o pecado de desejar roupas novas
ou novas opiniões. Era preciso escavar na memória, recordar tudo - circunstâncias'
ocasiÕes, quantidades e qualidades dos pecados. Era, como se pode facilmente imaginar,
uma leitura ansiosa, embora o autor exortasse à confidência e tentasse afastar o perigo
de uma consciência scrupulosam et anxiam. Para incentivar a confiança, padre Coster
usava uma imagem nada nova, a de Deus como um soberano que, à sua chegada a uma
cidade, oíerece um perdão geral a todos os súditos que a ele se dirigem para solicitar'
.lhe a carta de remissão - adaptação católica dà princípio da justificação por fé caro,
na Itália, aos leitores do Beneficío di Cristoal. Mas o exame de consciência era uma prova
difícil, que exigia dedicação. Mesmo os autores que se esforçaram em atrair mais do que
espantar os penitentes, deixaram escapar imagens inquietantes: o cristão deve "enttar na
caverna de sua consciência e, fechada a entrada a outras coisas de fora, deve examiná'la
quanto a todas as coisas que possa ter feito contra ela"42. O diálogo com a consciência
no interior da caverna era a antecipação daquele com o juiz eclesiástico sentado em seu
escano (as arquitetut'as barrocas do confessionário, se variaram de muitas maneiras as
características secundárias desse mobiliário eclesiástico, sempre sublinharam sua solene
função;udiciarla). Diálogos temíveis, tanto um como o outro. O exame de consciência
não podia ser outra coisa se não fonte de ansiedade, justamente pela busca de exatidão
e completude. E, visto ser fundamental recordar com precisão cada detalhe emergente
do dialogo com a consciência, recorria-se à escrita. Anotações manuscritas' cruzinhas
ou barrinhas marginais nas listas de pecados propostos pelo liwo da própria congre'
gação auxiliavam os devotos a lembrarem os pecados a serem denunciados43. E esse e
um indício que nos ajuda a entender por que assumia grande importância à época a
questão quanto à possibilidade de fazer.se uma confissão por escrito.
A escrita era o resultado inevitável da prática do exame de consciência: no lugar
dos mecanismos mnemônicos baseados na rápida resenha de mandamentos e pecados,
entrava um esforço de aprofundamento em uma materia que nem mesmo as artes da
memoria podiam mais controlar. A prática dos Exercí cios Espirituais de Inácio levava,
por sua natureza, a recorrer à escrita no exame de consciência. Existe um documento
exemplar a respeito disso em uma edição ilustrada, onde a forma do exame de cons'
ciência concentra.se justamente na prática da escrita, enquanto o texto lembrava a
obrigação de repercorrer mentalmente, à noite, cada hora do dia para controlar o que
fora feito em pensamentos, palavras e atos, a imagem precisava melhor a operação a
ser cumprida, mostrando um homem que, ajoelhado, registra por escrito o resultado
41. A imagem do rei e apresentada entre os "argumenta popularia ad commendandam írequentem confessionem"
(LibeLLw Sodalitatis, oP. cit., pp. 10-14).
42. Paolo Morigia, Il Gioiello de'Chnstíani, Treviso, junto a Fabritio Zanetti, 1601, c. 11r.
43. Sinaisdessegêneroencontram.se,porexemplo,naspáginasdedicadasaoexamedeconsciênciadoLibeLlusSoda-
lítatis, {o padre François CosteÌ, na cópia arquivada na Biblioteca Universitaria di Pisa
(col.' Franceschi a. 114).
A Confissão
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44 Exercitia SpirituaLia S. Ignarii Loylae Societatis lesu Fundatoris..., Romae, ex-typographia Varesiana, 1663, cc. n.
n. ("examinis generalis modus"). A imagem é reproduzida por G. Palumbo , Speculum Peccatorum. Frammenti dí
Stona nello Specchlo delle Immagtní tra Cin4ue e Seicento, Nâpoli, 1990, p. 233.
4s. Sóror Ottaüa Angela Arditi, florentina, monja ern Êmpoli, íoi instada por seu orientador espiritual a íazer a
confissão geral. Eis a narração de uma aparição prodigiosa do demônio: primeiro o tentador assume as feições
de são Pedro e tenta íazer a monja cometeÍ o pecado da soberba, mostrando-lhe o quanto suas culpas eram leves.
Depois, aparece-lhe nas vestes de uma co-irmã, sóror Vincenza Angiola Mugnaini, e íaz com que the entregue o
texto da confissão gera1, aproveitando.se do íato de que "a Verdadeira monja [sóroi Vincenza], para se edificar
pedira a sóror Ottavia que lhe mostrasse a confissão geral já feita". O biógrafo explica que sóror Ottaüa tinha
cedido à súplica da co-irmã, esperando com isso ser humilhada, "para que, considerando-a uma grande pecadora,
a desprezasse". Mas quando, lida a coníissão, sórorVncenza começa a elogiá-la e a observar que naquela confissão
íazia.se "caso dos mínimos pormenores", sóror Ottaúa deu-se conta de ter diante de si o tentador diabólico e fugiu
da superiora (Co mpenàio deLln Vita delb Venrrabil.e Suor Ottauia Angela Arditi, Religiosa rwl, Monistero dclla Nunziata
d'Enpol.i, em Lucca, por Salvatore e Giandomenico Marescandoli, 1739,pp.74-75\.
46. Como notou G. Zani, nas Ordini de Antonio Pagani (1586) pata as Filhas de Maria Imaculada Dimesse de
Vicenza estão previstas "capituÌações" escritas que deviam reunir as confissões comunitárias das culpas a serem
realizadas ao final de um período de seis meses de retiro ("'Vera' Santità, 'Simulata' Santita: Ipotesi e Risconni",
em Finzione e Santítà uaMedioevo edEtàModema, op. cit., pp. 25-26).Mas o percurso de Marco, aliás Antonio
Pagano, mereceria uma pesquisa específica.
A Confissão
:.r
:I]
L
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4i Rutilio Benzoni, Tractatus de Fuga... in quo, quid Omnes Pnncipes et Rectores, tum Ecclzsiasticí, tum cíviles tempore
pestis,famis etbeLLi agere debeant, pl.enissime explicatur, Venetiis, apzd Societatem minimam, 1595, pp. 104r-109r,
"Quaestío quinta: dn scÍipÍo possiÍ quis confiteril". Sobre Benzoni, cí. o verbete de Silvana Seidel Menchi em DBÌ,
VÌII, Roma, 1966, pp. 737.739.
18. "Poenitentiae sacramentum absenti per nuntium seu per litteras collatum non valet; quamüs contÍaÍium sua
probabilitate non careat" (J. J. I. von Dôllinger e F. H. Reusch, Geschichte der Moralstreitigkeiten in dcr ritmísch-
'katholísche Kirchz seit dem 16. Jahrhundert, Nordlingen, 1889, Ir, p. 231).
49. O texto impresso está juntado a uma coletânea de Decretas. Romanae et Universalis Inquisitionis Fere Omnia sub
Clemente VÌIÌ, em BAV, Barb. Íttt. 1370 (também indicado por Pastor, .ALlgemeine Dekrete, p. 9 do extrato). Os
jesuítas anotaram.no por conta própria em umâ CoLkctio Diuersorum Decretorum Sacrae Congregationis s. O//icii
(RRst, Ìrur. 174.1, c.63r).
50 Na ordem do dia da congregação do Santo Ofício anunciada previamente ao papa em 6 de maio de 1603 lê-se
entre outros assuntos: t'Fiet verbum circa censuram íaciendam in librum Patris Suarez Jesuitae super materia
coníessionis sacmmenralis et absolutionis per litteras" (BNN, ms Branc. I B 7, c. 135r).
t1. "Confessarii Soc. lesu mediante eorum Patre generali monentur ne retineant scripturas continentes confes.
siones poenitentium" (Forma Procedendi in Causis Sancti Afícíí ac Haereses Omnes, a R. P. M. Laurentío a Iturea
Sanctiss. D. N.Papaeconsuhoredisposítaeetinunumcollectae, BAV, Borg. Lat.559,c.37u).
, i1. Depoimento de 20 de abril de 1584, em ASM, Inquisizione,B. S/l4a (devo a indicação a M. Pia Fantini).
Tâlvez o frade pensasse em fazer uso bem diferente daquelas transcrições: e não
faltaram então casos semelhantes, de frades e padres que praticavam esconjuros e en.
cantamentos aprendidos no confessionário. É exffemamente significativo contudo o
íato de que fizesse parte da consciência profissional do confessor a obrigação de relatar
ao Santo Oficio; dessa obrigação decorria a necessidade de transcrever de imediato e
com precisão as palavras ouvidas em confissão. Por isso, na prática do confessionário
o uso da escrita entrava tambem devido às necessidades da Inquisição. De resto, eram
os próprios confessores que encorajavam os penitentes a colocar por escrito as coisas
que depois deviam contar ao inquisidor53.
Os guardiões da tradição, ao contrário, enfileiraram-se rigorosamente contra tudo
aquilo que pudesse ameaçar o secretismo da confissão. Para o dominicano Bartolomeo
de Medina, devia-se evitar até a suspeita de uma ainda que mínima ruptura do segredo
confessional. A análise que ele propôs dos casos que podiam ser apresentados na prática
penitenciária e bastante minuciosa: não só o conteúdo da confissão, mas tudo o que
lhe corresponde (o "meio" pelo qual se chega a ele), e protegido pelo mesmo segredo.
"Se alguem encontrasse um papel escrito de próprio punho por Pietro para sua
confissão geral, e outïa pessoa, ao vê-lo, torna.o público, por estar ali contido que ele
tinha praticado crimes gxaves... merece grave castigo, e é sacrilégio, porque, embora não
se trate de confissão, e caminho para ela"54. E nem sequer por brincadeira ou leviandade
o confessor deve deixar escapar o que quer que seja do que sabe: "Nem para escapar a
algum prejuízo, nem pela vida, nem pela morte, nem para libertar um inocente' nem
que nisso residisse a saúde e a preservação de todo o mundo"55. Deve, portanto, evitar
fornecer outrem qualquer informação, mesmo indireta, por meio de alusões, sobre o
a
que ficou sabendo, por exemplo, se dissesse "a primeira pessoa que confessei era uma
adúltera", aparentemente não ptejudicaria ninguem; mas podia acontecer que outra
referência íeita a respeito da primeira penitente revelasse aos outros - quiçá, ao marido -
o segredo que devia permanecer sepulto. A defesa do segredo pode levar a situações
extremas: para evitar que os outros adivinhem o que se passou na confissão, o sacerdo'
te pode sentir.se obrigado a conceder a fe de confissão mesmo a pessoas que não são
absolvidas - justamente para que os demais não desconfiem de nada do que aconteceu.
E um caso extremo, pois autoriza-se desse modo um possível e grave pecado, ou seja,
participar da eucaristia sem ter sido absolvido. Mas o deve.r primário do confessor é
proteger o segredo. Naturalmente, há o caso da revelação de complôs secretos contra o
Estado ou de ameaças para o bem comum: em tal caso, o confessor poderá, em deter'
minadas circunstâncias, avisar a quem de direito, sem no entanto revelar a identidade
do penitente. lsso tambem vale para revelações sobre a existência de hereges, "Se eu
53. Um franciscano pontremolense, írei Paolo Gianguardi, ao entregar ao inquisidor algumas listas escritas de
coisas ouvidas de outros frades, conta tê.lo íeito por conselho de seu coníessor, "o qual me disse que pusesse
essas coisas no papel e que íazia bem em denunciar" (comparecimento espontâneo de 27 de julho de 1666
perante o inquisidor de Pisa) (eAp, S. Liffizio, f. 16, 1664'1668, c.784r).
54. Bartolomeo de Medina, Breve Instruttíone, op. cít., cc.I7lrtt.
l 55. Idem,c.279u.
i
A Confissão
I
'â\
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tomo conhecimento em confissão de que são hereges, e que eles seguem adiante, que
dentro em pouco aumentarão e tudo será destruído, não posso dizer uma palavra, se
eu tomar conhecimento disso em confissão"56.
Na prática, essas doutrinas tinham sido superadas pelo rígido vínculo imposto
pela Inquisição à confissão. O confessor podia permitir-se não revelar o que sabia; o
ônus recaía todo sobre o penitente, que não podia se furtar. Entretanto, houvera um
fato decisivo: o ingresso triunfal da escrita no mundo da coníissão, como revolvimento
da memória e impiedosa interrogação dos segredos confessáveis. Devia-se escrever, seja
para relatar sem erros circunstâncias e qualidades dos pecados, seja para transmitir
ao tribunal de foro exterior a denúncia do crime de heresia. Em todo caso, a pessoa
era atraída para um confronto com a página como espelhb da própria memória, de si
mesmo. Indagava-se sobre a própria identidade de modo cruel, angustiante; e depois
despejava-se tudo no ouvido confidente de outra pessoa, o confessor. Mas o caráter
de ligaçao íntima, de profunda familiaridade de pensamentos e de afetos que o novo
modelo de confissão tendia a criar fez surgir um novo problema.
XXV
IxpursrDoRES E CoxTESSoRES:
A SoTLICITATIo eo TURPIA
foi no terreno das novas formas privadas, íntimas e pateticas, de dominante feminina,
I assumidas pela confissão na epoca tridentina que se verificou a última e mais significa.
tiva metamoríose na relação entre inquisição e confissão. De um lado, o tribunal de foro
interior tornou-se um lugar onde se desenvolvia uma investigação elaborada e profunda, de
natureza judiciária; de ouffo, o tribunal de foro exterior da Inquisição acabou assumindo
luncões de polícia dos costumes sexuais, mas também de garantia e de defesa dos penitentes,
assimilando uma quantidade de,características que pertenciam ao primeiro: secretismo
e delicadeza de modos, fins ediíicantes e consoladores. O processo de metamorfose recí-
proca foi acompanhado pela subordinação de um ao outro, com a definitiva afirmação
da supremacia dos inquisidores sobre os coníessores. O fio para seguir esse processo nos
e dado pela história de uma nova figura de crime inquisitorial, que foi chamada no cau-
teloso latim da teologia moral sollicitatio adnlrpiat ou seja, o uso por parte do confessor
das circunstâncias da confissão para encetar relações amorosas e manter relações sexuais.
Com íigura de crime, nada tiveram a ver a longa tradição da sátira anticlerical
essa
e os protestos e propostas de reforma que, havia tempos, tinham por alvo os costumes
sexuais do clero. Para que esse problema viesse à tona com força devastadora, foram
necessárias duas condições: a transformação progressiva das características da confissão
em um fato ciosamente íntimo e privado nas formas e predominantemente orientado
para acontecimentos íntimos e vida sexual; a violenta polêmica da Reforma contra
a imoralidade do clero católico. No seculo XVI, sabia-se muito bem que a confissão
propiciava aos eclesiásticos uma oportunidade entre outras para aproximar.se das mu-
lheres e íazer-lhes propostas amorosas. Nem todos faziam como Lutero, que - quando
ainda era monge - não encarava as mulheres que estava confessando para não cair em
tentação. Em Deventer, o jovem Erasmo de Roterda ouvira contar diversas histórias
de aventuras entre coníessores e mulheres, tirara disso sábios ensinamentos. Não se
devia estimular a uitiosa curiositas de padres que continuavam mesmo assim sendo
homens, quase sempre homens jovens, impedindo que a confissão se tornasse uma
ocasião para insistidas descrições de atos sexuaisl. A sociedade eclesiástica, obrigada a
l. Des.EtasmiRoterodami,ExomologesisSiveModusConfitendi,emOpera,T.V,LugduniBatavorum, 1704,col.146.
-170; em part. col. 153. O testemunho de Lutero íoi recolhido por seu discípulo e secretário Veit Dietrich (cí.
Martin Lutero, Díscorsi aTauoln, ory. de Leandro Perini, Torino, 1969, p.27\.
Iç
502
Z. É a tese de Bossy, Tfu Social History of Confession, op. cit., em part. pp' 27 e 31'
3. Cf. Carlo Ginzburg, "Tiziano, Ovidio e i Codici della Figurazione Erotica nel Cinquecento", em ldem, Miri,
Emblzmi, Spie.Morfo|ogla eStoria, Torino, 1986, pp. 133-157; em patt. p. 151. Uma exceção que coníiÍma a Íegrâ
éconstituída por um pequeno ffatado de um beneditino, Ilanione de Gênova, De lztissimo Avaritíae Dominatu'
Brescia, por Damiano Turlino, 156?, que atribui o primado à avareza; mas os beneditinos, excluídos da prática
dos quaresmais e das coníissões, representavam uma espécie de arcaísmo'
(carta
4. Admiravam+e ainda do íato de parecer tão importante para o confessor a violação do jejum da Quaresma
de P. Joannes Covillonius, de lngolstadt, 24 abr. 1558; MHSI, Lainii Monumenta. Epistolae et Acta Patis Jacobi
Ininii, t. wtr, 1564-1565, Matriti, 1917, p. 467\.
A Confíssão
r
503
não permitiam: nesse caso, segundo a opinião de Guerrero e dos jesuítas, a mulher
podia recorrer ao confessor e encarregá-io de fazer a denúncia5. No que se refere ao
caso real, o exemplo inventado ftansformava a solicitação em heresia; e foi justamente
essa a solucão que se impôs. Era preciso atribuir à Inquisição a tarefa de processar
os confessores culpados. O jesuíta Francesco Borgia foi quem sugeriu colocar ime-
diatamente o caso da sollicitatio entre os inquisitoriais, ou então entre os reservados
ao papa; e sua sugestão recebeu o apoio do núncio pontiíício Leonardo Marini. O
episódio suscitou violentíssimas reações por parte das demais ordens religiosasr che-
garam a dizer que os jesuítas revelaüam o conteúdo das confissões e que isso levaria
à ruína da lgreja. Melchor Cano foi adversário resoluto da Companhia e, por volta
.le 1559, andou acusando os jesuítas em Roma d" ,.r.-nol, mbrados e de defenderem
a opinião heretica de que os confessores podiam revelar os nomes dos cúmplices ou-
vidos em confissão6. O ataque desferido pelos dominicanos espanhóis, ou seja, por
uma grande força intelectual e política, foi bastante duro e criou serias dificuldades
à Companhia: a polêmica arrastou-se por muitos anos e não se tratou apenas de uma
batalha de escritosT.
Foi sobre esse fundo que se chegou à solução. Abula CumSicutNuper, conhecida
como bula Contra Sollicitantes,'publicada por Paulo IV Carafa em 18 de fevereiro de
1559, concedia ao inquisidor de Granada o poder de julgar os confessores culpados de
usar a confissão dos pecados como oportunidade para relações sexuaiss. Era aparen-
temente um episódio menor e limitado se visto no âmbito das preocupacões de luta
anti-herética dominantes então entre as autoridades eclesiásticas. A redação do índex
dos liwos proibidos em Roma, os autos de fé de Valladolid e de Sevilha em 1559 eram
certamente acontecimentos bem mais importantes aos olhos dos contemporâneos do
que as polêmicas entre dominicanos e jesuítas sobre a confissão. Contudo, entre a
questão surgida em Granada e os mais vastos problemas da luta contra a heresia houve à
época uma ligação de grande importância. Pouco tempo antes da redação da bula Contra
Sollicitantes (18 de fevereiro de 1559) e exatamente no dia 5 de janeiro de 1559 Paulo IV
publicou a bula que ordenava o arrolamento dos confessores ao serviço da Inquisição
l A mulher "puede y debe a su confesor decirselo y declaralle quién es aquel hereje y dalle licencia para que e1 1o
denuncie al Santo Oficio" (carta do padre Juan Ramirez ao reitor de Alcalá, 14 jun. 1558, citada por P. Camilo
Maria Abad, Una "Izctura"de Suarezlnedíta, op. c;r., p. 138).
jo. Cí. A. Alcalá Galve, "Conuol de Espirituales" , em Historia de La Inquisición en Espara y América, org. de J. Perez
I
H. C. Lea, A Histol of the Inquisition of Spain, New York, 1906907; cito a partir da trad. espanhola Histoia de
ln In4uisición Eslanola, Fundación Universtaria Espafrola, 1983, liv. IV, cap. Vl, pp. 473ó12.
A Confissão
r
505
a intimidade da relação produzisse frutos indesejáveist7. Avoz dele foi a mais nítida
e eíicaz, não a única. Outras ergueram-se naquele seculo para modelar e remodelar o 'i
Èspaco físico da confissão íeminina. Os jesuítas tinham um interesse vital na questão e
contribuíram para a elaboração da forma desse móvel, visando a sanar os problemas que
Iün,pp.61.63.
Cf. Ginzburg, "Tiziano, Ovidio e i Codici della Figurazione Erotica", op. cír.
Um tratado manuscrito "De Tàctibus, Osculis, Amplcxibrs et Pollutionibus" composto pelo jesuíta Andrea Nicosia
t'oi examinado atentamente na Congregação do Santo Oficio de 22 de março de 1611' decidiu.se queimáìo;
mesmo sem conter doutrinas de fé suspeitas, a matéria do liwo verificou+e ual.dz iníuriosam, teflvranam, contrâria
aos bons costumes e não isenra de obcenidades (BNN, ms Branc. I B 7, c.255r).
Ct. Wietse de Boer,"Ad audiendínonuìdendí commoditatem". Note suil'introduzione del coníessionale sopraftutto
in Ìtâlia", Quaderní Stonci, n. 77, ago. 1991, pp. 543.572.
506
18. A providência íoi tomada em 1584 e diz o seguinte: "Fiant lignei cancelli, qui prospectum non impedianL
et tamen non pateant reliquis accessus"; a abertura, contudo, não devia permitir que se ouvisse o que estaw
sendo dito (Hauptstaatsatchiv, Münch, Jesui ten 9, c.70).
19 Eis como se comportavam os missionários jesuítas, no século seguinte, segundo um importante representante
deles, "Alguns costumam levar nas missões umas grades de latão presas em bastõezinhos curtos: e são nece*
sárias e muito úteis por não se encontÌar quantidade suíiciente de coníessionários. Outros usam uma toalha
atada a dois paus pÌesos em uma cadeira, e essa barreira serve não só para que o penitente não íique cara a
caÌa com o coníessoq mas também pata que não seja reconhecido por ele" (Antonio Baldinucci, Awertímend
a chi Desidera Impíegarsí neLlz.Míssioni, ARSÌ, Opp. NN. 299, c. 31r).
20. "E outro grande deíeito sobretudo das mulheres de não se coníessatem mais de uma vez; onde mesmo se
esqueceram de algum pecado, ali não voltam para não parecerem pecadoras, porque dizem que já são notada-.
por isso... De modo que ainda tentam liwar-se rapidamente, deixando de dizer até pecados que lembmrn, para
que não falem que permaneceÌam muito tempo em coníissão" (Tu11io Crispoldi., Instruttione de' Sacerdoti 1...1
scntta ad instc;nza et in persona di Moruignor Reverendissímo Gioc)an Matteo Giberti Vescovo di Vrona, em Vinegia.
junto a Gabriele Giolito de'Ferrari, 1568, p. 88).
A Confissão
r:
s07
vez, propôs que qualquer relação sexual entre confessor e "filhas espirituais" fosse sub.
metida à jurisdição daquele tribunal; mas de Roma responderam-lhe que "os erros que
não conffadizem diretamente a fé católica não devem ser do conhecimento do Santo
Ofício"21. Entravam em choque duas concepções da Inquisição, isto e, da emergência a
ser enfrentada: o governo da moral sexual e a reforma cristã dos costumes interessavam
mais aos que, como Ormaneto, tinham sido íormados na escola do modelo episcopal
de disciplina da sociedade, enquanto a tradição inquisitorial tentava ater-se aos limites
tradicionais de sua função, que era a de defender a fé contra a heresia. O resultado
foi aparentemente contraditório: a Inquisição obteve a jurisdição sobre os crimes de
sollicitatio, mas dentro de limites determinados, muitas vezes esclarecidos e redefinidos.
Na essência, era preciso que a abordagem e a solicitação selual acontecessem no âmbi-
to da coníissão sacramental, nos lugares onde se confessava ou, pelo menos, em suas
imediações: somente assim era possível dizer que havia a suspeita de negação intelectual
do caráter sacramental da confissão.
No que se refere à Inquisição romana, ainda não temos condições de estabele-
cer exatamente quais foram os tempos e modos efetivos de seu ingresso no terreno da
confissão para casos de solLicítatio. A questão preocupou naturalmente os bispos22. É
provável que os casos desse tipo fossem tratados pelas cúrias episcopais. A Inquisição, por
outro lado, devia enfrentar as resistências opostas de tribunais episcopais e privilégios
monásticos. Em um dos não poucos casos em que teve de discutir o assunto, o Santo
Ofício romano estabeleceu para os frades a obrigação de denunciar os culpados desse
crime à Inquisição, sem se limitar à cômoda escapatória de deferi-los às autoridades
internas à ordem23. Mas toda pretensão de obter uma clareza definitiva quanto à questão
dos mecanismos jurisdicionais deve levar em conta o caráter naturalmente tumultuoso
e complicado da matéria: se a cautela e o proceder caso a caso eram obrigatórios para
tudo o que dizia respeito à confissão, aqui se tratava de coisas que podiam causar danos
irreparáveis a toda estrutura eclesiástica. A acusação de sollicitatio prestava-se, entre
outras coisas, a tornar-se instrumento de difamação nas relações entre as várias ordens
religiosas, extremamente ciosas dos respectivos privilegior. É .o-pt.ensível, portanto, 1i"
que as regras formais cedessem diante da necessidade de defender o prestígio das ordens
que tinham feito da confissão seu campo predileto. Em pelo menos um caso, sabemos
com certeza que foi deixado campo livre à ordem a que pertencia o.religioso suspeito.
Em 1596, quando o jesuíta Giulio Mazzarini foi acusado do crime de sollicitatio, a in
vestigação relativa aconteceu dentro da Companhia2a.
Contudo, uma coisa ao menos e clara, não só a lnquisição começou a mudar
de natureza com a introdução de crimes como a sollicitatio, mas mudou a feição do
/1. C{. de Boer, "Ad Audiendi nonVidendí Commoditatem", op. cit., p. 567.
72. Em de Boer, idum, é reproduzido um decreto sinodal publicado em Forlì em 1565.
23. Decreto de 3 de dezembro de 1592, publicado por Pastor, Al.l.gemeineDekrete,op. cit., p.51.
24. O processo, cujos autos são de grande interesse para as dinâmicas sociais postas em moúmento poÌ seme-
lhantes acusações (chantagens, maledicências), íoi concluído com um decreto de absolúção por parte do geral
Acquaviva, de 30 de julho de 1597 (ARSI, Causa Mazanni, c. 307rv).
'l patrimônio de fé a ser defendido. Todo o eixo da verdade cristã deslocou.se do plano
das doutrinas teológicas - a natureza de Cristo, a justificação por fé ou por obras,
a predestinação e assim por diante - para o da moral. Desse momento em diante,
a discussão doutrinária no seio da Igreja católica e seus instrumentos de controle e
de coercão foram cada vez mais assaltados por questões morais - e de moral sexual,
principalmente.
De fato, casos de coníessores processados pela Inquisição começaram bastante
cedo, mas sua frequência intensificou'se rapidamente a partir do final do seculo XVI25.
Nas instruções manuscritas da Inquisição de Módena (redigidas antes de 1608) declara-
-se de competência inquisitorial o crime "daqueles confessores, que no ato da confissão
z5 De Boer ("Ad Audiendi non Videndi Commodítatem", op. cít., p. 5ó8) menciona três casos do fundo veneziano
entre 1547 e 1585, e 22 casos entre 1585 e 1630. Um processo por solicitação de 1580 contra o írade domi.
nicano Cipriano de Udine, é citado por Luigi De Biasio no catálogo dos 1000 Process i d.el.l.'Inquisizione ín FriuLi,
Udine, 1976, p. 25; mas é só a partir de 1618 que os casos reincidem e aumentam rapidamente. Também
em Módena, os processos pot sollicirario üatados pela Inquisição intensificam.se no início do século XVII: cf.
por exemplo os processos contra o servita ítei Plautillo de Ferrara, de 1612 (b.41/2), conúa frei Francesco
Benedetto Boni de Castiglione, de 1613 (b.43/18), contra frei servita Giovanni Battista, de 1ó17/18 (b.
47/3) e contra frei Bonaventura de Viadana, íranciscano observante (b.47/9), dom Tommaso Gherardini,
pároco de Monte Tortore (b.48/l), dom Gabriele Gallo, pároco de Fossoli (b.48/2, b.53 e b. 54), dom
Giacomo Medici de Casinalbo, pároco de Panzano di Carpi (b. 51), ftei Michele Calandrino (b. 54), todos
de 1617-1618, e assim por diante. Uma pesquisa íeita por Rosa Bonollo (LAttivitàProcessuale deLS. IJfficio
Vneziano a Carico degli EccLesiastici nei Primi Trent'Anni deL XVII Secolo, Monograíia de Graduação, Università
degli Studi di Venezia, 1985-1986) mostrâ o crescimento de processos desse tipo em Veneza nas primeiras
décadas do seculo XVII.
26. Sopm L'Ufficio deL Padre Inquisitore, manuscrito em Archivio di Stato di Modena, Inquísí7ione,b.295, c. 4r (cf.
cap. XV, nota 31).
27. P. Laurentius Cozza O. F. M., Dubia Selzcta Emergentia circa Solicítatíonem in Confessíone Sacramentali, Romae,
1709, et Florentiae, 1713, apud. Petrum Martini, pp. 69-70.
A Confissão
r-
5Cì9
solene, com o decreto Uniuersi Dominici Gregis de 30 de agosto de 167228. Nesse segundo
documento, a quantidade de especiíicações complementares demonstra que se queria
acabar imediatamente com qualquer tentativa dos confessores de escapar da acusação
de abuso de sacramento, que constituía o argumento principal para submetê-los ao
poder inquisitorial e portanto, bastava que a sollicitatíot o ato de assediar sexualmente
a penitente, tivesse acontecido logo antes ou logo depois, perto do confessionário ou,
como quer que seja, em um contexto que pudesse ser remetido à relacão entre confessor
e penitente, para a acusação ser posta em marcha. Na Espanha, ambiguidades ainda
foram encontradas nesse documento: não parecia claramente resolvida a questão da
autoridade competente para julgar esse crime. Todas as especiíicacoes deixavam uma
'rnargem que devia ser resolvida com a aíirmação do poder exclusivo e absoluto da
Inquisição. A questão tinha sido debatida em 1620 em Valência, entre o arcebispo e
p inquisidor: nessa ocasião; o inquisidor sustentara que esse crime, disseminando-se
iapidamente em meio ao clero, desacreditava a Igreja aos olhos dos hereges (justamen-
te nessa época Robert Burton ironizava a respeito dos amores clandestinos do clero
batolicoze). Era preciso, portanto, combater tais crimes resolutamente; mas, se não se
farantia resolutamente a pertinência inquisitorial exclusiva do crime e não se tornava
obrigatoria a denúncia, as mulhdres "solicitadas" - qr" geralmente eram mulheres
rhonestas" jamais denunciariam os coníessores culpados, já que arriscavam perder
-
a honra3o. A publicação do breve papal, com as margens de incerteza que deixava em
materia jurisdicional, provocou uma intervenção do rei de Espanha (por requisicão da
Suprema) junto à Santa Se, em janeiro de 1623: as razões da Inquisição e a gravidade
do crime por suas consequências levaram, em abril daquele ano, à afirmação da com-
petência inquisitorial exclusiva3l. A essa altura, as defesas restantes dos confessores para
escapar da Inquisição foram entregues às areias movediças da ciência dos casos, sinal
ile que a partida essencialmente estava terminadalz. Mas estava terminada apenas no
plano das formas, na realidade, o crime peÍmaneceu escondido nas zonas de sombra
que o poder eclesiástico e a condição feminina eram capazes de criar. Apenas poucos
anos após a definição extensiva dos poderes da Inquisição, o Santo Ofício devia reco.
2s. Uma publicacão contemporânea é a seguinte: S. D. N. Gregorii Papae xv Constitutio contÍd Sollicitdntes in Con'
typographia Reverendae Camerae Apostolicae, 1672.
fessiníbus [sic], Romae, ex
29 Robert Burton, The Anatornl of MelanchnL1,vol.lll, 161l (trad. it. de A. Brilli e F. Marucci, Malínconia d'Amore,
Milano, 1981, pp. 401 e ss.).
3C A controvérsia é narrada por Michè1e Escamilla-Colin , Crimes et chÂtiments dans I'Espagne ínquisitoiale., vol. il,
Paris, 1992, pp. 168-170.
3l Idem,pp. 170-172. As normas da Inquisição romana são expostas analiticamente por Cesare Carcna(Tractatus
de Offícío Sanctíssímae In4uisitionis etModo Procedendi ínCausis Fidei, Bononiae, qrpis Jacobi Montii, 16ó8, pars ll,
tit. V, De Con/ess anis SoLLicitantibus, pp. 103 e ss.). Cí. ainda A. Santarelli, Tlactarus de Haeresi, Schismate, Aposrasia,
llr.(
I I nhecer que "o crime de solicitação em confissão sacramental, por fragilidade humana
I ì I ainda demasiado frequente hoje em dia, permanece sem punição na maioria das arc7es, por
I
33. Carta circular "aos bispos da ltália", Roma, 3 out. 1626, em BAV, Barb. lnt. 6334, c.281ru (o grifo é meu).
34. A carta de 5 de março de 1623 íoi publicada pelo autor do presente volume em apêndice a Vi can dcLl'Inquisizione
A Coníissão
a
XXVI
ConTESSORES E MuLHERES
l. Esse é o reor de uma instrução enviada pelo cardeal Millino ao vigário arquiepiscopal de Gênova em 17 de
julho de 1627 e reproduzida por Cesare Carena (Tractatus dc Ofíicio Sanctissirnae Ìnquisitionis etModo Proceàendi
in Causis Fideí, Bononiae, typis Jacobi Montii, 1ó68, pp. i 13-114). Ìdem, p. ÌII, é formulada em termos gerais
a questáo "an hoc crimen ex testimonio mulierum proberur"' o capítulo começa assim: "Quamvis foeminae
mutabiles sint dolosae, fraudulentae, mendaces, leves, et corruptibiles [...ì"
Cf. o verbete "Aniello Arcieri", de G. De Caro, em DBl, vol. ÌlÌ, Roma, 19ó1, p. 7ó9. A abjuração pronunciada por
Arcieri em forma "semipública" em 1619 pode ser lida no ms Urb. L-at. 1696 da Biblioteca Vaticana, íf. 5ú.54v.
r.**
5n
povo, houve certamente no século XVI uma aceleração para o polo oposto, de um mun-
do de experiências interiorizadas imersas em uma aura sentimental fortemente emotiva,
enquanto a vida pública tornava-se cada vez mais campo de uma política secularizada3.
De resto, as inquietudes, as perturbações, as visões não foram apanágio exclusivo
de psicologias femininas. A própria evolução das anotações autobiográficas masculinas
do caráter predominantemente econômico dos "liwos de família" medievais para os
diários espirituais do seculo XVII é um indício de quanto a mudança atingia então
tambem a psicologia masculina. Não menos que as mulheres os homens colocaram no
papel seus movimentos interiores e registraram os obscuros fantasmas que os atormen-
tavam, seguindo as terapias aconselhadas por seus orientadores espirituais; portanto, a
escrita autobiográfica recomendada não foi prerrolativa exclusivamente femininaa. Ao
contrário, foi prerrogativa dos diários espirituais católicos o fato de serem escritos sob
a orientação eclesiástica para serem lidos por um leitor especial, o diretor espiritual,
perito em decifrar os "espíritos" que estavam por trás dos sinais da experiência: e uma
característica ausente na escrita autobiográfica como instrumento de autoexame a que
dedicaram amplas instruções Isaac Ambrose e John Beadle na Inglaterra puritana e no
diário espiritual de que foram íérvidos defensores Spener, Francke e os pietistas no
mundo alemãos. Disso decorre tambem a enorme predominância de diários femininos
no mundo católico em relação ao domínio masculino no campo da autobiografia pro-
testante: como tambem a predominância das visões no mundo católico em relacão às
meditações e aos pensamentos no protestante. Mas não porque o clero estimulasse a
busca do sensacional, pois os modelos oficiais de santidade, ao contrário, procuraram
conter de todo modo a mare das visões: em uma biografia de são Filippo Neri lia-se,
por exemplo, que o santo recomendava a todos "que the cuspissem na cara, quando
tivesse visões"6. Contudo, não resta duvida de que o "pacto autobiográfico" proposto
então pelos pais espirituais atraiu predominantemente um público feminino e fez surgir
uma avalanche de fenômenos visionários.
A ligação entre clero e mulheres adquiriu entào um significado peculiar, que
também está intimamente relacionado com o deslocamento dos valores da "piedade"
São muito agudas as observações de James D. Garrison, Pietas ÍomVergilto Dryd"en, PhiladeÌphia, 1992 (agradeço
à minha íilha Valentina ter-me indicado esse liwo).
De "écriture autobiographique sur ordre" fala Isabeile Poutrin, Iz voile etla plume. Autobiographie et saíntete féminine
dans I'Espagne moderne, op. cit., pp. 14.1ó. Mas ver, paÍa um caso masculino de grande interes se, o Diario Spiritualc
de Filippo Baldinucci, org. por Giuseppe Parigino com introdução de E. Stumpo, Firenze, 1995.Idem, notícias
sobre o nascimento e o encâminhamento à ptofissão religiosa do filho Antonio, lembrado anteriormente, cap.
25, nota 19.
5. As obras de Ambrose e de Beadle, publicadas respectivamente em 1650 e em 1ó56, são citadas no estudo
fundamentale de Alan Macíarlane, The Familqy Life of Ral.ph losselín, ASeuenteenth-Centur'1 Clrrglman. An Essal in
Hístoncal Anthropology, Cambridge, 1970 (cito a partir da ed. Norton, NewYork, 1977 , pp.6-7). Uma inrodução
à história da autobiografia junto por Günter Niggl, "Zur Sâkularisation der pietistischen
aos pietistas é íornecida
Autobiographie im 18. Jahrhundert" (1977), em ldzm (org.), Dle Autobiographíe: zu Form und Geschichte eíner
literarischen G attung, Darmstadt, 1989, pp. 3 67 -391.
6. Niccolo Macchiavelli, Vitd di S. Filippo NeÍi, Napoli, tipograíia de Felice Mosca, 1699, pp. 219-220.
.j1
A ConÍissão
:tì
',4|ì,
r
513
Têndo em meus escritos o objetivo de servir à minha pátria, perguntar-me-ia alguem aà quíd
Jissertar sobre o que foi dito acima. Respondo-lhe interessar por demais ao bom governo que nossas
mulheres cá da cidade sejam piedosas e devotas, sim, mas não escrupulosas a ponto de, esquecidas
Jos cuidados da casa, perder sua liberdade moderada e razoável, em prejuízo dos maridos e da Re-
pública, da qual elas são grande partes.
Jules Michelet, Du prêne, dela femme, dzln faml\ie, Paris, 1845 (4. ed.). Sobre a mulher "emissária da lgreja junto
ao marido" cí. o estudo de Elisa Novi Chavarria, "ldeologia e Comportamenti Familiari nei Predicatori Italiani
tra Cinque e Settecento. Têmatiche e Modelli", Rioista Storica halíana, 100, 1988, pp. 679-723, ver part. p. 686.
Andrea Spinola, Scntri Scelri, org. de Carlo Bitossi, Gênova, 1981, p. 245.
Confessores e Mulheres
5t4
Por isso, mesmo as mulheres deviam manter uma liberdade "moderada e razo.
ável" para estarem de acordo com o bem dos maridos e do estado. Aquela hberdade
opunha.se a direcão das consciências segundo interesses de um poder diferente
daquele do estado. Muitas vezes encontram-se sinais de preocupação na literatura
de instrucão aos confessores contra a prática de levar as mulheres a fazerem votos
simples de obediência "nas mãos dos diretores, convencendo.as de que assim estariam
isentas de obedecerem a seus pais": daí provinham, ao que parece, "inumeráveis
desordens"e. Não e difícil de acreditar nisso: a coisa tinha uma relevância política
imediata, como mostra a alusão de Spinola. Com certeza, até o exercício da auto-
ridade dos confessores sobre os penitentes homens despertava certa preocupação:
no decorrer da dura batalha do Interdito Paulo V e Veneza, frei Paolo Sarpi
".rtr"t"
acusou reiteradas vezes os confessores de terem tentado orientar politicamente os
penitentes em sentido hostil à República: relatou ainda que em 1589 os jesuítas em
Veneza recusavam a absolvição aos senadores que tinham reconhecido Henrique IV
de Navarra como legítimo rei da Francal0. Mas se pressões desse tipo sobre os homens
de governo eram temíveis, as pressões exercidas sobre o mundo feminino preocu.
pavam ainda mais. Entretanto, o sexo feminino era considerado mais frágil e mais
influenciável. Porém,'o que preocupava sobremaneira no sistema da confissão era
seu ameacador implantar-se na sociedade da família, comprometendo seus vínculos
de obediência e, consequentemente, ameaçando o estado, que se firmava sobre a
força das principais famílias.
Agostino Valier, bispo de Verona, dedicou uma série de textosrr às mulheres nos
vários estados ou condições que lhes eram permitidas - monjas, casadas, viúvas. Mas a
palavra do bispo dirigida às várias categorias de mulheres desenhava aquele gênero de
governo da vida social que remetia à persuasão e ao doutrinamento coletivo. Também
e sobretudo para as mulheres, foi bem mais eficaz e presente à época o sistema de con-
trole individual que tinha seu fator decisivo na confissão. Na relacão com o confessor
e com o diretor espiritual, regida por regras antigas que ora conheciam uma nova vida,
apresentavam-se às mulheres novas oportunidades de exercer um poder12.
Awertimentí a' Conlessori, Brescia, por Gian Maria Rizzardi, s.d. (mas 1728), p. 285. O texto é exrraido de autores
que vão de Carlo Borromeo a Paolo Segneri Jr.
10. Paolo Sarpi, Storìa delLe Cose Passate tra Paol"o V etc., em Opere, ed. Helmstadt (Verona), 1761-17ó8, vol. Itt,
p.42.
t1 Cí. Institutione d'Ogni Stato LodBqtole delle Donne Christiane; Instruttione drllz Donne Maitate; Instruttione d"eLla Veru
etPerfettaViduia (pequenas obras impressas em "Venetia, junto aos herdeiros de Francesco Rampazetto",157't);
e também os Ricordi di Monsignor Agostino Valerio Vescouo di Vrona lttsciati aLIz MonachB ne\Ia sua Visitatiorle
FattaL'Anno del Santissimo Giubileo 1575, Venetia, junto a Bolognino Zaltieri, 1575. Mas a série dos estados de
vida íeminina compreendia então também o do celibato fora do convento ou, como ainda se denominava, da
"monja de casa" ou "continência doméstica" (esta última denominação é de P. Morigia, Opera Chiamatastato
Religioso..., oP. cit., f. 2r).
tz. Sobre isso chama a atenção o ensaio de Patricia Ranft, 'A Key to Counter Reíormation Women's Activism:
The Confessor.spiritual Director", loumal of Femínist Srudies in Religion, n. 10, Fall, 1994, pp.7-26 (que não se
detém na sollicitatío, porém).
A Confissão
h,
í-
515
em confissão somente à luz do sol, e portanto não antes do alvorecer e não depois do
anoitecer; e não em casas particulares, mas na igreja, publicamente. Para tornar ainda
mais arriscado e prenhe de ambiguidade o encontro entre confessores e mulheres,
acrescentou-se a proíunda transformação na economia moral que já foi mencionada.
Fosse qual fosse a causa dela, é certo que o espaço dos criirres contra a sociedade - a
soberba, a inveja, a avareza - foi tomado pelas culpas particulares e pelas do sexo de
modo prevaricador enquanto o confessionário tornava-se o espaço da conversa sobre o
sexo13. A inserção do crime de sollicítatio no campo da inquisição fez surgir uma serie
de problemas, impondo medidas para limitar uma consequência devastadora do novo
protagonismo devoto feminino: entravam em jogo, contemporaneamente, a honra
das famílias e a do clero, o prestígio da família laica posto em risco pela desconfian.
i
ça quanto aos comportamentos'femininos em confissão e o da família religiosa - as
grandes ordens, ciosas de sua reputação. Os dois polos tocavam-se no caso das monjas
e de seus confessores. Por isso, os confessores de monjas viram-se instados de modo
muito particular a temer e a tremer diante das dlficuldades e dos riscos de seu ofício:
o confessor de monjas, segundo o vigário milanês Pietro Barchi,
[...] temerá muito sua íragilidade [...] Portanto, irá ao confessionário e tratará [...] com as mon-
jas do modo como foi a primeira vez [...ì Será muito mais cauteloso e prudente de não se afeicoar a
alguma delas em particular [...ì Guardar-se-á de partilhar qualquer segredo seu com alguma delas [...ì
Estará vigilante para que alguma não se apegue a ele com particular afeto [...] Ouvirá as confissões
de todas as monjas em um mesmo lugar, porem não nas grades dos parlatórios, mas na janelinha do
confessionário [...ì Jamais mandará chamar qualquer monja isoladamente [...] Dividirá igualmente
com todas o tempo das confissõesla.
E assim por diante, por páginas e páginas. Se a mulher era sernpre um perigo, a
monja era um perigo à enesima potência.
O ponto de vista da literatura clerical era unilateralmente destinado a sublinhar
a periculosidade - voluntária ou involuntária - da mulher. Era ela a tentadora. Na li-
teratura hagiográfica e na iconografia religiosa surgiu o tema do confessor tentado por
A observação sobre a inversão na hierarquia dos pecados é de Bossy, The SociaL History of Confes.sion op. cit., e
pdisim em outros ensaios; da produção de conversas sobre sexo em coníissão ocupou.se Michel Foucault, La
uoLonté de sauoir, Paris 1976, trad. it. Milano, 1978.
t4. Insnuuíone per gIí Confessoi di Monache, del Dottore Gio. Pietro Barchi Vícario dell"e Monache deLla Città, e Diocesi
diMikmo..., Milano, pelo herdeiro de Paciíico Pontio e Gio. Battista Piccaglia, 1607, pp. 6-9.
Confessores e Mulheres
í
516
l5 Um único exemplo para a iconograíia: a tela pintada por Simon Vouet por volta de 1ó24 para a basíiica romana
de San Lorenzo in Lucina e dedicada à tentação no coníessionário de são Francisco Caracciolo, íundador dos
Ciérigos Regulares menores (cf. Roberta Giorgi, San Lorenzo in Lucina nel Seicenü0, Storia deLlt CommittenTa,
Roma, 1990, pp.6.10).
16. Uma mulher que tinha prestado falso depoimento quanto a ter sido assediada no coníessionário foi condenada
a ficar diante da porta da igreja com um cartaz que descrevia seu crìme: o caso, extraído de um decreto do
Santo Ofício de 29 de julho de 1609, encontra.se registrado no capítulo "De Tormentis et Têstibus" de uma
coletânea de "decreta magis praecipua ab anno 1548" (Biblioteca Casanatense, ms 2653, c.520r).
t7 Casus conscíentíae Bononieruis díoecesis presblterís oLim de mandttto... Prosperí Lambertini moxBenedíctí XIV..., vol. l,
ab anno 1732 usque ad totum dnnum 1753, Bononiae, ex qp. Longhi, 1767 , p.295.
. A Confissão
i.ì
'{âìr
r
517
Uma mulher, que ainda não tenha sacrificado à ignomínia pública sua honra, embora esteja
enviscada em pecaminosa ocasião, ainda com animosidade irá aos sacramentos por esse mesmo
,'Ìlotivo, pois ela crê por meio dos sacramentos encobrir suas desonras secretasle.
18. ver a respeito o autêntico repertório de obscenidades elaborado por L. Sinistrari, De Delictis et
Pode-se
AÌbticcium, 1700.
Poenis,Venetiis, apud H.
19. Frei capuchinho Gaetano Matia da Bergamo, lUomo Apostolico Istruito nelln sua Vocazione aI Confessíonario per
Udíre speTialmente Ie confessioni generali, neL tempo deLLe missioni, e de' giubbileí, ed in qualunque aLtra occonenTa, em
Confèssores e \'íulher*
il8
! forem feitos, seja interrogado sobre tal consentimento; e no caso de ele querer declara-lo
l de viva voz, não se escreva o que disser". Era uma declaração de guerra aos confessores,
o tribunal lancava mão das mulheres para obrigar'os eclesiásticos a não aproveitarem
de sua posição de força de homens, dotados do temível poder eclesiástico e do direito
-
de acesso reservado à intimidade dos sentimentos e das conversas. As mulheres, só de
irem ao tribunal apresentar a denúncia, arriscavam seu capital mais precioso, a honra.
Era preciso, portanto, oferecer-lhes todas as garantias, pois os eclesiásticos ameaçados
defender.se.iam atacando. E havia defesa melhor do que descarregar toda a culpa em
cima das mulheresl A cultura clerical dispunha em sua memória de um verdadeiro ar-
senal de ârgumentos: as'artes femininas da sedução e do engano, a estreita aliança entÍe
o diabo e a mulher para a danação do clero - tudo servia, enfim, para lançar sobre a
mulher a culpa do desejo masculino. E a cultura dos casuístas produziu - na Espanha,
em Portugal e na Itália - uma longa serie de hipóteses onde as fantasias clericais mais
desenfreadamente obscenas foram cobertas com o veu da moral foram apresentadas as
mais variadas hipoteses para reduzir o campo de aplicação da nova categoria de crime. A
congregação romana empenhou-se continuamente na discussão de exceções e de opiniões
que sutilmente levavam a desresponsabilizar os confessores ou, pelo menos, a esvaziar
todo o conteúdo da ameaça de um verdadeiro processo. Recorreu,se ate ao pedido de
i que, antes da denúncia, fosse usada com os culpados a prática evangélica da "correção
íraterna" - uma simples admoestação ou reprimenda pessoal, sem consequências juri-
, ã;ã;;Ã; seculo anterior, essa proposta fora avançada por quem pretendia resolver com
I
i espírito evangelico as controvérsias doutrinárias no seio da Respublica christiana. Ora, o
L
mesmo argumento era utilizado para encobrir os malfeitos do corpo eclesiástico, per-
filado em defesa de sua honra. O Santo Ofício, em sessão áe27 de setembro de 1628.
rejeitou essa proposta como "falsa, causa de relaxamento disciplinar e capaz de tornar
inútil a Bula papal"20. Na longa batalha travada então, os confessores puderam contar
com o apoio das poderosas ordens religiosas que continuavam sendo o principal lugar
de que advinham. Daí as dificuldades de tornar efetiva a vontade expressa pelo Santo
Oíício: os contínuos "anúncios" emanados a propósito certamente não constituem unì
sinal de sucesso. O documento papal de 1624 foi reimpresso e enviado novamente a
todos os bispos e inquisidores da ltália em pelo menos duas ocasiões, em 1667 e 172b.
para que fosse lido em "todas as igrejas paroquiais dessa diocese em presença do povo'.
20. Cozza, Dubia Selecta Emergentía circa Solícitatíonem, op. cít., p. 67.
A Confissào
r
519
Teve-se que constatar que, de fato, essas ordens eram "negligenciadas" - prova, como se
houvesse necessidade, da dificuldade de atingir os confessores sem prejudicar a honra
dos - e sobretudo das - penitenteszl. Declaração singular: o número das denúncias e a
quantidade dos casos que foram tratados na prática inquisitorial são tão altos que, se a
eles se juntar um número "oculto" de casos não denunciados, conclui-se que a materia
deve ter sido realmente de grande importância social: uma sondagem em qualquer um
dos fundos inquisitoriais apresenta resultados impressionantes. Porém, mais do que
confiar na eloquência dos números, tentaremos analisar alguns casos concretos.
Em26 de setembro de 1627, perante Giovanni Maria Tolomei de Osimo, inquisi-
dor em Pisa, apresentou.se uma mulher: jovem - de acordo com nossos critérios (tinha
cerca de 24 anos) - mas já casada e mãe de família, chaÀava-se Francesca e era mulher
de um tal Giovanni Battista de Pistoia, camponês na propriedade de um negociante
pisano em Avane. O filho do negociante tornara-se píevano de Avane, de acordo com
notórios mecanismos de ascensão social e de consolidação das vantagens adquiridas.
Francesca fora falar justamente desse pieuano. O padre pusera os olhos em Francesca
desde a chegada dessa família de camponeses de Pistoia: e quando Francesca tinha
ido se confessar com ele, este lhe dissera claramente suas intençoes. Não tinha sido
uma declaração sentimental, rnas uma oferta clara e desenvolta de patrão de quem por
ser mulher era duplamente serva - do proprio marido em primeiro lugar e depois do
patrão do marido; e havia em Francesca uma fraqueza a mais alem daquela "natural"
do sexo, o fato de ser forasteira. O padre disseralhe claramente, com poucas palawas,
como poderoso do lugar à mulher pobre e íorasteira: "És pobre forasteira e se me ser-
vires como a teu marido, providenciarei tudo o que precisas, seja de casa, de campo,
de comer, de beber e de vestir"22.
Uma oferta de proteção, um registro brutal das relações de força, seja visto
tanto de um como de outro m$Lo,'alalqdg p"dt" não devia parecer absolutamente
extravagante para quem a ouvia{'Qua.r,o -frô podia parecer chocante justamente por
descrever uma situação sem saída para quem, nascida mulher e pobre, estava condenada
a servir à vontade alheia. Francesca tinha ficado chocada pela situação. Mas escondera
tudo da família, das vizinhas, desde o primeiro momento. Essa cena tinha ocorrido no
confessionário, denffo de uma igreja apinhada de outras mulheres que faziam fila para
confessar.se. O inquisidor perguntou imediatamente "se ao redor havia pessoas que
pudessem ter ouvido as propostas desonestas". Francesca garantiu-lhe que ninguém
21. Exemplates impressos da catta, "escrita pela s. Congregação do Santo Ofício a todos os Bispos e Inquisidores
da ltália", encontÍam-se conservados entre os documentos da lnquisição Ílorentina (Archives Générales du
Royaume, Bruxelles, Archi ves ecclÁsíastíques 1928 3ter, ll, cc. 48, ed. 1667 , e 53, ed. 1728) e da modenense (ASM,
Inquisilione,b.TT , ed.1667). A impressão de 1667, ordenada peio papa Alexandre VÌI, traz na cópia modenense
a ordem complementar, 'A presente carta [...] será tornada pública por todas as igrejas paroquiais desta dio
cese diante do povo para que a todos chegue a notícia de erradicar do campo da Santa Madre Igreja peste tão
execranda, quanto é o abuso do ato e lugar do sacramento da confissão para íins péssimos". No preâmbulo
da ediçao de 1728 deciara-se que as ordens tinham sido "negligenciadas"
ACAF, S. Uffizío, f . 6, 1621-1623, depoimento de 26 de setembro áe 1627
"I
TF-
520
A Confissão
r.
521
denunciar o referido padre e como sabe que quando uma mulher e atacada em sua honra
na confissão deve denunciar o confessor à Inquisição?"
A resposta e simples: se um confessor corrupto é a causa dos problemas dela, um
confessor correto é o que a encaminhou ao tribunal da Inquisição:
Fiquei sabendo que se deve recorrer à inquisição em casos como este, numa conversa em
nossa casa, em Pistoia, com nosso confessor que era da ordem de São Francisco, quando ele disse que
as mulheres que vão se confessar e que ficam escandalizadas são obrigadas a procurâr a lnquisição.
Este caso aconteceu em Pisa. Como se disse, trata-se de um caso típico: cada
ingrediente da história e encontrado com frequência nosìautos da Inquisição italiana
a partir do final do seculo XVI. Como Francesca, muitas outras mulheres deram início
então a procedimentos inquisitoriais contra coníessores pelo crime de sollicitatio. A
visão da mulher como ser inferior - ainda mais do campo, uma camponesa - ajuda a
entender como podia se dar essa fusão entre as duas funções essenciais da instituicão
eclesiástica, a da confissão e a da Inquisição.
Do observatório romano do Santo Ofício tinha-se à frente um panorama
composto não só por denúncias formais, mas tambem por uma grande quantidade
de rumores que encontravam diíiculdade para se tornarem denúncias. Os casos
apareciam por meio da voz de confessores que recebiam as confidências de mulheres
que se viam entre a obrigação de recorrer à Inquisição e o medo de que esse passo,
tornando-se notório, custasse-lhes a honra. Recorria-se a Roma com pedidos para
transigir e conceder às mulheres a absolvição, sem pretender a passagem preliminar
pelo tribunal inquisitorial. E de Roma chegavam respostas incomodadas, irritadas,
só raramente compreensivas.
São muito frívolas as razões que as duas penitentes de V. R. alegam para não denunciar os
confessores solicitantes - escrevia o cardeal Barberini a frei Matteo, um minorita de Norcia - porém, o
senhor deverá convencêlas da obrigação que têm e da vanidade dos pretextos alegados para não fazê.lo,
podendo o segredo do Santo Ofício sanar a dúvida de terem suas honras manchadas quando tomar
conhecimento do fato, e devendo prevalecer sobre todas as coisas o dever de aliviar sua consciência?3.
Não é preciso muito para julgar que a denúncia não seja feita [...] por ser qualquer denúncia
odiosa em si [...] Nos casos duvidosos, se a pessoa penitente é obrigada ou não a denunciar, nin'
guém deve fazer-se de sábio e cuspir a sentença que não, a título apenas de favorecer a boa fama de
quem talvez, infelizmente, seja réu; mas deve-se, quer por meio dos vigários, ou pot si mesmo, quer
oralmente ou por escrito, apresentar a informação ao Inquisidor, do qual se espera que julgue, para
ouvir o que tem a aconselhar2a.
A Confissão
r
523
a missão precedente: então, fora recebida a confissão de uma mulher que contara um
episodio de "solicitação". Relata Palmucci:
Movidos por excesso de zelo, aqueles bons padres, ao ouvirem de uma mulher que tinha sido
solicitada in sd"cra"mento conlessionis a quodam relígíoso etc., depois de pedir licenca à referida mulher,
revelaram tudo ao Monsr. Bispo, o qual demonstrou o desejo de abrir um processo a respeito, e foi
assim que a coisa chegou ao inquìsidor com não pequeno escândalo dos parentes da mulher e de
outros da terra, os quais deduziram disso que revelávamos as confissõesz5.
i
\ Confessores e Mulheres
À
F*-
524
a confissão ou fora dela com alguma monja"28. Portanto, uma investigacão tinha sido
iniciada: e era o suficiente para que essa admissão, feita secretamente pela mulher
no coníessionário, se tornasse conhecida e pública; tanto mais que, apesar de toda a
vigilância do Santo Ofício, os inquisidores locais nem sempre garantiam os direitos
reconhecidos às denunciantes - em particular, o direito a que não lhes fosse pergunta.
do se tinham ou não consentido na sol\icitatíoze. De um lado, a curiosidade, os deveres
sociais e os ásperos conflitos que rodeavam a honta da mulher, de outro a consciência
exata do efeito das conversas de teor sexual nos diálogos íntimos entre sacerdotes e
mulheres despertavam uma viva curiosidade em torno de tudo aquilo que dizia respeito
ao confessionário. Para se ter uma ideia disso, basta folhear qualquer denúncia de solli
citatío; por exemplo, a de um certo Francesco Puècioni, que em 10 de janeiro de 1664
fez uma spontanea comparítio diante do inquisidor de Pisa para contar coisas que ficara
sabendo. No centro de sua denúncia estava o pároco de Santa Luce que, segundo ele,
"havia solicitado em confissão as mulheres de Cesare del Bano"; ficara sabendo através
de sua mulher, que por sua vez fora posta ao corrente por confidências femininas das
vizinhas - confidência de que fora excluído e por razões óbvias o tal Cesare del Bano
que era o chefe de família das mulheres "solicitadas": "aquelas pobres mulheres não
sabiam o que fazer, pois não queriam que seus maridos ficassem sabendo"3o.
Diante de tal dificuldade, inaugurou-se no Santo Ofício a tendência em permi.
tir frequentes excecões à norma que proibia a absolvição a quem não passava antes
pelo inquisidor para apresentar denúncia. A mulher solicitada, que "não consegue
se resolver a denunciar o sacerdote réu... seja por ora absolvida"3l. E mesmo quando
se tratava de mulheres de que tinham "abusado muitas vezes no confessionário e no
sacramento da penitência", tolerava-se sua recusa quanto à denúncia, permitindo que
íossem absolvidas com a advertência de pelo menos "não voltar mais a confessar-se
com os mesmos que as induziram ao erro"3z. As histórias que as mulheres conta.
vam quando decidiam apresentar denúncia mostram como era lento e complicado
o caminho para se chegar até o ffibunal da lnquisição. Podiam se passar anos não
só dos fatos mas até mesmo de quando um determinado confessor impunha-lhes a
obrigação de recorrer ao inquisidor para {azer a denúncia. No caso de Rosa Magag.
nini de Calci, a história das solicitações tinha começado muito cedo, moça abastada,
sobrinha de um pieuano, travara amizade com o capelão.do tio, que se tornara seu
confessor. O capelão tinha se enrabichado por ela, durante cerca de onze anos, no
período da confissão pascoal, Rosa dirigira-se a ele e a cada vez tinha se repetido a
cena da seducão:
A Confissão
w
I
525
logo depois de ter-me solicitado desse modo, mandava-me à igreja da referida Companhia para a
confissão e assim, de fato, depois de um quarto de hora ou de meia hora vinha para me confessar
e coníessava-me; em seguida celebrava, e com uma partícula, que consagrava junto com a hóstia na
missa, dava-me a comunhão.
Essa cena de hábito quase conjugal ocupara toda a juventude de Rosa - ate o
dia em que algo tinha minado aquela ligação. Rosa fora se confessar com outro e este
a tinha "obrigado em consciência e ameaçado com a não absolvicão, caso não lhe
prometesse sinceramente denunciar ao s. Ofício o relerido padre". Rosa prometera;
mas depois deixara o tempo passar. Quanto mais próximo era o convento do inqui-
sidor, tanto mais inatingível tornava-se para ela. Na casa dos clerigos em que ela ia
encontrar o capelão havia os rapazes do catecismo e as camponesas que a conheciam.
O capelão tinha fama de bom padre, se a vissem dirigir-se ao convento da Inquisicão,
as suspeitas não demorariam a aparecer. Já que a via direta era impraticável,organizou-
-se um percurso oblíquo. Rosa tinha parentes residentes em Calcinaia, um burgo bem
distante de sua aldeia: fora ao encontro deles e enquanto estava ali aproximara.se de um
pieonno que celebrava a missa em um pequeno oratório das redondezas e que tinha, entre
outras incumbências, a de servigário do Santo Ofício. O pieuano foi posto ao corrente
do sucedido: prometeu a Rosa conseguir junto ao inquisidor e ao arcebispo autorização
para receber a denúncia. Tudo isso ocorria em junho de 1755; no ano seguinte, em mar.
ço, Rosa obteve novamente permissão para ir ter com os parentes em Calcinaia. Nesse
ínterim, o pieuano obtivera a autorização para receber a denúncia. Assim, finalmente, o
relato daquela ligação incriminável, as palavras que tinham circulado secretamente du.
rante muito tempo puderam tomar forma escrita, de acordo com as normas legais. Rosa
contou e respondeu a todas as perguntas, até a última - que era referente à demora da
denúncia. Quando o pieuano perguntou-lhe porque adiara por tanto tempo a denúncia
a ser feita, Rosa respondeu com palawas que valiam para ela e para as muitas mulheres
que como ela tinham convivido então com a angústia do mesmo problema, "Eu não
1r
denunciei antes o referido padre Nardini porque não pude, por ser filha de família e
se tivesse podido, teria denunciado antes para a tranquilidade de minha consciência"13.
Mas a denúncia não foi suficiente para devolver-lhe a tranquilidad e: o pieuano, ao expedir
a documentação, remeteu junto uma carta de recomendação para que as autoridades
metropolitanas deixassem a moca em paz. 'A mesma mulher - escreveu o pieuano - após
ter deposto espontaneamente, ficou temerosa de sofrer alguma difamação, caso devesse
comparecer ao Tribunal para ulteriores procedimentos"14.
Era um temor fundado: a denúncia não fechava, mas abria um procedimento pe.
nal; aliás, se a acusacão revelava-se infundada - e o corpo eclesiástico como um todo era
Confessores e Mulheres
\:
T-
í-
526
capaz de defender muito bem seus membros em casos do gênero - aplicava.se à mulher
a pena de talião, atingindo.a com a iníâmia. De qualquer modo, porém, a infâmia e a
desonra sempre acabavam atingindo as mulheres: bastava que se divulgasse a historia de
seu comparecimento perante o inquisidor. Era preciso defender as mulheres - se não
todas, pelo menos as "nobres" e, naturalmente, as monjas. Foi estabelecida para elas a
norma que atribuía ao confessor a tarefa de fazer a denúncia no lugar da penitente35.
De resto, o efeito da desonra podia ser o resultado involuntário dos procedimentos
burocráticos desse tribunal: por exemplo, quando era necessário recolher testemu-
nhos posteriores ou então simplesmente assegurar se a mulher denunciante estava em
estado nubil (libero) ou conjugal. Para um caso semelhante, um homem conhecedor
das leis como Prospero Lambertini - mais t".d. f"pu Bento XIV - determinou que se
encontrassem testemunhas de confiança da mulher "solicitada" que atestassem seu
estado núbil, do contrário seria necessário proceder a investigações, que resultariam
em "revelar o segredo"36.
Seja como for, em relação às mulheres as regras impunham o máximo de se.
cretismo e de atenção. No que se refere ao confessor réu, o procedimento era severo.
O processo, controlado diretamente por Roma, onde se tinha atenta lembrança dos
precedentes de confesdores reincidentes, podia chegar à abjuração, que devia ser feita
solenemente "na presença de párocos e confessores convocados com essa finalidade",
à degradação e à prisão in perpetuo3l . E não era preciso mais do que a suspeita para que
a possibilidade de ouvir confissões fosse suspensars.
Apesar de tudo, as raízes do mal eram profundas e o Santo Ofício tinha consciên-
cia disso, a ponto de torná.lo objeto de uma carta circular dirlgida a todos os bispos
35. À pergunta se as meninas e as senhoras da nobreza fossem levadas a denunciar pessoalmente eventuais casos de
solicitação ("an puellae, et foeminae nobiles solicitatae... tenentur personaliter adire inquisitores, vel episcopos")
a resposta íoi negativa. Semelhante obrigação seria demasiadamente dura, escreve írei Girolamo Trimarchr
("valde durum est, quod foemine illustres, et nobiles et pueliae obligentur, ut personaliter adeant sanctuÍn
il1ud tribunal"). Deviam ser ouvidas em suas próprias casas, delegando ao confessor a missão de denunciar.
E isso valia também para as monjas ("hodie tenetur et moniales et puellae et nobiles foeminae denunciare.
aut per se ipsas vel per confessarium"): Fratris Híeronymi Tnmarchí Gentensis ex Messana mínimorum ordinis S.
Francisci a Paula... De confessarío abutente sdcídmento poenítentiae trd"ctdtt;s unicw. Opus episcopis, ínquísitonbu-t
confessaiis, aLiisque personis eccLesiastícís utiLe, et apprime necessanum..., Genuae, ex typographia Petri Io. Calerr
zani et Io. Mariae Farroni soc., i636, pp. 723.225. O tratado de Trimatchi, coníessor e inquisidor de la4a
experiênçia, escÍiro enffe Palermo, Madri e Gênova nos anos de 1627 a.1635, é rico de documentos oíiciais e
de iníormações. Outros tratados íazem referência explícita a uma instrução "na qual se diz que o bispo ou .-
inquisidor coníerem autoridade ao confessor no sentido de receber por escrito e corn juramento a denúncú
a ser imediatamente levada a quem ihe deu autoridade para recebê-1a" (Istruzione per íNoveIIi Confesori, neli;
quatc si SmínuzzaTuttaLa Pratica deLsagramento deLla Penitenza... Opera d'un ecclnsíastico, chr si esercita nellz missiorc-
Lucca, por Leonardo Venturim, 1775, p.270).
36. AAp, S. Uííizio, Misc. I, carta de Lambertini ao arcebispo de Pisa, Bologna, 16 mar. 1737.
37. Essa é a sentença decidida em Roma para dom Francesco Angelerio, cuta de Lorgnano, diocese de Perúga
em 22 de janeiro de 1628 (carta ao inquisidor de Perúgia, BAV, Barb' I-at' 6336, c'26u)'
38. Tal íoi o caso do agostiniano Giovanni Steíano de Crema, indiciado por solicitação e "outtas vezes [...] penr
tenciado por semelhante delito" (carta ao vigário da lnquisição de Savona, 8 jan. 1ó28, ibid., c. 10r).
A Confissão
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527
19. Carta "aos bispos de ltália", Roma, 3 out. 1626, citada no cap. )o(V, nota 33.
40. Giovanni Battista De Lttca, IL Vscovo Pratíco Overo Díscorsi nel.l.'Ore Oziose de'Gíorní Canicolnri dell'Anno 1674,
em Roma, pelos herdeiros de Corbelletti, 1675, p. 151.
41. Idem, pp. 155.156.
42. Mas o coníessor, segundo disse, convencera.a mostrandolhe um liwo impresso em latim, onde se dizia que a penitente
seduzida pelo confessor podia ser absolúda pelo mesmo coníessor (ASVen., S. Uffcio, Processi, b. 8ó, cc. n. n.).
Confessores e Mulheres
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I
5?.8
papeis do governo eclesiástico. lJm constitui um traço impalpável mas real, que pode-
ria ser denominado feminilização da religião: ele e percebido no intimismo de afetos
e de ambientes, na tonalidade sentimental da experiência religiosa ou nas estratégias
eclesiásticas dirlgldas ao mundo feminino (como meio e trâmite para atingir o mundo
masculino, mas tambem como fronteira mais próxima às experiências secretas e indizí.
veis do sagrado). O outro é o aparato que lhes serve de fundo e que reúne a linguagem
e as regras sociais da relação ou do encontïo entre eclesiásticos e mulheres em razão
do qual foi criado: o confessionário. Esses fenômenos foram causados pela brandura e
morbidade, latentes e potenciais, da confissão pos-tridentina, da paternidade espiritual
e de uma estrutura baseada no controle dos pensamentos mais secretos por parte de um
corpo eclesiástico, entrincheirado em uma posiçaJde privilégio e decidido a defendê'
-la, mas preso ao respeito de rigorosas regras jurídicas. Eram normas que criavam uma
zona protegida e garantida: graças a elas, era possível recorrer a um tribunal eclesiástico
para ser protegidos de abusos eclesiásticos. Por outro lado, era do funcionamento dessas
regras que dependia não tanto a segurança individual dos leigos ou a honra de suas
mulheres, mas a manutenção da estrutura eclesiástica. Era por isso que se precisava
obter a garantia de que os crimes do clero não permanecessem secretos e impunes; e
era por isso, portanto, que havia necessidade de obrigar os leigos - e em particular
as mulheres - ao duro e desonroso dever da denúncia escrita. Deve-se destacar aqui
apenas o aspecto específico de uma questão mais geral: quem recorria ao tribunal da
confissão, íazia.o por motivos complexos, vencendo resistências profundas, impelido
por sentimentos de culpa e atraído pela promessa do perdão e do esquecimento. Mas
eis que à porta do confessionário deparava-se com éditos que o transformavam de pe.
nitente em testemunha de processos judiciários. Bispos e inquisidores eram instados a
garantir, de qualquer modo, que ninguem jamais perguntasse ao denunciante se tinha
ou não consentido ao ser "solicitado"; as eventuais declaraçÕes não requeridas deviam
ser excluídas da ata ("caso ele queira declarar de moto próprio, que não seja registrado
seu dito"). Todas essas informações e garantias deviam ser transmitidas aos destinatá'
rios em lugar e circunstâncias idênticas em que ocorrera o crime: no confessionário, ti
I
próprios confessores deviam explicar "aos penitentes a obrigação que têm de denunciar li
l
.l
A Confissão
r
529
o confessor a receber a denúncia por escrito e com juramento para ser imediatamente
levada a quem tiver autorizado de recolhê-la". Por fim, se o penitente não se decidia a
fazer a denúncia escrita, então devia ser dispensado sem absolvição, dando ao mesmo
tempo curso a uma denúncia que era também uma lesão evidente ao segredo confessio-
nal, "que nos seja enviada por escrito e espeÍe-se a resposta; enquanto isso a absolvição
dele lpenitente] deve ser adiada"aa. Tôdo esse trânsito de atos escritos, com juramentos
formais e transmissão de papeis à Inquisição, deve ser imaginado no contexto da paró-
quia, junto de um confessionário apinhado, talvez no período da Páscoa, quando ali se
acotovelava, por dever e tradição, toda a população maior de idade. O confessor fora
transformado em um agente da especie mais insidiosa de polícia: e isso logo depois de
sua já ocorrida transformação - por parte do Concílio de Trento - em um funcionário
público do estado civil, destinado a fornecer aqueles atestados sem os quais as pessoas
eram excomungadas e daí expulsas da própria comunidade.
A partir desse momento, a subordinação dos confessores aos inquisidores estava
garantida: nenhuma discussão abstrata a respeito de uma hipotética divisão de campo -
para uns o "foro interior", para outros o "foro exterior" - podia esconder o dado de fato
de uma ameaca constante suspensa sobre a cabeça dos confessores e de sua permanente
condição subalterna em relação ao terrível tribunal da fé. Os modelos de depoimentos
inseridos nos manuais dos inquisidores deixam claror em suas denúncias, as mulheres
assediadas pelos confessores deviam, sim, calar os pecados que tinham confessado, mas
deviam descrever minuciosamente todo o resto, desde o local do crime (o confessio-
nário) ate tudo aquilo que o confessor tinha dito ou feito. A questão atingiu medidas
extraordinárias na práxis inquisitorial entre os seculos XVI e XVII, mesmo fora da ltália.
Os processos e as denúncias por casos de sollícitatio encheram os arquivos inquisitoriais,
da ltália ao Peru. A figura do confessor foi circundada por uma aura ambígua. Com a
chegada do seculo XVII, as coisas se agravaram: as heresias a serem combatidas tornaram-
-se o molinismo, o quietismo e outras tendências desse tipo, arraigadas no seio de uma
direção das consciências cada vez mais personalizada e íntima, caracterizada pela relação
de "filiação espiritual". Houve efeitos devastadores em brilhantes carreiras eclesiásticas
e complicadas tramas de conspiraçÕes políticas e de desvios religiosos. Recordam-se, a
título de exemplo, o caso do barnabita Bartolomeo Gavanti, suspenso da pregação em
1617, em decorrência da denúncia de uma monja genovesa45, e toda a série de vicissi-
tudes religiosas e políticas que se configuraram, aos olhos dos inquisidores, como uma
vasta ramificação herética, a dos "pelaginos" da Lombardiaa6. Na mesma fenomenologia
da santidade, íoi codificado o caso do confessor que se furta, fugindo da tentação: tal
foi o caso do padre Francesco Caracciolo, confessor na basílica de Sao Lourenco em
44 Idem. O texto é um decreto do Santo Ofício de 20 de julho de 1624, exposto em forma epistolar ao cardeal F.
Borromeo: P. Laurentius Cozza cita-o e comenta em Dubia Selecta, op. cit., pp. 54-56.
45 Completamente desconhecida e ainda assim definida como "mulher extravagante" e não coníiável por S. Pagano
("Denunce e Carcerazioni al S.Offizio del P. Bartolomeo Gavanti', emBamabitì Studt,2, 1985, pp. 87-111; em
part. p. 100).
46. Cf. G. Signorotto,Inquísitorí eMistici nelSeicentoltal.iano. IiEresíadíSanra Pelugia, Bologna, 1989.
Confessores e Mulheres
530
Lucina entre 1606 e 1607: ali "uma mulher loba com aparência de pomba tentou-o no
confessionário, declarando-lhe seu afeto impuro. Ele fugiu para sua cela, onde aplicou-se
uma disciplina de sangue"47.
47. Cf. P. Clemente Piselli, Noritie Histoiche dBll'Ordine, Roma, 1710, p. 86 (retomo a indicação do esrudo de R.
Giorgi citado anterioÌmente, nota 15 deste capítulo).
A Confissão
r
XXVII
.ACREDITAR
CoM o ConeCÃO''
l. Biblioteca Municipal de Ferrara, ms Cl. I, n. 118, Documenti Spenantí aLlaSanra Inquìsírione. cc. 142r e ss. Sobre o
inquisidor em questão, frei Antonio Dall'Occhio, cf. S. Cavazza, "La Doppia Morte: Resurrezione e Battesimo
in un Rito del Seicento", Quaderni Storici, n. 50, ago. 1982, pp. 551-582.
r-
532
de instruções mostra que uma grande quantidade de crimes não era mais penalizada,
de modo que o inquisidor tinha assumido a função protetora e pastoral que antes era
típica do confessor. Ate mesmo o crime de leitura de livros proibidos, que desencadeara
o conflito entre Felice Peretti e o governo veneziano, tornou-se rapidamente um delito
menor. Temos uma carta em que o inquisidor de Aquileia convidava a um de seus
vigários absolver um penitente que lera livros proibidos, "aplicando-lhe [...], de acordo
com o estilo do Santo Ofício (no que tange ao foro exterior) alguma penitência salutar,
ou seja, que por quinze ou vinte dias, mais ou menos de acordo com a qualidade da
pessoa, reze todo dia de joelhos pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, e uma
vez o Credo", nada de diferente do que era dito aos penitentes normais em confissão,
com excecão talvez do acrescimo final: o penitente/réu devia rezar o Credo "refletindo
mormente sobre o seguinte artigo: 'Credo Sanctam Ecclesiam Catholicam', que por
meio do sumo Pontífice seu Chefe visível proibiu a leitura de tais livros"3.
A relação entre Inquisição e confissão teve uma peculiaridade italiana, que deve
ainda ser precisada em seus particulares, mas sobre a qual não podem haver dúvidas.
No que se refere à Inquisição, o contexto em que foi criado o Santo Ofício romano
caracterizou-se por um gravíssimo alarme quanto à propagação dos fermentos da Re.
forma na ltália. Mas superada a fase inicial, o tribunal romano modificou formas e
A Confissão
r
51i
características de sua intervenção. A extensão dos motivos pelos quais era possível ser
processado em uma gama muito ampla de materias - os sortilégios, as superstições, as
práticas matrimoniais, a falsa santidade e assim por diante - levou a uma situação em
que boa parte da população teve de passar periodicamente diante desse tribunal para
"desencargo de consciência", isto é, para poder obter a absolvição do confessor. Um
uso tão extenso do tribunal promoveu comportamentos que da agressiva simulacão e
dissimulação irticial (ou "nicodemismo") passaram à aquiescência, ao fingimento e ao
conformismo. Quem se via às voltas com esse tribunal deparava-se coín uma exigência
fundamental da lnquisição, a do abandono das próprias convicções para substituí.las
pela aceitação de uma delegação total à Igreja, entendida como corporação de clérigos,
ì
"Credo quod credit sancta Mater Ecclesia".
No que se refere à confissão, a transformação do confessor em "pai espiritual"
e o uso da "coníissão geral" foram destinados a oferecer um auxílio para a elaboração
de um ltlnerai-iõGãlvtdìual rumo à santidade. Disso resultou uma forte dependência
afetiva e intelectual do confessor. O projeto de ascensão à perfeição da santidade,
que nos séculos anteriores fora perseguido atraves da escolha da vida monástica, foi
laicizado e colocado ao alcance de todos, ate dos mais humildes e ignorantes, até das
mulheres. Grandes energias'foram investidas na tentativa de manter sob controle a
população feminina encerrada nos mosteiros, sob as normas de uma rigorosa clausura:
a elaboracão de um modelo de santidade feminina precisou levar em conta ingredientes
tbrnecidos pela tradição - visões, revelações, substituição do alimento pela Eucaristia -
mas foi, de qualquer modo, uma das maneiras com que se tentou regulamentar uma
populacão feminina que se mantinha fora do mercado matrimonial. O florescimento
extraordinário do fenômeno da "falsa" ou "simulada santidade" é parte integrante
de um mesmo panorama, juntamente com os fenômenos da bruxaria e da possessão
Jemoníaca. Também nesse caso, os instrumentos de intervenção foram variados, mas
o resultado foi favorável à confissão e aos módulos cautos e pastorais da estratégia
inquisitorial, ao mesmo tempo em que tiveram que ser descartados os mecanismos
clamorosos dos processos por bruxaria e das grandes campanhas exorcistas (que no
entanto foram frequentes em países religiosamente divididos, como a França, onde
revelaram todo seu potencial de propaganda). Eventualmente, foi justamente do fe:
chamento dos espaços para a santidade visionária e profética e do adensamento das
Ìigações entre diretor espiritual e mulheres que nasceram os dois maiores problemas
que a Igreja católica teve de enfrentar internamente no seculo XVII: a sollicítatio ad
turpia no confessionário e o surgimento de um misticismo que repudiava as práticas
exteriores e ameacava dissolver a rígida estrutura de controle tridentina.
Não se tratou de um processo de direção única. Se para a Inquisição houve a
tentativa - de Paulo IV e de Pio V - de conservar-lhe o caráter rigoroso de tribunal de
I
ioro exterior e de momento da pena e da vingança, para a confissão houve a tentativa
Jos bispos tridentinos - em primeiro lugar, Carlo Borromeo - de restaurar seu caráter
I comunitário, com a prática da penitência pública. Mas no final do século XVI torna.se
i
evidente que a linha vitoriosa e a que apontara para a construcão de uma relacão es-
f,-
534
4, Carta do cardeal Millino ao Inquisidor de Pisa, 11 nov. 1621, na causa por sortilégios heréticos contra Lorenzo
Barbieri (ear, Misc. S. Uffizio, pasta 6, cc. n. n.).
5. Dep. de Antonio Catani de Pescia, l" ort. 1622 (idem, cc. n. n.).
6. Sobre o tema da "janela sobre o coração", cf. as sugestivâs investigações de Lina Bolzoni, DtStanza dcLktMemona.
Modp.llí btterari e lconografici nell'Età della Stampd, ToÌino, 1995, cap. IV: "Fra Corpo e Anima: Lo Statuto dele
Immagini", pp. 135 e ss.
A Confissão
r
535
7. A presenca de Tasso era então habitual em Mântua, aonde ia encontrar o pai. No verão de 1567 viu*e obrigado
a permanecer ali mais tempo do que costumava deúdo a uma íebre que o manteve acamado, "doente de febre",
enquanto os dominicanos todos os dias prendiam alguém "como se quisessem aprisionar todo mundo" (carta
de Mântua de Luigi Rogna, de 15 de julho de 1567: Archiüo di stato di Manrova, Archiuío GonTaga,b.2577,
cc.2l7r-215r).
TERCEIRA PARTE
Os MTSSIoNARIoS
r
XXVIII
As xoSSAS INDIAS
Em 1553, o jesuíta Silvestro Landini íoi enviado à Córsega. Em sua breve, mas intensa
carreira de jesuíta (nascera em Malgrate, junto a Sarzana, por volta de 1503 e morreria
justamente na Córsega em 15541), cumpria sua missão ao lado do bispo de Módena
Egidio Foscarari, por ocasião da visita pastoral desse último, realizada entre 1550 e
1551. A associação de jesuítas'ao bispo em visita comecava a tornapse um fato normal.
Na geografia religiosa italiana daquele tempo, Módena era a capital do movimento fi.
loprotestante. Landini tinha colaborado com o bispo no decorrer da visita, primeiro na
cidade, depois na montanha. Suas cartas a lnácio testemunham uma aguerrida vontade
de desaninhar e combater a heresia. Em Módena, ao ouvir o sermão feito diante do
bispo na catedral por ocasião da festa de Sao Geminiano, notou que o pregador evitara
propositalmente chamar de "santo" o padroeiro da cidade, Landini desconfiou logo
das simpatias "luteranas" do pregador (mais exatamente pelas ideias de Martin Butzer)
e aludiu a possíveis contatos com Bartolomeo Pergola, o pregador franciscano enviado
a Módena pelo cardeal Morone em 1544 e depois processado e condenado por here-
sia2. Têndo se deslocado posteriormente para Garfagnana, Landini contou a seu geral
episódios de duros confrontos com padres e poderosos locais por simpatias calvinistas
ou luteranas. Mas em suas cartas da montanha aflora cada vez mais não tanto a ameaca
da heresia quanto uma situacão de decadência e corrupção da vida social e da prática
cristã elementar: das blasfêmias às superstições, da ignorância aos ódios entre vizinhos
e parentes, vira-se obrigado a cuidar de uma grande quantidade de problemas que não
tinham relação com a luta contra a heresia. Suas cartas a Inácio permitem acompanhar
a evolução que o conduziu da cruzada teológica em cidades hostis ao ensinamento das
noções básicas do cristianismo e à prática de intervenções assistenciais, em socorro de
uma sociedade tão pobre e ignorante quanto bem receptiva em relacão a ele. Depois
1. Um breve períil de Landini em A. Guidetti S. I., Le Missioni Popolan.I Grandí Gesuiti, Milano, 1988, pp. 21-29.
2. Um períil de Pergola no verbete "Bartolomeo della Pergola", de A. Rotondó, em DBI, vol. 6, Roma, 1964,
pp.750-757. Acarta de Landini a Inácio é de 6 de fevereiro de 1551 (em MHSI, EpistolaeMixtae, exVariis Ewopae
Locis ab Anno 1537 ad 1556 Scnptae...,tt[1549.1552], Matriti, 1899, pp. 501-502).
540
das populacões das regiões apeninas entre Toscana e Emilia, Landini foi ao encontro
das populações insulares. Seu primeiro encontro ocorreu na ilha da Capraia, após uma
travessia dlficil e por vezes dramática; o mar em tempestade, o mastro da embarcação
despedaçado, as ondas "que saltavam na proa e na popa", a absolvição coletiva na expec.
tativa da morte certa. E depois, imprevista e já inesperada, a chegada à terra e o encontro
com uma população que parecia esperar dele a salvação da almar "E, ao adentrarmos
naquela ilha, todos se confessaram e comungaram; todas as inimizades desfizeram-se,
foram feitas boas esmolas, maridos e mulheres acertaram-se, e ensinou-se a doutrina
cristã". Era gente ignorante e pobre, as igrejas estavam em ruínas, o sacerdote era um
soldado, com mulher e filhos, que nem sequer sabia a fórmula da consagração. Eram
paupérrimos. Havia gente que, aos cinquenta anos,'"nunca se saciou de pão". Andavam
descalços, mesmo no inverno; dormiam "no chão nu com um filho à direita, outro à
esquerda e outro aos pés"3. Após uma breve estada em Capraia, Landini dirigiu.se à
Corsega: e ali a renovada experiência da pobreza, da ignorância e da boa disposição dos
habitantes das ilhas deu o impulso final à sua agressiva vontade de reconquista religiosat
ali tambem a realidade era a da fome e do medo, em meio a um mar infestado de piratas
turcos, onde a vida social e a prática religiosa pareciam muito distantes dos modelos
prescritos pelo cristianismo oficial, sem que por isso se tratasse de heresias. Era gente
cheia de "mil superstições, infinitas inimizades, ódios inveterados, homicídios por toda
parte, soberbas luciferinas universais, luxúrias sem fim"4; os homens "vão à floresta
lavrar todos os dias e providenciar o sustento para seus filhos e concubinas". Pois é,
concubinas: porque as mulheres acabaram quase sempÍe como escravas na Turquia e
os homens arranjavam outras; e ate os padres tinham concubinas. Os bispos, então,
estavam ausentes e angariavam elevadas enÍadas. Escrevia Landini, que "a grita é geral,
por que os bispos gozam a enffada, mas não querem cuidar de seus bispados, e deixam
perderem-se muitas almas e serem devoradas pelos demônios infernais?" Assim, sem
saber, o pregador antiluterano repetia as palawas de Lutero:
O bispos, como quereis prestar contas disso a Cristo, vós que deixastes o povo errar tão
vergonhosamente e, nem por um momento, cuidastes do vosso ofício? Que não vos puna o juízo
por issol Proibis uma espécie do sacramento e introduzis à forca vossas tradições humanas, mas não
perguntais se sabem o Padre Nosso, o Credo, os dez mandamentos, ou alguma palawa de Deus. Ai
de vós, ai de vós por toda a eternidadel5
Como Lutero durante a visita à Saxônia, Landini descobria que "o homem do
povo, principalmente nas aldeias, não conhece nada da doutrina cristã"6. "Não sabem o
3 Carta a Inácio, 16 mar. 1553, da Bastia, idem,lll (1553), Matriti, 1900, pp. 165.175.
4 Carta a Inácio, da Córsega, 7 íev. 1553, ídem, pp.115 e ss.
5 M. Lutero, "Enchiridion. I1 Piccolo Catechismo per Pastori e Predicatori Indotti", em Scritti Religiosi, org. de
V. Vinay, Bari, 1958, pp.439440.
Iden,p.439.
Os Missionários
>v
)
ilr
Padre Nosso, nem o Credo, nem o Decálogo", escrevera Lutero; e Landini escandalizara-
-seporque nas ilhas do Tirreno "muitos não sabiam o sinal da cruz e velhos não sabem
o Pater Noster, a Ave Maria"; e desconheciam a forma "não digo dos sete sacramentos
da igreja, mas do sacramento do altar".
Porem, nessâ gente ignoÍante, pobre e violenta o jesuíta viu uma promessa extraop
dinária: o retorno em conjunto da igreja primitiva e o do paraíso terÍestre. 'Apresenta-se
aqui o paraíso terrestre em muitas delícias de bens espirituais, apresenta.se a primitiva
lgreja em muita frequentação das coníissões e das comunhões todos os dias"7. É ,r-"
associação na qual vale a pena deter-se, a ideia de que a Igreja primitiva era caracterizada
pelo fervor e pela frequência da comunhão eucarística pertencia à tradição dos refor.
madores católicos e dos "espirituais" italianos. Era urnnresultado da crise da ordenação
medieval da sociedade de acordo com os diferentes estados que reservara a comunhão
frequente ao clero e ao estado da perfeição monástica: agora, de muitas partes, avançava
a ideia de que a verdadeira Igreja era caracterizada por uma férvida devoção eucarística
dos leigos, com a comunhão frequente. E, contra os numerosos adversários dessa prática,
afirmou-se que ela era típica justamente da igreja primitiva e que só o arrefecimento e
a deformacão do fervor cristão original tinham levado ao ritmo anual de confissões e
comunhões. Ideias desse tipo foram difundidas por vários escritores de assuntos espi.
rituais, como Tullio Crispoldis e muitos outros autores; e foram praticadas em vários
cenáculos e grupos de devotose. Os jesuítas não fizeram outra coisa senão recolher e
aproprianse de uma tendência disseminada.
Mas a ideia do Paraíso terrestre estava ligada a outra coisa. A geografia do imagi.
I nário medieval havia construído variadas íantasias sobre esse lugar bíblico, colocando.o
Ì
num mundo insular. A descoberta da America enxertou nesse tronco uma vigorosa
retomada de mitos e fantasias. Na raiz disso, havia a noção da bondade natural de uma
humanidade que não conhecia o cristianismo, mas que demonstrava boa disposição a
acolhê-lo. De onde vinha a Landini a disposição de apropriar-se dessas representações e
fácil imaginar, no fragor das discussões teológicas modenenses, ele mesmo tinha escrito
que não lia "outro liwo" a não ser as cartas das Índiaslo. Era ali que via representado seu
modelo, nas histórias contadas pelos irmãos da Companhia que atuavam então junto
às populações do Extremo Oriente. Eram cartas que lhe davam "alegria [...ì e muita
confusão [...] vendo-me tão longe em comparação a essas santíssimas almas a serviço
de S. Majestade". A imagem usada por Landini era prenhe de alusões, encobertas para
nós mas transparentes para seus leitores. Era uma referência à passagem de Isaías 60,
8-9: "Quem são estes que vêm voando como nuvens e como pombas para seus pombais?
\
\ As nossas Índias
-*:
í
j42
Nunca experimentei terra mais necessitada das coisas do Senhor do que esta. É verdade o que
me escreveu o P. Mestre Polanco, que essa ilha será minha Índia, meritória como aquela do preste
João, porque aqui a ignorância de Deus e imensall.
11. A passagem encontra.se registrada em c. 35rv do Libro de las Profecías de Col.ombo (cí. C. Columbus, Book of
Prophccíes,org. de Kay Brigham, Barcelona, 1991, pp. 92-94). Para a tradição do século XM, veja-se do autor
deste volume "America e Apocalisse. Note sulla 'Conquista Spiriruale' del Nuovo Mondo", Criricc Storica, XllI,
1976, pp. 1-76. Outros mitos íamosos como o de Eldorado (cf. Juan Gil, Miti della Scoperra, trad. it. Milano,
1992), mesmo tendo ingredientes básicos semelhantes na pÍomessa de riqueza e de conquistas, são desprovi-
dos do elemento da profecia e da ligação com a ideia de missão. Essa madição não é tratada no estudo de M.
Bussagli, Storia degLi Angeh, Milano, 1991.
t2. J. F. Lumnius, De Extremo Dei ludicio et Indorum Vocatione, Anwerpiae, apud Tilenium Brechtanum, 15ó7
(reimpressa em Veneza, junto a Domenico "de Farris", 1569, com o título: DeVicinitate Extremí ludicii Dei\.
13. MHSI, EpisÍoÌde Mixtae, excVanisEuropaeLocís ab Anno 1537 ad 1556 Scríptae..., U, 1553, Matriti, 1900, pp. 114.
-119; em part. pp. 115-116.
t)s Missionários
r
543
t
As nossas Índias
\
A
Fï--:
544
Por trás dos aspectos de rusticidade e de bestialidade era redescoberta então uma hu-
manidade tão mais digna de interesse quanto mais necessário revelava-se o domínio
sobre ela. Selvagens europeus e selvagens internos eram destinados a percorrer juntos
um longo trecho de estrada, ao menos no que se refere aos modos de atenção de que
foram objeto por parte das classes dominantes europeias: e nisso a religião desempenhou
um importante papel.
A respeito de quem fora o primeiro a estabelecer essa ligaçao entre camponeses e
índios da America, Landini dizia algo diferente, se Francisco de Vitoria tinha aproxima.
do a humanidade remota da mais recente, o jesuíta {azia o movimento complementar
e oposto, mostrando que era possível enxergar os camponeses e os pescadores das ilhas
do Tirreno corRo uma realidade culturalmente tãà remota e exotica como a dos povos
selvagens. Era um processo de distanciamento intelectual daquilo que estava próximo
que conferia ao missionário os olhos de um antropologo. Mas ao mesmo tempo restava
a iluminação dessa analogia, que permitia lançar sobre as plebes camponesas um olhar
curioso e suscitar uma vontade de conquista religiosa em relação a eles.
Landini queria dizer muitas coisas com essa expressão: antes de mais nada, que
teria preferido ir para as Índias verdadeiras, fazer as emocionantes experiências sobre as
quais escreviam seus confrades mais afortunados; mas queria dizer tambem que tinha
descoberto ali, a pouca distância do centro romano da cristandade, povos que, mes-
mo estando muito distantes do conhecimento da "verdadeira" religião, não the eram
hostis como os hereges e os infieis, mas estavam, como os "pagãos" do Novo Mundo,
bem dispostos a acolhê-la. Era uma verdadeira descoberta e Landini foi o primeiro a
surpreender-se com isso.
Mas não era farinha de seu saco. Era o fruto de uma estrategia que fora concebida
na cúpula da Companhia, por quem detinha, de Roma, os fios das comunicações inter-
nas: o secretário Juan de Polanco. Fora ele a ditar as regras para a escrita e circulacão
das cartas: um sistema fundamental, graças ao qual um grupo restrito e disperso pôde
alcançar o duplo objetivo de manter uma forte coesão interna e nutrir um viveiro de
devotos no exterior. Era justamente ele quem fazia chegar a Landini cópia das cartas das
Índias nas quais o missionário de Sarzana encontrara uma espécie de espelho distante
onde refletir o que estava fazendo, e foi ele quem, ao escrever a Landini que the pedia
"com rogos insistentes a missão da Índia", sugeriu-lhe habilmente uma ideia capaz de
consolá.lo e de incitálo. No final da carta de Inácio que lhe enviava para a Córsega,
acrescentou uma anotação do seguinte teor: "Seguisse com toda a generosidade de seu
zelo, pois certamente a Córsega seria para ele Índia, Moluco e Japão, onde, atuando e
sofrendo, satisfaria plenamente seu desejo"18.
18. A carta íoi perdida; a citação foi retirada da Stana della Ctmpagnia de Daniello Bartoli e soa ligeiramente diíerente
no que se refere à versão que dela dá Polanco no Chronicon: "[...] Ut verum esse experiretur, quod Roma scriptum
ipsi fuent, Indiam et Aeúiopiam (ad quam missionem P. Sylvester erat propensus) in Corsica esse inventurum"
fluan de Polanco, Vín I$útíí Iniolrc et Rer'un Socieratís Jesu Hìstoria, t. 3, 1553-1554, Matriti, 1895, p. 86, n. 157,
anot. I; idem, o trecho de Batoll). Tânto Polanco como Bartoli trabalhavam com documentos originais do arquivo
da Companhia. Aversão reproduzida por Polanco soa mais próxima do original perdido: a alusão à Etiópia referiane
Os Missionários
r
i45
E nesses mesmos dias, Inácio tornava seu e generalizava esse conceito: "Se nos
comparamos com aqueles nossos irmãos da Índia - escreveu Inácio em uma carta cir-
cular aos jesuítas da Europa - [...i não me parece que seja demasiadamente duro nosso
sofrimento. Nós também podemos ímaginar que estamos em nossas índias, que se encontr&m
por toda parte"re.
No espaço de poucos anos, a ideia acabou se impondo: da Espanha, terra de
origem da Companhia, Inácio recebeu em 1556 uma carta de Cristovão Rodriguez,
sugerindo enviar jesuítas parâ converter os moriscos, pois assim, certamente, outras
Índias seriam abertas lá20. Ainda em 1556, Diego Laínez escreveu aos jesuítas que
atuavam em Loreto como coníessores, convidando-os a pensar que ali eram as Índias
Jeles2l. Depois, a expressão tornou-se recorrente, p.otr.rÊial. Na Sardenha, em 1560,
os jesuítas falavam em "essas no'uas Í.rdi"s sardas"22. A "verdadeira Índia" era a Sicília,
segundo os jesuítas de Messina; e do Abruzzo o padre Dionísio Vazquez escreveu que
nas montanhas daquela região "havemos uma Índia em ignorância e necessidade de
auxílio espiritual"23.
A ascensão missionária acontecia por efeito de uma consideração, nos documen-
ros e através das cartas, dos empreendimentos realizados nas Índias. A partir disso, a
Jireção jesuítica fazia surgir a comparação entre as Índias longínquas e as outras "vinhas
Jo Senhor". Os próprios missionários pediam insistentemente ao geral da Companhia
os relatórios das Índias para fomentar o impulso apostólico que os movia24. Rapida'
mente, no decorrer de poucos anos, multiplicam-se os sinais do sucesso dessa imagem.
.{. busca da santidade teve, então, um início normal, graças ao impulso missionário: as
vidas dos santos canonizados mais celebres daquela epoca - são Filippo Neri, são Luís
Gonzaga - atestam isso. Mas as historias deles são apenas a ponta emergente de uma
experiência que deve ter sido familiar a muitos. Justamente nessa aspiracão à missão e
ao martírio apostolico em terras distantes inseriu-se o apelo dos guias espirituais para
aruar nos lugares próximos e farniliares, e aqui a representação jesuítica do velho mun-
ao desejo expresso por Landini de dirigir+e ao país do "Prete Gianni" e depois foi retomada na carta de resposta do
próprio Landini.
19 Carta "alumnis Societatis lesu in diversis Europae locis", 24 de2.1552 (Monumentalgnatiana, s. I, Sancd Ìgnatii
Epistolae et Instructiones, Matriti, 1906, pp. 564.565). O griío é do autor deste volume. A catta de lnácio é
certamente posterior àquela por meio da qual Landini tinha sido encarregado da "missão" na Córsega, visto
que a viagem de Landini de Gênova à Córsega íora iniciada em 16 de novembro de 1552 (cí. o relatório de
Landini de 16 de março de 1553, supracitado em nota à p. 198).
Itì. 'Abriría el Sefror aqui otras Indias, convertiendo á tanta multitud de ánimas de moriscos, que, según sus
do europeu como uma outra Índia fixou-se rapidamente, com extraordinária eficácia.
Há confirmação disso em um episódio da vida de são Filippo Neri, ocorrido por volta
de 1556. Parece que são Filippo Neri, tomado pelo desejo de dirigir-se às Índias para
enfrentar o martírio pela fé, recorria ao conselho de um religioso com fama de profeta,
recebendo a seguinte resposta: "que as Índias eram Roma"25; ttatavâ-se, ao que parece,
de um religioso cistercense. Mas, ao mesmo tempo, é certo que essa vocação missionária
fora amadurecida pela leitura dos relatorios dos jesuítas das Índias, uma leitura que era
realizada "à noite, após a oração mental, com a alma completamente exaltada"26. De
todo modo, o episodio serve para demonstrar como a direção jesuítica estabelecia-se
sobre um terreno no qual o desejo, a necessidade, a fantasia da pregação apostólica
estavam presentes e amplamente disseminados, fàmentados que eram pela força suges-
tiva das cartas das Índias impressas e postas em circulação pelos jesuítas: o efeito delas
continuou por muito tempo a produzirvocações missionárias. Os jovens fugiam de casa,
perseguindo sonhos de gloria - então como sempre. Mas então tratava-se de gloria dos
céus, a ser conquistada no campo das missões2?. Mesmo quando, seculos mais tarde,
o peso de uma burocracia sufocante e de angústias de todo tipo tornara a carreira de
missionário cinzenta e opressiva, as cartas dos países extraeuropeus publicadas pelos
jesuítas continuaram â suscitar entusiasmos extraordinários, aliás, verdadeiros "furo-
res", levando as íantasias juvenis a sonhar com povos selvagens a serem convertidos2s.
Menos simples era direcionar essas energias para o interior, substituir o exotismo
conquistador por uma disponibilidade para atuar nos próprios países com o mesmo
ardor e com a mesma disposição para o novo e o insólito. Mas havia quem se colocasse
exatamente esse problema: e, ao {azê-lo, submetia os impulsos de entusiasmo a um de-
sígnio diferente, menos simples. Voltar ao proprio país e olhá-lo com olhos distantes,
foi essa a estrategia de Polanco ao guiar os homens que, de sua sede romana, estudavam
as cartas do mundo inteiro e dividiam entre si as províncias a conquistar. Provas dessa
estrategia não faltam. O jesuíta francês, padre Edmond Auger, em um dialogo escrito
em 1556, relatou como os missionários eram escolhidos e enviados. Sua narração evoca
a seguinte cena: um grupo de jesuítas reunidos na residência de campo, nos arredores
das termas de Caracalla, em Roma, examina uma série de mapas geográficos. Há mapas
das Índias e das ilhas do Japão (dali chegavam notícias das conversões realizadas por
Francisco Xavier e por outros jesuítas); há um mapa da Etiopia, "país do Preste João,
25. L. Ponnelle e L. Bordet, San Filippo Neri e In Società Romana del suo Tempo, Roma, 1931, pp. 158-159.
26. Idem. As cattas dos jesuítas das indias ocupavam um "lugar de honra" entre as leihrras costumeiras no Oratório (cf.
A. Cistellini, Sdn Filippo Neíí. LC)ratuto ela üngregalonz (hatanana. Stona e Spíntualirri, Btescia, 1989, vol. Ì, p. 104).
27. Nesse sentido, é exemplar a biografia de Cristoíoro Castelli, fugido de Palermo em 1630 para tornar-se mis-
sionário: a respeito dele e do contexto de tais histórias veja-se a sugestiva pesquisa de Bernadette Majorana,
I-a Gloriosa Impresa. Storia e Immaglni di un Viaggjo Secent€sco' Palermo' 1990.
28. Sobre o ambiente mortiíicante dos colégios missionários de Roma e de Nápoles cf. Giacomo Di Fiore, lzttere
di Missionari dallaCina(1761.1775), Napoli, 1995. Quem sentiu "une espèce de fureur" missionário ao ler as
"lettres édiíiantes et curieuses" íoi Bernardin de Saint-Pierre: cf. Michèle Duchet, Anthropol.ogle ethísroire au
síècle des Lumières, Paris, 1971, p. 76.
Os Missionários
7
547
aonde - escreve Auger - o papa Júlio III havia mandado... um bom número dos nossos"
(e Landini tinha comparado justamente sua Índia da Córsega ao país do Preste João).
Há ate mapas da Alemanha, de onde tinham acabado de regressar Laínez e Salmerón.
Todo esse aparato de mapas e considerável à epoca: a Companhia fez sempre uma
grande ostentação de imagens do mundo, em sua ffadução pictórica e nos emblemas
em que resumiu e representou suas glórias. Os triunfos pintados na Igreja de Jesus em
Roma e os emblemas que adornam o Imago primi saeculi - publicação concebida para as
celebracões do primeiro centenário da Companhia - mostram com evidência palpável
o cenário mundial em que se passava a ação dos jesuítas: mapas-múndi, mapas, povos
de diferentes costumes. E no entanto, e notável que desde a metade dos seculo XVI esse
pequeno grupo de discípulos de Inácio tivesse o habito à" *.rru.ur e distribuir suas
forças em grandes mapas das regiões do mundo inteiro.
Diante desses cenários mundiais, Padre Auger tinha sido affaído por um mapa da
França e, ao examiná-lo, não pudera evitar um suspiro. A coisa não escapara a Polanco
que lhe dissera sorrindo: "Pois bem, mestre Edmond, [...Ì se o vosso decoro não conflita
com o vosso coração, parece-me que vós já desejaríeis estar nesse país, cujo desenho no
mapa examinais com olhos tão comovidos". E, ao ver Auger enrubescer, Polanco tinha
acrescentado: "Não deveis enrubescer por isso, meu amigo, nem nenhum de nós deve
por isso nutrir aversão por vós nem deixar de estimá-lo. O amor natural e honesto pela
pátria não pode ser ocultado nem apagado". E comunicara-lhe a vontade do geral de
mandálo justamente a essa parte do mundo para "cultivar a vinha do Senhor"ze. Tam.
bem aqui, portanto, como no caso de Landini, é evidente a dinâmica dessas escolhas
e a estrategia do secretário da Companhia: aos ânimos inflamados pelo desejo de ir às
Índias, propõe-se retornar ao proprio país para ali desenvolver o trabalho missionário.
E uma verdadeira substituição de obleto.
Os dois movimentos - para o exterior e para o interior - originavam-se, portan.
to, concomitantemente, aliás, originavam-se um a partir do outror porque projetados
para distâncias exóticas, os missionários etam capazes de lancar imagens de mundos
distantes sobre os mais familiares, afastando-os e examinando-os com olhos distancia.
dos. Na longa história das pulsões expansivas do cristianismo, a descoberta das Índias
interiores íoi certamente um momento de mudanca de curso, e a mudanca aconteceu
na Itália, na metade do seculo XVI30.
29 A conversa inédita do padre Auger é citada e reproduzida por F. Dainville , La géographíe dts humanístes, Parts,
fu nossas lndias
Fl* 1
548
2. Aposrolos E MISSIoNÁRTos
de projetada para o exteïior (é típico o texto de l-ázaro de Aspurz, oFM Cap., "[a Idea Misional Fuera de la
Península Ibérica en los Siglos XM y XVII", em Missionalia Híspanica, t, 1944, pp. 495.515).
3t. Assim é dito em uma descrição coeva do eremita que pregou em Orvieto em março de 1528: cí. Ottavia Niccoli,
Profeti e Popolo nell'balia del Rinascimento, Bari, 1987, p. 151.
32. O trecho citado é dos decretos de 1536; cf. Arsenio d'Ascoli, oFM Cap., It Predicazione deì Cappucciní nel
Cinquecento in kaLia, Loreto, 1956, p. 131. Uma vasta documentacào enconrra-se reunida agora em Ì Frati
Cappuccíni. Documentí e Testimonianze del Pnmo Secolo, org. de Costanzo Cargnoni, Roma, 1991.
A catta encontra-se consetvada na Biblioteca Estense e foi publicada
à época por Berchet (naquela Raccotta
CoLombiana queíoi o digno monumento erguido pela ltália unida a Cristóvão Coiombo, por ocasião do IV
centenáriodadescobertadaAmérica).ElapodeserlidaemNroooMondo, gliltaLiani,1492.1565,org.dePaolo
Collo e Pier Luigi Crovetto, Torino, 1991, pp.413415.
Os Missionários
'.\
r
549
As nossas Índias
550
dos neófitos americanos de modo menos simplificado e, por outro, negaÍam que esses
povos pudessem ser submetidos à escravidão como "bruta animália"34. Era a passagem
para uma nova fase menos sumária e entusiasticamente profética da conversão. Frei
Francesco de Bolonha propicia-nos uma boa descrição dos métodos usados pelos íran.
ciscanos para converter os índios:
Sobre o modo que mantivemos para restringi-los à fé, nós instituímos escolas para criancas
[...] e em muitos locais temos mil, em alguns duas mil, e assim nós as ensinamos a ler, a escrever, a
cantar, a tocar, e íazemos com que estudem porque possuem grande memória e talento [...]35.
Estamos diante das primeiras notícias nãd'só do celebre colegio de Santa Cruz
de Tlatelolco, mas tambem da aplicação dessa estrategia da conquista atraves da educa.
ção36 que devia estar voltada para a Europa cristã como um todo. Justamente na decada
de 1530 foram elaboradas as primeiras estrategias de escolas dominicais da doutrina
cristã que o padre Castellino de Castello definiu "obra da reforma cristã". A ideia de
que o cristianismo devesse ser difundido por meio das escolas reservadas às crianças
daria ensejo a muitas e tais realizacões nas decadas seguintes a ponto de parecer-nos
hoje como uma das descobertas e das inovações mais importantes do seculo da Re.
forma protestante e da católica. Mas essa ideia nascia de fato da descoberta de que o
cristianismo era algo distante e alheio não só às populações da América como tambem
das europeias. A estrategia do colegio, que os jesuítas deviam guindar à forma mais
elaborada e mais rica de resultados, tinha origem no fracasso da primeira entusiástica
pregação e dos batismos em massa que, na estrategia inicial dos franciscanos, deviam
levar a uma rapidíssima cristianização do Novo Mundo, acelerando assim o cumprimento
dos tempos e a realização do unum ouil.e et unus pestor.
O conteúdo moderno do conceito de "missão" surgiu justamente desse fracasso,
que se tornou evidente com a descoberta da prática da simulacão e da dissimulação usa-
da pelas populações indígenas. Ate então, a literatura franciscana tinha disseminado na
Europa balanços triunfais. Podemos tomar por testemunho uma rara edicão italiana de
textos franciscanos publicada em Bolonha em 1532. A pequena obra inicia.se com uma
carta do chefe dos primeiros doze missionários franciscanos, frei Martin de Valência, de
12 de junho de 1531 a frei Matteo, comissário geral cismontano. "semeamos as sementes
do Evangelho nos derradeiros cantos do mundo, junto aos índios da grande Áoi"", .rar,ra
frei Martin3?. A semeadura já propiciou uma colheita imensa: mais de dez vezes cem mil,
34. AsbulasdePaulollÌ,del53T,foramreproduzidasemAmericaPonrificíaPrímisaeculíEuangeLiTationís1493.1592,
ed. Joseí Metzler, Cidade do Vaticano, 1991, l, pp. 361.366.
35. I-aLetteraMandatadalR.PadreFrateFrancescodaBo\ognadal'IndiaouerNouaSpagna,etdallzCittàdíMexico...,
em Bologna, por Bartoiomeo Bonardo et Marco Antonio Groscio, s. a., c. 3u.
36. José Maria Kobayashi, LaEducacióncomoConquísta(EmpresaFranciscanaenMéxico),México, 1985 (1. ed. 1974).
3T. "Nos...constitutiinextremismundipartibusapudlndosinmagnaAsia"(PassioGloriosiMartlrísPeatiPatris
Fratris Andree de Spoleto..., Bologna, Giovanni da Rubiera, 1532, c. A Ìr; a carta tÌaz a data "ex conventu nos-
tro Thalmanaco prope magnan civitatem Mexicanam custodiae sancti Evangelii, die 12 mensis Junii anno
{À
h.
r
551
cerca de cem mil para cada um dos doze, foram batizados; e todos os dozes, exceto ele,
aprenderam a língua, ou melhor, as línguas dos índios e estão pregando; e mais de qui.
nhentos jovens estão aprendendo a doutrina cristã, que depois pregam a seus pais. A esta
carta foi juntada outra, de írei Juan de Zumarraga, endereçada ao capítulo geral de Tôlosa
de 1532, ela tambem repleta de grandes números: centenas de milhares de batizados, qui-
nhentos templos destruídos, vinte mil imagens demoníacas destruídas. Segue a descrição
dos sacrifícios humanos: vinte mil jovens a cada ano. E agora, ao contrário, os jovens
seguem os ritos cristãos com devoção, mostram-se obedientes aos frades, castos, sinceros.
A pequena obra termina com o relato do martírio em Fez de frei Andrea de Spole-
to. É lr- relato da sede de martírio de frei Andrea, coroada por uma fogueira, após uma
serie de encontros e desencontros com o soberano, .orn oJ'iard"tls e com os maometanos,
alem que com os escravos cristãos (apos a fogueira, os escravos cristãos apoderaram-se às
escondidas de um pe de frei Andrea, relíquia que se mantém milagrosamente ainda não
corrompida). Trata-se de um opúsculo que mostra como, no emprego da propaganda
missionária através do moderno veículo da imprensa - com ediçoes de obras de poucas
páginas rapidamente divulgadas e rapidamente consumidas - misturavam-se ingredientes
antigos e novos, com o objetivo de consolar e provocar a admiração dos leitores europeus;
cartas edificantes e curiosas de fato. Nesse quesito, os franciscanos foram os primeiros a
tornar próprio esse instrumento bifronte, que ao informar os leitores europeus tambem
exercia sobre eles um desejo de edificaçao e de reforma moral, veículo da obra missionária
era o exotismo dos horizontes que se abriam, um exotismo que atraía entusiasmos dos
jovens e convencia-os a tornarem-se religiosos para partir para as Índias.
A literatura missionária produzida nessa primeira parte do século XVI - uma
literatura predominantemente mas não exclusivamente franciscana - pôs em relevo a
tãcilidade da pregação e o sucesso obtido pelos pregadores, como traços que remetiam
à obra da Providência e que demandavam explicação como sinais da realização de um
desígnio profético. A disponibilidade das populações indígenas em receber a nova reli-
gião, sua afabilidade, a absoluta falta de resistência são os lugares-comuns nos relatórios
dos religiosos europeus, independentemente de pertencerem a essa ou àquela Ordem.
Na tradicão dominicana, tais observações adquiriram o valor de argumentos a favor do
reconhecimento da plena natureza humana das populações descobertas. Mas também
entre os dominicanos não faltaram sublinhamentos apocalípticos e messiânicos: a carta
de frei Julian Garces, cuja publicação em 1537 repercutiu a voz oficial da Ordem do-
minicana quanto à questão da escravidão dos índios, citava a profecia de Elias e aludia
ao próximo fim dos tempos - pLenitudo gentium e plenitudo temporum3\.
1531"). Copia da obra, junto à Biblioteca Matciana (Misc. 1104/15), íoi-me indicada por Massimo Donattini,
a quem agradeço.
i3. Trata+e de um texto célebre, de ciatação incerta, mas cuja publicação em 1537 em Roma ocorre simultaneamente
à publicacão das bulas de Paulo III sobre a catequese dos índios americanos e sobre a ilicitude da escravidão (cf.
ânteÌiormente, neste capítulo, a nota 34). Falando do "emporio indico", como lugar onde adquirir proüsões
do ouro necessário para combater os turcos, Garcés sublinha o caráter providencial da descoberta "in termino
iam iam labentis seculi in quo íines seculorum devenerunt" (De Habilitate et üpacítate Gentium Siue Indmtm
fu nossas Índias
=,
rT-
552
Notri Mundi Nuncupati ad Fidem Chrisri Capessendd.m, etqudm Libenter Suscípíant, Romae,anno 1537, cc. n. n.).
O texto, precedido por uma dedicatória do provincial dominicano Bernardino de Minaya ao "mestre do sacro
palácio" Tommaso Badia, devia ser ÌepÌoposto sucessivamente pela literatura oficial da ordem entre as glórias
da própria atividade missionária (ele é encontrado, por exemplo, junto a uma reminiscência de Bartolomé de
las Casas, em Gio. Michele Pïò, DeLleYite degli Huomini ILLustn di san Domenico, em Bologna, por S. Bonomi,
1ó20, p. II, pp. 133.134).
39. Cf. MHSI, Docr.rrnenta Indica, ed. Josephus \íicki S. 1., vol. 1, $4A1549, Romae, 1948, pp. 7..3..Sobre o
signiíicado e sobre as origens do "quarto voto" cf. O'Malley, The Firsr lesuits, op. cit., pp. 35 e 298.301.
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q..,. Os Missionários
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551
"auxiliar almas" onde fosse necessário. Era uma escolha de empenho ativo, que - jun-
as
tamente com a renúncia (antimonástica) à recitação do breviário - caracterizava a nova
Ordem como um organismo de grande mobilidadeao. Poucos anos separam o projeto
de partir para Jerusalem da chegada a Índia de Francesco Saverio. Mas nessa mudança
de rota percebe.se um desvio carregado de consequências. As missões foram assumidas
exatamente como tarefa pela Companhia de Jesus desde o início de sua existência: a
matéria não pertencia exclusivamente à Ordem, mas a importância que os jesuítas the
atribuíram e os instrumentos que elaboraram tornaram-nos um ponto de referência
essencial para quem desejava dedicar-se a "ajudar os outros" (a palavra de ordem deles).
Não e por acaso que os dois significados complementares de "missão" - "man-
dato apostólico de pregação do Evangelho, especialm"ht" as populaçÕes não
"tttt"
cristãs" e "sede, organização de missão em terra não cristã" - encontrem-se registrados
na literatura jesuíticaa1. O objetivo das missÕes foi a conversão dos coracões, oposta à
conversão superíicial dos batismos forçados que, por toda parte, constituiu-se numa
fonte de simulações e problemas sem fim.
É n"m" contexto que a "missão" torna-se uma realidade institucional, identiíicando-
-se não só com o dever geral da predicação, mas com o lugar e com os instrumentos em
que essa predicação se dava. No final do seculo, a coisa tinha se tornado tão importante
a ponto de exigir repetidas intervenções normativas por parte dos gerais da Companhia.
No que se refere às missões internas, o geral Claudio Acquaviva interveio várias vezes
para restabelecer.lhe o caráter apostólico e para evitar sua sedentarização. Na carta aos
superiores provinciais de 12 de maio de 1590, dispôs que em cada província fossem
escolhidos doze missionários, para serem enviados de dois em dois aos vilarejos e lugares
menos habitados: voltando ao assunto em 1599, tornou a chamar a atenção dos jesuítas,
mais uma vez, para o modelo apostólico de uma pregação itinerante, proibindo que a
De onde vinha essa nova ideia de missãol E, principalmente, qual foi sua banca de
avaliação decisiva? O cristianismo conquistador, marcado pela vontade de unificar o
mundo, de criar "um único rebanho comandado sob um único pastor", eliminando
de um modo ou de outro dissensões e diferenças, sofrera uma longa maturação no
40. A interpretação do famoso "quarto voto" como ruptura com a tradiçáo monástica é de O'Malley, The First
lesuits, oP. cit., pp. 298-301.
No Dizionario M. Cortelazzo e P. Zolli (vol. 3, Bologna, 1983, pp. 767-763)
EtimoLoglco de\Ia Lingua kaLiana de
remete-se, para as duas acepções reportadas anteriormente, a G. P. Maffei e a D. Bartoli, respectivamente.
12. Sobre as duas instruções (publicadas em Epístolae Praepositorum Generalíum ad Patrcs et Frdtres Societatis Ìesr. t. l,
Rollarii, 1909, pp. 214.27 5) chama a atenção R. Rusconi o qual lembra que Acquaviva tinha sido provincial
em Nápoles e tivesse adquirido uma larga experiência sobte os problemas dos campos do sul ("Gli Ordini
Religiosi Maschili dalla Controriíorma alle Soppressioni Settecentescher Cultura, Predicazione, Missioni", em
CLero e Società nell'kaLia Moderna, org. de Mano Rosa, Bari, 1997, pp.244'745).
Fï
554
43. Falaae em "conquista espiritual", talvez pela primeira vez num documento papal, em uma proposta íeita por
Gregório XIII a Felipe Il em 1579, no sentido de instituir nunciaturas permanentes nas "Índias Ocidentais":
cí. America Pontíf ícia, tr, 384, pp. 1143-114 6.
44. O'Malley destaca apropriadamente esse aspecto, The First lesuits, op. cit., p. 5.
45. Carta de Pole de 22 de dezembro de 1541 (orig. em ARSI, Epp. Ext. 7.1,3).
46. Sobre esse episódio cf. uma ampla iníormação bibliográíica em Firpo e Marcatto (orgs.), il Process o Inquisitoiale
del" Cardinal Gioqtanni Morone, op. cir., Ì, nota 238, pp. 349.351.
Os Missionários
r
555
atenta vigilância douffinária e uma verdadeira ação policial contra os círculos suspeitos.
Era um duplo registro que se mantinha bem separado até nas cartas: basta ler as que
os padres jesuítas Domenech e Salmeron dirigiram a lnácio, de Bolonha, alguns anos
depois, para se ter a confirmação disso. Naquelas que podiam ser mostradas a todos os
amigos da Companhia, relatavam-se os resultados milagrosos da devocão: centenas de
fieis - "pessoas notáveis" da sociedade citadina - levados a comungar todos os primeiros
domingos do mês, um núcleo mais restrito de 25 ou trinta - "nobres em sua maiotia" -
convencidos a se comungarem todos os domingos e com ainda maior frequênciaa?. Nas
reservadas ao geral, contava-se que em confissão soubera-se diversas coisas a respeito dos
círculos hereticos da cidade. Havia hereges arrependidos, ou assustados com a notícia
das execuções romanas, que aguardavam a páscoa p"r" r"i.- absolvidos secretamente
de suas culpas - mesmo porque Salmeron tinha poder para isso48.
Os dois aspectos da luta contra a heresia e do despertar devoto eram complemen
tares e inseparáveis; baseavam-se na coníissão e na atuação das congregações de devotos,
incitados à caça de hereges por seus padres espidtuais4e. Homens da Igreja recorriam aos
jesuítas para incumbilos de uma obra de controle mas tambem de relançamento da vida
religiosa. Os dois aspectos encontram-se também na obra de Landini. Como foi visto,
Silvestro Landini tornou.se missicnário anteLitteram no decorrer de uma colaboração com
os bispos para uma visita das igrejas da região modenense e da Córsega. Târefas análogas,
anteriores e posteriores a ele, continuaram a chover sobre os membros da Companhia.
Não se contam as cartas dirigidas a lnácio e a seus sucessores pedindo o envio de algum
jesuíta para ser associado ao bispo em visita ou, até mesmo, para substituí-lo nessa tarefa5o.
Pedia.se aos jesuítas aquilo que não se conseguia que o clero das dioceses fizesse: sermões
e confissões, principalmente, porém, mais geralmente, uma intervencão capaz de {azer
reviver aquela nova imagem evangelica que, com frequência, era definida como a "vinha
do Senhor". A imagem era das mais usadas entre os jesuítas, que a preferiram entre todas
as metáforas da lgreja. Dessa vinha deviam ser expulsos os javalis hereges; mas era preciso
tambem cultiva-la e colher bons frutos. Era uma exigência que as incertezas doutrinárias
47. Carta de Gitolamo Domenech, 24 jul. 1546, em Lítterae Quadnmestres,I, pp. 7-11.
48. "Yo e entendido en la absolución de algunas personas occultas, que estavan en herejías ó leyan libros luthe-
rânos, y paÍa estâ pascua pienso que vendran algunos; maxime que acá se a sabido como van castigando en
Roma algunos poÌ suspectos de heresi, los quales tenían aquí muchos compagneros, y temen estos de ser
descubiertos de los de allá, y assí 1es cumple con tiempo absolverse" (carta de Salmerón a Inácio, de Bologna,
l7 dez. 1547, emEpistolne P. ALphonsi Salmeronis, I, Matriti, 1906, p. 63). Segundo o testemunho de um deles,
Giovan Battista Scotti, íoram os legados do Concí1io que encarregaram Salmerón de dar-lhes "a absolvição e
fazer a abjuração" (Firpo e Marcatto, Il Processo In4uísitonaLe dclCardinalGiouanniMorone, op. cit., II, p. 366).
49. Giovan Battista Scotti, após sua conversão, "comecou a querer reduzir todos aqueies da congregação em Santa
Lucia... E todos aqueles que não queriam segui-lo eram acusados por ele ao inquisidor" (deposição de Dome-
nico Rocca, fev. 1560, em Fitpo e Marcatto, Il Processo In4uisitonole deLCardinaLGiovanniMorone, op. cír., vol. lV,
556
da epoca da Reforma, mas tambem as vicissitudes políticas e as rupturas civis fizeram ouvir
intensamente na ltália do seculo XVI. A noção de missão, assim como foi definida na sétima
parte das "Constituições" da Companhia, compreendia as tarefas a serem desenvolvidas
entre os infieis, entre os hereges ou entre os catolicos. O "operário da vinha do Senhor"
que tivesse sido escolhido para uma missão a ser cumprida em meio ao povo devia ajudar
o proximo seja atuando de modo itinerante, seja residindo de modo estável em lugares
determinados. Concretamente, tratava-se de cumprir a tareía cuja responsabilidade oficial
era de bispos e inquisidores. E isso ajuda-nos a compreendeÍ poÍque, com frequência, os
jesuítas enconffavam.se cumprindo simultaneamente tarefas de natureza inquisitorial e
atividades de cunho pastoral.
A "missão" deles, antes de se tornar atividadÈ autônoma da Ordem, foi uma pre.
sença de apoio às visitas das autoridades eclesiásticas: visitas episcopais e inquisitoriais.
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Foram tantas as requisições de intervenção desse tipo que a Companhia solicitou e
'l ! obteve de Paulo III a declaração formal de que os jesuítas não eram obrigados a exercer
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ï o ofício de visitadores ou de inquisidores5l. Cada missão desse tipo devia passar pelo
filtro da autoridade do geral da Companhia. Era um modo de fazer frente a um excesso
de pedidos. Por volta de meados do seculo, na ltália, a emergência da luta contra a
dissensão doutrinária e à difusão dos modos "tridentinos" e pastorais de reforma leva-
ram os jesuítas a empenhar.se ativamente justo nesses dois tipos de ofício. Na sequên-
cia das visitas inquisitoriais e das verdadeiras campanhas militares entre os valdenses
da Calábria, das Apúlias e do Piemonte, como tambem entre os rnoriscos espanhois5z,
confortavam os condenados à morte, ensinavam a doutrina cristã aos convertidos,
preparando-os para os sacramentos; na sequência da visita dos bispos, ou preparando
a chegada deles - ou substituindo-os - percorriam as igrejas do campo e da montanha
com uma estrategia que pode ser exposta com as próprias palavras de Landini:
Nesses sete dias visitei cerca de quarenta terras, entre Módena e Bolonha, pregando todos
os dias, às vezes cinco, às vezes seis e às vezes sete vezes [...] Formamos uma companhia do Corpus
Domini, que se comungam todos os domingos [...] Escolhemos dois homens dos mais circunspectos,
que devem acertar cada briga, discórdia, inimizade e diíerença [...] Escolhemos o mesmo de mulheres,
para cuidar dos doentes. A primeira coisa, que se confessem e comunguems3.
51. No documento papal, de 18 de outubro de 1549, especifica-se que os jesuítas não eram obrigados a exerceÍ
"correctionis, seu visitationis, vel inquisitionis oííicium" (retomo a citação de Beati Petri Canisii, Epistultte et
Acra, vo1. lv, 1563.1565, Friburgi Brisgoviae, 1905, p. 255).
57 Cf. Francisco de Borjia de Medina S. 1., 'Lâ Compaflía de Jesús y la Minoría Morisca (1545-1614\", em AHSI,
L\,'II, 1988, n. 113, pp. 3-136; em part. pp. 55 e ss.
53. Carta a Inácio, de Módena, 16 maio 1550, op. cit. nota 10.
Os Missionários
r
557
54. Carta de Gio. Paolo Oliva, de Perugia, 23 maio 1561, em MHSI, Litterae Quaüimesrres, VÌI, 1561.1562, Roma,
1932, p.347.
)) O trabalho de pregação de Landini íoi requisitado nesse mesmo período pelo cardeal J. Alvarez de Toledo por
conta do Santo Ofício, nos territórios de Femara, Lucca e Florença proprer haeresis ínfectíonem (Juan de Polanco,
Vita Ignatii l-oiolae et rerum Societatis Jesu Hístoria, t. il, 1550.1552, Matriti, 1894, p. 23).
56. Iden, p.457.
57. Cf. Ulderico Parente, Alíonso Salmerón a Napoli (1551.1585), em Campania Sacra, )C{, 1989, pp. 1451; em
part. p. 23.
58 Cti.Idem, "Nicolo Bobadilla e gli Esordi della Compagnia di Gesü in Calabria", em I Gesuiti e ltt CaktÁq anais
do congresso organizado por Vincenzo Sibilio S. I., Reggio Calabria, 1992, pp. 19-56; em part. p. 31.
As nossas Índias
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À
558
havia tambem medidas que tinham por alvo práticas culilrais muito antigas, como o ,,1
59. Carta a Inácio, de Módena, 16 maio 1550,EpistolaeMixrae, op. cir., II, p. 700.
60. "Os devotos dessa terra condoíam-se muito de que monsenhor me enúasse em visita e de que os deixasse",
escrevia Landini (;drm, p. 701).
ó1. "Que não sejam levados os coÍpos mortos por aqueles que fazem esses trabalhos como infiéis, dilacerando-se
as faces, os cabelos e as carnes, mas que oscorpos mortos sejam deixados na casa deles, para que sintam o
íedor da iníidelidade de que são portadores; esse pranto desesperado é sinal de que não acreditam em nossa
ressurreição", (O texto do admonitório íoi publicado em apêndice a Polanco,Vi ta lgnatií l-oiotne, op. cir., vol. IV,
PP. 705'708).
62. Beati Petri Canisii Societatis lesu, Epistulae et Acta, ed. Otto Braunsberger, I, 1547.7556, Friburgi Brisgoviae,
1896, pp. 315-319 e 638-639 e pdssim; vol. II, Friburgi Brisgoviae, 1898, pp. 644.645. CL p. 497, nota 17.
Os Missionários
í
559
uso desse conhecimento podia ter efeitos destrutivos sobre a confiança dos penitentes.
Assim, quando as autoridades eclesiásticas ameaçavam fazer uso dessas informações por
meio de processos públicos e clamorosos, os jesuítas sentiam-se incomodados e - como
fez Nadal em 1550 - podiam recusar-se a colaborar63. Mas foi graças à colaboracão deles
que a Inquisição espanhola chegou à descoberta dos hereges de Valladolid e à dura
repressão de 15596a.
O caráter positivo, de edificaçao e de educação, da intervenção dos jesuítas, sua
busca da confiança e da confidência dos povos visitados - mas tambem o progressivo
atenuar.se da urgência da luta contra os hereges na Igreja italiana - fizeram com que
a atuação deles, com o passar dos anos, se aproximasse cada vez mais da dimensão
pastoral da visita diocesana. Os bispos que, nos u.toi do Concílio de Trento, eram
animados por desejos de reíorma ou, de todo modo, sentiam-se obrigados a fazer algo
por suas dioceses, recorreram frequentemente à Companhia de Jesus. Houve por esse
motivo frequentes envios de jesuítas com função vicária de visitadores; e a atuacão deles
íoi requisitada para pregar e catequisar a população, como preparacão ou em seguida
a visitas pastorais. A tareía deles, nessa íunção, também não era diferente da que de.
sempenhavam em apoio à Inquisição: a urgência do controle doutrinário e percebida
nas prestações de contas que, ao final das visitas, eram enviadas ao geral, onde - entre
outros resultados - recordava-se tambem a eventual descoberta de hereges65. Foi-se
criando assim um entrelaçamento de métodos e de conteúdos entre rnissão popular de
um lado e visita episcopal de outro, enquanto diminuíam as semelhanças com a obra
de policia da fé desenvolvida pela Inquisição. A crônica italiana registra desde meados
do século XVI numerosos casos de convites de bispos a jesuítas para tarefas de cura de
almas. Para recordar alguns, em l54l , o arcebispo de Sassari pediu a Inácio que the
mandasse quatro jesuítas para pregar e ensinar casos de consciência a seu clero66; em
Bolonha, o jesuíta Francesco Palmio procedeu em primeira pessoa à visita pastoral de
1554.1555 em nome do bispo Giovanni Campeggi e depois esteve constantemente ao
lado do cardeal Paleotti, primeiro como visitador depois como conselheiro na organi-
zação conjunta do governo da diocese6?; o bispo de Ascoli, em 1575, solicitou que dois
padres "visitassem sua diocese"68. O próprio ritual da recepção solene era organizado
63. O episódio é lembrado por O'Malley, Thz. First Jesuits, op. cít., p.313.
64. Cí. José Luis Gonzalez Novalín, "La Inquisición y la Compaãía de Jesús", em Anthologica Annaa, )CO(VII, 1990,
pp. 11.56.
65. Na carta quadrimestral de Bolonha, Francesco Bordon resumiu os resultados da visita de Palmio, dizendo
terem sido encontrados diversos blasíemos, jogadores, adúlteros, hereges e pestes semelhantes (carta de 14 de
janeiro de 1556, em MHSI, Litterae Quadnmestres, vol. tV, pp. 62-63).
66 Turtas, Missioni Popolari in Sardngna, op. cít., p. 37 5.
67 Sobre as visitas de Palmio cí. L.Yezzini, "La Diocesi di Bologna nel 1555 Secondo le Visite Pastorali", em
Memone deIL'Accademia de\L'Istituto di Bolngna, aula de ciências morais, s. IV, vol. 6,1943-1944, pp. 91-136; Prodi,
IL CardinaLe Gabielc Paleotti, op. cit., ad nomen. Idem, vol.11, pp.37-34, um longo relatório de Palmio ao geral
Borgia sobre a visita da região montanhosa da diocese, dominada, como nota Prodi, por "estupor e admiração"
pelo íato de visita ter sido íeita pessoalmente pelo bispo.
a
68. Da carra ânua do colégio de Loreto, 15 jan. 1576(ARSI, Rom. 126 b. I, c. 3t).
As nossas indias
\
À.
Í:":
560
lugar por lugar como por ocasião da visita. Em 1583, os jesuítas convocados pelo bispo
de Camerino para visitar sua diocese, ao chegarem aos lugares habitados eram acolhidos
da seguinte maneira: "os sinos eram tocados, e todo o castelo recebia ordens de não
jogar e dedicar.se à doutrina e às coisas espirituais"6e.
A
coisa não deixou de causar problemas, de fato, caminhava.se em direcão à
suplência por parte de uma ordem religiosa num gênero de tarefas que perrenciam a
outras autoridades eclesiásticas, o bispo, o inquisidor, seus vigários. Por outro lado, os
instrumentos de que dispunha a Companhia tornavam-na particularmente apta a rea.
lizar os objetivos para os quais se voltava então a visita pastoral, não apenas um ato de
simples conffole administrativo, mas instrumento de uma verdadeira obra de conquista
religiosa: confessores experientes detentores de amplos poderes para absolver pecados
de qualquer tipo7o, mestres na arte de guiar as consciências e de estimular a devoção
com a frequência das comunhões, eles eram, além disso, pregadores de grande eficácia.
O princípio guia do "ajudar o próximo", que os diferenciava das demais ordens e con.
gregações, levava-os a se ocuparem da paciíicacão de conflitos familiares e litígios entre
facções: a instituição de congregaçoes de devotos organizadas de acordo com os ofícios ou ,ll
funções sociais permitia-lhes agregar o mundo dos leigos e manter vivas certas iniciativas
após o termino da visita, Tudo isso criou problemas. Houve resistências e conírontos
com os setores da população que resistiam aos novos modelos de vida religiosa - os
dissidentes e os hereges, naturalmente; as comunidades judaicas; mas tambem outros
grupos e círculos de orientação diferentes. Houve, principalmente, reacÕes de rejeicão
por parte de outras autoridades eclesiásticas que não toleravam os recem.chegados.
Dos problemas surgidos, alguns vêm à tona a partir dos papeis da Companhla de
Jesus, como sempre muito atenta a governar os comportamentos de seus membros e a
evitar qualquer conflito com as autoridades. Em relação à Inquisição, tomou.se uma
decisão muito rápida de manter formalmente distância, de modo a não suscitar as
suspeitas e a desconfiança dos penitentes. Quando em Roma soube-se que os jesuítas
em Goa colaboravam com a Inquisição local, o geralfez saber ao padre provincial que
a decisão da Companhia tinha sido a de não aceitar ligações com o Santo Ofício?l. Em
relação aos bispos e a seus vigários, quando os conflitos surgiam, era necessário evitar
alimentá-los e retirar-se com cautela. Houve jesuítas obrigados a abandonarem as visitas
devido à resistência de vigários desconfiados ou devido às reacões de bispos que não
concordavam com as iniciativas deles72. Chegou-se assim à decisão de separar nitida-
69. Idem,c.3l3u.
70. Antes de enviá-lo à Córsega, Polanco escÍeveu a Landini a propósito da faculdade extraordinária que lhe era
concedidaparaabsolverospenitentes(Polanco,VíralgnatiíLoiolae,op.cit.,t. I,Matriti, 1894,p.394).
7 1. "t...1 Que en toda Europa excepto en Portugal hemos procurado que los nuestros no sean consultores del Santo
Officio" (carta de Claudio Acquaviva, s. d. mas de dezembro de 1583, publicada em MHSI, Documenra Indica,
vol. Xll, org. de P. J. Wicki, Romae, 1972, p. 874).
72. Além do caso ciamoroso de Salmerón em Módena, um choque entre o vigário da diocese genovesa e o jesuíta
Emmanuel Montemayor, de 1554, é coníirmado por uma carta de Polanco a Laínez de 6 de dezembro daquele
ano (Polanco, Víta lgnatií Loiolae, op. cir., t. V, 1555, Matriti, 1897, pp. 111-1 12).
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Os Missionários
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r
561
mente a ação dos jesuítas da visita pastoral, e aqui as palavras ofereceram a solução. A
ação dos jesuítas íoi chamada "missão" e isso permitiu diferenciá-la da visita pastoral.
No final do seculo XVI, o processo estava concluído. As instruções, dessa época em
diante, advertiram claramente que as duas coisas eram diferentes e que em todo caso
missão e visita pastoral não deviam coincidir. Quem permanecia fiel aos usos antigos
teve de ser chamado à ordem. Foi o que aconteceu a um jesuíta experiente e de grande
capacidade, o mantuano Antonio Possevino.
Possevino era um perito nos dois aspectos desse modo de trabalhar na vinha do
Senhor que era chamado de modo variado mas que consistia na extirpacão da heresia
e na plantação de boa doutrina. Seus registros de visitador representam ao vivo o mo-
delo de visita como oportunidade para iniciar um proceôso de conversão religiosa e de
aculturação. Possevino foi convocado pelo geral da Companhia, Claudio Acquaviva,
porque - ignorando a diferença entre "visita" e "missão" - teimava em chamar de
"visitas" suas missões:
73. Carta de Acquaviva a Possevino, Padova, 5 out. 1596, em ARSI, kal. 71, c.37rv.
74. "Ad excitandam in populis pietatem" (cf. F. Lucii Ferraris..., PÍompta BibLiotheca Canoníca, Ju"idica, Moralís,
Theologica, Venetiis, apud Gasparem Storti, 1787.1794, t. VI, p. 64 (verbete missio) o verbete t,isirado encontÌa*e
no t. IX, p. 127).
562
Os Missionários
r
56i
77. Memorial da Companhia de Jesus "a S. Santidade [Gregório XIll] para ajudar o cristianismo", s.d. (nnsl, Opp.
NN. 314, c. 76r). O griío é meu.
78. Cí. J. Metzler, "Wegbereiter und Vorlâuíer der Kongregation", em S. Congregario üPropl,gandr, Fide, 71, Romq/
Freiburg/Viena, 1971, pp. 46.52;Lajos Pásztor, "1 Francescani nell'America Latina e la Curia romana", em
Diffusione deLFrancescanesimo ne\Ie Amenche, Anais do X Congresso Internazionale della Società di Studi Fran-
cescani, Assis, 1984, pp.57.86.
As nossas indias
s64
Valades nascera e crescera nas Índias ocidentais que deviam ser evangelizadas. Por
isso, longe de ser um representante de uma concepção metropolitana e centralizada
da aculturacão, ele levava a Roma a voz genuína desses neóíitos americanos que preen-
chiam com seu entusiasmo de convertidos as estruturas e os instrumentos elaborados
pelo cristianismo europeu. Tendo ingressado na ordem franciscana, experimentara
um metodo de pregação aos índios baseado no uso das imagens como instrumento
para superar barreiras linguísticas. Como outro neófito, o judeu egípcio Gian Battista
Eliano (ou Romano), Valades era tão entusiasmado pela pregação por meio das ima.
gens a ponto de elaborar com base na experiência americana um verdadeiro manual
para pregadores europeus: eram as imagens que podiam propiciar o instrumento de
comunicacão com uma população de analfabetos du de fal"ntes de outra língua?e. Sobre
as culturas originárias dos dois neófitos haviam sido impressas as características das
ordens às quais pertenceram: se o jesuíta Eliano propôs o livro como instrumento de
conquista religiosa, o franciscano Valadés propôs modelos de sermão apaixonado, cantos
devotos, momentos de exame de consciência coletivo, com os frades que enumeravam
os pecados e os índios que faziam rapidamente o cálculo de suas culpas debulhando
grãos de milho ou utilizando as imagens distribuídas e comentadas pelos frades8o. A
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fl
obra do jesuíta Gian Battista Romano (ou Eliano), tambem neófito de proveniência i
extraeuropeia, como Valades, mas judeu e egípcio, portanto com horizontes geográficos ü
79 Rhttorica Christiana ad Concionandí et Orandi usum accommodata utriusque facultatis exempLis suo Loco ínsertís, qu,ae
quidem, exlndorum maxíme de\Íomptl. sunt historiis..., Perusiae, apud Petrum Iacobum Petrutium, 1579. Provavel.
mente "mestizo", certamente em condiçôes de dominar várias línguas e culturas indígenas, Valadés foi educado
pelos íranciscanos e toÍnou-se membro dessa ordem. De passagem na Espanha, em 1571, íoi editor do mais
importante manual franciscano de preparação dos missionáúos, o hineranum CathoLicum de ftei Juan Focher
(Sevi1ha, 1574). Transferido para Roma, exerceu ali as íunções de procurador-geral da ordem. Uma revisão dos
dados biográficos, poucos e controversos, relativos a Valadés e novas pesquisas sobre o periodo italiano de sua
vida e sobte seus textos inéditos (por exemplo, das Ásserciones Catholicae e uma colaboração à comissão sobre
as Centuríae Magdeburgenses) enconffam-se no ensaio de Isaac Vazquez Janeiro oFM, "Fray Diego de Valadés.
Nueva aproximación a su biograíía", em Los Franciscanos en elNuevoMundo (siclo xvt), Madrid, 1988, pp. 843.
-871: uma anáÌise da obra principal íoi proposta por Pauline MoííittWatts, "Hieroglyphs of Conversion: Alien
Discourses in Diego Valadés's Rhetorica Chnstiana", em Memorie Domenícane, n. s., )C{lI, 1991, pp. 405433.
80. "[...] Praelegirur ilhis modus confitendi iuxta ordinem praeceptorum decalogi, quod arrectis auribus ausculhnt
et intet auscultandum granis tritici illius indici vei calculis peccata eorumque iterationes et circumstantias notant
aut figuras et imagines suas exerunt atque eo modo bene, eiare et fade confitentur" (Rhptonca Clmstiana, p.21$.
81. Trata-se da Dottrina Chnstíana nella. quale si Contengono Ií PnncipaLi Misten della nostrd fedp. rappresentati configue
per ìnstruttione de gl'ídíotí, et di quellí che non sanno lcgere, em Roma, tipografia de Vincenzo Accolti em Borgo,
1587. Para uma análise do contexto em que íoi publicado, veja-se do autor deste volume "lntorno ad un Cate.
chismo Figurato de1 Tardo 500", Quad.erní di Palazzo Te, n. 5,jan..jun. 1985, pp. 45.53; e Genoveffa Palumbo,
SpecuLum Peccatorum. Frammenti di Stona nello Specchio delle Immagtni tra Cínque e Seícento, Napoli, 1990.
Os Missionários
3.È
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t6;
era de todo modo um poder que não podia sair do território espanhol. Por isso, o projeto
romano de Valades acarretou-lhe a hostilidade espanhola. Por meio de uma seca ordem
de Felipe II a seu embaixador em Roma, com data de 10 de maio de 1577, Valadés
foi destituído pelo procurador da ordem franciscanasz. Somente com a derrocada das
ambições imperiais da Espanha podia ser realizado o plano de centralizar em Roma
a autoridade de controle das missões. Mas, enquanto isso, o íavor papal em relação
à Companhia de Jesus suscitava reações de ciúme e de hostilidade não só por parte
dos estados coloniais mas tambem por parte das ordens pregadoras. O monopólio das
missões no Japão concedido aos jesuítas por Gregorio XIII e confirmado por Sixto V
deixou uma marca indelével na memória dos íranciscanoss3.
Todo projeto de concentraÍ em Roma a formação ì o .o.tttol. do pessoal mis-
sionário esbarrava no obstáculo espanhol. E tratou-se de projetos que começaram bem
antes do surgimento oficial da Congregação de propaganda fide. Foi justamente sob a
ótica romana que se realizou a fusão dos problemas missionários extraeuropeus com
os das "Índias internas". Prova disso encontra-se no memorial que o padre de Lucca
Giovanni Leonardi preparou para Paulo V em 1608, em conjunto com o jesuíta Martin
Je Funes8a. Giovanni Leonardi vinha da experiência das duras lutas religiosas de Lucca
e da colaboração com a Inquisieão na época em que se deu a emigracão forçada dos cal-
vinistas. Agora os tempos tinham mudado. O plano de Leonardi consistia na criação de
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seminários como local de formação de um clero secular destinado à obra de intervenção
i
nas necessidades urgentes de todas as populações em perigo. A imagem evangélica da
.,1,slha desgarrada e das 99 em segurança tinha sido revirada, o clero devia deixar em
segurança a única ovelha sob as abóbadas da igreja e acorrer em auxílio das outras 99
que não tinham igrejas ou clero a seu alcance. Ia-se desde as populações das Índias aos
hereges europeus, das minorias de judeus até as populações das zonas montanhosas
Jos países católicos. Era um projeto que tendia a substituir a obra itinerante das ordens
:eligiosas pela presença estável de um clero paroquial bem preparado. A coisa não era
:êita para depender da aprovação das ordens e, em particular, da Companhia de Jesus,
.r jesuíta Martin de Funes, renegado por seu geral, rompeu com a Companhia. Mas o
projeto seguia o modelo tridentino da ordenada gestão paroquial: nesse caminho e a
parrir da iniciativa de Leonardi devia nascer o colegio urbaniano de Propaganda Fide.
Era o sinal de tempos novos. A realização da Congregação de Propaganda Fíde e do
Colegio Urbaniano para formar os missionários devia realizar-se sob o impulso da compen
,acão católica e da guerra de reconquista religiosa europeia dos trinta anos: por isso, com
Cí. Isaac Vazquez Janeiro, Fral Diego deValad&,0p. cit., pp. 861'862.
Cf. Bernward H. Willeke oFM, 'A Memorandum oí Pedro Baptista Porres Tamayo OFM on the State of the
Missions in Japan (1625)" , ,Nchitum Franciscanum Histoncum, Doo(Vl, 1993, pp. 81-98.
i.|' Publicado, a partir do original conservado no Archivio dell'Ordine della Madre di Dio, porVittorio Pascucci,
Giouanni Izonardi. lJna Scelta Radicak. per iL Vangelo, Lucca 1991, pp. 701-244. Cí. sobre Leonardi o esrudo
de Giuseppe Piras, La CongregaTione e íl Col\eglo dí Propaganü Fide di l.B. Viues, G. Leonardi e Martín de Funes,
Roma, 1976. Sobre o início da Congregação , cl. Sacrae Congregationis de Propaganda Fíd.e Memona Rerum, ed. J.
As nossas Índias
í.-"'
566
Abarca o supremo ofício do papa tudo aquilo que à saúde das almas pode pertencer, mas
nada em maior medida do que a cura da fé católica, sendo duas em torno dessa as obras necessárias,
uma de conservála entre os fieis, obrigando-os ate sob penas a mantê-la com íirmeza, a ouffa de
disseminála e propagá-la entre os infiéis; por isso duas maneiras de proceder foram ainda tomadas
pela santa lgreja, uma judidal, motiuo pelo qual acha-se instituído o ofício da Santa Inquisiçao, a outra moral,
oumelhor, apostóLícd, motivo pelo qual as missões dos operários entre os povos, que mais necessitam,
são dirigidas continuamente; e por isso foram instituídos vários seminários, e colégios, para ensinar
aqueles que serão enviados e para dar sustentação aos novos convertidos8?.
85. Cf. Georg Denziet,DíePropagandakongregation inRom and die Krchr. ín Deutschl"and nach dem WestfiiLischcn Frieden,
Paderbom, 1969.
86. Cf. o testemunho relativo ao jesuíta padre Jacob Rem mencionado pelo autor deste volume em "Otras Indias".
Missionari della Controriforma tra Contadini e Selvaggi", em Scienze, Credcnze OccuLte, LiveLLi di CuLana,Fírenze,
1982, pp. 705.734; em part. p. 218.
87. Carta circular da S. Congregação aos Núncios apostólicos, 15 jan.1622, publicada em Sacrae Congregationís
d,e Propagand,a Fide Memona Rerum, org. de J. Metzler, vol. lll/2, Roma/Freiburg/Viena, 1976, pp. 656ó58. O
grifo é meu.
Os Missionários
í
567
mercial fechado", no qual devia ser severamente proibido aos hereges morar ou deter.se
estavelmente na península italiana e nas ilhas adjacentesss. Tratava.se de uma medida
que era continuamente contrariada devido a exigências políticas, comerciais e militares.
A "via apostólica" das missões estava baseada em exigências reais e inaugurava uma
estratégia diferente. E depois, a referência aos "povos que mais necessitam" deixava
aberta e livre a escolha das terras a serem abertas às "missões", que podiam ser - e que
de fato eram, à epoca - até as terras da Itália católica.
A Guerra dos Tiinta Anos não trouxe a solução ardentemente esperada pela parte
católica. A congregacão de propagandafide, ao apresentar o "relatório do estado da religiao
católica" ao papa, teve de admitir que a maior parte da EuÌopa ainda estava, no tardio
século XVII, nas mãos de "príncipes infieis e hereges". Nos próprios países católicos, o rigor
da Inquisição não era suficiente para impedir a circulacão de hereges e infiéis: estavam eles
em Madri, "em grande quantidade", mas estavam sobretudo em Roma: aliás, "em nenhum
lugar sói ser maior o número de hereges e cismáticos do que em Roma, onde não so se
encontram de passagem, mas ali se detêm por meses e anos"8e. A conclusão a que chegava
o relatório, porém, não era a de que a ação inquisitorial devia ser reforçada, pelo contrí
rio. Do "concurso de forasteiros ainda que hereges e infieis... pode.se tirar grande bem e
vantagem para a fé católica": esses turistas hereges, quando voltavam à pátria, tendiam a
manter boas relacões com os missionários católicos e os protegiam das perseguicões. Era
preciso, portanto, tratílos com gentileza, principalmente se de família nobre, controlan-
do o pessoal italiano de serviço (para evitar que se contaminasse com a peste herética).
Quanto aos estrangeiros, não se devia empregar contra eles a dureza da Inquisição, mas
a astúcia e a ternura dos missionários: a estratégia sugerida era de colocar ao lado deles
"homens doutos e prudentes que, sob o pretexto de erudicÕes ou outro, insinuando.se
em suas consciências e íamiliaridades, tentam instruí.los na virtude católica"eo.
Por isso, até Roma comecara afazer parte das "Índias internas"; ou melhor, era o
espetáculo de Roma que, de jubileu a jubileu, tinha revelado sua extraordinária capacidade
de affacão sobre hereges de boa cultura e de alto escalãoel. Os hereges, temidos durante
muito tempo a ponto de fazer pensar em um fechamento total das fronteiras e em um
bloqueio absoluto da emigracão, tinham se tornado pessoas a serem conquistadas com
astúcia e ternura, usando a "erudicão", o fascínio da cultura e da arte romana - em suma,
recorrendo ao metodo de adaptação do qual a Companhia tinha feito sua bandeira. A
experiência ensinara que mais que o apelo evangelico do missionário valia o fascínio da
religião romana, com o fausto e a solenidade de seus ritos.
s8. Cí. Paolo Simoncelli, "Clemente vlll e Alcuni Prowedimeni del Sant'Uífizio (De haLis Habítantíbtn ín partibus
Haereticorum)" , Critica Storica,xlil, 1976, pp. 779-172. Amedida "contra haerericos in locis ltaliae, vel insularum
adiacentium quovis praetextu commorantes" foi reforçada justamente pela bula de 2 de julho de 1677
Qvlagnum
Bullaríum Romanum a Beato bone Magno usque ad. S. D. N. Benedictum xlil, I.III, Luxemburgo 1727 p. 4t7).
, ,
S9 Rekttione deLLo Stato della Religione Caro\íca a Innocenzo XI, manuscrito em BAV, Vat. Lat. 12071, cc.3ru, ó0r, 6lt.
9rì Id.em, c.62r.
91, Cí. Gerard hbrot,(Jnhstntment polcmíque.l)image de Rome au temps do Schisme: 1534-1667,Lil1e,/Paris, 1978, p. 1ó3.
s68
92. "l travelled and laboured in the work of the Gospel", escreveu em sua autobiografia john Burnyeat (The Trurh
Exahed ín the !/ritings of that Eminent and FaithfuL Servant of Chnst lohn Brunleat, London, Thomas Northcon,
1691, p. l1)t seu objetivo era "the Reíormation oí the conversation from debauchery, wickedness, unrighteou.
sness, and witchcraft" (p. 33).
93 As citacões foram extraídas do liwo de Stefano Víllaní,Tremolanti e Papísti. Missíoni quacchere neLL'ItaIía del,'600.
Roma, 1996. Agradeço o autor poÌ ter-me permitido a leitura do texto.
94 Idem, p. 135.
Os Missionários
r
569
E difícil dizer de onde provinha para os jesuítas essa atenção particular em relação
,J
i. Carta a Inácio, de Módena, 7 out. 1545, em Documenta Indica, l, pp. 13 e ss.; sobre Antonio Criminali cf.
G. Schurhammer, S. 1., "Leben and Brieíe Antonio Criminali's des Erstlingsmârtirer der Gesellschaft Jesu",
Archiq)um Franciscanum Histoncum, V, 1936, pp. 731.267.
l. lgnaciodelasCasas(1550-1608),cujaspropostaseexperiênciasaesserespeitoforamestudadasporF.deBorjia
de Medina, Ln Compaíía de lesus l IaMinoríaMonsca, op. cit., p. 17.
Ji. CfrAlbettSicroflLosEstatutosdeLimpieTadeSangre.ControuersiasentrelosSiglosXVyXVÌI,Madrid, 19?9,
p.347.
èi. Otexto,inédito,éindicadoporO'Malley,Thc.FirstJesuits,op.cit.,p.T6,queolêcomoretomadadeum
tema tradicional e não o liga à condicão de "cristiano nuevo" de Laínez.
As nossas Indias
570
99. Em idem, p.10, nota-se todavia que não íoi acrescentada prova disso.
100. Cí. John Patrick Donnelly, 'Antonio Possevino and Jesuits of Jewish Ancestry", AHSI, LV, 1986, pp. 3-31.
101. O'Malley, The First Jesuits, op. cit., pp. 188-192, registra as singularidades da política da Companhia em
relação a judeus e a "cristãos-novos",
Os Missionários
\
r
571
rístico da Companhia de "converter as alunas" - fez saber ao papa Clemente VIII que
os moriscos espanhois tinham sido batizados a força e não convertidosl02.
A questão das conversões tinha um importante desdobramento na controvérsia
confessional. No contexto da luta entre Igreja romana e mundo da Reforrna, o impulso
paÍa a conquista religiosa e para a eliminação das minorias de diferentes - fenômeno
anterior à fratura religiosa europeia - assumia um significado decisivo: tratava.se não
somente de decidir quem ganhava e quem perdia, mas tambem de esmagar o adver-
sário com a evidência dos números. A "nota" da catolicidade como característica da
"verdadeira" igreja adquiriu então um peso decisivo. Somente a lgreja de obediência
romana - escrevia o jesuíta padre Francois Coster em um manual de ensino para o
encontro com os hereges europeus - é disseminada no ..rr.rdo inteiro; tentem percop
rer mentalmente o mundo inteiro e verão que os luteranos estão só na Alemanha, os
anabatistas num canto obscuro qualquer da Holanda e da Morávia: fora da Europa,
ninguém nunca soube nada de luteranos e calvinistaslo3. E aqui o padre Coster trazia à
lembrança o exemplo de conduta dos cristãos no seio do Império romano da Antigui.
dade. Os cristãos somavam muitos milhares e poderiam ter tentado impor sua religião
com a forca das armas; ao contrário, preferiram derramar o próprio sangue no martírio
do que o dos outros numa guetra religiosaloa.
A questão referente a qual Igreja era a mais disseminada no mundo era atual na
epoca: tratava-se de decidir a qual das Igrejas em conflito cabia o reconhecimento da
"catolicidade". Os modos para ponderar e avaliar a extensão variavam, naturalmente, de
acordo com o ponto de vista. Os teólogos do lado protestante respondiam, ignorando
os progressos católicos nas Índias orientais e ocidentais e fazendo os cálculos somente
no seio das Igrejas cristãs antigas. Foi justamente um reformado italiano que conhecia
bem os balanços triunfais das ordens missionárias quem objetou que a igreja romana
tinha se separado das lgrejas orientais e que por isso eram os papistas que haviam se
segregado da maior parte dos cristãos do mundo habitado1o5. Mas, no que dizia res.
peito ao campo de acão do Novo Mundo, o balanço do lado protestante permanecia,
até então, falimentar: Richard Hakluyt, refletindo sobre a atuação dos pregadores
As nossas indias
&
\
572
calvinistas no Brasil, não tinha respostas animadoras para a pergunta "quantos infieis
foram convertidos" 106,
Ora, e evidente que a obra de pregação do cristianismo íora da Europa teve um
peso bem menor na Europa protestante em relação à catolica. Se limitarmos nosso
campo ao seculo XVI, é fácil notar o espaço bem diferente da América na imagem do
mundo dlfundlda nos países católicos em relação à da área protestante. A literatura da
Reforma elaborou uma geografia polêmica dominada pela luta contra o papadol0?, mas
íoi absolutamente desatenta em relação ao Novo Mundo; a literatura católica, por sua vez,
fez disso grande uso com objetivos apologeticos e edificantes, para demonstrar o caráter
"católico" da lgreja romana e para sustentar que a expansão no mundo compensava
desmesuradamente as perdas na Alemanha. As coisas deviam mudar com o início da
expansão inglesa na America do Norte. Mas não ha drivida de que a imagem da América
que se reflete na produção historiográfica e geográfica europeia no final do século X\-I
e muito diferente, dependendo se a fonte e católica ou protestante: cosmopolitismo e
vontade missionária da área católica não se encontram nos textos protestantes, fechadoe
em um pequeno mundo devoto concentrado em torno da Palestina das origens cristãr
Gravavam sobre o fechamento protestante as necessidades defensivas diante da Corr
trarreforma em armasf se necessário, como demonstrou o caso do envio de calvinistas
ao litoral do Brasil que deu ocasião à grande obra de Jean de Lery, sabiam eles também
dar prova de grande curiosidade e de entusiasmo diante da expansão do cristianismo
nas novas terras. Mas a fé na predestinação divina sustentada por Calvino propiciara
um bom argumento para não se encarregar da sorte de tantas almas de "bárbaros" e de
"idólatras", os quais - como escreveu Calvino - se não tinham tomado conhecimento
de Cristo, certamente deviam isso às próprias culpas.
Essa preclusão teologica diante dos deveres da unificação cultural do mundo
(alem das condições de debilidade inicial da Europa da Reforma) deixou a porta abena
à iniciativa da Igreja católica. Mas deve ser dito que em benefício da Igreja Íomana
pesou sobretudo a capacidade do papado de reconquistar o espaço das missões par:r
sua própria autoridade e de utilizar seu halo triunfal para finalidades apologeticas e
propagandistas na Europa.
Em um cenário dominado pela fratura religiosa europeia, pelas rivalidades entre
as ordens religiosas e pela luta em que a estrutura eclesiástica em seu conjunto estava
empenhada para a própria sobrevivência, as imagens da conquista religiosa em curso
fora da Europa foram inevitavelmente deformadas e submetidas a finalidades contrc
versistas. À prop"g"nda da fé - fides propaganda - devialigar-se intimamente o elemento
106. O trecho de Hakluyt e de 1584 e foi reproduzido por P. E. H. Hair, "Protestants as Pirates, Siavers, and
Protomissionaries: Sierra Leone 1568 and 1582" , Journal of Ecclesiastical Hiscory, )ofl, 1990, pp. 203-/?41
em part. p. 221 e nota.
107. Porexemplo,comaMappemondenouvellepapístiqre(Geneve, 15661)cujaorigemitalianaFrankLestringant
identificou (cf. "Une cartographie iconoclas te:IaMappemonde nout elb papistÍque de Pierre Eskrich et Jean
Baptiste Trento", em Géographie du monde au Moyen Age et à la Renaissance, otg. de Monique Pelletier.
Pads, 1989, pp. 99-120).
Os Missionários
r
573
itl8 De Origine Seraphicae Relrgionis Franciscanae eiusque Progressibus, àe Regulrlas Obseruantíae lrctitutione, For.
ma Administrationís ac l-egíbus, Admirabilique eius PÍopl,gatione, F. Francisci Gonzagae eiusdem religionis
Ministri Generalis, et nunc Episcopi Mantuani..., Romae, 1587 (cito a partir da ediçao Venetiis 1603,
pp. 1394 e ss.).
Orbis Seraphicus. Histona d,e Tribw Ordiníbus a Seraphíco Patnarchn S. Francisco Insrirtris deque eorum progres.
sibus, et honoribus Per quatuoÍ mundi partes... De mìssíoníbus inteÍ infidelÊs tomus primus, Romae, tlpis Ioannis
Iacobi Komarek Bohemi, 1ó89.
O representante mais significativo dessa tendência é Jean Delumeau, em particular, cf. de sua autoria lr
catholícísme entre Lutlvr etVohaire, op. cic. (trad. it. Il Cattolicesimo dal xvt al xvilt Secolo, Milano. 1976).
As nossas Índias
s74
111. Cf. os relatórios de Giovanni da Pian del Carpine e de Odorico da Pordenone, em Sinica Franciscana,
vol. I, kinera et Relntiones FratrumMinorum SaecuLi XIil et XIV, ed. P. Anastasius van den W1'ngaert, Ad
Claras Aquas, 1929.
i12. Sobte a obra de Jose de Acosta, DeNatura Noui Orbis, impressa pela primeira vez em Sevilha, em 1588,
a guisa de introdução ao tÍatado De Prccuranda Indorum Salute, cí. Pagden, I-a Caduta d,eLI'IJomo Naturale,
(Js Missionários
r
57s
n4. A literatura sobre a viagem dos três japoneses e muito vasta. Cf. pot exemplo a Relatíone deLViaggio et
Arriuo in Europa, Roma e Bologna de i Serenissimi Principí Giapponesi Venuti a Dare Ubidienza sua Santità,
Bologna, por A. Benacci, 1585. Um levantamento das publicações do seculo XVI telativas à viagem.dos
japoneses foi elaborado porAdriana Boscaro, Sixteenth-Centurl EuropeanPrinted,Vorks ontheFirstlapanese
Mission to Europe, Leiden, 1973. Para os estudos realizados no século )C(, começa.se por José Toribio
Medina, Nota BibLio{afica sobre un Libro Impreso enMacao en 1590, Sevilha, 1894, para se chegar a Judith
C. Brown, "Courtiers and Christians, The First Japanese Emissaries to Europe", Renaissance Quartert'1,
vol. XLVII, n. 4, inverno 1994, pp.872-906.
115 "De missione ltgatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusque ín Europa, ac toto itínere animadversis
díalogus ex ephemeríde ipsorumLegatorum collectus, et in sermonemlatinum uersus ab Eduardo de Sande Sacerdote
in Domo Societatis Iesu cum Facultate Ordinarii, et Supenorum
Socierads lesu", em Macaensi Portu Sinici Regni
Anno 1590. Cito a partir da reprodução facsimilar (Tóquio, 1935), com introdução de H. Iwai e um
estudo crítico de K. Hamada, do qual Alessandro Arcangeli arranjou-me gentilmente uma reproducão.
Foi íeita uma tradução japonesa anotada por Yoshitomo Okamoto.
t
As nossas indias
\
}'
576
para que não se dividam em muitas os poucos que por ora podem ser enviados'116. Os
candidatos não faltavam: outra característica comum dos membros da Companhia era
justamente a vontade de pregação missionária. O próprio Borgia sabia bem disso, pois
quando era comissário.geral de Espanha e Portugal tinha escrito ao geral Lainez pedindo
para ser mandado às indias para "morrer, derramando o sangue em nome da verdade
católica"r17. Era essa a disposição que manifestaram à época todos aqueles que pediram
para ser empregados na obra missionária: não por acaso foi-lhes dado o nome de Indipetae.
Aos gerais da Companhia eram dirigidas as súplicas dos aspirantes a missionários.
A ideia de ajudar "os outros" atraves da obra missionária impulsionava por sua natureza
para terras distantes. As cartas que se acumulavam aos milhares na mesa do geral dos
jesuítas repetiam isso continuamente, quase com as mesmas palavras,
[Faz] cerca de cinco anos que me encontro por misericórdia divina na Companhia e durante
todo esse tempo deu-me Deus N. Sr. o desejo de ir às Índias, Japão, China, e qualquer outro país.
ainda que muito distante, onde fosse para maior glória da D. Majestade, e auxílio às almas, que
não têm conhecimento da verdade, e eu pudesse sofrer alguma coisa por amor do próprio Deus [...ì
Sinto-me muito propenso à China [...]
Se bem que, não podendo isso obter, também desejo muito os outros países1re.
Os jovens que mandavam essas cartas eram movidos pelo desejo de fazer e mais
ainda pelo de padecer. Atraia-os uma vaga aspiração ao martírio:
Fosse para a maior glória de Deus, desejaria ser mandado às Índias para servir lá aos padres
e irmãos que estão trabalhando em auxílio do próximo. Também sou levado a isso por achar que
assim faria de mim um holocausto mais perfeito a Deus [...] oferecendo a vida e o sangue em nome
de Sua divina majestadel2o.
Para fazer com que a solicitação fosse acolhida, além de usar o fraseado normal e
previsivelmente mais aceito na Companhia, insistia-se nas atitudes e qualidades particu-
Os Missionários
í
577
lares dos postulantes, que podiam destacá'los para a comunicação com povos de língua
diferente e dificil, conhecimento de línguas, habilidade para incisões e pinturas, "devido
à grande necessidade que há na China de pintores e entalhadores'r21. (O projeto de partir
como missionário nutria-se não só de cartas, mas também de imagens. A verdadeira
campanha iconográfica dos jesuítas sobre os temas do martírio missionário e o recurso
às imagens para a pregação desempenharam um papel primordial; era natural que quem
tinha talentos para as imagens o destacassetz2.) Mas o que contava era ir longe. Entrar
na Companhia significava uma reviravolta na vida, o abandono de hábitos, famílias,
parentes que pesavam sobre esses jovens inquietos: certo Nicolo Mastrilli, escrevendo
"que desejava ir à China ou às Índias", mencionava "que desejava sair do Reino por
aborrecimentos com os pais"123. Se desejos desse tipo eram capazes de aparecer até
mesmo entre as fórmulas devotas das súplicas, é bem possível entender como devia ser
forte a vontade de fuga dos contextos familiares nesses jovens candidatos às missões.
I Pensamentos e desejos alimentados pelo sonho da missão em teïra distante impreg
. navam de uma grande tensão as correspondências com quem tinha o poder de escolha
As nossas Índias
r
578
Fiquei por vezes mui admirado com esses padres Jesuítas, e o disse aos chefes deles que aqui
se encontram, que, passando eles muitas privações para ir a países distantes para converter pagãos à
santa fé de Cristo, como se lê nas viagens que escrevem das Índias de Porrugal, poderiam com bem
maior facilidade obter o Ínesmo aqui, onde com a multidão de turcos que continuamente aparecem,
teriam oportunidade de insinuar e praticar os ofícios convenientes para conquistá-los12ó.
Nem pareça a Vossa Reverendíssima fazer obra menor do que aquela que fazem outros padres
e frades nas Índias, ao converter muitas almas infieis a Deus, dando-lhes e conferindo-lhes o precioso
sângue de Jesus, que se observasse e considerasse, não é de menor preço e valor reencontrar uma
alegria já perdida do que encontrar uma nova127.
126. Despacho de 19 de outubro de 1569, emNunziature diVeneyia, vol. x (26 mar. 1569 - 21 maio 1571)
org. de Aldo Stella, Roma, 1972, pp. l4l-l+3.
177. lrmã Maria Maddalena de' Pazzr, Opere, vol. VII, Reno,,tatione della Chiesa, org. de monsenhor Fausto
Vallainc, Firenze, 19ó6, p. 70.
Os Missionários
u.
;rh.
í
579
128. Assim fazia o jesuíta Benedetto PaÌmio, escrevendo em 1595 ao velho cardeal Paleotti, bispo de Sabina:
"Nenhuma gente é mais selvagem e mais incapaz do que os camponeses e montanheses dessas terras, e
em comparaçáo com os câmponeses de cá parecem animais; e seria um grande serviço a Deus e edificaçao
do mundo, ajudar essas Ítrdias romanas, como muitas vezes, quando estâva em Roma, eu costumava
dizer" (op. cit. por Prodi, Il Cardinale Gahele Paboni 11522'15971, op. cit.' II, p. 567 nota).
As nossas Índias
r
XXIX
O METoDo MISSIoNARIo
1. A definiçao é do sinólogo Marcel Granet; é citada por C. Ginzburg no relato de seu itinerário de pesquisa
("Witches and Shamans", New lzft Reuietr, n. 200, jul.-ago. 1993, p.75).
"O século XVI é um período de orperimentações, de tentativas, de comparações', observou Carla Faralli naquele
que continua sendo o trabalho em conjunto mais amplo e preciso para a história das missões jesuíticas ("Le
Missioni dei Gesuiti in Italia (sec. XVI.XMI): Problemi di una Ricerca in Corso", Bollettino delln Societa di Stu.di
; para decifrar as relações entre poderes e sociedade. O caso das fontes eclesiásticas não
' Írl
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' é diferente dos outros. Vimos como, âté no caso do documento mais rigorosamente
reservado à descrição exata da realidade - o processo inquisitorial -, as intenções, a
vontade, a cultura das autoridades eclesiásticas infiltraram*e inevitavelmente a ponto
de compenetrar e modificar os destinatários. No caso da confissão, como momento
constituído aparentemente de pura escuta, a organização de uma cultura do penitente
foi a empresa fundamental que ocupou as autoridades eclesiásticas e que deu conte-
údo à função do confessor. Enfim, no que se refere às missões, o filtro deliberado de
descoberta do diferente e do exótico até nos lugares mais próximos - abandona-se
aparentemente o esquema rígido do saber inquisitorial - acaba, porém, por combinar a
técnica do conselho e da insinuação suave que era típica do confessor com o propósito
de estabelecer um modelo cristão de cultura no lugar do modelo "idólatra", "pagão".
Ao fazer isso, no entanto, o fluxo dos relatórios - que foi extremamente rico e fluiu
copiosamente durante séculos - trouxe consigo, amalgamada à cultura dos missionários,
uma série extraordinariamente rica em detritos e fragmentos de mundos e de culturas
associadas pelo ffaço de diversidade, a única categoria na qual se baseava sua coleta.
Trata+e, portanto, de literatura descritiva que une a coleta de informações etnográficas
ao relato das acões perpetradas para transformar os costumes descritos e conformá-
los à cultura do narrador. O que surpreende o leitor é sua extraordinária semelhanca
com a literatura científica de etnógrafos e antropólogos; é como se fosse projetado um
grande fluxo de escritos em que se misturam de modo desigual descricões de costumes
e relatos de ações: um fluxo que começa com os relatórios dos missionários e chega
até nós como literatura científica de antropologia. Permanecendo no âmbito dos rela-
tórios dos missionários e daquele seu filão específico que foi dedicado aos "selvagens
internos", será suficiente ter presente sua característica fundamental, que remete à
ambígua função do espelho do diferente: conhecer-se a si mesmo através dos ouros,
tornar os outros idênticos a si mesmo. Tratava-se, em suma, de descobrir as diferenças
registráveis em outros modos de viver no que se refere aos traços fundamentais do
modelo ortodoxo e de intervir para eliminar as diferenças. Por isso, a literatura dos
missionários é uma fonte excepcional pâra compreender em que consistia realmente
Os Missionários
r.-
583
A segunda parte da história oficial da Companhia, de Francesco Sacchini, publicada em Anversa em 1620,
suscitou reações indignadas entre os leitores sardos pelas páginas sobre a Sardenha, consideradas "um libelo
difamatório' (cf. Rairnondo Turtas, "Alcuni Inediti di Antonio Parragues de Casrillejo arcivescovo di Cagliari",
,\rchivio Storico Sardo, )OOMI, 1991, pp. 181.197; em part. pp. 181-183).
Segundo Louis Châtellier, o aspecto etnográíico é decepcionante, pois "os jesuítas pouco se importavam em
descrever uma paisagem íamiliar e costumes que írequentemente sentiam ptóximos dos que já conheciam" (La
religlon des pauwes. Izs sources du christíanisme modeme,1993, trad. it. La Religíone Dei Poveri, Milano 1994, p. 8).
Mas é um comentário que não paÍece compartilhável e que, provavelmente, é para ser atribuído ao interesse
predominante do estudioso por outÌos aspectos dos relatórios. Esses documentos permitem indubitavelmente
"um acesso, ainda que apenas indireto, à cultura, à mentalidade, às condições de üda e aos comporramenros
religiosos das camadas populares" (Elisa Novi Chavarria, 'LAttiútà Missionaria dei Gesuiti nel Mezzogiorno
d'ltalia tra XVI e XVIII Secolo", em Per la Sroria S ocialc e Relíg1osa delMezzoglomo d'Italia, org. de Giuseppe Galasso
e Carla Russo, vol. tt, Napoli, 1987, p.4 do extr.).
O Método Missionário
:a
i
ri\
584
Opera Nuova chz Comprendz Quattro Libretti..., Bartolomeo GeorgieuitT de Croacia, detto Pellegnno Hierosolymítano
Authore, Roma, tip. Antonio Bane, 1555.
Uma descrição e catalogação sistemática íoi realizada por C. GOllner, Turcica. Die europdíschenTurckenüucke des
XVI I aLnhundcrt, Bucuresti,/Baden.Baden, 1968.
Os Missionários
r
585
Carta de Inácio a F. Saverio de 5 de julho de 1553, em MHSÌ, Monumenta lgnatiana, Epistolae, V, Romae, 1965,
p. 165.
Carta de 21 de setembro de 1560, citada por Mario Scaduto, "La Strada e i Primi Gesuiti", em AHSI, XL, 1971,
pp.3?.3-390; em part. p. 330.
Idem, pp.335 e 338.
Idem, p.343.
Idem, pp.343-i44.
O Método Missíonário
r: -,
586
Os Missionários
r
587
naqueles dos apóstolosl3. Quando se tratou de tirar licões dessa experiência para
serem aplicadas ao velho mundo, a proposta mais importante que os franciscanos
foram capazes de fazer não disse respeito, obviamente, ao batismo, mas aos modos
da pregacão, com a obra já lembrada do franciscano Diego Valades.
Na Europa, a questão da conversão não era colocada em termos de batizados em
massa: havia' e verdade, as minorias muçulmanas e judaicas, mas a resistência de ambas
a qualquer tentativa de cristianizacão e os resultados decepcionantes do uso da força
eram suficientes para tornar pouco exemplar a experiência ibérica a propósito. Entre
os cristãos, o batismo era um sacramento aceito e praticado por todos, nem sequer as
controversias teológicas da Reforma tinham modificado muito a situacão. Mas o batismo
sozinho não era mais suficiente para definir a identidade cristã.
2. CulruRR
As candentes discussões do início do século XVI sobre a fé logo cederam espaço à
questão do que deveria ser objeto de crenca. O problema que se evidenciava por toda
parte era o da ignorância: para definir-se cristão era preciso saber uma série de coisas.
Quais e quantas eram e como deviam ser aprendidas era uma questão que tinha sido
discutida de vários modos e resolvida. Mas se havia algo que diferenciava a nocão
de identidade cristã na era da imprensa e da Reforma daquela da época anrerior era
justamente a necessidade de saber e instruir. Para uma parte do corpo eclesiástico, o
sentido da urgência eia dado pela ameaça da heresia, como escreveu um dos redatores
do catecismo romano, Leonardo Marini:
Para todos, a questão dizia respeito à "plebe", ameaçada pela insidiosa propaganda
dos mestres de heresia. A preocupação que crescia era do tipo positivo: divulgar dou-
trinas e ensinamentos que preenchessem uma espécie de vazio ameaçador. Em termos
negativos, de controle policial e inquisitorial, o perigo da heresia era enfrentado nesse
mesmo período por meio do controle sistemático sobre os professores de todos os níveis,
desde as escolas de gramática até a universidade: a profissão de fé imposra por Pio IV
em 1564 a todos os mestres-escolas foi o ponto de chegada institucional dessa postura
ll. Cí. Pedro Borges OFM, Métodos mísiorwles enkt Cistianiwción de América, Siglo XVI, Madrid, 1960, p. 32, que
se apropria da tese do modelo apostólico revitalizado pelos íranciscanos.
14. Catecísmo O+'erc Insúutüone delle üse Pmirwrí alla Salute dellc Anime, dí C-ommíssìone àel R. mo et IIL mo S. Ctndinate
dí Mantrxla C-omposa et Publican pu Ia Cittn er Docese va por Monsenhor Leonardo Marini, bispo de Laodicea seu
Sufragâneo,emMântua,porVenturinoRuffineífi, 1555,pp.1-2,epístoladedicatóriadoautoraocardealGonzaga.
O Método Missionário
588
Foi exemplar, mais uma vez, o caso veneziano, em que, entre 1567 e 1568, íoi acertada a estrutura de contro
le: Vittorio Baldo (Alunni, Maestn e Scuolz in Venezía aLIa Fine del xvl Secolo, Como, s.d. mas 1977) elaborou
os dados das "proíissões de fé" venezianas ptonunciadas, em mãos do patriarca, para extrair daí um quadro
analítico do exercício do ofício de mestre.
V. cap. )0Õ/lll, nota 112.
Os Missionários
r
589
17. Cf. Donatella Ferro, Sospetti e censure nella prima traduzione italiana della Histvna NaturaL y Moral de las
Míti e Realtà deL Nuouo Mondo: Vnezia,
Indias di José de Acosta, em IL Ittterato tra iL Mondo Ibenco e I'halia, ory.
de Angela Caracciolo Arico, Roma, 1994, pp.273.282.
O Método Missionário
lrr
590
A natureza da "conversão" foi interpretada de uma nova maneira: era necessário atuar,
partindo do pressuposto de que se tratava de preencher um vazio de conhecimentos, ou
então de substituir um conhecimento parcial e equivocado pelo verdadeiro. Transferido
para o território europeu, esse modo de ver levou ao abandono da controvérsia doutrinária
e dos instrumentos da luta frontal entre verdade e erro, para substituí-los pelos métodos
da pedagogia e pelas formas não conflitantes da persuasão. Foi uma estrategia baseada na
educacão: em relacão aos países que tinham aderido à Reforma, confiou-se aos colégios a
formacão de homens e de instrumentos para a penetração e a reconquistals. Nos países
católicos, essa estrategia substituiu o confronto doutrinário aberto e litigioso por formas
de intervencão baseadas no ensinamento positivo e nas práticas caritativas, de "ajuda".
Já vimos como, no caso da pregação de Landini, o conflito doutrinário com os hereges
cedia o passo à postura pedagógica e às formas caritativas da atuação missionária. Outro
caso exemplar, a esse respeito, foi o - já lembrado - das missões jesuíticas na Calábria,
durante a guerra contra as populações valdenses: mesmo colaborando com a repressão,
os jesuítas fizeram ouvir uma voz dissonante e defenderam a convicção de que as armas
podiam forçar os corpos, mas não as opiniões. Tâis formas de persuasão suave derivavam
da ótica das "Índias internas" e diferenciaram por muito tempo a maneira da missão
jesuítica da maneira de,outras ordens. Sirva de exemplo a linguagem bem diferente do
capuchinho frei Filippo de Pancalieri que, enúado ao marquesado de Saluzzo em "missão
apostólica" para a conversão dos hereges, fazia o seguinte jogo com o nome Dronero (o
local onde organizara a caça aos hereges): "O antigo dragão com seu bafo infernal da
maldita heresia tinha infectado todo esse marquesado e estabelecido seu trono principal
neste lugar propositalmente chamado Dragonero [Dragão negro]"re.
Um jesuíta que foi bastante ativo nessas mesmas paragens, Antonio Possevino,
recapitulando no final do século XVI o que fora feito e discutido em termos de métodos e
modelos missionários, reconheceu que nesse campo imperavam a diferença e a variedade
das propostas2o. Pessoalmente, Possevino tinha preferido o método baseado na catequese.
Não se tratava de uma escolha original. No decorrer do século XVI, tratou-se com muita
frequência do ensino da doutrina cristã por meio da elaboração, publicação, distribui-
ção, leitura (até a representação e o canto) de pequenos manuais de catequização. Era o
principal caminho escolhido e seguido nos ambientes mais variados, por todos aqueles
que estavam convencidos da necessidade de "reformar" ou renovar a prática cristã, de
sistematizar e difundir o conhecimento das verdades fundamentais do cristianismo. Ele
foi seguido desde o início pela Companhia de Jesus como remédio principal contra a ig-
norância e a superstição. Possevino, no entanto, podia gabar-se de uma longa experiência.
18. Sobre essa estratégia há muitos estudos; veÍ entre os mais recentes o dedicado à obra do jesuíta Laurentius
Nicolai Norvegus por Oskar Garstein, Rome and Counter.Reformation in Scandinauia. Jesuít Educational Strateg
15 53'1622, leiden, 1992.
19. Carta ao cardeal Aldobrandini, Dronero, 30 set. 1ó02, em C. Cargnoní,1 Frati üppuccini. Documentí eTestimo
níanze dcl Primo Secolo, Roma, 1991, vol. ttt/Z, p. 4211.
20. "Gentium ubique ac praecipue in Novo Orbe iuvandarum non eadem firit ratio; neque adeo una hoc temporr
sententia est" (Bibliotheca Selecta, Coloniae Agrippinae, 1ó07, p. 400).
Os Missionários
591
,Desde 1560, jovem e ainda não oficialmente jesuíta, defendera convictamente no Piemon.
te as ideias de Emanuele Filiberto. E um episódio emblemático do entrelaçamento entre
missões, visitas pastorais e luta contra a heresia. O novo soberano, de volta ao Piemonte
após o tratado de Cateau-Cambresis, não demorou a dar ouvidos às propostas do jovem
jesuíta que the submeteu um plano de recatolicização sistemática do país. O perigo a ser
evitado era o das heresias que pudessem arruinar o estado, o exemplo de Genebra, cidade
rebelde às fronteiras do estado, não tinha sido esquecido. O projeto submetido ao duque
'por Possevino baseava-se em uma doutrinação sistemática da população por meio de
uma dedicação maciça por parte dos jesuítas: colégios, divulgaçao de liwos, controle dos
ìmestres-escolas e do clero. Era preciso chegar a "assediar esses diabos de hereges", escreveu
ao geral Laínezz|. A campanha contra partir
os valdenses dos vales'foi desencadeada a
'de fevereiro de 1560; mas, enquanto o inquisidor, o dominicano Tômmaso Giacomelli,
com o auxílio de uma companhia de arqueiros, aprisionava e mandava hereges à fogueira,
lPossevino, mesmo seguindo com interesse esses desdobramentos, dedicava-se a difundir
o catecismo de Pietro Canisio nas escolas das comunidades piemontesas. Viu-se ainda
pessoalmente empenhado, no verão desse ano, na ambígua posição de colaborador do
'núncio, com o poder delegado de absolver, em segredo, por meio de abjuração privada,
'os hereges arrependidos. A preferôncia por essa intervenção dividida entre inquisição e
confissão era a marca típica dos jesuítas. Mesmo em relação aos valdenses da Calábria
e da Apúlia devi*se dar espaço à obra dos jesuítas com poderes inquisitoriais usados às
escondidas, para reconciliar os arrependidos. Isso não significava o repúdio da força;
"se não se usar a força - escrevia Possevino em agosto - t...] e impossível [...] que essa
velha raiz que vai se espalhando ha 400 anos seja arrancada"z2. A força foi usada, em
'outubro de 1560, Antonio Possevino viu'se engajado num corpo de expedicionários
,nos vales valdenses, com a tarefa de arranjar liwos e pregadores católicos. Mas foi um
fracasso. Impôs-se, como consequência, uma estratégia baseada não mais na forca, mas
na persuasão e na doutrinação positiva: Possevivo investiu então todas as suas energias
pa impressão e na difusão de catecismos. Em janeiro de 1561, escrevia de Vercelli que
'mandara distribuir quinhentas copias da summa de Canisio "aos mestres-escolas para
iistribuir aos alunos; e o senhor vigário do bispo proclama um édito para que seja com-
prado por todos os párocos e nos dias de festa seja lido um parágrafo para as pessoas
iidiotas"z3. Por esse caminho, sempre com os olhos fixos na relação didatica de profes-
bor", párocos com escolares e analfabetos, conseguiu obter do duque um edito que
"
[mpunha a todos os mestres-escolas uma coníissão pública de íé, o texto dessa confissão
pevia ser copiado e afixado nas escolas, além de ser explicado pelos mestres (e tambem
pelas "mulheres mestras, que ensinam às meninas a ler e a coser"24). Era uma medida
)
21. Carta de 14 de fevereiro de 15ó0, citada por M. Scaduto S. I., "Le Missioni di A. Posseúno in Piemonte. Pro
paganda Calvinista e Restaurazione Cattolica 1560-1563" , em AHSI, )Oft'In, 1959, pp. 51-191; em part. p. 65.
1.7. Idem,p.74.
...03. Iden,p.l43.
b+. pai,o de 15 de janeiro de 1563, idzn, pp. 165-166.
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O Método Missionário
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592
que precedia a que seria imposta e generalizada por Pio V no ano seguinte, com a obri.
gação da professio fidei. A atividade frenetica desenvolvida por Possevino que, a cavalo,
percorria os vales, distribuía liwos, provocava debates com os calvinistas, tinha enfim o
liwo como instrumento fundamental. Tratava-se de fornecer em pouco tempo as razões
para rechacar as ideias dos hereges; e era preciso {azê-lo sem demora, por se tratar da
"ajuda da ltália inteira", como o jesuíta vivia repetindo. Essa região de fronteira devia
ser municiada e o mais rápido possível. Convicções e metodos semelhantes encontram.
-se ainda na ação praticadapor Possevino em Lyon, para onde se dirigiu em 1562, para
editar catecismos em francês para as populações da Saboia. Anos mais tarde, dirigindo
na Livônia a contraofensiva católica, Possevino tornou a insistir na organização de cen
tros de íormação cultural paÍa o clero, os semináiios pareciamJhe o "único meio para
renovar o mundo e para manter viva a posse de... todas as nações mais bárbaras" em
mãos da Igreja romanaTs.Tratava-se, mais umavez, de uma zona de íronteira: a partir
da formacão missionária baseada nos mapas geográficos, Possevino tinha desenvolvido
o senso das zonas íronteiriças e dos espaços estratégicos.
Três decadas mais tarde, em 1594, Possevino desempenhou ainda uma série de
missões na Itália padânea e mais uma vez sua estratégia concentrou.se na difusão de liwos
e no ensino da doutrina cristã. Mas dessa vez ele enfrentava seu trabalho com um instru.
mental bem diferente. No ano anterior tinha publicado o preâmbulo de sua grande obra
Bíbliotheca Selecta com otítulo "Cultura dos Engenhos"26: era uma resenha ou discussão
do Examen de Ingenios para las Ciêncías, o afortunado texto de Juan Huarte, que abordara
a questão, muito em moda na época, da classificação dos intelectos ou "cérebros" (como
preferia dizer Garzoni). O projeto de Huarte era alçar o exercício das artes e profissões à
"perfeicão que mais convém ao estado"21. Possevino aplicou.o ao serviço da Igreja e, ao
propor uma classificação dos engenhos, serviu-se da obra de outro célebre jesuíta, Jose
de Acosta, que em seu De Situ Nocri Orbis tinha proposto uma tripartição daqueles que
nós chamaríamos "civilizações" - e que para Acosta eram as populações dos bárbaros'
em primeiro lugar, as mais "humanas e políticas" da China e do Japão, caracterizadas por rl
prática das letras; em terceiro, por fim, encontramos os povos selvagens, sem lei, com
costumes ferinos (antropoíagia, sodomia) e apenas com alguns vestígios de sentimentos
humanos. As classiíicações desse gênero tinham como objetivo colocar numa única escala
de valores as várias formas de vida social conhecidas: e essa escala de valores tinha no
Os Missionários
'i'N
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593
vértice o modelo europeu cristão. Devemos levar em conta tal critério por nos dizer que
para os homens da igreja a cultura era um fato unitário, que compreendia o saber dos
liwos e o patrimônio do folclore. Mas deve-se salientar o uso que Antonio Possevino faz
do termo "cultura": cultura dos engenhos significa modo de governar, dlriglr e aumentar
o instrumental da mente. Assim como as plantas são cultivadas, podadas e direcionadas
de um modo ou de outro, do mesmo modo as mentes humanas podem ser conformadas.
Essa ideia da "cultura dos engenhos" é parente próxima de dois termos, ou duas ideias,
bastante familiares aos historiadores - dois termos que deixaram sua marca em toda essa
época, tanto que ainda hoje as pesquisas dos historiadores abrigam-se sob sua sombra
protetora: o Renascimento, a Reforma2s. Enfim, na mente e nas concepções desses ho.
mens do flnal do seculo XVI estava bem fixado o princípio de que os intelectos deviam ser
contÍolados, educados, dirigidos, até mesmo intervindo com operacões dolorosas como
extirpar certos modos de pensar nocivos e perigosos, mas sobretudo fazendo crescer a
planta do intelecto em direções corretas, adequadas a uma ideia de civilização baseada na
heranca política do Império Romano e na heranca religiosa do cristianismo. Era um modo
de pensar seguro de seus pressupostos, solidamente baseado naquilo que chamaríamos
hoje etnocentrismo, não sujeito a dúvidas quanto sua superioridade, otimista quanto à
missão que o esperava. Basta ler o balanço que Possevino faz do século em que escrevia e
que já então (1593) caminhava para o final, era um balanço triunfal, de novas e extraor.
dinárias aquisições de conhecimento (a descoberta do Novo Mundo), vitórias políticas
e militares (como a contra os Turcos em Lepanto), grandes avancos na vida da Igreja (o
Concílio de Trento, os seminários, as novas ordens, a obra missionária). Em relacão às
epocas precedentes, a do seculo XVI parecia a Possevino extremamente melhor e mais
rica em conhecimentos, Por isso, ele retomava a imagem da cultura como cultivacão: "se
no campo cultivado por ele o agricultor odeia a esterilidade, certamente Deus a odiará
muito mais na alma íeita à sua imagem"2e. Esse Deus camponês, que odeia a terra esteril,
e também o Deus que arranca as ervas daninhas - a cizânia da heresia e do erro: mostra.se
aqui a justificacão da intervenção inquisitória, do auto de fe. Em semelhante concepção
da cultura, a liberdade não e um valor positivo, pelo contrário: sobre ela, a licenciosidade
deita sua sombra. Por isso, se
[...] alguns Professores buscam a liberdade (para não dizer, a licenciosidade) de procurar e
ter opiniões, mais do que seria realmente desejável, e se esses recolhem-se dentro dos limites da me-
diocridade, e arrependem-se, que lhes seja diminuído o vigor e o poder de perspicácia e de solercia,
Em um ensaio fundamental, Gerhart B. Ladner ilustrou o simbolismo vegetal que está na origem do conceito
de Renascimento e do de Reforma e lembrou como Cesare Ripa, em sua Iconologia (1593), rapresentava a
Reíorma: uma mulher segurando os instÍumentos para podar as plantas. Cf. G. Ladner, "Vegetation Symbol-
ism and the Concept oíRenaissance", em De Artibus Opuscula XL: Essays ìnHonor of ErwinPanofsL1, New York,
1961, pp. 302.372, ora em ldem, Images and Idtas of the Míddlr Ases, Roma, 1983, pp.777.763; cí. do mesmo
autor The ld.ea of Reform, Cambridge (Mass.), 1959.
Possevino, Cohura degl'Ingegni, 0p. cit., p. Ii.
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&
F Í:
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que receberam de Deus, porém, saibam eles que os modestos e pios não devem desejar nenhuma
liberdade alem daquela conjunta com a virtude e a piedadero.
E emerge aqui a função positiva de um termo que para nós parece gravemente carre-
gado de cor negativa: a censura. Ao contrário, para Possevino, corretione, emendatione,
censura são momentos fundamentais da função de cultivar os engenhos. Para ilustrar o
que entende por censura, Possevino remete a Juan Luis Vives: 'As cândidas e pruden.
tes censuras são de grande utilidade a todos os estudos"31. Eis portanto a concepção
humanista do ofício do censor como aquele que extirpa as partes defeituosas, corrige,
expurga e pïepara a página para a imprensa. Na obra de Possevino, de fato, o capítulo
sobre a censura antecede os conclusivos sobre a"impressão dos liwos, a difusão dos
(bons) liwos, a melhor ordenação bibliografica para melhor encontrar os livros. E toda
a ciência do liwo que e amavelmente apresentada aqui, como guia para uma cultura
garantida e recomendada, sem riscos de erro ou de heresia.
Têndo partido da cultura, encontramos então a censura. E possível dizer que para
os homens desse final de seculo XVI não se produz cultura, sem seleção ou adaptação,
sem censura, enfim. Essa função positiva, de guia e de correção, confiada à censura era
plenamente aceita na Europa da epoca. Somente mais tarde, após as lutas iluministas,
uma negação catolica da liberdade de pensamento devia se opor a uma liberdade íilha
da Reforma protestante.
Com essas ideias, Possevino realizou uma serie de visitas às igrejas de Monferrato
eda diocese de Cremona entre 1594 e 1596. Trata-se de verdadeiras missões, no sentido
de que no âmbito da forma tradicional da visita pastoral já se evidenciavam as finalidades
de animação e de despertar religioso, "O principal objetivo da visita - escreveu então
Possevino - consiste na cura interior e no comando dos corações por meio da palawa
de Deus feitos oralmente e por liwos pios proporcionados a vários tipos de pessoas; e
por meio da confissão sacramental"32.
Os atos da visita confirmam ter sido essa a estratégia. O longo relatório da "mis-
são" de Monferrato, realizada com o acompanhamento e sob a proteção de Eleonora
de Médici, duquesa de Mântua, inicia-se com a declaração de pretender municiar as
fronteiras contra as heresias vizinhass3. O primeiro ato, no encontro com o clero em
San Salvatore, foi o de distribuir livros (primo Líbros dat). Logo a seguir, deu-se o encon-
tro com três mestres.escolas, tambem a eles foram distribuídos liwos, eram exemplares
do catecismo de Pietro Canisio, para ensinar nas escolas onde - anota escandalizado
Os Missionários
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Possevino - não se tinha nenhuma ideia do ensino da doutrina. Para o sucesso da mis-
são fora concedida uma indulgência plenária: Possevino explicou publicamente suas
características, acentuou a importância das confissões e mandou afixar em lugares pú-
blicos breves normas para confessarse bem. No serão, hospedado na casa de um nobre
do lugar, manteve.se acordado ate tarde a conversar sobre religião com a mulher e os
filhos do anfitrião, aos quais tambem deixou de presente "livros pios". Esse esquema
repetiu-se em todos os lugares onde se deteve a pequena comitiva: se encontrava um
tipografo, deixava-lhe livros pios para imprimir; ao visitar a abadia de Lucedio, distri-
buiu um liwo sobre a vida monástica; aos mestres-escolas de Casale, além de distribuir
o catecismo de Canisio, deu instruções sobre como ler e como não ler os autores
clássicos; pois, naturalmente, devia-se tambem "extirpar a torpeza"34. Era uma revira-
volta consciente em relação ao ensino humanista e como tal era vivida pelos próprios
mestïes-escola, no ano seguinte, durante a missão de Possevino em Mântua e em Reggio
Emilia, os mestres.escolas ouviram um duro sermão que fez contÍa o costume do tempo
passado, quando eram ensinados obscenidade e paganismo nas escolas, e defenderam-
.se timidamente, observando que ate então ninguem thes tinha aberto os olhos35. O que
não era 1á muito verdade, o bispo de Reggio, Benedetto Manzoli, tinha insistido muito
na tecla da educação humanista, em seus estatutos diocesanos, mais de uma década
antes. Avisara os mestres.escolas sobre a necessidade de observar a solene professio fídei
e ordenara-lhes abandonar o ensino da cultura antiga que servia apenas para tornar os
jovens eruditos nos ritos pagãos (e não, ao contrário, nos cristãos)36. Suas advertências
baseavam-se na realidade daquele corpo docente, composto de padres e mestres-escola,
que também Possevino teve diante de si3?.
Possevino não deu apenas conselhos, deu liwos também: e muitas vezes, lir,'ros
de sua própria autoria. Para os médicos, eram lidos seus conselhos sobre como curar os
doentes e convencê-los a cuidar mais da alma que do corpo; aos soldados da guarnição de
Casale foi distribuído seu liwo sobre o "soldado cristão": enfim, as bibliografias reunidas
em sua Bibliotheca Selecta revelam aqui seu aspecto prático, de instrumentos de trabalho.
A cena que ocorreu em Montemagno resume esse aspecto de biblioteca ambulante: ali,
em uma igreja sem portas, onde os animais tinham entrada liwe, Possevino encontrou
mestres.escola, párocos, pretor e escrivão da comunidade e, abertas as cestas de liwos,
tirou dali algo para cada um38. Cenas desse tipo não devem levar a pensar em uma
espécie de bibliomania pessoal de Possevino: tratava'se de um caráter específico das
missões jesuíticas, no quadro de uma tendência geral da epoca em conceber o livro
34. No seminário, sugeriu ler apenas Horácio, Cicero, Virgílio e Têrêncio, "nil praeterea aliud". Eram os autotes
que ele tinha estudado e que agora indicava (iden, c.376u).
35. "Obscaenitas et ethnicismus in iuventutem per spatium multorum annoÍum instilÌabatur" (id,em, c.385r).
36. Constítutiones Benedicti Manzoli Epíscopi in Slnodo Diocesana Editae..., Bologna, apud Rossium, 1582.
37. A respeito, veja*e do autor desre volume, "Educare gli Educatori. I1 Prete come Proíessione Intellemrale
nell'Italia Tridentina", em Probhmes de L'listoire deI'Education, Roma, 1988, pp. 173'140.
38. "[...] Deprompti tum e cestis libri, et unicuique pïo eorum captu sunt distributi" (Missio Montisfendtensís, op.
cit., c. 368r).
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como instrumento fundamental para a passagem das trevas do mal e da ignorância à luz
da verdade. Não foi só jesuítica a produção de textos para a educação religiosa básica,
isso e demonstrado com toda a evidência pela serie de pequenas obras que então foram
editadas pelas confrarias - as da "douüina cristã", por exemplo3e - ou por várias ordens
religiosas. Os jesuítas, porém, juntaram a produção livresca às campanhas de douffina.
ção. Uma das formas de ignorância sobre a qual se insiste em seus relatos refere-se, por
exemplo, ao fato de não saberem {azer o sinal da cruz: ora, a esse respeito, houve quem
escrevesse obras de explicação básica e quem elaborasse sermões sobre o assunto4o. Mas
foi no longo trabalho de doutrinação de lugar em lugar desenvolvido sobretudo pelos
jesuítas que os livros alcancaram seus destinatários.
Entre tudo aquilo que podia ser dito a respèito dessas populações, perceber-se-á
que só uma é continuamente mencionada, a ignorância. A constatação da ignorância
das populações é um tópos que se encontra sempre nessa literatura. Ignorância abissal,
não sabiam nada sobre os gestos, os ritos e os mitos da religião, sem falar em noçÕes
teológicas. Era essa a característica que chocava os missionários: mas era também a
qualidade que lhes permitia aproximar as plebes europeias aos índios da America.
Tomemos apenas um dos numerosos exemplos a respeito: o jesuíta Caspar Loarte,
após uma missão na Córsega, escrevera: são "pessoas tão rústicas e ignorantes que não
sabem nem entendem nada a respeito de nossa fé católica, a tal ponto que parecem
muito mais bárbaros ou infiéis do que cristãos"4r. A essência do argumento residia
nesse "a tal ponto": deixando de serem considerados cristãos, esses povos não corriam
mais o risco de serem tratados como hereges em virtude daquilo que não sabiam ou
que sabiam de forma errônea e incorreta. Pelos relatos dos missionários, a ignorância
das populacões frequentemente aparece com os traços de um radical alheamento em
relacão às doutrinas do cristianismo, a ponto de fazer pensar que essa matéria, nas
mãos de um inquisidor, poderia assumir uma forma bem diferente. Ora, a questão não
era absolutamente nova nem desconhecida. lnsistia-se na tecla da ignorância do povo
havia muito tempor confrarias e congregações tinham sido criadas para enfrentar esse
problema, que, nos mesmos anos do primeiro aparecimento público de Lutero, surgira
como verdadeira chave da reforma do cristianismo. Mas a questão da ignorância tinha
a
surgido de maneira decisiva na experiência dos frades que desenvolveram a primeira
evangelizacão das Índias: esses frades tinham acumulado os atributos de missionários
e inquisidores, no sentido de terem durante certo tempo aplicado a prática missionária
com instrumentos e poderes da inquisição. O esquema, que se apoiava na experiência
realizada na Espanha com moriscos e judeus, era extremamente simples: os pagãos das
J9 Veja-se, por exemplo, a série de publicações levantadas por M. Turrini, "Riformare il Mondo a Vera Vita Chrig
tiana: Le Scuole di Catechismo nell'ltalia del Cinquecento", AnnaLi drll'Istítuto Stonco kalo,germaníco inTrento.
vlll, 1982, pp. 407.489.
40 Cf. por exemplo a Dichiaratíone deLla Figwa delLa Croce, Dedicata aLL'Illustnssímo et Reverendissímo Card. Varmieny
fatta daM. TomasoTretero canonico d'OLomuzzo per ammaestramento d.ellz persone idiote, con un modo di direln corcrw
deLla glariosaMadonna pet uid di meditatione, em Bologna, por Alessandro Benaccio, 1576.
41. C. Loarte, Avísí di Sacerdoti et Confesson, Parma, 1579, c. 100c,.
Os Missionários
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Índias, uma vez batizados, tornavam-se, para todos os efeitos, verdadeiros cristãos. Por
isso, se eram apanhados em falta no que se refere a questões de fé, deviam ser julgados
pela Inquisição. Foi precisamente o que aconteceu quando, em novembro de 1539,
o cacique de Texcoco, dom Carlos Ometochtzin, foi mandado à íogueira na Cidade
do México por ter adorado - após ter sido batizado - os deuses de seus ancestrais. No
entanto, após esse caso, não so o inquisidor recebeu uma admoestação formal da Espa-
nha, mas, muito rapidamente, a inquisição deixou de tratar casos de índios apóstatas
ou hereges até que, em 1571, uma ordem de Felipe II retirou os nativos das colônias
espanholas da jurisdiçao do Santo Ofício: em lugar da força e das fogueiras públicas,
entrou a capacidade persuasiva dos confessionáriosa2. Não se tratava de apostasia ou
de heresia, mas de ignorância: portanto, alavancar o tema da ignorância permitia o
emprego de uma estratégia suave, persuasiva, no lugar da dureza inquisitorial.
Trata.se de analogias profundas entre a postura amadurecida nas Índias de além-
-mar e a que se revelava mais oportuna nas Índias "daqui". E aí que se colhe o fruto desse
ver as coisas italianas atraves da lente da experiência das Índias. É nttt" experiência que
também se encontra no terreno dos instrumentos e dos metodos. Instrumento fundamen-
tal, junto com o liwo, foi a imagem. Em um liwo de conselhos dirigido ao clero, Loarte
sugeriu utilizar imagens para exf,icar os artigos íundamentais da fé. Assim, uma imagem
"na qual se mostra Deus pai com o ceu e a terra" podia servir para explicar o primeiro
artigo da fé, "que Deus pai é criador do ceu e da terra"43. O livro podia ser destinado ao
clero, mas tambem ao chefe de família, caso ele soubesse lerr podia, portanto, substituir o
missionário, uma vez que esse tivesse partido. Era essa a preocupação que estava por trás da
insistente distribuição de liwos. Chegou-se a pensar ate na impressão de e*Librí especiais,
que conservassem registro por escrito e consagrassem formalmente a função de quem
recebia o liwo do missionário com o encargo de doutrinar os outros. Eis um exemplo,
Esta Doutrina Cristã foi-me dada... para que eu e toda minha família aprendamos as coisas
da santa fé. Porém, com a ajuda de Deus hei de esforçar-me por aprendê-la, e ensiná-la a todos os de
minha casa, e serei obrigado a pregar sobre Deus nosso Senhor [...ìaa
A obra que se confiava com essas palawas à responsabilidade dos chefes de família
era o catecismo ilustrado de Gian Battista Eliano. Enquanto os teólogos encarregados
47. Cí.Jorge Klor de Alva, "Colonizing Souls: The Failure oí the lndian Inquisition and the Rise of Penitential
Discipline", em M. E. Perry e A. J. Cruz (orgs.), CukuraL Encounters. Tht Impact of the Inquísition ín Spain ond
thc New.World, Berkeley/Los Angeles,/Oxíord, 1991, pp. 3.1'2.
43. Loarte, Avisi di Sacerdoti et Confessori op. cit., c. 39v.
44. A inscrição pode ser lida no verso da capa da Dottrína Chnstiana neLlt quale si Contengono Li PnncipaLi MisteÍi
della nostra Fede Rappresentati con fígure per instruttione de gL'idioti, et di quelli che non sanno Leggere... Composta dal
P. Cio. Battista Romano deLla Compagnid di lesà, em Roma, tipografia de Vincentio Accolti, 158i. Na cópia da
Biblioteca Vaticana os espaços em branco são preenchidos com o nome di "P. Gioseppe da Fano della Com-
panhia di Giesu" (Reproduzida por Palumbo, Speculum Peccatorum, op. cit., p.71). A ediçao alemã citada mais
adiante foi impressa em Graz, por G. \Tidmanstetter, em 1589.
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j doctrinae [...ì Pater amrlit in medium, quid aliis in eiusmodi locis, atque adeo in Indiis, a Parribus Societaú
fieret [...]" (Missio Monris/eraúensis, op. cit., c.375r).
46. 'Addidit nonnulla de conversione infidelium, atque Indorum, qualem in primis Pontiíicis Max. et Reveren-
P. V. mentem esse intelligebat" (idcm, c.364r\.
47. "Erant histriones comici, qui noctis initio populum, ac praesertim iuvenfutem convocabant ad scaenam.
Psalttia virilem habitum induta et caeteÍa eiusmodi iníiciebant animos [...j Pater [...ì obtinuit [.,.] ut comoedia
cessarent, histriones expellerentur" (ídem, c. 365r).
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convidou um mestre-escola de Asti que desejava entrar em uma Ordem religiosa a fazer
uma confissão geral, para a qual íorneceu.lhe um texto específico.
Portanto, os principais instrumentos dos missionários que se aventuraram nos cam.
pos italianos foram, de um lado, a confissão e, de outro, o ensino da doutrina cristã.
Quanto
a isso insistem concordemente os relatos das missões nas decadas entre a segunda metade
do século XVI e o início do XVIL São textos onde são descritas as atividades desenvolüdas
pelos missionários: pregações, coníissões e comunhÕes, ensino da doutrina, distribuicão
de bons li'vTos, controle do modo como eram ministrados os sacramentos, remédios contra
os abusos correntes e os defeitos morais mais arraigados. O padre Marcantonio Costanti,
em seu relato da missão em Sabina, datado de 1605, por exemplo, relatou ter descoberto
na aldeia de Gavignano que "não havia custódia onde se deve Íepousar o Santíssimo Sa-
cramento, sendo isso feito com muita indecência"48; relatou lugar por lugar os números
dos confessados e comungados (distinguindo entre confissões normais e confissões gerais).
Deteve-se em vários problemas encontrados. Mas o problema principal era, tambem para
ele, o da ignorância. Eis, por exemplo, o que se descobriu em Nerola:
Ao serem indagados sobre o sinal da cruz, poucos o faziam bem. Respondiam, ao serem inda-
gados sobre o mistério da Santíssinla Trindade, que eram a coníissão, a comunhão e o batismo, que
eram Cristo, Nossa Senhora e São Jose, que eram a fé, a esperânca e a caridade, a cruz de madeira,
Nossa Senhora [...] Quanto ao Credo e aos artigos da fé, a ignorância é realmente grande.
A coisa não dizia respeito apenas a um lugar específico: "Nota-se isso neste capítulo
como coisa geral em todos os lugares, e feito o exame em todo lugar a adultos e adultas
acerca dos preceitos da lei e da igreja, realmente não têm conhecimento do assunto"4e.
Efetivamente, todos os relatos concordavam sobre esse ponto: a coisa era "geral", para
além do próprio âmbito italiano. Poucos anos depois, na Alemanha, os camponeses inter-
rogados sobre se adoravam um único deus ou muitos deuses, deram respostas incertas e
confusas: de acordo com alguns, que confundiam Deus e os sacramentos, havia ao todo
sete deuses5o; e em meados do século XMI, o jesuíta Scipione Paolucci contava que certos
pastores, no Reino de Nápoles, ao lhes perguntarem "quantos Deuses existiam", respondiam
ora cem, ora mil, ora "outro número maior"5l. Os missionários faziam dessa ignorância
uma leitura apologetica, de quem se encontrava diante de "outras Índias", ou seja, num
território virgem, onde o cristianismo ainda não tinha penetrado. Mas seria possível dizer,
pelo próprio modo com que essa ignorância nos foi descrita, que se tratava mais de um
conflito em ação entre uma religiao tridentina, que derramava sobre seus fiéis um monte
de noções obrigatórias, e um auditório (ainda) não adestrado na aritmética do catecismo.
Foram representados dois diálogos da doutrina cristã, um em nossâ igreja no dia de sua festa,
em se fazendo recitar uma oração em vulgar em louvor do santo da própria igreja e outro no hospital
com o aparato de misteriosos trajes que provocou a admiração geral, principalmente na procissão que
foi feita pela cidade antes e depois do dialogo, a qual apresentâva um mui belo triunfo da santa lgreja:
tanto em um como no outro diálogo íicaram ouvintes mui satisfeitos com a beleza, a variedade e a
52. MHSI, EpístolÁe Mixtae ex vanis Europae Locis ab Anno 1537 ad 1556 Smptae, Í. V, 1555.1556, Matriti, 1901.
p. 356 (carta de Thomas Romanus a Inácio, Bivona, i3 jun. i55ó).
53. ARSI, Ron. 129.1, cc. 170v.771r.
54. "Mirar bien el modo de enseõar los tales, acomodándose a su poca capacidad y studio", MHSI, Polanci CompL-
Madrid, l9l7, p.752.
menta. Epistol&e et Commentdnd..., II,
55. Cito a partir de uma redação italiana das Industnae de Polanco conservada em Bayer. Hauptstaatsarchiv Mün-
chen, Jesuitica 5ó0, c. 57v.
56. O relato anual de Siena, de 1584, menciona as hostilidades encontradas (enst, Rom. 126 b. t, cc. 329r.330r).
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utilidade das matérias tratadas nos referidos diálogos, das quais tanto os doutos como os indoutos
podiam tirar grande proveitosT.
57. Iden,c.318r.
58. Foi estudado sobretudo o teatro jesuítico de âmbito alemão. Além das muitas contribuições levantadas pela
bibhografia de Làszlo Polgàr S. l. la Compagnie de lésus 1901.1980, Rome, 1981)
(BibLiogrophie sur I'histoire de
temetemos ao vasto repertório dedicado à produção para os países de língua alemã por JeanMarie Valentin
(I* thcatre des jésuites dnnsles pays dz.langue atlnnwnde, Stuttgart, 1983-1984) e o estudo de Ruprecht Wimmer,
luuitenthcater. Didaktík und Fest, Frankfurt am Main, 1982. Menos estudado é o teafto das missões, ao qual
nem mesmo o recente volume sobre Ì Gesuiti e i Pnmvtdi dclTeavo Barocco in Europa, organizado pelo Centro
de Estudos do Teatro da Idade Média e da Renascença, Roma, 1995, dedica pesquisas específicas.
59. O trecho, retirado da obra de Antonio Maria Cortivo dei Santi, PugnaSpiatuale..., Padova, 1620, e citado
por Ginzburg, Folklnre,Magia, Religione, op. cít., p.656, que fala de "teatralidade controlada" pelo uso que os
jesuítas fizeram de tecnicas desse tipo em suas missôes.
60. A mudança de direção no sentido de uma "piedade meridional, emotiva e cenográíica" e indicado no início
do século XMI por Mario Rosa, "Strategia Missionaria Gesuitica in Pugiia agli lnizi del' 600", Stlli di Storia
Pugliese in Onore dí Giweppe Chiarelli, vol. III, Galatina, 1974, pp. 159-186i em part. p. 181, (agora em M. Rosa,
Religione e Socíetà nelMezzogtomo ua Cinque e Seicento,Bai, 1976, p.267).
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daí uma parte do povo dividido começa o Pater Noster até a metade, enquanto a outra
responde, e assim a Ave Maria. Têrminado o terço, é lida uma liçao de um livro espiri.
tual". Depois dessa leitura tinha início a "conferência": grupos de quatro ou cinco por
vez eram interrogados sobre "o que tinham notado para seu proveito espiritual". Daí,
comecava o exercício das penitências em público. Era um momento muito importante
da missão. As hierarquias sociais eram colocadas de ponta cabeca, a ordem subvertida
(pelo menos no plano ritual). Eram de fato as pessoas mais destacadas do local que
exibiam sua humilhação, com grande satisfação dos jesuítas: "nisso viu-se o especial
concurso da divina misericórdia, pois com grande fervor os padres, os doutores e os
mais nobres das terras foram os primeiros a realizar essas mortificações em público, as
quais consistem em um beijar os pes do outro, re)ar alguns Pater Noster com os braços
em cruz no chão, beijar a terra e coisas parecidas"6r. Por fim, rezada uma Salve Rainha,
todos iam para casa.
O exemplo dado pelas classes dominantes era fundamental; os relatórios trazem
exernplos desse tipo em abundância desde o início do trabalho missionário. De Florença,
em 1584, eram relatados episódios como esses sobre o comportamento dos membros
da congregação de Nossa Senhora: alguns "em suas propriedades ensinam a doutrina
cristã a seus camponeses"l e, enquanto um deles "exortava seus camponeses à devoção
e honra da Beata Virgem, um desses pobres camponeses, queixando-se de que, em
virtude de sua pobreza, não tinha um terço com que rezar à Virgem, ele alegremente
deulhe o próprio terco, exortando-o a rezá,lo sem parar"6z.
Na relação entre patrões e camponeses tinha-se inserido de modo decisivo nesses
anos o projeto de cristianização do "vilão" e entre os muitos métodos planejados o de rezar
o Terço devia revelar-se o mais eficiente. Ate o feitor Bernardino Carroli, da Romanha,
que em 1581 tinha publicado um tratado sobre a "boa criacão" dos camponeses exortara
os camponeses a rezarem o Têrço: "Pega um liwo devoto, como o liwinho do Santíssimo
Rosário, no qual verás o modo de rezar o terço e quantas vezes por semana o homem ou
mulher da referida companhia é obrigado arezaf,o,,."63. Mas os camponeses, em geral, não
sabiam ler: e o Rosário oferecia um eficaz instrumento mnemônico para os analfabetos
e para aqueles que deviam trabalhar; Carroli de fato sugeria aos camponeses que não
sabiam ler pegarem o terço para rezar "devotadamente" as preces e ir "aos campos para
ver as lavouras... levando o terço na mão, e tezando-o"6a. Por isso, esse devoto proprietário
florentino que oferecia o terço não descuidava de seus negócios: mas certamente sentia a
necessidade de colocrí-los de acordo com as novas exigências da consciência atormentada
por escrúpulos que era confiada à orientação espiritual dos jesuítas.
Ensinar a doutrina significava muitas coisas. Começava-se com o sinal da cruz e
seguia-se com as orações básicas, com o Credo, com os doze artigos da fe (um para cada
. Or Missionários
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apóstolo), com os sete sacramentos e os sete pecados mortais, com os preceitos da Igreja
e os dias de jejum; mas também com noções de boa educação e de comportamento coti.
diano, sobretudo para os "meninos"r pequenos manuais e folhas volantes reuniam sob
esse termo uma grande quantidade de coisas. Aprendê-las significava decorá-las, com o
auxílio de ritmos, cantigas, imagens, com o estímulo de prêmios, pequenos ou grandes
(Castellino de Castello dava uma maçã de prêmio a quem aprendia "mais depressa e
melhor" o sinal da Cruzó5). De todo modo, o certo é que o ensino da doutrina não signifi.
cava ensinar a ler e a escrever. fu duas coisas eram bem diferentes; não as confundiam as
diversas irmandades da doutrina cristã então instituídas e não as confundiam os jesuítas.
Eventualmente, os jesuítas punham-se o problema se a oferta de ensinar a ler podia ser
um bom meio para alcançar o fim de atrair as pessoas para o estudo da doutrina. Uma
questão desse tipo foi proposta pela província austríaca da Ordem por volta de 1584:
tratavate de decidir se era possível ensinar os membros das classes subalternas a ler e a
escrever nos dias de festa, para induzi-los com esse pretexto a estudar a doutrina cristã.
Mas a resposta foi negativa66. Não conhecemos as razões da recusa. E provável, no entanto,
que se aplicasse âte nesse caso a disseminada desconfiança eclesiástica contra o acesso
das classes subalternas à leitura: de resto, era demasiado recente a crise aberta pela Refor-
ma. A difusao dos liwos em vennáculo e o fato de que a plebe - lavadeiras, empregados
de mercearias - lesse e discutisse as doutrinas teológicas tinham reforcado um antigo
preconceito: um preconceito que estava sempre pronto a reaparecer. Até no século das
Luzes, um eclesiástico culto como Carlo M. de Attems devia ameaçar "fechar as escolas
nos vilarejos, onde camponeses não têm necessidade de aprender a ler e a escrever"67.
A relação de ensino, portanto, ligava mestres-escola que tinham livros a alunos
que geralmente eram analfabetos e destinados a permanecerem como tais. Era preciso
atraí-los, diverti-los, estimular-lhes a memória com todo tipo de subsídios didáticos. O
ensino era um fato complexo, misto de ritual e de repetição mecânica. Teatro, música,
pintura - todos os veículos possíveis do aprendizado - eram empregados de acordo
com a necessidade. Mas a relação que era estabelecida com os alunos limitava esses
últimos ao papel de eternas crianças (mesmo no caso frequente em que os discentes
eram anciãos e os docentes eram jovens quando não extremamente jovens). Mesmo
nisso eram seguidos os modelos experimentados entre as populações extraeuropeias.
Eram modelos tidos em mente com toda clareza. Na véspera da guerra dos Trinta
Anos, quando os jesuítas bávaros relataram seus sucessos de catequese em meio aos
campos e aos vilarejos, escreveram, entre outras coisas, que um de seus jovens alunos
tinha tocado o sino de uma toÍre para reunir as pessoas: advertido para não fazer
isso, decidira sair pelos arredores com uma sineta, more Indico68. Falar em mos Indicus
65. G. B. Castiglioni, Istaria dclb Scuolc della Dottrína Cnsnana, Milano 1800, p. 15 nota.
6ó. A questão dizia respeito especialmente aos "artéfices" (München, Staatsbibliothek, cod. lat. 9201, cc. 44v45ò.
67. Do dirirlo da visita da diocese de Gorizia realizada por Attems em 1751 (cf. G. De Rosa, "Il Sinodo Proúnciale
del 1768', Ado M. D'Attems Pnmo Arcivucwo dí Gonzia 17 52-1774, Attí del Conuegno, Gorizia, 1990, p. 345).
68. Bayer. Hauptstaatsarchiv, München, Jesuiten 102, p. 2.
O Método Missionário
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604
era um modo para sintetizar rapidamente uma experiência quase secular em fato de
catequeses, sobre o qual se refletia e do qual se copiavam com entusiasmo os mínimos
detalhes. Fazia parte desse modelo o uso dos jovens e dos bem jovens (pr.r.eri) como
agentes para conquistar os anciãos. E havia muito tempo isso era o núcleo de uma
série de experiências. Segundo Sahagún, nos colóquios entre os doze missionários
franciscanos e os chefes indígenas do México foi apresentada a proposta de ensinar
às crianças "a lei de Deus" para que essas, por sua vez, a ensinassem aos adultos. Em
1576, um decreto real de Carlos V estabelecia que fossem conduzidos à Espanha
algunos indios ninos para serem ensinados e mandados de volta às suas terras como
agentes eficientes da conquista espiritualóe. No que se refere a essa medida mais ra-
dical, foi posta em execução outra no sentido de prover no próprio local a instrução
das criancas como agentes ou delegados a serem empregados logo depois. Turmas
juvenis fanatizadas na obra da conquista religiosa não eram uma novidade: a violência
juvenil, que nos tempos de Savonarola tinha se desencadeado nas cidades italianas,
continuara a dar mostras de si na época da Reforma. Os jovens empolgavam-se fa.
cilmente com os convites que thes faziam os pregadores para colaborarem na obra
de reforma do mundo. Não só na inflamada realidade da Europa reformada ou na
da Franca às voltas corn as guerras religiosas, mas tambem nos cenários das cidades
católicas italianas, que imaginaríamos mais tranquilas, encontram.se turmas juvenis
vociferantes e agressivas que impunham, através da violência, os novos modelos de
comportamentoTo. Na epoca do conflito religioso mais duro, turmas de jovens e muito
jovens acompanharam os pregadores mais populares e traduziram suas palavras em
ação. Em Verona, em 1538, segundo um pregador, matchavam em turmas (turmatim)
com crucifixos, cantos e hinos, aclamando em voz alta o nome de Cristo "que pa.
rece justamente que um só os conduza à justiça"7l. No ano seguinte, um jesuíta foi
testemunha de um espetáculo idêntico: centenas de meninos seminus em procissão,
que se disciplinavam aos gritos de "misericórdia" enquanto iam ouvir Bernardino
Ochino?2. Eram espetáculos preocupantes para as autoridades de todos os tipos, que
tiraram disso a convicção de um vínculo perigoso entre entusiasmo religioso, heresia
e subversão política e social.
69. Cf. Vasco de Puga, Provisiones, Cëdulas, Iruu'ucciones paÍú el Gobierno de Io Nueua Esparia, Madrid, 1945, p. 2l
iri
(retomo a citação de José Maria Kobayashi, La Eduración como Conquista (Emyaa Franciscarw enMático), México,
,l
70. Sobre a França, cí. D Crouzet, Les gaerners de Dieu. La víob.nce du temps des troubles de relígion (ver 1525- uets
umeninos"
1ó10), Seyssel, 1990. Mas sobre a violência religiosa em relação aos e sobre o uso que foi feito disso
no século XVl, veja+e o exceìente trabalho de Ottavia Niccoli, Ìl Seme dellaViolcnza. Putti, Fanciulli eMamnroü
nell'kalia fra Cinque e Seicento, Bari, 1995, cap. IV, pp. 61 e ss.
71. Testemunho de Paolo Andrea Del Bene perante o tribunal episcopal de 21 de janeiro de 1538 (citado pelo
autor deste volume em "Seminario sulle Visite Pastorali del Vescovo G. M. Giberti", Ricerclw di Storia Sociale
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O Método Missionário
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A
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rino ao geral da Companhia, para "que mandasse alguns de nossos ensinadores para
ensinar a doutrina cristã"??. A rnissão durou quase um ano. Castelos, vilarejos e cidades
foram atravessados a pé, "caminhando no inverno pelas neves e debaixo de chuva, e
depois, no verão, sob grandes câlores". Ao chegarem a qualquer localidade habitada,
"tocavam-se os sinos e enviavam avisos por todo o castelo para que não jogassem, mas
que se ativessem à doutrina e às coisas espirituais". O modo do ensino era "dar duas
aulas por dia aos meninos e meninas que costumam pâssâr o dia na terra"l e relatava-se
que, se os filhos eram necessários para cuidar dos rebanhos, "os pais pegavam peões
para guardar os rebanhos para que seus filhos pudessem dedicar-se mais comodamente
ao aprendizado da douffina"; ou então, iam eles mesmos no lugar dos filhos vigiar os
animais. Sabia-se - e os teólogos ressaltavam isso quando se falava em "ignorância in
vencível" - que até os rudes camponeses eïam capazes de decorar cantigas e quadrinhas.
Por isso, à classe social dos camponeses e à faixa etária que the correspondia quanto a
meios intelectuais, a das crianças, foram destinados métodos apropriados, que tiveram
por base justamente o ritmo e a música. Mas as criancas receberam contínuos elogios
dos missionários por sua capacidade de aprendizado e por seu ativismo devoto. Uma
menina de três anos, de Paterno, e outro menino de Colmurano causaram admiração
geral por sua preparação, que não era apenas de tipo mnemônico, "eles - observava
o jesuíta - não só sabiam as coisas necessárias, mas junto com elas a declaração" (e a
excecão confirma, evidentemente, que em geral ffatavÍr-se de um aprendizado limitado
à repetição papagaial)?8. As crianças, resumindo, eram os protagonistas, por sua habi-
lidade e agressividade, "em Tolentino [...] apareceu um menino pobre de Urbisaglia e
ganhou bem, ensinando a doutrina cristã de casa em casa"7e.
Havia ainda cursos noturnos, para "o povo que universalmente sai para trabalhar l
i
fora". Era preciso usar as horas do serão: "havia o expediente de fazer uma hora de dou' l
trina à noite, depois que todos tinham jantado". As aulas ocorriam nas igrejas, cheias de
gente e iluminadas por grande quantidade de luzesr "parecia que qualquer noite dessas
fosse a sagrada noite do Natal do Senhor". O êxito, naturalmente, foi extraordináriot
Assim os homens e mulheres de idade, como também as crianças de até 3 ou 4 anos aprendiam
muito bem a doutrina que para o gáudio de quem os ouvia, esses de terra em terra e aqueles pelos
campos suando em meio a seus trabalhos, cantavam devotadamente a doutrina e cantigas espirituais
que pelos nossos foram-lhes ensinadas8o.
Depois do teatro, as cantigas. Foi por essa via que se iniciou desde o começo
o ensino da doutrina cristã. Seguindo modelos em uso, a prática jesuítica de ensino
serviu-se de técnicas mnemônicas baseadas na música. Na Sicília, em 1556, ensinava-
Os Missionários
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81. MHSI, EpistolaeMixtae ex vanis Europae Locís ab Anno 1537 ad 1556 Scnptae, t.v,1555-1556, Matriti, 1901, p.
133 (carta de Domenech a Inácio, Messina, 20 dez. 1556).
87,. Iden, p. 358 (carta citada de Thomas Romanus a Inácio, Bivona, 13 jun. 1556). As companhias da doutrina
usavam liwetos com sugestôes de versos e ritmos: cí. Turrini, Rifmmare il Mondo a Vera Víta Cüstiarw, op. cít.i
para uma instituição que tem origens italianas e íixa+e na França, cí. Jean de Viguerie, Une oeuwe d'éducation
sous I'Ancien Régime. Izs pères de Ia doctnne chréüenne en France et en kalie 1592-1792, Paris, 1976, p. 412.
83. Cf. a carta a Carlo Borromeo, com data de Genova, 7 jan. 1575, escrita por certo Crippa, em Castiglioni,
Istoria delle Scuole della Dottrína Cristíana, op. cit., pp. 74-75. Sobre a atividade musical dos jesuítas genoveses, cí.
Daniele Calcagno, "Musiche e Musicisti per i Gesuiti in Liguria tra XVI e XVIII Secolo', Quademi Franqoniani,
u 5, n. 7, jul.Áez. 1992, pp. 177.208, que lembra que Loarte atuaÍa em Genova entre 1554 e 1557.
84. A instrucão de 1558 é publicada por P. Leturia, "Un Significativo documento de 1558 sobre las Missiones de
Iníieles de la Compaflia de Jesús", em AHSI, \1[, 1939, pp. 102-117.
85. ARSr, Rom. 126. b r, c.320u.
86. 't...1 Gmpla, fora, porticus, noctu domus, viae divinis canticis, ad quae adhibebatur s1'rnphonia cum musicis
instrumentis, personabant" (LitteraeSocietatislesaDrlu;rrum Annorurm MDLXXXVÌ et MDL'XXX\4\adPava etFratres
eíusd.emsocíetati.s, Romae, em Collegio eiusdem Societatis, 1589, p. 32).
O Método Missionário
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608
as ideias novas provenientes das cidades: porém, mais duradouro ainda foi o sucesso da
cantiga espiritual, que devia marcar durante os séculos a devocão italiana. Os relatórios dos
missionários atestam o grande e frequente uso desses meios de aculturacão e de propaganda
religiosa. Cantigas eram entoadas antes, durante e depois dos ofícios liúrgicos; as procissões
eram acompanhadas por cantos; quanto à elaboração de letras e músicas, há - dispersos
nas bibliotecas e nos arquivos - ffaços de uma produção que foi extraordinariamente rica.
A cena desses camponeses que entoavam cantigas devotas e instrutivas assemelha-
-se quase à realização de um desejo que desde muito tempo era repeddo por escritores
italianos: ver os rústicos habitantes dos campos, as classes populares e as mulheres
acompanharem seu trabalho com cantigas devotas e com palawas das Escrituras. Era o
sonho de uma sociedade cristã sem mais fraturas, recomposta na unidade do Evangelho.
Quem havia dedicado seu trabalho à vulgarização dos Evangelhos e dos liwos da Biblia
expressara do seguinte modo seu auspício:
Pareceria algo muito louvável e santo se ainda esse lawador, governando o arado, cântasse em
sua língua materna alguma coisa dos salmos, se o tecelão, tecendo o pano, rememorando algo, com
o Evangelho consolasse sua labuta, e se o timoneiro, manobrando o timão, cantasse alguma coisa, e
assim se outros semelhantes, dedicando-se a seus trabalhos, fossem aliviando a lida com a santíssima
lauda de Deus e palawa do Evangelho, e se a reverenda matrona, dedicando.se aos afazeres domes-
ticos, ou à cabeleira, em vez de conveÍsar com sua família sobre troianos, Fiesole e Roma, recitasse
alguma coisa do Evangelho às netas e filhas pequenas [...]8e.
o quão venturoso
poderá dizer-se aquele, que no dia a dia
ouvir o lawador guiando os bois
laudas cantar ao Senhor glorioso
e assim pelas ruas
da fiel cidade,
enquanto com mãos e olhos ocupados,
em várias obras e trabalhos,
ouvir os artesãos ardentes de puro afeto,
a Deus salmos cantart
e fazer o mesmo
pastorinhas e pastores,
enquanto seus rebanhos
89. Il Nuouo Testamento di Chisto Giesu Signme et Salvatare nosuo, dí Greco Tradotto in Língua Toscana per Antonio
Brucioli, em Venezia, por Bernardino Bindoni, 1541, dedicado a Anna d'Este, cc. n. n. Cf. a ficha de Edoardo
Barbieri, Iz Bibbie ltalíane del Quattrocento e d.eL Cinquecento, Milano, 1997, pp. ZBI-282.
Os Missionários
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609
passamodiaâpastar,
fazendo ecoar com doces cadências
os vales e as colinas à volta,
e sombrosas ílorestas,
do santo nome do Senhor celesteeo.
Elevar o povo ate as nobres alturas da palawa de Deus era a única alternativa para
escapar à acusação de rebaixar o conhecimento sagrado ao nível do vulgo ("vulgarizar").
Na realidade, à parte as reminiscências dantescas inseridas por Brucioli, essas
eram as palavras de um autor do qual os jesuítas não gostavam, ainda que o lessem
e dele se servissem (porem, sempre ad maiorem Dei gloríam): Erasmo de Roterdãe1.
Fora ele quem expressara esse desejo na introdução à edição basileia de 1522 do
Novo Testamento em latim. Não se limitara a isso: em uma ocasião solene como a da
oferta aos pios leitores de sua edição do Novo Testamento, Erasmo tinha aventado
a possibilidade de que, do altar, um clero renovado ensinasse a doutrina cristã ao
povo. Devia ser uma doutrina simples, adequada ao povo e totalmente extraída das
Escrituras, com o acrescimo do Credo, Iucida breuitas e docta símplicitas deviam ser
as regras para juntar esse textoez. lronia da historia, dir-se-ia: os jesuítas pareciam
destinados a realizar um programa de Erasmo. Mas as coisas não estavam exatamen-
te nesses termos: o programa de Erasmo era mais amplo e apresentava pontos de
convergência, bem como pontos nào secundários de divergência, em relação à obra
desenvolvida pelos missionários. Erasmo não desejara apenas que se ensinasse às
classes populares cantos e textos devotos e preceitos catequeticos. Segundo ele, uma
íormação renovada devia levar, por parte do clero, a um estilo severo, com ritos íre-
quentes de profissões públicas de fé que estenderiam à massa dos fieis a ritualizada
e solene santidade dos votos monásticos e com o consequente desaparecimento das
obscenidades dos pregadores-bufões, e quanto a isso a Igreja tridentina e a Companhia
de Jesus estavam plenamente de acordo. Mas Erasmo sonhava ainda com um tempo
no qual se aprendessem os textos da Escritura na propria língua e desaparecesse
completamente a repetição papagaial do padre nosso e outras orações em latim. De
todo modo, uma coisa era oferecer ao povo dos analfabetos a Bíblia em vulgar, outra
presenteá-los com cantigas; tambem no mundo de frei Cipolla, havia frades que pre.
senteavam "o padre.nosso em vernáculo e a Cantiga de Santo Aleixo"e3.Como se vê,
90. Sessanta SaImí dí David, Tradotti in Ríme VoLgai lca|iane, secondo Ia c)enrà det testo hebreo. col cantíco di Simeone, e
i díeci comandnmenri dnlla lege: ogní cosa insíeme col canto, tipograíia de Gieremia Planche, s.l. 1585, c. A 6t' (a
I primeira edição apareceu em Genebra em 1560, impressa por G. B. Pinerolio: cí. P. Chaú, A. Duíour e G.
Moeckli, Ixs liwes impnmés à Genèc)e de 1550 ò 1600, Genève, 1966, ad annum).
I.
91. A propósito de Erasmo e de Vives, em 157 5, a Companhia era de opinião que se devesse abster da leitura de
ambos, "nisi si quibus interdum eoÌum usus ad maiorem gloriam Dei videretur esse necessarius" (Staatsbi-
bliothek, München, cod. lat. 9?-01, c.7r).
92. Cito a partir de Erasmo, Opera, ed. Leclerc, t. VÌÌ, Lugduni Batavorum, 170ó, dedicatória "Pio Lectori".
93. O rrecho de Boccaccio (\4I, l, 5) é Ìembrado por Gianfianco Folena, Vol.ganzzcue eTraàune, Torino, 1991, pp. 4O41.
r.'"",
610
94. Sao as constituições sinodais da diocese de Comacchio, impressas em Ferrara em 1579 (cito a partir de
Antonio Samaritani, "Fonti Inedite sulla Riforma Cattolico-tridentina a Comacchio", em Rauennatensiall,
Atti del Convegno dí Bolopa, Cesena, 1971, p. 519).
95. Ver o item sobre o teatro no cap. XI deste volume.
96. Cí. a tírulo de exemplo as Risposre Volgan da Ripetersi dal Popolo VícendeuoLmente Doppo Cíascuna Parte dc Cann
Sacri Preposti nell'Insegnarsi Ia Dottnna Christiana, em Ronciglione, por Egidio Torelli, s.a. (conservado, com
muitos outros opúsculos, junto ao ArchMo Storico del Vicariato, Roma, Arciconfraternita della dottrina cris.
riana, í. 440, t. 2, íasc. 4, l702-1722). No mesmo, t. 2, íasc. 6, um quadro conjunto das doutrinas "publicada-.
e vendidas" no início do século XVIII, com números que superam as dezenas de milhares.
97 . Insegnamenti delln Dottnna Crktíana Spiegati in Aiette per Uso e Capacità dei Poueri Giouínetti, em Roma, por Pietro
Olivieri, 1702. Diante das dimensões históricas do fenômeno, chama a atenção o silêncio dos esrudos e em
particlar daqueles relativos à ltália (ver, por exemplo, para a Franca, Amedee Gastoué, Iz cantíque populaíre ea
France. Ses souÍceJ, son histoíre, Lyon, 7974).
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6ll
I 98. Dos "tequisitos da boa confissão", na íolha volante Risposte Volgari, citada à nota 96 deste capítulo.
99. Idcm.
100. t^e Glone del SS. Sagamento, em Narni s.a. (conservado no citado fundo do Archivio Storico del Vicariato).
l0I. I-audi Spirituali ín Honore diMaría per Seruirsene inTempo del.le Missioni, s.l. n. a. (conservado no fundo do
Archivio Storico del Vicariato).
102. M. Rosa, Strategia Míssionaria Gesuitica in Puglia, op. cit., p. I74.
103. Cf. Wolfgang Reinhard, "Christliche Mission und Dialektik des Kolonialismus", em Historischzs,lahrbuch,
cx, 1989, pp.353-370.
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O Método Missionário
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A própria rebelião era uma heresia; nas execucões capitais dos hereges celebrava.se a
piedade triunfante sobre o espírito da rebelião, personificado por Luterolo4.
Contudo, se se pÍetende entender a força da ligação que os missionários conse.
guiram instaurar, e preciso ter em conta o fato de que entre as características originais
das missões nas "Índias internas" houve tambem uma vontade de proteção e de so.
lidariedade em relação aos povos paupérrimos dos campos - algo semelhante àquele
impulso generoso que impeliu Bartolomé de las Casas à sua luta solitária pelos índios
da America. Foram as terríveis condições de vida dos povos visitados que suscitaram a
piedade participante de Silvestro Landini e, depois dele, de muitos outros missionários.
O impetuoso Nicolo Bobadilla entrou em colisão direta com o cardeal Michele Ghis.
lieri quando, após as sangrentas campanhas contra os valdenses, dirigiu.se à Calábria
e, comovido com a miséria dos habitantes de San Sisto, tentou obter do vice.rei de Ná.
poles que "a miséria deles fosse provida de algum rrfti,lio"105. Seu confrade Cristoforo
Rodriguez tambem insistiu no sentido de que fossem feitas intervenções de assistência
em favor dos mais pobres, nem lhe pareceu oportuno que, enquanto esses camponeses
eram utilizados na lavoura dos campos, ele e seus companheiros permanecessem entre
eles "ociosos a comer o pão desses pobres"106. A "ajuda" era um instrumento funda.
mental da atuacão dos |esuítas: e a ajuda material, concebida como meio para atingir
a ajuda espiritual, encontrou um forte impulso nos sentimentos humanos suscitados
nos missionários pelos espetáculos de injustiça e de miseria dos quais foram observa-
dores atentos. Não só na ltália: entre as plebes de Andaluzia, o jesuíta Pedro de León
descreveu com seca amargura os espetáculos de prepotência e desfrute dos quais foi
testemunha - a multidao de "pícaros y desesperados" sobre os quais os Grandes de
Espanha erigiam suas incalculáveis fortunas, os suntuosos aparados de inquisidores que
enriqueciam espoliando os moriscosl0T.
É compre.nsível, portanto, que o povo era atraído para as pregações missionárias
por algo que não era apenas a íascinação do teatro ou a distracão sonhadora das can.
tigas sagradas. O conteúdo desses catecismos era capaz, se necessário, de submetepse
em socorro das condições do povo e das convicções mais arraigadas de sua economia
moral. Podemos ter uma ideia disso lendo como, no íinal desse ciclo historico da pre.
104. La Píetà Trionfante, Oc)ero FeLice Successo nelkt causa di quelLi honendi, e sacnleghi deLínquenti, chc. isporcavano
IesacreimagininellncittàdiBologna...CantodiFrancescoGeorgto,emBologna,porNicoÌoTebaldini, 1623.
Sobre a execução capital (1627) de Costantino Sacardino e de seuíilho, culpados de realizar um complô
contra a religião e contra o poder papal, cf. C. Ginzburg e M. Ferrari, "La Colombara ha Aperto gli
Occhi", Quadrmi Storici, )OO(MII, 1978, pp. 631.639.
105. Scaduto, Tra Inquisíton e Riformatí, op. cit., p. 13.
106. Idem, p.28.
107. Cf. Pedro de Le ór., Grandzza'J Mísena en ,\ndalucía. Testimonio de una Encrucijada HbtOrica (157 8.1616), org.
de Pedro Herrera Puga, Granada, 1981, p. 355 e passim. Sobre as coligações entre a cultura política dos
jesuítas e as dinâmicas sociais executadas por seus missionários há pontos inteÍessantes em M. Olivari,
"Lettura 'Politica'dei Resoconti Missionari di Pedro de León, Gesuita Andaluso (1580.1620)", Riv*ra
di Storia e lttteratura Religiosa, )Cü1, 1986, pp. 47 5491.
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613
3. Crvrr-rztÇ^o
Fomos um dia visitar as choupanas de pescadores e ali distribuímos muitos terços e toda
sorte de imagens com o s. Nome de Jesus, e por estar bravio o mar as pessoas confessaram sem
comungar... De Porto partimos aos 21 lde novembro de 1605] por um bairro chamado Maccarese,
e por termos de passar por matas sem caminhos levamos um guia que catregava nossas coisas.
Chegamos a Stagno distante três milhas a oeste de Porto, onde há duas choupanas, ali coníessou
um, e depois de atravessar o charco seguimos duas milhas mais adiante até a choupana de uns
l" vaqueiros, e passamos a noite com eles deitados no chão, tendo coníessado todos naquela noite,
mais três de uma choupana vizinha, e peia manhã fomos convidar os que moram num curral de
cabras distante uma boa milha dali [...ì Um de nossos caminhou uma boa milha até uma torre
108. Insegnamentí delltt Dottrina Cnstiana Spiegatí in Ariette op. cit., p. 30.
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perto do mar para confessar uma pobre enferma há muito tempo. Foram avisados os que pescam
mariscos [...]10e.
E no íinal da missão, para atingir alguns casarios dispersos nos arredores de Primapor.
ta, "embora tivéssemos guia erramos o caminho e enfrentamos o dia inteiro muita ventania
e chuva; no caminho entramos numa choupana de ovelheiros e dois se confessaram"11o.
Era um panorama formado por moradias dispersas, igrejas "muito antigas", bo.
nitas mas não oficiadas, sem paramentos, fechadas a chave, pois "aqueles que impedem
a entrada nessa igreja (Primaporta) não querem que ali sejam realizadas confissões e
comunhões... Deus sabe quantos morrem, e por ser pequenina a igreja, são sepultados
do lado de fora, e no ano passado foram desenterrados üês cadáveres e devorados pelo
campo por cães-lobos e raposas"tlr. Dispersao e mobilidade dos homens significavam
casualidade dos encontros e das aventuras, dissolução de toda relação estável; os pastores
que vagavam com seus rebanhos pelo campo e os trabalhadores que deixavam seus lares
para ganhar algum dinheiro acabavam por gastá-lo com meretrizes que no verão circulavam
"por choupanas e matas" e terreiros onde se batia o trigo, e no inverno retiravam-se para
Cerveteri: mas chegavam ate às portas de Frascati e de Grottaferrata, ou estacionavam
nas estalagens, por exernplo, na "estalagem da Riccia". Frequentemente de casuais essas
relacões tornavam-se estáveis e as famílias eram arruinadas; a ruína econômica e moral
era acompanhada pela ameaça da sífilis e pelo escândalo dos peregrinos que por ali
passavam a caminho de Roma. Essas meretrizes públicas - anotavam escandalizados os
missionários - "são admitidas na comunhão da Páscoa". Era
difícil manter unida essa
população dispersa, tanto que os missionários não conseguiam nem sequer mantê.la
unida no lapso de tempo entre a confissão e a comunhão: bastava uma borrasca de mar
ou alguma cabeça de gado perdida para que quem tinha se confessado fosse embora,
adiando para outro momento a comunhão. Por isso, foi necessário recorrer a pequenas
astúcias: por exemplo, deram medalhas bentas a quem comungava. Astúcias pequenas
mas não inocentes. Esses veículos de proteção divina, para seÍem usados no lugar de
breves e outros objetos "supersticiosos", eram "coisas muito apreciadas por eles", como
bem sabiam e como tambem escreviam os missionários; por isso, com a promessa dessa
recompensa, as pessoas acorriam à comunhão. Mesmo em Primaporta, íoi suficiente
deixar uma "indulgência impressa" para que acorresse "gente de até três milhas de
distância". As pessoas vinham, atraídas por esses objetos e pelas promessas de proteção
espiritual, de perdão dos pecados, de ajuda. Eram movidas por grandes temores e gran-
des esperancas. O relatório lanca luz sobre os pesadelos que agitavam as pessoas dessas
choupanas: relata sobre um pastor que, à notícia da chegada dos missionários, fora to.
mado "por um grande terror e susto, e na noite seguinte, estando no campo, quase não
109. "Relatione delia Missione Fatta da Due Padri della Compagnia di Giesü [...] per il Vescovato d'Hostia
et Porto quesr'anno 1605" (ARSI, Rom. 129. I, cc. l60r.l62ri em part. c. 160v).
ll0. Id"em, c. 162r.
111. "lnformatione del Bisogno et Stato della Chiesa di Primaporta" (idem, c. l6Iru).
Os Missionários
ï
615
As pessoas vivem por demais desunidas pelas bandas desses montes da Córsega, e sem outra
atividade que não a de morar a maioria em companhia de animais e dispersas entre pequenas vilas,
que não passam de seis ou sete choupanas que nem têm forma de casa e distantes muitas milhas essas
vilinhas umas das outras, de modo que só alguns assistem de vez em quando à missa de domingo [...]rr2.
E verdade que nas missões faz-se alguma coisa, mas não se remedeia para sempre, pois passa-
das as missões, visto que as pessoas nào possuem nenhuma cultura de espírito e nenhum habito de
virtude, deixam-se levar pelos sentidos como o cavalo pela ração, e assim passada a missão é como
uma água impetuosa que lava a terra sem penetrá-la. Esquecem logo o que foi feito, voltando a seus
antigos costumes, pois enquanto não tiverem sentimentos de virtude cristã nada poderá durar por
muito tempo.
O Método Missionário
í,t
; rt.
r"
616
quando neles florescia a cultura da religiao cristã, assim como, ao contrário, descobria
por rebeldes e sediciosos todos aqueles povos que não cultuavam a lei cristã"114. Era
um conceito de marca jesuítica, já bem ilustrado por Botero, a religião cristã como
instrumento para unir as consciências na obediência ao príncipe.
Para a Córsega, isso significava consolidar o poder político genovês com um
vasto projeto de criacão de centros urbanos. Resumindo, paz aos palácios e guerra às
choupanas: era preciso "demoli-las e queimá-las para que não possam ser habitadas de
novo"l e esse era o conselho que o autor dava à república de Gênova. Ninguem seria
prejudicado, pois quem "tem sentimento humano gostará mais de viver em um lugar
melhor cheio de homens em vez de animais e ser melhor governado e defendido e ter
garantido mais a saúde da alma entre as pessoas civis do que entre as bestas e consi-
derar mais a civilização". A cidade era o lugar da civilização: e a civilizacão significava
abandono das condições bestiais, mas tambem disposição à obediência. "[...] As pessoas
nos agrupamentos e cidades são mais civilizadas, mais tratáveis, mais humanas pela fre-
quentação de muitos... Nas cidades e terras grandes não acontecem tantas insolências
e assassínios, as pessoas são mais obedientes à justiça divina e humana."
Os Missionários
r'
6t7
problema era como eliminar divisões e litígios. O constrangimento não era um meio
efícaz. Em relacão a isso, os missionários atuaram propondo, nos ritos públicos, epi-
sódios de paz como o evento máximo entre todos. A morte era o argumento com que
levavam os litigantes ao abandono do conflito, a fragilidade da vida humana, a labi-
lidade das paixÕes terrenas e a contínua iminência da morte deviam convencer quem
quer que fosse a abandonar os conflitos e os ódios. Os reiatorios sobre as missoes enfim
não eram simples resumos do que acontecera, mas instrumentos para multiplicar seus
116. O esquema aqui exposto nem sempre se encontïa completo de todos os elementos nos sínodos ou nas
atas de visitas; um caso de particular completude e o do bispo de Ístria, Tommasini, cí. a respeito C.
Trebbi, "Le Chiese e le Campagne dell'Istria negli Scritti di G. F. Tômmasini (1595-1655) Vescovo di
Cittanova e Corografo", Quaderní Gíuliani di Storia, a. I, n. I, 1980, pp. 9-49; empart. pp.75-26.
tt7 Cf. cap. XIÌI.
O Método Missionário
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618
eíeitos e refratar sua imagem por toda parte. Eis um dos exempla edificantes recolhidos
pelos missionários da Sabina. Estamos em Moricone: ali, dois jovens
[...ì que se odiavam [...] não tinham comungado na páscoa passada. Tentou-se fazer com que
viessem ao sermão e à confissão. Obstinados em seus caprichos opuseram resistência. Pela manhã,
após a comunhão dos demais, no dia de santa Catarina, brigaram e aquele que tinha resistido à
confissão foi morto. Nisso fomos chamados e encontramos esse jovem [...] q,re estava morrendo.
Grande coisa realmente e considerar os juízos de Deus, na tarde anterior opôs resistência à confissão
e na manhã não tinha tempo de confessarlls.
O juízo divino, em sua versão católica, era, enfim, a punição, terrível mas pre-
visível, para quem se recusava a aceitar o convite dos missionários à reconciliação e
ao perdão. Mas o Deus dos missionários, se era capaz de assustar, não era um Deus
que condenava com facilidade: o íerido foi confessado "da melhor maneira possível".
Nem mesmo isso bastou para satisfazer os superiores dos missionários: para eliminar
totalmente o sabor de dura vingança divina que a história podia ter, a expressão "ju.
ízos de Deus" desapareceu na redação revista do texto e toda a história foi profunda-
mente reelaborada. Fioou assim: em Moricone, na casa do arcipreste os dois jesuítas
encontraram três proscritos, irmãos dele, que recusaram o convite para confessar,
adiando-o para outra ocasião. Mas eis que no dia seguinte, quando os dois estavam
se despedindo, ouviram de repente gritos de um homem ferido mortalmente, "logo
corremos precipitadamente e eis (algo digno de compaixão) que encontramos um
dos irmãos do arcipreste com uma arcabuzada no ventre". Socorrido e levado à casa
carregado, o proscrito confessou e recebeu a extrema unção: "Tão logo a recebeu viu-
-se o efeito maravilhoso do Santíssimo Sacramento: comecou a falar melhor e pediu
o padre para confessar de novo"lle. O final feliz, a mão judiciosa de uma providência
benévola, reservam outros particulares positivos: antes de partir, os jesuítas tiveram
tempo de reconciliar o ferido com quem o íerira e de aproveitar a impressão causada
pelo acontecimento para estimular à confissão aqueles que a protelavam.
Na prática da missão, entretanto, se não era possível utilizar.se dos rigores da
justiça divina, também não bastava contar doces historinhas do altar: era preciso con-
vencer, industriar-se. O missionário devia se informar sobre os conflitos da comunidade
e empenhar-se, através das confissões e de outros meios, para resolvê-los. Cabia a ele
conduzir as tratativas para chegar a um bom termo. Os dois jesuítas enviados em Sabina
dão um bom exemplo disso em seus relatórios. Em Mentana, o primeiro lugar habitado
onde chegaram, souberam que havia pelo menos duas inimizades "muito perigosas
e ruinosas". O domingo, 13 de novembro, foi dedicado à pacificação de uma delas,
"sem perdão do trabalho", como demonstração de que a mercancia da alma ignorava
as proibições do trabalho em dia de festa.
Os Missionários
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ót*
movidas novamente pela piedade puseram-se a falar uma à outra com sinais de amor, daí o padre fez
com que, em sinal de amizade, ambas se abraçassem e, reconduzidas à igreja, toda a gente rendeu
graças ao Senhor por tâo grande beneficência.
Também a outra inimizade - era entre homens e que dizia respeito a questões de
honra - foi desfeita com dificuldade, através da intervenção do arcipreste, por meio de
preces a S. Inácio e sobretudo através da intervenção decisiva dos jesuítas, que se com-
portaram como verdadeiros mediadores, "Pegamos pelo braço um inimigo e o outro e
exortando-os pelas entranhas de Jesus Cristo a não impedirem a paz de todo o povo, por
fim puseram.se a dizer que desejavam a paz, cada um dizendo isso de própria boca"120.
Histórias do gênero reconduzem'nos sempre à questão-chave.; a conciliação
dos conflitos, o restabelecimento da paz. Era aqui que se media a capacidade da
estrutura eclesiástica de sanar as dilacerações no seio da comunidade e de oferecer,se
como instância social decisiva, com um efetivo poder de reintegração. Podia o corpo
eclesiástico apresentar algumas pretensões nessa direçãol Era um corpo criticado e
contestado, no centro de ferozes conílitos no cenário europeu; e dentro dos limites
das comunidades, todas as fontes conhecidas dizem-nos que os padres estavam en'
volvidos ate o pescoço nos conflitos. De resto, a luta entre partes era extremamente
grave por dominar a vida social e dilacerar as famílias. Era uma situação que impunha
a todos os habitantes dos burgos do condado, das montanhas e das ilhas, bem como
dos centros urbanos, a necessidade de tomar partido e, quando necessário, de com'
bater. Silvestro Landini, em suas excursões em Garfagnana e nas ilhas, não parava
de se surpreender com a violência desses conflitos entre pessoas atormentadas pela
mais negra miséria; e a mesma surpresa transparece nos relatorios de todos os que
então partiram à descoberta e à conquista da sociedade italiana. Para desarmar as
partes em conflito e para evitar ou reduzir a violência disseminada, 1á onde era mais
forte e manifesta - como nas cidades da Romanha - recorrera.se a corpos especiais
frequentemente chamados "Pacíficos"l mas a função de desarmar os ânimos para em
seu lugar implantar a "caridade" (como diziam os estatutos das Companhias do Amor
O Método Missionário
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620
Certo dia, foram ouvidas vozes na praça, então saí de casa ao ouvi-las e quando íamos remediar
apareceu um jovem com um arcabuz, ameaçando de morte, e se alguem não remediasse resultaria
um grande mal; nisso avistei um jovem da parte contrária que tinha partido voltar à praça muito
enfurecido com a espada desembainhada, como um louco, não querendo deixar ninguém se aproxi-
mar dele; tive a oportunidade de âgarrar com as mãos os adornos da espada, de modo a tirá-la dele
à força, levei-o de volta e encerrei-o em casa como um cordeiro, indo atrás dele com ela em punho,
e por obra de algumas pessoas de bem naquele mesmo dia foram feitas as pazes.
Os Missionários
r
ó,nr
Estando um deles ferido de morte, fui confessá-lo, e achando difkil que durasse muio, Edd
vir um notário para selar a reconciliação, ainda que a mãe quisesse que fosse selada a seu artÉria
Pouco depois, entregou a alma a Deus123.
O Metodo Missionário
í
622
125. Idem,c.325v.
126. Idem, c.375ru.
Os Missionários
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XXX
RTIOS nr, PnSSAGEM
1. O MATRIMONIo
Por trás dos relatos edificantes, a leitura da economia moral dessas comunidades de.
monstra com que filtro os missionários abordavam a realidade das "Índias internas". lJm
lugar especial foi reservado às questoes matrimoniais. Os missionários tiveram que lidar
com os casos de irregularidades canônicas, substituindo nessa função o governo epis.
copal, como também de casos de bigamia, os quais eram reivindicados pela Inquisicão.
Foi uma guerra na qual o papel desempenhado pelos missionários foi aparentemente
menor e, sem sombra de dúvida, diferente em relação ao papel dos tribunais especifi-
camente dedicados às questões matrimoniais - a Inquisição, os tribunais episcopais e
criminais. Campo de grande e permanente conflituosidade, que se acentuou em uma
epoca caracterizada pelo celibato forçado e pelo aumento da idade matrimonial, o matri-
mônio chamou a atenção dos inquisidores em virtude dos abusos do sacramento e dos
juízes criminais em casos de violência e estupro. Mas a substituicão do rito eclesiástico
e somente dele no conjunto dos ritos e dos gestos que na prática social e na cultura
comum tinham representado durante muito tempo as formas habituais da ratiíicação
do matrimônio foi empÍesa de duração e complexidade bem diferentes. Mesmo apos
Trento, mesmo em pleno seculo XVII, como demonstrou Ottavia Niccoli, práticas como
o aperto de mão (com que os noivos selavam o pacto matrimonial), o dote nupcial, o
beijo eram considerados "em nível popular, como gestos constitutivos dentro do rito
nupcial"1. Autoridades eclesiásticas e juristas continuaram a discutir por muito tempo
sobre as circunstâncias e sobre as consequências do beijo e, em particular, do "beijo
violento", isto e, do uso de um dos gestos constitutivos do matrimônio para impor à
mulher renitente ao casamento uma vontade de possez
Coube aos missionários a tarefa de persuadir e prevenir no âmbito da moral
pública, tratando minuciosamente os casos que se apresentavam de modo a chegar
1. Ottavia Niccoli, "Baci Rubati. Gesti e Riti Nuziali in Italia Prima e dopo il Concilio di Trento", em Il Gesto,
org. por S. Bertelli e M. Centanni, Firenze, 1995, pp. 224-747; em part. p. 243.
2. Cf. por exemplo Tommaso Trivisano, Dicisiones Causarum Ciuilium, CriminaLium et HaereticaLiurm, op. cir., c. 106u,
em que, entre outros, cita Il Pastor Fido de Battista Guarini no contexto de uma "decisão" sobre o beijo.
r."'"
624
l. ARSI, Rom. 129.1, c. 112r. Na cópia corrigida, a frase é mais evasiva: "Foram encontrados muitos que tinham
arranjado mulher e, não as tendo levado ainda para suas casas, iam amiúde encontraÌ-se com elas em casa dos
pais delas e petmaneciam em amizade com as reíeridas noivas sem consumaÌ o matrimônio" (idem. c. 129ò.
4 ARSI, Rom. 129.1, c. l20ru.
5 Por exemplo em Petescia: c{. idem, c
Os Missionários
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625
matrimônio baseava-se na aliança entre famílias e previa uma longa fase de passagem:
nessa fase, os jovens frequentavam-se e experimentavam sua concordância sexual sob
um teto comum, que geralmente era o dos pais de um ou de outro6. O nascimento
de um filho era o acontecimento que, em geral, modificava radicalmente a situação e
impunha a passagem à convivência regular, às vezes sob outro teto, com a assunção de
todas as responsabilidades de um casal adulto. Essa e a ordem que transparece por trás
das práticas criticadas pelos missionários. O ataque do cristianismo oficial às antigas
formas do matrimônio não se limitou à área católica ou ao mundo mediterrâneo,
nem se iniciou apenas com o advento da epoca tridentina. Na Inglaterra elisabetana, a
tentativa de levar ao tribunal comportamentos sexuais desse tipo chocou-se com uma
tolerância disseminada, confirmada tambem pela quantidade de filhos tidos pelos
casais antes do casamento (cerca de um quinto do total)7. Mas a amostra de histórias
matrimoniais descrita nos relatórios dos missionários e dos visitadores eclesiásticos
basta para dar a impressão da ausência dessa (relativa) liberdade e empreendimento
feminino que sobressai nas histórias dos tribunais ingleses: enquanto na Inglaterra as
mulheres iam viver na casa do futuro esposo e garantiam com um filho seu direito ao
matrimônio, os casos relatados pelos missionários da Sabina falam em mulheres que
permanecem na casa dos pais e que recoÍrem a práticas anticoncepcionais, pois o noivo
r1ão quer que engravidem.
De todo modo, a comparação entre duas situações diferentes como as da Italia
tridentina e da lnglaterra entre os seculos XVI e XVII mostra uma estratégia análoga
na intervenção das autoridades sobre esse terreno: os matrimônios contratados de
acordo com as formas tradicionais foram considerados ilegais, as convivências foram
julgadas imorais e as núpcias celebradas em cerimônia pública diante da autoridade
eclesiástica foram o único remedio que pareceu adequado. No âmbito católico, coube
aos missionários executar uma tarefa de normalização: mas tratou-se de um trabalho
bem demorado, pois a prática não foi erradicada com facilidade. No mundo camponês,
continuou-se ainda durante séculos a aplicar as antigas regras da convivência de longa
duração antes da celebração das núpcias8.
Quanto à itália, ainda sabemos muito pouco sobre a atividade dos tribunais dio-
cesanos em materia matrimonial, de resto, a documentacão que deixaram e tão vasta a
ponto de desencorajar qualquer pesquisador. No entanto, esse pouco e suficiente para
Ou o de um parente: o íranciscano Luca Mosconi depôs perante o bispo Feliciano Ninguarda, em 20 de junho
de 1591, ter dado hospitalidade a um jovem parente e à noiva, mesmo tendo afirmado - como acontecia nor.
malmente nesses casos - que depois da promessa, a mulher tinha dormido sozinha, ainda que sob o mesmo
teto do homem (cí. S. Bianconi e B. Schwarz, IlVescovo, íL Clero, iI Popolo. Atri &ILa Visira Personale di Feliciano
Ninguarda al.l.e Pieqi Comaschr Sotto gli Sc,ilten nel. 1591, Locarno, 1991, pp. 163 e ss.).
7. Esse é o resultado dos dados íornecidos por Martin Ingram, ChurchCourts,Sexand.MarriageínEngland, 1570'
-ló40, Cambridge, 1987, pp. 219 e ss..
8. Para a Franca do século XVÌÌÌ, Jean-Louis Flandrin(In amours paysannes. XVI.XIX siècle, Paris, 1975, pp. 101-102)
menciona dois casos de casais conviventes na casa dos pais do noivo. No primeiro caso, de 1738, os missionários
separaram os dois jovens que conviviam havia seis anos.
Ritos de Passagem
r*'
626
afirmar que o matrimônio foi questão entre as mais envidadas pelo mundo eclesiástico:
as normas tridentinas, introduzindo uma regra rigorosa e um controle efetivo, reduziram
provavelmente os litígios que decorriam dos matrimônios per verba de praesentie.Mas
a prática dos esponsais per verba de futuro seguidos pela coabitação continuou a criar
problemas por muito tempo. No início do seculo XVII, ela ainda se encontra bastante
presente nas causas matrimoniaisl0.
Nos países católicos, o conflito entre igreja e família que se abriu na epoca tri-
dentina refletiu.se nesse estado de coisas: a longa historia do matrimônio tridentino e
a história da penetração de uma ideia da relação conjugal nos costumes sociais como
contrato no qual o espaço doméstico e substituído pelo da igreja.
A luta entre costumes ftadicionais e o novo modelo eclesiástico foi mais encarni-
çada nas retaguardas dos usos e das tradições do que no fronte doutrinário e jurídico:
e, consequentemente, mais nas periferias do que nas áreas metropolitanas. Por obra
dos missionários, portadores do ponto de vista romano nas práticas dos territórios
mais afastados, íoram descobertos usos conflitantes com as normas - "abusos" - tão
disseminados a ponto de constituir a regra para populações inteiras. Tal foi o caso do
matrimônio dos eclesiásticos: na Sardenha, os primeiros missionários jesuítas informa-
ram a seus superiores algo que a Inquisição já sabia, ou seja, que ali era praticado um
rito nupcial especial para os sacerdoteslr.
Em relação a esses últimos, tratou-se de fazer aplicar a norma canônica: e aqui
a obra dos missionários foi somente uma intervencão suplementar em um campo já
largamente ocupado por bispos e inquisidores. No que se refere aos matrimônios dos
leigos, a zona de fricção e os bolsões de resistência foram mais fortes na área do noivado
(ou esponsais, ou matrimônio per uerba de futuro). As famílias continuaram a controlar
9. No que se reíere ao tribunal episcopal de Bolonha, a análise de Lucia Ferrante revelou que a maior parte das
causas matrimoniais remonta ao período pré-tridentino ("11 Matrimonio Disciplinato. Processi Matrimoniali
a Bologna nel Cinquecento", em Disciplina dell'Anima, Disciplina del Corpo e Díscíplína della Socíetà, org. por P.
Prodi,op. cit.,pp.901.927).Areduçãodasmatériasrelativasaesponsaisematrimônioclandestinonodecorer
do sécu1o XM foi registrada também na região de Vicenza (cf. Laura Megna, "ln Matgine ad Alcune Carte
ProcessualidiAreaVicentina:SponsalieMatrimoniotraX\4eXVIISecolo", emBolzanoVicentíno,Dimensíoni
del Socíale eVíta Economíca in unVillaggjo della PíaruuaVicentína (Secoh xtv.xtX), Bolzano Vicentino, 1985, pp.
----
Ì:. ,
f: , Os Missionários
\
r
627
12 "Dado no referido municipio de s. Giovanni haver alguns que depois de íeitas as denúncias e os esponsais
pu tterba de futuro passam muitos meses antes de proceder ao esponsalício peÍ veÍba de praesenti íoi ordenado
ao pároco publicar na igreja que no futuro pelo menos dentro de um mês devem proceder ao conffato do
casamento" (AAP, Vrsita deLla Diocesi di Pisa di Moru. Arciu. DeL Pozzo, 1597'98, c. 128u, ato de 31 de ourubro de
1598).
13 Cí. as glosas acrescentadas ao título de sponsaLíbus no manual de Gian Paolo Lancellotti, Instítutiones Iuris
Canonici, Romae, ex typographia Georgii Ferrarii, 1583, pp. 151.161.
14. T. Trivisanus, De Priuilcgiis SponsaLiorumTractatus, Venezia, 1598, p. I; o trecho é citado em Megna, InMarglne
ad Al"cune Carte Processwli di Area Vícentina, op. cit.
Ritos de Passagem
r""
62.8
I imediata, ao estado conjugal. Porem, obviamente, uma coisa era estabelecer a norma,
] outra arraigá-la na prática social. Por muito tempo, permanecera viva mesmo na cul.
tura oficial a noção do matrimônio como uma passagem que implicava uma dilação
no tempo, um início e uma conclusão solene. Nessa configuracão, havia lugar para os
esponsais e adquiriam um sentido ate as abordagens amorosas: os noivos podiam licita-
mente não só encontrar-se e conversar, "mas até beijar-se, abraçar-se e tocar.se [...] Pois
os esponsalícios, que são princípio do matrimônio, dão ensejo aos primeiros deleites
matrimoniais"15. Havia um princípio, e havia fases diferentes reguladas com precisão na
noção tradicional. Mas com o matrimônio tridentino o rito perdia a dilaçao e as fases
preparatórias, tornava.se um ato que se consumava em um tempo pontual: o tempo
ocupado pelo rito eclesiástico do sacramento. É claro, não se realizava completamente
o modelo da subjetividade consciente e responsável das próprias escolhas que surgira
na cultura humanista, com o renascimento da moral antiga. O controle eclesiástico
da escolha e a nova medida do tempo estavam de acordo com uma ideia do ato indi-
vidual como quase indeíinidamente corrigível e remediável. Mas tendia.se a eliminar
qualquer outra regra tradicional, qualquer outra autoridade que se interpusesse entre
a norma eclesiástica e o 'ato individual. E, visto que o estado ainda era uma realidade
embrionária sem pretensões de intervir na economia moral da sociedade, o verdadeiro
conflito era com a tradição representada e defendida pela família: era a íamília que,
atraves dos esponsais, exercia o pleno controle das escolhas matrimoniais dos filhos,
ligando-os em tenra idade de acordo com critérios de conveniência (econômica, política).
Com as novas normas, o controle eclesiástico sucedia ao parental, os tempos da lgreja
substituíam os da sociedade laica.
Coube aos missionários transferir a questão das imposições autoritárias e das
discussões jurídicas à realidade das relações sociais. No que se refere ao matrimônio,
houve indubitavelmente uma guerra de longa duração entre o cristianismo oficial e as
famílias. O interesse das famílias estava ligado à garantia da sucessão: era dessa única
raiz que nasciam duas práticas duramente hostilizadas pela Igreja, a do matrimônio entre
parentes próximos e a dos longos noivados. Tratava-se de uma raiz comum, como escre-
veu em seu relatório um missionário jesuíta na Córsega: "Encontrava-se nesse povo um
abuso gravíssimo que pervertia a ordem do sagrado matrimônio, antecedendo a bênção
da Igreja com o uso perverso, e passara tão alem esse erro maligno que os parentes mais
próximos eram eles os primeiros a experimentâ-Lo". Eram, portanto, verdadeiros matri-
mônios, ratificados pelas famílias sem a intervenção da Igreja e praticados sobretudo
por parentes. Tinham longa duração antes de se tornarem públicos: de dois a catorze
anos. E tudo isso era algo tão disseminado que ninguem parecia envergonhar-se disso,
ou melhor, o abuso chegara a "ter forca de lei". Era íeito às escondidas para evitar
o mau-olhado ou, como era chamado, "os bruxedos (pois que assim chamam certas
15. A opinião é de Martin de Azpilcueta, o célebre canonista: cí. Di Simplicio , Peccato PenitenTa Perdono, op. cit.,
p. 265 nota.
Os Missìonários
r !
I
679
Ritos de Passagem
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630
ção da nova família estava demasiadamente arraigado nas tradições e nas necessidades
reais, para que pudesse ser eliminado de imediato. A atuação dos missionários podia
: apenas encaminhar a mudanca pretendida. No final do século XVII, o bispo de Marsico
i lembrava que fora ordenado muitas vezes "que os esposos que tinham contraído os
. esponsais entre si não deveriam manter comercio entre si até contraírem o matrimônio
I de acordo com a forma prescrita pelo Sagrado Concílio de Trento", mas que, de fato,
I essa proibicão ainda não era observadale. Ainda em meados do século XVIII, Alfonso
de'Liguori inseria a seguinte advertência em suas instrucões aos confessores: "Seja
sobretudo advertido o confessor a não absolver os esposos que vão à casa das esposas,
e as esposas e seus pais que admitem isso; pois que facilmente tais esposos em tais
ocasiões pecam mortalmente [...1"20. Portanto, a luta continuava. O recurso à excomu.
nhão pertencia ao armamentário dos eclesiásticos mais intransigentes ao abordarem
a prática dos longos esponsais e da coabitação pré.matrimonial: tinha sido, mais uma
vez, Carlo Borromeo a introduzir a sanção e foi a ele que se remeteram todos os bispos
que legislaram sobre o tema. Seu nome encabeca a lista das autoridades citadas por
Francesco Frosini, arcebispo de Pisa, no sínodo diocesano de 1708; segundo Frosini,
deviam ser considerados excomungados tanto os noivos que mantinham relacões
sexuais antes do casamento como suas famílias2l: era a prova de que não se tratava de
cedimentos morais individuais, mas de uma tradição que tinha raízes profundas nas
regras não escritas do governo das famílias.
Os missionários não tinham ameaçado excomunhões; limitaram-se a submeter
essas práticas a uma luz diferente, a do pecado individual. Deve-se a isso, como foi dito,
seu verdadeiro e duradouro sucesso. O esforço eclesiástico de introduzir uma disciplina
de novo tipo atingiu seu objeiivo na medida em que conseguiu transformar em transgree
são individual o pecado - a ser debitado à "fraqueza da carne" - dos comportamentos
que na realidade obedeciam a regras sociais muito antigas. Tratou-se de uma verdadeira
estrategia mais ampla, que não se limitou à prática dos esponsais.
Ora, falar em estratégia não significa que o corpo eclesiástico em seu conjunto
tinha consciência do que fazia. De fato, se se pretendia transcrever as novas regras na
vida da sociedade - que colocavam a mediacão eclesiástica no centro de todas as pas-
sagens fundamentais da vida - era preciso que fossem rompidas as regras antigas e que
os fragmentos delas conservados nos comportamentos individuais fossem subtraídos
da cultura e transferidos à natureza, ou seja, privados de sua memória e reduzidos a
sinais de fraqueza individual. Essa mudança de estatuto que abrangeu toda uma série de
19. O édito, de 1693, é reprouzido por Giovanni Antonio Colangelo, Ì.:rDiocesí diMarsico nei Secoli XvLxwil,
Roma, 1978, pp. 181 e ss.
20. Confessore Diretto per Ie Confessioni della Gente di Campagna, em Bassano per i Remondiní, 1773, p. 408.
27. Slnodus Dioecesana ab lllustrissimo. D. Francisco Frosini... habíta,Pisis,ex typogr. F.
Bindi, 1i08, p. 55. Um sínodo
de Malta, de 1703, estabeleceu uma série de normas para regulamentar os enconÍos dos namorados, fixando
inclusive o número e a dilação' mas a matétia constituiu um tema obrigatório para as fontes normativas, sG
bretudo eclesiásticas (cf. C. Conain e P. Zampini, "Documenti Etnograíici e Folkloristici nei Sinodi Diocesanr
della SiciÌia", emPalestra del Clero, vol. XLV, Rovigo, 1965, pp. Z7.Z8).
Os Missionários
r
63t
comportamentos, de mitos e de ritos, deve ser levada em conta sempre que se coloca o
problema do sucesso da atuação eclesiástica ou de seu fracasso. Os relatórios dos missio-
nários listam continuamente sucessos extraordinários, tanto para as missões europeias
como pelas extraeuropeias. Mas, ao lado desses boletins de vitórias ininterruptas, há o
dado de íato da longa sobrevivência de práticas sociais e de costumes aparentemente
eliminados e, no entanto, sobreviventes ao processo de aculturação. Entretanto, algo
certamente mudou, se não nos comportamentos, no modo como eram concebidos.
Quando essas práticas voltavam à tona, eram consideradas como pecados individuais:
ninguém se lembrava mais das antigas regras.
Quanto às estratégias missionárias, o plano conjunto em que se colocam e adqui-
rem significado as inumeráveis ações individuais não foi absolutamente invencão dos
missionários; tinha surgido muito antes e as missões foram um dos muitos instrumentos
de sua realizacão. Em determinados aspectos, tinham razão os missionários quando se
apresentavam como portadores de um cristianismo ainda não penetrado na vida daque.
les povos culturalmente e por vezes fisicamente tão remotos em relação ao mundo das
cidades. Mas não se tratava do cristianismo original, evangelico, mas eventualmente de
um cristianismo depurado na epoca tridentina e adaptado às necessidades de controle
social de uma lgreja ameacada.
2. NRSCTIT,IENTO E MORTE
22. H. Diels, Slbilinische BLltter, Berlin, 1890, pp. 4849. Sobre Diels e sobre as orígens do conceito de "rito de
passagem" é íundamental o texto de C. Ginzburg, "Saccheggi Rituali. Premesse â una Ricerca in Corso",
Quademi Storici, tXV, 1987, pp. 626.629.
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I
Ritos de Passagem
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637
heterogêneas de contornos íixos e acreditam que a cada uma delas corresponda uma classe social
deíinida e diversamente organizada.
23 "Sulla Rappresentazione Collettiva della Morte (1907)", trad. it. em Robert Hertz, La Preminenza deLla destta:
aLtrí Sasi, Tôrino, 1994, pp.53'136; em part. pp. 98-99.
74. Idem, p. 54.
Os Missionários
v
6i1
Esses ritos
e essas elaborações pareceram como abusos ou deformações aos refor-
madores que - com base em uma nocão nova e fortemente intelectualizada da religião,
assistidos nisso pela introdução da imprensa e da difusão do liwo - empreenderam a
longa luta que deu vida às formas modernas do cristianismo: tanto mais modernas e
inovadoras quanto mais mascaradas sob o veu obrigatório do retorno às origens.
O ç{9,t!p!sryo aglessivo da época"d,as Reformas protestante e catolica tratou de
abolir decididamente a dilação e de impor ritos imediatamente consecutivos ao evento
natural (nascimento e morte) e à mudança de status; mas, enquânto a Reforma pro-
testante divorciava.se claramente das tradições folcloricas com uma podadura drástica
dos sacramentos e dos rituais, o catolicismo depurado da epoca tridentina baseou-se na
posição mais moderada que consistia em concentrar a dilação e em reduzir o sacramento
a uma consagração pontual e imediata da mudança ocorrida na realidade.
O caso mais evidente dá-se com o batismo, isto e, com o sacramento que per-
maneceu válido para todas as Igrejas cristãs, constituindo sua condição preliminar de
existência. Dois temas dominaram então o horizonte da prática social desse sacramento
e as preocupações eclesiásticas a respeito: a distância do batismo do nascimento e a re-
gulamentação do apadrinhamento. Já foi notada a importância do ataque desferido pela
igreja tridentina e em particular por são Carlo Borromeo contra a prática de apresentar
o recém-nascido para o batizado acompanhado de um elevado número de padrinhos,
mas a interpretação desse fato ainda não é satisfatória. Ressaltou-se em geral o aspecto de
aproveitamento da ocasião do batizado para reforçar alianças sociais25. Entretanto, isso
não e suficiente para explicar os valores simbolicos inscritos em numerosos momentos
da prática do apadrinhamento. A tendência que teve início a partir do seculo XVI foi
a de reduzir a importância do apadrinhamento26. É uma tendência que se apoia em
outra, a de realizar o batismo do recem-nascido o mais rápido possível, frequentemen'
te no proprio instante do nascimento, por parte da parteira - e, portanto, vencendo
com isso a reserva no que se reíere a confiar funções sacerdotais a figuras femininas. A
escolha dos padrinhos, a coleta dos presentes para o recém-nascido demoravam tanto
tempo que, como observava um estatuto de Avinhao de 1337, a criança corria o risco
de morrer sem batismo. Justamente essa dilação foi combatida pelo catolicismo triden-
tino. Pari pdssrú, tendeu-se a reduzir ou a abolir o período de impureza correspondente,
para a mãe, ao ato do nascimento2T. Impureza e dilação são os traços que aproximam
os ritos do nascimento e da morter como a morte inaugura uma íase de impureza e
de ameaça que deve ser exorcizada mediante ritos apropriados, assim o nascimento
?,5 O ptincipal estudioso do tema, John Bossy, Íebateu essa interpretaçào em vários ensaios: cí. John Bossy, "Blood
and Baptism", em Derek Baker (org.), Studies in ChurchHistory, Oxford, 19i3, x, pp. 13-35; IdBm,"The Counter-
.Reíormation and the People of Catholic Europe", PatanÀPresent,XL\4l, i970, pp. 57 e ss.; Idem, "Padrini e Madrine:
Un'Istituzione Sociale del Cristianesimo Popolare in Occidente", Qrndcmt StoÍici, XLI, 1979, pp. 440449.
26. Cí. Bossy, "Padrini e Madtine", op. cit., p.447. Características otiginais, permanências e mudanças íoram
estudadas por Agnès Fine, Parains, marraines. Itt parenté spirituel.le en Ewope, Patis, i994.
z7 O tema é pouco estudado; mas cf. David Cressy, "Puriíication, Thanksgiving and the Churching oíWomen
in post-Reformation England", Past and Present, CXLI, 1993, pp. 106-146.
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634
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representâ uma brecha perigosa aberta para o mundo dos espíritos não viventes - dos
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mortos. É .o- eles que se deve tratar. E no folclore europeu o padrinho não é senão :Li1
uma máscara da Morte, poder emanante e regulador da vida28. Nas culturas primiti- .l.
Nesse ano, mais do que nunca, nossos estiveram ocupados em confessar os enfermos dos hos-
pitais
e os presos das prisões, especialmente quando eles deviam ser executados, o que muito edificou
a Companhia dedicada à ajuda deles, e muito mais os próprios condenados; e entre outros, contarei
o exemplo de um jovem que, tendo sido condenado à morte, deixara-se tomar pelo desespero, que
não queria de modo algum escutar que se the falasse das coisas de Deus, negando sua divina provi.
dência, e que se entregara ao diabo, e não tendo bastado muitos homens virtuosos e religiosos para
reconduzi-lo, resolveram por fim mandar chamar alguns dos nossos, os quais, embora por algumas
28. Jacob e Wilhelm Grimm, Le. Fiabe del Focolnre, Torino, 1986, p. 154.
Os Missionários
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635
horas parecia que se extenuassem em vão, conseguiram por fim conduzi-lo como â um cordeiro a
pertence tão somente a ela, tendo suas origens na tradição das funções desempenhadas
pelas conírarias de justiça. Mas, no caso dos jesuítas e de seu exercício da confissão,
tratou-se de um tema exemplar pela possibilidade que oferecia de fazer confluir na
confissão todas as contas da vida, mesmo aquelas da justiça terrena: foro interno e foro
externo sobrepunham-se e compensavaÍÌ-s€r â sentenca do juiz terreno valia como pena
dos pecados secretos, a aceitação da sentença abria as portas do Paraíso. A edificaçao
dos fieis era garantida: as cenas que se repetiam nas prisões e nas praças exaltavam a
função do confessionário. A prisão e o patíbulo transformavam-se em confessionário.
A proposta exemplar sugeria que todas as culpas podiam ser lavadas, que até o mais
inveterado delinquente, o mais horrível pecador encontravam na confissão o lugar do
perdão. O próprio dlabo podia ser perdoado, ou pelo menos quem levava seu nome: era
chamado Satanás o bandido das Marche que, em 1585, em Macerata, teve uma morte
cristã exemplar, passando sern fraquezas pelos mais terríveis tormentos e aceitando
todos eles em retribuição de seus pecados,
Têndo antes com muito sentimento coníessado geralmente sobre toda sua vida e tendo se
reconciliado ainda cinco ou seis vezes antes de morrer, como realmente esquecido de si mesmo, dizia
não poder por mais que quisesse pensar em outra coisa que não na misericórdia de Deus que contra
todo seu merito tinhalhe propiciado tão boa ocasião e esperança de saúde3o,
Et caqtati dal trattato d'aiutar aben monre dÊI R. P. Giouan d,i Pobncq delln Compagnía di Gíesu, Macerata, tip.
Sebastiano MaÍtellini, 1576.
32. A anotação da Irmandade romana de san Giovanni Decollato íoi publicada por Domenico Orano, Liberi
Pensatori Brucíatí in Roma dal xvt aI xwil Secolo, Roma, 1904, pp. 88.89.
Ritos de Passagem
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636
Porem, ainda que preferissem histórias com final feliz, era importante em tais
circunstâncias o significado assumido pelo instante extremo da vida. A narracão edi.
ficante era destinada a lembrar que mesmo o último instante tinha uma importância
decisiva para obter a "conversão" desejada. (Quanto às obras exteriores, tão importantes
em tese para as doutrinas do catolicismo pós-tridentino, tudo era remetido ao mundo
interior das intenções: para o condenado à morte, era a execucão que podia desse modo
t assumir o valor de obra.) O ponto era esse: ate um homem-diabo podia ter a esperança
I
I de ir diretamente da forca ao Paraíso. E por isso, podiam ser-lhes dedicados os ritos do
I
I
I sufrágio e as invocações que se faziam às almas santas do Purgatório. Por conseguin.
te, a sombra do justiçado não devia mais aterrorizar os vivos: esse tema, herdado das
confrarias medievais de justiça, os jesuítas empenharam-se em introduzi-lo nas cidades
onde a devoção do conforto dos condenados não existia. Lutava-se contra o medo que
rodeava os mortos antes do tempo, os assassinados, as criancas não batizadas, eníim, as
figuras da "cavalgada selvagem", os mortos que em vez de deixarem os lugares habituais
detinham-se neles indeíinidamente com a permanente ameaca de levarem consigo os
vivos durante seu sombrio e implacável vagar sobre a terra33.
No centro da proposta devota estava, portanto, a luta contra a tenaz representação
da morte como passagem. E aí não havia apenas o caso extremo do condenado à morte,
ainda que justamente para isso os relatórios edificantes dos missionários chamassem
de bom grado a atenção. Todos os homens, como moribundos, deviam dar-se conta
de estarem condenados pelas próprias culpas. Por isso, o caso do condenado à morte
tinha um valor exemplar cujo efeito dramático os jesuítas aproveitaram em suas missões.
Um ponto essencial da nova concepção da morte e o da aboliçao da lamentação
pública. A longa fase de luto e sua elaboração socialmente compartilhada e controlada
tiveram que ceder lugar às exéquias cristãs. A lamentação foi a primeira a sofrer as con-
sequências disso. Imediatamente apos o concílio de Trento, os lamentos públicos foram
atacados nos editos eclesiásticos. A dureza do ataque e provada pelo íato de que em
certos casos as autoridades eclesiásticas chegaram a impor às mulheres permanecerem
trancadas em casa durante o funeral, sob pena de excomunhão e com a ameaca de não
"retirar o corpo" por parte do clerosa. Nas missões populares, os modos de intervenção
13. "Estão convencidos - escrevia o jesuíta T. Romanus de Messina em 23 de junho de 1556 - de que as almas dos
justicados vêm molestar os que os acompanharam à morte" (uHst, Ep*tolae Míxtae, t. V, 1555.1556, Matriti,
1901, pp. 354.355).
J4 "Soiam as mulheres acompanharem os mortos e faziam muito ruído e gritavam, e batiam com as mãos e
dilaceravam o rosto, e por isso ordenamos que os corpos mortos não fossem levados à igreja, caso elas não se
calassem pâra que os padres pudessem cantar as exéquias; vimos por experiência que isso não adianta e por-
tanto convimos proibir as reíeridas mulheres de Marsico, como de toda a diocese, sob pena de excomunhão.
de acompanharem os corpos mortos à igreja, mas como se íaz em Nápoles e em muitas outras nobres cidades
da ltalia que permaneçam em suas casas e se elas não quiserem assim proceder... que os padres não levem dali
o coÌpo morto, mas deixem-no na casa" (Giovanni Colangelo, In Diocesi diMarsíco nei Secoli XVI-XVÌIÌ, Roma,
i978, p. 140. O documento e de 1567). Cf. também G. De Rosa, Vscouí, Popolo eMagla nel Sud, Napoli, 1971.
pp. 70-71.
Os Missionários
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637
Quando retiram o morto de casa, acendem um pouco de palha, e gritam pelas ruas, "para
onde vai o corpo, vá também o espírito". Fazem um certo trigésimo pela alma dos defuntos, e vão ao
lugar do defunto, e 1á chegando, seguram a cabeça entre as mãos e começam a chorar copiosamente,
com tantos gritos que fazem rir. Mantêm todos os mortos expostos em pilhas, e as cabecas em certas
caixas, e amiúde as mulheres as pegam, lavam, e põem-se a gritar feito loucas35.
('abusos"
A intervencão dos *irrio.rerios contra esses foi decisiva:
Mandaram levar imediatamente as referidas cabeças e ossos de mortos e pediram que falássemos
tambem às mulheres, que demonstravâm apresentar mais diíiculdade. Falamos e tamanha éa estima
em que nos têm que, âo ouvirem-nos dizer que esses abusos deviam desaparecer, e o que deviam fazer
para sufragar as almas de seus parentes, olhavam admiradas umas para as outras.
3. A CONFISSÃo
Ritos de Passagem
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638
Era uma mulher de vida honesta que, tendo arranjado marido para a filha, antes de con-
sumarem, a mãe, enganada pelo demônio, começou a praticar más ações e a pecar com seu genro;
disso arrependida, foi lancar-se aos pés do confessor. Recebeu a pobrezinha a seguinte resposta: "É
melhor fazer assim do que ir o jovem atrás de outras mulheres fora de casa". Ao ouvir isso, a pobre.
zinha duvidou e encarou d confessor, para ver se era ele que dava tal conselho; e reconhecendo.o,
enganada assim em lugar de contrição retirou-se dali com ânimo resoluto de perseverar no pecador6.
resto, mesmo por outras vias essas vicissitudes contadas no confessionário tornavam.se
públicas. Transformavam-se em "casos notáveis", contados com finalidade edificante.
A íunção deles era essencial para construir a narração da missão - uma narração que
era parte integrante da própria missão. Aqui tambem, o conhecimento do historiador
é devedor de um uso do relato que era essencial à obtençao dos objetivos do missie
Os Missionários
r"
639
Um velho foi um dos o.r-"r.o. a vir confessar, dizendo que tinha nos esperado com muita
vontade, para que o livrássemos das garras do demônio, por quem era gravemente tentado e con.
tinuamente estimulado por desespero a enforcar.se. Já por dezenove anos vivia pertinazmente em
excomunhão com contumácia, cometendo vários pecados mui execrandos: fazia encantamentos,
como ele dizia, para curar enfermidades por meio de palawas supersticiosas e ímpias, sem manter
no entanto comércio aberto com o diabo. Tinha diversas obrigações de restituir coisas alheias, rou-
bando francamente quando podiar guardava no coração ódios mortais profundamente gravados,
tinha tentado com ato próximo violar ate a própria íilha e outra parente de seu sangue. E apesar dos
muitos desatinos, não se abstivera de procurar sacrilegamente os santos sacramentos da confissão e
comunhão, por temor humano, na Páscoa; na última, porem, desse ano, tendo recebido o santíssimo
sacramento teve a impressão de ter recebido uma chama ardente que lhe queimava a boca e também
o estômago; motivo pelo qual ficou sobremaneira assustado [...Ì]u.
Sobre o susto e sobre o terror tinha agido o sermão dos missionários, baseado
na parábola do filho pródigo. A estrategia da brandura fazia aparecer os mais sombrios
recônditos familiares e revelava os universos escuros das consciências.
Histórias dramáticas e entrechos venenosos emergem do fechado universo fami-
liar. Ate venenos reais, não metafóricos. É .tt" o caso, narrado pelos missionários na
Córsega, de um emaranhado de traições e de vendetas revelado e vazado no confes-
sionário. E a história de uma mulher casada e adúltera, que encontrou na confissão
geral o modo de livrar sua consciência e de contar seus medos quanto a uma vingan.
37. Carta do padre Agostino Vivaldi ao geral, Ragusa, 28 dez. 1607 (ARSI, Rom. 129 . I, c. Z25t).
38. Idem,c.554t.
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ça do marido; e o medo não era iníundado, como revelou uma parente da mulher,
sempre no confessionário. Essa segunda mulher contou ter aconselhado o marido a
desembaracar-se secretamente da mulher adúltera, matando.a por envenenamento;
"coisa que, tendo ele tentado uma vez, por disposição do ceu não tinha conseguido".
Apesar disso, "teimava a desatinada conselheira que era conveniente, em vista do mal
menor, {azê-la morrer de tal modo, para que não tivesse o marido que matar o adúltero
e que disso não decorressem inconvenientes mais graves: parecendo entre eles princípio
irrefutável que em causa de honra seja necessário 'derrubar' como eles dizem, algum,
alias non expietur. Não foi preciso pouco para dissuadi-la dessa por ela considerada pia
cooperação ao mal menor"3e. As razões de economia domestica da conselheira tinham
raízes fincadas no universo da família e nas confusões entre leis de honra e casuística
moral da igreja. A obra do missionário, tambem nesse caso, revela-se capaz de usar o
ií confessionário como um tribunal secreto onde os membros culpados da família são
convocados, interrogados, postos diante dos resultados de outros interrogatórios, con.
vencidos de sua culpa e, mediante atuação paciente, levados ao arrependimento e ao
abandono das práticas condenadas.
Esses casos revelam ainda que já estamos longe do panorama das "Índias" que
Landini presenciara nessas mesmas terras no seculo anterior. Os pecados graves e se-
cretos não mais possuem apenas a característica da violência bestial de uma natureza
não tocada pelo conhecimento do cristianismo; são pecados que têm origem no hábito
externo às obrigações tridentinas (a confissão anual) e na interiorizacão do sentimento
de culpa decorrente de determinados pecados apresentados como tais pelo clero dio-
cesano. A impressão é confirmada por um outro caso, narrado logo em seguida àquele
do velho feiticeiro. E a história de uma mulher que tinha "em tenra idade cometido
algo contra a castidade, sem pensar na hora que aquilo fosse pecado"l mas depois, "em
idade mais adulta", não só tinha descoberto que seu ato era um pecado, como tambem
se convencera de "que aquilo tinha sido uma culpa enorme, cuja taciturnidade inva-
lidava sacrilegamente as confissões". Essa nocão, absorvida evidentemente a partir de
ensinamentos catequeticos e sermões, não a impedira de continuar a confessar; já vimos
que a fama pública de uma mulher exigia que a confissão fosse feita regularmente e sem
complicacões socialmente perceptíveis. Assim, mesmo a mulher corsa tinha confessado
regularmente durante vinte anos, mas com a conviccão de estar cometendo sacrilégio.
Finalmente, a cotlissao geral resolvera a confusão. A regra que goveïna essas histórias
romanescas, registradas no confessionário e divulgadas para maior glória de Deus, e a
do final {eliz a providência divina é a de um padre bondoso que suspende a acão na
beira do abismo, estende a mão a quem caiu, extingue culpas enormes de uma tacada.
sem elucubrar se quem está confessando fálo por verdadeira contricão ou por medo
(do inferno, do marido ou de outra coisa qualquer). Nada se perde, nem sequer o suor
dos missionários debaixo do sol da Córsega; cada gota desse suor, "sob o açoite do sol
com o revérbero das pedras e do mar próximo", esvai-se "para refrigerio das almas do
39. Idem.
Os Missionários
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Purgatório"ao. Essa economia salvífica e confirmada pelo fato de que a selecão das his-
tórias, entre as muitas possíveis sobre o íundo ensanguentado das vendetas corsas, não
registra nenhum caso de morte; tudo fica protegido pelas paredes do confessionário,
onde as coisas são ditas e acertadas, sabidas mas não divulgadas (ou pelo menos, não
no ambiente que, porém, com muita frequência, já tem conhecimento delas por conta
propria) e onde quem sabe pode intervir, resolvendo cautelosamente até os "pecados
mui enormes".
solução provinha da amplitude dos poderes conferidos aos missionários. O
A ì
primeiro ato oficial com que se apresentavam à comunidade era justamente o anún-
cio dos poderes extraordinários que os autorizavam a absolver em confissão qualquer
pecado. Eram poderes concedidos em funçào da obra missionária fora da Europa e
encontravam justificação oficial na distância da sede apostólica romana, io^ conse-
"
quente impossibilidade para os habitantes de se dirigirem a Roma41. Porem, o conceito
de "Índias internas" revelava aqui sua utilidade, permitindo a aplicação desses poderes
extraordinários nas "remotas" populações dos campos. O relatório das missões em
Sabina do ano de 1607 diz isso muito claramente: "O modo mantido nessa missão e
o seguinte: tendo-se chegado a uma terra, procurava-se reunir o povo para dar ciência
daquilo que se pretendia íazer a.o tornar pública a indulgência plenária e a autoridade
apostólica de absolver"42.Eraum ponto importante: os jesuítas, exaltando a amplitude
dos poderes concedidos, abriam aos ouvintes uma perspectiva excepcional de perdão,
como aquelas que os peregrinos iam buscar em Roma nos anos de jubileu. Amplíssimas
indulgências, e sobretudo faculdades extraordinárias para a remissão dos pecados. As
indulgências eram tornadas públicas de muitos modos e descritas em impressos apro-
priados que exaltavam as vantagens correspondentes para quem se apoiava em uma ou
outra Ordema3. As faculdades especiais paÍa os coníessores, ao contrário, eram concessões
que constituíam o patrimônio cioso e invejado de todas as ordens religiosas dedicadas
às confissÕes: tão cioso e controverso que nas regras sobre as missões recomendava-se
aos jesuítas manter reservadas essas suas faculdades e impedir que caíssem em mãos
exteriores, eclesiásticas ou laicas que fossemaa.
A colheita não podia faltar. Acompanhemos ainda, a título de exemplo, os mis-
sionários da Sabina. Em Palombara, onde chegaram em 17 de novembro de 1605, entre
Ritos de Passagem
r--
642
as várias confissões gerais, ouviram uma de uma mulher iníanticida: "Tinha ela muitos
anos antes concebido e parido um filho e por medo de que soubessem, esquecendo.se
da piedade, tornando-se ocultamente carrasco da própria carne, retalhara em pedacos o
filho foi recebida com todo secretismo, '(sem
e sepultara-o sob a terra"45. Sua coníissão
manchar-lhe a honra". Não se tratava apenas de honra, o infanticídio era um crime,
punido com a morte. Entende-se que o poder que os missionários tinham de reintegrar
secretamente na comunidade cristã quem rompera as regras mais severas devia garantir-
-lhes uma função e um sucessos sem pares. Não se tÍatava apenas de competir com os
tribunais criminais; havia também matérias inquisitoriais entre aquelas ffatadas em
coníissão pelos missionários. Foram assim resolvidos problemas de magias, superstições
e bruxarias. Em Nerola, anotam os jesuítas, íoram encontradas "várias especies de breves,
sortilegios, encantamentos para curar anima's"46' em Petescia, "foram queimados alguns
breves supersticiosos"4i' em Aspra, veio à tona que havia superstições e "observacões de
Cecco de Ascoli, que eram observadas ate essa época"48; em San Polo foi encontrada
"uma diabolica bruxa": mas esse caso não parece ter sido resolvido no lugarae; em Ma.
gliano, mais superstições; mas também "encontrou-se um que tinha duas mulheres"5o;
em Tarano, "foram tiradas muitas superstições" e em Rochetta, além das superstições,
íoram tirados "remédios contra armas"51. Em Cottanello, a mesma anotacão: "foram
tiradas muitas superstições e encantamentos"5Z, A queima dos breves "supersticiosos"
criou alguns problemas, uma mulher de Petescia, revelou em coníissão usar um breve
no pescoco, que tirou por ordem do confessor e entregou-o a ele. Mas desencadeou-se
imediatamente uma crise: "Começou a berrar e a gritar como um animal de modo a
fazer'se ouvir por boa parte da tetra". O outro jesuíta, que acorrera à gritaria, arranjou
logo o remédio apropriado: "Pegando uma imagem do beato Estanislau Kostka ordenou-
-lhe em nome de Deus e pelos meritos do dito beato que se calasse": e a mulher sarou5l.
No mesmo lugar, ocorreram casos semelhantes no dia seguinte: duas mulheres, ambas
tambem tomadas por conr.rrlsões e visões assustadoras, sararam pendurando no pescoço
imagens de são Estanislau no lugar dos breves "supersticiosos". E as variadas e múltiplas
irregularidades são incontáveis.
Casos do gênero não eram absolutamente insólitos. Nos campos sienenses,
vários anos antes, um missionário tinha topado com o caso de uma íamília "muito
Os Missionários
r
ôri
54. Relatório do padre Girolamo Costa, Siena, 28 out. 1584, ARSI, Rom 126 b. I' c.330r.
55. Iden.
56. CÍ. S. Gruzinski, GIi l.lominrÀi,t del Messíco, trad. it' Roma, 1987.
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644
Há um grande número de mulheres jovens e de boa aparência, talvez tantas quantas haja em
qualquer terra de toda a Itália. Todos os homens coníiam em nós, ranto o clero quanto os seculares.
As muiheres ficam mui afeiçoadas; nós não somos mais santos que Davi, mais sábios que Salomão,
nem mais fortes que Sansão58.
57. Remeto para as indicações a uma densa nota de Guy Philippart S. I., Visiteurs, commissaires etinspecteurs dans
lt Compagnie de Jésus de 1540 à 1615, Roma, 1969, pp.773.224.
I 58. ARSI, Rom. 129.1, c.46r (ctrta de 14 de junho de 1605, anexada ao relatório da missão de Perugia, cc. 44r ss.).
:
Missionários
ri
64s
Ritos de Passagem
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646
O ano de 1600, dada a afluência de pessoas para o Jubileu, propiciou aos Padres extraordinária
matéria para exercer os ministerios da Companhia. Certo padre absolveu em duas mil confissões
gerais franceses, cuja piedade foi demonstrada no desejo e avidez de confessar. Entre esses houve
muitos que nâs revolucões de Franca tinham-se envolvido em pecados gravíssimos6l.
62. "Punti degli Annali del Collegio di Siena del Anno 1584", ARSI, Rom. 126 b. r, c.33Or.
63. ARSI, Rom. 129.1, c. 30r. ("Punti degli Annali 1597.1605": passagem reíerente a "Coníessioni").
Os Missionários
rt
647
-óããiiõ"érsia
suscitada no seculo XVIII pela questão do "sigilismo" em Portugal nasceu
justamente disso, de acordo com a relação que, na época, Ludovico Antonio Muratori
fez a respeito aos leitores italianos: tratou-se, segundo ele, de um conflito entre o clero
ordinário das dioceses e os missionários. O clero, frequentemente culpado de envolver-se
com as habitantes dos conventos femininos, não tolerava a intervenção dos missioná-
rios e difundira contra eles boatos caluniosos, em particular o de violar o "sigilo" da
confissão por quererem saber dos pecadores os nomes de seus cúmplices no pecado.
Ademais, observava Muratori, o confessor é ao mesmo tempo médico e juiz: e por isso
e direito dele interrogar o pecador a respeito do nome e da condição de seu cúmplice65.
Assim, conciliavam.se - pelo menos na aparência - as duas funções da confissão sobre
as quais toda a época tridentina tinha longamente discutido: como o duplo gume da
a
espada encantada, a confissão podia ser usada para consolar o penitente, bem como I
i
para golpear a sociedade culpada. E nessa tentativa de conciliacão tinha sido prodiga- 1
I
I
lizada a obra do missionário.
64 "Morbos animi aperire, initium est salutis" (Ìmago Pri mi SatcuLi Soctetnns le;u a Prwíncia FlandroBeLgíca eiusdem Societatis
Reprdesentdtd,Anwerpiae, ex oíficina Plantiniana Balthasaris Moreti, anno societatis saeculari 1ó40, p. 98).
65. L. A. Muratori, Lusítanae EccLesiae ReLiglo ín Admínistrando Poenitentiae Sacromento, et DecretaLis ea de Re Sanctis'
simi Patris Benedicti XIV. Pontíficis, Roboreti, ex tlpographia Marchesani, 1769, pp.323-321 e passim (agradeço
â Cecilia Nubola e Giuliana Nobili Schiera poÍ terem indicado e providenciado esse texto). Muratori fornece
exemplos para explicar de que modo juiz e médico podiam sobrepor-se na íigura do coníessor, entre outros,
o da empregada que revela em confissão ter sido submetida ao pecado em seu lugar de trabalho. O confessor
informa*e, descobre que há telação com o íilho do patrão, ouve esse úitimo em coníissão e depois vai ter com
Ritos de Passagem
XXXI
A VNcEM DO PPNPCRINO,
n PnoclssÃO DO MISSIONARIO
[...] Todos fieis, que podem ser verdadeiros cÍistãos, [...] tentarão com todo o íervor da mente
querer conquistar esse santo e novo lugar e toÍnar-se nele afáveis à congregacão da mente para co-
nhecer a claridade e a esplênclida luz e a suavidade e os odores que se encontÍam no ataviado lugar
[...] N"
novo pais [...] residem a glória e o repouso sempiterno; lá se encontram edifícios com paredes
resplendentes de ouro puríssimo adornadas de pedras preciosas [...] Nesse lugar jamais anoitece, ali
toda tristeza é afastada inteiramente, as harmonias e sons ardem no amor de Deus, lá as cadeiras são de
ouro adornadas de gemas preciosas cobertas de nobres clouraduras e tecidos bordados, cadeiras essas
nas quais sentam-se todos aqueles que se comprazem de ter labutado e conquistado esse novo país [...ì1
Muitos anos mais tarde, no final do seculo XVIII, outro homem de igreja recor-
reu às mesmas imagens para descrever os atrativos da Cidade Eterna, meta do cristão:
E enquanto eles andavam por esse lugar obtiveram mais gozos do que em partes mais Íemotas
do reino ao qual se dirigiam; e chegando mais perto da Cidade, puderam vê-la mais distintamente. Ela
era feita de pérolas e de pedras preciosas e as ruas eram pavimentadas de ouro; de modo que dada a
magniíicência cÌa cidade e do reflexo dos raios do sol nela, Cristiano caiu doente do desejo de ali entratr.
imagem persuasiva da vida humana no mundo e, ao mesmo tempo, modelou uma trama
romanesca que imprimiu sua marca na literatura profana. A viagem de Cristiano e a
aventura de um homem que deixa mulher e filhos e embrenha-se, contra a opinião geral,
num caminho dificil, repleto de perigos, afastando-se da cidade terrena de "Destruicão"
em busca da cidade santa de Sion. Durante a viagem, vê-se exposto a mil dificuldades,
a encontros perigosos: o caminho da Cidade celeste atravessa o vale da Sombra da
morte e a cidade de Vaidade, onde tem lugar durante todo o ano a Feira da Vaidade. E
nessa feira, "o primeiro lugar e das mercadorias de Roma", particularmente apreciadas,
segundo o autor, pelos consumidores ingleses. Aventura solitária de um homem que
rejeita o descanso, o deleite, para seguir o caminho correto, cantando suas cancões de
peregrino ("Quero ser, ele disse, cristão peregrino. I Nem espírito nem fantasma do
correto caminho I desvia.o, pois ele almeja seu reino no céu. I O que quer que diga
ou faça quem dele se aproxima, I Por nada ele se move: dia e noite I Segue animado,
aumentando seu zelo") a viagem de Cristiano poderia tambem ser vista por aquilo que
pretende ser: a fervorosa retomada de uma antiga imagem da condição humana.
If Entre todas âs metáforas da condicão humana, a da viagem e a mais ligada ao
ï cristianismo. O mundo romano ignorava-a3: o ingresso automático dos deuses de cada
cidade conquistada no,panteão da cidade sede do imperio era garantia contra tensões
religiosas e desequilíbrios rituais. Não por acaso a nocão do percurso cristão da civitas
terrena à celestial devia esperar a queda de Roma para afirmar-se: foi santo Agostinho
que fez ressoar a advertência de que a cidade dos cristãos não era a terrena e que para
eles não podia haver na terra uma manens ciuitas. Exilados na terra após a expulsão do
Paraíso terrestre - como ressaltou Sulpício Severo nessa mesma épocaa - os cristãos
só podiam ser presenças inquietas, animadas pela nostalgia do retorno: "Inquietum
est cor nostrum donec requiescat in te" (S. Agostinho). No tema espiritual da viagem,
da presença transitória do cristão no mundo, inseriram-se outros, só aparentemente
irmanados mas na verdade concorrentes, como os das viagens rituais aos lugares da
Paixão de Cristo e os das paixões dos mártires. Esse complexo nó de práticas salvíficas,
viagens rituais, busca da proximidade com os corpos santos ou da posse de relíquias
desses mesmos corpos devia caracterizar durante os seculos a história do cristianismo.
De fato, a viagem do peregrino que se firmou como prática coletiva a partir do
seculo XI uniu diversas características: viagem de expiação para obter o perdão garantido
pelas indulgências e para receber os efeitos beneficos ligados à proximidade dos corpos
santos, foi se tornando tambem viagem de conhecimento e de conquista; voltada ao
passado - a cidade santa hebraica de Jerusalem - mas direcionando ao mesmo tempo
para o futuro: a conquista da cidade celeste.
Desse emaranhado tinha nascido a propria ideia da missão em meio aos infieis.
E, por fim, de todo esse intrincado e árduo deslocarse de massas humanas do Ocidente
i. Cf. as observações de Nicole Beiayche, em Jean Chélini e Henry Branthomme, Histoire fus pélzrinages non chrétieru.
Os Missionários
r
651
europeu para o Oriente, tinha sobrado - com o fim das cruzadas e com o fracasso das
guerras religiosas - o movimento ritualizado de grupos humanos no percurso sagrado
da procissão.
Nos países católicos, a procissão foi o instrumento básico para o sucesso das missões
e foi, em geral, o aspecto dominante da ritualidade do século XVII. As procissões organi-
zadas pelos mais célebres missionários tiverarn imensa notoriedade no mundo católico do
seculo XMI; a habilidade do diretor consistia em sua capacidade de fazer viver no breve
percurso da procissão uma vida ideal de penitência como reparação pelos pecados que
tinham marcado o percurso real da úda. A missão penitenciária, à diferença da catequética,
serviu-se normalmente de formas dramáticas para levar os fieis "à contrição", e entre essas
a procissão foi a mais usada5. Mas as procissões não eram realizadas apenas por ocasião
das missões; pelo contrário, no decorrer do século X\llI, a organização e realização delas
ocuparam em medida cada vez mais ampla a vida social dos países católicos. Várias vezes
os bispos tiveram que interúr com decretos para regulamentar um aspecto da vida religiosa
que tendia a escapar-lhes ao controle: mas o limitado efeito de suas intervenções pode ser
mensurado pelas clamorosas "querelas" em matéria de precedências que explodiram repe-
tidamente e quase regularmente por ocasião das procissões. Que se fizesse tanta questão de
figurar com honra no ordenamento das procissões é só um indício da importância desses
eventos na vida social; mas por que eram tão importantes e um problema ainda em aberto.
A questão e muito mais ampla do que a parte que aqui nos interessa - justamente
a da relação entre missões católicas e procissões. Mas ambas têm a ver com a ritualização
do espaço, assim como foi praticada na Europa cristã naquela epoca. Para os cristãos,
o percurso mítico no espaço era paralelo àquele que a história sagrada configurava no
tempo: uma síntese e uma experiência pessoal do evento da Redenção. Como o ano
litúrgico sintetizava os tempos do evento, assim a relação ritual com o espaço devia
repercorrer seus lugares. A forma mais celebre e disseminada na Idade Média, a da pe-
regrinação aos lugares santos, mostrou com o recorrente aforar do espírito de Cruzada
como o conffole ritual do espaço sagrado podia tornar-se conquista de espaços reais.
Mas essa prática, alem de se tornar cada vez menos fácil após a queda de Constantinopla
nas mãos dos turcos, apresentava o inconveniente de ser dificilmente controlável pelo
corpo eclesiástico: daí a imposição de percursos simbolicos e de devoções específicas,
como as que se traduziram na construção dos Montes Sagrados.
Ora, que os missionários fizeram uso em terra católica foram outras
as procissões de
tantas repropostas do modelo dos Montes Sagrados, ia-se, em geral, de uma igreja dentro
do centro habitado a um lugar sagrado externo e durante o percurso eram representados
momentos da Paixão, historias de santos e de mártires. Eram histórias que o missionário
devia evocar com o poder da oratória, enquanto os fiéis, frequentemente organizados
em confrarias, cuidavam de sua representação teatral. A participação coletiva era macica:
5. Sobre a distincão entte missão penitenciária e missão catequética insiste justamente P. Giuseppe Orlandi,
"Missioni Parocchiali e Drammatica Popolare", Spicilzglum Historicum Congregatíonís SSmi Redemproris,X[, 1974,
pp. 313.348.
6. Constítutiones et Decreta Perillust. et Reterendiss. Domini D. PeLLegríni Bertacchii. Mutinensis Episcopi, Mutinae, 1612,
apudJulianum Cassianum, p. 175; mas cí. todo o decreto DeProcessíonibus, que retoma os decretos baixados
pelos bispos precedentes (iden, pp.174 e ss.).
7. O costume de levar rosâs nas procissões e a respectiva proibiçao são atestados por um descreto do bispo de
Piacenza Filippo Sega, cf. Synodus Díoecesana..., Placentiae, 1589, p. 169. A proibição de assistir dos balcões às
procissões como se íossem espetáculos teatrais encontÍa-se no decreto De Processíonibu.s do Srnodus Diocesana
Regiensis, Parmae, 1698, p. 182.
Nas noites insones de um adolescente que vivia em Recanati no início do século XIX, os assíduos temores do
escuro ligavam-se à cena penitenciária da "disciplinação noturna dos missionários" (Giacomo Leopardi, "Ricordi
d'Infanzia e di Adolescenza", emTuttelz Opere, Firenze, 1969, t, p. 360).
Os Missionários
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654
Tribunais da Consciência
r-
655
Japáo 544,546,565, 574, 575, 576,589, 592 Mesolcina, valle 304, 383, 384
Jerusalém 552, 553, 584, 650 Messina 61,545
Jesí 454n49 México 64, 4A3, 548,604
Lanciano 168 Michoacan 548
Lausanne 335,335n14 | Milão 81, 94,102,107, 111, llZnlí,115, 116-19,
Lavello 162 125, 133,144, 180, 181, 203, 218,262n38,
Lecco 381 274, 304, 308, 311, 3Zl, 322, 326, 327, 328,
Lepanto 593 329, 331, 334, 335, 336, 338, 355, 357, 368,
Leventina 335,383n22 381, 443, 446, 448, 450n41, 45ï
Lima 439 Moçambique 574
Lisboa 116 Módena 90, 90n11 e n12, 91, 92,95,108, 111,
Livônia 592 133, 150, 159, 169, l9l, 192, 216, Zl7, Zl8,
Livorno 428 719, 225,229n12, Z9l, 293n38,294, 309,
Lizzano in Belvedere 380 321, 322n7 , 338, 339,339n31, 340, 340n33
Lodr 409,426 e n34, 346, 368, 371, 372, 392, 398, 459,
Lombardia 529 459n60, 47 5, 47 5n8, 497, 508, 508rJ5, 539,
Lorena 169 554, 556, 557, 560n72
Loreto 280 Molfetta 424n8
Lorgnano 526n37 Molucas 544
Loudun 457, 457n56 Monferrato 390, 594, 598
Lucca 92, 95, 101, 108, 111, 111n14, lZ5, 126, Montalto 62
127, 130, 133, 192, Z5l, 310, 337n24, 344, Montasola 624
4lZ, 469, 555n49, 557 Monte Tortore 508n25
Lucchesia 337 Montecalvoli 779n26
Lucedio 595 Monteflavio 617, 624
Lugano 766 Montelibretti 600
Luni 343 Montemagno 595
Lyon 169,592 Montepulciano 406, 585, 600
Macau 574 Montereale 346
Macerata 635 Montório 642n47
Madri 187, 448, 576n35, 564, 567 Montserrat 482,483
Magliano 642 Morávia 571
*fTribunais da Consciência
r
657
276n18, 777, 345, 407n10, 600, 600n56, Valadoli 503, 503n7, 559
626n10, 643,646 Valcamonica lZ9, 134, 390
Sorrento 113 Valência 116, 116n31, 509
Spezzano J66,367 Valmaggia 637
Spira 99, 100 Valtellina 393
Squillace 455 Vêneto I3Z,496
Stilo 439 Veneza 75, 80, 84, 85, 87, 101, 102, 104, 111,
Suíça 92, 95,308,637 lZ7-44, 152, 154, 154nl57 e n153, 159,
Sutri 183 l64nZ7 ,165, 166,167 ,168n34,179, 180, 181,
Tanno 642 187, 196, 197, 198, Z0l,204,209,709n65,
Tarragona 267n34, 267 n53 235n26, 256, 257, 271, 273, 274, 297n49,
Tivoli 620 337n25, 368, 368n75, 378n5, 387, 397., 4ll,
Toledo ll7, l2Z,187, 313n18, 361,465n4,503n7 412,458,464n2 e n3, 485, 508n25, 514, 527 ,
Tolentino 606 57.8
Tolouse 551 Vercelli 591
Torre Pellice 173n1 Verona 165,3ll,3Zl, 327, 466, 505, 506, 514,
Tortona 390 604
Tortosa 169 Vicenza 102n45, 136, 297 n49, 361, 37 0, 49 5n46,
Toscana 116, 122, 125, 180, 214, 345, 414, 428, 626n9
629 Yico 735n27
Trecenta 220 Viesti 113
Treggiaia 315 Villanova 378
Treviso 199 Viterbo 554
Trezzo 330 Yoghenza 772
Triora 407 Volterra 345, 413
Turim 145, 145n123, 151n144, 179 Volturara 65
Turquia 540 Westfalia566
Udine 139, l5O,2Ol,7OZ '!íittemberg 243
Umbria 215 '!7ürttemberg 313, 313ú7, 617
Urbino 85 York 286
Urbisaglia 606, 607 Zurique 111,585
Íxnrcr oxotVtASTICo
Abad, Camilo Maria 478n15, 503n5, 504n10 Alexandre VII, papa 459,519n}l
Abbagnano, Nicola 288n22 Alfonso II d'Este 153,449n33
Acosta, Antonio de 477nll Alfonso Maria de Liguori, santo, veÌ Liguori, Al-
Acosta, José de 440n15, 461, 574, 574n717, 588, fonso Maria de
589,592 Alighieri, Dante 84n41
Acquaviva, Claudio 448, 449n35, 477, 477n10, Allé, Antonio (frei Francesco de Bolonha) 549
489, 490, 507 n24, 553, 5 53n42, 560n71, 561, Alonso de Córdova 577nl2I
561n73,576n118 e n119, 643,644 Alvarez de Toledo, Juan, cardeal 177,557,557n55
Adorni, Caterina (santa Caterina de Gênova) 78 Alvarez, B. ,150n39
Adorni-Braccesi, Simonetta 101n43, 111n14, Amabile, Luigi 62n1 e n3, 113n19 e n20, 115n28,
126n57 e n60, 251n9 e n10,344n44 Z7ln6
Adriano VI, papa 288n21 Amato, Angelo 292n36
Aggeo, proíeta 192 Ambrogio de Milão, {rei 134n77
Alberigo, Giuseppe 162n18 Ambrose, lsaac 5lZ, 5I7n5
Alberti, Leandro 84,159n4,160, 161, 161n14, Ameyden, Theodorus 77n16
250n6 e n7,39In44 Amiel, Charles759n29
Albertini, Arnaldo 260 Amigoni, Ferrante 186n42
Albicocco, Fabio 127n61 Amorosa, Argenta 396n67 ,408n14
Albino, Gentile 90n11 Anatra, Bruno 313n15
Albizzi, Francesco l27r.6I, 178, 178n63,1'29, Andrea de Asola 148
129n66, 137 n9 6, 178n 14, 713n3, 215, 3 47n37 Andrea de Modigliana 577nI24
Albrisio, Basilio 439 Andrea de Spoleto, frei 551
Alcala Galve, A. 503n6 Andreâ, Valentin 316
Alciati, Francesco 336nI9 Angelerio, Francesco 526n37
Alciato, Andrea 394n60, 438 Angelieri, Giorgio 385n75
Aldobrandini, cardeal 590n19 Angelo di Lorenzo, vulgo Riccio 275,276,276r.16
Aldrovandi, Ulisse 235 Ankar Ioo, Bengt 386n29
Aleandro, Girolamo, cardeal 9 4, 9 5, I0l, l0ln42, Anna d'Este 608n89
108,130, 130n69 Antonelli, Vittorio 4lZn24
Alessandro de Florença, írei 423,424 Antonia de Ferrara 397, 40I
Alessandro de Médici 345n41,359,37 5,375n100 Antonia di Bernardo 406n6
Alessandro de Riva l42nll6 Antoniano, SiÌvio 306n15
Alexandre VI, papa (Rodrigo Borgia) 174,389, Antonio de Brugnato, ftei,428, 428n70
390 Antonio de Faenza, frei 184
660
i:rhunaÍs Ja Consciência
r-"
661
Índice Onomástico
Borromeo, Carlo, cardeal, (Carlos Borromeo, san- Buonarroti, Michelangelo 78, 174
to) 114, ll4n23, ll5n27, 123n48, l74n5l, 146, Buondelmonti, Baccio de Manente 125n55
146n, 148, 148n, 167, 168n34, 170, 170n40, 171, Burali, Paolo 317, 318, 370n80
l7In42, 203n50, 254n21,303, 304, 304n11, Burke, Peter 3 54n18, 3 56n27,368n7 4, 37 9n7
305, 307, 308, 313, 314, 3l4n2l, 315ú7, 318, Burlamacchi, Francesco 125
319, 321, 377, 322n9, 323, 326, 327, 327 n28, Burnyeat, John 568, 568n97
328, 3Z8n3l, 329, 331, 337, 332n2,333.38, Burton, Robert 509, 509n29
344, 355-59, 360, 360n42, 37 9, 37 9n6, 38043, Buschbell, Gottfried 86n47,94n20, 158n2 e n3,
384, 384n23, 429, 429n25, 446, 467, 47 3, 47 6, 161n16, 163n20, 196n24, Z30nl4, 236n29
496, 505, 506, 515, 533, 598, 607r.83, 629, Busdraghi, Vincenzo 337 n24
630,633,657 Bussagli, M.542nll
Borromeo, Federico 3I4n20, 379, 443, 449-5I, Butzer, Martin 159, 402, 539
529n44 Buzio de Montalcino, Giovanni, frei 200n36
Borsatti, Francesco 221 Cabantous, Alain 483n9
Borsetti, Giovanni Domenico 218 Cacciaguerra Bonsignore 782, 282n3
Boscaro, Adriana 57 5nll4 Caiazza, Pietro 344n43 , 422n2
Bossuet, Jacques-Bénigne 155 Calandra, Endimio 185
Bossy,John 284n6, 285n17,305n14, 326n24, Calandrino, Michele, frei 508n25
465n5, 493n40, 507n2, 515n13, 633n25 e Calbetti, Arcangelo 229n17, 339n31
n26 Calcagno, Daniele 607n83
Botero, Giovanni 152, 616 Calcagno, Francesco 141
Botio, Sigismondo 258n27, 274,774n12, 466n6 Calino, Muzio 168n35
Botticini, Agostino 219 Calvino, João 88, 88n6, 120, l2l, 193, 195, 197,
Bottoni Pavese, Cesare 278n25 198, 198n29, 200, 299, 351, 356, 361, 402,
Botturnio, Anselmo 77 438, 44r, 445, 572, 609
Bozza,T.327n27 Cambiagi, G.279n28
Branthomme, Henry 650n3 Camilla de Simone 4lZ-13,414
Brasavola, Antonio, vulgo Musa 391n45 Camilli, Camillo 385n25
Braunsberger, Otto 487n18, 558n62 Camillo de Lellis, são 468
Brecht, Ma:lcín 474n4 Campa, Angela 227
Brenz, Johannes 99 Campana (Campanina), Olimpia 277, 278,
Bresciani, Pietro 250n7 278n73
Brigham, Kay 54Znll Campanella, Tommaso 226, 439
Brilli, A. 509n29 Campanelli, Marcella 427 r.l9
Brocadelli, Lucia de Narni 444 Campeggi, Alessandro, bispo 103, 103n48, 162
Brondi, Maria Caterina (detta la santina di Sar- Campeggi, Annibale 319n1
zana) 453, 453n47, 457, 457n55 Campeggi, Camillo 153, 185n39,214
Brooks, Peter Newman ll7n34 Campeggi, Gian Battisra 159n5, 160n13
Brown, Judith C. 575nll4 Campeggi, Giovanni 123n49, 559
Brucioli, Antonio 109, 609 Camporesi, Piero 543n17
Brugnalesco, Valeria 378n5 Cancila, Orazio 214n4
Brunetto, Orazío 289n25 Candido, Giacomo 532n3
Bruno, Giordano lZ8, 202, 635 Canisio 487n18, 556n51, 558, 558n62, 591, 594,
Buffardi, Adriana 297 n49 595, 598
Buiato, Daniele 365 Cano, Melchor 284, 284n7 ,485, 503
Bullinger, Heinrich 200n37 Canosa, Romano 103n47, ll5n29, lI9n37,
Bunyan, Johr. 649n2 178n64, 131n71, l45nl2Z, 407 n8, 465n4
Tribunais da Consciência
r
66i
Índice Onomástico
r
Tribunais da Consciência
r
665
Cruz, Magdalena de la (sóror MadaleÍa) 443 730n15, 271n7, 777n8, 289n25, 365n66,
Cupis, Gian Domenico de 137n95 390n41
Curione, Celio Secondo 125, 169,169n38, 194, Del Monte, Innocenzo, cardeal 138n100, 149
194n18, 198,351 n137, 16l, 161n16, 162, 165, 236n29
D'Addario, Arnaldo l2ln43, l45nl72 Del Rio, Martin 408, 461n63
D'Agostino, Mari 3 29n38 Delcorno, CarIo 254nZl
D'Alessandri, Paolo 384n23 Delfino, Giuseppe l52nl45
D'Ancona, Alessandro 356n25 Del1a Casa, Giovanni 130, 139
D'Haussy, Christiane 97n30 Del1a Corgna, Fulvio, cardeal 315
Da Mula 167, 167n37 Della Porta, Gian Battista 387
Da Ponte, Ltigi325nZ3 Della Rovere, Giulio Feltrio 424
Dainville, F. 547n29 Delminio, Giulio Camillo 273
Dal Legname, Francesco, bispo 378 Delumeau, Jean 244, 244n3 e n4, 245n6, 284n10,
' Dall'Occhio, Antonio 531n1 3 56n77, 361n44, 429n28, 573n I 10
, Dall'Olio, Guido 149n137, 150n142,161n14, Denzler, Georg 566n85
250n6, 292n32, 399n7 6, 47 0n20 Derosas, R. 368n75
' Dalla Tôrre, Giuseppe 434n7,435, 435n4 Desiderata, Francesca 311
Dalle Donne, Sebastiano 306n15 Di Fiore, Giacomo 546n78
Dalmases, Candido de 482n8 Di Simplicio, Oscar 777n20, 626n10, 628n15
Dàn, R.438n11 , Diels, H. 631,631n22
Dandino, G. 138n98, 141n110 Dini, Giovanni Camillo 444
Davidico, Lorenzo 769, Z69nl, 27 0, 485 Dionisotti, Carlo 72n5 e n6, 7 5, 7 5n14
De Antoni, Dino 380n10 Diotisalvi de Foligno 310
De Biasio, Luigi 82n33, 201n42,207n45,237 Ditchfield, Simon 105n2, 190n3
n10, 508n25 Dittrich, F. 131n73
De Bujanda, J. M. 97n33, 118n36, 139n102, Dulcino, frei 88
755n73, 256n74,312n10 Dollinger, Ignaz Von 242, 497n48
De Caro, G. 511n2 Domenech, Girolamo 555, 555n47 ,607n81
De Cotes, Ludovico, bispo 543, 626r.ll Domenichi, Ludovico lZ0,IZl, lZ3
De Frede, CarIo 204152 Domenico de Ímola, írer 2?8n24,294, 322n7
De Funes, Martin 565 Domenico de Treggiaia 279n76
De Gubernatis, Domenico, ftei 573 Domenico di Simone 315
De la Fratte, Giovanni 81n31 Donà, Francesco 129
De Leva, Giuseppe 174n3 Donattini, Massimo 551ú7
De Luca, Giovanni Battista, monsenhor 213, Doni, Anton Francesco 84,351
ZÍ3n3,214, Zl5, 577n40, 528n43 Donnelly, John Patrick 570n100
De Luca, Giuseppe 174, 174n2, 457n44 DoraÌice de Siena 4l7n2l
De Luca, Maddalena 174n2 Dotti Colla, Giovanni Tommaso 219
De Maio, Romeo 282n3,4Z7nl9 Douais, C. 99n37, 190n4
De Rosa, Gabriele 86n47 ,92n16, 3l2nl2, 379n6, Drei, G. l55nl55
603n67, 636n34 Duchet, Michele 546n28
De Sanctis, Francesco 356 Dudith, Andreas, bispo 169, 169n38
De Simone, R. 146n128, 180n20 Dufour, Gérard 479n18
Dedieu, Jean-Pierre 313n18, 361n46, 465ú Duke, Alastair ll7n34
Del Bene, Paolo Andrea 604n71 Durelli, Giuseppe 219
Del Col, Andrea 129n67, 134n77, 135n84, 136 Duval, André 288n}l, 297n36
n88 e n91, 139n103, 141n111 e nllZ, Z0ln44, Ebner, Pietro 607n88
Indice Onomástico
r'"
666
Eck, Johann 99, 99n39, 288, 288n21, 482, 482n3 Fatinelli, Pietro, 125
Eliano (depois Romano), Gian Battista, 66,564, Fausti, D. 324n18
570 Favilla de Mezzana 225,367
Ellero, G. J65n66 Febwe, Lucien Z4Z, 243, 244, 249, 249n2, 385
Emanuele Filiberto, duca di Savoia 145, 146,591 Felici, L. 107n5
Equicola, Mario 72n6 Feo, Michele 324n18
Erasmo de Roterdã 83, 89n10, 97, 176,181, 194, Fernandez, Ernesto Garda 286n17, 3lZnl3
197,284,482,501,501n1, 609, 609n91 e n92 Fernando da Áustria 449n33
Erba, Achilie 145ú26 Fernando de Aragão 111
Ercole II d'Este, duque de Ferrara 74,87n2,88, Fernando de Bourbon 155n155
88n5, 90n11, 95n24 Ferrante, Lucia 626n9
Ercole, Domenico Antonio 325n73 Ferrareòi, Guerino 310n3
Ernst, Germana 394n60 Ferrari, Giovanni Battista 27 2, 27 2n9
Escamilla-Colin, Michèle 227n7, 388n34, 394 Ferrari, M. 612n104
n59, 509n30 Ferraris, Lucio 369n78, 561n74
Escandell Bonet, B. 503n6 Ferrazzi, Giuseppe 219
Escobar del Corro, Juan 229n13, 47 4n4, 509n32 Ferrero, Pier Francesco 140n105
Estrada, Francisco de 604n72 Ferri de Massafiscaglia, Andrea 223
Evangelisti, Claudia 368n74 Ferro, Donatella 589n17
Eymeric, Nicolau (Nicolaus Eymericus) 227, Fieschi, Luigr 272
227n6, 234,735n75, 237.38, 763n44, 363, Fieschi, Niccolo, bispo 114, ll4n23,ll5n77
363n53, 370,399 Filipe II de Habsburgo, rei da Espanha 63, Il5,
Fabbri, Tommaso 219 115n30, 117, 118, 185, 187, 213n2,371,403,
Fabbroni, Francesca (sóror Francesca) 457, 403n87, 446, 448, 534, 554n43, 564, 565,
457n54 574, 57 5, 592n27 , 597 , 605
Fabri, Baldassare 103n48 Filippi, Lucrezia 3Z5nZl
Fabris, Giobatta de, fter 527 Filippo de Pancalieri 590
Fabro, Pietro 552 Filippo Neri, são 5lZ, 545, 546
Facchinetti, Giovanni Antonio 104n51, 147, Fine, Agnès 633n26
l4Znll3, n115 e n116, 143n117,186n45, Fiore di Francesco de Crespoli 378n5
t87, 4t7, 578 Fiorini de Pescia, Stefano 225n3
Faelli, Stefano 357, 357nll Fiorini, Vincenzo 461n63
Faello, G. 8.196n75 Firpo, Luigi 188n53, 202n46, 703n52
Falcioni, A. 367n51 Firpo, Massimo 83n38, 90n11, 91n13 e n15,
Fanini, Fanino, de Faenza 107, 107n5, 182, 92n16,95n74 e n76, ll4nZ6, I58nZ,159n7,
182ú6, t9t, 196, 198, 199 174, l7 5n4, l79nl7 ,181n23, 201n40, 231n 18
Fanti, M. 160n11, 380n9 e nl9, 235n27, 249n3,450n38, 486n14,
Fantinelli, Giovan Battista 706n59 554ú6, 555n48 e n49
Fantini, M. P. 381n12, 497n52 Fisher, John 288n21, 303
Fantucci, Francesco 344n44 Flacio Illirico, Matteo 434n3
Fara, Giuseppa 417n5 Flaminio, Marcantonio 7 6, 77 3, 351n9
Faralli, Carla 581n2 Flaminio, Sebastiano 351, 35In9
Farina, Giuseppe Maria 218 Flandrin, Jean-Louis 625n8
Farinelli, Giuseppe 382n15 e n18 Flynn, Maureen 361n47, 364n59
Farnese, Alessandro, cardeal, ver Paulo III, papa Focher, Juan, frei 564n79
Fasani, Antonio 311n9 Folena, Gianfranco 609n93
Fasano, Elena lZZn45 Fontana, Bartolomeo 87n 1, nZ e n4, 88n6, 107n4
i
Galilei, Galileu 127 Giorgi, Roberta 516n15, 530n47
I Gallo, Gabriele 508n25 Giorgio di Montelauro 325n20
t
Índice Onomástico
r "'
668
Giorgio Siculo, monge 158, 166, 169, 198,202, Grandi, Giulio 199, 199n33
35t Granet, Marcel 581n1
Gios, Pierantonio 311n7, 377n1 Grassetto, Niccolo J77n I
Gioseppe de Fano 597n44 Grattarola, Marco Aurelio 452, 453,453n46
Gioseppe Maria de Parma 577 Greco, Micheie 275
Giovanni Battista de Ascoli 577nlZ4 Gregori, D. 155n154
Giovanni Battista de Crema, r.'r-rlgo il Cremaschi- Gregório de Bornate 287, 482
no 162 Gregório IX, papa 362n51
Giovanni Battista de Ferrara 452n45 Gregório XI, papa 399n74
Giovanni Battista de Milão 209n65 Gregório XIII, papa 234, 313, 314, 376, 343, 401,
Giovanni Battista de Pistoia 519 554n43, 563, 563n77, 565, 574, 64ln4l
Giovanni de Fano 176,196,197 Gregório XV, papa 410, 509n37
Giovanni de Módena 81n32 Gregory, T.97nl6
Giovanni de Pian del Carpine 574nI11, 584 Grendler, Paul F. 83n39, 129n65, 140n106,
Giovanni de Roma 180 141n111
Giovanni de Rubiera 550n37 Griani d'Urcisoni, Aurelio, frei 166, 175,175n7
Giovanni Gioacchino de Passano 272 Grigoni, Alessandro, frei 218
Giovanni Stefano de Crema 526n38 Grillo, Giovan Matteo 104, 104n50
Girolamo de Correggio, cardeal 105, 185 Grimani, Giovanni 139, 166, 167-69
Girolamo de Michelagn oIo 424n7 Grimm, Jacob 634n28
Girolamo de Solana 73n8 Grimm, \üíilhelm 634n28
Giuliani, Angelo 150n143 Griot, Pierre 180
Giulio de Brescia 137n93 Grisonio, Annibale l8ln24
Giulio de Milão 182 Groscio, Marco Antonio 550n35
Giulio de Tiene 136 Grossi, Paolo 374n98
Giunti, Filippo 350n4 Gruzinski, S. 643n56
Giunti, Iacopo 350n4 Gualandi (Gualano), Ranieri 270, Z7ln6
Giustiniani, Tommaso 7 5, 567 Gualteruzzi, Carlo 96n29, 109n11, 110n12
Giustiniani, Vincenzo 153 Guarini, Battista 623n2
Gleason, Elisabeth G. 75n13 Guerrero, Pedro, arcebispo 169, 291,293, 502,
Goller, 8.297n34 503,504
Gollner, C. 584n7 Guerrini, Paolo 322n8
Gomez de Morais, Francisco ll6n3Z Guevara, Antonio de 543n16
Goncalves de Câmara 482 Guggisberg, H. R. 241n1
Gonzaga, Ercole, cardeal 164, 165n28, 185 Gui, Bernardo 190
Gonzaga, Ferrante l8lnZ4 Guibert, Joseph de 491n31
Gonzaga, Francisco, cardeal 89, 105n1, 111,573, Guicciardini, Francesco 80,80n27, 84, 89n8
573n108, 587n14 Guida, F.592n25
Gonzaga, Giulia 112 Guidetti, A. 539n1
Gonzaga, Luís (Luís Gonzaga, são) 545 Guidi, Elisabeua223
Gonzalez de Mendoza, Pedro 293, 293n38, 303 Guidiccioni, Bartolomeo, cardeal 95, 101, 111,
Gonzalez Novalin, José Luis 756n24,559n64 177
Gonzo, Girolamo 361, 370 Guidiccioni, Giovanni 81n30
Gra( Arturo 650n4 Guyon, Madame 452
Graf, F. 387n31 Haemstede, Adrian van 200n39
Grandi, Antonio Marra 7ZZ Hair, E. H. 572n106
Grandi, Casimira 309n2 Hakluyt, Richard 571, 572n106
Tribunais da Consciência
r.
669
Índice Onomástico
7.'" rll
,i
670
Landini, Cristoforo 555, 556, 557, 557n55, 558, Locatelli, Giacomo Z06n6l
558n60, 560n70, 570, 612, 619 Locati, Umberto 105, 105n2, 189n3, 233, 233nZZ,
Landini, Silvestro 69, 539-42, 544, 545nI8 e nl9, 234, 750n5, 25Ztl3, 259n30, 302, 302r.5,
547,590,598,615 336, 336n21, 400, 400n78, 401
Lando, Ortensio 83, 199, 200n36 Loffredo, bispo 312
Lanzoni, Francesco 187n50 Lombardo, Leonardo 139n104
Laorca, Raffaella 383nZZ Lopez, Luis 441
Lauchert, Friedrich 164n27 Lopez, Pasqual 207 n67, 3I7 n29 , 406n5
Laurerio, Dionisio, cardeal 95 Lordaux, V.755nZl
Lauro, Vincenzo l45nl74 e n125, 151n144, Loredano, Lorenzo, fteí 772
186n44 Lorenzetti, Pietro 78
Lavin, Irving 161n17 Lorenzini, Antonio 321n7
Le Roy Ladurie, E.3Z3nl3 Loschi, Agostino 169
Lea, Henry Charles 242, 242n2, 244, 279n27, Lotti, Ottaviano 89
3Z3nl4, 336n70, 388n34, 503n8 Lucia de Narni, ver Brocadelli, Lucia de Narni
Leandro de Capugnano 367 Lucrezia del Peloso 407n8, 468
Leão, X, papa 71, 435,562 Lucrino, Vincenzo 306n18
Lefèwe d'Etaples 243 Ludolfo il Certosino 449n36
Leites, Edmund 305n13, 493n40 Luis de Granada 364,364n61, 598
Lemaitre, Nicole 183n29 ' Luís Gonzaga, são, ver Gonzaga, Luís
León, Lucrecia de 446,448 Luis XIV, rei da França 336
León, Pedro de 371n85, 617,612n107 Lumnius, Giovanni Federico 542, 542n12
Leonardi, Giovanni 7 6, 7 6n15, 306, 5 5 5n49, 5 65, Lupatino, Baldo, frei 135,196
565n84 Lupi de Bérgamo, Ignazio 767r.54
Leonardo di Pasquino de Loro 175n55 Lurati, Maria Luisa 332n3
Leone de Dozza776,475 Lurati, Ottavio 327 nZ8, 332n3, 335nll, 379n6
Leoni, Paolo, bispo 489 Lusitano, Giovanni 406
Lerri, Michelangelo, frei 339n31, 340, 340n34 Lutero, Martinho 71, 7 lnl, 7 2, 7 3, 7 3n9, 7 5, 76,
Léry, Jean de 572 77, 78, 80, 80n29, 81, 82, 90, 96, 97, 98, 100,
Lestringant, Frank 241n1, 57Znl07 l0Z, 133, l47nl3l, 164, l64nZ3, 194, 241,
Leturia, P. 607n84 243, 247 , 254, 284, 285n10, 288, 289, 299,
Levita, Elia 570 302, 371n7, 378, 402, 436, 437, 438, 441,
Leyva, Virginia de 474n5 442, 445, 481, 482, 488, 501, 501n1, 502,
Liénhard, M. 99n39 540, 540n5, 541, 543, 596,612
Lievsay, John 84n41 Lutz, Heinrich 161n16
Lightbown, R. W. 188n52 MacCrie, T. 196n74
Liguori, Alfonso Maria de (Alfonso Maria de Li- Maceratini, Ruggero 98n34
guori, santo) 373, 374n96, 563, 630 Maceroni, Giovanni 379n6
Linguardo, Francesco 162 Macfarlane, Alain 512n5
Lippomano, Alvise, bispo 94n20, 158, 487n18 Mack, Peter 188n52
Lippomano, Francesco 133n76 Maddalena de Ferrara 398, 398n70
Llamas Martinez, Enrique 443n19 Madruzzo, Cristoforo, cardeal 164, 169, 186
Llorente, Juan Antonio 276,726rt5 Maffei, Bernardino, cardeal 130n68, 269n1
Maffei, G. P. 553n41
Loarte, Caspar 484, 596, 596n41, 597n43, 607, Magagnini de Calci, Rosa 524, 525
607n83 Magnavacca, Marco 191, 192
Locatelli, Eustachio, frei 168 Mainardi, Faustina 454
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671
Índice Onomástico
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677
Tnbunais da Consciência
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Índice Onomástico
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Lorenzo Lotto, A Queda dos Hereges, 1524, particular. Trescore (Bergamo), (Jratório Suardi
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9. PubLícação das Sencenças Pronuncìadas peLo Tnbunal da Inquístçao, ilustração do século XVll. Milão, Coleção
Cívica Bertarelli.
lA. Amestrar os lgnoranres, de Giovanni Battista Romano (ou Eliano), Doctrina Christiana, Roma, 1587.
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12. Giovan Francesco Barbieri, dito o Guercir"rct, Cttbeça eTorso de uma Brzxa Sinriesca. Vindsor, Biblioteca Real
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13. C iovan Francesco Barbieri, dito o Guercino , Uma Bruxa Condenada pelo Tribunal da Inquisiçao, cerca de 1625.
14. Domenico Beccaftrmi, Cena de Tortura. Paris, Museu clo Lourre, Departamento deArtes Gráficas.
15. Giovan Francesco Barbieri, clito o Guercino, Srio Pedro Martír, 7647. Bolonha, Pinacoteca Nacional.
16. Carlo Bonomi. O Anjo da Guarda, final da terceira décacla do seculo XVII. Ferrara, Pinacoteca Nacional
do Palazzo dei Diamenti.
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17. E. von Schayen, Os Poderes Mrigicos dos Feiticeiros e do CLero e Dú+iidas do Médíco. ex-voto do médico e íilósoío
de lmola Giovan Battista Codtonchi (1564.1626). Ìmola, Pinacoteca Municipal.
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18. Giuseppe Maria Crespi, A Comunhão, cerca de Dresden, Staatiche Kunstammlugen, Gemáldegalerie
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19. Giuseppe Maria Crespi, Sao Joao Nepomuceno Con/essa a Ratnha da Boêmia, cerca de 1740. Turim, Galeria
Sabauda.
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20. Giuseppe Maria Crespi, A Missrio, cerca de 1730-1740. Heidelberg, Kurpíâlzisches Museum.
21. Aureliano Milani, A Missão, segunda década do século \iII. Bolonha, Coleção MolinariPradelli
r
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22. Jircques Callot, Os Mrírtires dolapao, cerca cle 1ó30. Nancy, Museu Histririco Lorrain
TítuLo Tnbvtvis da Corcciêncis. Inquísidores,
Confessores, Missiondrios
Autor Adriano Properi
Tradutor Homero Freitas de Andrade
Produçã.o Marilena Vzentin
Projeto Grdfico Marcelo Masuchi
Liris Tribuzzi
Capa Nívea Pascoaloto
Editoraç,lo Eletrôniu Liris Tribuzzi
Bruno Tènan
NÍvea Pascoaloto
Reuísao Técnica e de Traduçao Adone Agnolin
Reeisão àn Texto Marilena Vizentin
Revisão de Protas Hermelino Barboza
MariÌena Vizentirr
Dívulgaçõ,o Regina Brandâo
Cinzia de Araujo
João Argentin Neto
Bárbara Côrtes
Seuetaia Edítoial Eliane dos Santos
FoÍmdto 18x26cm
Tipologíd Goudy Old Style
\ Papel Certifìcado FSCo Cartão Supremo Alta Ahmra 350 g/m} (capa)
Certificado FSC@ POlen Soft 80 g,/m2 (miolo)
Número de Ptiginas 704
Tirogem 1 500
CTP, Impressdo e Acabamento Rettec Artes Gráficas