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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Reler Marx hoje


Curso de graduação ministrado no Primeiro
Semestre de 2016
14 aulas

Vladimir Safatle

Edição Eletrônica: lima.bsd@gmail.com

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Reler Marx hoje
Aula 1

As ideias e a prática

“Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é


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transformá-lo” . Tenho certeza de que todos vocês conhecem esta frase e já
meditaram sobre ela em algum momento. Talvez não haja forma melhor de
começar um curso intitulado “Reler Marx hoje”, ministrado exatamente em
um Departamento de Filosofia, do que partir da discussão desta conhecida
afirmação presente nas “Teses sobre Feuerbach”. Afirmação muitas vezes
lida como um convite a um certo primado da prática e da ação sobre o que
seria entendido como a contemplação teórica do mundo produzida pela
filosofia e a distância pretensamente imposta por seus conceitos. Prática
que, ao contrário da multiplicidade de visões do mundo própria aos
filósofos com seus conflitos dissonantes e incessantes de interpretação,
seria conjugada no singular. Uma prática una, uma maneira de transformar o
mundo, contra a multiplicidade de interpretações dos filósofos. Como se
encontrássemos enfim a realização deste paradoxal desejo eminentemente
filosófico, desejo milenar, de encontrar uma ação que nos colocaria para
além das águas incertas dos conflitos de interpretação.
Se escolhi começar por esta afirmação, escrita em um rascunho nunca
publicado em vida por Marx, sem destinação certa, mas apenas
postumamente editado por Engels, que o anexará ao volume intitulado A
ideologia alemã, é por ela colocar em questão não apenas o estatuto da
filosofia enquanto discurso crítico, ao menos até o momento em que Marx
aparecer, mas também por ela problematizar o estatuto do próprio discurso
de Marx. Afinal, que tipo de textos são estes que leremos durante um
semestre? O capital, O 18 do brumário de Luis Bonaparte ainda são textos
de filosofia ou são textos de um outro regime discursivo, mais próximo da
intervenção política e da análise econômica? Marcuse afirmava: “todos os
conceitos filosóficos da teoria marxista são categorias econômicas e
sociais, enquanto que todas as categorias econômicas e sociais de Hegel [a
figura por excelência do discurso filosófico, ao mesmo no contexto alemão

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do século XIX] são conceitos filosóficos. Mesmo os primeiros trabalhos de
Marx não são filosóficos. Eles expressam a negação da filosofia, embora o
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façam em linguagem filosófica” .
Mas estaria Marcuse totalmente certo? Expressar a negação da
filosofia em linguagem filosófica não seria ainda, de certa forma, fazer
filosofia? E não deveríamos dizer o mesmo desta operação peculiar que
consiste em encontrar expressão de problemas filosóficos em categorias
econômicas e sociais? Ou seja, ao ler Marx encontraremos textos de quem
já teria deixado para trás a filosofia, de quem sai a pregar o abandono da
filosofia no interior de uma crítica geral da ideologia, ou são eles uma certa
forma de “realizar a filosofia”?
Partamos então de uma hipótese. Ela será testada no decorrer do
curso, servirá de guia para nossas leituras e aos poucos mostrará sua
pertinência ou não. A hipótese se enuncia da seguinte maneira: talvez, para
ler Marx hoje, devamos compreender como seus textos não representam
exatamente um abandono, mas uma realização insurrecional da filosofia.
“Insurrecional” por ser uma forma de realização que obriga a situação atual
que configura o mundo presente a se transformar, a devir outro (verändern)
permitindo a realização de uma emancipação que, como espero mostrar no
interior deste curso, é muito mais complexa do que estamos normalmente
dispostos a aceitar. Pois tal emancipação é incompreensível sem o recurso
a considerações filosóficas sobre a “essência humana” que estarão
claramente presentes no jovem Marx e que, contrariamente ao que
acreditam alguns, nunca serão abandonadas.
Recordemos rapidamente o contexto intelectual no qual Marx se
encontra ao escrever suas Teses sobre Feuerbach. Estamos em 1845-46.
Desde a morte de Hegel, em 1831, o pensamento alemão se vê assombrado
pelo tema do fim da filosofia, o que neste contexto significa, de forma mais
específica, assombrado pela necessidade de sair das “abstrações”
hegelianas e suas reconciliação pretensamente conservadoras por serem
aparentemente formais. Pós-hegelianos como Kierkegaard, Feuerbach,
Stirner, Marx tem em comum ao menos a crença de que deveríamos
abandonar o discurso filosófico (representado aqui pelo sistema hegeliano)
a fim de caminhar em direção à compreensão concreta dos processos e
indivíduos. Que tal caminho se dê pela recuperação da religião revelada
3
como modelo de libertação do indivíduo (Kierkegaard ), pela afirmação do
indivíduo como única existência real (Stirner) ou pela denúncia da teologia
ainda presente na filosofia a fim de reinstalar o pensamento em um modelo
peculiar de materialismo empirista (Feuerbach), o que temos é a enunciação

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de uma tarefa, que Marx fará sua, de abandono ou realização da filosofia
através do retorno às condições concretas. É ela que lhe levará, por
exemplo, a criticar de forma acerba o espiritualismo do idealismo próprio a
jovens hegelianos como Edgar e Bruno Bauer, Carl Reinhardt, Franz
Szeliga, entre outros.
Este campo do pós-hegelianismo é o campo de Marx. Ele se divide
claramente sobre o tema do caminho a seguir diante do reconhecimento
hegeliano de que, nos “tempos modernos”, o Espírito “perdeu” a imediatez
de sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como
substancialmente fundamentado em um poder, de natureza religiosa, capaz
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de unificar as várias esferas sociais de valores . Divide-se assim o campo
dos pós-hegelianismo em dois (a direita e a esquerda) levando em conta
inicialmente o problema do destino da experiência religiosa e suas
expectativas de unificação e reconciliação: “Da religião cristã, a direita
(Goeschel, Gabler, Bruno Bauer) adota positivamente, de acordo com a
distinção hegeliana entre o ‘conteúdo’ e a ‘forma’, o conteúdo, enquanto
que a esquerda submetia à sua crítica tanto a forma da representação
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religiosa quanto seu conteúdo” , de onde se segue a necessidade da guinada
materialista aberta por Feuerbach e seguida por Marx.
Neste contexto, Marx irá expor a singularidade de sua via ao
escrever, em suas Teses sobre Feuerbach que não se sai da filosofia através
da recuperação de um materialismo no qual a realidade é apreendida
apenas sob a forma do objeto ou da intuição (Anschauung), como quer
Feuerbach, nem (e este será um tema maior de A ideologia alemã) através
da elevação do indivíduo à condição de perspectiva concreta insuperável,
como quer Stirner. O materialismo é a via de afastamento da filosofia, mas
trata-se de qualificá-lo melhor, de defini-lo como perspectiva que nos
permite apreender a realidade como “atividade humana sensível” (sinnlich
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menschlische Tätigkeit) . Um peculiar “materialismo sem matéria”, para
falar com Balibar, pois um materialismo da atividade. É este conceito-
chave de “atividade” que permitirá a Marx afirmar:

A questão de saber se cabe ao pensar humano uma verdade objetiva –


não é uma questão de teoria, mas sim uma questão prática. É na praxis
que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o
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poder, o caráter terreno de seu pensar .

A princípio, a questão parece resolvida. Submeter critérios de


verdade à praxis, à atividade humana implicaria reconhecer que a essência

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humana é, como dirá Marx no mesmo texto, o “conjunto das relações
sociais” (das ensemble des gesellchaftlichen Verhältnisse) visando a
produção da realidade material com seus modos hegemônicos de vida; o
que fornece à verdade uma definição pragmática e historicamente
determinada. Mas, Marx estaria então a dizer que se abandona a filosofia
através de um certo pragmatismo que eleva o conjunto das relações sociais
à condição de fundamento historicista para nossos critérios de verdade? De
fato, seria este o caso se Marx estivesse interessado nas condições de
estabilidade sistêmica da situação atual, e não, como é seu caso, no
processo interno de transformação do “conjunto das relações sociais”. No
entanto, e aqui começa realmente o problema, como analisar a natureza de
tal processo interno, como compreender o movimento de transformação
social, qual é a natureza do movimento real em relação a outros
“movimentos aparentes”? Conhecemos várias formas de transformação
social da situação atual, algumas profundamente estruturais, mas nem todas
tem o mesmo valor para Marx, nem todas são descrições de processos
revolucionários. Lembremos a este respeito de suas análises sobre os
desdobramentos da revoltas de junho de 1848 com suas “paródias” de
transformações. Isto nos coloca uma questão maior: haveria então uma
definição diferencial do movimento propriamente revolucionário? A
posteridade de Marx mostrará como esta questão era, de fato, muito mais
complicada do que poderia parecer.
Neste contexto, vale a pena indicar inicialmente um caminho
provisório operando um certo salto de algumas décadas a fim de lembrar de
uma conhecida passagem do posfácio da segunda edição de O Capital.
Tentemos lê-la tendo nossa última tese sobre Feuerbach ressoando ao
fundo:

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente


do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o
processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo
a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo
efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro.
Para mim, ao contrário o ideal não é mais do que o material,
transposto e traduzido na cabeça do homem (...) A mistificação que a
dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele
tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas
formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen). Nele,
ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de
descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. Em sua forma

6
mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque parecia
glorificar o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um
escândalo, um horror para a burguesia e seus porta-vozes
doutrinários, uma vez que, o entendimento positivo do
existente/permanente (Bestehenden), inclui, ao mesmo tempo, o
entendimento de sua negação, de sua necessária passagem
(Untergangs). Além disso, apreende toda forma desenvolvida no
fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque
não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e
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revolucionária .

Notem quão admirável é a tensão própria à construção textual de Marx.


Décadas depois das “Teses sobre Feuerbach”, Marx começa por falar que
ele possui um método presente em suas reflexões econômicas e políticas.
Um método que, de certa forma, o vincula à filosofia, mas que para ser
efetivamente realizado precisa passar no seu oposto, quase se estivéssemos
a assistir a aplicação de uma guinada dialética à própria dialética. Isto lhe
permite terminar afirmando que a dialética, quando não se deixa intimidar
por nada, ou seja, quando opera expressando o movimento interno dos
objetos com os quais ela lida, quando apreende toda forma desenvolvida no
fluxo do movimento, é não apenas perspectiva crítica, mas também ação
revolucionária. Ou seja, ela opera a transformação que as interpretações do
mundo eram incapazes de produzir, pois mostra como o entendimento
correto do que existe inclui a compreensão da necessidade de sua
transformação, do movimento real que supera o estado de coisas existente.
Quando não se deixa intimidar por nada, a dialética não fornece uma
interpretação que justifica o existente, nem é a base para a aplicação de um
programa de reforma social e de educação das massas no estilo daquele
proposto pelos socialistas utópicos (Fourier, Saint-Simon). Ela é a lei de
modificação, o entendimento do princípio de transformação que abre o
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mundo e os sujeitos ao que ainda não se realizou . Afinal, como dirá Marx
em uma frase plena de consequências:

O comunismo não é, para nós, um estado/situação (Zustand) que deve


ser implementado, um ideal ao qual a realidade deve se sujeitar. Nós
chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado
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atual .

Ou seja, comunismo não é o nome de uma situação a ser

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implementada, de um ideal utópico a ser realizado. Ele é o nome de um tipo
específico de movimento, um tipo de insurgência capaz de abrir a situação
atual ao que ela só pode determinar como contradição profunda, produzindo
assim o aniquilamento do modo de vida atualmente reproduzido. Ou seja, e
devemos tirar todas as consequências disto, a possibilidade do comunismo,
para Marx, está logicamente vinculada à compreensão do movimento real
das sociedades modernas a partir das formas gerais de movimento
fornecidas pela dialética e por suas categorias.
Por isto, há algo aqui que não deve desaparecer de vista. Pois é
evidente como, neste momento decisivo, Marx se vê obrigado a reconhecer
uma relação profunda de filiação e transmissão. Ele dirá: devemos virar a
dialética hegeliana de cabeça para baixo, mas há de se reconhecer que as
formas gerais do movimento responsáveis pela compreensão correta da
processualidade do existente já estão todas configuradas na filosofia de
Hegel. Mais, ainda. Marx assume que tais formas estarão presentes em seu
próprio texto. Proposição aparentemente surpreendente pois como é
possível separar a estrutura lógica de um pensamento que pensa o
movimento e a transformação, como separar sua maneira de apreender a
gênese processual das formas e das normatividades que se querem
ontologicamente asseguradas, e sua impotência em funcionar de forma
“crítica e revolucionária”? Como retirar o cerne racional de seu invólucro
místico, ou seja, liberar a dialética da natureza apressada de suas sínteses,
como se tal pressa não estivesse, de certa forma, inscrita no interior da
estrutura lógico-formal da dialética? Pois, se não se trata de criticá-la no
plano lógico, nem, por consequência, de criticá-la no plano ontológico,
então como seria possível organizar uma auto-crítica da dialética que, de
forma paradoxal, é a própria realização insurrecional da dialética?
Mesmo que tais questões sejam difíceis de responder, não só para
Marx como para sua posteridade, elas mostram algo de decisivo na relação
entre teoria e praxis dentro da experiência intelectual inaugurada por Marx,
a saber, a praxis é uma realização insurrecional da teoria, de uma certa
teoria que se realiza ao ser virada de cabeça para baixo. Podemos mesmo
dizer que a praxis é a dialética em seu ponto insurrecional, o que nos deixa
com uma questão maior, a saber, o que devemos entender por “dialética”
neste contexto. Dialética é o mesmo movimento que encontramos em Hegel,
que encontraremos em Adorno, em Lukàcs, que será criticado por Althusser,
desprezado por filósofos tão diferentes entre si quanto Bertrand Russell e
Gilles Deleuze, entre tantos outros? Responder esta pergunta será um dos
objetivos centrais deste curso e o eixo que nos guiará no primeiro módulo
de nosso curso.

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A crítica da economia política

Mas desdobremos um pouco mais esta hipótese de base, a saber, a


experiência intelectual de Marx não é o abandono da filosofia, mas a
continuação da filosofia por outros meios. No seu caso, sabemos que
“outros meios” são estes. Ele se dá através da escolha da economia política
como campo de expressão da dinâmica de conflitos, da compreensão da
dinâmicas das transformações que levam à emancipação social.
Contrariamente a Hegel, que precisa da ontologia para fundar as
possibilidades de uma transformação do mundo, Marx inaugura um
movimento de descentramento do discurso filosófico em relação ao seu
eixo, e é este descentramento que precisa inicialmente ser analisado, pois
ele diz respeito à mutação que o conceito de “crítica” sofre nas mãos de
Marx.
Grosso modo, podemos dizer que conhecemos três inflexões
fundamentais do conceito de crítica no pensamento alemão do final do
século XVIII e século XIX. A primeira é fornecida por Kant, que anunciará
um verdadeiro programa ao afirmar:

Nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A


religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade,
querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas
justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a
razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público
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exame .

Esta época que questiona tudo que procura validade para além do tribunal
do exame público (öffentliche Prüfung) da razão, da capacidade de dar e
oferecer razões tendo em vista a identificação do melhor argumento, é a
época da crítica, que destrona a era da metafísica. Esta crítica tem duas
características fundamentais: a) ela esclarece os conhecimentos que podem
alcançar validade independentemente de toda experiência, ou seja, ela
afirma-se através de uma estratégia transcendental na busca do que pode ser
absolutamente necessário; b) ela é definição dos limites que estruturam o
campo dos usos legítimos de cada faculdade do conhecimento. Daí sua
definição do problema da crítica como: “o que podem e até onde podem o
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entendimento e a razão conhecer, independentemente da experiência” . Ou
seja, há em Kant uma reflexão sobre os limites do conhecer como exigência
a priori para o esclarecimento das condições de possibilidade de toda

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experiência racional, ou seja, de toda experiência pensada como
constituição de representações de objetos. Desta forma, Kant pode
substituir o conceito tradicional de erro (o erro como resultado de equivoco
provocado por um determinismo externo) pelo conceito de ilusão
produzida pelo uso ilegítimo das faculdades.
A segunda versão encontramos em Hegel e consiste em definir a
crítica como exposição do sistema de erros da consciência. Hegel chega a
dar um nome próprio à tal exposição do sistema de erros da consciência em
sua experiência do mundo, a saber, fenomenologia. Aceitar o primado de
tal perspectiva fenomenológica implica, ao menos para Hegel, abandonar a
estratégia transcendental, própria a Kant, de definição das condições a
priori de possibilidade da experiência. Em seu lugar, entra em cena uma
reflexão sobre a gênese histórica daquilo que aparece à consciência como
limite de toda experiência possível. Descrição da gênese que é, ao mesmo
tempo, crítica de suas expectativas de validade universal. Se Hegel jogava
tanto com o trocadilho alemão entre ir ao fundamento (zu Grund gehen) e
perecer (zugrunde gehen) é porque se tratava de deixar evidente como a
crítica mostra que o verdadeiro esclarecimento do fundamento equivale à
dissolução do fundado. Neste sentido, a crítica se transforma em uma
crítica imanente na qual é questão de descrever a maneira com que a
consciência é ultrapassada pela experiência ao tentar ir em direção ao
fundamento de seu próprio saber, tendo assim, de fato, a experiência das
limitações de suas próprias representações. Neste sentido, a crítica não é
apenas esclarecimento dos limites, mas ultrapassagem dos mesmos.
A terceira versão encontramos em Marx e consiste em uma
radicalização materialista dessa compreensão da crítica como exposição da
gênese histórica do que aparece à consciência como limite de toda
experiência possível, exposição da gênese que visa demonstrar a
precariedade das expectativas de validade da situação atual. Marx
compreende que a ultrapassagem produzida pela crítica hegeliana ainda
peca por ser formal, ou seja, por não se realizar em uma transformação
material do mundo, mas em uma mudança de perspectiva do pensamento
que ocorre na abstração da consciência-de-si.
Colabora para esta leitura de Marx um diagnóstico de época a
respeito do atraso da situação alemã e sua dificuldade de transformação
social. O jovem Marx insistia como depois da crítica iluminista à religião,
cabia à filosofia desmascarar a auto-alienação humana em suas formas não-
sagradas. Como ele dirá, “a crítica do céu se converte na crítica da terra, a
crítica da religião na crítica do direito, a crítica da teologia na crítica da
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política” . Forma de radicalizar a proposição kantiana a respeito da época

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moderna como a época da crítica.
No entanto, na Alemanha retardatária em relação aos processos de
inserção nas dinâmicas do liberalismo econômico e da sociedade burguesa,
assombrada pelo descompasso entre efetividade nacional e ideia em
compasso de igualdade com outras nações centrais, isto não poderia
ocorrer. No caso alemão, a filosofia não teria passado à crítica da terra, ela
não teria gerado uma revolução como no caso francês no qual a filosofia
iluminista será uma das bases do processo revolucionário, mas servido à
construção de uma mitologia que servia apenas para justificar
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intelectualmente a natureza do atraso social . Ou seja, teríamos um caso
exemplar do que, entre nós, chamaríamos de “ideias fora de lugar”. Os
alemães seriam contemporâneos filosóficos do presente sem serem
contemporâneos históricos da realidade atual. Daí porque Marx dirá que,
enquanto as outras nações do mundo viveram sua pré-história na mitologia,
a Alemanha teria vivido sua pré-história exatamente na filosofia, que seria
o verdadeiro nome da mitologia alemã. Assim, por exemplo, através da
filosofia alemã do direito e do Estado, a Alemanha procurou ligar sua
história onírica às condições presentes. Pois os alemães teriam
simplesmente pensado o que os outros fizeram, sendo por isto obrigados a
acertar o descompasso entre ideia e efetividade a partir de conciliações
meramente formais, participando, por exemplo, de todas as ilusões do
regime constitucional sem compartilhar suas realidades. Por isto, Marx tem
de insistir que: “todas as formas e todos os produtos da consciência não
serão destruídos por obra da crítica espiritual (...) mas tão somente podem
ser dissolvidas com a derrocada prática das relações sociais reais, das
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quais emanam essas quimeras idealistas” .
Tal diagnóstico de época é um dos elementos que levará Marx a
propor uma guinada materialista na perspectiva hegeliana, compreendendo
a estratégia de reconstrução da gênese histórica do processo de formação
da consciência preferencialmente a partir da gênese dos processos de
reprodução material da vida que encontram sua melhor descrição naquilo
que o século XIX entendia por “economia política”, ou seja, o estudo do
que os estados-nação não podem negligenciar a fim de produzir a riqueza
comum no interior da lógica do sistema capitalista.
Marx vê como profundamente sintomático o fato da economia política
ser, na Alemanha, uma “ciência estrangeira”, já que lhe faltava o “terreno
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vivo” das relações capitalistas de produção. Esta ausência da economia
política aparecia para Marx como expressão da incapacidade alemã em
tematizar como os processos de racionalização social e o estabelecimento

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de formas de vida eram indissociáveis da racionalidade interna às
exigências de reconstrução da vida social, de modificação do espaço, do
tempo, do trabalho, da relação à si, à família, ao Estado, à sociedade civil
produzidas pelo advento do capitalismo como modo de produção. Não
escapa a Marx o fato da racionalização da sociedade a partir dos princípios
da economia política ser, ao mesmo tempo, uma conformação do mundo e
uma transformação dos sujeitos (o que Foucault entendeu claramente mais
de um século depois com seu curso O nascimento da biopolítica).
Neste sentido, lembremos como o termo “economia política”, criado
para inverter a crença aristotélica do primado da vida política sobre a oiko
nomos, sobre as leis da produção que rege a esfera familiar, não será
apenas uma análise das riquezas, mas a descrição da racionalidade dos
processos sociais de produção que não podem mais ser compreendidos sem
fazer apelo a uma organização capaz de produzir processos que, mesmo
sendo feito pelas mãos dos homens, aparecem como pairando por sobre a
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cabeça dos homens . Como se estivéssemos diante de: “uma certa força
que regula a humanidade para além de sua intencionalidade, uma força que
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divide e reconfigura seres humanos; uma entidade genérico-religiosa” .
No entanto, Marx não está interessado em simplesmente abandonar a
filosofia para passar à exposição da natureza “transcendental” dos
conceitos centrais da economia política. Trata-se de produzir uma crítica
da economia política no sentido hegeliano do termo, ou seja, não apenas
denunciando sua historicidade, mas principalmente mostrando como a
efetivação da racionalidade de seus conceitos produz necessariamente a
ultrapassagem de seus próprios limites, fazendo com que a força normativa
de seus próprios conceitos entrem necessariamente em crise, ou seja,
expondo movimentos que só podem produzir um processo profundamente
contraditório que implicará na dissolução das próprias regras e conceitos
da economia política. Mais uma vez, o esclarecimento do fundamento
equivale à dissolução do fundado.
Se Marx parasse por aqui teríamos, basicamente, uma guinada
materialista da perspectiva crítica que se desenvolveu no interior do
chamado “idealismo alemão”. Guinada que terminaria necessariamente uma
“teoria das crises” da racionalidade econômica. Mas Marx, como vimos,
não se contenta em ser o expositor de uma teoria da necessidade das crises
no interior das sociedades capitalistas. Ele quer, principalmente, pensar o
ponto no qual a perspectiva crítica se transforma em ação revolucionária.
Esta é a maior de suas realizações. Ela se concretiza a partir do momento
que Marx nomear esse processo que indica uma contradição real no interior

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da racionalidade da economia política e que impulsiona a sociedade a uma
transformação capaz de deixar para trás o mundo descrito pela economia
política. Um nome que todos nós conhecemos, a saber, “proletariado”, uma
classe produzida pela conjunção entre universalização do sistema
capitalista de trocas e despossessão generalizada, completa alienação cada
vez mais universal. A crítica da economia política é, em Marx, a reflexão
sobre o processo de constituição do proletariado como ponto de
contradição real da racionalidade econômica própria ao capitalismo.
Mas notemos com mais vagar o que Marx realmente tem em mente ao
nomear esse processo que indica uma contradição real no interior da
racionalidade da economia política. Marx não é responsável pela criação
do termo “proletário”. Na verdade, nós o encontramos em Roma antiga.
Segundo a Constituição Romana, proletário é a última das seis classes
censitárias, classe composta por aqueles caracterizados por, embora sendo
livres, não terem propriedade alguma ou por não terem propriedades
suficientes para serem contado como cidadão com direito a voto e
obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de procriar e ter
filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à
condição de reprodutor da população, os proletários representam o que não
se conta. Daí uma colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim,
proletarii significa “pessoa prolífica” – pessoa que faz crianças, que
meramente vive e reproduz sem nome, sem ser contada como fazendo parte
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da ordem simbólica da cidade” .
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da
Revolução de 1830, que o termo será paulatinamente acrescido de
conotação política, agora para descrever os que só possuem seu salário
diário pago de acordo com a necessidade básica de auto-conservação,
sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos de ações políticas
feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários são apenas o
nome de um ponto de sofrimento social intolerável, um “significante central
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do espetáculo passivo da pobreza” . Assim, mais do que cunhar o uso
social do termo, o feito de Marx encontra-se em vincular o conceito de
proletariado a uma teoria da revolução ou, antes, a uma teoria das lutas de
classe que é a expressão da “história da guerra civil mais ou menos oculta
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na sociedade existente” . Daí porque Marx falará, a respeito dos saint-
simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores
desses sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a
ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não
percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento

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político que lhes seja peculiar” .
A operação de Marx consistiu em colocar-se à escuta dos
movimentos concretos de seu tempo, das explosões sociais que paralisavam
as fábricas e a produção, isto a fim de ver em tais explosões a expressão
imediata de um mesmo movimento de constituição de sujeitos políticos
emergentes capazes de colocar em marcha uma negatividade dialética que
tem a força de desabar mundos. Marx será o primeiro a perceber que
“proletário” não nomeia apenas o ponto máximo de despossessão
econômica daqueles que não tem mais nada a não ser sua força de trabalho.
O termo não é apenas a descrição sociológica de uma classe de
trabalhadores. Ele é a condição ontológica (como veremos, o termo não
está aqui por acaso) de toda ação revolucionária possível. Muitas vezes,
nomear não é descrever, mas é produzir uma realidade outra. Ao nomear
alguém, posso levar aquele que nomeio a se ver, a partir de agora, a partir
do nome, mudando sua consciência a respeito de quem ele é e do que ele é
capaz de fazer. Chamamos tais processos de nomeação transformadora de
“atos de fala perlocucionários”. Algo disto estava em operação em Marx,
seu uso do termo “proletariado” é um uso perlocucionário. Daí sua forma
de atuação, na qual a escrita analítica se mistura ao esforço sobrehumano de
acompanhar os fatos do mundo, de escrever como um jornalista, de estar
envolvido na organização prática dos trabalhadores em associações,
partidos e Internacionais, de conclamar através de manifestos. Como se a
realização insurrecional da filosofia terminasse necessariamente por uma
mudança daqueles a quem ela se endereça, até porque, a filosofia dos
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jovens hegelianos foi expulsa da universidade alemã . Ela se endereçará
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agora a todos os que se reconhecem como ontologicamente despossuídos .

Estrutura do curso

Sendo este o horizonte de problemas do nosso curso, gostaria de


expor como ele será estruturado. Sabemos como o pensamento de Marx tem
fases muito claras. Alguns leitores, como Althusser, chegaram a insistir que
a primeira fase de seu pensamento, aquela que vai até A ideologia alemã,
de 1845-46, e que chamamos normalmente de o “jovem Marx” deveria ser
vista como um momento ainda marcado pelo peso das temáticas hegelianas
da alienação e por uma antropologia herdada de Feuerbach que serão
rechaçadas quando se consumar a guinada em direção à crítica da economia
política. Proponho operar uma leitura diferente, mais atenta a certas
continuidades e retomadas e, principalmente, mais atenta à maneira com que

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os fatos históricos do mundo produzirão um impacto nas tarefas teóricas
que Marx define para si mesmo.
Sabemos como o tempo de Marx é marcado por duas revoluções não
realizadas: 1848, com suas insurreições revolucionárias que atingem toda a
Europa e 1871, com a Comuna de Paris. Estas duas datas irão influenciar de
forma decisiva tanto a produção teórica quanto as tarefas intelectuais de
Marx. Até 1848, Marx vê a revolução como uma iminência inescapável,
como um fantasma que assombra a Europa e que está prestes à se
incorporar em um corpo político renovado. O tom anunciador do Manifesto
Comunista, de 1847, é claro neste sentido e conhecido de todos.
Ao mesmo tempo, o trabalho teórico de Marx tem como eixo
principal o debate (especialmente com Feuerbach, Hegel, os jovens
hegelianos e Proudhon) a respeito da necessidade de uma guinada
materialista da dialética. A importância da economia política já se coloca
de forma clara desde o encontro entre Marx e Engels em 1843. No entanto,
seus trabalhos são, basicamente, polêmicas que visam apresentar sua
maneira original de unificar materialismo e dialética ao inscrever o
movimento próprio à negatividade dialética em toda forma de produção
histórica. Ou seja, definindo as condições de um “materialismo sem
matéria” ou, se quisermos, de um “materialismo do movimento”. Ao mesmo
tempo, Marx constitui, principalmente a partir de A ideologia alemã, uma
filosofia da história que lhe servirá de base tanto para as figuras das
passagens dos modos de produção quanto para a defesa de que as
contradições do modo de produção capitalista produzem uma passagem
iminente ao comunismo a partir do momento que tais contradições estão
completamente desenvolvidas.
Gostaria de discutir este primeiro momento do pensamento de Marx a
partir da leitura de dois textos fundamentais, a saber, os Manuscritos
econômico-filosóficos e A ideologia alemã, em especial sua primeira parte
dedicada à Feuerbach. Ao final desta apresentação, espero poder realizar
os seguintes objetivos:

a) apresentar o contexto filosófico pós-hegeliano no qual Marx se


insere e com o qual ele debate de forma sistemática nos seus
primeiros escritos;
b) discutir e problematizar a relação entre a guinada materialista da
dialética proposta por Marx e a dialética hegeliana, deixando
evidente a complexidade da relação entre os dois, para além do
esquema fácil da superação materialista do idealismo;
c) Discutir o modelo de crítica da ideologia apresentado por Marx e

15
Engels, assim como o estatuto do próprio discurso de Marx em
suas aspirações de objetividade;
d) compreender a teoria da alienação de Marx como base do
sofrimento social que move a crítica e, no mesmo movimento,
entender a irredutibilidade de um conceito não-substancial de
sujeito no horizonte do pensamento marxista e na sua crítica à
antropologia do indivíduo possessivo liberal;
e) introduzir a filosofia da história subjacente à noção do
desenvolvimento dos modos de produção em direção ao
comunismo.
A partir de 1848, com o fracasso das ações revolucionárias na
Europa, o próprio eixo do projeto de Marx assume, de forma mais evidente,
uma característica dupla. Inicialmente, trata-se de colocar em marcha um
longo e complexo projeto de crítica da economia política que se realizará
em O Capital, cujo primeiro volume (o único que será editado por Marx em
vida), vem à luz em 1867. Mas trata-se também de meditar a respeito do
fracasso de 1848 e das formas através das quais a iminência da ação
revolucionária se transforma no seu contrário. Para dar conta destes dois
eixos, trabalharemos dois textos maiores deste período, a saber, O 18
brumário de Luis Bonaparte e o primeiro volume de O Capital. Neste
momento, os objetivos centrais serão:

a) expor a natureza da crítica da economia política através,


principalmente, da discussão sobre a dedução da forma-dinheiro a
partir da necessidade única de circulação de mercadorias e a
redução das leis de acumulação à capitalização da mais-valia;
b) discutir o problema dos limites do processo de auto-valorização
do Capital e as mutações dos modos de extração da mais-valia
c) compreender as relações entre a teoria da alienação como
sofrimento social e a teoria do fetichismo como ilusão necessária
do sistema de determinação de valor, e como teoria dos modos de
sujeição social, a partir de uma perspectiva que privilegie os
pontos de contato entre as duas problemáticas;
d) desdobrar o conceito de ação revolucionária do proletariado a
partir da complexificação do problema produzido na esteira das
reflexões de Marx sobre as revoluções de 1848;
e) discutir o problema dos conceitos de progresso histórico,
revolução e contingência no horizonte do pensamento de
maturidade de Marx.

16
No entanto, eu havia falado que dois eventos marcaram o pensamento de
Marx: as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris (1871). É certo que após
1871, Marx não publicará mais livro algum até sua morte, em 1883. Seus
rascunhos são volumosos, mas lhe falta o tempo de concluir, como se
houvesse algo a ficar indefinidamente em aberto.

17
Reler Marx hoje
Aula 2

Os fundamentos do materialismo de Marx

Em 1841, Marx defende sua tese de doutorado na Universidade de Jena


depois de cursar direito e filosofia. O título era “Diferença entre as
filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro”. Em sua tese, Marx procura
defender a importância do materialismo de Epicuro, sem deixar de se
perguntar porque uma guinada materialista teria ocorrido na filosofia grega
após a constituição de suas duas maiores experiência sistemáticas, a saber,
estas representadas pelas filosofias de Platão e de Aristóteles.
A pergunta não era inocente. Esta era a forma com que o jovem Marx
procurava se posicionar diante das discussões a respeito da hegemonia de
outro pensamento sistemático na Alemanha, a saber, a filosofia hegeliana.
Ou seja, o debate grego era só uma orientação para inserir-se no debate
alemão. Ao insistir em reinterpretar o materialismo de Demócrito e
Epicuro, Marx procura pensar as possibilidades para a atualização de um
pensamento materialista em plena segunda metade do século XIX como a
melhor resposta contra os riscos inerentes à dialética hegeliana. Marx
partilhava da crença de que uma filosofia que insiste no primado do
movimento do conceito, como a filosofia hegeliana, compreenderá a
existência a partir de determinações abstratas e gerais, como se tratasse
apenas de meras expressões da normatividades já estabelecidas pelo
conceito. Como Marx mesmo dirá, a propósito de Hegel: “trata-se apenas
de encontrar para as determinações singulares concretas, as determinações
25
abstratas correspondentes” . Pois dentro desta perspectiva, o objeto ao
qual o conceito se refere seria desenvolvido segundo um pensamento
previamente concebido na esfera da lógica. Por isto, estaríamos diante de
uma filosofia incapaz de compreender como a existência não é mera
confirmação das potencialidades internas ao conceito, como ela não é mera
atualização do que está como potência no conceito. Ela é realização
transformadora dos modos de ser.
Como dissera na primeira aula, era comum uma certa direção que via
no retorno à existência uma tarefa maior da filosofia pós-hegeliana.
Admitia-se que: “a ontologia de Hegel desconhecia relações diretas à
26
existência e à observação reais” . No entanto, que esta desqualificação da
existência seja uma consequência necessária da filosofia hegeliana, eis algo

18
que talvez não seja de todo seguro. Mas no nosso contexto, isto é
secundário. Importante é lembrar como a via marxista para a recuperação
do primado da existência passa pela releitura do materialismo e pela
aceitação de tal diagnóstico ligado à necessidade de um retorno às
condições de existência real.
De fato, Marx compreende o materialismo e seu desencantamento em
relação à metafísica e à religião como o grande saldo do iluminismo. Como
ele dirá, em A sagrada família:

A rigor e falando em sentido prosaico, o Iluminismo francês do


século XVIII e, concretamente, o materialismo francês, não foram
apenas uma luta contra as instituições políticas existentes e contra a
religião e a teologia imperantes, mas também e na mesma medida uma
luta aberta e marcada contra a metafísica do século XVIII e contra a
toda a metafísica, especialmente contra a de Descartes, Malebranche,
27
Spinoza e Leibniz .

A colocação aqui é clara. O materialismo aparece, ao mesmo tempo, como


uma crítica da metafísica e uma abertura à crítica social através do
questionamento dos poderes da religião e do Estado. Ele nos libera de uma
metafísica que desconsideraria a força da experiência ao mesmo tempo que
fornece o princípio para desconstituir os fundamentos teológicos-políticos
do poder. Neste sentido, o materialismo forneceria uma articulação entre
crítica epistêmica e crítica a formas de vida patrocinada pela recuperação
da existência. Daí porque Marx e Engels irão concluir, no mesmo texto:

Não é preciso ter grande perspicácia para dar-se conta do nexo


necessário que as doutrinas materialistas sobre a bondade originária
e a capacidade intelectiva igual dos homens, sobre a força onipotente
da experiência, do hábito, da educação, da influência das
circunstâncias sobre os homens, do alto significado da indústria, do
direito ao gozo etc. guardam com o socialismo e o comunismo. Se o
homem forma todos seus conhecimentos, suas sensações etc. do
mundo sensível e da experiência dentro deste mundo, o que importa,
portanto, é organizar o mundo do espírito de tal modo que o homem
faça aí a experiência, e assimile aí o hábito daquilo que é humano de
28
verdade, que se experimente a si mesmo enquanto homem .

Se o homem forma seus conhecimentos e seu ser no mundo sensível, como


quer o materialismo, então o que importa é modificar o mundo sensível para

19
que o homem possa sair de sua condição de alienação, impedir que o
mundo sensível se cristalize em uma situação meta-estável. No que o
recurso à atividade de transformação social pregada pelo socialismo e pelo
comunismo advém consequência necessária. Mas aqui fica uma questão, a
saber, de qual materialismo estamos falando? O que Marx entende
exatamente por materialismo? Estas perguntas que nos remete,
necessariamente, à seus primeiros escritos filosóficos, em especial sua tese
de doutorado sobre Demócrito e Epicuro. Gostaria de defender com vocês
a hipótese de que sua tese de doutorado revela-se um texto importante na
medida em que ele adianta certas características do materialismo marxista
em sua maturidade.

Marx e Epicuro

Das várias questões apresentadas pela tese, e pela defesa feita por
Marx de Epicuro e de suas críticas a Demócrito, gostaria de chamar a
atenção para um ponto fundamental por nos explicitar o que Marx entende
exatamente por “materialismo”. Há dois aspectos interconectados que
chamam a atenção de Marx na filosofia de Epicuro, a quem ele louva como
sendo o maior representante do “iluminismo grego”. São eles, o seu
reconhecimento do acaso e a importância dada à experiência do tempo.
Durante toda a tese, Marx insiste que Demócrito estaria no
fundamento de uma longa tradição para a qual o acaso é apenas resultado
de um conhecimento imperfeito das causas. Da mesma forma, o tempo não
teria nem importância nem seria necessário a seu sistema. Excluído do
mundo das essências e da eternidade dos átomos, o tempo em Demócrito
seria transferido à consciência do sujeito que filosofa, sem referir-se ao
mundo em si. Assim, Demócrito fala de automaton para descrever o
determinismo da regularidade cósmica de todo ser e de todo devir. Sua
afirmação da realidade do átomo e do vazio fornece um eixo para o
distanciamento do mundo sensível. Em Demócrito, ao menos segundo Marx,
o atomismo é a expressão objetiva da investigação empírica da natureza
como um todo. Por isto, seus conceitos devem permanecer categorias
abstratas, e não um princípio ativo. Certamente não é este materialismo
proto-mecanicista que interessa a Marx.
Já em Epicuro, encontramos a afirmação da irredutibilidade da
perspectiva do mundo sensível no interior do conhecimento: “Se recusas
todas as sensações, não terás mais possibilidade de recorrer a nenhum
29
critério para julgar as que, entre elas, consideras falsas” . Os objetos
produzem continuamente eflúvios (eidema) que atingem a sensibilidade de

20
forma mais forte ou mais fraca. Ou seja, a sensações não são
desqualificadas em totalidade como conhecimento imperfeito: “cingindo-se
bem aos fenômenos, podem fazer-se induções a respeito do que nos é
30
invisível” . Marx vê neste materialismo que reconhece na dinâmica própria
aos fenômenos a possibilidade de orientar-se em direção à verdade uma
maneira de admitir as noções de acaso e temporalidade. De fato, este
materialismo que admite a irredutibilidade das noções de acaso e
temporalidade será o primeiro passo para o desenvolvimento de uma
concepção dialética de materialismo que encontrará sua melhor formulação
31
cinco anos depois, com A ideologia alemã .
O atomismo de Epicuro admite que o movimento dos átomos obedece
a regularidades derivadas de seu peso e trajetória de queda no vazio. No
entanto, tais movimento ainda obedecem a um desvio, a uma declinação
(clinâmen), ou seja, uma espécie de movimento lateral aleatório. Lucrécio,
discípulo de Epicuro, fala de átomos que: “se desviam um pouco do seu
trajeto, num momento não determinado e num lugar incerto” (incerto
32
tempore ferme incertisque locis spatio) . Esta declinação sem tempo nem
lugar fixos permite explicar como a criação se dá através do choque de
átomos, incorporando para isto o acaso no interior da determinação do
33
processo de criação das formas do mundo . Marx chegará a definir a
declinação como “a negação imediata” de um movimento próprio à linha
reta que apareceria como “a cadeia do destino”, o que dá ao átomo a
condição de matéria sob a forma da autonomia e da singularidade.
Esta negação imediata, compreendida como uma contradição entre
necessidade e contingência inscrita no próprio conceito de átomo, abre
espaço àquilo que neste momento Marx chama de “singularidade abstrata”
cuja afirmação se dá através do afastamento de toda realidade limitadora.
Uma negação que Marx não teme em transpor para o próprio
comportamento humano, já que física e moral na filosofia epicurista seguem
os mesmos princípios. Esta negação que encontra sua primeira expressão no
movimento dos átomos aparece como assunção do homem para si mesmo,
enquanto seu único objeto real, o que exige quebrar no homem: “toda
existência relativa” através da repulsão.
Marx encontra na teoria epicuriana dos meteoros a expressão mais
bem acabada desta autonomia. Contrariamente aos átomos, os meteoros não
estariam submetidos à gravidade, pois teriam o centro de gravidade em si
mesmos. Por isto, seus movimentos não podem mais ser descritos a partir
de uma causa única, mas por causas múltiplas em número indeterminado.
Ao olhar para os céus, o homem não encontra mais a necessidade absoluta

21
dos corpos celestes. Ele encontra a singularidade concreta de uma
declinação contínua.
Neste sentido, Marx está de acordo com Lucrécio, que utiliza a noção
de declinação para introduzir também a liberdade, já que é através da
aleatoriedade de um movimento sem causa determinada que teríamos a
expressão da vontade. Daí porque ele se pergunta, se todo o movimento se
ligasse a um anterior e dele nascesse:

donde viria esta livre vontade nos seres vivos pelas terras, pela qual
avançamos para onde o prazer conduz cada um, variando também os
movimentos, não num tempo determinado, nem num lugar
34
determinado, mas onde a nossa própria mente determina? .

Em um atomismo estrito, a causa das ações não difere das causas do mundo
físico. Mas como não se trata de eliminar a indeterminação própria à
liberdade, faz-se necessário que haja uma outra causa do movimento, para
além dos choques e da gravidade. Desta forma, Marx pode afirmar que o
princípio da filosofia de Epicuro é a liberdade da consciência de si, mesmo
que esta só seja concebida ainda sob a forma da singularidade.
Tais colocações são importantes para Marx encontrar um
materialismo livre das perspectivas próprias a um determinismo estrito, que
só seria capaz de descrever processos mecânicos. Ele procura, ao
contrário, um materialismo capaz de dar espaço à liberdade e à
indeterminação, tanto no mundo físico quanto no mundo dos homens. Pois o
materialismo de Epicuro, por não eliminar o acaso, é abertura a um mundo
no qual o oposto do que é possível também é possível.
Por outro lado, Epicuro insiste como o tempo é um certo acidente
ligado ao movimento e ao repouso, à afecção e à não afecção. “Na verdade,
ninguém tem a ideia do tempo em si próprio, separado do movimento das
35
coisas e do seu plácido repouso”, dirá Lucrécio . Se não há uma
substancialidade do tempo para além do movimento das coisas, se não há
uma forma pura do tempo, então a experiência do tempo é inseparável do
próprio movimento das coisas. A forma do tempo muda a partir das
múltiplas formas de movimento das coisas. As coisas impõe ao tempo
mudanças em sua forma, implicando assim uma modificação nas condições
de experiência até então vigentes.
Lembremos como Epicuro define o tempo, segundo Marx, como “a
forma absoluta dos fenômenos”. Sua definição determina o tempo como “o
acidente dos acidentes”. Sendo o acidente a modificação da substância, o
tempo só poderia ser a modificação refletindo-se a si mesma, a mudança

22
como mudança fornecida à percepção sensível. Desta forma: “a
sensibilidade humana é o tempo corporificado (verkörperte Zeit) , a
36
reflexão existente do mundo sensível em si mesmo” . Ela é o meio no qual
as operações da natureza vem a se refletir. De onde se segue que o tempo
não é uma condição subjetiva da experiência, mas um meio através do
qual o mundo se reflete na sensibilidade humana. A temporalidade das
coisas e sua manifestação nos sentidos é uma e mesma coisa.
Desta forma, vemos como o recurso de Marx ao materialismo antigo
37
visa encontrar, em Epicuro, “uma ciência natural da consciência de si”
diferente do simples estudo empírico da natureza. Falta ainda, no entanto
mostrar como tal materialismo é animado por uma modalidade de
movimento que prefigura a reflexão dialética, ou seja, mostrar como
estamos diante do primeiro passo para uma guinada materialista da
dialética. Isto só será possível através de duas estratégias. O primeiro
consiste em criticar a pretensa incapacidade hegeliana a sair do horizonte
do movimento do conceito e de sua auto-identidade. Ou seja, trata-se de
indicar o que poderíamos chamar de “déficit materialista” de Hegel através
da crítica a seus modelos de síntese.
Segundo, trata-se de se apoiar, provisoriamente, na crítica
materialista feita por Feuerbach a fim de, em um segundo momento, criticar
também o materialismo de Feuerbach por não ser capaz de dar conta da
experiência material do movimento já presente no horizonte das
preocupações de Marx desde sua teses de doutorado. Veremos o primeiro
ponto nesta aula e o segundo na aula que vem.

O lugar da crítica à teoria hegeliana do Estado

A crítica ao déficit materialista de Hegel será uma das tarefas filosóficas


mais importantes do jovem Marx. Como vimos na aula passada, tal tarefa é
animada inicialmente por um diagnóstico de época vinculado à consciência
do atraso social da Alemanha. Retomemos este ponto.
Vimos na aula passada como o jovem Marx insistia como depois da
crítica iluminista à religião, cabia à filosofia desmascarar a auto-alienação
humana em suas formas não-sagradas. Como ele dirá, “a crítica do céu se
converte na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito, a
38
crítica da teologia na crítica da política” . No entanto, na Alemanha
retardatária em relação aos processos de inserção nas dinâmicas do
liberalismo econômico e da sociedade burguesa, assombrada pelo
descompasso entre efetividade nacional e ideia em compasso de igualdade

23
com outras nações centrais, isto não poderia ocorrer. No caso alemão, a
filosofia não teria passado à crítica da terra, ela não teria gerado uma
revolução como no caso francês no qual a filosofia iluminista será uma das
bases do processo revolucionário, mas servido à construção de uma
mitologia que servia apenas para justificar intelectualmente a natureza do
39
atraso social . Ou seja, teríamos um caso exemplar do que, entre nós,
chamaríamos de “ideias fora de lugar”. Os alemães seriam contemporâneos
filosóficos do presente sem serem contemporâneos históricos da realidade
atual. Daí porque Marx dirá que, enquanto as outras nações do mundo
viveram sua pré-história na mitologia, a Alemanha teria vivido sua pré-
história exatamente na filosofia, que seria o verdadeiro nome da mitologia
alemã. Assim, por exemplo, através da filosofia alemã do direito e do
Estado, a Alemanha procurou ligar sua história onírica às condições
presentes. Pois os alemães teriam simplesmente pensado o que os outros
fizeram, sendo por isto obrigados a acertar o descompasso entre ideia e
efetividade a partir de conciliações meramente formais, participando, por
exemplo, de todas as ilusões do regime constitucional sem compartilhar
suas realidades.
É tendo este contexto histórico em mente que Marx aborda a dialética
hegeliana. Neste sentido, não é por acaso que o eixo privilegiado de
abordagem do jovem Marx seja a filosofia do direito de Hegel, em especial
a seção dedica ao Estado (entre os parágrafos 261 e 313). Fazia parte de
uma interpretação corrente à época a noção de que a publicação dos
Princípios da Filosofia do Direito, por Hegel em 1822 representava o
alinhamento de sua filosofia à condição de justificação da monarquia
prussiana de Frederico II. Marx procura assim mostrar como a teoria
hegeliana do Estado e sua justificativa da racionalidade da monarquia
constitucional era a expressão mais bem acabada de um problema que diz
respeito a todo seu sistema e que se refere à maneira com que o real é
compreendido como racional. A frase Hegel era: “o que é racional é real e
o que é real é racional” (Was vernünftig ist, das ist wirklich; und was
40
wirklich ist, das ist vernünftig) .
Há duas formas de ler esta frase canônica. Primeiro, insistindo na
dissociação necessária entre Wirklichkeit e Realität, o que equivaleria em
afirmar que o real no interior do qual a filosofia encontra sua racionalidade
não se confunde com o curso atual do mundo. Haveria uma latência da
existência através da qual passa um real que não se esgota nas
determinações postas da realidade atual. É a capacidade de reconhecer tal
real que permite à filosofia compreender o que é racional.

24
Segundo, afirmando que apenas o que se conforma à normatividade
previamente determinada da razão pode aspirar realidade. No entanto, se
tais normatividades tem uma semelhança insidiosa com a realidade
atualmente posta é porque, ao menos neste caso, o real se confundiria com o
atualmente existente, o que implicaria na tentativa de racionalizar e fazer
passar por absolutamente necessário aquilo que era fruto da contingência do
desenvolvimento histórico. É esta segunda leitura que guia o jovem Marx.
Tal crítica está posta claramente na seguinte afirmação:

A essência das determinações do Estado não consiste em que se


possam ser consideradas como determinações do Estado, mas sim
como determinações lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata.
O verdadeiro interesse não é a filosofia do direito, mas a lógica. O
trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize
nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas
41
existentes se volatizem no pensamento abstrato .

Notemos duplicidade desta crítica. Primeiro, Marx afirma que


interessa a Hegel apenas a maneira com que a lógica submete a filosofia do
direito, como o existente se volatiza no pensamento conceitual. Assim: “não
se trata de desenvolver a ideia determinada da constituição política, mas de
dar à constituição política uma relação com a Ideia abstrata, de dispo-la
42
como um membro de sua biografia (da Ideia): uma clara mistificação” .
Mistificação significa aqui uma certa inversão na qual a consequência passa
à condição de causa, o predicado passa à condição de sujeito, o contingente
esconde sua condição de contingente e se coloca sob a forma imediata do
necessário.
Ora, mas o verdadeiro problema não está apenas no fato de partirmos
da ideia para depois medirmos a realidade a partir de sua adequação àquilo
que se colocou como ontologicamente necessário. De fato, com isto
eliminamos a possibilidade de compreender como singularidades se
desenvolvem em processos temporais marcados por contingências que se
afirmam enquanto tais. Mas há ainda um segundo movimento nesta relação
de subsunção entre conceito e objeto. Pois percebam como, se a
determinações lógico-metafísicas expressassem o que ainda não se
configurou como determinações do Estado, então estaríamos diante de uma
filosofia capaz de abalar o sistema de justificação do mundo institucional.
Neste sentido, a Ideia guardaria a força do que ainda não se realizou,
garantindo a perpetuação de um movimento de transformação da
efetividade.

25
No entanto, não é isto que ocorre na dialética hegeliana, ao menos
segundo o jovem Marx. Pois a Ideia é produzida à semelhança da
efetividade, as determinações do Estado atual são mistificadas como
expressão da necessidade do Espírito e postas como determinações
absolutas. Ou seja, não é apenas a ideia que subordina a existência. A
existência define previamente as potencialidades internas à própria ideia. A
existência aparece assim como o terreno insuperável da necessidade. Um
exemplo deste processo é quando Marx afirma, a respeito do monarca
hegeliano:

Hegel transforma todos os atributos do monarca constitucional na


Europa atual em autodeterminações absolutas da vontade. Ele não
diz: a vontade do monarca é a decisão última, mas a decisão última
da vontade é ... o monarca. A primeira fase é empírica. A segunda
43
distorce o fato empírico em um axioma metafísico .

A crítica não poderia ser mais clara. A compreender a realidade atual


como o racional, Hegel acaba por transformar o racional no mero
predicado da realidade atual. A vontade aparece como aquilo que o
monarca expressa, ao invés do monarca aparecer como aquele que deve
lutar para se conformar à vontade. Uma perspectiva materialista
simplesmente mostraria como “vontade” é o nome que damos para a
decisão do monarca, sem tentar transformar a decisão do monarca em um
axioma metafísico. Assim: “uma existência empírica é tomada de maneira
44
acrítica como a verdade real da Ideia” e é neste ponto que se encontra o
maior problema.
Esta configuração da Ideia a partir da realidade atual pede, no
entanto, uma terceira operação fundamental. Ela diz respeito à maneira com
que a negatividade própria ao movimento do conceito será inscrita na
própria realidade atual a fim de ser desativada. Como estamos falando de
um pensamento dialético, para que a realidade atual possa configurar o
conceito, faz-se necessário que a própria realidade saiba integrar uma
negatividade que será desativada em sua força de transformação.
Veremos este ponto mais a frente quando for questão da relação entre
sociedade civil e Estado. Mas, por enquanto, lembremos como esta
inversão entre sujeito e predicado, esta forma mistificada de deduzir a
gênese da suposta necessidade do último termo tem, para Marx,
consequências políticas evidentes. Lembremos, por exemplo, de uma
afirmação decisiva como:

26
Do raciocínio de Hegel, segue-se apenas que o Estado, em que o
‘modo e formação da consciência’ e a ‘constituição’ se contradizem,
não é um verdadeiro Estado. Que a constituição, que era o produto de
uma consciência passada, possa se tornar um pesado entrave para
uma consciência mais avançada etc. etc., são, por certo, apenas
trivialidades. Disse deveria resultar, antes, a exigência de uma
constituição que contivesse em si mesma a determinação e o princípio
de avançar com a consciência; de avançar com o homem real, o que
só é possível quando se eleva o ‘homem’ a princípio da
45
constituição .

Ou seja, se, em Hegel, o Estado no qual o sistema de leis e o


movimento da consciência em direção à liberdade entra em contradição não
é um Estado, isto não significa, para Marx, que Hegel estaria disposto a
reconhecer a precariedade do sistema de leis, a exigência de uma
constituição que contivesse em si mesma a determinação de seguir as lutas
dos homens reais. Daí porque: “na monarquia [defendida por Hegel] temos
o povo da constituição; na democracia, a constituição do povo. A
46
democracia é o enigma resolvido de todas as constituições” . Se Hegel
escolhe a monarquia constitucional é por ele operar tal inversão entre
sujeito e predicado a fim de partir do Estado e fazer do homem o Estado
subjetivado, enquanto a democracia parte do homem e faz do Estado o
homem objetivado. “O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe
em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de
Estado, o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da
47
democracia” .

Sociedade civil e Estado

Neste ponto, podemos entender uma das questões centrais postas por
Marx contra Hegel. Hegel, e este é um dos seus maiores méritos ao menos
para Marx, foi o primeiro a compreender a dissociação necessária entre
sociedade civil e Estado. No entanto, no interior de sua dialética, a tensão
entre sociedade civil e Estado não se desdobra da maneira como deveria,
ou seja, através de uma superação do Estado.
Segundo Hegel, a distinção entre sociedade civil e Estado é uma
característica maior do mundo moderno. Isto a ponto de certas teorias
modernas do Estado (como as teorias liberais) compreenderem o Estado
apenas como a estrutura institucional cuja função é garantir e assegurar o

27
bom funcionamento da sociedade civil a partir de seus princípios de defesa
dos indivíduos e seus interesses. No entanto, Hegel insistirá que a vida
ética exige uma tensão fundamental entre Estado e sociedade civil. Neste
sentido, tentemos esboçar o que Hegel compreende exatamente por
“sociedade civil” (Bürgeliche Gesellschaft) e como se dá a relação
complexa e decisiva entre sociedade civil e Estado. Partamos, para isto, de
sua primeira definição:

A pessoa concreta , que como particular é fim para si, é, como um


todo de necessidades e de um mistura entre necessidade natural e
arbítrio (Willkür), o princípio primeiro da sociedade civil – mas
trata-se da pessoa particular como essencialmente em relação com
outra particularidade, de maneira que cada uma é mediada, se fazer
valer e se satisfaz através da outra e, da mesma forma, apenas
48
através da forma da universidade, do outro princípio .

Ou seja, a sociedade civil aparece como associação de indivíduos


particulares, indivíduos que devem ser pensados como uma mistura de
necessidades naturais e livre-arbítrio. Tais indivíduos entram em processos
de trabalho, de satisfação de suas necessidades, de possessão de bens, de
comércio e de contrato, ou seja, através da constituição da esfera do livre-
mercado. Na polis grega, o desenvolvimento da particularidade só podia
aparecer como em momentos de corrupção dos costumes, de perda da
substancialidade ética da vida social. Por isto, projetos sociais como o que
aparece na República, de Platão, não devem dar espaço para o que
entendemos atualmente por “princípio de subjetividade”. Já as sociedades
modernas de livre mercado, só compreendem o Estado como entrave ao
desenvolvimento das exigências de realização dos particulares.
No entanto, Hegel ao mesmo tempo reconheceria a tensão necessária
entre Estado e sociedade civil para tentar resolvê-la através da
incorporação da sociedade civil ao Estado através, entre outros, de uma
burocracia racional responsável por conduzir à sociedade civil ao
universal e por uma institucionalidade que se arvora como expressão da
liberdade realizada. Daí porque: “A ‘polícia’, os ‘tribunais’ e a
‘administração’ não são deputados da própria sociedade civil, que neles e
por meio deles administra o seu próprio interesse universal, mas sim
49
delegados do Estado para administrar o Estado contra a sociedade civil” .
Pois a representação da sociedade civil no Estado é apenas a expressão de
sua separação e do dualismo. Não há sociedade política real sob o império
da representação.

28
Mas a forma fundamental de incorporação da sociedade civil ao
Estado se dá através da função do monarca na monarquia constitucional
defendida por Hegel. A sociedade civil é marcada por uma negatividade
que lhe é interna e que se expressa, entre outros, na inadequação constante
entre sua dinâmica e a normatividade do Estado. Esta inadequação é
inscrita no próprio Estado através da definição do lugar do poder soberano
como lugar da contingencia e arbitrariedade do monarca. O monarca
hegeliano é uma soberania completamente contingente, que toma decisões
como uma individualidade abstrata. Suas decisões não são necessariamente
a expressão da sabedoria ou da prudência. Elas são apenas a expressão da
vontade abstrata que quer o que foi já decidido pela burocracia estatal.
Neste sentido, a negatividade própria à sociedade civil se transforma em
inscrição de uma relação negativa entre o poder político e seu fundamento.
Neste sentido, a saída hegeliana seria a forma de extorquir uma
reconciliação que só será possível à condição de uma mutação biopolítica
na noção mesma dos sujeitos. O que explica porque Marx faz afirmações
como: “as funções e atividades do Estado estão vinculadas aos indivíduos
(o Estado só é ativo por meio dos indivíduos), mas não ao indivíduo como
50
indivíduo físico, e sim ao indivíduo do Estado, à sua qualidade estatal” .
Marx se proporá então a analisar as dinâmicas da sociedade civil em
seu caráter irreconciliável com as determinações do Estado. Ele partirá da
compreensão de que esse indivíduo estatal é, na verdade, aquele que se
determinou como pessoa abstrata pois: “no Estado político revela-se que a
‘personalidade abstrata’ é a mais elevada personalidade política, a base
51
política de todo Estado” . Esta personalidade abstrata é a personalidade
própria às relações de direito que encontram lugar no interior do Estado.
Mas as relações de direito não tem uma determinação completamente
autônoma. Elas encontram seu fundamento nas relações econômicas e
personificam tais relações. A pessoa abstrata do direito será aquela cujo
fundamento será a personalidade proprietária e possuidora de mercadorias.
Por isto, a dinâmica própria à sociedade civil, para além da crença de sua
realização reconciliada no Estado, só poderá ser a compreensão crítica
daquilo que lhe disciplina e impede seu movimento imanente, a saber, a
economia política.

29
Reler Marx hoje
Aula 3

Na aula de hoje, gostaria de retomar o último tema que tratamos na aula


passada, a saber, a o problema da relação entre sociedade civil e Estado a
partir da filosofia hegeliana. Gostaria de desenvolver este tópico de
maneira mais sistemática introduzindo questões apresentadas em um
importante texto publicado um ano depois da escrita da Crítica da
Filosofia do direito de Hegel, a saber, Sobre a questão judaica, de 1844.
Isto deve ocupar nossa aula. Na aula que vem, gostaria de iniciar nossa
leitura dos Manuscritos Econômico-Filosóficos através do comentário do
seu Caderno 1, este dedicado à crítica do salário, do trabalho alienado e da
propriedade privada, além de ser dedicado também a uma reflexão inicial
sobre a estrutura do capital.

Retorno ao problema da relação entre sociedade civil e Estado

Na aula passada, eu lembrara a vocês como podíamos definir Hegel


como o primeiro filósofo a compreender a dissociação necessária entre
sociedade civil e Estado. Podemos dizer que há uma relação negativa, e não
uma relação imanente, entre sociedade civil e Estado em Hegel. Marx parte
deste ponto, tentando explorar como esta tensão só pode se realizar como
superação necessária do Estado, abrindo caminho assim para sua hipótese
da revolução. Ele precisa, para isto, criticar a solução hegeliana, que é por
ele compreendida como uma espécie de anulação da força da contradição
entre sociedade civil e Estado através da inscrição do princípio da
sociedade civil (a individualidade) no fundamento do poder do Estado.
Voltemos inicialmente ao que vimos ao final da aula passada.
Lembremos como, segundo Hegel, a distinção entre sociedade civil e
Estado é uma característica maior do mundo moderno. Isto a ponto de certas
teorias modernas do Estado (como as teorias liberais) compreenderem o
Estado apenas como a estrutura institucional cuja função é garantir e
assegurar o bom funcionamento da sociedade civil a partir do princípio de
defesa dos indivíduos e seus interesses. No entanto, Hegel insistirá que a
vida ética exige não uma negação simples de um dos termos, mas uma
tensão fundamental entre Estado e sociedade civil. Neste sentido,
retomemos a maneira com que Hegel compreende a “sociedade civil”
(Bürgeliche Gesellschaft) e como se dá a relação complexa e decisiva
entre sociedade civil e Estado. Partamos, mais uma vez, de sua primeira

30
definição:

A pessoa concreta , que como particular é fim para si, é, como um


todo de necessidades e de um mistura entre necessidade natural e
arbítrio (Willkür), o princípio primeiro da sociedade civil – mas
trata-se da pessoa particular como essencialmente em relação com
outra particularidade, de maneira que cada uma é mediada, se fazer
valer e se satisfaz através da outra e, da mesma forma, apenas
52
através da forma da universalidade, do outro princípio .

Há duas características fundamentais neste definição. Primeiro,


analisamos a sociedade civil a partir da estrutura dos particulares, ou seja,
da pessoa concreta em sua mistura de necessidades naturais que procuram
satisfação e suas escolhas baseadas no arbítrio singular. Esta mistura
constitui um horizonte de interesses que servirão de princípios motivadores
para a ação. Tais indivíduos entram em processos de trabalho, de satisfação
de suas necessidades, de possessão de bens, de comércio e de contrato, ou
seja, ao menos no mundo moderno, entre em relação através da constituição
da esfera do livre-mercado e de suas estruturas. Na polis grega, o
desenvolvimento da particularidade só podia aparecer em momentos de
corrupção dos costumes, de perda da substancialidade ética da vida social.
Por isto, projetos sociais como o que aparece na República, de Platão, não
devem dar espaço para o que entendemos atualmente por “princípio de
subjetividade”, chegando a cortar até mesmo os espaços de seu
desenvolvimento inicial, como a propriedade privada e a família. Por isto,
no mundo grego, o princípio de subjetividade só aparece de forma trágica
através da colisão ética entre o indivíduo e as leis da polis, como vemos,
por exemplo, em Antígona com sua exposição da natureza do conflito entre
a lei da polis e a individualidade.
No entanto, nas sociedades modernas, a esfera dos interesses da
pessoa concreta encontra sua possibilidade de desenvolvimento,
inicialmente, na interação livre entre as “finalidades egoístas” em um
53
“sistema de dependência multilateral” . Esta é a maneira hegeliana de
absorver a temática própria a economia política de Adam Smith a respeito
da forma com que a riqueza comum é produzida através da interação livre
de indivíduos à procura da satisfação de seus sistemas particulares de
interesses. Como dirá Adam Smith, não é da benevolência do açougueiro,
do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua
consideração pelo seu interesse próprio; dirigimo-nos não à sua
humanidade, mas ao seu interesse próprio, e nunca falamos com eles sobre

31
nossas necessidades, mas das suas vantagens. Assim, produz-se a riqueza
comum através de uma astúcia que Smith descreveu utilizando a conhecida
metáfora dessa “mão invisível” que nos leva a produzir um objetivo que
não era parte de nossa intenção consciente. Hegel descreve o mesmo
processo a partir da noção do que ele chama de “sistema de necessidades”
e sua “relação mútua entre indivíduos”, isto graças a suas leituras da
economia política (Say, Smith, Ricardo e Steuart).
No entanto, Hegel não é um liberal por não acreditar em uma auto-
regulação imanente da sociedade civil. Ao contrário, ele reconhece como
imanente ao desenvolvimento da sociedade civil a concentração de
riquezas, o acirramento da desigualdade com a consequente pauperização
de camadas mais vulneráveis da população e a degradação moral de seus
membros. Lembremos, a este respeito, de uma afirmação importante da sua
Filosofia do direito:

Quando a sociedade civil não se encontra impedida em sua eficácia,


então em si mesma ela realiza uma progressão de sua população e
indústria. Através da universalização das conexões entre os homens
devido a suas necessidades e ao crescimento dos meios de
elaboração e transporte destinados a satisfazê-las, cresce, de um
lado, a acumulação de fortunas – porque se tira o maior proveito
desta dupla universalidade. Da mesma forma, do outro lado, cresce o
isolamento e a limitação do trabalho particular e, com isto, a
dependência e a extrema necessidade (Not) da classe (Klasse)
ligada a este trabalho, a qual se vincula a incapacidade ao sentimento
e ao gozo de outras faculdades da sociedade civil, em especial dos
54
proveitos espirituais .

O modo de inserção no universo do trabalho depende, segundo Hegel,


de uma relação entre capital e talentos que tenho e que sou capaz de
desenvolver. Isto implica não apenas entrada desigual no universo do
trabalho, mas também tendência à concentração da circulação de riquezas
nas mãos dos que já dispõem de riquezas, assim como o consequente
aumento da fratura social e da desvalorização cada vez maior do trabalho
submetido à divisão do trabalho. Desta forma, na aurora do século XIX,
Hegel é um dos poucos filósofos a se mostrar claramente consciente tanto
dos problemas que organizarão o campo da questão social nas sociedades
ocidentais a partir de então quanto da real extensão destes problemas. Para
ele, esta tendência de aumento das desigualdades e da pauperização,
tendência que o leva a afirmar que por mais que a sociedade civil seja rica,

32
ela nunca é suficientemente rica para eliminar a pobreza, é um problema
que tem a força de bloquear a possibilidade da efetivação de uma forma de
vida regulada pelo conceito de liberdade. Hegel chega a utilizar um termo
para determinar a classe dos que são submetido à extrema pobreza devido
ao desenvolvimento da indústria: Pöbel (ralé, populaça). Por isto, já em
Hegel, e isto será importante para Marx, a reflexão sobre a estrutura das
sociedades modernas do trabalho não é externa às reflexões sobre a
vontade livre, assim como sobre o destino da noção de liberdade baseada
na hipóstase do conceito de autonomia individual.
No entanto, Hegel coloca em marcha dois movimentos que, aos olhos
de Marx, encaminham sua filosofia social para uma falsa reconciliação. O
primeiro é interno à própria esfera da sociedade civil e consiste em
estrutura-la a partir de três momentos: o sistema de necessidades, a
administração do direito, assim como a polícia (compreendida como
administração pública tendo em vista o planejamento econômico) e a
corporação. Ou seja, para além das dinâmicas próprias ao livre-mercado, a
sociedade civil teria modelos imanentes de regulação que abrem espaço
para a compreensão das ações que não se resumem ao jogo de auto-
determinação dos indivíduos com seus interesses. O direito, assim como as
corporações e a administração das populações não aparece como uma
determinação do Estado, mas como determinações da sociedade civil (ou,
dependendo da leitura, podem se transformar em determinações da
sociedade civil). Daí porque Marx deverá afirmar com clareza: “A
‘polícia’, os ‘tribunais’ e a ‘administração’ não são deputados da própria
sociedade civil, que neles e por meio deles administra o seu próprio
interesse universal, mas sim delegados do Estado para administrar o Estado
55
contra a sociedade civil” . Ou seja, Marx recusa a ideia de que a
sociedade civil, tal como ela se configura atualmente, tenha um sistema
imanente de regulação em direção à efetivação institucional da liberdade,
como quer Hegel.
O segundo movimento é o apelo a uma instância jurídica responsável
por impedir a atomização social e a consequente explosão dos processos de
pauperização. Neste ponto, Hegel faz apelo ao Estado como “realização da
56
ideia ética” . Este Estado não terá como fundamento a segurança e
proteção da propriedade e da liberdade individual, mas a possibilidade de
superação da contradição entre a liberdade objetiva, ou seja, a vontade
universalmente reconhecida, e a liberdade subjetiva, ou seja, o saber
individual dos fins particulares.
Notem como o princípio fundamental do Estado é a possibilidade de

33
reconhecimento da vontade livre, não a necessidade de proteção, de força,
de riqueza etc. Há uma contradição entre individualidade e universalidade
que parece mover as considerações de Hegel sobre o Estado e sua relação
à sociedade civil. Daí porque a saída da contradição deva passar pelo
problema da forma de inscrição da figura da individualidade da vontade no
interior da universalidade da vontade do Estado.
Hegel faz isto de duas formas. Primeiro, constituindo um lugar
completamente singular para o poder soberano do monarca no interior da
sugestão hegeliana de uma monarquia constitucional. Singular por não se
equivaler a nada presente então como determinação efetiva do Estado.
Hegel fornece ao monarca o lugar de uma espécie de “decisão sem
deliberação”. Ele “decide” ao aparecer como aquele que apõe sua vontade
à deliberação da burocracia do Estado. Daí porque Hegel lembra que a
função do monarca é: “por os pingos nos i’s”. No entanto, sua decisão é,
como dirá Marx, expressão de uma personalidade abstrata, de uma
contingência que tenta se fazer passar por necessidade absoluta. Pois suas
decisões não são necessariamente a expressão da sabedoria, da maior
experiência ou da prudência. Elas são apenas a expressão da vontade
abstrata que, esvaziada de toda determinação qualitativa, justificada apenas
pela contingência de seu nascimento, quer o que foi já decidido pela
burocracia estatal e pelo poder legislativo. A vontade aparece assim
reduzida ao ato de querer o que se põe como substancial, mesmo que o
monarca não apareça como: “momento orgânico imanente do Estado”. Isto
explica porque Marx deve lembrar que: “no Estado político revela-se que a
‘personalidade abstrata’ é a mais elevada personalidade política, a base
57
política de todo Estado” . Neste sentido, a abstração, com sua força de
eliminar toda determinação qualitativa e singular, aparece como modo de
inscrição da negatividade da relação entre Estado e sociedade civil.
No entanto, esta personalidade que teria eliminado toda sua
particularidade para ser “personalidade do Estado” é, ao menos para Marx,
a exposição da verdade da individualidade abstrata não apenas do cidadão
do Estado, mas do membro da sociedade civil. Todo membro da sociedade
civil é determinado de forma tão abstrata quanto o monarca. Ou seja, para
Marx, a figura do monarca expõe a verdade da reconciliação proposta por
Hegel. Se podemos encontrar no fundamento do Estado hegeliano a
personalidade abstrata, é porque ela sempre esteve presente já desde os
primeiros momentos da sociedade civil. O que explica porque Marx faz
afirmações como: “as funções e atividades do Estado estão vinculadas aos
indivíduos (o Estado só é ativo por meio dos indivíduos), mas não ao
indivíduo como indivíduo físico, e sim ao indivíduo do Estado, à sua

34
58
qualidade estatal” .
A princípio, pode parecer que a leitura de Marx é pouco generosa.
Afinal encontramos em Hegel outra forma de superar a contradição entre
Estado e sociedade civil. Ela passa por mostrar como os próprios
indivíduos conteriam em si o universal. Hegel chegará a dizer:

Os indivíduos que compõem a multitude (Menge) são eles mesmos de


natureza espiritual e contém, em si mesmos, o duplo momento do
extremo da singularidade que sabe e que quer para si e o extremo da
universalidade que sabe e quer o substancial, e consequentemente
eles só alcançam o direito próprio a estes dois aspectos na medida
que eles são efetivos tanto quanto pessoas privadas quanto pessoas
59
substanciais .

Mas Marx compreende passagens desta natureza insistindo que este


duplo momento do extremo da singularidade que sabe e quer para si e do
extremo da universalidade que sabe e quer o universal não estão em relação
de contradição. Eles estão, na verdade, em relação de duplicação. Pois a
singularidade dos indivíduos que compõe a sociedade civil foi desde o
início configurada principalmente a partir de uma forma da vontade
compreendida como “interesse”, como individualidade baseada nas noções
de propriedade e posse. Não apenas propriedade de bens, mas
propriedades individuais (minha própria religião, minha própria etnia,
minha própria...). O que o Estado faz é, na verdade, dar forma jurídica,
expor a matriz disciplinar de um princípio de determinação que opera de
forma imanente na sociedade civil compreendida a partir da forma do livre-
mercado. Este princípio é a propriedade.
Por esta razão, se Hegel pode superar a contradição entre sociedade
civil e Estado no interior do Estado é porque os modos de relação do
Estado à sociedade civil já são a expressão daquilo que a própria
sociedade civil é em si. Em si, a sociedade civil moderna seria o processo
de transformação das singularidades na abstração geral própria à
indivíduos proprietários e possessivos. Ela é assim porque o processos de
exteriorização dos sujeitos é fundamentalmente mediado por um trabalho
cuja estrutura social é ser fonte de produção de abstrações.
Levando isto em conta, tudo se passa como se Marx lembrasse a
Hegel que a contradição entre sociedade civil e Estado, pensada sob a
forma da contradição entre individualidade e universalidade, é uma falsa
contradição. A verdadeira contradição está em outro lugar, a saber, na
própria estrutura interna da sociedade civil. Trata-se da contradição que

35
expressa como o movimento de determinação da sociedade civil produz o
seu contrário, a saber, não-indivíduos, que Hegel chama de ralé e que Marx
chamará de proletariado. Neste sentido, a negatividade interna à sociedade
civil não poderá ser internalizada pelo Estado, mas produzir uma superação
do Estado através de uma prática revolucionária. Como veremos mais à
frente, será por esta via que Marx trafegará.
Neste ponto, lembremos como Marx, por operar com um conceito de
liberdade para o qual a definição das condições sociais de sua efetivação é
um problema interno à própria definição do conceito, deve poder descrever
as situações nas quais o funcionamento da vida social não fornece mais os
pressupostos para a realização as aspirações da autonomia individual. Um
pressuposto fundamental está relacionado ao funcionamento da esfera
econômica com suas dinâmicas ligadas ao trabalho, base da constituição
daquilo que Hegel entendia por sociedade civil. Podemos dizer isto porque
problemas de redistribuição e de alienação na esfera econômica do
trabalho são um setor decisivo de problemas mais gerais de reconhecimento
social.
Neste sentido, por exemplo, processos de pauperização não serão
vistos apenas como problemas de “justiça social”, mas sim como
problemas de condições de efetivação da liberdade. Pois não é possível ser
livre sendo miserável. Livres escolhas são radicalmente limitadas na
pobreza e, por conseqüência, na subserviência social. Posso ter a ilusão de
que, mesmo com restrições, continuo a pensar livremente, a deliberar a
partir de meu livre-arbítrio individual. Um pouco como o estóico Epiteto,
que dizia ser livre mesmo sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se
reduziu à condição de puro pensamento é simplesmente inefetiva, isto no
sentido dela determinar em muito pouco as motivações para o nosso agir.

A questão judaica
É neste contexto que ganha importância um dos primeiros textos publicados
por Marx, a saber, Sobre a questão judaica. Trata-se de um texto publicado
nos Anais franco-alemães visando o texto A questão judaica, de Bruno
Bauer. Ele deve ser lido como uma espécie de complemento às críticas de
Marx sobre a possibilidade de confundir a emancipação humana como
emancipação política enquanto cidadão do Estado.
Marx parte da proposta de Bruno Bauer, para quem a emancipação
política dos judeus deveria ser feita à condição do abandono de sua
religião, pois: “Enquanto o Estado for cristão e o judeu judaico, ambos
serão igualmente incapazes tanto de conceder quanto de receber a
60
emancipação” . Nosso Estado ainda é cristão, por isto não faz sentido

36
esperar emancipação política no seu interior, da mesma forma como não
faria sentido esperar emancipação política de quem conserva a centralidade
de seu envolvimento religioso. Bruno Bauer exige, pois, que os judeus
renunciem ao judaísmo e que o homem em geral renuncie à religião para
tornar-se emancipado como cidadão.
Marx não concorda com a solução apresentada por Bauer. Pois ao
invés de se perguntar se os judeus tem o direito à emancipação política, há
de se perguntar se a emancipação política tem o direito de exigir dos judeus
a supressão do judaísmo e de exigir do homem a supressão da religião? Ou
seja, o primeiro ponto a destacar aqui é a maneira com que Marx lembra
que não se coloca uma questão sobre se uma comunidade específica tem o
direito à emancipação política. De certa forma, a questão é desprovida de
sentido por naturalizar os pressupostos no qual ela se assenta. A própria
forma de colocar a questão esconde o verdadeiro problema, a saber, se a
emancipação política atualmente configurada é, de fato, uma emancipação
humana. Neste sentido, há de se lembrar que, pensada a emancipação
política como cidadania: “a presença da religião não contradiz a
61
plenificação do Estado” . Pois a emancipação política que conhecemos até
agora, através da constituição de um Estado de tolerância religiosa, é uma
emancipação que, ao menos aos olhos de Marx, merece ser profundamente
criticada.
Esta situação específica é uma ocasião para Marx lembrar como a
forma geral de superação das contradições entre liberdade e restrição no
interior do Estado moderno consiste em conservar as restrições através da
constituição de modelos formais de liberdade que escondem novas formas
de alienação. Assim:

O limite da emancipação política fica evidente no fato de o Estado


ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem realmente
fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre
62
sem que o homem seja um homem livre .

Como cidadão do Estado, o homem não se liberta da religião. Ele


ganha a liberdade de ter uma religião que lhe seja privada, própria. Ele
leva assim uma vida dupla não só mentalmente, mas na vida concreta: laico
como cidadão do Estado e religioso como membro da sociedade civil,
laico como cidadão e religioso como indivíduo vivo. Tal reconciliação
clivada impede o advento do que Marx chama de “estado político pleno” no
qual seja possível atualizar a essência humana pensada como “vida do
gênero” (Gattungsleben), advindo assim uma existência real do gênero. Até

37
porque, o verdadeiro Estado cristão é aquele que constitui a “religião da
vida privada” ao apontar à religião um lugar entre os demais elementos da
sociedade burguesa. No entanto, Marx insistirá que emancipar não consiste
em emancipar politicamente, mas em se emancipar do modo atual de
emancipação política, emancipar das clivagens atualmente produzidas e
geridas pelo Estado.
Antes de tentarmos definir este conceito central de vida do gênero
como horizonte de emancipação e reconhecimento, vamos tentar entender
melhor o que está em jogo neste texto que foi objeto de tanta polêmica. Na
verdade, Marx está a criticar a compreensão da determinação social da
liberdade através da realização do homem como indivíduo abstrato. Neste
contexto, “abstrato” deve ser compreendido como: submetido a um modo
disciplinar de constituição de si no qual ele é constituído como indivíduo
que tem um conjunto de propriedades que lhe são inerentes e próprias (sua
religião, suas tradições, sua cultura, etc.). A discussão da transposição da
religião, da esfera pública para a esfera da constituição da vida privada, é
apenas um modo privilegiado para apreender os modos de privatização de
si, de constituição de si a partir da produção da esfera do privado, do que
me é próprio, do que é minha predicação. Daí porque Marx pode fazer
aproximações como:

A diferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o


mercador e o cidadão, entre o diarista e o cidadão, entre o
proprietário de terras e o cidadão. A contradição que se interpõe
entre o homem religioso e o homem político é a mesma que existe
entre o burgeois e o citoyen, entre o membro da sociedade burguesa e
63
sua pele de leão político .

Os exemplos de Marx servem para lembrar que a esfera da liberdade


individual é compreendida como a esfera na qual posso ser respeitado
como proprietário. Daí porque ele afirma, em uma colocação decisiva: “A
aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano
64
à propriedade privada” . O que equivale também: a tratar todas as suas
expressões e exteriorizações como o que pode ser submetido à condição de
coisa da qual sou proprietário, coisas de uma pessoa. Assim, Marx
insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em
larga medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma
colocação como:

38
“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não
prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o
limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se
da liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si
mesma (…) A aplicação prática do direito humano à liberdade
65
equivale ao direito humano à propriedade privada” .

A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de


indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos
separados pelo poste da cerca. O que deixa clara como a propriedade não é
apenas um problema econômico, mas um problema disciplinar de modos de
relação à si.

Gattungsleben

É neste contexto que devemos tentar compreender melhor o sentido de


um conceito central para o jovem Marx, a saber, a noção de “vida do
gênero” (Gattungsleben). Este é um conceito maior para compreendermos
o sentido do que Marx entende por emancipação e alienação. Vimos como
Marx insiste que um Estado político pleno é aquele no qual seria possível
atualizar a essência humana pensada como “vida do gênero”. Estado no
qual os indivíduos não são clivados em uma abstração política de cidadãos
e a atribuição privada de predicações (como ter sua própria religião), mas
no qual tal clivagem é superada a partir do momento em que os homens
podem se encontrar na vida do gênero. Esta vida não é mais uma abstração,
como é o caso da abstração do cidadão, pois ela é a expressão da vida em
sua condição de não apropriada. Veremos isto de forma mais sistemática
nas próximas aulas, mas tentemos inicialmente entender melhor este ponto a
partir do comentário do seguinte trecho dos Manuscritos econômico-
filosóficos:
O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da
espécie a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo
a medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a
medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo
66
as leis da beleza .

Esta caracterização do homem como “ser sem espécie definida”, “ser sem
medida adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo
a medida de qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença
genérica em relação à determinação própria a toda espécie nas suas

39
relações de transformação do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a
67
medida inerente ao próprio objeto . Liberado da condição de ser apenas
objeto para-um-outro, o objeto pode ser expressão daquilo que, no sujeito,
não se reduz à condição de ser para-um-outro. Daí porque encontrar a
medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo, superar a alienação do
sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz a tal condição de ser para-um-
outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma, não tem
imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben)
que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de Feuerbach que, ao
procurar estabelecer distinções entre humanidade e animalidade, dirá que:

De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto


ele tem sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a
consciência, cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência
existe também a faculdade para a ciência. A ciência é a consciência
dos gêneros. Na vida, lidamos com indivíduos, na ciência com
gêneros. Mas somente um ser para o qual seu próprio gênero, sua
quididade, torna-se objeto , pode ter por objeto outras coisas ou seres
68
de acordo com a natureza essencial deles

No entanto, diferente do que encontramos em Aristóteles, o gênero do


qual o homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto,
ele não pode constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a
definir a orientação da praxis. Um gênero desprovido de archai, sem
origem nem destino. Mas, e há de se salientar isto com toda força, esta
monstruosidade de um gênero que se objetifica sem ser espécie alguma
definida, gênero que imediatamente se determina e que prenuncia a
produção própria aos “indivíduos histórico-universais” de A ideologia
alemã, não é simplesmente a afirmação de que o homem só age de maneira
não alienada apenas quando age conscientemente como “ser social”, ou
seja, reconhecendo que sua essência, por não ser essência natural alguma,
só poderia ser sua própria auto-produção, ou seja, seu “ser social” genérico
e historicamente determinado. Se assim fosse, a afirmação da vida do
gênero não seria nada mais que uma apropriação reflexiva da
universalidade situada de minhas condições históricas, assim como da
substância comum às relações intersubjetivas que me constituíram e que se
expressa silenciosamente nos objetos que trabalho. O que nos levaria a uma
especularidade muito bem descrita involuntariamente por Feuerbach ao
falar, não por acaso, da especificidade da Gattungsleben humana:

40
“A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria
de si mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é
apenas quando o homem namora sua própria forma individual, mas
não quando ele admira a forma humana. Ele deve admirá-la; não pode
conceber nenhuma forma mais bela, mais sublime que a humana.
Certamente, todo ser ama a si mesmo, a sua essência, e deve amá-
69
la” .

A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao homem olhar-se no


espelho e não ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da
forma humana, a substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e
dificilmente não seria atualmente completada com a pergunta: mas o que
dizer se insistíssemos que, ao contrário, o homem é exatamente este ser que
se perde ao olhar-se no espelho, que estranha sua imagem como quem vê
algo prestes a se deformar, que não reconhece sua própria imagem por não
ter uma forma essencial que lhe seja própria? O que dizer se aceitarmos que
a experiência do espelho é confrontação com algo do qual não nos
apropriamos por completo, mas que nos atravessa produzindo o sentimento
de uma profunda impropriedade?
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade
que passa à existência não pode existir como mais uma espécie, não pode
se determinar tal como se determinam espécies particulares, como se
disséssemos algo como: “existem cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois
não estamos diante de uma universalidade por partilha de atribuição. De
certa forma, “animais” só podem vir à existência através da desarticulação
do campo de determinações que permite a organização das diferenças
predicáveis responsáveis pela particularização dos existentes. Neste
sentido, estamos diante de uma universalidade por excesso em relação ao
espaço de manifestação de particularidades. Esta é outra maneira de dizer
que a universalidade não deve ser compreendida como determinação
normativa capaz de definir, por si só, o sentido daquilo que ela subsume,
mas como a força de descentramento da identidade autárquica dos
70
particulares . A universalidade é, neste contexto, apenas a generalização
da impossibilidade do particular ser idêntico a si mesmo e a transformação
desta impossibilidade em processo de constituição de relações. Aceitando
tal conceito de universalidade, deveremos dizer que o trabalho que
expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido como a fonte
inesgotável dos possíveis que passa à existência, mas sem nunca
determinar-se por completo em um valor particular de uso totalmente
funcionalizado. Por isto, ela pode impulsionar os objetos trabalhados a uma

41
processualidade sempre aberta sob a forma de devir contínuo.

42
Reler Marx Hoje
Aula 4

Na aula de hoje, começaremos a leitura dos Manuscritos econômico-


filosóficos focando principalmente no seu Primeiro Caderno. Antes de
começar a leitura, lembremos a importância desses manuscritos.
Descobertos apenas nos anos vinte do século XX, os Manuscritos foram
publicados pela primeira vez em 1932. Sua publicação foi um fato
importante no interior da tradição marxista pois o texto expunham mais
claramente como a teoria da alienação de Marx vinculava-se a questões
tradicionais da filosofia do sujeito ao desenvolver a crítica do trabalho a
partir de uma problemática ligada aos modos de expressão de si. Como
veremos, em um movimento que não deixa de ressoar influências do
romantismo, Marx orienta sua crítica do trabalho a partir da pressuposição
de um horizonte de atividade livre que guarda dependências com o
paradigma da produção estética. De certa forma, é a produção estética que
aparece em momentos decisivos dos Manuscritos como o eixo de
orientação para a realização da liberdade. É ela que chegará mais próximo
das condições de atualização do que entendemos por “ser do gênero”
(Gattungswesen) ou “vida do gênero” (Gattungsleben). Neste sentido,
Marx desenvolve sua teoria da alienação a partir de uma reflexão sobre a
necessidade de atualização da vida do gênero. Podemos dizer que este é o
eixo central dos Manuscritos.
No entanto, no interior das discussões sobre os regimes de
constituição da realidade social do trabalho, Marx já se movia para além
dos limites próprios às filosofias do sujeito ao operar uma clara guinada em
direção à crítica da economia política que ainda não estava presente, por
exemplo, no manuscrito da Crítica à filosofia do direito de Hegel. Por isto,
sua discussão sobre alienação se expressa através do problema da
autonomização dos objetos produzidos pelo ser humano no interior do
trabalho. Autonomia que se realiza através da submissão dos objetos a um
padrão geral de abstração (ligado à dinâmica de auto-valorização do
Capital) que se volta contra os próprios sujeitos.
Uma certa posteridade marxista, Louis Althusser à frente, via nesses
textos do jovem Marx as marcas de uma dependência à filosofia da
consciência de matriz hegeliana que seria abandonada paulatinamente a
partir de A ideologia alemã. Marx seria Marx quando deixasse para trás
este universo de crítica social baseada na denúncia das condições de

43
alienação, produzindo um verdadeiro “corte epistemológico” no interior de
sua obra e desenvolvendo enfim sua teoria do fetichismo como modo
estrutural de determinação do valor. Gostaria de fornecer uma leitura
alternativa à esta visão ainda, em larga medida, hegemônica. Isto significa
defender que a temática da alienação continua sendo um importante centro
de gravidade para a crítica social inspirada nos trabalhos de Marx. Sua
compreensão é decisiva para entendermos o que se desenvolve
posteriormente não como corte, mas como desenvolvimento e
aprofundamento de seu pensamento.
Na discussão sobre os Manuscritos, gostaria principalmente de
explorar a relação entre alienação, trabalho e propriedade privada, para em
um segundo momento retomar as discussões de Marx a respeito da filosofia
hegeliana e que ocupam, principalmente, o Terceiro Caderno. As discussões
de Marx sobre a alienação como modelo de sofrimento social parecem
apelar a uma antropologia filosófica implícita que gostaria de explicitar.
Lembremos ainda como são quatro os textos que influenciam Marx neste
momento: a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, A essência do dinheiro,
de Moses Hess, A essência do cristianismo, de Ludwig Feuerbach e
Esboço de uma crítica da economia política, de Friedrich Engels.

Salário como espoliação

Marx começa seus Manuscritos com uma crítica ao trabalho


assalariado. Este começo tem razões claras vinculadas à centralidade da
categoria de trabalho. Sabemos como, no interior da filosofia social
moderna, o trabalho nunca foi apenas uma questão de produção de riqueza e
de valor. Ao menos desde Hegel, ele é compreendido como uma estrutura
fundamental de reconhecimento social, mas não foram poucos aqueles que
colocaram radicalmente em questão a possibilidade do trabalho ser um
modelo de ação que não se reduziria à simples expressão de sujeição
disciplinar à lógica utilitarista que nos aprisiona indefinidamente à
racionalidade instrumental.
No entanto, no interior da tradição dialética da qual Marx faz parte, o
trabalho aparece como algo mais do que a simples reiteração de processos
disciplinares que nos levariam, necessariamente, a modelos cada vez mais
evidentes de reificação social e de sofrimento psíquico. Para além da
estrutura disciplinar da autonomia, o trabalho já aparece para autores como
Hegel na condição de modelo fundamental de expressão subjetiva no
interior de realidades sociais intersubjetivamente partilhadas, isto a ponto
de elevá-lo (juntamente com o desejo e a linguagem) a condição de um dos

44
eixos de constituição daquilo que podemos entender por “forma de vida”.
Podemos nos perguntar se tal aposta no trabalho como processo
emancipatório de reconhecimento era, de fato, possível e necessária ou não
passava da expressão dos equívocos de filosofias tão fascinadas pelas
dinâmicas de transformação que tendiam a negligenciar como atividades
socialmente avalizadas funcionam fundamentalmente como processos de
reiteração de sujeições?
Marx parte desta centralidade do paradigma do trabalho para
perguntar se suas condições sociais concretas podem permitir que ele
realize seu próprio conceito, a saber, ser a exteriorização (Entäusserung)
do sujeito sob a forma de um objeto capaz de circular socialmente. Isto lhe
levará, como veremos, a uma crítica não apenas do trabalho alienado, mas
do que entendemos até agora por trabalho. Pois temos três níveis da crítica
em Marx que não devemos confundir: a) a espoliação do objeto trabalhado,
b) a espoliação do valor do trabalho e c) a alienação da atividade humana
71
sob a forma do trabalho que visa a produção do valor . Os dois primeiros
níveis nos levam a uma defesa da redistribuição igualitária de bens e
rendimentos e a um enquadre do problema da alienação no interior de uma
teoria da miséria operária. No entanto, o terceiro nível nos coloca em outro
eixo de discussões. Marx não se contenta em dizer que o objeto trabalhado,
o resultado do trabalho está espoliado do sujeito. Ele lembra que o próprio
ato da produção, a estrutura teleológica do trabalho é um forma de
alienação por exigir, como veremos em outra ocasião, uma compreensão do
que podemos chamar de matriz disciplinar do trabalho com sua relação à
propriedade privada e à elevação das “relações por possessão” à condição
de modelo fundamental de determinação social. Os dois primeiros níveis
são mais classicamente absorvidos pela crítica social que vê em Marx,
sobretudo, uma teoria da justiça social. No entanto, o terceiro nível é
seguramente o mais polêmico e original.
Ao começar pela crítica do trabalho assalariado, Marx procura
mostrar como a dissociação desta unidade ainda fundamental na realidade
medieval entre capital, propriedade da terra e trabalho, com a consequente
transformação dos trabalhadores em assalariados, representava um modelo
novo de subserviência, e não uma liberação em relação ao sistema de
dependências entre o servo e o senhor da terra. A constituição do
trabalhador como sujeito de direito que pode vender sua força de trabalho
no mercado pelo melhor salário é, para Marx, o fundamento de uma
espoliação naturalizada pela racionalidade da economia política. Ele
pressupõe o processo histórico de dissociar o trabalhador do capital e da

45
renda da terra, levando-o à obrigação de viver puramente do trabalho.
No Primeiro Caderno dos Manuscritos, Marx descreve este processo
através do qual o capital, cujo processo de valorização é a produção
efetiva da riqueza nas sociedades capitalistas, sobrepõe-se à propriedade
fundiária, transformando-a em uma mercadoria como as outras Assim: “a
terra como terra, a renda da terra como renda da terra perderam sua
qualidade social, distintiva, e converteram-se em capital e juro que nada
72
dizem, ou antes, que apenas sugam dinheiro” . Ao submeter a propriedade
fundiária à mera condição de mercadoria inserida em um processo de
valorização, o capital pode se colocar como poder de governo sobre o
trabalho e seus produtos. Daí esta definição do capital como trabalho
armazenado.
O capital governa através da redução de toda qualidade social da
terra e do trabalho à condição de uma abstração geral representada pela
forma-mercadoria. Este mesmo processo de abstração será imposto a um
trabalho cada vez mais maquínico, dissociado e submetido à divisão do
trabalho. Trabalho submetido à condição de ser mero processo de produção
do valor. Daí uma afirmação maior como:

com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção a


desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
73
geral .

A crítica ao trabalho assalariado terá pois dois momentos distintos,


porém complementares. Primeiro, ela é crítica da espoliação econômica
através do salário. Tal crítica está presente principalmente no primeiro
capítulo do Primeiro Caderno. Segundo, ela é crítica da alienação através
da submissão do trabalho à condição de processo de produção do valor.
Por sua vez, esta crítica está presente principalmente no quarto capítulo do
Primeiro Caderno. Falaremos desta primeira crítica agora enquanto a
segunda será iniciada nesta aula e terminada na aula que vem.

Espoliação e monopólio

De fato, que o salário seja expressão da espoliação econômica, eis


algo que Marx defende ao lembrar como o processo de valorização do
Capital pressupõe salários habituais compatíveis com uma mera existência
animal, como cavalos que recebem apenas o suficiente para poder

46
trabalhar. A produção da riqueza econômica não se traduz em aumento
paulatino e constante dos salários. Marx compreende este aparente
paradoxo a partir da dinâmica monopolista inerente ao desenvolvimento do
capitalismo:

Numa sociedade que se encontra em crescente prosperidade, apenas


os mais ricos entre todos podem viver do juro sobre o dinheiro.
Todos os outros obrigam-se, com seu capital, a montar um negócio ou
lançá-lo no comércio. Desta maneira, a concorrência entre os capitais
torna-se, portanto, maior, a concentração dos capitais torna-se maior,
os grandes capitalistas levam à ruína os pequenos, e uma parte dos
capitalistas de outrora baixa à classe dos trabalhadores, a qual, com
esta entrada, sofre, em parte, novamente uma redução do salário e cai
74
numa dependência ainda maior dos poucos grandes capitalistas .

Ou seja, o enriquecimento implica concentração de capitais, com o


fortalecimento dos monopólios e a consequente ruínas dos pequenos
capitalistas, que caem à condição de assalariados. Marx não se ilude a
respeito da solidariedade profunda entre concorrência e monopólio. Por
isto, mesmo em situação de enriquecimento social, devido à pressão social
produzida pelos processos monopolistas, os salários não acompanham o
crescimento. Na melhor das hipóteses, diz Marx, eles estacionam. Daí
porque ele poderá afirmar que: “a infelicidade da sociedade é a finalidade
75
da economia nacional” e que a situação mais rica da sociedade é miséria
estacionária para os trabalhadores.
Para entender o raciocínio marxista do enriquecimento da sociedade
como miséria estacionária para os trabalhadores, devemos lembrar da
diferença entre pobreza absoluta e pobreza relativa. Quando a produção
total se eleva, aumentam também as necessidades, demandas e exigências, o
que significa que a pobreza absoluta pode diminuir enquanto a relativa
aumentar:

O samoiedo, com seu óleo de fígado de bacalhau e peixes rançosos,


não é pobre porque na sua sociedade fechada todos tem as mesmas
necessidades. Mas num Estado que avança, que no decorrer de mais
ou menos uma década aumenta a sua produção total relativamente à
sociedade em um terço, o trabalhador que antes ou depois destes dez
anos ganha a mesma quantia, não ficou tão abastado quanto antes, mas
76
tornou-se um terço mais carente .

47
Isto explica porque, quanto mais o trabalhador produz, menos tem
para consumir. A pobreza relativa implica diminuição gradativa do que
consigo consumir em relação às exigências renovadas do meu sistema de
interesse. Desta forma, fica claro como Marx compreende a figura do
trabalho assalariado como a perpetuação de uma forma de espoliação.
Neste sentido, poderia parecer que uma saída consistiria na adoção de
políticas de aumento substancial dos salários, como queria Proudhom com
sua tentativa de organizar as lutas sociais a partir da pauta do aumento ou
mesmo da igualdade dos salários. Para Marx, o problema central não é
apenas os baixos salários, mas a redução do trabalho à forma da
mercadoria que se vende, de qualidade que se abstrai. Ou seja, sua crítica
não é apenas à espoliação econômica, mas é uma crítica do trabalho
assalariado enquanto tal, ou seja, uma crítica à ideia de trabalho em vigor
nas sociedades modernas. Isto fica claro quando Marx disser, em uma
afirmação de grande importância: “o trabalho – não apenas nas condições
atuais, mas também na medida em que, em geral, sua finalidade é a mera
77
ampliação da riqueza – é pernicioso, funesto” .
Esta colocação é importante por nos lembrar que a dominação no
trabalho não está ligada apenas à impossibilidade dos produtores imediatos
disporem de sua própria produção e dos produtos por eles gerados. Não se
trata apenas de uma questão de apropriação e dominação consciente,
através da “cooperação histórico-universal dos indivíduos”; apropriação
destes “poderes que, nascidos da ação de alguns homens sobre os outros,
até agora se impunham sobre eles, e os dominavam na condição de
78
potências absolutamente estranhas” . Pois, se não nos perguntarmos sobre a
extensão real de tal domínio, correremos o risco de deixar dois problemas
intocados, a saber, o fato da produção do valor ) a “mera ampliação da
riqueza”), como forma de riqueza e de determinação de objetos,
79
permanecer no centro das estruturas de dominação abstrata e,
principalmente (mas isto veremos só na próxima aula), o fato da relação
sujeito/objeto continuar a ser pensada sob a forma do próprio (como
expressão da consciência, seja ela falsa ou histórico-universal) e da
propriedade (seja ela individual ou comunal, injusta ou justamente
distribuída).
O problema relativo à reflexão do trabalho acaba por definir-se como
um problema de “redistribuição de propriedade”, redistribuição do que se
dispõe diante de mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo,
sua verdadeira essência. Neste sentido, é difícil não aceitar que “o sujeito
histórico seria nesse caso uma versão coletiva do sujeito burguês,

48
80
constituindo-se e constituindo o mundo por meio do ‘trabalho’” . Por isto,
ao menos dentro de tal perspectiva, não faria sentido falar do trabalho como
categoria de contraposição ao capitalismo, já que ele estaria organicamente
vinculado às estruturas disciplinares de formação da natureza utilitária das
relações próprias à individualidade liberal e seus direitos de propriedade,
expressando apenas amplos processos de reificação.

Marx, os homens e os animais

No entanto, ainda não tocamos no eixo central da crítica de Marx, a


saber, as relações profundas entre trabalho e alienação. Isto nos obriga a
compreender melhor aquilo que chamamos da “antropologia filosófica
implícita” nas obras do jovem Marx. A fim de compreender este ponto,
partamos da definição do trabalho como modelo de exteriorização
(Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto. Lembremos, a este
respeito, da famosa comparação de Karl Marx:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e uma


abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia.
Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes
de construi-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se
a um resultado que já estava presente na representação do
trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já
existia idealmente (ideell). Isso não significa que ele se limite a uma
alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao
mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o
tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar
81
(unterordner) sua vontade .

Como lembra Habermas, por meio destas afirmações Marx eleva o


trabalho não apenas a uma categoria antropológica fundamental, mas a uma
categoria da teoria do conhecimento, já que a compreensão dos objetos
como objetos trabalhados permite o desvelamento da natureza histórico-
social das estruturas normativas da experiência. Marx partilha com Hegel a
noção de que a modalidade de síntese responsável pela constituição dos
objetos da experiência não seria produção de uma subjetividade
transcendental, mas de uma subjetividade empírica às voltas com os modos
82
de reprodução material da vida . Tal ampliação da função da categoria de

49
trabalho é paga, entre outras coisas, com a necessidade de uma distinção
ontológica entre expressão subjetiva e comportamento natural. Habermas
sintetiza bem tal distinção ao afirmar que “Marx não apreende a natureza
sob a categoria de um outro sujeito, mas apreende o sujeito sob a categoria
83
de uma outra natureza” . Já a definição de Marx segundo a qual “toda
produção é apropriação (Aneignung) da natureza pelo indivíduo no interior
84
de e mediada por uma determinada forma de sociedade” é clara em suas
distinções ontológicas. Apropriar-se é relacionar-se com o que não me é
próprio e, por mais que formas sociais definam modalidades historicamente
determinadas de apropriação com suas consequências específicas, há de se
insistir novamente que a dinâmica da apropriação pressupõe um modo
estrutural de pensar a ação de produção como absorção do que se coloca
como inicialmente estranho, redução do estranho ao familiar, que já traz
consequências decisivas para a orientação normativa da crítica social.
Marx descreve em vários momentos tal apropriação como um
85
“metabolismo” (Stoffwechsel) através do qual “a totalidade da natureza é
socialmente mediada e, inversamente, a sociedade é mediada através da
86
natureza pensada como componente da realidade total” . Neste
metabolismo, as modificações ocorrem a partir da passagem da potência ao
ato, na qual o trabalhador “desenvolve as potências que na natureza jazem
87
latentes” , convertendo “valores de uso apenas possíveis (mögliche)” em
valores de uso reais (wirkliche). Tal processo, compreendido como a
passagem do possível ao real, é o que deve ser melhor definido. Como
vimos, Marx parece inicialmente dizer que o trabalho distingue-se de toda
outra atividade por ser exteriorização de uma idealidade, mas há de se
definir melhor o que devemos entender por “ideal” neste contexto. Pois se
“ideal” significar simplesmente a transformação da natureza a partir de uma
ação dirigida por uma finalidade previamente determinada ou sua
conformação a uma forma previamente presente como representação ideal,
como o texto de Marx parece inicialmente nos fazer acreditar, então será
difícil não perceber nesta atividade algo que dificilmente pode ser chamado
de “processo”. A passagem do possível ao real, operada pelo trabalho
social, não passaria de mera exteriorização de uma finalidade abstrata.
Se este fosse o caso, tal modo de determinação do trabalho nos
impediria, em última instância, de distingui-lo do comportamento natural.
Todo organismo biológico tem a capacidade de se orientar e operar
escolhas a partir de uma finalidade que serve de norma de avaliação. O
filósofo da biologia Georges Canguilhem é preciso neste sentido. Sendo a

50
88
vida uma “atividade de oposição à inércia e à indiferença” , toda
individualidade biológica diferencia e escolhe a partir de normas. Toda
individualidade biológica age a partir de um “ideal” com forte potencial
normativo, valorativo e, não devemos esquecer, transformador do meio-
ambiente.
Se quisermos dar alguma realidade à dicotomia afirmada por Marx,
talvez devamos voltar a uma importante afirmação presente nos
Manuscritos, segundo a qual:

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se


distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um
objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital
consciente. Esta não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual
89
ele coincide imediatamente .

A diferença entre a transformação do meio-ambiente devido ao


comportamento animal e ao trabalho humano está no fato da relação de
identidade imediata pressuposta pela animalidade - isto ao menos segundo
Marx - perder-se a partir do momento em que o homem “faz de sua
atividade vital um objeto de sua vontade e consciência”. Pois, desta forma,
o homem, ainda segundo o jovem Marx, poderia produzir mesmo livre das
determinações próprias à necessidade natural. Sua atividade “não é uma
determinidade com a qual ele coincide imediatamente”. Daí uma afirmação
como:

o animal produz apenas sob o domínio da necessidade física


imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade
física, e só produz, primeira e verdadeiramente. em liberdade para
com ela; o animal só reproduz a si mesmo, enquanto o homem
90
reproduz toda a natureza .

Assim, se o trabalho é um modelo de expressão subjetiva, não há


como pensá-lo como passagem simples da interioridade pensada à
exterioridade constituída. Ele é expressão do estranhamento da vontade em
relação às formas que se colocam como “representações naturais”, no
sentido que Hegel utiliza tal termo na Fenomenologia do Espírito. Isto
talvez explique porque Marx seja obrigado a definir a ideia trabalhada
como uma lei que “subordina” a vontade. Quem diz “subordinação” diz
imposição de uma norma a algo que lhe seria naturalmente refratário. A
vontade humana precisa ser subordinada à ideia trabalhada porque ela

51
pode, a todo momento, subvertê-la, desertá-la. Há uma característica
negativa da vontade presente na capacidade que tenho de flertar com a
indeterminação através do que Hegel chamou um dia de trabalho do
negativo. Já a abelha de Marx não precisa subordinar sua vontade à lei que
determina sua ação porque ela não tem outra vontade possível, sua vontade
está completamente adequada à lei, sua potência é imediatamente ato. Por
isto, podemos dizer que a existência mesma do trabalho pressupõe a
possibilidade humana, possibilidade esta que é exclusivamente humana, do
não-exercício do que se coloca como potência. De certa forma, a expressão
que se manifesta no interior do trabalho será sempre marcada por esta
potência de não passar imediatamente ao ato ou por esta potência de alterar
91
a determinidade que me seria imediatamente adequada . Maneiras de
expressar como a atividade humana encontra sua essência no excesso dos
possíveis (que podem aparecer inicialmente como impossíveis) em relação
aos limites das determinidades postas.
Neste sentido, podemos insistir em uma certa matriz hegeliana deste
modo de pensar a dimensão ontológica do trabalho. Como veremos na
próxima aula, vêm de Hegel as primeiras colocações sobre o trabalho como
fonte de reconhecimento social. No entanto, é interessante lembrar como,
em vários de seus textos, o trabalho aparece não como a simples
exteriorização de uma ideia, mas como modo de defesa contra a angústia. A
consciência se angustia diante da possibilidade de não ter objetividade
alguma, de não ter forma alguma que seja reconhecida socialmente. Por
isto, ela trabalha. Na verdade, ela trabalha como quem se defende contra
uma possibilidade de indeterminação que está sempre a lhe assombrar. No
entanto, os objetos trabalhados sempre terão as marcas desta sombra. Como
Hegel dirá, a respeito do trabalho: “a relação negativa para com o objeto
92
torna-se a forma do mesmo e algo permanente” . Ou seja, a
impossibilidade do ser humano encontrar um objeto que lhe seja natural,
algo que seja a expressão natural de sua vontade, ganha a forma de um
objeto trabalhado. Pois faz parte de toda defesa absorver algo do medo
contra o qual ela foi erigida.
Neste sentido, podemos a partir disto tentar complexificar nossa
noção de trabalho alienado. Normalmente, entendemos por trabalho
alienado aquela modalidade de atividade laboral na qual não me reconheço
no que produzo, já que as decisões que direcionam a forma da produção
foram tomadas por um outro. Desta forma, trabalho como um outro, como se
estivesse animado pelo desejo de um outro. Como dirá o jovem Marx:

Assim como na religião a auto-atividade da fantasia humana, do

52
cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo
e sobre ele; isto é como uma atividade estranha, divina ou diabólica,
assim também a atividade do trabalhador não é sua auto-atividade.
93
Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo .

Superar tal perda do que me é próprio seria indissociável da capacidade de


constituir-me como sujeito capaz de apropriar-me da totalidade das
relações produtoras de sentido social com suas mediações, colocando-me
94
assim como a “essência das forças motrizes” , segundo palavras
conhecidas de Gyorg Lukàcs. Constituição ligada, segundo certa tradição
marxista, à formação da consciência de classe proletária, única capaz de
realizar a apreensão do “caminho do processo de desenvolvimento
95
histórico como totalidade” .
Mas podemos também insistir que não é certo que tal modalidade de
apropriação da totalidade possa nos levar à superação da alienação. Pois
tal apropriação normalmente determina a totalidade como uma estrutura
fechada na qual todas as relações são necessárias pois previamente
determinadas no interior de um sistema meta-estável que encontra em um
conceito de história teleologicamente orientado seu campo de
desdobramento e nos modos de apreensão reflexiva da consciência seu
destino final. Apropriar-se da totalidade aparece aqui como o ato de
reconhecer, na dimensão de tudo o que aparece, a natureza constituinte de
uma subjetividade que abandonou sua crença no encaminhamento
transcendental apenas para encontrar, em operação no interior do trabalho
social com suas relações de interação, a mesma forma de subsunção do
diverso da sensibilidade em representações que animava a atividade
teórica.
Melhor seria lembrar como o trabalho alienado é, ao contrário,
exatamente aquele no qual aceitamos uma leitura literal da ideia de Marx,
segundo a qual “no final do processo de trabalho, vemos um resultado que
desde o início estava na representação do trabalhador, presente como
ideal”. Pois, neste caso, a imaginação do trabalhador é apenas a faculdade
humana da planificação, do esquematismo prévio, um pouco como o sujeito
kantiano com seu esquematismo transcendental capaz de determinar
previamente a forma geral do que há a ser representado. Este trabalho já é o
trabalho industrial da fábrica, que só produz objetos que são exemplares
intercambiáveis da ideia. Neste trabalho, a expressão tem uma estrutura
especular, já que o homem encontra, no objeto, apenas o ideal que ele
próprio previamente projetou. Mas não é possível, para um pensamento

53
materialista, aceitar que, no processo de trabalho, o resultado final já
estava determinado no início como representação. Pois isto implicaria
aceitar que a passagem à existência, que aquilo que no idealismo alemão
96
chamava-se “posição”, nada acrescentaria à determinação categorial ;
como se da determinação à existência não houvesse processo. Se assim
fosse, nunca poderíamos entender como, no interior do processo de
trabalho, categorias são reconstruídas a partir de negações determinadas
produzidas pelo “metabolismo” da atividade humana com seus objetos. Não
poderíamos compreender como o início, mesmo quando formalmente
idêntico, é semanticamente outro.

54
Reler Marx Hoje
Aula 5

Na aula de hoje, continuaremos a leitura dos Manuscritos econômico-


filosóficos focando em suas discussões sobre a relação entre trabalho
alienado, propriedade privada e o advento necessário do comunismo. Para
tanto, vamos partir novamente da compreensão da existência de três níveis
de crítica mobilizados por Marx a fim de constituir sua teoria da alienação
tendo como eixo central os desdobramento da categoria de trabalho como
fundamento para os processos de reconhecimento social. São eles:

a) a espoliação do objeto trabalhado,


b) a espoliação do valor do trabalho e
c) a alienação da atividade humana sob a forma do trabalho que visa
a produção do valor.

A primeira crítica diz respeito à relação entre o trabalhador e o produto de


seu trabalho. Este produto não é seu, mas é de um outro que lhe paga, em
troca, um salário pelo tempo trabalhado em sua produção. O produto do
trabalhador é propriedade privada de quem pagou pelo uso de sua força de
trabalho, de quem trocou o produto por um salário que perpetua o
trabalhador em sua condição de pobreza, fazendo deste um “trabalho de
97
mortificação, de auto-sacrifício” . Tal crítica pede uma teoria da justiça
social ligada à reflexão sobre as causas da desigualdade e da miséria
operária.
A segunda crítica diz respeito ao descompasso entre o processo de
produção de mercadorias e o processo de circulação de mercadorias. Este
descompasso é traduzido através da diferença entre o valor imanente ao
processo de produção e o valor produzido pela circulação de mercadorias
tendo em vista a auto-valorização do Capital. Esta crítica também pede uma
teoria da justiça social nos moldes da primeira.
Já a terceira crítica diz respeito à relação entre o trabalhador e sua
atividade compreendida como trabalho. Ela indica que a própria estrutura
do trabalho como processo de produção do valor implica impossibilidade
da atividade humana se colocar como exteriorização de sua
Gattungswesen, de sua essência enquanto gênero ou de seu ser do gênero.
Neste contexto, a reflexividade da consciência-de-si dá lugar ao tema da
objetivação da vida do gênero. Como havia dito na aula passada, o eixo da

55
definição do conceito de alienação no jovem Marx encontra-se no bloqueio
das possibilidades de exteriorização e objetivação da essência do gênero
ou, ainda, da vida do gênero. Vamos ver este ponto como mais calma.
Primeiro, é claro como o problema descrito por Marx ultrapassa o
quadro estrito da espoliação. Lembremos do sentido de uma afirmação
central como:

A exteriorização do trabalhador em seu produto tem o significado não


somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência
externa, mas, bem além disso, que se torna uma existência que existe
fora dele, independente dele e estranha a ele, tornando-se uma
potência autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto
98
se lhe defronta hostil e estranha .

Se o objeto pode se tornar uma existência independente do seu


produtor e hostil a ele não é apenas porque o produtor perdeu a posse do
seu produto, mas sim porque o produto lhe fornece uma imagem na qual o
produtor não se reconhece. O objeto trabalhado define a esfera da
exteriorização humana a partir de sua condição de processo de produção de
mercadorias, processo de produção do que não tem determinação
qualitativa alguma, algo estranho ao ser do sujeito. Por isto, Marx afirma
que a alienação do sujeito é, necessariamente, alienação da coisa. Pois o
capitalismo não conhece “coisas”, ele conhece mercadoria, ou seja,
suportes genéricos de processos de auto-valorização do Capital submetidos
a uma determinação contábil.
Notem que este problema não é apenas um problema de espoliação
econômica. Poderíamos pensar em uma situação na qual os produtores
diretos se transformariam em proprietários de seus produtos, em
proprietários de mercadorias produzidas. Isto não mudaria o fato
fundamental da alienação que diz respeito à submissão da atividade à forma
do trabalho produtor de mercadorias. Neste sentido, não devemos
compreender “mercadoria”, neste contexto, como todo e qualquer produto
humano que possa ser trocado. A mercadoria a respeito da qual Marx se
refere é aquele objeto cuja única finalidade econômica é permitir um
processo de auto-valorização do Capital (este processo através do qual
uma quantidade D de dinheiro produz um quantidade D´ maior de dinheiro).
Ela é produto que, ao ser trocado por dinheiro, permite ao dinheiro
anteriormente aplicado se valorizar.
Neste sentido, a característica fundamental do capitalismo, para
Marx, é organizar toda a economia e a vida social tendo em vista tal

56
processo incessante de valorização. Um pouco como se, no capitalismo, o
processo produtivo fosse, no fundo, uma espécie de momento do processo
especulativo. É a isto que Marx aludirá ao afirmar mais a frente, em O
Capital, que, na mercadoria, o valor de troca é o modo de expressão ou a
forma fenomenal necessária do valor, isto a despeito do valor de uso, ou
seja, do caráter útil da coisa para o seu comprador. É neste contexto que
entra o problema da alienação da essência genérica do ser humano.
Retorno ao problema do gênero

O homem é um ser do gênero, não somente quando prática e


teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante
das coisas, o seu objeto, mas também – e isto é somente uma outra
expressão da mesma coisa – quando se relaciona consigo mesmo
como com o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo
99
mesmo como com um ser universal, e por isso livre .

Notemos algumas colocações importantes nessa afirmação de Marx.


Primeiro, o ser humano é um ser do gênero quando faz do gênero seu objeto,
ou seja, quando ele objetifica o gênero. Não apenas seu gênero, mas o
gênero de todas as coisas restantes. Mas note-se algo paradoxal: qual é o
gênero que engloba tanto o gênero humano quanto o gênero de todas as
coisas restantes? Que tipo de “gênero dos gêneros” é este, um gênero que
parece ser o fundamento a partir do qual todos os outros gêneros se
desdobram, isto a ponto de Marx dizer que ele é expressão de um ser
universal? Ele não é só o gênero do ser humano, mas também o gênero do
restante das coisas. Ao se relacionar como um ser universal, como um ser
do gênero, o ser humano se relaciona com algo que parece estar para além
da própria determinação normativa e identitária do que entendemos por
gênero humano.
Notemos como Marx dá sequência a seu argumento. Ele dirá que a
vida do gênero aparece inicialmente como expressão de uma certa
100
universalidade que faz “da natureza inteira seu corpo inorgânico” . Isto a
ponto de Marx afirmar que, ao alienar o ser humano da natureza, o trabalho
aliena o homem de sua própria função ativa, ele o aliena do gênero. Mas o
que significa dizer que a natureza inteira se transforma em corpo do ser
humano? É evidente que temos a ideia de um processo de metabolismo no
qual ser humano e natureza aparecem como um corpo de mútua implicação.
Este processo de mútua implicação entre ser humano e natureza poderia ser
compreendido como a compreensão de que a natureza é aquilo que o ser
humano pode infinitamente se apropriar. Mas tal compreensão tenderia a

57
reduzir a natureza a uma espécie de estoque virtual da produção humana,
àquilo que está integralmente disponível à confirmação da forma humana.
Contra esta leitura, creio ser importante lembrar do potencial
transformador deste metabolismo tanto para a natureza quanto para o ser
humano. Tal metabolismo é processo através do qual “a totalidade da
natureza é socialmente mediada e, inversamente, a sociedade é mediada
101
através da natureza pensada como componente da realidade total” . Ao
partir dele, as modificações ocorrem a partir da passagem da potência ao
ato, na qual o trabalhador “desenvolve as potências que na natureza jazem
102
latentes” . Esta ideia de potências latentes na natureza expressa
claramente como a atividade humana, quando exterioriza a vida do gênero,
é produção de formas que não podem ser imediatamente vistas como
potências latentes na determinação atual do humano. Pois de nada adianta
afirmar que a objetivação da vida do gênero ocorre quando: “o homem se
duplica não apenas na consciência, intelectualmente, mas operativa,
103
efetivamente, contemplando-se a si mesmo em um mundo criado por ele” .
A questão central é: que homem é este que pode criar um mundo que pode
ser o desenvolvimento das potências que na natureza jazem latentes? Há aí
uma outra ideia do que significa exatamente “criar um mundo”, há uma
relação sujeito-objeto que deve se dar de forma distinta de uma simples
subsunção do objeto pelo sujeito, uma relação na qual a posição da
essência não é apenas uma confirmação da existência. Por isto, a
recuperação da vida do gênero passa pela crítica ao que, segundo Marx,
definiria a estrutura dos modos de determinação atual do humano e é neste
ponto que encontraremos a função real da crítica à propriedade privada em
nosso texto.
Mas antes de passar a este ponto, retomemos algumas elaborações
importantes de Marx a respeito deste exteriorização da vida do gênero.
Lembremos do que ele afirma a respeito da atividade que não se reduz mais
à condição de trabalho produtor de valor.

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se


distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um
objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital
consciente. Esta não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual
104
ele coincide imediatamente .

A diferença entre a transformação do meio-ambiente devido ao


comportamento animal e ao trabalho humano está no fato da relação de

58
identidade imediata pressuposta pela animalidade - isto ao menos segundo
Marx - perder-se a partir do momento em que o homem “faz de sua
atividade vital um objeto de sua vontade e consciência”. Pois, desta forma,
o homem, ainda segundo o jovem Marx, poderia produzir mesmo livre das
determinações próprias à necessidade natural. Sua atividade “não é uma
determinidade com a qual ele coincide imediatamente”. Daí uma afirmação
como:

o animal produz apenas sob o domínio da necessidade física


imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade
física, e só produz, primeira e verdadeiramente. em liberdade para
com ela; o animal só reproduz a si mesmo, enquanto o homem
reproduz toda a natureza. No animal, seu produto pertence
imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta
livremente com seu produto. O animal forma apenas segundo a
medida e a necessidade da espécie, enquanto o homem sabe produzir
segundo a medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a
parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isto,
105
segundo as leis da beleza .

Vejamos o que significa atividade livre neste contexto. Por um lado, é


produzir para além da normatividade imposta pelo necessidade do corpo
físico. Por outro lado, é produzir para além das determinações diferenciais
da espécie. Por isto, a vida do gênero é vida que se reproduz livre da
necessidade física imediata, que produz segundo a medida não só de
qualquer espécie, mas também de uma espécie qualquer, de uma natureza
pensada como potência livre das formas. É por isto, que o ser humano pode
formar segundo as leis da beleza.

Gênero e genialidade estética

Tal perspectiva talvez faça justiça de forma mais adequada à


dimensão estética da reflexão marxista sobre o trabalho. De fato, podemos
dizer que é como portador da vida do gênero que o sujeito trabalha segundo
“as leis da beleza”. Pois as leis da beleza não são estas que fundam as
formas humanas em uma arché, um pouco como a afirmação de Feuerbach
parece nos levar a acreditar. Esta leitura seria necessariamente
conservadora a respeito das questões próprias à forma estética e
radicalmente defasadas mesmo diante do estado da crítica na estética
romântica tardia à época de Marx. Mais correto seria afirmar que as leis da

59
beleza são estas que se quebram diante da expressão do gênio, temática
fundamental da estética romântica. Não por acaso, a raiz latina da palavra
alemã Gattung é o latim genus e o grego génos. Genus partilha com genius
a raiz gen que indica engendrar, produzir.
Giorgio Agamben tem um pequeno texto sobre o conceito de gênio
que pode auxiliar nas consequências desta estética da produção que animou
o jovem Marx e, como gostaria de defender, pressuposta mesmo na obra do
Marx da maturidade. Agamben lembra que os latinos chamavam genius ao
deus ao qual todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento.
Resultado da afinidade etimológica entre gênio e gerar. Por isto, genius era,
de uma certa forma, a divinização da pessoa, o princípio que rege e
exprime toda sua existência. No entanto, Agamben faz questão de insistir a
respeito de um ponto de grande importância para nós:

Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais


impessoal em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e
excede. “Genius” é a nossa vida, enquanto não foi por nós originada,
mas nos deu origem. Se ele parece identificar-se conosco, é só para
desvelar-se, logo depois, como algo mais do que nós mesmos, para
nos mostrar que nós mesmos somos mais e menos do que nós mesmos.
Compreender a concepção de homem implícita em Genius equivale a
compreender que o homem não é apenas Eu e consciência individual,
mas que, desde o nascimento até a morte, ele convive com um
106
elemento impessoal e pré-individual .

Ou seja, o que funda o gênio não é a expressão da singularidade


irredutível da pessoa, mas é o que estará necessariamente ligado à maneira
singular de lidar com a impropriedade de um elemento impessoal e pré-
individual que habita todo e qualquer sujeito (o que não deixa de ressoar o
fato de genius ter ligações também com genus, com este gênero impotente a
se determinar como espécie do qual fala Marx). Assim, a expressão
subjetiva só pode aparecer lá onde o artista saberá quebrar a regularidade
da forma, fazendo circular o que força a linguagem em direção à não-
comunicação. Sua genialidade estará ligada à capacidade de quebrar a
regularidade sem desestruturar a forma por completo. Quebras que darão à
forma sua tensão interna, que lembrarão à forma como ela estará sempre
assombrada por algo de informe que parece insistir e deve encontrar lugar.
Insistir na proximidade entre gênero e gênio, ao menos neste contexto,
tem o mérito de permitir a posição de uma universalidade que se realiza na
ação sem ser a expressão da partilha positiva de atributos gerais, como se

60
estivéssemos a falar da condição de atribuição de elementos múltiplos a um
mesmo conjunto. A vida do gênero é o advento de uma universalidade não-
substancial, fundada na indeterminação que faz de toda essência uma
atividade em reinscrição contínua de seus acontecimentos, e não um ser.
Neste sentido, a expressão laboral de uma vida que é vida do gênero,
Gattungsleben, só poderia se dar como problematização do objeto
trabalhado enquanto propriedade especular das determinações formais da
consciência, enquanto aquilo do qual a consciência se apropria por
107
completo no interior de um plano construtivo . A vida que se expressa
como vida do gênero é o que nos libera das amarras das formas de
determinação atual da consciência, de seus modos de apropriação, sem nos
levar a uma universalidade que é apenas a figura da individualidade
universalizada. Pois há de se aceitar a noção de que “o comum não é
característica do próprio, mas do impróprio ou, mais drasticamente, do
outro; de um esvaziamento – parcial ou integral – da propriedade em seu
negativo; de uma desapropriação que investe e descentra o sujeito
108
proprietário, forçando-o a sair de si mesmo” . Por isto, a vida que se
expressa como vida do gênero é o que há de impróprio em nós e o que
permite ao trabalho aparecer como expressão do estranhamento enquanto
afeto de relação do sujeito a si.

Propriedade privada e comunismo

A este respeito lembremos de uma distinção importante do jovem Marx


sobre duas formas de comunismo. O primeiro é o comunismo primitivo, que
Marx chama de “comunismo rude” e se aproxima das estruturas arcaicas de
propriedade comunal. O segundo é: “a figuração necessária e o princípio
109
enérgico do futuro próximo” capaz de fornecer aquilo que Marx chama de
uma superação positiva da propriedade privada.
Sobre o primeiro, Marx o descreve como uma generalização de todas
as relações sociais sob a forma das relações de propriedade: “o domínio da
propriedade material é tão grande frente a ele que ele quer aniquilar tudo
110
que não é capaz de ser possuído por todos como propriedade privada” .
Na verdade, a relação por propriedade permanece sendo a relação da
comunidade com o mundo das coisas, mesmo que no lugar da propriedade
privada tenhamos agora a propriedade comunal. Uma propriedade comunal
que pressupõe um certo retorno à simplicidade que é, para Marx, apenas
expressão da negação abstrata do mundo inteiro da cultura.
Marx chega a afirmar que a comunidade das mulheres, no qual a

61
mulher advém uma propriedade comunitária e comum, seria o segredo deste
comunismo rude:

Da mesma forma que a mulher sai do casamento [uma forma de


propriedade privada exclusiva] e entra na prostituição universal,
também o mundo inteira da riqueza, isto é, da essência objetiva do
homem, caminha da relação de casamento exclusivo com o
proprietário privado em direção à relação de prostituição universal
com a comunidade. Este comunismo – que por toda a parte nega a
personalidade do homem – é precisamente apenas a expressão
consequente da propriedade privada, que por sua vez é esta
111
negação .

Desta forma, fica claro como, para Marx, não se trata de passar da
propriedade privada à propriedade comunal, mas de abandonar os modelos
de relação (intersubjetiva, entre sujeito e objeto) sob a forma da possessão.
Assim, aparece uma distinção importante entre apropriação (Aneigung) e
possessão (besitzen) que abre à compreensão para a verdadeira superação
da propriedade produzida pelo comunismo. No comunismo, as
apropriações não são possessões e creio que este é um ponto fundamental, a
saber, compreender o que são apropriações que não se deixam pensar como
possessões, ou seja, estabelecimento de afinidades miméticas com o que
não se determina como minha possessão.
Assim, se no comunismo é possível falar de uma “verdadeira
ressurreição da natureza, do naturalismo realizado do homem e do
112
humanismo da natureza levado a efeito” é porque, no comunismo de
Marx, a natureza não é mais compreendida como o que se submete à
relações de posse, nem mesmo de posse coletiva. No comunismo, circulam
objetos que não são a confirmação do individualismo possessivo, objetos
são produzidos que não são resultantes do interesse individual, que não são
marcados pelo sentido do ter e pela submissão do objeto à funcionalidade
da utilidade. Lembremos a este respeito como “interesse” é a realização de
uma síntese entre as paixões e o cálculo, é a submissão da esfera das
paixões à forma do que pode ser calculado, do que pode ser pensado sob o
prisma utilitário.

Apropriação sem possessão

Ao falar desta apropriação que não é possessão, que não é submissão


aos princípios utilitários, Marx afirma:

62
A apropriação sensível da essência e da vida humanas, do ser humano
objetivo, da obra humana para e pelo homem, não poder se
apreendida apenas no sentido da fruição imediata, unilateral, não
somente no sentido da posse, no sentido do ter. O homem se apropria
da sua essência multilateral de uma maneira multilateral, portanto
como um homem total. Cada uma de suas relações humanas com o
mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber,
querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade,
assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como
órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu
comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a
apropriação da realidade humana; seu comportamento para com o
objeto é o acionamento da realidade humana (por isso ela é
precisamente tão múltipla quanto múltiplos são as determinações
essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento
humano, pois o sofrimento, humanamente, apreendido, é uma auto-
113
fruição do ser humano .

Ou seja, esta apropriação não é submissão do objeto à unilateralidade


da função, da utilidade e da posse. Ele é a compreensão do objeto como
parte da realidade humana. Ele não é desvelamento de que o objeto nada
mais é do que produção humana. Ele é, na verdade, alargamento, do
horizonte humano em direção ao que antes era compreendido como não
humano, como mera determinação objetiva funcional. Vigora aqui este
processo, tão claramente presente na dialética do Senhor e do Escravo, de
Hegel, de transformação da relação entre sujeito/objeto em uma relação
entre duas consciências. No entanto, este processo só é possível se o objeto
não for reduzido à condição de sujeito, mas se o sujeito se permitir
compreender-se internamente mediado pelo objeto. Neste sentido, quando
Marx afirma que o objeto deve se revelar como “objeto social”, isto
implica não apenas que o objeto demonstre as relações sociais e históricas
que o constituiram, mas que as relações sociais e históricas se ampliem
para abarcar aquilo que, até então, parecia exterior à reflexividade própria
à sociedade. Há uma dupla direção no processo que quebra a possibilidade
da apropriação da natureza histórico-social do objeto ser uma figura
materialista da subsunção idealista do objeto pelo sujeito.
De fato, Marx critica todo empirismo que procure desconhecer a
natureza histórico-social de nossos sentidos: “a formação dos cinco
114
sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui” . Mas esta

63
história do mundo não pode ser apreendida sem que ela tenha um momento
de “história natural”, de história cristalizada na exterioridade das formas
naturais: “a história mesma é uma parte efetiva da história natural, do devir
115
da natureza até o homem” . O reconhecimento da natureza histórica do
sensível não implica, por sua vez, redução do sensível à reflexividade
absoluta da história. Talvez isto explique porque Marx dirá: “Tanto a
ciência natural subsumirá mais tarde precisamente a ciência do homem
quanto a ciência do homem subsumirá sob si a ciência natural: será uma
116
ciência” . Esta unidade suposta traz consigo tanto uma modificação do que
é natural quanto uma modificação do que é humano.
Neste ponto, é importante entendermos o que pode ser o
engendramento do homem pelo homem, seu nascimento por si mesmo, por
meio do trabalho humano. Principalmente, há de se entender como ele não
seria a culminação absoluta de um idealismo para o qual a atividade
subjetiva é o princípio constituinte de toda e qualquer objetividade. Como
disse anteriormente, não basta que o caráter constituinte da subjetividade
transcendental seja historicizado, aparecendo como atributo fundamental de
uma consciência histórica. Faz-se necessário que a compreensão do
processo de constituição e de engendramento da realidade humana seja
posto em outras bases. Isto implica, mais uma vez, modificar o que se
entende por “realidade humana” e pela distinção entre “processo histórico”
e “natureza”.

64
Reler Marx hoje
Aula 6

Na aula de hoje, tentaremos abordar de forma mais sistemática a crítica de


Marx a Hegel. Já vimos em nossa aula sobre a Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel alguns aspectos importantes da crítica marxista. Tentemos
completá-la com as discussões presentes nos Manuscritos.
Contrariamente ao que vimos na Crítica da Filosofia do Direito,
onde a discussão filosófica entre Marx e Hegel era mediada por problemas
vinculados diretamente à teoria do Estado e, principalmente, ao papel dado
por Hegel à monarquia constitucional, o que vemos nos Manuscritos é uma
discussão mais claramente filosófica sobre a dialética hegeliana, em
especial sobre o sentido de sua negatividade, de suas discussões sobre a
alienação e de operações como a negação da negação e a Aufhebung. Este é
um dos raros textos de Marx onde a discussão com a dialética hegeliana se
desdobra de forma tão estrutural.
Nos Manuscritos, Marx propõe retomar o espírito da crítica feita por
Feuerbach à Hegel, defendendo uma guinada materialista da dialética. Em
aulas passadas, eu dissera que, desde a morte de Hegel, em 1831, o
pensamento alemão se via assombrado pelo tema do fim da filosofia, o que
neste contexto significa, de forma mais específica, assombrado pela
necessidade de sair das “abstrações” hegelianas e suas reconciliação
pretensamente conservadoras por serem aparentemente formais. Pós-
hegelianos como Kierkegaard, Feuerbach, Stirner, Marx tinham em comum
ao menos a crença de que deveríamos abandonar o discurso filosófico
(representado aqui pelo sistema hegeliano) a fim de caminhar em direção à
compreensão concreta dos processos e indivíduos. Que tal caminho se dê
pela recuperação da religião revelada como modelo de libertação do
117
indivíduo (Kierkegaard ), pela afirmação do indivíduo como única
existência real (Stirner) ou pela denúncia da teologia ainda presente na
filosofia a fim de reinstalar o pensamento em um modelo peculiar de
materialismo empirista (Feuerbach), o que temos é a enunciação de uma
tarefa, que Marx fará sua, de abandono ou realização da filosofia através do
retorno às condições concretas. Daí a afirmação de que:

A essência humana, o homem, refere-se para Hegel = consciência-de-


si. Toda alienação da essência humana nada mais é do que a

65
alienação da consciência-de-si. A alienação da consciência-de-si não
vale como expressão – expressão que se reflete no saber e no pensar
– da alienação efetiva da essência humana (...) Toda reapropriação da
essência objetiva alienada aparece, então, como uma incorporação na
consciência-de-si; o homem apoderado de sua essência é apenas a
118
consciência-de-si apoderada da essência objetiva .

De fato, Marx começa seu texto deixando claro a natureza polêmica


de suas asserções. Sua crítica de Hegel é, inicialmente, maneira de definir o
sistema de relações com os chamados jovens hegelianos (Bruno e Edgar
Bauer, Carl Reichardt, Franz Szeliga, entre outros). Estes filósofos não
ficaram para a posteridade, a não ser como alvos da crítica de Marx,
principalmente em A sagrada família. No entanto, sua importância para
Marx é clara, por eles representarem o eixo maior da ideologia alemã.
Marx percebe que a posteridade hegeliana tende a caminhar em direção a
um espiritualismo ou a um idealismo especulativo que no lugar do ser
humano individual e concreto coloca a consciência-de-si ou o Espirito.
Desta forma, os processos efetivos se dissolvem em sua força de abrir
caminhos que não sejam a mera confirmação da estrutura prévia da ideia.
Ao contrário, eles se tornam uma forma peculiar de confirmação da ideia.
Uma questão fundamental para alguém que compreende o atraso alemão
como fruto do peso de conciliações formais entre ideia e efetividade.
Confirmações que serve apenas para justificar as inadequações da
efetividade como forma distorcida de incorporação da negatividade da
ideia.
Em A sagrada família, Marx insistirá que o idealismo especulativo
dos jovens hegelianos parte da abstração para expressar uma conexão
mística entre fenômenos. Ele descreve tal inversão, através da qual a ideia
desrealiza os fenômenos, da seguinte forma:

Quando retornas da abstração, do ser intelectivo sobrenatural “a


fruta” às frutas naturais, o que tu fazes é, ao contrário, atribuir às
frutas naturais um significado sobrenatural, transformando-as em
puras abstrações. Teu interesse fundamental é, no final das contas,
provar a unidade “da fruta” em todas essas suas manifestações vitais,
a maçã, a pera, a amêndoa, quer dizer, a conexão mística entre “a
fruta”, como, por exemplo, a passa progride de sua existência de
passa à sua existência de amêndoa, o valor das frutas profanas não
mais consiste, por isso, em suas características naturais, mas sim em
sua característica especulativa, através da qual ela assume um lugar

66
119
determinado no processo vital da “fruta absoluta” .

Marx dirá que, na dialética hegeliana, encontra-se a substância


spinozista, a consciência-de-si fichteana e a unidade do Espírito absoluto.
O primeiro elemento é a natureza metafisicamente disfarçada na separação
do homem, o segundo é o espírito metafisicamente disfarçado na separação
da natureza, o terceiro é a unidade metafisicamente disfarçada de ambos.
Neste sentido, Marx pode dizer que o idealismo especulativo dos jovens
hegelianos desenvolve Hegel a partir do ponto de vista de Fichte. Ou seja, é
a perspectiva abstrata da consciência-de-si que se sobrepõe a toda e
qualquer unidade efetiva entre o homem real e a natureza.
Esta crítica dirigida a filósofos que diante de maças, peras e
amêndoas saem à procura da fruta absoluta será também mobilizada contra
Hegel. No entanto, Hegel não é um jovem hegeliano e nem toda sua filosofia
é mera mistificação idealista. Isto obriga Marx a operar uma partilha que
consiste em separar o movimento imanente da dialética dos procedimentos
de síntese em operação no pensamento hegeliano. Esta separação consiste,
em larga medida, na tentativa de conservar o conceito hegeliano de
experiência como “forma geral de movimento” capaz de fornecer a
orientação para a crítica da própria maneira com que Hegel procura pensar
a reconciliação entre ideia e efetividade. Ou seja, em larga medida, a
estratégia de Marx consiste em jogar a dinâmica da dialética contra seu
próprio espírito de sistema. Isto a ponto de afirmar:

A Fenomenologia é a crítica ainda em si mesma obscura,


mistificadora e oculta; mas na medida em que ela se ocupa da
alienação do homem – mesmo que o homem apareça apenas sob a
figura do Espírito – encontra-se nela ocultos todos os elementos da
crítica, muitas vezes preparados e elaborados de modo que suplantam
largamente o ponto de vista hegeliano A “consciência infeliz”, a
“consciência honesta”, a luta entre “a consciência nobre e a
consciência vil”, estas seções isoladas encerram os elementos
críticos mesmo que em uma forma alienada em esferas totais como a
religião, o Estado, a vida civil etc. Tal como a essência, como o
objeto enquanto objeto posto pela essência (Gedankenwesen), o
sujeito é sempre consciência ou consciência-de-si ou, antes, o objeto
aparece apenas como consciência abstrata, o homem apenas como
consciência-de-si, as diferentes figuras da alienação são, por
conseguinte, apenas diferentes figuras da consciência ou consciência-
120
de-si .

67
Neste trecho fica clara como se trata de jogar a Fenomenologia do
Espírito contra si mesma, mostrando como seus momentos expressam
processos críticos que não são apenas a confirmação de abstrações, mas
confrontações com situações concretas.

O conceito de experiência

Depois de afirmar que a Fenomenologia do Espírito é o verdadeiro lugar


de nascimento e o segredo da filosofia hegeliana, Marx afirma que a lógica
é apenas o pensar que faz abstração do ser humano e da natureza. Fica claro
aqui como Marx se interessa por este modelo de exposição própria à
Fenomenologia no qual as categorias do pensamento são expostas a partir
de seu processo claramente genético. Daí porque Marx poderá dizer que a
grandeza da Fenomenologia estaria na compreensão da auto-produção do
homem como um processo de objetivação, exteriorização e superação.
Processo de exteriorização de si através de um duplo movimento de
alienação na exterioridade e retorno a si desta alienação que Hegel define
como trabalho.
Ao vincular-se ao conceito hegeliano de experiência, Marx assume
dois pressupostos fundamentais. O primeiro consiste em dizer que a
exteriorização de si (como consciência-de-si ou como ser do gênero) só é
possível porque o ser humano se aliena, quebrando seus vínculos imanentes
com representações naturais. A exteriorização de si exige a consciência
inicial de que as determinações naturais do ser humano são alienações, de
que o mundo que lhe aparece é um mundo no qual ele se aliena, que nada do
que lhe aparece de forma intuitiva e imediata são expressões imanentes de
uma substância. Já o segundo se refere ao fato desta alienação ser superada
através uma forma possível de retorno a si. Mas é exatamente as formas
desta superação que colocarão problemas para Marx. Mas tentemos
entender inicialmente como este processo de experiência se dá em Hegel.

O que esta Fenomenologia do Espírito apresenta é o devir da ciência


em geral ou do saber [ou seja, o processo de formação da consciência
em direção a este ponto no qual pensar e ser podem reconciliar-se].
O saber como é inicialmente – ou o espírito imediato - é algo
desprovido de espírito (geistlose), a consciência sensível [o primeiro
estágio das figuras da consciência]. Para tornar-se saber autêntico, ou
para produzir o elemento da ciência, que é para a ciência o seu
conceito puro, o saber tem de percorrer um longo e árduo caminho.

68
Esse devir, como será apresentado em seu conteúdo e nas figuras
(Gestalten) que nele se mostram, não será o que obviamente se
espera de uma introdução da consciência não-científica à ciência, e
também será algo diverso do estabelecimento dos fundamentos da
ciência. Além disso, não terá nada a ver com o entusiasmo que
irrompe imediatamente com o saber absoluto – como num tiro de
pistola – e descarta os outros pontos de vistas, declarando que não
121
quer saber nada deles .

A Fenomenologia aparece aqui como o movimento de apresentação da


ciência, ou seja, da reconciliação entre pensar e ser, em seu devir. Esta
apresentação não é simples introdução à ciência para uma consciência
que ainda nada sabe, nem é apresentação prévia do que seriam os
fundamentos de todo e qualquer pensamento científico. Ela é menos ainda
a tematização da imanência de um saber do Absoluto que se dá através de
intuições intelectuais. A apresentação do devir em direção à ciência é a
rememoração deste longo e árduo caminho que vai da consciência em seu
estado mais imediato até o espírito realizado. Cada uma das etapas deste
caminho fornece um conteúdo de experiência e pode ser exposto através
de uma figuração, ou seja, cada uma destas etapas fornece uma figura da
consciência.
Insistamos pois em dois pontos. Primeiro, a fenomenologia implica
inicialmente na aceitação da perspectiva de um certo primado da
consciência. Trata-se fundamentalmente de descrever o que aparece
(Erscheinung – termo que pode ser traduzido tanto por “fenômeno”
quanto por “o que aparece”) à consciência a partir das posições que ela
adota diante da efetividade, posições que trazem em seu interior
conteúdos determinados de experiência enquanto conteúdos de modos de
vida em suas dimensões morais, cognitivas, estéticas, etc. Assim, se a
fenomenologia poderá ser definida por Hegel como “ciência da
experiência da consciência” (este era, por sinal, o título originário do
livro que aparece na primeira edição de 1807), é porque ela é a
exposição das configurações dos campos de experiência da consciência a
partir do eixo da formação da consciência para o saber, ou ainda, para a
filosofia.
Notemos ainda que o campo do que aparece à consciência modifica-
se ao ritmo dos fracassos da própria consciência em apreender o que se
coloca a partir do seu conceito de experiência. Digamos que ela encontra

69
sempre algo a mais do que seu conceito de experiência parecia
pressupor. Enquanto ela acreditar “encontrar” o que nega, o que não se
submete ao seu conceito abstrato de experiência, isto ao invés de
“produzir” tal negação, a consciência continuará nos descaminhos do
não-saber e não compreenderá como novos objetos podem aparecer ao
seu campo de experiência. É isto o que Hegel tem em mente ao dizer, na
Enciclopédia: “estando dado que o Eu, para si mesmo, é apenas
identidade formal; o movimento dialético do conceito – a determinação
progressiva da consciência – não é para ele sua atividade, mas é em-si e,
122
para ele, modificação do objeto” . É esta compreensão de que o
movimento dialético do conceito é atividade do próprio sujeito que leva
Marx a louvar a “grandeza” da Fenomenologia do Espírito.
No entanto, há ainda um ponto que deve ser ressaltado. Embora
adote a perspectiva da descrição do que aparece à consciência no
interior de seu campo de experiências, Hegel não se vê escrevendo uma
Fenomenologia da consciência, mas uma Fenomenologia do Espírito.
Esta distinção implica, entre outras coisas, que haverá um nível de
experiências que só poderá ser corretamente tematizada a partir do
momento em que a consciência abandonar seu primado a fim de dar lugar
ao que Hegel chama de Espírito (Geist). Ou seja, o acesso ao saber
pressupõe o abandono da centralidade da noção de consciência, de seus
modos de percepção e reflexão, em prol do advento do Espírito (que não
é espécie alguma de “consciência absolutizada”). O que este Espírito é,
até que ponto estamos a descrever uma entidade metafísica ou apenas a
apropriação reflexiva das condições gerais de gênese da experiência, eis
um ponto que será objeto de muita polêmica para a posteridade dialética.
Esta passagem, assim como a própria compreensão do que Hegel
quer dizer por “Espírito”, podem ser melhor compreendidos se levarmos
em conta o que Hegel procura desenvolver no parágrafo 28:

A tarefa de conduzir o indivíduo, deste seu estado inculto


(ungebildeten – não formado) até o saber, devia ser entendida em seu
sentido universal, e tinha de considerar o indivíduo universal, o
espírito consciente-de-si (Weltgeist - o espírito do mundo) na sua
formação cultural. No que toca à relação entre os dois indivíduos,
cada momento do indivíduo universal se mostra conforme o modo
como [o espírito universal] obtém sua forma (Form) concreta e sua
figuração (Gestaltung) própria. O indivíduo particular é o espírito

70
incompleto, uma figura (Gestalt) concreta: uma só determinidade
predomina em todo seu ser-aí, enquanto outras determinidades ali só
ocorrem como traços rasurados. (...) O indivíduo cuja substância é o
espírito situado no mais alto, percorre esse passado da mesma
maneira como quem se apresta a adquirir uma ciência superior,
percorre os conhecimentos preparatórios que há muito tem dentro de
si, para fazer seu conteúdo presente; evoca de novo sua rememoração
(Erinnerung), sem no entanto ter aí seu interesse ou demorar-se
neles. O singular deve também percorrer os degraus de formação
cultural do espírito universal, conforme seu conteúdo; porém, como
figuras já depositadas pelo espírito, como plataformas de um caminho
já preparado e aplainado. (...) Esse ser-aí passado é propriedade já
adquirida do espírito universal (...) Conforme esse ponto de vista, a
formação cultural considerada a partir do indivíduo consiste em
adquirir o que lhe é apresentado, consumindo em si mesmo sua
123
natureza inorgânica e apropriando-se dela” .

Como não devemos compreender este trecho? Primeiro, é fato que


Hegel pressupõe um certo paralelismo ente ontogênese e filogênese. Pois
a substância dos indivíduos concretos é um espírito do mundo que, a
primeira vista, parece absorver um processo racional de formação que já
se desenvolveu na história. De fato, a consciência deve compreender que
o presente não é o único modo de presença e que se trata,
fundamentalmente, de compreender uma noção de presença não mais
dependente da visibilidade do que se dá como imagem no presente.
Uma leitura tradicional diria então que caberia ao indivíduo apenas
rememorar este processo, estas “plataformas de um caminho já
aplainado” apropriando-se de um espírito que age no indivíduo, mas à
sua revelia. A verdadeira experiência seria, no fundo, uma rememoração
de formas já trabalhas pelo desenvolvimento histórico do espírito. Neste
momento, o indivíduo deixaria de orientar seu agir e seu julgamento
como consciência individual para orientar-se como encarnação de um
espírito do mundo que vê sua ação como posição de uma história
universal que funciona como elemento privilegiado de mediação. O
indivíduo singular transformar-se em consciência do espírito de seu
tempo. O que só poderia significar uma absolutização do sujeito que
deixa de ser apenas eu individual para ser aquele capaz de narrar a
história universal e ocupar sua perspectiva privilegiada de avaliação. E
aí que chegaríamos se levássemos ao pé da letra afirmações de

71
comentadores como Jean Hyppolite, para quem: “A história do mundo se
realizou; é preciso somente que o indivíduo singular a reencontre em si
mesmo (...) A Fenomenologia é o desenvolvimento concreto e explícito
da cultura do indivíduo, a elevação de seu eu finito ao eu absoluto, mas
essa elevação não é possível senão ao utilizar os momento da história do
124
mundo que são imanentes a essa consciência individual” . Enfim, tudo
se passaria como se a experiência da consciência fosse rememoração e
esta, por sua vez, fosse historicização capaz de nos levar a compreender
como o passado determina nosso agir e nossos padrões atuais de
racionalidade. Como se a palavra que traz o Saber Absoluto fosse: “No
fundo, eu sempre soube”.

Rememoração ou revolução

Esta compreensão da experiência como rememoração é um dos


principais pontos a colocar problemas à Marx. A seu ver, tal submissão
da experiência à rememoração é a prova maior de que as conciliações se
dão em Hegel como formas astutas de confirmação da efetividade. O
retorno a si pressuposto pela experiência hegeliana é apenas a elevação
da efetividade à condição de objeto pensado e esta elevação é a
verdadeira forma da conciliação.
Este é um topos repetido por Marx de forma insistente: Hegel
reinstauraria a existência no ser-pensado, transformando com isto o
mundo dos objetos em abstração do pensamento. Daí porque: “o pensar
125
enquanto pensar fige imediatamente ser o outro de si mesmo” . Marx é
ainda mais claro ao afirmar que não é o caráter determinado do objeto
que aparece a Hegel como fator de alienação mas, na verdade, o caráter
objetivo em geral. A objetividade do objeto deve se dissolver na
abstração de uma consciência-de-si cujo saber é seu único ato. O objeto
se revela assim apenas como a aparência de um objeto, como mero
projeção do saber da consciência e suas teias de rememoração:

O objeto é por isso mesmo um negativo que supera a si mesmo, uma


nulidade. Essa nulidade do mesmo não tem para a consciência uma
significação apenas negativa, mas positiva, pois aquela nulidade do
objeto é justamente a auto-confirmação da não-objetividade de sua
126
própria abstração .

72
Mas o movimento aqui é duplo, como já fora duplo na Crítica da
Filosofia do Direito. Não é apenas o pensar que determina as
possibilidades de existência. É a existência que limita um pensar que
aparece agora sob a figura privilegiada da rememoração do já
estabelecido. Isto fica claro na crítica que Marx faz à concepção
hegeliana de Aufhebung. Através da Aufhebung, dirá Marx, tudo o que é
superado continua existindo sob a forma de momentos necessários da
auto-confirmação do Espírito. Ou seja, o pensar é apenas a
reconfirmação da existência pelo pensar sob a forma da necessidade:

Assim, por exemplo, na filosofia do direito de Hegel, o direito


privado superado = moral, a moral superada = família, a família
superada = sociedade civil, a sociedade civil superada = Estado, o
Estado superado = história mundial. Na realidade, continuam
subsistindo direito privado, moral, família, sociedade civil, Estado
etc.; apenas se tornaram momentos, existências e modos de existência
do homem, que não têm validade isolados, se dissolvem e se
127
engendram reciprocamente etc., momentos do movimento .

Ou seja, esta superação, esta negação que conserva, aparece à Marx


como a forma possível de reconciliação de uma consciência teórica que
deixa os objetos permanecerem na efetividade ao invés de produzir uma
ação capaz de negar sua presença efetiva e sensível. Eles permanecem na
efetividade, no entanto, sob a forma de espectros cuja realidade é fornecida
pela sua remissão possível ao conceito. Moral, família, sociedade civil,
direito privado não tem realidade em si, embora permaneçam na
efetividade. Eles são apenas momentos de efetivação da ideia, eles são as
figurações incompletas da ideia e sua realidade será vista apenas sob o
signo da incompletude. Mas tal incompletude não levará a uma modificação
na ordem do existente. Ela levará apenas a uma abertura a uma
transcendência negativa que se incarna na definição da essência como ser-
pensado. A verdadeira existência religiosa, por exemplo, será a existência
filosófico-religiosa, a verdadeira existência política será a existência
filosófico-jurídica, a verdadeira existência humana será a existência
filosófica. As consequências não poderia ser diferentes:

Mas se, para mim, apenas a filosofia da religião é a verdadeira


existência da religião, então sou também verdadeiramente religioso
somente enquanto filósofo da religião; renego assim a religiosidade

73
real e os homens realmente religiosos. Mas, ao mesmo tempo, eu os
confirmo, em parte no interior de minha própria existência ou no
interior da existência estranha que lhes contraponho, pois esta é
apenas sua expressão filosófica, em parte, na sua figura original
própria, pois valem para mim enquanto o ser-outro apenas aparente,
como alegorias, figuras ocultas sob invólucros sensíveis da sua
própria existência verdadeira, ou seja, de minha existência
128
filosófica .

Ou seja, esta superação hegeliana é, ao mesmo tempo, esvaziamento,


desrealização das relações concretas, pois é exposição em sua parcialidade
e inverdade. Mas é também confirmação de uma existência reduzida à
condição de alegoria, de aparência, já que a superação não tem força para
produzir nenhuma outra realidade. No máximo, ela pode ressignificá-las.
Mas como a ideia é mera força da negatividade, a reinscrição produzida
pela consciência é apenas a elevação dos existentes à condição de
encarnações de negações. Criação de um mundo não muito diferente
daquele que Marx compreende ao encarar a realidade alemã e de seus
sistemas complexos de compensação à paralisia social. Daí porque a
negatividade hegeliana será compreendida simplesmente como força de
abstração. Ela é a maneira de determinações abstratas se fixarem como
verdadeiro conteúdo das efetividades postas. Ela é uma forma de criação
de abstrações concretas.
Mas o que Marx contrapõe a esta verdadeira virtualização espectral
da existência produzida pela dialética hegeliana e suas experiência
conformadas à situação de rememorações? Dois pontos principais devem
chamar nossa atenção. Primeiro, a via de Marx deve ser uma crítica aos
modos hegelianos de síntese com suas confirmações do que já fora
anteriormente criticado. Ela deve fornecer então outras formas de
superação. Segundo, ela deve ser uma crítica da consciência-de-si como
figura maior do sujeito do processo dialético.
Partamos do segundo ponto. Em Hegel, consciência-de-si é um
conceito relacional e, por isto, difere do conceito simples de consciência.
Ele descreve modos de implicação entre sujeito e objeto e modos de
relação entre sujeitos. Marx admite a natureza relacional do conceito de
consciência-de-si, mas procura pensar tais questões através da noção de
“ser do gênero”. Vimos na aula passada como o ser humano como ser do
gênero está implicado de maneira multilateral na natureza inteira. Esta
implicação se dá através de pulsões, paixões e sofrimentos: formas de
relação a um objeto que se coloca como exterior, relação a “objetos

74
sensíveis efetivos” (wirkliche sinnliche Gegenstände), como dirá Marx. A
perspectiva concreta da qual fala Marx em sua crítica à noção hegeliana de
consciência-de-si não é um retorno a singularidade irredutível do
indivíduo, mas a constituição de uma estrutura relacional ainda mais
universalista pois capaz de integrar o que teria sido expulso da figura de
objeto da consciência-de-si, ou seja, a implicação multilateral com a
natureza a partir das afecções, paixões e sofrimentos.
Isto é possível porque Marx compartilha com Feuerbach a tentativa
de recuperar a centralidade da sensibilidade, “situar de novo a
129
receptividade sensível no início da filosofia” , à condição de
compreender a transformação social como uma “revolução total de todo
130
modo de sensação” . Esta recuperação da sensibilidade implica
reconhecer que a própria sensibilidade, em seus regimes de relação e
afecção, produz formas de pensamento, e não é apenas recepção de uma
matéria inerte que seria formada pela espontaneidade do entendimento. Uma
mudança na estrutura da sensibilidade é mudança na relação à natureza, ao
mundo dos homens e à si mesmo. Neste sentido, só podemos concordar com
Ruy Fausto, para quem:

Se a história na Ideologia alemã é história da liberdade (história da


constituição da liberdade, embora o texto não a apresente assim), se
nos Grundrisse ela é história da constituição da riqueza,
apresentação da riqueza, a história nos Manuscritos é história da
constituição da satisfação e do gozo, a apresentação deles. E se na
Ideologia alemã tem-se a educação do homem para a liberdade (isto
ocorre com a revolução e através dela), se nos Grundrisse tem-se a
“educação”, a formação da riqueza, que, se transfigurando em logos,
cria a verdadeira riqueza, o tempo livre, nos Manuscritos tem-se a
131
educação dos sentidos .

Esta educação dos sentidos é feita através do fim da subordinação do


gozo ao Capital, e este é de fato um dos eixos fundamentais dos
Manuscritos. O Capital e seus processos de auto-valorização não é apenas
modo de determinação da racionalidade econômica. Há uma potência
disciplinar do Capital que é claramente expressa em passagens como:

O capitalista industrial também goza, sem dúvida. De modo algum ele


volta à simplicidade da necessidade, mas o seu gozo é coisa
acessória, repouso, subordinado à produção, e com isto gozo

75
calculado, e assim ele mesmo econômico, pois ele lança o seu gozo
nos custos do capital, e seu gozo só pode lhe custar tanto, que o que
ele lhe consumiu velha a ser reposto com lucro através da reprodução
do capital. O gozo é assim subordinado ao capital, o indivíduo que
132
goza ao indivíduo que capitaliza, enquanto antes havia o contrário .

No entanto, a realização destas formas de relação na qual o gozo não


será mais subordinado ao capital, subordinado ao cálculo, exigem, como
vimos anteriormente, a negação da propriedade privada e do
individualismo possessivo. Marx compreende que tal negação não se dará
como superação das formas sociais que constituem o horizonte das
sociedades modernas. Ela se dará através da instauração de formas que
nascem da atividade dos que não eram contados como sujeitos por tais
formas sociais. Por isto, não se trata de pensar regimes de negação que
conservam, mas de pensar formas de negação na qual as contradições reais
produzem sujeitos impredicados. Por isto, sua dialética deverá ser
necessariamente uma teoria das revoluções.

76
Reler Marx hoje
Aula 7

Na aula de hoje começaremos a leitura de A ideologia alemã, de Marx e


Engels. Mesmo que publicado de forma integral apenas em 1932, este é sem
dúvida um dos mais influentes textos escritos por Marx. Ele é redigido
conjuntamente com Engels em 1845-46, mas nenhum editor aceitou publicá-
lo, certamente devido a seu tom polêmico que visava acertar contas com um
extensa parcela da cena filosófica alemã. Apenas seu Capítulo IV será
publicado em 1847 pela revista Westphalisches Dampfboot. Junto ao texto,
a posteridade acrescentou também as famosas “Teses sobre Feuerbach”: um
conjunto de anotações de Marx publicado por Engels em 1888 em seu
próprio livro sobre Feuerbach.
O livro foi escrito para dar conta da inefetividade da pretensa
radicalidade da crítica dos chamados jovens hegelianos ou antes daquilo
133
que Marx e Engels chamam de: “apodrecimento do espírito absoluto” .
Em sua cruzada contra o conservadorismo da Restauração, os jovens
hegelianos pareciam acreditar serem capazes de “abalar o mundo” através
da mera modificação do modo de interpretação do mundo e na maneira de
mudar a consciência. Como dirá Marx e Engles, esta redução da crítica a
uma mudança de narrativa, à circulação de novas interpretações, era apenas
uma forma de opor frases feitas a outras frases feitas.
A importância de A ideologia alemã encontra-se em três aspectos
maiores do texto. Primeiro, ele marca a entrada em cena de um dos
conceitos mais profícuos do marxismo, a saber, o conceito de ideologia.
Não serão Marx e Engels que falarão de “ideologia” pela primeira vez, mas
os ideólogos franceses do começo do século XIX, como Destutt de Tracy.
Mas é certo que serão Marx e Engels que articularão os problemas ligados
à ideologia a uma discussão mais ampla sobre os regimes de alienação
social. Dentro das discussões sobre a alienação como processo de
autonomização dos produtos do trabalho humano e de dominação dos
próprios produtores pela racionalidade contábil imanente a seus produtos, a
crítica da ideologia aparece como um aprofundamento da mesma dinâmica
para a compreensão da gênese do sistema de ideias hegemônico em uma
determinada era histórica.
O conceito de “ideologia”, no entanto, não será retomado por Marx,
ao menos de maneira explícita após 1852. Alguns comentadores insistirão
que sua problemática será absorvida pelo conceito de “fetichismo”, que seu
uso generalizado e extensivo não é possível, já que ele necessita de uma

77
limitação metodológica. A crítica da ideologia é feita tendo em vista a
verdade de uma ciência da história cuja fundamentação não admite a crítica
a todo e qualquer sistema de ideias. A compreensão da gênese material das
ideias não é sem admitir a existência de “pressuposições reais” que
precisarão ser conservadas por Marx. É certo que Marx e Engels não estão
dispostos a denunciar todo e qualquer sistema de ideias como expressão de
“universalidades abstratas” que mascarariam a perspectiva irredutível dos
indivíduos como única existência concreta. Não é um acaso que quase dois
terços do primeiro livro de A ideologia alemã seja a crítica a Max Stiner,
representante de tal nominalismo estrito.
Daí o segundo aspecto fundamental de A ideologia alemã, a saber, a
apresentação sistemática da especificidade do materialismo de Marx e
Engels. O debate com Feuerbach na primeira parte do livro é o momento
decisivo para a crítica de um materialismo empirista em prol de um
verdadeiro “materialismo histórico” que será elemento constitutivo do
horizonte do marxismo. Este materialismo histórico parte das modificações
dos regimes de produção, da análise de seus antagonismos internos para
fundamentar a história como perspectiva crítica.
Por fim, esta dinâmica histórica será lida a partir da emergência
necessária de um sujeito político capaz de colocar em operação o que Marx
entende por práxis realmente revolucionária, a saber, o proletariado.
Gostaria de, nas aulas dedicadas a este módulo, discutir cada um destes três
aspectos, sendo que na aula de hoje gostaria de começar pelo fim, ou seja,
pela discussão sobre a emergência do proletariado.

Genealogia do proletariado

Usemos este momento de nosso curso para compreendermos de forma


sistemática o que está em jogo na emergência deste conceito fundamental
para a perspectiva materialista de Marx, a saber, o conceito de
proletariado. Façamos inicialmente um recuo no tempo. Conforme definido
da Constituição Romana, proletário é a última das seis classes censitárias,
classe composta por aqueles caracterizados por, embora sendo livres, não
terem propriedade alguma ou por não terem propriedades suficientes para
serem contado como cidadão com direito a voto e obrigações militares. Sua
única possessão é a capacidade de procriar e ter filhos. Reduzidos assim à
condição biopolítica a mais elementar, à condição de reprodutor da
população, os proletários representam o que não se conta. Daí uma
colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa
“pessoa prolífica” – pessoa que faz crianças, que meramente vive e

78
reproduz sem nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem
134
simbólica da cidade” . Até o final do século XVIII, proletário designa o
que é “mal, vil” ou, em francês, como sinônimo de “nômade”, de sem lugar.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da
Revolução de 1830, que o termo será paulatinamente acrescido de
conotação política, agora para descrever os que só possuem seu salário
diário pago de acordo com a necessidade básica de auto-conservação,
sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos de ações políticas
feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não são ainda
o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de
sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo
135
passivo da pobreza” . Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito
por Saint-Simon. É entre os saint-simonistas que a dicotomia entre
proletários e burgueses será descrita pela primeira vez, ainda que em um
horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de
Marx encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da
revolução ou, antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da
136
“história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente” .
Daí porque Marx falará, a respeito dos saint-simonistas e de outros
socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses sistemas
compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem
no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político
137
que lhes seja peculiar” .
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida
social como uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de
pensar as condições para a formação da sociedade como associação de
indivíduos, mas parar de pensar a vida social a partir da elevação do
indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a expressão da
dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações naturais
entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma
guerra que só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à
destruição do princípio que constitui as classes, a saber, o trabalho e a
propriedade como atributo fundamental dos indivíduos. O que explica
porque Marx deverá ser claro:

A revolução comunista se dirige contra o tipo anterior de atividade,

79
elimina o trabalho e suspende a dominação de todas as classes, ao
acabar com as próprias classes já que essa revolução é levada a cabo
pela classe a qual a sociedade não considera como tal, não reconhece
como classe e que expressa, de per se, a dissolução de todas as
138
classes, nacionalidades etc. dentro da sociedade atual .
Teremos de entender melhor o que significa dizer que o proletariado
expressa a dissolução de todas as classes, a dissolução do que constitui
classes. Inicialmente, lembremos como tal guerra civil entre proletários e
burguesia que leva à revolução é fruto de uma contradição cujo motor é a
própria burguesia. Marx não cansará de afirmar que a burguesia é uma
classe revolucionária: “A burguesia não pode existir sem revolucionar
incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações
139
de produção e, com isso, todas as relações sociais” . É ela que mostrará
como tudo o que é solido se desmancha no ar. No entanto, a burguesia é uma
espécie de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro
140
que já não pode controlar os poderes infernais que invocou” , ela “produz
141
seus próprios coveiros” . Ou seja, sua ação é contraditória porque, no
processo de auto-realização de si, a burguesia produz uma figura que lhe
será oposta e que lhe destruirá. Assim, a burguesia é o local no qual se
realiza uma impressionante operação de auto-negação que não é apenas a
auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da própria
“produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos,
entre sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.
Tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A
burguesia produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que
destroem grande parte das forças produtivas já criadas: “A sociedade
possui civilização em excesso, meios de subsistência em excesso, indústria
em excesso, comércio em excesso”. Um excesso que: “lança na desordem a
sociedade inteira e ameaça a existência da propriedade burguesa”. Pois tal
excesso de produção, de comércio, de civilização leva a uma
desvalorização tendencial da produção, uma intensificação dos regimes de
trabalho e um aumento da pobreza relativa que só pode ser superada através
ou da destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas ou pela
conquista de novos mercados, pela exploração mais intensa dos antigos. Ela
leva uma estrutura monopolista que só pode significar a abolição da
propriedade privada “para nove décimos da sociedade”. No entanto, tal
desordem produzida pela burguesia e sua escalada global não é apenas o
anúncio da destruição. Ela é a produção involuntária de novas relações que
tem em seu germe a forma de outro mundo:

80
Apenas esse desenvolvimento universal das forças de produção traz
consigo um intercâmbio universal dos homens em virtude do qual, por
um lado, o fenômeno da massa “despossuída” se produz
simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo
com que cada um deles dependa das transformações revolucionárias
dos outros e, por último, institui indivíduos histórico-universais,
142
empiricamente universais, em vez de indivíduos locais .

A desordem produz um fenômeno universal de despossessão e de


intercâmbio. Mas tal despossessão universal não é apenas um fenômeno
negativo, pois ele produz novas formas de interdependência e de
simultaneidade. A burguesia abre o espaço para o advento de indivíduos
histórico-universais caracterizados pela despossessão comum e pela
simultaneidade de tempos até então completamente dispersos. Ela produz as
condições para o advento de uma universalidade concreta que suspenderá e
superará o estado de coisas atual. É assim que ela produz seus próprios
coveiros.

A indeterminação social do proletariado

Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela
classe dos despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de
identidade. Classe formada por “indivíduos histórico-universais,
143
empiricamente universais, em vez de indivíduos locais” . Para que
apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se necessário uma certa
experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a
fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o
proletariado a sofre através da despossessão completa de si descrita por
Marx em termos como:

O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua


relação com mulher e crianças não tem mais nada a ver com as
relações da família burguesa; o trabalho industrial moderno, a
moderna subsunção ao capital, tanto na Inglaterra quanto na França,
na América quanto na Alemanha, retiraram dele todo caráter nacional.
A lei, a moral, a religião são para ele preconceitos burgueses que
144
encobrem vários interesses burgueses .

Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização

81
extrema, mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de
vida. Tais vínculos não são recuperados em um processo político de
reafirmação de si, não se trata de permitir que os proletários tenham uma
nação, uma família burguesa, uma moral e uma religião. Tais
normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No entanto, tal
negação não leva o proletariado a aparecer como “essa massa indefinida,
desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam
145 146
la bohème” e que Marx define como “lumpemproletariado” . Vale a
pena discutir melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que
tentaram, desde Bakunin, transformar o conceito de lumpemproletariado no
147
verdadeiro conceito com força revolucionária .
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico,
mas um tipo de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito
político. Lembremos da estranha extensão que o termo toma no 18 do
brumário:

Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem


duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram
ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários,
escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni,
batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos
de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapaceiros,
amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa
massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que
148
os franceses denominam la bohème .

Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores
de tesoura sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o
que totaliza esta série não é a suposta analogia entre seus elementos a partir
do desenraizamento social. A este respeito, lembremos como em Luta de
classe na França, Marx chega a descrever a própria aristocracia financeira
como “o renascimento do lumpemproletariado nos cumes da sociedade
burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato social e no
alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade,
uma diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas
diferenciação concebida do ponto de vista da produtividade dialética da

82
história. Pois o lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja
negatividade não se coloca como contradição em relação às condições do
estado atual da vida. Neste sentido, ele é a representação social da
categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de uma massa
heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um termo
unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política
existente. Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o
chefe do lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal
heterogeneidade social, a história mesma repetida como farsa e que deve se
confessar enquanto farsa para poder se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização
produzido por Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia.
Através de Napoleão III, a heterogeneidade do lumpemproletariado
permanece radicalmente passiva, permanece como ação anti-política, pois
acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus crimes romantizados
não se transformam em ação de transformação alguma. Na verdade, essa
desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria de
quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz
de conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar
completamente comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas
“paródias” de transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos
termos usados por Marx no 18 de brumário para falar de revoluções que
são, na verdade, tentativas de estabilização no caos. O lumpemproletariado
representa uma negatividade que não pode ser integrada no processo
dialético porque ele representa o congelamento da negatividade em uma
espécie de cinismo social.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer
expectativa de retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que
simplesmente não pode ser integrada sem que sua condição passiva se
transforme em atividade revolucionária. Por isto, ao ser desprovido de
propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de vida tradicionais e
de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode transformar
seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição
proletária não se confunde com alguma forma de demanda de
reconhecimento de formas de vida desrespeitadas, claramente organizadas
em suas particularidades. Ao contrário, a afirmação de tal condição
proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados descritos da
seguinte forma em A ideologia alemã:

83
Na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si um
círculo exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões
no ramo que melhor lhe aprouver, a sociedade encarrega de regular a
produção universal, com o que ela torna possível, justamente através
disso, que eu possa me dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa
caçar pela parte da manhã, pescar pela parte da tarde e a noite
apascentar o gado, e depois de comer, criticar, se for o caso conforme
meu desejo, sem a necessidade de por isto me tornar caçador,
149
pescador, pastor ou crítico algum dia .

Notemos aqui a natureza anti-predicativa do reconhecimento proposto


por Marx. Não me defino como caçador, pescador, pastor ou crítico,
embora possa caçar, pescar ou criticar. Não estou completamente vinculado
nem ao tempo originário da caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de
apreensão reflexiva da crítica, embora possa habitar as temporalidades
distintas em uma simultaneidade temporal de várias camadas. Não limito
minha ação nem ao trabalho manual, nem ao trabalho intelectual. Todas
essas negações demonstram como, por não passar completamente nos
predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva algo da dimensão
negativa da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do corpo
social.
No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos
perguntar sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade
comunista e aquele diagnóstico a respeito, por exemplo, do
desenvolvimento do capitalismo nos EUA presente nos Grundrisse:

A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma


forma de sociedade em que os indivíduos passam (übergehen) com
facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado do
trabalho é para eles contingente e por conseguinte, indiferente. Nesse
caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na
efetividade, meio para a criação de riqueza em geral e, como
determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em sua
particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau
de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da
150
sociedade burguesa – os Estados Unidos .

Em que pese a mais moderna forma de existência da sociedade


burguesa não ser exatamente uma “sociedade encarregada de regular a
produção universal”, assim como em que pese o primeiro trecho dizer

84
respeito à crítica da divisão do trabalho enquanto o segundo versa sobre o
conceito de trabalho abstrato, a indiferença em relação ao trabalho
determinado parece a mesma tal como descrita na futura sociedade
comunista. A contingência em relação ao tipo determinado de trabalho, a
flexibilidade das atividades concebidas na indiferença da abstração parece,
à primeira vista, algo próximo dos comunistas que caçam, pescam,
pastoreiam e fazem crítica literária, mesmo que ela seja muito mais uma
construção ideológica do que uma realidade efetiva em solo norte-
americano. Mas, se for o caso, então será difícil não dizer que a sociedade
comunista apenas realizaria o que as sociedades burguesas mais avançadas
prometem sem, no entanto, serem capazes de cumprir. Como se as
promessas da sociedade burguesa fossem o fundamento normativo da
crítica; fundamento que enfím poderia ser realizado no momento em que a
falsa totalidade do “corpo social de trabalho” fosse abandonada em direção
à verdadeira totalidade produzida pela regulação racional da produção
universal.
Mas insistamos em um ponto: o que está em questão no processo
histórico pensado por Marx não é apenas a superação da divisão social do
trabalho, nem a defesa de uma “regulação social da produção”. Mesmo tal
divisão pode mostrar-se obsoleta para o capitalismo, ao menos em suas
sociedades mais avançadas; mesmo tal regulação pode ser feita através de
fortes intervenções estatais, como no modelo da social-democracia
escandinava em seu auge. O que está em questão é, também e
principalmente, a liberação do trabalho em relação à produção do valor, em
relação à produção de objetos que sejam apenas o suporte próprio de
determinações do valor e em relação à submisão do tempo ao tempo de
151
produção do valor . Não somente o vínculo à identidade social produzida
pelo trabalho deve absorver uma certa potência da indeterminação, mas
152
também o objeto produzido, a ação realizada .
Neste ponto, podemos compreender melhor a importância de
sublinhar que o elemento decisivo na produção do valor é a submissão do
objeto à condição do próprio. Sua intercambialidade absoluta, resultante de
um modo de determinação que privilegia a instrumentalidade do
mensurável, do quantificável e do calculável é a afirmação maior de que as
coisas agora submetem-se por completo à condição do “próprio”. Elas são
a expressão do que os indivíduos podem determinar como sua propriedade,
prontas a serem comparadas e avaliadas com outras propriedades, prontas
para circularem em um circuito de velocidades sem fricções, dominadas na
familiaridade do que conhece o tamanho e o limite, representadas sob a

85
forma juridicamente determinada do que pode ser descrito no interior de um
contrato. Mas o trabalho livre só pode ser a produção do impróprio. Um
impróprio que não é propriedade comunal, mas circulação do que não tem
relações especulares com o sujeito, por isto o trabalho nunca poderia ser
possessão da natureza, dominação das coisas pelas pessoas. Ele é
expressão do que circula fora da utilidade suposta pela pessoa.

Apropriar-se

Insistamos na relação entre novas formas de apropriação e a


configuração do proletariado como essa classe “que expressa, de per si, a
153
dissolução de todas as classes dentro da sociedade atual” . A classe do
que dissolve todas as classes por representar “a perda total da
154
humanidade” , o que não encontra mais figura na imagem atual do homem.
Neste sentido, podemos dizer que, tal como na teoria hegeliana do sujeito
(embora Marx desqualificasse tal assimilação por ver, em Hegel, uma
elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua
alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do
155
fundamento e conservar algo desta indeterminação . Seu papel de
redenção (Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua
natureza de dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do
proletário como sujeito político é o aparecimento de um “sujeito como
156
vazio” que não é, em absoluto, privado de determinações práticas. Essa
manifestação de um vazio em relação às determinações identitárias atuais
leva-nos a compreender que o reconhecimento de si só é possível à
condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar
identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em
Marx não é simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das
condições materiais para a estima simétrica entre sujeitos dispostos a se
fazerem reconhecer a partir da perspectiva da integralidade de suas
personalidades, como quer alguns como Axel Honneth. A abolição da
propriedade privada deve acompanhar necessariamente a abolição de uma
economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como categoria
identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do
Manifesto Comunista:

Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais


senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por

86
conseguinte, o modo de apropriação existente até hoje. Os proletários
nada tem de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as
157
garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes .

Percebamos o caráter paradoxal deste trecho. Os proletários só


podem apoderar-se das forças produtivas abolindo todo modo de
apropriação até hoje existente (lembremos, neste ponto, da discussão sobre
a ideia de uma “apropriação sem possessão” que vimos na aula passada). O
modo de apropriação dos proletários é um modo que não existe até o
momento, impensável até agora pois não é simples passagem da
propriedade privada à propriedade coletiva. Ele é apropriação de quem
não tem nada de seu a salvaguardar, de quem não tem nem terá nada que lhe
seja próprio. Tal apropriação não é apenas a destruição da propriedade,
mas também a destruição do próprio. Por esta razão, a luta de classes em
Marx não pode ser compreendida como mera expressão de formas de luta
contra a injustiça econômica, já que ela é também modelo de crítica à
tentativa de transformar a individualidade em horizonte final para todo e
qualquer processo de reconhecimento social. O que não poderia ser
diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética,
“pessoa” é uma categoria derivada historicamente do direito romano de
propriedade (dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de
sua origem, era vista já por filósofos como Hegel como “expressão de
158
desprezo” devido à sua natureza meramente abstrata e formal advinda da
159
absolutização das relações de propriedade . Encontramos claramente em
Marx esta crítica já presente em Hegel. Lembremos mais uma vez como
Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em
larga medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma
colocação como:

“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não


prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o
limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se
da liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si
mesma (…) A aplicação prática do direito humano à liberdade
160
equivale ao direito humano à propriedade privada” .

A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua


condição de indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois

87
terrenos separados pelo poste da cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito
do texto de Marx se afirmarmos que, através da luta de classes, uma
experiência social pós-identitária pode encontrar lugar. Podemos mesmo
dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por
completo sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações
161
gerais de propriedade . Por esta razão, o proletariado não pode ser
imediatamente confundido com a categoria de povo. Falta-lhe a tendência
imanente à configuração identitária e limitadora que define um povo. O
proletariado funciona muito mais como uma espécie de anti-povo, isto no
sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a
provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação
constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-
contada. Esta é uma maneira de aceitar proposições como:

A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da


luta que opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada
muito cedo. Basta suprimir a causa da dissensão, ou seja, a
desigualdade de riquezas, dando a cada um uma parte igual de terra.
O mal é mais profundo. Da mesma forma que o povo não é realmente
o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não são realmente os
pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de
‘liberdade’, a propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles
mesmos a união distorcida do próprio que não é realmente próprio e
162
do comum que não é realmente comum .

Neste sentido, a felicidade do conceito forjado por Marx residia em


sua capacidade de sobrepor lógica política e descrição sociológica,
permitindo a criação de uma relação profunda entre trabalhadores
realmente existentes (que constituíam uma importante maioria social) e
163
proletários . No entanto, sustentar tal relação não é condição necessária
para que o conceito marxista de “proletariado” continue a mostrar sua
operatividade. Na situação histórica atual de reconfiguração da sociedade
do trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços
outros para a manifestação de exigências próprias a uma certa ontologia do
sujeito pressuposta pela construção marxista.

88
89
Reler Marx hoje
Aula 8

Um dos conceitos mais vinculados à Marx é a noção de ideologia. Seus


desdobramentos no pensamento do século XX são múltiplos, não só no
interior da tradição marxista própria a Lukacs, Gramsci, Althusser, Adorno,
entre tantos outros. Ele será a eminência parda das teorias de análise do
discurso e dos inúmeros construtivismos sociais. A extensão de tal
desdobramento não deve nos surpreender, pois a própria noção de crítica
foi durante boa parte do século XX vinculada à ideia de uma crítica da
ideologia, de uma denúncia das naturalizações produzidas pelas operações
ideológicas. Por isto, não será estranho lembrar que o conceito é
polissêmico e usado em contextos muito distintos entre si. Esta é uma razão
para tentarmos deixar um pouco de lado os desdobramentos do conceito e
tentar compreender melhor o que “ideologia” e sua crítica significavam
para Marx. Isto nos exige retornar ao texto de A ideologia alemã a fim de
dar conta da peculiaridade dos usos feitos do Marx, suas dificuldades e
inovações.
Comecemos por lembrar que não serão Marx e Engels aqueles que
falarão de “ideologia” pela primeira vez. Se quisermos ir em direção ao
primeiro uso do termo, precisaremos nos voltar aos ideólogos franceses do
começo do século XIX, como Destutt de Tracy, Cabanis, Volnet e Garat. No
interior da Revolução Francesa, os ideólogos tinham por projeto realizar o
projeto crítico do esclarecimento ao analisar os sistemas de ideias a partir
de sua gênese sensível, recuperando um certo materialismo empirista
próprio à filósofos como Condillac tão bem descrito em sua metáfora de
uma estátua mono-estésica que expressa a gênese das ideias a partir do
trajeto das sensações à memória, às operações de comparação e às
formação dos juízos.
Destutt de Tracy, o criador do conceito, compreendia a ideologia
como uma parte da zoologia. Isto demonstra como o estudo das ideias de
Tracy equivalia à análise de um processo natural de formação das ideias
através da compreensão do funcionamento normal e constante das
faculdades intelectuais, da percepção e da sensibilidade. Este materialismo
empirista aparecia como fundamento para a exigência iluminista de fazer a
crítica da autoridade das instituições, como o Estado, a igreja e as
tradições. Pois ao compreender a gênese, seria possível orientar melhor o
pensamento, fazer a crítica das suas ilusões e aporias. Por isto, Tracy
desenvolve a ideologia como ciência a ser ensinada na educação pública,

90
ao lado da gramática geral e da lógica. A função inicial da ideologia é
fornecer uma teoria natural da formação das ideias a ser ensinada na
educação pública.
No entanto, ao recuperar o conceito, Marx e Engels articularão os
problemas ligados à ideologia a uma discussão mais ampla sobre os
regimes de alienação social. Entre Tracy e Marx, sai o materialismo
empirista e entra o materialismo histórico. Desta forma, a ideologia não
será apenas uma reflexão sobre o processo de formação dos sistemas de
ideias, mas um setor fundamental sobre os bloqueios dos processos de
transformação social vinculados à configuração dos modos de reprodução
material da vida. Dentro das discussões sobre a alienação como processo
de autonomização dos produtos do trabalho humano e de dominação dos
próprios produtores pela racionalidade contábil imanente a seus produtos, a
crítica da ideologia aparece como um aprofundamento da mesma dinâmica
utilizada anteriormente para a crítica do trabalho e agora adaptada à
compreensão da gênese do sistema de ideias hegemônico em uma
determinada era histórica.

A câmara obscura

É neste contexto que aparece a figura da ideologia como uma câmara


obscura capaz de inverter a relação entre a condição e o condicionado,
entre o produtor e o produto, entre o sujeito e o predicado. Lembremos da
afirmação de Marx e Engels:

A consciência não pode ser jamais algo diferente do que o ser


consciente e o ser dos homens é um processo de vida real. Se em toda
a ideologia os homens e suas relações aparecem invertidos como em
uma câmara obscura, este fenômeno provém igualmente de seu
processo histórico de vida, assim como a inversão dos objetos ao se
projetarem sobre a retina provém de seu processo diretamente
164
físico .

Este trecho expõe ideias centrais da teoria da ideologia de Marx e Engels.


Primeiro, a compreensão de que a consciência não se determina a partir de
uma estratégia transcendental de fundamentação das condições prévias de
possibilidade de toda experiência. Antes, seu ser é o processo real de vida.
No que já fica claro que Marx nunca abandonará a distinção necessária
entre ideologia e processo real. O advento da ideologia, por sua vez, é
descrito da mesma forma que Feuerbach descrevia a formação da religião,

91
a saber, os homens e suas relações se invertiam e apareciam como relações
dos mitos entre si.
De fato, alienação, ideologia, fetichismo: todos esses termos tem em
comum, ao menos em Marx, a submissão a uma dinâmica de inversões. Em
todos esses casos, vemos processos nos quais produtos humanos ganham
autonomia em relação aos seres humanos. No entanto, esta autonomia cria
uma ordem que impede os próprios seres humanos de exteriorizarem sua
condição de ser do gênero, assim como os impede de produzir uma
totalidade verdadeira. Esta autonomia é, na verdade, forma de sujeição, ela
é uma maneira do homem ser dominado por aquilo que ele próprio
produziu. Por isto, Marx e Engels precisam dizer:

a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia e as


formas de consciência que a elas possam corresponder não
continuarão mais tendo, por mais tempo, a aparência de sua própria
165
autonomia .

Retirar a autonomia da moral, da metafísica, da religião é reconhecer


a condicionalidade do que procura se fazer passar por incondicional. Por
outro lado, é a forma de quebrar a produção de um sistema de ideias cuja
verdadeira função é impedir os homens de transformarem sua realidade.
Neste sentido, ideologia não é todo e qualquer sistema de ideias, mas os
sistemas cuja função é justificar o estado atual de coisas ou criar um falso
movimento que acaba por perpetuar o estado atual. Notemos, por exemplo,
um momento da crítica marxista da ideologia em operação na
desconstituição de conceitos próprios à filosofia moral:

A situação da Alemanha no final do século passado espelha-se


completamente na Crítica da razão prática de Kant. Enquanto a
burguesia francesa se impulsionou ao poder, através da mais colossal
das revoluções que a história jamais conheceu, e conquistou o
continente europeu, enquanto a burguesia inglesa revolucionou a
indústria e submeteu todo o resto do mundo, os impotentes burgueses
alemães alcançaram apenas chegar à “boa vontade”. Kant se deu por
satisfeito com a mera “boa vontade”, ainda que ela não traga o menor
resultado, e assentou a realização dessa boa vontade, a harmonia
entre ela e as necessidades e instintos do indivíduo, no além. Essa
boa vontade de Kant correspondeu totalmente à impotência, à
depressão e à miséria do burguês alemão, cujos interesses
mesquinhos jamais se mostraram capazes de se desenvolver a ponto

92
de se tornarem interesses comuns, nacionais, e que por isto sempre
166
foram explorados pelos burgueses de outras nações .

Notemos como funciona a crítica de Marx e Engels a Kant. Ela se


baseia na compreensão da filosofia moral kantiana como uma ideologia que
espelha, de forma invertida, a situação do atraso econômico e social
alemão no final do século XVIII. Marx e Engels não leem a Crítica da
razão prática a partir de sua “ordem das razões”, mas afirma que o
imperativo categórico e sua racionalidade procedural só são
compreensíveis como produtos da impotência, da depressão e da miséria
do burguês alemão, incapaz de operar modificações estruturais na realidade
material, como o fizeram a burguesia francesa com sua Revolução política e
inglesa com sua Revolução Industrial. A impotência alemã é sublimada em
“boa vontade”, sublima na lógica compensatória de em uma vontade pura
que só se harmonizaria com os desejos patológicos no reino dos fins. Neste
sentido, ao invés de fazer a crítica interna da teoria, Marx e Engels se
perguntam sobre que forma de vida tal teoria expressa. Sua resposta será: a
vida impotente e depressiva do burguês alemão.
O conceito de “ideologia”, no entanto, não será retomado por Marx,
ao menos de maneira explícita após 1852. Alguns comentadores insistirão
que sua problemática será absorvida pelo conceito de “fetichismo”, que seu
uso generalizado e extensivo não é possível, já que ele necessita de uma
limitação metodológica. Pois, como gostaria de insistir, a crítica da
ideologia em Marx nunca foi uma crítica totalizante. Na verdade, ela é feita
tendo em vista a verdade de um discurso que não é ideológico, a saber, a
ciência da história, mas uma história pensada a partir das categorias da
dialética.
Esta história fornecerá a base de fundamentação da crítica nào apenas
às figuras da consciência, mas também à sua linguagem, à sua moral. Por
exemplo, lembremos desta verdadeira análise do discurso proposta por
Marx e Engels:

É tanto mais fácil para o burguês provar a identidade de suas relações


mercantis e individuais, ou ate mesmo das genericamentes humanas, a
partir de sua língua, uma vez que essa mesma língua é um produto da
burguesia e por isso, tanto na realidade quanto na língua, as relações
de regateio foram tornadas o fundamento de todas as outras. Por
exemplo, propriété propriedade e característica, property
propriedade e peculiaridade, “próprio” em sentido mercantilista e em
sentido individual, valeur, value, valor - commerce, intercâmbio

93
comercial – échange, exchange, troca e assim por diante, termos que
são usados tanto para relações comerciais quanto para características
167
e relações entre indivíduos como tais .

Ou seja, a língua tem uma história, ela expressa um sistema de ideias


que estabelece os limites e modos de experiência a partir da naturalização
dos princípios de relações mercantis. De onde se segue este jogo de
indistinção generalizada entre relações comerciais e relações entre
indivíduos e de onde se segue também a compreensão dos indivíduos
modernos como produtos da internalização de dinâmicas comerciais. Uma
crítica da ideologia mobilizará a história para desvelar a sedimentação de
categorias, a naturalização de pressupostos.
Mas esta história não será uma “coleção de fatos mortos”, mas uma
história das materialidades, dos processos materiais de produção. Por isto,
para não ser ideologia, a “história da humanidade” (pois haverá uma
história universal da humanidade para Marx) deve ser elaborada em
conexão à história da indústria e do intercâmbio, história dos regimes de
produção e de troca. Mas, por sua vez, esta história dos regimes de
produção e de troca não será a descrição de sistemas meta-estáveis. Um
regime de produção é sempre atravessado por instabilidades descrita sob a
forma de contradições. Seu desenvolvimento é também a história de sua
destruição e é este movimento contraditório de realização através da
destruição de si que dará à história sua dialética. Uma dialética na qual
encontramos formas gerais de movimento, o conceito produtivo de
contradição, a crítica da identidade e suas operações de negação
determinada.
Para nós, que vimos como as grandes “metanarrativas” históricas, com
seus conflitos que se dirigiriam à revolução, foram denunciadas como as
construções ideológicas por excelência. Este é um tema presente, por
exemplo, em Jean-François Lyotard em seu A condição pós-moderna. Mas
é certo que Marx não pode admitir tal crítica pois ela, a seu ver, retira do
horizonte prático toda possibilidade de emancipação real. Por isto, a
compreensão da gênese material das ideias não ocorre sem admitir a
existência de “pressuposições reais” que precisarão ser conservadas por
Marx e que guiam seu conceito de história. Isto explica, volto a insistir,
porque Marx e Engels não estão dispostos a denunciar todo e qualquer
sistema de ideias como expressão de “universalidades abstratas” que
mascarariam a perspectiva irredutível dos indivíduos como única
existência concreta. O que significa que a crítica da ideologia não é, ao
menos em Marx, imediatamente uma crítica dos universais, muito menos a

94
assunção de um historicismo generalizado que poderia beirar o relativismo.
Em Marx, em última instância, a ideologia se contrapõe à dialética, à
compreensão dialética da dinâmicas dos processos materiais. Esta dialética
define o campo do real.
Não é um acaso que quase dois terços do primeiro livro de A
ideologia alemã seja a crítica a Max Stiner, representante de tal
nominalismo estrito. Stiner é o primeiro a afirmar que não apenas as ideias
morais, religiosas, metafísicas são algo que Marx chamaria de “ideologia”,
mas também universais como “povo”, “classe”, “revolução”,
“proletariado” e todo e qualquer conceito que elimina a realidade singular
dos indivíduos e suas propriedades. De certa forma, Stiner é uma espécie
de precursor da crítica pós-moderna aos universais. O mínimo que
podemos dizer é que esta crítica não é aquela colocada em circulação por
Marx. Pois mais do que uma crítica totalizante dos universais, Marx está
disposto a fazer uma crítica dos individuais.

Produção, divisão

A fim de entender melhor a natureza da crítica da ideologia em Marx,


lembremos como começa A ideologia alemã. Seu alvo maior é o que se
entendia à época como “os jovens hegelianos”, em especial Bruno e Edgar
Bauer, além de Max Stiner. No interior do pensamento de Marx, os jovens
hegelianos aparecem como este grupo de filósofos que compreendem o
objetivo da crítica como a transformação qualitativa da consciência, ou
seja, como o postulado moral de trocar a consciência presente pela
consciência crítica. Ou seja, trata-se de desqualificar as intromissão no
mundo material em prol de uma transformação que se limita à esfera
espiritual da consciência: “Essa exigência de mudar a consciência acaba na
exigência de interpretar o vigente de outra maneira, quer dizer, de
168
reconhece-lo por meio de outra interpretação” . Isto significa,
compreensão de que a verdadeira transformação se resumiria a uma
redescrição formal do mundo, como se tal redescrição tivesse, por si só, a
força de modificar o campo da experiência.
Quando Marx afirma que não se trata de interpretar o mundo de outra
forma, mas de transformá-lo, esta dicotomia entre interpretação e
transformação encontra seu sentido no interior do debate do pós-
hegelianismo. Marx entende que uma perspectiva incapaz de compreender
como a realidade material limita e induz as possibilidades da própria
produção de ideias e que uma nova interpretação de tal realidade é ainda
conservá-la será apenas uma forma de perpetuar a submissão a tal realidade

95
material e a seus efeitos. Uma perspectiva incapaz de compreender como o
sistema de ideias só aparece em sua autonomia quando abstraído de seu
horizonte histórico de produção não saberá como modificar tal horizonte.
Há aqui uma perspectiva que privilegia gêneses empíricas como forma de
esclarecimento. O que não poderia ser diferente para alguém que procura
requalificar o sentido do “materialismo”. Daí a necessidade de criticar os
jovens hegelianos afirmando que eles seriam incapazes de se perguntar, por
exemplo: “acerca da relação existente entre a filosofia alemã e a realidade
alemã, da relação da crítica que fazem com seu próprio ambiente
169
material” .
Assim, Marx e Engels procuram colocar em marcha uma crítica da
ideologia como redução do sistema de ideais à expressão das condições
materiais de produção. Mas parar aqui seria dizer muito pouco. Pois
primeiro deveríamos explicar o que podem ser tais “condição materiais”,
como elas se configuram, qual sua dinâmica própria. Analisemos pois este
ponto.
Lembremos inicialmente como as condições de produção das quais
falam Marx e Engels não se referem apenas ao modo de “reprodução da
existência física do indivíduo”. Ele é, acima de tudo, expressão daquilo que
Marx e Engels entendem por “formas de vida”, um conceito fundamental
neste contexto por quebrar a hierarquia simples entre infra-estrutura e
superestrutura. Pois um modo de produção não é apenas um agenciamento
de processos tendo em vista a produção de bens e de riquezas. Ele é uma
forma de vida que se expressa, inclusive, na dimensão “espontânea” dos
hábitos e costumes que constituem o horizonte do senso comum. A maneira
como determino a racionalidade da produção define a necessidade de
certos modos de socializar sujeitos, determina o regime de seus desejos,
seus regimes de linguagem e suas formas de trabalho. Modos de produção
pressupõe sanções psicológicas, um funcionamento específico da
subjetividade. O que nos leva ao que poderíamos chamar de “a questão
fundamental da crítica da ideologia em Marx”, a saber: “qual forma de vida
um sistema determinado de ideias naturaliza?”, “qual forma de vida um
sistema determinado de ideias procura reproduzir?”.
É fato que Marx e Engels insistem que: “a produção das ideias, das
representações, da consciência é, ao princípio, entrelaçada sem mediações
com a atividade material e o intercâmbio material, a linguagem da vida
170
real” . É esta estrutura da atividade material e das formas de troca e
intercâmbio que servirá de fundamento para a compreensão dos “processos
da vida real” que permitirão a Marx e Engels chegar ao desenvolvimento

96
dos reflexos ideológicos. Mesmo quando o sistema de ideias entra em
contradição com a reprodução da forma hegemônica de vida, isto ocorre
porque a esfera da atividade material é uma totalidade antagônica, um
processo em movimento através de contradições reais. Neste sentido, é
sempre importante lembrar que não estamos a falar de simples reflexos,
mas de expressões possíveis de uma totalidade antagônica.
No entanto, o aparecimento da ideologia exige ainda uma
configuração específica dos processos de produções. Pois para que a
produção de ideia apareça como ideologia, faz-se necessário a realidade
social da divisão do trabalho e sua justificativa sistêmica. Na origem, esta
divisão nada mais era do que a divisão do trabalho no ato sexual e por isto,
ao menos para Marx, ela não representaria imediatamente expressão de
separação e dominação. Mas esta divisão só se converte em verdadeira
divisão a partir da separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. A
partir de tal divisão, a divisão noa to sexual é ressignificada e adquire a
caraterística de submissão e dominação que conhecemos atualmente.
Lembremos aqui do que diz Marx e Engels a respeito da divisão do
trabalho:

A partir deste momento, a consciência já pode imaginar realmente que


é algo mais e algo distinto da praxis vigente, pode realmente
representar alguma coisa sem representar algo real – a partir deste
momento a consciência se acha em condições de se emancipar do
mundo e de se entregar à criação da teoria “pura”, da teologia “pura”,
171
da filosofia “pura”, da moral “pura”, etc .

Ou seja, a partir da divisão entre trabalho manual e trabalho


intelectual, trabalho no campo e trabalho na cidade, a autonomia do sistema
de ideias pode se afirmar. Neste sentido, é só neste momento que podemos
falar em ideologia com sua representação que não é expressão de algo real,
mas reconfiguração dos antagonismos do processo real a partir das
exigências normativas do ideal.
Por outro lado, com a divisão do trabalho, pode-se criar uma classe
dos que só conhecem o trabalho intelectual, uma classe de “manipuladores
de símbolos” que acreditam que as transformações se dão exclusivamente
no interior da esfera intelectual, dando à produção de ideias a roupagem da
autonomia. Isto explica porque Marx descreve a sociedade comunista como
esta sociedade na qual os sujeitos podem caçar, pescar, pastorear e fazer
crítica, sem serem pastores, pescadores, caçadores ou críticos. Pois ao
suspender a divisão do trabalho manual e intelectual, ela cria o espaço de

97
um sistema de implicações entre materialidade e ideia capaz de quebrar a
ilusão de autonomia que funda a ideologia.

Ideologia e emergência do sujeito

Mas voltemos ao problema da contraposição entre real e ideologia


que não cessa de emergir no texto de Marx e Engels. Lembremos desta
afirmação conhecida a respeito da relação entre sistema de ideias e práticas
de dominação:
“as ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época,
quer dizer, a classe que exerce o poder objetal dominante não sociedade é,
172
ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante” . Isto implica uma
lógica de hegemonia na qual as ideias hegemônicas expressam interesses de
classe. Teríamos então a consequência de toda ideia expressar um interesse
específico e estratégico de classe? Notem como Marx e Engels insistem
que este processo de dominação submete-se a uma dinâmica progressiva de
universalização. Cada nova classe que ocupa a posição de dominação se vê
obrigada a apresentar seus interesses como os interesses gerais da
sociedade. Ela fará então apelo a uma generalização cada vez maior,
imprimindo em suas ideias a forma da universalidade, pois necessita
englobar parcelas daqueles cujos interesses anteriormente não estavam
reconhecidos. Isto faz com que cada classe instaure sua dominação sempre
sobre uma base mais extensa do que a classe anterior.
Por um lado, este processo pode levar à contraposição sistemática
entre o discurso da universalidade e as realizações e possibilidades
efetivas fornecidas pela configuração atual da vida social. Neste sentido, a
crítica funcionaria como exposição sistemática de contradições
performativas, um pouco como nos sugere Jürgen Habermas. No entanto,
notem como Marx e Engels não falam “todas as ideias de uma época são
ideias da classe dominante”. Nem todas as ideias são hegemônicas e há
ideias que expressam o que não se constitui como classe, que não é contado
como classe e que não produz efeitos de domínio. Sem esta ideia toda, a
crítica da ideologia em Marx e Engels necessariamente giraria em falso.
Lembrem como Marx e Engels insistem que a classe revolucionária não se
contrapõe como classe, mas como representante de toda a massa da
sociedade. Por isto, ela não tem lugar de fala, ela não estabelece uma
perspectiva social específica, mas dissolve a limitação de todos os lugares,
suspende a divisão por classes, instaurando um novo espaço social no qual
podem aparecer “indivíduos histórico-universais”. Ela mostra como,
segundo Adorno: “a identidade é a forma originária da ideologia”.

98
Este é um ponto a meu ver central. O discurso da crítica da ideologia
cobre todo o processo de produção de representações sociais, da maneira
com que as sociedades representam a si mesmas. Mas há aquilo que não é
representação, que seria a deposição da representação por ser a emergência
de sujeitos políticos que pressupõem a ideia de universalidade, de
totalidade (a apropriação da totalidade das forças de produção), de
negatividade (ser despossuído de toda e qualquer determinação social) e de
atividade. Uma atividade livre que não é trabalho, mas a suspensão do
trabalho. A história em Marx, com sua dinâmica universal, é a descrição da
possibilidade de emergência de tal sujeito, por ele nomeado de
proletariado.
Neste sentido, a ideologia não é apenas resultado do
desconhecimento do caráter histórico e contingente de nossas
representações sociais, mas também o desconhecimento da força de
transformação própria à revelação da emergência de novos sujeitos
políticos. A crítica da ideologia não é assim o desconhecimento do caráter
simbólico do político, mas o reconhecimento da força política de
emergência. Assim, contra Althusser, para quem o sujeito era a categoria
ideológica por excelência, podemos dizer que, na verdade, a emergência do
sujeito é, em Marx, o que quebra o círculo de alienações próprio à
ideologia.

99
Reler Marx hoje
Aula 9

Retomemos mais uma vez um debate sobre a estrutura da crítica no


idealismo alemão, isto a fim de reintroduzir nossa discussão sobre o
conceito de ideologia. O pensamento de Marx é, acima de tudo, um
pensamento que procura colocar em operação uma forma renovada de
crítica. Lembremos mais uma vez aqui das mutações do conceito de crítica
no interior do idealismo alemão. Grosso modo, podemos dizer que
conhecemos três inflexões fundamentais do conceito de crítica no
pensamento alemão do final do século XVIII e século XIX. A primeira é
fornecida por Kant, que anunciará um verdadeiro programa ao afirmar:

Nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A


religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade,
querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas
justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a
razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público
173
exame .

Esta época que questiona tudo que procura validade para além do tribunal
do exame público (öffentliche Prüfung) da razão, da capacidade de dar e
oferecer razões tendo em vista a identificação do melhor argumento, é a
época da crítica, que destrona a era da metafísica. Esta crítica tem duas
características fundamentais: a) ela esclarece os conhecimentos que podem
alcançar validade independentemente de toda experiência, ou seja, ela
afirma-se através de uma estratégia transcendental na busca do que pode ser
absolutamente necessário; b) ela é definição dos limites que estruturam o
campo dos usos legítimos de cada faculdade do conhecimento. Daí sua
definição do problema da crítica como: “o que podem e até onde podem o
174
entendimento e a razão conhecer, independentemente da experiência” . Ou
seja, há em Kant uma reflexão sobre os limites do conhecer como exigência
a priori para o esclarecimento das condições de possibilidade de toda
experiência racional, ou seja, de toda experiência pensada como
constituição de representações de objetos.
A segunda versão encontramos em Hegel e consiste em definir a
crítica como exposição do sistema de erros da consciência. Hegel chega a
dar um nome próprio à tal exposição do sistema de erros da consciência em
sua experiência do mundo, a saber, fenomenologia. Aceitar o primado de

100
tal perspectiva fenomenológica implica, ao menos para Hegel, abandonar a
estratégia transcendental, própria a Kant, de definição das condições a
priori de possibilidade da experiência. Em seu lugar, entra em cena uma
reflexão sobre a gênese histórica daquilo que aparece à consciência como
limite de toda experiência possível. Descrição da gênese que é, ao mesmo
tempo, crítica de suas expectativas de validade universal. Se Hegel jogava
tanto com o trocadilho alemão entre ir ao fundamento (zu Grund gehen) e
perecer (zugrunde gehen) é porque se tratava de deixar evidente como a
crítica mostra que o verdadeiro esclarecimento do fundamento equivale à
dissolução do fundado. Neste sentido, a crítica se transforma em uma
crítica imanente na qual é questão de descrever a maneira com que a
consciência é ultrapassada pela experiência ao tentar ir em direção ao
fundamento de seu próprio saber, tendo assim, de fato, a experiência das
limitações de suas próprias representações. Neste sentido, a crítica não é
apenas esclarecimento dos limites, mas ultrapassagem dos mesmos.
A terceira versão encontramos em Marx e consiste em uma
radicalização materialista dessa compreensão da crítica como exposição da
gênese histórica do que aparece à consciência como limite de toda
experiência possível, exposição da gênese que visa demonstrar a
precariedade das expectativas de validade da situação atual. Marx
compreende que a ultrapassagem produzida pela crítica hegeliana ainda
peca por ser formal, ou seja, por não se realizar em uma transformação
material do mundo, mas resume-se a ser uma mudança de perspectiva do
pensamento que ocorre na abstração da consciência-de-si. Em Marx, a
crítica é uma forma de abrir espaço à emergência de um sujeito político
capaz de transformar materialmente o mundo. Para tanto, a ele deve ser,
inicialmente, uma reflexão sobre as estruturas das crises, reflexão sobre a
maneira com que formas de vida entram em crise. Mas o pensamento de
Marx não é apenas uma teoria das crises. Ele é também uma teoria das
revoluções, ou seja, ele é uma descrição da forma com que crises levam à
emergência de sujeitos com forte potencial revolucionário.
Neste sentido, se a crítica em Kant produziu uma noção de
transcendental como condição para uma fundamentação ahistórica do saber,
se a crítica em Hegel produziu uma fenomenologia como condição para o
advento de um saber absoluto, a crítica em Marx produzirá uma perspectiva
capaz de fundamentar a compreensão tanto da precariedade da situação
atual de reprodução material da vida quanto da necessidade de um sujeito
cuja ação é portadora de transformações profundas. Tal perspectiva é o que
entendemos atualmente por “materialismo histórico”. Tentemos pois
entender melhor o que pode ser este materialismo histórico ou, se

101
quisermos, essa concepção materialista da história.

Ideologia e real

Voltemos rapidamente à discussão de Marx sobre a noção de ideologia,


afinal, uma das mais conhecidas encarnações da crítica marxista é como
crítica da ideologia. Diz Marx e Engels:

A consciência não pode ser jamais algo diferente do que o ser


consciente e o ser dos homens é um processo de vida real. Se em toda
a ideologia os homens e suas relações aparecem invertidos como em
uma câmara obscura, este fenômeno provém igualmente de seu
processo histórico de vida, assim como a inversão dos objetos ao se
projetarem sobre a retina provém de seu processo diretamente
175
físico .

Temos duas ideias importantes aqui. Primeiro, a ideologia como uma


inversão semelhante ao fenômeno físico de produção da imagem em uma
câmara escura. Esta inversão é entre o sujeito e o predicado, entre a causa e
o efeito, o condicionante e o condicionado. O que é predicado se
transforma em sujeito, o que é sujeito aparece no lugar do predicado. O que
é efeito se transforma em causa, o que é causa aparece na posição de efeito.
Mas isto ocorre porque o sujeito é marcado por uma contradição
fundamental que ele procura resolver projetando-se em um ideal. Marx
utiliza o exemplo da família enquanto instituição marcada por contradições
que
Segundo, o que se contrapõe à ideologia é o “processo de vida real”, ou
seja, a ideologia está para o imaginário assim como os processos da vida
176
estão para o real .
Marx e Engels utilizam em vários momentos de A ideologia alemã
noções como “processos de vida real”, “linguagem da vida real”,
“indivíduos reais”, isto para salientar como há uma dimensão da
experiência que não se representa (Vorstellung) em um sistema de ideias,
mas que se apresenta (Darstellung) em uma exteriorização efetiva. A
linguagem da vida real não é uma representação ideológica da vida, mas
uma apresentação da vida em sua dinâmica própria. Sem esta assunção
arriscada e prenhe de consequências de uma espécie de expressão imanente
do real, a crítica de Marx e Engels perde seu fundamento.
Em Marx, o campo do real é a história. Mas percebamos inicialmente
o que isto implica. Contrariamente ao materialismo do século XVIII, o real

102
não é a empiria, não é o que se abre a nós através da imediaticidade dos
sentidos. Real não são os objetos tais como se apresentam imediatamente à
nós, não é a matéria como dado primeiro e informado, mas os processos
que constituem o que se apresenta à nós com a aparência da imediaticidade.
Esses processos são descritos através de um regime de discurso que
conhecemos por história. Daí porque Marx dirá:

O principal defeito de todo materialismo até aqui (o de Feuerbach


incluído) consiste no fato de que a coisa – a efetividade, a
sensibilidade – foi apreendida apenas sob a forma do objeto ou da
contemplação, mas não como atividade humana sensível, não como
subjetiva. Daí porque, em oposição ao materialismo, o lado ativo foi
desenvolvido de maneira abstrata apenas pelo idealismo, que não
177
conhece a atividade real e sensível como tal .

Fascinada por uma concepção de matéria desprovida de tempo, o


materialismo até agora, diz Marx, não foi capaz de compreender a matéria
como atividade. Esta noção de atividade só foi apreendida, mesmo de que
de forma abstrata, pelo idealismo, principalmente o idealismo de Fichte e
de Hegel, que se perguntam pelo movimento imanente à experiência. Esta
atividade, dirá Marx, só pode ser apreendida de forma adequada através da
história.
Notemos que tal materialidade constituída pela sedimentação de
processos históricos levará Marx a definir o concreto em direção ao qual a
crítica da ideologia se orienta não como a simplicidade do que se oferece
aos sentidos e ao senso comum, mas:

O concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações,


portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece
no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como
ponto de partida, não obstante seja o ponto de partido efetivo e, por
consequência, também o ponto de partida da intuição e da
178
representação .

O concreto é resultado de uma síntese operada pelo pensamento e


pela reflexão que reencontra no objeto da intuição e da representação
aquilo que ele próprio esqueceu. Daí a importância da história como
operação de desvelamento da gênese do concreto. Ela permite a
reconstituição de sínteses que ocorreram, de certa forma, às costas da
consciência e que precisa, agora, ser por ela reapropriada.

103
Vale a pena insistir que esta escolha de Marx em privilegiar a história
só pode ser compreendida se lembrarmos que seu tempo é um tempo no
qual a história se constitui como ciência, mudando completamente de
sentido. De Heródoto e Tucídides aos Iluministas, a história significou, em
179
larga medida, a “investigação através da interrogação de testemunhas” .
Investigação cujo objetivo maior será permitir aos sujeitos servirem-se do
180
passado como quem se serve de uma coleção de exemplos . Daí uma
expressão paradigmática de Cícero: Historia magistra vitae (história como
mestre da vida). Narra-se a histórica como quem procura feitos notáveis
que nos indique como proceder diante de situações análogas no presente.
Mas essa concepção de história com sua força pedagógica exigia a
crença em um tempo continuo, no qual passado e presente se desdobrariam
no interior de uma mesma duração. Condição necessária para que o
interesse pelo passado reduza-se, basicamente, à procura de relatos
exemplares a serem repetidos no presente. Como disse o historiador
Reinhart Koselleck: “Seu uso [tal uso do passado] remete a uma
possibilidade ininterrupta de compreensão prévia das possibilidade
181
humanas em um continuum histórico de validade geral” .
Mas a partir do Iluminismo e, principalmente, da Revolução
Francesa, tal continuum explode. A experiência de um tempo radicalmente
novo ligado à Revolução pressupõe a possibilidade da ordem política
poder ser profundamente reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na
ordem política não implica mais agir a partir do reconhecimento de
exemplos vindos do passado, mas implica o conhecimento de causas que
determinam o presente como depositário da latência do que ainda não se
realizou. Haveria um processo em marcha, cada vez mais acelerado, que
empurra o tempo para frente em direção a uma realização sem referência
com o que até agora foi feito. Haveria um projeto que parece indicar a
possibilidade de encarnar na ordem política o que a filosofia iluminista
tinha tematizado através da noção de “progresso”. O tempo entra assim em
regime de progressão, de inquietude e é dele que, a partir de agora, irá
tratar a historia. Por isto, a história não será mais o espaço de uma
reprodução do passado no presente, mas de uma construção que nos remete
ao que poderíamos chamar de corpo social por vir, ou seja, corpo social
que promete uma unidade semanticamente distinta daquela que se impõe na
atualidade.
Notemos simplesmente que será a partir deste momento que
poderemos falar de “a história” como autônoma e autoativa, e não apenas
“história de ...”. Esta autonomia expõe que a história não será mais apenas

104
a narrativa de ações de sujeitos (como a história de César) ou de objetos
182
determinados (como a história do Brasil). Ela será um “metaconceito”
que descreve o processo de temporalização da experiência, com causas e
consequências próprias ao desdobramento temporal, com uma velocidade
própria. A história como discurso com aspirações científicas pode se
183
constituir, assim pode aparecer um “tempo especificamente histórico” .
É neste contexto que Marx se move. Ele procura compreender a
história a partir de um vetor que não é mais a reprodução contínua das
formas passadas, mas a construção incessante de novas formas. Isto exige
que a história mundial seja completamente redescrita a partir de um vetor
duplo. Estes serão os dois vetores fundamentais do materialismo histórico
de Marx, a saber, os conceitos de “modo de produção” e de “luta de
classes”. Por um lado, a história em sua versão materialista se organiza a
partir de uma sequência de modos de produção. “A história é história das
184
forças de produção em desenvolvimento” . Por outro, estes modos de
produção são animados por contradições que produzem uma sequência
inumerável de lutas e conflitos. Como em Hobbes, a vida social é um
guerra. Esta guerra é ininterrupta, às vezes aberta, às vezes iminente. No
entanto, trata-se de uma guerra que se organiza a partir de um modo geral de
conflito descrito como “luta de classe”. Daí esta colocação famosa de Marx
e Engels:

A história de toda sociedade existente até hoje tem sido a história das
lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e
servo, mestre de corporação e companheiro, em uma palavra,
opressor e oprimido, em constante oposição, tem vivido uma guerra
ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre pela
reconstituição revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição
185
das classes em conflito .

Notemos, inicialmente, duas características maiores. Primeiro, trata-


se sempre de uma oposição entre dois termos. Ou seja, a multiplicidade das
formas sociais de conflito tendem, ao menos para Marx, a se reconstituírem
a partir de uma oposição organizada pelo tema da opressão social e da
dominação. Oposição que, por sua vez, expressa uma contradição no
interior da reprodução da vida social. Ou seja, a diversidade dos conflitos
deve se organizar em oposição para que eles possam adquirir a dinâmica de
uma contradição. A importância da contradição se explica aqui pelo fato
dela não permitir uma resolução, a não ser como modificação global da

105
situação à qual ela se refere. Daí porque, e esta é a segunda característica,
tal luta de classes só poder se resolver como a reconstituição de toda a
sociedade ou pela destruição de ambas as classes em conflito. Isto implica
uma perspectiva de totalidade que deve ser atualizada Vejamos melhor
estes dois pontos sobre luta de classe e modos de produção.

Os modos de produção

Marx define a análise das condição materiais de produção como base real à
qual a ideologia se contrapõe. Tais condições se organizam em modos de
produção que funcionam como verdadeiros cortes epistemológicos a
desconstituir formas de vida antigas e reinstaurar novas. Os modos de
produção articulam, em uma certa continuidade, bases econômicas, formas
de consciência social e superestruturas jurídico-políticas. Ou seja, elas
determinam, em uma relação de mútua implicação, regimes de produção e
circulação de bens, regimes de governo e figuras da consciência. Este
último ponto nos lembra, entre outras coisas, como: “a produção produz não
186
apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” .
Ou seja, não estamos a tratar de sujeitos dotados de normatividades
imanentes, como necessidades naturais, modos de ser naturalmente
determinados, divisões e diferenças organicamente marcadas. Estamos a
tratar de sujeitos que se subjetivam, que constituem sua vida interior e seus
modos de ser, através das determinações dos regimes de reprodução
material.
Notem que a base econômica fornece um modo de determinação que
Engels descreveu uma vez como “determinação em última instância”. Ou
seja, não se trata de um mero determinismo econômico, já que, mesmo
tendo uma dominância fundada na base econômica, isto segundo os
pressupostos de Marx e Engels, os outros processos presentes em um modo
determinado de produção, normalmente designados como “superestrutura”,
podem reagir à base e influenciá-la. Mesmo não tendo uma horizontalidade,
afirmar que a economia determina apenas em última instância significa
reconhecer uma relação mais complexa de mútua causalidade.
Estes regimes de reprodução, por sua vez, são organizados a partir de
uma contradição fundamental que define a forma geral do movimento da
história. Esta contradição se passa entre o que Marx nomeia “forças
produtivas” e “relações sociais de produção”. Por forças produtivas
entende-se todas as forças utilizadas para o metabolismo com a natureza,
seja sob a forma da dominação ou do controle da natureza. Temos aqui
basicamente uma combinação entre trabalho humano e meios de trabalho

106
(instrumentos, tecnologia, terra etc.). Já relações sociais de produção
(como a escravismo, o trabalho assalariado, a dominação feudal) são
formas de organização do processo produtivos, de suas relações de
propriedade e de suas relações de apropriação. É a isto que Marx e Engels
aludem ao afirmarem: “Todas as colisões da história nascem, portanto,
segundo nossa concepção, da contradição entre as forças produtivas e as
187
formas de intercâmbio” .
Marx insiste que essas relações entre forças e formas tem
estabilizações meramente locais. O desenvolvimento das forças produtivas,
com seu desenvolvimento técnico e o desenvolvimento da força de trabalho
vai até um ponto em que as relações sociais de produção entram em crise.
Elas entram em crise por um processo duplo. Primeiro, as forças produtivas
se desenvolvem criando um excesso de produção, um excesso de atividade
que não pode mais ser regulado no interior das relações de produção. Ou
seja, uma relação de produção bem sucedida é aquela que produz um
excesso tal que coloca todo o sistema em crise.
Por exemplo, segundo Marx e Engels a burguesia produz crises
descritas como “epidemias de superprodução” que destroem grande parte
das forças produtivas já criadas: “A sociedade possui civilização em
excesso, meios de subsistência em excesso, indústria em excesso, comércio
em excesso”. Um excesso que: “lança na desordem a sociedade inteira e
ameaça a existência da propriedade burguesa”. Pois tal excesso de
produção, de comércio, de civilização leva a uma desvalorização
tendencial da produção que só pode ser superada através ou da destruição
violenta de grande quantidade de forças produtivas ou pela conquista de
novos mercados, pela exploração mais intensa dos antigos. Ela leva uma
estrutura monopolista que só pode significar a abolição da propriedade
privada “para nove décimos da sociedade”. Note-se um ponto importante.
Por ser impulsionada pela produção do excesso, a burguesia é produtora
necessária de desordem, ela nunca consegue ser adequada a seu próprio
conceito.
Mas aqui entra um segundo ponto. Pois através do excesso, as
relações de propriedade vigentes e os modos de organização do processo
produtivo não conseguem mais dar conta de suas próprias determinações
normativas, produzindo um sistema contínuo de contradições. Ou seja, as
sociedades entram em crise por não serem capazes de realizar aquilo que
elas mesmas prometem. Por exemplo:

A cada dia, fica mais claro que as relações de produção no interior


das quais a burguesia se mede não tem um caráter único, um caráter

107
simples, mas um caráter de duplicidade; pois nas mesmas relações
nas quais a riqueza se produz, a miséria também se produz também,
nas mesmas relações nas quais há desenvolvimento de forças
produtivas, há uma força produtora de repressão, que tais relações só
produzem a riqueza burguesa ao aniquilar continuamente a riqueza
dos membros integrantes desta classe, produzindo um proletariado
188
cada vez mais crescente .

Estas crises produzem um processo que, ao menos segundo Marx e


Engels, obedece um certo progresso. As crises caminham em direção à
consolidação de um sujeito político capaz de apreender a totalidade das
forças produtivas: “o que corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos
como indivíduos totais e à eliminação de tudo o que há neles de natural, de
189
espontaneamente gerado” , repetindo aqui o topos hegeliano da crítica à
imediaticidade das representações naturais da consciência. Esse
desenvolvimento, no entanto, não se acha subordinado a um plano de
conjunto. As diversas fases anteriores não são jamais superadas
completamente, mas podem se arrastar por séculos ao lado dos interesses
vitoriosos. No entanto, isto não modifica o fato delas obedecerem um vetor
único que se desdobra em várias velocidades distintas.
Assim, uma sociedade vinculada, por exemplo, ao modo de produção
asiático precisa necessariamente caminhar em direção ao capitalismo. Marx
chega mesmo a fazer a defesa do imperialismo inglês na colonização da
Índia, afirmando, e neste ponto o peso dos pressupostos da filosofia
hegeliana da história é evidente, que a Índia, exemplo maior da
permanência deste modo asiático de produção, estaria até então fora da
história:

Assim pois, a Índia não podia deixar de escapar ao seu destino de ser
conquistada e toda história passada, supondo que tenha existido tal
história, é a sucessão das conquistas sofridas por ela. A sociedade
hindu carece por completo de história, ou pelo menos de história
conhecida. O que chamam de história da Índia não é mais que a
história dos sucessivos invasores que fundaram seus impérios sobre a
base passiva desta sociedade imutável que não lhes oferecia nenhuma
resistência. Não se trata, portanto de se a Inglaterra tinha ou não
direito de conquistar a Índia, senão de se preferimos uma Índia
conquistada pelos turcos, pelos persas, ou pelos russos a uma Índia
190
conquistada pelos britânicos .

108
Por isto, a colonização britânica é vista como uma aceleração da história
em direção à constituição necessária de uma história universal que, pelas
mãos inconscientes da burguesia inglesa, fornecerá as condição para a
generalização universal do processo revolucionário:

Ao destruir sua base econômica, (a Inglaterra produziu) assim a


maior, e para dizer a verdade, a única revolução social que jamais foi
vista na Ásia.(...) É bem verdade que ao realizar uma revolução
social no Hindustão, a Inglaterra atuava sob o impulso de interesses
mais mesquinhos, dando provas de verdadeira estupidez na forma de
impor esses interesses. Porém não se trata disso. Do que se trata é
saber se a humanidade pode cumprir sua missão sem uma profunda
revolução no estado social da Ásia. Se não pode, então, e apesar de
todos os seus crimes, a Inglaterra foi o instrumento inconsciente da
191
história ao realizar a dita revolução .

É certo que, ao falar décadas mais tarde da comuna agrária russa e da


possibilidade dela já conter em si os germes da emancipação, Marx será
mais comedido e reconhecerá certa possibilidade de uma multiplicidade de
vias que elimina o peso de um certo etapismo que parece presente em
outros textos. No entanto, é claro que seu materialismo histórico terá
sempre dois pressupostos fundamentais: as múltiplas histórias convergem
para uma história universal produzida pela escalada global do capitalismo
(o Capital funciona assim como uma espécie de falso Espírito hegeliano do
mundo) e os antagonismos nos modos de produção tendem à despossessão
generalizada.

O problema da luta de classes

Analisemos agora outro pressuposto do materialismo histórico de Marx, a


saber, a história é uma história das lutas de classe. O conceito de classe
aparece assim como o agente social por excelência. A princípio, são as
classes que agem historicamente, e não os indivíduos. Mas há algo que
muda de maneira substancial quando a luta de classe não é mais entre
patrícios e plebeus, entre senhores e servos, mas entre a burguesia e esta
classe daqueles desprovidos de classe que é o proletariado. Notem, por
exemplo o que Marx e Engels dizem através de afirmações como:

A relação comunitária em que entram os indivíduos de uma classe,

109
relação condicionada por seus interesses comuns frente a um terceiro,
era sempre uma comunidade a qual pertenciam esses indivíduos
somente na condição de indivíduos médios, somente enquanto viviam
dentro das condições de existência de sua classe, uma relação que
não os unia como indivíduos mas como membros de uma classe. Na
comunidade dos proletários revolucionários, ao contrário, que tomam
sob seu controle seus condições de existência e a de todos os
membros da sociedade, ocorre justamente o oposto; tomam parte dela
192
os indivíduos como indivíduos .

Notem a distinção feita por Marx e Engels. Antes do advento do


proletariado como classe revolucionária, os indivíduos só formam classes
enquanto devem levar uma luta comum contra um terceiro, contra outra
classe. Ou seja, a classe aparece assim como uma associação condicionada
pela existência de um terceiro excluído. Por ser uma estrutura defensiva, ela
define os indivíduos a partir de um modo de pertencimento baseado na
partilha geral de atributos diferenciais que constituem a classe como um
conjunto. A classe funda assim uma identidade por partilha de atribuição e
toda identidade desta natureza é sempre uma operação defensiva. Daí a
ideia de que, no interior da classe, os indivíduos aparecem apenas como
indivíduos médios, ou seja, indivíduos submetidos a um padrão, a uma
mediana com a qual todos devem se conformar.
Já na associação de indivíduos livres produzida pelo proletariado os
indivíduos podem aparecer como indivíduos não mais submetidos à uma
definição de classe. Primeiro, eles não se submetem mais à divisão do
trabalho, por isto sua atividade não é compreendida como trabalho. Como
dirá Marx e Engels, o proletariado elimina o trabalho. Por outro lado, eles
não se confrontam mais com um terceiro excluído, por isto sua ascensão é a
dissolução de todas as classes, é o fim da compreensão da vida social
como constituída por classes e a realização possível do da totalidade
própria ao ser do gênero. Marx e Engels chegam a falar em: “apropriação
de uma totalidade de forças produtivas e no consequente desenvolvimento
193
de uma totalidade de capacidades” . Esta apropriação da totalidade só é
possível porque não há mais uma perspectiva de classe em operação. Neste
momento, uma outra história começa: uma história do homem.

110
Reler Marx hoje
Aula 10

Na aula de hoje, gostaria de discutir o conceito de revolução em Marx.


Nele, vincula-se duas operações fundamentais do pensamento de Marx: a
consolidação da temática da emancipação como eixo fundamental do
projeto crítico e a compreensão da descontinuidade latente do tempo
histórico. Tempo e sujeito são os dois polos da teoria marxista da
revolução. Pois longe de ser a descrição dos modos de realização de uma
utopia de forte teor normativo, a teoria da revolução em Marx é a descrição
dos processos históricos de ruptura de formas de vida associado à temática
do processo de emergência de sujeitos políticos.
Mais do que uma teoria do governo, a temática da revolução é
reflexão sobre os processos de insurreição e de constituição insurrecional
de sujeito dotados de capacidade de transformação prática da natureza dos
vínculos sociais. Neste sentido, tal conceito de revolução se vincula a três
fatores decisivos, a saber: uma concepção de tempo histórico, uma
concepção de sujeito político e uma concepção de processualidade
dialética. Tentemos analisar esses três fatores a fim de melhor compreender
a maneira com que a temática da revolução se introduzir de forma
fundamental na filosofia de Marx.

Uma concepção de tempo histórico

É de Reinhart Koselleck a ideia de que até o final do século XVI, a história


do ocidente é uma história: “das expectativas, ou melhor dizendo, de uma
contínua expectativa do final dos tempos; por outro lado, é também a
194
história dos repetidos adiamentos desse mesmo fim do mundo” .
Koselleck alude à perspectiva milenarista da abreviação do tempo como
sinal da vontade divina de permitir o Juízo final, tão presente nos
reformadores protestantes. Ela produz uma limitação do horizonte da
história, pois projeta para o futuro próximo a suspensão final do tempo.
Neste sentido, uma das maiores produções do século XVIII foi uma
certa aceleração da história, não mais em direção a sua suspensão, mas em
direção a sua realização como abertura de possíveis até então impossíveis.
A experiência de um tempo radicalmente novo ligado à Revolução
pressupõe a possibilidade da ordem político poder ser profundamente

111
reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na ordem política, como
dissera na última aula, não implica mais agir a partir do reconhecimento de
exemplos vindos do passado, mas implica o conhecimento de causas que
determinam o presente como depositário da latência do que ainda não se
realizou. Haveria um processo em marcha que empurra o tempo para frente
em direção a uma realização sem referência com o que até agora foi feito.
Haveria um projeto que parece indicar a possibilidade de encarnar na
ordem política o que a filosofia iluminista tinha tematizado através da
noção de “progresso”. O tempo entra assim em regime de progressão e é
dela que, a partir de agora, irá tratar a historia. Por isto, a história não será
mais o espaço de uma reprodução do passado no presente, mas de uma
construção que pode inicialmente parecer começar no passado em direção
ao presente.
Mas esta “história” é profundamente assombrada pela perspectiva de
revoluções, o que pode provocar riscos como: “o tempo que assim se
acelera a si mesmo rouba ao presente a possibilidade de se experimentar
como presente, perdendo-se em um futuro no qual o presente, tornado
impossível de se vivenciar, tem que ser recuperado por meio da filosofia da
195
história” . Esta filosofia da história pode transformar a experiência
revolucionária em horizonte teleológico do político. Nesta perspectiva, por
trás da aparência de abertura ao acontecimento sustentada pela esperança
na revolução e sua força de projeção temporalizada, pulsa uma fuga
contínua em direção à suspensão do tempo, uma sustentação contínua de
expectativas feitas apenas para fornecerem um horizonte de transcendência
negativa que não pode se encarnar. Pois, aqui, revolução é algo que se
espera. Mas a espera da revolução tem a característica de ser expressão
maior de um tempo histórico pressionado pela expectativa e animado pelas
interversões incessantes entre esperança e medo. Neste sentido, não foram
poucos que lembraram como, no interior da experiência moderna, a
revolução adquire: “um sentido transcendental, tornando-se um princípio
regulador tanto para o conhecimento quanto para a ação de todos os homens
196
envolvidos na revolução” . Isto quer dizer: ela se transforma em condição
de possibilidade para a produção de sentido do tempo histórico em geral,
sendo apenas isto, a saber, uma condição categorial de possibilidade para a
produção de sentido e, consequentemente da experiência histórica, por
descrever a forma geral do tempo em movimento de aceleração e repetição.
Mas por ser forma geral, ela não poderá em momento algum ser encarnação
de um tempo concreto. É esta impossibilidade de encarnação que lhe dá o
caráter de uma transcendência negativa.

112
Um conceito transcendental é expressão da determinação categorial
de predicados em geral. Ele não define previamente quais objetos lhe
convém, qual a extensão de seu uso, mas definirá quais as condições para
que algo seja um objeto, que predicados algo pode portar. Nesta definição,
decide-se previamente a extensão da forma do que há a ser experimentado,
pois a determinação categorial transcendental ignorará acontecimentos que
exigiriam mudanças na estrutura geral da predicação, que imporiam uma
gênese de novas categorias. Tal determinação formal acaba por se
transformar, assim, na expressão da impossibilidade de todo e qualquer
processo no qual a experiência produza categorias estranhas àquelas que
pareciam previamente condicioná-la. Experiências que, do ponto de vista
das condições de possibilidade temporalmente situadas no presente,
produzem necessariamente acontecimentos impredicáveis. É isto que levou
várias correntes da filosofia contemporânea a criticar o próprio conceito de
história enquanto espaço de exposição de uma metafísica da verdade.
No entanto, nada afetado pela esperança com seu sistema de
projeções pode operar com o desamparo que acontecimentos impredicáveis
produzem. Pois a impredicação é o que mostra a inanidade de toda
expectativa, não no sentido de mostrar seu equívoco de previsão, mas seu
erro categorial. A temporalidade concreta dos acontecimentos é
impredicável pois sem referência com o horizonte de expectativas da
consciência histórica, por isto ela é expressão de um tempo desamparado,
marcado exatamente pela contingência. Talvez isto explique porque, por
exemplo, várias tentativas de encarnação da Revolução, com sua maiúscula
de rigor, no processo revolucionário concreto, ou seja, várias tentativas de
encarnação da força insurgente da esperança em políticas de governo serão
indissociáveis de uma certa imunização produzida pela necessidade de
apelar à circulação social do medo, compondo com ele uma dualidade
afetiva indissociável. Ela se transforma em prova do corolário: “não haverá
esperança sem medo”. Medo que expressa a impossibilidade da
encarnação, pois expressão do desvio e da traição sempre à espreita contra
o corpo social produzido pela esperança. Medo do retorno do tempo e dos
atores que já deveriam estar mortos. O corpo social por vir da esperança
não se sustenta, por isto, sem a necessidade de imunização constante, sem a
necessidade de ações violentas periódicas de “regeneração do corpo
social” (BODEI, Idem, p. 426), em suma, sem a transmutação contínua da
esperança em medo. A história das grandes revoluções, seja a francesa com
197
seu “grande medo” , seja a russa com seus “expurgos”, apenas para ficar
em dois dos melhores exemplos, nos mostra isto bem.
Contra esta passagem incessante nos opostos complementares da

113
esperança e do medo, muitos acreditaram dever retirar a política de toda
dimensão do porvir, produzindo um esfriamento das paixões através da
recusa de qualquer ruptura desestabilizadora profunda de nossos conceitos
já em circulação de democracia. Como se o tempo histórico das revoluções
fosse uma simples aporia tão bem descrita por Hegel quando, ao falar da
passagem da insurreição e da mobilização ao governo no jacobinismo,
198
lembrava: “o [simples] fato de ser governo o torna facção e culpado” ;
resultado necessário de um liberdade que não é capaz de superar seu
primeiro impulso negativo.
Mas talvez seja possível liberar a política transformadora de toda
atividade de projeção temporal, dando-lhe um temporalidade concreta.
Neste sentido, gostaria de fornecer uma interpretação ao problema da
revolução em Marx que possa responder a acusação de que sua filosofia da
história seria animada por uma “metanarrativa” que parece fundir a
multiplicidade das identidades coletivas em uma unidade compacta.

Uma concepção de processualidade dialética

Um texto fundamental para compreender a teoria da revolução de


Marx é o primeiro capítulo do 18 de brumário de Luís Bonaparte. Não por
acaso, trata-se da reflexão sobre uma revolução abortada, a saber, os
levantes de fevereiro e junho de 1848.
Lembremos de alguns fatos ligados ao que poderíamos chamar de a
primeira revolta proletária da história, ou seja, a primeira revolta em que
emerge um sujeito político que poderemos chamar de “proletariado”. Uma
revolução entre duas revoluções, a saber, entre a reedição dos momentos
populares da Revolução Francesa, de 1789, e a antecipação da primeira
experiência de instauração comunista contemporânea, a Comuna de Paris,
de 1871. Como a queda de Napoleão, em 1814, a França sucumbiu à
restauração da monarquia, com o favorecimento da nobreza e a tentativa de
reinstrodução do absolutismo, isto até a revolução de 1830. Nesta data,
vários levantes em Paris levaram ao trono Luís Filipe de Orléans, chamado
“o rei burguês”. Mas, como lembra Marx, quem reinou sob Luís Filipe não
foi a burguesia francesa mas uma facção dela:

Os banqueiros, os reis da bolsa, os reis das ferrovias, os donos de


minas de carvão e de ferro e os donos de florestas em conluio com
uma parte da aristocracia proprietária de terras, a assim chamada
aristocracia financeira. Ela ocupou o trono, ditou as leis nas câmaras,
distribuiu os cargos públicos desde o ministério até a agência do

114
199
tabaco .

Esta monarquia financeira resistiu até 1848 quando, sob o impacto de


uma insatisfação de massa devido a uma série de crises econômicas, caiu
em 24 de fevereiro depois de combates sangrentos e barricadas em Paris.
Esta primeira revolução contava com a burguesia e com o proletariado
liderados, entre outros, pelos socialistas Louis Blanc, Auguste Blanqui. Os
primeiros meses da revolução viram a colisão entre o proletariado, a
pequena-burguesia republicana e a burguesia moderada. Em 23 e 24 de
abril, realizam-se eleições para a Assembleia Constituinte. O Partido da
ordem, representando a burguesia moderada e os monarquistas, ganha a
maioria absoluta. Começa então a tentativa de impor uma série de leis que
iam contra os interesses dos socialistas. Com isto, uma novas revoltas
operárias explodem em maio e junho sob o lema: “Queremos uma
República democrática e social”. A reação governista será brutal:
decretação do estado de sítio, 1500 insurretos mortos, 12000 presos e 4000
deportados para a Argélia.
Promulgada a Constituição em novembro, eleições presidenciais
foram convocadas para dezembro de 1848. Dois candidatos se apresentam:
Cavaignac, responsável direto pela repressão à insurreição operária de
junho, e Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão. Será Luís Bonaparte que
vencerá, recebendo os votos tanto dos operários, que detestavam
Cavaignac, quanto dos conservadores. Em 1851, ele dará um auto-golpe
proclamando o Segundo Império e coroando-se imperador sob o nome de
Napoleão III. Através de dois plebiscitos, o golpe de estado e seu
coroamento foram ratificados. Ele ficará no poder até 1870, quando a
França perder a Guerra Franco-prussiana.
A derrota da 1848, em especial das insurreições de junho, será um
fato decisivo para Marx. Lembremos que o Manifesto Comunista é
publicado pela primeira vez exatamente em fevereiro de 1848. Ou seja,
quando Marx e Engels falam que um “fantasma ronda a Europa”, eles
realmente acreditavam em uma revolução mundial iminente. Os
descaminhos de 1848 marcarão Marx de forma decisiva. Eles mostrarão a
Marx como é possível transformar uma revolução iminente em paródia,
como o tempo de transformação pode ser aprisionado em um processo que
será, na verdade, uma forma astuta de restauração. Nesta reflexão, Marx irá
perceber que a radicalização dos conflitos sociais não levam,
necessariamente, à revolução. Ela pode ficar aprisionada por décadas em
um falso movimento

115
Comecemos então pela frase inicial do livro:

Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os


grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são
encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele esqueceu de acrescentar:
a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière como
Danton, Luis Blanc como Robespierre, a Montanha de 1848-51 como
200
a Montanha de 1793-95, o sobrinho como o tio .

A colocação de Marx era precisa por problematizar um ponto fundamental


da dialética como processualidade referente à necessidade da repetição. A
frase Hegel, dita a respeito da morte de César, era: “de fato, uma revolução
política é geralmente sancionada pelos homens quando ela se repete.
Assim, Napoleão sucumbiu duas vezes e duas vezes foram afastados os
Bourbons. Através da repetição, o que apareceu inicialmente como possível
201
e contingente adquire realidade e permanência” . Nota-se claramente aqui
como a revolução é definida como uma forma específica de repetição a
partir de um acontecimento que aparece inicialmente como contingente,
como meramente possível no sentido de poder ter sido de outra forma,
poder ter ocorrido ou não. Uma revolução é repetição de um acontecimento
contingente, mas uma repetição feita de forma tal que transforma a
contingência, transforma o que até então não aparecia para uma situação
como fruto de uma causalidade necessária, em necessidade. Neste sentido,
podemos falar em, “revolução” porque tal transformação só é possível à
condição do acontecimento produzir uma contradição formal com a situação
presente. O acontecimento é impensável no interior da situação presente,
ele não obedece ao regime de necessidade do que está imediatamente posto.
Repeti-lo é inscrevê-lo em uma nova estrutura simbólica.
Tentemos compreender melhor este ponto. Lembremos, inicialmente,
como Hegel define a contingência: “essa unidade da possibilidade e da
efetividade (Wirklichkeit) é a contingência (Zufälligkeit). O contingente é
um efetivo que, ao mesmo tempo, é determinado apenas como
possibilidade, cujo outro ou oposto também é” (HEGEL, 1986, p. 230). A
contingência é unidade da possibilidade e da efetividade porque, embora
existente, ela conserva a marca do que poderia não ser, do que é mera
possibilidade. O outro de si, sua inexistência, seu oposto, era igualmente
possível. Daí porque ela é, aos olhos de Hegel, o espaço de uma
contradição maior: “o contingente não tem fundamento, porque é
contingente, e da mesma forma tem um fundamento, porque como
contingente, é”. Sua existência não tem fundamento por estar corroída pela

116
situação de mero possível, ela é vizinha do não-ser, como dizia Aristóteles,
mas ao mesmo tempo tem alguma forma de fundamento por participar da
efetividade posta. Assumir a existência efetiva da contingência é, para
Hegel, confrontar-se como o que é uma: “interversão posta imediata”
(gesetzte unvermittelte Umschlagen), ou seja, com uma passagem contínua
entre opostos que nunca se estabiliza e que por isto abre a experiência a
uma “absoluta inquietude do devir” (absolute Unruhe des Werdens).
Hegel poderia, por exemplo, recusar dar a contingência alguma forma
de dignidade ontológica e professar um necessitarismo absoluto nos moldes
daquele que encontramos em Spinoza. Mas se ele fizesse isto, não haveria
mais dialética, pois não haveria mais produtividade da contradição. Hegel
deve admitir que todo acontecimento se apresenta inicialmente como
contingente e tal apresentação não é simplesmente um “defeito de nosso
entendimento”. Ela é a expressão do fato da essência estar em uma relação
de exterioridade consigo mesma, dela se manifestar como uma espécie de
exceção de si. É nesta exceção, nesta excepcionalidade que uma outra
ordem começará por entrar em contradição com a situação normal para
depois afirmar-se.
Mas notemos um ponto. A contingência é absoluta inquietude do devir
apenas para uma filosofia, como a hegeliana, que ao recusar distinções
ontológicas estritas entre contingência e necessidade, procura compreender
como o necessário se engendra a partir da efetividade, como a efetividade
produz a necessidade, produz um “não poder ser de outra forma”. O que não
significa que a realidade atual deva ser filosoficamente completamente
justificada, como já se criticou Hegel em mais de uma vez. Antes, significa
compreender como fenômenos contingentes, por não encontrarem lugar na
determinação necessária da realidade atual, transfiguram-se em necessidade
ao inaugurar processualidades singulares.
Assim, por exemplo, o assassinato de César – tópico fundamental no
trecho da Filosofia da História citado acima - aparece inicialmente como
a anulação de uma individualidade que parecia colocar em risco a forma da
República, como a anulação de algo que poderia ter sido de outra forma.
Diante da situação representada pela República Romana e sua
institucionalidade, um acontecimento como César era puramente
contingente, colocando-se em contradição com a situação normal.
Eliminando-o, a necessidade da situação normal se restabeleceria. No
entanto, o assassinato de César produz sua repetição sob a forma simbólica
de Césares que retornam instaurando um novo regime de necessidade e de
temporalidade no qual a perda produzida no passado é apenas uma forma
de abrir uma temporalidade espectral que dará ao presente a espessura de

117
novas camadas. Esta repetição é a prova de que a forma da República havia
sido esvaziada de sua substância. Ela não passava de um mero formalismo.
Diria que esse processo de integração processual das contingências é
a base estrutural da compreensão de revolução presente em Marx. No
entanto, ele complexificado por Marx ao estabelecer a existência de um
modo de repetição histórica que é apenas a expulsão do que aparecia como
a potência de transformação de um acontecimento. Uma revolução sempre
desencadeia um sistema de repetições, mas há de se saber como e o que se
repete. É importante para Marx operar tal distinção no interior do conceito
de repetição histórica para dar conta de um processo bem descrito no
capítulo III do 18 de brumário:

Na primeira Revolução Francesa, seguiu-se ao governo dos


constitucionalistas o governo dos girondinos e ao governo dos
girondinos o governo dos jacobinos. Cada um desses partidos se
apoiou no mais avançado. Assim que um deles conduziu a Revolução
até o ponto de não mais poder segui-la e manos ainda puxar-lhe a
frente, o aliado mais ousado que estava logo atrás dele o pôs de lado
e o mandou para a guilhotina. Assim, a Revolução se moveu numa
linha ascendente. Aconteceu o contrário na Revolução de 1848. O
partido proletário figurou como apêndice do partido democrático
pequeno-burguês sendo traído por este e abandonado à própria sorte
em 16 de abril, 15 de maio e nas jornadas de junho. O partido
democrático, por sua vez, apoiou-se nos ombros do partido
republicano-burguês. Os republicanos-burgueses mal sentiram o chão
firma debaixo dos pés e já se desvencilharam do incômodo camarada,
apoiando-se, eles próprios, nos ombros do Partido da Ordem. O
Partido da Ordem encolheu os ombros, deixou os republicanos-
burgueses cariem e se jogou nos ombros das Forças Armadas. Ele
ainda acreditava estar sobre os ombros destas quando, numa bela
manhã, deu-se conta de que os ombros haviam se transformado em
baionetas. Cada um desses partidos bateu por trás naquele que
avançava e se curvou para trás para apoiar-se naquele que retrocedia.
Não admira que, nessa pose ridícula, cada um desses partidos tenha
perdido o equilíbrio e, depois de ter rasgado as suas inevitáveis
caretas, estatelado-se no chão fazendo cabriolas esquisitas. Desse
202
modo, a revolução se moveu numa linha descendente .

A descrição de Marx é clara na sua caracterização de revoluções que


seguem linhas ascendentes e outras que seguem linhas descendentes. No

118
primeiro caso, os sujeitos políticos se sucedem através de um movimento
no qual o informulado pelo sujeito precedente, o que ele não é capaz de
enunciar sem se destruir, impulsiona uma transformação ainda maior em
relação ao que era a situação normal de partida. No segundo caso, os
sujeitos políticos se sucedem através de um movimento no qual o
informulado posto inicialmente pelo partido proletário é cada vez mais
afastado até que, em um movimento descendente contínuo, o processo
termina nas baionetas das Forças Armadas.
Sugiro que para entender esta clivagem entre linha ascendente e linha
descendente, devemos adentrar na forma com que Marx estabelece, ao
menos, dois regimes distintos de repetição histórica. Lembremos
inicialmente como Marx insiste que: “a tradição de todas as gerações
passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” pois, no
momento em que parecem empenhados em criar algo nunca visto, os homens
reavivam espíritos do passado, tomam emprestado os seus nomes a fim de
representar as novas cenas da história mundial, abrindo uma dinâmica de
identificações históricas. Por exemplo, foi com figurinos romano e
fraseologia romana que a Revolução Francesa se realizou como ereção da
moderna sociedade burguesa. Mas ela reviveu tal tempo para ocultar aos
203
agentes históricos: “a limitação burguesa do conteúdo de suas lutas” .
Neste sentido, seguiria Guillaume Silbertin-Blanc a fim de lembrar que:
“Jamais la « révolution bourgeoise » nʼaurait pu avoir lieu, si elle avait dû
être faite par des bourgeois. Dʼabord, elle ne put être révolutionnaire quʼen
étant dʼabord populaire et « de masse », donc à la condition de transfigurer
son contenu de classe particulier dans les formes idéologiques dʼune
émancipation universelle capables dʼexalter lʼenthousiasme bien au-delà
des seules fractions de la bourgeoisie, et de mobiliser le peuple en masse
dans les affrontements contre les forces contre- révolutionnaires intérieures
et extérieures. Mais elle ne fut jamais faite par la bourgeoisie en un autre
sens encore: la bourgeoisie de 1789 comme classe révolutionnaire, ne fut
jamais révolutionnaire en tant que bourgeoise, mais seulement en tant
quʼelle sʼhéroïsa, se transfigura elle-même et, littéralement, sʼhallucina
dans les rôles grandioses dʼune tradition romaine quʼavaient déjà idéalisée
théoriquement, si lʼon peut dire, les philosophes des Lumières, dans des
figures héroïques où ses caractères bourgeois lui devenaient
204
méconnaissables” .
Neste sentido, a repetição aparece como uma forma de “ilusão
necessária”, uma astúcia que só poderia produzir, ao final, formas de
decepção histórica. A ressurreição dos mortos serve aqui para glorificar as

119
novas lutas, exaltar na fantasia as missões recebidas e para redescobrir o
espírito da revolução. Mas aqui se abre uma ambiguidade importante.
Quando os fantasmas do passado são chamados, eles não voltam mais para
o passado. Ninguém ressuscita os mortos sem se deixar invadir por eles,
sem fazer com que as promessas não realizadas no passado, voltem a
assombrar os vivos, criando uma profunda instabilidade que impulsionará a
Revolução em uma linha ascendente. Não é apenas o heroísmo da Roma
antiga que é convocado a fim de permitir à burguesia alucinar seu próprio
papel histórico. São também as promessas quebradas à plebe, os tribunos
assassinados, as revoltas sufocadas, em suma, o que ficou na histórica como
derrota a espera de outra oportunidade e é isto que impulsiona a Revolução
em linha ascendente. Pois ressuscitar os mortos é aproximar-se de outro
tempo, não é apenas trazer os mortos para o presente, mas também
presentificar o tempo do passado em sua integralidade. O tempo da
Revolução é uma temporalidade outra; é, para usar um conceito hegeliano,
um “presente absoluto”. Há um outro tempo a assombrar o presente e ele só
deixará de assombrá-lo quando não houver mais presente tal como até
agora houve. Pois as rupturas nos modos de produção que as Revolução
proletárias procuram realizar são modificações que, como bem lembra
Balibar, modificam: “a base econômica, as superestruturas jurídicas e
205
políticas, as formas da consciência social” . Neste contexto, “formas da
consciência social” significa o modo de determinação dos sujeitos e de sua
experiência espaço-temporal. As configurações de sujeitos vão juntamente
com os modos de produção.
No entanto, Marx fala que: “não é do passado, mas unicamente do
206
futuro, que a revolução social do século XIX pode colher sua poesia” . A
princípio, parece que Marx está a dizer que não se trata mais de recorrer a
memórias históricas para travestir burgueses de césares, insensibilizando a
sociedade em relação ao real conteúdo dos processos de transformação
social. Como Marx insistirá, ao invés da fraseologia histórica superar o
verdadeiro conteúdo do processo revolucionário, era o conteúdo que
deveria enfim superar a fraseologia. No entanto, talvez Marx fale que é
apenas do futuro que a revolução poderá colher sua poesia porque não há
figuras no passado que possam dar forma à subjetividade política
revolucionária pois o que uma revolução faz ressoar é exatamente aquilo
que, no interior do passado, ficou sem forma e figura, aquilo que ficou sem
lugar. A poesia da revolução é a poesia do que não se inscreveu no
tempo da história. Neste sentido, tem razão Walter Benjamin quando afirma:
“O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários

120
momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por
isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente,
207
graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios” .
Ou seja, a revolução é este processo que reconstrói o tempo a partir da
capacidade de “extrair uma época determinada do curso homogêneo da
208
história” . Tal extração pode, inclusive, paralisar o tempo em uma
configuração saturada de tensões que se cristaliza como uma mônada.
Assim, o tempo pode paralisar-se em uma saturação contínua, fazendo com
que os múltiplos instantes na história sejam o mesmo instante em repetição,
até que tal pressões de tensões produza a emergência de um novo sujeito.
Por exemplo, sabemos como Marx dirá que as revoluções do século
XVIII são intensas e tem vida curta, enquanto as revoluções do século XIX
(1830, 1848) estão em constante auto-crítica, parecem interromper sua
marcha para começar tudo de novo, para zombar da debilidade de suas
primeiras tentativas. Elas “recuam repetidamente ante a enormidade ainda
difusa de seus próprios objetivos até que se produza a situação que
209
inviabiliza qualquer retorno” . O que significa tais recuos e interrupções?
Podemos dizer que eles são os processos que paulatinamente produzem o
sujeito revolucionário através da consciência de sua ausência completa de
lugar. Marx, por exemplo, lembra como é recorrente este processo no qual
o proletariado abre mão de revolucionar o velho mundo para se lançar a:
“experimentos doutrinários, bancas de câmbio e associações de
210
trabalhadores” . Como se o proletariado acreditasse que os problemas
sociais que enfrenta poderão ser resolvidos através da conservação
reajustada dos modos atuais de produção, dos modos atuais de narrativa e
de dramatização política. Ao fazer isto, eles só poderão produzir uma
repetição histórica como paródia da revolução. Repetição como
aprisionamento em um tempo morto no qual o que retorna, retorna sob a
forma da impotência social.
Assim, por exemplo, incapaz de assumir sua condição de completa
despossessão o proletariado francês em 1848 deixou-se apreender pelo
imaginário burguês da Revolução Francesa. Esperando pela repetição de
Napoleão, ele terá que se contentar com um Napoleão caricaturado, até que
assuma sua condição de expressão de um sujeito político sem figura e que,
por isto, não pode mais se representar sob a forma dos antigos atores.
Enquanto isto não acontecer, sobe à cena do político estes que não
acreditam que poesia alguma virá do futuro porque são movidos pela
nostalgia de uma antiga ordem ou pela acomodação complacente à
desordem do presente. Movidos por uma negatividade improdutiva, sua

121
espera por transformações será, no fundo, espera por uma restauração.
Vimos na aula passada como tal anti-sujeito político é o que Marx chama de
“lumpemproletariado”. Volto a insistir, o lumpemproletariado é composto
por todos os desenraizados que não são capazes de se engajar em um
processo de contradição com a situação normal. Sua negatividade não
chega à contradição. Neste sentido, o conceito de lumpemproletariado
traduz, acima de tudo, uma posição política diante de um processo
revolucionário.
Dentro deste processo, há de se sublinhar como ele se estabiliza
através do deslocamento do poder para uma caricatura, a saber, Napoleão
III. Vendo-se na incapacidade de unificar o poder em suas mãos, a
burguesia francesa permite a produção de uma espécie de dominação estatal
que paira acima das classes. A figura da estabilização através de um
personagem que representa apenas o próprio vazio do poder, que permite a
coesão do estado por não exigir mais convicção alguma em relação ao
estado.
Neste sentido, podemos dizer que uma revolução é, acima de tudo, o
processo de emergência de novos sujeitos políticos. Esta emergência é a
condição para que o acontecimento contingente possa se transformar em
necessidade. Sem tal emergência acontecimentos se seguirão um após o
outro sem que nenhuma sequência de transformações se inicie. No entanto,
tais sujeitos são produzidos por acontecimentos. Daí porque todo
acontecimento ocorre, ao menos duas vezes. A repetição do acontecimento
é levada a cabo por outros sujeitos.

122
Reler Marx hoje
Aula 11

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade à discussão sobre O 18 de


brumário de Luís Bonaparte. Eu havia lembrado a vocês que a importância
deste texto, assim como a importância da coletânea de textos intitulada A
luta de classe na França encontra-se no fato de estarmos diante de um
momento importante do que poderíamos chamar de “teoria marxista da
revolução”.
Na verdade, no período de 1846 a 1852, Marx abandona o horizonte
de seus primeiros escritos (Crítica da filosofia do direito de Hegel, A
sagrada família, A ideologia alemã, Miséria da filosofia), todos eles
dedicados, principalmente, ao debate polêmico com o pós-hegelianismo e
correntes do socialismo de então, como Proudhom. Neste período, é claro
seu engajamento direto na reflexão e no ativismo revolucionário. Em 1846,
Marx e Engels começam de maneira sistemática a atividade política no
interior do movimento operário. Tudo se passa como se, depois de refletir
teoricamente sobre a concepção materialista da história, fosse questão de se
implicar praticamente no curso do mundo através, principalmente, do
problema da organização da revolução proletária. Daí que a finalidade da
atividade política de Marx será:

formar uma vanguarda comunista, livre do socialismo utópico,


‘verdadeiro’, conspirador, artesanal ou ‘sentimental’, constituir em
escala internacional e, antes de tudo, na Alemanha, um partido
comunista revolucionário e ‘científico’ que deveria ser teoricamente
211
coerente, sem ser uma seita apartada das massas .
Ou seja, abandonar a lógica a ação política conspiratória ou
compensatória a fim de definir as condições para um partido de massas
orientado à revolução mundial. Marx e Engels se implicarão então em
várias associações de trabalhadores (Comitê de correspondência
comunista, Liga dos justos, Liga dos comunistas, entre outras) a fim de
constituir as condições de um partido comunista engajado, como vemos no
primeiro parágrafo da Liga dos comunistas: “na derrubada da burguesia, no
domínio do proletariado, na supressão da antiga sociedade burguesa
fundada na oposição entre classes e na criação de uma nova sociedade sem
classes e sem propriedade privada”. Esta atividade os levarão à publicar
um manifesto para a Liga dos comunistas, a saber, o Manifesto Comunista,
de 1848. Eles ainda se engajarão na atividade jornalística de difusão do

123
comunismo através da criação da Nova Gazeta Renana, que durará poucos
anos.
Assim, neste momento, Marx e Engels percebem a iminência do
processo revolucionário. Eles acreditam em uma crise iminente do
capitalismo que levaria necessariamente à revolução. Mas há aqui um
elemento complicador. Pois o capitalismo é um sistema que faz da crise o
seu fundamento. Sua dinâmica de auto-valorização do valor é uma contínua
lógica de desmedida (masslos) e de sobreprodução. Marx acredita que tal
desmedida do valor leva, necessariamente, a um processo, ao mesmo
tempo, de aprimoramento da produção, de reconfiguração dos processos
produtivos a partir de exigências de capitalização e de pauperização
crescente das massas trabalhadoras. Processo este que, ao menos para Marx
e para Engels, só pode caminhar a uma crise final com a abertura necessária
à revolução. Assim, podemos ler em um trecho célebre do Manifesto
Comunista:

A moderna sociedade burguesa, com suas relações de produção, troca


e propriedade, sociedade que deu surgimento a gigantescos meios de
produção e troca, assemelha-se ao feiticeiro que perdeu o controle
dos poderes infernais que pôs em movimento com suas palavras
mágicas. Há mais de uma década a história da indústria e do
comércio é simplesmente a história da revolta das forças produtivas
modernas contra as condições modernas de produção, contra as
relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e
seu domínio. Basta lembrar as crises comerciais que, repetindo-se
periodicamente, ameaçam cada vez mais a sociedade burguesa.
Nestas crises, destrói-se grande parte dos produtos existentes e das
forças produtivas desenvolvidas. Irrompe uma epidemia que, em
épocas precedentes, pareceria um absurdo – a epidemia da
superprodução. Repentinamente, a sociedade vê-se momentaneamente
de volta a um estado de barbarismo; é como se a fome ou uma guerra
universal de devastação houvesse suprimido todos os meios de
subsistência; o comércio e a indústria parecem aniquilados. E por
que? Porque há demasiada civilização, demasiados meios de
subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças
produtivas disponíveis já não mais favorecem as condições da
propriedade burguesa; ao contrário, tornaram-se poderosas demais
para essas condições que as entravam; e quando suprimem esses
entraves, desorganizam toda a sociedade, ameaçando a existência da
propriedade burguesa. A sociedade burguesa é muito estreita para

124
conter suas próprias riquezas. E como a burguesia vence essas
crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de
forças produtivas, do outro, pela conquista de novos mercados e pela
intensa exploração dos antigos. Portanto, prepara crises mais extensas
212
e mais destrutivas, diminuindo os meios de evita-las .

Neste extenso trecho, encontramos sintetizado vários tópicos maiores


da teoria da relação entre crise e revolução em Marx. Primeiro, a ideia de
que o desenvolvimento da burguesia é impulsionado por um ritmo constante
de crises cada vez mais extensas. Como um feiticeiro que não controla os
poderes infernais que invocou, a burguesia amplia sua capacidade
produtiva de forma tal a colocar em contradição contínua as forças
produtivas e as relações sociais de produção, ou seja, as relações de
propriedade dominadas pela burguesia. Esga é outra forma de dizer que o
processo de valorização do Capital é marcado por um excesso, o
fundamento do sistema de produção de valor é expressão de uma dissolução
contínua de si. Há uma certa auto-dissolução do fundamento no próprio
movimento de valorização do Capital, ou seja, há uma auto-dissolução do
fundamento no próprio movimento de sua atualização. A atualização do
fundamento de produção próprio ao capitalismo produz demasiada
civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria. Mas
quanto mais produtividade, menos vale o trabalho, mais necessário é
aumentar o tempo de trabalho, maior a intensificação dos regimes de
trabalho e a pobreza relativa. Daí porque a sociedade burguesa é muito
estreita para conter suas próprias riquezas. Só lhe resta então dois caminhos
ou a produção contínua das catástrofes, com a consequente destruição
violenta de grande quantidade de forças produtivas através das guerras, das
crises ou o imperialismo com seu avanço da lógica monopolista. O
Capitalismo aparece assim, para Marx e Engels, como um sistema cujas
crises lhe são inerentes, levando-lhe a ser um gestor contínuo de catástrofes
e dominações imperiais. Isto até o momento em que o processo de
espoliação chegar a um nível tal que, mundialmente, aparecer a classe do
proletariado em um processo de interação contínua e de consolidação de
prática revolucionária. O advento da figura “vazia” do proletariado será o
213
correlato da “dissolução” de um mundo . Ou seja, o proletariado é o
termo médio que permite a unificação entre crise e revolução.
A teoria da revolução assim é um setor de uma teoria mais ampla das
crises imanentes ao capitalismo. Por outro lado, ela é a expressão de uma
concepção de filosofia da história para a qual a história é expressão de uma
sequencia de momentos típicos nos quais ela se universaliza,

125
transformando-se em história mundial. De fato, Marx e Engels partilha esta
característica da filosofia hegeliana da história, para quem a história de
universalização que caminha através da realização do conceito de
liberdade. É este caminho da liberdade que estabelece a diferença entre a
história positiva e a história tal como é objeto da filosofia da história. No
entanto, há uma diferença maior entre Marx e Hegel neste ponto, Para Marx,
o caminho da liberdade não segue em direção à realização do Estado
moderno como forma institucional a vida racional mas, ao contrário,
caminha em direção à desconstituição do Estado moderno em prol de uma
associação entre indivíduos histórico-universais livres que apareceram
inicialmente sob a forma de proletários.
Para tanto, faz-se necessário que o advento do proletariado
impulsione um processo de luta de classe que exigirá a organização da
massa de despossuídos em classe e sua união em partido comunista. Este
processo chegaria a uma “hora decisiva” na qual mesmo o setor dos
ideólogos burgueses compreenderiam teoricamente o momento histórico em
geral. Uma hora decisiva na qual a guerra civil implícita na sociedade se
transformaria em guerra aberta e declarada com a derrubada violenta da
burguesia. Assim: “a passagem ao comunismo seria pois iminente desde
que as formas e contradições da sociedade civil burguesa fossem
214
completamente desenvolvidas” .
Neste momento, Marx e Engels compreendem que a revolução só
pode ocorrer de forma violenta, como uma insurreição popular dirigida por
uma vanguarda comunista que teria “uma compreensão nítida, das
condições, rumos e objetivos gerais do movimento proletário”. Vanguarda
esta que não é uma espécie de direção intelectual, mas a fração do
movimento operário mais vinculada ao processo de luta internacional. Tal
revolução ocorreria, ao menos para Marx e Engels, inicialmente na
Alemanha devido à sua posição no processo de acumulação capitalista, mas
ela se desenvolveria ao ritmo de uma revolução mundial.
Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no
movimento operário da época, de uma transformação pela educação. Neste
sentido, as Teses sobre Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem
afinal irá educar os educadores?” e na sua confrontação entre a mudança
pela educação e a prática revolucionária. Por isto, esta fração comunista
não “educa” a massa proletária. A princípio, ela expressa “o movimento
histórico que se desenvolve diante dos nossos olhos”, ela nomeia o que
ocorre através de um nome próprio. Tal colocação é, mais uma vez, fruto da
crença de Marx e Engels em uma expressão imanente do real que não pode
se reduzir a um discurso ideológico. Expressão imanente baseada nas

126
noções de contradição, de antagonismo, assim como de um diagnóstico que
eleva a alienação a condição de sofrimento social fundamental nas
sociedades modernas ocidentais e a exteriorização do ser do gênero a
condição de seu horizonte de superação.
Lembremos ainda que o processo de abolição da sociedade de
classes levaria o proletariado a ações como: a centralização dos
instrumentos de produção nas mãos do Estado com a consequente abolição
da propriedade privada, a criação de imposto progressivo, o fim do direito
de herança, a centralização do crédito nos bancos do Estado, a educação
gratuita para todas as crianças e a abolição gradual da distinção entre
cidade e campo. Estes são os pontos fundamentais defendidos no Manifesto
Comunista.

O fracasso da revolução

No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que


ele não esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução
que parecia tão iminente, com a consequente adesão de uma parte do
socialismo francês ao bonapartismo, com a passividade operária diante do
golpe de Estado de Luís Bonaparte. Esta experiência histórica é tão
importante que, a partir de 1852, Marx só voltará a publicar um livro em
1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a partir do fracasso
da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à crítica da
economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução
material da vida, as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do
proletariado a condição de sujeito revolucionário.
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução?
Qual a operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de
transformação, a uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é
fundamental por nos mostrar como, no interior da teoria política de Marx,
haverá a distinção entre uma verdadeira revolução e uma transformação
meramente aparente. Isto a ponto de podermos dizer que o capitalismo será
então um espaço de produção contínua de transformações aparentes que
visam evitar uma transformação real.
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de
fevereiro de 1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo
demais”. Ou seja, não havia um processo proletário amadurecido. A
revolução foi impulsionada pela crise econômica com sua “devastação do
215
comércio e da indústria” que tornou a tirania da aristocracia financeira

127
ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da burguesia entre a
aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França entre 1830
e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e
encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre
fevereiro e julho de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em
Paris, o movimento ocorreu de forma retroativa. Tudo se passa como se as
condições necessárias para a revolução proletária fossem se desenvolver
depois da queda da monarquia. Este processo retroativo não é, no entanto, a
fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas do fracasso,
lembremos das palavras de Marx:

O proletariado se lançou em parte, a experimentos doutrinários,


bancos de câmbio e associações de trabalhadores, ou seja, a um
movimento em que abriu mão de revolucionar o velho mundo com o
seu grande cabedal de recursos próprios; ele tentou, antes, consumar
a sua redenção pelas costas da sociedade, de modo privado, no
âmbito de suas condições restritas de existência, e por isso,
216
necessariamente fracassou .
Ou seja, o fracasso vem do fato do proletariado não assumir sua
situação de sujeito revolucionário, não estar em condições de consumar sua
tarefa histórica, preferindo acreditar em promessas de recondução de um
lugar social no interior da ordem existente. Isto ocorre, diz Marx, porque a
história está presa a uma repetição que é necessário suspender, uma
repetição que é necessário romper e que aparece vinculada à incapacidade
do proletariado em afirmar o desamparo de sua despossessão, de sua
ausência de lugar. No entanto, esta repetição só pode ser suspensa através
de outra forma de repetição. Marx é consciente de que toda revolução é
uma repetição. Este postulado é a consequência do fato do tempo histórico
no interior da dialética ser composto por repetições, ou seja, por retornos
que reinscrevem continuamente os fatos em uma nova significação.
Lembremos desta passagem célebre de nosso texto:

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre


e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as
circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram
transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as
gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos
vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em
transformar a si mesmas e as coisas, em criar algo nunca antes visto,
exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram

128
temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados
os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de
representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa
linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história
217
mundial .

Eis aí toda a dificuldade que Marx descobre: quando estão diante de


situações de crise que podem produzir revoluções em si mesmos e no
mundo, os sujeitos resolvem conjurar temerosamente a ajuda de espíritos do
passado, tomam emprestados seus nomes e palavras de ordem. Eles
parecem assim não serem capaz de ocupar as novas cenas da história
mundial, a não ser vestindo-se de conflitos passados não produzindo com
isto um “nome próprio e original” a respeito de sua própria situação.
Mas notemos como este nome próprio é, necessariamente, um nome
anterior. Nos sirvamos de um belo exemplo de Alain Badiou e lembremos
do nome “Spartacus” como nome próprio de um processo revolucionário.
218
Este sujeito político “transita de mundo em mundo” encarnando-se na
forma da revolta de escravos em Roma, no “Spartacus negro” que marca a
revolução dos escravos no Haiti e nos revolucionários alemães liderados
por Rosa Luxemburgo. Este sujeito transindividual e transhistórico permite
a dramatização das lutas atuais a partir das lutas passadas, fazendo as lutas
atuais explodirem seus contextos locais. Tal explosão aparece a Marx como
condição geral dos processos históricos. Assim, ao falar da Revolução
Francesa, ele dirá:

foi nas tradições de rigor clássico da República Romana que os seus


gladiadores encontraram os ideais e as formas artísticas, as
autoilusões de que ela [a Revolução Francesa] precisava pra ocultar
de si mesma a limitação burguesa do conteúdo de suas lutas e manter
o seu entusiasmo no mesmo nível elevado das grandes tragédias
219
históricas .

Mas interpretemos de forma adequada tal enunciado. Não se trata


simplesmente de dizer que tais encarnações são meras ocultações, meras
idealizações, ou seja, simples roupagem ideológica que faz os sujeitos
históricos perderem a sensibilidade em relação ao verdadeiro conteúdo de
suas ações. Elas são contrações temporais próprias a todo verdadeiro
acontecimento. Pois todo acontecimento é uma explosão do contínuo do
tempo em prol da experiência de um tempo multiplicado no qual várias

129
camadas de experiência histórica entram em processo de ressonância e
unificação.
No entanto, este processo pode ser tanto o motor de impulsão da
revolução para além de sua limitação burguesa quanto a trava que fará a
história ser uma mera paródia do passado, ser como “sombras que
perderam seus corpos” na qual o nível elevado das grandes tragédias
históricas se transforma em mera fraseologia vazia. A repetição do passado
pode se transformar assim em farsa assumida enquanto tal ou se quisermos
em mero cinismo. Pois a repetição se degrada a uma paródia que se repete
de forma mais compulsiva quanto menos se leva a sério. Neste contexto,
faltará à revolução: “um nome próprio e original”. Ou seja, o desafio de
uma revolução está sempre em que modalidade de repetição ela colocará
em circulação. Admiremos o paradoxo: a ruptura do tempo não pode
ocorrer sem colocar em circulação alguma forma de repetição do tempo. O
problema é que há ao menos duas formas de repetir o tempo.

Um significante vazio

Notemos em que condições esta degradação da repetição histórica se


dá. Marx descreve cinco atores presentes na revolução de 1848. Primeiro,
temos a alta burguesia cindida entre dois grupos: a burguesia fundiária dos
grandes proprietários de terra e a aristocracia financeira do capital. Cada
um desses grupos eram monarquista, o primeiro ligado à casa dos Bourbons
e o segundo à casa dos Orleans. Cada um anulava o outro para impedir que
sua casa sobrepusesse a outra. Eles eram assim monarquistas que se
aliavam apenas no terreno neutro e sem nome da república. Segundo, temos
a pequena burguesia. Terceiro, os pequenos proprietários de terra e quarto
o proletariado. Estes grupos não tem interesses em comum, embora acabem
por estar juntos no interior do mesmo processo de transformação. Os dois
primeiros são monarquistas e só aceitam a república porque ela aparece
como o meio neutro que impede um dos grupos sobrepor-se ao outro. Os
outros grupos são republicanos embora apenas o último (o proletariado)
seja realmente revolucionário.
Marx tenta explicar então como estes grupos com demandas
completamente distintas e contraditórias entre si acabam por encarnar-se
em uma mesma liderança, a saber, Luis Bonaparte. Isto só é possível porque
Bonaparte se coloca como uma espécie de significante vazio, ou seja, ele
não faz parte de nenhuma das classes, é um “aventureiro” que cavalga no
fato de ser uma versão renovada do “sobrinho de Rameau”. Por não estar
vinculado à nenhuma classe, ele pode representar a demanda de todas ao

130
menos por um tempo. “Justamente por nada ser, ele pôde significar tudo,
220
exceto a si mesmo” . Para os proletários, ele representa a contraposição a
Cavaignac, outro candidato a presidente na eleição de dezembro de 1848 e
responsável pelo massacre de junho. Para os pequenos proprietários de
terra, ele representa a grandeza econômica da Revolução Francesa devido à
sua filiação. À pequena burguesia, ele representa um anteparo ao
proletariado. À alta burguesia, ele é a formação de compromisso
necessária no interior de uma luta entre dois grupos monarquistas.
Assim, de 1848 até 1851, Bonaparte irá manobrar para afastar cada
um desses grupos (à exceção dos pequenos proprietários de terra, dos
camponeses parceleiros que, segundo Marx, são uma “não classe” já que
vivem em uma espécie de autosuficiência isolacionista) até conseguir se
afirmar e dar um golpe de estado no qual ele reinstaura a monarquia. Neste
ponto, a análise de Marx precisa responder: mas, afinal, em qual grupo Luís
Bonaparte se apoia para operar suas manobras? É neste ponto que
encontramos a importância do conceito de lumpenproletário.
De fato, a situação da França em 1848 é caracterizada por uma clara
“crise de legitimidade”. A crise política e econômica levou à constituição
do proletariado como sujeito político, mesmo que ainda incapaz de se
colocar claramente como sujeito revolucionário. No entanto, para paralisar
tal processo paulatino de formação da consciência revolucionária faz-se
necessário que, ao lado do proletariado, constitua-se uma espécie de classe
que impede que tal crise de legitimidade passe à revolução. Uma classe que
funciona como o “duplo” do proletariado e que transformará a revolta
social em negatividade improdutiva, como um sujeito reativo que irá
constituir um processo contrarevolucionário. Esta classe é o
lumpenproletariado cujo representante maior será exatamente Luís
Bonaparte.

Retorno ao lumpemproletariado

Entre 1848 e 1851, Bonaparte organiza as Sociedades 10 de


dezembro que aparecem como um grupo cuja função é expressar seu apoio,
mesmo que muitas vezes de forma violenta. Além disto, o governo
provisório institui 24 batalhões da guarda móvel. Nos dois casos, estes
grupos eram compostos de:
Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem
duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram
ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários,
escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni,

131
batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos
de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapaceiros,
amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa
massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que
221
os franceses denominam la bohème .

Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores
de tesoura sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. É
importante insistir em seu caráter totalmente heteróclito para não
acreditarmos que estamos diante de uma classe sociológica. O
lumpeproletariado não é uma classe sociológica que descreveria aqueles
em situação econômica abaixo do proletariado. Trata-se de uma categoria
política móvel. Pois o que totaliza esta série não é a suposta analogia entre
seus elementos a partir do desenraizamento social. A este respeito,
lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do
lumpemproletariado nos cumes da sociedade burguesa”. Há um
lumpemproletariado no baixo nível do estrato social e no alto nível, sendo
os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria funcional do
capitalismo financeiro.
Como dissera anteriormente, o que os une é, na verdade, uma certa
concepção de improdutividade, uma diferenciação entre trabalho produtivo
e trabalho improdutivo, mas diferenciação concebida do ponto de vista da
produtividade dialética da história. Pois o lumpemproletariado é uma
massa desestruturada cuja negatividade não se coloca como contradição em
relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele é a
representação social da categoria de negatividade improdutiva, uma
negatividade que, por não chegar à contradição, não se transforma em
praxis revolcuionária. Por isto, trata-se de uma massa heterogênea que pode
ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador que lhe dará
estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do
brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”.
Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história
mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para
poder se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização
produzido por Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia.
Através de Napoleão III, a heterogeneidade do lumpemproletariado
permanece radicalmente passiva, permanece como ação anti-política, pois
acomoda-se à gestão do desenraizamento social. Seus crimes romantizados

132
não se transformam em ação de transformação alguma, eles são apenas a
estetização da revolta. Na verdade, essa desestruturação e indefinição
anômica do lumpemproletariado é própria de quem ainda conserva a
esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de conceber nada fora
de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente comprometida. O
que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de transformações,
“comédias”, ou ainda, “mascaradas”. O lumpemproletariado representa
uma negatividade que não pode ser integrada no processo dialético porque
ele representa o congelamento da negatividade em uma espécie de cinismo
social.
Mas aqui entramos um ponto fundamental que diz respeito ao modelo
de experiência de governo que um regime assentado no lumpemproletariado
precisa implementar. Para que Luís Bonaparte possa aparecer como o chefe
do lumpenproletariado ele precisa permitir a manifestação do
ressentimento contra uma Lei que, em larga medida, fora compreendida
como a repressão imposta pelo mais forte. Ou seja, faz-se necessário que a
crítica à Lei se transforme em ressentimento. E que maneira melhor de
manifestar o ressentimento em relação à Lei, manifestar a negatividade em
relação aos valores encarnados pela Lei que através da adesão ao governo
de um notório fora da Lei. Para o lumpemproletariado, Luís Bonaparte é a
negação à Lei sob a forma da Lei, como se estivesse a dizer: “Só o roubo
pode salvar a propriedade, só o perjúrio pode salvar a religião, só a
222
bastardia, a família, só a desordem, a ordem!” .
A colocação de Marx é absolutamente central. Bonaparte leva a cabo
um governo no interior do qual a adesão social é construída através da
negação generalizada da Lei, mas sob o manto da ordem. Isto implica, ao
menos, reduzir as demandas revolucionárias a uma espécie de fraseologia
que expressa a “degradação ideológica do corpo de ideias histórico-
223
filosóficas” da filosofia do progresso. É esta peculiar negação que
conserva através da redução das ideias à condição repetição oca que
fornece ao governo uma estabilidade no caos. Lembremos do que Marx fala
de Luís Bonaparte:

Impelido pelas exigências contraditórias dessa situação e, ao mesmo


tempo, como um ilusionista sentindo-se na obrigação de apresentar
constantes surpresas para manter os olhos do público fixos nele, ou
seja, de realizar todo dia um novo golpe de Estado en miniature,
Bonaparte, o suplente de Napoleão, esculhamba toda a economia
burguesa, toca em tudo que parecia intocável para a revolução de
1848, deixa uns aguardando a revolução com paciência e outros com

133
vontade de fazer a revolução e gera a pura anarquia em nome da
ordem, enquanto simultaneamente despe toda a máquina do Estado de
sua aura de santidade, profanando-a, tornando-a ao mesmo tempo
224
asquerosa e ridícula .

Ou seja, e este é o ponto fundamental, Bonaparte gera a anarquia em


nome da ordem, ele transforma a anarquia em condição de governo a partir
do momento em que revela o fundo falso da Lei e da fraseologia da
revolução de 1848. Ele permite aos sujeitos uma forma de adesão ao poder
que não exige mais convicção alguma, por isto transformação da encenação
do poder em simples mascarada. Essas dissolução da história e do sujeito
em mera fraseologia será uma forma, talvez a mais astuta de todas, de
paralisia social. Será uma profanação que conservará o Estado em sua
forma degradada e que permitirá ao lumpemproletariado uma forma de
profanação que não se realiza como revolução, mas se realiza como
pilhagem autorizada e organizada pelo próprio Estado. Neste modelo de
contrarevolução, Marx encontrará uma espécie de ‘forma geral’ de todos os
processos de recuperação totalitária da revolta popular que será a tônica
do século XX.

134
Reler Marx hoje
Aula 12

Depois de 1852, Marx se dedicará de maneira sistemática ao estudo da


economia política. Estes estudos lhe levarão a publicar Para uma crítica
da economia política, de 1859 e se engajar nos trabalhos em vista da
publicação de sua principal obra, a saber, O capital, cujo primeiro volume
sairá em 1867. Uma das razões para esta guinada em direção à economia
política está expressa em afirmações como:

Por ser burguesa, isto é, por entender a ordem capitalista como a


forma última e absoluta da produção social, em vez de um estágio
historicamente transitório de desenvolvimento, a economia política só
pode continuar a ser uma ciência enquanto a luta de classes
225
permanecer latente ou manifestar-se apenas isoladamente .

Lembremos como a revolução de 1848 produz em Marx a discussão sobre o


fracasso da revolução. A reflexão sobre a economia política é uma maneira
de se perguntar sobre como a racionalidade inerente à produção social
capitalista aparece aos indivíduos como um dado insuperável, como forma
última e absoluta. Esta racionalidade molda os seres humanos como um
conjunto de disciplinas, impõe a eles não apenas um modo de trabalho, mas
um modo de ser socialmente, de agir e de julgar. A economia não é apenas
uma forma de analisar a produção dos bens e riquezas. Ela é uma disciplina
que se impõe à sociedade e aos seres humanos, aparecendo como um
“dever ser” que nos molda psicologicamente e limita nossa possibilidade
de pensar para além da reprodução da situação atual. Por isto, fazer a
crítica da economia política só pode significar colocar em questão as bases
de reprodução material da vida social que aparecem como intransponíveis.
Isto explica porque a reflexão política sobre a revolução se transforma, em
Marx, em uma crítica da força disciplinar da economia política.
Dentro desta estratégia, é absolutamente compreensível que Marx
precise afirmar, logo no início do primeiro volume de O Capital que, longe
de ser um sistema econômico baseado em uma racionalidade desencantada,
o capitalismo é uma forma de vida baseada em um regime muito peculiar de
encantamento que chamamos de “fetichismo”.

A gênese do fetichismo

135
Poucos são os termos tão ligados à constituição da consciência da
modernidade ocidental quanto “fetichismo”. Enunciado pela primeira vez
em 1756 pelo escritor francês Charles de Brosses, membro da Académie
des Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopédia
de Diderot e d’Alambert, o fetichismo aparecia como peça maior de uma
operação que visava estabelecer os limites precisos entre nossas
sociedades esclarecidas e sociedades primitivas pretensamente vítimas de
um sistema encantado de crenças supersticiosas. Já o título da obra de De
Brosses dedicada à apresentação sistemática do fetichismo era ilustrativo:
Do culto dos deuses fetiches ou Paralelo da antiga religião do Egito com
226
a religião atual da Nigritia (1760) . Ou seja, tratava-se de criar um
paralelo entre um limite à racionalidade moderna ao mesmo tempo histórico
(no passado) e geográfico (no presente), determinar as coordenadas
histórico-geográficas do pensamento primitivo, isto através da identificação
de uma forma de encantamento cuja ilustração perfeita seria o culto aos
ditos deuses fetiches. Tal caracterização do pretenso pensamento primitivo
através do fetichismo atravessará os séculos XVIII e XIX. Ela pode ser
encontrada, entre outros, em escritos de ideólogos como Destutt de Tracy,
de filósofos como Kant, Hegel, Benjamin Constant, mas será com Augusto
Comte que o fetichismo, definido enquanto estágio inicial da vida social e
das formas do pensar, alcançará sua enunciação canônica.
No entanto, ao usar o termo “fetichismo” para descrever a lógica de
produção de valor própria às nossas sociedades ocidentais, Marx acabará
por dar forma conceitual a um momento histórico de deslocamento do
sistema de partilha entre modernidade e pré-modernidade. Pois ele
mostrará como o encantamento e a alienação que o Ocidente identificou em
seu Outro operam, na verdade, no interior de nossas sociedades
desencantadas e no cerne de nossas próprias formas de vida. Por isto, ele
se servem de um conceito (fetichismo) que até então era usado para
descrever o que seria exterior às sociedades modernas (De Brosses, Comte.
Mas agora eles o utilizam para descrever o interior do processo de
determinação do valor em nossas sociedades. Tendo estas questões em
vista, lembremos da definição inicial de De Brosses:

Estes fetiches divinos não são outra coisa que o primeiro objeto
material que cada nação ou cada particular tem o prazer de escolher e
de consagrá-lo em cerimônia por seus sacerdotes: é uma árvore, uma
montanha, o mar, um pedaço de madeira, um rabo de leão, um seixo,
uma concha, sal, um peixe, uma planta, uma flor, um animal de certa

136
227
espécie; enfim, tudo o que se possa imaginar de parecido .

Era desta forma que Charles De Brosses procurava caracterizar o que ele
entendia por “fetichismo”: o culto supersticioso de um objeto
arbitrariamente escolhido devido a alguma qualidade diferencial que
agradaria o crente. Nesta definição, encontrava-se a materialização da
incompreensão dos colonizadores europeus diante da complexidade dos
sistemas simbólicos dos “povos primitivos”. Por ser “arbitrário” e
“contingente”, o objeto cultuado era apenas a expressão imediata da
projeção antropomórfica de crenças e vontades, ou seja, a forma mais
elementar de superstição produzida por associações indevidas de idéias.
Eles sequer poderiam ser analisados como alegorias ou símbolos, já que
estaríamos em uma espécie de “grau zero da capacidade de
228
representação” .
Esta noção de “fetiche” já estava presente nas reflexões do século
XVII e XVIII a respeito das práticas religiosas dos africanos, a quem a
ideologia colonial procurava impor uma “mentalidade primitiva”. De fato,
o termo nasce do impacto das Grandes Navegações no imaginário europeu.
Vendo a maneira com que objetos inanimados e animais eram
compreendidos como dotados de forças sobrenaturais por tribos africanas,
os navegantes portugueses descreveram tais objetos como fetissos. Ao se
perguntar sobre o que significaria exatamente o termo português fetisso, De
Brosse falará de “coisa encantada, divina” devido a sua pretensa derivação
da raiz latina fatum (destino, oráculo), fanum (lugar consagrado) e fari
(falar, dizer), deixando de lado a raiz latina derivada de factio (modo de
fazer), facticius (artificial, falso), que era a correta. Erro providencial pois
retirou a reflexão sobre o fetiche das vias de uma indagação sobre o
artifício que se apresenta enquanto tal para colocá-la na direção de
229
problemas ligados à imanência da crença . No entanto, é esta via mais
próxima do sentido original da palavra que Freud irá recuperar.
Se De Brosses não foi o responsável pela constituição do termo
“fetiche”, ele foi aquele que, através da criação do neologismo
“fetichismo”, forneceu as condições fundamentais para a transformação de
uma reflexão sobre práticas de culto de tribos africanas em dispositivo de
descrição do pensamento primitivo em geral pois independente de questões
vinculadas a localização geográfica ou temporal. Estratégia maior para a
consolidação da maneira com que a consciência nascente da modernidade
poderá estabelecer suas fronteiras.
Em seu livro, De Brosses apresenta uma longa compilação de relatos

137
de viagens da Oceania, Américas, Brasil, África, a fim de mostrar a
presença do mesmo sistema fetichista de crenças. Seu intuito principal é
deixar clara a inexistência de diferença estrutural entre tais práticas e
aquelas que encontraríamos na religião da Grécia antiga e do Egito. O que
não poderia ser diferente, já que se trata de apresentar uma teoria
evolucionista do progresso social e do pensamento capaz de justificar a
partilha entre sociedades modernas e pré-modernas presentes no mesmo
momento histórico. As sociedades fetichistas teriam permanecido em um
estágio inicial de desenvolvimento, em uma infância perpétua, em um
230
“estado natural bruto e selvagem” já que o fetichismo seria, como dirá
231
Diderot em carta a De Brosses, “a religião primeira, geral e universal” .
Este esquema será levado ao seu maior desenvolvimento pelas mãos de
Augusto Comte e sua teoria dos três estados do espírito humano (o
teológico, o metafísico e o positivismo; sendo que o fetichismo seria a
primeira fase do estado teológico, seguido pelo politeísmo e pelo
232
monoteísmo) .
Duas características maiores definiriam esta infância própria ao
fetichismo: um modo de pensar projetivo animado pelo medo e pela
ignorância, assim como a incapacidade de operar com simbolizações e
233
abstrações . A primeira característica mostra o fetichismo como modo
elementar de defesa contra um afeto: o medo diante do caráter imprevisível
dos fenômenos naturais. Projetar qualidades humanas em objetos naturais
aparece como móbile de um pensamento assombrado pelo medo,
pensamento que ainda não se tornou “senhor da natureza” através do
desvelamento da estrutura causal dos fenômenos.
Por outro lado, De Brosses compreende “o progresso natural das
idéias humanas” através de um movimento de abstração que consiste em:
234
“passar dos objetos sensíveis aos conhecimentos abstratos” . As
sociedades fetichistas seriam estranhas a formas de pensamento que se
abstraem das determinações sensíveis imediatas a fim de construir
conceitos e símbolos genéricos. Ou seja, elas desconheceriam o
pensamento conceitual, tomando por atributo imediato da coisa particular o
que é próprio de sua espécie, gênero, ou da estrutural causal da qual ela faz
parte. Por isto, De Brosses deve insistir a todo momento que o fetiche não é
uma forma de representação, como é o caso da imagem de um santo católico
ou do ouro (que os índios cubanos teriam compreendido como o “fetiche
dos espanhóis” – adiantando em alguns séculos Marx), já que o pensamento
primitivo seria marcado pela “ausência de desdobramento entre o

138
235
representante e o representado” . Ele é um pensamento imerso nas ilusões
do imediato, estranho a alegorias, sem qualquer capacidade de
transcendência; um pouco como uma criança que toma metáforas ao pé da
236
letra por pretensamente desconhecer os usos figurados da linguagem .
Por sua vez, a potência da representação só seria própria a religiões
derivadas do judaísmo, como o cristianismo e o islamismo. Pois a crítica
judaica às representações do divino teria impulsionado a constituição de
uma sensibilidade que não confunde o que aparece com o que é, o fenômeno
com a essência. Daí porque De Brosses pode afirmar que: “Para os
selvagens, os nomes Deus e Espírito não significam em absoluto o que eles
237
querem dizer entre nós” . É devido a tal estrutura de projeções e a
incapacidade de passar dos objetos sensíveis aos conhecimentos abstratos
que De Brosses resumirá a situação de ignorância própria ao pensamento
primitivo através de uma frase que não deixa de ressoar a maneira com que
Marx descreverá o desconhecimento ideológico: “Eles não sabem o que
238
vêem” .

Marx e o fetichismo

Se voltarmos os olhos à temática marxista do fetichismo da


mercadoria, veremos como ela impõe um profundo redirecionamento no
sentido até então presente na noção de “fetichismo”. Sabemos que Marx
239
conhecia o livro de De Brosses . Comecemos então por nos perguntar
sobre o que haveria de “fetichismo” no fetichismo da mercadoria. Já
sabemos que o termo dizia inicialmente respeito a duas operações que o
pensamento europeu compreendia como característica de “povos
primitivos”, a saber, a incapacidade de abstração e um modo de pensar
projetivo que exterioriza construções e qualidades humanas em objetos, isto
de maneira a dar realidade natural, naturalizar processos sociais.
De fato, a maneira com que Marx utiliza o termo “fetichismo”
aproxima-se, logo de entrada, de um dos sentidos fornecidos por De
Brosses. Pois Marx quer mostrar como no interior da economia das
sociedades capitalistas industriais: “produtos do cérebro humano parecem
figuras autônomas, adquirindo vida própria, estabelecendo relações uns
240
com os outros e com os homens” , isto desde o momento que tais produtos
são produzidos como mercadorias. Como se a esfera desencantada das
trocas econômicas fosse, no fundo, espaço de construções e processos
similares àqueles que encontramos na esfera do encantamento religioso.

139
Uma das múltiplas maneiras possíveis de abordagem deste problema
consiste em dizer que, ao produzirem mercadorias no interior do processo
capitalista de acumulação, os sujeitos necessariamente projetariam, isto no
sentido de não poderem mais se reconhecer naquilo que eles mesmos fazem
e produzem. No entanto, devemos nos colocar uma pergunta que apenas em
aparência é simples, a saber: o que fazem exatamente os sujeitos quando
produzem mercadorias?
Não devemos compreender “mercadoria”, neste contexto, como todo
e qualquer produto humano que possa ser trocado. A mercadoria a respeito
da qual Marx se refere é aquele objeto cuja única finalidade econômica é
permitir um processo de auto-valorização do Capital (este processo através
do qual uma quantidade D de dinheiro produz um quantidade D´ maior de
dinheiro). Ela é produto que, ao ser trocado por dinheiro, permite ao
dinheiro anteriormente aplicado se valorizar. Neste sentido, a característica
fundamental do capitalismo, para Marx, é organizar toda a economia e a
vida social tendo em vista tal processo incessante de valorização. Um
pouco como se, no capitalismo, o processo produtivo fosse, no fundo, uma
espécie de momento do processo especulativo. É a isto que Marx alude ao
afirmar que, na mercadoria, o valor de troca é o modo de expressão ou a
forma fenomenal necessária do valor, isto a despeito do valor de uso, ou
seja, do caráter útil da coisa para o seu comprador.
Podemos então dizer que, ao produzirem mercadorias, os sujeitos
produzem necessariamente valores de troca. Mas o que afinal eles fazem ao
produzirem valores de troca? Marx diz inicialmente que eles devem agir
como quem dissolve todas as características sensíveis dos objetos
trabalhados. Mas chega a falar que: “o próprio corpo da mercadoria é um
241
valor de uso ou um bem” . Tudo se passa como se o corpo (Körper) do
objeto fosse abstraído, isto para se tornar puro suporte de valores abstratos
de troca. Desta forma, o corpo da mercadoria se conforma a uma
“objetividade fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit)
representada pela pura quantidade do valor de troca. Este corpo advém
expressão daquilo que Marx chama de “forma-equivalente”, o que nada
mais é do que a possibilidade de todo corpo equivaler a outro, de todo
corpo passar no outro ou, se quisermos, de todo corpo dissolver-se no
outro. Esta reversibilidade absoluta dos corpos pode ser vista como uma
espécie de resultado ideal do fetichismo. Assim, o corpo dos objetos, suas
características sensíveis devem ser negadas para que um determinado valor
possa ser, não apenas atribuído, mas “encarnado”. Esta encarnação é
conformação a uma idealidade (o fetiche) que se transforma, como dizia
Marx, em uma “coisa sensível suprasensível”.

140
Giorgio Agamben, em texto recente, mostrou como esta negação do
corpo da mercadoria seria a manifestação mais bem acabada de uma
situação fundamental dos objetos no capitalismo : eles estão separados de
si mesmos; “todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas”.
Dizer que as coisas estão separadas de si mesmas significa, neste contexto,
dizer que elas estão submetidas a um princípio que lhes é estranho, como
vemos em afirmações como:

a mercadoria é valor de uso: trigo, linho, diamante, máquina etc., mas


como mercadoria ela não é, ao mesmo tempo, valor de uso. Fosse ela
valor de uso para seu possuidor, isto é, fosse ela imediatamente meio
para a satisfação de suas próprias necessidades, não seria
mercadoria (...) Toda mercadoria deve obter sua existência como
valor de troca através de alienação de seu valor de uso, isto é, de sua
242
existência originária .

Proposição arriscada pois parece nos colocar à procura de uma bizarra


naturalidade essencial das coisas.
No entanto, esta não é, como poderíamos esperar, a perspectiva de
Agamben. Tentemos, por exemplo, compreender o que está por trás da
afirmação segundo a qual, com a transformação dos objetos em suportes de
valores de troca, “todo uso se torna duravelmente impossível” pois no lugar
do uso possível (que Agamben aproxima do “livre jogo com as coisas”) só
teríamos o usufruto, o consumo, ou seja, o uso submetido a uma função
243
utilitária ou ao mero consumo de valores de troca . Esta dicotomia entre
uso e consumo ou, ainda, esta maneira peculiar de reordenar a dicotomia
entre “valor de uso” e mero consumo de “valor de troca” tem ao menos o
mérito de nos livrar de um certo discurso que vincula o valor de uso à
pretensa esfera das necessidades naturais do homem. A ideia fundamental
parece ser aqui insistir que o “uso”, em Marx, “uso” pensado
fundamentalmente como modo de relação entre sujeito e objeto, deveria ser
idealmente aproximado de noções como “livre jogo”, “meios sem fim”, ou
seja, não redução instrumental de objetos e processos. Só através da
mobilização de tais experiências, os sujeito poderiam se reconhecer nos
objetos produzidos, satisfazendo algo que não é mera necessidade bruta,
mas um desejo mais elaborado de reconhecimento social. Não é mero
acaso o fato de que a categoria do “uso” seja reconstruída através do
recurso a experiências mais próximas do campo da fruição estética. Tal
recurso parece procurar recuperar algo do paradigma do trabalho presente
no jovem Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos, com sua

141
244
constituição a partir da expressão estética .
Neste sentido, se voltarmos à discussão de Agamben, diremos que
“consumo” só poderá significar uma conformação instrumental de tal ordem
guiando a relação sujeito/objeto que qualquer possibilidade de
reconhecimento, no objeto, da singularidade dos sujeitos consumidores e
produtores estaria bloqueada. Pois o consumo sempre será direcionado a
um valor “imaterial” que só se realiza quando o sujeito é capaz de passar
por e anular todas as determinações singulares (o que nos remete à idéia
hegeliana do consumo como infinito ruim). Neste sentido, no consumo,
fetichizamos não os objetos, mas o processo “fantasmagórico” que nos
permite destruir a materialidade de todo objeto singular e de todo
sensível em geral. Neste sentido, podemos mesmo dizer que a crítica
iluminista do fetichismo: “implica uma nova definição do que significava
ser europeu: isto é, um sujeito livre da fixação em objetos, um sujeito que,
tendo reconhecido o verdadeiro valor (isto é, de mercado) do objeto como
mercadoria, se fixava, em vez disso, nos valores transcendentais que
transformavam o ouro em navio, os navios em armas, as armas em tabaco, o
tabaco em açúcar, o açúcar em ouro, e tudo isto em um lucro que podia ser
245
contabilizado”. .
A partir disto, podemos pensar algumas conseqüências da afirmação
de Marx segundo a qual, ao agirem como quem vê na mercadoria o puro
suporte de valores de troca, os sujeitos, ao mesmo tempo, agem como se
acreditassem que todos os trabalhos singulares pressupostos pelos objetos
produzidos são também equivalentes. O que vemos em uma afirmação
como:

Para medir os valores de troca das mercadorias pelo tempo de


trabalho contido nelas, os diversos trabalhos devem estar reduzidos a
trabalho sem diferenças, uniforme, simples, em suma, a trabalho que é
qualitativamente o mesmo e, por isso, se diferencia apenas
246
quantitativamente .

Pois se as mercadorias podem ser equivalentes é porque os trabalhos


que as produziram também podem ser submetidos a um padrão geral de
cálculo. Este ponto é central para compreender porque, ao produzirem e
consumirem valores de troca, Marx pode dizer que os sujeitos não sabem o
que fazem. Agir como se os trabalhos singulares fossem equivalentes
significa transformá-los em puro quantum de trabalho abstrato, trabalho que
não expressa subjetividade alguma, “simples geleia de trabalho humano

142
247
indiferenciado” . Desta forma, a característica alienada do trabalho social
248
é posta como característica objetiva dos produtos do trabalho . Neste
sentido, a maneira com que as coisas são trocadas apenas revelaria a
maneira com que as relações sociais de trabalho são efetivamente
vivenciadas. É nisto que Marx pensa ao enunciar a fórmula canônica do
fetichismo da mercadoria: “a relação social entre homens recebe a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas”. Notemos com isto que, mesmo
estando no interior de um mundo de entidades a-qualitativas, de abstrações,
os sujeitos agirão com se estas abstrações fossem reais. Conceito de
“abstração real” que é uma das bases da leitura de Marx. O que nos leva a
lembrar da afirmação de Ruy Fausto: “O que caracteriza o capitalismo é
precisamente o fato de que nele se tem um mundo de entidades a-
qualitativas mas que se apresentam como análogas de viventes. Nele há,
249
de certo modo, abstrações “vivas” .
Notemos ainda que o fetichismo da mercadoria expressa uma forma
específica de dominação própria ao capitalismo. Nela, os seres humanos
são dominados não exatamente por outros seres humanos, mas pela própria
estrutura de determinação do valor. Por isto, a relação social de dominação
ganha a forma de uma relação entre coisas. Isto significa que a maneira com
que as “coisas” se determinam, a maneira com que elas se relacionam,
impondo um dinâmica de abstração real, irá dominar seres humanos
“livres” (pois vendedores livres de sua própria força de trabalho), pois
transformará o sentido de seus trabalhos, a forma de suas sensibilidades e
percepções, fazendo a atividade de cada indivíduo a mera expressão de um
processo de autovalorização do capital. Daí porque Marx lembrará que não
haverá tal fetichismo nas relações medievais entre vassalos e suseranos
pois, neste caso, as relações de dominação já estão explícitas no nível das
relações entre pessoas: “Mas é justamente porque as relações pessoais de
dependência constituem a base social dada que os trabalhos e seus produtos
250
não precisam assumir uma forma fantástica distinta da realidade” .

Imagem e reificação

Décadas após Marx, Gyorg Lukács voltou ao problema do fetichismo


da mercadoria a fim de forjar o conceito de “reificação” para lembrar como
esta submissão do trabalho singular à abstração geral da equivalência
própria à forma-mercadoria implicava no desenvolvimento de uma atitude
contemplativa do sujeito em relação a seu próprio trabalho, um pouco
como o pretenso “selvagem” que contempla forças sobrenaturais que, no

143
fundo, foram “produzidas pelo seu próprio cérebro”. Esta atitude
contemplativa é descrita por Lukács nos seguintes termos:

quando a atividade do homem se objetiva em relação a ele, torna-se


uma mercadoria que é submetida à objetividade estranha aos homens,
[objetividade] de leis sociais naturais, e deve executar seus
movimentos de maneira tão independente dos homens, como qualquer
bem destinado à satisfação de necessidades que se tornou artigo de
251
consumo .

Tal atitude é, na verdade, o resultado da submissão integral do


trabalho a uma racionalidade instrumental marcada pela tentativa de
padronização de critérios de decisão baseados na possibilidade de
quantificação, mensuração, cálculo e estabelecimento de equivalências.
Princípio de racionalidade derivado da noção de racionalidade orientada
252
para fins, tal como apresentada por Max Weber . Neste sentido, coube
principalmente à Lukács demonstrar como a forma-mercadoria seria o
veiculo privilegiado para a imposição de tal racionalidade às múltiplas
esferas da vida social, transformando-se assim em um: “protótipo de todas
as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de
253
subjetividade na sociedade burguesa” .
Lukács compreende o desenvolvimento das técnicas, desde o
artesanato, passando pela manufatura até a indústria mecânica, como a
história material do aprofundamento do processo de eliminação das
254
“propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador” e,
conseqüentemente, de auto-reificação. Lembremos como, no momento em
que Lukács escreve, imperava na empresa capitalista tanto a burocracia de
estilo weberiano, com sua impessoalidade, formalismo, procedimentos
sistematizados, especialização e completa previsibilidade do
funcionamento quanto a “administração cientifica” de cunho taylorista, na
qual o processo de produtivo era analisado a partir de sistemas rígidos de
tempos e movimentos, organizado levando em conta uma divisão radical do
trabalho que tendia a submeter a ação subjetiva à lógica do automatismo.
Nos dois casos, valeria o dito de Lukács: “essa fragmentação do objeto da
255
produção implica necessariamente a fragmentação do seu sujeito” .
No entanto, há um ponto que aparece, de maneira tangencial, na
problemática luckasiana da reificação, mas que ganhará importância
decisiva na recuperação posterior da temática do fetichismo social. Lukács
insistia que o modo de racionalização próprio à forma-mercadoria

144
(quantificação, mensuração, cálculo) implicava na generalização social de
uma forma de racionalidade que determina objetos como determinamos e
justapomos coisas no espaço. Pois sob tal forma de racionalidade: “o
tempo perde o seu caráter qualitativo, mutável e fluido; ele se fixa num
continuum determinado com precisão, quantitativamente mensurável, pleno
256
de coisas quantitativamente mensuráveis (...) torna-se espaço” . A unidade
dinâmica de processos fornecida pelo tempo histórico é fragmentada da
redução do campo da experiência a um continuum de “coisas” autônomas,
aparentemente desprovidas de relações. Esta submissão da experiência da
temporalidade a um tempo que nada mais é do que a sucessão mensurável
de instantes isolados entre si não deixa de ser eco das reflexões de
Heidegger em Ser e tempo, um livro que claramente influenciou as
considerações de Lukács.

145
Reler Marx hoje
Aula 13

“Esta aula, que fora dedicada ao conceito marxista de mais-valia, falta”

146
Reler Marx hoje
Última aula

Chegamos ao fim de nosso curso. Como vocês sabem, este curso sobre
Marx foi animado por uma pergunta central, a saber, o que significa reler
Marx hoje? Em um momento no qual nosso país volta a praticar o esporte
de caça aos “marxistas” o que significa reler Marx hoje? Durante décadas a
leitura de Marx era peça obrigatória de toda formação da consciência
política e crítica, mas mesmo no espaço universitário seu pensamento
pareceu não dar mais contas dos desafios da crítica social do presente.
Primeiro, foi a afirmação, presente desde os anos 30 do século
passado, de que seu conceito de proletariado como força revolucionária
não tinha mais lugar no interior de nossas sociedades capitalistas
avançadas. O proletariado estaria profundamente integrado aos modos
atuais de reprodução social, principalmente após a ascensão dos ditos
estados do bem-estar social, a classe operária não seria mais expressão de
uma pauperização absoluta, como no interior da grande indústria do século
XIX. Assim, Marx teria errado em relação à capacidade do capitalismo
regular sua própria espoliação. Sua crença de que o desenvolvimento
capitalista caminharia nos passos da pauperização absoluta teria sido um
erro.
Segundo, veio a crítica à própria filosofia da história pressuposta
nesta maneira de Marx insistir na iminência de um processo revolucionário
universalista impulsionado pelo ritmo do acirramento das contradições no
interior do modo de produção capitalista global e de suas crises de
superprodução. Esta filosofia da história foi vista, mais de uma vez, como
uma metanarrativa animada por uma versão secularizada de providência e
de necessitarismo. Neste sentido, a própria teoria marxista das crises seria
apenas uma incidência de certo messianismo que faz o novo mundo
depender da expectativa de uma crise final. Contra tudo isto, teríamos
aprendido de que falar de uma história mundial seria prova maior de
dominação eurocêntrica. Teríamos, na verdade, descoberto múltiplas
histórias irredutíveis umas às outras, expressões das dinâmicas singulares
de sociedades que não estariam submetidas aos mesmos imperativos de
desenvolvimento.
Por fim, temos a crítica de que a política marxista seria, em sua
essência, autoritária e liberticida. Ela desconsideraria a importância das
ditas “liberdades individuais” que fornecem à política a condição de campo
para a defesa da singularidade de modos pessoais de realização de si. Ao

147
contrário, o comunismo que defendia Marx por meio da violência
revolucionária seria um coletivismo forçado cujos resultados efetivos na
história recente só poderiam ser descritos como catastróficos.
Tenho certeza de que todos vocês conhecem bem tais críticas e sua
legião de defensores. O que tentei fazer com vocês foi mostrar como uma
leitura cuidadosa dos textos de Marx demonstra como tais críticas não se
sustentam, ao menos no que diz respeito ao pensamento do filósofo alemão.
Por isto, se puder resumir o que procurei defender com vocês neste
semestre de curso, eu definiria três eixos centrais:

a) o conceito de proletariado em Marx não pode ser reduzido à


descrição sociológica da classe de trabalhadores que não tem nada
a não ser sua força de trabalho. Ele é um conceito que descreve a
estrutura ontológica de todo e qualquer sujeito político com força
revolucionária. Há uma ontologia substrativa do sujeito
pressuposta no conceito marxista de proletariado, ontologia cujas
raízes devem ser procuradas no conceito hegeliano de sujeito. Por
esta razão, o conceito de proletariado não pode ser invalidado
através do diagnóstico de integração da classe trabalhadora aos
novos estratos médios das sociedades capitalistas.
b) A filosofia da história de Marx é tanto uma reflexão sobre a
necessidade da revolução diante do sofrimento social de alienação
quanto uma reflexão sobre os fracassos dos processos
revolucionários. O leitor do conceito de acaso em Epicuro e nos
estoicos não poderia acreditar em qualquer necessitarismo
histórico. Nada garante uma revolução, mas nada também pode
anular, de uma vez por todas, sua possibilidade. Por outro lado, de
fato seu conceito de história é radicalmente universalista, mas ele
tem a seu favor o fato dele dar conta do impacto dos alinhamentos
regionais diante do desenvolvimento exponencial do capitalismo
global.
c) Por ser uma crítica radical da alienação, a filosofia de Marx tem
no conceito de liberdade seu eixo central. No entanto, trata-se de
afirmar que o conceito liberal de liberdade é apenas uma patologia
baseada na reconstrução da integralidade das relações sociais e
das relações a si a partir da generalização da noção de
propriedade. O conceito liberal de liberdade é apenas uma forma
de servidão. A verdadeira liberdade é libertação em relação a um
modo de vida na qual a noção de propriedade, de próprio, de
identidade funcional vinculada à divisão do trabalho molda toda a

148
esfera da existência. Por isto, o comunismo de Marx não é a figura
de uma sociedade liberticida, mas a insistência na emergência de
potencialidades próprias a um conceito de liberdade capaz de
criticar a estrutura disciplinar interna à noção de indivíduo
moderno.

Sobre a noção de experiência intelectual

Dito isto, eu gostaria de aproveitar este momento final para reconstruir o


que foi nosso trajeto no interior da experiência intelectual de Marx.
Infelizmente, não tivemos tempo suficiente para abordar esta que é a obra
mais expressiva de Marx, a saber, O capital. Restringi-me a apresentar a
vocês dois conceitos centrais na crítica da economia política de Marx, a
saber, fetichismo e mais-valia. Procurei também mostrar qual o sentido de
reconduzir a crítica social ao solo de uma crítica da economia política,
como o fez Marx.
No entanto, a função de um curso como este era, principalmente,
fornecer a vocês as coordenadas do que podemos chamar de: experiência
intelectual. No interior de uma experiência intelectual podemos identificar
processos de pensamento, ou seja, movimentos no interior dos quais
elaborações conceituais se confrontam com acontecimentos criando uma
ordem de ideias que não é apenas uma ordem das razões interna aos jogos
entre textos. Experiência intelectual é uma elaboração tensa entre
problemas vindos de tradições com as quais um autor dialoga,
acontecimento de seu tempo que forçam o pensamento e criação conceitual
com sua inflexão própria.
Foi tendo tal noção de experiência intelectual em mente que
procuramos abordar vários momentos da obra de Marx. Vimos as
elaborações do jovem Marx, desde sua tese de doutorado sobre Demócrito
e Epicuro, passando pela Crítica da Filosofia do direito de Hegel, Sobre a
questão judaica e, principalmente, os Manuscritos econômicos-
filosóficos. Este movimento terminou com o comentário da primeira parte
de A ideologia alemã. Neste trajeto, procurei expor a vocês a relação de
proximidade e distância entre Hegel e Marx a fim de explicitar o que
deveríamos entender por “guinada materialista” da dialética desenvolvida
por Marx. Procurei também apresentar o que poderíamos entender como a
“antropologia” presente no jovem Marx através da discussão sobre os
processos sociais de alienação e a função reguladora do conceito de “ser
do gênero”. Por fim, foi questão de abordar a concepção de materialismo
histórico em Marx.

149
Em um segundo momento, foi questão de analisarmos a teoria da
revolução em Marx através do comentário do 18 de brumário de Luís
Bonaparte. O que procurei fazer foi desenvolver com vocês a centralidade
para Marx do conceito de proletariado enquanto nome de todo e qualquer
sujeito político emergente. Marx tem uma teoria da revolução, não uma
teoria do estado comunista. Ele se preocupa com processos de emergência
e insurreição, não exatamente com processos de governo. Por fim, em um
terceiro momento foi questão de abordar algumas questões da crítica da
economia política de Marx, como disse anteriormente.
Lembremos mais uma vez do movimento deste trajeto. A integralidade
da experiência intelectual de Marx é coordenada por um problema central,
a saber, quais as condições sociais necessárias para a emancipação? No
seu sentido mais forte, o pensamento de Marx é, acima de tudo, uma
reflexão é uma meditação consequente sobre processos de emancipação
social. Emancipação significa aqui não apenas autonomia, capacidade de
dar para mim mesmo a minha própria lei a fim de constituir uma vontade
livre, como vemos na filosofia moral de Kant. Emancipação não é a
garantia das condições sociais para a realização do livre-arbítrio.
Emancipação é, para Marx, capacidade de exteriorizar o ser do gênero, ser
este pensado como fundamento da essência humana. Neste sentido,
emancipação não significa realizar-se como indivíduo dotado de autonomia
e sistemas particulares de interesse, mas abrir-se para o que em cada
sujeito manifesta-se como pura afirmação do gênero. Neste sentido,
podemos dizer que emancipação em Marx é, de certa forma, emancipar-se
da condição de indivíduo. Pois vimos como este gênero humano, em Marx,
não é dotado de disposições normativas gerais. Por isto, eu dissera que o
gênero do qual o homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai.
Ele não pode constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a
definir a orientação da praxis. Um gênero desprovido de archai, sem
origem nem destino. Esta emancipação que aparece como exteriorização de
um gênero sem espécie definida é, para Marx, a realização mais adequada
da ideia mesma de liberdade, e como tentei defender com vocês guarda
articulações profundas com a noção de negatividade em Hegel. Daí uma
afirmação importante como:

O homem é um ser do gênero, não somente quando prática e


teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante
das coisas, o seu objeto, mas também – e isto é somente uma outra
expressão da mesma coisa – quando se relaciona consigo mesmo
como com o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo

150
257
mesmo como com um ser universal, e por isso livre .

Em uma afirmação como esta vemos que a liberdade se encontra nesta


capacidade do ser humano relacionar-se a si como um ser universal. Mas
lembremos mais uma vez o que significa “universal” neste contexto.
Contrariamente à nossa sensibilidade contemporânea, Marx não pode
pensar nenhuma experiência de efetivação da liberdade que não passe pela
realização de uma certa universalidade. É quando realizamos a
universalidade do gênero que somos livres. Mas esta universalidade não é,
por exemplo, a universalidade dos “direitos universais do homem” com sua
elevação de uma figura histórica do indivíduo à condição de horizonte
insuperável da história. Na verdade, a universalidade de Marx está ligada a
uma certa variabilidade plástica infinita, a uma multilateralidade que seria
própria do humano. Lembremos mais uma vez de uma afirmação maior
sobre esta “antropologia da indeterminação” pressuposta por Marx:

o animal produz apenas sob o domínio da necessidade física


imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade
física, e só produz, primeira e verdadeiramente. em liberdade para
com ela; o animal só reproduz a si mesmo, enquanto o homem
reproduz toda a natureza. No animal, seu produto pertence
imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta
livremente com seu produto. O animal forma apenas segundo a
medida e a necessidade da espécie, enquanto o homem sabe produzir
segundo a medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a
parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isto,
258
segundo as leis da beleza .

Aqui, fica clara a configuração da concepção marxista de atividade livre


como efetivação da emancipação. Por um lado, atividade livre é produzir
para além da normatividade imposta pelo necessidade do corpo físico. Por
outro lado, é produzir para além das determinações diferenciais da espécie.
Por isto, a vida do gênero é vida que se reproduz livre da necessidade
física imediata, que produz segundo a medida não só de qualquer espécie,
mas também de uma espécie qualquer, de uma natureza pensada como
potência livre das formas. É por isto que o ser humano pode formar segundo
as leis da beleza, porque ele encontra em si mesmo a expressão de uma
potência livre das formas que implica sua sensibilidade de maneira
multilateral com a natureza inteira.
Marx sabe que as condições atuais de reprodução social impedem tal

151
atividade se realizar. Por isto, ele precisa desenvolver uma dupla operação.
Primeiro, trata-se de organizar a crítica a este modelo de reprodução social
que impõe sua matriz disciplinar através do trabalho, produzindo apenas um
sofrimento social caracterizado por Marx de “alienação”. Segundo, trata-se
de pensar as condições para a superação de tal alienação através da
possibilidade de uma verdadeira revolução nos modos de reprodução
social. Por isto, a superação da alienação não será apenas moral, estética,
psicológica ou filosófica. Ela será sobretudo política. Ela só se realizará
como emergência de um novo sujeito político capaz de reconfigurar por
completo os modos de produção da realidade social.
Assim, configura-se os dois eixos principais da experiência
intelectual de Marx, a saber, organizar a crítica do capitalismo e
desenvolver uma teoria da revolução baseada na emergência do
proletariado como novo sujeito político. No entanto, percebamos um
aspecto maior: tanto crítica do capitalismo quanto teoria da revolução
dependem de um horizonte normativo definido por uma elaboração
filosófica original a respeito do que anteriormente se entendeu por
“natureza humana”. Ou seja, a crítica social e a praxis política estão, de
certa forma, submetidas a uma crítica da razão.

A crítica do capitalismo

Lembremos mais uma vez da existência de três níveis de crítica


mobilizados por Marx a fim de constituir sua teoria da alienação. São eles:

a) a espoliação do objeto trabalhado,


b) a espoliação do valor do trabalho e
c) a alienação da atividade humana sob a forma do trabalho que visa
a produção do valor.

A primeira crítica diz respeito à relação entre o trabalhador e o produto de


seu trabalho. Este produto não é seu, mas é de um outro que lhe paga, em
troca, um salário pelo tempo trabalhado em sua produção. O produto do
trabalhador é propriedade privada de quem pagou pelo uso de sua força de
trabalho, de quem trocou o produto por um salário que perpetua o
trabalhador em sua condição de pobreza, fazendo deste um “trabalho de
259
mortificação, de auto-sacrifício” . Tal crítica pede uma teoria da justiça
social ligada à reflexão sobre as causas da desigualdade e da miséria
operária. Ela levará Marx a propor a abolição do trabalho assalariado.
A segunda crítica, vimos na aula passada como ela nos leva a uma

152
teoria da mais-valia como descompasso entre o valor de troca do trabalho e
a valorização produzida através do uso da força de trabalho. Tal teoria da
mais-valia está resumida em uma afirmação como:

Mas o trabalho anterior, que está incorporado na força de trabalho, e


o trabalho vivo que ela pode prestar, isto é, seus custos diários de
manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas
completamente distintas. A primeira determina seu valor de troca, a
segunda constitui seu valor de uso. O fato de que meia jornada de
trabalho seja necessária para manter o trabalhador vivo por 24 horas
de modo algum o impede de trabalhar uma jornada inteira. O valor da
força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são duas
grandezas distintas. É essa diferença de valor que o capitalista tem
260
em vista quando compra a força de trabalho .

A espoliação capitalista é inerente ao princípio da ‘troca justa”. Ao


transformar sua força de trabalho em mercadoria o trabalhador não pode
evitar a espoliação que consiste em produzir mais valor do que ele recebe
sob a forma de salário pago por tempo de trabalho. Pois o capitalista paga
tempo abstrato de trabalho e recebe em troca trabalho vivo. Ao transformar
seu trabalho em mercadoria, o trabalhador venderá a possibilidade de usar
sua força por um preço determinado a partir das condições de manutenção e
reprodução da força de trabalho. Este preço não tem medida comum com a
valorização potencial produzida no interior do processo de produção. Daí
porque Marx precisa descrever a composição orgânica do capital a partir
de uma distinção entre capital constante, que não se modifica no interior do
processo de produção e está ligado aos meios de produção, e capital
variável, que se modifica no interior do processo de produção e está ligado
à força de trabalho.
Já a terceira crítica diz respeito à relação entre o trabalhador e sua
atividade compreendida como trabalho. Ela indica que a própria estrutura
do trabalho como processo de produção do valor implica impossibilidade
da atividade humana se colocar como exteriorização de sua
Gattungswesen, de sua essência enquanto gênero ou de seu ser do gênero.
Tópico muito bem desenvolvido por Moishe Postone ao afirmar: “O
trabalho social não é somente o objeto da exploração e dominação, mas é,
ele próprio, o terreno da dominação. A forma não pessoal, abstrata,
‘objetiva’ de dominação característica do capitalismo está aparentemente
261
relacionada à dominação dos indivíduos por seu trabalho social” . Neste
sentido, a proposição de Marx não se resume à critica do trabalho alienado,

153
mas em uma crítica radical da sociedade do trabalho em prol da afirmação
da possibilidade de uma sociedade no interior da qual a atividade humana
não seria mais submetida aos imperativos de produção do valor, sociedade
constituída por associações de sujeitos livres não mais submetidos à
divisão do trabalho e ao embrutecimento pressuposto por um tipo de
atividade funcional, unilateral e reificada.
Este trabalho alienado produz, no entanto, tanto uma forma específica
de sofrimento quanto uma forma de gozo. Insistamos neste ponto: o
capitalismo nunca seria capaz de se impor se fosse apenas uma dinâmica
social produtora de sofrimento. Há uma forma de gozo no capitalismo e é
importante compreende-la se quisermos entender a adesão subjetiva a suas
injunções econômicas. Mesmo antes da crítica libidinal do capitalismo,
Marx compreendeu este ponto. Basta insistirmos em afirmações como:

O capitalista industrial também goza, sem dúvida. De modo algum ele


volta à simplicidade da necessidade, mas o seu gozo é coisa
acessória, repouso, subordinado à produção, e com isto gozo
calculado, e assim ele mesmo econômico, pois ele lança o seu gozo
nos custos do capital, e seu gozo só pode lhe custar tanto, que o que
ele lhe consumiu venha a ser reposto com lucro através da
reprodução do capital. O gozo é assim subordinado ao capital, o
indivíduo que goza ao indivíduo que capitaliza, enquanto antes havia
262
o contrário .

Tais colocações são fundamentais por nos lembrar como o


capitalismo é também a promessa de uma forma de gozo. Uma forma muito
específica, pois gozo contábil, gozo ligado à possibilidade de submissão
dos objetos à abstração geral de uma axiomática, do fluxo contínuo de
reposição com lucro. Se quisermos saber um pouco mais sobre este gozo
subordinado ao capital, deixemos falar a literatura e lembremos desta
passagem de Cosmópolis, de Don DeLillo:

“Propriedade não tem mais ligação alguma com poder, personalidade


e autoridade. Nem com exibicionismo, vulgar ou de bom gosto.
Porque não tem mais peso nem forma. Você mesmo, Eric, pense. O
que você comprou por cento e quatro milhões de dólares? Não foram
dezenas de cômodos, vistas incomparáveis, elevadores privados.
Nem o quarto rotativo nem a cama computadorizada. Nem a piscina
nem o tubarão. O espaço aéreo? Os sensores de controle e o
software? Não, nem os espelhos que dizem como se sente quando

154
olha para eles de manhã. Você gastou esse dinheiro pelo próprio
número em si. Cento e quatro milhões. Foi isso que você comprou. E
263
valeu a pena” .

Sim, Eric, valeu a pena gozar da pura abstração. Gozar desta soberania
simulada construída através da redução de todos os corpos à segurança da
medida que se impõe como única experiência de sentido. Única, porém
pretensamente segura como uma axiomática. Há afetos que só o capitalismo
produz e é deles que o sistema econômico tira sua força, como esse gozo do
cálculo enquanto forma de domínio, da equivalência enquanto controle.
Todos os corpos reduzidos à condição de suportes intercambiáveis de um
processo contínuo de circulação fetichista da equivalência. “Cento e quatro
milhões. Foi isso que você comprou”. Sim, Eric, cada um tem a grandeza
que merece.
Como vemos, a crítica do capitalismo em Marx é, ao mesmo tempo,
crítica da injustiça social implicada nos processos de espoliação
econômica e crítica do modo de constituição de sujeitos, com seus
sofrimentos e suas formas de gozo. Por isto, ela só pode apontar para uma
articulação profunda entre problemas de redistribuição e problemas de
reconhecimento. Esta articulação entre redistribuição e reconhecimento
pede, necessariamente, a possibilidade de uma ação política que aponta não
apenas para a injustiça produzida pelo modo de produção capitalista, mas
também para a patologia social que tal modo de produção perpetua. Por
isto, ela só pode se realizar em uma revolução que seja reinstauração de
formas de vida.

O proletariado

É neste ponto que devemos entender a insistência de Marx em


compreender a emergência de sujeitos políticos revolucionários a partir do
conceito de proletariado. Se vocês me permitirem, gostaria de voltar mais
uma vez a este ponto a fim de insistir na tecnologia política pressuposta por
esta estratégia de Marx.
Lembremos do que realmente significa a emergência do proletariado
como sujeito político. Tal como nosso tempo, o século XIX conheceu uma
sequência impressionante de revoltas, movimentos e insatisfação social
vindos de crises econômicas profundas por todos os lados da Europa. Tal
como agora, as ruas queimaram em sequência. Mineiros da Silésia,
operários ingleses, tecelões franceses: todos eles pararam fábricas,
quebraram máquinas, montaram barricadas, desafiaram a ordem instituída.

155
No entanto, essa multiplicidade de revoltas só se transformou em um
fantasma a assombrar o tempo presente quando todas as ruas queimando
foram vista como a expressão de um só corpo político, um só sujeito em
marcha compacta pelo desabamento de um mundo que teimava em não cair.
Um sujeito político emergiu apenas quando os mineiros deixaram de ser
mineiros, os tecelões deixaram de ser tecelões e se viram como um nome
genérico, a saber, “proletários”, a descrição de quem é totalmente
despossuído, de quem é ninguém. Foi quando a multiplicidade das vozes
apareceu como a expressão da univocidade de um sujeito presente em todos
os lugares, mas com a consciência de sua ausência radical de lugar, que a
revolta deixou de ser apenas revolta. Pois esta força de síntese de outra
ordem que aparece através da univocidade da nomeação era a condição
para que a imaginação política entrasse em operação, permitindo a
emergência de um novo sujeito. De certa forma, é isto que nos falta:
precisamos ser, mais uma vez, proletários.
Ser proletário pode significar, neste contexto, “vincular-se ao que não
tem nome”. Lembremos de Antígona e seu gesto político por excelência, a
saber, sua decisão de enterrar seu irmão, mesmo a despeito do decreto de
Creonte, representante do poder de estado. Não enterrar alguém é a figura
mais clara do apagamento do nome e do lugar. Séculos e séculos tentaram
deslegitimar a natureza política de seu gesto ao dizer que se tratava
simplesmente da insistência nas relações de sangue no interior da família
contra as leis da pólis. Mas seu gesto era político porque ela não falava em
nome de sua condição de irmã, de mulher, de representante dos interesses
da família, de filha de Édipo, de cidadã de Tebas, em nome de seu lugar de
fala. Ela falava em nome do que fora expulso do convívio dos humanos. Por
falar em nome do que não era mais humano, ela podia falar em nome dos
deuses, pois só os deuses podem preservar o que os humanos apagam:

“Mas Zeus não foi o arauto delas [as leis enunciadas por Creonte]
para mim, nem essas leis são as ditadas para os homens pela justiça,
companheira de morada dos deuses subterrâneos; e não me pareceu
que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a
obrigação de transgredir as leis divinas não escritas e imutáveis; não
é de hoje nem de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas
vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram”.

É no que não é de hoje nem de ontem, no que não conhece a lei do


estado atual, que se encontra nossa imaginação política. Lembremos disto:
não basta revolta e crise, não basta análise e crítica. Uma revolta é uma

156
revolta é uma revolta e este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas
cansaço e, por fim, desejo de restauração. A crítica é a crítica é a crítica e
este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas melancolia e, por fim,
derrisão aristocrática. Mas quando a revolta e a crítica são impulsos para a
imaginação política, então não há mais tautologias. Marx acreditava que
esta imaginação política só se realizaria quando começássemos a falar
como proletários.
Perguntemos então de onde vem o bloqueio de nossa imaginação
política e veremos que nossa imaginação está bloqueada porque até a forma
da nossa crítica usa a gramática de quem nos sujeita. Nós falamos a
linguagem da ordem contra a qual nós nos batemos. Desde 2013, subimos à
cena política para dizer, em larga medida: “Eu quero o que é meu”, como se
o problema todo não estivesse exatamente em falar exatamente que eu
também quero a minha parte, eu também quero a minha visibilidade no
regime de visibilidade atual, eu também quero meu lugar na axiomática do
estado atual. No fundo e mais uma vez, o que se vê é apenas indivíduos à
procura da defesa de suas propriedades. Assim, ao fazer das demandas
políticas demandas de auto-realização individual e coletiva (pois neste
ponto não há diferença alguma entre os dois, o coletivo é apenas um
indivíduo ampliado), acabamos por fortalecer uma ordem que afirmará
“como sempre disse, só existem propriedades e possuidores”. Ao
reduzirmos nossas demandas à pressão por reparação fortalecemos aqueles
que tem a institucionalidade que pode nos amparar. Nos dois casos, a
gramática da revolta é a mesma do poder. O que há de diferente é apenas a
demanda para que tal gramática se amplie e seja válida “para mim
também”. Como se, no fundo, todos quisessem ser proprietários do que é “a
sua parte”. Esta foi a maior vitória do neoliberalismo: definir até mesmo
a gramática da nossa revolta. Não é de se admirar que a imaginação
política acabe por se bloquear. Melhor seria se fossemos mais uma vez
proletários, ou seja, aqueles que não são e nunca serão proprietários,
porque procuram realizar a promessa de uma apropriação que não é
possessão, porque eles se orientam por um tempo no qual não iremos mais
nos perguntar sobre o que é nosso.
No interior deste horizonte, não é de se estranhar que a prática
política acabe por se reduzir atualmente, em larga medida, ao bloqueio de
espaços físicos, ao fechamento da circulação, à paralisação. Estas são
manifestações brutas da indignação de quem se sente lesado e esquecido e
calcula a partir do dano necessário a fazer para ser visto. Mas a política
não é apenas exposição da indignação, embora isto também lhe seja
próprio. Ela é, no seu sentido mais profundo, conquista da opinião pública,

157
produção de aglutinações através da emergência de um sujeito dotado de
imaginação política capaz de implicar quaisquer.
Neste horizonte, vale a pena lembrar como o comunismo proposto por
Marx não era um estado proletário, muito menos a projeção de uma utopia.
As injunções de Marx a respeito de um governo pós-revolucionário
(imposto fortemente progressivo e gradual, centralização do crédito nos
bancos do estado, estatização dos meios de comunicação e transporte,
educação gratuita para todas as crianças em escolas públicas, abolição
gradual da distinção entre campo e cidade, entre outros) não podem ser
tomada por horizonte normativo de um governo comunista. Elas eram
apenas as ações necessárias para uma abolição da economia baseada na
propriedade privada sem que isto representasse, imediatamente, a
desregulação de todo o sistema produtivo. Da mesma forma, a ditadura do
proletariado não é a realização do comunismo e sua emergência do que não
tem mais classe. Para além disto, comunismo era o nome de um processo de
derrocada das relações sociais atuais a partir da potencialidade própria ao
advento de um campo comum, uma fala comum. Comunismo era a retomada
da imaginação como motor da criatividade política. Por isto:

O comunismo não é, para nós, um estado/situação (Zustand) que deve


ser implementado, um ideal ao qual a realidade deve se sujeitar. Nós
chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado
264
atual .

A boa questão que fica para nós é: este movimento foi de fato
tentado? Ele foi de fato compreendido?

158
Notas
[←1]
“Die Philosophen haben die Welt nur verschinden interpretiert: es kömmt drauf
an, sie zu verändern” (MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; “Teses sobre
Feuerbach”, In: A ideologia alemã, Civilização Brasileira, p. 29.

159
[←2]
MARCUSE, Herbert; Razão e revolução, Paz e Terra, p. 239

160
[←3]
Lembremos de Marcuse falando sobre Kierkegaard: “A verdade se situa na ação, e
só pode ser experimentada através da ação. A existência do próprio indivíduo é a
única realidade que pode ser efetivamente compreendida e o indivíduo existente,
ele mesmo, é o único sujeito executor desta compreensão” (MARCUSE, Razão e
revolução, Paz e Terra, p. 244)

161
[←4]
Daí uma afirmação como: “[Nos tempos modernos] Não somente está perdida para
ele [o Espírito] sua vida essencial, está também consciente desta perda e da
finitude que é seu conteúdo. [Como o filho pródigo], rejeitando os restos da
comida, confessando sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora exige da
filosofia não tantoo saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela aquela
densidade e substancialidade do ser ” (HEGEL, GWF; Fenomenologia do
Espírito, Petróplis, p. 24

162
[←5]
LÖWITH, Karl; De Hegel à Nietzsche, Gallimard, p. 73

163
[←6]
O que não deixa de ressoar Kant lembrando que as determinações particulares da
sensibilidade só podem aceder à condição de objeto através da aplicação do
esquema transcendental da imaginação como “conceito sensível de um objeto”
(sinnliche Begriff eines Gegenstandes) (KANT, Immanuel, Crítica da razão
pura, Calouste Gulbenkian, A146/ B186)

164
[←7]
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 27

165
[←8]
MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91

166
[←9]
O que Balibar compreendeu bem ao afirmar: “A prática revolucionária da qual nos
fala as “Teses” não deve realizar um programa, um plano de reorganização da
sociedade, ele deve ainda menos depender de uma visão de futuro proposta pelas
teorias filosóficas e sociológicas (como estas dos filantropos do século XVIII e
do início do XIX). Ela deve coincidir com ‘o movimento real que aniquila o estado
de coisas existente’, como Marx não tardará a escrever na Ideologia alemã ao
explicar que se trata da única definição materialista do comunismo” (BALIBAR,
Etienne; La philosophie de Marx, La découverte, 2014, p. 59).

167
[←10]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 59

168
[←11]
KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Calouste Gulbenkian, A XII

169
[←12]
Idem, A XVII

170
[←13]
MARX, Karl; Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel

171
[←14]
Lembremos, por exemplo, de uma afirmação como: “A situação da Alemanha no
final do século passado espelha-se completamente na Crítica da razão prática de
Kant. Enquanto a burguesia francesa se impulsionou, através da mais colossal das
revoluções que a história jamais conheceu, ao poder, e conquistou o continente
europeu, enquanto a burguesia inglesa revolucionou a indústria e submeteu
comercialmente a India e todo o resto do mundo, os impotentes burgueses
alemães alcançaram apenas chegar à ‘boa vontade’” (MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 219)

172
[←15]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 62

173
[←16]
MARX, Karl; O Capital – volume I, op. cit., p. 84

174
[←17]
Como nos lembrará Foucault: “A partir de Adam Smith, o tempo da economia não
será mais este, cíclico, dos empobrecimentos e enriquecimentos, não será
também o tempo do crescimento linear de políticas hábeis que, ao aumentar
levemente sempre as espécies de circulação aceleram a produção mais rápido que
a elevação de preços; ele será o tempo interior de uma organização que cresce
segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o
tempo do capital e do regime de produção” (FOUCAULT, Michel; Les mots et les
choses, Gallimard, p. 238)

175
[←18]
KARATANI, Kojin; Transcritique: on Kant and Marx, MIT Press, p. 5

176
[←19]
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in:
RAJCHMAN, John; The identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67

177
[←20]
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat”
In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84

178
[←21]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo,
p. 50

179
[←22]
Idem, p. 66

180
[←23]
Lembremos que Feuerbach teve que renunciar a seu posto na Universidade de
Erlangen, devido a seus escritos. Ruge perdeu sua cadeira na universidade de Halle.
Bruno Bauer também foi destituído de sua cadeira. Marx fracassa em seu projeto
de conseguir uma cátedra na Universidade de Bonn e ganha sua vida como
jornalista e como amigo de Engels. Schopenhauer se retira à vida privada, da
mesma forma de Nietzsche, ao se afastar da universidade de Bâle. Kierkegaard era
rentista.

181
[←24]
Pois há de se lembrar que: “assim como a massa proletária é fundamentalmente
‘despossuida’ (eigentumlos), ela é fundamentalmente ‘desprovida de ilusões’ a
respeito da realidade (illusionslos), fundamentalmente exterior ao mundo da
ideologia cujas abstrações e representações ideais da relação social não existem
para ela” (BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, op. cit., p. 101)

182
[←25]
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 32

183
[←26]
LÖWITH, Karl; De Hegel à Nietzsche, Paris: Gallimard, p. 152

184
[←27]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A sagrada família, p. 144

185
[←28]
Idem, p. 149

186
[←29]
EPICURO; “Antologia de textos”, In: Os Pensadores vol. V, Abril Cultural: São
Paulo, 1973, p. 22

187
[←30]
Idem,

188
[←31]
“Marx mostra que Demócrito conhecia somente uma necessidade estritamente
mecânica e, portanto, negava o acaso, ao passo que a filosofia epicuriana continha
os elementos iniciais de uma concepção dialética do acaso, que abria ao homem o
caminho para a liberdade. Igualmente nítida era a contraposição na questão do
tempo. Na filosofia natural de Demócrito, o tempo não tinha nenhuma
significação; para Epicuro, ao contrário, o tempo era ‘a mudança do finito na
medida em que é posto como alteração’; era ‘tanto a forma real, que separa o
fenômeno da essência e põe o fenômeno como fenômeno, quanto o que reconduz
o fenômeno à essência’ (Diferença, p. 42)” (LUKACS, Gyorg; O jovem Marx e
outros escritos de filosofia, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2009, p. 129)

189
[←32]
LUCRECIO; Da natureza, II, 294

190
[←33]
“Quando os corpos se deslocam verticalmente para baixo através do vazio, devido
ao seu próprio peso, se desviam um pouco do seu trajecto, num momento não
determinado e num lugar incerto, apenas o suficiente para se dizer que houve uma
oscilação no seu percurso. Porque se não se desviassem, tudo cairia para baixo
como as gotas de chuva, através do vazio profundo, e não se produziriam entre eles
nem choques nem golpes, e assim a natureza nunca teria criado coisa alguma”
(LUCRECIO, idem, II, 216-224)

191
[←34]
Idem, II, 255-260

192
[←35]
Idem, I, 464

193
[←36]
MARX, Karl; Differenz der democritischen und epikureischen
Naturphilosophie, p. 296

194
[←37]
Idem, p. 308

195
[←38]
MARX, Karl; Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel

196
[←39]
Lembremos, por exemplo, de uma afirmação como: “A situação da Alemanha no
final do século passado espelha-se completamente na Crítica da razão prática de
Kant. Enquanto a burguesia francesa se impulsionou, através da mais colossal das
revoluções que a história jamais conheceu, ao poder, e conquistou o continente
europeu, enquanto a burguesia inglesa revolucionou a indústria e submeteu
comercialmente a India e todo o resto do mundo, os impotentes burgueses
alemães alcançaram apenas chegar à ‘boa vontade’” (MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 219)

197
[←40]
HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt: Suhrkamp,
p. 24

198
[←41]
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 38

199
[←42]
Idem, p. 36

200
[←43]
Idem, p. 45

201
[←44]
Idem, p. 59

202
[←45]
Idem, p. 40

203
[←46]
Idem, p. 50

204
[←47]
Idem, p. 50

205
[←48]
Idem, par. 182

206
[←49]
Idem, p. 68

207
[←50]
Idem, p. 42

208
[←51]
Idem, p. 123

209
[←52]
HEGEL, G.W.F.; Princípios da Filosofia do direito, par. 182

210
[←53]
Idem, par. 183

211
[←54]
HEGEL, Princípios, par. 243. Por esta e por outras razões, devemos concordar
com uma afirmação central de Shlomo Avineri como: “Hegel aceita a visão de
Smith para quem, por trás do choque conflitual e desprovido de sentido dos
interesses egoístas na sociedade civil, um propósito mais elevado pode ser
discernido; mas ele não concorda com a assunção escondida de que todos na
sociedade estão potencialmente bem acolhidos” (AVINERI, Shlomo; Hegel’s
theory of modern state, Cambridge University Press, 1973, p. 148)

212
[←55]
MARX, Karl; Crítica à filosofia do direito de Hegel, p. 68

213
[←56]
Idem, par. 257

214
[←57]
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 123

215
[←58]
Idem, p. 42

216
[←59]
HEGEL, G.W.F.; Filosofia do direito, par. 264

217
[←60]
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, p. 34

218
[←61]
Idem, p. 38

219
[←62]
Idem, p. 38

220
[←63]
Idem, p. 41

221
[←64]
Idem, p. 49

222
[←65]
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.

223
[←66]
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]

224
[←67]
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para
construir um espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser
sem espécie definida” adianta, do ponto de vista ontológico, a “classe dos
desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado, como veremos de
maneira mais articulada na terceira parte deste livro.

225
[←68]
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p.
35

226
[←69]
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido,
devemos assumir a crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em
sua alienação da substância a separação da substância de si mesmo. Essa
sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da desalienação
na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que
pôs o que aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj;
Menos de que nada, op. cit., p. 101).

227
[←70]
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em
SAFATLE, Vladimir: “Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três
estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp, 2013

228
[←71]
Tópico muito bem desenvolvido por Moishe Postone ao afirmar: “O trabalho
social não é somente o objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio, o
terreno da dominação. A forma não pessoal, abstrata, ‘objetiva’ de dominação
carcterística do capitalismo está aparentemente relacionada à dominação dos
indivíduos por seu trabalho social” (POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e
dominação social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150)

229
[←72]
MARX, Karl; Manuscritos. …, p. 94

230
[←73]
Idem, p. 80

231
[←74]
MARX, Karl; Manuscritos…, pp. 26-27

232
[←75]
Idem, p. 28

233
[←76]
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31

234
[←77]
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 30

235
[←78]
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.
61

236
[←79]
Cf. POSTONE, idem, p. 151

237
[←80]
Idem, p. 99

238
[←81]
MARX, Karl; O Capital, vol. I, São Paulo: Boitempo, 2013, p. 327

239
[←82]
Ver, a este respeito, Habermas, 1976, p. 60.

240
[←83]
HABERMAS, Jürgen; Connaissance et intérêt, Paris: Gallimard, 1976, p. 60

241
[←84]
MARX, Karl; Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 43

242
[←85]
Por exemplo: “o processo de trabalho é inicialmente um processo entre o homem
e a natureza, um processo no qual, através de sua própria ação, ele media, regula e
controla seu metabolismo com a natureza” (MARX, Karl; Das Kapital I, op.cit., p.
129)

243
[←86]
SCHMIDT, Alfred; The concept of nature in Marx, Londres: Verso, 2014, p. 79

244
[←87]
MARX, idem, p. 129

245
[←88]
CANGUILHEM, Georges; Etudes d’histoire et philosophie des sciences, Paris:
Vrin, 1983, p. 208

246
[←89]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 84

247
[←90]
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]

248
[←91]
Impossível não ler de maneira dialética a compreensão precisa de Agamben a
respeito desta dinâmica entre potência e ato: “Se uma potência de não ser pertence
originalmente a toda potência, será verdadeiramente potente só quem, no
momento da passagem ao ato, não anular simplesmente sua potência de não, nem
deixá-la para trás em relação ao ato, mas a fizer passar integralmente no ato como
tal, isto é, poderá não-não passar ao ato”, pois “a passagem ao ato não anula nem
esgota a potência, mas esta se conserva no ato como tal e, particularmente em sua
forma eminente de potência de não (ser ou fazer)” (AGAMBEM, Giorgio; A
potência do pensamento: ensaios e conferências, Belo Horizonte: Autêntica,
2015, p. 253).

249
[←92]
HEGEL, G.W. F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132

250
[←93]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 83

251
[←94]
LUKÀCS, Gyorg; História e consciência de classe, op. cit., p. 171

252
[←95]
Idem, p. 317

253
[←96]
Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que cem
táleres reais não contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis,
ver FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, op cit.

254
[←97]
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 81

255
[←98]
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 81

256
[←99]
MARX, Karl; Manuscritos …, pp. 83-84

257
[←100]
Idem, p. 84

258
[←101]
SCHMIDT, Alfred; The concept of nature in Marx, Londres: Verso, 2014, p. 79

259
[←102]
MARX, Karl; Grundrisse, p. 129

260
[←103]
MARX, Karl, Manuscritos …, p. 85

261
[←104]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 84

262
[←105]
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]

263
[←106]
AGAMBEN, Giorgio; Profanações, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 16

264
[←107]
Impossível não lembrar, neste contexto, do que um atento leitor de Marx, a saber,
Theodor Adorno, afirmava a respeito da produção do objeto estético: “A
possibilidade da arte não se transformar em uma jogo gratuito ou em uma
decoração depende da medida de suas construções e montagens serem, ao mesmo
tempo, desmontagens, integrando, ao desorganizá-los, os elementos da realidade
que associam-se livremente em algo diferente” (ADORNO, Äestetische Theorie,
Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 324). Pois a diferença entre a ordem reificada
presente na realidade social e a instauração formal que toda verdadeira obra de arte
é capaz de produzir está no fato de apenas a obra de arte reconhecer a tensão entre
os princípios formais e o material que ela procura submeter. Um objeto estético
não é apenas a realização de um plano construtivo que se apropria dos materiais à
sua disposição. Ele é também a desorganização de tal plano a partir da resistência
dos materiais, a cena no interior da qual o plano construtivo encontra seu limite.
Uma obra de arte totalmente construída, incapaz de levar ao paroxismo a tensão
entre forma e material, seria a monstruosidade da simples exemplificação de um
estilo. Esta é uma maneira importante de lembrar que, na produção estética, o
sujeito encontra o fracasso da objetivação de sua intenção primeira, condição
constitutiva para a própria realização da obra de arte.

265
[←108]
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV

266
[←109]
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114

267
[←110]
Idem, p. 103

268
[←111]
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104

269
[←112]
Idem, p, 107

270
[←113]
MARX, Karl; idem, p. 108

271
[←114]
Idem, p. 110

272
[←115]
Idem, p. 112

273
[←116]
Idem, p. 112

274
[←117]
Lembremos de Marcuse falando sobre Kierkegaard: “A verdade se situa na ação, e
só pode ser experimentada através da ação. A existência do próprio indivíduo é a
única realidade que pode ser efetivamente compreendida e o indivíduo existente,
ele mesmo, é o único sujeito executor desta compreensão” (MARCUSE, Razão e
revolução, Paz e Terra, p. 244)

275
[←118]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 124

276
[←119]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A sagrada família, p. 74

277
[←120]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 123

278
[←121]
HEGEL, Fenomenologia I, p. 36

279
[←122]
HEGEL, Enciclopédia, par. 415

280
[←123]
HEGEL, Fenomenologia I, p. 35-36

281
[←124]
HIPPOLYTE, Gênese e estrutura, pp. 56-57

282
[←125]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 129

283
[←126]
Idem, p. 129

284
[←127]
Idem, p. 130

285
[←128]
MARX, Karl, Manuscritos, p. 131

286
[←129]
MARCUSE, Herbert; Materialismo histórico e existência, p. 122

287
[←130]
SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem,

288
[←131]
FAUSTO, Ruy; Marx: lógica e política – volume III, p. 157

289
[←132]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 148 [tradução completamente modificada, já que o
original é imprestável]

290
[←133]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A Ideologia alemã, p. 37

291
[←134]
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in:
RAJCHMAN, John; The identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67

292
[←135]
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat”
In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84

293
[←136]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo,
p. 50

294
[←137]
Idem, p. 66

295
[←138]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98

296
[←139]
Idem, Manifesto Comunista, p. 43

297
[←140]
Idem, p. 45

298
[←141]
Idem, p. 51

299
[←142]
Idem, A ideologia alemã, p. 58

300
[←143]
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58

301
[←144]
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-
bourprol.htm

302
[←145]
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p.
91

303
[←146]
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the
lumpenproletariat and the proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31
Number 3 August 2002: 434–460

304
[←147]
Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity:
thinking the lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e
LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit.

305
[←148]
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91

306
[←149]
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56

307
[←150]
MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 58

308
[←151]
Lembremos de uma boa síntese feita por Postone: “O objetivo da produção no
capitalismo não são os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da
atividade do trabalho sobre o produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-
valor. Mas, valor é um objetivo puramente quantitativo, não existe diferença
qualitativa entre o valor do trigo e das armas. Valor é puramente quantitativo
porque, como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a objetivação do
trabalho abstrato – do trabalho como meio objetivo de aquisição de bens que não
produziu” (POSTONE, Moishe; idem, p. 210)

309
[←152]
A respeito deste trecho de Marx, Fausto dirá que “a mobilidade do trabalhador não
realiza o universal que é ao mesmo tempo singular, o universal não é outra coisa
aqui que uma sucessão de singularidades ou de particularidades” (FAUSTO, Ruy;
Marx: logique et politique, Paris: Publisud, 1986, p. 114). De fato, mas
poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinação deve ter uma
universalidade que é ao mesmo tempo singular. Em que condições a universalidade
é posta no campo das singularidades? Insistiria que a universalidade que se
singulariza implica, neste caso, recusa a determinar o singular como uma
determinação completa, sendo que a incompletude de sua determinação é forma de
indicar a integração do indeterminado enquanto seu momento próprio. Neste
sentido, é verdade que tal determinação só é incompleta para o entendimento, mas
seu gênero de posição nada tem a ver com as determinações já determinadas como
possíveis. Tentarei indicar o desdobramento deste tempo através de certa leitura
do que podemos entender por “vida do gênero” em Marx.

310
[←153]
MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98

311
[←154]
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo:
Boitempo, 2005, p. 156

312
[←155]
Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu
SAFATLE, Vladimir; Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do
reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes, 2012.

313
[←156]
BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie
philosophique, Paris: PUF, 2011, p. 260. Trata-se de uma ideia presente também
em Jacques Rancière, para quem: “os proletários não são nem os trabalhadores
manuais nem as classes trabalhadoras. Eles são a classe dos não-contados, que só
existe na própria declaração através da qual eles se contam a si mesmos como os
que não são contados” (RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et
philosophie, Paris: Galilée, 1995, p. 63).

314
[←157]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50

315
[←158]
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis,
1992, p. 33

316
[←159]
Tal articulação entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma
larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a “self-
ownership” como atributo fundamental da pessoa (a este respeito, ver, entre outros
COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge University
Press, 1995). Embora este seja um debate de várias matizes, é certo que a tradição
dialética de Hegel e Marx tende a lê-lo da maneira esboçada acima.

317
[←160]
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.

318
[←161]
Que esta força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado tenha
ganhado evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière,
isto demonstra como algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de
sujeito alcançou a política através de ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal
descentramento tem sua matriz na noção de “negatividade” própria ao sujeito
hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de
sujeito acaba por voltar à cena através da influência surda em operação nos textos
de ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência, a saber, Louis Althusser.

319
[←162]
RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée,
1995, p. 34

320
[←163]
Como nos lembra LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit., p. 308

321
[←164]
Idem, p. 48

322
[←165]
Idem, p. 49

323
[←166]
Idem, p. 219

324
[←167]
idem, p. 260

325
[←168]
MARX e ENGELS, A ideologia alemã, p. 41

326
[←169]
idem

327
[←170]
Idem, p. 48

328
[←171]
idem, p. 54

329
[←172]
Idem, p. 71

330
[←173]
KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Calouste Gulbenkian, A XII

331
[←174]
Idem, A XVII

332
[←175]
Idem, p. 48

333
[←176]
Como bem viu Paul Ricoeur: “o conceito de ideologia que Marx utiliza no texto se
opõe não à ciência, mas à realidade (…) Em A ideologia alemã, o ideológico é o
imaginário enquanto oposto ao real. Por conseguinte, a definição dfo conceito de
ideologia depende daquilo que é a realidade – classe ou indivíduo – com a qual ela
contrasta” (RICOEUR, Paul; Ideologia e utopia, p. 93)

334
[←177]
Idem, p. 27

335
[←178]
MARX, Karl; Grundrisse, p. 54

336
[←179]
ENGELS, Odilo; GÜNTHER, Horst, MEIER, Christian e KOSELLECK, Reinhart;
O conceito de história, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 41

337
[←180]
Como dirá Koselleck: “Assim, ao longo de cerca de 2000 anos, a história teve o
papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer
em grande erro” (KOSELLECK, Reinherdt; Futuro Passado, Rio do Janeiro:
Contraponto, 2006, p. 42)

338
[←181]
Idem, p. 43

339
[←182]
ENGELS e alli, idem, p. 122

340
[←183]
KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado: contribuição á semântica dos tempos
históricos, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 54

341
[←184]
Idem, p. 100

342
[←185]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto comunista, p. 35

343
[←186]
MARX, Karl; Grundrisse, p. 47

344
[←187]
MARX, Karl; A ideologia alemã, p. 102

345
[←188]
MARX, Karl; Miséria da filosofia, p. 177

346
[←189]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, p. 96

347
[←190]
MARX, Karl; The British Rule in India, New York Tribune, 1853

348
[←191]
Idem

349
[←192]
Idem, p. 102

350
[←193]
Idem, p. 95

351
[←194]
KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado, p. 24

352
[←195]
Idem, p. 37

353
[←196]
Idem, p. 69

354
[←197]
LEFEVRE, Georges; La grande peur de 1789, Paris: Armand Colin, 1970

355
[←198]
HEGEL, G.W.F.: Fenomenologia do Espírito

356
[←199]
MARX, Karl; Lutas de classe na França, p. 37

357
[←200]
MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 25

358
[←201]
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 242

359
[←202]
Idem, pp. 55-56

360
[←203]
Idem, p. 27

361
[←204]
SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Pensée politique en temps inactuels, p. 64

362
[←205]
BALIBAR, Etienne; “Concepts fondamentaux du matérialisme historique”, In:
ALTHUSSER, Louis (org.); Lire le Capital, p. 424

363
[←206]
MARX, Karl; 18 de brumário, p. 28

364
[←207]
BENJAMIN, Walter; Sobre o conceito de história, p. 232

365
[←208]
idem, p. 231

366
[←209]
MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 30

367
[←210]
Idem, p. 35

368
[←211]
LÖWY, Michael; A teoria da revolução do jovem Marx, p. 160

369
[←212]
MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, p. 39

370
[←213]
Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie
philosophique, p. 364

371
[←214]
BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79

372
[←215]
MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 42

373
[←216]
MARX, Karl; O 18 do brumário, p. 35

374
[←217]
Idem, pp. 25-26

375
[←218]
BADIOU, Alain; Logique des mondes, p. 74

376
[←219]
Idem, p. 27

377
[←220]
MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 80

378
[←221]
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91

379
[←222]
Idem, p. 150

380
[←223]
ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, p. 384

381
[←224]
Idem, p. 154

382
[←225]
MARX, Karl; O Capital, p. 85

383
[←226]
Termo que vem do latim niger (negro) e que designava a região africana, povoada
por negros, entre a bacia do Nilo superior e o Oceano Atlântico.

384
[←227]
DE BROSSES, Charles, Du culte des dieux fétiches ..., op. cit., p. 15

385
[←228]
IACONO, Alfonso; Le fétichisme: histoire d’um concept, Paris : PUF, 1992, p. 51

386
[←229]
A este respeito, ver AGAMBEN, Giorgio; Estâncias, Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2007

387
[←230]
DE BROSSES, idem, p. 95

388
[←231]
Cf. DAVID, Michèle, Lettres inédites de Diderot et de Hume écrites de 1755 à
1763 au président de Brosses, In : Revue Philosophique, n. 2, abril-junho 1966.

389
[←232]
Sobre a relação Comte-De Brosses, ver Idem, La notion de fétichisme chez
Auguste comte et l’ oeuvre du Président De Brosses “Origines des dieux
fétiches », In : Revue d’ histoire des réligions, vol, 171, n. 2, 1967, pp. 207-221.
Sobre a noçao de fetichismo em Comte, ver CANGUILHEM, Georges ; Histoire
des réligions et histoire des sciences dans la théorie du fétichisme d’ Auguste
Comte, In : Etudes d´histoire et philosophie des sciences, Paris : Vrin, 2002

390
[←233]
A psicologia social continuará, por muito tempo, a definir o pensamento irracional
como aquele preso às amarras da projeção e da incapacidade de operar com
abstrações. Ver, por exemplo, a maneira com que Gustave Le Bon definia os
móbiles da psicologia das massas, no final do século XIX, em LE BON, Gustave;
Psychologie des foules, Paris; PUF, 1947

391
[←234]
DE BROSSES, ibidem, p. 101

392
[←235]
IACONO, ibidem, p. 54

393
[←236]
No entanto, notemos que o mais correto seria falar não em incapacidade de
abstração, mas em naturalização de processos de abstração feitos de maneira
inconsciente. O “primitivo” que eleva o dente de leão à condição de fetiche
naturaliza a força enquanto atributo próprio à totalidade conceitualizada do animal.
Ele toma, assim, a parte pelo todo.

394
[←237]
DE BROSSES, ibidem, p. 103

395
[←238]
idem, p. 134

396
[←239]
Ver BÖHME, Hartmut; Fetichismus und Kultur, op. cit., pp. 311-315.

397
[←240]
MARX, Karl; O capital ...

398
[←241]
Idem, p. 114

399
[←242]
MARX, Karl; Para uma crítica da economia política, p. 40

400
[←243]
AGAMBEN, Giorgio; Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 71.

401
[←244]
Sobre o conceito de trabalho no jovem Marx, ver, por exemplo, HABERMAS;
Jürgen; Conhecimento e interesse, Rio de Janeiro: Zahar, 1982

402
[←245]
STALLYBRASS, Peter; O casaco de Marx : roupas, memória, dor, Belo
Horizonte : Autêntica, 2008, p. 45

403
[←246]
MARX, Karl; Para uma crítica da economia política, p. 33

404
[←247]
MARX, Karl; O Capital, p. 116

405
[←248]
De fato, a leitura que proponho não segue de maneira estrita a divisão entre a
“antropologia” própria às temáticas da alienação do trabalho no jovem Marx e o
“estruturalismo” das temáticas do fetichismo no Marx de maturidade. Divisão que
ficou canonizada em ALTHUSSER, Louis; Lire le Capital, Paris : PUF, 1996. Pois
seguir de maneira estrita tal divisão implica perder a capacidade de compreender
como o fetichismo da mercadoria é também: “uma forma alienada de vínculo
afetivo a um objeto do desejo” (BÖHME, Hartmut; ibidem, p. 315)

406
[←249]
FAUSTO, Ruy; Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista
como circulação simples, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 168

407
[←250]
MARX, Karl; O capital, p. 152

408
[←251]
LUKÁCS, Gyorg; História e consciência de classe: estudos sobre a dialética
marxista, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 200. Atualmente, Axel Honneth
procurou recuperar o conceito de reificação insistindo em sua significação de
“esquecimento de reconhecimento”, ou seja, de bloqueio do reconhecimento em
sujeitos devido à adoção de uma atitude objetivante em relação a si mesmo e ao
mundo social (ver HONNETH, Axel; Verdinglichung : Eine
annerkenungtheoretische Studie, Frankfurt : Suhrkamp, 2005)

409
[←252]
Lembremos da clássica distinção de Weber sobre a ação social: “a ação social,
como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional referente a fins: por
expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras
pessoas, utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’ para alcançar
fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de
modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor – ético,
estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a
determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de
modo afetivo, especialmente emocional, por afetos ou estados emocionais atuais;
4) de modo tradicional, por costume arraigado” (WEBER, Max; Economia e
sociedade – vol. 1, Brasília : Editora da UnB, 1994, p. 15

410
[←253]
LUKÁCS, ibidem, p. 194

411
[←254]
Idem, p. 201

412
[←255]
Idem, p. 203. Em O nascimento da biopolítica, Michel Foucault lê a noção de
homo oeconomicus pressuposta pelo neo-liberalismo norte-americano, assim
como sua noção de “capital humano”, como não dependendo da generalização da
estrutura da forma-mercadoria, mas da “forma-empresa”. Ele avalia a maneira que
todos os processos sociais do indivíduo, da formação à relação familiar, serão
paulatinamente avaliados a partir de uma lógica de investimento própria à empresa.
O que o leva a afirmar que: “O homo oeconomicus é um empresário, e o
empresário de si mesmo” (FOUCAULT, O nascimento da biopolítica, São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p. 311). Nestes dois modelos (forma-mercadoria e forma-
empresa) vemos o desdobramento das conseqüências da generalização do mesmo
processo de racionalização social que Lukács tinha em vista.

413
[←256]
Idem, p. 205

414
[←257]
MARX, Karl; Manuscritos …, pp. 83-84

415
[←258]
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad.
modificada]

416
[←259]
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 81

417
[←260]
MARX; O Capital, p. 270

418
[←261]
POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação social, São Paulo: Boitempo,
2014, p. 150

419
[←262]
MARX, Karl; Manuscritos, p. 148 [tradução completamente modificada, já que o
original é imprestável]

420
[←263]
Idem, p. 80

421
[←264]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 59

422
Índice
Folha de Rosto 2
Aula 1 3
Aula 2 18
Aula 3 30
Aula 4 43
Aula 5 55
Aula 6 65
Aula 7 77
Aula 8 90
Aula 9 100
Aula 10 111
Aula 11 123
Aula 12 135
Aula 13 146
Última aula 147
Notas 159

423

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