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RESUMO: A produção de efeitos das leis e dos atos normativos, via de regra, não
se resume aos efeitos diretos, pretendidos e conhecidos, devendo abranger os
eventuais efeitos espúrios, aqui denominados como colaterais. Esses efeitos são
decorrentes, em muitas situações, das aplicações privadas indevidas das leis, geradas
no seio das relações privadas em geral. A pesquisa sustenta que esses elementos
e contextos devem ser objeto de análise pela Justiça Constitucional. Adota-se, na
pesquisa, o método de revisão bibliográfica nacional e estrangeira, bem como os
métodos dedutivo e indutivo. Conclui-se, ainda, que o modelo de decisão da Justiça
Constitucional mais adequado para abordar e solucionar essa problemática é a
decisão intermédia, com perfil reconstrutivo da norma. O texto sustenta, por fim, que
a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — ADPF se mostra como
a ação mais adequada, no Brasil, para realizar esse controle no âmbito do chamado
processo constitucional objetivo.
1 Introdução
A nalisa-se, neste estudo, a produção espúria de efeitos das Leis, que são
denominados, aqui, de efeitos colaterais, no sentido de não serem pretendidos
e estarem alheios à teleologia inerente às normas que são, eventualmente, objeto
de controle de constitucionalidade. Os efeitos colaterais de leis constitucionais são,
portanto, o objeto deste artigo, ao qual se adiciona o melhor modelo de decisão
jurisdicional para enfrentar essas situações.
O pressuposto desta análise é, pois, o da lei legitimamente editada (ou de outro
ato normativo primário), quer dizer, dentro do campo de ação, prima facie, determinado
ao Poder Público, seja ao legislador seja aos Chefes do Executivo, com o diferencial
de que, mesmo nesses termos, não se pode concluir que essas leis chancelem os
efeitos delas decorrentes, necessariamente, em todas as suas ocorrências concretas.
Todas as hipóteses de incidência e produção de efeitos hão de ser avaliadas,
sob esse ponto de vista, de maneira singular, de forma a contemplarem-se as
particularidades produzidas em concreto a partir de uma nova legislação ou de ato
normativo em geral.
Tampouco se pode estatuir, abstratamente, que nunca haverá alguém sofrendo
prejuízos por conta de leis consideradas constitucionais, ou que estes eventuais
prejuízos, ainda que reconhecidos, devam ser considerados como legítimos, como uma
consequência natural ou controlada, só por conta da constitucionalidade geral da Lei;
pelo contrário: leis podem ser constitucionais, causar prejuízos severos a determinados
segmentos sociais e, ilegitimamente, beneficiar ou privilegiar outros tantos segmentos
econômicos. E todo esse quadro pode ocorrer até mesmo dentro de um contexto,
prima facie, de cumprimento estrito das leis, quer dizer, sem que se possa falar
automaticamente em práticas ilícitas ou desonestas por parte de quem experimente
algum benefício indevido ou fixado, posteriormente, como tendo sido arbitrário.
Esse é o espaço de complexidades endereçado pelo presente estudo, que
procura combater as ideias e teses mais simplificadoras, ambas identificadas
como o problema de pesquisa, que tendem a atrelar constitucionalidade da lei à
constitucionalidade plena e da totalidade de seus efeitos ou de suas consequências
e execuções práticas.
Algumas leis, especialmente aquelas que promovem mudanças profundas, radicais
e desestruturantes em segmentos há longo tempo acomodados ou consolidados,
apresentam-se como potencialmente portadoras de privilégios indevidos ou efeitos
não pretendidos, ante a ampla inovação promovida e a incapacidade de se alcançarem,
1 Sobre os efeitos das sentenças na Justiça Constitucional, cf. Carlos Blanco de Morais (2009, p. 24).
das leis. Isso é particularmente impositivo nas leis, nas medidas provisórias e nos
decretos que implantam mudanças bruscas de paradigma, que pretendem alterar
substancialmente uma dada realidade, como leis que alteram regimes eleitorais,
regimes contratuais etc. A necessidade de realizar essa verificação volta-se, nesta
pesquisa, para o círculo estrito do controle de constitucionalidade abstrato, quando
este for provocado.
Trata-se de bem identificar a presença efetiva e concreta do efeito colateral, que
pode ter sido concretizado em um nível de extensão amplo, alcançando a grande
maioria daqueles que supostamente estariam sujeitos a essa concretização ou,
em nível mais restrito, como resultado não da colateralidade, mas, sim, da própria
deficiência em aplicação das leis em determinadas sociedades. Uma avaliação ampla
desse aspecto do tema requer que também se desenvolva, muito particularmente,
uma teoria da prova2 no âmbito do processo constitucional objetivo. Trata-se de referir,
neste estudo, a um recorte muito verticalizado no tema, quer dizer, a efeitos não
desejados pelos atos normativos, até porque se fossem desejados teriam o condão de
tornar de imediato inconstitucional o ato normativo que estivesse sendo analisado em
controle abstrato de constitucionalidade. Daí o motivo da expressão efeito colateral.
Mas essa divisão entre próprio e colateral é de difícil definição consensual e, por
vezes, ocorre em um âmbito sutil de diferença. Na realidade, também para esse tema
deve-se trabalhar com a necessidade de uma fonte oficial que certifique, a posteriori
– quer dizer, com base na realidade fenomênica – o que efetivamente foi produzido a
partir do comando normativo e o que foi produzido imaginando-se estar cumprindo
o comando normativo, mas que representava, em realidade, um desvio, um plus ou
um irrelevante em relação a esse comando. Ainda assim, com base na teoria das
aparências ou com base em entendimento geral comum, pode-se enquadrar este
último fenômeno como também decorrente da lei.
É possível antecipar que, por vezes, contribui decisivamente para ocorrência
desse efeito o modus operandi de alguns agentes privados econômicos envolvidos e
atingidos pelo novo ato normativo, agentes estes geralmente com poder de mando,
como instituições financeiras e grandes conglomerados. Isso, porém, não significa que
se deva reconhecer a má-fé desses agentes para podermos falar da hipótese aqui
analisada. Não há essa necessidade, como restará demonstrado ao longo deste estudo.
Mais especificamente falando, aceitar a constitucionalidade (pressuposto neste
trabalho) não gera, sempre e em todo o espectro analisado, a total indiferença
2 Assunto que não será objeto deste estudo. Sobre o tema, cf. Herani (2016).
3 Os primeiros casos considerados pela doutrina italiana abalizada são os das Senteze n. 8, de 1956,
e n. 26, de 1961 (leis de segurança pública), e as Sentenze n. 11 e 52, de 1965 (direito de defesa e o
Código de Processo Penal).
4 Utilizarei neste estudo o termo sentença em sentido amplo, referido geralmente a acórdãos do STF, mas
também, eventualmente, aplicável a decisões monocráticas.
6 Como assim ficou conhecida a crise econômica que colapsou o sistema financeiro americano em 1929.
7 Sobre o tema, cf. Morais (2009, p. 17). Não tratarei aqui, porém, das hipóteses de omissão inconstitucional,
por fugirem ao escopo deste estudo específico.
8 Esse aspecto permanece como relevante, por mais que se queira sustentar tratar-se do reverso de uma
mesma moeda.
9 Refiro-me à eliminação de efeitos gerados no âmbito fático, e não de hipóteses normativas contidas
na Lei. Com isso, fica evidenciado que a hipótese que propugno há de ser diversa da técnica de
inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.
10 Essa mesma percepção construtiva de normas está no voto do Min. Gilmar Mendes, na ADPF-QO 54,
já mencionado.
11 Falo, aqui, em anteriores para me referir às ações já contempladas e utilizadas no sistema brasileiro,
previamente ao ano de 2000, quando foram aceitas as primeiras ADPFs.
encetou esse novo instrumento, lançando as bases de seu uso avançado. O uso e
desenvolvimento dessa específica e inovadora ação constitucional é uma das fórmulas
capazes de albergar o modelo decisório intermédio que propugno neste trabalho.
O modelo do constitucionalismo brasileiro envolve um aspecto que, em algum
sentido, pode ser considerado revolucionário, e, ainda, transformador. Isso implica
relembrar a missão desenvolvimentista imposta juridicamente à sociedade e ao
Estado, superando um estágio meramente liberal baseado, economicamente, na
ausência do Estado e na supremacia do mercado.
O sistema de controle de constitucionalidade não pode ser desconectado dessa missão
constitucional. Inserido nas inovadoras linhas do constitucionalismo latino-americano,
que é historicamente inventivo em “controle de constitucionalidade, pois, em muitos casos
se antecipou a modelos tidos como fundantes no Direito europeu” (TAVARES, 2016, p. 43
e ss.), como também se pode dizer do sistema de controle por omissão no Brasil, que tem
suas características singulares e deve ser compreendido como tendente a instrumentalizar
esse papel social transformador do Estado.
Não se deve, pois, considerar a ADPF apenas como mais uma ação judicial, a
compor o horizonte do controle de constitucionalidade da Corte, como mais um
incremento da combativa jurisdição constitucional brasileira, sempre elucidada
pelos autores sob uma leitura de técnica estrita e formal. A inovação desse novo
combate via ADPF prende-se à configuração desse novo constitucionalismo brasileiro,
sobretudo na busca pelo Estado social e atento, determinado constitucionalmente.
No entanto, a singularidade desse modelo nacional de jurisdição constitucional
converge com a ampliação do papel da jurisdição no Brasil:
Em realidade, porém, o Poder Judiciário não mais está voltado a apenas resolver
conflitos entre particulares, que considero como o clássico conflito surgido em
uma sociedade tradicionalmente composta por interesses menos divergentes e
claramente reconhecidos. O Poder Judiciário passa a ser também o garantidor último
da regularidade da Ordem Jurídica.
12 Sem decidir, certamente, nenhum deles especificamente, pois aí teríamos subversão do papel objetivo
dessa peculiar jurisdição constitucional.
13 No caso do julgamento da ADPF-QO 54, a importância peculiar do art. 10 veio novamente ressaltada
pelo Min. Gilmar Mendes.
[...] (iv.a) de R$ 100.00,00 (cem mil reais) por hora às entidades responsáveis,
por atos que culminem na indevida ocupação e interdição das vias públicas,
inclusive acostamentos, por descumprimento das ordens judiciais deferidas
nesta Arguição;
(iv.b) de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por dia, por atos que culminem na
indevida ocupação e interdição das vias públicas em questão, inclusive
acostamentos, a ser cobrada de cada manifestante que se recuse a retirar o
veículo que esteja obstruindo a via pública ou proprietário do veículo que
esteja obstruindo a via pública, por descumprimento das ordens judiciais
deferidas nesta Arguição. (BRASIL, 2018).
Todas essas medidas foram adotadas exatamente para fazer cumprir e respeitar
preceitos fundamentais da Constituição do Brasil. Nesse sentido e nessa ADPF, foram
aplicadas multas, diretamente, a mais de 151 pessoas jurídicas, essencialmente
empresas de transporte de carga, por terem continuado a obstruir o tráfego em rodovias
(a recente greve dos caminhoneiros), o que exigiu, em sede de ADPF, a identificação
real e pontual daqueles que permaneceram em estado de violação e transgressão.
Essas decisões, dentre outras, demonstram o nível de atenção ao qual chegou o
STF, especificamente dentro da abrangência e extensão decisória formatada na ADPF.
5 Conclusão
Teoricamente falando, é perfeitamente possível reconhecer o caráter
constitucional, cogente e com força imediata das leis em geral, sem que isso
seja impeditivo para avaliar como inválidos, inconstitucionais e merecedores de
correção determinados efeitos produzidos pela operacionalização concreta dessas
leis, especialmente quando a sua operacionalização ocorre pelos agentes privados,
a partir de interpretações ampliativas ou inadequadas das leis. Vale observar que
essas interpretações podem vir a ser rechaçadas expressamente pelo STF, que as
pode legitimamente certificar como inapropriadas e inadequadas, mas que, com isso,
6 Referências:
BRASIL. Lei no 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e
julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF: Presidência da
República, [1999]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.
htm. Acesso em: 11 set. 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 519 (Medida Cautelar). Decisão Monocrática.
Relator: Min. Alexandre de Moraes, 29 de junho de 2018. Diário da Justiça Eletrônico,
1o de agosto de 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347 (Medida Cautelar). Tribunal Pleno.
Relator: Min. Marco Aurélio, 9 de setembro de 2015. Diário da Justiça Eletrônico, 19
de fevereiro de 2016.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
MORAIS, Carlos Blanco de. As sentenças com efeitos aditivos. In: Sentenças
intermédias da Justiça Constitucional: estudos luso-brasileiros de Direito Público.
Lisboa: AAFDL, 2009.