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APOIO:
CONCEPÇÃO E CRIAÇÃO
Brava Companhia e colaboradores
FOTOS
Fábio Hirata
Imagens que ilustram esse caderno:
Espetáculo “A BRAVA” no centro de São Paulo – agosto / 2008
Espetáculo “O ERRANTE” no Sacolão das Artes – março / 2015
Espetáculo “JC” no Sacolão das Artes – agosto / 2014
Espetáculo “ESTE LADO PARA CIMA” no centro de São Paulo – julho / 2010 e novembro / 2014
Processo “JC” no Sacolão das Artes – agosto 2014
Espetáculo “Corinthians, meu amor – segundo Brava Companhia” no Sacolão das Artes – outubro / 2014
PRODUÇÃO
Kátia Alves
BRAVA COMPANHIA
Ademir de Almeida, Cris Lima, Fábio Resende, Henrique Alonso, Joel Carozzi, Kátia Alves, Luciana
Gabriel, Max Raimundo, Márcio Rodrigues, Rafaela Carneiro e Sérgio Carozzi
CADERNO DE ERROS II
Ademir de Almeida
Fábio Resende
Max Raimundo
(organizadores)
2ª edição
São Paulo
LiberArs
2015
Brava Companhia – Caderno de Erros II
© 2015, Editora LiberArs Ltda.
ISBN 978-85-64789-83-6
Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho
Revisão Ortográfica
Brava Companhia
Editora LiberARs
Revisão técnica
Cesar Lima
Editoração e capa
Fabio Costa
Impressão e acabamento
Gráfica Rotermund
ISBN 978-85-64789-83-6
CDD 812
CDU 792
Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio,
das páginas que compõem este livro, para uso nãoindividual, mesmo para fins didáticos,
sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.
Foi feito o depósito legal.
CADERNO DE ERROS II
MAIS ERRADO QUE O PRIMEIRO, MAIS CERTO QUE O TERCEIRO!................................ 11
Trecho da peça Corinthians, meu amor – segundo Brava Companhia – uma ho-
menagem ao Teatro Popular União e Olho Vivo,
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CADERNO DE ERROS II –
Mais errado que o primeiro,
mais certo que o terceiro!
Prólogo
Nós da Brava Companhia temos o imenso prazer de dizer que continuamos
errando!
O que é o certo? O certo é o cordialmente imposto: é a competitividade, é a
loucura desenfreada do dinheiro, essência do capitalismo, sistema que oprime o
humano aplicando violentas injeções de ilusão por meio do consumo que, como
uma droga, cria a felicidade programada com prazo de validade e duração. É a
diária justificativa das atrocidades contra a vida na terra por meio de falsas
verdades (mentiras) que tem como base da existência o capital, o lucro a
qualquer preço, os números. E por falar em números...
2011, ano que esta publicação foi escrita; 7 bilhões é o número estimado da
população mundial; 1 bilhão de famintos, e nunca se produziu tanto alimento -
alimento não, este nome é errado. O certo é commodities - que significa
mercadoria. O certo é que, quem tem dinheiro compra mercadoria, e quem não
tem, não compra. Se comida é mercadoria, apenas quem compra se alimenta (ou
seria se “mercadoriza”?) O certo é que um mais um são dois solitários, ou ainda,
dois concorrentes.
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Neste Caderno de Erros II, trataremos do nosso percurso de fazer um teatro
errado, contrário às imposições formais da indústria cultural, um teatro que é
teatro e não mercadoria, feito por trabalhadores e trabalhadoras que se
enraivecem e se divertem na busca do entendimento das questões que afligem e
oprimem o humano ao longo da História... Que continua. Um teatro pensado
coletivamente cujo pressuposto principal é revelar as contradições da vida em
sociedade e expor as necessidades urgentes de lutas e revoltas que tenham
como finalidade a superação desta sociedade injusta e castradora do ser.
Aos companheiros e companheiras dizemos: nosso ERRO é consciente!
Com diversão,
Brava Companhia
Dezembro de 2011
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BRAVA COMPANHIA
“Somos aquilo que nos lembramos e, além disso, eu cos-
tumo acrescentar, somos também aquilo que podemos
esquecer”.
Ivan Izquierdo em “Utopia e Barbárie”- filme de Silvio
Tendler
Grupo de teatro; trabalho horizontal; teatro crítico; Sacolão das Artes; rua;
espaço não convencional; diversão; humor; técnica para clarificar o conteúdo;
estudo; ação, história; para e com o povo; luta de classes; Parque Santo Antônio;
pesquisa; continuidade; A Brava, O ERRANTE, ESTE LADO PARA CIMA – Isto não
é um espetáculo; Corinthians, meu Amor – segundo Brava Companhia - uma
homenagem ao Teatro Popular União e Olho Vivo; trabalhadores e
trabalhadoras... Companheiros e Companheiras...Brava Companhia.
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SACOLÃO DAS ARTES I
A atitude crítica
É para muitos não muito frutífera
Isto porque com sua crítica nada conseguem do Estado.
Mas o que neste caso é atitude infrutífera
É apenas uma atitude fraca. Pela crítica armada
Estados podem ser esmagados.
A canalização de um rio
O enxerto de uma árvore
A Educação de uma pessoa
A transformação de um Estado
Estes são exemplos de crítica frutífera.
E são também
Exemplos de arte.
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Desde 2007 temos construído possibilidades para que o Sacolão das Artes
figure na contra-mão da lógica do entretenimento e da indústria cultural. A Lei
de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo tem apoiado ações
importantíssimas para a continuidade de nossos trabalhos, bem como para
ampliação e potencialização de ações que ocorrem no espaço.
O espaço do Sacolão possibilita autonomia aos que nele trabalham e é
coordenado por um Coletivo Gestor formado por integrantes dos grupos
sediados ali, moradores e moradoras da região do Parque Santo Antonio que
utilizam o espaço para realização de atividades pontuais e militantes do
processo de luta pela ocupação e continuidade do Sacolão das Artes.
Após diversas disputas políticas, o Coletivo Gestor do Sacolão das Artes
consegue o primeiro documento de Cessão de uso Precário do espaço. Na
ocasião da assinatura deste documento, cerca de 200 pessoas compareceram ao
“evento” em apoio à luta pelo espaço. Foi entregue o documento que dava
garantia de uso por três meses renováveis à Cooperativa Paulista de Teatro, que
esteve representada na ocasião por seu presidente Ney Piacentini.
Na esteira do acontecido, o Coletivo Gestor entrou com processo de cessão do
espaço por 90 anos, processo este que está em andamento e que garante o
mínimo de garantia necessária para a continuidade dos trabalhos dentro do
Sacolão das Artes.
Vale lembrar que em 2009 ocorreram várias tentativas, por parte do poder
público local, de interferência direta nos trabalhos e na autonomia da gestão do
espaço.
A Brava Companhia em conjunto com o Coletivo Gestor do Espaço – do qual faz
parte em grande número - tem se esforçado para, ao mesmo tempo, cumprir os
trâmites legais necessários à cessão por 90 anos e continuar os trabalhos para a
melhoria física do espaço e a superação de desafios ligados à gestão e
pensamento político do Sacolão das Artes.
Trocando em miúdos, no início de 2010 houve grande esforço e trabalho para:
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ÉRAMOS 7... ESTAMOS 12...
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Isso que chamamos de trabalho horizontal é um dos pressupostos do
grupo, faz parte da concepção de
qualquer trabalho realizado e, ao
mesmo tempo, é um desafio
constante, motivo de inúmeras
discussões e norte do que
almejamos para a condução de
nosso modo de produção, seja
nos ensaios ou em qualquer
outra ação realizada pelo grupo
seu cumprimento se faz
necessário. Ao mesmo tempo em
que elaboramos nosso teatro, elaboramos nosso movimento dentro desta micro
história de um grupo, dentro da história que atravessamos e que nos atravessa.
Com o tempo as relações entre antigos e novos geraram inúmeras
conversas, oposições, mas sempre a caminho ou na tentativa de compor uma
unidade. Esta continuidade baseada numa relação horizontal de trabalho
precisou ser entendida por todos integrantes.
Eduardo Galeano
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construção de nosso teatro de todos os dias: entender o processo histórico para
interferir e atuar.
A questão a ser respondida é como um grupo de teatro pode ampliar o
número de pessoas, levando em conta o tempo de história percorrida por cada
pessoa e manter a relação horizontal do trabalho? Esta resposta é uma reflexão
em movimento. Em primeiro lugar há que existir um respeito mútuo entre quem
chega e quem já estava. Este respeito deve estar acompanhado das clarezas das
diferenças entre os integrantes e da ciência que algumas destas diferenças serão
superadas e outras talvez potencializadas, da unidade pretendida como grupo,
do desempenho de funções pautadas por uma concepção de existência calcada
em pressupostos claros e objetivos e da história utilizada como experiência não
como hierarquia.
Recorrer à história é recorrer à experiência e acumular experiência em
conjunto é construir história e história é construída em movimento, ao longo do
tempo e do espaço.
A Brava Companhia quer construir sua experiência a serviço da
transformação social, quer conferir à sua criação o desempenho de funções
individuais a favor de uma unidade coletiva, quer fazer uma arte pública, crítica
e divertida inserida em movimento no contexto da realidade. E isso dá trabalho
para os doze.
Podemos afirmar, com toda certeza, que são muito mais que doze
trabalhos.
Não precisamos de - tampouco queremos - um Hércules. Não precisamos
de heróis, precisamos de pessoas, homens e mulheres, que acreditem que as
coisas podem mudar.
BRAVA COMPANHIA: Ademir de Almeida, Cris Lima, Débora Torres, Fábio
Resende, Henrique Alonso, Joel Carozzi, Luciana Gabriel, Kátia Alves, Maxwel
Raimundo, Márcio Rodrigues, Rafaela Carneiro e Sérgio Carozzi.
Desorganizar para organizar!
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entendimento e pratica sobre as questões levantadas na peça, neste trabalho,
que deflagra o acúmulo do capital, as engrenagens da opressão, os processos
alienantes e artimanhas da sociedade da mercadoria e do espetáculo. Parecido
com a proposta de Bertolt Brecht em suas peças didáticas, procuramos entender
nosso conteúdo de três formas:
ESTE LADO PARA CIMA surge já com o acúmulo de algumas pessoas que
haviam criado um exercício cênico dentro do Núcleo de Pesquisa da Brava
Companhia, ou seja, existiam dentro do processo pessoas com experiência e
história a respeito do que fora feito e outras que se juntaram para compor e
vislumbrar praticamente o que viria a ser este trabalho teatral.
Tínhamos uma tarefa difícil para ser realizada. A base dos estudos que
geraram a peça ESTE LADO PARA CIMA encontra-se nos estudos de Guy Debord
acerca da Sociedade do Espetáculo, no entendimento da luta de classes exposta
por Marx e Engels, no teatro de Brecht, na crítica de Walter Benjamin e tantos
outros pensadores e críticos que, ao longo do tempo, produziram instrumentos
para questionar a sociedade capitalista e vislumbrar uma nova, nas lutas atuais
em favor do povo e da classe trabalhadora, do tema criado por nós intitulado
“Mundo das Imagens e Suas Aparências” e nas relações deste estudo com a
realidade e com a pratica durante os ensaios.
Alguns pressupostos nortearam a concepção da peça, além dos já citados
que compuseram a base dos estudos, a rua como espaço, estética suja e
agressiva, música urbana como ferramenta narrativa e um conteúdo crítico sem
abrir mão da diversão, foram acordados coletivamente para que cada integrante
pudesse exercer sua função dentro do processo levando em conta as vontades e
os acordos coletivos.
Para se criar Este Lado para Cima – Isto Não é Um Espetáculo a diversão
durante os ensaios foi fundamental ferramenta para conferir à encenação uma
teatralidade a serviço da crítica e imbuída de humor, por vezes, ácido.
Pode-se resumir o processo de criação desta peça em uma única palavra:
jogo.
Os integrantes da Brava Companhia se colocaram dispostos ao jogo que se
deu na relação das pessoas e desempenho de funções durante todo o processo.
(...) Jogar é transformar em decisão a opinião do que joga, na ausência de
informações suficientes sobre o jogo dos adversários, é um desafio à sorte e aos
determinismos (...)
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Quando não jogamos (isto é, quando vivemos pacatamente e sem riscos)
também nos decidimos na ausência de informações suficientes, desafiando o acaso
e determinismos; portanto jogamos no mais profundo sentido da palavra 1.
Neste caderno consta um diálogo crítico entre integrantes da Brava
Companhia e dois estudantes de teatro e crítica que escreveram sobre a peça na
Revista Lino Rojas.
Uma das frases propagadas na peça: Trabalhadores é hora de perder a
paciência, inspirada em poema de Mauro Iasi – “Quando os trabalhadores
perderem a paciência” - foi tema para unidade de uma das lutas dos
trabalhadores da cultura em 2011. Sobre este assunto, vejam o tópico
Trabalhadores da Cultura é hora de Perder a Paciência.
DIÁLOGOS SOBRE
“Este lado para
cima”
Brava Companhia e ESTE LADO
PARA CIMA
Por Ademir de Almeida
1
Henri Lefebvre. O teatro épico de Brecht como crítica a vida cotidiana. In Bertolt Brecht e outros. Teatro e Vanguarda.
Lisboa: Presença , 1970. Pág 60
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A certa altura do espetáculo um ator se dirige ao público e de forma irônica
coloca a seguinte questão: “Por que é necessário o trabalho de tantos para
sustentar o luxo e o conforto de poucos? ”
Essa cena retrata bem a essência desse trabalho da Brava Companhia que
em sua 1h20 de duração desfila de forma ácida, porém bem-humorada, uma
série de questionamentos, provocações e críticas ao capitalismo e suas formas
predatórias de exploração do trabalho, expondo na rua e de forma teatral, a
questão da luta de classes.
A dramaturgia trata os representantes do poder com escárnio, mas nem por
isso poupa os trabalhadores da crítica a sua incapacidade de organização (ou de
sua organização incapaz) perante os seus opressores. Até mesmo o Teatro é
questionado, em cena que coloca atores constrangidos tentando explicar a
suposta relevância do seu trabalho para uma plateia que protesta por não ter
condições de se alimentar dignamente.
ESTE LADO PARA CIMA é esteticamente sujo e agressivo e, apesar de seu
conteúdo crítico e autocrítico, não abre mão da diversão. É o Teatro que a Brava
Companhia quer compartilhar com a Mostra Lino Rojas e com o seu principal
público: a classe trabalhadora. Um Teatro em movimento e com o olhar aberto
para o tempo presente e o mundo a sua volta.
Até que os trabalhadores percam a paciência.
Mauro Iasi
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O travessão desse diálogo começa por uma reflexão em torno do curioso
nome do trabalho, que pode ser dividido em duas partes. A primeira, “Este lado
para cima”, da qual tratarei logo mais, e a segunda, “isto não é um espetáculo”,
que tende a remeter à experimentação de linguagem relacionada ao discurso
político. A negação da noção de espetáculo parece ser construída por três
camadas: ao se caracterizar muito mais por um manifesto que se materializa ele
mesmo em uma manifestação pública, um levante à espécie de panfleto criado
para incitar a mobilização; ao refutar o teatro espetacular, que exige uma plateia
e não um público e que não busca a relação; por fim, ao rejeitar a transformação
do trabalho artístico em mercadoria, em conjunto de imagens e aparências da
chamada “sociedade do espetáculo”, em capital. Os artistas deixam claro que
forma e conteúdo são de fato indissociáveis.
“Este lado para cima” faz referência à principal questão discutida pela
Brava Companhia: a luta de classes – e, por consequência, a urgência de uma
revolta da classe trabalhadora para “ir para cima” ou a luta para que os
trabalhadores percam a paciência, como diz o poema. A cena-metáfora que tão
bem exemplifica o debate pretendido é aquele em que é encenado o processo de
construção de um banco de madeira, em todas as suas etapas, contraditórias e
de exploração. Dessa forma, o grupo mostra compartilhar do pressuposto de
que, ao se tomar consciência de uma totalidade, inicia-se o movimento de
“desalienação”. No final da fabricação do banco, o ato que anuncia o futuro
desejado: “este lado para cima”.
O trabalho é resultado de um caminho que os artistas vêm trilhando – e que
vem sendo acompanhado por um público mais amplo desde o espetáculo A
Brava – em termos de formalização de uma linguagem, tendências estéticas e
acabamento do discurso, sempre aberto à autocrítica, mas acabado – existem
teses já edificadas em cena, todas elas pautadas pela concepção histórica
materialista.
Este lado para cima – isto não é um espetáculo é caracterizado também pelo
uso frequente da quebra do fluxo narrativo, para além das canções e coros, e
que, contraditoriamente (e esse dado, para um grupo que se pauta por um
materialismo dialético não é necessariamente um problema), faz com que o
público se dê conta, a todo momento, de que está diante de um espetáculo
teatral. Algumas dessas interrupções da história são feitas por um dos diretores
que invade a cena e entra em embate com os atores. Numa das vezes, o
expediente dá conta de levantar as dificuldades de se levar adiante um trabalho
de militância, quando tantas “necessidades” pequeno-burguesas são
reivindicadas – a aula de teatro e o jogo de futebol concorrendo para
desmobilização. Em outra, o diretor sai desqualificando o próprio espetáculo:
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“teatrinho de merda!”. Existem ainda inúmeras falas recortadas que pontilham a
apresentação, comentando e reforçando a leitura de mundo evidenciada na cena
anterior. Em uma delas, a diferença entre “nós” e “nóis” traz a tona a presença
da divisão numa sociedade fragmentada e a importância de uma consciência de
classe.
Uma palavra sobre contradições. Um senhor do público acompanhava com
bastante interesse o desenrolar do espetáculo, intervindo frequentemente, de
forma a comentar o que se passava no espaço de representação. Fazia críticas ao
prefeito de São Paulo e advertia: “funcionário público tá tudo ferrado”. Num
surpreendente tempo cômico, dialogava com os atores, levando, em muitas
situações, o público ao riso. O grupo mantinha o jogo com esse senhor de forma
saborosa e a apresentação prosseguia. No entanto, em determinado momento,
um dos artistas foi conversar (talvez isso tenha acontecido mais de uma vez)
com o homem. Será que pediram para ele diminuir o número de participações?
Sem qualquer tentativa de julgamento, o questionamento tem o intuito de
repensarmos as relações, tensas, caóticas, entre público e fazedores de teatro de
rua.
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opressão e controle do povo pelas elites na sociedade do espetáculo (o grupo
vale-se da obra de Guy Debord como referência teórica).
Permeando os fragmentos, desenvolve-se a história da construção de uma
enorme “bolha”, que cobrirá toda a cidade e no alto da qual os grandes
capitalistas residirão e gozarão eternamente dos prazeres da vida, enquanto a
turba popular, com seu penoso trabalho produtivo, sustentará a estrutura. Esta
imagem de nossa realidade desigual e baseada na exploração de uma classe
(improdutiva) sobre a outra (produtiva), apresenta, todavia, as personagens dos
capitalistas como seres possuidores de uma exagerada consciência das
engrenagens de exploração, isto é, são inescrupulosos acumuladores hedonistas,
maldosos manipuladores da massa em favor de seus privilégios, calculistas
operadores da máquina ideológica que ludibriará os trabalhadores e manterá
em funcionamento seu perverso mundo opressor. Os capitalistas assemelham-
se aos vilões (ávidos pela dominação do mundo) dos velhos filmes de ação e
ficção da indústria cultural hollywoodiana. Contudo, tal consciência escancarada
do sujeito falseia as complexas engrenagens do capitalismo e corre o risco de
deslocar o problema sistêmico para o nível moral de condenação maniqueísta
do indivíduo.
A suposta confusão se dá, talvez, por uma indefinição formal na
representação. Na busca por representar a constante luta de classes em que o
Capital, que detém os meios de produção material, explora (ou suga, assim como
um vampiro, na famosa imagem de Marx) o verdadeiro trabalho produtivo (o
sangue) da classe trabalhadora, a Brava gravita entre a alegoria e o indivíduo.
Desse modo, quando pretende representar “O Capital” acaba representando “O
Capitalista”. Assim a transfiguração de uma classe em seu sujeito objetivo não
tem, aqui, possibilidade metonímica (a parte pelo todo), pelo contrário, cria a
ilusão de que “O Capital” é igual a “O Capitalista” – e não de que “O Capitalista” é
a imagem alegórica “d’O Capital”, como parece ter sido o objetivo do grupo.
A denúncia, então, se torna simplista e irreal, pois não representa a
opressão intrínseca da máquina do capital e tende a representar tal exploração
como sendo fruto unicamente (e especificamente) de maldosos capitalistas
cobiçosos do acúmulo infinito. Seguindo esta lógica, se os capitalistas,
porventura, fossem bons e comprometidos com a humanidade, não haveria
exploração. O que, sabemos, não é verdade, basta lembrar, por exemplo, de
Sérgio Buarque de Holanda e da cordialidade brasileira.
O perigo, portanto, desta indefinição formal é criar imagens falsas do
problema ao invés de contribuir para a compreensão popular das engrenagens
da realidade criticada. Contudo, é louvável a inquietação do grupo em
desmontar a maquinaria ideológica e des-naturalizar as estruturas sociais que
nos circundam (“as coisas não são assim, elas ficam assim”). Seu teatro de
agitação, esquemático, materialista e no espaço público da rua, é um
instrumento político de luta e resistência – não por acaso, tais procedimentos
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são alvos constantes de eterna desqualificação pela ideologia dominante. Mas é
justamente por encampar este teatro na contramão, de vanguarda (por que
não?), é que se tem como dever aprofundar radicalmente a dialética de seus
assuntos e buscar incessantemente a forma dialética que congregue tal
disposição política.
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“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (...) se expressa
assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhe-
cer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua pró-
pria existência e seu próprio desejo. (...) a exterioridade do espetáculo apa-
rece no fato de que seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro
que os representa por ele. (...)” - tese de número 30, do livro A Sociedade do
Espetáculo.
“(...) À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente es-
petacular: isto mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a
partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender
sua produção até o tratamento dessa matéria prima.” - tese de número 59,
do livro A Sociedade do Espetáculo.
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Antônio, e onde se deu a pesquisa e montagem de ESTE LADO PARA CIMA. Todo
esse contexto concreto no qual vivem seus criadores e onde foi concebida a obra
também é determinante para sua análise. São trabalhadores tentando dialogar
com outros trabalhadores, sabendo que muitos não conseguem elaborar sua
própria condição de exploração.
Daí a importância de dialetizar, inclusive, nossos próprios processos de
trabalho e de vida. O teatro é capaz de fazer isso e a Brava Companhia coloca
para si a responsabilidade de criar simbolicamente, por meio do seu teatro, um
mundo contraditório, em movimento e passível de mudança. ESTE LADO PARA
CIMA é uma tentativa nesse sentido, com limites a serem superados, em outros
momentos, em outras criações teatrais vindouras e necessárias.
“... a revolução burguesa está feita; a revolução proletária é um projeto,
nascido na base da precedente revolução, mas diferindo dela qualitativa-
mente. (...) A burguesia chegou ao poder porque é a classe da economia que
se desenvolve. O proletariado só poderá ser o poder se ele se tornar a classe
da consciência. (...)”- tese de número 88, do livro A Sociedade do Espetáculo.
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O enterro definitivo do tal alemão, fiz vendo algumas daquelas peças chatas
do teatro do subúrbio parisiense: cabeça em excesso e incapaz de olhas as coisas
com os olhos fechados, coisa que aliás acontece poucas vezes no teatro daquela
terra.
Nem os filmes de René Allio, que traduziu com brilho e pujança a Velha
Dama Indigna, nem as aulas de Jean Jordeuill, que trabalhou com tantos filhos de
Brecht na França e na Alemanha, impediram o féretro.
Só o Mouchkine pôde reacender o prazer e o interesse por peças que não
quisessem me ninar, explicar ou me hipnotizar. Como Brecht, soube tantas vezes
elaborar pensamentos. Suas criações são um grande bate papo sobre o mundo
moderno, com seus estrangeiros clandestinos, suas misérias, seu Hamlet femi-
nino (Juliana Carneiro), um diálogo incessante com o público, em espetáculos
onde o tempo e espaço são transgredidos e cada criação remete à seguinte.
Souberam dissolver Brecht e criar uma arte que dialoga efetivamente com
seu tempo, um teatro que esteja de olhos abertos para o mundo. Que limpe
banheiro e saiba passar o rodo. Tudo isso sem deixar de ser teatral, sem deixar
que o épico cubra o estético, que a reflexão mate a sensação.
A Brava consegue efetivar isto em seus espetáculos recentes: O Errante e,
principalmente, em Este lado pra cima que tive a sorte de ver, há dois domin-
gos, no campo da Erundina. Quem já rodou por aquelas quebradas sabe bem
que barulho/poluição ali é de matar. Forró daqui, sertaneja ou funk dalí, carro
aberto nas portas dos bares, sem esquecer o Corinthians x Palmeiras pela taça
Brasil. Haja tímpano!
Mas o areão enegrecido pelos restos de fogueiras e colorido pelos tapetes
do Bloco lotou. Na arena redonda delimitada por acessórios e instrumentos, sem
escrúpulos ou viadismos, os bravos literalmente deitaram e rolaram, nos falan-
do da grande fabulação que é o sistema ultra-liberal em que vivemos. Uma nova
versão do espetáculo, que mergulha ainda mais naquilo que a Brava faz de me-
lhor: ocupar a cena e botar a boca no trombone (saxofone). Chega de paciência!
Pra quando a “panciência”?
O tal teor germânico dos anos oitenta infelizmente aparece aqui e ali, e o
didatismo do jovem Brecht também. Mas é explosivo e irresponsável, pequeno
burguês certamente, mas poético e irreverente, ao ponto de matar o barulho e
cativar o povão do Jardim Ibirapuera.
Só lamento o tal do anticlericalismo, às vezes forçado. A perifa é mística e
pentecostal, sempre em transe. É preciso considerá-lo, evitar o risco de cair no
materialismo pagão do teatro esquerdão 60/70, que nos deu O Pagador sem
promessas e A Gota d´Água sem Iansã...
Mas aquela percussão metálico-africana, marcando a cena da produção ace-
lerada, é prova de que a macumba ronda e que uma hora dessas ela entrará de
vez. Tempo ao tempo, os bravos estão apenas começando. Bravo!
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ESTE LADO PARA CIMA nas ruas e
O ERRANTE no Sacolão das Artes ou,
A rua mais espetacular que o espetáculo
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RANTE mostrou a máquina do espetáculo da mercadoria, da sociedade da ima-
gem, do humano conduzido pela ideologia que aliena, do pensamento que, como
mercadoria, é aniquilado pela reprodução dos valores hegemônicos.
Nos debates no Sacolão acerca do conteúdo levantado pelas peças também
discutimos e refletimos criticamente a sociedade. Estes debates serviram para
conferir ao caráter desnaturalizador dos dois trabalhos uma potência ainda
maior ocasionada por uma outra forma que se apresenta a partir do teatro: o
encontro!
A fala acima aconteceu durante a apresentação da peça e foi feita pela militante
Mara, moradora do bairro. Essa fala foi realizada no microfone utilizado pelos
atores e atrizes da peça, nem antes, nem depois, mas durante a peça. E isto não é
um espetáculo.
Nesta semana, as duas últimas famílias que estavam resistindo na Vila Rubi
conseguiram da Prefeitura uma indenização que permite a elas comprarem suas
novas casas. A batalha foi imensa, as ameaças, as pressões e as intimidações
foram inúmeras ao longo desses meses de luta. De início, a Prefeitura e a Cons-
trutora Santa Bárbara fecharam as portas e os canais de negociação, dizendo
que o máximo que seria dado era o tal “bolsa-aluguel”, mas a perseverança des-
sas mulheres acabou prevalecendo.
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Foram muito poucos os moradores da Vila Rubi que enfrentaram as estratégias
de terror do Estado e que se juntaram à luta, mas, mesmo assim, uma importan-
te vitória foi conquistada. Parabéns às guerreiras da Vila Rubi por esse exemplo
de luta e de resistência!!!2
A cada dia, em grandes metrópoles como São Paulo, vemos mais e mais po-
liciais nas ruas colocando em ação uma suposta “política de segurança pública”,
mas que, na pratica, funciona como “política de controle social” para garantir a
segurança da propriedade privada. Em regiões mais centrais esse controle atua
sobre a circulação de veículos e de pessoas e, geralmente, apresenta contornos
bem rígidos: proibição do tráfego de automóveis em determinadas áreas, bases
policiais, câmeras de vigilância e muitos, muitos homens e mulheres fardados
por todos os lados - todos postados bem às vistas da população, com suas armas
de fogo, cassetetes, golpes de artes marciais, cadernetas de multa e prontos a
barrar a entrada, pedir documentos, realizar uma revista ou aplicar uma multa.
Ou seja: garantir uma determinada ordem.
E isso não ocorre por acaso. Numa sociedade capitalista as cidades são or-
ganizadas em função da livre circulação do capital. Portanto, em locais centrais,
onde estão localizados os gabinetes do poder estatal e do poder financeiro, a
ordem deve ser mantida a qualquer custo. Ruas, praças, avenidas e todo o espa-
ço público deve estar controlado de modo a possibilitar a livre circulação das
mercadorias, do dinheiro, das riquezas, do poder e dos seus representantes.
Qualquer ocorrência que venha a perturbar essa ordem corre o risco de ser
reprimida pelas autoridades, inclusive, com a possibilidade do uso de violência
que, neste caso, é autorizado por lei. Em regiões mais afastadas dos centros, as
chamadas “periferias”, essa política de manutenção da ordem ganha outras nu-
ances e outros agentes.
A cidade de São Paulo possui uma grande extensão territorial que apresen-
ta múltiplas paisagens e, por isso, as “periferias” são muitas e diversas entre si.
Existem locais mais urbanizados que, mesmo em condições precárias, contam
2
Texto extraído do blog redeextremosul.wordpress.com
31
com alguma estrutura de equipamentos e serviços públicos. Por outro lado, há
regiões onde a população sobrevive sem acesso a serviços básicos como esgoto,
iluminação pública ou mesmo água potável.
Há ainda locais com características rurais, regiões de mata fechada, cháca-
ras e sítios com plantações agrícolas e criações pecuárias. E há lugares onde
todas essas paisagens se fundem, criando outros cenários que transitam entre o
urbano e o rural.
O traço em comum em todas essas localidades chamadas de “periferia” é a
predominância de uma população de classe trabalhadora sobrevivendo com
muitas dificuldades, com acesso limitado ou até mesmo muitas vezes, sem ne-
nhum acesso, a quaisquer bens e serviços públicos. Situação essa, que se agrava
quanto maior a distância em relação ao centro.
Nessas regiões, a “política de segurança pública” está presente, mas não da
mesma forma como no centro. O grande volume populacional, as imensas exten-
sões de território e a diversidade de paisagens criam algumas dificuldades para
o trabalho de vigilância das polícias que, segundo especialistas nessa área, ainda
contam com um aparato de delegacias, viaturas e tropas insuficientes e mal
equipadas.
Entretanto, essa realidade de dificuldades das corporações policiais não
significa que uma certa ordem não esteja garantida também nessas regiões.
Atuando nas brechas deixadas pela polícia (e também, em alguns casos, em
acordo com a mesma), existem facções criminosas organizadas que exercem
uma espécie de Poder Paralelo nas localidades periféricas, controlando negócios
como o tráfico de drogas, o contrabando de produtos, os caça-níqueis, a adulte-
ração de combustíveis, entre outros.
A droga, por exemplo, uma das principais mercadorias que circula pelos
bairros mais pobres, além de ser um artifício de controle social que entorpece e
aliena, sobretudo, os jovens filhos da classe trabalhadora, movimenta quantias
vultosas de dinheiro. Mas, como em todos os outros negócios criminosos, a mai-
or parte dos seus lucros, certamente, não fica nas mãos dos traficantes e bandi-
dos de bairro. O destino do dinheiro graúdo do tráfico e de todos os outros ne-
gócios do crime se perde em intrincadas “operações de lavagem” e, há quem
diga, que ele termina em contas bancárias de gente que nunca pisou numa peri-
feria, mas que frequenta os principais círculos de poder da sociedade.
É, principalmente, nesses dois cenários, centro e periferia da cidade de São
Paulo, que a Brava Companhia se movimenta, criativamente, politicamente e
criticamente. É no trânsito entre essas duas parcelas de uma mesma realidade
que se dá o cotidiano desse grupo, que hoje conta com 12 integrantes, e tem sua
base instalada no espaço conhecido como Sacolão das Artes, no Parque Santo
Antônio, bairro do extremo sul da cidade de São Paulo. Cotidiano que é preen-
32
chido por apresentações de espetáculos, pesquisa, estudo, treinamentos, encon-
tros, reuniões, participação na gestão do Sacolão das Artes, entre outras coisas,
todas determinantes na criação artística do grupo.
O Sacolão das Artes merece um capítulo a parte.
Um imenso galpão público, localizado numa das regiões periféricas mais
problemáticas da cidade, e que era reivindicado pela população local organizada
para se transformar em um centro sociocultural. Após anos de disputa entre o
Poder Público, interesses privados e população, o galpão é reaberto em 2007 e
ocupado por alguns grupos culturais (entre eles a Brava Companhia) e lideran-
ças comunitárias.
Nesses quatro anos de ocupação o Sacolão se tornou um dos mais impor-
tantes centros alternativos de cultura da cidade de São Paulo. Com uma progra-
mação intensa, gratuita e diferenciada, sobretudo, por dar prioridade às produ-
ções e grupos que atuam fora do eixo comercial. O espaço tem ganhado notorie-
dade, inclusive, em outras partes do país e do mundo. Hoje, a população da ci-
dade e, principalmente, os moradores do Parque Santo Antônio, têm no Sacolão
das Artes um espaço onde lhes é garantido o direito de acesso a bens culturais e
a possibilidade de produzir cultura.
A Brava Companhia teve relevante participação nesse processo, realizando
diversas ações culturais e melhorias estruturais no espaço (inclusive, muitas
delas, com o apoio da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo) e
atuando também em sua gestão administrativa, política e pedagógica - tarefa
que demanda muito trabalho braçal e intelectual que ocupa grande parte do
tempo dos integrantes da Companhia e também dos demais participantes do
pequeno grupo que constitui o Coletivo Gestor do Sacolão das Artes.
A instalação da sede do grupo no Sacolão das Artes e sua participação ativa
na gestão do espaço são opções entendidas pelos integrantes do grupo como de
extrema relevância em sua atuação artística e política na cidade. Em meio às
muitas disputas entre interesses públicos e privados em andamento no espaço
público das grandes metrópoles como São Paulo, o grupo tem atuado no sentido
de criar no Sacolão das Artes um espaço de cultura que não seja pautado por
demandas de Mercado ou de Estado, mas que seja um local de livre pensamento
e de construção de conhecimentos críticos, sem compromisso com lucro ou com
“números de atendimentos” – tarefa difícil e trabalhosa, uma vez que se coloca
na contramão dos modelos em vigor na sociedade e, até por isso, não atrai a
atenção de muitos outros trabalhadores da cultura, mesmo alguns muito próxi-
mos.
Até aqui foi uma tentativa de expor o contexto histórico em que foi conce-
bido “ESTE LADO PARA CIMA” – isto não é um espetáculo, pela Brava Compa-
nhia, coletivo formado por trabalhadores do Teatro, filhos de outros trabalhado-
res (costureiras, pedreiros, marceneiros, empregadas domésticas e metalúrgi-
cos).
33
É nas margens de uma metrópole, vigiada e organizada pela lógica do capi-
tal privado, que surge essa tentativa artística de causar algum distúrbio na or-
dem imposta. A crítica aguda de Guy Debord à sociedade capitalista em sua tese,
“A Sociedade do Espetáculo”, foi o principal eixo teórico para essa montagem,
que cria a imagem alegórica de uma bolha habitada por “Poderosos” e sustenta-
da por “Trabalhadores” para discutir a questão da luta de classes, em uma série
de cenas episódicas entremeadas por músicas e narrações, e feitas na rua como
opção política de intervenção neste espaço que, a cada dia, se torna menos pú-
blico.
Aliás, as disputas por território e as políticas de controle e higienização ins-
tauradas na cidade são mostradas em algumas dessas cenas. Assim também
como a luta pela sobrevivência física e a alienação política que dificultam a or-
ganização da classe trabalhadora, e também a espetacular contribuição para a
manutenção da ordem feita por mídia, religião e ONG’s - assuntos que fazem
parte da vida dos trabalhadores da Brava Companhia e de toda a classe traba-
lhadora, e que o grupo busca abordar de forma divertida, como recurso para
provocar o distanciamento crítico do seu público.
ESTE LADO PARA CIMA é sujo e barulhento como os centros urbanos e, por
isso mesmo, dialoga esteticamente muito bem com eles.
Já foi considerado panfletário (e de fato, os atores distribuem alguns pan-
fletos durante a peça), e tenta, pretensiosamente, dialetizar o atual momento
histórico da luta classes. Assume um lado e marca posicionamentos - o que pro-
voca algum incômodo em certas pessoas. Nestes tempos em que a maioria das
pessoas parece apenas buscar “posições confortáveis” em todos os aspectos da
vida, para a Brava Companhia, incomodar, muitas vezes, é uma virtude.
E quem estiver incomodado, que mude o mundo.
BRAVA CONVIDA
34
tra em mais de uma produção o mesmo assunto sendo discutido cenicamente, às
vezes repetindo as mesmas soluções cênicas.
Encontramos na produção de alguns grupos da Cidade de São Paulo e em
outros do Estado e do País, parceiros que fazem do teatro um meio de exposição
do pensamento crítico e o utilizam em favor da disputa simbólica, tão necessária
em tempos de sociedade espetacular.
35
tas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando
desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez
separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem
a realidade, como uma mão de pedra.”
Aristóteles em “A política”
3
Trecho extraído da Brava Conversa com Reinaldo Maia – Caderno de Erros I – Brava Companhia
36
de reproduzir, nas criações da gente, imagens que estão consolidadas como, apa-
rentemente, neutras ou verdadeiras. O que significa manejar a verdade como ar-
ma? Veja, se eu estou combatendo a indústria cultural, eu tenho que dar condições
para que meu público entenda, tenha uma visão crítica de também saber ler essas
imagens espetaculares...de ele (público) saber identificar onde está a mentira.” 4
Nossa pesquisa, que envolveu várias outras pessoas, parceiros, foi e vem
sendo realizada para o entendimento pratico do tema Contra Imagem.
Iná Camargo Costa: Bom, na verdade, a parte técnica do título da palestra foi
uma invenção posterior. Eles sabem que eu não tenho, nem ao menos, formação
ou experiência para discutir a questão da imagem espetacular. A minha discus-
são diz respeito a fundamentos e/ou pressupostos. Então, o que preparei pra
falar pra vocês, na verdade não é texto meu. Eu vou ler pra vocês três excertos
do livro do Guy Debord, “Sociedade do Espetáculo”. Naturalmente aqueles que
são, em geral, esquecidos. Então, são trechos que em geral são, por assim dizer,
ignorados pelos leitores, porque são aqueles trechos que apontam para o hori-
zonte da transformação da sociedade, isto é, pro horizonte da política e não pro
horizonte da discussão técnica ou teórica. E há algumas razões pra isso. Então, a
partir do momento que eu ler o texto, em que ele, Guy Debord, aponta para a
luta de classes - sem a qual não há hipótese de desmanchar a sociedade do espe-
táculo - aí eu vou passar, não para o teatro épico, do qual nunca é demais insistir
que o Brecht é apenas a figura resultante do processo que na vida real colocou o
teatro épico na ordem do dia e, como ele chegou em Berlim quando a discussão
já estava posta e ele mesmo já tinha algumas ideias a respeito do que o teatro
4
Trecho extraído da Brava Conversa com Reinaldo Maia – Caderno de Erros I – Brava Companhia
37
deveria ser. Ele teve as condições e criou algumas condições para ser o maior
teórico do teatro épico, para além de ser o maior dramaturgo. Então, diante
disto, eu vou também ler alguns excertos de textos que até mesmo o fã-clube do
Brecht tende a ignorar, porque são textos sobre política e sociedade. Tendo feito
esta leitura, claro que eu não consigo simplesmente ler, alguns comentários eu
vou fazer e depois abro a palavra pra discussão. Então a outra parte, digamos
assim, a parte que diz respeito às providências que os artistas têm que tomar, o
que a gente obtiver, será resultado da nossa conversa, porque eu mesma não
tenho grande coisa a dizer sobre isso. Tá bom assim? Então eu começo com uma
das coisas que eu gosto de fazer, eu vou ler de trás pra diante.
Aqui é uma epígrafe, na página 214 do livro (Sociedade do Espetáculo - 1ª edi-
ção - Contraponto), isto é, já no finzinho. Algumas pessoas não chegam neste
pedaço porque elas desanimam. Olha que belezinha: “A imbecilidade acha que
tudo está claro quando a televisão mostra uma imagem bonita, comentada com
uma mentira atrevida. A semi-elite...” Atenção, porque a semi-elite são os nossos
colegas! Atenção. “... contenta-se em saber que quase tudo é obscuro, ambiva-
lente, “montado” em função de códigos desconhecidos.” E paro por aqui, porque
isso aqui é só uma epígrafe. Aí, ele diz assim: “montado por critérios desconhe-
cidos”. Na página 211, a gente vê uma coisa assim que é muito atual pensando,
por exemplo, no escândalo que a mídia está fazendo com o negócio do Weeklyks.
A perseguição já virou um tema para as narrativas da obscuridade. Vem o Guy
Debord - vocês sabem que esse livro foi publicado em 1967 - e esse é o posfácio
do começo da década de 90. Diz ele: “O poder se tornou tão misterioso que, de-
pois do caso da venda ilegal de armas ao Irã pela presidência dos Estados Uni-
dos, coube indagar: quem manda de fato nos Estados Unidos, a maior potência
do chamado mundo democrático? E quem pode de fato mandar no mundo de-
mocrático? Mais ainda: neste mundo oficialmente tão cheio de respeito para
com os imperativos econômicos, ninguém sabe qual é o verdadeiro custo de
qualquer coisa produzida. “A parte mais importante do custo real nunca é calcu-
lada, e o resto é mantido em segredo.” Terceiro texto do Guy Debord. Este é do
corpo do livro e está na página 131 da edição brasileira da Contraponto de
1997: “Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado
como qualquer fórmula vazia da retórica sociológico-política para explicar e
denunciar abstratamente tudo, e assim, servir a defesa do sistema espetacular.
Porque é evidente que nenhuma ideia pode levar além do espetáculo existente,
mas apenas além das ideias existentes sobre o espetáculo. Para destruir de fato
a sociedade do espetáculo, é preciso que homens ponham em ação uma força
pratica. A teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se a
corrente pratica da negação na sociedade. E essa negação, a retomada da luta de
38
classes revolucionária, se tornará consciente de si ao desenvolver a crítica do
espetáculo, que é a teoria de suas condições reais, das condições praticas da
opressão atual, desvelando inversamente o segredo do que ela pode ser.” Por-
tanto, eu acho que não é com dispositivo de imagem que a gente vai enfrentar a
sociedade do espetáculo.
O Brecht também não achava, então passo a palavra agora ao Brecht. Portanto,
não é do teatro épico que eu vou falar; é dos fundamentos, das convicções que
estão por trás da defesa que o Brecht faz do teatro épico. Eu selecionei excertos
de textos que ele escreveu entre 1925 e 1939. Começa assim: “Pela via da evolu-
ção...” ou da reforma, para usar a palavra política correspondente “... nada acon-
tecerá além do que já acontece. Esta classe dirigente deve ser varrida pela vio-
lência.” É Brecht! Todos os textos aqui são dele. “A sociedade burguesa...” E a do
espetáculo por consequência, cultua muito o amor, diz o Brecht: “o amor tem
sido objeto de tal culto, que só pode ser enervante para pessoas razoáveis” Um
tema do livro Sociedade do Espetáculo a ser criticado. Atenção, porque essa diz
respeito à tomada do Morro do Alemão. “Os males da justiça são os de um crimi-
noso condenado à morte. Curá-los seria salvá-la de uma morte merecida.” “So-
bre a imprensa: ” Nas mãos da burguesia, a fotografia se tornou uma terrível
arma contra a verdade. Todos os escritos fedorentos, destinados a manter a arte
ao abrigo da política, apenas servem aos obscuros objetivos de uma política que
só se mantém à custa de manter a política a distância.” Agora vem a parte hard:
“Só depois de ler Marx as minhas impressões e observações sobre o mundo
começaram a fazer sentido. Recusar ou denunciar, em termos gerais, alguns
defeitos da humanidade, não basta para fazer um revolucionário. É preciso poli-
tizar os jovens em sua própria esfera, politizar cada um dos seus nervos, cada
uma das suas fibras cerebrais. Paixões como liberdade, são em si mesmas revo-
lucionárias. Antes que as massas tenham condições de tomar o Estado, será
preciso que sua disposição para participar dos negócios políticos tenha crescido
numa proporção cuja enormidade pouca gente pode entrever.” Agora, um pa-
rêntese meu: Uma das poucas pessoas que percebeu esta enormidade em 1917
foi Lênin. Porque em julho de 1917, o Lênin sabia que na Rússia havia mais de
900 Sovietes. Então quando ele enunciou a palavra de ordem “Todo poder aos
Soviets”, ele sabia que tinha uma multidão incalculável, disposta a participar da
política. Enquanto não se tiver nada disso, é melhor parar e estudar um pouco e
ligar as antenas pra prestar atenção nas organizações que surgem. Depois, se
vocês quiserem, eu posso fazer uma digressão sobre a experiência dos Sovietes.
Agora, “vâmo fala de nóis”! O Brecht usa “intelectual”, mas ele está o tempo todo
pensando também nos artistas, porque há uma divisão do trabalho intelectual e
os artistas integram esta modalidade de trabalho. Então, todas as vezes que eu
39
ler “intelectual”, entendam também “artista”: “Na primeira guerra mundial, o
caráter mercantil do intelecto apareceu com toda clareza. O proletariado mostra
um forte senso das necessidades da luta, tratando os intelectuais com extrema
desconfiança; sem perder de vista, entretanto, os serviços que pode esperar
dele. É essa desconfiança do proletariado que põe os intelectuais numa situação
difícil. Eles não tentaram no passado, constantemente, se incorporar à classe
dominante? Não foi isso que fez do intelecto uma mercadoria? Se os intelectuais
querem participar da luta de classes, é indispensável que tomem consciência da
sua constituição sociológica, determinada por condições materiais. As verdadei-
ras revoluções não se produzem por sentimentos, mas por interesses. Para o
proletariado, o interesse da luta de classes é indiscutível e inequívoco. Os inte-
lectuais podem esperar da revolução uma ampliação das suas possibilidades de
ação. O proletariado espera, pelo menos, três serviços dos intelectuais: primeiro,
que desintegrem a ideologia burguesa; segundo, que estudem, compreendam e
expliquem as forças que movem o mundo; e terceiro, que façam a teoria pura
avançar. Por exemplo: demonstrar que a conservação das relações de proprie-
dade só é possível pela violência e sob leis assassinas. Intelectuais são trabalha-
dores do intelecto, eles precisam entender que a situação política atual...” Aten-
ção: ele está falando da República de Weimar : “... limita, brutalmente, o desen-
volvimento das ciências, da pesquisa humana e sua utilização pratica.” Então
eles já têm por que lutar, né? Eles mesmos têm interesses materiais para lutar:
“O que fazer? Analisar precisamente os fatos; estabelecer, com precisão, qual a
sua base socioeconômica e que conflitos surgem; é preciso que desvelem os
conflitos de classe determinando, assim, o seu ponto de vista; é preciso lutar
contra os apologistas do estado de coisas; a cada vez que tiverem que julgar um
acontecimento, colocarem-se aberta e diretamente do ponto de vista da sua
classe; tomar partido em tudo. Marx ensina os proletários que eles podem mu-
dar as condições materiais da produção, ele mostra aos proletários quem são
seus inimigos e os chama pelo nome: capitalistas.” Era só isso que eu tinha pra
falar. Podemos começar o debate. Hoje em vez de trazer metralhadora eu trouxe
uma bazuca! Que eu vi lá no Morro do Alemão.
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eles diziam e escreviam nos jornais: “Não! As massas são apáticas. A Rússia não
tem uma classe trabalhadora relevante. As condições de trabalho, aqui na Rús-
sia, nem chegaram ainda no âmbito do capitalismo. Nós temos que impulsionar
o programa burguês, aqui na Rússia. Temos que lutar pelo fim do czarismo, por
uma revolução democrática.” Eram essas as discussões.
E eis que, com aquele massacre de janeiro de 1905, a resposta da classe operá-
ria, do proletariado russo, foi uma sequência de greves que no meio do ano, já
tinha produzido mais... Não vou dizer um número, mas várias greves gerais,
sobretudo em lugares como Moscou e São Petersburgo. E neste processo, os
partidos lá discutiam se as massas se mobilizam, não mobilizam... E as massas já
criando, inclusive, órgãos de poder. Um deles foram estes Sovietes, que, em por-
tuguês, a gente pode chamar de Conselhos. Então surgiram Conselhos dos traba-
lhadores, dos soldados e marinheiros, dos camponeses... Conselhos. E isso, no
fim do mundo, por todo o país. O que é que esses Conselhos faziam? Elegiam
uma pessoa pra ir pra capital, que no caso era São Petersburgo. Então, essas
pessoas vinham de todos os lugares e se reuniam em São Petersburgo. Então,
formou-se em São Petersburgo um Soviete com delegados dos Sovietes que
estavam espalhados por todo o país. Por quê? Porque as pessoas queriam trocar
ideia e ver o que era possível fazer junto. Os partidos todos, inclusive o do Lênin
- que se chamava Partido Social Democrata Russo - foram apanhados de surpre-
sa. Eles não sabiam que estava acontecendo isso. Correram atrás do prejuízo e
começaram a intervir nas diferentes instâncias. Como eles tinham discussão
política, rapidamente eles entenderam o que estava acontecendo e começaram a
levar proposta: proposta organizativa, ação, etc.
Resumindo uma longa história, de um ano inteiro, em poucas palavras: ao final
do ano, quando já estava desenhada uma guerra civil, o Trotsky se elege presi-
dente dos Sovietes de São Petersburgo. Eu atalhei mil episódios, prisões, massa-
cres e tal. Tem um livro dele que se chama “1905” - onde ele conta a história dos
Sovietes, tirando as lições. Porque ele escreve depois da derrota deste processo
de 1905, e ele ficou como presidente dos Sovietes de 1905 até a derrota.
Para vocês terem ideia da novidade da coisa: a população de São Petersburgo
não apenas reconhecia os Sovietes como o poder e ponto - ou seja, qualquer
questão política era o Soviete que decidia - como, também - a população, por
iniciativa - definiu que a corte de justiça também era o Soviete. Isto é, o povo
russo achou, não apenas que o Soviete era um poder novo, como era um poder
que concentrava tudo. Então, questões de justiça - briga, briguinhas - eles leva-
vam e debatiam nos Sovietes, problema de saúde - alguém da família, ou qual-
quer pessoa, precisava pegar o trem pra ir não sei onde e estavam em greve os
ferroviários, como fazer? Foi lá no Soviete, o problema exposto, e as pessoas
41
acharam uma solução sobre como levar a pessoa pro outro lugar. Então, os Sovi-
etes resolviam desde problemas domésticos e problemas de saúde emergenci-
ais, até questões de justiça importantíssimas, mas, sobretudo, deliberavam so-
bre ações que iam ser tomadas. Então: vamos fazer uma barricada na avenida
tal. E aí o pessoal ia fazer a barricada. Era o Soviete que deliberava. Portanto, era
um instrumento de poder. E foi derrotado com massacres, prisões, etc... O
Trotsky foi deportado. E fora do país ele escreveu o livro. Então – atenção - os
integrantes do Partido Social Democrata tinham notícia desta experiência, ou
porque eles mesmos participaram, ou porque leram este livro que foi divulgado.
E junto com o Trotsky, o Lênin – que já estava deportado e não chegou a entrar
em território russo- nesse período; escreve matérias para os jornais clandesti-
nos deles. E os textos do Lênin acompanham o debate no âmbito da política e as
questões, tanto providências, quanto bobagens que os outros partidos diziam a
respeito do que estava acontecendo na Rússia em 1905. Mas, com isto, constitui-
se um patrimônio de conhecimento sobre uma experiência inusitada. Até aquele
ano nunca ninguém tinha ouvido falar num procedimento deste tipo. O único
paralelo possível, e quem puxou o paralelo foi o Lênin, era com a Comuna de
Paris, mas tinha muito mais diferença do que semelhança. Entretanto, em todo
caso, diz o Lênin: é preciso estudar os textos do Marx, sobre a Comuna de Paris e
entender a dialética deste processo. Este material está posto. Porque é uma
questão de organização de um novo poder, um novo poder que, ao mesmo tem-
po, vai ser um instrumento da revolução e vai assegurar a continuidade da revo-
lução. É um assunto sobre o qual o Lênin volta regularmente, isto é, ele mantém
a discussão sobre o Soviete como estrutura e experiência política ao longo dos
anos que se seguiram a 1905. E é então por isso, que de todos os partidos, e pela
lista do John Reed, no livro “Dez dias que abalaram o mundo”, tinha uns quinze
partidos, além dos que não eram propriamente partidos, mas enfim... Tinham
organizações anarquistas, tinha Partido Socialista Revolucionário, tinha Partido
Socialista “não sei que lá”, Liberal...
Tinha de tudo. Vocês peguem lá o livro do John Reed que lá tem uma página
inteira das siglas e o nome. É uma enormidade todos aqueles grupos que parti-
ciparam da revolução de 1917. Mas o único que tinha uma discussão acumulada
sobre os Sovietes era o partido Bolchevique. Nem os Mencheviques discutiam ou
tinham interesse por este assunto. Os anarquistas eram ainda a referência da
Comuna de Paris, sem passar de verdade pela experiência dos Sovietes. Eles...
Bom, vocês sabem também que, digamos assim, a produção teórica dos anar-
quistas pós Bakunin é quase inexistente. Eles participaram da coisa mas, pelo
que me parece, não deram aos Sovietes o mesmo valor que Lênin e Trotsky,
sobretudo, como esse instrumento que concentra tudo - a saber: o órgão da
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revolução. E, ao mesmo tempo, o órgão que vai cuidar da nova composição da
sociedade. Tratar disso tudo ao mesmo tempo foi a experiência do Trotsky, e a
percepção que o Lênin teve, por conta até dos relatos. Eu realmente não conheço
- até porque vocês sabem que os anarquistas têm problema com instituição -
literatura de autoria de anarquistas sobre Sovietes. Eu conheço sobre a Comuna
de Paris. Então, em 17... Ah! Tem um ponto. Muitos Sovietes de 1905, simples-
mente, deixaram de existir, e a vida continuou. Mas muitos persistiram como
ponto de encontro de pessoas que tinham participado do movimento. Porque
ninguém perguntou pra eles porque que eles continuaram, mas eles continua-
ram. E é neste momento, ao contrário do que todo mundo diz, assim que come-
çou a 1ª Guerra Mundial, que a temperatura da luta de classes na Rússia come-
çou a esquentar em 1914. E um dos sinais da temperatura esquentando, foi o
ressurgimento e o aparecimento de novos Sovietes. E a discussão começa a ser
retomada, tanto que, em 1915 tem uma espécie de aniversário de 10 anos dos
Sovietes, e tem um longo texto do Lênin, que ao mesmo tempo é didático, de
celebração da memória das lutas e enfrentamentos. Mas, por que eles resolve-
ram comemorar os 10 anos de 1905? Por causa dos Sovietes. Então, é com esta
perspectiva, e voltando, cada vez mais frequentemente ao assunto dos Sovietes
que, em fevereiro de 17, quando caiu o Czar, formou-se aquela República e os
Sovietes passaram a se multiplicar como cogumelos. O pessoal começou a correr
atrás e aí, correr atrás significa intervir e disputar a direção política do processo,
por método democrático. Porque Soviete não funciona de outro jeito que não
seja pela democracia. Então, o que que é um Soviete? É uma assembleia perma-
nente e só aprova aquilo que a maioria aprovar. E não tem nenhum segredo,
nenhum mecanismo. O que precisou ter, depois da revolução, foi a definição de
critério, porque precisava saber qual era o número de pessoas que dava direito
a um delegado no Soviete. Então, a própria existência do Soviete obrigou pesso-
as a se organizarem em Sovietes.
Então, desde o quarteirão, plano municipal, cidade, - ou plano da região, no caso
de Sovietes camponeses - os próprios soldados, marinheiros passaram a definir
números mínimos, que é o mesmo critério que se usa até hoje em congresso de
organização política, congresso de trabalhadores. A categoria tem quantos? São
quantos sócios? A gente pode definir. Em geral, é melhor definir na hora. Têm
quantos aqui na assembleia? Quinhentos. Quinhentos dá direito a cinco delega-
dos. Critérios vão sendo definidos. E o Soviete supremo nada mais é do que a
assembleia permanente dos delegados de delegados. “Nota de rodapé”: o Brecht
foi delegado do Soviete de Augsburg na revolução de 1918-19 na Alemanha, e
ele permaneceu como delegado, fazendo trânsito Augsburg / Munique, até maio
de 1919 quando o Soviete foi massacrado. Então, eu não estou falando de qual-
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quer um. Eu estou falando de um artista, dramaturgo e teórico, que, para além
de ser um estudioso da obra de Marx, ele participou de um Soviete, ou um Con-
selho. Uma pessoa que tenha participado de um Conselho, tem uma relação com
a revolução que é completamente diferente do intelectual da Academia, do bu-
rocrata. É o cara que sabe a diferença entre a democracia, propriamente dita
(com organização e providência), e a democracia “conversa fiada”. Respondi, ou
precisa falar mais?
Nicolau: Na verdade, Iná, eu acho que tem estes historiadores anarquistas que
são muito desconhecidos. Assim também como os historiadores trotskistas,
stalinistas... Enfim, todas as correntes. Cada um cria uma espécie de versão
“triunfalista” sobre a própria história. Isso a gente sempre tem que olhar com
um olho aqui e o outro ali. Mas, estes historiadores anarquistas, em parte, têm
textos de jornais - porque eles não tinham publicações teóricas como os bolche-
viques ou outros teóricos, mas eles têm muitos jornais - e nestes textos sempre
foi: “Sovietes. Todo poder aos Sovietes.” Era uma consigna. Eles sempre exigi-
am...
Uma coisa que eu acho super interessante, e que eu descobri há pouco tempo
atrás: o historiador reivindica que os Sovietes não se criaram em 1905. Ele faz
uma crítica dizendo que parte do operariado russo não era operário pura e sim-
plesmente. Muitos eram camponeses, agricultores que iam, sazonalmente,
quando tinha a época do frio mais duro, para as cidades onde viravam operários.
Então, esses operários que se organizam nos Sovietes, em certa medida, trazem
toda uma herança cultural, organizativa camponesa, e aí ele diz que durante
muitos anos, desde o século XIX, havia determinadas experiências entre esses
camponeses de auto-organização assembleária, uma coisa muito inconstante,
não propriamente politizada, do jeito que a gente pensa. O próprio Marx cita
quando fala do comunismo primitivo, cita esta auto-organização camponesa
russa e diz que ela pode ser embrionariamente, algo extremamente relevante no
processo revolucionário na Rússia, e ele tenta retomar isso. Em alguma medida,
esses Sovietes não se criaram do nada, eles vêm de uma herança auto organiza-
tiva desses camponeses que tinham seus problemas e etc. Um livro que eu li,
mostra coisas interessantíssimas, como por exemplo, mulheres que puxavam as
assembleias, que eles não se encontravam periodicamente e semanalmente, mas
que ficavam um ano sem se encontrar e de repente se encontravam durante três
44
meses discutindo e discutindo, e tudo por consenso, não tinha votação. Rara-
mente tinha votação. Eu só queria comentar isso.
45
sentante do proletariado. Este é o primeiro aspecto. Por quê? Aquele que se
dizia representar o interesse do proletariado passou a defender o interesse do
inimigo de classe e continua dizendo que representa o interesse do proletariado.
Isto é um ingrediente fundamental da sociedade do espetáculo. Segundo capítu-
lo, segundo pilar da sociedade do espetáculo: o desenvolvimento do fascismo e
do nazismo, sobre o qual não precisamos perder tempo falando; é só pegar
qualquer filme da Leni Riefenstahl, a cineasta do Hitler. É só ver qualquer filme
dela que a gente entende o que é a imagem da sociedade do espetáculo. Terceiro
capítulo: a instalação e longevidade do stalinismo na União Soviética, isto é, a
revolução na década de 20, a revolução proletária, virou no seu contrário e os
inimigos da revolução tomaram o poder, em nome da revolução, dizendo-se
revolucionários. Por quê? Porque eles adotaram na União Soviética o programa
da socialdemocracia. Então, o poder, no país onde teve revolução proletária,
ficou na mão do inimigo. Isto é o Stalinismo pro Guy Debord.
São estes os ingredientes da sociedade do espetáculo: primeiro, o capitalismo,
ele mesmo; segundo, a classe dominante, a burguesia que tem interesse na ma-
nutenção do capitalismo; terceiro, a socialdemocracia que é aliada da burguesia
e se diz defensora do interesse do proletariado; e quarto, os stalinistas que fa-
zem a mesma coisa. Em nome da revolução, o que é ainda mais grave. Certo?
Pois muito bem. Por que que o Lênin pegou tão pesado na questão do Soviete?
Porque ele integrava a social democracia, o partido dele fazia parte da 2ª Inter-
nacional. Quando ele viu que a 2ª Internacional, em 1914, aderiu ao programa
burguês e votou os créditos da primeira guerra mundial, ele rompeu com a soci-
aldemocracia e passou a denunciar com veemência, mais veemência do que
antes de 1905. Denunciar esse programa de intelectual da socialdemocracia.
Intelectual: que é tudo muito esquisito, tudo muito ambíguo, tudo muito nebulo-
so e na hora do “vamo nóis”, fecha - com a manutenção do estado de coisas. Esta
denúncia o Lênin já tinha feito em 1903. Então, agora, a partir da experiência de
1905 - os Sovietes - a partir da traição da socialdemocracia, ele tem dois elemen-
tos novos, não apenas pra criticar a ação, sobretudo dos militantes da socialde-
mocracia, mas também dos intelectuais, na Rússia e no resto do mundo, afinados
com o discurso da socialdemocracia. Ele, de um lado, denuncia, e de outro, fala:
ao contrário do que vocês dizem – e este é o argumento fundamental – o povo é
capaz de se organizar por si mesmo; o desafio que se coloca para um partido
como o nosso, que diz querer a revolução, é descobrir como dirigir este proces-
so. Porque se não tiver uma direção, e direção não é chegar lá e falar: “faça isso”,
“faça aquilo”, “faça aquele outro”. Direção é fazer a proposta que as pessoas ali
presentes sejam capazes de assumir. Porque esta é a grande virtude do método
democrático: o plenário não vota nenhuma proposta que ele não seja capaz de
levar a efeito, porque não se trata de ser apenas a favor ou contra, trata-se de
decidir e fazer o que foi decidido. Esta é a diferença histórica do Soviete em rela-
ção a maneiras menos tensas, digamos assim, de organização. Até porque as
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organizações anteriores não se colocavam à disputa do poder. E ao contrário do
que dizem os inimigos do Lênin, os bolcheviques dirigiram a revolução. Lênin
dizia que eles formularam as palavras de ordem que as pessoas estavam dispos-
tas a realizar. O que O Soviete deliberava sobre providências de luta, no sentido
forte da palavra, porque envolveu, inclusive, ele organizar um exército pra en-
frentar a guerra civil que veio imediatamente, na verdade, não tinha nenhum
mistério: todo poder aos Sovietes; pão, terra e liberdade.
Só que você não assegura terra num país que é um latifúndio. Tem que ir pro
pau. Pra fazer reforma agrária, pra assegurar alimentação, tem que ir pro pau!
Tem que expropriar os açambarcadores de alimentos. É com luta! Se não lutar
você não faz. Essa é a diferença do Soviete. O Soviete deliberava sobre providên-
cias de luta, no sentido forte da palavra, porque envolveu, inclusive, organizar
um exército para enfrentar a guerra civil que veio imediatamente.
Iná Camargo Costa: O artista, como intelectual, tem muito o que fazer, mas ele
precisa descobrir qual é o lado dele pra começar. Uma das funções do artista é
desintegrar a ideologia dominante. Ora, o campo, por excelência, do exercício da
ideologia dominante é o simbólico
Fábio Resende (Brava Companhia): E aí é nesse lugar que a gente está, a gente
fala n”O ERRANTE” (espetáculo da Brava Companhia): “Para destruir a socieda-
de do espetáculo é necessário que homens e mulheres coloquem em ação uma
força pratica.” A gente fala isso. E chegam uns caras aqui e propões pra gente
uma força pratica... E a gente, por acreditar que estamos nesta luta, que é uma
dimensão, que é o campo simbólico, a gente procura encontrar dentro da socie-
dade, movimentos organizados, que são contra hegemônicos, que também apon-
tam pra um horizonte transformador. E aí, a gente vai pra dentro dos movimen-
tos. Eu digo assim, procurando encontrar, porque, claro, estamos aqui localiza-
dos no Sacolão, que é no Parque Santo Antônio. É quase óbvio dizer que a gente
dialoga muito com as pessoas que estão aqui, mas elas não estão organizadas.
Tanto é que a gente vem falando aí, em encontros que a gente participa, que o
conceito de comunidade, como é dito aqui, ele precisa ser revisto, porque unida-
de comum hoje a gente não consegue encontrar dentro dessa fragmentação
toda. Só que vêm os grupos de teatro e propõem, por exemplo, uma coisa assim:
“estamos indo rumo ao socialismo”, ou, apontando para uma transformação que
tem horizonte socialista, combatendo o capitalismo, combatendo a estrutura do
capitalismo, revelando nas suas peças as contradições que existem dentro deste
sistema. Ou seja, na tentativa de interferir diretamente no imaginário, no simbó-
lico, do público. Portanto, também se faz uma análise do fazer, que é a seguinte:
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analisar o que é feito pelo artista trabalhador, pelo intelectual. Na obra é um
fracasso, não é possível fazer isso. A nossa leitura é que analisar o que a gente
faz pela via do espetáculo, eu digo assim, da peça teatral, é bobagem. Tem que
analisar ela na relação com o público e aí, então, estamos em busca de um públi-
co pra dialogar. Ai vêm os movimentos populares, tá até aqui - vou repetir por-
que acho que tem a ver – no jornal do Engenho Teatral, a pauta dos movimentos
populares. Aí a gente olha pra isso e fala: puta, cara, a gente parece uma ideia
fora do lugar. Vou ler algumas aqui que estão num âmbito bem reformista:
...propostas para o Brasil – então isso aqui é uma coisa que, na verdade, saiu no
“Brasil de Fato”: “...acabar com o tal superávit primário e mudar as taxas de ju-
ros; o dinheiro hoje embolsado...
Fábio Resende (Brava Companhia): É isso que eu ia falar. E aí você fala: mas
peraí gente, é aqui que a gente tava, é aqui que a gente tava fazendo a leitura,
são nos movimentos popula-
res organizados que a gente
tava fazendo a leitura. Saben-
do que isso aqui, claro, não
vou ser besta de também de
achar que porque publicou no
jornal, que não tem enfren-
tamento dentro dos movi-
mentos. A gente sabe. É por
isso que a gente tá lá. Só que é
foda cara, porque aí dá uma
sensação de estar de fora! Aí, tâmo de fora mesmo. Assim, estamos cada vez
mais fora da discussão. Tô falando da pauta. Qual é a pauta hoje? Se você ampli-
ar isso para o âmbito do teatro, puta merda! Aí não existe mais classe. Agora,
existe pobreza. Então as peças não tratam de luta de classe. Minha peça trata de
pobreza. Ah, vai dá o cú! Porque pelo menos isso, deficitário ou não, a gente sabe
que pobreza é uma invenção.
Iná Camargo Costa: Da santa madre igreja. E, aliás, é muito mais disseminado
do que as pessoas imaginam. Faz parte da nossa ignorância política não prestar
atenção na evolução do discurso da igreja católica. A igreja católica, no fim do
século XIX, definiu uma pauta - mais do que centenária - que é a chamada dou-
trina social da igreja. A doutrina social da igreja foi desenvolvida no Vaticano
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pelos intelectuais da própria igreja com o objetivo explícito e enunciado de -
atenção – deter o avanço do programa socialista, com o objetivo declarado de
impedir que os pobres, agora já como categoria política, que os pobres se apro-
ximassem das – porque é sempre no plural – das organizações que ameaçavam a
continuidade do sistema capitalista. Tá, então, eu vou lembrar o nome da encí-
clica... Uma hora aí vem o nome. Nesta encíclica, eles fazem o balanço dos vários
discursos presentes e avisam qual é o perigo: o perigo é a revolução. É claro que
uma revolução ameaça muito imediatamente a igreja católica, porque basta
pensar que aqui no Brasil, ela detém uma quantidade de terras absolutamente
notável, ela, talvez, esteja no ranking dos dez maiores latifundiários do país, pra
não falar nada do negócio dela em multinacionais.
Ao contrário do que todo mundo pensa, a igreja tem interesses materiais muito
claros que ela defende com todas as suas armas. E a arma mais poderosa que ela
tem é, justamente, esse contato direto com os fiéis, ou rebanho como eles gos-
tam de falar, até porque os padres são considerados pastores. Não é por outra
razão que os evangélicos têm os seus pastores, porque os fiéis são o rebanho. O
discurso reformista da igreja - fazer reformas para impedir que aconteça a revo-
lução - começou no século XIX e persiste até hoje. Quando fez cem anos da carta,
da primeira carta do papa; aliás, não foi há cem anos. Quando fez quarenta anos,
teve outra encíclica que se chamou Quadragésimo Ano, que reafirmou os termos
daquela que foi escrita quarenta anos antes e atualizou algumas questões, por-
que estávamos em pleno nazismo, fascismo; já tinha tido a revolução russa, en-
tão, tinha que melhorar a intervenção dos padres. E assim foi seguindo e até
hoje reiteram os itens políticos: fazer reforma para impedir qualquer tentativa
de revolução, e formar ideólogos, isto é, profissionais, de preferência sociólogos,
pelas universidades católicas espalhadas pelo planeta. Se vocês querem saber, a
maior multinacional do planeta é a multinacional dos jesuítas, a Companhia de
Jesus que mantém escolas e universidades no mundo inteiro, incluindo Estados
Unidos e Inglaterra. E eles formam sociólogos com discursos muito bem arma-
dos para explicar que revolução não está na ordem do dia, que é melhor reduzir
o superávit primário, etc, etc, etc... Então, é preciso, se bem que, como tudo neste
mundo é dialético, no processo da constituição da doutrina social da igreja, for-
mou-se uma ala de esquerda dentro da igreja que culminou na tal da Teologia da
Libertação. A Teologia da Libertação produziu militantes, que entre outras coi-
sas, ajudaram a criar e consolidar o MST aqui no Brasil.
Fábio Resende (Brava Companhia): E dizer que a gente tá aqui muito próximo
da Vila Remo, importante sede onde se encontrava o Santo Dias.
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Iná Camargo Costa: Comunidades eclesiais de base. Precisa falar mais alguma
coisa? Então as comunidades eclesiais de base tiveram um peso importantíssi-
mo no processo de reorganização e intervenção política na década de 70. Eu
mesma, na minha militância mais radical, no Movimento de Professores da dé-
cada de 70, contei com o apoio real da estrutura da igreja católica. Nós fazíamos
assembleias sub-regionais de professores, funcionávamos pelo sistema de Sovi-
ete - era o comando de greve – tinha assembleia sub-regional; elegia delegado
pra regional e a regional elegia delegado para constituir o comando de greve.
Então, o comando de greve era uma versão profissional, no sentido de categoria
profissional da experiência do Soviete. Aliás, é por isso que eu falo com tanto
empenho, porque eu participei pessoalmente de uma estrutura pelo método do
Soviete. E ela só existe enquanto o processo está existindo, acabou a greve, aca-
bou o comando de greve, acabaram as assembleias, etc, etc. É assim que é a vida.
E aí vem a contribuição dos anarquistas: você não tem que manter um órgão
depois que a realidade que exigia a existência dele, desapareceu. Comando de
greve não tem que permanecer depois que acabou a greve. Acabou a greve, aca-
bou o comando de greve. É tão simples assim. Aliás, as coisas são muito mais
simples do que parecem. Complicar as coisas é, um pouco, tarefa de intelectual
também. Pois muito bem, tô dizendo isso por que não vou cuspir no prato que
eu comi. Se não fosse a disposição progressista do bispo, na época em São Paulo,
nós não teríamos se quer viabilizado a nossa greve, que foi em 1978. Nós fazía-
mos reuniões, assembleias e reuniões de comando e grandes assembleias dentro
de igrejas, porque havia uma ditadura no Brasil. Então da mesma maneira que
nós usamos os equipamentos da igreja, a igreja usou dos nossos movimentos e
esvaziou os nossos movimentos. Mas, o processo é dialético. A igreja veio parti-
cipar, ela que participe e que dispute. Então, não se trata de simplesmente dizer:
joga isso fora. Trata-se de ficar alerta pra perceber quando a intervenção objeti-
va. Porque, o que vale, é o que a gente faz. Como diz o Brecht: “não me interessa
a opinião que o cara tem, eu quero saber o que é que ele faz”. Então, se vem o
militante da igreja - seja coroinha, seja comunidade eclesial de base, seja lá o que
for - pra nossa assembleia, é só ver se o que ele tá dizendo é avançado ou retró-
grado e disputar com ele. Esse é o ponto. É esse o discurso, digamos assim, he-
gemônico, nos movimentos sociais. Qual é a função de quem já sabe o que é isso?
Tentar enfrentar - nos lugares onde vale à pena – e desmascarar o discurso da
reforma – reduzir superávit; aumentar mercado de trabalho; lutar por direitos
assim ou assado... Ora, em determinadas conjunturas pode ser só o que é possí-
vel fazer. Se é só isso que dá pra fazer, façamos. Mas se dá pra fazer coisa mais
avançada, a coisa mais avançada deve ser proposta. E não tem ilusão, porque
você vê. O programa é o da revolução? Vamos construir os Sovietes? Com quem,
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cara pálida? Como diz - de novo eu vou citar o Lênin: “não adianta você ter idei-
as ou propostas mirabolantes, você tem que saber o que está posto na ordem do
dia e qual é a proposta mais avançada a defender”. Por isso que o Brecht falou:
Têm que aprender com o Marx a identificar cada fato que está em jogo, quais são
os interesses que estão disputando aquela questão e tomar a sua posição e de-
fender. Por isso que o Brecht falou: “tem que aprender com o Marx a identificar
cada fato que está em jogo, quais são os interesses que estão disputando aquela
questão, tomar a sua posição e defender”.
É neste momento que uma intervenção que desmascare o progressismo de cer-
tas palavras de ordem, pode, no mínimo, produzir ruído em pessoas que acredi-
tam na palavra de ordem. Então, é uma das funções, porque disputar o campo
simbólico é tão importante quanto disputar um latifúndio improdutivo ou “o”
latifúndio das comunicações. E esta é a palavra de ordem que nunca entra na
ordem do dia para os artistas desempregados. Artista desempregado não se
coloca o horizonte de disputar os meios de comunicação, isto é, postos de traba-
lho.
Iná Camargo Costa: Vocês sabem que quem inventou ONG foi o Banco Mundial.
Precisa continuar falando? Vocês não acham que o Banco Mundial ia inventar
uma organização para destruir o sistema capitalista, acham?
Fábio Resende (Brava Companhia): A gente vai se atrever nos próximos tem-
pos a fazer uma discussão, aqui no bairro, que, ao contrário do que parece, eu
não fico pessimista com o que você fala. Eu fico otimista. Cada vez vão caindo as
fichas e fica mais legal de lutar, porque você não vira um frustrado. Daqui a pou-
co, a gente vai se atrever a fazer uma coisa que é o seguinte: pegar a história de
Jesus Cristo, colocar um grupo de teatro montando essa história de Jesus Cristo,
inspirado um pouco no filme “Jesus de Montreal”.
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Nós vamos discutir a alienação com essa história, o processo do capital e do
trabalho, e vamos pegar também a construção da organização dos trabalhadores
aqui na nossa região. É nesse sentido que a gente fala um pouco da imagem, ou
seja: é pegar essa imagem dada ou, sei lá, brechtinianamente falando: “ó, vocês
conhecem né? “E é ela que a gente vai quebrar. E é um puta risco porque a gente
não sabe o que vai acontecer; se vão expulsar a gente daqui depois... Mas a gente
vai enfrentar isto: a história do trabalho aqui. As pessoas estão aqui e estão vi-
vas. A gente foi na casa de uma delas outro dia, que é a Dona Maria, que era co-
ordenadora do Clube de Mães e que podemos dizer que seria uma das responsá-
veis por estarmos aqui hoje, e que foi o que sobrou deste movimento que o PT
não conseguiu acabar, e que vem aqui e diz: “este espaço tem que ser um espaço
cultural”. Isso no mesmo momento em que a comunidade fala: “tem que ser um
posto de saúde”. A disputa esta aí! Teve uma disputa e nós entramos de carona
nisso e entramos aqui. Tô falando porque é um tema que é fogo. A gente sempre
cai na coisa do romantismo e fala: “putz meu, do caramba esse espaço”. Mas a
gente vai ter que encarar esse povo também. A gente vai ter que disputar com
quem tava na luta também. Porque tem várias coisas que aconteceram, e aí en-
tra a nossa maior contradição: nós não estávamos lá. E a gente também não tá
conseguindo fazer uma luta efetiva, pratica, hoje em 2010. A gente não está con-
seguindo. Por mais que a gente tente se organizar aqui dentro, dentro deste
espaço, de uma maneira horizontal, em assembleia, e podemos dizer que vive-
mos em assembleia permanente, porque, dia após dia, tem discussão e debate. E
tem que ser consensual. A gente nem voto faz. E é um pepino que a gente gosta-
ria de descascar. Mas o que eu acho que está faltando pra gente, é falar: “por que
a gente quer descascar esse pepino hoje?”
Iná Camargo Costa: Tem um aspecto aí que eu não entendi. Disputar com
quem? Por que não seria disputar as pessoas para trazer pra cá?
Iná Camargo Costa: Eu tenho a impressão que para um grupo que se insere
num espaço como este, um espaço que já tem uma história - como você acabou
de contar – numa região como esta, a tarefa prioritária tem que ser minimamen-
te se integrar, e se integrar de maneira política, que é completamente diferente
duma babaquice da década de 60 e 70, que era o intelectual virar operário, virar
camponês. Eu tenho uma amiga americana que acreditou nisso.
Vocês acreditam que ela, sendo professora universitária nos Estados Unidos, ia
cortar cana em Cuba? Ah, vai ser maluco no fim do mundo! Porque não é essa
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que é a questão! A questão é produzir uma aproximação com a população, de
forma que, primeiro a população reconheça este espaço como uma conquista
dela - vocês como parte, segundo ou terceiro capítulo - da conquista. Uma luta
pelo direito desta população de participar, inclusive, da pauta sobre o que vai
ser feito aqui, definir que espetáculo, enfim. Eu tô imaginando aqui, diante do
que você acabou de falar, um processo de integração que é necessariamente
político; com todos que forem bem vindos - inclusive pastor e padre de algum
pedaço aqui. Venham, de modo que o centro cultural não fique como um centro
cultural que está sendo ocupado por um grupo que é financiado por uma grana
municipal, mas que seja uma coisa das pessoas daqui. Que vire uma comunida-
de, um ponto de encontro onde as pessoas comecem, de repente, a discutir pri-
meiro cultura e, quem sabe, política, imediatamente ou depois. Então, isto aqui
tem tudo para ser o lugar. Mas, agora, vocês têm que ter a cabeça política. Que
dica eu posso dar ou que informação procurar? O processo de constituição dos
grupos de Teatro Livre por toda a Europa. Só sobreviveram os grupos que se
integraram no processo político e social, porque os que não quiseram isso, os
que optaram pela especificidade do teatro morreram, ou foram absorvidos pelo
mercado. Os que se mantiveram integrados ao processo, participaram de vários
tipos de integração – nem precisa dizer que pra mim isso foi o mais relevante
que aconteceu na Alemanha, porque no segundo capítulo, o partido Socialdemo-
crata começou a apoiar e os grupos de teatro passaram a ser apoiados por traba-
lhadores de diferentes setores, que se associaram e, uma vez associadas, as pes-
soas que apoiavam o teatro - porque gostavam, porque não tinham o que fazer,
afinal não tinha televisão e nem nada parecido - começaram a definir até o pro-
grama do repertório dos grupos: “vai montar essa peça e não aquela”. Mas isso é
um processo político, que mesmo vocês não tendo vínculo com nenhuma orga-
nização, se tiverem cabeça política, vocês conseguirão. E fechando pra mostrar
que não há contradição, no sentido forte, entre um centro cultural e um posto de
saúde: atividade cultural e saúde são necessidades de peso equivalente, elas não
podem ser contrapostas, não é motivo de vergonha o fato de vocês terem conse-
guido ficar aqui versus a proposta derrotada de se fazer um centro de saúde.
Sobre essas coisas vocês precisam pensar, e aí eu volto a citar o Trotsky: “existe
uma perseguição, da parte de candidatos a produtores desempregados que não
tem como se integrar na força de trabalho convencional, voltada para a produ-
ção cultural.
Por que que vocês têm o direito de se reivindicar como grupo que produz tea-
tro? Primeiro, porque a produção cultural é uma necessidade e um direito. Cul-
tura, citando meu mestre, Antônio Candido de Mello e Souza, é tão necessária
quanto saúde. Aliás, avançando mais, uma pessoa que parece ter saúde, mas não
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tem vida cultural, ela é doente e não sabe. É sério gente. Isso sem falar nos que
tem a sua necessidade de ficção – e esse é o ponto: a elaboração imaginária da
própria experiência. Não tendo isso, ficam a mercê do lixo cultural despejado
pelos canais de televisão, programas de rádio e outras bobagens.
Diogo 90: Para nós que estamos trabalhando com cultura com a perspectiva de
destruição desta sociedade que aí está, é preciso nos entender enquanto saúde.
E aí, também, contribuir com a saúde, com a nossa saúde. Se a gente também se
opuser, a gente tem que dialogar, aí sim, enquanto “melhoria”. E aí a arte, a cul-
tura, não enquanto mero entretenimento pra se acalmar e descansar e sim, en-
quanto uma reflexão que seja legal de se ter e uma reflexão sobre a vida e sobre
a sociedade, e isso é o que você acabou de falar: “pô, tô animado”. Isso é saúde. É
a gente estar animado, a gente refletir. Isso é saúde. Acho que é essa perspectiva
que a gente tem que ter.
Diogo 90: Hoje estão aqui os coletivos de vídeo, junto com o de teatro, porque
também tem uma tendência, dentro da cultura, de segmentar: a música, o teatro,
a dança, o vídeo - e não se junta. Também é preciso entender a cultura como
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todos esses seguimentos, e aí ter uma luta mais em comum. Se não a gente vai
disputar, cada um, seu editalzinho, a sua fatia. E aí a gente reproduz a lógica do
capitalismo.
Iná Camargo Costa: Vou aproveitar essa deixa e recapitular uma denúncia. Não
sei se muitos de vocês aqui estavam lá, quando o Movimento 27 de Março foi,
por assim dizer, lançado. No momento seguinte, alguns militantes da cultura
propuseram dar um passo adiante no plano conceitual e chamar todo mundo de
trabalhador da cultura. Os grupos de teatro racharam e saíram do Movimento,
porque não queriam ser chamados de trabalhadores da cultura. Heloô! quanto a
esse negócio da unidade dos grupos, eu acho que desde 2003, 2004, essa ques-
tão é um foco de tensão entre os grupos de teatro.
Eu pessoalmente acho que não há razão nenhuma pra gente ter ilusão a respeito
de uma “unidade universal”. Por quê? Porque uma série relevante de grupos só
quer ser grupo de teatro, para fazer teatro e ponto. Estes não querem saber de
luta de classes e jamais vão se interessar por qualquer outra coisa que não seja
fazer teatro. Eu acho que a gente não precisa nos enganar a respeito deles. Eles
não vão participar de lutas políticas mais ambiciosas e, muito menos, de discus-
sões ou outras atividades. Não se pode ter ilusão a esse respeito.
A partir de um determinado momento passam a ser adversários que devem ser
peitados, do mesmo jeito que eles desqualificam o trabalho de vocês. E vocês
sabem disso. Vocês não podem mais se enganar sobre as relações, aparentemen-
te, amistosas que existem entre os grupos. Eles desprezam, da “altura olímpica”
em que eles se colocam, com uma estética de alta exigência, daquele “Monte
Olimpo” onde eles estão. E acham o trabalho politizado um lixo. E dizem isso,
entre eles. Eu acho que não há unidade possível, nem estética, nem política, com
– eu não posso nem usar a expressão ‘companheiro de viagem’, porque não é. A
hora que o pau comer, eles vão ficar do lado do inimigo e nós sabemos disso. É
exatamente a expressão que a Renata Zanetta usava nas reuniões do jornal “O
Sarrafo”: “nós precisamos riscar o chão: quem quiser discutir política fica pra cá,
quem não quer... Pronto.
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Iná Camargo Costa: E por isso que quando foi anunciado o Movimento dos
Trabalhadores da Cultura, eu fiquei entusiasmada. Porque é esse o horizonte. E
isso que você falou eu ouvi em outra formulação, no dia que eu fui conversar lá
com o pessoal do Artemanha. Porque foi gente de outras atividades e, pelo nível
da discussão, eu mesma não entendi como todos eles já não constituíam uma
única organização. Desconfio que, em parte, pelo conservadorismo dos grupos
de teatro.
Márcio Rodrigues (Brava Companhia): Mas eu penso isso. Foi até uma fala do
Fábio, quando a gente estava conversando aqui sobre essa desarticulação. Hoje,
lá no Artemanha, agora mesmo, está acontecendo uma atividade como essa aqui.
E a gente fala: “poxa, parece que é fetiche. Cada um vai fazendo sua coisinha”...
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você tá num grupo de quinze pessoas e tá falando uma coisa bacana, tá conse-
guindo construir uma coisa ali. E, às vezes você tá em um milhão de pessoas na
Paulista, em prol da... Sei lá... Da “puta que pariu”. E, na verdade, não tá aconte-
cendo nada, tá ligado? Aliás, você só tá lá, inclusive, pegando dinheiro público
para depois lavar a rua. Fazer uma porrada de patifaria pra mobilizar mais polí-
cia – porque no dia que faz o negócio tem que ter polícia em volta. Então, acho
que é uma questão aí pra gente ver: como se organiza e respeita a diversidade.
Fábio Resende (Brava Companhia): A gente tem que ter, como trabalhador da
cultura, um pressuposto transformador? Isso não tinha que estar embutido?
Porque eu acho que a gente pode, talvez, devolver e dialogar. Eu acho sua fala
perfeita. Porque é aquela velha historinha: “tudo tem uma historinha por trás” -
é o que a gente fala lá no “Este lado” (Este lado para cima – isto não é um espetá-
culo, peça da Brava Companhia). Tudo tem uma historinha por trás, as coisas
estão em movimento e são passíveis de serem transformadas. Esse é o primeiro
campo em que eu acho que a gente tem que ir combater: “que as coisas estão
assim e sempre foram assim”. Esse é o primeiro campo. Porque é claro que se
hoje a gente chegar aqui, sair na rua e falar: “Rumo ao socialismo!” Acabou, fe-
chou. A gente conversa aqui: “como vamos escrever este texto? Falar que as
coisas nem sempre foram assim, e que elas estão assim devido a um processo
histórico? Isso aí eu acho que a gente consegue fazer...
Iná Camargo Costa: Em relação ao que você acabou de falar, a primeira coisa
que eu recomendo é entrar em contato, de verdade, com praticantes do Can-
domblé. Se você for três vezes ao mesmo, ou mesma roça, mesmo terreiro, de-
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pende do lugar aonde você vá; você descobre que eles têm uma comunidade
organizada, para começo de conversa. E sabe por que eles são organizados?
Porque eles resistem à dominação cristã e ocidental há mais de 400 anos. Eles
são herdeiros de uma história de resistência que nós, pequeno-burgueses, não
temos noção do que seja. Então, é muito mais do que você falou. É começar a
entender. A pergunta é a seguinte: como foi possível que depois de 500 anos de
desterro, eles consigam manter mitos, experiências e histórias, que lá na África
não existem mais? Aqui existe a própria ideia de Candomblé, você sabe. Só aqui
no Brasil. E o equivalente na América Latina, em Cuba, é a Santeria.
Iná Camargo Costa: Veja, eles se organizaram entre eles, respeitando a diversi-
dade deles. Porque, na África, cada Orixá, ou nkisi, no caso de Angola, corres-
pondia a uma tradição, a uma organização ou a uma tribo e, portanto, não havia
trânsito de um Orixá pra outro. Aqui no Brasil, os jesuítas e os portugueses tra-
ziam povos de diferentes etnias, e acreditavam que iam zerar a memória dessas
pessoas. Mas chegando aqui no Brasil esses povos entenderam que teriam que
criar o Candomblé, isto é, todos os Orixás teriam que conviver na mesma reuni-
ão. Então, eles têm o que ensinar pra nós, em matéria de reconhecimento dos
direitos - dos direitos dos desvalidos em grau máximo. Como resistir: eles têm o
que ensinar pra nós sobre isso. Nós não temos nada pra ensinar a eles nesse
capítulo.
Iná Camargo Costa: Vira uma terceira coisa. Então, isso que você tá dizendo é
um processo que, por exemplo, na Bolívia, eles estão descobrindo. Porque o Evo
Morales se elegeu presidente e então agora, tanto a herança nativa quanto a
africana, começam a ter um espaço de manifestação com direitos, que aqui no
Brasil não são reconhecidos, até agora. Porque, até hoje, vizinhos de terreiros de
candomblé chamam a polícia pra fechar, parar. Então, tem uma luta que dura
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400 anos e que ainda vai muito longe. Os trabalhadores da cultura que não pres-
tarem atenção nisso, não sabem nem onde eles estão.
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correta. Nenhuma afirmação, gente, só uma provocação mesmo... Isso apontou
na última quarta-feira, na conversa que a gente teve aqui, quando se falava de
comunicação de massa. Isso apareceu ontem, isso apareceu hoje de manhã, no
Coletivo de Vídeo Popular. Vamos conversar disso aí...
Iná Camargo Costa: Quero aproveitar o pensamento em voz alta pra fazer uma
homenagem ao meu saudoso companheiro Maia. Do comentário dela tem um
tema ali que é a seguinte pergunta, sobretudo a quem atua na periferia, mas, de
um modo geral, vale pra que faz teatro de grupo, e eu insisto, já escrevi isto vá-
rias vezes e vou repetir: faz teatro de grupo porque não consegue se inserir na
força de trabalho convencional. E, como diz o Moreira, está fazendo isso pra,
inclusive, mascarar as estatísticas sobre o desemprego no país. Isto posto, a
pergunta do Maia – e ele a fazia sempre: “tem que se perguntar se você não está
se comportando como um novo padre Anchieta - com um detalhe - sem a mesma
sabedoria do padre”. Porque ele, quando veio pra cá, percebeu que se continuas-
se falando em espanhol ou português, a “indiaiada” continuaria não entendendo
nada daquilo que ele dizia. Então, o que foi que ele fez? Foi aprender a língua dos
caras, foi aprender como é que funcionava a religião dos caras e depois traduziu
para os valores cristãos e pra língua portuguesa e espanhola, bateu no liquidifi-
cador e aí transformou Tupã em Deus, todo poderoso. Então, dizia o Maia: “vo-
cês correm o risco de imitar o padre Anchieta, sem fazer essa parte do trabalho
dele, isto é, vocês não sabem sequer que língua as pessoas falam e acham que
tem uma técnica para preservar?” Porque a técnica que você tenta preservar é
da língua que você aprendeu na universidade. Quem disse que ela serve para
falar com gente que fala outra língua? Porque na interlocução, seguramente,
você terá de abrir mão da língua que você fala, você vai ter que aprender a lín-
gua da pessoa com quem você quer falar. Se a gente faz isto... Aliás, elogio ao
companheiro Lula. Vocês sabiam que o Lula foi o primeiro presidente da repú-
blica brasileiro que explicou aos nossos profissionais diplomatas que a língua
oficial deste país é o português? Eles não sabiam, eles achavam que vai falar com
americano, fala inglês, vai falar com os franceses, fala em francês, então estes
são os nossos diplomatas: todos poliglotas, mas que, logicamente, não sabem
falar banto, não sabem falar iorubá e, muito menos, guarani e todas as línguas
nativas do nosso país. Então, o Lula puxou a orelha do porta-voz dele explican-
do: “você é meu porta-voz e quando você estiver falando em meu nome, você vai
60
falar em português”. E o porta-voz respondeu: “mas os caras não entendem.” De
novo, o Lula: “eles que providenciem intérprete. Você não tem que falar na lín-
gua deles. Porque a língua deste país é o português.” Este é o ponto e a questão
para a qual o Maia chamava a atenção: os intelectuais e artistas, que herdam de
maneira empobrecida a tradição do colonizador, eles são por definição, esquizo-
frênicos; primeiro porque eles são preparados para falar com a classe dominan-
te, mas não fazem parte da classe dominante e não tem condição - porque se
tivesse condição estava trabalhando na Globo - e aí não se reconhecem como
iguais aos excluídos da dominação, ou como diria o Aristóteles: os que querem
participar do poder e possivelmente para obter isso, terão que fazer uma revo-
lução. Mas, a primeira coisa que precisa acontecer é falar a língua dos igualmen-
te dominados, sair da esquizofrenia. Não precisa de amnésia, não precisa esque-
cer o que aprendeu, mas precisa aprender outras coisas e aprender a falar com
as pessoas na língua delas. Siga direito o exemplo do padre Anchieta e atenção –
com a diferença relevante no nosso caso, pelo menos no meu e do Maia – não
para enfiar bobagem na cabeça das pessoas, mas para aprender a falar com eles
e, se possível, ensiná-los a falar esta língua aqui, ensinar os segredos da língua
da dominação. Porque se eles não aprenderem os segredos, eles não terão como
se defender. O serviço é grande, gente.
Diogo 90: A gente passou o dia conversando, e um dos serviços não é resgatar,
mas é também contar a nossa memória, a nossa história. Não como reconstitui-
ção histórica; óbvio que é vê-la a partir do presente. Porque a nossa história é
toda escrita do ponto de vista do dominador. A cultura negra é oral, a cultura
indígena também é oral. Então, os textos foram escritos pelos colonizadores.
Quem veio aqui pra colonizar, a globalização capitalista quando chegou em
1500. Então, a gente como trabalhador da cultura, a gente do vídeo, que é uma
ferramenta top do mundo do espetáculo, mas também de resistência, contar
essa história, a história dos negros, a história dos índios - isso é se contrapor ao
mundo do espetáculo e do capitalismo que está aí. Porque a história é contada
do ponto de vista de quem “venceu” e está vencendo. É só mais uma tarefa. O
pessoal do vídeo, hoje, passou por esse assunto, e é uma tarefa nossa também.
61
Ainda bem que vocês tão fazen-
do alguma coisa. E eu falei:
“não, não é a gente.” E ele: “não?
Mas não é o Sacolão que tá pin-
tando as casas lá?” Era o projeto
de uma ONG que veio pintar as
casas de colorido ali na favela -
algumas foram pintadas pela
metade, acabou a tinta e ficou
metade colorida e a outra me-
tade laranja ou cinza... Enfim,
essas histórias. E eu falei: “não, não!” E ele falou: “mas vocês não pintam as ca-
sas?” Eu respondi: “Não. A gente faz teatro.” “Quê?” “Teatro”. “Quê?” “Teatro”.
Isso é uma coisa. A outra é: alguém falou “Ah, vocês só fazem teatro”, e aí acabou
a conversa. Ontem, aqui, a gente estava em um debate com a Trupe Olho da Rua,
no final da peça deles, e aí eles estavam falando de resistência, de revelar a his-
tória dos negros, dos pobres e dos trabalhadores, e aí, um rapaz que assistiu a
peça, que é conhecido nosso, falou: “Mas o que vocês querem, enfim?” Aí um
deles falou assim: “A gente quer mudar o mundo!” Aí os outros fizeram um gesto
negativo pra ele, deram uma reprimida, e ele fez assim: “não é mudar o mundo?”
Aí começou uma conversa que, no final, eu falei: “então, disso tudo eu entendi
que vocês querem mudar o mundo. Embora vocês tenham vergonha, talvez, de
falar”. Não sei, mas essa confusão gera umas situações de constrangimento.
Fábio Resende (Brava Companhia): Não foi a gente que deu o almoço.
62
Fábio Resende (Brava Companhia): A gente foi na casa da Dona Maria fazer
uma entrevista com ela e aí, no finalzinho, estávamos eu e a Lu, e ela falou: “a
gente fazia assim: não dava pra chamar as pessoas pra discutir política. Então, a
gente fez um “clube de tupperware”. E elas se encontravam pra falar de Tup-
perware, pra vender “não sei o que lá”, e encaixava ali um texto, e encaixava ali
uma coisa. Ela falou que o resultado disso foi mais de duzentas mulheres, naque-
le fatídico dia, na igreja da Sé, quando estava lá o bispo. Mulheres lutando com
uma baita consciência. Mas, no geral, o que eu estou falando aqui é que está
faltando estratégia pra gente. Aquela coisa que você escreve no seu texto “Tea-
tro na Luta de Classes”. Talvez esteja faltando um pouco de estratégia pra gente.
Iná Camargo Costa: Isso nos surpreende em parte, porque desde que se con-
quistou a Lei de Fomento, definiu-se uma estratégia que finalmente foi conquis-
tada. A Lei de Fomento foi a plataforma para a luta pelo Fundo Nacional de Cul-
tura, reformas da lei Rouanet e blá blá blá... Toda a pauta no Movimento de Tea-
tro de Grupos foi essa nos últimos 10 anos. Isto, o que é uma aparente falta de
estratégia, é a estratégia. A tática virou estratégia. Tradução: vocês capotaram
no programa social-democrata e ainda não tomaram consciência, nem fizeram a
crítica, por isso não rola. Enquanto vocês não perceberem que estratégia é um
horizonte, o mais ambicioso possível, a partir do qual você pauta a tática, isto é,
as intervenções pontuais nas diferentes esferas, seja no preparo, ensaio, na rea-
lização dos espetáculos, seja nas conversas com a redondeza ou nas articulações
com os movimentos. Isso tudo é tática. Repetindo o que eu já sugeri aqui: o Mo-
vimento 27 de Março com a ocupação da FUNARTE, com todos os problemas
que teve, esboçou uma possibilidade de definição de estratégia, que foi devida-
mente descartada, boicotada, desqualificada. Os grupos, integrantes dos Movi-
mentos de Teatro de Rua, Teatro de “não sei o que lá”, e mais “não sei o que lá”,
se assustou com uma perspectiva de estratégia mais ambiciosa. Estou falando do
27 de março de 2008. Então, vocês, coletivamente, descartaram a possibilidade
de definir um horizonte mais ambicioso. Enquanto isso não acontecer, vocês não
vão sair da lama. E sobre o comentário da Rafa - só pra apimentar – tem uma
cena na peça 'Revolução na América do Sul', do Augusto Boal, em que os estu-
dantes estão se preparando pra fazer um grande ato que vai desencadear a re-
volução e eles não conseguiram marcar o ato porque um ia namorar, o outro ia
“não sei aonde” com a família, o outro ia passar o final de semana “não sei aon-
de”. Então não aconteceu o ato que ia desencadear a revolução porque os pe-
quenos burgueses tinham mais o que fazer. A peça é de 1960.
63
Luciana Gabriel (Brava Companhia): Tem algumas ações que eu acho que
podem ser um avanço e, de repente, a gente tá jogando fora, como aconteceu no
27 de Março. E eu não tive essa reflexão naquele momento. Eu acho que hoje,
com essa conversa e você provocando assim, eu estou vendo a coisa de outra
maneira. E quando, por exemplo, o Dolores e a Antropofágica resolvem fazer o
próximo Fomento juntos, ou quando o Luciano vai para o Estudo de Cena, ou
dentro do Dolores, com a literatura, a poesia, a música... Só apontando coisas
que, pra mim, vieram assim, bem forte, e eu acho que são coisas que estão acon-
tecendo e a gente tem esse olhar antigo, crítico, que nos distancia e nos coloca só
nessa posição de crítico. Só pra gente sair daqui refletindo um pouco sobre coi-
sas que já estão acontecendo e que, ao invés de minar, a gente deveria potencia-
lizar essas relações. Foi muito bom. Muito bom conversar hoje. Acho que nesse
momento do Sacolão, de repensar o Coletivo Gestor e as nossas estratégias, as
nossas ações, para mim, clareou um monte de coisas. Fiquei bastante curiosa pra
conversar mais.
Iná Camargo Costa: Na Academia a tendência é jogar água, pra misturar todos
os chãos. Mas tá todo mundo assustado e com medo. Agora o ponto é o seguinte:
não se faz união em abstrato. Agora eu vou falar como trotskista radical. União
só é legítima se você tiver um ponto claro de pauta e todos estiverem dispostos
a lutar por aquilo concretamente. Então, em função daquilo, você faz uma união.
Conquistou, vai cada um para o seu lado. Abstratamente não existe isto. É pura
hipocrisia. Ou então, a grande estratégia de esvaziamento da luta lançada, ofici-
64
almente em 1935 - mas que já havia sido ensaiada desde meados dos anos 20
pelo stalinismo - que é a tal da Frente Ampla. Frente Ampla é a favor da manu-
tenção do estado de coisas. É abstrata, não tem um objetivo concreto pelo qual,
ou contra o qual, lutar. Então, união em abstrato é esvaziar e fazer todo mundo
perder tempo. União só tem sentido se for pra lutar contra uma questão especí-
fica, ou a favor – e, às vezes, as duas coisas ao mesmo tempo, porque você é a
favor de uma coisa, você é contra a outra. Fora disso, é melhor não perder tem-
po. Você ganha muito mais tempo assistindo a novela da Globo, do que partici-
pando de reunião de gente que pensa que seu ouvido é penico.
65
e a necessidade de nos articularmos para agilizar o processo de cessão de uso do
espaço.
Acordamos trazer na próxima reunião (25/10/2010) um primeiro diagnós-
tico sobre cada um dos temas;
Próximas reuniões do Coletivo Gestor: 25/10, 8 e 15/11.
A partir da solicitação do João, avaliar com os educadores se a segunda-
feira é o melhor dia para as reuniões pedagógicas (Rita e Kátia irão consultar o
grupo);
Roberto ficou encarregado de organizar documento reivindicatório para
levarmos à reunião do orçamento da Subprefeitura M’Boi Mirim, dia 06/11, a
partir de contribuições de todos;
Aprovamos o empréstimo dos equipamentos solicitados pelo Douglas;
Não aprovamos a participação, neste momento, de ouvintes nas reuniões
do Grupo Gestor, devido à necessidade que temos de organizarmos o modelo e
método de trabalho que adotaremos. Num segundo momento talvez;
Os trabalhos seguiram... Muitos trabalhos! Ah! Não se esqueçam de que
somos um grupo de teatro!
Raymond Williams
66
Contra imagem ou Rever com olhos desconfiados
Nos últimos anos dedicamos nossos esforços para “aferrar nossos nari-
zes”(corpo e pensamento) sobre o objeto de nossa pesquisa a qual intitulamos
contra imagem.
5
Guy Debord. A Socidade Do Espetáculo – Rio de Janeiro. Contraponto. P.25
6
Eugenio Bucci e Maria Rita Kehl. Videologias – ensaios sobre televisão. São Paulo. Boitempo. P.52-54
67
Estudo prático, utilizando a linguagem teatral como meio de composi-
ção da contra imagem (desnaturalização) das imagens espetaculares
utilizando-as como “armas” contrárias a elas mesmas e sendo reconhe-
cidas criticamente pelo público;7
Nosso intuito é construir uma disputa simbólica por meio do teatro que
possa ser apreendida por nós e pelo público. Para que esta apreensão possa ser
conferida são necessários estudos práticos de reformulação destas imagens
naturalizadas ao longo do tempo e do espaço que conduzam a um caminho de
reconhecimento da imagem apresentada, apresentação da crítica da imagem na
imagem e a inversão da contemplação em espanto.
Espantar-se é entender, mesmo que minimamente num primeiro momento,
que por de trás das imagens do espetáculo, produzido por “atores” da classe
dominante e que carregam em si a ideologia desta classe, existe um mecanismo
de relações que justificam, por meio do espetáculo e suas imagens, o ideário
neoliberal que transforma verdade em inverdade. Mauro Iasi, nos ajuda a com-
preender este processo, quando analisa uma passagem de Marx e Engels, na
qual diz:
“quanto mais as formas normais das relações sociais e, com elas, as con-
dições de existência da classe dominante acusam a sua contradição com
as forças produtivas avançadas, quanto mais nítido se torna o fosso que
separa esta classe dominante da classe dominada, mais natural se torna,
nestas circunstâncias, que a consciência que correspondia originalmente
a esta forma de relações sociais se torne inautêntica; dito por outras pa-
lavras, essa consciência correspondente, e as representações anteriores,
que são tradicionais deste sistema de relações, aquelas em que os inte-
resses pessoais reais eram apresentados como interesse geral, degra-
dam-se progressivamente em meras fórmulas idealizantes, em ilusão
consciente, em hipocrisia deliberada.” *****
7
Bertolt Brecht escreveu em 1934 um ensaio intitulado As cinco dificuldades de se dizer a verdade. É necessário nos
valermos de duas destas cinco para entendimento deste mecanismo utilizado para nosso trabalho de criação e estudo, são
elas: “Deve-se ter a inteligência de reconhecê-la, embora ela se mostre permanentemente disfarçada” e “Deve-se entender
da arte de manejá-la (verdade) como arma.”
8
Guy Debord. A Socidade Do Espetáculo – Rio de Janeiro. Contraponto. P.24
68
Marx e Engels ainda dizem que quanto mais as ideias dominantes são des-
mentidas pela vida, mas se tornam morais e sagradas na linguagem. Iasi faz a
seguinte consideração:
AVISO IMPORTANTE: na ocasião desta Brava Conversa, a fala do Professor Marcos Fabris foi acompanhada pela
exibição de diversas obras artísticas. Infelizmente, devido a burocracia em relação aos direitos de propriedade de
imagem, essas obras não puderam ser reproduzidas junto a esta transcrição, mas podem ser vistas na gravação em
vídeo dessa Brava Conversa, cujo link está disponível no Blog da Brava (blogdabrava.blogspot.com).
9
Karl Marx e Firiedrich Engels. A ideologia alemã. Martins Fontes s/d vol.II p. 78
10
Ver neste mesmo Caderno “Para o ator no teatro de todos os dias”
69
Marcos Fabris: O meu nome é Marcos Fabris e fui convidado para falar aqui
com a Brava Companhia. Fiquei muito feliz e antes de tudo, fiquei muito motiva-
do com o convite, porque fiquei imaginando como é que uma pessoa como eu,
que tenho uma pesquisa essencialmente em artes plásticas, artes visuais, pode-
ria contribuir, enfim, pro trabalho de vocês. Mas já entendi nas conversas para-
lelas que talvez a minha pesquisa e a minha fala tenha alguma reverberação
interessante, que vocês podem aproveitar. Eu vou tentar de maneira bastante
didática apresentar um pouco disto no âmbito do teatro e também do cinema.
Como é que uma determinada tradição trabalha nos termos que vocês me en-
comendaram a partir da sociedade do espetáculo, digamos assim. Eu pensei esse
encontro nosso da seguinte maneira: um encontro que fosse um misto entre
uma fala e uma aula. Por quê? Porque, essencialmente professor, eu escrevi um
texto pra ser falado, pra garantir que um determinado conteúdo estivesse pre-
sente pra vocês. Mas de quando em vez, eu vou abandonar este texto e vou en-
tão, tratar das imagens por elas próprias, no Power Point, enfim, na lousa, co-
mentando as imagens na sua factura, na técnica utilizada e pensando então,
como é que vocês poderiam de alguma maneira, tomar contato com uma deter-
minada tradição - se é que vocês já não a conhecem - e, ao mesmo tempo, se
beneficiar desse conhecimento pra, inclusive, avançar em relação a ele. Então,
essa fala tá dividida numa introdução, que será lida – pausadamente, mas eu
gostaria de ler – e depois, então, eu vou tratar de dois casos. Um certamente, e o
outro se houver tempo, tá? Se vocês quiserem me interromper, enfim, isso é
uma conversa informal, se houver uma dúvida, se vocês precisarem interrom-
per, fiquem a vontade. Então, pensando que essa foi uma encomenda, a partir da
produção artística na sociedade do espetáculo, ou uma sociedade espetacular,
digamos assim, eu vou tratar dessa introdução que preparei (lê):
Todos os envolvidos no fazer artístico que, ainda hoje, insistem em não separar
a esfera cultural da política, se depararão, em algum momento, com umas das
experiências mais caras a essa tradição: aquela formulada na Alemanha dos
anos 30 pelo filósofo Walter Benjamin, explicitada em, pelo menos, dois ensaios
fundamentais: “O autor como produtor” e “A obra de arte na era de sua reprodu-
tibilidade técnica”. Aprendemos aqui algumas lições importantes e atualíssimas.
Em tempos da estetização da política – pensemos, por exemplo, no papel fun-
damental que desempenha o marketing nas campanhas eleitorais - é tarefa do
artista consequente politizar a estética. Se o fascismo, inclusive em suas varia-
ções atuais, exige a estetização da política, a arte, por sua vez, deve necessaria-
mente atacar de maneira frontal os princípios mais caros à estética dominante,
dentre os quais:
70
1) A subjetividade como horizonte único;
3) O artista que transcende o seu tempo para falar das questões do eterno
e da natureza perene da alma humana, almejando sempre e necessari-
amente a produção da grande Obra de Arte - obra e arte com “A” maiús-
culo, no caso de obra, “O”, evidentemente. No caso específico da atua-
ção, seja no cinema ou no teatro, o ator engajado deve, necessariamen-
te, romper com a atuação de representação do drama burguês, o que
significa, por exemplo, reduzir a hierarquia entre texto (a fala), a atua-
ção (o gesto), a música (a trilha sonora), o cenário, a iluminação e os ob-
jetos cênicos, permitindo, pelas vias de uma arte essencialmente épica;
a descrição de um processo de aclaramento das relações históricas, in-
clusive com a possibilidade de alcançar conquistas adquiridas por ou-
tras áreas da experiência artística (pintura, fotografia, cinema, música e
literatura, por exemplo).
71
ção. Por exemplo, o trabalho, que é uma atividade coletiva, não pode ser ade-
quadamente representado se tratado apenas no âmbito individual. O que não
significa que este não possa também estar presente como mais uma peça para
compor um quadro maior. Neste caso, um repertório, já constituído de procedi-
mentos técnicos, certamente auxiliará o artista. Mas cada assunto abordado,
sempre tratado caso a caso, necessitará de formas artísticas específicas, proce-
dimentos, que darão conta de descrevê-lo criticamente se, número um: o artista
organizar de modo consciente e consequente os materiais disponíveis para que,
número dois: ao final do processo, todos os envolvidos possam, a partir do con-
tato que travaram com o objeto artístico, caminharem no sentido de uma toma-
da de posição definida, sobre o material que lhe foi apresentado.
Nesta conversa, eu gostaria de identificar alguns dos momentos mais significati-
vos de uma tradição artística visual, que pretendeu há seu tempo, não apenas
mapear a ascensão, a consolidação e a devastação do projeto de modernização,
mas fazê-lo a partir do ponto de vista de suas vítimas e no seio de um mercado
no qual a arte, a cultura, rapidamente se consolidavam como mercadorias ren-
táveis. Eu tentarei mostrar como o processo de modernização, num primeiro
momento, na Paris do século XIX, é figurado pelo pintor francês Édouard Manet,
que contribuiu para a criação de uma nova imagística, dilatando as fronteiras da
pintura tradicional aos limites extremos do possível, até implodir o seu conceito
tradicional.
Em seguida, se houver tempo, nós trataremos da produção de um fotografo
americano que, filiado à mesma tradição artística, buscará, a partir de novas
configurações estéticas, figurar a verdade estrutural de seu tempo social e histó-
rico, ou seja, a Nova Iorque dos anos 30. Então, vejamos como estes artistas
organizam de modo refletido, os materiais que têm disponíveis para a descrição
de processos e tomada de posição consciente sobre o material que se lhes apre-
senta, a todos nós. Eu vou começar falando sobre uma pintura que se chama “O
velho músico” e foi feita em 1862 (mostra imagem projetada no telão). Essa
pintura foi feita por este pintor, Édouard Manet, em 1862 e é, na verdade, a sua
segunda grade pintura, a primeira pintura está presente nesta pintura. A pri-
meira pintura que ele fez, apresentada aos Salões de Paris, que eram instituições
as quais os pintores submetiam obras para aprovação e exposição pública, é isso
aqui (mostra a figura de cartola que aparece na pintura). Ele incorporou uma
primeira pintura a esta pintura, a este quadro. A primeira coisa que vocês preci-
sam saber, e não está dado aqui, é que este quadro é muito grande, maior do que
é a projeção que está aqui agora. Ele é realmente um quadro grande, o que em si
já é uma novidade muito significativa, porque este assunto não era tratado, mas,
72
se fosse tratado, seria tratado em quadros menores que a academia considerava
de gênero inferior.“
Esta medida só era destinada a pinturas históricas, jamais à representação des-
tas figuras. E quem são elas? Uma menina de rua com um bebê, duas crianças, o
velho músico, um burguês empobrecido ou, não se sabe direito, um bebedor, ou
um carroceiro - desses que puxam carroça mesmo - e, aqui na tela, ela não foi
cortada porque foi mal feita não, ela foi pintada assim mesmo, aqui cortado, a
figura do judeu errante, uma figura muito comum nas lendas e nas canções po-
pulares, um judeu que sai de sua terra em busca de “não sei o quê”.
Outra coisa interessante desta pintura é que, na verdade, aqui não são duas
crianças, tratase de apenas uma, não é muito fácil identificar qual delas é a cri-
ança e qual não é, mas eu poderia dizer pra vocês que a “não-criança”, se a gente
poderia tratá-la nesses termos, é esta. Esta figura, um boneco desarticulado, é
uma referência explícita à tradição francesa mais nobre da pintura que vocês
veriam numa imagem que eu trouxe. Esta outra imagem se chama “Le Gilles” ou
“Pierrot”, ela foi pintada por um pintor muito importante, francês, Jean-Antoine
Watteau em 1721. Watteau era um pintor canônico. Ele, essencialmente, pinta-
va. Mesmo com algum ganho que pudesse ter. Por exemplo, aqui existe obvia-
mente, uma tentativa de fazer um meta comentário da pintura. É um pano de
cena ou são pessoas de verdade? Claro, uns avanços aqui e ali, mas essencial-
mente o Watteau era um pintor muitíssimo conservador que pintava apenas
temas conservadores. Pra vocês terem uma ideia, ele tratava de temas de festas
galantes, em que pessoas bem nascidas apareciam em cenários muito bonitos,
idealizados, e eles, então, se compunham ali. A crítica adorava Watteau. Vamos
voltar para “O velho músico”. O “Pierrot” de Watteau aparece no “O velho músi-
co” como um boneco desarticulado, duplo de uma criança vesga, com ares de
criança retardada. Ele foi pintado de modo muito parecido com o menino, o que
impõe logo a pergunta: mas que é o boneco e que não é?
Tendo nós a referência de Watteau, e eu devo admitir que aquela não era uma
referência que ninguém tinha, as pessoas que freqüentavam o salão, que não
eram poucas, olhavam para isso aqui e podiam dizer: “ah é, isso veio do Watte-
au, mas não assim”. Muito bem, essas figuras todas, elas estão num lugar que a
gente não sabe muito bem qual é, ele não é um lugar definido. Afinal de contas,
isso é campo ou cidade? O que essas pessoas - que são essencialmente pessoas
que se encontram numa cidade - estão fazendo neste lugar, misto de campo e
cidade, um lugar meio paralelo? Hoje as pessoas talvez o chamassem de um
lugar meio virtual, quase um lugar virtual. Essa é outra pergunta que se impõe:
afinal, qual é o gênero da pintura? Isto é uma cena histórica? Não, obviamente
não. Mas as pessoas estão tratadas em dimensões que a alçam a esta categoria,
73
dá um tilt na cabeça de quem está vendo só pela dimensão. Pra vocês terem uma
ideia de quão importante a dimensão do quadro é, eu vou fazer um paralelo que
talvez não se aplique, mas acho que vou fazer assim mesmo. É como se vocês
quisessem apresentar o espetáculo de vocês na Sala São Paulo, que é uma sala
da prefeitura, pública - em teoria. Mas na Sala São Paulo não se apresentam
peças deste tipo. É quase uma convenção naturalizada: na Sala São Paulo se
apresenta alta cultura, música erudita, nem mesmo música popular, nem mesmo
samba. Eu duvido que Chico Buarque se apresente na Sala São Paulo. Pra vocês
terem uma ideia de que o cânone é tão fixo lá quanto aqui. Então, em número
um, o tamanho da pintura choca, a representação das personagens choca. Elas
nunca foram representadas deste tamanho, na pintura como um todo. Não signi-
fica que pobres não eram representados. Eles eram, mas jamais assim. Na repre-
sentação clássica de representação dos pobres, eles eram representados, em
geral, sorrindo pra pessoa que via no sentido de se engraçar para com o seu
observador. Porque o que estava por trás desta representação – eu estou falan-
do especificamente da pintura holandesa – o que tava por trás disso é que o
pobre sempre quer alguma coisa, sempre tem algum desejo escondido aí. Se
vocês quiserem a bibliografia eu dou. Frans Halls representava os pobres assim:
os ricos eram representados, invariavelmente, sérios e de boca fechada, e os
pobres mostravam os dentes. Muito bem. Era uma afronta trazer a tradição e
rebaixá-la a esses termos. Era uma afronta. Outra coisa que eu gostaria de sali-
entar: afinal de contas, como que uma pessoa poderia não ser representada
inteira num quadro? Esta árvore está dentro ou fora da tela? E esta pessoa?
Manet, ao fazer isto - o que definitivamente não era uma prática - hoje os nossos
olhos estão acostumados com quase tudo, porque depois de um videoclipe da
MTV... Não é?
Mas isto na época não se fazia. E a pergunta que se impunha era: afinal de con-
tas, esta é uma realidade que adentra ao quadro ou uma realidade construída
que sai do quadro? Evidentemente a resposta não é nem “A”, nem “B”, mas uma
combinação de ambas. Como eu dizia então, fora tudo isso, o gênero da pintura
não é explícito. Isto não é uma natureza morta, mas este menino é representado
como tal, isto não é uma cena de gênero, mas, afinal de contas, é paisagem ou
não é paisagem? É retrato ou não é retrato? É cena histórica, ou não é? E o que
essa gente, refugo da sociedade, tá fazendo num quadro como esse? Ninguém
olha pra ninguém, os olhares jamais se encontram e não existe qualquer unidade
entre estas figuras. O que eu quero dizer com isso é: elas são representadas
como se aparecessem em telas separadas. A iluminação que incide nesta moça (a
menina de rua com bebê) é uma... Vejam: a iluminação está na saia, radicalmente
distinta da luz que incide neste homem, está quase na sombra e, no entanto, eles
74
estão “no mesmo quadro, mas não estão”. Elas estão completamente apartadas.
Isso é um escândalo. Qual é a unidade disso? É literalmente um escândalo, por-
que a tradição tinha regras precisas de como é que uma pintura deveria ser
feita, e um Salão jamais deveria receber uma pintura como esta - como não acei-
tou. Pra vocês terem ideia da recepção crítica, uma das coisas que se disse a
respeito desta pintura era: “O senhor Manet pinta como um iniciante. O quadro é
uma coleção de sujeitos deselegantes. O senhor Manet sempre escolhe as pesso-
as mais sem charme para serem pintadas numa tela”. Gente, eu estou citando
ipsis litteris. Bom, com isso a gente percebe como dentro de uma sociedade
onde a arte e a cultura estavam quase que completamente configuradas como
mercadoria. Também pra dar uma ideia, Manet - mas o próprio Monet, com “O”,
vocês devem saber que existe o com “A” e com “O” – Monet, na mesma época,
tinha compradores nos Estados Unidos, que pagariam até cinco mil francos ou-
ro, o que era muito dinheiro por qualquer quadro que ele produzisse. Eles não
queriam ver o quadro, se era Monet eles pagariam até cinco mil francos ouro.
Então vocês imaginem com o sistema de marchand, galerias, museus, já estava
quase plenamente constituído. Dentro disso, dentro deste panorama e da bre-
víssima exposição que eu fiz sobre este quadro, eu acho que a gente já consegue
derivar algumas coisas, por exemplo: a representação realista, o caráter ilusio-
nista da reprodução que se apresenta aqui.
Eu imagino que vocês tenham na Companhia, ou quem não é da Brava, mas está
aqui e trabalha com artes - não precisa ser visual, com música, enfim – é de pen-
sar nesta questão: como é que eu vou representar uma determinada experiên-
cia, sendo que a experiência “realista”, aquela experiência que se cola na apa-
rência visual não dá conta de falar do objeto, ao objeto ao qual eu quero dar voz?
Vocês entenderam a minha pergunta ou querem que eu refaça? Como é que eu
posso, efetivamente, representar uma determinada experiência sendo que as
formas consagradas de representar são ditadas a partir de pessoas que não tem
essa experiência, que possivelmente não terão essa experiência, ou seja, a expe-
riência do pobre, do excluído e que querem a perpetuação desta situação a par-
tir de códigos e normas já canonizados? Como é que eu posso dialogar com esta
experiência, mas não tê-la como forma basilar na construção do meu projeto
artístico, seja ela na música, uma peça de teatro, uma fotografia, um quadro, uma
escultura, um documento, uma fala, qualquer coisa? Eu acho que um dos erros
muito recorrentes é negar uma determinada tradição por completo. Eu quero
dar um exemplo disso. Recentemente eu fui ao teatro ver uma peça e era uma
peça feita nos moldes do épico, ou com esta intenção, que incorporava elemen-
tos do drama, mas que não tinha o drama como a sua estrutura basilar. A peça
efetivamente não era dramática, mas o drama era um componente. Pois a pesso-
75
as – e eu digo a vocês, pessoas bastante inteligentes – se ressentiram do fato de
que aquele momento da peça era dramático. Portanto a peça tinha um defeito,
eles diziam. O que eu quero mostrar visualmente, talvez porque eu seja uma
pessoa muito visual, é que a tradição pode e deve ser incorporada quando ne-
cessário, mas ela não pode e não deve ser a estrutura basilar para falar de um
assunto que não abarca essas estruturas. Porque se você for falar da experiência
do pobre utilizando a tradição da pintura clássica, você efetivamente não conse-
gue sair do caminho batido, do lugar comum. Manet aqui incorpora toda a tradi-
ção clássica, mas incorpora também objetos de cultura que não tinham a sua
cidadania reconhecida, por assim dizer, e eu gostaria de mostrar duas ou três
figuras para vocês terem ideia do que é que ele incorporou: lixo, realmente.
Vamos olhar para essa figura aqui.
Ele incorpora essa figura que era bastante difundida pelas revistas, pelas publi-
cações. Esta figura foi feita por um caricaturista chamado Paul Gavarni que fez
“Arranjo familiar boêmio”. Gente... Dá quase vontade de ser pobre, né? Existe
uma luz divinizante que cai sobre ele. Eu quero insistir na técnica da fartura.
Não é só na representação, não basta colocar o pobre em evidência, isso até o
Vik Muniz faz.
Existe aqui a ideia de um homem bom, sem veleidades políticas, digno, que se
apresenta em conformidade com a tradição pictórica mais tradicional e conser-
vadora e que insiste em elementos fundamentais, como, por exemplo, a tradição
da família e dos valores burgueses; como o amor nestes termos (mostra um
casal se beijando no canto da imagem), que olha aqui, em determinado marco
isto está indicando um local, aqui está indicando outro. Eu não consigo ler aqui,
provavelmente, deve ser um local que passou por reformas humanísticas das
mais brutais, que excluíram os pobres dos centros de Paris, a ponto de que a
cidade, em coisa de 50 anos, virou o que é hoje - magnificado, um cenário. Paris
não é, propriamente, uma cidade desde pelo menos 1856. É um cenário no qual
as pessoas circulam. Desta imagem que é, basicamente, um lixo, ele tira material
pra trabalhar o velho músico. Vamos ver outra imagem. É de um caricaturista
muito conservador. Existiam outros maravilhosos, que ele também incorpora.
Vamos olhar pra esta daqui. Esta é a sua primeira tela, “O bebedor de absinto”.
Eu acho importante que vocês saibam, vejam: o absinto está aqui. Não sei se
vocês sabem, o absinto é a bebida que tem o teor alcoólico mais alto, quase letal.
Na época ele tinha um efeito alucinógeno tão forte, que ele era conhecido como a
“fada verde”. Não precisa nem explicar por que. Este bebedor de absinto, que em
teoria se inebriaria a ponto de não mais reconhecer seus valores críticos, não ter
mais consigo seus valores críticos capazes de julgar com mais propriedade de-
terminadas situações, não é apresentado aqui como tal.
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Ele é apresentado nos mesmos termos de ruptura que já teria feito Manet na
outra tela, incorporando esta àquela. Esta tela foi um fracasso, um fracasso re-
tumbante, e só uma única pessoa saiu em defesa, na época, de Manet. Foi um
outro pintor que se chama Eugéne Delacroix. Um pintor tão importante que
reconheceu na hora que uma coisa nova surgia. Esta pintura está posta quase
como tal, sem isto (o copo) e isto (a garrafa), lá. Este bebedor de absinto tem
quase a mesma vida que esta garrafa. Isto era um escândalo. Isto só foi feito uma
única vez na pintura francesa, até então. Foi nos anos de 1700, um banqueiro de
Paris muito importante pediu que sua mulher fosse pintada, então um pintor
chamado Jacques-Louis David pintou sua mulher como se ela fosse um canapé.
Pintou ela no canapé, e deu ao canapé tratamento semelhante a mulher. Natu-
ralmente ele, o marido, não gostou da tela, e a tela não foi aproveitada pela se-
nhora Récamier. Ela gostou de outra coisa, um lixo mais ou menos parecido com
aquele de Paul Gavarni. Vamos olhar para outra imagem que ele incorporou. Ele
incorporou esta imagem. Isto é uma pintura que se chama “A refeição dos cam-
poneses”, de Louis Le Nain, de artistas que eram irmãos na época. Como vocês
devem saber, muitas vezes, irmãos da mesma família, pais, e... Enfim, a pintura
não era um dom. Você era pintor e seu filho ia aprender um ofício, um trabalho.
Hoje nós pensamos na pintura, no teatro, na música como um grande dom do
artista: Eu tenho o grande dom da representação e você não. Eu posso fazer
Shakespeare, mas você não pode, porque eu já nasci com isso. Então, quem nas-
ce, nasce. E quem não nasce, infelizmente, não nasceu. Tenta de novo. Isto está
posto aqui tanto nos termos das – estou pensando na palavra em inglês que se
chama workshops. Como é que se diz isso? – oficina de pintura mesmo, em que,
estes mestres menores - porque eles eram considerados efetivamente menores
mesmo, porque pintavam cenas de gênero. Isso é uma cena gênero. Isso é uma
cena de pobres ao redor de uma determinada refeição. Quem tem interesse por
isso, se não eles próprios? Esta cena - a organização desta cena - foi aproveitada
para a organização d “O velho músico”. Sim, claro, aqui existe uma certa unidade
pictórica, uma luz que banha a todos de maneira efetivamente igual e que, por-
tanto, os coloca dentro do mesmo ambiente.
Nós não estamos falando de ruptura total, nós estamos falando de um processo
de aproveitamento e de uma tradição. Vamos pra uma próxima imagem. Ele
aproveitou esta, “O flautista da aldeia”, dos mesmos Le Nain, pintores, insisto,
menores. Não eram absolutamente reconhecidos. E ele pega figuras como o
próprio músico, como uma criança abobada, como uma criança pobre e coloca
essas pessoas todas, mas atualiza a discussão. Vamos voltar para o velho músico.
Eu quero insistir com vocês no tipo de representação que tem aqui, veja: se em
todos aqueles quadros existia, digamos, uma unidade. Esta unidade, ela é com-
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pletamente fragmentada aqui. Este (mostra a figura do judeu) está fragmentado
a ponto de estar decepado, assim como o seu par, a árvore. Veja que o par não é
uma pessoa, é uma árvore tão inorgânica quanto ele e, novamente, este tem uma
luz que faz sombra aqui (na menina com o bebê). Como se eles estivessem ex-
postos numa vitrine.
não por acaso, neste momento nasce, na França - o que pra nós agora já é lugar
comum - o shopping Center. Só que não se chamava shopping center, se chama-
va loja de departamentos. Até então, não existia loja de departamentos nos ter-
mos que nós concebemos. As mercadorias não eram expostas em vitrines. Pra
você conhecer uma mercadoria, você tinha que entrar numa loja e provavelmen-
te falar com o dono daquele estabelecimento. As lojas de departamentos trazem
as mercadorias para a rua, mas não o suficiente, porque existia um vidro entre
você e a mercadoria. Você quase poderia tocá-la, mas não. Como que você pode-
ria tocá-la? Comprando, evidentemente. Não é? Evidentemente. Muito bem,
estas grandes lojas pareciam bazares antigos, mas muito refulgentes, muito
elegantes, nas quais vendedores se insinuavam para os compradores, mais ou
menos como acontece hoje. Qualquer um que entre numa loja minimamente
elegante, já ouviu coisas como: “nossa, que bonito seu cabelo... Como você é
magro”. Mas nunca: “como este blazer lhe cai bem”. Porque você precisa, natu-
ralmente, de outro. Bom, como numa vitrine, o refugo da sociedade se apresen-
ta. O único que parece olhar para a gente é o velho músico. Aliás, ele não olha,
ele encara. E mais do que encarar, parece que ele nos põe uma pergunta: “E aí?
Eu tô aqui. E o que você tá achando disso tudo? O que você está achando desse
enorme disparate? ” Na verdade, este quadro é uma enorme caricatura. Eu ja-
mais tinha articulado isto nestes termos, mas de fato ele é uma enorme caricatu-
ra. E e uma caricatura em todos os sentidos. Estas pinceladas malfeitas, aparen-
tes, não poderiam acontecer. Ou seja, as marcas do trabalho do pintor não deve-
riam em hipótese alguma aparecer. Para isso existiam técnicas de pintura bas-
tante precisas que incluíam, depois que o quadro já tinha escondido quase tudo,
uma camada de verniz que escondia o que o cuidado artesanal de um pincel
muito bem manipulado ainda não tinha conseguido esconder Ou seja, era quase
como se a gente olhasse “para uma fotografia”. Mas depois eu quero questionar
esta fotografia.
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Márcio Rodrigues (Brava Companhia): Mas é um sorriso provocador.
Marcos Fabris: Exato. Acho que essa é uma boa palavra. Porque também está
nos olhos. Porque está, mais ou menos, na altura do observador. Porque se a tela
é colocada mais ou menos assim, no museu ela estaria mais ou menos assim,
aliás, na galeria de Washington ela está assim. Então você fica mais ou menos
com o velho músico aqui (na altura dos olhos).
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fique ainda mais crível, ainda mais evidente. E o que é evidente aqui? A experi-
ência da fragmentação dos pobres, a experiência de exclusão destes pobres, a
experiência de não absorção dos pobres ao meio ao qual eles se encontram,
porque as figuras parecem todas decalcadas. Não é verdade? Se elas estão todas
decalcadas, o fundo rejeita a figura e vice-versa. Então aonde é que eles ficam? É
um cenário. Um cenário que é quase onírico, um sonho, mas ele é, na verdade,
um pesadelo.
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pobre pintado, ou representado da maneira tradicional... Eu insisto no Vick Mu-
niz, por exemplo. Aquilo é a representação mais reacionária possível da repre-
sentação do pobre quando ele o faz, pois n”O velho músico”, Jean Lagréne não é
mais objeto, mas sujeito da sua história. Ou seja, Manet – que não era pobre,
aliás era uma pessoa bastante endinheirada, é verdade; ele era um pintor bas-
tante endinheirado – dar voz a ele, rompe completamente com este paradigma
de representação do oprimido naqueles termos. E eu fiz questão de dizer que
Manet não era pobre, mas endinheirado, por que? Às vezes a gente pode escutar
que determinados artistas, só porque pertencem a uma determinada classe
superior, não são capazes de dar voz a experiência do excluído e neste momento
eu sempre gosto de pensar no que Raymond Willians disse – ele é um crítico
inglês muito interessante que a gente precisa sempre conhecer. Ele dizia: “Existe
o fato de que nós nascemos numa classe social, mas isto não significa que nós
tenhamos, necessariamente, que compactuar o tempo todo com os seus ideais, e
nós podemos redirecioná-los em termos políticos”. Parece que foi isso o que
Manet fez.
Iná Camargo: Posso dar uma colaboração? Na história do teatro brasileiro, foi
tratado pelo Show Opinião - porque a Nara Leão sendo de classe média bem
posta no Rio de Janeiro, era vista como populista porque ela começou a cantar
músicas feitas por pobres sambistas do morro, e tratando de assuntos relativos
aos pobres. Um jornalista chamado Sérgio Bittencourt, filho do Jacó do Bando-
lim, é crítico musical e escreveu isto: a Nara Leão, por ser da classe média, ela
não pode tratar deste assunto. E aí no Show Opinião, com a Nara Leão partici-
pando, entra a voz em off interpelando: “Pô, Nara Leão, você é rica, você é chi-
que. Você fica falando de pobre? Você não entende nada deste assunto. Você não
tem a menor condição de tratar deste assunto”. Só um depoimento para ilustrar
a presença do problema aqui entre nós e no teatro.
Marcos Fabris: Isto é fundamental, por exemplo, pra pensar toda a obra do
Chico Buarque, só pra continuar a falar do Brasil. Eu já escutei bobagens homé-
ricas contra o Chico Buarque, porque ele não podia de fato, não tinha competên-
cia de classe pra falar do excluído. Ora, gente, isso é uma bobagem gigantesca,
não é verdade? O artista consequente é aquele artista que consegue organizar os
materiais que se põe a sua disposição, de maneira mais informada possível, e se
ele consegue dar voz à experiência do excluído, sendo ele de classe alta ou baixa,
tão melhor a sua contribuição. Se ela vier pra esta causa, que venha mesmo.
(Alguém comenta que Manet, supostamente, teria o hábito de emprestar dinhei-
ro) Manet? Não sei se ele emprestava, mas acho que essa, se não é vero, é bem
provato. Caberia. Ele era tão alinhado a causa revolucionária, que na Comuna da
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Paris, ele estava (Iná Camargo comenta que fez 140 anos hoje) Hoje? Parabéns à
Comuna! Ele foi tirado do paredão, no último minuto, antes de ser executado. Ele
e Edgar Degas, os dois, no último minuto. Foram tirados porque foram reconhe-
cidos? Sim, foram. Outras pessoas morreram? Sim, muitas. Nossa sorte é que ele
foi tirado e fez desenhos, esquetes sobre a comuna, naqueles termos de “O velho
músico”. É a nossa sorte. Muito bem, eu quero concluir a parte do Manet e, pos-
sivelmente, toda a parte, porque já falei demais, tratando da diferença entre a
técnica, a verdadeira técnica e o truque. Parece, quando o moço disse: “essa é a
viagem do bebedor de absinto”, parece que o bebedor tradicional representaria
isso, a experiência do excluído, da maneira mais conformista possível, com rela-
ção aos cânones da academia e, este sim, seria um truque, ou seja, (lê) “a repeti-
ção de procedimentos consagrados que celebra a si mesmo com uma forma
autônoma. A técnica, por outro lado, é a ampliação e o adensamento expressivo
dos recursos técnicos disponíveis com a função cognitiva de mapear o estado da
situação, expondo ou desmascarando as construções, as contradições sócio-
históricas de seu tempo”. Se vocês quiserem, eu posso tentar repetir. A técnica,
diferente do truque. Aliás, eu acho que vou dar um exemplo, um exemplo bas-
tante rasteiro. Mas eu gosto de entender com estes exemplos. Eu pessoalmente
não fui, não quero ir e não irei, quando eles voltarem ao Brasil: Cirque du Soleil.
Mas eu tenho conhecidos que foram e estes conhecidos que foram - e algum
deles gostaram muito - disseram o seguinte: “Você não acredita na técnica das
pessoas. Eles são capazes de fazer coisas com o corpo, que até Deus duvida”. Eu
pessoalmente acho que deve ser verdade mesmo. Aqueles meninos devem ter
um treino corporal absolutamente fantástico, que talvez poucos de nós tenham.
Eu certamente não tenho.
Mas, na composição geral do espetáculo, eu tenho absoluta convicção de que os
treinamentos corporais que as pessoas têm, não contribuem, significativamente,
ou de qualquer outra forma para, por exemplo, colocar em questão o que signifi-
ca trabalhar naquela companhia, naqueles termos. Que hoje é globalizada, como
vocês devem saber. Cirque du Soleil não tem um, tem dez mil. Aliás, tem um que
opera na Europa, vários que operam Europa, vários que operam Ásia, vários que
operam aqui. Então, aquilo tudo que parece técnica é, na verdade, um grande
truque, um truque que mascara o que deveria expor. A técnica, por outro lado é,
justamente, a incorporação, inclusive do truque, que é desmascarado como tal, e
aí o que parece mal feito é elevado à categoria de obra de arte. Pra terminar de
verdade a exposição sobre Manet, eu quero voltar a “O velho músico” e dizer pra
vocês que no âmbito da academia, o que ele fez era muito bom e aceitável para
um esboço. Um quadro começava assim: ele era um esboço que ia ajuntando,
adicionando camadas de trabalho, que eram consistentemente mascaradas.
Manet eleva o esboço à categoria de trabalho pronto, de trabalho feito e atribui
ao esboço uma nova função. Tudo isso dentro do mercado plenamente constitu-
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ído. Só hoje Manet vale milhões, só hoje. Assim como só hoje Van Gogh vale mi-
lhões. Vocês devem saber que Van Gogh não vendeu nenhum único quadro.
Existe uma história muito engraçada de uma pessoa que ganhou um quadro do
Van Gogh, dele próprio, e colocou no galinheiro. O quadro ficou anos no gali-
nheiro, anos... Até que um dia alguém descobriu aquele quadro, que levou pra
dentro de casa, e que foi parar num museu. Num museu do leste europeu. Aliás,
só pra falar de leste europeu e constituição de mercado de arte, o leste europeu
tinha, até tempos atrás, museus paupérrimos. O Museu de Praga, por exemplo,
era considerado um museu patético, com obras completamente inexpressivas.
Porque o que eles podiam comprar eram somente as obras inexpressivas. Den-
tre estes artistas inexpressivos, eles compravam muitas caricaturas francesas, e
compravam muito caricatura francesa de um artista chamado Honoré-Victorien
Daumier. Pois, num determinado momento, o Honoré se tornou consagrado, um
dos grandes, talvez um dos melhores artistas do século XIX e, certamente, o
melhor caricaturista que a França já teve e que, possivelmente, jamais terá. De
repente, os museus do leste europeu se tornaram museus riquíssimos e impor-
tantíssimos. Veja como o mercado de arte funciona, inclusive pra valorizar ou
desvalorizar um artista. Aliás, isto no mercado do vinho funciona muito bem.
Existe um senhor chamado Robert Parker, se não estou enganado, e ele explici-
tamente diz aos seus clientes: “Eu construo e destruo a reputação de um vinho
do dia para noite.” A minha pequena vinícola no sul da Itália, pode ser comprada
por uma grande empresa assim (num estalo), ou ser destruída assim, porque sai
uma nota numa revista importante do senhor Robert. Bom, dentro disto tudo, eu
acho que a gente pode concluir e num outro momento eu volto e falo de fotogra-
fia. E a gente abre pra debate agora, pensando que um grande artista, uma gran-
de obra é aquela que realmente ensina e eleva o gosto da plateia, mas também
ensina e eleva o gosto de outros produtores de cultura. Eu, pessoalmente, se
fosse pintor, não ousaria pintar um quadro da mesma maneira que teria feito
outrora, antes de olhar essa pintura, depois de olhar essa pintura. Em outras
palavras: como é que a gente pode, como antes, tendo vindo alguém e ter feito
isto? É uma obra de intervenção e uma obra de intervenção de toda sua carreira.
Assim como eu imagino que no teatro, vocês, o tempo todo, vão assistir outra
companhia e pensam: “Gente, como é que eu posso aprender neste espetáculo?”
Este é um grande espetáculo porque ensina também outros artistas, outros gru-
pos a atuarem. Não mais naqueles termos comezinhos da atuação by Wolf Maia.
Aliás, outro dia eu estava escutando televisão e estava vendo que o SBT tem uma
coisa que se chama Fábrica de Artistas. Eu achei aquilo muito interessante.
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Fábio Resende (Brava Companhia): Fábrica de Cultura.
Marcos Fabris: Ah, é verdade, no Capão. Eu vi. Então, vejam que o bacana é que
eles explicitam o que eles são. E é esta a medida contra a qual a arte consequen-
te deve se colocar, necessariamente. Senão, fará parte da Fábrica de Cultura. E
eu quero lançar uma pergunta para debate: como é que nós, então, poderíamos
fazer uma produção artística consequente dando realmente voz e ampliando o
número de produtores de cultura? Porque eu acho que essa é uma pergunta
fundamental. Não que agora eu vá me tornar artista, porque talvez esta não seja
a minha melhor contribuição.
Mas, será que não? Será que eu não posso tentar? Não sei. Pode ser que eu tente
e que eu fique, ou que eu não fique, que eu aprenda a atuar nestes termos con-
sequentes; que atuar nestes termos consequentes seja atuar mal e em geral é.
Eu, pessoalmente, acho que é. E esta é uma das perguntas que eu gostaria de
lançar. A pergunta? A pergunta é a seguinte: como é que nós poderíamos ampli-
ar o número de possibilidades, para envolver cada vez mais pessoas e abarcá-las
dentro de determinadas formas de fazer artístico? Eu tenho essa pergunta na
minha agenda porque eu também já vi, de pessoas que eu gosto e admiro, co-
mentários do tipo: “eles não são artistas, eles não são atores, eles não podem
atuar. Estas pessoas não deveriam estar fazendo teatro”. E eu garanto pra vocês
que são pessoas consequentes, que tem o coração no lugar certo, mas que tem
certo, digamos... Preconceito enraizado. E eu acho que este preconceito enraiza-
do não é um preconceito que, talvez, nenhum de nós tenhamos. Não sei. Pode
ser que sim, pode ser que não; não é uma coisa propriamente fácil e delicada de
se admitir. Mas eu acho interessante pensar nisso. Porque uma grande peça,
uma grande obra, não é só aquela que funciona em termos formais, mas é aquela
também, que abarca novas possibilidades, e novas possibilidades inclui inclusive
outras pessoas fazendo.
Iná Camargo: Eu queria dar uma colaboração ilustrativa. Bom, primeiro que a
Brava já fez “O ERRANTE” e mostra que em parte, o segredo do aprendizado, da
experiência no sentido forte, depende de você errar e aprender com o erro e, de
repente, persistir em determinados erros. Eu especialmente gosto do cara que
recolhe o dinheiro da igreja. Então, tem um depoimento do Robert Altman sobre
o filme “Nashville”. Ele disse que um dos momentos mais difíceis da filmagem foi
a cena da mocinha que foi contratada pra cantar e ela canta errado. E ela tinha
que cantar errado, isto é, fora do tom, fora do andamento, etc, etc, etc... Então
havia um interesse da obra em apresentar o artista fazendo a coisa errada num
grau muito radical e isto era importante para o que estava sendo dito, e entra no
depoimento do diretor a dificuldade de fazer a coisa errada porque - é o que ele
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está dizendo - funciona na cabeça de todo mundo uma ideia do que é certo e um
empenho em fazer o certo. Ora, a ideia do que é certo e o empenho, o compro-
misso com este certo é o compromisso com a ideologia dominante no sentido
mais universal. De repente, a boa vontade pra ver o errado e ver a produtividade
da coisa errada é o que ajuda a avançar. Não tô dizendo que isso é uma bandeira,
uma palavra de ordem. Mas o artista que está na trincheira, sobretudo como é o
caso da Brava, precisa sim, abrir o leque das opções pra este tipo de coisa e,
portanto, incorporar como válido e bom aquilo o que uma pessoa normal e de
bom coração acha que: “Ih, esse ator é ruim, não tem técnica”...
Marcos Fabris: Vamos fazer uma suposição besta: às vezes, de fato o ator é
ruim. Vamos dizer, por exemplo, (que) eu, sem técnica consiga de alguma forma
me encaixar na peça de vocês e tenho lá uma atuação medíocre, que vocês sa-
bem que é medíocre e que, se eu for consciente comigo mesmo, também saberei
que é. No entanto, para o quadro geral, quanto mais medíocre a minha atuação,
mais eu faço ganhar o todo. Então porque não ter um ator medíocre como o
Marcos Fabris? Mas não necessariamente os medíocres, não apenas os medío-
cres. Aliás: não-atores. Vamos combinar que um dos experimentos mais impor-
tantes já aconteceu com não-atores. Vamos tomar como exemplo Sergei Eisens-
tein. Eu vou falar só dois, e todo o neo-realismo italiano, para não falar nova-
mente do prólogo da peça “O círculo de giz caucasiano”, feito pelos meninos do
MST, que não são atores.
Sérgio Carozzi (Brava Companhia / Trupe Lona Preta): Eu queria fazer uma
pergunta. Será que eu poderia considerar uma obra de arte, centenas de pessoas
de vermelho saindo com bandeiras na rua, cantando uma música mais ou menos
desafinada, e tocando fogo num monte de pneu... Será que eu poderia considerar
isto uma performance?
Sérgio Carozzi (Brava Companhia / Trupe Lona Preta): Ou será que isso
teria outro nome, pensando naquela coisa que você falou lá no começo, do Ben-
jamin, a “estetização da política” (Fabris complementa: “versus a politização da
arte”). Até que ponto as coisas se misturam que a gente não consegue mais usar
o termo “obra de arte”? Porque não dá conta mais. Nem “artista”. Porque você
não consegue diferenciar o que é uma coisa e o que é outra - pensando no con-
texto de luta em que a gente está vivendo.
Marcos Fabris: Então, eu preciso, pra responder esta pergunta, pensar em duas
coisas: a primeira delas é no conceito de “obra de arte”; e a segunda, a relativiza-
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ção deste conceito. Eu acho que pra falar novamente num cineasta que a Iná
citou que é o Robert Altman. Eu acho que um dos ganhos mais interessantes que
este cineasta teve, ou uma das lições mais interessantes que eu aprendi dele, é a
seguinte: “nos meus filmes pode tudo.” “Pode olhar pra câmera?” Se for contri-
buir, pode. Tudo isso ele aprendeu com o Fellini: “Pode ator atuar mal?” Pode.
“Pode não ter enredo?” Pode. “Pode qualquer coisa?” Pode, mas é qualquer coisa
assim, não é sem ordem, não é desinformado e não é sem visar a construção de
um determinado teorema. Ou seja, isso dá pro ator ou para o artista uma liber-
dade elevada a enésima potência. É quase como se nós atribuíssemos um caráter
– para parafrasear uma amiga – anarquista as obras de arte. Então, pode qual-
quer coisa, pode inclusive não ser a grande obra. Porque ela é uma obra em
processo, que acumula erros, acertos. O Altman tem grandes filmes e filmes
“menores”. Reconhecidamente, por ele próprio, às vezes, como menores. Mas ele
entendia que aquilo era a preparação para o que viria depois. Nestes termos eu
acho que pra responder a sua pergunta: uma passeata de gente carregando ban-
deiras vermelhas na rua é uma obra de arte? Pode ser, como pode não ser. Pode
ser uma grande bobagem. Quer dizer: essa gente está para a construção de que
teorema? É organizada? Se é que está organizada, a que ponto? Eu acho que essa
é uma resposta mais consequente. Senão, a gente cai naquilo: “é obra? Ah! Não
é”. Mas estes são os critérios do mundo dominante, da produção artística domi-
nante e absolutamente conservadora no seu gosto. O que eu não preciso ensinar
pra vocês. Eu tenho certeza que o Wolf Maia não consideraria o que vocês fazem
uma obra de arte. Mas certamente consideraria a atuação da Gloria Pires na
atual novela - nem sei se ela está na novela, porque não acompanho - no seu
último filme, ou o que quer que seja, uma grande atuação. Eu estou falando dela
porque outro dia eu estava no ônibus, e no ônibus nós somos forçados a assistir
televisão e, mais especificamente, forçados a assistir as novelas da Globo, os
jornais da Globo, a estética da Globo, e ela estava ela ali posta, fazendo uma de-
terminada personagem, como eu a tinha visto, pelo menos, há 25 anos atrás,
quando eu era criança. Ela tinha, rigorosamente, as mesmas expressões. Talvez
ela, num outro contexto fosse absolutamente fantástica. Vocês devem ter visto
“Em pedaços” a peça do Moreira. Pois a peça do Moreira incorpora essa coisa da
televisão de uma maneira muito bacana. Depois que você vê aqueles dois fazen-
do uma cena, eu pelo menos, nunca mais assisti televisão do mesmo jeito. Eu
sempre pensei: “Ok. É aquilo ali, né? É a peça do Moreira”.
Então a peça abre a cabeça para o que é aquela atuação bem feita, que de bem
feita não tem nada, justamente porque é bem feita. Então, eu tô falando assim, e
parece contraditório, mas não é contraditório, é dialético: o que é bem feito é,
por isso, o que não é. É como o quadro do Manet. O quadro do Manet é descon-
juntado, completamente desconjuntado. E é, por isso, é que ele não é. Porque ele
é desconjuntado, julgado a partir de determinados critérios, mas julgado pelos
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critérios corretos. Ou seja, os critérios que ele próprio estava, não apenas colo-
cando em cheque, mas construindo, porque não existia uma imagística pronta,
um conjunto de imagens pronto para dar conta desta experiência. Ao mesmo
tempo em que ele tentava entender, ele tinha que construir. Que eu imagino que
seja uma dificuldade que vocês tenham também. Ou seja: eu quero falar de de-
terminado assunto, mas não com a forma pronta e nem com aqueles elementos
do épico que assim: “Ah é... Se é teatro épico o artista sai de si e vira ele mesmo”.
Aí já é receituário, então não é teatro épico. O épico não é receita. Então, todo
tempo, o tempo todo, o grande artista está tentando olhar pro objeto e ao mes-
mo tempo escutá-lo ao ponto de ver quais são as melhores formas, que dão con-
ta de iluminá-lo em suas várias facetas, para neste movimento caleidoscópico,
iluminá-lo em seu todo para a compreensão de quem faz, para a compreensão
de seu público e para ensinar outros artistas a fazer da mesma forma. Eu não
estou, senão, reproduzindo “O autor como produtor”, do Walter Benjamin e se
vocês não leram, vocês devem ler. Se vocês já leram, devem reler. Iná, quer com-
plementar?
Iná Camargo: Eu quero. Tem uma crise em andamento entre os grupos de tea-
tro porque eles não se dão conta de que os seus públicos prioritários são os
outros grupos. Aí fica essa questão: “fica grupo se apresentando pra grupo e a
coisa não anda”. Não, gente. Grupo se apresentando pra grupo é a grande coisa
porque é esta questão que precisa se estabelecer e prosperar. A saber: os expe-
rimentos que um grupo faz serem decifráveis pelos outros grupos, e que se pro-
duza um repertório mais amplo de recursos, métodos técnicas e experimentos.
Porque, se os próprios companheiros não entenderem o que nós estamos fazen-
do, o público, pautado pela Globo, é que não vai entender mesmo. Eu já disse
isso de outras maneiras, mas tem uma questão que faz parte do trabalho do
artista. Repetindo: para quem atua na fronteira, trata-se de produzir a recepção
do seu trabalho. Isto é: não entendeu? Pessoa viu e não entendeu? Explica pra
pessoa, chama a pessoa pra voltar e ver de novo. Porque se não entendeu da
primeira vez, mas achou mais ou menos, então: “olha, tinha isso, tinha aquilo”...
Pautar a recepção e convocar tanto os demais companheiros, quanto o público
que se interessa pelos nossos trabalhos, para produzirmos coletivamente este
repertório.
Porque se a gente não produz isto, não risca o chão em matéria de recursos,
técnica e métodos de dizer o que a gente quer dizer, a gente não avança. A gente
não se forma porque não formou os demais companheiros e não formou o públi-
co. Esse trabalho, pra responder ao companheiro aqui da passeata, é um traba-
lho, igualmente e ao mesmo tempo, político e estético. É da resposta que for
dada a esta questão que depende a continuidade e o aprofundamento da pesqui-
sa que vocês estão fazendo. Por isso que eu achei legal o Marcos lembrar dessa
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cena, que é uma cena, ao mesmo tempo, ilustrativa em contraponto do que se
vai ver no “Em pedaços”. A realidade é uma realidade completamente falseada. E
é falseada pelo modo de atuar, pelo discurso. E ali tem uma síntese do pacotão
das escolas Wolf Maia da vida. Está a síntese naquela cena. Portanto, aquilo é um
negativo que está posto, funcionando pra você avaliar o que não está ainda re-
pertoriado, que são os demais discursos das outras cenas na peça. Sem prejuízos
de eventuais utilizações de elementos daquele repertório. Porque se a gente
apagar a história também é burrice.
Marcos Fabris: Na verdade, eu acho que o que gente tá falando, de outra manei-
ra, é de atribuir funções novas a procedimentos canonizados. Em outras pala-
vras: refuncionalizar, dar funções novas a determinados procedimentos.
Iná Camargo: Continua o raciocínio, porque você fala melhor do que eu. Não é
um negócio de ficar inventando novidades. A imaginação da humanidade não é
fértil assim como a gente pensa. A gente tem que reaproveitar o que já está feito.
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último capítulo que nunca chega. Na Industria Cultural, o último capítulo não
acontece. O último capítulo será imposto. E não será, nem mesmo, imposto pela
arte consequente, diga-se de passagem. Porque, até onde eu sei, não é a arte que
faz revolução. Não é pincel, caneta e refletor que faz revolução. Eu tenho certeza
que no Oriente Médio ninguém fez revolução com canetas e pincéis. Mas não
significa que a arte consequente não possa estar a serviço deste processo. E eu
acho que é aí que todos nós entramos: os professores com esta responsabilida-
de, os intelectuais com esta responsabilidade, os artistas com esta responsabili-
dade, os técnicos com esta responsabilidade. Porque, senão, todo nosso trabalho
seria irrelevante. Mas ele não é irrelevante. Ele é da maior relevância.
Fábio Resende (Brava Companhia): Essa questão que você levanta é a nossa
questão enquanto grupo. A gente se preocupa com ela e a gente não fica parado,
tenta dar algumas repostas. Dentro deste lugar que a gente está algumas con-
versas já aconteceram e têm coisas que me chamam atenção. Eu queria falar
sobre uma delas. Hoje a gente vive um momento em que algumas estruturas do
Estado não têm tanta importância assim para o projeto opressor do capitalismo.
Por exemplo, a escola.
A Indústria Cultural conseguiu de tal maneira globalizar, dentro de uma natura-
lização total das coisas, e de tal maneira ditar o gosto, o que é importante, o que
é vital pras pessoas. Porque isso que você falou de se apropriar é o que acontece
no nosso espetáculo ”O ERRANTE”. A gente apostou nisto: vamos nos apropriar,
vamos tomar conhecimento do que a Indústria Cultural tá querendo usar como
forma e vamos pegar esta forma, pra derrubar esta forma, pra explodi-la. Inclu-
sive tem um personagem que é um homem-bomba. E o mote da nossa peça é
“errar é humano, persistir no erro é resistência”. E é assim que a gente se via,
que a gente se vê: resistindo. E aí, a gente começa a produzir uma certa teoria
crítica, mas ela é prática. Ou estudando, ela é prática, no nosso caso com o tea-
tro. A gente tem como pauta a classe trabalhadora como nosso principal público.
A gente, as vezes, tem um sentimento e fala: “cara, nossa ideia tá fora do lugar. O
que a gente tá falando parece, para a pessoa que está ouvindo, que não é pra ela.
Nós não estamos nos comunicando. Por quê? ” O que eu quero dizer é o seguin-
te: você expõe ali, representando as contradições da nossa vida. Mas a gente tem
preocupações: a diversão. A gente tem pressupostos. A gente tenta chegar perto
pra falar. A gente se apropria de coisas pra falar, mas parece que, às vezes, fica
fora do lugar. O espetáculo que foi citado aqui, por exemplo, “Em pedaços”. Aqui
ele não foi compreendido. O Diego fez uma fala que, até hoje, eu queria que ele
repetisse: “Ah tá... Tô entendendo. Mas porque isso aí é tão chato?”
E pegando uma coisa lá do Pequeno Organon, do Brecht, eu falo assim: a gente
quando vê, a gente se diverte porque a gente se reconhece naquilo, e a gente tá
vendo aquela contradição e a gente se reconhece naquele lugar e a gente se di-
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verte por causa daquilo; e esta contradição, talvez, seja o lugar que a gente pre-
cise se debruçar. Como a gente vai colocar essa classe trabalhadora, estes exclu-
ídos, que somos nós também, e como a gente vai se divertir com eles? Eu falo:
“claro que a gente tá apresentando pros grupos”. É claro. É claro que a gente vai
lá na Antropofágica, como a gente foi, e eu saio de lá comentando que eu gostei
pra caramba. Eu nem sabia que eu tinha gostado tanto das opções que eles fize-
ram. Mas é também verdade que nós estamos aqui neste lugar em constante
diálogo com a classe oprimida, que somos nós também, e aí, as vezes falta, para
que a gente entenda, técnica para se divertir.
É porque eu entendo perfeitamente a sua fala. Em ”As cinco maneiras de dizer a
verdade”, eu entendo completamente a sua fala, quando você fala da técnica e do
truque, mas eu acho ela perigosa. Eu entendo o que você fala, mas acho perigoso,
porque me parece que a gente tem, como trabalhador, que tomar conta da técni-
ca. Inclusive essa que você tá falando. Tomar conta, pegar tudo. Porque o que a
gente precisa fazer é ter um domínio ferrado e falar assim ó: “não enche o meu
saco, porque tá aqui ó!” E o cara fala: “Nossa, não é nada daquilo que eu estou
acostumado a ver, mas isso é bom pra cacete”.
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pedestal de artista. O cara quer ser artista, quer ter o domínio da técnica e quer
acreditar que só ele pode ter aquele domínio. Não quer compartilhar, não acha
que outros iguais podem também fazer o que ele faz. Então, essa é uma dificul-
dade pra nós. As vezes a gente chega nuns fóruns com algumas discussões e fala:
“Somos trabalhadores da cultura”. E o cara fala: “O quê? Eu não sou isso aí. Eu
sou artista”.
Marcos Fabris: Bom, a primeira coisa que eu acho que poderia ser levantada é
novamente a distinção entre técnica e truque. Quando eu falei sobre técnica, eu
efetivamente estava falando do domínio do uso dos materiais disponíveis que a
gente tem. Então no caso, por exemplo, da pintura, um domínio técnico é a des-
treza com a qual o pintor manuseia o pincel. Isso é uma coisa que ele aprende. A
relação entre cores fria e quente, a utilização da cor nos termos das suas sensa-
ções - azul, distância, frio; vermelho, quente, próximo - tudo isso é parte da téc-
nica. Mas quando eu falo técnica, por exemplo, vocês podem pensar tudo isso na
atuação e saberiam listar muito melhor do que eu. Mas a comparação entre téc-
nica e truque ela vai mais além do que apenas um domínio do repertório neces-
sário ao artista para a execução da sua obra. Então quando você fala pra mim
assim: “vários dos nossos colegas têm muita técnica”, eu leio da seguinte manei-
ra: “vários dos nossos colegas têm competência artística para desempenhar a
tarefa de ator”. Ok. Mas isto não é, necessariamente, ter técnica no sentido maior
da palavra. Porque nós não estamos falando de ter técnica, nós estamos falando
da diferença fundamental, essencial, entre utilizar todos os procedimentos dis-
poníveis ao artista para desmascaramento da realidade e utilizar todos os pro-
cedimentos disponíveis ao artista para repor contínua e incessantemente a ideo-
logia, a mentira, como verdade. Esta é a diferença estrutural entre técnica e tru-
que. E eu vou dar um exemplo disto, e meu exemplo vai ser rigorosamente o
mesmo exemplo. Tomem a Glória Pires, ou quem quer que vocês considerem
como boa atriz. De verdade, uma boa atriz. Marília Pera, por exemplo, é uma boa
atriz. Realmente uma boa atriz, até onde eu entendo. Não entendo nada de tea-
tro. Mas a sua boa atuação é boa dentro de um contexto, um contexto bastante
específico, um contexto no qual ela faz sempre o papel de uma grande diva, de
uma grande artista. Eu fico imaginando que o seu talento, por exemplo, pra cho-
rar na hora certa não é bem aproveitado, porque está dentro de estruturas que
não permitem a revelação da mentira enquanto tal. Isso é truque. Mesmo uma
“boa atuação” se transforma em má. Então não existe a boa ou a má atuação em
absoluto. Ela tem sempre que ser relativizada. Isso que você falou: “esses cole-
gas tem uma boa técnica...” Mas eles têm uma boa técnica quando? Onde? Às
vezes os meus alunos me perguntam assim: “professor, o que é cultura?” E a
minha resposta é sempre a mesma: “quando? Onde?”
91
Porque cultura na Idade Média era uma coisa, e cultura no Brasil do século XXI é
outra, aliás em São Paulo do século XXI e, mais especificamente, em Higienópo-
lis, é outra. Porque aqui, ainda, deve ser outra coisa. Então pra começar, nós
temos que, de novo, pensar na diferença maior entre técnica e truque. E a dife-
rença maior é a seguinte: todo o repertório que eu tenho e domino está posto a
serviço de quê? Número um. E número dois: se este artista, que mesmo na con-
dição de trabalhador, que mostra pra ele cotidianamente seu lugar como traba-
lhador, se recusa a se ver como tal e está buscando seu lugarzinho na “Malha-
ção”, talvez este artista logo vai ver que o lugar dele não é este e, talvez, o lugar
logo veja que este não é o artista certo para a situação. Ou seja, vocês também
vão tirando o joio do trigo e vendo quais são seus pares. É assim na Academia.
Tem um monte de gente “talentosa”, mas que quer ser a próxima bola da vez.
Com estes eu, pessoalmente, não quero ter contato. Ainda que reconheça que
possam me ensinar aqui ou ali, e se derem uma palestra sou capaz de ir, porque
quero aprender com o que eles têm a me dizer. Assim como imagino que você
deva querer ver essas pessoas atuando, pra fazer o que elas não fazem, pra se
apropriar e aprender o que elas têm pra te ensinar e usar isso como realmente
técnica, e não como um truque disfarçado, que mascara, que, por exemplo, es-
conde o trabalho, que diz que ele não é um trabalhador, mas é um grande artista,
que está em busca da obra bem feita. Este, muito provavelmente, vai fazer Sha-
kespeare, em algum momento, num destes teatros da Avenida Paulista. Não sei
se eu respondi a pergunta em termos categóricos. Porque vejam: vocês deveri-
am desconfiar de todas as respostas. Porque se alguém vem aqui e formula uma
receita, essa receita já nasce morta, porque essa receita pode dar conta de um
objeto. E pode dar conta muito bem de um objeto, mas não de outro.
Rafael Franja: Acho que a técnica está sempre sendo reformulada pelos truques
de pessoas que vão experimentando e vão quebrando as suas noções de técnica.
O próprio caso aqui. Eu vejo muito como um truque de possibilidades, de sub-
verter as possibilidades técnicas. Na verdade, então, eu acho que uma coisa tá
muito ligada à outra. Não consigo dividir tanto da maneira que você tá dividin-
do. Porque não é uma coisa parada. O contemporâneo tá sempre reinventando
possibilidades de truques.
Rafael Franja: Mas não é nem a questão da palavra. É como você interpretou
mesmo. Não tô falando só de trocar a palavra. Às vezes, o cara que é ruim tá
subvertendo muito mais do que o cara que tá na questão do belo em si, da técni-
ca perfeita.
92
Marcos Fabris: Pois é. Porque
o belo em absoluto não existe.
Então vamos tomar as fotogra-
fias do Vick Muniz, que quase
todos nós conhecemos. Elas
são excepcionalmente bem
feitas em termos técnicos. E
não é apenas porque ele tem
um talento para isso. É porque
ele usa as melhores câmeras
possíveis do mercado que são as câmeras de grande formato.
Por exemplo: alguém estava aí com uma máquina fotográfica. Esta máquina não
tem poder de revelar as peças de caviar - porque ele usa caviar, pra fazer... Cavi-
ar, cristais, diamantes, sangue... É tudo a mesma coisa - as imagens são tremen-
damente bem construídas, você consegue ver cada um dos detalhes do “rosto do
menino de rua”, que é lá figurado. Ou então, se apropria do lixo pra fazer uma
grande, belíssima imagem. O problema do Vick Muniz é justamente este: ele não
consegue nesta forma mostrar o lixo como lixo. Ele embeleza o lixo a ponto de
transformar um menino da Cracolândia em um objeto para consumo visual. E
isto, vamos concordar, é mentira, portanto, é um truque.
93
Você vai lá pra consumir mais uma imagem. É absolutamente contemplativo.
Não é interativo. Nem que ele te chame pra tomar banho na piscina, nem assim é
participativo.
Pois não é esta a nossa querela com o teatro do Zé Celso Martinez Corrêa, quan-
do ele pega uma pessoa e tira a sua roupa? Isto não é participação. O público não
está participando, ao contrário. Quando eu vou numa peça e fico quietinho numa
cadeira e ninguém mexe comigo, mas a peça estimula o meu intelecto, porque
tenta me mostrar, em termos de estímulos - daqueles que estou acostumado a
ver - um novo assunto, eu estou participando o tempo todo. Esta sim é uma peça
participativa. Esta sim é uma obra de arte exigente, aquela que não me trata
como mercadoria, aquela que entende que o consumidor não é apenas consumi-
dor, e não é burro necessariamente. Ele pode ser burro, mas não necessariamen-
te. E eu tenho certeza que, como vocês, eu gosto de ser tratado como uma pessoa
inteligente quando eu vejo uma pintura, quando eu vou ao teatro e, infelizmente,
quando eu assisto televisão. Eu não sou, mas a televisão também não precisa ser
o que é. Não existe nada dentro do aparelho de televisão, ou dentro do compu-
tador que diz que a internet tem que ser o que é. Que diz que a televisão tem que
ser o que é, e que diz que a novela tem que ser o que é. Já imaginou que maravi-
lha a gente assistir uma novela que trata das nossas questões? Eu ia adorar e
não ia perder um capítulo. Se a peça que todos esses grupos fazem fosse, de
verdade, grandes novelas que passassem na TV Globo, ou filmes que a gente
assistisse num Cinemark, então todo apoio ao Cinemark. Agora se, de verdade,
os museus, as galerias de arte, os cinemas fazem sempre arte comercial e só arte
comercial, talvez a gente devesse se perguntar dos interesses dos cinemas, dos
museus, dos teatros.
Outro dia uma pessoa me desafiou por causa daquela famosa CowParade. Sabe o
que é isto? Aquelas vacas que são espalhadas pelas cidades. Vocês sabem como
funcionam, as vacas? Existem moldes - são sempre as mesmas vacas. Elas estão
pelo mundo inteiro, em Florença, em São Paulo, em Buenos Aires. Só não estão
no Cairo - ainda mais agora. Onde há uma possibilidade de ganho, elas estão.
Uma empresa, ou uma entidade patrocina uma vaca, contrata um artista que vai,
então, fazer uma obra de arte, desenhar em cima daquela vaca. Então, pode ser
uma grande marca, pode ser uma grande empresa e vai sempre ter alguma coisa
associada a marca ou a uma empresa, ou então uma grande marca de artista.
Muito bem, eu falava contra estas vacas todas, e uma pessoa me falava assim:
“puxa, você fala tão mal da arte, mas se não for esta arte, que arte será?” Eu dis-
se: “inclusive nenhuma, porque isto não é arte verdadeiramente, isto é uma
maneira de comercializar mais um ponto para o Mc Donald’s fazer a sua propa-
ganda, na forma elegante e bem educada do fazer artístico.” Então, quando uma
pessoa vai tirar uma foto na frente de uma das vacas, é como tirar uma foto com
uma bolsa Louis Vuitton. É a mesma coisa. E veja, que se o espetáculo de vocês
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não se presta a servir como uma mercadoria nestes termos, já há aí, em si, uma
qualidade. Isto é, um metro de qualidade. Ele incorporou, mas não se sujeitou.
As vacas, elas já nascem, todas elas, incorporadas nestes termos. Todo formato é
quadrado. Não pode ser um boi, tem que ser uma vaca. Não pode tirar um chifre,
não pode ficar de pé, tem que ser do mesmo jeito. Só tem “não podes”. Tem que
se submeter ao cliente pra ver se ele aprova. Porque eu não posso fazer uma
vaca pro Mc Donald’s dizendo pra não comer no Mc Donald’s. E eu não posso
fazer uma vaca de maneira paródica. É uma cartilha de “não”. Isto é truque, não
é arte. Quando na verdade, nós aqui estamos advogando um papel para um ar-
tista em que poderia só “sins”. Mas não na porralouquice. São “sins” bem infor-
mados. E é aí que entra o estudo, a necessidade fundamental dos artistas de
estudar. Eu desconfio que os atores não gostem de estudar. Quanto àqueles que
eu estou mais próximo, os artistas plásticos - estes eu tenho certeza que não
gostam. Eles não apenas não gostam, como vão mais longe ainda. Eles dizem o
seguinte: “se eu estudar muito, a naturalidade da minha expressão, o meu poder
de comunicação, isto tudo, se perderá; eu preciso mesmo deixar fluir.” Eu, pes-
soalmente, não consigo pensar em coisa mais idiota da parte de um artista. Por-
que ele não apenas não conhece a tradição, às vezes a tradição na qual ele se
insere. Ele precisa conhecer essa tradição e como Iná Camargo disse, não se
trata de reinventar a roda. Mas também não se trata de repetir o mesmo teatro
que Brecht fez na Alemanha dos anos 30. Porque nós não estamos nem na Ale-
manha, e nem nos anos 30. Porque nós não somos Brecht. Ah, sem contar isto:
que as pessoas não estão passeando de bandeiras vermelhas por aí.
“Um grande artista não se faz.” Uma vez uma pessoa me falou assim: “castelo na
França não se compra, se herda”. Isto é o cúmulo da arrogância. E eu só tô con-
tando esta história porque ela é tão arrogante, quanto: “estudo? Não preciso, já
sou um grande artista. Já tenho esta possibilidade.” Como se tivesse uma grande
obra. E a única obra que esta pessoa deve ter, e eu imagino, é no banheiro. Uma
quebração lá qualquer pra resolver uma torneira. Eu sempre dizia isto aos meus
alunos, e eles ficavam enfurecidos comigo, quando eles falavam pra mim: “pro-
fessor, a minha obra”... “Mas tem reforma na sua casa? Tão jovem assim, você já
tem uma obra? Só se for de reforma. Mostra-me as suas imagens, a suas fotogra-
fias!” Em geral, eram um lixo. Porque eram inversamente proporcionais ao ego
deste artista mal informado. Que não tinha esta capacidade de reconhecer os
cinco erros, a começar do primeiro: “eu estou num processo de ignorância gene-
ralizada. Esta ignorância não é privilégio meu. Esta ignorância é estrutura e eu,
como tal, preciso primeiro reconhecer que sou um ignorante, e segundo, reco-
nhecer que não preciso ficar um ignorante”. A língua portuguesa é tão interes-
sante neste sentido. Eu adoro. Você está, mas não é, pode mudar. Se pode mudar,
significa que você faz parte do processo. Porque nada é fixo. Está. É um proces-
so. “Mas que processo é este? Por que eu sou ignorante, afinal? Por que esta
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pessoa está dizendo que ignorância é estrutural? Por que que as pessoas gostam
tanto de novela assim? Elas são burras?” É... Acho que são burras. Mas a culpa é
delas? Pode ser que sim, mas pode ser que não. Pode ser que no fundo a gente
culpe o doente de câncer porque tem um câncer, não é verdade? Eu, pessoal-
mente acho muito fácil olhar pra uma pessoa menos culta do que eu e dizer as-
sim: “ai, que desagradável. Esta pessoa gosta de novela. Que chato. Não tenho
papo com ela”. Mas, talvez, o fato de ela ser tão ignorante, diga mais a respeito
da realidade na qual nós todos vivemos, do que a pseudo erudição do professor.
Eu, normalmente tendo a acreditar que sim. E eu acho que é isto tudo que nós
temos que colocar pra nós, porque também há que se fazer um mea culpa. Não
sei se algum de vocês vai sair daqui pensando assim: “sabe que tem um lado
meu que queria trabalhar na Globo. Mas é difícil. Não queria admitir isso nem
pra mim, mas tem. Se me dessem aquele papelzinho na Malhação, eu ia”. E gente,
eu não estou fazendo apologia de não ir para a Globo. Pode ir. Aliás, deve, por-
que eles pagam muito bem e eu sou sempre da seguinte teoria: se você vai ven-
der sua força de trabalho para o inimigo, venda pelo melhor preço possível.
“Quanto você cobra?” “O máximo que você puder me pagar, sem negociação”.
Mas vender a sua força de trabalho não significa vender seus ideais. Nem deixar
de construí-los, inclusive lá, com outros dos seus pares. Porque lá não tem só a
Glória Pires.
Que eu saiba, outros grandes artistas também trabalharam na Globo: Lélia
Abramo, Lilian Lemmertz. Estes, certamente, devem ter ganho algum bom di-
nheiro, mas não venderam a sua alma. Venderam só sua força de trabalho. Eu, se
me convidassem pra dar este mesmo curso, seria adaptado - porque eu não
poderia falar nestes termos, aqui não é truque, é técnica. Aqui é de verdade. Mas
se me convidassem hoje pra dar um curso num lugar chique de São Paulo... Aliás,
já me convidaram e eu fui. Fui mesmo e achei ótimo. Só que lá, “luta de classes”
era traduzido: “conflito social”. Não podia falar determinadas coisas. Marxismo
não era marxismo. Marxismo era “materialismo”, quando muito. Quando pros
mais reticentes “crítica social”. E eu adorei fazer o curso. Adorei, porque ganhei
um bom dinheiro e fui estudar essas pinturas todas in loco. Porque pro meu
estudo era fundamental conhecer isto, ter acesso a outras coisas que os livros
não trazem, conversar com outros professores. Então, eu achei o máximo ganhar
bastante dinheiro porque eu acho que eu gastei ele com o melhor produto que
eu podia gastar: em estudo. Agora, se o seu coleguinha não gosta de estudar,
talvez ele não devesse ser seu coleguinha para tratar destas questões todas.
Você pode conversar com ele sobre neto, sobre moda, sobre a crise no Japão -
mas não tão sério – futebol – mas, também, não tão sério; ainda não nos termos
do trabalho, da coisa da organização coletiva, só nos termos das amenidades. Ele
não é um par intelectual e isto a gente tem logo que aprender a diferenciar.
Quem são os nossos pares e quem não são. Eu tenho certeza que a minha fala
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não é propriamente agradável aos ouvidos. Eu também não vim aqui para agra-
dar e eu tenho certeza que vocês não me chamaram para serem agradados. En-
tão, se eu estou ferindo alguns egos, eu gostaria de cometer a indelicadeza de
não me desculpar, porque a minha fala não pede uma desculpa. Se eu me des-
culpasse agora eu teria que me contradizer, e eu acho que a coerência é a coisa
mais importante. Se vocês não me convidarem nunca mais pra vir aqui, eu terei
entendido a mensagem. Se vocês convidarem outras pessoas que tendem a pen-
sar como eu, eu ficarei feliz em saber que a Companhia está realmente engajada
num processo sério de estudo e de autorreflexão. Porque para os professores
também não é nada fácil, às vezes, pensar que eles ensinam coisas de maneira
que não são completamente significativas para o mundo moderno, o mundo
contemporâneo. E eu não me excluo destes professores, que vou me formando e
vou, quem sabe, me engajar num processo realmente interessante de mudança.
Mas não acreditando que a mudança vai acontecer na Universidade de São Pau-
lo. Porque não vai. Não vai ser nem a USP, nem a classe média que vai fazer a
revolução.
Mas eu realmente acredito que alguns elementos da classe média e alguns ele-
mentos da universidade podem e contribuirão significativamente para um mo-
vimento rumo a algo interessante. A Iná é uma pessoa formada pela Universida-
de de São Paulo, apesar da Universidade de São Paulo. Mas certamente, lá, co-
nheceu grandes teóricos, professores, parceiros... Não muitos, mas alguns. São
essas pessoas que fazem a nossa cabeça. Assim como, eu tenho certeza, farão a
cabeça de vocês. Eu vou terminar a minha fala agradecendo profundamente e de
verdade a oportunidade de estar aqui e conversar com vocês. Eu, pessoalmente
me diverti muito, nos termos de uma diversão bem informada. Eu acho que isso
é que é diversão. “Ai, é muito chato”. Não sei se chato é uma categoria também
pra gente pensar os objetos de cultura. Talvez o que seja chato, a priori chato,
seja mais interessante do que a gente imaginava. Um filme do Godard é muito
chato, nos termos tradicionais. Depois que você começa a penetrar e a apreciar o
que é que tem ali, talvez ele seja extremamente instigante, e chato é um filme de
ação onde tudo acontece e nada acontece. Então, nestes termos da diversão bem
informada, eu me diverti muito. Para mim foi muito divertido estar aqui, porque
sobretudo, eu aprendi coisas, inclusive sobre o meu objeto, que eu não tinha
aprendido. Porque formulei de outra maneira e acho que formulação, falar, aju-
da a gente a pensar. Ou seja: você pensa alto e vai formulando. É que nem tera-
pia. Você fala só pra você, mas na forma que formulou. Aliás, eu vou contar pra
vocês, pra quem não viu: na última peça do Latão, há um momento que eu acho
absolutamente excepcional. Um dentre vários. Uma senhora lê uma carta que
escreveu de próprio punho e diz assim: “eu hoje fui a escola e aprendi com a
professora. Aprendi o que sempre soube, mas nomeei. E, portanto, aprendi, num
grau mais elevado: que sou explorada”. Eu acho isso um achado artístico incrí-
97
vel. Simplíssimo, seco. Não tem nada ali, e tem tudo. Quanto menos glitter, me-
nos paetê, menos pena, mais depurado, mais interessante - a coisa fica. E isto
colocado em perspectiva com tudo que veio antes e o que virá depois. Então aí,
realmente, é inominavelmente interessante. Eu termino por aqui. Muito obriga-
do!
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• e assegurar o debate e a implantação das propostas do setor teatral ela-
boradas e apresentadas à sociedade e ao Estado, ao longo dos últimos
oito anos, decidiu:
• Considerando os relatos dos congressistas que comprovam que os es-
paços públicos no Brasil têm sido privatizados, por meio de cobrança de
taxas, proibição aos artistas de exercer seu ofício, com o uso de violên-
cia física e moral, apesar do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira
garantir o direito de ir e vir e a liberdade de expressão, entendemos que
a mesma está sendo desrespeitada nas instâncias municipal, estadual e
federal;
• elaborar instrumentos jurídicos que regulem a ocupação dos prédios
públicos ociosos, bem como imóveis que tenham possibilidade de agre-
gar os artistas;
• criar uma comissão para impetrar uma carta-denúncia que deverá ser
entregue em audiência com a Ministra da Secretaria Nacional de Direi-
tos Humanos;
• apoiar o projeto de lei federal apresentado pelo Dep. Fed. Vicente Cân-
dido, lido em plenária, que regulamenta a garantia deste direito. E, tam-
bém, considerando os esforços realizados no Congresso Brasileiro de
Teatro (1979, em Arcozelo) Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo
(anos 80), o Movimento Arte Contra à Barbárie (1998), Redemoinho
(2004-2009), Rede Brasileira de Teatro de Rua (2007), que culminaram
na elaboração da Lei Prêmio do Teatro Brasileiro,
• exigir, em caráter de urgência, a sua votação pelo Congresso Nacional e,
posteriormente, a sua implementação pelo Ministério da Cultura;
• fazer mobilização nacional pela votação imediata do Prêmio Teatro
Brasileiro;
99
Ficou decidido que a data do 2º. Congresso Brasileiro de Teatro será dias 06,07
e 08 de abril de 2012 em Brasília, Distrito Federal.
100
dentemente de censura ou licença nos espaços públicos. As ações de coibição,
repressão, apreensão de material de trabalho, prisão e agressão de artistas, além
da cobrança de taxas, privatização dos espaços públicos e outras exigências que
inviabilizam a utilização desses espaços por parte do artista, ferem os diretos
garantidos em lei na constituição federal. Portanto, cobramos do estado uma
ação contundente e imediata de isenção de quaisquer taxas e exigências docu-
mentais, e que faça valer o direito constitucional de liberdade de expressão e
utilização do espaço público.
Eduardo Galeano
101
1-Levar em conta os símbolos criados a partir da peça e do roteiro de cinema
propostos por Cesar Vieira, considerando as cenas e personagens criadas;
2-Ter como escolha uma interpretação épica, crítica, capaz de desconstruir sím-
bolos criados historicamente pela hegemonia;
3-Crítica ao futebol como instrumento de distração e dispersão, tratando tal
questão dialeticamente e contraditoriamente. Futebol como representação e
despolitização de uma classe.
4-Construir um espetáculo em que o discurso cênico aconteça entre formalida-
des e não formalidades (entendendo não formalidades como uma maneira de
conduzir caminhos em que as convenções teatrais são quebradas temporaria-
mente, permitindo inclusive a participação do público tocando uma música ou
conversando sobre coisas diversas).
5-Conferir à encenação um caráter festivo e de trabalho, como as práticas para
se “encher laje” que acontecem nos bairros; 6-A música – o samba como elemen-
to do povo; manifestação do povo; pode-se incluir talvez o hip-hop; 7-Construir
uma seqüência histórica – valorizando momentos da histórica do Corinthians
dentro da história da humanidade e suas contradições; 8-Eixo temático – Contra
imagem – histórica do trabalho e a luta da classe trabalhadora.
Os trabalhos seguiram de acordo com as funções e desempenho dos papéis em
prol desta concepção coletiva.
Walter Benjamin
102
Compartilhando Experiências
por Maxwell Raimundo
103
Na antípoda dessa produção está a pesquisa da Brava Companhia, cuja fina-
lidade é, usando o teatro como ferramenta, desmentir essas imagens e ou des-
vendar os mecanismos de funcionamento dessa máquina de ilusões amenizado-
ra e, por vezes, criadora da ilusão da extinção das classes em luta.* Com isso em
vista, os integrantes do curso livre escolheram, para sua experimentação cênica,
um autor que estava nas fileiras da luta dos trabalhadores, no campo simbólico
das artes, mas, que por outro lado, não era representante de nenhum cânone da
literatura brasileira. Dyonélio Machado, escritor gaúcho marginalizado pela
crítica, é autor de “Os Ratos”, livro no qual faz uma crítica contundente a um
sistema sócio político de uma Porto Alegre, paradigma das cidades capitalistas
em crescimento, mergulhada nas problemáticas do progresso retrógrado do
qual as elites se beneficiam em prejuízo do restante do povo, os trabalhadores.
Munindo-se dos mais diversos recursos da narrativa contemporânea, o autor
relata, de maneira fragmentada e corroída por falhas psíquicas, causadas pela
opressão das relações mediadas pelo dinheiro, o dia de Naziazeno, personagem
central do romance.
Depois de algumas leituras, optou-se por ter o livro como base do processo
de montagem de “A vida EM PEQUENA ESCALA”. Peça protagonizada por Nazia-
zeno, personagem do Romance de Dyonélio, que, de servidor público nas obras
de urbanização de sua cidade, torna-se, em nossa história, um operador de Te-
lemarketing desempregado, o qual, para pagar o aluguel da casa, passa por di-
versas” peripécias” ou epicamente dizendo diversas dificuldades de sua classe,
num misto de denúncia e diversão cujo intuito é desvendar as relações de pro-
dução da vida numa sociedade desigual e opressora.
Tendo como fonte de pesquisa a busca por um teatro político cujas raízes
se encontram no teatro épico de Bertolt Brecht, os atores contam a história de
Naziazeno, ora como personagens, ora como narradores ou, num processo de
distanciamento crítico, como comentadores das cenas. Comentários esses que
estão diluídos nos gestos, na encenação e na música do espetáculo.
A fim de que o trabalho adquirisse um caráter ainda mais compromissado
com uma reflexão acerca do nosso tempo, o grupo convidou Tiago Vasconcelos,
diretor da Companhia Antropofágica de teatro e Mei (Depois vou pegar o nome
completo dela), para uma conversa sobre questões relacionadas ao texto e à
vida política vigente. Esse encontro impulsionou ainda mais os atores a apro-
fundar reflexões que dizem respeito à peça em si e ao papel deles nesse proces-
so, o que gerou a possibilidade de mais um encontro, agora entre o curso livre
da Brava Companhia e a oficina de tetro da Cia Antropofágica, para discutir o
texto “O autor como Produtor”, de Walter Benjamin.
104
Este trabalho intitulado “a vida EM PEQUENA ESCALA”, estreou no Sacolão
das Artes no dia 25 de novembro de 2011.
Integrantes da Turma 2: Eloiza Alves, Daniela Embón, Ilka Arão, Rita Carneiro,
Diego FF Soares, Davi Armendani, Gabriel Silva, Maria Edjane e Bárbara Damas-
ceno.
105
“Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sen-
sações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo con-
texto histórico das relações humanas (o contexto em que as relações se
realizam) mas sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos
que desempenhem um papel na modificação desse contexto”
Bertolt Bretch
Integrantes da Turma 1: Camila Odara, Julia Gama, Natália Chaves, Ingrid Rocha,
Eloisa Chaves e Bianca Chechinel.
Mutirões ou...
“Ao abrir uma garrafa de café e encontrar café, saiba que por trás
daquele líquido preto e gostoso foi empregado o trabalho de algum
trabalhador ou trabalhadora para fazê-lo e colocá-lo dentro da gar-
rafa.”
Luis Scapi
106
Durante 2010 e 2011, assim como em anos anteriores, fizemos inúmeras
melhorias no espaço, participamos de mutirões - alguns promovidos por nós, e
outros a convite de companheiros e companheiras.
Destacam-se nestes mutirões duas ações: a construção de um grande telão
/escultura, feito em ferro, produzido pelos artistas do Projeto IMARGEM 11 em
parceria com os grupos do Sacolão das Artes e moradores e moradoras do
bairro (maioria de crianças), utilizado como tela para projeção de filmes na área
externa do espaço. Toda a produção desta estrutura, foi feita no espaço do
Sacolão, aos olhos da população. A inauguração deste telão, foi feita com a
projeção do filme: “Entre Vias”– do coletivo Berinjela Filmes.12 A construção
deste imenso telão permanente, cria diversas possibilidades para o espaço em
relação ao áudio visual e também fortalece um dos coletivos que tem sua sede
no Sacolão das Artes, o Núcleo de Comunicação Alternativa 13 , uma vez que
potencializa materialmente a capacidade formal de suas ações.
Outra grande e importante construção refere-se ao que pode se chamar de
“passos para autonomia sobre os meios e modos de produção” de nosso
trabalho teatral, conduzidos em favor também de outros coletivos (teatrais ou
de outras linguagens) que querem fazer da arte um meio para mudança do
estado de coisas que se apresenta no mundo.
Mais um destes passos foi dado: a construção de um galpão de marcenaria
e serralheria14 no espaço do Sacolão das Artes.
Nós da Brava Companhia, temos nos esforçado, na medida do possível, para
fazer deste espaço, de nossa sede, um espaço para o público e para a cidade. Na
esteira deste pensamento está a possibilidade de criarmos mecanismos práticos
para que os grupos artísticos possam dispor da materialidade necessária para
composição de sua crítica (teatro, música, cinema, artes visuais, etc.). Parte
desta materialidade está atrelada a produção de cenários, adereços, objetos
cênicos, etc., que, em geral, é terceirizada pelos coletivos devido a falta de local,
ferramentas e conhecimento técnico para realizá-la.
11
O Projeto IMARGEM é uma intervenção multidisciplinar que, reunindo arte, meio ambiente e convivência, pretende
enfrentar o isolamento das comunidades que vivem às margens da Represa Billings, região do Grajaú, São Paulo. Enten-
de-se, no Imargem, a arte como instrumento potente de expressão e interlocução; a convivência como mecanismo de
explicitação de interesses, de construção de consensos e de enfrentamento dos preconceitos e o meio ambiente como o
resultado da relação conflituosa entre a ocupação humana desordenada e as paisagens da cidade. Mais informações em:
www.imagemdamargem.blogspot.com
12
O coletivo de audiovisual Berinjela Filmes surgiu 2006 e é parceiro das ações do Sacolão das Artes. Mais informações
em: berinjelafilmes.com.br
13
NCA- Núcleo de Comunicação Alternativa – é um grupo de audiovisual que tem sede no Sacolão das Artes e que
busca, por meio do usar “a imagem como grito, fazendo leitura crítica do mundo”. Mais informações em:
ncanarede.blogspot.com
14
A construção deste galpão está prevista no projeto arquitetônico do Sacolão das Artes. A marcenaria e serralheria
montada durante o mutirão ainda é uma unidade provisória, mas que já ocupará o espaço descrito para ela dentro do
projeto.
107
Queremos, ao máximo, diminuir a distância entre nosso discurso e ação.
Buscamos operar sobre nossas ideias de maneira prática e objetiva, e esta
oficina possibilitará a nós e outros grupos parceiros fazê-lo.
Para conseguirmos as ferramentas e máquinas (que ainda não são todas as
que necessitamos) e para montar este espaço provisório da marcenaria tivemos
que realizar a tática Robin Hood15, ou seja, “vender” nossos espetáculos a quem
possa pagar por eles e com o dinheiro organizar nosso teatro em luta e cumprir
necessidades pontuais, como a marcenaria.
A organização deste espaço está a cargo de nosso grupo e sua essência é
um espaço para uso coletivo, a favor dos grupos, do modo de produção que
prescinde do lucro e da mais valia, apresentados de diferentes formas por cada
coletivo, mas dentro de uma unidade necessária: o teatro engajado na luta, na
disputa simbólica. Queremos ver mãos e mentes trabalhando nesta marcenaria,
fazendo dos pregos, madeiras e martelos, objetos significativos para nosso
teatro de todos os dias.
Trabalhadores da Cultura
é hora de perder a paciência
“Em primeiro lugar, o aniquilamento da consciência pela esponta-
neidade, de que falamos, também se deu de maneira espontânea. Isto
parece um jogo de palavras, mas infelizmente é uma verdade amar-
ga. O que provocou esse aniquilamento não foi uma luta declarada
entre duas concepções absolutamente opostas, nem a vitória de uma
sobre a outra, mas o desaparecimento de um número cada vez maior
de "velhos" revolucionários "colhidos" pelos policiais, e a entrada em
cena, cada vez mais frequente, dos "jovens" da socialdemocracia rus-
sa".
Vladimir Ilitch Lenine
15
Termo cunhado pelo Teatro Popular União e Olho Vivo
108
A seguir reproduziremos uma matéria do Jornalista Otávio Nagoya,
publicada na revista “Caros Amigos”, e que entrevistou quatro pessoas ligadas
ao Movimento, Luciano Carvalho, Fernanda Azevedo, Fábio Resende e Osvaldo
Pinheiro. Também apresentaremos as cartas publicadas durante a ocupação.
Como fizemos parte, de uma ação coletiva, melhor que a coletividade se
expresse, mesmo que por meio de uma entrevista.
109
mercado. Construímos essa pauta e já está pronta e protocolada, só não está em
pauta para o Governo. Então não precisamos dialogar nesse momento, pois nós
já fizemos isso”, garante Fábio Resende, da Brava Companhia.
Assim, a avaliação do MTC é que o foco atual não está mais dentro do
campo institucional, nas criações de leis e outros recursos, mas sim em ações
políticas para pressionar o Governo a mudar o atual cenário cultural do país.
“Agora conseguimos enxergar que quem toma as decisões não são as
instituições ditas democráticas, mas sim as grandes corporações, que
determinam os rumos do dinheiro público”, avalia Luciano Carvalho, do Coletivo
Dolores. O artista ainda cita os exemplos das empresas Itaú Cultural e Fundação
Bradesco e afirma: “isso é um roubo do dinheiro público pelas empresas
privadas, que dizem fazer cultura, mas só fazem propaganda. ”
OCUPAÇÃO
110
que é inoperante? Pois é uma maneira de fazer a exposição da luta”, explica
Fábio Resende.
CULTURA X MERCADORIA
HISTÓRICO
111
de promover mudanças nas políticas culturais. Concentrado, principalmente, em
São Paulo, o movimento lançou três manifestos, que tiveram repercussão
nacional. Já no primeiro, uma crítica sobre a influência das grandes empresas, “a
atual política oficial, que transfere a responsabilidade do fomento da produção
cultural para a iniciativa privada, mascara a omissão que transforma os órgãos
públicos em meros intermediários de negócios. ”
“Aquele foi o momento em que os artistas se juntaram para questionar a
política neoliberal em curso, que estava produzindo barbárie. Foi o primeiro
respiro do movimento”, recorda Luciano Carvalho. Para a artista da Kiwi
Companhia de Teatro, Fernanda Azevedo, é preciso analisar o momento
histórico para entender o movimento "Arte Contra a Barbárie", tanto com a
expansão mundial do neoliberalismo nos anos 80, passando a guiar a política
econômica ocidental, quanto no Brasil, com o governo de transição de Sarney,
seguido por Collor e a criação da Lei Rouanet. "É nessa conjuntura que nasce o
'Arte Contra a Barbárie', afirmando que arte e cultura são direitos da população,
assim como saúde, moradia, educação e saneamento básico", avalia.
A lei que leva o nome do então secretário da cultura de Collor, Sérgio Paulo
Rouanet, foi, durante muito tempo, o único recurso que os artistas tinham para
acessar o dinheiro público. "Mas isso já surge dentro das regras neoliberais, de
estado mínimo e de privatizações", critica Fernanda. Os trabalhadores apontam
que o grande problema da lei é o mecanismo de renúncia fiscal, onde as
empresas deixam de pagar alguns impostos pra investirem em cultura,
decidindo em quais projetos aplicar o dinheiro. "Na prática, as empresas
recebem dinheiro público para fingir que apoiam a cultura. Se existe mesmo
esse interesse, que o façam, eles têm grandes lucros, é só separar uma pequena
parcela para a cultura e não usar o dinheiro público" repreende Luciano
Carvalho.
LEIS
112
Para Fábio Resende, a Lei de Fomento mudou o panorama teatral da cidade
de São Paulo. “Isso é fruto de uma política séria, e não desses programas
eventuais, que geram mais trabalho preenchendo papéis do que na produção do
projeto”, reclama. Para os trabalhadores de cultura, os editais são um exemplo
de ação de governo, lançados dentro de conjunturas específicas e sem garantia
de continuidade, já as políticas de estado são estabelecidas em leis, com regras e
orçamento próprio. “A Lei de Fomento continua, mesmo após três gestões em
São Paulo, ao contrário dos editais, que nesse ano alguns ainda nem foram
lançados e os que foram tiveram uma queda acentuada no orçamento”, compara.
Apesar de considerarem a Lei de Fomento como um exemplo, já que além
do orçamento próprio, a comissão julgadora da Lei é paritária, metade poder
público e metade sociedade civil (indicada pelos órgãos representantes da
categoria de teatral), os grupos que se organizam no MTC acreditam que todas
as categorias precisam se organizar e criar suas próprias leis.
"Sabemos que a política no Brasil funciona através do medo. As pessoas
pensam: 'e se acabar a lei de renúncia fiscal, a Lei Rounet? Não vamos ter como
sobreviver'. Mas não é assim. Porque a Lei de Fomento é um exemplo que foi
criado pelos artistas de teatro. E só conseguimos devido à luta coletiva", expõe
Fernanda Azevedo.
113
O primeiro passo para uma atuação mais radical ocorreu em 2009, quando os
trabalhadores de cultura ocuparam o prédio da Funarte-SP por um dia. "Nunca
tínhamos ocupado, nos moldes dos movimentos sociais, como os sem teto e sem
terra" relembra Luciano Carvalho, que também considera a ação como um
aprendizado para o movimento. No mesmo dia, a direção da Funarte chamou a
polícia, que bloqueou as portas, impedindo a entrada de comida e água. Com
essa experiência, em 2011, após a ocupação, os manifestantes fecharam o portão
do prédio, controlando a entrada das pessoas do movimento. "É muita
ingenuidade de quem ficou abismado com as portas fechadas. É só você ver o
exemplo de despejos com muita violência, então se isso aconteceu é porque não
temos uma conjuntura favorável", explica Luciano. "Além disso, nós tínhamos a
responsabilidade de organizar e cuidar do local, se alguém resolvesse entrar lá e
destruir o patrimônio público, a responsabilidade é do movimento", finaliza
Osvaldo Pinheiro, da Cia. Estável de Teatro.
NOVOS RUMOS
114
Mesmo após a desocupação, os trabalhadores continuam a se reunir em
assembleias e já planejam novas ações. "Estamos dispostos a atrapalhar
bastante o Governo e as grandes empresas daqui pra frente. Se não temos
espaço nessa sociedade, vamos gritar isso bem alto. É necessário que a arte
responda ao perigo de uma época e a gente vai responder", aposta Fernanda
Azevedo. Para que isso aconteça, o MTC passa a se articular com outros
movimentos culturais e de outras áreas em todo país. Osvaldo Pinheiro acredita
que isso já estava acontecendo e se intensificou após a ocupação, porém, ele
sabe que é preciso ter cautela nesse momento, "essa unidade é necessária, mas
com critério. É preciso juntar aqueles que estão travando a luta anticapitalista".
Fala de Iná Camargo durante a ocupação da FUNARTE:
“Se quisermos sair do horizonte do reformismo. Seria preciso responder
algumas perguntas:
1. Estamos dispostos a questionar de modo radical as nossas reais
condições de vida e produção cultural?
2. Estamos dispostos a questionar as reais funções que a cultura tem no
mundo atual e, inclusive, as reais e as imaginárias, da arte que nós produzimos?
3. Estamos dispostos a fazer a crítica dos engodos ideológicos em que nós
estamos metidos?
4. Estamos dispostos a romper com o capitalismo em todas as suas
manifestações: mercado, práticas sociais e valores ideológicos?
5. Estamos dispostos a fazer a crítica radical do Estado tal e como ele está
organizado no Brasil?
6. Estamos dispostos a enfrentar o monopólio capitalista dos meios de
comunicação que correspondem as mais avançadas forças produtivas do nosso
campo de intervenção que é a produção cultural?
7. Estamos dispostos a disputar ou reivindicar os espaços públicos que
foram privatizados e assegurar a condição de espaços públicos que ainda não
foram, e onde se produz o que nós achamos que produzimos?
Se conseguirmos responder a estas perguntas e encará-las, temos um longo
programa pela frente. ”
115
O Movimento dos Trabalhadores da Cultura vem sendo acusado pelo
governo de antidemocrático e de se negar ao diálogo com as esferas
representativas do poder público federal. Este breve histórico pretende
esclarecer a sociedade sobre a falsidade destas acusações. É necessário
compreender a história para compreender a luta.
116
• Por essas ‘pegadinhas’, acaba-se, na prática, com a ideia de um programa de
Estado com orçamento próprio a ser aplicado por qualquer governo, de
qualquer partido. Sem orçamento próprio e sem regras claras, tudo se reduz,
novamente, à vontade e à ação do governo de plantão, sem qualquer garantia de
cumprimento e continuidade.
117
• O governo mantém as políticas públicas de incentivo ao mercado por
intermédio da lei de renúncia fiscal, a lei Rouanet.
118
Impõem: não há alternativa, o mundo é um grande negócio e todos estamos
à venda. Anunciam: é no mercado que tudo se resolve e, através do consumo,
todos seremos felizes. Mentem: o Estado não deve interferir pois atrapalha o
mercado e a concorrência. E que vença o melhor!!! É de cultura que estamos
falando, não? Nessa cultura, não pode haver lugar para a História, para a
mudança desse estado de coisas: tudo é natural, a começar pela apropriação
privada do conhecimento humano (patentes), de um planeta chamado Terra e
da riqueza produzida pelo bicho homem. Tudo tem dono e isso é "natural". E
tudo tem que dar lucro: a comida, a moradia, a saúde, educação, transporte, a
arte e a cultura... E viva o progresso!!! E essa ordem, evidentemente. Ordem e
progresso: a maioria quer emprego, exige emprego, implora pelo emprego, mas,
uma vez empregada, não vê a hora de terminar o expediente ou chegar o fim de
semana para fugir do inferno conquistado. Mais do que a sobrevivência, é esse
emprego que garante o lucro e a produção de bens e por isso tem que ser
incensado e mantido como 'natural'. Ordem e progresso: aqui e no resto do
mundo, as riquezas produzidas pelos empregados se concentram mais e mais na
mão de meia dúzia de corporações. Ordem e progresso: a miséria continua,
apesar de já haver riqueza suficiente para todos viverem muito bem; não é
preciso esperar o bolo crescer para dividir; esse progresso não vai 'incluir' os
'excluídos'. Ordem e progresso: o planeta Terra dá sinais de que não aguenta
mais essa farra. Ordem e progresso: aqui e no resto do mundo, o Estado e os
empregados pagam a conta do mercado falido, numa demonstração de que a
máquina emperra, não é tão poderosa e depende da intervenção do Estado, que
ela finge não querer.
É por isso que mais de 13% do orçamento de São Paulo, a maior cidade do
país, e 44% do orçamento federal vão direto para o bolso dos capitalistas
financeiros. Não é para pagar uma dívida, que já está paga, mas para pagar juros
e serviços que eles impõem unilateralmente. Que dívida é essa? Que juros são
esses? Pra onde vai todo esse dinheiro? A população brasileira, que paga a conta,
tem acesso a essas informações? Pode decidir sobre elas? É por isso que se
confunde uma política para a agricultura com o apoio incondicional ao
agronegócio, uma política para a educação com a transferência de recursos para
escolas privadas e até um projeto como o "Minha Casa, Minha Vida" fica sob o
controle e iniciativa das grandes construtoras. É por isso, também, que se reduz
uma política pública de cultura à mera transferência de recursos públicos para o
marketing privado das megacorporações e se rapa o já minguado orçamento do
Ministério da Cultura. É a essa cultura que dizemos não! Somos poucos, mas
juntamos nossas vozes àqueles que, no mundo todo, lutam contra esse estado de
coisas. Somos poucos, mas fazemos outra cultura quando cobramos da
República, que se diz democrática, uma política pública e não privada e
mercantil para a cultura, uma política de Estado que não se reduza às jogatinas
do governo de plantão. Se perdemos a paciência e ocupamos a Funarte é devido
119
à desfaçatez do Ministério da Fazenda, Planejamento, Casa Civil, da própria
Presidência da República, que, sem o menor pudor, declaram aos brasileiros que
não têm e não pretendem ter nenhuma política pública para a Cultura. É isso o
que significa a falta de orçamento ontem, hoje é o anúncio do que virá em 2012.
Que fique claro mais uma vez: não estamos 'pedindo' dinheiro. Estamos
cobrando um orçamento público para programas públicos e não para essa ou
aquela ação mercantil do governo. Estamos cobrando uma política de Estado. E
já apresentamos propostas nesse sentido.
120
sustentabilidade também vigora aqui. Perpetua a sangrenta luta de todos contra
todos. Não bastasse tamanha imposição de ideias e valores, surge o pior. Pior? O
estrangulamento total de setores sociais do Estado, que, passa a remeter
quantidades ainda maiores de verbas a setores privados e reduzir verbas das
políticas de editais/competição/contenção. O que era pouco e operado por
lógicas mercantis torna-se ainda menos e nos vemos diante a trágica condição
da "volta do pouco".
Os trabalhadores da cultura estão numa encruzilhada. Sem paciência,
ocupamos a Funarte com pautas históricas e, dentre elas, a "volta do pouco".
Nossa tragédia se convertia numa farsa, pois bem sabíamos que este órgão
federal não tinha competência para solucionar as questões apresentadas. A falta
de paciência também irrompia a necessidade de reflexão conjunta sobre a
conjuntura que nos envolvia. Neste sentido, frente a iminência do ridículo,
criamos num prédio morto a ágora donde subvertemos a lógica e conclamamos
o todos contra um. Mas, quem era esse um? A Funarte? Estamos num órgão
federal ligado a um ministério menor, dependente de outros ministérios,
venalmente ligados a assembleias e senados e judiciários e meandros que
compõem um governo social democrata de centro esquerda que detém as
rédeas do aparelho estatal. Para atender nossas exigências, se fôssemos seguir
as trilhas desenhadas pela burocracia, evidentemente estaríamos no lugar
errado. Este fato, de saída, garantia críticas e enxovalhos de toda ordem. Como
se delírios impulsionassem os ingênuos que nem ao menos sabem onde gritar.
Daqui, em uma semana de ocupação, organizados de inédita forma,
mergulhamos na intensa busca de formação política. Juntando trabalhadores da
cultura, começamos a desenhar os novos rumos de nossa existência. Primeiro,
tornou-se evidente que este órgão (Funarte) é títere de jogos mais complexos e
seu orçamento pífio endossa a realidade de sua inexpressão política. Sem
capacidade decisória, apostamos ao menos no impacto de interditar o que
agoniza. Mas sua agonia pertence a uma política de contenção de gastos e
controle social coerente com as funções do Estado, sua agonia é uma escolha
política de um governo que conduz o Estado mercantilizado. A percepção do
termo Estado mercantil advém de suas práticas, dos dutos e mecanismos que
despejam dinheiro público nas empresas, bancos e corporações (camuflados em
institutos, espaços e centros culturais). Ele (Estado) e o mercado são faces da
mesma moeda, e constatamos igualmente pela simplicidade da observação que
estão a serviço de uma classe. A classe dos proprietários, dos donos das coisas
todas, que construíram a capacidade de generalizar seu pensamento e métodos
como universais. Esse aparato de reprodução econômica, política e ideológica é
gerenciado e garantido pelo Estado, face política do capital.
Encruzilhada: Exigir a estruturação de um Estado mais eficiente, capaz de
manter a lógica destrutiva segregadora e apaziguar nossos anseios
transformadores ou construir um pensamento que aponte para outra sociedade.
121
A tarefa da luta contra o simbólico instalado em nós e, portanto, a visceral luta
pelo desvelamento do tempo histórico que atravessa a todos. Não há
aparentemente condições históricas para tamanha mudança. Nosso imaginário
está impregnado das naturalizações mercantis e sempre que nos levantamos
para a construção do novo, o velho arraigado em cada peito se apresenta e repõe
sua parcela de retrocessos e tradições. Assim mesmo, em posse destas
constatações não mais podemos ignorar a responsabilidade de produzir as
condições da mudança profunda rumo a outra sociabilidade. A Tarefa de
construir o imaginário simbólico da classe trabalhadora (percebendo classe
trabalhadora como junção de todos que trabalham, todos que criam) exigirá
empenho conjunto dos trabalhadores da cultura a fim de tatearmos caminhos
mais próximos do acerto. Para tanto, a criação de um Programa de lutas
conjuntas desvinculado das antigas pautas do Estado surge como necessidade
urgente rumo à ruptura de nossa própria alienação política. Evidente que mais
um passo foi dado nos dias de clausura política na Funarte, mas facilmente se
apaga a chama. Não seguiremos mais a lógica desumanizadora de eliminação do
outro, da competição e do tratamento de gente como mercadoria. A opção é pela
construção de outra lógica que nos irmane e possa apontar a superação da
sociedade do capital. Ao passo que políticas públicas estruturantes de novas
formas de organização, produção e distribuição de recursos públicos viabilizaria
a existência de grupamentos artísticos empenhados nas mudanças radicais.
Dupla possibilidade apresentada, reforma ou revolução, manutenção ou
mudança. Esta oposição entre os caminhos nos paralisa e, ao mesmo tempo,
aponta uma delicada possibilidade: atacar ambas as frentes. A frente reformista
tem forte inclinação à acomodação quando supre as necessidades dos que lutam
premidos por urgências materiais. Assim mesmo, o risco apresentado deve
seguir como plano tático com vistas a uma estratégia que só pode ser
revolucionária. A busca da autonomia dos trabalhadores da cultura passa pela
busca da autonomia de toda a classe trabalhadora, passa pela construção de
outra relação com o tempo e espaço onde vislumbremos a supressão do
controle/medida destes como mercadoria.
A ocupação da Funarte nos permitiu, ainda que temporariamente, a
tentativa da suspensão das determinações base do capitalismo e, portadores de
outros processos e relações, construímos reflexões político/estéticas, grávidas
de possibilidades revolucionárias e de porvires humanizados. Eis o objeto das
próximas análises para vindouros ataques poéticos: Atacar esteticamente as
corporações e grandes latifúndios da cultura, questionando a concentração de
recursos e simultaneamente desvelando os processos de ocultação da realidade
e apresentar as mesmas empresas como as verdadeiras sedes das tomadas de
decisões políticas, colocando em cheque as instituições da representação da
farsa democrática. Intensificar o embate com governos, questionando a função
do Estado, exigindo o cumprimento de nossa pauta. Deixamos nossa ocupação
122
permanente e partimos para a mobilização permanente, uma nova fase na luta
se inscreve aos trabalhadores da cultura.
São Paulo, 1º de agosto, 2011. Movimento de Trabalhadores da Cultura –
MTC
123
um vídeo utilizado na
peça “Corinthians, meu
amor – segundo Brava
companhia – uma
homenagem ao Teatro
Popular União e Olho
Vivo”.
Vai Corin-
thians!
por Rafaela Carneiro
(Integrante da Brava Companhia e diretora da peça “Corinthians, meu amor -
segundo Brava Companhia - uma homenagem ao Teatro Popular União e Olho
Vivo)
124
A encenação busca radicalmente aproximar o público, por meio da diversão
e da crítica. Nesse espetáculo a companhia continua sua pesquisa cênica
inspirada nos recursos de distanciamento do teatro épico de Brecht, evitando a
criação de um espaço ilusionista. O samba é escolhido para o espetáculo como
manifestação popular agregadora, que fala da história e dos problemas do povo,
que tem origem no povo, para o povo. O samba pede o canto em coro, formas
coletivas de execução, chama à participação.
O repertório, de autoria do grupo, também apresenta canções que expõem
e criticam a própria apropriação e deturpação desse gênero musical pela
indústria cultural.
O cenário, os figurinos e a iluminação propõem a sobreposição de
elementos de nosso tempo e sua paisagem, com outros tempos e paisagens, com
destaque para a época em que a peça foi encenada pelo TUOV. Buscando
interação entre o velho e o novo, expondo anacronismos e progressos
convivendo num mesmo tempo-espaço, possibilitando ver as coisas no seu
processo de contradição entre atitudes antigas e novas. Portas velhas,
engradados de cerveja, pôsteres e flâmulas de times populares, troféus
arrebentados, caixa de isopor, televisão velha, fios aparentes, entre outras
coisas, formam um conjunto precário de elementos cênicos utilizados como
cenografia e manipulados em favor da instauração de uma teatralidade a serviço
da Partindo de referências da cultura popular urbana comuns ao povo brasileiro
o bar, o samba, o carnaval, os rituais religiosos, o futebol a Companhia busca
explorar o que esses ambientes, essas linguagens e seus rituais, tão conhecidos e
reconhecidos por todos, proporcionam como ponto de partida de possibilidades
cênicas, de diversão e de diálogo crítico com o público.
Assim como a simplicidade do jogo de futebol, que permitiu que ele se
fizesse o esporte mais popular do Brasil, “Corinthians, meu amor - segundo
Brava Companhia” - Uma homenagem ao Teatro Popular União e Olho Vivo,
persegue a feitura de um Teatro Popular, de um “teatro simples”, que vai ao
encontro do povo e fala com ele de forma acessível, que dialoga com a vida das
pessoas, permite que elas se reconheçam. Simples para ser claro, mas não mero
ou vão.
Da linguagem não linear e episódica do teatro de revista, partimos para
fazer o nosso cabaré: com churrasco, samba e cerveja. Um cabaré dum bairro
popular de São Paulo. Como os mutirões-festas para “encher a laje” nos bairros
onde os integrantes da Brava Companhia nasceram e cresceram.
Os quadros desse cabaré são distribuídos em atos descritos na linguagem
do futebol: Concentração, Preleção, Primeiro Tempo, Intervalo, Segundo Tempo
e Acréscimos.
125
Olho Vivo, o mestre de cerimônia-apresentador-anfitrião, tem a função de
manter no público a consciência incessante e viva do fato de essa festa ser
teatro.
Anuncia e critica os quadros, ilustrando números, tomando partido quanto
aos episódios da ação e buscando privar a representação de qualquer
sensacionalismo temático. Expõe as contradições através dos tipos do
seminarista alcoólatra, da estudante pesquisadora que vê a periferia de forma
exótica, do palhaço popular, tosco e marginalizado, do operário torcedor
apaixonado pelo Corinthians, da vendedora ambulante e torcedora-símbolo, da
líder comunitária, do pagodeiro e do suposto intelectual.
Explora uma diversão satírica, que permita ver, ironizar e sondar a nossa
história através do humor e da irreverência. Numa interação sempre cúmplice
do público. Entre os elementos cênicos, estão nove atores, numa atuação
despojada em que tocam, cantam, operam a técnica do espetáculo, servem
comida e bebida ao público e representam.
O texto para eles é ponto de partida, a peça não é fechada. Permitindo e
querendo atividade do público, o espetáculo propõe momentos informais, em
que as convenções teatrais podem ser temporariamente quebradas.
“Corinthians, meu amor - segundo Brava Companhia” - Uma homenagem ao
Teatro Popular União e Olho Vivo, quer ser uma peça crítica, como uma festa da
qual todos estamos participando. Festa de denúncia e anunciação. Festa de
homenagem ao Teatro Popular União e Olho Vivo.
“Corinthians, meu amor- Segundo Brava Companhia – uma homenagem ao
Teatro Popular União e Olho Vivo” iniciou “seus jogos” fazendo uma curta
temporada de pré-estreia em 2011, nos dias:
10 e 11 de dezembro, no Sacolão das Artes
17 e 18 de dezembro, no Espaço Teatral da Companhia do Feijão
Não será possível comentar a estreia dessa peça neste Caderno, posto que o
mesmo está sendo escrito antes das apresentações mencionadas acima. Mas o
que é impossível agora é possibilidade para um novo Caderno de Erros. Ou seja:
o impossível hoje é possível amanhã. Portanto, “seja realista, queira o
impossível”!
Bravas Melodias
por Luciano Carvalho
(diretor musical da peça “Corinthians, meu amor - segundo Brava Companhia -
uma homenagem ao Teatro Popular União e Olho Vivo”)
São muitos os mitos sobre música, criados após o mito das musas:
linguagem universal, linguagem dos pássaros, linguagem de Deus; acalma, é
126
relaxante; é uma arte diáfana, não objetiva, no reino dos sentimentos; não é
conceitual etc. Somente nestes poucos exemplos, já temos um quadro de uma
situação muito problemática, pois muita gente acredita nessas ideias, embora
elas sejam todas completamente erradas.
A música nada tem de universal enquanto linguagem, pois entender uma
música depende de longuíssima iniciação, em qualquer cultura do planeta. É
universal apenas, e já é muito, enquanto acontecimento antropológico, pois não
há povos sem música; mas não por isso se pode presumir que um povo entenda
a música de outro povo, sem preparo. Também não há comparação, ainda mais
como linguagem, entre nossa arte de gestos sonoros a que chamamos música e
os sons que metaforicamente chamamos de canto, produzidos pelos pássaros. E
muito menos ainda Deus produz música; mesmo em teorias como a de Santo
Agostinho, que relaciona o fenômeno musical com a percepção temporal e o
tempo real, de modo a fazer do tempo real um equivalente divino da nossa
criação musical, é tudo metáfora, e não o mesmo fenômeno em outro lugar.
E a música acalma? É o que sentimos quando estamos no ônibus e começa a
rolar um funk no celular do mano a dois metros de nós? Ou o primeiro
movimento da quinta sinfonia de Beethoven? Ou “Papai Noel, filho da puta”, dos
Garotos Podres?
E como assim, não é objetiva? Na música ocidental, há um padrão
obedecido pelos músicos que torna possível a todos eles tocarem qualquer
música. É muitas vezes mais objetivo que a linguagem falada. Os efeitos
produzidos pela música nos ouvintes são objeto de estudo científico e recebem
aplicação por toda a indústria cultural, principalmente na publicidade, na TV e
no cinema. Pessoalmente, cheguei a ser convidado a participar de uma pesquisa
que pretendia avaliar o quanto a música que toca no interior de uma loja,
predispõe o cliente a efetuar uma compra.
Mas como a população leiga não conhece os mecanismos da música, parece
tudo mágico, parece diáfano, parece um apelo inspirado aos nossos sentimentos
e, por isso, parece “verdade”! Mas tudo apela aos nossos sentimentos, ou, antes,
nossos sentimentos podem recair sobre tudo, qualquer coisa, não somente a
música.
E a música é conceitual. Claramente. Mesmo quando o músico não sabe
disso, mesmo quando o compositor não sabe disso. Por trás do fazer musical há
sempre um conjunto de conceitos, como também ocorre com todos os outros
fazeres. Realizar a leitura desses conceitos seria uma tarefa crítica necessária, a
fim de não ser tiranizado. Mas como os mecanismos da música permanecem
desconhecidos pelos ouvintes, a tirania musical é enorme. Quando uma música
soa, parece que tudo ao redor se relaciona com ela. Uma música “triste” impõe
127
uma carga de tristeza generalizada, por exemplo, mesmo numa situação muito
feliz e alegre, ao ponto de não se poder apreciá-la em sua beleza, em sua arte; a
reação mais comum é “tira essa música triste, que não combina e vai estragar a
nossa ocasião feliz! ”. Mas uma audição crítica poderia me deixar muito feliz e
alegre, ouvindo uma música muito boa, mesmo sendo uma música que carrega
essa tal “tristeza”.
A leitura conceitual de uma música é a leitura do gesto, do por que esta
música está lá, sendo usada, e sendo usada daquele modo. Mas, na maioria dos
casos, este “por que” não quer se mostrar. É o caso geral da indústria cultural.
Nas novelas, nos filmes e também no teatro comercial, a música exerce seu papel
tirano de uma maneira quase despercebida. A música triste faz a cena ser triste,
a alegre faz a cena ser alegre, e pronto.
Falemos de teatro. Nos musicais, a música cria a amarração espetacular de
todo o resto. Os gestos cênicos e a dramaturgia são meros suportes, ou
desculpas, para se fazer o espetáculo. A dramaturgia também serve para inserir
valores, defendidos pela produção, como uma forma de propaganda ideológica,
usando para isso aquela sensação de “verdade” que o canto do protagonista
confere a tudo que canta, no momento mais emocionante da peça. Num teatro
com muita música, mas não tanto que já não seja o que chamamos um “musical”,
acaba-se, muitas vezes, usando a música do mesmo jeito: e a cena vai
acontecendo, a ação vai se dando e, de repente, a peça para e entra uma música,
que serve para nada em termos de ação (para que servirá, então?); quando ela
acaba, a peça continua. Para que serviu aquela música? Depende. Muitas vezes é
para emocionar o público, louvando qualquer coisa que a peça, sem isso, não
consegue. E a música, principalmente a canção, é perfeita para fazer esse tipo de
celebração.
Para usar um exemplo muito conhecido, mas fora do mundo do teatro,
gosto de reparar em “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso: apesar de o Brasil não
ser a pátria original do coqueiro, nem dos negros, e de não ter apenas o samba
como um ritmo seu, enfim, apesar de o Brasil não ser o que está naquela canção,
ela é tão forte, e fora de contexto ela fica tão tirana, que acabamos por “sentir” o
Brasil daquele jeito; se aceitamos a celebração proposta na canção, seu objeto se
torna real; mais do que objetiva, a canção é “objetivadora”. Todas as artes são
“presentificadoras”, mas a música usa mecanismos invisíveis, e enfrenta menos
resistência.
128
Na Brava Companhia
Mas é possível fazer outro uso da música, um uso não tirano, um uso
revelador da presença
do artista enquanto
mais um ser humano,
que está diante de seu
público como parte
dele. Para além da
relação artista/público,
existe a relação
gente/gente. E isso se
pode dar, mesmo que
os recursos musicais
continuem
desconhecidos do público. Há muitas maneiras de fazê-lo, já sendo praticadas, e
creio que se podem inventar infinitas outras. No teatro de grupo que se pratica
na cidade de São Paulo, claramente existem ótimas pesquisas neste sentido.
Tenho feito parte dessas buscas, com vários grupos, e muito me orgulha a
parceria com a Brava Companhia.
Realizando treinamentos musicais e, depois, a direção musical da
montagem de “Corínthians, meu amor”, junto a este coletivo, todas as utilizações
da música primam pelo cuidado em revelar, não em esconder, os conceitos que
nos orientam. O uso de uma canção enquanto símbolo (um samba que carrega
um valor histórico), de um “estilo” enquanto símbolo (o próprio samba, o tecno
brega etc.), a parada épica e não dramática, quando a presença do conceito é
mais clara; a ambientação sonora sem subterfúgios, realizada de modo revelado,
não enganador; o canto, na sua função social, anterior às funções da indústria
cultural, e o coro de vozes.
Chamo coro de vozes apenas para fazer salientar a peculiaridade musical
deste coro, pois a Brava Companhia é um grupo extremamente forte exatamente
enquanto coro cênico, de modo que a pesquisa do significado e da eficácia do
coro de vozes, para além da competência técnica estritamente musical/vocal, se
apresenta como uma extensão consistente e coerente do trabalho cênico deste
grupo, promovendo o encontro efetivo das pesquisas de linguagem cênica e
musical. É de suma importância que, ao invés de a pesquisa musical se
apresentar ao grupo como uma proposta vinda de fora, meu trabalho consiste
muito mais em ajudá-lo a avançar também nesta direção, como vontade do
próprio grupo.
129
Está se desenhando o que venho chamando de “bravas melodias”. Desde
sempre, a Brava Companhia vem realizando incursões pela música, inclusive
compondo melodias que correspondam às intenções do coro cênico potente que
ela é. Através de um trabalho de conscientização da linguagem musical e seu
uso, paralelamente ao treino musical, o grupo se apropriou muito mais das
possibilidades musicais e criou este encontro das duas pesquisas, a do teatro e o
da música. O repertório que se vem criando tem um traço estético coerente com
as intenções cênicas do grupo, de modo que as bravas melodias são um objeto
estético real. Continuamos na busca: um teatro e uma música que, ao invés de
cegar, de fechar o olhar num objeto celebrado, funcione como um convite/
estímulo a que se abra o olho.
Profº Luís Galeão: Eu queria agradecer a todos por estarem aqui, pelo convite
que vocês fizeram. Acho que vale a pena dizer como eu cheguei até aqui. Um
lugar tão próximo de outros lugares onde eu trabalho também. Sou psicólogo
social, trabalho com o enfoque chamado Teoria Crítica da Sociedade. E trabalho
também com Psicologia Social Comunitária. Isso tem feito com que eu tenha
vindo muitas vezes aqui na zona sul. No CEDEP, no Fórum em Defesa da Vida, lá
na Sociedade Santos Mártires, lá com o Padre Jaime. E é muito interessante que
eu tenha vindo aqui por outro circuito, que foi a partir do Gustavo, que fez uma
disciplina minha no semestre passado. Que também foi um momento interes-
sante porque era a primeira vez que eu estava oferecendo essa disciplina, que é
a Teoria Crítica e Psicologia Social. E inclui nessa discussão da Teoria Crítica, a
questão da arte e a questão da cultura como sendo um fator importante. Isso é
importante pra mim porque eu não faço uma cisão entre esses dois campos.
Entre a psicologia social comunitária e a arte. Eu acho que é justamente o con-
trário. A arte é uma das formas de enfrentar a dominação social, e me parece
absolutamente fundamental que para discutir as questões das comunidades a
gente inclua a arte nessa discussão. Caso contrário você estaria dizendo que sua
130
aproximação com a comunidade vai ficar pautada apenas nas condições materi-
ais e em geral essas condições materiais remetem a necessidades materiais. Me
parece que o fundamental é que se faça uma relação com a comunidade que se
estabeleça para além das necessidades e percebendo tanto as potencialidades
como as formas de pensamento e de competência que surgem nessas comuni-
dades. Acho que isso de uma forma geral é verdadeiro e no caso da arte é mais
verdadeiro ainda. Então nesse sentido, a demanda para mim, que veio pelo Gus-
tavo, é que eu falasse da Teoria Crítica do uso da imagem da realidade social
pelos meios de comunicação de massa. Então eu vou falar um pouco sobre o que
é Teoria Crítica, depois eu vou apresentar um pouco conceitos que são impor-
tantes para entender uma certa concepção de estética que é singular dentro da
Teoria Crítica.
E depois queria apresentar uma situação de análise que me parece interessante,
porque exatamente é a utilização da imagem da realidade com conteúdo políti-
co. E imagino que é ao contrário do que vocês fazem, que é a utilização ideológi-
ca dessa imagem. Então vou querer comentar aqui com vocês a forma como
certos programas de notícias apresentam imagens e reportagens de uma deter-
minada realidade para, a partir dali, criar todo um discurso ideológico que, no
geral, estigmatiza a população pobre, cria uma dicotomia “amigo contra inimi-
go”. Quer dizer: ou você é a favor de medidas de força ou você é favorável a ban-
didos. Quer dizer: não há meio termo. E esse é o caso que eu queria discutir um
pouco com vocês e que me parece que é o oposto do que vocês estão pretenden-
do. Então talvez eu ajude alguma coisa nesse processo de pensamento que vocês
estão fazendo. Vamos começar? Por que teoria crítica da sociedade? Então, a
Teoria Crítica da Sociedade tem um ponto fundamental em Marx, a partir do
momento em que Marx propõe que você tenha uma crítica histórica sobre a
sociedade de classes. E essa crítica histórica da sociedade de classes aponta pra
uma outra sociedade possível. Uma outra sociedade que pode ser a superação
dessa sociedade clássica. Então a partir daí, quando a gente fala em crítica, não é
apenas tecer comentários a respeito de algum objeto, alguma situação, mas é
apontar o que nessa situação mantém a dominação. Isso é fundamental pra en-
tender que não é qualquer crítica que a gente tá falando. Você pode ter uma
crítica no campo cultural, que é uma espécie de resenha, uma espécie de avalia-
ção daquele produto cultural e que funciona exatamente para acabar com aquilo
que seria inovador desse produto cultural, na medida em que conta a história,
diz se “é bom ou se é ruim” e as pessoas vão pra lá com uma certa garantia de
um produto que vão adquirir. Ou seja: aquelas críticas culturais que você vê em
sites, em revistas, em jornal, etc. Eu acho interessante distinguir isso de cara.
Porque quando a gente fala de teoria crítica da sociedade, a gente tá pensando
na crítica da dominação. Então é uma crítica desta sociedade por aquilo que ela
mantém de aspectos da dominação, tá certo? Isso vai se reverter também para
nosso entendimento sobre arte. Então o primeiro ponto é entender sobre isso.
131
Um segundo aspecto da teoria crítica que é importante, é o aspecto histórico.
Entender que a gente não vai fazer uma crítica a história... Vamos fazer uma
crítica dentro de um determinado momento, a partir das condições de domina-
ção daquele momento. Isso quer dizer mais ou menos o seguinte: se você tem
uma situação de opressão, você não pode considerar que aquela situação de
opressão é natural, como às vezes as pessoas são levadas a crer. “Ah, têm ricos e
pobres porque sempre houve ricos e pobres”. Isso é uma naturalização. Isso é
uma historicização dessa situação de dominação. Então, exatamente para fazer
uma crítica disso, você tem que fazer uma crítica a partir da história. E essa his-
tória não pode ser compreendida pela história...
Como posso dizer? Pela história tradicional. Porque um dos autores da teoria
crítica, que para mim é fundamental, que é o Walter Benjamin, ele observa que a
história tradicional é a história dos vencedores. Que a única história que poderia
- a história como ciência... A única ciência histórica que poderia criticar essa
nossa realidade, seria a história dos vencidos. Só a história dos vencidos! Porque
a história é uma coleção de derrotas. É uma coleção de eventos da barbárie que
vão se sucedendo e que em alguns momentos tem situações revolucionárias,
situações de transformação, mas que até hoje tiveram pouca possibilidade de se
manter. Porque esse momento que é de possibilidade de interromper o processo
de destruição que a história faz é um momento de felicidade. É uma coisa que eu
até estava lendo aqui. Vocês estavam falando da possibilidade de que a revolu-
ção fosse uma festa, não é? Que a revolução fosse algo transformador. Isso é
muito próximo da ideia de Benjamin. Da ideia da história e da revolução sendo
um momento de ruptura dessa história como sucessão de tragédias, sucessão de
barbáries. A história pra gente, não é uma história dos fatos, mas dos conflitos
sociais que ocorrem em cada momento histórico. Isso vai ser importante porque
Marx escreveu tudo isso, Marx nos ajuda a pensar essas questões, e o século XX
apresentou vários dilemas em relação à teoria marxista. E aí surge o autor que
eu queria trabalhar com vocês aqui, que é o Theodor Adorno. Por quê? Porque
de certa forma o Marx observava naquele seu momento histórico, ou seja, du-
rante o capitalismo industrial da Inglaterra, que quem poderia mudar a socieda-
de, seriam os proletários. Porque os proletários estariam sendo sujeitos de uma
dominação tão brutal que transformariam essa sociedade por conta de viverem,
eles mesmos, na carne, essa opressão da sociedade de classe. Vários problemas
surgem no início do século XX, mas eu vou pegar um em particular que é o fas-
cismo. Uma parte dos proletários adere a regimes não revolucionários, regimes
fortemente conservadores e preconceituosos. Então, nesse sentido, a tentativa
de transformação que a sociedade poderia viver a partir dos proletários é toma-
da por um regime fascista que direciona o ódio do proletário (a aquela situação
de opressão) para alguém: ao judeu, ao negro, ao cigano, ou seja, ao “de fora”,
como o nordestino que vem pra cá. Quer dizer, é uma espécie de engenharia
social que o fascismo produz que permite que esse sentimento de insatisfação
132
com o regime capitalista, seja canalizado para manter o próprio regime capita-
lista. A partir daí, nós ficamos meio órfãos de alguém que fosse sujeito dessa
história, que fosse transformador dessa história. Porque se uma parte do prole-
tariado adere aos regimes fascistas, nós temos graves problemas. É de imaginar
que essa sociedade seria automaticamente o sujeito da história que poderia
fazer essa transformação, então a Teoria Crítica parte atrás de elementos para
romper isso. Elementos para romper essa situação em que, por um lado o prole-
tariado assume posições conservadoras e por outro as tentativas de revolução
caem em um certo burocratismo.
Estou falando do regime soviético, depois de um momento libertário no início
do século XX. Depois de um certo momento libertário caem num burocratismo,
caem numa situação de opressão das pessoas pela máquina estatal. Então, há
um momento revolucionário. Importante. De criação, de transformação, mas
mesmo nas artes você tem uma involução nisso. Você começa a ter, por exemplo,
um controle das artes pelo aparelho burocrático. Você começa a ter uma utiliza-
ção da arte como propaganda. Você pega a arte russa, por exemplo, pega um
determinado momento pós-revolucionário. É um momento de criatividade, de
transformação, mas nesse momento de transformação, os transformadores, os
criadores daquele momento, em especial nas artes, vão sendo reprimidos depois
por um sistema que vai se tornando paranoico. Que vê qualquer questionamen-
to como questionamento a revolução. Justificando qualquer questionamento a
aqueles que estavam no governo como um questionamento a própria revolução.
Então num certo sentido, a gente está partindo de uma perspectiva marxista e
um pouco pós-marxista, de transformação do marxismo, de pensar novas for-
mas de enfrentamento desses dilemas. Como enfrentar a dominação? Nesse
sentido a arte entra como fator importante, como sendo uma possibilidade de
enfrentar à dominação. Pra isso, num certo sentido precisa ser superada a ideia
de que a arte está separada desses conflitos sociais. A ideia é exatamente que a
arte está próxima a esses conflitos sociais. A arte é parte de uma produção ma-
terial de uma determinada sociedade. Por isso tem que se afastar um pouco de
uma interpretação mecânica de Marx, que falava, por exemplo, que a revolução
só poderia se dar pelas relações econômicas e que tudo que não fossem relações
econômicas, seria da esfera da superestrutura e viria a reboque de certas trans-
formações econômicas. Isso tem que ser revisto. Em relação à arte, vamos come-
çar a pensá-la como uma produção material. Então aí, talvez o primeiro ponto
para pensar isso, seja a ideia de Indústria Cultural. Então aí já estamos entrando
nos conceitos que vão ser importantes para nossa conversa aqui. A ideia da In-
dústria Cultural é a utilização da arte como mercadoria. A arte, a cultura passa a
ser uma mercadoria. E passa a ser produzida como uma mercadoria. E isso tem
alguns sentidos interessantes pra gente. Se antes, por exemplo, no século XIX,
você poderia dizer que um determinado romance é fruto da sensibilidade de um
escritor, se você olhar um romance hoje, ele certamente não é fruto da sensibili-
133
dade de um escritor. Mas ele é fruto de uma série de mediações, uma série de
assessores, de transformações que a indústria vai fomentar. Você pega um livro
como, por exemplo, o Harry Potter. O que é o Harry Potter? O Harry Potter é um
produto dessa Indústria Cultural: um livro. Ou seja, ele tem todo o processo de
uma indústria pra chegar naquele material. Então se a gente comparar a confec-
ção de um móvel antes do capitalismo, antes da indústria, artesanalmente. Você
vai lá, faz, transforma, tem uma relação com aquele produto, etc. Com a produ-
ção industrial você transforma toda a produção desse produto. Deixa de ter a
proximidade do ser humano com a coisa. E passa a coisa a ter vida. A coisifica-
ção.
Que é uma das observações que Marx faz a respeito da mercadoria. Então nesse
processo que o Marx descreveu, a vida passa das pessoas para as coisas. Quem
passa a ter vida são coisas e não as pessoas. Por isso a coisificação. O vivo se
transforma em coisa. E a coisa passa a ter vida como mercadoria. O que talvez
seja o primeiro ponto importante do Adorno e do Horkheimer em relação à
cultura, que a gente podia destacar aqui, é essa percepção de que a cultura passa
a também seguir os ditames da indústria. E não apenas no sentido da sua produ-
ção ser fracionada. Um escreve uma coisa, outro revisa, outro lança, outro faz o
trabalho de pôr na mídia, vai ter o escritor, mas esse escritor vai ter um assessor
de imagem... Então vai ter todo um aparato em relação a isso. Você pode pegar
um produto em si da indústria cultural que é o cinema, que é propriamente isso:
todo um aparato industrial para se fazer. Mas a questão não é só o aparato in-
dustrial, mas é que a cultura se transforma em mercadoria. Não é só o fraciona-
mento, mas é essa reificação de quem faz o produto e que passa, ele também, a
se transformar em mercadoria. Então a Indústria Cultural é, digamos, um ponto
importante dessa crítica da própria cultura, como parte de um processo social,
parte de uma estrutura da sociedade.
Na sequência, como já tinha dito, a ideia de crítica que o Adorno vai desenvolver,
vai trazer algumas características interessantes pra gente conversar. A primeira
é essa: de que a cultura não está separada das relações materiais, a cultura está
dentro das relações materiais e pode ser inclusive utilizada para manter a do-
minação, que é o caso da Indústria Cultural. Então você chega cansado em casa
liga a televisão e a televisão vai fornecer produtos para que você não reflita.
Para que você fique ali diante daquela não reflexão. O que é interessante é que
nessa característica de crítica que o Adorno desenvolve é muito importante a
ideia de forma. Não apenas a ideia de conteúdo. Vamos pegar o exemplo da In-
dústria Cultural. Ele não está criticando apenas o conteúdo dos filmes. Quando
ele fala em crítica da Indústria Cultural, ele não está criticando apenas o conteú-
do das músicas, quando ele fala em Indústria Cultural ele está criticando a forma
como elas são produzidas e a forma como elas se apresentam. Isso me parece
interessante para essa nossa discussão aqui. Por quê? Porque muitas vezes a
gente faz a crítica do conteúdo, esse conteúdo é bom, esse conteúdo é isso, é
134
aquilo... Mas muitas vezes não damos conta de que a forma como aquilo é apre-
sentado, já é parte dessa repetição de produtos de dominação. Então você pode
ter, por exemplo, uma série de músicas - e o Adorno era músico, então ele come-
çou trabalhando com essa questão da música - que em essência são iguais, mas
que pra você vender, você acrescenta pequenos elementos para que pareçam
diferentes, nesse sentido as letras se tornam algo fundamental porque você
pode ter a mesma estrutura melódica, de composição, você troca a letra e vende
como outro produto.
E a própria forma da música já é empobrecida, no sentido de não exigir da audi-
ção uma grande atenção, de não levar a uma certa reflexão da própria audição.
Então percebam que essa crítica da cultura que Adorno propõe, dentro da Teo-
ria Crítica, não é apenas a crítica de conteúdo, mas é também uma crítica da
forma como aquilo se apresenta. Tá certo? Isso eu acho uma coisa interessante
da gente trabalhar aqui. Porque a grande questão é que a cultura pode ter um
papel nessa sociedade revolucionária, se ela for uma cultura que resista a adap-
tação à sociedade em que a gente vive. Um outro teórico da Teoria Crítica, cha-
mado Marcuse, é fundamental porque ele apresenta o problema do caráter afir-
mativo da cultura. Ele diz: a cultura só pode ser transformadora se ela for ques-
tionadora. E ser questionadora não é apenas em seu conteúdo, mas é também na
sua forma. Também na sua apresentação. Nesse sentido, autores que talvez não
sejam tão engajados, não sejam tão explicitamente politizados, podem sim re-
presentar uma transformação na medida em que eles apresentem transforma-
ção na forma. Na medida em que eles permitam na forma de sua obra de arte
questionar a acomodação, a adaptação a essa sociedade burguesa. Um exemplo
de análise do Adorno, em relação a isso, é uma análise em relação ao Beckett.
Samuel Beckett que é um autor fundamental de teatro e de textos, romances, etc.
Ele é comumente chamado de teatro do absurdo, porque usa clowns, situações
de nonsense, etc. Adorno vai olhar a forma desse teatro e vai dizer: “Olha só, esse
teatro mostra como a vida de todos não tem sentido”. O incômodo que nós sen-
timos na representação de “Esperando Godot”, por exemplo, que é a peça mais
conhecida dele no Brasil, é o incômodo de refletir sobre a nossa própria condi-
ção ordinária, comum nas nossas vidas. A espera de alguma coisa que nunca
vem. Os personagens absolutamente perdidos num espaço cenográfico em ruí-
nas. A história do nome é bastante interessante. Em ruínas, em abandono, com
árvore seca no meio, faz com que as pessoas se incomodem e possam refletir
sobre sua própria condição. Então nesse sentido, não é um teatro como do
Brecht, que é um teatro engajado, que apresenta a temática social, entretanto na
sua forma, na sua forma de apresentação, permite uma crítica dessa sociedade. E
esse é um elemento interessante da crítica do Adorno que se difere de outros
críticos, que vão apontar muito para a questão do conteúdo. O conteúdo deve
ser revolucionário, o conteúdo deve apontar para a transformação. Enquanto
que o Adorno até chega determinado momento e diz: calma! Talvez o conteúdo
135
aponte para a transformação, mas se a forma não apresenta essa transformação,
é adaptativo. É, quer dizer, você apresenta uma história aparentemente trans-
formadora, mas mantêm a passividade, você mantém o caráter de mercadoria
daquela obra, você mantém as formas essenciais de dominação que estão pre-
sentes ali. Então acho que esse é um elemento interessante de discussão e sei
que o Adorno se difere de muitos outros. Então tô sabendo aqui que para vários
outros analistas da cultura, a coisa tem outro panorama. Estou assumindo aqui
essa tarefa de apresentar para vocês o melhor que eu posso, essa perspectiva do
Adorno.
Essa questão inclusive tem uma polêmica famosa entre o Adorno e o Brecht, a
respeito das críticas que o Adorno faz ao didatismo do Brecht. Porque Brecht em
determinado momento pensa a questão da ruptura, daquela empatia do espec-
tador com aquela peça, aquela situação de mergulhar na peça, ele pensa isso, ele
tenta romper com isso, e ele traz elementos da luta de classes, da discussão da
luta de classes pro teatro. Ele é inovador nesse sentido. Agora o Adorno critica o
Brecht por um certo didatismo. Porque ele entende que mesmo com essas trans-
formações que o Brecht faz, ele ainda segue um certo modelo didático de apre-
sentar o problema da luta de classes para as pessoas. E pro Adorno isso não é
suficiente. Vocês vão ver que o Adorno é muito chato. Muito, muito, muito chato!
Porque ele pega cada coisinha. E aí tem um detalhe, um parêntese que eu acho
interessante, que ele só critica quem ele acha que vale a pena ser criticado. En-
tão tem vários autores sobre os quais o Adorno não fala, se quer cita. Esses, di-
gamos segundo ele, não merecem nem ser criticados. Nesse sentido, digamos,
um pouco ácido que ele tem, enfrentar o Brecht, discutir com Brecht, não é uma
perspectiva que às vezes nós brasileiros gostamos. Nossa tendência é tentar
sempre conciliar. Ele tem uma visão mais alemã nesse sentido, de brigar e brigar
lealmente, apresentando ideias e não de ficar “acochambrando” tudo. Já falei
sobre a Indústria Cultural, já falei da crítica que vai pensar tanto nas questões de
conteúdo como nas questões de forma. Já comentei com vocês que se deve to-
mar cuidado com o caráter afirmativo da cultura. E aí há um ponto interessante.
Porque Marcuse, que é um outro autor da Teoria Crítica, diz que a cultura tem
uma função transformadora na medida em que ela permite você romper com a
adaptação da comunidade. Então nesse sentido uma obra cultural que não tem
nada a ver com a sua vida pode ser crítica. Porque ela pode ser negativa. Na
linha de não ser uma representação imediata da realidade que você vive. Então
vou apresentar isso como um ponto que me parece interessante. Quando um
autor, quando um escritor, ou um autor de teatro escreve uma peça, e apresenta
algo da realidade, mas permite que as pessoas pensem sobre aquilo e até se
afastem da realidade em que elas vivem - é isso que o Marcuse chama de caráter
negativo da cultura. E na medida em que a cultura fica mais atrelada a uma re-
produção do vivido, menos ela pode ser crítica. Então vocês pegam, por exem-
plo, uma “Alice no país das maravilhas”. Aquele mundo fantástico, que para al-
136
guns críticos seria alienado, significa a possibilidade de, ao mesmo tempo, em
que você apresenta a situação do fantástico, do não vivido no cotidiano, você
apresenta todas as frustrações sexuais de uma menina, no auge da repressão
sexual feminina no século XIX - Alice. Que fantasia. Olha, no momento em que ela
fantasia, ela mostra algo que não é a realidade empírica dela, e mostra de uma
forma que permite que a gente veja que ela tem fantasias! Que ela não tá perfei-
tamente adaptada a aquela situação social. E por que isso passa a ser um pro-
blema? Porque a sociedade inteira, inclusive a cultura como Indústria Cultural,
passa a defender nossa adaptação. A nossa adaptação a uma sociedade injusta.
Então se você tá muito bravo, vai ver um filme de porrada! Você extravasa ali. Se
você tá querendo levar a menina, ou menino pra um namoro, uma coisa assim,
vai ver um filme romântico. O cardápio tá pronto. Exatamente! Claro! Desde que
tenha momentos em que o cinema, propositalmente, fica mais escuro. Não pense
que é ao acaso, já que é uma medida industrial, em que os tempos de percepção
são medidos. Nada dentro de um filme é ao acaso. Tudo, inclusive os momentos
mais escuros, onde dá pra dar aquele agarro, é calculado. Então a questão da
adaptação é uma crítica profunda que o Adorno faz. Ele vai criticar a adaptação a
essa sociedade de dominação. Por isso que ele vai olhar pro Beckett e vai dizer:
aqui tem um elemento crítico. Porque Beckett rompe com essa adaptação. E por
que isso vai ser importante pra gente aqui? Porque vocês pediram para eu falar
sobre a imagem da realidade. Como essas imagens da realidade são apreendi-
das, como isso pode ser alguma coisa, vocês até falam de contra-imagem. Ora,
mas vejam, se a realidade que nós temos é uma realidade de conflito social, por
que nós precisamos de outra imagem? Que não a imagem do conflito social? O
problema é que essa imagem do conflito social está muito mediada por aspectos
ideológicos. Olhando para essa realidade vemos a justificativa da própria domi-
nação. Mostrar a realidade não basta na nossa sociedade. Apenas mostrar a
realidade pode significar você reafirmá-la. Meramente mostrar, pode reafirmar
essa realidade de dominação, e não fazer o contrário. Uma passada de olhos
pelas prisões de São Paulo, na violência, na barbárie de muitas situações prisio-
nais no Estado de São Paulo, pode servir, dependendo da forma como aquilo é
apresentado, para justificar a opressão sobre aqueles presos. Então não basta
apenas a realidade. Até porque vivemos numa realidade que nos afronta todo
dia com a impossibilidade de mudar. Todo dia a realidade que vivemos nos diz
que não há utopia, não há transformação, não existe possibilidade de outro ca-
minho que não seja esse próprio do consumo, da vida numa sociedade cada vez
mais desigual. Ou seja, a adaptação não é um problema, nessa teoria que estou
apresentando pra vocês. Não é que há um problema em geral com a adaptação a
esta sociedade. Você pode mostrar a realidade social sendo adaptativo. E aí vem
o último conceito. Eu prometo que falo e depois dou exemplo. É a questão da
cópia. A questão da mimese – palavra complicada para dizer cópia. O ponto que
eu cheguei sobre a mimese foi o estudo de um texto em Horkheimer e Adorno
137
descreviam que os fascistas, especialmente os nazistas, imitavam características
dos judeus nos seus discursos. Então vamos pensar: no regime nazista, na Ale-
manha de 1933 até 1945, se instaurou um regime que, contando com a partici-
pação popular - lembrem que eu falei sobre o problema do proletário aderir -
um regime usou, pela primeira vez, uma série de técnicas de comunicação que
hoje são banais na nossa vida. Marketing político, utilização do cinema como
forma política de dominação, discurso de massas, etc.
Nessa situação chamou a atenção de Adorno e Horkheimer (e eles escrevem um
livro a quatro mãos sobre esse período) que alguns fascistas, que estavam fa-
zendo propaganda nazista, imitavam jocosamente o judeu. Imitando a fala do
judeu, imitando as características, que eles entendiam um tanto animalescas, do
judeu. Para que? Para desumanizar o judeu. Porque se não é humano, eu posso
matar. Então a história dos 111 mortos do Carandiru é bastante emblemática da
nossa forma, na nossa sociedade, de desumanizar pessoas para então acharmos
normal que elas sejam mortas. Meninos de rua, pessoas que fumam crack, todo
esse entorno em que a gente vive, em que há uma desumanização. Mas o que
chama a atenção é a imitação. Mais ou menos como na nossa sociedade, tão ma-
chista, onde temos situações em que se imita homossexuais. Essa imitação do
homossexual talvez seja o paralelo mais interessante aqui. Então vejam: por que
isso é interessante? Porque uma das primeiras concepções de arte, é que arte é
cópia. Lá em Platão, Aristóteles, já está a concepção de que arte é cópia, certo? E
cópia da realidade. Um período em que o poema falava sobre as belezas da natu-
reza. É nesse sentido que vem a ideia de cópia. Platão critica isso. É curioso co-
mo Platão tem uma ideia a respeito da arte, de que a arte precisa ser censurada.
Aliás, Platão deveria ser colocado como um autor que traz muitas ideias para o
próprio autoritarismo, porque ele diz que a arte precisa ser censurada, ele diz
que os políticos são complicados porque eles são demagogos, que a gente deve
ter filósofos no poder, etc. Bem, Platão então critica a arte porque a arte é cópia.
Aristóteles, logo na sequência de Platão, reabilitada a arte. Ele reabilita a cópia,
como uma possibilidade de criação. Como não apenas uma representação falha
da realidade. Então vamos lá: para Platão um poema sobre a natureza é uma
imitação falha da natureza. Para Aristóteles não é. Para Aristóteles arte é uma
transformação. É algo que não é a natureza, mas tem uma semelhança com a
natureza. Ok? Isso é fundamental. Por que? Porque Horkheimer e Adorno vão
observar que a cópia animalesca do judeu nas suas representações eram a cópia
de um estereótipo. Não uma cópia da sua realidade. Então eles criam a ideia da
cópia da cópia. Mimese da mimese. E me parece que isso vai ser interessante
pra pensar aqui a respeito do uso da imagem como vocês propõem. Por quê? O
que eles dizem? Eles dizem que o fascista, ou em nossa sociedade o homofóbico,
que faz piada sobre judeus, piada sobre homossexuais, não copia o que é a situa-
ção do judeu ou a situação do homossexual. Ele copia já uma coisa projetada.
Então é como se você tivesse dois espelhos. Então eu copio o espelho. Mas eu
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não copio a realidade, que estaria refletida nesse espelho. Eu copio um outro
espelho. Esse outro espelho já ideológico, já adaptado, já submetido à domina-
ção. E isso eles vão chamar de mimese da mimese. Cópia da cópia. Então, se eu
tirar uma foto de uma garrafa, a minha expressão seria uma reflexão de uma
garrafa, mas não apenas a reflexão da garrafa. Também haveria um elemento de
criatividade nisso.
Mas e se eu disser que essa garrafa já é um produto meu. Já é um produto hu-
mano. Ou seja, ela não é natural. Ela já é algo que reflete certo conteúdo ideoló-
gico. Na medida em que ela é de plástico. Ela é água engarrafada, ela é um desas-
tre para o meio ambiente e eu uso pra caramba! Estou só dizendo que a gente
tem que fazer a crítica interna das coisas que a gente usa. Ela é um desastre para
o meio ambiente e é vendida como natural. Não é interessante? Ela é vendida
como natureza! Tem até um anúncio que eu vi outro dia na televisão - eu vejo
televisão às vezes - que dizia assim: “natureza engarrafada”. Aí vinha uma moça
bonitinha, toda loira do lado de uma cachoeira tampava um vidro, e o vidro se
transformava numa daquelas coisas de spray que você borrifa pra ter cheiro nos
lugares. Olha que coisa interessante. É uma mimese da mimese. Está claro o que
eu estou dizendo? É a cópia de alguma coisa que já é copiada. Ela já é um produ-
to dessa sociedade de dominação. E aí já vai o meu exemplo: se você mostra a
realidade, não necessariamente você tem uma visão crítica. Porque eu posso
mostrar a realidade de uma forma adaptativa. De uma forma que reitere os pre-
conceitos a respeito daquela pessoa que eu tô mostrando e sem questionar isso.
Certo? Então, o exemplo dos programas policias, na verdade, foi o que me levou
a prestar atenção nisso. Porque sempre me chamou atenção que na televisão a
pessoa, o comunicador, fale contra o crime, mas, ao mesmo tempo, defendendo o
crime. Porque ele diz para matar! Então toda aquela sanha moralista, de dizer
assim: mata! tinha que acabar! Esse quando chegar na cadeia vai morrer! Tem
que dar porrada! Todo esse mise em scéne desse programa de televisão chama a
atenção. Chamou-me a atenção porque, no geral, tem a reportagem em que eles
apresentam uma determinada situação. E em geral já apresentam pessoas com
algemas, algumas com nítidos sinais de espancamento e tal. E no lugar de ser
uma defesa da lei, isso é uma defesa do crime. No sentido de que eles passam a
imagem de que ali não estão seres humanos. Uma coisa é você ter cometido um
crime, outra coisa é você deixar de ser humano. Você deixar de ser humano é um
passo para o extermínio. Então, para aquele que comete um crime faz parte do
sistema, faz parte da vida em sociedade, que haja punição, que haja um processo
legal a respeito daquela pessoa. Respeitada aquela pessoa como ser humano. Ela
continua sendo um ser humano. Tanto é que após cumprir a pena por aquele
crime ela é libertada. Então você tem todo esse processo. Agora, se eu digo que
ela não é humana, se eu digo “direitos humanos só para humanos direitos”, co-
mo vários deles dizem, é evidente que há uma defesa do crime. Porque eu tô
dizendo que só alguns têm direitos, enquanto outros não têm. Ora, se os direitos
139
são universais, ou seja, existem para que sejam compartilhados por todos - in-
clusive o da liberdade – por que eu posso prender alguém?
Pode-se prender alguém porque há um processo jurídico - leis que estabelece-
ram determinadas regras de convivência que, a partir daí, caso a pessoa quebre
tais regras pode significar uma restrição a sua liberdade. Mas o princípio da
liberdade continua valendo para aquela pessoa, tanto é que após ela cumprir
uma pena, ela está livre. É diferente, por exemplo, de um escravo, que no regime
escravocrata do Brasil ou dos EUA, era preso, era açoitado. Porque ele não tinha
liberdade para voltar a ter liberdade. Está claro isso que eu estou dizendo? Não
há liberdade, enquanto não há liberdade pra todos. Não quer dizer que todos
tenham que estar livres a todos os momentos. É possível que nós tenhamos aqui
uma conversa, que a sociedade tenha uma conversa que defina: matar alguém
significa um evento tão grave que o acusado precise ser preso. Ora, então no
exemplo que eu quero dar para vocês existe um reflexo. A televisão já é um re-
flexo. A televisão já apresenta uma imagem refletida. Mas uma imagem refletida
distorcida dessa realidade. E no aspecto formal aquele narrador, aquela pessoa,
fica pulando e fazendo gestos que têm todo um sentido fascista. De comunicação
fascista. De externar ideias de que só uma medida forte, só um governo forte, só
alguém que prende, arrebente, é que vai resolver essa situação. Então você tem
formalmente essa figura de um animador que, em geral, fica sendo focado na
primeira pessoa. Mas procurando o tempo todo estabelecer uma identificação
com o telespectador. De tal forma o espectador acha que está a favor dele. Isso
vai criando uma identificação com uma série de ideias que tem matriz fascista.
Quais são? Defesa da autoridade a qualquer preço, ou seja, não as leis, mas a
autoridade. A transformação de seres humanos em seres não humanos. O ques-
tionamento de autoridade constituída se ela não apresentar exatamente esse
comportamento. Então eu posso também questionar a autoridade. Mas eu ques-
tiono a autoridade não porque que ela não esteja respeitando a lei, mas porque
ela está sendo fraca, omissa. E aí você tem a cobertura televisiva lá das invasões
no Rio de Janeiro. Que me parece que reproduz todas essas características. En-
tão é mais ou menos evidente que o Sérgio Cabral não era o candidato da Globo.
O Gabeira era o candidato da Globo no Rio de Janeiro. E de repente, a política de
segurança de Sérgio Cabral no momento em que ele pôs tanque pra invadir fave-
la, virou alvo de elogios. Não pelas UPPs -Unidades de Política Pacificadora - mas
por ter colocado tanque, por ter invadido. Por ter mostrado autoridade. O Luis
Eduardo Soares, que é um cara que eu gosto bastante, que faz uma análise da
segurança pública, e em geral sobre a segurança do Rio de Janeiro, diz o seguin-
te: que você só vai ter uma mudança na sociedade do Rio de Janeiro, quando a
polícia deixar de ser sócia do crime. Quando a polícia deixar de ser sócia do cri-
me?!
Isso me parece bastante interessante. Porque mostra que a realidade social, não
é uma realidade em que há polícia de um lado e bandidos do outro, mas há uma
140
grande mistura entre esses dois campos. Agora o que esses programas policiais
da televisão fazem? Eles dizem: não, o bandido é o inimigo que deve ser exter-
minado, e o policial é o bom. Mas não qualquer policial. Aquele que mata. Aque-
le que agride. O policial que respeita os direitos é olhado com certa resistência
por esses programas. E ainda por último nessa questão da forma. Essa gritaria e
esse histrionismo que eles fazem é para manter a audiência. Por conta das pes-
soas terem o controle remoto e poderem trocar de canal, ficar “espirrando san-
gue” é algo necessário para manter a audiência. Para manter essa forma. Então,
tem uma forma mercadoria ali sendo vendida. Tem anúncios e tudo mais. Então
ele não pode deslocar uma coisa da outra. As pessoas querem ser assim? Não!
Não é por que querem ser assim. É porque isso dá audiência. Isso mantém as
pessoas nesse processo. E aí você diz: “se mantém, então está justificado”. Lem-
bra que eu falei que a realidade empírica pode ser altamente adaptativa? Então
a audiência justifica esses programas? Num discurso que a gente tem hoje, justi-
fica! Então se as pessoas querem ver, deixa passar. Mas isto é falso. Na medida
em que isso é uma reiteração de aspectos ideológicos. Não é porque as pessoas
querem ver, mas é o que passa. E é o que as pessoas são adestradas para ver.
Porque nós também somos adestrados. Todos nós, ou grande parte, estamos
perfeitamente adestrados a essa sociedade. Então fica como ideia central, a ideia
de que a arte pode ser uma reprodução dessa sociedade injusta. Nem mesmo
uma arte que fale de temas sociais está a salvo de ser a repetição das relações de
dominação. Esse é um debate, e acho que é também uma provocação. Porque eu
sei que vocês trabalham com temas sociais. Imagino que essa é uma discussão
que vocês fazem, mas achei interessante problematizar isso, na medida mesmo
de tentar colaborar com a formulação de vocês a respeito dessa realidade social.
Que é uma realidade que não se divide entre “amigos e inimigos”, meramente.
Onde a forma de uma obra de arte pode ser tão conservadora, repetindo a estru-
tura de dominação, mesmo com um conteúdo questionador. E era isso que eu
tinha para começar. Obrigado.
Fábio Resende (Brava Companhia): Eu não sou teórico. Digo isso por não ter
um estudo mais aprofundando no campo da teoria, das palavras. Duas coisas
que eu queria perguntar: primeiro, esse campo da mimesis, para mim é um
campo complexo de se tratar. Por quê? Porque infelizmente eu não sei grego,
mas me parece que o que o Aristóteles escreveu, não foi “vamos imitar a vida”.
Mas, “vamos imitar a vida em relação social”. É isso que ele escreve! E isso tem
uma diferença muito grande. O que a escola de teatro faz? “A tragédia é a imita-
ção dos homens bons, dos homens melhores”. E a comédia? “A comédia é a imi-
tação dos homens piores. ” É assim que a escola de teatro ensina. Essa é a pri-
meira coisa que eu queria falar. Porque o fato de falar de relação social, é outra
coisa. E aí eu vou pegar o gancho para falar dessa imitação de agora. Eu acho que
boa parte das coisas que você falou a gente concorda aqui. É a nossa atual gran-
141
de discussão. Queria fazer uma análise para ver como você nos ajuda a resolver
esse problema. A gente talvez encare o nosso fazer teatral como disputa do
campo simbólico. Ou seja, uma disputa contra a mercadoria que produz essa
série de imagens que você falou. Então, quando a gente vai falar hoje, nós acredi-
tamos estarmos numa sociedade dividida em classes. E ela tem uma série de
contradições e precisa ser superada. E a gente, às vezes, tenta ir no limite dessas
contradições relacionadas ao tempo, relacionadas ao campo de trabalho, relaci-
onadas à sensibilidade entre seres humanos que parece ter deixado de existir
para se tornar coisa.
E aí nós temos o governo Lula, que é o maior neoliberal dos últimos tempos. É
um cara que tem tudo para fazer o neoliberalismo dar certo porque, além de
tudo, o filho da puta é simpático. E estou falando isso até por conversas que nós
temos com outros grupos, e não vou citar o nome do Moreira, se não ele briga....
Ah, já citei! Mas a gente conversa. E estamos fazendo as nossas peças, colocando
a sociedade não como reprodução do que ela é, mas sim colocando em cena as
contradições da sociedade hoje. Mas no governo Lula, o cara que não conseguia
comer, come; o mendigo que vestia trapo, tem tênis Nike; o cara que não tinha
casa, entra no “Minha casa, minha dívida” e consegue comprar a casa. Experiên-
cias que a gente vive. Por exemplo, lá no Grajaú, eu passei nove anos trabalhan-
do e vi a capacidade de consumo das pessoas aumentar. Mas estamos nesse
limite aqui! Vou apresentar a contradição: o nosso medo é falar. Cara, será que a
gente vai ficar falando sozinho? Eu estou dizendo que tá chegando esse momen-
to da gente enfrentar isso. De a gente superar. Que limite da contradição a gente
vai conseguir enfrentar no campo da cultura? Entende a minha pergunta?
Profº Luis Galeão: Vou começar. Muito interessante e eu acho que é um grande
risco do Governo Lula: a integração pelo consumo. O que você tá dizendo é que
há essa integração pelo consumo. Nos meus trabalhos em relação à moradia, a
luta por moradia, condição de saneamento, eu não tenho dúvida de que o avanço
material de ter uma casa é melhor do que morar debaixo de uma ponte, é muito
melhor do que eu morar em cima do córrego. Não se tem a menor dúvida disso.
Posso até debater, porque tenho conhecido pessoas que dizem: “Ah, mas eu
tenho minhas relações aqui e tal. ” Ok. Eu acho que sua casa deve ser pensada
dentro dessas suas relações. Ou seja, eu também me posiciono contra conjuntos
habitacionais que são feitos burguesamente, cubículos planejados distantes da
população que está ali. O ideal seria um conjunto habitacional onde as pessoas
participassem da construção. E nesse sentido estariam enraizadas naquele con-
junto habitacional. Porque eu não tenho dúvida de que mesmo com o conjunto
habitacional, a sociedade vai continuar sendo de classes. Não tenho dúvida ne-
nhuma a respeito disso. Mesmo acabando a favela no Brasil - e eu espero que
acabe – e havendo uma condição de moradia digna para as pessoas. Que não
precisa ser o conjunto habitacional, diga-se de passagem. Em alguns casos pode
142
ser a própria urbanização da favela. Essa perspectiva tem que ficar clara: a soci-
edade de classes não vai acabar. Tá certo? Vai minorar algumas contradições,
mas a sociedade de classes não vai acabar.
Se for pra discutir hoje essa geração que está tendo um pouco mais de renda, um
pouco mais de consumo, tem que se discutir o consumismo. Tem que se discutir
a inserção nesse mundo de propaganda e de situações em que a pessoa vai con-
sumir o Danoninho, e não circular o dinheiro na sua própria comunidade. Vai
jogar o dinheiro prá fora, para uma indústria multinacional que fabrica aquele
negócio. Ou seja, há uma circulação de renda, mas uma circulação de renda que
não gira na própria comunidade. Eu discutiria a relação de solidariedade hoje na
favela. Outro dia a gente estava conversando.... Porque veja: quando eu vou pes-
quisar não chego lá e apenas entrevisto a pessoa. Eu vivo aquela realidade. Eu
estou junto nos movimentos sociais, etc. Depois que há uma mínima confiança, a
gente conversa. Mais do que uma entrevista. E várias pessoas já me contaram
como hoje, dentro da mesma favela, há uma diferença entre quem tem o tênis
Nike e quem não tem. Uma certa solidariedade de primeiros momentos, em
vários lugares, se transforma numa observação se você tem ou não aquele celu-
lar. Quer dizer, copiando a sociedade de consumo. Então concordo plenamente.
Eu me posiciono a esquerda do governo Lula, claramente! Acho que o Governo
Lula é um governo social democrata. Porque a gente é um país curioso. O parti-
do social democrata, não é um partido social democrata. O PSDB não é um parti-
do social democrata porque, por definição, o social democrata tem base social -
o que, evidentemente, o PSDB não tem. A não ser que você considere o bairro de
Pinheiros como base social: o Clube Pinheiros, Higienópolis - onde eu moro. Ter
base social é o que o Governo Lula tem: sindicatos e associações, todos presen-
tes nesse governo. Então, historicamente, é um governo de adaptação ao capita-
lismo. Então, toda essa crítica ao Lula se faz pela direita. Acho que tem que se
estruturar uma crítica a esquerda do Lula. Por quê? Porque tem contas muito
claras de orçamento público que mostram que o governo Lula transferiu mais
dinheiro para os ricos, do que para os pobres. O governo Lula não fez redistri-
buição de renda. A conta dos juros – o “Bolsa Juros” - foi muito maior do que o
Bolsa Família.
Jota Medrado: Em que nível deveria se dar essa crítica? Teria que ter sido dada
no voto? Ou deve-se dar agora?
Profº Luis Galeão: Eu acho que a gente tem que construir uma alternativa po-
pular ao Lula e ao sistema do PT. Porque você tem uma situação que é a seguin-
te: a forma normativa das eleições é feita de forma conservadora. É feita para
que você chegue em determinado momento do segundo turno e tenha que optar
por um ou outro. Você consolida.
143
A gente nunca mais vai conseguir eleger a Erundina. Porque a eleição da Erun-
dina foi uma eleição minoritária na cidade de São Paulo. Não sei se vocês se dão
conta disso. A eleição da Erundina foi minoritária. E, na minha avaliação, se ti-
vesse 2º turno a Erundina não ganhava. Porque ela não ganhou com a maioria
dos votos. Ela ganhou porque havia uma fragmentação da direita. Dois candida-
tos de direita na disputa e ganha a Erundina. Então, o segundo turno é um me-
canismo de consolidação. A questão de a política ser avaliada só na hora do voto,
acho que está equivocado. Política é isso que a gente tá fazendo aqui. Política são
os espetáculos de vocês. Ou os do Dolores que eu vi. Isso é política! Não acho que
seja política só a hora do voto. Por quê? Porque há uma redução da política. Você
tem que escolher um ou outro candidato. E eu não tenho vergonha, eu não votei
no Serra de jeito nenhum. Não tenho como votar no Serra. Tá certo? Mas não tô
feliz. Não tô contente nesse processo. Por isso que eu acho que a política é isso. E
acho que tem que se enfrentar esse debate.
Profº Luís Galeão: A primeira divisão que a gente tem que fazer é que: uma
coisa são os regimes políticos que se justificam em algum momento dizendo que
são marxistas, e outra coisa é o pensamento do Marx. Então é preciso fazer uma
distinção muito clara em relação a isso. Por quê? Porque esses regimes políticos
utilizam certo linguajar marxista como forma de dominação. E olha, se a essên-
cia da discussão do Marx é a crítica da sociedade existente pra superar a domi-
nação, eles não podem ser marxistas. Então, já de cara, estou criando um pro-
blema aqui pra vocês. A maioria
das pessoas vão olhar para aque-
les regimes e dizer: não. Eles não.
Eles são marxistas. Por quê?
Porque eles usam um palavrório,
uma série de palavras, da teoria
marxista.
Mas não me parece que eles re-
presentem essa teoria ou certos
elementos dessa teoria. Isso por-
que, por exemplo, eles não discu-
144
tem sobre a questão da dominação. A crítica à dominação me parece algo central
da teoria do Marx. E você não pode ter um regime democrático que é censura-
dor, que controla as artes para que as artes só falem bem dele. Então, de cara, já
faço essa distinção. A segunda coisa é evidente. Que é aquela coisa que eu estava
falando sobre as casas. Uma certa condição material é necessária, porque numa
situação de penúria é muito difícil que você faça alguma coisa que não seja lutar
pela sua própria sobrevivência. Então isso me parece algo fundamental. O que
me parece barbárie é, numa sociedade com abundância, você ter gente que não
tem o mínimo necessário para sobreviver. Esse é o problema. Porque essa crise
de 2008 provou por A+B, que só existe fome no mundo porque não há vontade
política de acabar com a fome. Porque o que eles torraram para salvar banco
acabava facilmente com a fome do mundo. Da maneira mais assistencialista
possível - pode ser - mas acabava. Não haveria mais fome no mundo, com o que
eles torraram para manter os bancos, para manter os sistemas econômicos. Eu
não tô dizendo que eles não deveriam ter feito isso, porque talvez os efeitos da
quebra desses bancos fossem ainda piores. Não sei. Não sou economista. Mas a
conta que eu faço, é a seguinte: o que eles gastaram pra salvar os bancos, por
uma decisão política, poderia facilmente salvar milhares de pessoas da fome.
Agora, salvar as pessoas da fome significa mudar a sociedade de classes? Eu
digo: não! Eu posso ter uma sociedade de classes onde não haja fome. O que só
torna a questão da fome ainda mais barbárie. Você pode ser reformista, fazer
certas transformações que evitem a fome. Que evite essa penúria que você tá
descrevendo. Isso me parece fundamental. Então não podemos pensar: só vou
esperar pela mudança que vier com a revolução. Não. Não pode haver fome.
Tem que haver condições de educação, condição de vida! E para todos. O siste-
ma capitalista consegue, em alguma medida, fazer um arremedo disso, mas não
muda a sociedade de classes porque vai continuar desconsiderando aqueles que
são a maioria da população e que estão embaixo na pirâmide social. Isso vai
continuar existindo. Por isso que eu tô dizendo que a sociedade de classes não
acaba. Quer dizer, eu posso ter certas condições de vida e continuar sendo
oprimido. Então você vê os chamados países desenvolvidos que exportam suas
misérias, exportam suas formas de expropriação mais selvagens para outros
países. Países como os da Europa que, em grande medida, não têm problemas de
habitação como nós temos. Mas a gente viu, há pouco tempo, revoltas nesses
países vindas de jovens que moravam nesses grandes conjuntos habitacionais
que existem por lá. Jovens que não têm futuro dentro dessa sociedade. Então, é
aí que está: uma certa condição material é importante para se fazer arte. Não há
dúvida sobre isso. Você precisa disso e não podemos desconsiderar essa ques-
tão.
Ao mesmo tempo, ter a condição material não significa condição de fazer arte.
Por quê? Porque nós já vivemos numa sociedade onde se entrega para as pesso-
as um produto cultural que as aliena. Na forma de teatro, algumas vezes, se for
145
um teatro caro. Na forma de televisão, na maioria das vezes porque é o principal
mecanismo. E, mais recentemente, com a internet, que também está reprodu-
zindo, fortemente, essa perspectiva, e ainda com o dado fundamental de que ela
mantém o controle sobre o sujeito. Porque ela tem lá o seu perfil. A internet é
um aparelho de controle bastante eficiente em relação ao interesse das pessoas.
Mesmo que existam produtos culturais na internet que sejam, mais ou menos,
críticos, sempre vai ser possível mapear quem é que entra nesses produtos. Eu
uso o e mail do Google e aparece lá uma propaganda que está relacionada ao
conteúdo das minhas mensagens. Então, como eu falo muito de favela, me man-
daram um link para um hotel em uma favela no Rio de Janeiro. Aí que eu saquei
isso: eles leram os meus e mails. Que absurdo! Como que isso apareceu aqui? Aí
eu perguntei para uns amigos: vocês receberam alguma coisa? E eles responde-
ram: não. Então, não era uma propaganda maciça. Eles tinham lido os meus e
mails, minhas discussões, e estavam fazendo isso. Então, num certo sentido,
como você está falando do controle, isso se liga a essa questão. Então, você tem
certos regimes que se dizem de esquerda e controlam absurdamente as pessoas.
O fato de nós vivermos num regime que não é de esquerda não quer dizer que
nós também não sejamos controlados. Somos, por outros mecanismos, como
estes que apresentam produtos para que a gente compre e se sinta feliz. Para
que a gente compre e se sinta, suficientemente, feliz para voltar a comprar. Mas
você também não pode ficar muito feliz. Então, essa porcaria aqui (pega o celu-
lar) tem que durar seis meses. (mostra os adesivos do celular) Ah, mostrei tudo!
Esses aqui são os adesivinhos que minha filha me fez comprar... Nossa! Isso tá
gravando! Tô ferrado... Bem, olha só. Esse é um bom exemplo de como isso é
transmitido na infância. Os personagens que povoam o mundo infantil são per-
sonagens de consumo. E são apresentados como personagens de consumo. En-
tão você tem que comprar o adesivinho, comprar isso, comprar aquilo, etc. En-
tão, sobre aquilo que eu estava falando em relação a audiência que justifica - nós
somos adestrados para isso. Então me parece que um ponto interessante, para a
gente não ficar falando sozinho, é pegar esse adestramento e pegar a falha desse
adestramento. Mostrar aquilo que não encaixa. Porque o adestramento é auto-
mático. Ele forma um pensamento automático a respeito das coisas. Ele forma
uma expectativa do que vai acontecer na sequência de uma peça. Na sequência
de um filme. Então se você inverte isso, se você mostra que aquilo era uma ex-
pectativa criada, que foi ensinada, e não é natural, talvez você crie um momento
de pensamento.
O que eu acho que é um exemplo disso - pelo menos foi a minha experiência -
acontece em relação a uma arte urbana que eu acho bastante interessante: que
é o grafite. Quando você tem imagens inusitadas de grafite em lugares inespera-
dos. Você está naquela coisa do urbano, olha e vê uma imagem inusitada, que
não era para estar ali. Então você tem um momento de pensar. De como você já
está esperando determinadas coisas, como você já está esperando determinadas
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situações. Então você tem regimes autoritários que controlam, que cerceiam,
que censuram. Mas você também tem mecanismos de controle muito eficientes
na nossa sociedade. Que fazem com que poucos sejam grupos de teatro como
vocês que são... Vamos pensar... “Alternativos”. Vocês vão ver muitos que que-
rem virar atores, muitos que querem entrar na Indústria Cultural. Como a gente
já vê no Brasil. Que é isso: formação de teatro, formação de atores, etc.
Guga Idelbrando (Teatro Documentário): Agora, até por conta dessa “pseu-
do” guerra cibernética que tem se apresentado com o Wikileaks, parece que uma
maneira de se pensar, de reagir contra a dominação seria a internet. Mas ao
mesmo tempo, o WWW é americano. E se cortarem o WWW: caos total sem
internet. O que você tava falando do “compre e volte a comprar”, não é apenas
uma propaganda simples e pequenininha que aparece lá no seu e-mail. Uma
coisa curiosa da Indústria Cultural é que ela apresenta características no seu
formato, que fazem com que o trabalhador que está completamente cansado,
completamente desprovido de recursos de questionar a realidade e seus meios
de condição de trabalho, as recebam como se fossem um carinho, uma possibili-
dade, uma identificação. Então, um exemplo na Indústria Cultura de como isso
acontece: o programa Mais Você. Não basta só ensinar culinária, falar sobre o
horóscopo e ter uma entrevista bacana. Quando você assiste, você está sendo
“mais você”! Você está chegando mais perto de você, de uma pessoa que está
perdida no mundo, mas que se encontra momentaneamente nesse estabelecido
local! Então a Indústria Cultural ataca também simbolicamente, subjetivamente.
E é um esquema completamente podre. Não só com a “música chiclete”, que eu
vou ficar ouvindo, tipo esse “Rebolation’, completamente vazio e alienado. Mas
também que maneira a pessoa tem de, subjetivamente, se sentir forte? Então, eu
não me sinto... Porque eu tenho que trabalhar 8 horas por dia, e porque eu ga-
nho um salário miserável. E eu tenho que comemorar em algum lugar. E eu vou
assistir esse “Mais Você”, porque eu não sou mais eu. E a televisão vai falar que
eu sou mais eu.
Profº Luís Galeão: Acho que tem uma coisa interessante nessa história. Primei-
ro você tem, de fato, um mecanismo de controle interessante na internet. A ideia
de que a internet é a liberdade me parece que peca pela questão da forma. Peca
pela ideia de que a forma permite um rastreamento, permite um controle daqui-
lo que você está vendo, além de um empobrecimento.
Outro dia uma amiga estava chamando a atenção sobre o fato de que você ao ler
um jornal em papel, você ao folhear esse jornal, vê diversas coisas. Até o que não
interessa. Quando você entra numa biblioteca pode, ao procurar um livro, en-
contrar outros livros que não eram o que você estava procurando. A internet
não faz isso. A internet direciona você a um determinado lugar. Ah, mas você
não se direciona? Ok. Mas você se direciona a aquilo que você se propôs a ler.
147
Então se você quer ver os quadrinhos - que eu acho que é a única coisa que vale
a pena nos jornais - você tem que virar as páginas, e talvez você encontre lá algo
sobre a fábrica do Ipod na china que tem alto índice de suicídios porque as pes-
soas recebem miseravelmente. E estão sendo brutalmente oprimidas no seu
trabalho na China. E aí você viu isso folheando para chegar lá nos quadrinhos. E
na internet você vai direto pros quadrinhos. Então também a relação da forma.
A forma da própria internet me parece interessante. Há vários links. Às vezes
você fica fazendo aquela coisa de ver várias coisas. Vai vendo uma, vai vendo
outra, e outra. Mas você acha que aqueles links estão à toa lá? Você acha que
aqueles links estão sendo mostrados à toa? Se você entra num site de busca,
você acha que não tem dinheiro para aqueles links aparecerem naquela ordem?
Uma amiga minha foi fazer publicidade de uma equipe de atendimento psicoló-
gico dela e ela descobriu que para aparecer no Google você paga. Você pode
pagar pro seu link aparecer primeiro. E aí você tem uma quantidade de acessos
que eles contam. Então você compra uma quantidade de acessos para aparecer.
Olha que legal? Você nem pensa. Age como se fosse aleatório aquilo. E não é
aleatório. Pensa que é audiência. E em alguns casos é audiência, evidentemente.
Mas em vários casos é pago. É um negócio. E aí eu só queria comentar uma últi-
ma coisa que eu acho que é um aspecto interessante do Adorno. De acordo com
o pensamento do Adorno existem sempre brechas. Existe sempre algo do pen-
samento não dominado. Existe sempre alguma coisa que resiste a dominação. E
por que resiste a dominação? Porque a dominação, pela sua própria forma de
construir conceitos, vai dizer: o Luis é professor universitário. Mas eu não sou
apenas professor universitário. Mesmo que eu juntasse uma multiplicidade de
coisas que me definiriam, alguma coisa escaparia. Que é o que é importante para
o Adorno: o princípio da “não identidade”. Ou seja, na forma de nos conhecer-
mos, na forma não dialética de nos conhecemos, nós procuramos identidades.
Então você é o diretor de teatro, você é do grupo Brava, você é mulher, ele é
homem, etc. Vamos procurando identidades. Mas o que chama a atenção do
Adorno é que há aspectos que não são reduzidos às identidades. É o que ele
chama de “não identidade”. Aquilo que não está perfeitamente captável por esse
sistema de apropriação e dominação. Aquilo que escapa, que é fugidio. Mas que
escapa desse sistema. E de uma certa forma, isso pode ser um caminho para a
transformação. Então não vejo a internet como panaceia, não vejo a internet
como algo que pode resolver as formas culturais. Eu acho que existem caminhos
de expressão que podem ser encontrados dentro da internet. Também não estou
reduzindo dizendo que é impossível. Só que me chama atenção à alguns meca-
nismos de controle já presentes na internet.
O WWW que você comentou. Mecanismos que podem identificar seus gostos e
aquilo que você faz para o consumo. Coisas desse tipo. E a própria história de
que os aparelhos são constantemente mudados. E você tem que mudar, tem que
comprar mais uma coisa nova, comprar outra e nunca se está satisfeito. Isso me
148
parece muito um mecanismo de adaptação a esse sistema. Agora você pode ter,
e tem, uma presença significativa nas comunidades. Que é, por exemplo, a pre-
sença do celular. Que é uma coisa absolutamente consumista. Celular é ampla-
mente consumista, mas permite as pessoas uma forma de comunicação, uma
forma de trocar, bastante interessante. Uma forma que tecnologia anterior não
permitia. Isso para dizer que não é para ser contra a tecnologia. Mas o que você
faz com ela, a utilização que você faz dela, que é o importante. Não é, em hipóte-
se alguma, algo contra a tecnologia. Não é para se viver sem tecnologia. Não é
isso. É para se reinventar a tecnologia no sentido contrário a dominação.
Kátia Alves (Brava Companhia): Várias das coisas que você traz pra gente, são
coisas que a gente conversa, que a gente vem discutindo. Uma dessas coisas é
como a gente vem tentando com que o nosso trabalho tenha um diálogo direto
com essa sociedade. Só que há muitas coisas naturalizadas. Essa violência que as
pessoas veem todos os dias. Essa exploração. Tá tudo tão natural. “Sempre foi
assim”! Como, de fato, convencer essas pessoas de que isso não é natural? O
Datena está todos os dias na TV aberta falando. E aí vem a Indústria Cultural
com esse Tropa de Elite, que é o filme mais visto em, sei lá quantos, anos. O cara
tá falando isso, desse jeito, para milhares de pessoas e não acontece nada! E aí
eu acho que tem a ver com o que você fala sobre conteúdo e a forma. E essa coi-
sa: o que é que a gente faz, no nosso teatro para, de fato, ter impacto? A gente
quer dialogar e vem a Industria Cultural, que é muito mais atrativa, e fala o nos-
so discurso para milhares de pessoas, de uma maneira mais interessante! A
gente está atrás?
Profº Luís Galeão: Eu também tenho muitas questões, então não me coloco na
posição de dar respostas a essas questões. Mas acho que algumas coisas a gente
pode pensar para ajudar a gente a conversar. A primeira é que não existe, diga-
mos, uma grande “orquestração paranoica”. Que estamos o tempo todo sendo
controlados e com as coisas funcionando desse jeito. E eu acho que o Tropa de
Elite pode ser um exemplo interessante disso. No Tropa de Elite 1, algumas en-
trevistas do Padilha me chamaram a atenção, porque ele disse que o Tropa de
Elite 1 foi profundamente mudado na edição. Então, lembra da Indústria Cultu-
ral? Na Indústria Cultural cada produto vai sendo transformado, vai sendo pen-
sado e moldado como mercadoria. Então você tem o roteiro, tem a direção e tem
a fotografia. Tem toda uma indústria montada em relação aquilo. E que se trans-
forma em mercadoria na medida em que acontece a reificação daquilo que faz
parte dela. Então, o Padilha contava que o personagem principal era o Matias. O
negro, recruta que entrava no BOPE e no final matava um traficante. Ou seja, o
filme era sobre uma transformação do Matias. Uma transformação no sentido
clássico, como nas obras literárias, um caminho de vida. Uma transformação de
um personagem. Um personagem que vai sendo transformado até chegar em
149
determinado ponto. É uma figura clássica. O que eles fizeram na edição? Eles
pegaram o Capitão Nascimento, personagem do Wagner Moura, o transforma-
ram em central e puseram ele narrando em off, porque não tinha cena pra tudo
isso. E vejam a força de uma forma: o Nascimento, o Wagner Moura, narrando
como Capitão Nascimento em primeira pessoa, se transformou em uma história
narrada do ponto de vista de um policial. Não do policial que vai se desumani-
zando, mas do policial que acredita que deve agir numa guerra contra o inimigo
de todas as maneiras possíveis. E então ele se transforma num filme fascista.
Com bordões que colaram. E aí a audiência é importante. Pensar a questão da
arte, pensar práxis social da arte e também a recepção dessa arte também é
fundamental. Como se dá a recepção da arte? Como ela é recebida? Porque você
pode, e acho que esse é um ponto interessante, recebê-la sem crítica. Ou seja,
pode ser uma crítica, mas pode ser sem crítica. Pelo corte, pelo que vem depois.
Porque se eu fizer tudo isso e no final, fizer uma pegadinha, eu quebro a intensi-
dade dramática daquilo que foi visto. Eu mato a reflexão se eu ponho, na se-
quência, um comercial que vai vender Casas Bahia. Então qual o tempo que eu
tenho pra refletir sobre aquilo que está se dizendo? Você até pode, mas certa-
mente a tendência da reflexão não é essa. Dessa forma a tendência é rir, e ponto.
Profº Luís Galeão: Eu acho que é isso mesmo. É pensado. O que não quer dizer
orquestrado. Ou seja, não há um pensamento central que orquestra tudo isso. Há
formas de pensamentos já naturalizadas que vão levar a isso. Então, se aumenta
a audiência, as pessoas veem. E aí tem uma coisa que eu queria só retomar, que
é em relação ao que poderíamos chamar de mediação. Se a gente está falando
que a recepção é mediada, poderíamos ter uma resposta de que nós teríamos
que partir para o imediato. A Teoria Crítica é contrária a isso. Para a Teoria Crí-
tica, toda vez que você vai partir de uma realidade nua e crua, por exemplo,
mostrar uma realidade nua e crua, você já está fazendo uma mediação. Não tem
como você não utilizar conceitos para estabelecer uma obra de arte. Em qual-
quer produção humana há mediação. Então a opção é ter uma certa discussão.
Isso que vocês estão fazendo aqui eu acho primoroso. Acho muito legal! Porque
vocês estão incluindo a possibilidade de pensar, de gerir esses conceitos. Não
precisa ser teórico, não precisa ser palavróico, professoral universitário. Vocês
vão transformar e lidar com isso da forma de vocês. Eu acho que isso é que é
rico, isso é que é interessante. Não sei como vai ser esse produto, porque eu não
sou ator. Não estou no fazer cultural de vocês. Só peço que me convidem para
vir assistir. Para estar aqui com vocês. Porque eu vou estar muito feliz em ver as
surpresas que vocês vão me apresentar. Porque vocês articularam as respostas.
150
E aí eu acho que ao contrário do didatismo, a gente tem que apresentar ques-
tões. Acho que qualquer didatismo nesse momento corre o risco de repetir o
processo. Aquilo que você estava dizendo sobre a recepção. Se a recepção não
colabora, se a recepção já está informada no natural, na perspectiva da Teoria
Crítica, o ponto não é mastigar mais. O ponto é quebrar a naturalização, não no
sentido de que vai haver imediato contato com as coisas, mas no sentido de que
as pessoas vão ter que pensar na mediação que elas fazem das coisas. E aí que
me parece que está um elemento interessante. O Brecht propõe isso de uma
certa forma. Só para saber que não é só a Teoria Crítica que percebe isso, tem
outras formas de pensar isso também. Mas me parece que no caso da Teoria
Crítica, o ponto é que você tenha, não o didatismo, não o explicar as coisas para
as pessoas mas, pelo contrário, fazer com que elas se questionem a respeito das
coisas como naturais. Não vai ser imediato. Porque você está mediado por con-
versas como esta. Conversas entre vocês. Muito mais por conversas entre vocês.
E a respeito desses pensamentos, das leituras e do que vocês têm já, e vão le-
vando para a práxis de vocês.
151
lores, o “Sombras dançam nesse incêndio”, a preparação dele, que é anterior a
ele, para mim é o grande espetáculo. Quando a comunidade capina, quando pre-
para o espaço cênico, forma a arena arbórea. Para mim esse é o grande espetá-
culo. Isso é o auge do espetáculo. Porque isso é também produção artística, pro-
dução simbólica. Isso faz parte. Eu acho que na transformação das artes, do sé-
culos XX para o XXI, a expressão “obra de arte” já caducou. Não é uma obra,
objeto artístico, que é mais viável, mas hoje eu aprecio muito mais o ato artísti-
co. O ato artístico. O que esse ato reverbera? O que ele frui? O “Casseta & Plane-
ta”, ao meu ver, pode ser extremamente inovador, mas ainda está inserido na
TV. E não é um programa da TV, enquanto meio, mas enquanto ato. A televisão
hoje, o ato de você assistir televisão e como ela é transmitida, está cercado de
significados e vai quebrar e tirar todo o poder do ato. Por mais que eu tenha
essa percepção agora, virá o comercial e eu ainda estou sentadinho, burguesa-
mente, no meu sofazinho. Veja: às vezes eu assisto “Chaves”. Adoro assistir
“Chaves”! Não é nem crítica a esse ato fútil. É gostoso! Eu acho gostoso assistir
“Chaves”. Tomando “Pepsi”! Aí estão as contradições. E a gente, muitas vezes,
não chega nessa questão. Que tem a ver com a fruição e com a recepção. Qual é o
poder disso? Enquanto ato, e não apenas como discurso. Esse discurso só vai
ganhar status de força se ele estiver impregnado de atitude.
Fábio Resende (Brava Companhia): Por isso que talvez o teatro não possa ser
analisado no “fim” dele: o espetáculo.
152
espetáculo para criticá-lo. Eu acho isso brilhante! Eu gosto muito. Não tenho
nenhuma questão contra isso. Mas estou falando que, às vezes, quando a gente
esquece que teatro é ato, a gente se seduz e fala assim: vamos levar o que a gen-
te está produzindo para tal espaço. É com isso que a gente está se deparando
agora. “Vai querer uma plateia calada, mas eles estavam falando demais”. Perce-
be? Quer dizer: mesmo sem querer, às vezes, falta concentração para a gente.
Nós somos educados dentro de um padrão burguês. Não adianta. Eu sou da zona
leste, de perto da Vila Ema. Mas mesmo lá... Não adianta! Eu fui educado para
isso. Eu resisto! E agora eu discursei. Eu não queria isso, mas já foi...
Jota Medrado: Eu queria me reportar ao que já foi dito por outros aqui para,
espero eu, alimentar ainda mais a sua fala. O fato de “não ser orquestrado”, ao
meu ver, remete a uma leitura da “hegemonia e dominação”, do Gramsci. A coisa
está estabelecida de um jeito em que não faz muita diferença que não seja or-
questrado. Como ter acabado com a Ditadura. A meu ver, isso não aconteceu
porque morreram professores, estudantes, pessoas que lutaram por isso. Mas
porque já havia se estabelecido ali o poder da comunicação, da dominação dos
bancos, das universidades, de modo que: que diferença faz que falem isso ou
aquilo, que pichem muros? Que diferença faz? Não faz a menor diferença, na
verdade. Pode não estar orquestrado, pode estar apenas pensado. Mas porque
não se quer orquestrar. Pensou-se em orquestrar. Mas pensou-se também: para
quê? Gastar mais tempo, contratar mais cérebros, contratar mais gente para
ficar pensando nisso...
Aliás, as escolas de Ciências Sociais foram criadas para isso. Qualquer coisa que
se necessite, é só contratar essas escolas. Os cientistas sociais estão aí para fazer
isso, para fazer pesquisas. Para ficar analisando a TV por dias e dias e dizer:
“Tome essa medida. Tome outra medida. Lula, faça isso...” E vai por aí. Eu acho
até que o “Vigiar e Punir” (Michel Foucaul) e outros livros e teses já estão supe-
rados. Já foi. Estamos em outro momento. Por exemplo: aqui na nossa “quebra-
da”, e eu falo por experiência porque conheço bastante a “favelada” daqui, a
polícia só aparece para espetacularização. Assim como no Complexo do Alemão,
e acho que também no resto do Brasil. Só para fingir que existe força policial.
Mas não há mais necessidade. A meu ver, não há mais necessidade de polícia
fazer isso. E os filmes “Tropa de Elite”, tanto o primeiro como o segundo, deixam
isso bem evidente. O cara sobe o morro durante aquela operação para receber o
Papa e já com tudo escrito: como vai ser, como tem que ser. É apenas para com-
pletar o espetáculo e mostrar na televisão que é assim. Ou seja, está tudo dado. E
para mim, a via de tentativa de superação, apesar do desencanto, é no momento
do voto. É dizer para o Lula: “Eu não voto mais em você. Eu te coloquei lá. Então
eu posso te criticar e dizer: “não vou te colocar novamente lá”.” Prá mim não
tem nada mais evidente do que dizer isso. E acho até uma incoerência da classe
artística, principalmente, do pessoal do Teatro, que se acham os mais críticos, os
153
que estão na “ponta do iceberg
das críticas”, continuar votando
nesse tipo de elemento. Eles
fazem um trabalho de determi-
nada forma altamente crítica a
isso, mas aí na hora “H” falam:
“Ah... Não da prá ir com o Serra.”
Aí, nesse caso, eu fico com o
pessoal do MST que dizia para
mim: “Não dá para votar em
companheiro. Se é para votar,
então vote no inimigo. Nele, pelo menos, você poder dar porrada. Em compa-
nheiro você não pode.” Mas... É a democracia... É a dialética.... Então, vamos...
154
essa articulação. E acho que as Ciências Sociais, a Psicologia inclusive, cumprem
mesmo esse papel que você (Jota Medrado) está dizendo – um papel de domina-
ção. Porque se você estiver muito raivoso, vai fazer terapia. Se você estiver ques-
tionando muito a escola, lhe mandam para um psicólogo. Porque o problema é
seu. E se “bobear” vão dar Ritalina para você. Porque você é “muito ativo”. Você
“não fica quieto”. Você fica “falando muito”. Você fica “atrapalhando a aula”. Mas
não se questiona se a aula é interessante, se a escola é interessante, etc. Eu vi
outro dia o Braz Rodrigues Nogueira, diretor de uma escola em Heliópolis, um
cara interessantíssimo, que trouxe um modo pedagógico também bastante inte-
ressante, inspirado na Escola da Ponte, que “derruba as paredes” e promove
uma interação com a comunidade e achei fantástico. Não estudei isso a fundo,
não fui até lá discutir com ele, mas me pareceu muito interessante porque faz
pensar na questão do espaço, a qual ainda não havia tratado aqui. Acho genial
vocês estarem aqui. Esse espaço, o Sacolão das Artes, foi, na verdade, o que me
fez vir até aqui. Eu quase não vim, porque ando meio doente, desde a semana
passada. Mas quando me disseram que era aqui, eu disse: pô, eu vou lá! Estou
meio doente, mas vou lá. Já havia ouvido falar do Sacolão por conta das minhas
andanças por aqui. Eu acho fantástica essa questão do espaço. Tem tudo a ver, e
é parte da encenação de vocês, é parte do ato artístico. O que não quer dizer que
vocês estejam presos aqui, que vocês não possam enfrentar mudanças. Em rela-
ção a questão do ato artístico, em parte eu concordo com você (Marcelo Soler). E
acho que a gente pode discordar e continuar conversando. Porque acho que essa
questão do ato artístico remete a questão da práxis, e nisso eu concordo com
você: a ideia de que na prática artística você tem que levar em conta essa “outra”
práxis, que transmite uma mensagem importante aos seus receptores. Então,
para quem está junto ao processo artístico é fundamental essa práxis.
O problema, de acordo com essa perspectiva que eu estou trabalhando hoje
aqui, é você levar isso para um âmbito muito intuitivo. Veja bem, o problema
não é você fruir. O problema é imaginar que essa fruição seja muito imediata e a
partir só da sua sensibilidade. É preciso levar em conta que, o tempo todo, essa
fruição vai estar mediada. Então é um ato, mas não é um ato que nos exclui da
reflexão. É um ato com reflexão.
Marcelo Soler (Teatro Documentário): Sendo ato, é opção. Sendo opção, tem
reflexão. Qual é a minha opção de fazer (teatro) na casa da pessoa? Qual é a mi-
nha opção de, deliberadamente, usar determinados objetos? Qual é a opção des-
se grupo em ter uma preferência que, como você falou, não é preferência que
engessa, de fazer (teatro) em espaços abertos? Qual é a opção de não se subme-
ter ao padrão espetacular, por exemplo? Essas opções estéticas estão na atitude,
no ato. Que também tem a ver com a escolha do espaço. Então, elas passam por
uma reflexão. A arte contemporânea, principalmente nas artes plásticas, às ve-
zes é mal interpretada - e isso tem um porquê. Ela é considerada desconectada
155
da realidade porque ela não vai mais para um discurso que, falando no caso do
teatro, não se apresenta apenas com texto. Ela não é mais textocêntrica. Ela vai
para a atitude. Eu trazer para a cena um ator não profissional, por exemplo, o
Jota – que é um atuador na vida – é um ato que ganha uma dimensão para além
da história, para além da parábola. E esse ato deve ser levado em conta. Que é
como eu já disse: não adianta eu fazer algo que tem um discurso, tanto na forma
como no conteúdo, extremamente inovador se eu coloco isso dentro de uma
grade de programação da TV. Porque, o que acontece é que o objeto está ali, mas
o ato está negando o próprio objeto.
Profº Luís Galeão: Vamos pensar uma questão que eu acho importante: há um
tempo atrás eu vi, nesse estudo sobre comunidades, a notícia de que uma de-
terminada comunidade pobre estava montando uma orquestra de instrumentos
feitos de sucata. Eu achei isso um ato de dominação. Eu penso que se fazer uma
orquestra de sucata num colégio de elite, num bairro de elite, é um ato de ques-
tionamento. Porque lá, no lugar de se usar instrumentos, como violino, trompe-
te, sax, usar sucata é provocador. Porque lá, no bairro de elite, é o lugar onde
mais se consome. O lugar onde se consome mais loucamente é no bairro de elite.
Não é na periferia. Embora, hoje, a periferia esteja consumindo mais. E eu não
me sinto bem para dizer: não consuma. Porque só agora muitas pessoas estão
tendo essa experiência do consumo. Embora eu ache que elas possam pensar
sobre aquilo que estão consumindo. Mas eu não sinto tranquilo em dizer: não
consuma. Mas eu olho para um bairro rico e digo: não consumam. Parece-me
que aí temos um ato informado por um conceito, como você está falando. Então,
colocar um ator não profissional para atuar pode ser um ato, se estiver dentro
de uma proposta. Só o ator não resolve.
Marcelo Soler (Teatro Documentário): Uma das coisas que eu mais questiono,
ainda na nossa área, é o seguinte: existe hoje em dia uma hipervalorização da
virtuose. Muito escamoteada nessa proliferação das escolas de canto, dança, do
teatro musical... E mesmo nos cursos de clown ou de Commedia Dell Arte, o que
faz com que o ator fique desesperado e diga: eu não tenho técnica suficiente.
Então, o que acontece hoje, e tem gente que acha até perigoso: o fato de você
trazer para a cena uma pessoa que está “desprovida” dessa técnica, em si, já
carrega alguma coisa. Isso, nesse contexto e nesse momento histórico. Óbvio, e
nisso você está certo, que eu não quero desapropriar isso do sentido estético da
opção. Se eu faço isso, eu tenho um porquê. E quando eu falo um porquê, não é
um porquê racionalizante. É um porquê dentro das minhas escolhas.
Profº Luís Galeão: É o seguinte: sim e não. Porque a virtuose falsa, do canto
vazio, da dança é, evidentemente, mercado. É o que você está dizendo. O merca-
do precisa disso porque, imagino, gira um negócio de cursos para fazer isso, etc.
156
Agora, uma posição que o pessoal da Teoria Crítica tem, e eu acho interessante
porque faz uma certa distinção, é a seguinte: não apostar no natural. Porque um
discurso que poderia existir por conta desse não ator é o seguinte: vamos usar o
não ator porque ele é “mais natural” do que o ator convencional. Não é o que
você falou, mas poderia ser utilizada essa perspectiva do “mais natural”. Mas
não há natural. Então, o que me parece interessante, é o seguinte: eu leria isso
como um outro processo de formação, que nega o processo de formação bur-
guês reificado. Então, mesmo aquele que não está indo para a cena com o canto
“x” ou com a performance corporal “y” porque não estudou, tem o seu valor. Até
porque, estudo ou diploma não significa, necessariamente, desempenho melhor.
Agora, eu não tiraria o espaço daquele que procura se aprimorar, no sentido da
sua expressão, até para que ela não apareça. Adorno escreve, em relação a tex-
tos, algo bastante interessante, que é o seguinte: nenhuma palavra deve ficar se
ela não tiver um papel dentro do texto. Tudo aquilo que você corta faz parte de
uma força que o texto mantém. Então, eu diria que mesmo se um dia um ator
formado conseguir transcender a atuação e atuar como alguém que não é for-
mado, essa vai ser uma atuação diferente de alguém que atua pela primeira vez.
Mas, nem mesmo por isso, menos válida em relação a esse processo. Porque
mesmo numa obra que busca traço simples, estruturas simples, e que você olha
e diz: posso fazer aquilo – e você não, necessariamente, vai fazer aquilo. Mas não
porque você não sabe pintar ou não sabe esculpir. Muitas vezes, é a desconstru-
ção dessa obra, como você mesmo estava dizendo, é que é o processo interes-
sante. Ou seja, aprender determinadas coisas pode ser valorizado mesmo por
aquele que vai se apresentar não como virtuose, mas como aquele que não tem
virtuose.
157
rículo que eu tenho várias experimentações. É necessário passar por várias ex-
perimentações? Eu acho que é, como tudo na vida. Mas não enquanto obrigação,
apenas como algo que te enquadre nesse sistema.
Fábio Resende (Brava Companhia): Pego esse raciocínio e vou para o campo
pedagógico. É possível citar vários exemplos do que hoje seria bom estudar pela
via da indústria comercial do ensino do teatro a serviço da dominação. Então a
gente vai lá beber nos “pós-modernos da vida”, a gente vai desestoricizar o pro-
cesso. E nesse sentido me parece muito importante estarmos preparados para o
enfrentamento técnico. E também me parece muito importante, quando estamos
conduzindo qualquer processo de formação de quadro - porque eu acho que o
quê a gente faz já passou do campo do acesso – que é preciso que andem juntas
a necessidade da técnica e a história. Porque senão ficam coisas isoladas.
Isso foi uma mudança de percurso dentro do nosso grupo. Antes era uma técnica
pela técnica. E agora é uma técnica para algo. E essas duas coisas andam juntas.
Porque para negar uma coisa, ou para afirmar, eu preciso inventar outras coisas.
E é essa a grande confusão que a gente vive hoje. Se fala, no campo da imagem,
que o ato performático seria o grande ato hoje porque a representação está
vazia. E aí lotou o curso de Artes do Corpo da PUC. Escreveu que tem perfor-
mance, vem gente até do inferno para fazer. Mas não é porque a performance é
ruim. É que agora chegou o momento em que o “fôlego” é: ato performático. Por
isso a gente precisa explicar historicamente “porque essa coisa, e não a outra”. E
por isso eu estou chamando de ato pedagógico. Porque a gente está numa enras-
cada.
Profº Luís Galeão: Eu fui nesse semestre ver a peça do Dolores, lá na zona leste,
e fiquei particularmente impressionado com uma parte do ato em que havia um
jogador de futebol que ficava amarrado por ganchos e pendurado em uma tela.
Aquilo me chamou muito a atenção pela forma como demonstrou que a gente
está amarrado ao sistema. Me pareceu ali que tinha esse pensamento nessa pos-
sibilidade de representação. É um elogio. Achei aquilo muito interessante. E eu
fui também a uma peça, absolutamente burguesa, no espaço da Livraria Cultura,
158
um texto do Albert Camus, que eu gosto muito, “O Estrangeiro”, com um péssimo
ator. Um péssimo ator que tentava parecer desafetado. Porque uma certa leitura
desse personagem é de uma figura que não consegue estabelecer relações afeti-
vas, então morre a mãe e ele não consegue fazer nada, ele mata uma pessoa por
impulso, enfim, há toda uma possível leitura de uma pessoa desafetada.
Então, puseram um ator ruim para fazer. Ruim no sentido de que ele não conse-
guia ser desafetado. Ele conseguia ser ruim. Ele declamava e tal... E é um ator
que está aí, na televisão. É claro que isso faz parte desse circuito. É claro que isso
transforma esse circuito em mercadoria. O que eu queria comentar, colaborando
com essa perspectiva que vocês trazem, é que não é formação por formação. Não
adianta formação por formação. O texto? Você pode dizer: não vou mais centrar
no texto. E isso pode ser algo bastante interessante, se você não imaginar que
um espontaneísmo vai resolver o assunto - pegando essa perspectiva da Teoria
Crítica, com a qual eu concordo.
Porque eu acho que tem textos que são críticos. E que podem ser transformados,
podem ser apresentados e que podem trazer isso para cá, para que não se en-
xergue só esse tabu da performance que também responde a um modismo. O
modismo é parte dessa apropriação pelo mercado de todas as coisas. Porque se
todo mundo já tem, ninguém vai comprar. Então, agora vai ter que ser corpo,
daqui a pouco vai ter que ser canto, e depois vai ser... Performance no celular.
Porque essa tentativa de transformar a arte por meio do celular vai virar moda,
porque vai ser metabolizada pelo sistema, e vão transformar isso em algo inte-
ressante e vão criar cursos de representação pelo celular. Estou “viajando”, mas
é para demonstrar essa coisa de que você precisa criar “moda”, para vender
curso. Para vender. Essa é a lógica desse sistema.
O último capítulo sobre este espaço, tão importante para nós da Brava, tra-
tará de expor o documento criado pelos integrantes do Coletivo Gestor do Saco-
lão das Artes, do qual fazemos parte. Este documento é fruto de discussões, aná-
lise de todo o processo político do espaço, leitura conjunta de todo material
escrito e produzido sobre o Sacolão das Artes e inúmeras reuniões para sua
produção e aprovação. Seu conteúdo não foi construído apenas pela Brava Com-
panhia, mas esta unidade, nossa, de grupo, se faz autêntica neste documento que
159
contou com o trabalho de vários companheiros e companheiras que se dedica-
ram a este ato histórico de compor um pensamento coletivo deste espaço públi-
co chamado Sacolão das Artes.
Ah! E lembrem-se que somos um grupo de teatro!
160
que trabalham no e pelo Espaço, numa dinâmica que compreende o saber de um
modo não dogmático e processual.
Cientes do desenvolvimento capitalista da sociedade, cujo alicerce se en-
contra no projeto burguês de cidadão, o qual tem por meta a autonomia indivi-
dual que confunde liberdade com individualismo e usa o trabalho como meio de
exploração em massa, a posse como demonstração de competência, o dinheiro
como um fim em si mesmo em um processo de acumulação desenfreada, e o
monopólio do conhecimento como forma de manutenção do poder... Cientes
disso, os trabalhadores do Sacolão das Artes buscam uma alternativa de produ-
ção material e simbólica da vida na contramão desse pensamento hegemônico.
Para tanto, a cultura, cuja origem do termo tem base material no trabalho de
cultivo no campo, é entendida, nesse processo de reflexão crítica do Espaço,
como uma arena onde a luta de classes se desenrola em duas esferas: Material,
ou seja, a realização do conjunto de obras de expressão e comunicação humanas,
tais como peças de teatro, produção de vídeo, artesanato, entre outros; e ideoló-
gica, que constitui o acervo de valores defendidos por essas obras, quase sempre
não perceptível num primeiro contato. Isto posto, resta saber quais são os
valores defendidos pelo Sacolão das Artes.
Levando-se em consideração os princípios capitalistas de sociedade e cida-
dão apontados mais acima, os trabalhadores do Sacolão das Artes vão primar
por valores que se contrapõem ao cultivo hegemônico de uma sociedade mer-
cantil. A saber, o Sacolão das Artes se posiciona contrário aos mecanismos de
dominação de classe dentro da sociedade capitalista da qual, dialeticamente, faz
parte. Portanto, no intuito de fortalecer sua trincheira na guerra contra a mer-
cantilização do pensamento, o Sacolão das Artes aposta em parcerias estratégi-
cas afinadas com os princípios de luta da classe trabalhadora, às quais se une
para a realização de trabalhos emancipatórios, acreditando na capacidade das
pessoas de contribuição para uma vida mais digna e dissociada da lógica de
exploração; em prol de um modo de organização não hierárquico, centrado na
troca de saberes, na ampliação do conhecimento crítico produzido ao longo da
história e na arte e cultura como ferramenta de desenvolvimento humano em
prejuízo de uma educação que, tradicionalmente, forma homens e mulheres, no
seio da classe trabalhadora, para servir de mão de obra barata e, ainda assim,
serem senhoras e senhores polidos, resignados, bem educados, incapazes de se
levantar contra a ordem vigente que oprime a todos nós, trabalhadores.
É contra essa perspectiva da educação do “Sim, senhor patrão” que o proje-
to pedagógico do Sacolão das Artes, na esteira do trabalho sociocultural, tenta
desmentir toda e qualquer ação que torne o homem um ser resignado, tais como
o movimento intencionalmente ingênuo, exacerbado de romantismo, que apre-
161
goa a intensificação do sentimento humano em prejuízo das relações políticas,
sem revelar que são estas relações que condicionam o tipo de sentimento hu-
mano que deve ser intensificado. Nesse sentido a busca pela democratização do
controle dos meios e modos de produção é o foco do processo histórico do Saco-
lão das Artes, que, para tanto, propõe atividades coletivas de investigação e
intervenção social na tentativa de desmistificar as relações de poder e controle
que por vezes operamos tacitamente.
Enfim, com esse preâmbulo, nós, trabalhadores e trabalhadoras do Sacolão
das Artes, convidamos todos e todas que compartilham desse pensamento a
fazer parte dessa luta, que não começou hoje e não terminará amanhã.
Princípios
Formas de Ocupação
SEDE
162
Os grupos culturais, cuja prática
e pensamento estejam em con-
sonância com a práxis do Saco-
lão, podem sediar o Espaço
depois de terem passado por
um período de troca com os
grupos já sediados. Período este
que chamaremos de Residência
Diferenciada, que tem início apo
alguns encontros de conversa
entre o possível residente e os
grupos sediados, com o intuito de se conhecer as vontades de ambos, além de
uma análise de sustentação do trabalho a ser desenvolvido pelo futuro residen-
te.
Caberá ao residente diferenciado:
• Participar ativamente do processo político-pedagógico que consiste na repre-
sentação política frente aos órgãos municipais, estaduais e federais do poder
público e participação das reuniões do Coletivo Gestor
• Fazer a manutenção do espaço antes, durante e após as atividades
• Respeitar os horários das outras atividades e, se possível, participar delas
• Responsabilizar-se pelo espaço, propondo e discutindo melhorias
• Ter ciência de que o aumento das atividades está em função da melhoria do
espaço
• Desenvolver ações continuadas
• Registrar as atividades
• Não levantar bandeira de nenhum partido ou credo religioso, uma vez que o
espaço é laico e apartidário
• Organizar-se de forma não reprodutora do padrão opressor das empresas
• Não reproduzir a lógica capitalista da lucratividade
Ao final desse período de Residência, iremos nos reunir para avaliação e início
do processo de ocupação do espaço como sede pelo residente.
RESIDÊNCIA
Os grupos culturais, cuja prática e pensamento estejam em consonância com a
práxis do Sacolão, podem pedir residência no Espaço.
Caberá ao residente:
163
• Fazer a manutenção do espaço antes, durante e após as ativida-
des
• Respeitar os horários das outras atividades e, se possível, partici-
par delas
• Responsabilizar-se pelo espaço, propondo e discutindo melhorias
• Ter ciência de que o aumento das atividades está em função da
melhoria do espaço
• Registrar as atividades
• Não levantar bandeira de nenhum partido ou credo religioso,
uma vez que o espaço é laico e apartidário
• Organizar-se de forma não reprodutora do padrão opressor das
empresas
• Não reproduzir a lógica capitalista da lucratividade
• Ao final do período de residência haverá uma avaliação e a possi-
bilidade de renovação da residência.
TEMPORÁRIO
Os Grupos ou pessoas, cuja prática e pensamento estejam em consonância com a
práxis do Sacolão, podem usar o espaço para realizar trabalhos pontuais, tais
como: Entrar em cartaz com uma peça, fazer um show, uma exposição e etc.
Caberá ao temporário:
164
Brava Conversa com a Rede de
Comunidades do Extremo Sul de São Paulo
“A produção Cultural e a Identidade de Classes”
165
de Classes”, eu pensei em primeiro em dividir, pra depois juntar. Vou começar
por essa coisa da Luta de Classes, ou ainda, mais especificamente, pela questão
de classe; e pra não ir muito longe nessa prosa, vou falar de duas classes: a clas-
se burguesa e a classe proletária, pra usar aí termos clássicos de uma tradição
que vai servir de referência a essas ideias que eu vou trazer, que é a tradição
Marxista. Bom, por mais que todo mundo saiba o que é classe - a gente tem essa
noção - acho que o conceito de classe é um conceito bem difícil. Eu penso que é
um conceito bem complexo. Ele busca dar conta de um conjunto de pessoas,
dentro de uma determinada formação social, que de alguma forma comparti-
lham valores, costumes, tradições... Uma certa forma de reprodução da sua vida
material, da sua vida espiritual, hábitos, interesses, enfim... Uma série de fatores
que determinam o que seria classe, o que se consolida como classe.
Mas eu queria chamar atenção em relação à classe burguesa. Queria chamar
atenção para dois aspectos, duas características. A classe burguesa, em termos
gerais, são os detentores do capital, seja na forma dos meios de produção, na
forma de títulos de propriedade, na forma de ações, na forma de dinheiro. E
mais do que isso, esses membros da classe burguesa encarnam o espírito do
capital, eles são - em termos clássicos - as personificações do capital. Eles con-
fundem a dinâmica da acumulação do capital com seu próprio impulso vital,
mesmo que eles não tenham a consciência disso. E acho que a segunda dimen-
são dessa classe tem a ver justamente com isso. A classe burguesa se organiza
enquanto classe de um jeito meio automático. Ela se organiza enquanto classe
por meio, principalmente, talvez, do Estado. A própria existência do Estado é
determinante pra organização da burguesia enquanto classe, e nessa concepção,
o Estado é uma forma social que não está, simplesmente a serviço da acumula-
ção. Porque isso daria uma ideia de que existe uma intencionalidade por trás. Na
verdade, o conjunto de estruturas do Estado; as regras que ele segue; as hierar-
quias, as funções, a forma do Estado em si, é uma forma que, ao mesmo tempo, é
resultado e produz o conjunto de relações sociais capitalistas. Então, existe uma
junção, que vem desde os primórdios, do modo de produção capitalista, entre
capital e Estado, e essa forma Estado é muito importante pra organização da
burguesia enquanto classe. Do lado do proletariado, também sua constituição
enquanto classe envolve um número enorme de fatores, mas eu também queria
chamar atenção para dois. Primeiro: os membros do proletariado são caracteri-
zados por não serem detentores de capital. Aquela ideia que só tem como pro-
priedade a sua própria força de trabalho - em termos também mais clássicos,
mais consagrados. O proletariado é a substância do capital e, ao mesmo tempo, é
negado, é afastado da posse do capital. Então, ele, essencialmente, tá em oposi-
ção ao capital; ele tá em oposição a uma formação social que é totalitária e que
busca abarcar e dominar todas as esferas da vida social. E num segundo momen-
to, ela busca construir uma totalidade social em cada uma dessas esferas, à sua
imagem e semelhança, ou seja, ela tende a submeter tudo a uma dinâmica da
166
valorização. Ela destrói todo tipo de qualidade que impede ou dificulta que as
coisas sejam reduzidas a condição de mercadoria, que impede que as coisas
sejam, todas elas, trocáveis, substituíveis, descartáveis.
Então, o proletariado tá essencialmente em oposição a essa sociedade. Só que, a
segunda determinação para a qual eu queria chamar atenção aqui, que diferen-
cia bastante da classe burguesa, é a seguinte: pelas suas características, o prole-
tariado não se constitui como classe de uma maneira automática. Ele não pode
se constituir por meio de estruturas fetichistas como o Estado. É... Na verdade, a
constituição do proletariado em classe, ela tá ligada a transformar essa oposição
potencial em ato, em realidade, em luta, em organização.
Então, a constituição do proletariado; a definição de proletariado não tá desvin-
culada da sua prática política cotidiana real. Não é possível pro proletariado, se
ele quer se opor a uma sociedade que é dominada por um sujeito cego e automá-
tico, se consolidar também de uma maneira cega e automática; ele também não
vai seguir o mesmo caminho fetichista para destruir essa sociedade. Então a
classe revolucionária pra se determinar, está ligada a uma dinâmica prática, a
sua luta, a sua organização e ela tá ligada a consciência de si própria; a consciên-
cia que ela adquire nesse processo de luta e organização. Então, diferentemente
da classe burguesa, que se dá, se consolida de um jeito automático, a classe pro-
letária depende de uma série de outros elementos que estão vinculados ao de-
senvolvimento de consciência de classe e de formas reais e concretas de organi-
zação. Então, em resumo, a classe proletária, a classe revolucionária não é algo
dado, ela não é, ela se constitui. Em cada momento esse processo de constituição
vai se dar, vai assumir características próprias que estão relacionadas ao con-
texto em que isso acontece. Só que diante de tantas vitorias que o capital tem
acumulado recentemente - seja em âmbito mundial ou em âmbito nacional - fica
um pouco difícil até mesmo de você falar dessa classe revolucionária. A gente vê
que nesse momento existe um domínio muito forte, muito pesado do individua-
lismo, do consumismo, da falta de solidariedade... Uma submissão ao marketing,
a televisão, a uma série de elementos que são instrumentos de dominação capi-
talista. Eles imperam. Num contexto em que esse domínio está se dando de ma-
neira tão forte, tão ampla, fica difícil a classe se consolidar, se constituir. Então,
com toda essa prosa aí de classe, toda essa conversa aí, acho que a gente pode
chegar numa primeira constatação conjuntural que, apesar de ser muito óbvia,
eu acho que é uma constatação muito importante. No que se refere à luta de
classes, a gente tá meio “mal das pernas”.
Essa é uma constatação importante para nós aqui. Então, quando a gente tá
falando de “Teatro e Luta de Classes”, essa é uma constatação séria. Que parece
muito evidente, mas pensando que é isso, a gente não tá pensando classe de um
jeito fetichista, como algo simplesmente que existe. Agora vamos pensar do lado
do teatro e da cultura... Acho que agora vai chegar no ponto que mais interessa
aqui. Em relação a cultura, que é um termo tão amplo e tão impreciso, porque eu
167
acho que depois de tanto tempo de desenvolvimento da indústria cultural - que
é esse tema que vocês debatem tanto - num processo social em que essas formas
de expressão que a gente toma como artísticas, estão tão determinadas, tão
íntimas ao desenvolvimento da acumulação, tão vinculadas ao mercado, em que
a forma de produção cultural está sendo feita de maneira tão restrita, não tem
muito pra onde correr. A nossa própria capacidade de recepção, os nossos sen-
tidos; também são moldados de um jeito muito rigoroso, muito forte. Num con-
texto como esse acho que é um pouco difícil falar em arte. Porque arte, no geral,
dá aquela ideia de um exercício... Primeiro uma coisa que tá em contradição a
diferentes formas de opressão, dá uma ideia de, vamos dizer, uma certa livre
expressão da individualidade daquele que faz a arte, e nessa conjuntura esse
tipo de ação, esse tipo de objeto, fica muito prejudicado. Então, eu tô usando
cultura, de um jeito mais impreciso. Mas é um termo, talvez, mais honesto. E a
gente não tá falando de qualquer cultura. Não estamos falando dessa cultura que
é uma mera mercadoria, que é uma coisa que é formada em moldes, com fórmu-
las fáceis que vão ser vendidas pra uma indústria que já tá mais do que consoli-
dada. Estamos falando de uma ideia de cultura, uma cultura subversiva, uma
cultura de resistência, uma cultura que se produz de uma maneira junta e mistu-
rada com a classe. A existência dessa cultura está ligada a uma avaliação que me
remeteu a um autor alemão, que, muitos, acho, já devem ter ouvido falar. Um
cara chamado Walter Benjamin. Eu acabei lendo, recentemente, um trecho de
um texto dele, e ele tá falando uma coisa sobre o trabalho do escritor que é o
seguinte... Eu vou ler aqui pra vocês:
À primeira vista parece um jogo de palavras meio besta, mas eu acho que tem
um significado importante. Eu acho que essa frase aqui que ele falou, a gente
podia traduzir da seguinte forma: o processo revolucionário, a “tendência políti-
ca corretamente orientada”, o processo revolucionário, em suas múltiplas di-
mensões, inclui tendências literárias, musicais, teatrais; e esse processo, porque
é revolucionário, de certa forma, ele repõe, ele cria seus próprios critérios, ele
cria sua própria noção de qualidade, cria uma estética própria. Na verdade, ele
está - na medida em que é subversivo - subvertendo uma sociedade.
Ele subverte as próprias noções estéticas, culturais, artísticas da sociedade, e eu
acho que é mais ou menos isso que ele tá falando. Ele tá falando que talvez, re-
sumindo de outra forma: que a prática revolucionária está ligada a uma prática
cultural revolucionária.
168
Mas se a classe tá mal das pernas, e se a gente vive um contexto em que a indús-
tria cultural predomina, então, essa produção cultural subversiva também tá
mal das pernas. E essa é a segunda constatação conjuntural que eu queria fazer
dentro desse tema aí que a gente está discutindo: “Teatro na luta de classes”.
Dos dois lados nós estamos mal. Eu tô fazendo essa separação meio esdrúxula,
justamente para tentar juntar. Mas sabendo que a gente está juntando num pon-
to que está relacionado a uma série de derrotas históricas. Isso é muito impor-
tante da gente encarar e tentar entender como se deu esse processo. Essas duas
constatações: que tâmo mal das pernas aí no que se refere à luta de classes de
um jeito mais geral. Elas são constatações importantes, mas elas não autorizam
o desespero, o cinismo, a desistência. Eu acho que... Bom, sendo o capital da
maneira como é, sendo o capital de uma forma totalitária... Qualquer coisa que
não o destrói, tá fadada num momento ou em outro, a ser destruída ou apropri-
ada por ele. Isso é uma coisa que é um desenvolvimento fatal. Se a gente, que é
uma totalidade ou... Por isso aquela ideia: ou você revoluciona e não abre muita
brecha pra reforminhas - essas reformas ou fortalecem o capital ou são descar-
tadas, são destruídas... No entanto, nem toda destruição e nem toda apropriação
é total.
O Capital não é um domínio total e livre de contradições. Tendo essa disposição
pra perceber isso, eu acho que existem muitos elementos que acabam atraves-
sando as gerações nas formas mais sutis e inusitadas e que podem servir de
lições, podem servir de inspiração, podem servir de estímulo, podem servir de
instrumentos de combate para aqueles que estão dispostos a ouvir esses ensi-
namentos; a pegar esses elementos aí no ar. Ou seja, pros membros da classe. De
modo algum eu acho que a gente parte do zero. Eu acho que muito pelo contrá-
rio. Diante da conjuntura que a gente vive, e com base em inúmeras experiências
antigas e recentes da classe, é possível definir uma série de princípios políticos
gerais que podem fundamentar as nossas lutas, os nossos esforços organizati-
vos, as nossas estratégias, as nossas formas organizativas, as nossas táticas,
enfim. Por exemplo, tâmo falando aqui dessa situação de derrotas recentes, no
caso da trajetória da esquerda no Brasil. Essa trajetória nas últimas décadas,
sobretudo a experiência petista e a experiência de uma série de movimentos
sociais reformistas que surgiram nesse mesmo contexto e que acabaram por se
burocratizar das mais diversas formas, acabaram por perder qualquer tipo de
autonomia em relação ao Estado, em relação ao capital. Acabaram por se tornar
forças conservadoras, forças que na verdade, estão a favor dessa sociedade ao
invés de combatê-la. Diante dessas experiências, a gente é capaz de desenvolver
uma crítica com a radicalidade necessária. Pra que? Pra denunciar, por exemplo,
a forma “partido”; pra denunciar uma série de hierarquias; pra denunciar a bu-
rocratização; pra denunciar a profissionalização da política; pra denunciar a
especialização excessiva; pra denunciar... Sei lá meu... A submissão à uma lógica
imagética; à uma lógica do marketing; pra denunciar o centralismo autoritário.
169
Diante dessas experiências, fazendo uma crítica séria à essas experiências - pen-
sando essas experiências não como algo externo, mas como algo que diz respei-
to a cada um de nós, a classe - como membros da classe, a gente consegue levan-
tar alguns princípios que podem ser princípios subversivos, como por exemplo,
o princípio da auto organização; o princípio da autonomia; o principio dos es-
forços organizativos não hierárquicos; a negação ao corporativismo; à uma ideia
de só tratar daquele coisinha dali - “ah eu trato da moradia, eu trato da saúde, eu
trato de não sei o que”- fragmentar da mesma forma que o Estado fragmenta a
nossa vida. Em vez de você pensar a coisa pra uma pessoa, que tem uma série de
dimensões, “ah é o cara que estuda, é o cara que tem problemas de saúde, é o
cara que pega o busão e tal...” Muitas vezes, a gente acaba por ter que dar res-
postas imediatas, também, por fragmentar também, por reproduzir essa frag-
mentação.
Isso eu acho, hoje, que dá pra gente ver que é um problema, e que é um dos ele-
mentos do enfraquecimento das organizações que se lançaram nesse caminho.
Então, com base nessa crítica a gente consegue, por exemplo, colocar esses prin-
cípios; consegue pensar também, dinâmicas organizativas subversivas, como
essa ideia de criação de espaço coletivo de discussão e também de processo
coletivo de execução das tarefas, sem cindir esses dois momentos. Por exemplo,
de criar rotatividade de funções no interior das nossas organizações. Como es-
tratégia, a gente pode levantar a ideia de construção de vínculos orgânicos e
duradouros com território; uma ideia de fazer lutas diretas em relação ao con-
junto de necessidades das populações que estão nesse território, que na verda-
de, é onde vai se consolidar a classe. Então com base nessa crítica que a gente
consegue fazer, a luz desse momento de uma série de derrotas, a gente tem que
ver e pensar princípios, dinâmicas organizativas, estratégias, táticas, ou seja,
todo um conjunto de temas clássicos da esquerda. Então, pondo de lado os dog-
matismos, o preconceito... Até mesmo o espanto diante dessa conjuntura tão
difícil, a gente consegue ver que existem condições pro desenvolvimento de
algumas experiências que podem contribuir sim, pra consolidação da classe e
pro fortalecimento da classe. E se a gente buscar com cuidado, a gente pode de
fato identificar uma série de experiências desse tipo, surgindo em outros países,
mas também no Brasil. Mesmo que essas experiências sejam pequenas ainda,
sejam poucas, não consigam impactar realmente a conjuntura; essas experiên-
cias existem, e elas dizem muitas coisas. Então, em resumo, a tal da tendência
política corretamente orientada que eu tava mencionando usando o Walter Ben-
jamin. Apesar de ela estar muito debilitada, ela ainda existe. O fim da história foi
decretado muitas vezes, mas as contradições do capital e a perseverança da
classe, no mesmo número de vezes. A classe trabalhadora disse: “não”. Se negou
a aceitar e falou; “a partida ainda não tá decidida”. E se essa tendência política
corretamente orientada ainda existe, e também as tendências teatrais, musicais,
das artes plásticas etc. Então é preciso, enfim, atentar pra essas tendências. Pra
170
concluir, pra contribuir um pouco mais com o debate, eu queria deixar esse pla-
no mais geral, essa constatação de conjuntura mais geral e tentar me aproximar
mais do concreto, e pra isso, eu vou me arriscar um pouco, eu vou falar um pou-
quinho mais proximamente da experiência, por exemplo, da Brava. Mesmo que
eu seja bem distante. Tô me arriscando aqui pra tentar contribuir com o debate,
mas não pensem que eu to querendo meter o bedelho, ou enfim, querendo falar
de coisas que eu não sei. Eu tô assumindo aqui que de fato eu acompanho de um
jeito bem distante, bem externo. Mas vou me aventurar aqui em algumas refle-
xões.
Deixando um pouco de lado todas as contradições que existem, falando de um
jeito um pouco ideal, eu acho a experiência de alguns grupos teatrais de esquer-
da que tem tentado se articular nos últimos anos apontam e colocam alguns
princípios políticos que me parecem muito importantes, e que inclusive desafia-
riam muitas das organizações de esquerda, as que a gente ainda pode chamar de
esquerda, organizações combativas. Por exemplo, dentre esses princípios, eu
acho que eu podia falar, por exemplo, dessa ideia de fazer as coisas coletivamen-
te e tentar não cristalizar hierarquias. Eu vejo que é um desafio que tá nas falas
de vocês, tá no tipo de prática que vocês tentam desenvolver. Uma outra coisa é
a ideia de, por exemplo, se apropriar dos meios de produção, ter o seu espaço
pra ensaiar, não ficar dependente, toda hora correndo atrás, pedindo favor pra
poder ter o seu espaço pra ensaiar, pra mostrar também seu trabalho e tal...
Então essa coisa de se apropriar dos meios de produção, eu acho que é um se-
gundo princípio importante. Por outro lado, a ideia de pensar uma produção
teatral que visa a classe da qual vocês fazem parte e pretendem fortalecer, isso é
um outro princípio importante. A ideia de que, por exemplo, vocês são trabalha-
dores, trabalhadores da cultura, e precisam sobreviver, mas se negam a se en-
tregar totalmente ao mercado, porque isso significaria mudar completamente o
que vocês produzem e o jeito de produzir. Nesse meio, nessa necessidade de
sobreviver, claro, é preciso recorrer ao Estado. Então vamos recorrer ao Estado,
mas também fazer isso de maneira crítica, sem virar simplesmente lobistas, sem
se perder completamente nesse esforço. Porque se perder no emaranhado do
Estado também significaria morrer enquanto grupo. Então se coloca essa con-
tradição e esse desafio político. Pra mim também é um desafio importante. Além
disso, acho que tem um ponto que é mais complexo, que é mais difícil, mas eu
vou tentar explicar. Eu acho que essa ideia de você se dedicar a algo, de você se
dedicar ao estudo coletivamente, o estudo cênico, o estudo da dramaturgia, mas
também o estudo da crítica da economia política, por exemplo. Eu sei que vocês
fizeram cursos e tal...
Esse esforço de estudo coletivo e de pensar uma produção coletivamente, de
alguma forma, acaba colocando, mesmo que de uma maneira muito tênue, muito
frágil, alguma ideia de autodeterminação. Esse esforço coletivo cria alguma pon-
te. Se a gente se lança se entrega completamente à gramática do capital, à lógica
171
do capital, pensando assim: “primeiro nós vamos nos fortalecer, nós vamos
bombar, vamos crescer, vamos colocar um milhão de pessoas na rua, depois a
gente vai subverter”, se a gente entra muito nessa lógica pragmatista, quando a
gente vai ver, a gente simplesmente tá reproduzindo aquilo que a gente queria
combater. Então eu acho (que) esse desafio de criar essas pequenas pontes tam-
bém é muito importante, por mais que hoje isso fique quase... É difícil de reco-
nhecer essas pontes. E eu acho que essa ideia de pensar um trabalho coletivo e
se dedicar aponta pra isso. Então, acho que esses esforços aí, todos que eu men-
cionei, eles são importantes como princípios políticos da classe. São princípios
políticos classistas, princípios políticos da classe revolucionária. Só que eu acho
que na atual conjuntura, existe uma necessidade de dar um salto mortal nisso
daí. É isso que eu queria trazer pra discussão. Eu acho que... Pra gente é coloca-
do um desafio de abrir mão um pouco da qualidade, do treino, do esforço, da
dedicação e de certa forma, bagunçar, embaralhar a figura, do militante e do
trabalhador da cultura. É uma coisa assim: o cara que faz a cena é o cara que faz
o barraco, que é o cara que puxa a assembleia, que é o cara que vai pro arreben-
to. Eu acho que existe um desafio aí importante de embaralhar essa figura. Na
medida em que esses princípios são princípios classistas, eles servem á luta de
classes. Então esses limiares, eles têm que ser bagunçados de alguma forma e eu
vejo um potencial nisso daí. Um potencial grande, pelo seguinte: além da mobili-
zação desses princípios que eu mencionei e que acho (que) inclusive entrariam
em choque com a dinâmica de muitas das nossas organizações... E um choque
interessante na verdade, um choque construtivo... Primeiro lugar, eu já vou con-
cluir aqui gente, só mais um pouquinho. É... Primeiro lugar, vocês são muito
numerosos em termos numéricos mesmo. Você vai pegar os grupos de teatro
que estão se reunindo e fazendo os rolê... Meu... É mais gente do que qualquer
coletivo político, do que de qualquer organização de esquerda hoje. Isso é uma...
Parece brincadeira, mas é o primeiro motivo óbvio. Além disso, eu acho que a
prática teatral estimula a capacidade de comunicação de um jeito muito interes-
sante. Ela propicia conhecimentos que potencializariam o caráter político orga-
nizativo e formativo de uma série de espaços. Por exemplo, espaços de reunião,
espaços de assembleia. Então, algumas técnicas que o teatro propicia, seriam
muito importantes para dinâmicas organizativas cotidianas.
Além disso, conhecimentos que vocês desenvolvem com a prática teatral - e eu
tô falando do teatro especificamente, mas a gente poderia ampliar isso pra ou-
tras áreas, pra coisa do vídeo, por exemplo, pra coisa do grafite, pra outras
áreas; mas falando especificamente do teatro - que se mobilizam, essas técnicas,
elas seriam muito importantes também, por exemplo, pra criar processos, espa-
ços culturais não mercantis. Ou seja, criar um espaço de cultura dinâmico numa
rua; seja numa comunidade, seja numa ocupação. Além disso, esse esforço cole-
tivo de criação pode ser muito importante pra questionar e pra desmistificar as
formas dominantes de produção e de circulação; de recepção da cultura. Eu não
172
tenho muito contato, tive algumas experiências simples com isso, mesmo na
coisa do teatro, mesmo não sendo do teatro, de fazer cenas com centenas de
pessoas por exemplo. Fazer uma bagunça ali; “vamos encenar tal coisa”... E esse
processo, é um processo muito louco mesmo... Que o resultado, em termos artís-
ticos, a gente pode falar: “é uma merda”. Mas processos que viam um potencial
muito louco... Tem uma coisa, por exemplo, no filme, que a gente acaba fazendo
bastante... De repente você fazer o filme junto com a galera meu, e começar a ver
que... Cara! O que é uma edição! Você muda a história entendeu? O filme não é a
verdade. Tem um processo de produção que são pessoas que fazem, que têm a
ver com uma série de discussões políticas, entende? Isso eu acho que tem um
impacto subversivo grande, que é a ideia da socialização dos meios de produção
da cultura. Enfim, pra concluir aqui... Mesmo buscando seguir essa tendência
política orientada que eu tava mencionando, estando então junto e misturado
com a classe, talvez seja possível mudar inclusive as condições de produção do
teatro, da música, das artes plásticas e os próprios padrões estéticos. Talvez a
perda de qualidade de hoje que a gente vê, e a gente vê também isso muito cla-
ramente, acho que inclusive com a Brava. A Brava eu já vi. “Ah, não criticar esse...
O engajamento.... Ah, mas isso aí. Os caras estão brincando de fazer o baguio, tão
perdendo aquela... Aquele primor pela qualidade.” Mas talvez, essa perda de
qualidade hoje, se verifique como ganho de qualidade amanhã. Qualidade no
sentido de subverter os padrões de qualidade. E eu acho também o seguinte
meu: se nesse caminho aí a gente for totalmente derrotado, (se) não rolar, eu
fico me questionando o que que a gente perdeu tentando. Se a gente tá numa
condição tão arrasada, o que que a gente perdeu? Se a gente se voltar comple-
tamente à busca de um padrão totalmente elitista de produção cultural tal será:
a gente vai realmente perder alguma coisa. Então, só pra reforçar aqui as ideias,
eu selecionei três trechinhos; eu acabei lendo esse texto aí do Benjamin e aca-
bou que ficando na minha cabeça.
Então, três trechinhos, só pra lançar como provocação aqui pro debate começar:
um texto que se chama “O Autor como Produtor”. Ele fala o seguinte, pensando
no escritor, que muitas vezes, o artista, o trabalhador da cultura, acredita con-
tribuir com a luta de classe estando ao lado do proletariado, ou lado a lado das
organizações de classe. O Benjamin fala desse lugar: “o lugar de um protetor, de
um mecenas ideológico, um lugar impossível”. Então é preciso estar muito aten-
to pra não buscar esse lugar, nunca estar ao lado - ser parte. No outro trecho ele
fala o seguinte: “a tarefa mais urgente do escritor moderno é chegar à consciên-
cia de quão pobre ele é e de quanto ele precisa ser pobre pra poder começar de
novo”. Romper com esse “salto alto” da ideia do artista como algo mais elevado,
superior. Novamente com a ideia de um membro da classe. E por fim, ele fala o
seguinte: “o caráter modelar da produção é, portanto decisivo. Em primeiro
lugar ela deve orientar outros produtores em sua produção; e em segundo lugar,
precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é
173
tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja,
quanto maior for a sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores
ou expectadores.” Que acho que é a ideia da socialização dos meios de produção.
No caso aqui, os meios de produção da cultura. Então enfim, falei pra caramba,
meio bagunçado e tal... Mas eram essas as reflexões que eu queria trazer pro
debate.
174
do é que, por um lado, eu concordo quando você fala, numa análise geral, mas
numa análise material, mesmo, eu acho... Não é uma opinião que eu posso falar
que é nossa, da Brava, mas eu acho que é bastante. A gente, por exemplo, deixa
de falar acesso em alguns níveis pra falar em formação de quadro, quando a
gente dá um curso aqui. É explicar pra que essa técnica, por que essa história de
“gesto contraditório”, e “porque que eu to aprendendo isso e não to aprendendo
a teoria do drama?”.
A gente precisa saber explicar isso pro cara que tá fazendo. Porque é uma arma
que ele tem, de alguma maneira, dentro do instrumento do simbólico; mas não
consigo separar em nenhum momento quando o teatro entra, porque ele não faz
parte da sociedade. Dessa sociedade ele não faz parte; nós estamos atrás disso.
Quem faz parte é a indústria cultural. Pra mim é um pouco complicado entender
essa questão do abandono da técnica, que não é primor e não é penduricalho. E
pra acabar, eu acho que ela tá muito dentro do que a Iná Camargo coloca nesse
tema, que é pra clarificar o conteúdo, porque se não, a gente se perde; e como a
gente tá organizado nessa base do capital, da produção econômica, não é só em
cima dela que a gente vai fazer a coisa, mas ela existe, e ela tá ditando um monte
de coisa. Se a gente não ficar esperto, a gente reforça. Enfim, é um pouco isso. E
aí cara, quando você fala mal das pernas, ontem a gente tava aqui com o jornal
do Engenho Teatral, que coloca aqui a pauta do movimento social popular. Essa
pauta é reformista ao extremo. Aí, nesse sentido, eu falo: nós do teatro tâmo
anacrônico pra caramba, porque se a gente for pautar essa luta, se é com esse
movimento social que a gente tá querendo dialogar, a gente tá ferrado!
Luciana Gabriel (Brava Companhia): Eu entendi que você falou numa relação
mais de dividir os esforços. Não mais 24 horas na sala de ensaio, mas sim dividir
isso com a militância e a convivência com a luta. E eu acho que isso não abando-
na a técnica. Eu acho que abandonar a técnica é diferente de dividir o esforço da
técnica com a militância. E acho que isso tem acontecido muito. Eu acho que a
gente tá aprendendo a fazer isso. Cada vez mais, principalmente com o Sacolão.
Mas eu consigo entender quando você fala dessa criação da estética. Acho que a
gente podia até conversar mais sobre isso.
175
desse fazer uma reunião fazendo uma cena antes, fazendo sei lá... Acho que vo-
cês podem imaginar qual é a nossa dificuldade de tentar fortalecer a luta nas
comunidades; o tamanho dos poderes contrários à organização da luta no inte-
rior das comunidades é imenso. Então a gente pensa em todos os métodos pos-
síveis. O vídeo é um desses instrumentos que a gente usa, como um instrumento
de luta. É uma produção, não dá nem pra falar que é estética no nosso caso, mas
é uma produção cultural. Ela tem um resultado e tal, mas o que importa é esse
processo, o processo de fazer o vídeo; quando a gente vai, entra na comunidade,
grava os depoimentos, conversa com as pessoas que a gente conhece e com ou-
tras que a gente não conhece, ensina a fazer edição de vídeo junto, senta lá e
passa a madrugada junto fazendo. Então esse processo é socializar mesmo. Você
sabe (que em) qualquer computador você pode por um programa de fazer edi-
ção lá dentro e as pessoas aprendem. Tipo se tem na mão um poder. Um poder
que é de contar história à partir do vídeo. Que é isso: a gente pode mudar a his-
tória. Você vê lá o que a Globo faz: corta sua entrevista e coloca só um pedacinho
lá: “Ah, então a Dona Maria não falou aquilo lá”... Porque acho que esse processo
que tem que ser prático e é por isso que eu acho que é bem importante a gente
pensar nisso. A luta de classes, ela acontece na prática. É essa prática de luta,
não adianta fazer reunião, não adianta... Tem que ter esse processo de a gente
aprender a fazer as lutas juntos.
176
coloca lá uma cutucada, uma autocrítica,
pra ver se os nossos companheiros pes-
cam, se eles entendem. Alguns entendem,
outros nem entendem. Pra você ter uma
ideia, nem entende a piada. Então essa é
uma questão que eu acho importante
debater. Outra coisa que eu acho.. Aí
falando do teatro enquanto linguagem e
que pode estar a serviço mesmo de uma
luta de classes, acho que tem uma coisa
muito legal no teatro que a gente não
pode perder de vista também, e que eu
acho que não é de todo teatro. Não é todo
tipo de teatro que tem. É a questão da
ação. Tem o nosso estudo teórico, tem o
nosso estudo técnico, quando a gente fica
lá mexendo o corpo que nem uns... Sei
lá... Mas tem a ação O fazer. Estuda, deba-
te, mas faz . Faz, faz e faz. Eu acho que
isso é uma potência, cara. Eu percebi isso quando eu aprendi a fazer teatro. Eu
aprendi a fazer teatro desse jeito, de uma maneira divertida, livre, e de ação.
Improvisa! Bicho, você precisa criar aí um outro planeta? Vai lá e cria. Se vira.
Então, quando você se toca que você pode fazer qualquer coisa com a linguagem,
você fala: “puta merda”! Porque depois você transfere isso pra outra instância
da sua vida. Aí você fala: “porra eu posso conseguir fazer qualquer coisa na vida.
Basta eu querer. Basta eu ir lá e fazer. Ter a ação, ter o primeiro impulso”. Então
eu gosto muito de ver esse nosso teatro aqui - aí falando no teatro da Brava -
como um teatro de movimento. A gente se mexe muito. E um teatro em movi-
mento porque a gente tá sempre se mudando e mudando. Olhando o mundo e se
moldando de acordo com as situações e jogando com isso. E aí você tem outras
maneiras de fazer teatro que não vão por aí. E tem muito essa coisa da questão
do drama que o Fábio colocou, que aí já tá muito pautado pela indústria cultural.
É como diz a Iná, é o modelo, ou é o gênero que dá régua e compasso pra toda a
produção cultural da indústria de massa.
É o drama, o drama burguês, que coloca lá o drama individual, do cara que re-
solve os problemas sozinho ou se fode sozinho, mas ele tá sempre sozinho, ele
nunca tá no coletivo. Então, essa é outra questão. Não é todo teatro que eu acho
que pode contribuir de uma forma positiva com a luta. Então, acho que tem es-
sas duas questões pra depois a gente pensar e debater.
177
polícia lá pra tirar os caras, e aí, era bem no centro do Rio, e a população criou
uma unidade de classe ali. Eles se identificaram com o trabalhador pela condição
que ele tava, aquela condição não burguesa, de estar exposto, no sacrifício. Eu
acho que até tem alguma coisa da relação do drama, mas é... Se identificaram. E
aí, naquele momento, criaram uma zona libertária ali, mesmo temporária, que
aconteceu e depois desfez, mas ali eles se juntaram e todos os signos e os códi-
gos foram se formando, até como uma dramaturgia e as pessoas foram relacio-
nando aquela situação ao Brasil e foram falando. E falaram sobre polícia, sobre
liberdade a partir de uma situação de conflito clara entre Estado, poder e traba-
lhador; e nessa situação, não houve uma veia ideológica antecipada colocada
pelo rapaz da estátua.
Ele não começou a fazer um discurso ali, e aí, de repente, as pessoas aderiram.
Ele simplesmente ficou em silêncio, ele (se) manteve ali, e a coisa se formou em
torno. E muitas vezes, a gente, por exemplo, lá em Santos, a gente não tem um
espaço próprio ainda, mas a gente tem contato com várias comunidades. Algu-
mas organizadas, outras menos organizadas, algumas organizadas em torno de
lideranças que tão buscando só um espaço político, outras realmente têm uma
base mais solidificada; e a gente também percebe que a coisa tá tão deturpada,
que até a maneira dessa relação é muito difícil. Porque a princípio, os caras têm
a mesma leitura do teatro que o cara que mora num apartamento por andar.
Então, eles querem o entretenimento, eles querem que você vá fazer para as
crianças e os adultos nem se incomodam em assistir, nem se levantam pra assis-
tir. Não tem um diálogo. Conversam com você como se você não fizesse parte
daquilo. Então eu acho também que são interessantes esses momentos pra po-
der vislumbrar estratégias de aproximação e de diálogo. Porque aí, por exem-
plo... Aí a gente tentou... Outra coisa que a gente tentou em Santos também era
criar parcerias e elos profundos com os sindicatos, mas também, puta meu...
Sindicato dos bancários, tá certo sindicato extremamente burguês, mas os caras
pelo menos são organizados, tem uma organização forte pelo Brasil, muito com-
plicado. Sindicato dos metalúrgicos, guerra política interna que passa por cima
de tudo. E no sindicato do porto também, que tem uma história mais bacana,
mas também é muito complicado, porque eles sofrem o mesmo processo que a
gente. Então num cenário, onde, como você falou, é difícil pros grupos artísticos,
entre aspas, identificar quais são as organizações onde você tem um germe fe-
cundo, que você possa dialogar... E muitas intenções esbarram aí.
Márcio Rodrigues (Brava Companhia): Eu acho uma provocação essa sua fala.
E uma boa provocação. Há um tempo a gente vem pensando em como podemos
sermos mais - eu não sei se é a palavra certa - “útil” para essas lutas. Porque tá
no nosso teatro, tá na nossa vida, tá passando por nós. Tudo bem que o que a
gente faz é matéria de ação, então a gente apresenta, provoca e sai. Mas a gente
vem pensando: como a gente consegue ser mais útil? Eu não sei se gosto da pa-
178
lavra. Tem muita coisa que acontece e quando a gente se coloca nessa posição
que a gente tá aqui, no Sacolão das Artes, no Parque Santo Antônio, com o tipo
de teatro que a gente faz, com essa realidade que nos perpassa. E tem o outro
lado, que você fala assim: “eu vou tentar pegar o dinheiro público e tentar trazer
pra cá”. Porque nunca ve. A gente olha e fala: “é pouco, por mais que seja assim,
é pouco”. Mas não dá pra gente ser herói. Eu acho que essa palavra é terrível. E
muito da situação que a gente vive hoje é por conta de heroísmo, é por conta
dessa coisa, dessa semente que foi plantada, do nosso herói Jesus Cristo, o pri-
meiro herói. Se matou por todo mundo.
João Paulo (Trupe Olho da Rua – Santos-SP): Sobre essa questão da estética e
da opção de ter uma preocupação com a estética, ela se torna na verdade, ins-
trumento; pela questão da luta de classes. Porque a classe dominante escolhe
uma determinada estética, uma determinada forma de colocar sua arte para
poder impor o seu estado, a sua ideologia, a sua forma de pensar; e aí enquanto
artistas, com essa vertente, com essa preocupação, a gente usa dessa própria
estética deles pra poder fragmentar e aí, analisá-la e revelar seus mecanismos
de imposição de ideologia da classe dominante. Eu acho que é uma forma que
gente tem pra poder mostrar a verdadeira realidade pra sociedade. Eu acho que
isso contribui com a luta de classes. Você tem também o recurso da comédia,
quando ridiculariza esses mecanismos. Por exemplo, agora em Santos, domingo,
vai acontecer a Orquestra Sinfônica do Estado e ela vai fechar lá sua temporada.
Vai fechar na praia, no Canal 3, que é o bairro o mais chique de Santos. Eu vou lá
todo ano e é uma coisa linda, eu me sinto numa novela das oito, porque é im-
pressionante a orquestra, o palco maravilhoso, o pôr do sol, a praia... Realmente
é maravilhoso! E eu quero isso! E aqueles prédios milionários ali na frente...
Então, você se toca. É necessário que você tenha consciência desses mecanismos
estéticos que o sistema se utiliza pra poder impor sua ideologia pra você revelar
pra sociedade pela qual a gente luta, pela qual estamos juntos, e revelar esses
signos que estão ali.
Dani (Rede de Comunidades do Extremo Sul de São Paulo): Ainda sobre esse
debate da estética. O Fábio estava colocando aquela questão sobre a fala do Guto
como se fosse para se despir da técnica. Aí só pra pensar também que, usando a
mesma metáfora do Benjamin, acho que ele em momento nenhum coloca que é
uma negação da técnica. Porque se o tempo inteiro ele tá discutindo cultura, ele
tá analisando esse tipo de coisa. Então nunca é uma negação da técnica. Acho
que muito pelo contrário. Quando tem a tendência justa, a tendência política e a
tendência artística; quando ele tá falando, tá dentro daquele projeto que ele fala
também, a estética... É o contrário do fascismo, que é a estetização da política. E
ele (o fascismo) fala não à politização da arte. Acho que é um pouco o que a Ca-
rol já falou aqui. Quando a gente fala de fazer vídeo, por exemplo, que é um ins-
179
trumento que a gente tem. Porque a gente, por exemplo, não faz teatro e não
sabe dessa técnica, mas, quando a gente faz vídeo capenga, mas a gente faz, tem
uma coisa que produz uma estética - pelo menos eu acho que é assim que a gen-
te passa a entender esse tipo de coisa, de juntar uma arte ou o que pode ser arte
com militância. Ela é a própria... A produção coletiva, os princípios da classe que
o Guto colocou aqui que acabam sendo princípios que são da cultura também,
quando eles estão transformados numa produção coletiva, numa produção au-
tônoma, eles estão juntos, junto e misturado com a classe. Eles produzem uma
estética. Não que é automaticamente. É uma estética diversa. Pelo menos eu
tendo a enxergar assim, porque, é isso... O teatro que vocês fazem, por exemplo.
Tem lá estética do teatro mercadoria e vocês têm a estética de um teatro coleti-
vo. Porque é isso. Vocês tão falando do drama? Não, vocês colocam uma outra
coisa, uma forma de produção. Não é a discussão do conteúdo. Eu pelo menos
não analisaria nenhuma forma de arte. Eu acho que analisaria a partir desse
ponto de vista do conteúdo. Então como vocês estão fazendo, é coletivo. São
todos aqueles princípios que a gente tava falando aqui. Que é o que resta hoje.
Muito pouco... Há os ideais, a ideologia do capital, que o que vem falar pra gente
é o individual, é cada um por si, é a estética do entretenimento. E a gente produ-
zindo junto, produzindo de outra forma e misturado com a classe e pela classe.
Junto, na classe, ela produz, ela é uma estética diversa e eu acho que isso é o
principal. Então não é negar a técnica. A gente sabe que tem a própria técnica do
teatro, do fazer vídeo, do tocar música. Só que isso quando feito coletivamente, é
de todo mundo, e cresce, e aumenta e pode ser revolucionário também.
Fábio Resende (Brava Companhia): Eu não falei nem que ele falou pra fazer a
supressão da técnica. Não é isso. O que eu disse é que a gente tá ligado a questão
do tempo. Fazer parte do cotidiano significa re-significar a condição do tempo...
Porque pra mostrar a edição, pra falar pro cara que a edição é assim, tem que ter
tempo e tem que ter técnica. Pra ensaiar a cena do navio precisa ter técnica. É
nessa perspectiva que eu tô falando, e é nesse embate que a gente deveria se
colocar. E nem isso você vê aqui nas propostas reformistas dos movimentos
populares.
180
também pra você. Porque na hora que você vem, você quer fazer uma publicida-
de da luta, acho que vocês podem entender a metáfora pro teatro depois, mas
você vai falar daquela luta, daquele movimento, você tá falando bem, você tá
anunciando o que é, bacana. Agora se você parou pra pensar, olhar pra aquela
estrutura, isso que você tá falando, você olha pra uma pauta que é completa-
mente reformista, você olha o quanto esse movimento tá atrelado ao Estado e
tudo mais. Aí já é um problema a sua aproximação com esse movimento. Então,
acho que, aí de novo, insistir naqueles princípios que o Guto colocou aqui no
começo. É complicado também. Como é que a gente vai olhar, pra onde que a
gente vai atuar junto então, se tá tudo tão burocratizado, tão atrelado ao Estado,
tão junto ao capital. É por isso que eu falei que eu acho que a que gente tem que
olhar é pra forma que aquilo é produzido. O teatro é coletivo, ele é feito aqui no
espaço da galera. Então é a mesma coisa eu penso. Por exemplo, como é que a
gente vai chegar junto de movimentos, ou de sindicatos, ou de sei lá o que... Não
sei. As próprias pessoas, às vezes, que estão fazendo uma coisa na quebrada, que
às vezes tem muito mais pra dizer, que tão lutando todo dia e não tão talvez de
uma forma burocratizada... Mas é aqui que tá, é fazer junto e a novidade começa
daí, então.
181
poder popular na periferia
também é, enfim, uma
tarefa desse momento
histórico.
182
aí eu vou trazer pra uma coisa mais imediata, sem querer reduzir o tema a isso,
sem querer reduzir a discussão a isso, mas falar da questão da Rede. A Rede
surge por um conjunto de militantes que militaram em organizações mais con-
solidadas, e ela vem com uma série, dentro dessa análise de conjuntura que a
gente foi construindo conjuntamente, e tem alguns princípios. Um deles é pen-
sar a dimensão territorial, pensar toda essa riqueza que tem no território, no
geral, totalmente regressivo. Há coisas terríveis, toda uma série de forças aí
muito brutais, muito consolidadas e tal... Mas pensar esse território, pensar a
população que vive nesse território, pensar formas de luta que podem se desen-
volver nesse território, e ao não perceber espaços que a gente conseguisse se
inserir, no sentido de pensar um trabalho mais em longo prazo, mais orgânico, a
gente pensou: “puta, vamos ousar experimentar alguma coisa autônoma”, então,
a gente chegou num limite de falar, “puta, não vai dar pra gente atuar, chegar
numa organização e virar militante orgânico da organização” A gente falou:
“vamos tentar um processo novo”. Não no sentido de que se parte do zero nem
nada disso, tipo inventando a roda... Mas é um espaço que não tem uma bandeira
prévia, e quem sabe, dependendo do andamento do projeto, levantar uma ban-
deira, desse processo. Esse foi um desafio nosso. Por exemplo, isso que você tava
falando. Meu, tudo bem, tâmo tudo fudido. Tâmo todo mundo e tal, mas a gente
tem que pensar, dentro dos nossos princípios, até onde a gente vai, até onde a
gente não vai.
Que limiar a gente não cruza. Então você lê uma pauta, de uma organização
cheia de pauta pelega, reformista e o caralho, e você fala: “filho, tamo tomando
de pau”. Mas tem que se posicionar diante disso. Eu penso que a história da es-
querda mostra a tragédia do reformismo. Claro que o motor principal não é o
reformismo, não são as organizações, é o capital. Tem gente que é muito fácil:
critica toda a história, resume a história da esquerda em um parágrafo: “olha
que merda, aconteceu isso, daí não temos que entender que a gente tá numa
sociedade antagônica na qual o inimigo é muito mais forte”. Então, no geral, as
experiências mais radicais são destroçadas, e o que sobra, é um resto disso. E no
geral, é o reformismo (que) consegue sobreviver a isso, e é uma dimensão trági-
ca da esquerda. Sucumbir ao reformismo é a pior tragédia. É virar um cúmplice
do fortalecimento do capital, e isso aí a gente tem exemplos que vão desde, sei lá
onde.... Desde que capitalismo é capitalismo. Mas a gente pode pensar não só a
experiência petista, mas a experiência da social democracia no início do século
passado. Enfim, aquela ideia de resgatar a história da esquerda. Então eu acho
que as organizações, na medida em que se vêem como forças políticas, mesmo
as organizações que num primeiro momento, estão trabalhando diretamente
com a cultura, com o teatro, que se veem como força política, não podem se fur-
tar desse debate. Têm que se posicionar. Então, conseguimos um espaço interes-
sante pra atuar junto com ao MST? Firmeza. Então o processo vai partir daí.
Primeiramente a gente vai apresentar, mas amanhã a gente vai ver: “puta, a
183
gente vai apresentar, mas a gente viu que tem um problema de organicidade ali.
Os caras têm uma demanda de tal coisa... Puta, não era bem a nossa proposta
inicial”. Mas um ou outro membro do coletivo vai pensar: “puta, eu podia somar
nisso daí. Ah, tá faltando tal coisa. Pô, tenho experiência da educação que os
caras estão pensando, mas tá meio patinando, então vou lá, vou tentar somar”. E
nisso daí as coisas se desdobram. Trazendo pra experiência, por exemplo, da
Rede, pra concluir essa fala novamente longa. Eu acho que tem uma coisa que se
vive. Por exemplo, fazer um sarau na quebrada. A gente não conseguiu ainda
pensar um processo mais contínuo e, de fato, aproveitar os potenciais daquele
espaço. Mas chegar num lugar que tem poucas opções de a pessoa ficar de boa,
sem ter que consumir, e poder conversar, poder trombar gente conhecida, poder
de repente falar, se expressar, contar um causo, tocar uma música. Meu, você
criar, chegar na rua lá, botar uma fogueira e começar a construir esse espaço...
Pô, a gente pode pensar, num primeiro momento, que é um negócio besta, mas
tem um potencial. Vira uma força política dentro da comunidade, muda a con-
juntura, e as pessoas começam a dialogar e começam a surgir pautas políticas
dentro daquilo.
Porque o cara vai falar da sua realidade, e então você vai descobrir amanhã que
aquela comunidade dali, tá sem creche, e o espaço do sarau vira um espaço de
articulação. Você foi lá fazer um sarau, amanhã você tá se vendo puxando uma
assembleia pra fazer a luta da creche, ou então a luta do anti-despejo, e é nesse
sentido que eu tava falando de embaralhar os papéis. Na medida em que você
chega a um contexto que tem uma cumplicidade muito grande, e se você tá aber-
to a esse contexto, essa bagunça vai acontecendo e, às vezes, você vai achar um
potencial nisso daí.
Por exemplo, nisso: “puta meu, vamos fazer uma cena, vamos fazer uma impro-
visação?” Às vezes o processo é meio tosco, se comparado aos processos de cria-
ção que têm um grupo de teatro, mesmo que nesse sentido, que eu tô falando de
abrir mão da técnica mais no sentido de abrir mão do preciosismo, entendeu? Às
vezes, você tem que dar uma resposta pra dialogar com as pessoas: “mano, va-
mos fazer a cena aqui, mano, tá... E vamos fazer um exercício de respiração.”
Puta, pode ser nada, mas às vezes já é um ganho, entendeu? As pessoas se sen-
tem já exercitando, sentem o corpo diferente... Vamos pensar como a gente re-
presenta o opressor? Como a gente representa a construtora que tá derrubando
a sua casa? Surge um negócio. De repente, o resultado pode ser um resultado
tosco, mas isso é um processo político e a gente já viveu experiências em que
essa foi a porta de entrada pra formação de um processo político muito mais
amplo e pra formação de militantes orgânicos dentro de um espaço. Aquele
espaço que primeiro parece uma coisa meio café-com-leite. “Ah cultura, vamos
entreter ali. Às vezes, se revela um eixo político de alguns processos. Então era
nesse sentido que eu queria falar, essa bagunça da figura do militante e do tra-
balhador da cultura. E essa ideia de você se posicionar no interior de um proces-
184
so, não ficar subalterno. Não estamos prestando serviço, estamos fazendo um
trabalho que é político. Então se a gente vai chegar e, de repente, se esbarrar
com princípios políticos, a gente vai se posicionar, e se a gente se posicionar e
vir que não tem como, não tem correlação de força, por exemplo, pra pautar
esses princípios, mano, a gente vai ter que recolher a cuia e ir pra outra.
A gente vai ter que fechar as malas e ir pra outro processo. E eu acho que esse é
um processo de fortalecimento, um caminho meio natural de fortalecimento.
Então é isso: “porra quero conhecer o movimento e tal”. Num primeiro momen-
to, tem que conhecer, mano... Esse negócio de movimento ficar falando sobre si
mesmo... “Ah vamos falar da Rede”! Eu sou muito cético sobre isso. Um movi-
mento fazendo um discurso sobre ele mesmo, tá ligado? Acho que tem um abis-
mo entre aquilo que a gente formula e aquilo que a gente faz. E sempre tem,
infelizmente. Somar é viver, minimamente, o cotidiano.
185
futura peça teatral, que tem como eixo de discurso o tripé: A Imagem (Jesus e
religião), O Trabalho (o processo histórico da alienação, da formação da classe
operária e das lutas desta classe), O teatro (modo de produção e contra-
imagem).
Nossos estudos sobre esta contra imagem, Jesus e trabalho, têm se efetuado
diariamente, inclusive nos momentos para criação da peça “Corinthians, meu
amor”, em que a religião é ex-
tremamente criticada e a figura
de Jesus é apresentada como
prólogo do que estamos pesqui-
sando e anúncio de nossa conti-
nuidade acerca do tema. Em
algumas cenas, a imagem de
Jesus, surge desnaturalizada,
incapaz de resolver os proble-
mas da realidade material, ou
seja, é apresentada de maneira
contrária a seu reconhecimento imediato que está ligado a um poder transcen-
dental que é imagem e, aparentemente, imutável.
Feurbach escreve que não são os deuses que criam o homem a sua imagem
e semelhança, mas sim, os homens que engendram seus deuses à sua imagem e
semelhança. Um fosso, sem pontes, apenas imagens
A figura do Cristo é separada do humano na terra, separação que confere a
alienação sobre o processo histórico de sua existência e ao mesmo tempo cria
um fosso entre a figura histórica e o humano. E e quão maior este fosso, maior
seu aspecto sagrado e absoluto. De igual forma, as relações das forças produti-
vas, do trabalho, estão separadas pelo mesmo fosso onde figuram a classe domi-
nante e a classe trabalhadora. Porém, este fosso imenso é preenchido por ima-
gens de uma só classe, a da classe dominante, que apregoa seus valores hege-
mônicos defendidos pelo Estado e suas estruturas de controle, também separa-
do da classe trabalhadora, por este fosso de imagens.
A arte na sociedade do espetáculo é compelida pela indústria cultural que é
instrumento da ideologia e serve aos interesses da hegemonia. Esta indústria
pauta e cria com rigor os cânones “da bela arte”, “do que é bom”, “do que é bem
feito”, ela figura dentro da pós modernidade que promove o “fim da história”
186
dentro do fosso que ela própria ajuda a manter, ou seja, cria, por meio das mais
avançadas forças produtivas dentro do campo simbólico, a naturalização de sua
existência e a pseudo necessidade do homem em consumir sua produção, sua
mercadoria. Diz Adorno a respeito disso: “que o princípio impõe que todas as
necessidades lhe sejam apresentadas como podendo ser satisfeitas pela indús-
tria cultural, mas, por outro lado, que essas necessidades sejam de antemão
organizadas de tal sorte que eles vejam nelas unicamente como um eterno con-
sumidor, um objeto da indústria da cultura.”
As mediações de ordem religiosa, simbólica e política precisam ser enfren-
tadas pela ação histórica e teórica do gênero humano, pela contra imagem.
Pois bem, imaginemos a seguinte peça de teatro: um grupo de teatro, na
sociedade do espetáculo, que realiza a montagem de uma peça sobre a história
de Jesus Cristo e que durante esta montagem, trate da importância e função da
arte como ferramenta a serviço da crítica, do processo de acumulação do capital
defendido pela religião, da produção das imagens a serviço da indústria cultural,
da hegemonia e seus valores dominantes e dos paralelos entre a história de
Jesus e a história da classe operária, suas lutas e seu processo de alienação.
No apocalipse está escrito que aquele que alterar qualquer palavra escrita
na bíblia, seu nome será retirado da cidade santa e sobre sua cabeça cairão to-
das as pragas descritas naquele livro. É colocado na conta de Jesus que tudo o
que fora escrito por intermédio de Deus, fora feito em favor da Igreja. Desta
forma pode-se questionar: a Igreja representa o que? A religião. Resposta rápi-
da. A religião existe para que? Para defender os interesses de Deus. E onde está
Deus na terra? No Brasil está nas notas de dinheiro (Real): “Deus seja Louvado”.
Então Deus está colocado a serviço do dinheiro? Sim, faria-nos continuar. Conti-
nuemos! A religião representa os interesses do dinheiro. E o dinheiro está a
serviço do Capital. Então a Igreja está a serviço do Estado que defende os inte-
resses do Capital. E onde está Deus agora? Deus nesta conta não existe é apenas
imagem para confundir, e a imagem é construída pela ideologia. E quem é a
ideologia? É parceira da religião na defesa do Estado que defende o Capital que
circula de forma acumulada na mão de poucos. Então o Estado defende os inte-
187
resses de poucos? Sim. E quem são os poucos? Os burgueses. Então, o Estado é
burguês! E o resto? Para os interesses do Capital é resto formado por milhões
que confiam sua vida ao Estado e dedicam seu espírito a Deus, que no apocalipse
disse: “Escreveu não leu, o pau comeu!” Mais ou menos assim.
“- Os atores sempre alcançam grande sucesso em suas peças. Você está sa-
tisfeito com eles? - Não. - Por que representam mal? - Não. Porque repre-
sentam errado. - Então como deveriam representar? -Para um público da
idade científica. - O que significa isso? - Demonstrando o seu conhecimen-
to. - Conhecimento de quê? - Das relações humanas, do comportamento
humano e da capacidade humana. - Está bem; isso é o que precisam saber:
mas como podem demonstra-lo? -Conscientemente, sugestivamente, des-
critivamente. -Como fazem atualmente? - Por meio de uma hipnose. En-
tram em transe e levam a plateia com eles. (...) - Devemos então ver ciência
no teatro? - Não. Teatro.”
Bertolt Brecht
Ler os comentários a respeito deste trecho, feitos por Terry Eagleton em seu
livro “Jesus Cristo – Os Evangelhos”, juntamente com os seguintes trechos esco-
lhidos do prefácio do livro:
“A ideia de que um duro e ambicioso governador de uma turbulenta província
romana pudesse agir com tanta fraqueza não é convincente. Ainda uma vez é
provável que esse seja uma história que pretende apontar as autoridades judai-
cas como responsáveis pela morte de Jesus. Na verdade, apenas os romanos
tinham autoridade política para executar. E a crucificação era um método de
execução especificamente romano (...) pode –se dizer que esse texto foi o que
mais influiu na formação do anti semitismo cristão.”
“Jesus Cristo foi um revolucionário? É certo que ele circulava em companhia
politicamente bastante suspeita. Um de seus companheiros, do círculo mais
íntimo, era conhecido como Simão o Zelote, pois pertencia à seita dos zelotes,
movimento clandestino anti-imperialista dedicado a expulsar os romanos da
Palestina.”
“Ainda sobre os milagres de Jesus, cabe observar que aqueles que liam sobre
eles, logo que os evangelhos foram escritos, não teriam aceitado a todos literal-
mente(...) Antes os considerariam atos, tomados de empréstimo a antigas fábu-
188
las, que algumas vezes estavam a li, a título de parábolas não de relatos históri-
cos.”
“Pode ser que a violenta atuação de Jesus ao tentar limpar o templo dos vendi-
lhões, - agentes de câmbio e vendedores de animais consagrados ao sacrifício-
que beirava perigosamente a blasfêmia tenha sido o suficiente para que seus
adversários o pregassem na cruz. Atentar contra o tempo significava um golpe
contra Israel. (...) Os dirigentes do templo controlavam a moeda corrente e a
economia de Israel”
“Se os autores dos evangelhos amenizam a vileza de Pilatos, ao mesmo tempo
que carregam as tintas na responsabilidade dos judeus pela morte de Jesus, é
porque a Igreja dos primeiros tempos tinha suas próprias razões para cultivar
uma relação com as autoridades imperiais”
“O corpo alquebrado de Jesus é o verdadeiro significado da lei. Aqueles que são
fiéis ao companheirismo humano serão eliminados pelo Estado”
“Os Evangelhos são documentos da Igreja dos primeiros tempos, nos quais os
eventos são modelados e padronizados par ilustrar o que o autor assume serem
verdades teológicas”
“Terá sido Jesus, então, um revolucionário? Não em qualquer sentido que Lênin
ou Trotski pudessem reconhecer. Mas isso acontece por que Jesus era mais ou
menos revolucionário que Lenin e Trótski. Decerto Jesus era menos revolucio-
nário(...) não propôs derrubar a estrutura de poder com que se defrontou. (...)
Jesus esperava que ela fosse logo substituída por uma outra forma de existência
mais aperfeiçoada em sua justiça, paz, fraternidade e exuberância do espírito
que Lenin e Trótski jamais poderiam ter imaginado. Talvez então a resposta não
seja que Jesus foi mais ou menos revolucionário, que que foi, ao mesmo tempo,
mais e menos revolucionário que Lênin e Trótski.”
Propor ao grupo 2 que interrompa, sempre que quiser, com perguntas aos ato-
res que fazem a cena, sobre a cena, questionando os acontecimentos, os fatos, as
opções, etc
189
Ao grupo 1 cabe querer continuar a cena, a representação, levando em conta as
perguntas dos atores (público), mas tendo como foco a necessidade de continui-
dade desta cena
190
9ª estação – Jesus cai pela terceira vez
10ª estação – Jesus é despido de suas vestes – mateus 27:28
11ª estação – Jesus é pregado na cruz
12ª estação – Jesus morre na cruz – Mateus 27: 45 – 46; Marcos 15:33-41,
Lucas 23:44-49
13ª estação – Jesus é descido da cruz e entregue à sua mãe
14ª estação – Jesus é sepultado Mateus 27: 57 - 61, marcos 15: 42- 47, lucas
23: 50-56
Durante o período que se faz este trabalho de pesquisa prática, deve-se continu-
ar pesquisando outros eixos da contra imagem, ligados a Jesus e ao trabalho.
191
3. Apreciação da cena dos Vendilhões do Templo descrita na Bíblia, e
como foi realizada no filme Jesus de Montréal, ou seja, dentro de um
estúdio de gravação publicitária.
C - Comentários
192
fábrica? Etc...” Toda a vez que quem apresentou o objeto não souber respon-
der à pergunta o objeto é colocado a parte, e nele é posto uma frase: “Não sa-
bemos” - (dizer o que não se sabe sobre ele).
Este jogo pode ser refeito mais a frente com os objetos escolhidos para ence-
nação da futura peça, e o
que não se sabe sobre eles
pode ser afixado nos pró-
prios objetos cênicos.
B- Pedir ao grupo que con-
feccione uma cruz de ma-
deira em nossa marcenaria
montada no espaço do Sa-
colão. O provocador do jogo
anotará toda a conversa
que surge durante este tra-
balho
C- Dividir o grupo em duplas e propor a seguinte frase para o improviso.
“Enquanto os marceneiros faziam a cruz, onde o Cristo foi posto, sobre o que
conversavam? “
D- Apresentação e comentários sobre as cenas e as conversas que surgiram
durante a feitura da cruz real e durante a feitura da cruz encenada.
Mais à frente, pode-se refazer esta cena, fazendo escolhas sobre as propostas
apresentadas.
Estas são anotações para ensaios, ou ensaios para ensaios, feitas durante o pro-
cesso de pesquisa sobre o tema e suas aplicações. Os ensaios acontecerão e neles
serão materializados nossa continuidade, nosso estudo, aprendizagem, coletivi-
dade e criação de nosso teatro da contra imagem.
“Quando um autor escreve um livro historiando seu teatro, em geral começa di-
zendo: “eu fiz isso e fiz aquilo”. Poucas vezes diz por quê e para quem aquilo e is-
so foram feitos. Como se o teatro existisse fora de tempo e lugar, sem destinatá-
rio.”
Augusto Boal
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Nosso teatro é feito por gente, é feito por pessoas que se dedicam à disputa do
campo simbólico, cultural, para expor criticamente em cena, no teatro, o reflexo
de nosso pensar, que perdura frente à aniquilação promovida pela indústria
cultural.
Continuaremos!
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Este livro foi composto em fonte Cambria, 10,5, papel Lux Cream 70g.,
com capa em papel Cartão Supremo 250g.
A Editora LiberArs utiliza papel oriundo de fontes de manipulação
e produção ambientalmente responsável.