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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

Roselaine Navarro B. da Silva

O QUE É TRABALHO EM MARX?.

Trabalho de Conclusão da Disciplina: Marx: a


Crítica da Economia Política (Tópicos Especiais
em Teoria Social – SSM 736), ministrada pelo
Prof. Dr. José Paulo Neto.
1

Rio de Janeiro - RJ
O QUE É TRABALHO EM MARX?

Roselaine Navarro B. da Silva1

1. Introdução.

O estabelecimento da produção sob a forma capitalista trouxe com ela a

‘determinação’ do trabalho enquanto fonte geradora de riqueza 2. É esta uma afirmativa

de Adam Smith já nos primeiros momentos de sua obra, “A Riqueza das Nações”. “O

trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente lhe fornece todos os

bens necessários e os confortos materiais que consome anualmente. O mencionado

fundo consiste sempre na produção imediata do referido trabalho ou naquilo que com

essa produção é comprado de outras nações3.”

Por conseqüência, seria possível afirmar que quaisquer modificações ocorridas

no processo de produção que conferissem ao trabalho um aumento de produtividade,

seriam benéficas do ponto de vista social, pois resultariam numa ampliação da produção

material (produção de mercadorias em geral) e, ‘automaticamente’ num atendimento

mais amplo das demandas sociais. Em outras palavras, se teria um aumento no volume

da riqueza.

Ainda que de forma simplificada (pois se pressupôs no raciocínio precedente o

funcionamento da economia de forma ideal), este deveria ser um quadro bastante

próximo da realidade contemporânea, haja vista ser ela a prova visível da elevação da

produtividade alcançada pelo trabalho. Não foi o que se verificou ainda na primeira

1
Doutoranda em História Social na Universidade Federal Fluminense, e-mail: roselainenbs@gmail.com.
2
Para Smith, a riqueza se expressa sob a forma de mercadorias (unidade de valor de uso e valor de troca).
Neste sentido, quanto maior a produção do trabalho, maior a produção de mercadorias e maior a
possibilidade de satisfação dos indivíduos que integram a economia nacional.
3
(SMITH, A. 1996, p. 59)
2

metade do século XIX, no país onde primeiro se desenvolveu a produção capitalista – a

Inglaterra. Não é o que ocorre contemporaneamente.

Quando Marx redigiu os manuscritos econômicos filosóficos de 1844 ele já

afirmava que “o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,

quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão 4.” Atualmente, o mesmo

pode ser atestado pelos que minimamente enxergam o mundo real, através da simples

observação cotidiana.

Transcorridos já mais de dois séculos desde que veio à tona a obra de Smith,

cujo objetivo era o de ‘desvendar a causa das Riquezas das Nações’ e a partir daí

elaborar uma teoria do crescimento econômico, continua vigente o modo de produção

social considerado por ele como o estágio de maior desenvolvimento da humanidade,

especialmente no que se refere à produção material. De uma forma geral, nele se

encontram as seguintes características: 1) os principais elementos que compõem o

processo de produção (trabalho e recursos objetivos de produção5) estão separados e são

“propriedade” de seus detentores na qualidade de mercadoria; 2) os indivíduos se

relacionam na condição de “possuidores de mercadorias 6”; 3) os meios necessários para

a manutenção do conjunto da população, o que inclui os bens de subsistência e os

próprios meios de produção objetivos, enfim, produto social “se produz como

mercadoria7”.

Neste sentido, considerando o fato de que os teóricos burgueses integrantes da

vertente clássica identificaram o trabalho como fonte de riqueza, o que atesta a sua

essencialidade como elemento constitutivo do processo de produção capitalista e; de

4
(MARX, K. 2004, p. 80)
5
A definição dos meios materiais de produção traz aqui a definição constante da obra de Marx. Com base
nesta, os meios materiais de produção se dividem em: 1) os materiais sobre o qual o trabalho se aplica e;
2) os meios de trabalho, ou seja, os instrumentos que o produtor direto interpõe entre si o material a ser
transformado pela ação do seu trabalho.
6
(MARX, K. 2004, p. 41)
7
Idem
3

outro lado, a defesa que Marx faz em relação à importância do mesmo, colocando-o

como categoria fundamental em todos os modos de produção sociais surgidos ao longo

da história, a discussão que persiste já há algumas décadas, sobre a negação do trabalho

enquanto categoria central no capitalismo contemporâneo é no mínimo instigante, pois

abre caminho para (in)validar tanto o principal referencial crítico do capitalismo – o

marxismo, quanto um dos principais pilares teóricos da economia burguesa e,

consequentemente, outras teorias que se ergueram a partir dela, tal como a marginalista

ou neoclássica8.

De uma forma geral, os que atestam a perda da centralidade do trabalho, o

fazem assentados no fatalismo tecnológico, na chamada ‘crise do trabalho

formal/assalariado9’ e ainda, no crescimento do trabalho imaterial frente ao material,

dentre outras hipóteses justificadoras10. O entendimento de tais posicionamentos

teóricos é fundamental para a discussão desta pesquisa, no entanto, sua discussão será

postergada para um segundo momento. Inicialmente parece ser pertinente apreender a

significância da própria categoria que está sendo questionada, ou seja, o trabalho.

É neste sentido que a primeira questão que se coloca é “o que é trabalho?”,

mais especificamente, “o que é o trabalho em Marx?”. A necessidade de buscar tal

entendimento, a partir do referencial marxista se justifica tanto do ponto de vista

ideológico, que norteia a presente pesquisa; quanto pela defesa que Marx efetua em

relação à essencialidade do trabalho a todos os modos de produção, ou seja, para ele a

centralidade da referida categoria abarca inclusive e fundamentalmente o modo

8
A teoria marginalista ou neoclássica apreende a utilidade marginal como sendo a essência do valor. Sob
esta teoria, a perda da centralidade do trabalho implicaria portanto na ausência de utilidade da mercadoria
força de trabalho.
9
Em relação ao trabalho assalariado propriamente dito é importante destacar que o termo não se reduz ao
trabalho formal, com carteira de trabalho, etc. Há que se observar que contemporaneamente se
evidenciam novas formas de assalariamento que não devem ser desconsideradas. Dentre os autores que
tem se proposto a discutir esta questão é possível encontrar em Ricardo Antunes uma referência
importante.
10
GORZ,A. e KURZ.R., dentre outros, afirmam a perda da centralidade do trabalho no capitalismo
contemporâneo.
4

capitalista de produção, mas não se restringe a ele; e ainda, pelo fato de que ao se tratar

da referida categoria, tem-se em Marx a reafirmação da teoria do valor trabalho,

construída pelos teóricos da economia burguesa, dentre os quais Adam Smith e David

Ricardo. Portanto, quando se fala do trabalho enquanto fonte criadora de valor 11

(riqueza) há, dentro de certos limites, concordância entre os mencionados autores e

Marx.

1.1. O que é o Trabalho nas Formações Econômicas Pré-Capitalistas?

Para buscar a significância do trabalho a partir do referencial marxista é

importante, primeiramente, apreender o método de investigação de Marx. O seu objeto é

o modo capitalista de produção e entendê-lo exige primeiramente identificar as

categorias essenciais e mais simples que o integram (aquelas que tratam da reprodução

da própria vida humana), quais sejam, o trabalho (fornecido pelo homem) e os meios

objetivos necessários à produção (fornecidos fundamentalmente pela natureza aos

homens12). Como se verifica, são eles comuns a todos os modos de produção que

estiveram presentes no decorrer da história humana, pois que “a vida humana sempre se

baseou em algum tipo de produção – produção social – cujas relações são, exatamente,

o que chamamos de relações econômicas13” e em todas estas “o sujeito (a humanidade)

e o objeto (a natureza) são os mesmos14”.

Sendo assim, extrair do que é comum a todos os modelos sociais de produção,

aquilo que lhes é incomum, possibilita a apreensão do desenvolvimento que um


11
(MARX, K. 2004, ps. 79 -90) Embora Marx entenda o trabalho como fonte geradora de valor e, por
conseguinte, de riqueza, ele ressalta que sobre as bases de produção capitalistas ele só garante àquele que
o executa, o necessário para a subsistência (é o que se verifica quando a relação do produtor direta com os
meios materiais de produção não é a de propriedade). Em tais termos, o trabalho resulta em um elemento
de empobrecimento do gênero humano, pois que torna o homem um ser que busca apenas à subsistência,
que é consciente porque trabalha.
12
(MARX, K. 2006). Os meios materiais de produção são de uma forma geral fornecidos pela natureza,
no entanto, em cada modelo social tem-se uma forma específica de relacionamento entre o produtor direto
– o trabalhador – e esses meios.
13
(Idem, p. 82)
14
(ROSDOLSKY. R. 2001, p. 78)
5

apresenta em relação ao outro. Ou seja, visualizar concretamente o momento presente

(ou o modo de produção atual), sabendo-o como a síntese das contradições surgidas no

passado (no modo de produção precedente). É neste sentido que se faz necessário para o

entendimento real, a “reconstrução progressiva do concreto a partir de suas

determinações abstratas mais simples”, e por isso, “o método cientificamente correto na

economia política deve elevar-se a partir do simples – trabalho, divisão do trabalho,

necessidade, valor de troca – até o Estado, o comércio entre as nações e o mercado

mundial”, para poder examinar o desenvolvimento do modo de produção capitalista

como uma totalidade orgânica15.”

Tendo identificado o trabalho como uma categoria econômica presente nos

mais diversos momentos históricos (ainda que sob diferentes determinações), Marx

analisa a sua significância dentro do modelo de produção considerado pelos teóricos

burgueses como ideal e definitivo, (do ponto de vista daquele que o detém

intrinsecamente - trabalhador e segundo a percepção daquele que o detém

provisoriamente – o capitalista); e também nas formações econômicas que precederam a

capitalista. Por meio de tal análise, ele o considera como categoria essencial, portanto,

central e, ao mesmo tempo, evidencia os pontos comuns e incomuns que assim a

definem em cada modelo social16.

O capitalismo e suas relações sociais de produção são, portanto, uma síntese

de relações sociais anteriores que entraram em contradição, ou seja, “o fato do

trabalhador encontrar as condições objetivas de seu trabalho como algo separado dele,

como capital, e o fato do capitalista encontrar os trabalhadores carentes de

15
(Idem, p. 39)
16
De uma forma geral as formas pré-capitalistas de produção conferem ao trabalho a essencialidade
enquanto produtor de valor de uso. Sob o capitalismo (apesar de toda a discussão acerca da perda da
centralidade do trabalho) a postura defendida na pesquisa em questão é de que a essencialidade do
trabalho enquanto valor de uso persiste (ainda que relegada a um plano secundário), pois que o se mostra
como fim é a produção de mercadorias, e nesta, a importância recai sobre o trabalho na condição de
trabalho humano abstrato em geral.
6

propriedade”, retrata a “origem extra-econômica da propriedade, simplesmente

significa a gênese histórica da economia burguesa, das formas de produção a que as

categorias da economia política dão expressão teórica ou ideal17.”

Assim, o concreto de hoje é a síntese do que foi concreto no passado. Neste

sentido, o trabalho, tal como se coloca atualmente, é parte integrante do modelo de

reprodução social que substituiu o anterior e os conflitos tornados insuperáveis dentro

daquele quadro social. Ou seja, o trabalho em sua determinação atual e as relações que

hoje se estabelecem entre o produtor direto e os recursos materiais de produção, são

uma resposta às contradições erguidas no passado.

Sob tal pressuposto, buscou-se inicialmente entender o trabalho nas formações

econômicas pré-capitalistas, assumindo como máxima a afirmativa de Marx, de que são

as relações que o trabalhador tem com a produção, que determinam uma realidade de

“emancipação” ou de “opressão” não somente para ele, mas para a “humanidade

inteira18”. Portanto, é desta relação que se extrai o significado do trabalho para o

homem, em sua individualidade e, para a própria sociedade.

Face o exposto, tomou-se a síntese contemporânea de tal relação (a que os

produtores diretos estabelecem com os meios de produção) para, a partir desta, por um

processo de abstração, evidenciar que o “real, o concreto” contemporâneo é um

processo histórico e como tal, transitório. Portanto, o ponto de partida e o de chegada é

a moderna economia burguesa e, em seu interior, a categoria trabalho.

A partir dela, o trabalho passou a ser considerado como “a essência subjetiva

da propriedade privada, a propriedade privada enquanto atividade sendo para si,

enquanto sujeito, enquanto pessoa19.” Tal afirmativa vai de encontro com a perspectiva

17
(MARX, K. 2006, p. 81-2)
18
(MARX,K. 2004, p. 88)
19
(Idem, p. 99)
7

que define o trabalho como fonte geradora de toda a riqueza (entendida enquanto

mercadorias em geral).

Sob esta ótica, o indivíduo enquanto detentor de trabalho, ou mais

especificamente, de força de trabalho é também um proprietário. De onde se

depreendem algumas implicações, mas essencialmente as que seguem.

1. Todos os indivíduos que integram esta sociedade são proprietários. O fato de

que alguns possuam força de trabalho e outros meios de produção ou de

subsistência, os tornam desiguais apenas na especificidade da mercadoria que

possuem, mas iguais na condição de proprietários;

2. Como proprietários de trabalho (fonte de toda a riqueza), os indivíduos que nada

detenham além da força de trabalho, possuem o que é fundamental (a fonte

geradora de riqueza – o trabalho) e, portanto, são responsáveis pelo curso de sua

vida material, ou seja, pela realidade pessoal de carestia ou abundância. Tem-se,

portanto, a predominância do individualismo nas relações entre os indivíduos e,

como fim econômico da produção, a riqueza ou, mais especificamente de

mercadorias passíveis de conversão em valor social20.

Em contraposição a esta percepção do trabalho enquanto origem subjetiva da

propriedade (em seu caráter privado) presente no capitalismo, e, portanto, à relação

estabelecida entre o produtor direto e os meios objetivos de produção, tem-se a leitura

presente nas formações econômicas pré-capitalistas. Nestas a propriedade só pode ser


20
De acordo com Marx o valor social de uma mercadoria se evidencia quando ela é trocada pela forma
dinheiro. A forma dinheiro é a forma do valor social. Ela indica que as mercadorias produzidas e
negociadas contêm efetivamente o tempo de trabalho socialmente necessário, tanto no que se refere à
quantidade contida em cada mercadoria, quanto no que se refere ao volume total produzido. Mais
especificamente, o total produzido atendeu à demanda social, ou ainda, a oferta se igualou à demanda.
Quando ocorre isto o capitalista estará efetivamente valorizando o seu capital. (Para maiores
detalhamentos ver Cap. VI inédito de O Capital, p. 59-60, dentre outras e ainda em Rosdolsky, R. capítulo
05 da obra Gênese e Estrutura de O Capital).
8

entendida na condição de uma configuração externa ao homem, ou seja, na relação de

propriedade (ou de posse) que ele mantém com os recursos objetivos de produção

dentro de uma realidade comunal.

É importante ressaltar que o termo ‘formações econômicas pré-capitalistas’,

compreende aqui as formas de produção da vida social nas quais “a propriedade da

terra e a agricultura constituem a base da ordem econômica e, consequentemente, o

objetivo econômico é a produção de valores de uso, isto é, a reprodução dos indivíduos

em determinadas relações com sua comunidade, da qual constituem a base (...) 21”, nas

quais, portanto o homem se constitui enquanto fim da produção.

Em um estudo sob tais formações Marx destacou que, “as formas originárias

de propriedade, necessariamente reduzem-se à relação de propriedade com os

diferentes elementos objetivos que condicionam a produção; elas são a base econômica

de diferentes formas de comunidade22” ou, mais especificamente – “a propriedade – e

isto se aplica às suas formas asiática, eslava, antiga, clássica e germânica –

originalmente significa uma relação do sujeito atuante (produtor) (ou um sujeito que

reproduz a si mesmo) com as condições de produção ou reprodução como suas,

próprias23.”

Por sua vez, esta relação tinha como pressuposto o pertencimento do indivíduo

à comunidade. Ele era proprietário das condições de produção porque pertencia à

21
(MARX, K. 2006, p. 77)
22
(Idem, p. 95)
23
(FEPC, 90). É importante ressaltar que as formações aqui chamadas pré-capitalistas vivenciaram
diferentes formas de organização comunitária, ainda que todas elas evidenciassem “a unidade de seres
humanos vivos e ativos com as condições naturais e inorgânicas de seu metabolismo com a natureza”.
Em determinados estágios da evolução histórica, começaram a se evidenciar formas (de transição) nas
quais o produtor direto passou a ser considerado como a própria natureza inorgânica, como no caso da
escravidão e da servidão. Nestes casos, Marx afirma não haver de forma integral “a separação entre as
condições inorgânicas da existência humana e a existência ativa”, para ele o que ocorre é que “uma
parte da sociedade é tratada pela outra como simples condição inorgânica e natural de sua própria
reprodução. O escravo carece de qualquer espécie de relação com as condições objetivas de seu
trabalho. Antes, é trabalho em si, tanto na forma de escravo como na de servo, situado entre outros seres
vivos como condição inorgânica de produção, juntamente com o gado ou como um apêndice do
solo.”(FEPC, 82-3)
9

comunidade e neste sentido ele tinha uma existência objetiva distinta e anterior à de

trabalhador, ou seja, ele pertence a um lugar específico, a um meio social específico

onde, por meio do seu trabalho, da sua atividade produtiva, ele se contrapõe aos

recursos naturais (que lhe pertencem, pois são parte de si mesmo, extensão inorgânica

do seu corpo orgânico) e atua enquanto reprodutor da vida social. Ou seja, tem-se aqui

que “a organização comunitária na qual se baseia a produção impede que o trabalho

do indivíduo seja trabalho privado e que seu produto seja produto privado; ao

contrário, faz do trabalho individual, diretamente, uma parte do organismo social.24”

De outra forma, o não acesso às condições naturais de produção implicaria,

imediatamente, na caracterização do indivíduo como um “não-proprietário”, como

alguém que vivendo isolado não pertencesse a uma comunidade. Em tal contexto seria

ele um Deus ou um animal.

A percepção da propriedade enquanto “unidade natural do trabalho com seus

pressupostos materiais25”, ao mesmo tempo em que contrasta, nega a percepção

subjetiva de propriedade existente sob o capitalismo como se definitiva, ou a-histórica.

Tal postura é coerente com o fato de que, inicialmente as condições objetivas da

produção eram fornecidas pela natureza e não se configuravam como “resultado da

produção” humana, para usar as palavras do próprio Marx. De uma forma geral, os

meios fornecidos pela natureza, para a realização do trabalho humano eram tidos como

pressupostos do próprio trabalho e sem estes, nada se poderia produzir e/ou possuir. Em

tais termos, a própria existência física do indivíduo ou a manutenção da comunidade

estaria inviabilizada. Esta forma é uma concepção de propriedade em relação aos

recursos de produção objetivos bastante simplória, ainda que racional.

24
(ROSDOLSKY, R. 2004, p. 114)
25
(MARX, K. 2006, p. 97)
10

Considerados os elementos essenciais do processo de trabalho (meios

objetivos de produção fornecidos pela natureza e o trabalho) e a forma como estes se

configuravam e se relacionavam no processo de reprodução social e, por outro lado,

observado que o valor de uso era o objeto econômico da produção nas formações pré-

capitalistas, é possível extrair do exposto até o presente uma série de considerações que

auxiliam na compreensão do que era/significava o trabalho em tais estágios da produção

social.

Com vistas a facilitar o entendimento serão expostos a seguir, os pontos

essenciais comuns a tais formações, e na seqüência serão elencadas as considerações e a

resposta ao questionamento. São, portanto, os pontos comuns:

1. A “atitude” do indivíduo “em relação à terra” (fonte natural de todos os

recursos necessários para o trabalho) era a de detentor das mesmas, seja na

condição de proprietário26 ou de possuidor;

2. As condições naturais de trabalho eram vistas pelo indivíduo como extensão

dele mesmo, como a parte “inorgânica” do seu corpo “orgânico” e como tal,

eram consideradas por ele como “condição preliminar do trabalho”.

Quais as implicações destes pontos sobre a significância do trabalho, ou sobre

a determinação do que é o trabalho? É o que se exporá agora.

A relação de propriedade do indivíduo para com a terra, e, por conseguinte,

com as condições naturais objetivas de produção pressupõem, antes de tudo, a sua

existência enquanto membro da comunidade, pode-se dizer que ele tem “um modo

objetivo de existência na propriedade da terra, que antecede sua atividade e não surge
26
De acordo com Marx, o termo propriedade e posse dizem respeito aqui à forma mesma como se
manifestava nas formações econômicas pré-capitalistas, a relação do indivíduo frente às condições
materiais de produção. Marx menciona que na forma asiática predominante o que existe é a posse
enquanto que, por exemplo, na antiguidade clássica a relação é de propriedade. Maiores detalhes ver p.
65-77 da obra Formações Econômicas Pré-Capitalistas.
11

como simples conseqüência dela, sendo tanto uma pré-condição de sua atividade como

é sua própria pele, como são os seus órgãos sensoriais, pois toda a pele, e todos os

órgãos dos sentidos são, também, desenvolvidos, reproduzidos, etc., no processo da

vida, quanto pressupostos deste processo de reprodução.27”.

Em face desta existência objetiva, o cumprimento de seu papel social junto à

comunidade se realiza por meio de sua atividade, de seu trabalho. O caráter social do

seu trabalho e, portanto, do produto deste decorrente, se mostra através da sua

particularidade. Desta forma, aquilo que se constitui como atividade essencial na

manutenção de sua própria vida aparece também como atividade vital para a vida da

comunidade. A especificidade do seu trabalho (materializada nos valores de uso por ele

produzido), conjugada à dos demais integrantes da comunidade supre a necessidade do

coletivo e contribui para a manutenção das relações sociais estabelecidas. É na

consciência de que a sua atividade específica é parte necessária do todo que ele se

coloca como um ser ativo, portanto, diversamente do animal. Em outros termos, ele se

coloca em atividade porque é consciente.

Ao defender a essencialidade da mencionada categoria Marx elabora a

seguinte definição - “antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o

homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona,

regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza

como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e

pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-

lhes forma útil à vida humana28.”

Ou seja, tem-se aqui a definição do trabalho em sua forma concreta. Em tais

termos, há que se ressaltar que enquanto atividade humana produtiva ela é vital para a

27
(MARX, K. 2006, p. 77-8)
28
(MARX,K. 1985, 202)
12

própria subsistência humana e se faz primeiramente de “meio para a satisfação de uma

carência, a necessidade de manutenção física29.”

Este caráter do trabalho, forma pela qual ele foi predominante nas formações

econômicas pré-capitalistas e a relação estabelecida entre trabalhador e recursos

objetivos de produção evidenciam que é no atendimento das necessidades humanas que

o inter-relacionamento do homem com a natureza se faz premissa fundamental, pois que

ele “nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Ela é a matéria na

qual o seu trabalho se efetiva, na qual (o trabalho) é ativo, (e) a partir do qual e por

meio da qual (o trabalho) produz30.”

Na medida em que ele (homem) se relaciona com ela (natureza/terra) de forma

direta, tal dependência não se apresenta a ele como negativa ou explícita, haja vista que

ele a contempla como a própria extensão inorgânica do seu corpo orgânico e, neste

sentido, dizer que “a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza

não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o

homem é uma parte da natureza31”.

De um lado a natureza orgânica com a atividade produtora vital, de outro a

natureza inorgânica com o material vital para a atividade produtora. No conjunto a

natureza em sua totalidade, a vida que se produz, reproduz e transforma. O homem vê o

produto do seu trabalho (a natureza modificada), os valores de uso específicos que

atendem necessidades individuais e comunitárias, como a extensão do seu próprio

corpo, ou seja, sua atividade consciente/criativa, materializada.

O fato de que ele se aproprie dos meios necessários para a produção como

seus, lhe permite visualizar igualmente o produto do seu trabalho como sua criação e

29
(MARX,K. 2004, p. 84)
30
(Idem, p. 80)
31
(MARX, K. 2004, p. 84)
13

reconhecer neste, a sua atividade. O mundo no qual ele está inserido se configura,

portanto, enquanto sua própria criação. Ele mesmo, enquanto parte da natureza vivencia

uma autotransformação. Por meio de sua atividade vital ele se desenvolve em sua

especificidade genérica, ou seja, desenvolve a sua consciência e, por meio desta, a

própria forma como trabalha.

Tendo em conta a questão da especificidade genérica, há que se ressaltar que o

trabalho enquanto atividade criativa desenvolvida pelo homem, com vistas

primeiramente à sua própria subsistência, não pode ser igualado à atividade meramente

animal praticada pelos animais irracionais. Seu trabalho, enquanto atividade essencial e

específica é realizado pelo emprego de sua atividade física e mental e é só por meio

desta que ele pode agir de forma consciente, ou seja, tomando os recursos brutos que

estão à sua disposição fornecidos pela natureza (que são portanto a natureza) e

adequando-os às necessidades humanas que emanam do meio social ao qual pertence.

Ou seja, ainda que o homem enquanto ser genérico tenha o seu trabalho como meio de

satisfação imediato de suas necessidades físicas, ele não o faz de forma meramente

instintiva, tal qual o animal. Seu trabalho é consciente, planejado, e o seu resultado (seu

produto) visualizado antecipadamente em seu cérebro. Em resumo, ele produz porque é

consciente.

E ainda, neste ato de produção consciente ele não produz somente a si mesmo,

mas a natureza como um todo. Sua atividade criativa é, portanto, responsável direta pela

construção ou destruição da vida que lhe envolve. Da mesma forma que ele faz da

natureza em sua integralidade, um meio objetivo para suprir-lhe as demandas e à de seu

meio social, ele reflete sobre ela os efeitos positivos e/ou negativos, advindos da prática

de sua atividade. Sendo assim, pode-se dizer que o animal “produz unilateral(mente),

enquanto o homem produz universal(mente); o animal produz apenas sob o domínio da


14

carência física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só

produz, primeira e verdadeiramente, na (sua) liberdade (com relação) a ela; o animal

só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira32.”

De acordo com Marx, “no modo da atividade vital encontra-se o caráter

inteiro de uma espécie” e no homem, “seu caráter genérico” é “a atividade consciente

livre33.” É isto que o torna específico e superior em relação aos animais. Em outras

palavras, ainda que o homem se coloque em atividade inicialmente incitado pela

necessidade física, a atividade enquanto trabalho humano em geral não se resume a isto,

ao reino da necessidade. E é justamente fora desta condição que ele pode de fato

produzir.

Por outro lado, essa atividade vital consciente e livre faz do homem o condutor

do ato produtivo. Este é por ele dirigido e se dá com vistas a objetivos econômicos já

mencionados. Ele não produz comandado, comanda a produção e o que lhe move não

são os instintos individuais, mas a relação de interdependência que ele vive e lhe é

evidente na vida da comunidade.

Em resumo, do exposto até então é possível dizer que o trabalho, tal como

existente nas formações econômicas pré-capitalistas, aparece àquele que o executa e à

comunidade que o envolve, como atividade vital e cheia de significância. Tal se dá em

função da forma como as relações de produção se encontram estabelecidas, pois é por

meio delas que o indivíduo pode: reconhecer o seu trabalho como atividade

conservadora, criadora e transformadora da própria vida em seu caráter orgânico

(humano), inorgânico (natureza) e social (expressado na manutenção da comunidade);

visualizar o produto do seu trabalho como sua criação e reconhecer nele a importância

de sua atividade34.

32
(MARX,K. 2004, p. 85)
33
(Idem, p, 84)
34
Na leitura deste parágrafo considerar a nota 23.
15

Assim, pode-se dizer que para Marx, nas sociedades pré-capitalistas o trabalho

se revela como algo além do dispêndio força física ou atividade instintiva voltadas para

a satisfação física. É atividade consciente essencial e vital ao ser humano e ao seu meio

social, é o ser humano colocado integralmente na atividade produtiva. Sendo assim, a

resposta ao questionamento inicial, - “o que é trabalho?” pode se dar com um outro

questionamento, qual seja, “o que é o trabalho senão vida35?”.

1.2. O que é o Trabalho no Capitalismo?

Através da apreensão da relação estabelecida entre os produtores diretos e os

recursos produtivos, foi possível entender a significância do trabalho nas sociedades

pré-capitalistas. Empregando o mesmo procedimento de análise que privilegia a relação

acima mencionada, pode-se agora fazer o caminho de volta, ou seja, buscar o

entendimento do trabalho na sociedade capitalista (apreender o real, o concreto, de

forma pensada).

Neste ponto, cabe ressaltar que não é o propósito aqui efetuar uma discussão

acerca da transição para o capitalismo, ou, mais especificamente, elencar os pontos que

tornaram as relações econômicas vigentes nas formações pré-capitalistas insustentáveis,

exigindo, portanto uma nova configuração social, que encontrou seu modelo ideal na

síntese burguesa. O objetivo é tão somente determinar o que é o trabalho para Marx,

neste modelo de reprodução social, observando ao mesmo tempo se em tal resposta se

evidencia algo que se mantenha comum nas formações econômicas pré-capitalistas e no

capitalismo. Espera-se assim, encontrar subsídios que possam contribuir ao longo da

pesquisa, para a discussão que questiona a centralidade do trabalho no capitalismo

contemporâneo.

35
(MARX, K. 2004, p. 84)
16

No capitalismo o modo de produção, as relações de produção e o objetivo

desta aparecem de forma bastante distinta da retratada nas formações econômicas pré-

capitalistas. Neste se apresenta o seguinte quadro:

1. A atitude do trabalhador em relação aos recursos objetivos de produção não é

mais o de propriedade ou posse. Os elementos essenciais que integram o

processo de produção continuam a ser os mesmos presentes nas formações

econômicas pré-capitalistas, ou seja, além do trabalho os meios de produção

material em geral (cuja origem está na natureza). No entanto, estes integram o

processo produtivo sob uma configuração diferenciada e se relacionam de forma

distinta da explicitada anteriormente. No processo de produção capitalista (que é

unidade do processo de trabalho e do processo de valorização 36) o trabalho se

coloca enquanto atividade condicionada (não livre37), já que é alienada a outro

na qualidade de mercadoria específica - força de trabalho. Por sua vez, os

36
Conforme destacado por Marx, o processo de trabalho é comum a todos os períodos históricos. No
capitalismo, tem-se, no entanto, uma especificidade: um processo produtivo no qual a produção de
valores de uso (produção característica do processo de trabalho) ocorre de forma subordinada à produção
de mercadorias (valor-de-troca). Sob tal forma, o objetivo é a produção para a valorização do capital, ou
seja, após a venda de tais mercadorias espera-se obter um valor maior que o despendido em sua produção,
valorizando dessa forma o capital.
37
Na medida em que o produtor se encontra separado dos meios materiais de produção ele é levado pela
coerção indireta (da fome, da necessidade) a disponibilizar a sua atividade essencial – o trabalho aos que
possuem tais meios, com vistas a garantir a sua manutenção física. Nestes termos, as condições sob as
quais o trabalhador é livre (porque não servos ou escravos/ desvinculados dos meios de produção) se
constituem efetivamente no estabelecimento da sua dependência em relação ao detentor dos meios
objetivos de produção – o capitalista.
17

recursos objetivos de produção assumem a forma de capital 38 e são agora

propriedade privada do capitalista.

2. O processo produtivo e, portanto, a atividade produtiva – o trabalho tem como

fim, como objetivo econômico a produção de mercadorias 39 em geral. Neste

sentido, ainda que a mercadoria seja unidade do valor de uso e do valor de troca,

o fim daquele que organiza a produção não é o valor de uso (portanto, o

atendimento de necessidades humanas), este somente lhe interessa na medida em

que traz impregnado em si um valor específico (inserido por meio do trabalho 40)

que lhe permita converter-se em valor social41, mais especificamente, que lhe

permita converter-se em dinheiro (forma ideal do valor na sociedade capitalista)

e, por conseguinte, valorizar o capital. É interessante ressaltar aqui, que é na

condição de valor social (quando a mercadoria se troca por dinheiro) que se

prova o caráter social do trabalho nela empregado e, por conseguinte, da

produção.

38
De acordo com Marx, capital é valor que se valoriza. Este processo ocorre em função da forma real que
o capital assume dentro do processo de produção, a saber, capital constante e capital variável. O fato é
que o capitalista emprega um quantum determinado (valor constante) de dinheiro na aquisição de tais
elementos, materializados na forma dos materiais objetivos de produção e nos bens de subsistência pagos
ao trabalhador, e obtém em contrapartida, uma mercadoria que cria valor e que, portanto, lhe fornece
valor maior do que aquele nela empregado. Tal se dá por força de que no interior do processo produtivo o
capital variável assume a forma da força de trabalho (cuja propriedade é de produzir valor) e não a forma
dos bens de subsistência (cujo valor é constante). Por outro lado, os meios objetivos de produção se
confrontam com a força de trabalho extraindo-lhe valor. Desta forma, o material sobre o qual a
trabalhador executa sua atividade trará impregnado em si além dos valores dos trabalhos passados
(presentes no capital constante) o valor dos bens de subsistência pagos ao trabalhador e ainda, um valor
excedente. Para maiores detalhes, ver os 48 e 49 do capítulo VI inédito de O Capital.
39
Para Marx (1985, 41), “a mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por
suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham
do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se
diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção.”
40
O trabalho do qual se trata neste ponto é o trabalho humano em geral, ou ainda, trabalho abstrato.
Dispêndio de força física e mental, trabalho despido de especificidades. Sob tal caráter, os mais diversos
trabalhos específicos se tornam homogêneos e, como tal, a sua única especificidade é ser produtor de
valor. Nas palavras de Marx (1985, 45) - “O trabalho que constitui a substância dos valores é o trabalho
humano homogêneo. Dispêndio de idêntica força de trabalho. Toda a força de trabalho da sociedade, -
que se revela nos valores do mundo das mercadorias, -, vale aqui, por força de trabalho única, embora
se constitua de inúmeras forças de trabalho individuais.”
41
A forma do valor social é o dinheiro.
18

Pelo mencionado, as relações que se estabelecem entre os indivíduos são

apenas destes, na condição de proprietários de mercadorias. Em tal quadro o que se têm

é a predominância do individualismo econômico, no qual as obrigações, os laços

sociais, foram substituídos pelo estabelecimento de relações contratuais 42 e por um

comportamento concorrencial43 entre os indivíduos que integram a sociedade.

Por seu turno, o atendimento das necessidades sociais tem como único agente

regulador o mercado. Ou seja, “embora a dependência recíproca (em todos os sentidos)

dos produtores se converta em um fato, mesmo assim inexiste planificação social

coerente, submetendo-se tudo à cega ação das forças do mercado. O movimento geral

de sua desordem é sua ordem44”. Sendo assim, pode-se afirmar que é no mercado que se

efetiva o caráter social do trabalho e da produção. É nele que o trabalho materializado

ganhará a forma monetária, evidenciando assim a necessidade da sociedade em relação

à produção efetivada, tanto no que se refere à diversidade e à quantidade de mercadorias

produzidas, quanto no que diz respeito à quantidade de trabalho humano em geral

contida em cada unidade produzida.

Vale a pena ressaltar, que a efetivação da troca da mercadoria (na forma

material do valor de uso) por dinheiro (valor na forma social) é, de fato, uma evidência

da contribuição social de cada indivíduo, por meio de seu trabalho, enquanto atividade

específica e essencial, ainda que, na superfície tal interdependência não apareça e/ou

seja negada.

42
Estabelecer o modelo como estas relações se estabelecem entre os indivíduos é uma outra questão. Ou
seja, elas se constituem efetivamente numa troca monetária realizada entre proprietários de mercadorias.
No entanto, a formalidade ou não (no sentido burocrático, documental), é um ponto a ser explorado.
Como exemplo, a forma própria do assalariamento abre margem a uma série de questionamentos que
precisam ser melhor esclarecidos.
43
Concorrência entre capitalistas em busca de ampliação do seu mercado consumidor, condição
necessária para a ampliação do capital. Concorrência entre trabalhadores, com vistas a garantir, por meio
da venda da sua força de trabalho, a própria existência física.
44
(ROSDOLSKY, R. 2001, p. 112)
19

O fato de que o trabalhador se relacione agora com os recursos necessários de

produção na condição de não proprietário, e de que estes últimos assumam a

configuração de capital traz uma série de implicações em relação à significância e,

portanto à determinação do que é o trabalho. Tal como as demais formações

econômicas, o capitalismo possui uma forma específica de produção da vida material.

Nesta, é preciso enfatizar mais uma vez, as relações que se estabelecem são entre

indivíduos detentores de mercadorias e enquanto tais todos possuem algo a negociar.

Em tais termos, a produção só pode se realizar depois de efetuada a negociação entre os

portadores das mercadorias necessárias à realização do processo produtivo, a saber, o

capitalista e o trabalhador.

O trabalhador vende sua mercadoria (força de trabalho) por um tempo

determinado, cedendo ao capitalista o valor de uso a ela intrínseco, qual seja o de criar

valor. Na verdade, ele aliena a sua “capacidade viva de trabalho, que gera valor e que,

como elemento que produz valores, pode ser maior ou menor, pode representar-se

como grandeza fluida, em devir45”. Em troca, ele recebe uma grandeza constante, o

salário.

Com tal negociação, o capitalista passa a ser dono da força de trabalho em sua

integralidade, em seu duplo aspecto. A ele pertence igualmente, o trabalho enquanto

“atividade criativa”, com sua especificidade, e o trabalho abstrato, homogêneo. Por

outro lado, mesmo que para ele a essencialidade recaia sobre o segundo aspecto, o

primeiro é determinante porque é o que garante a transformação dos meios materiais

objetivos em um novo objeto, inserindo novo valor ao mesmo tempo em que conserva o

valor antigo (trabalho passado).

O trabalho que produz mercadorias em geral é, por um lado, o mesmo que

esteve presente em todos os processos de produção vigentes antes do capitalismo. Neste,


45
(MARX, K. 2004, p.48-9)
20

no entanto, que é unidade do processo de trabalho e do processo de valorização, ainda

que o trabalho concreto se faça presente, a leitura que se tem do mesmo é enquanto

trabalho humano abstrato em geral, e mais especificamente, trabalho social, ou seja,

trabalho que insere valor, que permite ao capitalista quantificar no objeto produzido, um

quantum específico que seja por ele negociado e transformado em valor social,

efetivando-se assim a valorização do seu capital. Mais uma vez, o trabalho em sua

forma específica só interessa ao capital na medida em que este lhe garanta a produção

daquilo que o mercado transforme em valor social. Por outro lado, ao trabalhador, a

especificidade do seu trabalho só lhe interessa na medida em que lhe garanta o acesso

aos meios de subsistência.

Neste quadro “negocial”, os envolvidos possuem objetivos específicos. O

capitalista, enquanto proprietário dos meios objetivos de produção espera valorizar o

seu capital e o trabalhador garantir a sua subsistência material. É somente a partir da

possibilidade efetiva de que tais propósitos sejam alcançados que a relação contratual se

estabelece de fato. Efetivamente, um depende do outro – o capitalista não pode valorizar

o seu capital sem o trabalhador, mas, por outro lado, o trabalhador não pode subsistir

nem enquanto ser nem enquanto trabalhador sem o capitalista.

Efetivada a negociação, o trabalhador é confrontado com os recursos objetivos

de produção na qualidade de capital, que como ele (na condição de força de trabalho)

pertence a outro, o capitalista. Estes devem ser por ele transformados, tal como

determinado pelo capitalista (portanto, seguindo a vontade de outro), que para tanto

organizou os recursos de produção (meios objetivos e subjetivos) sob uma forma

específica. Assim, a forma real do capital no interior do processo produtivo é aquela que

garante ao detentor dos recursos produtivos (objetivos e subjetivos) atingir o seu

intento. Vale reafirmar que “os elementos que compõem o processo de produção do
21

capital” são “os mesmos do processo de trabalho em geral 46”, o que o distingue e,

portanto, o torna processo de valorização é a relação estabelecida entre o produtor direto

e os recursos objetivos de produção.

A obra de Marx atesta que, a forma pela qual se estabelecem as relações

sociais de produção e a partir destas, as relações econômicas entre os indivíduos, é

fundamental para entender a significância do trabalho em cada momento histórico. Para

ele, em função da forma como estas se apresentam no capitalismo, o trabalhador

vivencia por meio de seu trabalho, um processo de estranhamento que se expressa sob

diversas formas, quais sejam47:

1) No estranhamento que o indivíduo tem com os produtos do seu trabalho;

2) No estranhamento de si próprio enquanto trabalhador;

3) No estranhamento de si mesmo enquanto ser genérico;

4) No estranhamento do homem pelo próprio homem.

O trabalhador ao se defrontar com os produtos do seu trabalho ele traz em si a

memória de que: 1) os recursos materiais sob os quais atuou transformando-os em valor

de uso específico, portador de valor de troca, portanto, mercadoria, não eram seus; 2) O

trabalho que ele aplicou aos recursos materiais (capital) foi por ele vendido ao dono de

tais recursos (que o comprou essencialmente com vistas ao valor de uso do trabalho, que

é para ele o de produzir valor). Como já mencionado, ainda que o que interesse ao

capitalista seja o trabalho abstrato em geral, o trabalho enquanto atividade específica,

em seu caráter concreto, é inerente à própria condição humana, portanto, o trabalho

enquanto atividade criativa é conjuntamente alienado a ele. Neste sentido, quando o

trabalhador vende a sua força de trabalho ele vende conjuntamente sua atividade

46
(MARX, K. 2004, p. 47)
47
(MARX, K. 2004) - Capítulo sobre Trabalho estranhado e propriedade privada.
22

criativa, ela não lhe pertence e sim ao capitalista e como tal, ela será empregada

atendendo as “necessidades deste capitalista”.

É interessante abrir um parêntesis aqui e mencionar que a atividade criativa do

indivíduo se mostra, dentre outros pontos, no desenvolvimento da ciência, mais

especificamente, da ciência aplicada ao processo produtivo. Esta, por sua vez, tem sido

incorporada ao capital e apresentada como qualidade intrínseca a ele. O fato é que em

tais termos, o trabalhador ao negociar sua força de trabalho concede ao capitalista a

possibilidade de que este lhe comande a atividade consciente/criativa voltada para a

produção. O trabalhador passa a ser o reflexo da vontade produtiva do capitalista.

É em tal quadro que se tem, pois o estranhamento em seus mais diversos

aspectos. Primeiro, considerando que a matéria sobre a qual ele aplica o trabalho não é

sua, o produto do trabalho consequentemente não é seu. Assim, ao mesmo tempo em

que ele materializa o seu trabalho no objeto, ele sofre a sua perda. Por outro lado, o

objeto que em sua essência nada mais é que trabalho coloca-se diante do trabalhador

(que o criou) sob forma autônoma e independente dele. O trabalho materializado

defronta-se agora com o trabalho vivo na condição de potência externa que lhe domina e

perpetua a sua dependência.

Nos quadros da produção capitalista, a relação de dependência do trabalhador

em relação ao objeto (produto do seu trabalho) está duplamente posta, ou seja, para que

ele “possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como sujeito

físico”. No que se refere ao primeiro ponto, a sua condição de trabalhador só pode se

realizar através da conjugação da sua força de trabalho ao trabalho materializado nos

meios de produção objetivos fornecidos pelo capitalista. Estes, ao mesmo tempo em que

ganham “vida” a partir da atividade do trabalhador, são, por outro lado, a

personificação do próprio capital. Neste sentido, a criatura se volta contra o seu criador
23

e quanto “maior este produto” resultante da atividade do trabalhador “menor ele é48”.

Quanto ao segundo aspecto, fica evidente que a sua própria manutenção física passa a

depender do capital. É este que agora lhe compra trabalho em troca de um salário que

lhe garanta a subsistência. O que se tem é uma situação na qual “somente como

trabalhador ele (pode) se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é

trabalhador49.”

Por um lado, a “produção do objeto da atividade humana como capital, no

qual toda a determinidade natural e social do objeto está extinta, a propriedade

privada perdeu sua qualidade natural e social”; por outro, “a produção da atividade

humana enquanto uma atividade totalmente estranha a si, ao homem e a natureza e,

por conseguinte, a consciência e a manifestação da vida também (como) atividade

estranha; a existência abstrata do homem como um puro homem que trabalha e que,

por isso, pode precipitar-se diariamente de seu pleno nada no nada absoluto e,

portanto, na sua efetiva não existência50.”

Sendo assim, o seu trabalho, a sua atividade passa a se constituir apenas

enquanto meio para subsistência. A especificidade genérica que o diferenciava e o

tornava superior ao animal lhe é eliminada. Na sua especificidade genérica ele

trabalhava porque era consciente, e por meio da atividade consciente moldava o mundo

à sua volta. Agora, ele é consciente porque trabalha, ou seja, “porque é um ser

consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para a sua

existência51.”

A sua atividade vital, quando a serviço do capital se revela a ele de forma

negativa, ou seja, ele “não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, não

48
(MARX, K. 2004, p. 81)
49
(Idem, p. 82)
50
(Ibidem, p. 92-93)
51
(MARX, K. 2004, p. 82)
24

se sente bem, mas infeliz, não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas

mortifica sua physis e arruína o seu espírito.” Em tal contexto “o seu trabalho não é

portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório”. Desta forma, o seu trabalho, a

sua atividade se mostra como “externa” a ele, como “se o trabalho não fosse seu

próprio, mas de um outro, como se (o trabalho) não lhe pertencesse, como se ele no

trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro52”, que lhe oprime e se mostra

indiferente as suas necessidades humanas, que o vê e trata como coisa. O outro, passa a

ser para ele o seu opositor.

Quais as conseqüências do quadro geral exposto, para a significância do

trabalho? O que é para Marx o trabalho sob o capitalismo? Em que medida pode se

dizer que o trabalho guarde a mesma significância que a apresentada nas formações

econômicas pré-capitalistas? O desenvolvido até o momento parece já ser suficiente

para efetuar alguns apontamentos nesta direção.

No que tange à primeira questão, as conseqüências estão explicitadas nas

formas como o estranhamento do trabalho se manifesta, quais sejam: 1) na relação de

estranhamento que o indivíduo tem com os produtos do seu trabalho; no estranhamento

de si próprio enquanto trabalhador; no estranhamento de si mesmo enquanto ser

genérico; no estranhamento do homem pelo próprio homem.

A partir da apreensão destas (que são conseqüência da forma pelo qual o

trabalho se relaciona com os recursos objetivos de produção) é possível indicar que,

para o indivíduo que trabalha a sua atividade tem se colocado essencialmente como

condição/meio para obtenção da subsistência. Sendo assim, o trabalho se mostra a ele

como algo que o oprime. Por outro lado, há que se ressaltar que a efetividade do

trabalho enquanto atividade criativa persiste, mas não se mostra perceptível a ele porque

com a venda da sua força de trabalho ela passa a ser condicionada à vontade do capital
52
(Ibidem, p. 82-4)
25

e, não invariavelmente é considerada como sua qualidade inerente, tal como se dá no

caso do desenvolvimento científico voltado para o processo produtivo.

Para o capital, por sua vez o trabalho é mercadoria, e como tal deve satisfazer

as necessidades daquele que a adquire, qual seja, produzir valor em escala ampliada.

Portanto, para o capital o trabalho é coisa, e como tal não possui vontades, sentimentos,

etc. Sob esta ótica, a especificidade e o caráter criativo do trabalho enquanto atividade

humana essencial é reduzida à condição de mercadoria que insere e produz outras

mercadorias e a si mesmo como tal. E nesta condição ela passa a ser apenas trabalho

humano em geral. A produção capitalista “produz o homem não somente como uma

mercadoria, a mercadoria humana, (...), ela o produz como um ser desumanizado tanto

espiritual quanto corporalmente – imoralidade, deformação, embrutecimento de

trabalhadores e capitalistas53.”

Em resumo, é sob esta perspectiva do trabalho na condição de mercadoria que

Marx visualiza o trabalho sob o capitalismo. Seu caráter específico e essencial submete-

se assim à condição do trabalho humano em geral, que enquanto tal se afirma na

condição preponderantemente de atividade voltada para a obtenção do necessário à

satisfação das necessidades físicas. Assim, movido pela necessidade o trabalho se revela

ao homem como sofrimento. É neste sentido que o homem passa a se sentir como um

ser livre apenas fora do trabalho.

Por outro lado, ainda que o trabalho em sua condição de atividade humana

essencial esteja oculta sob o trabalho humano em geral, há que se ratificar que Marx

reafirma a permanência do mesmo – (mesmo que esta se revele oculta até mesmo ao

trabalhador). Portanto, persiste o trabalha enquanto condição essencial para a existência

do próprio homem em sua humanidade e em seu intercâmbio com o meio natural e

social ao qual pertence.


53
(MARX, K. 2004, p. 93)
26

Por fim, se o questionamento fosse “o que é o trabalho?” – desconsiderando,

portanto qualquer especificidade de modelo social, a resposta seria que o trabalho é a

condição essencial à manutenção da vida humana, é a própria condição do homem

enquanto ser, em sua especificidade humana. É por ele que o homem produz o mundo à

sua volta. É por ele que o homem se humaniza.

REFERÊNCIAS

MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. São Paulo, Paz e Terra, 2006.

__________. Capítulo VI Inédito de O Capital. São Paulo, Centauro, 2004.

__________. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004.

__________. O Capital: crítica da economia política. Livro I, vol. I e II, São Paulo,

Difel, 1985.

ROSDOLSKY, R. Gênese e Estrutura de O Capital. Rio de Janeiro, Contraponto,

2001.

SMITH, A. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São

Paulo, Nova Cultural, 1996.


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