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MEDICINA LEGAL

Texto e Atlas
2-ª edição
Revista e ampliada
Outros Livros de Interesse

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Alves - Novo Dicionário Médico Ilustrado Inglês - Português
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Jatene - Medicino, Saúde e Sociedade
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Protásio da Luz - Nem Só de Ciência se Fozo Curo 2• ed.
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2ª edição
Revista e ampliada

Hygino de Carvalho Hercules


Professor Titular de Medicina Legal e Deontologia da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.
Professor Titular de Medicina Legal e Deontologia do Curso de Medicina da Universidade
Gama Filho, UGF. Perito-legista do Instituto Médico-legal Afrânio Peixoto, IMLAP-RJ

•\Atheneu
EDITORA ATHENEU
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CAPA: Paulo Verardo


PRODUÇÃO EDITORIAL: Rosane Guedes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hércules, Hygino de Carvalho


Medicina legal: texto e atlas/ Hygino de Carvalho H ércules. -- 2. ed. --
São Paulo: Editora Atheneu, 2014.

Vários colaboradores.
Bibliografia
ISBN 978-85-388-0524-3

1. Medicina legal 1. Título.

14-04732 CDU-340.6

Índices para catálogo si stemático:


l . Medicina legal 340.6

HERCULES, H. C.
Medicina Legal - Texto e Atlas - 2'1 edição revista e ampliada

©EDITORA ATHENEU
São Paulo, Rio de janeiro, Belo Horizon te, 2014
JANYRA ÜUVEIRA-(OSTA
Perita criminal do Instituto de Criminalística Carlos Éboli, ICCE. Bióloga Zoologista.
Doutora em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Responsável pelo
Laboratório de Entomologia Forense do ICCE. Professora de Zoologia da Universidade Castelo Branco

JOSÉ CARLOS PANDO ESPERANÇA


Perito-legista do Instituto Médico-legal Afrânio Peixoto do Rio de Janeiro, IMLAP-RJ.
Professor Adjunto de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ

MIGUEL (HALUB
Professor Adjunto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.
Perito Psiquiatra Forense do Hospital de Custódia e Tratamento Heitor Carrilho, Manicômio Judiciário

NAURA LIANE DE ÜUVEIRA ADED


Perito-legista do Instituto Médico-legal Afrânio Peixoto, IMLAP-RJ.
Professora Adjunta da disciplina de Medicina Legal da Universidade Federal Fluminense, UFF.
Mestranda do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ

NEREU GILBERTO M. GUERRA NETO


Professor Adjunto de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, UFRJ. Professor Titular de Medicina Legal da Faculdade de Medicina de Valença.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ

NILO JORGE RODRIGUES GONÇALVES


Professor Adjunto de Medicina Legal e Deontologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, UERJ. Livre-docente de Medicina Legal e Deontologia da Faculdade
de Ciências Médicas da UERJ. Professor Titular de Medicina Legal da Faculdade de Medicina de Petrópolis

VIRGÍNIA ROSA RODRIGUES DIAS


Perito-legista do Instituto Médico-legal Afrânio Peixoto, IMLAP-RJ.
Professora Auxiliar de Medicina Legal do Curso de Medicina da Universidade Gama Filho, UGF
A todos aqueles que fazem de sua vida
um ideal de justiça e de amor ao próximo.
O ser humano é fruto das tendências que traz de berço 1964, em seu plantão das quartas-feiras, quando me mostrou
e do ambiente em que é criado e amadurece. Não fosse o as particularidades das necrópsias forenses.
amor de meus pais, que tudo fizeram para me tornar um ho- Um professor só pode ser considerado um educador
mem de bem, e do meu próprio núcleo, formado por Iolete, quando é capaz de dialogar com seus alunos, sabendo ouvir
Cristina e Flávio, pouco eu poderia ter realizado. É basica- e, desse modo, estabelecer uma relação afetuosa sem abrir
mente a essas pessoas que devo o ter-me tornado a pessoa mão da autoridade. As dúvidas e críticas dos alunos servem
que sou, plena de defeitos e virtudes como qualquer um, mas de estímulo para o aperfeiçoamento do professor. Assim,
ávida por compartilhar com seus semelhantes o pouco que tivemos o prazer de lidar com algumas gerações de alunos,
aprendeu. entre os quais tenho a certeza de que finquei laços de perene
Ao pensar em agradecer àqueles que me levaram a pro- amizade. Entre eles, um se tornou parcialmente responsável
duzir esta obra me reporto ao início da jornada. Foi no La- por esta obra: Daniel Rzezinski. Por ser filho de outro mé-
boratório de Patologia da Santa Casa da Misericórdia que, dico e amigo, Paulo Rzezinski, diretor da Editora Atheneu,
ao fim do curso médico, conheci o mestre cujo exemplo de abriu as portas de sua empresa para acolher nosso anseio por
honestidade procurei seguir ao longo da vida. Refiro-me ao editar um livro próprio de Medicina Legal. Se devo gratidão
patologista professor Manoel Barreto Netto. Em seu labora- ao estímulo que os alunos me dão a cada nova turma, a esse
tório, aprendi a ser um patologista. Nele, conheci duas o utras em especial devo muito mais.
criaturas de grande caráter, que me ensinaram técnicas de Alguns advogados com quem lidei ao longo de minha
fotografia científica e de necrópsia. O fotógrafo José Chris- atividade pericial incentivaram-me a escrever, mas nenhum
tiano Hohl, o seu Hohl, e Euclides Francisco da Silva, o mais foi tão importante e atuante como Anamaria Bittencour. A
completo técnico de necrópsia que conheci, que mais parecia ela devo o acesso a obras da área do Direito de Família e crí-
um cirurgião que um simples técnico ao dissecar um cadá- ticas ao modo de interpretar as normas do Direito Civil.
ver. Exceto o Euclides, são hoje apenas uma saudade. Devo muito aos colaboradores que escreveram alguns
O interesse pelo ensino da Medicina Legal veio em 1966, capítulos desta obra. Sua boa vontade e dedicação permiti-
quando o amigo Nísio Marcondes Fonseca, então chefe do ram que não precisasse me preocupar com assuntos que eles
Serviço de Patologia do IMLAP, convidou-me para integrar conhecem melhor do que eu. Desse modo, sou especialmen-
o grupo que gestava o que seria a Escola Médica do Rio de te grato a Virgínia Rosa Rodrigues Dias (Capítulo 5), José
Janeiro, da Universidade Gama Filho. A partir daí, cada vez Carlos Pando Esperança (Capítulo 12), Nereu Gilberto M.
mais passamos a estudar a Medicina Legal. O clímax dessa Guerra Neto (Capítulo 20), Nilo Jorge Rodrigues Gonçalves
relação deve-se a outro amigo, o professor Adolfo Hoirisch, (Capítulos 26 e 27), Naura Liane de Oliveira Aded (Capítulo
que incentivou-me a prestar concurso para titular de Medi- 31), Miguel Chalub (Capítulos 33 e 34) e Janyra Oliveira-
cina Legal e Deontologia na Faculdade de Medicina da UFRJ Costa (Capítulo 35).
em 1987. A ele, certamente, credito a minha orientação defi- Alguns patologistas nos ajudaram com a permissão do
nitiva e exclusiva para a Medicina Legal. uso de sua documentação privada e/ou institucional. Assim,
Ao longo do período em que atuei como perito legista no a Dra. Heloísa Novaes, do Instituto Fernandes Figueira, nos
IMLAP, tive a oportunidade de conhecer e me tornar ami- cedeu fotografias de patologia fetal, e a Dra. Virgínia Bor-
go de diversos outros colegas. Mas devo testemunhar meu ges Nassralla permitiu que usássemos parte do seu acervo de
especial afeto por Ivan Nogueira Bastos, já falecido, que, no material de patologia placentária. A elas, meu testemunho
dizer de Raphael Pardellas, outro dileto amigo, era o mais de profunda gratidão. Esta edição conta com algumas fotos
completo m édico legista de nossa geração. Trabalhamos jun- cedidas gentilmente pelo nosso amigo Dr. Carlos Henrique
tos no curso de Medicina Legal da Escola Médica por mais Durão, brasileiro radicado em Portugal, onde é médico legis-
de 30 anos, o que nos aproximou como se fôssemos irmãos. ta do Instituto Nacional de Medicina Legal.
Povoam as minhas lembranças as figuras amigas de Nilson Parte do material que pude fotografar nos últimos dez
Amaral Sant'Anna e de O lympio Pereira da Silva. Ambos fo- anos diz respeito a perícias feita s por novos colegas peritos
ram diretores do IMLAP. O primeiro me ensinou conceitos do IMLAP, uma vez que nos aposentamos há vários anos
de psiquiatria forense e o segundo foi quem m e recebeu em daquela instituição. Sempre que anotado, as fotos dessa leva
X • Agradecimentos

vêm com a indicação da data da perícia e, às vezes, com o Não podemos deixar de dedicar algumas palavras às ví-
nome do responsável por ela. Como são muitas as omissões, timas da violência e às suas famílias. As diversas formas de
peço desculpas aos que não foram citados nominalmente violência contra a pessoa geram as lesões e as mortes que os
apesar de terem-me franqueado a possibilidade de docu- legistas devem constatar em seus laudos. A documentação
mentar e usar as fotos de seus casos. Da mesma forma, que- dessas perícias serviu de ilustração para o nosso livro. Desse
remos agradecer a todos os técnicos de necrópsia que não modo, prestamos nosso preito de pesar a essas pessoas e à
se importaram em perder parte do seu tempo me ajudando dor de seus familiares e amigos.
a enxugar e a arrumar uma peça a fim de que a fotografia Por fim, agradecemos a toda a equipe de produção
ficasse melhor. Todos que nos ajudaram são pessoas que têm da Editora Atheneu por sua paciência com as nossas fa-
apreço pela ciência e fazem da atividade profissional que de- lhas que tiveram de corrigir. Homenageamos a todos nas
senvolvem algo mais que um simples modo de ganhar a vida. pessoas de Tatiana Corrêa Pimenta, na primeira edição e
Homenageamos a todos escolhendo como seu protótipo o Rosane Guedes na atual. Foram a gentil interface entre a
técnico Ademar Ferreira da Silva. editora e nós.
O Direito é, certamente, a maior cria ção da humani- O legista, de sua vez, necessita conhecer os institutos ju-
dade. O ordenamento jurídico, garantindo a coexistência rídicos, para melhor expressar-se em seus laudos. Para ele,
harmônica dos homens, possibilitou o desenvolvimento da o bom livro torna-se necessário na elaboração de respostas
ciência, em seus diversos ramos. Com efeito, não fosse a se- claras e seguras. Bem por isso, o livro de medicina legal deve
gurança gerada pela sanção jurídica, os homens viveriam em ser acessível tanto ao médico quanto ao jurista.
permanente estado de tensão, sem oportunidade para ostra- Com olhos nessa circunstância, o Professor Hygino Her-
balhos do espírito. cules - um dos grandes nomes da medicina legal brasileira -
À semelhança da lei física, a norma jurídica incide so- concebeu o presente trabalho: Medicina Legal - Texto e Atlas,
bre fatos e circunstâncias determinadas. O trabalho do juiz capaz de funcionar como intérprete entre os cultores das
é construir teoremas, cujo escopo é apurar as consequên- duas disciplinas. Fazendo jus à reconhecida honestidade in-
cias da aplicação de normas preestabelecidas a situações telectual, reuniu uma equipe de especialistas a quem confiou
concretas. a dissertação sobre temas relacionados com as respectivas es-
Sob outra perspectiva, o juiz assemelha-se ao médico, pecialidades. Não fugiu, contudo, ao encargo de preservar a
cuja função é superar anomalias no corpo humano, aplican- unidade doutrinária, evitando que o trabalho resultasse em
do regras de experiência relativas à manutenção da saúde, à simples coletânea de artigos.
prevenção e à cura das doenças. O resultado desse esforço coletivo é um tratado denso,
Assim como a Medicina, o Direito atua no plano da rea- substancioso, seguro. Professores por formação, seus autores
lidade. Para bem resolver com segurança os conflitos que lhe não perderam de vista o alcance didático, inerente a qualquer
são submetidos, o juiz deve conhecer, exatamente, a natureza boa obra doutrinária. Esse cuidado tornou possível, sem sa-
e a situação das pessoas ou coisas envolvidas na lide. Assim crifício da precisão técnica, a leitura confortável do alentado
ocorre, também, com os demais figurantes da distribuição texto. Não ficaram ao largo as recomendações deontológicas
do Direito: advogados, agentes do Ministério Público. e as indicações úteis na coleta de dados e elaboração de lau-
A boa administração da Justiça pressupõe o domínio de dos claros e seguros.
estatutos jurídicos, regras de hermenêutica e conhecimentos Abrangência dos temas, segurança da abordagem e clare-
elementares das ciências naturais. Po r isso, a Medicina Legal za da exposição são atributos que conduzirão Medicina Legal
integra os cursos de Direito, como disciplina obrigatória. - Texto e Atlas, de Hygino C. Hercules, à galeria dos clássicos
O aprendizado curricular não é suficiente. O jurista prá- da literatura médico-legal brasileira.
tico não pode dispensar o socorro de um bo m compêndio de A nós, que exercemos a delicada tarefa de distribuir o Di-
medicina legal que, ao lado do vade-mecum, funcio na como reito, resta agradecer ao Professor Hygino, seus eminentes co-
breviário no exercício diário da atividade forense. Tal livro é laboradores e à Editora Atheneu pela preciosa contribuição.
necessário tanto na compreensão da fisio logia e psicologia
humanas como para a formula ção de quesitos a serem res- Humberto Gomes de Barros
po ndidos nas perícias m édicas. Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Lastreada em invulgar afeição familiar, é-me conferido o Enfim, é um livro de grandiosíssima contribuição para
lisonjeio de prefaciar o livro: Medicina Legal - Texto e Atlas esse antigo ramo do Direito, com vertentes atualíssimas.
do insigne Professor Titular de Medicina Legal e Deontolo- Mauro Cappelletti, na sua obra no tável sobre o acesso à
gia Médica da UFRJ, o Dr. Hygino de Carvalho Hercules. justiça, advertia sobre a necessidade de o jurista abrir-se às
O Direito d os tempos hodiern os nun ca esteve tão umbi- outras ciências, completando o seu necessário conhecimento
licalmente ligado à Medicina, quer por fo rça de novéis reper- interdisciplinar, tornando a solução judicial a mais aproxi-
cussões no campo da própria responsabilidade civil médica, mada dos anseios do povo.
quer no âmbito d o descortino das verdades criminais sobre A Medicina tem essa aproximação legal com a ciência ju-
a fo rma, as causas do com etimento d os delitos e suas con- rídica. Mas, a obra vem a demo nstrar que essas duas ciências
sequências biopsicológicas, mas, sobretudo, no âmbito do estão vinculadas aos dois maiores bens da humanidade: a
Biodireito. vida e a esperança.
Controverte-se, na atualidade, acerca da influência do Felicito o Professor Dr. Hygino de Carvalho Hercules e à
genoma em inúmeros campos da pesquisa médico-judicial. Editora Atheneu pela iniciativa, ciente de que mesmo aque-
Sem prejuízo, ainda é a Medicina que nos informa sobre les que ainda não leram já gostaram por saber do lançamen-
ser mais importante pa ra o ser humano a verdade do sangue to desta valiosíssima obr a.
ou a verdade socioafetiva.
É à luz da Medicina Legal que ao magistrado caberá aferir LuizFux
os resultad os psicológicos e sociais de seu trabalho. Ministro do Supremo Tribunal Federal
Esses consectários seriam sufi cientes a demonstrar que
opo rtuno se faz o lançamento do presente livro.
A obra não se descura de nenhum aspecto, nem mesmo
do mais objetivamente perceptível pelos jejunos; qual o da
Traumato logia Forense.
Desde a década de 1970, acalentamos o sonho de pro- A Parte 3 abrange os diversos aspectos da Tanatologia
duzir um livro de Medicina Legal no qual pudéssemos ex- Forense. Inicia pela difícil conceituação do que é a morte,
pressar nossa visão dessa especialidade médica. Conforme o inclusive do ponto de vista legal, abrange sua causa jurídi-
tempo foi passando, como é natural, fomos amadurecendo ca, discute a Lei dos Transplantes e discorre sobre o emba-
como pessoa e como perito. A obra que ora oferecemos aos samento técnico da cronotanatognose através do estudo
prezados leitores é fruto desse amadurecimento. Expressa dos fenómenos cadavéricos. Nessa parte, expressamos nosso
nosso pensamento e reflete nossa experiência através de far- ponto de vista com relação ao que se deve chamar de morte
ta documentação, fruto de mais de 30 anos de labor pericial. suspeita e morte súbita.
Por força de nossa formação profissional orientada para a A Parte 4 é a mais extensa: a Traumatologia Forense. Nes-
anatomia patológica, exercitada tanto na rotina de patologia sa parte, procuramos sistematizar as energias vulnerantes di-
dos hospitais universitários como no necrotério do IMLAP, vidindo-as conforme o agente traumatizante atue por meio
era inevitável que a ênfase da obra se situasse principalmente de fenómenos físicos ou químicos. Embora tenhamos nos
sobre a Traumatologia Forense. Contudo, procuramos não inspirado no italiano Borri, a classificação dessas energias
descuidar dos outros segmentos da Medicina Legal nem da é proposta de modo algo diferente, conforme explicamos
base jurídica da parte doutrinária. Grande esforço foi reali- no Capítulo 10 - Traumatologia Forense Geral. Nossa visão
zado de modo a oferecer ao leitor a correlação dos aspectos da traumatologia passa pela valorização da Física e de suas
médicos com as mudanças mais recentes da legislação, sem - leis. O corpo humano é encarado aqui como um corpo físi-
pre transcrita quando julgamos necessária ao entendimento co, submetido de modo ativo o u passivo àquelas leis. Assim,
do tema abordado. nos Capítulos de 11 a 18, analisamos a interação das energias
Tratando-se de disciplina necessária à formação cultural cinética, térmica e elétrica nas diversas formas com que se
de médicos e advogados, a tarefa de tornar o texto permeá- manifestam na natureza. Criamos o termo baropatia para
vel a ambos nos levou, por vezes, a explicar, talvez de modo abranger os efeitos das modificações da pressão ambiente
exagerado, os aspectos que nos pareceram pouco claros para sobre o ser humano, conforme justificamos no Capítulo 16.
cada profissional. Assim, procuramos, na medida do bom Atribuímos relevância às armas de guerra por terem-se tor-
senso, abandonar a terminologia técnica de modo a torná-lo nado, infelizmente, muito utilizadas em nossas áreas metro-
compreensível a ambos. Se o texto parecer por demais pesa- politanas em função da guerra do tráfico.
do ou, por outro lado, muito redundante, a culpa é toda do Entre as possíveis sedes das lesões produzidas pelos agen-
autor que não foi capaz de superar a dificuldade de explicar tes mecânicos, ressalta a cabeça pela frequência dos trauma-
fatos médicos para juristas e aspectos legais para m édicos. tismos craniencefálicos. Por essa razão, convidamos o patolo-
Este livro está dividido em nove partes. A Parte 1 tem a gista e perito legista José Carlos Pando Esperança, professor
intenção de situar o médico no mundo jurídico, fazendo-o do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da
compreender as regras básicas do direito. Desse modo, pro- UFRJ, para escrever o Capítulo 12 - Estudo m édico-legal dos
curamos levá- lo a entender o valor das perícias e do seu com- traumatismos craniencefálicos. Nesse capítulo, são discuti-
promisso legal quando de sua investidura como perito. Essa dos os mecanismos lesionais e as suas repercussões clínicas,
parte pode parecer supérflua aos profissionais do direito. tais como as incapacidades e a morte, por profissional dedi-
A Parte 2 procura informar a ambos os profissionais as cado à neuropatologia.
técnicas de identificação tanto do vivo quanto do morto. A Os diversos mecanismos lesionais por ação térmica e por
maior ênfase é dada à identificação de despojos humanos ação elétrica são extensamente discutidos, respectivamente,
- Antropologia Forense. Procuramos nos valer dos conhe- nos Capítulos 17 e 18. Novos conceitos são introduzidos em
cimentos adq uiridos pela jovem legista Virgínia Rosa Ro- ambos, ressaltando-se a ação lesiva dos campos elétricos ge-
drigues Dias, que tem manifesto interesse por essa área da rados pelas grandes diferenças de potencial (eletroperfura-
Medicina Legal, na qual já frequentou curso ministrado por ção). Tanto o calor quanto o frio são estudados com relação
Douglas Ubelaker, cuja autoridade nesse campo é interna- à temperatura ambiente e à sua ação local (queimaduras e
cionalmente reconhecida. geladuras) .
XVI • Introdução

As energias de ordem química são estudadas no Capítu- Completamos a Parte 6 com os Capítulos 28 e 29, res-
lo 19, no qual procuramos descrever sua ação local, como pectivamente, sobre os aspectos médico-legais do casa-
cáusticos, e, geral, como venenos. Fazemos breve aborda- mento e do aborto. O estudo médico-legal do casamento
gem dos principais agentes tóxicos sem qualquer pretensão está baseado nos artigos 1.511 a 1.582 do Subtítulo I Do
de servir como texto de referência em farmacologia ou to- Casamento, do Título I Do Direito Pessoal, do Livro IV Do
xicologia clínica. Tais citações devem ser entendidas mais Direito de Família do Código Civil de 2002. No Capítulo
como exemplificação dos princípios gerais da toxicologia 29 - Estudo Médico-legal do Aborto, fazemos pequena re-
forense. Tampouco nos preocupamos em fornecer as ba- visão histórica da legislação brasileira republicana e com-
ses técnicas laboratoriais toxicológicas, pois tal abordagem paramos seus aspectos atuais com as normas vigentes em
fugiria ao escopo desta obra. Nossa intenção foi alertar os outros países. São mostrados números comparativos da in-
peritos legistas sobre as armadilhas que a necrópsia dos in- cidência de aborto legal e ilegal no Brasil e no mundo, bem
toxicados pode trazer. O objetivo principal foi recomendar e como as complicações decorrentes das práticas ilegais. São
justificar a melhor conduta nas diversas situações de ordem descritas as técnicas abortivas mais modernas e mostradas
prática. Os profissionais do direito poderão achar indigesta as dificuldades da perícia no que diz respeito à demons-
boa parte do texto, mas, no geral, compreenderão as limita- tração da gravidez pregressa e à afirmação da provocação
ções impostas pelas circunstâncias aos peritos, na hora de dolosa. No que tange ao diagnóstico da gravidez pregressa
responder a suas consultas. em material de necrópsia, são propostos novos métodos
A par da etiopatogenia e da fisiopatologia, abordamos diagnósticos.
os aspectos jurídicos dos traumas nos Capítulos 20 e 21. O A violência contra recém-natos e crianças é o tema da
Capítulo 20 versa sobre o tema das lesões corporais, enfo- Parte 7. Inicia-se com o Capítulo 30 - Infanticídio, no qual
cando seu aspecto penal. É escrito pelo professor Nereu Gil- fazemos revisão histórica dos aspectos legais, inclusive a
berto Moraes Guerra Neto, cuja titulação o torna a pessoa proposta de modificação que tramita no Congresso Nacio-
ideal para discorrer sobre o tema. É ele médico patologista, nal. Nesse capítulo, damos as bases morfológicas da perícia
legista e bacharel em Direito. Sua dupla formação, médica a ser realizada na vítima e na mãe. A chamada "Síndrome
e jurídica, fica bem patente ao longo de um texto rico em da Criança Espancada" é abordada no Capítulo 31 pela pro-
conhecimentos jurídicos e médicos. Por sua vez, o Capítulo fessora Naura Liane de Oliveira Aded, atualmente a legista
21 - Infortunística demonstra a importância da traumato- mais interessada e atuante nessa área. Pediatra de formação,
logia forense nos acidentes do trabalho. Através de pequena alia seus conhecimentos ao exame de crianças e adolescentes
revisão histórica da legislação, procuramos levar o leitor a re- vítimas da violência doméstica e institucional.
fletir sobre a proteção e o amparo ao trabalhador acidentado A Psiquiatria Forense, um dos ramos da Medicina Le-
e sobre as incapacidades resultantes dos acidentes. Em ter- gal, constitui a Parte 8. Dividimo-la em três capítulos: 32,
mos quantitativos, levantamos dados estatísticos nacionais 33 e 34. O 32 reporta-se ao estudo da imputabilidade penal
e estrangeiros com a intenção de avaliar a eficácia de nossas e à influência dos diversos fatores que podem modificar a
medidas de prevenção. capacidade do agente de entender a ilicitude de sua ação,
A rigor, a Parte 5, que lida com as asfixias, pertence à de acordo com o critério biopsicológico adotado por nosso
Traumatologia Forense. Mas a própria dificuldade de inse- Código Penal. O 33, escrito pelo louvado psiquiatra foren -
rir as asfixias na classificação geral das energias vulnerantes se Miguel Chalub, livre-docente de psiquiatria da Facul -
indica sua peculiaridade. A designação "energias de ordem dade de Medicina da UFRJ, aborda a capacidade civil das
físico-química" carece de precisão conceituai, embora já pessoas naturais diante do novo Código Civil. O mesmo
consagrada pelo uso. Na verdade, não se devem as asfixias colaborador, com base em sua grande experiência de psi-
a fenômenos de ordem físico-química. Adotamos conceito quiatra clínico, mormente no tratamento das toxicoma-
e classificação próprios, fruto de muita reflexão sobre a ma- nias, escreve o capítulo sobre embriaguez e toxicomanias
téria. Os textos dessa parte seguem a classificação proposta ao final desta parte.
no Capítulo 22. Criamos, na presente edição, uma nova parte voltada
A Parte 6, referente à Sexologia Forense, aborda os crimes para a aplicação dos conhecimentos da Biologia aos pro-
sexuais, o casamento e o aborto. Inicia-se pelos Capítulos 26 blemas legais - a Biologia Forense. Convidamos Janyra Oli-
e 27, escritos pelo professor Nilo Jorge Rodrigues Gonçalves, veira-Costa, doutora em Biologia pelo Museu Nacional da
que é, além de excelente legista, ginecologista especializado UFRJ, para escrever e ilustrar o Capítulo 35 - Entomologia
em reprodução humana, autor de tese de livre-docência so- Forense. Como o escopo maior da Entomologia Forense é
bre útero de aluguei. No Capítulo 26, ele aborda os aspectos contribuir para uma determinação mais acurada da hora
m édico-legais dos atos libidinosos e dos transtornos da se- da morte, pensamos em colocá-la como mais um capítulo da
xualidade. No Capítulo 27, discorre sobre os crimes contra a Tanatologia Forense (Parte 3). Mas, dada a gama de conheci-
dignidade sexual, descritos nos artigos 213 a 234-B do Códi- mentos necessários à sua compreensão, resolvemos colocá-la
go Penal, com ênfase nos aspectos periciais. em destaque como uma unidade autônoma.
Introdução • XVII

Embora cientes da impossibilidade de atualizar comple- críticas feitas quando da primeira publicação, continua a
tamente os temas, grande esforço foi por nós empreendido m erecer o olhar crítico dos leito res, aos quais somos profun-
no sentido de dar ao leitor as info rmações mais recentes de damente gratos.
mo do o mais completo possível. Esperamos que esta obra
continue a ser de valor com o fonte de consulta tanto para Rio de Janeiro, 13 de maio de 2014.
médicos, peritos ou não, quanto para os profissionais do di-
reito seja na área penal, seja na civil. Esta edição, a despeito Hygino de C. Hercules
dos esforços empreendidos na atualização e da acolhida às
PARTE 1 - INTRODUÇÃO À MEDICINA LEGAL
1. Noções de Direito. Normas Morais e Normas Jurídicas, 3
Hygino de C. Hercules

2. História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal, 7


Hygino de C. Hercules

3. Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais, 17


Hygino de C. Hercules

PARTE 2 - ANTROPOLOGIA FORENSE


4. Identidade e Processos de Identificação, 35
Hygino de C. Hercules

5. Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura, 49


Virgínia Rosa Rodrigues Dias
Hygino de C. Hercules

PARTE 3 - TANATOLOGIA
6. Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes, 103
Hygino de C. Hercules

7. Causa Jurídica da Morte, 123


Hygino de C. Hercules

8. Morte Súbita e Morte Suspeita, 145


Hygino de C. Hercules

9. Cronotanatognose, 165
Hygino de C. Hercules

PARTE 4 - TRAUMATOLOGIA FORENSE


1O. Traumatologia Forense Geral, 187
Hygino de C. Hercules

11. Lesões e Morte por Ação Contundente, 193


Hygino de C. Hercules
XX • Sumário

12. Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos, 215


José Carlos Panda Esperança

13. Lesões e Morte por Armas Brancas, 237


Hygino de C. Hercules

14. Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo, 251


Hygino de C. Hercules

15. Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia, 285


Hygino de C. Hercules

16. Estudo Médico-legal das Baropatias, 305


Hygino de C. Hercules

17. Lesões e Morte por Ação Térmica, 331


Hygino de C. Hercules

18. Lesões e Morte por Ação Elétrica, 363


Hygino de C. Hercules

19. Ação Química. Toxicologia Forense, 389


Hygino de C. Hercules

20. Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano, 429


Nereu Gilberto M. Guerra Neto

21. lnfortunística, 461


Hygino de C. Hercules

PARTE 5 -ASFIXIOLOGIA. ENERGIAS DE ORDEM FÍSICO-QUÍMICA


22. Conceito e Classificação das Asfixias, 511
Hygino de C. Hercules

23. Asfixias por Sufocação, 523


Hygino de C. Hercules

24. Asfixias por Constrição Cervical, 533


Hygino de C. Hercules

25. Asfixias por Modificações do Meio Ambiente, 557


Hygino de C. Hercules

PARTE 6 - SEXOLOGIA FORENSE


26. Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade, 581
Nilo Jorge Rodrigues Gonçalves

27. Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial, 595


Nilo Jorge Rodrigues Gonçalves
Sumário • XXI

28. Aspectos Médico-legais do Casamento, 615


Hygino de C. Hercules

29. Estudo Médico-legal do Aborto, 631


Hygino de C. Hercules

PARTE 7 - VIOLÊNCIA CONTRA RECÉM-NATOS E CRIANÇAS


30. Infanticídio, 669
Hygino de C. Hercules

31. Síndrome da Criança Espancada, 695


Naura Liane de Oliveira Aded

PARTE 8 - PSIQUIATRIA FORENSE


32. Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal, 709
Hygino de C. Hercules

33. Estudo Médico-legal da Capacidade Civil, 729


Miguel Chalub

34. Estudo Médico-legal do Alcoolismo e da Dependência Química, 735


Miguel Chalub

PARTE 9 - BIOLOGIA FORENSE


35. Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM), 741
Janyra Oliveira-Costa

Índice Remissivo, 761


Hygino de C. Hercules

A autodeterminação, a linguagem simbólica e o traba- desafios de um mundo pleno de perigos. Destarte, a possi-
lho produtivo fizeram com que o homem pudesse se des- bilidade de sobrevivência resultava da forte união que havia
tacar das outras espécies de animais e construir o mundo entre os membros das tribos. Eram enaltecidas as qualidades
civilizado. Só o homem, entre os animais, tem a capacidade que tornavam o indivíduo útil à preservação do grupo - for-
de mudar o curso da sua história de vida, diferentemen- ça física, valentia, sacrifício pelo coletivo. A moral individual
te dos outros, que seguem uma curva vital predetermina- era pobre, pois restavam poucas opções a cada qual, a não ser
da geneticamente. Não se tem informação de que alguma agir em função das necessidades do grupo.
espécie jamais tenha demonstrado qualquer forma de fuga Com o passar do tempo, houve necessidade de especia-
ao determinismo de seu ciclo vital. Não ocorrendo alguma lização dos trabalhadores, que tinham que executar tarefas
mutação genética, to dos seguem os passos de seus ances- cada vez mais complexas em função das modificações que
trais, geração após geração. Já o ser humano, por outro lado, vieram a ocorrer no modo de produção, decorrentes da
desde suas origens, descobriu novos caminhos, criando criação de novos métodos e técnicas de trabalho. Com isso,
opções diferentes daquelas de que dispunham seus antepas- ocorreu uma estratificação profissional. Além do mais, adis-
sados. Sua capacidade criativa, decorrente do ra ciocínio as- tribuição e o gozo dos bens foram-se tornando desiguais,
sociativo, permitiu-lhe substituir ideias por símbolos, passo principalmente pela adoção do trabalho escravo, consequên-
fundamental para o surgimento da linguagem. Assim, foi cia direta da dominação dos povos mais fracos pela força das
possível, através da linguagem simbólica, criar um legado armas. Esses fatos fizeram com que as normas de conduta se
cultural que foi de geração em geração, sempre aperfeiçoa- alterassem, de modo a fazer face à nova ordem social.
do. Com isso, libertou-se da fatalidade de aprender com os Da Antiguidade até os nossos dias, a expansão dos domí-
próprios erros. nios do homem sobre a face da terra aumentou a área habi-
O trabalho produtivo, voltado inicialmente para a sobre- tada e fez crescer a população mundial. Como era natural,
vivência, à medida que novas técnicas foram incorporadas houve grandes conflitos, que mudaram as relações entre as
ao sistema produtivo, expandiu-se, chegando a criar exce- classes sociais. Os impérios se sucederam, numa evolução
dentes, que passaram a ser armazenados como tesouros. A contínua de expansão, apogeu e declínio, conforme explica
partir daí, começaram a se distinguir classes sociais de di- o materialismo histórico. Mas sempre a convivência dos ho-
ferente poder aquisitivo. As relações humanas, como era de mens em sociedade continuou, e se mantém até hoje, regi-
se esperar, também sofreram modificações. As normas bali- da por normas que procuram validar os costumes vigentes
zadoras do comportamento individual na sociedade foram e consagrar valores de ordem moral - as normas éticas. Em
mudando com o passar do tempo para fazer face às mudan- cada região e em cada época da história, a conduta humana
ças da ordem económica. tem sido orientada pela educação no sentido da cooperação
Nos estágios mais primitivos da sociedade, o mais impor- e da obediência ao que é dado como correto e moralmente
tante era a preservação da espécie. A sociedade era formada válido. E a transgressão às regras sempre tem acarretado ao
por indivíduos inermes e incapazes de enfrentar sozinhos os infrator o repúdio de seus pares.

3
4 • CAPITULO 1 Noções de Direito. Normas Morais e Normas Jurídicas

A conduta contrária às convenções morais, também cha-


madas de éticas, leva à rejeição do indivíduo, o que é uma
experiência que todos já experimentamos ao longo da vida.
Mas essa punição de ordem simplesmente moral não priva
o indivíduo de sua liberdade nem lhe retira bens materiais;
apenas o deixa constrangido e com noção de culpa - maior
ou menor, conforme a estrutura de seu caráter.
Como há, e sempre houve, indivíduos que não se inco-
modam com o conceito de que desfrutam na sociedade, a
simples reprovação moral da conduta não os afeta e, por
isso, não é suficiente para manter a harmonia da vida em - Legalidade
sociedade. Assim, desde tempos imemoriais, os homens es-
tabeleceram um conjunto de normas mais poderosas, embo-
Ideal
ra igualmente de cunho ético, que coagem os indivíduos à
obediência pela aplicação de punições mais severas, como a
restrição da liberdade, a imposição de castigos físicos, a deca- Moralidade
dência de direitos ou a aplicação de penas pecuniárias. Essas Figura 1.1. A zona cinza corresponde a um ideal utópico em que a
normas, garantidas pelo poder do governo - qualquer que legislação consagra plenamente a moralidade vigente na sociedade. As
seja sua forma -, são conhecidas como normas jurídicas. São áreas preta e branca representam, respectivamente, leis imorais e atos
impostas aos cidadãos e têm que ser obedecidas sob pena ilegais moralmente válidos.
de retaliação proporcional à infração cometida. O Governo
(Estado) não pede ao indivíduo que siga a norma, mas, sim,
ordena. É o imperativo jurídico. O Estado tem o monopólio No campo da legalidade, do ordenamento jurídico, as
do uso da força para fazer cumpri-la. ações humanas devem ser divididas em lícitas e ilícitas, sem
O conjunto das normas morais de uma sociedade estabe- que haja um meio-termo. O Direito não existiria se fosse
lece a moralidade, enquanto o conjunto das normas jurídi- possível considerar uma ação semilegal. Segundo Hermes
cas constitui o campo da legalidade. Q ualquer ação humana Lima, cair-se-ia na perplexidade. São lícitas as ações que
que caia fora desses campos é considerada, respectivamente, representam pretensões garantidas pelo Direito; ilícitas são
imoral ou ilegal. Pode-se dizer que uma sociedade está per- aquelas que originam responsabilidades e sa nções por ele
feitamente estruturada quando os campos da moralidade e im postas.
da legalidade se superpõem. Mas isso é uma utopia. O que Chama-se de direito positivo o conjunto de normas ju-
ocorre com frequência muito maior é não haver perfeita rídicas consagradas pelo poder público em um determina-
coincidência. Em primeiro lugar, po rque as relações sociais do país. Em geral, está escrito em leis elaboradas pelo Poder
são dinâmicas e mudam mais, ou menos, rapidamente com Legislativo e sancionadas pelo Executivo. O direito positivo
o passar do tempo. Em segundo lugar, porque a elaboração tem dois ramos, o objetivo e o processual. O objetivo é forma -
das leis segue um rito que depende da forma de governo, po- do pela norma que estabelece a conduta legítima. Conforme
dendo ser rápida ou lenta. A legislação de uma sociedade é o campo da atividade humana que o conjunto de no rmas
tanto mais justa quanto maior for a área comum aos dois regule, estaremos diante do direito penal, civil, trabalhista,
campos, conforme a Figura 1.1. administrativo, comercial etc. O direito processual corres-
O esquema mostra que as ações humanas podem cair em ponde ao conjunto de regras segundo as quais o poder pú-
qualquer das três áreas, e o ideal é que fiquem na zona de blico faz cumprir as normas objetivas. Sempre que ocorre
superposição, quer dizer, sejam moralmente válidas e legais. a violação de uma dessas, torna-se necessário um conjunto
Mas há situações em que as ações são realizadas de acordo de medidas prescritas pelo direito processual para que seja
com a lei, mas não traduzem um comportamento ético. Por verificada e sanada a lesão de direito. Ao conjunto de proce-
exemplo, legisladores votarem aumento de seus próprios dimentos adotados dá-se o nome processo. Em um processo
salários quando o governo, por falta de verbas, recusa-se a registram-se fatos transitórios e fatos duradouros. Os fatos
aprovar aumento para os funcionários públicos. Por outro transitórios, como uma ofensa verbal, devem ser demonstra-
lado, por vezes nos deparamos com situações em que a ação dos por meio do depoimento de testemunhas, mas os fatos
é moralmente dignificante, mas contrária à lei, como nos ca- duradouros, que deixam uma modificação no ambiente físi-
sos de pacientes com câncer avançado e incurável em que o co, têm que ser comprovados por profissionais especializa-
médico deixa de usar os meios necessários à manutenção da dos, conforme a natureza dos vestígios ou indícios deixados.
vida, como reposição de sangue após uma hemorragia inten- O indivíduo que examina esses elementos a pedido de uma
sa, deixando-os morrer. Ele alivia o sofrimento do indivíduo, autoridade competente é genericamente chamado de perito.
mas comete homicídio por omissão. Atualmente, há países E o exame realizado recebe o nome de perícia. Como é natu-
em que essa postura dos médicos, conhecida como eutanásia ral, o tipo de exame depende da natureza da infração. Assim,
passiva, não é incriminad a. tanto pode ser feito numa pessoa, por um médico, ou numa
CAPITULO 1 Noções de Direito. Normas Morais e Normas Jurídicas • 5

coisa, por outro técnico. As perícias e sua regulamentação BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


serão abordadas no Capítulo 3 desta obra.
As demandas e contendas da vida em sociedade devem
ser resolvidas na justiça. Não cabe ao cidadão, mesmo co- 1. Aranha ML de A, Martins MHP. Filosofando. Introdução à Filoso-
berto de razão, fazer justiça pelas próprias mãos. Para fazer fia. São Paulo: Editora Moderna; 1991.
valer sua razão compete-lhe, através de um advogado, ini- 2. Hercules H de C. Noções de Direito. Normas morais e normas ju-
ciar procedimentos que seguem regras preestabelecidas e rídicas. Capítulo 1, em Medicina Legal, editor Hélio Gomes. 32• ed.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora; 1997. p. 3-6.
são chamados de processos. Um processo é um conjunto de
3. Lima H . Introdução à Ciência do Direito. 23• ed. Rio de Janeiro:
procedimentos que se deve seguir para apurar se houve uma Livraria Freitas Bastos SA; 1973.
lesão de direito de alguém e estabelecer e cobrar as responsa- 4. Vásquez AS. Ética. 14• ed., Rio de Janeiro: Editora Civilização
bilidades dos envolvidos no fato jurídico. Brasileira SA; 1993.
Hygino de C. Hercules

• DOS PRIMÓRDIOS À IDADE MODERNA cravo, deve pagar escravo por escravo''. Contudo, as penas
relativas a tratamentos malsucedidos variavam desde multas
Desde tempos imemoriais, as regras de convivência em até a amputação das mãos do médico, na dependência da
sociedade já dependiam de conhecimentos sobre a nature- importância social do paciente. Em compensação, os hono-
za humana. Sua formulação era baseada nos costumes e nas rários eram estabelecidos legalmente pela mesma escala de
parcas informações acerca da influência da fisiologia e da valores. Esse código fazia referência, inclusive, à anulação de
patologia humanas no comportamento. Assim, os primeiros contratos de compra e venda de escravos por estarem doen-
sinais de uma relação íntima entre a Medicina e o Direito tes. Representa, pois, o primeiro marco da relação médico-
remontam aos registros da Antiguidade. No seio dos povos legal, embora não estipulasse que os juízes teriam que ouvir
antigos, o poder dependia principalmente da força, mas tam- médicos ao julgarem os casos 1·2.3.
bém emanava de líderes que alardeavam dons especiais, fruto O Código de Manu, na Índia do período budista, sécu-
de seu alegado relacionamento com os deuses - os sacerdotes. lo V a.C., proibia que crianças, velhos, embriagados, débeis
Considerados representantes divinos e agentes da sua vonta- mentais e loucos fossem ouvidos como testemunhas. Essa
de, ditavam normas que deveriam ser obedecidas para que os interdição, no mundo ocidental, só aparece muito depois,
bons fados acompanhassem o grupo. Pelos poderes sobrena- com a Lei das XII Tábuas (449 a.C.), promulgada no Impé-
turais de que se diziam possuidores, eram chamados a inter- rio Romano. Determinava, entre outras coisas, que a duração
vir com frequência quando a cólera dos deuses, externada sob máxima aceita para a gravidez seria de 10 meses, o que coin-
a forma de doen ças, abatia-se sobre os membros daquelas co- cide com o nosso prazo de viuvez como causa suspensiva do
munidades. Nesse momento, o sacerdote, intérprete da von- matrimônio. Além disso, um julgamento poderia ser adiado
tade divina, invocava poderes sobrenaturais para afugentar por doença do juiz ou de qualquer das partes litigantes1•2•3 •
os maus espíritos e curar os enfermos. Para isso, valia-se de Na antiga Pérsia, as leis estabeleciam uma classificação
orações, ofertava sacrifícios e usava o que realmente detinha das lesões corporais por ordem de gravidade, o que só viria
da arte de curar, através do uso de ervas medicinais. O arauto a aparecer novamente na Lex alemanorum, no século V da
das leis divinas era, a um só tempo, legislador, juiz e médico 1.z. era cristã, com a finalidade de se arbitrar a multa a ser paga
Os documentos mais antigos da história humana dão pelo agressor 1•2•
inúmeros exemplos da influência mútua entre a Medicina e A primeira citação do exame médico de uma vítima de
o Direito. O código penal mais antigo que se conhece, o de homicídio refere-se à morte de Júlio César. Seu corpo foi
Hamurábi, da Babilônia, promulgado no século XVIII a.C., examinado por Antistius, um médico que pertencia ao seu
contém dispositivos relativos à relação jurídica entre médico círculo de amizades, no ano 44 a.C. Constatou a presença de
e paciente. Estabelecia em um de seus artigos: "Se um médi- 23 golpes, dos quais apenas um foi mortal. Mas o exame não
co tratou um ferimento grave de um escravo de um homem foi feito como perito médico, e sim na qualidade de cidadão
pobre, com uma lanceta de bronze, e causou a morte do es- do Império Romano 1•2•4 •

7
8 • CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal

Alguns séculos depois, o reconhecimento de que os mé- 1507, na região da atual Alemanha, pelo Código de Bamberg.
dicos são testemunhas especiais em juízo foi feito por Justi- Assim mesmo, sem a abertura dos corpos, apenas a inspeção
niano (483 a 565 a.D. )1•2 • Contudo, os juízes não eram obri- externa. Ainda não chegara a vez da necropsia forense 1•2•3•
gados a ouvi-los. A obrigatoriedade só aparece na já referida
Lex alemanorum dos povos bárbaros germânicos. Com o
passar do tempo, esse reconhecimento vai-se tornando mais • A MEDICINA LEGAL NOS SÉCULOS XVI ,
frequente. Carlos Magno (742 a 814), nas Capitulárias, ins- XVII E XVIII
truí os juízes a ouvi-los em casos de lesão corporal, infanticí-
dio, suicídio, estupro, impotência etc1·2.4·5• A necropsia forense só foi permitida com a promulga-
O Livro da Lei Comum de São Luís, na França do sé- ção da Constitutio Criminalis Carolina, o grande marco da
culo XIII, manda substituir os duelos judiciais e as provas história da Medicina Legal no século XVI, promulgada pelo
de resistência (ordálios) pela palavra dos médicos. Até en- imperador alemão Carlos V, em 1532. Abordava, entre ou-
tão, o vencedor do duelo judicial sempre tinha razão, porque tros, vários temas médico-legais, tais como traumatologia,
vencera por ter sido protegido por Deus, sempre justo. Da sexologia e psiquiatria forense. Mas ainda não a tornava
mesma forma, o infeliz que conseguisse resistir a torturas ex- compulsória. Podemos dizer que essa constituição abrigava
tremas era dado como inocente 1•2• o embrião da Medicina Legal como uma disciplina distinta e
Em plena Idade Média, 1234, o papa Gregório IX substi-
individualizada 1•2•3•4•5 •
tui o juramento da acusada pelo exame médico de virginda- Os relatórios médico-legais tornaram-se frequentes.
de nos casos de anulação de casamento. Seguiu-se a chamada
Com a submissão desses relatórios às faculdades de medi-
prova pelo "congresso" para se caracterizar a impotência do
cina para avaliação, houve maior divulgação dos problemas
marido. Os médicos examinavam os cônjuges e indicavam
médico-legais, despertando o interesse dos estudiosos. As
uma matrona experiente como observadora enquanto mari-
compilações dos relatórios seriam o germe das primeiras
do e mulher tentavam realizar a conjunção carnal. Logo após
obras de valor no mundo ocidental. Assim, a partir da segun -
o prazo estabelecido, a matrona relatava o acontecido, e a
da metade do século XVI, emergem os primeiros tratados2•
mulher era reexaminada. Algum tempo depois, a matrona
Na França, em 1575, surge o que pode ser considerado
foi substituída por uma junta de três médicos, três cirurgiões
o primeiro livro ocidental de Medicina Legal, o Traité des
e três parteiras1•2•5 • Essa prática foi usada na França até 1677.
Relatoires, escrito pelo grande cirurgião do exército fran-
Nesse ano, o Parlamento a suprimiu porque o Marquês de
cês, Ambroise Paré. Nele, o autor estuda, entre o utros temas
Langey, que havia sido declarado impotente, já constituíra
nova família, tendo sete filhos com outra mulher6. médico-legais, as feridas por projéteis de arma de fogo. Mas,
Àquela época, com meios de comunicação precários, não por influência do ambiente cultural em que vivia, abrigou
era possível haver influência importante dos costumes de crenças sobrenaturais em parte de seus relatórios. No Traité
um povo sobre outro que habitasse região muito distante. des Monstres et des Prodiges aceitava o fenô meno da superfe-
Tal fato tornava os avanços culturais muito regionalizados. tação; no Traité de la Génération acreditava na atuação malé-
Assim é que o primeiro registro de uma obra escrita de Me- vola de feiticeiros que tinham pactos com o demônio, capa-
dicina Legal vem da China. É o H si Yuan Lu, um volumoso zes de tornar estéril um casal1.2. 3.4. Lacassagne o considera o
manual para a aplicação dos conhecimentos médicos à solu- pai da Medicina Legal5. Ainda na França, ao findar o século,
ção de casos criminais e ao trabalho dos tribunais, publicado em 1598, Séverin Pineau escreveu um livro sobre virgindade
pela primeira vez em 1248. Ao lado de noções fantasiosas, e deflor amento, em que afirmava que o hímen podia restar
comuns aos escritos da época, refere-se ao diagnóstico di- intacto após a cópula vaginal, chamando a atenção para o
ferencial de lesões produzidas antes ou depois da morte, fenômeno da complacência himenal1.
bem como à técnica de exame dos corpos, provida de ampla Contudo, não seriam francesas as obras mais impor-
ilustração 1•2•3•4 • tantes desse período. Teriam o rigem na Itália. Em 1597, um
A importância dos médicos nos tribunais ganha maior médico de Ímola, de nome Baptista Codronchius, publica o
destaque na França ao tempo de Felipe, o Audaz, que emite as livro Methodus Testificandi, em que estuda problemas mé-
"Cartas Patentes" em 1278, que fazem alusão a cirurgiões ju- dico-legais de traumato logia, sexologia e toxicologia, com o
ramentados junto à pessoa do rei. A nom eação de médicos, ci- auxílio de casos ilustrativos 1•2•5• No ano seguinte, 1598, na ci-
rurgiões, parteiras e barbeiros para funcionarem com o peritos dade de Palermo, aparece o primeiro grande tratado ger al de
em casos de lesão corporal, morte violenta, atentado ao pudor Medicina Legal. Escrito por Fortunato Fidelis sob o título De
etc. torna-se frequente em Paris a partir do século XIV 1•2• Relationibus Medicorum, estava dividido em quatro livros. O
Até 1374, as necropsias eram feitas clandestinamente pe- primeiro versava sobre saúde pública; o segundo, ferimen-
los anatomistas. Mas, nesse ano, o papa concede à Faculda- tos, simulação de doenças e erro médico; o terceiro, virgin-
de de Medicina de Montpellier a primeira autorização para dade, impotência, gravidez e viabilidade fetal; o quarto, vida
realizá-las para estudos anatômicos e clínicos 1• e morte, fulgura ção e envenenamento. O autor defendia a
A obrigatoriedade da perícia médica em mortes violentas prática de necropsias completas. Apesar de muito bo m para
só foi decretada, de acordo com os registros disponíveis, em a época em que foi escrito, seu trabalho não teve a mesma re-
CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal • 9

percussão que a obra do romano Paulus Zacchias, Questiones • SÉCULO XIX: A ERA DE OURO DA
Medico-legales. Era formada por um conjunto de dez livros,
publicados entre 1621 e 1658. Indubitavelmente, é a maior
MEDICINA LEGAL
obra dessa fase da Medicina Legal. Cada livro é dividido em
As modificações legais introduzidas na França pela Re-
partes, que, por sua vez, são divididas em questões especí-
volução de 1789 modificaram muito o seu direito proces-
ficas. Tal conjunto abrange aspectos médico-legais de obs-
sual. Em primeiro lugar, o Code d'Instruction Criminelle,
tetrícia, sexologia, psiquiatria, toxicologia, traumatologia,
promulgado por Na poleão em 1808, desfechou golpe mor-
tanatologia e saúde pública 1 • Os livros de Paulus Zacchias
tal nas práticas jurídicas secretas e inquisitoriais dos séculos
excederam os de seus contemporâneos em extensão, profun-
precedentes4 • O trabalho dos juízes e o parecer dos médicos
didade e qualidade e continuaram como fontes de referência
passaram a ser públicos. Antes da Revolução, o segredo dos
até o início do século XIX 1.z. 3•4•5 . Na década dos anos de 1990,
pareceres acobertava a incompetência e a venalidade em nu-
ainda havia um volume dessa obra na biblioteca do Centro
merosos julgamentos. Em segundo lugar, o interesse pelo
de Estudos do Instituto Médico-legal Afrânio Peixoto.
social fez com que a medicina preventiva se desenvolvesse
Durante o século XVII, além dos italianos, também des-
mais, já que a plebe e a burguesia, classes menos favorecidas
pontaram grandes autores alemães na Medicina Legal. Assim
que a nobreza, eram as mais atingidas quando da eclosão de
é que, em 1650, surge o primeiro curso especializado em Me-
epidemias. Como os médicos oficiais eram responsáveis tan-
dicina Legal. Foi lecionado na Universidade de Leipzig, por
to pelos pareceres para a justiça como pela implementação
Michaelis 1• Em 1681, em Pressburg, na Bratislávia, Johann
de medidas de saúde pública, as duas áreas foram fundidas
Schreyer, baseado na proposição, atribuída por alguns ao di-
no que passou a ser chamado de Medicina Pública2•3.4.
namarquês Thomas Bartholin, de que o pulmão que respirou
conteria ar, usou a chamada prova hidrostática de Galeno em A partir da criação das cátedras de Paris, Strasbourg e
Montpellier, tem grande desenvolvimento a Medicina Le-
um caso de infanticídio, substituindo, pela primeira vez, as
confissões obtidas mediante tortura por prova técnica 2•3•4•7 • gal francesa. Em 1799, Foderé, que viria a ser o primeiro
Outros nomes, como Welsch e Amman, destacaram-se catedrático de Strasbourg, publica seu Traité de Médecine
Légale et d'Hygiene Publique, que permaneceria como obra
na escola de Leipzig, mas o mais famoso foi Johannes Bohn.
Seu trabalho De renunciatione vulnerum lethalium examen, de referência por cerca de 50 anos 1•2• Em 1829, é fundado o
de 1689, foi a principal obra alemã da época. Nela, o autor Annales d'Hygiene Publique et de Médecine Légale, primeiro
classificava as lesões em mortais por si e naquelas fatais ape- periódico para publicação de trabalhos em Medicina Legal
nas quando complicadas por o utros fatores, além de fazer o na França 1•2•3 •
diagnóstico diferencial entre lesões produzidas em vida ou As grandes descobertas no campo da Física, da Química e
após a morte 1·2.3. Escreveu sobre deontologia, estabelecendo da Biologia começaram a ser incorporadas à Medicina Legal
regras de conduta para os médicos quando de sua relação no início do século. Coube a Juan Matio Bo naventura Orfila,
com os clientes e quando diante dos tribunais. Propunha um espanhol naturalizado francês; Marie Guillaume Alphonse
controle médico dos venenos, pleiteava autopsias completas Devergie, francês; e Johan Ludwig Casper, alemão, dar cunho
e negava enfaticamente a possessão demoníaca e os poderes científico à Medicina Forense2.4.
mágicos. Por tudo isso, pode-se concluir que estava alguns Orfila, considerado o pai da moderna toxicologia, trouxe
passos adiante do seu tempo 1•2• para a Medicina Legal seus conhecimentos de química analí-
No século XVIII, há poucas referências importantes tica, forjando sólida base científica para a atividade pericial.
como marcos na história da Medicina Legal. Na França, Sua obra Traité des Poisons... pode ser considerada revolucio-
depois de Ambroise Paré, são encontradas poucas obras de nária, já que trouxe a metodologia da química para o estudo
real valor. Entre as ca usas da decadência citam-se a multi- dos casos de envenenamento. Até então, era muito comum a
plicidade de jurisdições, a necessidade de confissão dos réus, prática de homicídios por meio de venenos, em face da difi-
mesmo que obtida por torturas, a ausência de defensor em culdade de comprovação pericial1·2•4 •
muitas causas, a inexperiência e incompetência dos peritos, Devergie, em 1834, iniciou o primeiro curso prático de
além da venalidade e do segredo dos ofícios 2• A atuação pe- Medicina Legal na França. Mas, em razão das dificuldades
ricial continuava a cargo dos cirurgiões, já que os clínicos a de o rdem política que encontrou, teve duração de apenas 2
detestavam. O vulto mais importante foi o de Antoine Louis, anos. Em 1835, escreveu a obra Médecine Légale, Théorique
o primeiro a ensinar Medicina Legal e Saúde Pública em seu et Pratique4. Esse curso, contudo, foi reaberto em 1878, por
país. Escreveu sobre vários temas médico-legais, inclusive Brouardel, que dispunha de condições ideais para fazê-lo. Ele
lesões por contragolpe nos traumatismos cranioencefálicos, era o inspetor da morgue e assistente de Tardieu, catedrático
em 1772. Era comum que os mesmos médicos exercessem de Medicina Legal de Paris2•4 .
tanto a atividade pericial como as ações de medicina preven- Casper trabalhou em Berlim sob condições quase desu-
tiva, pois eram funcionários do Estado 1•2• manas. Seu local de trabalho era fétido e lúgubre, situado
Foi nesse século que surgiu, em Berlim, a primeira publi- em porões com pouca ventilação. A publicação de seus livros
cação especializada em Medicina Legal. Começou a circular Gerichtliche Leichenoffnung (Dissecção Forense), de 1850,
em 1782, editada por Uden e Pyl1. e Praktisches Handbuch der Gerichtlichen Medizin (Manual
10 • CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal

Prático de Medicina Forense), de 1856, garantiu à Medicina as antigas escolas médico-cirúrgicas criadas por decreto de
Legal um lugar entre as ciências médicas'' 2,4 . D. João VI em 1808, na Bahia e no Rio de Janeiro, são trans-
A partir da segunda metade do século XIX, a aplicação formadas em faculdades de medicina oficiais, sendo criada
do método científico às ciências biológicas modificou a vi- em ambas uma cadeira de Medicina Legal 9''º'". Como, para
são médica das doenças. Paulatinamente, foram surgindo obter o grau de doutor, os alunos eram obrigados a defender
as especialidades clínicas e cirúrgicas. A Medicina Legal, uma tese, alguns optavam por desenvolvê-la na área da Me-
como caudatária desse desenvolvimento, passou a ser con- dicina Legal. Embora se constituíssem em meras cópias de
siderada ciência, uma forma de medicina aplicada. Entre os tratados europeus, abriram o caminho para a ampliação das
maiores nomes dessa fase podemos citar Tardieu, Brouardel, pesquisas em Medicina Forensé".
Lacassagne, Legrand du Saulle, Etienne Martin, Balthazard, Em 1835, Hércules Otávio Muzzi, cirurgião da família im-
Thoinot e Vibert, na França; Hoffman e Paltauf, na Áustria; perial brasileira, publica a Autopsia do Exmo. Sr. Regente João
Strassman, na Alemanha; Carrara e Borri, na Itália; e Taylor, Bráulio Moniz, feita segunda-feira, 21 de setembro de 1835,
na Inglaterra 2• às 14 horas, 22 horas depois da morte. Era a primeira publica-
ção de necropsia médico-legal no Brasil8•
O Conselheiro Jobim, que fora nomeado, em 1832, pri-
• A MEDICINA LEGAL NO BRASIL meiro catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Me-
dicina do Rio de Janeiro, foi incumbido, pelo Ministro da
Durante séculos, obedecemos à orientação intelectual e Justiça, em 1854, de uniformizar a prática dos exames mé-
cultural portuguesa por sermos uma colônia. Depois da nos- dico-legais, presidindo uma comissão que organizaria uma
sa independência, como Portugal custou a desenvolver sua tabela prognóstica das lesões segundo sua natureza e sede" .
Medicina Legal, tivemos que abrir caminho por nós mesmos, Em 1856 é criada a assessoria médica junto à Secreta-
do que resulta ser nula a influência da Medicina Legal portu- ria de Polícia da Corte, composta por quatro médicos. Dois
guesa sobre a brasileira nos primórdios de nossa vida como eram membros efetivos e encarregados de fazer os exames
nação8• Contudo, atualmente, temos grande intercâmbio de corpo de delito; os outros dois seriam professores de Me-
cultural com a Medicina Legal portuguesa, onde sobressai dicina Legal da faculdade, denominados então consultantes,
a figura de Duarte Nuno Vieira, presidente da International responsáveis principalmente pelos exames toxicológicos9' "''2•
Academy of Legal Medicine. O sucessor do Conselheiro Jobim na cátedra de Medicina Le-
O Brasil não tem, felizmente, de que se envergonhar. Seu gal, Francisco Ferreira de Abreu, passou a fazer as perícias
aprimoramento científico, no que tange à Medicina Legal, toxicológicas nos laboratórios da Faculdade de Medicina. No
coloca-o em condições que deixam pouco a desejar com re- mesmo ano, foi criado o primeiro necro tério do Rio de Janei-
lação aos países mais desenvolvidos, em face dos progressos ro, no depósito de m ortos da Gamboa, usado até então para
realizados. Segundo Oscar Freire, a evolução da Medicina guardar cadáveres de escravos, indigentes e presidiários"'"·
Legal no Brasil po de ser dividida em três fases: 1) estrangeira; A fase de transição começa em 1877, quando o ensino da
2) de transição; 3) de nacionalização8 . Medicina Legal assume um caráter prático. Como os exames
A fase estrangeira vai desde o fim do período colonial toxicológicos representavam um ônus não retribuído para a
até o ano de 1877, no qual Souza Lima assume a cátedra Faculdade de Medicina, prejudicando as atividades didáticas,
de Medicina Legal da Faculdade de Medicina que pertence Agostinho José de Sousa Lima, que acabara de assumir a ca-
hoje à Universidade Federal do Rio de Janeiro. A primeira deira de Medicina Legal, consegue ser nomeado consultante
publicação dessa fase data de 1814, e era um documento em da polícia, juntamente com o seu assistente, Bo rges da Costa.
que Gonçalves Gomide, m édico e senador do Império, con- Em 1879, Souza Lima é autorizado a dar um curso prático
testava um parecer dado por dois outros profissionais, An- de tanatologia forense no necrotério oficial. A importân cia
tônio Pedro de Sousa e Manuel Quintão da Silva, em que maior desse fato é que a mesma facilidade só tinha sido con-
afirmavam ser santa uma rapariga da comarca de Sabará, na seguida por Brouardel, na França, no ano anterior. O último
capela de Nossa Senhora da Piedade da Serra8• A primeira gabinete do Império, o de Ouro Preto, cria novo necrotério
publicação de um laudo de necropsia forense, porém, só veio para a polícia no prédio da Santa Casa do Rio de Janeiro",' 2•
acontecer em 1830. Em 1891, já na vigência do primeiro governo da Repúbli-
Àquela época, os juízes brasileiros não tinham a obriga- ca, ocorre nova modificação no ensino superior. As faculda-
ção de ouvir peritos antes de proferirem a sentença. Tal de- des de direito passam a ter como obrigatórias as disciplinas
ver só lhes seria imposto com o advento do primeiro Código de Medicina Legal e de Higiene, enquanto a cadeira de Me-
Penal Brasileiro, em 1830. No artigo referente ao ho micídio, dicina Legal da Faculdade de Medicina perde a Toxicologia,
esse código estipulava que "o mal se julgará mortal a juízo que passa para a Química Analítica. Em 1895, as disciplinas
dos facultativos"9• de Medicina Legal e de Higiene das faculdades de Direito
No ano de 1832 ocorrem do is fatos importantes para a fundem-se na disciplina chamada Medicina Pública. O as-
Medicina Legal brasileira. É regulamentado o processo pe- pecto social da Medicina Legal é realçado nessa união 11 ' 12 •
nal, estabelecendo-se regras para os exames de corpo de A fase de nacionalização começa nessa época. Seu iní-
delito, criando-se, assim, a perícia profissional. Além disso, cio é marcado pela posse de Raimundo Nina Rodrigues, em
CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal • 11

1895, como catedrático de Medicina Legal da Faculdade de sempenho d os peritos continuava desastroso. Médicos não es-
Medicina da Bahia. Foi ele o m aior professor de Medicina pecializados eram nomeados para realizarem perícias que en-
Legal brasileiro do século XIX. Sua obra se destaca, princi- volviam conhecimentos fora de seu campo usual de atuação,
palmente, no campo da Psiquiatria Forense e da Antropo- apenas por serem aparentados ou amigos dos magistrados 11 •14 •
logia Criminal. Lombroso, célebre criminologista italiano, Com o resultado direto daquela pressão, foi baixado o
chamava-o de "apóstolo da Antropologia Criminal no Novo Decreto 6.440 de 30/03/1907, que transformou o gabinete
Mundo". Seus artigos, escritos em francês, eram publicados em Serviço Médico-legal do Rio de Janeiro. Afrânio Peixo to
nos Annales de Lacassagne e Brouardel. Mais tarde, Afrânio foi empossado com o o seu primeiro diretor. O protocolo de
Peixoto viria a atribuir tal sucesso ao fato de Nina Rodrigues necro psias foi ampliado ainda m ais, passando a incluir as re-
estudar as correlações dos elementos étnicos e sociais com a formas preconizadas por Orth, na Alemanha. Foram criadas
criminalidade de sua terra. Entre outras proposições, Nina especialidades dentro da Medicina Legal, mas sua sugestão
Ro drigues defendia a realização obrigató ria de concursos de que os professores da faculdade pudessem efetuar perícias
para a nomeação de peritos ofi ciais, a fim de que se tornasse oficiais não foi incluída no texto final do decreto 11 •12 •14 •
a justiça mais bem servida e imune aos erros de avaliação Em 1911 , com a Lei Or gânica do Ensino, o artigo 262 d o
e interpretação comuns à atividade pericial de seu tempo. regulamento da Faculdade de Medicina determinava que o
Deixou ilustres discípulos, entre os quais Afrânio Peixoto e professor de Medicina Legal, com pequenas turmas de alu-
Oscar Freire. Faleceu em 19069 • 11 • nos, deveria fazer aulas de demonstração e o relatório dessas
O Rio de Janeiro, capital da República, continua sendo per ícias, inclusive no necrotério. Contudo, as auto ridades
palco de importantes reformas administrativas. Em 1900 é policiais e judiciárias não permitiram que Nascimento e Sil-
promulgado um decreto que transforma a Assessoria Médica va, catedrático de Medicina Legal, sucessor de Souza Lima,
da polícia em Gabinete Médico-legal e cria nele um serviço cumprisse tal determinação, alegando quebra do sigilo pe-
de identificação antropom étrica, que passaria a fazer tam- ricial. Tal resistência despertou acalorados debates. No en-
bém exames psiquiátricos9• 11 • 13 • tanto, mesmo entre os peritos oficiais havia aqueles, com o
No ano seguinte, 190 1, ocorrem o utras alter ações no Jacyntho de Barros, diretor do Serviço Médico-legal entre
ensino da Medicina Legal. As provas práticas deixam de ser 1913 e 1915, que defendiam as aulas práticas de demonstra-
obrigatórias nas faculdad es de Medicina, e os alunos deixam ção de necropsia forense, desde que resguardados os interes-
de frequentar essas aulas. Sousa Lima protesta, em vão, con- ses das partes envolvidas na perícia. A autorização só veio
tra a m edida. Em compensação, na m esm a reforma, a Toxi- com a Lei Maximiliano, de 18 de março de 1915, que deu aos
cologia volta a faze r parte da Medicina Legal, e, nas faculda - professores de Medicina Legal o acesso ao necrotério oficial
des de Direito, a Medicina Pública é cindida em Medicina e o direito de fazerem perícias em suas aulas, reconhecendo a
Legal e Higiene, como era até a reforma de 18959•11 •12• validade jurídica d os laudos então elabor ados 11 •14 •
Em 1903, no Rio de Janeiro, Afrânio Peixoto, cuja com - Em 1917, Afrânio Peixoto organiza um curso de espe-
petência como m édico-legista já era tão reconhecida quanto cialização em Medicina Pública com o auxílio de outros
seu talento de literato, pro põe uma refo rmulação do Gabi- catedráticos da Faculdade de Medicina. Novamente, ho uve
nete Médico-legal inspirada no sistema alemão, o centro eu- oposição dos legistas da polícia sob o mesmo argumento de
ropeu m ais avançado em Medicina Legal, que ele conhecer a quebra do sigilo pericial. Por isso, esse curso durou apenas 1
pessoalmente. Clamava, então, que "as monstruosidades al- ano 14 • As relações entre a Faculdade de Medicina e o Serviço
cunhad as de termos de autopsias, autos de corpo de delito Médico-legal do Rio de Janeiro torn aram -se tensas. Entida-
confusos, desordenados, incoerentes, dando um triste atesta- des como a Academia Nacional de Medicina; a Sociedade
do de incompetência profissio nal e prejudicando os interes- de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro; a Sociedade de
ses da justiça", não poderiam continuar distorcendo a aplica- Neuro logia, Psiquiatria e Medicina Legal; a Congregação
ção da lei penal9 •11 •14 • Sob sua influência, o Governo Federal da Faculdade de Medicina das Universidad es da Bahia e de
baixa o Decreto 4.864 de 15/06/1 903, que estabelecia normas São Paulo, assim com o juristas fa mosos com o Clóvis Bevila-
detalhadas para a descrição e conclusão d as perícias médicas. cqua, tornaram público o seu apoio aos professores no sen-
Entre o utros avanços, sugeria um protocolo de necropsias tido de que a exclusão de alguns casos para aulas deveria ser
semelhante ao do alemão Virchow, o pai da pato logia celular. por consenso entre os professores e a direção do serviço de
Seu roteiro foi am plamente elogiad o por Locard e por Lom - perícias, de modo a não inviabilizar os cursos práticos 11• 14 •
broso, que o achavam um avanço tão gr ande que seus pró- Mesmo assim, o diretor do Serviço Médico-legal, Moretsohn
prios países, a França e a Itália, deveriam imitar o exemplo Barbosa, não permitiu o uso do necrotério o ficial. As únicas
brasileiro. Mas essas determinações não se teriam efetivado perícias permitidas para aulas práticas eram as realizadas no
se não fosse o prestígio pessoal de Afrânio Peixoto9•11 • Laboratório de Medicina Legal1 1•
A Academia Nacional de Medicina e o Instituto dos Advo- Enquanto isso, na Bahia, Oscar Freire, outro discípulo de
gados do Brasil, bem como outras sociedades médicas, lança- Nina Rodrigues, luta pela transformação da estrutura médi-
ram m anifestos no sentido da aplicação prática do que esta- co-legal do seu estado. Em 1911 , torna-se o diretor d o Serviço
va na lei, com o fim de se impedir que continuassem a ir aos de Medicina Legal da Bahia, que viria a ser cham ado, até nos-
tribunais laudos imperfeitos. Mas, apesar de tudo isso, o de- sos dias, de Instituto Médico-legal Nina Rodrigues. Em 1917,
12 • CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal

passa a trabalhar na Faculdade de Medicina da Universidade lizou a continuação da publicação da Revista do IML , que foi
de São Paulo, onde organiza um grande Departamento de interrompida após poucos anos de atividade fulgurante 2• 11 •
Medicina Legal. Contudo, as portas do Serviço Médico-legal Fatos de natureza política e econômica haveriam de interfe-
da policia de São Paulo jamais se abririam aos professores rir no crescimento e na qualidade da produção do IML do
da Faculdade de Medicina. Morre em 1923, tendo deixado Estado da Guanabara, nas décadas seguintes. Nota-se que a
grande contribuição ao desenvolvimento da Medicina Legal mudança da capital federal para Brasília já havia tirado parte
brasileira. Hoje, o instituto que fundou na Universidade de da posição de prestígio da Instituição por desvinculá-la do
São Paulo leva o seu nome: Instituto Oscar Freire 11 •14 • Governo Federal 11 •
Em 1923, o Serviço Médico-legal do Rio de Janeiro é A fusão dos antigos Estados da Guanabara e do Rio de Ja-
transferido do galpão que ocupava ao lado da Polícia Cen- neiro, em 1975, marca o início da decadência da Instituição.
tral para o pavilhão onde ficara a representação do Distrito A necessidade de atender a uma área geográfica muito maior
Federal por ocasião da Exposição do Centenário da Inde- e mais pobre, carente de recursos humanos e técnicos, fez
pendência, em 1922. No ano seguinte, novas e importantes com que fossem drenados para o Instituto os casos de inves-
mudanças ocorrem. O Serviço Médico-legal do Rio de Janei- tigação médico-legal mais laboriosa de todos os municípios
ro passa a constituir o Instituto Médico-legal, órgão agora do antigo Estado do Rio de Janeiro, sem que houvesse uma
subordinado diretamente ao Ministério da Justiça, não mais contrapartida de aumento de recursos humanos e materiais.
à polícia. No bojo dessas mudanças, são ampliadas as insta- Por outro lado, a crise dos serviços de saúde e a baixa remu-
lações, como os laboratórios de toxicologia e de anatomia neração dos médicos levaram a que fizessem concurso e fos-
patológica, o corpo de peritos é aumentado, e é construído sem admitidos como médicos-legistas profissionais pouco
um necrotério novo na Praça XV 11 • 13• 14 • identificados com a especialidade, premidos pela necessidade
A autonomia do Instituto Médico-legal do Rio de Janeiro, de mais um emprego para recompor a renda familiar em
contudo, sofre sério golpe ao fim do governo de Washington fran co declínio. E esse foi um fenômeno ocorrido em escala
Luís, em 1930, quando volta a ser subordinado ao chefe de nacional. O grande aumento do número de faculdades de
polícia do Distrito Federal 11 •13 • Em 1932, ano do centenário Medicina tornou excessivo o número de médicos nos gran-
das faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, já des centros, com a consequente redução da remuneração.
na vigência do Estado Novo, o governo manda construir no Tais problemas agravaram-se até o fim do século XX,
IML um anfiteatro para a realização das aulas práticas das fa- tendo como tônica o aumento da demanda por serviços e
culdades oficiais e autoriza os professores de Medicina Legal a redução das verbas destinadas à Instituição por sucessivos
a fazerem os laudos dos casos apresentados aos alunos"·14 • O governos estaduais. Com o grande aumento na violência ur-
local desse anfiteatro é ocupado, atualmente, pelo Museu da bana ao longo da década de 90, a situação tornou-se caótica.
Imagem e do Som". Ingressavam, diariamente, 30 a 40 corpos no necrotério da
Com a entrada em vigência do novo Código de Processo Instituição, já denominada Instituto Médico-legal Afrânio
Penal (Decreto-lei 3.689 de 03/10/1941 ), as perícias passa- Peixoto (IMLAP), a maioria vítimas de homicídios dolosos.
ram a ser realizadas apenas por peritos oficiais, o que trouxe, Na década dos anos 90, houve uma reforma das instala-
novam ente, grande prejuízo ao ensino da Medicina Legal 11 • ções da área de ensino do necrotério do IMLAP, resultado de
Em 1949 houve a transferência do IML do Rio de Janeiro uma cooperação entre a administração estadual e as faculda-
para a sua sede na Lapa. Era um prédio novo, superdimen- des de Medicina de universidades particulares que as utiliza-
sionado para as necessidades daquela época, mas que fora vam para as aulas de demonstração de necropsia forense, já
construído com os olhos voltados para o futuro. Bem-apa- que seus professores, em geral, também eram peritos oficiais.
relhado, tanto no seto r de clínica como no de necropsia, dis- Foram reformados os anfiteatros, o centro de estudos e as ins-
punha de excelentes instalações laboratoriais e radiológicas, talações sanitárias para os alunos usuários. Os professores e
com capacidade ociosa a esperar o aumento de demanda que seus alunos passaram a dispor, então, de ambiente condigno.
haveria de ocorrer com o crescimento da população 11 •13 • Já Na primeira década do novo século, o governo estadual
nos anos 1950 surgem especialistas dentro da Medicina Le- construiu uma nova sede para o IMLAP, mais moderna, do-
gal, nas áreas de anatomia patológica, hematologia, radiolo- tada de laboratórios equipados com aparelhagem de última
gia e neuropsiquiatria" . Nos anos 1960, a média de necrop- geração, localizada na Av. Francisco Bicalho, próximo da an-
sias do IML do Estado da Guanabara atingiu 15 a 20 por dia, tiga estação de trens da Leopoldina.
fazendo com que a Instituição ampliasse seus quadros. Como Nos outros Estados da Federação, a situação ora é melhor,
fruto do maior volume de trabalho, feito em boas condições ora pior que no Rio de Janeiro. Existem institutos que desen-
técnicas e supervisionado por peritos que, com frequência, volvem uma ro tina de boa qualidade, com informatização
também eram professores das faculdades de Medicina, ocor- dos laudos, e que conseguem exercer alguma atividade de
reu gra nde aprimoramento, culminando com o surgimento, pesquisa. Mas também é verdadeira a contrapartida, ou seja,
em 1969, de um periódico, a Revista do IML do Estado da institutos muito carentes de recursos materiais e humanos.
Guanabara, cujos números foram indexados em resenhas in- Deixamos de citar nomes de instituições, professores e
ternacionais e distribuídos por toda a comunidade científica peritos que se desta caram nas últimas décadas para não pe-
do seu campo de atuação. Contudo, a falta de verba inviabi- car por omissão de alguns igualmente importantes.
CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal • 13

Em 20 de outubro de 1967, em Niterói, os médicos- Em primeiro lugar, há aspectos peculiares à disciplina e


legistas brasileiros reuniram-se para fundar a Sociedade que só a ela dizem respeito. A investigação de paternidade,
Brasileira de Medicina Legal. Desde então, seus m embros feita por meio de exames de sangue e, mais modernamen-
têm promovido congressos nacionais, nos quais há grande te, pela sequência do DNA, não é pedida a qualquer outro
intercâmbio científico e são debatidos temas de interesse profissional da medicina. O estabelecimento aproximado
geral da classe. O último encontro foi em setembro de 2012, da hora da morte só tem interesse para o legista, que, por
na cidade de Fortaleza, CE. Na ocasião, foram realizados isso, pesquisa meios cada vez mais requintados para de-
vários congressos nacionais e internacionais reunidos de terminar o momento em que alguém morreu; ou se A fa-
modo genérico sob a denominação de Congressos Geni- leceu antes de B, com evidentes implicações na sucessão
val Veloso de França, em homenagem ao eminente mes- dos bens. O diagnóstico da distância de tiro ou o tipo de
tre paraibano. Cabe ressaltar como muito importante o 1 instrumento causador de uma lesão são problemas só apre-
Congresso Brasileiro de Medicina Legal e Perícias Médicas, sentados aos legistas. A avaliação da periculosidade de um
fruto da fusão das associações nacionais de Medicina Legal doente mental é um diagnóstico que se solicita apenas ao
e de Perícias Médicas. psiquiatra forense.
Além dos temas científicos, têm sido debatidas nos últi- Mas, se há tarefas propostas apenas aos médicos-legistas,
mos congressos questões de ordem política, a mais impor- não é menos verdade que o modo de informar às autorida-
tante das quais a necessidade de maior autonomia para os des que as solicitam seja especial. Um relatório médico-legal
profissionais da área médico -legal. É ponto comum entre não é como um prontuário hospitalar. Nele, a anamnese é
os médicos-legistas brasileiros atuais o sentimento de que a prejudicada pela falta de segurança que o profissional sen-
independência administrativa em muito auxiliaria a justiça, te com relação às informações prestadas pelo paciente. São
por evitar qualquer suspeita de cerceamento da atividade pe- frequentes as simulações, ora suprimindo, ora tentando de-
ricial pelas autoridades policiais. monstrar sintomas e sinais inexistentes. Além disso, no foro
criminal, a descrição e as conclusões visam à resposta aos
quesitos legais, que refletem a necessidade de caracterização
• CONCEITO DE MEDICINA LEGAL dos elementos de um delito ou de uma circunstância ate-
nuante ou agravante penal. Por tudo isso, é a Medicina Legal
Se citarmos as expressões com que alguns autores a de- uma especialidade médica.
finiram, verem os que o conteúdo da definição depende da
perspectiva histórica de cada um. Assim é que Ambroise Paré,
Subdivisões da Medicina Legal
o autor do Tratado dos Relatórios, em 1575, conceituava-a
como "a arte de fazer relatórios na Justiça''. Mais tarde, com a Por se valer de conhecimentos de diversas especialidades
conotação de Medicina Pública, seu conceito tornou-se mais m édicas, é natural que também a Medicina Legal resulte sub-
amplo. A definição de Tourdes pode servir de exemplo: "É a dividida. Para nós, os principais ramos da Medicina Legal
aplicação dos conhecimentos médicos às questões que con- são a Patologia Forense, a Toxicologia Forense, a Infortunís-
cernem aos direitos e aos deveres dos homens reunidos em tica, a Antropologia Forense, a Sexologia Forense, a Psiquia-
sociedade"S. 15• tria Forense e a Deo ntologia.
Com o grande impulso das ciências naturais e com a ne- A Patologia Forense estuda toda a Traumatologia Forense
cessidade de maior objetividade nos conceitos, a partir do e a Tanatologia. Na primeira, são estudadas as energias vul-
século XIX, temos definições mais concisas e claras, como a nerantes, seu mecanismo de ação e suas consequências pes-
de Lacassagne: "É a arte de pôr os conhecimentos médicos soais e sociais. Já a Tanatologia visa ao estudo da m orte, sua
ao serviço da administração da Justiça''. Hoffman, o gran - conceituação, sua causa jurídica e os fenómenos cadavéricos
de legista austríaco, considerava-a não uma arte, mas uma que enseja.
ciência. Dizia ele: "É a ciência que tem por objeto o estudo A Toxicologia Forense tem por objeto de estudo as subs-
das questões no exercício da jurisprudência civil e criminal e tâncias tóxicas, seus efeitos sobre o ser humano, seu meca-
cuja solução depende de certos conhecimentos médicos pré- nism o de ação, seu modo de detecção em casos concretos e o
vios''. Concordamos com ambos, pois a Medicina Legal é, a esclarecimento de aspectos de repercussão jurídica.
um só tempo, arte e ciência. É arte porque a realização de A Infortunística ocupa-se dos acidentes do trabalho, sua
uma perícia médica requer habilidade na prática do exame e etiologia, dinâmica e suas consequências. Estabelece o nexo
estilo na redação do laudo; é ciência porque, além de ter um entre os acidentes e as incapacidades laborativas. Embo ra
campo próprio de pesquisas, vale-se de todo o conhecimento não seja essa a opinião da maioria dos autores, achamos que
oferecido pelas demais especialidades médicas8 •15 • deva incluir também o estudo dos acidentes pessoais não re-
É a Medicina Legal uma especialidade? Po de qualquer lacionados ao trabalho.
médico, clínico ou cirurgião, exercê-la quando não acostu- Na Antropologia Forense, atualmente muito desenvolvi-
mado às sutilezas periciais, sem prejuízo para a Justiça? Po- da, são estudados os restos mortais, os despojos humanos,
derão ensiná-la aqueles que não têm experiência acumulada com o objetivo de esclarecer sua identidade, causa de mo rte,
como peritos? Vejamos. ascendência e outros dados de valor social.
14 • CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal

A Sexologia Forense abrange os aspectos relacionados dos. Por exemplo, a partir de que dia estaria uma pessoa
com o diagnóstico de virgindade, violência sexual, gravidez, incapacitada de gerir seus bens. Nas causas de acidentes do
puerpério, aborto e problemas médico-legais relativos ao trabalho, terá que saber que há doen ças que são típicas de
casamento. certas profissões, como a silicose, que ocorre nos trabalha-
A Psiquiatria Forense tem por finalidade a avaliação da dores em pedreiras.
responsabilidade penal e da capacidade civil, que podem
estar alteradas em função de distúrbios mentais. Nela são Valor do Estudo da Medicina Legal para o Médico16
abordados os aspectos médico-legais da embriaguez e das
toxicomanias. A Medicina Legal é a única disciplina do curso de Medi-
A Deontologia é o capítulo da Medicina Legal que se cina que vale mais para o médico que para o paciente. Ao es-
ocupa das normas éticas a que o médico está sujeito no exer- tudar clínica, ao se preparar para ser um cirurgião, o profis-
cício da profissão. Por extensão, abrange a responsabilidade sional visa basicamente a promover o bem-estar do paciente.
profissional nas esferas penal, civil, ética e administrativa. Como subproduto dessa intenção, se atingido o objetivo,
Seu campo de estudo inclui a Bioética e seus princípios. resulta o bom nome do profissional. No caso da Medicina
Legal, o seu conhecimento previne aborrecimentos com o
Valor do Estudo da Medicina Legal para o cliente e questionamentos na justiça. Por exemplo, o gine-
Advogado16 cologista tem que saber que não deve introduzir o espéculo
vaginal em uma paciente virgem, sob pena de romper-lhe a
Por ser o Direito uma ciência humana, é preciso, em pri- membrana. Já fomos procurados por um ex-aluno que esta-
meiro lugar, que o profissional do Direito tenha bom conhe- va sendo processado penalmente por ter rompido o hímen
cimento do que é o ser humano em sua totalidade - uma de uma moça de 16 anos a que atendera por queixa de corri-
unidade biopsicossocial. Para isso, não é necessário que pos- mento, em um ambulatório de posto de saúde de uma favela.
sua o saber de um profissional da área biomédica, mas tem Sua chefe, com postura altamente preconceituosa, alegava
que conhecer as bases dessa unidade. E a Medicina Legal lhe que não poderia supor que uma favelada negra daquela ida-
provê os elementos necessários a essa compreensão. de pudesse ainda ser virgem.
Se incursio nar na elaboração e discussão das leis, terá que Nos hospitais de pronto-socorro, a descrição das lesões
ter rudimentos de biologia, para que não proponha normas apresentadas quando da admissão de pacientes traumatiza-
inexequíveis, por exemplo, no campo da legislação sanitária. dos tem fundamental importância legal, já que poderá ser a
Em se tratando de normas penais, o desconhecimento das única possibilidade de determinar o agente causal se a vítima
peculiaridades da personalidade, conforme o biótipo indi- permanecer internada por vários dias, tempo suficiente para
vidual, pode levá-lo a querer criar um padrão geral de com- a descaracterização das feridas pelo processo cicatricial. Na
portamento, pouco flexível e no qual não caibam as varia- eventualidade de vir a falecer durante esse período, seu cor-
ções individuais. po terá que ser examinado por médico-legista, o qual não
Na prática forense, muitas vezes ele terá que se depa- disporá de elementos para dizer que instrumento ou meio
rar com casos em que certos conhecimentos da área médi- teria causado as lesões. Infelizmente, a regra é os m édicos
ca serão indispensáveis para poder elaborar quesitos, saber plantonistas referirem as lesões por seu diagnóstico, e não
quando apresentá-los e com o tirar proveito da resposta dos pela descrição cuidadosa de suas características. Estaria cor-
peritos. No campo do direito penal, são inúmeras as situa- reto o diagnóstico?
ções que ilustram essa necessidade. Nos casos de aborto, por Outro erro que resulta da igno rância da legislação que
exemplo, deverá saber que há casos em que ele ocorre es- normatiza o exercício da medicina é o médico passar a de-
pontaneamente, sem ação criminosa. Havendo suspeita de claração de óbito em casos de morte violenta de evolução
infanticídio, terá que saber o que é nascer com vida; do con- prolongada, em que a causa imediata tenha sido uma com -
trário, aceitará a possibilidade do crime praticado contra um plicação tal como uma pneumonia. E isso ocorre até com
natimo rto. Precisará estar atento para os desvios de conduta professores de medicina!
dos psicopatas, sabendo que não são, na realidade, doentes Concluindo este capítulo, devemos dizer que, mais do
m entais, conforme requer o artigo 26 do Código Penal. Ao que nunca, hoje a Medicina Legal é uma forma de medicina
ler um laudo cadavérico, ou de lesão corporal, poderá esta- aplicada. Os conhecimentos recolhidos nas diversas espe-
belecer associações entre as lesões e as alegações do indicia- cialidades, fruto da pesquisa básica, ou clínica, lastreiam a
do. E assim por diante. evolução tecnológica pericial. Ao m édico-legista cabe a tare-
No direito civil, ressaltam as causas de interdição, de fa de se especializar, acompanhar o progresso da ciência em
anulação de casamento por impo tência, de determinação sua área e servir de instrumento para a aplicação da justiça.
de paternidade, em que se fará necessário saber que tipos Ao jurista, o dever de manter contato com os legistas para
de exame poderá solicitar aos peritos, de modo a esclarecer melhor decidirem o destino das partes em confronto nos tri-
os fatos. Com um mínimo de conhecimento de biologia, bunais. Esta obra tem a pretensão de servir como fonte de
evitará formular quesitos impossíveis de serem respondi- consulta para ambos.
CAPITULO 2 História, Conceituação e Divisão da Medicina Legal • 15

8. Fávero F. Introdução ao Estudo da Medicina Legal. Capítulo 1, pp.


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2004. SSM e VaUadares AF. Editora Atheneu, Rio de Janeiro; 2001 .
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tomo II de Précis de Médecine Lega le, editora O. Doin et Cie, Paris; vista e ampliada por Hygino de C. Hercules, editora Freitas Bastos,
1913. Rio de Janeiro; 1997.
Hygino de C. Hercules

Processos são um conjunto de providências que devem Código de Processo Civil


ser tomadas para se verificar e sanar uma lesão de direito. Art. 436. O juiz não está adstrito ao laudo pericial,
No curso dos processos, os fatos devem ser esclarecidos sem podendo formar a sua convicção com outros elementos ou
quaisquer dúvidas, de modo que os juízes possam proferir fatos provados nos autos.
sentenças justas.
Os fatos alegados em um processo precisam ser demons- Embora o exercício da função pericial seja um dever cí-
trados, e essa demo nstração depende de sua natureza. Quan- vico, assim como o juiz tem a liberdade de recusar o laudo
do tais fatos não deixam vestígios materiais e se desvanecem pericial também o perito pode recusar-se a atuar quando
no mesmo instante em que ocorrem, ou logo após, a sua houver justa causa (art. 277 do CPP', art. 146 do CPC2).
comprovação em juízo só pode ser feita pela prova testemu-
nhal. E o relato de testemunhas pode, por diversas razões, Código de Processo Penal
não corresponder fielmente à realidade. Mas, se resultam ves- Art. 277. O perito nomeado pela autoridade será obri-
tígios duradouros dos fatos ocorridos, com a possibilidade gado a aceitar o encargo, sob pena de multa de duzentos a
de serem detectados pelos nossos sentidos, o seu exame e mil cruzeiros, salvo escusa atendível.
registro devem ser feitos obrigatoriamente. E por pessoas
Parágrafo único. Incorrerá na mesma multa o perito
tecnicamente capacitadas para fazê-lo. O exame desses ele-
que, sem justa causa, provada imediatamente:
mentos materiais, quando feito por técnico qualificado para
a) deixar de acudir à intimação ou ao chamado da
atender solicitação de autoridade competente, é chamado de
autoridade;
perícia. Consequentemente, o indivíduo que o realiza deve
b) não comparecer no dia e local designados para o
ser chamado de perito.
exame;
Os achados periciais, por serem evidenciados por técni-
cos especializados, cientificamente embasados, devem preva- c) não der o laudo, ou concorrer para que a perícia não
lecer mesmo que se oponham a depoimentos testemunhais, seja feita, nos prazos estabelecidos.
ou que contrariem a confissão de um acusado. Contudo, o
juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo rejeitá-lo. Código de Processo Civil
É o que consta no artigo 182 do Código de Processo Penal Art. 146. O perito tem o dever de cumprir o oficio, no
(CPP)' e no 436 do Código de Processo Civil (CPC)2. Mas é prazo que lhe assina a lei, empregando toda a sua diligên-
necessário que o juiz justifique as razões por que não acom- cia; pode, todavia, escusar-se do encargo alegando motivo
panhou o relatório dos peritos. legítimo.
Parágrafo único. A escusa será apresentada dentro de
Código de Processo Penal cinco (5) dias contados da intimação, ou do impedimento
Art. 182. O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo superveniente ao compromisso, sob pena de se reputar re-
aceitá-lo ou rejeitá-lo no todo ou em parte. nunciado o direito a alegá-la (art. 423).

17
18 • CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais

As perícias podem envolver qualquer aspecto do saber duas pessoas idóneas portado ras d e diploma de curso su pe-
humano. Médicos, en genheiros, químicos, contad ores, artis- rior, de preferência escolhidas entre as que tiverem habilita-
tas plásticos, to dos pod em vir a ser convocados para a função ção técnica relacionada à natureza da perícia (artigo 159 do
pericial, tanto no fo ro penal como no foro civil. A gama de CPP 1 m odificado pela Lei 11.690 de 09/06/2008 3 ) . Todos os
exames necessários ao esclarecimento dos fatos duradou ros centros civilizados, no entanto, dispõem desses órgãos téc-
nos diversos tipos de processos é enorme. nicos encarregad os de efetuar as perícias exigidas pelo pro-
cesso penal.

• CORPO DE DELITO Código de Processo Penal


Art. 159. Os exames de corpo de delito e as outras perí-
As infrações penais podem deixar vestígios (delicta fac ti cias serão em regra feitos por perito oficial.
permanentis), como no homicídio e na lesão corporal, ou § 1º Na falta de perito oficial, o exame será realizado
não (delicta facti transeuntis), como na injúria e no desacato. por duas pessoas idôneas, portadoras de diplomas de curso
Q uando o fato produz alterações materiais no ambiente, dá-se superior preferencialmente na área específica, dentre as que
o nom e de corpo de delito ao conjunto d e elem entos sensíveis tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do
denunciadores do fato criminoso. São os elementos materiais, exame.
perceptíveis pelos nossos sentidos, resultantes da infração § ~ Os peritos não oficiais prestarão o compromisso de
penal. Esses elementos sensíveis, objetivos, devem ser alvo de bem e fielmente desempenhar o encargo.
prova, obtida pelos meios que o direito fornece. Os técnicos
dirão da sua natureza e estabelecerão o nexo entre eles e o ato Recentem ente, outras m odificações foram introduzidas
ou omissão por que se incrimina o acusado. O exame de cor- nas normas processuais penais que regulam as perícias. Pas-
po de delito deve realizar-se o mais rapidamente possível, logo sou a ser possível às partes contratar assistentes técnicos para
que se tenha conhecimento da existência d o fato. auxiliarem or a a acusação, ora a defesa, sendo permitido até
O CPP 1 estabelece: mais de um assistente caso a perícia seja complexa, isto é,
abranja m ais de um campo do saber. A lei acima referida
Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indis- (11.690/08) acrescentou mais alguns parágrafos ao art. 159.
pensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não
podendo supri-lo a confissão do acusado. § 3" Serão f acultadas ao Ministério Público, ao assis-
tente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado
É direto o corpo d e d elito objeto da atividade pericial. a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico.
Chama-se, indevidamente, d e corpo de d elito indireto a § 4QO assistente técnico atuará a partir de sua admissão
substituição do exame objetivo pela prova testemunhal, sub- pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo
jetiva . Indevidamente, po is não há corpo, embora exista o de- pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão.
lito, porque faltam os sinais, os vestígios, os elementos mate- § 5QDurante o curso do processo judicial, é permitido às
riais. O mesmo código d etermina, como um princípio geral, partes quanto à perícia:
a exclusividad e dos perito s oficiais para os exam es técnicos. I - requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a pro-
Tal exclusivismo se justifica pela grande soma de conheci- va ou para responderem a quesitos, desde que o mandado
mentos científicos e pela técnica segura que as perícias exigem de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas
para serem bem feitas e merecerem fé, o que só a o ficialização sejam encaminhados com antecedência mínima de 10 dias,
pericial confere, assegura e facilita. Funcionário público, in- podendo apresentar as respostas em laudo complementar.
teiramente dedicad o à função, a que galgou d epois d e provas II - indicar assistentes técnicos que poderão apresentar
públicas d e concurso, lidando diariam ente com a atividade pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos
pericial, é evidente que os peritos oficiais têm to das as vanta- em audiência.
gens e possibilidad es de se tornarem perfeito s conhecedores § 6º- Havendo requerimento das partes, o material pro-
d e tod os os seus aspectos teóricos e práticos. Ademais, a ati- batório que serviu de base à perícia será disponibilizado no
vidade pericial, de interesse público, é custeada pelo Estado ambiente do órgão oficial, que manterá sempre sua guarda,
e exercida sem qualquer despesa para as partes e os interes- e na presença do perito oficial, para exame pelos assistentes,
sados, o que constitui um dos requisitos da imparcialidade. salvo se for impossível a sua conservação.
São três as instituições d a Secretaria de Segurança Públi- § 7QTratando-se de perícia complexa, que abranja mais
ca do Estado do Rio d e Janeiro enca rregadas da realização de uma área de conhecimento especializado, poder-se-á
d as perícias oficiais: o Instituto Médico-legal Afrãnio Peixo- designar a atuação de mais de um perito oficial, e a parte
to, o Instituto de Criminalística Carlos Ébo li e o Instituto indicar mais de um assistente técnico.
d e Identificação Félix Pacheco, responsável pelas perícias de
identificação. A norma d o § ?ll. é sem elhante à que já existia no Código
No caso de a localidad e onde se d er o fato não dispor de de Processo Civil, introduzida pela Lei 10.358 de 27/1 2/20014,
instituição com peritos oficiais, o exame poderá ser feito por artigo 431-B:
CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais • 19

Código de Processo Civil delegacia policial. Haveria constrangimento tanto do perito


Art. 431-B acrescentado pela Lei 10.358. Tratando-se como do examinando. Às vezes, peritos oficiais são injusta-
de perícia complexa, que abranja mais de uma área de mente acusados de elaborar laudos adrede preparados para
conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais encobrir tortura ou outros fatos delituosos atribuídos às au-
de um perito e a parte indicar mais de um assistente toridades policiais.
técnico. Para se efetuar uma perícia, há necessidade de ambiente
tranquilo e livre de interferências de pessoas não incumbidas
Nos processos cíveis, a matéria está regida pelo Código da tarefa. Embora não deva trabalhar em segredo, o perito
de Processo CiviF: não pode ser perturbado por representantes da mídia nem
por autoridades que nada tenham a fazer no local de reali-
Art. 145. Quando a prova do fato depender de conheci- zação da perícia. Por exigir exame minucioso, as perícias ne-
mento técnico ou científico, o juiz será assistido por perito, cessitam de que toda a atenção do perito esteja dirigida para
segundo o disposto no artigo 421. esse fim, de modo a não deixar escapar detalhes importantes.
Art. 421. O juiz nomeará o perito, fixando de imediato Quando achar conveniente, o perito pode colher material
o prazo para a entrega do laudo. para exames complementares laboratoriais, que podem ser
§ lQ Incumbe às partes, dentro de cinco (5) dias, conta- feitos por ele próprio, ou por peritos mais especializados, na
dos da intimação do despacho de nomeação do perito: dependência da sua natureza.
I - indicar o assistente técnico; As instituições do governo são o local mais adequado
II - apresentar quesitos. para a realização das perícias oficiais, para onde devem ser
Art. 423. O perito pode escusar-se ou ser recusado por encaminhadas as pessoas e as coisas relacionadas com o fato
impedimento ou suspeição; ao aceitar a recusa ou julgar a esclarecer. Contudo, no caso de exames de local, seja no
procedente a impugnação, o juiz nomeará novo perito. foro penal, seja no cível, o perito tem que se deslocar para
Art. 424. O perito pode ser substituído quando: lá a fim de fazer o levantamento de elementos materiais que
I - carecer de conhecimento técnico ou científico; não podem ser removidos, bem como para ter uma noção de
II - sem motivo legítimo, deixar de cumprir o encargo conjunto da cena em que se deu o fato.
no prazo que lhe foi assinado.
Art. 436. O juz não está adstrito ao laudo pericial, po-
dendo formar a sua convicção com outros elementos ou fa - • DIVERGÊNCIA ENTRE PERITOS
tos provados nos autos.
Embora a palavra do perito seja considerada de fé pú-
Mas o juiz poderá determinar a realização de nova perícia. blica, a fi scalização da perícia deve ser bem-vinda. Assim
reconhecem todos os autores. Tanto pela falibilidade do ser
Código de Precesso Civil humano, como pela necessidade de transparência nas ações
Art. 437. O juiz poderá determinar, de oficio ou are- judiciais, recomenda-se que sejam adotadas medidas pre-
querimento da parte, a realização de nova perícia, quando ventivas que impeçam falhas de qualquer natureza. Contri-
a matéria não lhe parecer suficientemente esclarecida. buem para o mesmo fim a m etodização e o uso de impressos
padronizados que constituem protocolos a serem seguidos
pelos peritos oficiais. Ao usá-los, os peritos evitam omitir
• A FUNÇÃO DO PERITO etapas do exame, o que pode acontecer, principalmente, se
são muitas as perícias que têm que fazer durante seu turno
O perito não é advogado de defesa nem funcionário do de trabalho. Na hipótese de haver divergência entre os dois
Ministério Público: não defende nem acusa. Sua função li- peritos, cada qual fará o seu laudo, e ambos serão submeti-
mita-se a verificar o fato, indicando a causa que o motivou. dos à autoridade que solicitou a perícia. Esta, após leitura de
No exercício de sua alta missão, pode proceder a todas as ambos, poderá designar um terceiro perito, oficial ou não, ao
indagações que julgar necessárias, devendo consignar, com qual encaminhará os laudos discrepantes. Na eventualidade
imparcialidade exemplar, todas as circunstâncias, sejam ou de ser estabelecida uma terceira posição diferente das prece-
não favoráveis ao acusado. Expondo sua opinião científica, dentes, a autoridade poderá determinar a realização de um
o perito age livremente, é senhor da sua vontade, das suas novo exame, desconsiderando o que já tiver sido feito. É o
convicções, não podendo ser coagido por ninguém, nem que diz o Código de Processo Penal':
pelo juiz, nem pela polícia, no sentido de chegar a conclu-
sões preestabelecidas. Caso se sinta pressionado e sem li- Art. 180. Se houver divergência entre os peritos, serão
berdade para realizar de modo adequado o exame, o perito consignadas no auto do exame as declarações e respostas de
deve recusar-se a fazê-lo, mesmo que sua recusa o exponha um e de outro, ou cada um redigirá separadamente o seu
a possíveis e injustas sanções administrativas. Por exemplo, laudo, e a autoridade nomeará um terceiro; se este divergir
não é apropriado querer que o exame de preso que alega de ambos, a autoridade poderá mandar proceder a novo
ter sido torturado seja feito nas dependências da própria exame por outros peritos.
20 • CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais

Em ações cíveis, a existência dos assistentes técnicos de- da na obtenção de provas que caracterizem crimes contra a
ve-se a essa necessidade. pessoa, tais como lesão corpor al, homicídio; crimes contra
Qualquer que seja a posição em que esteja o perito, ofi- a dignidade sexual, com o estupro; ou m esmo características
cial ou não, seu compromisso com a verdade constitui-se em especiais da vítima como, por exemplo, sua sanidade mental.
dever ético e obrigação legal. A declaração falsa ou a oculta- Os peritos podem ser convocados para esclarecer dúvidas
ção da verdade constituem delito previsto no artigo 342 d o na fase do sumário, relativas ao laudo ou resultantes da su-
Código Penal5 e fa to punível segundo o processo civil (art. perveniência de fatos novos no transcorrer do processo. Du-
147 d o CPC2). rante o julgamento, sua presença torna-se necessária sempre
que houver fatos ainda não plenam ente caracterizad os, ou
Código Penal quando qualquer das partes precisar de seu auxílio para ve-
Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a ver- rificar a possibilidade de novas ver sões dos fatos a esclarecer.
dade, como testemunha, perito, contador, tradu tor ou in- Nos casos de homicídio com etidos com armas de fogo, a di-
térprete em processo judicial ou administrativo, inquérito reção dos projéteis e a distância de tiro são questões cruciais
policial, ou em juízo arbitral: para a sustentação o u destruição das teses apresentadas aos
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. jurados. Na década de 1970 ho uve no Rio de Janeiro um jul-
§ ] QAs penas aumentam-se de um sexto a um terço se o gamento, em que a defesa de um homicida apelara para a
crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o tese de legítima defesa baseada na alegação de que a vítima
fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo estava for a de um auto móvel e disposta a atirar no crimino-
p enal, ou em processo civil em que for p arte entidade da so, que fora mais rápido no gatilho e conseguira salvar-se,
administração pública direta ou indireta. alvejando o possível agressor. Contudo, pelo estudo da tra-
§ 2QO fa to deixa de ser punível se, antes da sentença jetó ria d o projétil no interior d o corpo da vítima, ficou de-
no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou monstrado, inclusive com prova radiológica, feita com au-
declara a verdade. xílio de um vergalhão colocad o na posição dos orifícios de
entrada e de saída, que a arma do agressor estava em plano
Código de Processo Civil acima do alvo, tendo disparado de cima para baixo. Tal dire-
Art. 147. O perito que, por dolo ou culpa, prestar infor- ção seria impossível se ambos, atirador e vítima, estivessem
mações inverídicas responderá pelos prejuízos que causar à de pé, confo rme alegado pelo defensor do acusado.
parte, ficará inabilitado, por dois anos, a funcionar em ou- Durante o cumprimento da pena, pode haver necessi-
tras perícias e incorrerá na sanção que a lei penal estabelecer. dade de exam e médico do sentenciado. O aparecimento de
sinais ou sintomas de doença mental faz com que o juiz da
Os achados periciais devem ser relatados pelos peritos Vara de Execuções determine o exam e pericial do criminoso.
em linguagem técnica, m as acessível à autoridade solicitante, Se constatada a doença, a sentença é interro mpida e o de-
sempre tendo em mente que quem va i ler o laudo é pessoa tento, encaminhado a tratamento médico especializad o no
leiga naquele campo do saber. A inobservância dessa peque- manicômio judiciário (ver Capítulo 32).
na regra traz prejuízos para a Justiça, pois leva a autoridade No fo ro civil, o médico é recrutado, de prefer ência, entre
a pedir esclarecimentos por meio de quesitos encaminhados os peritos ofi ciais, conforme recomenda o Código de Pro-
por escrito aos peritos, ou de viva voz após convocá-los para cesso Civil2:
audiência. Em qualquer das duas hipóteses, há retardamento
dos trâmites processuais. Art. 434. Quando o exame tiver por objeto a auten-
ticação ou a falsidade de documento, ou for de natureza
médico-legal, o perito será escolhido, de preferência, entre
• DOCUMENTOS MÉDICO-LEGAIS os técnicos dos estabelecimentos oficiais especializados. O
juiz autorizará a remessa dos autos, bem como do m aterial
Em qualquer tipo de processo, podem ser necessárias as sujeito a exame, ao estabelecimento, perante cujo diretor o
perícias médicas: penal, civil ou administrativa. No fo ro pe- perito prestará o compromisso.
nal, o perito médico pode ser chamado a intervir em qual-
quer fase do processso: inquérito, sumá rio, julgamento, até Justifica-se tal recomendação pela m aior experiência des-
mesmo após a sentença. As perícias podem consistir em exa- ses no campo da Medicina Legal. Antes mesmo do início da
mes da vítima, do indiciad o, de testemunhas ou de jurado. O ação cível, o perito pode ser cham ado. A parte interessada o
exame do indiciad o pode ter por finalidade determinar sua convoca, por m eio de seu representante, para avaliação de
identidade, lesões ou vestígios de luta, a existência de doen- um dano físico, de uma incapacidade, uma deformidade,
ças físicas ou mentais etc. Para a execução de medidas de se- enfim para saber se há consistência na propositura de uma
gurança, ou sua revogação, é indispensável, muitas vezes, a reparação de danos. Po r vezes, o dano é inegável, m as per-
intervenção pericial (ver Capítulo 32). De um modo geral, o sistem dúvidas quanto à sua relação de causalidade com o
perito médico atua principalmente na fase inicial, de instru- evento alegado. Caso admita que vale a pena mover a ação
ção do processo, quando a autoridade policial está interessa- cível, o perito deve ser apresentado ao juiz para q uem foi
CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais • 21

distribuído o processo, a fim de firmar o compromisso legal cada Estado da Federação, com discretas variantes. Podem
de servir fielmente à Justiça. No foro penal, tal compromis- ser vistos no Apêndice que complementa este ca pítulo. Não
so está implícito na função que o perito oficial exerce como existem quesitos oficiais no foro civil.
funcionário do Estado.
Além dessas, há outras situações cíveis em que a palavra Histórico
do perito médico é indispensável. Sua presença é obrigató-
É a contrapartida médico-legal da anamnese do exame
ria nos acidentes do trabalho, em que verifica a existência
clínico comum. Na maioria das vezes, os dados referentes aos
de incapacidades e a sua gradação, a ocorrência de doenças
antecedentes são obtidos do próprio examinando, exceto nos
profissionais, seu nexo causal com o trabalho e a eficácia das
casos de autopsia, os quais precisam ser transcritos da guia
medidas preventivas (ver Capítulo 21). Hoje em dia, as Varas
de remoção que acompanha o corpo. No primeiro caso, o
de Família podem pedir, quando contestada, a determinação
perito dever ter o cuidado de não fazer suas as afirmações da
da paternidade, pois a Medicina Legal já dispõe de testes ex-
pessoa que examina. Convém começar o histórico com ex-
tremamente seguros, como o do DNA. A psiquiatria forense
pressões do tipo "refere que .. .': de modo a não se comprome-
tem sido chamada a validar testamentos, interditar pródigos,
ter com o que for informado. É importante não esquecer que
anular casamentos, sempre que seja alegada doença mental
qualquer pessoa que vem a exame em um instituto médico-
de uma das partes (ver Capítulo 33) .
legal foi envolvida em uma ocorrência policial, como vítima
Na missão de informar às autoridades, o médico produz
ou como agressora. É comum que a vítima exagere em suas
documentos que apresentam uma configuração que varia
queixas, de modo a tornar maior o dano sofrido. Aqui reside
conforme a situação e a sua finalidade. Analisaremos a seguir
uma diferen ça fundamental com o exame clínico comum.
as características desses documentos.
Neste, não há razões para que o m édico desconfie da vera-
cidade dos dados fornecidos pelo paciente, que busca alívio
Relatório Médico-legal para seus males e sabe que o diagnóstico depende de o mé-
dico ser fielmente informado. E que o tratamento depende
Segundo Flamínio Fávero6 , é a narração escrita e minu-
de um diagnóstico bem feito.
ciosa de todas as operações de uma perícia médica deter- Quando o exame é feito no indiciado, várias situações
minada por autoridade po licial ou judiciária a um ou mais
podem comprometer a fidelidade das informações presta-
profissionais anterio rmente nomeados e comprometidos na
das. Podem ser dissimuladas lesões compro metedoras e que
forma da lei. O perito que redige o documento é o relator, po-
denunciem ter o indivíduo participado de uma luta corpo-
dendo haver um outro que sirva de revisor. Q uando é ditado
ral, como nos casos de estupro, em que o homem pode ter
a um escrivão durante o exame, chama-se auto; se redigido
sido arranhado pelas unhas de sua vítima. Às vezes, são pro-
depois de terminada a perícia, deve ser chamado de laudo.
duzidas autolesões a fim de descaracterizar um crime de le-
Pode ser dividido em sete partes: preâmbulo, quesitos, histó-
são corporal pela existência de lesões recíprocas. A simulação
rico, descrição, discussão, conclusão e resposta aos quesitos.
de doença m ental pode ser tentada com o fim de substituir
a pena por uma medida de segurança. Nesta, o agente não é
Preâmbulo
encarcerado, mas submetido a tratamento psiquiátrico.
É uma espécie de introdução na qual constam a qualifica- Em se tratando de necropsia, é preciso não esquecer que
ção da autoridade solicitante, a do perito, a d o examinando; os dados da guia de remoção cadavérica devem ser transcri-
o local o nde é feito o exame; a data e a ho ra, bem como o tipo tos, não endossados. Por se esquecerem disso, algumas partes
de perícia a ser feita. interessadas em processos de homicídio, principalmente se o
crime tem m otivação política, acusam os peritos de acobertar
Quesitos versões falsas atribuídas às autoridades policiais quando da
m orte de algum preso. Ao lerem o laudo cadavérico, acham
São perguntas cuja finalidade é a caracterização de fatos
relevantes que deram origem ao processo. No foro penal, que as informações transcritas da guia para o relatório são
a opinião dos peritos sobre a ocorrência. Alguns processos
são padronizados e têm o fim de caracterizar os elementos
éticos foram abertos nos Conselhos Regionais de Medicina
de um fato típico. Os quesitos oficiais variam conforme o
contra médicos-legistas que necropsiaram membros dos mo-
tipo de perícia. Quando da elaboração, em 1941, do Códi-
vimentos armados de esquerda, durante o regime militar,
go de Processo Penal, uma comissão, composta por Miguel
baseados nessa falsa premissa.
Sales, ex-diretor do Instituto Médico-legal do Rio de Janei-
ro, Antenor Costa, médico-legista e professor de Medicina
Descrição
Legal, e Roberto Lira, titular de Direito Penal da Faculdade
de Direito da Universidade do Brasil, formulou-os de modo É a parte mais importante d o relatório m édico-legal. Em
a facilitar a caracterização dos diversos delitos e de circuns- primeiro lugar, porque não pode ser refeita com a m esma
tâncias atenuantes ou agravantes. Foram aprovados pela riqueza de detalhes em um exame ulterior. No caso de pessoa
Comissão Elaboradora do CPP. Os quesitos oficiais constam viva, a evolução das lesões pelo processo inflamató rio e/ou
dos impressos utilizados pelas instituições médico-legais de pela reparação e cicatrização faz com que os aspectos mais
22 • CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais

característicos e denunciado res do instrumento o u meio ro no dia anterior ao exame, constatamos a presença de uma
que as causou se modifiquem, perdendo gradualmente seu equimose periorbitária palpebral de contornos esverdeados.
potencial de inform ação. Na hipótese de lesões em cadáver, Como sabem os que as equimoses mudam de cor com o pas-
os processos de decom posição alteram o seu aspecto, reti- sar dos dias, e que a cor esverdeada indica uma evolução de,
r ando-lhes as particularidades que permitem ao patologista no mínimo, 3 a 4 dias, ficou claro que ela estava mentindo
forense fazer o diagnóstico, seja da causa, seja da idade da quanto à data da agressão.
lesão. Em nosso meio, com temperaturas ambientes eleva- O perito deve lançar mão de esquem as, desenhos, fo -
d as, a putrefação e a ação da fauna cadavérica r apidam ente tografias ou outras fo rmas de registro ao seu alcance para
d estroem as partes m oles d o corpo, impedindo que as lesões melhor referir as lesões encontradas e outros achados. Tais
sejam reavaliadas. O melhor mom ento para a boa descrição elementos serão numerados e identificados para que não se
é o primeiro exame. ponha em suspeição sua autenticidade. Nas fotografias, é im-
Tal descrição deve ser minuciosa, rica em detalhes, cor- portante o emprego de etiquetas ao lado da peça e uma r égua
respondendo ao visum et repertum. O perito deve traduzir aferida em centímetros, sempre que possível. As instituições
em palavras as sensações que experimenta ao realizar o exa- oficiais costumam fo rnecer esquemas d o corpo humano
m e, tanto as visuais quanto as derivad as dos outros sentidos. com o desenho das regiões anatômicas para que os peritos
Para isso, seu linguajar deve ser rico em substantivos, mas situem as lesões referidas na descrição. Obedecem ao dispos-
não pode abusar dos adjetivos. A objetividade da descrição to no art. 165 do CPP 1•
será baseada na percepção e comunicação de fo rmas, pro-
porções, extensões. Dará importân cia aos elem entos presen- Art. 165. Para represen tar as lesões encontradas no ca-
tes, mas anotará também algumas ausências importantes. dáver, os peritos, quando possível, juntarão ao laudo do exa-
Po r exemplo, a ausência de reação vital em um ferimento me provas f otográficas, esquemas ou desenhos, devidamente
tem que ser anotada. rubricados.
É de boa norma não diagnosticar durante a descrição,
mesmo que seja tentado a fazê-lo para simplificá-la. Referir Conclusão
uma lesão pelo seu diagnóstico impede que, numa revisão Terminadas a descrição e a discussão, se houver, o perito
do laudo, feita após longo tempo, ele próprio, ou outro legis- assume uma posição quanto à ocorrência, ou não, d o fato
ta, discutam outras possibilidades diagnósticas. Assim, num com base nas informações do histórico, nos achados d o exa-
caso de morte por projétil de arma de fogo transfixante do me objetivo e no seu confronto. O que fo r concluído será re-
tórax, a simples afirmação de que a entrada foi por diante e a sumido em poucas palavras, de modo a torn ar a info rmação
saída pelo dorso é insuficiente. Se, mais tarde, fo r levantada a concisa e clara para a autoridade que pediu a per ícia. Aqui,
hipótese de erro diagnóstico, não terá o perito elem entos para não há m ais espaço par a dúvidas, para avaliações e compara-
fundamentar a sua conclusão anterior. Nos últimos anos, no ções, que terão sido feitas na discussão.
IMLAP do Rio de Janeiro, tem sido rotina o uso de câmeras As conclusões podem ser afirmativas ou negativas. Por
fotográficas digitais para documentar as lesões observadas. exemplo, o perito pode concluir que uma paciente apresen-
tada a exame é virgem, ou não. Nos casos de lesões por arma
Discussão de fogo, o número de projéteis que atingiram a vítima e o seu
Na maioria dos casos de rotina, sem contradições aparen- trajeto no corpo devem ser referidos sempre nas conclusões
tes, pode não ser necessária. Contudo, quando surge alguma de um relatório referente a homicídio. No entanto, casos há
discrepância, quando o aspecto de alguma lesão foge ao que em que não é possível firmar uma conclusão, seja positiva,
era de se esper ar pelos elem entos do histórico, torna-se im- seja negativa. Não importa. A impossibilidade de concluir já
periosa. Nesses casos, os achad os têm que ser analisados sob é uma conclusão. É o que ocorre nos casos em que um hímen
novos ângulos, tentando encontrar uma explicação para as é complacente e não se rompe com a cópula vaginal. O perito
diferenças. Podem ser formuladas hipóteses diferentes, por dirá q ue não tem elem entos par a afirmar ou negar ter havido
vezes envolvendo a necessidade de estudos mais detalhados conjunção carnal.
e exames complementares. Por exemplo, quando os sinais
cadavéricos em conjunto sugerem uma hora de m orte dife-
Resposta aos Quesitos
rente daquela anotada na guia de rem oção do corpo, é pos- Deve ser sucinta e objetiva. Não são admissíveis falta de
sível que outros fatores tenham interferido em sua evolução clareza nem interpretação dúbia. As incertezas podem serre-
natural, tal como a colocação do corpo em uma câmara fria, feridas na discussão, o u até na conclusão, m as não podem
o que protela a instalação da putrefação e o desfazimento da transparecer na resposta aos quesitos. Com o já referido ante-
rigidez muscular. riormente, os quesitos são perguntas, em geral padronizadas,
Por vezes, as divergências não podem ser superad as, e a com a finalidade de estabelecer elementos de um fato típi-
única hipótese viável é a falsidade dos dados colhidos no his- co, ou alguma outra circunstância relevante para o caso. Em
tórico. Ao fazermos, em uma prova de concurso, o exame de caso de dúvida, os peritos responderão que não têm dados
uma senhora que alegava ter sido agredida pelo companhei- para esclarecê-la. É muito mais sensato reconhecer a falibi-
CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais • 23

!idade do exame e da própria ciência médica do que induzir relatório. Podem ser também causadas pela superveniência
a autoridade em erro, mesmo que a probabilidade de estar de um fato novo no transcorrer do processo.
correto seja razoável. Qualquer advogado competente pode- É comum que as consultas médico-legais por escrito se-
ria usar a dúvida a seu favor. jam precedidas de um contato verbal de quem consulta com
Uma resposta que se cobra muito aos patologistas foren- o perito a fim de sondar se poderia ser de algum proveito na
ses é a que se refere ao quarto quesito do exame cadavérico: defesa de sua causa. Isso porque o mestre ou a instituição
"Se a morte foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, consultada responderão baseados fielmente nos dados for-
asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel ( respos- necidos, sem qualquer grau de parcialidade.
ta especificada)." A finalidade desse quesito é estabelecer for-
mas de homicídio qualificado. Na ausência de sinais claros
Parecer Médico-legal
de que se trata de homicídio, o perito pode responder como
prejudicado o quesito e aguardar uma consulta posterior. É Quando uma consulta médico-legal envolve divergências
melhor do que responder afirmativamente em um caso que importantes quanto à interpretação dos achados de uma pe-
pode ser de suicídio e no qual o fato seria irrelevante. Sabe-se rícia, de modo a impedir uma orientação correta dos julga-
que a causa jurídica mais frequente de enforcamento é o sui- dores, estes, ou qualquer das partes interessadas no processo,
cídio. Nesses casos, não há necessidade de responder especi- podem solicitar esclarecimentos mais aprofundados a uma
ficadamente a esse quarto quesito. instituição cujo corpo técnico tem competência inquestio-
Outro aspecto que cabe salientar aqui é que a pergunta nável, ou a um perito ou professor cuja autoridade na maté-
é sobre se "a morte foi produzida por.. .''. Não se pergunta se ria seja reconhecida. O documento gerado por esse tipo de
houve emprego de qualquer daqueles agentes antes da mor- consulta recebe o nome de parecer. Às vezes, solicita-se um
te. Em alguns casos, pode ter havido tortura que não tenha parecer sobre outro parecer elaborado previamente por ou-
levado, por si, à morte. Esta pode, muito bem, ter sido provo- tro especialista.
cada por outras causas que não as citadas como qualifican- O valor técnico do parecer está associado ao renome
tes, v. g., projétil de arma de fogo. Imagine-se um indivíduo de quem o assina. Isso não quer dizer, porém, que se deva
detido para interrogatório. Seus inquisido res po dem pegar aceitar como palavra final a opinião do parecerista. Mas a
um revólver, colocar apenas um cartucho no tambor e fazer condução da argumentação, feita de modo claro e lógico,
roleta-russa sobre a cabeça do preso. Após uma ou duas ve- apoiada por citação de autores consagrados, como costuma
zes de acionamento do gatilho sem ter havido o disparo, o acontecer nos pareceres assinados por grandes mestres do
indivíduo pode confessar até o que não tiver feito. E não fica tema em discussão, torna-se difícil de contestar.
qualquer marca da tortura. Segundo Flamínio Fávero6 , um parecer consta de preâm-
Terminado o relatório, os peritos devem assiná-lo. O pri- bulo, exposição, discussão e conclusão. Não existe, aqui, a
meiro que o faz é o relator. Após sua assinatura, o laudo é descrição, pois as dúvidas são de interpretação dos achados
encaminhado ao perito revisor, que deve lê-lo com atenção, de uma perícia. Por vezes, a própria descrição está em xeque,
de modo a poder surpreender alguma incoerência, e, em se- ora por ser julgada incompleta, ora por não corresponder ao
guida, assiná-lo. esperado conforme o histórico do caso. Poucas são as vezes
A data do exame pode constar do preâmbulo, estar no iní- em que um parecerista requer a possibilidade de reexaminar
cio da descrição, ou ser colocada antes das assinaturas finais. a pessoa ou o material alvo da perícia.
O preâmbulo é onde ficam a qualificação da autoridade
Consulta Médico-legal que faz a consulta e a do parecerista, constando seus títu-
los e o número do processo e da Vara Criminal ou Civil
Às vezes surgem dúvidas sobre um relatório médico-legal, correspondente.
dando ensejo a que seja ouvida a opinião de um mestre da A exposição compreende o motivo da consulta, os que-
Medicina Legal, ou a de uma instituição altamente concei- sitos formulados e o histórico do caso a ser analisado. O
tuada. A consulta médico-legal é o documento que exprime parecerista deve transcrever os quesitos e fazer um resumo
a dúvida e no qual a autoridade, ou mesmo um outro perito, cronológico dos fatos e dos demais elementos dos autos.
solicita esclarecimentos sobre pontos controvertidos do rela- A discussão vem a ser a parte mais importante e mais rica
tório, em geral formulando quesitos complementares. Deve de um parecer. É nela que o parecerista demonstra sua cultura,
ser feita com clareza e precisão, por escrito. No intuito de fa - capacidade de análise e poder de argumentação. Quanto mais
cilitar o trabalho do especialista consultado, sempre que pos- enriquecido for o parecer pela citação de tratadistas clássicos
sível, a consulta deverá vir acompanhada de todas as peças e de novas referências bibliográficas, maior será o seu peso na
suscetíveis de esclarecer ou orientar: exames médico -legais, formação da convicção dos julgadores. É por essa razão que
laudos, pareceres, inclusive os próprios autos processuais, um perito chamado a elaborar um parecer sobre assunto de
enfim, tudo o que for pertinente. Com maior frequência, que não tenha pleno domínio e experiência deve-se furtar ao
constam de poucos quesitos, cuja resposta é simples e obje- chamado. Não há, como no relatório, o dever cívico de servir
tiva, decorrente da não compreensão de algum aspecto do à justiça. Na verdade, quem aceita dar pareceres sobre matéria
24 • CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais

que não conheça o suficiente, além de não demonstrar bom Embora o atestado médico não exija compromisso legal,
senso, está prestando um desserviço, já que poderá induzir isso não quer dizer que se abre mão do compromisso com a
em erro aqueles que o consultam. Na discussão, são aponta- verdade. Todos que exercem a medicina clínica sabem que é
dos os pontos julgad os falhos da perícia, mas de modo sereno mu ito com um serem solicitados a dar atestados nos corredo -
e sem excessos de linguagem para não ferir a ética. res d os hospitais, nos ambulatórios, tendo ou não atendido
A conclusão, ou conclusões, deve sintetiza r os pontos a pessoa que o solicita. Nos casos em que houve o atendi-
relevantes da discussão de modo claro e sucinto. H á quem mento, o médico tem o dever ético de fornecer o atestado,
prefira colocar as conclusões à medida que vão sendo res- já que o Código de Ética Médica (CEM) 8 o considera parte
pondid os os quesitos formulados na consulta. integrante da consulta quando estabelece:

Depoimento Oral Código de Ética M édica. É vedado ao médico:


Art. 91 . D eixar de atestar atos executados no exercício
A resposta aos quesitos de um relatório médico-legal não profissional, quando solicitado pelo paciente ou seu repre-
representa, com frequência, o fim do trabalho pericial. Tanto sentante legal.
durante a fase de instrução como depois, e mesmo após o
julgamento, os peritos podem ser chamados a prestar escla- O constrangimento su rge quando a pessoa q ue pede o
recimentos acerca do que viram e descreveram. Mesmo que atestado é do círculo de am izades do profissio nal mas não
se tenham aposentado, poderão vir à presença dos julgadores esteve sob seus cuidados. Afirma ter estado doente, mas o
para maiores informações, quando necessário. O juiz pode médico não constatou o fato. Mais grave é a situação quando
convocar os dois peritos signatários do laudo, como é o caso não refere ter estado doente e requer o benefício do atestado.
mais comum, mas pode mandar que um outro seja nomeado Tanto num como noutro caso, trata-se do chamado atestado
para prestar o depoimento. To dos que já trabalharam como gracioso. O profissional não pode deixa r-se levar por esse
peritos em casos d e homicídio sabem que a convocação para tipo de pressão. Tem que recusa r o ped ido. Os atestados de
depor em julzo é tanto mais frequente quanto menos claro favor devem ser rigorosamente proscritos. Nenhum médico
for o laudo e mais rumoroso for o caso. Comparecendo pe- que se respeite d eve prestar-se ao papel de distribuidor de
rante a autoridade judiciária, o perito tem que respo nder às atestados complacentes. A alegação, que muitas vezes fazem
perguntas que lhe forem dirigidas por qualquer das partes e os interessados em obter atestados, de que sua finalidade é
mesmo pelo juiz. Deverá fazê-lo de modo claro e respeitoso, m eramente protocolar, sem importância, merece a mais
mesmo que o tom da pergunta traga uma insinuação de in- enérgica repulsa. Habituando-se a passar atestados de favor,
competência da sua parte. Se tiver de usa r termos técnicos, sem sofrer co m isso qualquer vexame, o médico, pela reitera-
ele o fará sem pre explica ndo o seu sentido, nunca esquecen- ção do ato, acaba atestando fatos mais importantes, chegan-
do que está falando para leigos em medicina. do a atestar imprudentemente. O ato de dar atestado médico
falso constitui ilícito penal (art. 302 do CP 5) e infração ética
(art. 80 do CEM8 ) .
• ATESTADO MÉDICO
Código Penal
Nas palavras d e Souza Lima7 , é a afirmação simples e por Art. 302. Dar o médico, no exercício da sua profissão,
escrito de um fa to médico e suas consequências. Vários são atestado falso.
os usos do atestad o médico. Podem ser oficiosos, adminis- Pena: detenção de 1 (um) mês a 1 (um) ano.
trativos ou judiciários. Oficiosos são os atestados solicitados Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de
por quaisquer pessoas a cujo interesse atendem. Visam uni- lucro, aplica-se também multa.
camente ao interesse privado. Como exemplo desses, temos
os atestados médicos para justificar falta ao trabalho, a pro- Código de Ética Médica
vas escolares, a bancos. Também os atestados de saúde para É vedado ao médico:
admissão a aulas de ginástica, para frequentar piscinas etc. Art. 80. Expedir documento m édico sem ter praticado
Administrativos são os exigidos pelas autoridades ad minis- ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou
trativas. São dessa categoria os que os empregados públicos que não corresponda à verdade.
são obrigados a apresentar quando solicitam licença ou re-
querem aposentadoria (via de regra, são fornecidos por jun- Existem algumas regras que devem ser respeitadas quan-
tas médicas de inspeção d e sa úde), atestados de vacinação do se faz um atestado médico. Em primeiro lugar, o papel
ou atestados de sanidade física e mental para admissão em utilizado deve conter informações claras e precisas sobre o
escolas e repartições públicas. Judiciários são os atestados re- número de registro do profissional no CRM do seu estado,
quisitados por juiz. O exemplo mais comum são aqueles com onde encontrá-lo (endereço completo e telefo ne), sua espe-
que os jurados justificam suas faltas ao Tribunal do Júri. Só cialidad e, eventual titulação acadêmica, e mesmo seu núme-
os atestados que interessam à justiça constituem documen - ro de registro no CPF. A disposição gráfica desses elementos
tos médico-legais. é irrelevante, o importante é que esteja m presentes no re-
CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais • 25

ceituário. Como título e em destaque, deve conter a palavra Lei dos Juizados Especiais
"Atestado". Algumas linhas abaixo, o corpo do texto principal Art. 77. Na ação penal de iniciativa pública, quando
deve começar com a expressão "Atesto, para fins .. :', sempre não houve aplicação da pena, pela ausência do autor do
referindo o fim para o qual foi pedido o atestado. Devem ser fato, ou pela não existência de hipótese prevista no art. 76
evitadas expressões como "para os devidos fins'; que cabem desta Lei, o Ministério Público oferecerá ao juiz, de imedia-
para qualquer propósito. É sempre bom que o médico deixe to, denúncia oral, se não houver necessidade de diligências
claro que sabia para que uso estava dando o documento. Isso imprescindíveis.
também cerceia o uso indevido. § 1º Para o oferecimento da denúncia, que será elabora-
Convém anotar, no início do texto, o número do documen- da com base no termo de ocorrência referido no art. 69 desta
to de identidade do paciente, para que mais tarde não se du- Lei, com dispensa do inquérito policial, prescindir-se-á do
vide de que o exame tenha sido feito naquele indivíduo9 • exame do corpo de delito quando a materialidade do crime
O médico não pode, ao se referir ao fato, revelar o diag- estiver aferida por boletim médico ou prova equivalente.
nóstico da doença que motivou o impedimento, mesmo sob
a forma codificada (Código Internacional de Doenças 1º) . A Essa é mais uma razão para o esmero e o cuidado ao se
declaração do diagnóstico no corpo do atestado só é permi- emitir um atestado médico 13•
tida em casos de dever legal, motivo justo, ou por autoriza-
ção por escrito do paciente (art. 73 do CEM8 e Resolução
1.484/97 do CFM 11 ) . Nos casos em que o próprio paciente • DECLARAÇÃO DE ÓBITO
o solicitar, deverá constar do atestado que a revelação do
diagnóstico foi feita a pedido. Fora disso, o melhor é se refe- É o documento-base do Sistema de Informações sobre
rir a síndromes, porque não implicam revelação do segredo Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS). É compos-
profissional. ta de três vias, de cores diferentes (branca, amarela e rosa),
tem numeração sequencial, é fornecida pelo Ministério da
Código de Ética Médica Saúde e distribuída pelas Secretarias Estaduais e Municipais
É vedado ao médico: de Saúde 14 •
Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em vir- A expressão usada com maior frequência é "atestado de
tude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, óbito'; mas não é a mais correta. Até o ano de 1976, o formu-
dever legal ou autorização por escrito do paciente. lário usado para esse documento oficial era assim chamado
porque imitava o "Modelo Internacional de Atestado de Óbi-
Resolução 1.48411997 do CFM to'; adotado em 1948, durante a Sexta Revisão da Classifica-
1. É permitido ao médico, quando por justa causa, ex er- ção Internacional de Doenças15 . Até então, nos estados bra-
cício de dever legal, solicitação do próprio paciente ou de sileiros, a parte médica era semelhante, mas a parte referente
seu representante legal, fornecer atestado médico com o aos dados de identificação e outras informações variava de
diagnóstico. um para outro. Por isso, para uniformizar os form ulários em
todo o País, foi criada, naquele ano de 1976, uma Declaração
As consequências do fato médico, porém, têm que serre- de Óbito a ser distribuída pelo Ministério da Saúde, adota-
latadas de modo adequado. Um erro comum aos atestados da até recentemente em todo o território nacional. A versão
passados com menor cuidado é o uso da expressão ''. .. impos- atual é a que consta no Anexo I da Portaria 20/2003 da Se-
sibilitado de se locomover''. Raras são as situações médicas em cretaria de Vigilância em Saúde 16 • Consta de nove blocos de
que o paciente fica impossibilitado de se locomover. Estaria informações em que apenas o bloco VI pode ser chamado de
nessas condições o paciente em coma, o grande gessado pel- atestado, pois contém os dados de ordem médica da causa
vipodálico ou aquele acometido por tetraplegia. Mesmo o da morte 17. Assim, quando nos referimos, hoje, a atestado de
paraplégico é capaz de se locomover com o auxílio de sua óbito, estamos nos reportando ao bloco VI da Declaração de
cadeira de rodas. Alguns até praticam esportes que exigem Óbito. Para estudar esse documento, é interessante, de início,
deslocamentos rápidos, como tênis ou basquete. Muito mais separar os aspectos legais dos aspectos médicos.
conveniente é dizer-se que foi recomendado ao paciente que
guardasse repouso no leito. O período do impedimento deve Aspectos Legais
ser escrito de modo claro para que surta seu efeito legal.
É indispensável, ao final, que seja colocado o local em Em primeiro lugar, é preciso que seja diagnosticada a
que se redigiu o atestado, bem como a data da afirmação. morte. Mas os critérios para tal serão abordados no Capí-
Esta não precisa ser a mesma do último dia em que o pacien- tulo 6.
te esteve sob os cuidados do profissional, pode ser ulterior. O Código Civil (CC), Lei 10.406 de 10 de janeiro de
Com a promulgação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 2002 18, estabelece que a personalidade civil do homem co-
9.099 de 26/09/1995 ) 12 , o atestado médico assumiu a posição meça do nascimento com vida e que a existência da pessoa
de substituto eventual da perícia médico-legal nos casos de natural termina com a morte. Admite, ainda, a presunção
lesão corporal leve. É o que consta do § 1n do artigo 77. desta em circunstâncias previstas no artigo sétimo.
26 • CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais

Código Civil Código Penal5 que não o 121, como no 123 (infanticídio);
Art. 2°. A personalidade civil da pessoa começa do nas- 127 (morte materna em aborto criminoso); 129, § 3" (lesão
cimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, corporal seguida de morte), 157, § Jº (latrocínio); 213, § 2.Q
os direitos do nascituro. (estupro seguido de morte). Morte suspeita é aquela cuja
Art. 6'1. A existência da pessoa natural termina com a causa jurídica precisa ser esclarecida por não se ter certeza
morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em de ter sido natural.
que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva. O médico está sujeito a normas legais que ora o impedem
Art. 7º. Pode ser declarada a morte presumida, sem de- de declarar o óbito, ora o obrigam a fazê-lo. O médico assis-
cretação de ausência: tente está impedido de firmar a Declaração de óbito quan-
I - se for extremamente provável a morte de quem esta- do se tratar de morte em que a causa tenha sido claramente
va em perigo de vida; violenta ou, pelo menos, tenha havido suspeita de violência
II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito pri- (arts. 158, 159 e 162 do CPP 1; art. 3Q, § 2!1. da Lei 8.501 de
sioneiro, não for encontrado até dois anos após o término 30/11/1992 2º, Resolução 1.779/05 do CFM 19; art. 12, alínea e,
da guerra. do Decreto 1.754 do Estado do Rio de Janeiro 21 ) .
Parágrafo único. A declaração da morte presumida,
nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgo- Código de Processo Penal
tadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a Art. 162. A autopsia será feita pelo menos seis horas de-
data provável do falecimento. pois do óbito, salvo se os peritos, pela evidência dos sinais
de morte, julgarem que possa ser feita antes daquele prazo,
Manda, ainda, inscrever em registro público certos even- o que declararão no auto.
tos importantes, como o nascimento e a morte das pessoas Parágrafo único. Nos casos de morte violenta, bastará
(a rt. 9", I do CC1 8; art. 29, III da Lei 6.015 de 31/12/73, Lei o simples exame externo do cadáver, quando não houver
dos Registros Públicos9 ) . Mas, para que seja feito o assento infração penal que apurar, ou quando as lesões externas
do óbito no cartório do registro civil, é indispensável a apre- permitirem precisar a causa da morte e não houver neces-
sentação da Declaração de Óbito totalmente preenchida e sidade de exame interno para a verificação de alguma cir-
assinada pelo m édico (art. 77 da Lei dos Registros Públicos9). cunstância relevante.

Código Civil Lei 8.501/92 (dispõe sobre utilização de cadáver para


Art. ~- Serão registrados em registro público: estudos e pesquisas)
I - os nascimentos, casamentos e óbitos; Art. .32. Será destinado para estudo, na forma do artigo
anterior, o cadáver:
Lei dos Registros Públicos I - sem qualquer documentação;
Art. 29. Serão registrados no Registro Civil de Pessoas II - identificado, sobre o qual inexistem informações re-
Naturais: lativas a endereços de parentes ou responsáveis legais.
I - os nascimentos; § l " ............................................ .
II - os casamentos; § 2° Se a morte não resultar de causa natural, o cor-
III - os óbitos; po será obrigatoriamente submetido à necropsia no órgão
competente.
Art. 77. Nenhum sepultamento será feito sem certidão do
oficial de registro do lugar do falecimento, extraída após a Resolução 1. 779/05 do CFM (dispõe sobre a responsabi-
lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médi- lidade médica na DO)
co, se houver no lugar, ou, em caso contrário, de duas pessoas Art. 2°. Os m édicos, quando do preenchimento da De-
qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte. claração de óbito, obedecerão as seguintes normas:
1. .............................................
O preenchimento de todos os seus itens é da responsabi- 2 . ............................................ .
lidade do médico, conforme a Resolução 1.779/05 do CFM 19• 3. Mortes violentas ou não naturais: A DO deverá, obri-
Contudo, entendemos que os dados referentes à causa jurí- gatoriamente, ser fornecida pelos serviços médico-legais.
dica, que constam do bloco VIII dessa declaração, não deve-
riam ser cobrados ao médico signatário, já que, como regra, Decreto 1. 754 de 14/03/ 1978 do Estado do Rio de Janeiro
não dispõe das informações necessárias para tal afirmação. Art. 12. É vedado ao médico:
Juridicam ente, a morte pode ser natural, violenta ou sus-
peita. Entende-se por violenta a morte não natural decor- e) Passar atestado de óbito, não sendo médico-legista
rente da ação de energias externas. Pode assumir a forma de ou investido nessa função, quando for causa primária ou
crime, suicídio ou acidente. Preferimos usar a palavra crime, imediata da morte um acidente, culposo ou doloso, suicídio
em vez de homicídio, porque a morte violenta dolosa pode ou homicídio, mesmo quando se tratar de doente sob seus
ocorrer também em crimes previstos em outros artigos do cuidados médicos;
CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais • 27

Mesmo que o paciente tenha morrido de uma complica- esteja habilitado para fazê-lo, devendo, neste caso, tal fato
ção remotamente relacionada com o trauma, a morte é tida ser comunicado à autoridade policial competente, a fim de
como vio lenta desde que se possa estabelecer um nexo cau- que o corpo possa ser encaminhado ao Instituto Médico-
sal. Seria o caso, por exemplo, de um indivíduo que, tendo legal para verificação da causa mortis.
sido atropelado e sofrido fratura do fêmur, tivesse ficado aca-
mado por tempo prolongado e viesse a morrer por broncop- Contudo, nos óbitos hospitalares, mesmo não tendo
neumonia decorrente de acúmulo de secreções nos pulmões, acompan hado o caso, pode ter acesso às informações neces-
facilitando a sua invasão pelas bactérias. Tais pneumonias sárias no prontuário do hospital. O mesmo não se dá quando
de estase são complicação possível na evolução de doenças o doente fica internado por curto período, em geral menos de
traumáticas em que o paciente tem que permanecer deitado 24 horas, sem que se tenha chegado a uma conclusão quanto
por muitos dias. à causa da morte. Nesses casos, existem normas que variam
Nos casos de morte natural a que não tenha assistido, de um estado para outro, mas que, em síntese, estabelecem
como é óbvio, também fica impedido de preencher a de- que é da responsabilidade do serviço de patologia do hospi-
claração (art. 16, alínea d, do Decreto Federal 20.931 de tal a realização da autopsia para esclarecê-la. Em alguns, o
11/01/193222; art. 83 do CEM8 ; art. 12, alínea d, do Decreto corpo é transferido para o Instituto Médico-legal; em outros,
1.754 do Estado do Rio de Janeiro 2 1) . para um serviço de verificação de óbitos. Na falta desses re-
cursos, o médico deve entrevistar os familiares mais próxi-
Decreto Federal 20.931 (regulamenta profissões de mos no sentido de encontrar alguma informação que possa
saúde). esclarecer a causa mais provável da morte. Esgotadas todas
Art. 16. É vedado ao médico: as possibilidades de esclarecê-la, declarar no atestado que se
trata de morte sem assistência, de causa indeterminada. Tal
d) atestar o óbito de pessoa a quem não tenha prestado informação é muito importante para que as autoridades sa-
assistência médica; nitárias ten ham dados para planejar medidas corretivas.
Por outro lado, o médico assistente não pode esquivar-se
Código de Ética Médica de firmar a Declaração de Óbito sem justa causa (art. 15, alí-
É vedado ao m édico: nea e, e o art. 16, alínea L do Decreto Federal 20.93 122; art.
Art. 83. Atestar óbito quando não o tenha verificado 84 doCEM8 ) .
pessoalmente, ou quando não tenha prestado assistência ao
paciente, salvo, no último caso, se o fizer como plantonis- Decreto Federal 20.931
ta, médico substituto, ou em caso de necropsia e verificação Art. 15. São deveres dos médicos:
médico-legal.
e) atestar o óbito em impressos fornecidos pelas repar-
Decreto 1.754178 do Estado do Rio de Janeiro tições sanitárias, com a exata causa mortis, de acordo com
Art. 12. É vedado ao médico: a nomenclatura nosológica internacional de estatística
a) ............................................ . demográfica-sanitária;
b) ............................................ . Art. 16. É vedado ao médico:
c) ............................................ .
d) Firmar declaração de óbito de pessoa a que não te- l) recusar-se a passar atestado de óbito de doente a
nha prestado assistência médica, salvo no desempenho das quem vinha prestando assistência médica, salvo quando
funções de médico legista ou em localidade onde não exista houver motivo justificado, do que dará ciência, por escrito,
serviço de investigação de causas de óbito; à autoridade sanitária;

Outra proibição decorre da necessidade de cercear o Código de Ética Médica: É vedado ao médico:
exercício ilegal da medicina por profissionais não médicos Art. 84. Deixar de atestar óbito de paciente ao qual vi-
da área da saúde, conforme consta da Resolução 1.641/02 do nha prestando assistência, exceto quando houver indícios
CFM 23, que determina, ainda, que comunique o fato às auto- de morte violenta.
ridades policiais e ao CRM de sua jurisdição. Não se tratando
de óbito, permanece a obrigação de comunicar o fato à polí- É o que ocorre, por exemplo, quando a recusa se dá para
cia, de modo a que o paciente seja encaminhado ao IML para obrigar a família a permitir que se faça a autopsia por inte-
o competente exame de corpo de delito. resse puramente científico. O desconhecimento de algum de-
talhe referente ao modo de morte não é razão suficiente para
Resolução 1.641/02 do CFM: desrespeitar o direito que a família tem de posse e guarda
Art. 1~. É vedado aos m édicos conceder declaração de do cadáver, mesmo que isso implique prejuízo por deixar in-
óbito em que o evento que levou à morte possa ter sido al- completa a documentação científica do caso. Tal motivo não
guma medida com intenção diagnóstica ou terapêutica in- constitui justa causa, podendo ser enquadrado no constran-
dicada por agente não médico ou realizada por quem não gimento ilegal (art. 146 do CP 5) .
28 • CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais

Código Penal sobre o Regulamento Técnico para o gerenciamento de resí-


Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou duos de serviços de saúde. Serão tratados como resíduos de
grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qual- serviços de saúde:
quer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o
que a lei permite, ou a fazer o que ele não manda: GrupoA3
Pena: detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. Peças anatômicas (membros) do ser humano; produto de
fecundação sem sinais vitais, com peso menor que 500 g, ou
A Declaração de Óbito é feita em três vias, de cores di- estatura menor que 25 cm, ou idade gestacional menor que
ferentes branca, amarela e rosa. Uma vez preenchida, deve 20 semanas, que não tenham valor científico ou legal e não
ser entregue aos familiares, para que a levem ao cartório do tenha havido requisição pelo paciente ou seus familiares.
registro civil, onde fica arquivada a segunda via, de cor ama-
rela. Cabe ao oficial do cartório fazer o assento do óbito e dar Tais resíduos devem ser sepultados como peças anatômi-
a certidão de óbito, um documento oficial que encerra a vida cas em cemitério, ou cremados em equipamento licenciado
civil da pessoa natural. Essa certidão é indispensável para para esse fim. Não devem ser confundidos com o lixo hos-
que se obtenha a guia de sepultamento, ou para a cremação pitalar comum. Mas, conforme o texto legal, mesmo esses
do cadáver (art. 77 da Lei dos Registros Públicos9 ) . A primei- produtos tão imaturos podem ser requisitados pela família.
ra via da declaração, de cor branca, é enviada pelo cartório Há que se ressaltar a possibilidade de ficarem conservados
ao serviço de bioestatística da Secretaria de Saúde do Estado para estudo, ou por necessidades legais, como nos casos de
ou a uma repartição da Fundação IBGE. A terceira via, de cor aborto criminoso.
rosa, fica no estabelecimento hospitalar onde foi emitida 17• Acima do limite estabelecido, é considerado cadáver,
O preenchimento da DO dos nascidos mortos é um as- sendo obrigatório o registro do óbito fetal no cartório da
pecto que é pouco conhecido por médicos e advogados. Em jurisdição. Os dados clínicos referentes à mãe e ao parto de-
primeiro lugar, deve-se explicar que, conforme a definição vem ser colhidos e aproveitados para confecção de tabelas
da Organização Mundial da Saúde (OMS), "Nascido vivo é de mortalidade fetal, importantes para o planejamento sani-
o produto da concepção que, depois de expulso ou extraído tário. Se os familiares não retirarem o cadáver para sepulta-
completamente do corpo da mãe, respira o u dá qualquer ou- mento, a instituição hospitalar pode incinerá-lo .
tro sinal d e vida, tal como batimentos cardíacos, pulsações
do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos
de contração voluntária, quer tenha, ou não, sido cortado o
Aspectos Médicos
cordão umbilical e esteja, ou não, desprendida a placenta''. Durante muito tempo, os médicos e os serviços de bio-
Por conseguinte, a ausência desses sinais caracteriza o óbito estatística encontraram dificuldades em estabelecer um sis-
fetal (nascido morto ) 15• Deve-se marcar o campo 7 corres- tema de comunicação de causas de morte que pudesse ser
pondente do Bloco II da DO. De acordo com o art. 53 da Lei tabulado sem distorcer a realidade dos aspectos clínicos e
dos Registros Públicos, o registro do óbito tem que ser feito patológicos das doenças fatais. Houve época em que apenas
mesmo que a criança tenha nascido morta. uma causa podia ser escrita no atestado, o que resultava em
se ter que descartar, às vezes, diagnósticos coexistentes im-
Lei dos Registros Públicos (6.01 5 de 31/ 12/1973) portantes. O maior prejuízo daí decorrente foi sempre a difi -
Art. 53. No caso de ter a criança nascido morta ou no culdade de adotar medidas corretas de medicina preventiva.
de ter morrido na ocasião do parto, será, não obstante, feito Outra desvantagem era a impossibilidade de comparação de
o assento com os elementos que couberem e com remissão dados entre os serviços de diferentes países e mesmo entre os
ao do óbito. diversos centros de um mesmo país, já que eram diferentes
§ l QNo caso de ter a criança nascido morta, será o os critérios de inclusão e de exclusão das diversas causas.
registro feito no livro "C auxiliar'; com os elementos que Em 1948, durante a Conferên cia Internacio nal para a
couberem. Sexta Revisão da Classificação Estatística Internacional de
§ 2Q No caso de a criança morrer na ocasião do parto, Doenças, uma comissão estudou o problema e concluiu que
tendo, entretanto, respirado, serão feitos os dois assentos, o o mais importante era estabelecer a causa básica da morte.
de nascimento e o de óbito, com os elementos cabíveis e com Esta seria definida como a) a doença ou lesão que iniciou a
remissões recíprocas. sucessão de eventos mórbidos que levou diretamente à morte,
ou b ) as circunstâncias do acidente ou violência que produziu
Mas podem nascer mortos pro dutos da concepção em a lesão fatal. A partir da causa básica, surgem causas conse-
qualquer fase da gestação. E é aí que surge o problema de quenciais entrelaçadas que, por fim, chegam à causa terminal
saber a partir de que fase da gravidez está o médico obrigado ou imediata 15•
pela lei a passar o atestado. Estabelecido o limite, ele po derá A parte m édica consta na declaração de óbito como
deixar de dar a DO nos casos em que a idade lhe seja inferior. "Condições e causas do óbito" (bloco VI). Nela, há quatro
O limite adotado no Brasil é o da Resolução da Direto- linhas designadas pelas letras a, b, c e d. Na linha "a", coloca-se
ria Colegiada da ANVISA, nº 306 de 7/12/2004 24, que dispõe a causa imediata da morte, ou seja, o evento final que pro-
CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais • 29

vocou a morte; na linha "b': uma causa consequen cial que Por causa disso, tem havido incentivo à instalação de ser-
produziu "a"; na linha "c", a que produziu "b"; e, na linha viços de verificação de óbitos em todo o Brasil. A Portaria
"d", a causa básica. Esta é a doença ou traumatismo que deu 1.405/06, do Ministério da Saúde28, criou a Rede Nacional de
origem às alterações da saúde que, por meio de suas con- Serviços de Verificação de Óbitos e Esclarecimento da Causa
sequências, chegou à causa imediata. Suponhamos que um Mortis (SVO), como integrante do Sistema Nacional de Vigi-
médico-legista tenha feito a necropsia de um indivíduo mor- lância em Saúde. De acordo com as novas normas, as capitais
to a tiros que tenha sofrido feridas transfixantes do coração e dos estados e os municípios mais populosos devem instalar
dos pulmões, sem ter sido socorrido. O Atestado Médico da SVO com ajuda financeira da União. O parâmetro populacio-
DO seria preenchido da seguinte maneira: a) anemia aguda; nal para a implantação dos serviços nos estados é população
b ) hemotórax; c) feridas transfixantes do coração e dos pul- de 3 milhões ou mais. Os serviços passam a ser classificados
mões; d ) projéteis de arma de fogo. em três portes: I, II e III, sendo mais qualificado e maior o III.
Os diagnósticos têm que ser escritos por extenso, não Este deve ser o porte do único a ser implantado em estados
sendo permitido colocar abreviadas as causas de morte nem com população inferior aos 3 milhões. Conforme aumente a
a sua substituição pelo código que recebem na Classificação população, são implantados outros serviços de menor por-
Internacional de Doenças (CID) 10 • Tal fato não implica falta te. Por exemplo, estão previstos na portaria para o Estado do
ética nem o crime de violação do segredo profissional, por se Rio de Janeiro, um de porte III, quatro de porte II e um de
tratar de dever legal. porte 1. Há, nas normas desta portaria, a exigência de que as
Apesar dos esforços na orientação de estudantes de me- necropsias sejam feitas por médico especialista em patologia,
dicina e de médicos quanto à forma correta de preencher a podendo, excepcionalmente, não o serem em locais carentes
DO, ainda há muitas falhas na maneira de referir as causas de médico assim titulado. As obrigações dos SVO serão:
de morte e incerteza quanto à fidelidade dos dados. Para me-
lhor orientação e esclarecimento das dúvidas mais comuns, Art. 8". Os SVO serão implantados, organizados e capa-
recomendamos a leitura das publicações referidas nos nú- citados para executarem as seguintes funções:
meros 17 e 23 das Referências Bibliográficas. I - realizar necropsias de pessoas falecidas de morte
Vários estudos retrospectivos de arquivos hospitalares natural sem ou com assistência médica (sem elucidação
realizados no estrangeiro e entre nós têm acusado diferenças diagnóstica), inclusive os casos encaminhados pelo Institu-
significativas entre o referido nos prontuários ou laudos de to Médico -legal;
autopsia e o que consta da DO como causa básica, e mesmo li - transferir ao IML os casos:
como causa imediata25• Tanto ocorre subnotificação como a a) confirmados ou suspeitos de morte por causas exter-
referência exageradamente alta de algumas causas. Tais erros nas, verificados antes ou no decorrer da necropsia;
devem -se ora à falta de recursos diagnósticos, ora à negligên- b) em estado avançado de decomposição; e
cia do profissional. Mais comum ainda é a discrepância entre c) de morte natural de identidade desconhecida;
o diagnóstico clínico e o laudo de autopsia, quando realizada, Ili - comunicar ao órgão municipal competente os ca-
mesmo nos países mais desenvolvidos. Em 1985, nos EUA, sos de corpos de indigen tes e/ou não reclamados, após a rea-
foi feito um levantamento que demonstrou que as diferen- lização da necropsia, para que seja efetuado o registro do
ças variavam de 25 a 56%, conforme o local, entre o que foi óbito (no prazo determinado em lei) e o sepultamento;
diagnosticado em vida e o resultado das autopsias26• Mais re- N - proceder às devidas notificações aos órgãos muni-
centemente, foram achadas diferenças significativas entre os cipais e estaduais de epidemiologia;
diagnósticos clínicos e os achados de necropsia em 10 a 40% V - garantir a emissão das declarações de óbito dos ca-
dos trabalhos de revisão da literatura sobre o tema, para citar dáveres examinados no serviço, por profissionais da insti-
apenas as séries de autores com mais de 1.000 casos revistos27 • tuição ou contratados para este fim, em suas instalações;
O grande número de necropsias a serem feitas durante um VI - encaminhar, mensalmente, ao gestor da informa-
plantão dos institutos médico-legais dos centros m etropoli- ção de mortalidade local (gestor do Sistema de Informação
tanos faz com que o exame de cada caso seja superficial, per- sobre Mortalidade):
mitindo a ocorrência de erros. A probabilidade de errar au- a) lista de necropsias realizadas;
menta nos lugares em que essas instituições também são en- b) cópias das DO emitidas na instituição; e
carregadas de realizar as verificações de óbito. Para agilizar o c) atualização da informação da(s) causa(s) de óbito por
serviço, quando os peritos abrem uma das grandes cavidades ocasião do seu esclarecimento, quando este só ocorrer após a
do organismo e encontram qualquer lesão visceral capaz de emissão deste documento.
causar a morte, encerram a perícia sem abrir as demais. As-
sim, é fato comum encerrar uma verificação de óbito ao se Na ausência de lesões macroscópicas, os patologistas de-
achar uma cicatriz de infarto do miocárdio, sem atentar para vem recolher fragmentos das principais vísceras para exame
o fato de que a pessoa pode não ter sofrido outro infarto, histopatológico e, se possível, material para exame toxicoló-
tendo morrido de o utra causa, como, por exemplo, uma he- gico e microbiológico. Persistindo a dificuldade após o re-
mo rragia cerebral. Tal conduta não é correta, mas, infeliz- sultado dos exames, a causa da morte será declarada inde-
mente, é comum. terminada. Tal situação é vista com maior frequência diante
30 • CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais

de corpos encontrados em estado avançado de putrefação. 13. Cardoso MA e Moraes JM. Atestado Médico. ln: Ética, Moral e De-
Nesses casos, o legista informará no laudo que não foram o ntologia Médicas. Petroianu A, ed. Rio de Janeiro: Editora Guana-
bara Koogan; 2000. Capítulo 28, p. 166- 168.
achados sinais de violência. Com isso, a autoridade po licial 14. Ministério da Saúde/Conselho Federal de Medicina. A Declara-
poderá encerrar a investigação e arquivar o caso. A conclusão ção de Óbito: documento necessário e importante. 2• ed. Brasília;
de causa indeterminada de mo rte sem o apoio laboratorial 2007.
somente se admite quando fo r impossível ter acesso a esses 15. Laurenti R, Mello Jorge MHP. O Atestado de óbito. 2• ed. São
exames laboratoriais. Mas, se a ca usa da morte não foi deter- Paulo: Centro Brasileiro de Classificação de Doenças, MS/USP/
OPAS-OMS; 1987.
minada por não terem sido esgotados os recursos dispo ní- 16. Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde. Portaria
veis na localidade, trata-se de negligência. 20/2003.
17. Marotta JFW, Epiphanio EB. Declaração de óbito. ln: Ética, Moral
e Deontologia Médicas. Petroianu A, ed. Rio de Janeiro: Editora
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Guanabara Koogan; 2000. Capítu lo 27, p. 161 - 165.
18. Brasil - Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
19. Conselho Federal de Medicina. Resolução 1.779 de 11 de novembro
1. Brasil - Código de Processo Penal. Decreto-lei 3.689 de 3 de outu- de 2005 (dispõe sobre a responsabilidade dos médicos no forneci-
bro de 1941. mento da Declaração de óbito).
2. Brasil - Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. 20. Brasil - Lei 8.501 de 30 de novembro de 1992 (dispõe sobre o uso
3. Brasil - Lei 11.690 de 9 de junho de 2008 (modifica o Código de de cadáver para estudos e pesquisas).
Processo Penal). 21. Estado do Rio de Janeiro. Decreto 1.754 de 14 de março de 1977
4. Brasil - Lei 10.358 de 27 de dezembro de 2001 (modifica o Código (regulamento sanitário do estado).
de Processo Civil). 22. Brasil - Decreto 20.931 de 11 de janeiro de 1932 (regulamenta as
5. Brasil -Código Penal. Decreto- lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940. profissões de saúde).
6. Fávero, F. Perícia Médica e Peritos. Capítulo 3, pp. 36-53, em Me- 23. Conselho Federal de Medicina. Resolução 1641/02 (normas para a
dicina Lega l. 8• ed. IQ vol. São Paulo: Livraria Martins Editora; 1966. emissão da declaração de óbito).
7. Souza Lima, AJ. Tratado de Medicina Legal. 5• ed. Rio de Janeiro: 24. ANVISA/SVS/MS. Resolução da Diretoria Conjunta RDC 306 de 7
Livraria Freitas Bastos; 1933. de dezembro de 2004.
8. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica, Resolução 25. FUNASNMS. Manual de Instruções para o Prenchimento da De-
1931 de 24 de setembro de 2009. claração de ó bito. 3• ed. Brasília; 2001 .
9. Brasil - Lei 6.015 de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros 26. Underwoo d JCE. Autopsies and Clinica l Audit. ln: The Hospital
Públicos) . Autopsy. Cotton DWK, Cross SS, eds. Oxford: Editora Butterworth
10. CID- 10. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Pro- & Heinemann; 1993. Capítulo 14.
b lemas Relacionados à Saúde. 10< revisão, São Pau lo: Editora da 27. Finkbeiner WE, Ursell PC, Davis RL. Medical Quality, Improve-
USP; 1995. ment and Quality Assurance of the Autopsy. In: Autopsy Pathology.
11 . Conselho Federal de Medicina. Resolução 1.484/97 (dispõe sobre a 2• ed. Finkbeiner WE, Ursell PC, Davis RI, eds., Philadelphia: Sa un-
quebra do segredo médico em atestados) . ders Elsevier; 2009. Capítulo 14.
12. Brasil - Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados 28. Ministério da Saúde. Portaria 1.405/06 (cria a Rede Nacional de
Especiais). Serviços de Verificação de Óbitos) .
CAPITULO 3 Perícia e Peritos. Documentos Médico-legais • 31

Anexo Exame de aborto


Primeiro - Se há vestígios de provocação de aborto.
Quesitos Oficiais dos Exames mais Comuns nos IML Segundo - Qual o meio empregado.
Terceiro - Se, em consequência do aborto ou do meio empre-
Exame de lesão corporal gado para provocá- lo, sofreu a gestante incapacidade para
Primeiro - Se há ofensa à integridade corporal ou à sa úde do as ocupações habituais por mais de 30 dias, ou perigo de
paciente. vida, ou debilidade permanente, ou perda ou inutilização de
Segundo - Qual o instrumento ou meio que produziu a ofensa. membro, sentido ou função, ou incapacidade permanente
Terceiro - Se foi produzida por meio de veneno, fogo, explosi- para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou deformidade
vo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel permanente (resposta especificada).
(resposta especificada). Quarto - Se não havia outro meio de salvar a vida da gestante
Quarto - Se resultou em incapacidade para as ocupações habi- (no caso de aborto praticado por médico).
tuais por mais de 30 dias. Quinto - Se a gestante é alienada ou débil mental.
Quinto - Se resultou em perigo de vida.
Sexto - Se resultou em debilidade permanente ou perda ou Exame de embriaguez
inutilização de membro, sentido ou função (resposta espe- Primeiro - Se o paciente apresentado a exame está embriagado.
cificada). Segundo - No caso afirmativo, que espécie de embriaguez.
Sétimo - Se resultou em incapacidade permanente para o traba- Terceiro - Se, no estado em que se acha, pode pôr o mesmo em
lho, ou enfermidade incurável, ou deformidade permanente risco a segurança própria ou alheia.
(resposta especificada). Quarto - Se é possível determinar se o paciente se embriaga
Oitavo - Se resultou em aceleração de parto ou aborto (resposta habitualmente.
especificada). Quinto - No caso afirmativo, qual o prazo, aproximadamente, em
que deve ficar internado, para a necessária desintoxicação.
Exame de conjunção carnal
Primeiro - Se a paciente é virgem. Exame de validez
Segundo - Se h á vestígios de desvirginamento recente. Primeiro - Se o paciente tem saúde e aptidão para trabalhar.
Terceiro - Se há outros vestígios de conjunção carnal recente.
Quarto - Se há vestígio de violên cia e, no caso afirmativo, qual Exame de idade
o meio empregado. Primeiro - Se o paciente é menor de 18 anos.
Quinto - Se da violência resultou para a vítima incapacidade Segundo - No caso afirmativo, se é maior de 14 anos.
para as ocupações habituais por mais de 30 dias, ou perigo
de vida, ou debilidade permanente ou perda ou inutilização Exame cadavérico comum
de membro, sentido ou função, ou incapacidade permanen- Primeiro - Se houve morte.
te para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou deformida- Segundo - Qual a ca usa da morte.
de permanente, ou aceleração de parto, ou aborto (resposta Terceiro - Qual o instrumento ou meio que produziu a mor te.
especificada). Quarto - Se a morte foi produzida por meio de veneno, fogo,
Sexto - Se a vítima é alienada ou débil mental. explosivo, asfixia ou tortura , ou outro meio insidioso ou
Sétimo - Se houve outra causa diversa de idade não maior de 14 cruel (resposta especificada).
anos, alienação mental ou debilidade mental, que a impos-
sibilitasse de oferecer resistência. Exame cadavérico em aborto
Primeiro - Se houve morte.
Exame de atentado ao pudor Segundo - Se a morte foi precedida de provocação de aborto.
Primeiro - Se há vestígios de ato libidinoso. Terceiro -Qual o meio empregado para a provocação do aborto.
Segundo - Se há vestígios de violência e, no caso afirmativo, Q uarto - Q ual a causa da morte.
qual o meio empregado. Q uinto - Se a morte da gestante sobreveio em consequ ência do
Terceiro - Se da violência resultou para a vítima incapacidade aborto ou do meio empregado para provocá-lo.
para as ocupações habituais por mais de 30 dias, ou perigo
de vida, ou debilidade permanente ou perda ou inutilização Exame cadavérico em infanticídio
de membro, sentido ou função, ou incapacidade permanen- Primeiro - Se houve morte.
te para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou deformida- Segundo - Se a morte foi ocasionada durante o parto ou logo
de permanente (resposta especificada). após.
Quarto - Se a vítima é alienada ou débil mental. Terceiro - Q ual a causa da morte.
Quinto - Se houve outra causa, diversa de idade não maior de Q uarto - Q ual o instrumento ou meio que produziu a morte.
14 anos, alienação ou debilidade mental, que a impossibili- Q uinto - Se foi produzida por meio de veneno, fogo, explosi-
tasse de oferecer resistência. vo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insiruoso ou cruel
Sexto - Se resultou aceleração de parto ou aborto. (resposta especificada).
Hygino de C. Hercules

• IDENTIDADE O que interessa mais vivamente à Medicina Legal é a


identidade física, que se respalda na imutabilidade e unici-
O estabelecimento da identidade de pessoas, e mesmo de dade dos caracteres individuais. Devem permanecer eviden-
coisas, tem sido objeto de estudos técnicos profundos, visan- ciáveis durante toda a vida da pessoa e distingui-la de to-
do à solução dos problemas originados quando não é pron- das as demais. Embora haja na Terra mais de seis bilhões de
tamente estabelecida. A evidência de que certa pessoa que se habitantes, a possibilidade de existirem dois seres humanos
apresenta para exercer seus direitos seja ela própria só pode idênticos é infinitamente remota. Na formação dos caracte-
ser demonstrada com base em confronto de dados a ela refe- res individuais (fenótipo) interferem os fatores hereditários
rentes, colhidos no passado, e os evidenciados no momento (genótipo) e o meio ambiente. O património hereditário de
da apresentação. Até obras de arte devem ser submetidas a cada indivíduo difere bastante de um para o outro. Mesmo
exame minucioso por técnicos especializados, que nelas pro- os gêmeos univitelinos, que possuem igual equipamento ge-
curam sinais característicos de sua autenticidade, para serem nético, apresentam diferenças físicas suficientes para distin-
consideradas legítimas. gui-los após exame minucioso. Tais diferenças são causadas
O conceito legal de identidade foge um pouco ao mate- pela atuação desigual dos fatores ambientais sobre cada um
mático, já que as pessoas podem-se modificar na aparência desde a vida intrauterina.
com o passar dos anos sem deixarem de ser as mesmas desde
que nascem. Em Matemática, duas grandezas são idênticas
ou iguais quando não houver diferença alguma entre ambas. • IDENTIFICAÇÃO
Flamínio Fávero 1 refere que identidade é a qualidade de ser a
mesma coisa e não diversa. Identificação é o processo pelo qual se estabelece a iden-
A identidade humana interessa particularmente ao Di- tidade. Nos indivíduos vivos, pode utilizar sinais físicos,
reito e, po r conseguinte, à Medicina Legal. No estudo da funcionais ou psíquicos; mas, no m orto, som ente se pode
identidade humana, tem os que reconhecer dois aspectos dis- valer dos caracteres físicos, nem sempre bem conservados.
tintos: o subjetivo, que é a consciência d o indivíduo de ser ele Não deve ser confundida com o simples reconhecimento. A
mesmo durante toda a sua existência, e o objetivo, que se tra- identificação utiliza, além de dados de fácil observação, ca-
duz pela sua presença física no meio ambiente, estabelecido pazes de serem percebidos por pessoas leigas, dados técnicos
pelas características peculiares que lhe dão a individualidade. de obtenção por vezes difícil e laboriosa. O reconhecimen-
A identidade subjetiva pode estar prejudicada nos casos em to baseia-se na comparação entre a experiência da sensação
que a consciência esteja perturbada, com o ocorre em cer- visual, auditiva ou tátil, proporcionada no passado, com a
tas doenças m entais. Os esquizofrênicos po dem apresentar m esma experiência renovada no presente pelo elemento a
distúrbios da consciência do eu e identificar-se com o utras ser reconhecido. Requer uma comparação psíquica entre a
pessoas, e mesmo animais ou coisas (fenómenos de transiti- percepção passada e a presente. Como é óbvio, quanto maior
vism o e de personificação). o tempo transcorrido entre uma e outra percepção, maiores

35
36 • CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação

serão as possibilidades de erro na comparação. Além do mais, já expedido. Os institutos médico -legais são, em geral, muito
a percepção é influenciada por fatores psíquicos de ordem rigorosos no que diz respeito à liberação dos corpos exami-
emocional, ou mesmo de o rdem patológica. Camps2 afirma nados em seus necrotérios. No Rio de Janeiro, é exigido um
que a testemunha perjura é m enos nociva do que a teste- documento de identidade do falecido para que os papilosco-
munha que reconhece falsamente, convencida de estar sendo pistas o confrontem com as impressões digitais do cadáver.
verdadeira, por uma ilusão dos sentidos e da percepção.
A identidade só pode ser estabelecida quando há certeza Fundamentos dos Métodos de Identificação
de terem sido afastados todos os pontos duvidosos. Portanto,
a identificação necessita de m étodos precisos que resistam a Qualquer processo de identificação tem que se basear em
interpretações duvidosas. sinais e dados peculiares ao indivíduo e que, em seu conjun-
to, possam excluí-lo de todos os demais. Os sinais e dados
utilizados na identificação são chamados de elementos sina-
Importância da Identificação
/éticos. A cor e o tipo dos cabelos, a cor dos olhos, a forma da
Nos diversos setores da atividade humana e das relações orelha, a estatura, são todos elementos sinaléticos. Quando
sociais, a identificação assume papel relevante. isolados, são de pouco valor, já que muitas pessoas têm olhos
No foro penal - O Código Penal estabelece aumento de da mesma cor, a mesma estatura etc. Mas, quando associa-
pena para os criminosos reincidentes, o que só pode ser con- dos, passam a restringir o número de pessoas que podem ser
firmado através da sua identificação. A apresentação de uma enquadradas como possuidoras desses caracteres ao mesmo
pessoa para exercer algum direito de outra, fingindo ser o tempo. Assim, a associação de vários elementos sinaléticos
legítimo detentor daquele direito, constitui o crime de falsa constitui a base de todos os processos utilizados na identi-
identidade (art. 307 do CP ). A expedição de mandados de ficação através dos tempos. O conjunto de elementos sina-
léticos, para ser considerado bom, deve preencher quatro
prisão inicia o processo de captura, que só é concluído após
a identificação da pessoa presa. Nos crimes contra a pessoa, requisitos técnicos, a saber: unicidade, imutabilidade, prati-
cabilidade e classificabilidade3•
é indispensável a identificação da vítima. Havendo testemu-
Unicidade - O conjunto desses elementos deve ser exclu-
nhas de alguma ocorrência policial, elas têm que ser identifi-
sivo do indivíduo, de modo a distingui-lo de todos os demais.
cadas ao prestarem seu depoimento.
Imutabilidade - Os elementos não podem modificar-se
No foro civil - São numerosos os casos em que a identifi-
facilmente pela ação do meio ambiente, pela idade, nem por
cação é parte das mais importantes. Podemos citar, à guisa de
doenças. Uma vez que tenham sido escolhidos, deverão con-
ilustra ção, o casamento, a avaliação de danos em acidentes
servar o mesmo aspecto em qualquer época para posterior
pessoais e do trabalho, a interdição, a sucessão de direitos
confronto. Assim, o peso do corpo não deve ser considera-
e obrigações, a investigação de paternidade, transações co-
do elemento sinalético por estar sujeito a gra ndes variações.
merciais etc. Alguns dos dados físicos podem modificar-se pela ação do
Na justiça eleitoral - É tão importante a identificação meio, como a cor da pele (raios solares) e a espessura da
de cada eleitor que, no momento do voto, só é admitido na epiderme (mãos calosas). O envelhecimento leva ao encane-
seção eleitoral o que estiver munido de seu documento de cimento dos cabelos, ao aparecimento de rugas e mesmo à
identidade. Procura-se evitar que pessoas mortas votem ou atrofia das massas musculares, modificando o aspecto físico.
que o mesmo sujeito vote mais de uma vez, por vezes em Pode haver diminuição da estatura, na dependência de doen-
municípios distintos. Apesar disso, as fraudes acontecem. Já ças como a espondilite anquilosante, a doença de Paget dos
houve registro de município com número de votantes supe- ossos, ou de fraturas dos ossos da perna com calo defeituoso.
rior ao de habitantes. O vitiligo, uma doença que causa despigmentação da pele,
No foro internacional - O controle da imigração requer pode modificar a aparência intensam ente. Outras doenças
que cada indivíduo que pretenda estabelecer-se no país seja modificam a atitude, a coordenação motora ou a marcha,
identificado e a ele se dê uma carteira de estrangeiro, de que são dados de valor na identificação funcional. Os trau-
modo a se poder reconhecer os que são clandestinos. matismos podem causar amputação de segmentos.
Depois da morte, o estabelecimento da identidade é de Praticabilidade - O número crescente de pessoas ficha-
suma importância sob vários aspectos. Em primeiro lugar, é das nos serviços de identificação em todo o mundo exigiu
necessário para que se possa encerrar a vida do ponto de vista que fossem utilizados processos baseados em elementos si-
jurídico. Desse modo, pode ser feito o inventário dos bens e naléticos de fácil registro e obtenção. Por outro lado, esses
providenciada a sua transferência para os herdeiros. Por ve- elementos não podem expor as pessoas a vexam e quando
zes, quando da morte de desconhecidos, pessoas inescrupu- elas precisarem ser identificadas. Certos sinais particulares,
losas tentam estabelecer no cadáver a identidade de um pa- ou cicatrizes, localizados nas regiões pudendas, glúteas ou
rente rico ausente, com o fim de tomar posse de seus bens. Tal genitália externa, não podem ser usados em cadastramentos
conduta tipifica o crime de falsidade ideológica (art. 299 do de rotina. Mas poderão ser de valor em casos especiais, quan-
CP ). O falso reconhecimento pode também ser um expedien- do faltarem outros elementos mais importantes, tais como as
te para cessar a busca a criminosos com mandado de prisão impressões digitais.
CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação • 37

Classificabilidade - A reunião das fichas dos diversos in - processos degenerativos ou inflamatórios do esqueleto como
divíduos registrados em qualquer serviço de identificação a osteoartrite e as deformidades articulares causadas pela ar-
não pode ser feita ao acaso, já que o número é extremamente trite reumatoide, hérnias e outros. São todas úteis quando se
elevado em alguns. Não sendo arquivados de modo racio- sabe que a pessoa procurada as apresenta. Devem sempre ser
nal, haverá enorme dificuldade para sua localização. Por isso, bem descritas quanto à forma, ao tamanho e à localização.
os processos de identificação devem valer-se de elementos Indivíduos que exercem certas profissões costumam apre-
e sinais de fácil classificação, de modo a orientarem a busca sentar marcas rela cionadas com a atividade desempenhada
prontamente nos arquivos, e a qualquer momento. - são os estigmas profissionais. Assim, os sapateiros apresen-
tam uma depressão no terço inferior do esterno, os soprado-
res de vidro evidenciam desgaste dentário nos incisivos cen-
Métodos de Identificação
trais, os tintureiros revelam coloração diferente das unhas
Mutilações, Marcas e Tatuagens e os bailarinos, hipertrofia das panturrilhas. Indivíduos
que trabalham com chumbo ou seus sais, como no caso de
A origem dos métodos de identificação remonta à Anti- bombeiros hidráulicos, tipógrafos, fabricantes de baterias e
guidade. Conta a História que viveu na Babilónia, no século pintores de parede, podem apresentar uma coloração escura
XVIII a.C., o rei Hamurábi, famoso por ter promulgado um na orla gengival chamada de orla de Burton5• Certas doenças
código de leis que fi cou conhecido com o seu nome. Desco- profissionais, como as pneumoconioses, podem identificar a
berto em 1901 , na Pérsia (atual Irã ), pelo assiriologista fran - profissão, como no caso dos trabalhadores em pedreiras que
cês Jean Vincent Scheil, esse código propunha certas penas adquirem silicose.
qualificadas como expressivas por caracterizarem e identi- Merecem menção especial as tatuagens. O termo vem do
fi carem os condenados. Entre outras, havia a amputação de dialeto falado na Polinésia, através do inglês tattoo, que sig-
uma das mãos dos ladrões e da língua dos caluniadores. Tais nifica marca feita profundamente na pele por meio de tin-
penas marcavam as pessoas castigadas para o resto da vida. tas. Gomes6 refere que as tintas mais usadas nos processos
Onde quer que passassem , todos saberiam de seus crimes4• de tatuagem são o nanquim, o vermelhão, tinta de escrever e
Conta Almeida Junior5 que, em Portugal, na Idade Mé- outros pigmentos mais modernos. Atualmente, há máquinas
dia, era usado cortar-se uma das orelhas aos ladrões. Mais vibratórias que fazem o trabalho de tatuagem de modo mais
tarde, passaram -se a usar marcas feitas com ferro em brasa, rápido e perfeito7 •
que eram colocadas na testa dos criminosos, de modo a ca- As diversas cores das tatuagens têm tempo de persistên-
racterizá-los diante da coletividade. Os ladrões reincidentes cia variável. A que m ais resiste ao tempo é o preto feito com
eram marcados na testa com um sinal, e, na terceira vez que tinta nanquim. Cores como o vermelho, o verde e o azul cos-
fossem apanhados em furto, seriam enforcados. As marcas tumam desbotar com o passar dos anos, em função da remo-
a ferro no rosto foram abolidas em 1524. Mas as marcas em ção dos pigmentos pelos macrófagos da derme. É interessan-
outras partes do corpo continuaram a ser feitas, tendo sido te salientar que as cores implantadas pela tatuagem podem
muito usadas no Brasil durante a escravidão. Em março de ser achadas nos linfonodos de drenagem da região tatuada,
1741, o rei determinou que os negros que fugissem para os m esmo depois de terem esmaecido na figura originaF.
quilombos fossem marcados nas costas com um F. Se já es- Vários processos já foram tentados para a remoção de
tivessem marcados por fuga anterior, sofreriam amputação tatuagens: ferro em brasa, vesicatórios, cáusticos e abrasi-
das o relhas. Foram abolidas pela Constituição de 1824. vos. Na maioria das vezes, ca usam reação inflamatória que
Todas essas mutilações e marcas visavam à identifica- interessa a região da pele tatuada e evolui para a formação
ção do criminoso reincidente com o fim de agravamento da de uma crosta. Com a queda da crosta, a tatuagem desapa-
pena. Só mais tarde é que se pensou em fichar e marcar todas rece, mas fica uma cicatriz com a forma da tatuagem que se
as pessoas de uma comunidade com fins de identificação. O queria apagar. O recurso à cirurgia plástica surte m elhores
precursor dessa ideia foi Bentham, que propôs que toda pes- resultados.
soa fosse tatuada ao nascer, com o próprio no me no braço. A motivação para fazê-las é variada, por vezes represen-
Embora a ideia fosse renovadora no sentido de retirar das tando um modismo. Há tatuagens feitas para demonstrar
marcas seu caráter infamante, pois que todos seriam marca- filiação a seitas religiosas, como o candomblé; facções crimi-
dos, não teve êxito por questões de ordem prática5 • nosas, com o o Terceiro Comando (TC) do Rio de Janeiro, ou
Além das feitas intencionalmente, as pessoas podem apre- outros grupos, como os hippies dos anos 1960 e os homos-
sentar marcas congénitas ou adquiridas como consequência sexuais. Estes costumam tatuar um pássaro azul no dorso do
de traumatismos e de doenças. Entre as congênitas, devemos polegar7• Alguns se tatuam com motivos artísticos, eróticos,
citar os hemangiomas; os nevos pigmentares e os vascula- profissionais, patrióticos. As tatuagens eróticas são coloca-
res; as alterações do esqueleto com o polidactilia, focomelia das nas áreas genitais ou em outras zonas erógenas. Ora re-
e outras displasias ósseas; o lábio leporino; deformidades presentam o órgão sexual masculino, ora o nome da pessoa
das orelhas etc. Dentre as adquiridas, destacamos as cicatri- amada. Um dos protagonistas de um crime de repercussão
zes deixadas pelos diversos tipos de traumas, as alterações nacio nal, por ter vitimado uma jovem atriz de televisão, ti-
da pele por doenças pigmentares como o vitiligo, tumores, nha tatuado no pênis o nome da companheira de vida e do
38 • CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação

crime pelo qual foram condenados. Não é raro encontrar as tatuagens não desaparecem dos corpos em decomposição
uma tatua gem de três pontos em adeptos do candomblé. Se- e podem servir de base para a identificação.
ria um modo de tornar o corpo "fechado'', imune a tentativas Menos conhecida é a forma de imprimir desenhos per-
de homicídio. manentes na pele através de escarificação. A parte superfi-
A localização mais frequente das tatuagens é no antebra- cial da derme e a epiderme são removidas cirurgicamente,
ço (Fig. 4.1 ), seguida pelo dorso das mãos e o braço (Fig. ou destruídas por ação cáustica, de modo a formar um de -
4.2) , mas podem ser encontradas em qualquer região do senho ao gosto do cliente. As áreas lesadas evoluem para a
corpo. Não é incomum o achado de pessoas com numero- formação de uma crosta hemática que, ao se descolar, deixa
sas tatuagens que, embora raramente, chegam a cobrir quase uma cicatriz com a forma do desenho escolhido. Como não
todo o corpo. é tão difundida como a tatuagem, seu valor na identificação
Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas tatua- de corpos de pessoas desaparecidas torna-se mais relevante
vam o número de ordem no antebraço dos judeus confina- (Fig. 4.3 )8 .
dos nos campos de concentração. Pessoas ligadas ao mundo
do crime referem que os bandidos com a inscrição "Amor de Retrato Falado
m ãe" tatuada no corpo são mais perversos que os demais.
As tatuagens têm valor inestimável na identificação de As descrições sumárias e os retratos falados, embora au-
pessoas desaparecidas em acidentes de massa, como naufrá- xiliem na captura de elementos marginais e perigosos, não
gios e desmoronamentos. Como os corpos, em alguns casos, podem ser considerados m étodos de identificação. Até a era
só são resgatados após vários dias, já em avançado estado de da computação gráfica, o retrato fa lado era feito por dese-
putrefação, a perda da epiderme impede a leitura das impres- nhistas, que entrevistavam testemunhas e delas obtinham
sões digitais. Contudo, por serem feitas na derme profunda, detalhes relativos ao contorno do rosto, de frente e de perfil,

Figura 4.1. Tatuagem artística que representa a figura de um mago, Figura 4.2. Tatuagem artística que representa uma aranha descendo
localizada na face anterior do antebraço. Guia 49 da 1oaDP, de 02/05/84. de sua teia. Guia 457 da 30ª DP, de 17/09/02.
CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação • 39

à forma e cor dos olhos, nariz, boca, orelhas, implantação e ção de 1/7 5•6 • Nelas, são abolidos os retoques. A comparação
distribuição dos cabelos e das sobrancelhas, bigode e barba deve ser feita por superposição da foto recente com a que
se houvesse, além de informações gerais quanto ao porte consta dos arquivos. Mas a fotografia sinalética representa
físico, como estatura, estado de nutrição, idade aparente e o rosto do indivíduo na data em que foi fotografado. Vários
cor da pele. Hoje, é mais fácil a tarefa, já que há programas anos mais tarde, sua fisionomia envelhecida pode estar bas-
de computação em que vão sendo colocados e substituídos tante diferente da fotografia. Outra dificuldade da fotogra-
esses elementos até que a testemunha diga que está real- fia sinalética é a impossibilidade de arquivamento, por não
mente parecido com a pessoa procurada. Na ausência de ser classificável de modo racional. O registro fotográfico de
fotografia, é de valor enorme na busca de pessoas desapare- São Paulo durou pouco mais de 11 anos (1891-1902) e aca-
cidas ou sequestradas. bou por causa do tempo gasto na busca de qualquer ficha
do arquivo 5•
Fotografia Sinalética Embora desprezada como método isolado de identifi-
As fotografias são úteis no reconhecimento, mas como cação, a fotografia passou a ser usada em todos os tipos de
método de identificação carecem de unicidade, imutabili- carteiras de identidade, por ser de fácil observação e com-
dade e classificabilidade, principalmente as de caráter ar- paração. Em alguns países, como a Argentina, a fotografia
tístico. Essas últimas escondem elementos de grande va- para a carteira de identidade é feita com visão um pouco
lor como pequenas cicatrizes, nevos, rugas de expressão e oblíqua, com base no fato de que, quando co nversamos
outros detalhes que prejudicam a estética. Além do mais, com alguma pessoa, não a vemos rigorosamente de frente
sabe-se que certos indivíduos têm fisionomia tão parecida na maioria das vezes.
que chegam a ser confundidos entre si, mesmo por paren-
tes e amigos - são os chamados sósias. Mas é muito menos Antropometria
provável que a semelhança se faça sentir tanto de frente Outro método de identificação, utilizado na França no
como de perfil. Por isso, Alphonse Bertillon criou a chama- fim do século XIX, foi a antropometria, também idealizado
da fotografia sinalética, em que são tiradas duas fotos, uma por Bertillon com o fim de caracterizar a reincidência cri-
rigorosamente de frente e o utra de perfil, ambas com redu - minal. A bertilhonagem, como também tem sido chamado o
método, baseava-se na associação de várias medidas do es-
queleto com sinais particulares e com as impressões digitais.
Servia para identificar indivíduos adultos, pois nos jovens
tais m edidas sofrem alterações com o crescimento6 .
As fichas propostas apresentavam, no anverso, duas fo-
tografias (de frente e de perfil); as medidas da estatura, da
envergadura, do busto; os diâmetros longitudinal, biparietal
e bizigomático da cabeça; a altura da orelha direita; o com-
primento dos dedos m édio e mínimo esquerdos; o com -
primento do antebraço esquerdo e a cor do olho esquerdo,
d o cabelo e da barba. No verso, havia dados gerais como o
nome, a idade, a profissão, além de anotações sobre sinais
particulares como nevos, cicatrizes o u tatuagens.
Tais fichas eram arquivadas em gavetas seguindo um ro-
teiro que com eçava com os diâm etros longitudinal e trans-
versais da cabeça, pois que a estatura po de sofrer alterações
por desvios e acentuação da curvatura da coluna vertebral.
Como havia uma classificação em pequena, média e grande
para cada medida, a cada passo se eliminavam 2/3 das fichas,
d e mo do a ser possível encontrar a procurada após algumas
etapas. Se, ao final, restassem ainda algumas delas, seriam
identificadas pelos sinais particulares anotados e pelas im-
pressões digitais dos quatro primeiros dedos da mão direita,
que também faziam parte das anotações contidas no anver-
so9·10. Balthazard9 repro duz uma ficha um pouco diferente,
em que havia a impressão digital dos cinco dedos da m ão
direita no anverso e dos cinco da mão esquerda no verso. Em
Figura 4.3. Desenho feito pela remoção cirúrgica da parte superficial seu livro, já descreve o método datiloscó pico. Po r ser muito
da pele de modo a gerar uma cicatriz permanente depois da consolida- laboriosa, sem praticabilidade, a bertilho nagem foi superada
ção das lesões. por esse novo processo.
40 • CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação

Método Datiloscópico
Nossa pele é constituída por duas camadas sobrepostas:
a mais superficial por tecido epitelial e a mais profunda por
tecido conjuntivo. O tecido epitelial forma a epiderme e o
conjuntivo, a derme. O epitélio de revestimento da pele é Bifurcação
Encerro
formado por camadas superpostas de células, sendo as mais
superfi ciais de forma achatada e, em contato com o meio Linha branca
ambiente, transformadas em um material duro, a queratina.
A parte do tecido conjuntivo da derme que está em contato
com a epiderme é mais frouxa do que a situada mais profun- Delta
damente. Apresenta projeções que elevam a epiderme, cuja Ilhota
forma varia de acordo com a região do corpo. Nas regiões
palmar e plantar, essas projeções assumem a forma de cris-
tas sinuosas e separadas por sulcos pouco profundos. Essas
cristas podem ser vistas a olho nu sob a forma de linhas para-
lelas. Tais linhas formam o desenho das impressões digitais. Figura 4.4. Impressão do polegar D do autor - presilha externa.
Almeida Junior3 faz um resumo histórico dos estudos que
levaram à elaboração do método datiloscópico. Conta que
Imutabilidade
Herschell, em 1858, foi o primeiro a aplicar as impressões di-
gitais para fins contratuais e que, na área criminal, o pionei- As impressões digitais guardam o mesmo desenho desde
ro foi Faulds, em 1880. Francis Galton criou um sistema de o sexto mês de vida intrauterina até alguns dias após a mor-
classificação no fim do século XIX, aperfeiçoado por Edward te, ocasião em que a putrefação destrói a pele. Tal persistên-
Richard Henry, que passou a ser usado primeiramente na Ín- cia do desenho papilar recomenda que seja feita carteira de
dia em 1897. É o sistema Galton-Henry. Em 1891, foi inicia- identidade de crianças o mais cedo possível, com benefícios
do, na Argentina, o uso de uma nova classificação, elaborada óbvios nos casos de extravio em multidões, tumultos, praias
por Juan Vucetich, imigrante vindo da Dalmácia. O novo etc. Herschell, um dos estudiosos do assunto, comparo u suas
sistema, por sua simplicidade, foi prontamente adotado por próprias impressões obtidas com 53 anos de intervalo e não
diversos países, inclusive o Brasil em 1905 3• conseguiu estabelecer quaisquer diferenças3•
Analisado sob qualquer ponto de vista, o método dati- O desenho papilar removido por ação abrasiva, acidental
loscópico de identificação supera todos os processos ante- ou intencional, volta a se evidenciar depois de poucos dias.
riores e todas as tentativas feitas até hoje. Há, inclusive, pro- Do mesm o modo, queimaduras por ação térmica, ou cáus-
gramas de computação desenvolvidos para fazer o confronto tica, destroem a epiderme, mas, quando se dá a regeneração
de impressões digitais. Nos EUA existe um banco de dados epitelial, volta a ser visto o desenho original. Alguns trau-
com esse fim - Automated Fingerprint Iden tification Systems mas, no entanto, podem destruí-lo desde que atinjam a der-
(AFIS) 11 • Esse método satisfaz plenamente aos requisitos de me mais profunda, levando à formação de tecido cicatricial
unicidade, imutabilidade, praticabilidade e classificabilidade. irregular. O mais comum, porém, é que o desenho seja res-
taurado, com perda das cristas papilares apenas nos pontos
Unicidade mais comprometidos pelo trauma. A remoção da pele das
A análise de uma impressão digital deve levar em consi- polpas digitais e a sua substituição po r pele de outras regiões
do corpo acabam com as impressões digitais, mas deixam
deração elementos qualitativos, quantitativos e topográficos.
as cicatrizes reveladoras do ato cirúrgico, além de a própria
Os qualitativos são desenhos formados pelas diversas cris-
ausência das impressões ser denunciadora da fraude.
tas e recebem a denominação geral de pontos característicos.
Ilhotas, bifurcações, forquilhas etc. são exemplos desses pon-
Praticabilidade
tos (Fig. 4.4).
A contagem do número de linhas existentes entre dois ou A colheita das impressões digitais nos serviços de identi-
m ais pontos característicos aumenta muito a ca pacidade de ficação é uma operação rápida, segura e não expõe a pessoa
distinguir duas impressões entre si. Além disso, a distribui- a qualquer tipo de constrangimento. O material necessário
ção dos pontos na figura e o seu posicionamento, junto com consta de uma prancheta com superfície lisa, de metal ou
esses elementos, tornam impossível que haja duas impres- de plástico, onde se espalha tinta de tipografia, ou outra se-
sões idênticas, mesmo comparando-se os dedos de uma das melhante, com um rolo de bo rracha. Os dedos da pessoa
mãos do indivíduo. Vá rios autores fizeram cálculos estatísti- a ser identificada devem ser pressionados contra a tinta da
cos com base na variabilidade dos desenhos papilares e che- prancheta, de modo a que toda a polpa digital seja untada. A
garam à conclusão de que o número de habitantes da Terra é passagem da tinta dos dedos para o papel da ficha é feita com
muito pequeno para que se encontrem dois indivíduos com auxílio da prancheta de Vucetich, uma placa de madeira com
as impressões digitais idênticas3 • cinco depressões, lado a lado, numa das faces, junto à borda.
CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação • 41

Classificabilidade cópica. Havendo suspeitos, as impressões coletadas no local


devem ser comparadas com cada um dos seus dedos. Vê-se
Apesar da infinidade de desenhos observados nas im-
primeiro o tipo fundamental e, depois, procuram-se pontos
pressões digitais, há determinados padrões que se repetem
característicos coincidentes. A maioria dos autores está de
e que constituem os tipos fundamen tais. Já foram propostas
acordo em estabelecer confronto positivo quando há mais
várias classificações com base nesses padrões. A adotada no
de 12 a 20 pontos coincidentes, sem que haja qualquer pon-
Brasil é a de Vucetich. Toma como elemento básico a presen-
to de divergência 12 . Não havendo de quem suspeitar, a tare-
ça, a ausência e a posição de uma figura chamada de delta,
fa fica muito mais difícil. Com a finalidade de resolver esse
pela semelhança com a letra grega. São quatro os tipos fun-
problema, foram criados arquivos especiais mo nodatilares,
damentais da classificação de Vucetich: 1) Arco - ausência
feitos a partir dos ded os de criminosos habituais. O proces-
de delta; 2) Presilha Interna - presença de delta à direita do
so de classificação das impressões desses criminosos varia de
observador; 3) Presilha Externa - presença de delta à esquer-
um instituto para outro.
da do observad or; 4) Verticilo - presença de do is deltas, um
à direita e outro à esquerda.
Albodatilograma1•3
Os encontrados no polegar são representados na ficha
pelas letras A, I, E, V. Os observados nos demais dedos, pelos É fo rmado pelo conjunto de linhas brancas que atraves-
números 1, 2, 3, 4, respectivamente (Fig. 4.5) . sam as negras que representam as cristas papilares. Podem
A classificação da ficha de cada pessoa está baseada nos ter qualquer direção e tamanho, m as, geralmente, são trans-
tipos fundamentais encontrados nos dez dedos. A individual versais. Na verdade, representam pequenas pregas superfi-
ou fórmula datiloscópica é formada por uma fração cujo nu- ciais à maneira de rugas, adquiridas com o passar dos anos,
merador é a m ão direita, cham ada de série; o denominador é que se tornam mais visíveis quando se faz a flexão da terceira
a mão esquerda, chamada de seção. Como são possíveis, teori- falange. São mais frequentes nos polegares e nos indivíduos
camente, 1.024 séries e 1.024 seções, po dem existir 1.048.576 m ais idosos. Par a que apareçam na impressão digital, o téc-
fórmulas datiloscópicas3• Assim, cada indivíduo vai ser aloca- nico deve fa zer pouca pressão e usar po uca tinta no momen-
do a uma dessas fórmulas. Contudo, cada fórmula pode abri- to de sua obtenção; do contrário, as pregas se desfazem e não
gar número variado de pessoas. Algumas fórmulas, inclusive, aparecem no datilogram a. Cerca de 70% delas são perma-
são muito frequentes, como aquelas em que há repetição do nentes. O seu conjunto constitui um desenho que auxilia nas
mesmo tipo fundamental nos dez dedos. A diferenciação en- operações de busca por ser reconhecido macroscopicamente,
tre elas será feita pelos pontos característicos. Mas, nos gran- de relance, por peritos experientes (Fig. 4.4).
des arquivos e bancos de dados dos serviços de identificação
das grandes metrópoles, os escaninhos ou diretórios dessas Outros Métodos de Identificação
fórmulas muito frequentes podem conter dezenas de milhares
Vários outros métod os de identificação têm sido pro-
de fichas, o que to rna extremamente laborioso localizar uma postos. Alguns, como a rugopalatoscopia, a poroscopia, a
ficha por m éto dos manuais. Para contornar tal problema, fo-
oftalmoscopia, a r adiogr afia e a flebogr afia, não tiver am boa
ram criadas subclassificações, de modo a facilitar a busca3 • receptividade por causa da dificuldade de obtenção e/ou
classificação dos registros.
Arquivos Monodatilares A rugopalatoscopia baseia-se na diferença individual das
As fórmulas datiloscópicas, tão úteis no registro geral dos cristas sinuosas que todos nós apresentamos na mucosa d o
cidadãos, são inadequadas a fins policiais. As impressões en- palato duro (céu da boca). O chamado rugograma é obtido
contradas em locais de crime são, geralmente, de um ou dois por moldagem feita com massa de dentista, seguida de forma
dedos, deixadas em superfícies lisas de objetos ou de folhas gessada em que as cristas ficam em relevo. Essas devem ser
de papel. Não é possível atribuí-las a uma individual datilos- marcadas a lápis e depois fotografadas 13 •

Arco (N1) Presilha interna (1/2) Presilha externa (E/3) Verticilo (V/4)
Figura 4.5. Desenho dos quatro tipos fundamentais da classificação de Vucetich. Reproduzido do Manual Técnico de Datiloscopia do llFP.
42 • CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação

A poroscopia tem po r base a posição dos poros onde as sido usado na permissão de ingresso de pessoas já registra-
glândulas sudo ríparas se abrem nas cristas papilares. Apare- das a locais cuja natureza requer um controle mais rígido da
cem com o po ntos brancos ao longo das linhas das impres- segurança. É um dos três processos biométricos recomen-
sões digitais, com diâmetro que varia entre 0,08 e 0,25 mm. dados pela ICAO (International CivilAviation Organization )
O arranjo desses po ntos é individual. Requer em prego de na confecção de futuros passaportes. Os outros do is são as
lupas para sua observação 13 (Fig. 4.6). digitais e a fotografia. Seu emprego é de grande valia para o
A oftalmoscopia procura comparar o aspecto do fundo controle da entrada de estrangeiros em alguns países através
d o olho de cada pessoa, principalmente quanto à posição e dos aero po rtos, conforme já se faz na Arábia Saudita 14 •
r amificação dos vasos arteriais e venosos relacionados com a O utros não devem ser chamados de m étodos, uma vez
papila ó ptica (local onde o nervo óptico tem origem). Tem o que dependem de ocasionais registros prévios, com o os de-
inconveniente de exigir o uso do oftalmoscópio e de não ser pendentes de radiografias tiradas por motivos clínicos. Aqui,
útil em cadáveres, nos quais os vasos do fundo do olho logo vale a citação dos seios paranasais, principalmente os fro n-
se to rnam imperceptíves. tais, cuja fo rma e tamanho são individuais. Foi utilizado em
O método radiográfico foi proposto por Levinsohn e Brasília, em caso de repercussão nacional, para a identifica-
consistia na realização de radiografia d os ossos do metacar- ção do corpo de uma mulher que fora morta pelo marido,
po e do metatarso. As radiografias seriam feitas em incidên- conforme julgamento do processo no Tribunal do Júri 15•
cia padronizada para permitirem sua superposição quando Em situações de catástrofes, com centenas de mortos, a
necessária a comparação com o desconhecido 12• maioria dos corpos pode ser identificada pelos méto dos já
Por fim, a flebografia consiste em fo tografar as veias do descritos. Mas sempre restam alguns indivíduos em que tal
d orso da m ão ou fronte para posterior comparação com as determinação está prejudicada. Nesse contexto, convém lem -
de o utros indivíduos. Carece de classificabilidade e, com o a brar que a presença de próteses com o as dentárias, as m amas
oftalmoscopia, é difícil de se obter em cadáveres 12• de silicone e, mais importantes, as usad as em artroplastias.
Recentem ente, graças ao m aio r desenvolvimento e uso Em alguns países, como Portugal, existe um registro nacio-
d os registros gráficos em computação eletrônica, foi criado nal de artroplastias com a finalidade de acompanhar os ca-
um método baseado no padrão de textura e cor da íris. Os sos clínicos, mas que pode ser utilizado para a identificação
registros são feitos por escanear a íris com um dispositivo quando necessário 16 (Figs. 4.7 e 4.8).
de luz, que pode ser infravermelha, e câmera que recolhe
A identificação do autor de manuscritos pode ser feita
dados de luz refl etida. A luz incide sobre a íris sob a forma
através da caligrafia. Os peritos nessa área são os grafotécni-
de um feixe vertical que se desloca lateralmente. O uso de
cos. Atuam tanto no foro penal quanto no fo ro civil.
luz infravermelha minimiza o problema de reflexos a par-
tir da córnea. À medida que se desloca, a imagem refl etida
é digitalizada, de modo que valores acima de uma média
são considerados brancos e os menores que essa m édia são
considerados pretos, o que gera um código de barras. Como
a trama de fibras da íris é diferente de um indivíduo para
os outros, o código de barras gerado vem a ser individual.
Numa segunda captação futura, é possível identificar a pes-
soa pela comparação do padrão de barras. Esse método tem

Figura 4.6. Detalhe de impressão digital, em que os pontos brancos Figura 4. 7. Prótese da articulação do joelho E, como achado de ne-
correspondem aos poros. cropsia. Gentileza do Dr. Carlos Henrique Durão.
CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação • 43

esquartejados, carbonizados ou em estado avançado de pu-


trefação. Com frequência, o que se apresenta aos peritos é
apenas um esqueleto, acompanhado, ou não, pelas vestes.
Aqui, é o campo de atuação da Antropologia Forense pro-
priamente dita, um ramo da Antropologia Física, que será
estudada no Capítulo 5.
Tratando-se de pessoas vivas, podem surgir situações em
que seja necessário o estabelecimento da idade aproximada
e, mais raramente, do sexo.

Determinação da Idade nos Vivos


Pode ser necessária tanto no foro penal quanto no foro
civil. No foro penal, sua importância é crucial no momento
Figura 4.8. Prótese para articulação coxofemural. Na haste, ficam os de se impor medidas de restrição da liberdade a delinquentes
números de fabricação usados no registro. Gentileza do Dr. Carlos Hen- presos em flagrante infração penal. De acordo com o artigo
rique Durão. 27 do Código Penal, os m enores de 18 anos são considerados
inimputáveis, estando sujeitos às normas estabelecidas em
legislação especial. Tal legislação está no Estatuto da Criança
A análise da voz tem sido usada com frequência cada vez e do Adolescente (Lei 8.069/90) 17• De acordo com ela, indi-
maior. Outrora, era baseada no depoimento de testemunhas víduos menores de 18 anos, qualquer que tenha sido o delito
que teriam ouvido alguém falar, mas sem poder ver a pessoa. praticado, não podem ser trancafiados juntamente com os
Isso poderia acontecer em casos de sequestro em que a víti- delinquentes maiores de idade. A autoridade policial deve
ma fosse libertada e, depois, preso algum suspeito. Peritos encaminhá-los a uma instituição correcional para que sejam
em som costumam estudar o padrão da voz gravada com o submetidos a um processo de reeducação. A propósito, hoje,
auxílio de programas de computador em que as ondas sono- discute-se acaloradamente a proposta de redução da maio-
ras são decompostas e analisadas, produzindo gráfi cos utili- ridade penal de 18 para 16 anos de idade. Há argumentos
zados na comparação entre a gravação fornecida e o padrão ponderáveis tanto a favor quanto contrários. De qualquer
da fala de quem se quer identificar. maneira, tendo dúvida a autoridade, o pretenso menor deve
O estabelecimento da identidade pelo exame das arcadas ser encaminhado ao Instituto Médico-legal para que se faça
dentárias, além de útil nos vivos, é indispensável em casos de o exame de determinação da idade.
carbonização e de achado de esqueletos, quando se suspeita De acordo com o novo Código Civil, os menores de 16
que se trate de certa pessoa desaparecida. Os dentistas em anos são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente
geral são obrigados por norma legal a fazer e guardar por os atos da vida civil. Quando entre 16 e 18 anos, são con-
5 anos a fórmula dentária de seus pacientes, bem como a siderados relativamente incapazes, podendo realizar certos
registrar os trabalhos que porventura tenham feito. Como se atos, desde que assistidos po r seu representante legal. É o que
trata de matéria afeita à Odontologia Legal, os compêndios e consta no inciso I do artigo terceiro e no inciso I do artigo
tratados relativos ao tema devem ser consultados. quarto, respectivamente. Não entraremos, aqui, na análise da
A identificação baseada no DNA será estudada no Ca- responsabilidade penal e civil, pois seus aspectos serão discu-
pítulo 5. tidos na Parte VIII desta obra.

Perícia
Problemas Especiais de Identificação
O fundamento da avaliação pericial da idade em pessoas
Conforme já referimos, a identificação está baseada na vivas é a inexorável sucessão de transformações impostas ao
comparação de dois registros feitos do mesmo indivíduo. ser humano pelo passar do tempo. Desde o nascimento até
Por isso, de nada adianta colher dados minuciosos de uma a velhice nossa aparência vai-se modificando, de modo que
pessoa que se quer identificar se não há um primeiro regis- qualquer pessoa leiga é capaz de calcular grosseiramente a
tro. É o que ocorre com crianças. A identificação de uma idade de qualquer um, com acuidade que varia com a faixa
criança extraviada, sequestrada ou desaparecida e morta tem etária considerada. Assim, uma diferença de poucos meses
que ser feita com base em informações prestadas pelos fami- de um bebê para o utro não deixa dúvidas sobre quem é o
liares e por ocasionais documentos que registrem algum de- mais moço, qualquer que seja o observador. Mas, em indiví-
talhe, conforme os métodos antigos já descritos, como sinais duos maduros, diferenças de anos não podem ser percebidas
particulares, mutilações e outras marcas. nem pelos mais perspicazes.
Na maioria das vezes, porém, as dificuldades surgem no Os elementos a serem pesquisados nessa avaliação sofrem
exame de cadáveres que estejam incompletos, por exemplo influência de diversos fato res, tanto genéticos como ambien-
44 • CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação

tais. Assim, existe um tipo hereditário de nanismo (progéria) mulheres que foram submetidas à cirurgia plástica de reju-
em que o indivíduo novo apresenta pele enrugada e aspecto venescimento. Mas os homens não ficam imunes. Os idosos
senil. O mesmo envelhecimento precoce surge nos indiví- podem apresentá-las em quantidade variada.
duos albinos. Além disso, a exposição prolongada ao sol an-
tecipa o aparecimento de rugas, por destruir precocemente Olhos
as fibras elásticas da pele e condiciona o surgimento de pe- Chama-se de arco ou halo senil uma deposição de ma-
quenas lesões pré-neoplásicas, chamadas de ceratose actínica
terial proteico na região límbica do globo ocular, formando
ou senil. As doenças nutricionais também podem retardar o
um anel de coloração acinzentada no limite externo da íris
amadurecimento do organismo e o desenvolvimento físico.
(Fig. 4.9) . A partir dos 40 anos, cerca de 20% dos indivíduos
Feitas essas ressalvas, analisemos o valor dos dados que po-
já o apresentam, sendo mais frequente e precoce na raça ne-
dem ser considerados na determinação da idade.
gra e nas mulheres. Sua incidência aumenta com a faixa etá-
ria pesquisada 7•18 • Com o passar dos anos, ocorrem modifica-
Estatura
ções no cristalino que, em alguns indivíduos, culminam com
Embora sujeita a falhas, tem muita importância na infân- tal diminuição da transparência ao atingirem uma idade
cia e na adolescência. Apesar de haver tabelas estaturais, que avançada, que se torna necessária sua remoção cirúrgica. É o
são familiares aos pediatras, o mais importante é o estabele- que se chama de catarata. Como pode haver cataratas causa-
cimento do ritmo de crescimento nessa fase da vida. Após o das por outras doenças oculares, seu valor na estimativa da
fechamento das cartilagens de crescimento dos ossos longos, idade do indivíduo é relativo, devendo ser avaliados outros
ao fim da puberdade, a estatura perde totalmente seu valor elementos. A progressiva alteração do cristalino também di-
comparativo. minui sua elasticidade, de modo que a acomodação da visão
para objetos próximos fica prejudicada - presbiopia. É uma
Pele característica de pessoas já maduras.
Tem valor, ressalvadas as discrepâncias já referidas ante-
Esqueleto e Dentição
riormente, pela presença e distribuição dos pelos, presença
de rugas e alterações pigmentares, inclusive dos pelos. Do ponto de vista pericial, são os elementos mais fide -
No início da adolescência, começam a surgir os primei- dignos. O exame do esqueleto é feito pela identificação dos
ros pelos pubianos, que são seguidos pelos axilares. No caso pontos de ossificação e pelas cartilagens de crescimento.
dos rapazes, começa a surgir a barba primeiro na região do Os pontos de ossificação podem ser identificados pelo exame
bigode, depois nas costeletas e região mentoniana. Depen- radiológico do esqueleto. São mais importantes na infância,
dendo de fatores familiares e raciais, a densidade da barba principalmente com relação aos ossos do punho e do pé. Na
pode ser maior ou menor, assim como podem surgir pelos bacia, os três pontos de ossificação, constituídos pelo ílio,
na face anterior do tórax. Em idade mais avançada, podem ísquio e púbis, estão unidos por uma cartilagem em forma
surgir pelos no conduto auditivo externo. Por outro lado, a de Y. À medida que se dá o crescimento da criança e ela entra
queda dos cabelos sugere uma idade madura. A calvície é no período da adolescência, essa cartilagem vai desaparecen-
uma alteração que ocorre nos homens maduros, variando do pela fusão das três áreas de ossificação. Seu ponto de en-
muito a idade em que começa a se instalar. Mas a calvície contro está no interior da cavidade cotiloide do osso ilíaco e
avançada permite supor que o indivíduo tenha mais de 30 serve de referência para o cálculo de índices antropométricos
anos. Os cabelos começam a embranquecer por volta dos
30 anos de idade, geralmente pelas regiões temporais. Mas,
também aqui, há grande variação individual. O técnico de
autopsias da disciplina de Medicina Legal e Deontologia do
curso de medicina da UGF já tinha a cabeça toda branca an-
tes dos 60 anos de idade.
As rugas costumam começar pela pele próxima ao canto
externo da fenda palpebral ("pé-de-galinha"). Seguem-se as
rugas de expressão facial. Com o tempo, a pele torna-se cada
vez mais flácida, há perda de gordura no subcutâneo e de fibras
.· ~.=~,.
,,,.
elásticas e colágenas na derme, com a consequente universali- ... .

zação das rugas nos indivíduos de idade muito avançada.


O passar do tempo leva ao aparecimento de manchas
hipercrô micas em diversos segmentos do corpo, porém as ,"•· · ~~ ... ·

mais características são as que surgem no dorso das mãos. . '


São mais comuns em mulheres que já entraram na meno-
pausa ("pintinhas da vovó"). Q uando não são removidas por Figura 4.9. Halo senil. A região límbica, fronteira entre a córnea e a
tratamento dermatológico estético, denunciam a idade de esclera, apresenta coloração branca acinzentada nítida. Caso do autor.
CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação • 45

importantes 19• Algumas tabelas impo rtantes referentes à cro- riação individual e racial. Existem tabelas que devem ser
nologia do aparecim ento dos pontos de ossificação em geral consultadas e que são apresentad as no Capítulo 5. Lá, serão
po dem ser encontradas em Camps2 • abordados, mais detalhadamente, os elem entos ósseos de
Na adolescência, a determinação da idade, como já re- avaliação da idade. Como regra geral, porém, devemos acon-
ferimos, pode ser extremamente importante para se dar o selhar a avaliação da idade com preferência para os seguintes
tratamento penal adequado aos delinquentes que alegam elem entos:
m eno ridade e não têm uma certidão para comprovação do 1) até 2 an os - primeira dentição;
alegado. Aqui, são muito importantes as metáfises dos ossos 2) de 2 a 6 anos- aparecimento dos pontos de ossificação;
longos e a fusão dos pontos de ossificação d o ilíaco. O fe- 3) de 6 a 12 anos - segunda dentição;
chamento das cartilagens de crescimento das regiões meta- 4) de 12 a 25 anos- fechamento das zonas de crescimen-
fisárias obedece a uma cronologia que é pouco influenciada to dos ossos longos (metáfises);
por elem entos ambientais, inclusive nutricionais2• Contu- 5) acima de 25 anos - fechamento das suturas do crânio.
do, é indispensável que se leve em consideração o sexo, pois
as mulheres entram na adolescência m ais cedo que os ho- Determinação do Sexo nos Vivos
m ens, e as alterações do esqueleto induzidas pelos hormô-
nios sexuais ocorrem nelas com antecipação de 1 a 2 anos Poucas vezes são os peritos chamados pela justiça para
(Figs . 4.10 e 4.11 ) . realizar uma perícia de determinação de sexo. Tal situação
O aparecimento dos dentes, tanto caducos quanto per- pode-se apresentar quando houver sexo dúbio em função de
manentes, segue uma cro nologia regular, com pouca va- anomalias genitais, o u quando a dúvida provier de alteração
de uma genitália normal por m eio de artifícios cirúrgicos
em indivíduos com distúrbio da sexualidade. No primeiro
caso, o problema pode surgir logo após o nascimento em se

Figura 4.1 O. Radiografia das grandes articulações de um adolescente,


incluindo joelho, cotovelo e punho. Oaspecto é compatível com menos Figura 4.11. Radiografia da bacia de um adolescente. Esse aspecto
de 12 anos, se feminino, ou menos de 14 anos, se masculino. As cartila- é compatível com maior de 20 anos, se feminino, ou de 21 anos, se
gens de crescimento ainda não ossificadas são representadas por uma masculino. Caso n~ 63.029 do IMLAP-RJ, cedido por gentileza do Dr.
linha radiotransparente entre a epífise e a diáfise (região metafisária). Hélio Oliveira Santos, já falecido, chefe do Serviço de Radiologia à época.
46 • CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação

tratando de hermafro ditas ou de pseudo-hermafroditas, ou externo. Desse modo, um indivíduo pseudo-hermafrodita


ser acobertado até a idade adulta, ocasião em que levará a feminino externo é aquele que tem ovários, mas genitália
problemas quando das núpcias. externa com aspecto masculino. São os tipos mais comuns.
Nosso Código Civil não permite o casamento de pessoas Resultam de disfunção na produção de hormônios duran -
do mesmo sexo. Embora tenha havido uma liberalização com te a vida embrionária, com predominância de produção de
relação à herança de bens entre parceiros homossexuais que hormônios masculinos pela glândula suprarrenal do feto
tenham vivido juntos por vários anos, o casamento homos- feminino. Nos pseudo-hermafroditas masculinos, é comum
sexual não é reconhecido por nossa lei civil. Recentemente, que os testículos fiquem dentro da cavidade abdominal, ou
porém, o Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime, no conduto inguinal, sem descerem para a bolsa escrotal. O
equiparou a união homo à heterossexual, estabelecendo que, pênis é atrófico, podendo simular um clitóris grande, prin-
quando estável, constitui uma família 20 . cipalmente se houver uma fenda entre as duas metades da
Os desvios da sexualidade podem estar no campo gené- bolsa escrotal formando uma pseudovagina. Tais casos são
tico, somático ou psíquico. No campo da genética, existem acompanhados de intensa hipospádia (abertura da uretra na
casos em que a separação dos cromossomas sexuais não se face inferior do pênis) 21 •
faz de modo normal, e o indivíduo pode apresentar padrão O drama dos pseudo -hermafroditas costuma agravar-se
diferente do normal - XX para a mulher e XY para o homem. por ocasião da adolescência. Basta imaginar a situação em
Assim, podemos ter o tipo XXY encontrado na síndrome de que um indivíduo masculino, com testículos escondidos no
Klinefelter, e o tipo XO, na síndrome de Turner. Existem ou- canal inguinal, porém ativamente secretores, seja educa-
tras anomalias com menor importância para o nosso estudo, do em um internato para meninas e moças. A atração pelo
como a chamada superfêmea, com XXX. O indivíduo com sexo feminino desencadeada pelo aumento da testosterona
síndrome de Klinefelter costuma ter atrofia testicular e bió- estabelece penoso conflito entre a educação feminina e o im-
tipo eunucoide. pulso sexual masculino. Mais dramática é a situação quando
Os desvios somáticos são representados pelos casos de se trata de uma adolescente educada em um seminário. Ao
hermafroditismo verdadeiro e de pseudo-hermafroditismo. chegar à puberdade, começa a apresentar formas femininas,
O hermafroditismo verdadeiro pode ser classificado de acordo aumento das mamas e alargamento dos quadris, despertan-
com o tipo de gônada que o indivíduo apresenta. Em geral, do a atração sexual de seus companheiros masculinos. A falta
o que se observa é a presença de gônadas que mostram, no de compreensão para com essas pessoas e de apoio psicoterá-
m esmo órgão, tecidos masculinos e femininos, constituin- pico pode conduzir a situações funestas2 1•
do o que se convenciono u chamar de ovotestis. No ovotestis, Os desvios psíquicos da sexualidade envolvem desde a
são achados setores com túbulos seminíferos (componente atração pelo mesmo sexo (homossexualismo ) a várias outras
masculino) e outros com folículos de Graaf (componen- formas de perversão como satirismo, ninfomania, pigma-
te feminino). Conforme a predominância de produção de lionismo, bestialismo, fetichismo etc. Não costumam causar
hormô nios masculinos, ou femininos, o indivíduo vai apre- problemas de identidade, mas podem levar a crimes sexuais.
sentar características somáticas num ou noutro sentido. O Em raras ocasiões, os peritos legistas são chamados a
aspecto da genitália externa costuma corresponder de modo fazer o exame de determinação de sexo em adultos que se
claro a essa tendência, o que conduz a uma educação con- submeteram à cirurgia de emasculação. São homens com
dizente com o sexo aparente. Nos hermafroditas verdadei- distúrbio psíquico da sexualidade que levam sua tendência
ros, a genitália externa pode ter qualquer aspecto, desde o ao extremo de procurar cirurgia plástica para retirada da
masculino normal até o feminino normal, passando pelos genitália externa e confecção de uma neovagina com os re-
estágios intermediários. Conforme a histologia das gônadas, talhos da bo lsa escrotal. São numerosos os casos relatados
os hermafroditas verdadeiros devem ser classificados em: 1) na literatura, principalmente em travestis e transexuais com
unilaterais - com ovotestis de um lado e gônada normal do atividade artística em casas de espetáculos no turnos. Não
outro lado; 2) bilaterais - com ovotestis em ambos os lados; são necessariamente ho mossexuais. Alguns sofrem de apatia
3) alternos, ou laterais - com testículo de um lado e ovário sexual e não se sentem atraídos para a vida sexual homo ou
do outro. Todos são raros, e o alterno é o menos frequente21• hetero. O problema médico-legal costuma surgir quando tais
O pseudo -hermafroditismo consta da presença de gôna- criaturas têm necessidade de se identificar. Em geral, o oficial
das normais, ou atróficas, mas com histologia compatível que lhes pede a identidade se surpreende ao olhar para uma
com somente um dos sexos. O que torna os pseudo-her- "mulher" e ver na carteira de identidade um nome tipica-
mafroditas diferentes das pessoas no rmais é o fato de terem mente masculino. Bastos, do IMLAP, examinou, em ocasiões
a genitália externa, ou a interna, diferenciada para o sexo distintas, três pessoas com essas características. Um deles era
oposto ao da gônada que apresentam. Por essa razão, devem egípcio e já havia atuado em espetáculos na cidade de Casa-
ser classificados em dois tipos: masculino ou feminino, con- blanca, no Marrocos22 •
fo rme a gônada seja testículo ou ovário, respectivamente. No início da década de 1990, fomos solicitados pela di -
Se a genitália diferente for a interna, deve ser chamado de reção do IMLAP, na pessoa do Dr. Raphael Pardellas, a auxi-
pseudo-hermafrodita, masculino ou feminino, interno. Se liar numa perícia de determinação de sexo de uma "senhora"
for a externa, pseudo -hermafrodita, masculino o u feminino, francesa que queria casar-se com um homem que a acom-
CAPITULO 4 Identidade e Processos de Identificação • 47

panhava. O início do processo foi motivado pelo pedido de 8. Autor desconhecido. www.bmezine.com/scar/jeff_peckOOl.html.
troca de nome feito ao Registro Civil para que se pudessem 9. BalthazarV. Identité. In: Précis de Médecine Légale. 2•ed. Librairie
JB. Paris: Bailliere et Fils; 1911. 9' parte, p. 524-8.
casar. O exame constatou as cicatrizes da cirurgia de emas-
10. Vibert C. De l'identité. De l'examen des empreintes et des taches.
culação, a presença de mamas aumentadas (não sabemos se In: Précis de Médecine Léga le. 5• ed. Paris: Librairie JB. Bailliere et
por influência hormonal apenas ou se associada a pró tese) e Fils; 1900. Capítulo l, 3ª seção, p. 547-51.
desenvolvimento no rmal do resto do corpo, mas com pomo- 11. Fierro MF. Identification ofhuman remains. In: Medicolegal Inves-
de-adão nítido na topografia da laringe. Coube a nós realizar tigation ofDeath. 3ªed. Werner U. Spitz, ed. Springfield: Charles C.
o exame de cro matina sexual, que deu resultado compatível Thomas Publishers; 1993. Capítulo III, p. 71- 11.
12. Alcântara HR. Exame datiloscópico. em Perícia Médica Judicial.
com o sexo masculino. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois SA; 1982. Capítulo 21, pp.
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7. Knight B. The establishment of identity of human remains. In: Fo- pp. 55 1-586.
rensic Pathology. 2• ed. Bernard Knight, ed. Lond res: Arnold; 1996. 22 . Bastos IN. Auto de determinação de sexo. Rev IMLGb; 1969. 1( 1):
Capítulo 3, p. 97. 25-28.
Virgínia Rosa Rodrigues Dias
Hygino de C. Hercules

• INTRODUÇÃO humanos necessita de local adequado, equipamento osteo-


métrico específico e pessoal treinado, visto ser objeto de tra-
A Antropologia é o estudo dos seres humanos, tradicio- balho científico para auxiliar a Justiça.
nalmente dividida em três subcampos: Antropologia Cultu- Pode causar estranheza o fato de que não serão aborda-
ral (ou Social), Arqueologia e Antropologia física (ou Bioló- dos neste capítulo aspectos relativos à filiação ra cial como
gica). Os antropologistas culturais investigam as crenças e os parâmetro identificador na perícia de despojos humanos.
costumes das populações em diferentes sociedades. Os ar- Mas, no Brasil, devido ao acentuado grau de miscigenação
queo logistas conduzem escavações e analisam a arquitetura desde a época da colo nização portuguesa (índios, brancos e
e objetos produzidos por povos antigos. Os antropo logistas negros), incrementada com a imigração posterior de outros
povos europeus e asiáticos, também recentemente avaliado
físicos são essencialmente cotejadores, examinando as dife-
por análises com DNA, não há como estabelecer - de forma
renças e as similaridades mo rfológicas dos homens através
precisa, a partir das aferições métricas de um esqueleto - a
do mundo e ao longo do tempo',i·
qual padrão racial aquele sujeito pertencia.
Antropologistas físicos, médicos e odontologistas são fre-
Atualmente o exame de DNA constitui o melhor m éto-
quentemente requisitados pelas autoridades judiciais para
do para a identificação de um indivíduo, porém sua análise
proceder à identificação de despojos humanos, que podem
comparativa através de técnicas complexas e restritas a pou-
derivar de catástrofes ambientais, acidentes aéreos, incên-
cos grupos de pesquisadores nacionais, exigindo o emprego
dios, massacres etc., sendo encontrados expostos ao ar am-
de equipamento sofisticado, transforma -se em gasto opera-
biente, enterrados ou submersos.
cional infelizmente elevado.
A peça-chave de qualquer investigação policial é a identi-
Para que a "marca genética" possa servir como instru-
fi cação dos criminosos e de suas vítimas. Em corpos conser- m ento de identificação, é conveniente usar a prova do DNA,
vados e inteiros, essa tarefa pode ser executada sem muitos uma vez que já se tenha reduzido ao máximo - pelo prévio
problemas, desde que exista um registro prévio. Todavia, o exame antropológico - o universo das possíveis vítimas, com
procedimento para determinar a identidade de um indi- o fim de otimizar os custos e agilizar o procedimento legal.
víduo a partir de restos humanos, quer em decomposição,
quer esqueletizados, esquartejados, reduzidos a pequenos
fragmentos e m esmo carbonizados, torna-se um verdadeiro • CONCEITO
teste de paciência, a começar por distinguir se os despojos
são humanos ou provenientes de outros animais. A Antropologia Forense é um ramo da Antropologia Fí-
A determinação da identificação médico-legal nessas sica (Biológica) que tem por finalidades estabelecer a iden-
situações complicadas deverá estar baseada no minucio- tidade do sujeito através da determinação da idade, do sexo,
so estudo da Antropologia, po r apurado conhecimento da do padrão racial e da estatura e esclarecer a causa, a data e as
biologia esquelética humana. O estudo apropriado de restos circunstâncias da morte '-3 •

49
50 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

A do cumentação dos fatos ocorridos antes, durante e de- uma tendência para assumirem o status em tempo integral
pois da morte é de extrema necessidade na elucidação do seu com o peritos forenses.
diagnóstico. Utiliza-se o método de reconstrução biológica A Antropologia Forense guarda suas origens intimamen-
d o indivíduo, que consiste em um conjunto de operações te relacionadas às ciências anatômicas. Até a década de 1930,
científicas de caráter analítico, comparativo e complexo, re- er a dos Departam entos de Anatomia d as Universidades que
lacionadas com a identificação biológica ger al (sexo, idade, provinham as principais contribuições para a m etodologia
padrão racial, estatura), na dependência do meio ambiente do estudo da variação esquelética humana, usando coleções
biogeográfico e cultural no qual o sujeito se desenvolveu, in- de cadáveres com idade, raça, sexo e morbidade conhecidos.
cluindo as alterações associad as com anom alias, patologias, Nessa época, basicamente, m édicos e anatomistas (raros an-
estado de saúde, hábitos alimentares (tipo de dieta), ocupação tropo logistas) constituíam as únicas fo ntes de consulta para
profissional e atividade física, com o propósito de estabelecer a Justiça a respeito de restos esqueletizados.
como era o seu modo de vida antes de morrer. A detecção de Durante a Segunda Guerra Mundial, diversos antropolo-
doenças e de traumas ante mortem permite reconstituir tanto gistas físicos fora m consultados para auxiliar na identifica-
as causas da morte quanto as circunstâncias em que ela ocor- ção do grande número de indivíduos mo rtos. O conflito da
reu, aspectos de vital importância para a perícia médico-legal. Coreia registrou a segunda maior contribuição antropológi-
A Antropologia Forense pode ser subdividida em: Osteo- ca nos processos de identificação de mortos de guerra.
logia Forense, Arqueologia Forense e Tafonomia Forense. A As pesquisas conduzidas com esses indivíduos permiti-
Osteologia é o estudo da anatomia do esqueleto. A Arqueo- ram uma m elho r compreensão da progressão natural dos
logia abrange os processos de escavação e arrecadação con- indicadores de idade no ser humano, pois em sua amostra-
trolada de restos humanos e outras evidências pertinentes gem a população er a formada por indivíduos saudáveis e
ao local de encontro ou ao contexto da cena, em situação bem -nutridos ao contrário dos estudos prévios, realizados
de crime. A Tafonomia é o conhecimento das alterações que em cadáveres de escolas de Medicina, que representavam um
ocorrem sobre os d espojos a partir do mom ento da mo rte grupo de pessoas de idade conhecida, mas que haviam sofri -
ao longo do tempo, incluindo trauma, decomposição e mo- do algum tipo de doença e/ou privação nutricional.
dificações climáticas, ressaltando-se o papel do patologista Nos EUA, a década de 1970 representou um importante
fo rense na diagnose diferencial entre trauma, fenômenos ta- marco no campo da Antropologia, com o estabelecimento
fo nômicos e doenças ósseas. de uma seção de Antropologia Física na Academia de Ciên-
Com base no grande número de crimes insolúveis, prin- cias Forenses, o que permitiu um intercâmbio disciplinar
cipalmente quando o corpo de delito se apresenta deterio- na identificação de vítimas em desastres de massa e na in-
rado, como em casos de carbonização, crem ação, encontro vestigação de assassinatos de repercussão, como no caso do
isolado de ossad as o u cemitérios clandestinos, achad o de presidente Kennedy. Em 1977, esse trabalho obteve seu re-
fragmentos de ossos em lugares suspeitos etc., torna-se pri- conhecimento oficial mediante a criação da Junta America-
mordial a aplicação da pesquisa e de técnicas antropológicas na de Antropologia Forense, com a finalidade de garantir a
para a resolução de problemas m édico-legais. qualidade das perícias forenses e a profissionalização de seus
Méto dos complementares utilizados na identificação de colabor adores, em assessoria conjunta na m aio r parte da ca-
pessoas desaparecidas vêm sendo desenvolvidos através de suística do FBI (Federal Bureau of Investigation).
ava nços tecnológicos, tais com o: confro nto por superposi- A despeito do crescente interesse global nessa área, na
ção de radiografias dos seios da face, da sela túrcica e do tó- Euro pa e em muitos outros países - à exceção dos EUA - , a
r ax; sobreposição de fo tografias com o crânio; reconstrução quase totalidade do trabalho em Antropologia Forense con-
facial morfometria analítica de configuração do crânio assis- tinua a ser realizada por profissionais sem graduação acadê-
tida por computador, via sobreposição de vídeo, e reconsti- mica antropológica, principalmente médicos.
tuição tridimensional de cr ânios por tomografia computa- Na América Latina, o antropologista forense não pode
d orizada, associada à visualização por vídeo48 . limitar-se ao processo de exumação e identificação de restos
ósseos. Duas são as r azões para que se exija desse profissional
algo mais. Em primeiro lugar, nas décadas de 1960, 1970 e
• HISTÓRICO 1980 houve movimentos de insurreição contra governos dita-
toriais instalados no poder por golpes militares. A repressão a
A Antropologia Forense é uma especialidade relativam en- esses movimentos levou ao sequestro e morte dos insurretos,
te recente. Essa ciência iniciou-se no século XIX e vem sendo que eram enterrados em valas comuns. Em segundo lugar, na
increm entada em paralelo ao exponencial aumento da violên- atualidade, a onda de violência que varre a região, principal-
cia, pela necessidade do conhecimento da anatomia do esque- mente na Colômbia e no Brasil, conduz à mesma for ma de
leto em ações judiciais que envolvam a identificação e avalia- desaparecer com os corpos. Assim, o antropologista fore nse
ção de restos humanos em decomposição ou esqueletizados 2•9 • precisa esclarecer, o u contribuir para o esclarecimento, tanto
Embor a o campo de atuação da m aio ria d os antropolo- da identidade como da causa da m orte. Deve agir em conso-
gistas esteja filiado a Universidades e Museus, a requisição nância com as Comissões de Direitos Humanos de cada país,
constante de sua assistência por autoridades da lei mostra respeitando as no rmas jurídicas vigentes 1•
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 51

• NOÇÕES DE OSTEOLOGIA medular também pod e servir como um sítio para armaze-
nam ento d e tecido adiposo, qu e é, consequentemente, cha-
Oficialmente, existem 206 ossos no esqueleto humano m ado de medula amarela 11 •
adulto, mas eventuais ossos supranumerários po derão apa-
recer, especialmente relacionados às m ãos e aos pés e, ex- Histologia óssea
cepcionalmente, no crânio, aumentando o número habitual.
Os componentes ósseos em indivíduos jovens e crianças são Tipos de Osso
variáveis em número de acordo com a idad e, como segmentos O osso é um ór gão fo rmad o por tecid o ósseo que, junta-
de ossos que surgem a partir de mais d e 800 centros de ossifi- m ente com a cartilagem , compõe o esqueleto dos vertebra-
cação que, progressivamente, vão-se fusionando. É praxe se es- d os. Esses tecidos são constituídos por células - osteócitos,
tabelecer a separação entre o esqueleto axial (ossos da cabeça osteoblastos e osteoclastos - e m atriz intercelular. A m atriz
e do tronco) e o esqueleto apendicular (ossos dos m embros) . óssea é com posta por fibras colágenas e glicopro teínas -
Os ossos são órgãos rígidos, fo rtes e com plexos, constituí- material orgânico que confere resistência e elasticidad e ao
dos de vários tecidos, correspondendo a aproximad amente osso-, ligadas entre si po r substân cias inorgânicas, respon-
14% do peso corporal de uma pessoa comum. A maioria dos sáveis pela rigidez do osso, representad as po r cristais de fos-
ossos do corpo exibe um padrão estrutural semelhante. En- fato de cálcio (cerca de 85%), carbonato d e cálcio (10%) e
contram-se posicionados entre si através de contatos articu- fosfa to de m agnésio (5%) .
lares fixos, móveis ou semimóveis, por intermédio d e cabeças Macroscopicamente, dois tipos de tecido ósseo pod em
e extremidades com o nos ossos longos; suturas intrincadas ser diferenciad os: o compacto e o esponjoso. O osso compac-
como nos ossos cranianos e face tas elem entares com o as en- to se apresenta sólido e forma a parede óssea em tod a a ex-
cont radas nas junções das costelas com as vértebras. tensão d a diáfise, revestindo também as epífises (Fig. 5. l A) .
Os ossos podem ser classificados, de acordo com o seu O tecido ósseo esponjoso tem aspecto poroso e é com-
formato, em: posto por um conjunto d e espículas ou trabéculas irregu-
longos: co nsistem em uma haste (ou diáfise) com lares, finas e interligadas em ramificações, formando uma
duas extremidades (ou epífises), como o úmero e o trama cujos espaços são preenchidos pela medula óssea ver-
fêmur; m elha - tecido hematopoiético. Ele ocorre na epífise dos os-
curtos: podem ser equiparados aos ossos lo ngos sos longos e na parte central dos ossos curtos, e é envolto por
- só que em miniatur a - como os m etacarpianos e uma fina camad a externa de osso compacto.
m etatarsianos; Não se consegue traçar um lim ite preciso entre os dois
chatos: most ram superfícies planas para proteção ou tipos d e tecido ósseo, e a diferença entre eles d epende, basi-
para fixação muscular, como o crânio, a escápula e o camente, da quantidad e relativa d e material sólido e do ta-
inominado (bacia); m anho e número dos espaços medulares.
irregulares: referem-se a for mas complexas, tais como No osso compacto são visualizadas ao microscópio es-
as vértebras, o maxilar e o esfenoide'º· truturas bem características, chamad as de sistemas d e H a-
A estrutura interna d o osso pod e ser observada em cor- vers ou osteon, unidade estrutural d o osso compacto. Cad a
tes lo ngitudinais e transversais. Ela é constituída po r um a osteon é um cilindro com um canal central - o canal de H a-
camada externa lisa e compacta que co mpõe o córtex do vers - ao red or do qual se distribuem lâminas ósseas con-
osso, o qual exibe espessura variável, e por uma porção cêntricas. Entre essas lâminas situam -se fileiras também
intern a porosa que corresponde à cavidad e medular (Fig. concêntricas de osteócitos, interligados por canalículos na
5.lA) . Nos ossos longos, o córtex fo rma um tubo circun- matriz. Canais d e Havers de sistemas vizinhos são conecta-
dando a cavidad e m edular, enquanto nos ossos chatos o d os transversalmente pelos canais de Volkmann. No in terior
espaço m edular é completamente preenchido por osso es- d esses canais se estende uma rede de capilares sa nguíneos e
ponjoso, sem cavidade presente. Em idade avançada, o osso nervos. Os pequenos espaços entre os sistemas de Havers são
espo njoso pode desaparecer nos ossos chatos, com conse- preenchidos por lam elas ósseas d e disposição diversa, fo r-
quente colapso entre as duas superfícies corticais oponen- m ando as lamelas intersticiais. Os sistem as d e canais de um
tes. Cada osso é circundad o - interna e extern amente - por osso fo rmam um verd adeiro labirinto que se estende da re-
memb ra nas de tecido conjuntivo. Externamente, a mem - gião periférica e fib rosa - o periósteo - até a região interna, o
b ra na que cobre o osso é o periósteo, constituindo um r e- endósteo, que reveste a cavidade m edular (Figs. 5. lB e C) ' 2•13 .
vestimento fo rte e fibroso, exceto nas su perfícies articulares, Os osteons estão organizados ao longo das linhas de es-
que são protegidas po r cartilagem. Internam ente, a cam ada tresse mecânico, relacionadas à atividade de suporte de peso.
conjuntiva é o endósteo, que d elimita a cavidad e m edular. Uma alteração nos padrões de estresse em um osso durante a
Tanto o periósteo quanto o endósteo contêm células que vida resulta em um realinhamento d os osteons - a única pro-
podem fabricar osso. No interior d a cavidade medular e nos priedade adaptativa do osso - , conhecido com o lei d e Wolff.*
espaços intratrabeculares do osso esponjoso existe a medula *Lei de Wolff: Toda alteração na for ma e na fu nção de um osso, ou apenas
óssea vermelha, a qual form a células sanguíneas. A cavidade na sua fu nção, é acompanhada por modificações de sua arquitetura interna.
52 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

- - - - -- - -- - - - Lamelas ósseas

Osso l
compacto L
"':.~----- Periósteo
Osso [ Sistema
esponjoso
- - - - - circunferencial
externo

A
Sistema circunferencial interno Canal de Volkmann

Vaso sanguíneo
Canalículo ósseo

Lamelas

Osteoplasto Canal de Havers

B Osteoclasto
Figura 5.1 . A. Esquema de diáfise femoral, no qual se notam a face externa recoberta pelo periósteo, a face interna porosa, os vasos sanguíneos
nutridores e um sistema de Havers. Conforme Gitirana LB, 2004. B. Esquema de sistema de Havers constituído por lamelas ósseas concêntricas que
formam um tubo, centralizado por um vaso sanguíneo e um filete nervoso. Conforme Gitirana LB, 2004. e. Aspecto microscópico de osso compacto,
exibindo um osteon de limites precisos em contato com outros vizinhos. Conforme Gitirana LB, 2004.
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 53

Células ósseas ocorre de modo diferente. Na diáfise ele ocorre no sentido


longitudinal e em espessura, enquanto nas epífises o cresci-
As células que compõem o tecido ósseo são:
mento se dá no sentido radial.
1) osteoblasto - célula jovem que não apresenta capaci-
A formação do primeiro tecido ósseo - em um osso lon-
dade para se dividir, responsável pela síntese proteica
go - ocorre por ossificação intramembranosa no pericôn-
e secreção da parte orgânica da matriz óssea, denomi-
drio que envolve a cartilagem na região média da diáfise.
nada osteoide ou pré-osso, que também está envolvi-
Forma-se um tubo ósseo que circunda a peça cartilaginosa,
da no processo de calcificação da matriz, encontrada
e o pericôndrio passa a ser chamado de periósteo. Capilares
no interior do osso em estreita associação com o pe-
sanguíneos provenientes do periósteo invadem a peça carti-
riósteo e o endósteo, e que contém a enzima fosfatase
laginosa e levam células indiferenciadas que se espalham por
alcalina;
todo o comprimento da diáfise. Ocorre, então, a substituição
2) osteócito ou célula óssea propriamente dita - é o os-
de tecido cartilaginoso por tecido ósseo.
teoblasto maduro que pára de secretar matéria orgâ-
Entre a epífise e a diáfise permanece uma faixa de car-
nica, cuja função é a manutenção da matriz óssea. Os
tilagem denominada metáfise, placa ou disco epifisário, que
osteócitos acham-se localizados nas lacunas e apre-
permite o aumento do osso em comprimento até atingir a
sentam numerosos prolongamentos citoplasmáticos
idade adulta, quando ocorre o seu fechamento completo e
interconectantes, dispostos ao redor dos canais de
Havers; cessa o alongamento ósseo.
3) osteoclasto - é uma célula gigante, multinucleada,
Patologia óssea
que não se divide, responsável pela reabsorção do ex-
cesso de matriz óssea, participando da remodelação, Um dos aspectos mais desafiantes no estudo da biologia
do reparo e da remoção da matriz malconstituída ou esquelética é a investigação da saúde e da doença nas popu-
fragmenta da 14 • lações. Apesar de nem todas as doenças deixarem assinatu-
ras no esqueleto, o estudo de ossos anormais pode fornecer
Desenvolvimento e Crescimento Ósseos informação importante relativa ao estado de saúde de um
A formação do osso sempre se dá a partir de uma estrutu- indivíduo. Os antropologistas usam, igualmente, a paleopa-
ra conjuntiva que serve de base, por mecanismo aposicional, tologia como um veículo para a investigação da histó ria de
uma vez que a existência de sais de cálcio na matriz impede doenças como tuberculose, sífilis, lepra e artrite reumatoide 15 •
a expansão intersticial. Conforme sua origem embriológica, Quando uma amostra representativa da população é ava-
podemos distinguir dois tipos de ossificação: intramembra- liada, a análise da patologia esquelética pode dar estimativas
nosa e endocondral o u cartilaginosa. da saúde da comunidade e, assim, facilitar as investigações
sobre padrões de doenças, em perspectiva comparativa, cor-
Ossificação lntramembranosa relacionada a fatores culturais e climáticos, como o desen-
volvimento da agricultura, estresse ocupacional, migrações e
Ocorre no interior de uma membrana de natureza con- intercâmbio de povos.
juntiva tal como as que revestem o encéfalo de um embrião. Um passo crítico no registro de condições patológicas é
Em diversos locais da m embrana, células se diferenciam em o reconhecimento de anormalidades ósseas verdadeiras, em
osteoblastos e iniciam a deposição de matriz orgânica que, oposição a variações de indivíduos saudáveis. O registro de-
aos poucos, vai sendo calcificada. Os vários centros de ossi- verá, por essa razão, desenvolver um padrão da mo rfologia
ficação se unem por finas traves calcificadas, dando ao con- do osso normal - tanto imaturo como maduro - e reconhe-
junto um aspecto esponjoso. cer artefatos e alterações post mortem.
Entre as traves formam-se cavidades que são invadidas Traços comumente mal interpretados como patológicos
por capilares sanguíneos trazendo células indiferenciadas. incluem alterações metafisárias em indivíduos na fase de
Essas cavidades, uma vez ocupadas, darão origem à medula crescimento, depressões de Pacchio ni e impressões vascula-
óssea. Aos poucos o processo de ossificação se espalha para a res. É normal que metáfises juvenis apresentem porosidade
periferia, até que toda a peça membranosa sofra ossificação. e evidência de remodelamento, especialmente nos períodos
Os ossos chatos do crânio, da mandíbula e das escápulas são de crescimento rápido. Embora uma porosidade metafisá-
exemplos de ossos intramembranosos. ria extrema e a conseq uente exposição de osso trabecular
sejam consideradas patológicas, a maioria dos exemplos en-
Ossificação Endocondral a Cartilaginosa
contrados em esqueletos cai dentro dos limites da no rmali-
Ocorre na formação de ossos longos, à exceção das cla- dade. O aspecto interno da abóbada craniana de um adul-
vículas e dos ossos da coluna vertebral. Duas regiões sofre- to mais idoso mostra numerosas depressões circunscritas,
rão a ossificação: o cilindro longo, conhecido como diáfise, designadas depressões de Pacchioni ou aracnoides, as quais
e as extremidades dilatadas, que correspondem às epífises. são aspectos anatômicos normais. Essas irregularidades são
Em ambas as regiões, a deposição de tecido ósseo resultará formadas porquanto a tábua interna da abóbada craniana
na formação do osso. O crescimento da diáfise e das epífises se desenvo lve em acomodação com as estruturas cerebrais
54 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

adjacentes e seus tecidos circundantes. Depressões lineares Perda óssea Anormal


bilaterais refletem o caminho tom ado por um vaso sanguí-
Osteoporose ou perda óssea anormal, de modo focal,
neo superficial e representam mais uma variação normal
multifocal o u difuso, pode acom eter qualquer local do osso
d o que uma condição patológica. Similarmente, o fo râmen
e ter grau e extensão variáveis, estando frequentemente asso-
para uma veia vertebrobasilar, na face do rsal ou no centro
ciada com a aspereza trabecular. Muitas circunstâncias po-
do cor po vertebral, não deve ser confundido com condição
dem determinar o seu aparecimento e, consequentem ente,
anormal. Muitas vezes essas impressões vasculares são mal
não é patognomônica de qualquer agente. Pode ser resultan-
interpretadas com o marcas de corte ou evidência de alte-
te de hipertireoidismo, hiperadrenocorticalism o, desnutri-
r ações post mortem, com o mo rdedura de roedo res ou im-
ção generalizada, proporção ano rmal de fosfato de cálcio na
pressões de raízes vegetais 16 • 17 •
dieta, deficiência de vitamina c, osteomielite, artrite, imobi-
Uma variedade de agentes agressivos deixa sua impres-
lização de uma parte do corpo, perda de peso (emagrecimen-
são sobre os ossos po r alteração de sua estrutura. Essas
to) e idade ava nçada. A osteoporose não apresenta impor-
desordens são usualmente ca usadas po r: fratu ras, infecções,
tância clínica até que exista uma perda de 30% do conteúdo
distúrbios circulatórios, anemias, doenças endócrinas, m e-
mineral no osso. Em estágios avançados, isso pode levar a
tabólicas e nutricionais, displasias, neoplasias e outras lesões
adelgaçamento do osso cortical e fraturas po r compressão. A
o riginadas nas superfícies articulares. Quando em cresci-
condição é quatro vezes mais comum em mulheres em idade
m ento, o osso reage a essas desordens tanto pela deposição avançada que em hom ens. O crânio é particularmente sus-
com o pela reabsor ção de osso na área afetada. A identifi- cetível à osteoporose, e o local de ocorrência mais frequente
cação de uma alteração isolada no esqueleto requer uma
é uma po rção da placa orbitária do osso frontal adjacente à
observação m ais cuidadosa nos diferentes padrões de de-
glândula lacrimal. O colapso estrutural com o resultado d_a
posição ou de distribuição óssea em todo o espécime, uma perda óssea ocorre mais comumente ao nível da coluna espi-
vez que, por serem semelhantes em uma ou mais pato logias, nal, tanto com o consequência da osteoporose quanto como
aum enta o grau de dificuldade para a diagnose positiva e resultado de trauma ou da reabsorção focal secundária a
diferencial 14 • doença infecciosa.
A maioria das condições ósseas patológicas encontra das
em esqueletos são: anormalidades de forma e tamanho; per- Formação Óssea Anormal
da e fo rmação óssea anormais; hiperostose porótica; fratu-
ras; infecções e artrites 16 • 17 • A formação óssea anormal pode ser observada em altera-
ções proliferativas específicas dos corpos vertebrais como os
Anormalidades de Forma osteófitos (Fig. 5.2) e sindesmófitos; ser produto de remode-
lação, provocando uma reação esclerótica indicativa de fase
As ano rmalidades de fo rma podem ser observadas em de cicatrização o u um processo de doença crônica. Na doença
ossos longos com o resultado de fraturas consolidad as, de Paget, a fo rmação de matriz óssea anormal está associada a
em doenças de deficiência, como raquitismo e escorbuto, áreas de reabsorção óssea, com várias linhas de cimento e pa-
e em processos infecciosos crônicos. No crânio, o fec hamen- drão muito irregular, principalmente no crânio, onde a calota
to prematuro das suturas, cham ado de craniossinostose ou
tem espessura exager ada. Há substituição de osso normal por
cranioestenose, pode mudar de modo acentuado a fo rma do
tecido osteoide danificado (em favo de mel), pobremente mi-
crânio, na dependência das suturas envolvidas e da idade de
neralizado e amolecido. Sua etiologia é desconhecida, mas ra-
início d o seu aparecimento. Tipos específicos de craniossi-
ramente ocorre antes dos 40 anos de idade e é duas vezes m ais
nostose incluem: escafocefalia, trigonocefalia e plagiocefa-
frequente em homens. As regiões do corpo mais afetadas, em
lia. Na coluna espinal, sua curvatura habitual pode apresen-
probabilidade decrescente, são a bacia, o crânio, o fêmur, a
tar desvios anormais nos sentidos anterior, dito cifose, ou
coluna vertebral, a tíbia, o úmero e a escápula.
lateral, cham ado de escoliose. A anquilose constitui situação
Os ossos que sofrem essa transformação são comumente
patológica crônica que resulta em fu são intervertebral. Tais
alargados e, às vezes, tornam -se leves, amolecidos e porosos.
deformidades podem -se o riginar em situações congênitas
Com freq uência eles são descritos como tendo a consistência
o u adquiridas, em que ocorrem perda óssea anormal e ví-
de pão seco. As tábuas corticais (platôs) m ais externas são
cios de postu ra.
finas ou ausentes. Uma calvária transformada é tão porosa
que, se a calota craniana fo r preenchida com água, esta escoa
Anormalidades de Tamanho
com o se fosse por uma peneira. Em um estágio mais tardio,
Entre as alterações de tamanho, a hidrocefa lia é condição o osso começa a reminer alizar, e o fo rmato expandido pode
congênita rara. Caracteriza-se por um acúmulo excessivo de aparecer bem ossificado e, por fim, esclerótico.
líquido nos espaços meníngeos, o que leva à dilatação dos O padrão de destruição óssea na doença de Paget pode ser
ventrículos cerebrais, adelgaça o cérebro e provoca a separa- identificado em um único osso ou generalizado no esquele-
ção dos ossos cranianos em crianças. Acarreta um aumento to. Algumas vezes existe um padrão de mosaico, fo rmado por
anormal do crânio em relação à face. Pode ocorrer em outros linhas estreitas de cimento entre o osso original e os focos
mamíferos 18• do novo osso defeituoso. Existe um aumento acentuado na
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 55

anemia falcifo rme podem estar presentes, respectivamente,


em restos de indivíduos de herança m editerrânea ou negra.
Os tipos relacionados a déficits alimentares, infecções ou in-
festações em geral são encontrados em populações indígenas
ou em países de baixo desenvolvimento socioeconômico.

Fraturas
As fraturas serão estudadas no Capítulo 11. Sua presen-
ça em um esqueleto ajuda na identificação, d esde que haja
história de traumatismo com fratura do mesmo osso e em
época compatível com o estado do calo ósseo, se em forma-
ção inicial ou já antigo.

Infecções
Infecções que envolvem um osso são sempre graves. Po-
dem acometer primariamente o periósteo (periostite), o cór-
tex (osteíte) ou a medula óssea (mielite) . Osteomielite é a
agressão simultânea sobre ambos - m edula e córtex.
O osso, em vida, reage a essas infecções por d ois cami-
nhos. Pode ser removido por ação osteoclástica o u pode ser
depositado po r atividade osteoblástica. O m ais comum é que
Figura 5.2. Vértebra cervical de indivíduo adulto maduro, vista de ambas as atividad es ocorram no interio r da área infectada,
cima, apresentando osteofitose na união da face anterior com a direita criando uma estrutura recém-organizada. A área infectada,
do corpo vertebral. Caso do IMLAP-RJ: Guia 11 3, da 1o•DP, de 31/10/01. ger almente, terá osso rem ovido, criando sulcos, depressões,
canais oucloacas.Ao redo r dessas áreas, um novo osso pode-se
for mar. Irá apresentar-se primeiramente poroso e áspero, si-
circulação sanguínea para o osso doente que sobrecarrega a tuado sobre o osso cortical original, aparecendo com o uma
função cardíaca. Com o avanço da idade, o sarcoma osteo- fina camada de osso rendilhado. Com o passar do tempo, to-
gênico ocorre com frequência nessas áreas alteradas do osso.
davia, mais osso poderá ser depositado, e, então, aquele osso
As situações que incluem ossificação de tecidos conjun- sedimentado sob condições infecciosas torna-se m ais difícil
tivos, geralmente de origem traumática, são a miosite calci-
de distinguir. Uma vez que tod as as infecções desencadeiam
fi cante e a presença de osteófitos ou entesófitos. A presença
a mesma resposta no osso, a identificação do tipo específico
de uma cicatriz estrelada no osso é sinal patognomônico da da infecção - sem disponibilidade de tecido m ole para aná-
sífilis terciária 16 •
lise, igualmente - é feita por um exam e da distribuição e d o
padrão das lesões' 5.17.
Hiperostose Porótica
As infecções mais severas são: 1) osteomielite piogênica;
A hiperostose porótica ou cribra orbita/ia é car acterizada 2) tuberculose; 3) treponem atoses. A osteomielite piogênica é
por uma porosidade exacerbada da abóbada craniana e/ou usualmente a consequência da exposição do osso à contami-
das órbitas, sendo aceita como representativa de uma respos- nação bacteriana por um abscesso ou injúria. A infecção po-
ta anêmica do organismo, resultante da hipertrofia do tecido de-se propagar através do sistema circulatório par a outra re-
de matriz sanguínea no interior da abóbada craniana. O en- gião do corpo. O agente mais comum é o estafilococo hemo-
contro dessa porosidade nos constituintes ósseos cranianos lítico (Staphylococcus aureus), mas muitos microrganismos
citados sugere que o indivíduo fosse portador de algum tipo comuns podem produzir o m esm o efeito. Frequentem ente, a
de anemia quando em vida, critério que poderá auxiliar na osteomielite prejudica o su primento sanguíneo vascular, pro-
sua identificação. Tipicamente, a hiperostose porótica ocorre duzindo necrose da região afetada e destacamento de frag-
na superfície o rbitária do osso frontal ou adjacente às su- m entos de osso desvitalizado, conhecidos como sequestros.
turas lambdoides, sagital ou, ocasionalmente, coronal. Em A penetração repetida do córtex por agentes infeccio-
casos mais severos, regiões mais centrais dos ossos frontal, sos pode produzir cavitações que servem para promover a
parietais e occipital podem ser afetadas' 5 •16 . disper são da infecção, através da fo rmação de fís tulas com
As anemias podem ser originadas por traços genéticos, drenagem . As cartilagens epifisárias são muito resistentes
por deficiências nutricionais, especialmente na carência de à infecção bacteriana e, algumas vezes, servem para limitar
ferro em associação a doenças infecciosas, parasitoses e pa- a propagação da destruição óssea. Isso reduz amplam ente
tologias crônicas, ou por eritroblastose fetal, uma condição o acom etimento articular e detém o envolvimento ósseo.
determinada po r incompatibilidade do fator Rh entre mãe O utras vezes, a infecção torna-se aprisionada por fibrose e
e feto. Anemias hemolíticas herdadas como a talassemia e a reparo ósseo, para criar um abscesso localizado. O osso ao
56 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

redor do abscesso pode ser mais denso que o normal, tal- mento da cartilagem articular. Heine (1926), Ortner e Puts-
vez favorecendo o isolamento da lesão, e áreas de osso mais char (1981), referidos por Ubelaker 17 , afirmaram que o joelho
espesso (esclerótico) são prontamente vistas em ossos que é, usualmente, a articulação mais comprometida, seguido em
foram acometidos de osteomielite crónica. ordem de incidência pelo quadril, pelo ombro, pelo cotovelo
A tuberculose se espalha através do sistema circulatório e pelas articulações acromioclavicular e esternoclavicular.
para a medula óssea, onde a infecção crónica - caracteristi- São características típicas da osteoartrite, como doença
camente mais destrutiva e resistente que a osteomielite pio- degenerativa das articulações: a la biação marginal da super-
gênica - pode-se estabelecer. Usualmente, a infecção envolve fície articular (também chamada de esporão ósseo ou desen-
grandes áreas da cavidade medular, com necrose extensa, volvimento osteofítico), a porosidade da face articular e a
múltiplos seios e canais que penetram os tecidos moles de eburnação.
revestimento. A cartilagem epifisária não é tão resistente a A labiação constitui a formação de uma estrutura seme-
esse microrganismo, e deformidades incapacitantes acompa- lhante a um lábio, como ocorre ao nível da extremidade arti-
nham a infecção avançada. Quando a tuberculose acomete cular de um osso, por depressão de sua superfície de contato
a coluna espinal, produz fraturas de compressão (doença de e consequente desenvolvimento de hipercrescimento ósseo
Pott) e destruição dos discos intervertebrais. ao redor das margens da articulação.
Microrganismos pertencentes ao gênero Treponema cau- A eburnação é o polimento ósseo induzido pela abrasão
sam uma série de doenças, incluindo sífilis e bouba. A sífilis mecânica das superfícies articulares - decorrente do atrito -
congênita ataca fundamentalmente a junção da metáfise com associado à produção localizada de osso cortical, que ocorre
a epífise ou o periósteo. O Treponema pallidum pode destruir como consequência da degeneração da cartilagem.
a cartilagem epifisária e deixar um tecido granuloso nas su- Outras patologias menos frequentes também podem
perfícies diafisárias e entre o periósteo e o osso cortical. A deixar suas marcas nos ossos. Entre elas, podemos destacar:
osteocondrite e a periostite sifilíticas afetam todos os ossos, distúrbios circulatórios, doenças endócrinas, metabólicas e
embora as lesões do nariz pela destruição do vómer (nariz nutricionais, displasias e neoplasias.
em sela) e da tíbia (tíbia em sabre) sejam mais distintivas19 .
Nas formas adquiridas das treponematoses, além das le- Distúrbios Circulatórios
sões do periósteo, ocorrem os tumores moles - gomas - na Podem ser encontradas áreas de infarto ósseo, mais co-
cavidade medular, que podem estender-se pelo tecido celular mumente em mergulhadores, como complicação da doença
subcutâneo até atingir a pele. As gomas são lesões nodula- de descompressão. São áreas em que os osteócitos morrem
res granulo matosas com necrose central, de caráter benigno, por obstrução do fluxo sanguíneo durante a formação das
bastante variáveis em número e tamanho, que sobrevêm tan- bolhas. Mais tarde, essas áreas podem formar zonas de den-
to no estágio terciário da bouba como na sífilis tardia. sidade maior aos raios X pela deposição de cálcio nos focos
A sífilis adquirida, doença sexualmente transmissível, de necrose.
tem uma probabilidade maior de produzir osteomielite si-
filítica no crânio, na coluna vertebral e nos ossos longos, Doenças Endócrinas, Metabólicas e Nutricionais
particularmente na tíbia. A bouba é uma doença dos trópi-
O remodelamento e o crescimento ósseos são muito
cos, raramente encontrada fora da faixa de 60° do equador,
sensíveis a alterações da função endócrina. Um excesso da
e dissemina-se pela contaminação de um corte ou de uma
função do paratormónio ( comumente associado a hiper-
escoriação por espiroquetas a partir de uma lesão drenada
plasia ou neoplasia das glândulas paratireoides) produz um
de um indivíduo infectado. As moscas e o contato pessoal
progressivo adelgaçam ento e fibrose do osso, denominada
podem fornecer o vetor para a infecção.
osteíte fibrosa cística (doença de Von Recklinghausen). Con-
dições dessa natureza causam áreas focais onde osso espon-
Artrites
joso e cortical são substituídos po r cistos ou tecido fibroso
O termo artrite refere-se a uma inflamação das articula- (granulomas de células gigantes reparativas). O afinamento
ções, que pode exibir caráter agudo o u crónico, sendo identi- do córtex do osso pode resultar em arqueamento e fratura.
ficada uma multiplicidade de tipos: artrite aguda produzida Distúrbios da hipófise podem alterar a produção dos hor-
por trauma na articulação; artrite séptica; gotosa; reumática; mónios do crescimento. Na infância, um excesso do hormó-
reumatoide; degenerativa; espondilite anquilosante e osteo- nio do crescimento resulta em um aumento proporcional da
fitose, entre outras. Em alguns casos, o crescimento em volta estatura (gigantismo) devido tanto ao crescimento epifisário
da margem articular pode-se fundir com um componente quanto ao aposicional. Em um crescimento desencadeado na
ósseo adjacente, resultando em anquilose da junta. As desor- fase adulta ocorre estimulação no tecido conjuntivo, na car-
dens artríticas são diferenciadas com base na causa da infla- tilagem e no osso aposicional subperiósteo, causando alon-
mação, nas articulações afetadas e na natureza específica das gamento dos ossos do crânio e da face, do carpo e tarso, com
alterações destrutivas. um aumento progressivo das extremidades do corpo (acro -
Dessas, a artrite degenerativa (osteoartrite) ocorre com megalia). No crânio, há um espessamento (compactação) do
mais frequência e está associada aos processos de envelheci- toro supraorbital, palato, m andíbula e occipital'9 •
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 57

A deficiência de ho rmônio do crescimento na infâ ncia nosas e fechamento precoce das placas de crescimento. Os
produz o nanismo. O anão hipofisário tem uma proporcio- ossos que exibem um precursor membranoso não são afeta-
nalidade normal, mas um corpo pequeno. d os (face, crânio). Geralmente o resultado é um anão, com a
Anormalidades bioquímicas ou a ingestão inadequada de cabeça e o tronco de tam anho normal, por ém com br aços e
vitaminas C e D podem conduzir a uma deficiência na mi- pernas encurtados.
neralização óssea para manter o ritmo de crescimento com A osteopetrose (doença de Alpers-Schõnberg - ossos
a síntese de osso novo (recém -formado), e então produzem marmó reos) é uma condição hereditária caracterizada por
osso inadequadam ente mineralizado ou osso com córtex hipermineralização do córtex e estreitamento da medula, re-
anormalmente fino. O escorbuto resulta de uma ingesta sultando em osso quebradiço, que se fratura facilmente.
deficiente de ácid o ascórbico (vitamina C), essencial par a Displasia fibrosa é um erro na remodelação óssea que
a atividade osteoblástica normal. No crescimento de ossos produz áreas onde o osso reabsorvido é substituído por teci-
lo ngos, fraturas transversas irão comumente ocorrer próxi- do fibroso e osso malformado. Os focos mais comuns estão
mo da placa metafisária, onde o osso inadequadamente mi- no fêmur, na tíbia, no maxilar e no crânio. Lesões iniciais
ner alizado estará concentrado. Nos ossos de adultos, em que surgem com a substituição do estrom a local de tecido fibroso
o crescimento está completo, os efeitos do escorbuto serão por osso membranoso pobrem ente formado, sem estrutura
muito meno res, com fraturas comumente restr itas às extre- lamelar interna. Quando os ossos da face estão envolvidos,
midades das costelas. podem estar presentes distorções severas da órbita, do nariz
Raquitismo - ocasionado por ingesta ou produção inade- e do maxilar.
quadas de vitamina D - tem um maior efeito osteoporótico
penetrante sobre o esqueleto. Em crianças até 2 anos, a abó- Neoplasias
bada craniana pode desenvolver finas áreas nos ossos parietais
Os ossos, formados por vários tipos de tecidos, são sede
e no occipital. Nos ossos longos, o raquitismo pode ser carac-
possível de neoplasias originadas em células ósseas, cartilagi-
terizado por córtex fino e quebradiço e trabeculação espon-
nosas, fibroblásticas, vasculares e medulares. Em corpos esque-
josa esparsa, ou por ossos submineralizados, os quais exibem letizados, obviamente, as partes não calcificadas das neoplasias
uma cavidade medular estreitada e uma elasticidade intensi-
são perdidas durante as fases da putrefação. Por isso, os da-
ficada. O crescimento de ossos longos também pode ser mais
dos morfológicos utilizados pelos patologistas no diagnóstico
lento em jovens acometidos de raquitism o, particularmente
diferencial macro e microscópico ficam muito prejudicados.
no fêmur, e as extremidades metafisárias po dem estar alarga-
Contudo, havendo info rmação da presença de uma neoplasia
das e em fo rma de xícara (copo), segundo Ortner e Putschar
óssea em vida, é preciso fazer a busca no esqueleto, na mesma
(198 1) 15 • Em adultos, a deficiência de vitamina D cria um a
região comprom etida pelo tumor na pessoa desaparecida.
condição conhecida como osteom alacia, a qual - da m esm a Assim, neoplasias m alignas, invasivas e destrutivas deixa-
fo rma que no raquitismo - resulta em osso osteoporótico. Em
rão apenas falhas no osso comprom etido, uma vez que são
casos extremos, podem ocorrer fraturas e plasticidade do osso.
constituídas, em geral, po r tecidos moles, que desaparecem
na evolução do processo de putrefação. Mesmo o sarcoma
Displasias
osteogênico apresenta áreas extensas constituídas por teci-
A osteogênese imperfeita - transmitida por um gene au- dos de células polimorfas atípicas em meio a necrose, vasos
tossômico dominante (com expressão variável)- constitui-se sanguíneos e hemorragia. Já o mielom a múltiplo, tumor
em um defeito na síntese do colágeno. Como resultado, exis- maligno de células plasmáticas, que acomete as cavidades
te menos matriz entre os osteócitos, o que acarreta a produ- medulares dos ossos afetados, é prontamente reco nhecível
ção de osso cortical muito fino (delgado) e trabéculas ina- por deixar múltiplas e características lesões osteolíticas de
dequadas. Isso produz ossos fracos, pobremente formados e for mato ovalar, principalmente no crânio.
com tendência a fraturas. Então, o mais importante é examinar a cavidade medu-
Discondroplasia refere-se a um crescimento cartilagino- lar, ou as falhas na estrutura do osso onde estava o tecid o
so anormal. Pode ocorrer o crescimento de cartilagem na neoplásico. Geralmente, a superfície do osso é muito irre-
superfície externa, pro duzindo múltiplas exostoses cartilagi- gular. Mas a localização desses defeitos é extremamente va-
nosas, ou a incorporação de fragmentos da placa epifisária liosa porque se sabe da preferência de certas neoplasias por
no interior da massa cartilaginosa anormal, que pode calci- regiões específicas nos ossos, por exemplo, zona metafisária
fi car posteriormente. Elas também possuem uma tendência (osteossarcom a), epífises (condroblastom as) e diáfises (sar-
à malignização. coma de Ewing).
A acondroplasia, for ma mais comum de nanismo, é uma Em se tratando de neoplasias fo rmadas por osso mais
anormalidade na conversão da cartilagem em osso que afe- maduro, é possível encontrar o próprio tecido neo plásico,
ta, principalmente, as epífises dos ossos longos. Produz um a m as isso não é comum. Até o osteocondro ma, tumor benig-
redução acentuada e desproporcional de alguns ossos do no constituído por tecidos ósseo e cartilaginoso maduros,
corpo. Essa d oença é decorrente de um gene do minante que pode estar parcialmente d estruído, já que as cartilagens tam -
se caracteriza pela falha na proliferação de células cartilagi- bém são deterioradas pelo processo de esqueletização.
58 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

• rAFONOMIA

A Tafonomia, do grego taphos (=sepultar) e nomos (=leis),


está incluíd a no rol das atividades da moderna Paleontologia,
ciência que estuda o registro de vida no passado geológico,
através da prospecção e identificação de fósseis. Pode ser de-
finida como o est udo dos processos geológicos e biológicos
que influenciam ou contaminam materiais orgânicos - tais
como o osso - após a morte. Os arqueologistas reconhece-
ram a importância do entendimento dos processos tafonô-
micos na interpretação apropriada de modificações em ma-
teriais orgânicos humanos. Em geral, três categorias de variá-
veis podem ser identificadas como importantes nos estudos
tafonômicos: 1) fatores individuais e modo de vida, como
características físicas ou comportamentos de animais cujos
restos estão sob questão; 2) variações climáticas que afeta m Figura 5.3. Desgastes longitudinais em tíbia humana, paralelos ao
os despojos, ta is como o transporte de água e atividade de eixo diafisário, provocados por animais roedores.
predadores; 3) quando o objeto de análise é um ser humano,
devem-se adicionar as influências culturais e sociais, como o
preparo d o morto em práticas de sepultamento 15 · 17•20• Os processos tafonômicos relacionados às va riações das
Recentemente, a avaliação tafonômica tem crescido como condições atmosféricas, como temperatura, sol, chuvas, ven-
um componente importante e vital na análise antropológi- tos, umidade etc., representam a resposta do osso ao meio
ca forense. O contexto forense necessita, em particular, da ambiente imediato, auxiliando na compreensão e reconsti-
reconstru ção dos processos peri mortem e post mortem e da tuição do intervalo post mortem. Os diversos graus de desgas-
discriminação entre as modificações decorrentes de proces- te pelo tempo conferem progressivos padrões de rachadura
sos naturais e os traumas induzidos pelo homem. na superfície óssea e mudanças em sua textura. Embora nos
Após o evento morte, muitas transformações podem al- casos forenses esse intervalo seja muito mais curto do que no
terar a aparência de ossos e materiais orgânicos relacionados. contexto paleontológico, o co nhecimento das alterações am-
Existem fatores físicos, químicos, minerais e animais que, bientais pode ser hábil para desca rtar trauma peri mortem.
atuando isoladamente ou em conjunto, costumam modifi- Na estimativa do intervalo post mortem, o estudo de ar-
car os despojos, gerando confusão na interpretação da causa trópodes e de outros fatores relativos à fauna cadavérica as-
da morte. Entre os fatores que interferem no transporte e na sociados aos despojos, realizado por entomologistas, pode
consequente dispersão dos elementos esqueléticos estão in- contribuir para essa determinação. Existe uma certa predile-
cluídos a ação de animais, como pisadas, roedura, mastigação ção na aposição das larvas de insetos necrófagos nos orifícios
e digestão; o movimento das águas no solo e aspectos flu viais; naturais do corpo, como também em cavidades neoforma-
a força da gravidade; a queda de rochas em encostas; tempes- das, produzidas por trauma relacionado à morte, orientando
tades d e areia; estado atmosférico; diagênese; ondas de cho- o investigador forense. Todavia, sabe-se que a taxa de de-
que vulcânicas; sepultamento; ataque ácido de raízes; conge- composição é bastante variável entre as diferentes regiões
lamento e mineralização pelos componentes do terreno. geográficas e entre os microambien tes dentro de cada região.
Restos humanos ou de animais, quando expostos em Fatores que influenciam na velocidade da decomposição po-
locais abertos, exibem um padrão similar d e desarticula- dem ser: temperatura amb iente, quantidade de chuva, vestes,
ção e de dispersão produzidos por pisadelas e atividade de espécie de sepultamento, profundidade do enterramento,
carnívoros. Esse conhecimento pode ser usado no restabe- extensão da mordedura animal e desarticulação, dimensão
lecimento da cena do achado dos despojos e na interpreta- do trauma peri mortem, peso corporal e condições climáti-
ção de fragmentos desa parecidos. Além disso, as alterações cas em geral. Fenômenos cadavéricos conservativos naturais,
provocadas pelas pisadas, garras ou pelos dentes dos animais como a mumificação e a adipocera, são basicam ente decor-
são eventualmente perceptíveis e caracterizadas por múlti- rentes de climas áridos ou úmidos, respectiva mente. Já em
plas estriações finas, sulcos ou entalhes em forma de V e ou- climas tropicais, tem sido documentada esqueletização qua-
tras depressões maiores ou mesmo fraturas em espiral, que se completa em apenas 2 sema nas 17 •
em muito se assemelham àquelas produzidas por artefatos
humanos (Fig. 5.3 ). As vezes, inclusive sob análise micros- Aplicações na Antropologia Forense
cópica, é bastante difícil estabelecer se essas marcas foram
decorrentes de ação animal ou secundárias à utilização de Muitos dos princípios paleontológicos e arqueológicos
ferramentas d e corte ou objetos contundentes, induzidos têm utilidade direta na Antropologia Forense. Com relação
por trauma humano, distinção crítica na análise forense. à aplicação forense, interessam a estimativa do intervalo post
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 59

mortem (tempo desde a mo rte) e a diferenciação entre as al- e cols.20 documentam cinco estágios de alteração sequencial
terações tafonômicas e as traumáticas20• devido à varredura por canídeos: 1) sem envolvimento ósseo;
A avaliação tafonô mica de restos humanos difere daquela 2) dano no tórax ventral, com uma ou ambas as extremida-
de animais, não som ente por ca usa das diferenças estrutu- d es superiores removidas; 3) envolvimento da extremidade
rais entre ambos - que pode influenciar a resposta às fo rças mais inferior; 4) somente segmentos vertebrais permanecen-
tafonômicas -, mas especialmente porque no ser humano d o articulados; 5) total desarticulação.
normalmente está envolvido o tratamento post mortem do Obviamente, a ocorrência de um trauma prévio nos des-
indivíduo falecido. Então, com humanos, a interpretação do pojos e outros fatores po uco comuns podem influenciar a
intervalo post mortem inclui, além dos possíveis efeitos am - sequência de mudança.
bientais e físicos, o embalsamamento, a cremação e outros Pesquisa da Universidade do Tennesse em Knoxville de-
tipos de queimadura, sepultamento, fechamento em caixões monstrou que a gordura - ácidos graxos voláteis pro duzi-
e muitos outros fatores culturais. d os pela decomposição de partes moles - e ânions e cátions,
Na prática da Antropologia Forense, considerações ta- também derivados de partes moles, podem ser detectados
fonômicas têm sido utilizadas para a interpretação global no interior do solo em meio aos restos humanos. A medi-
de tod os os eventos que afetam os despojos entre a morte da desses fa tores em amostras controladas pode permitir
e a descoberta. Uma vez que a maioria dos antropologistas estimar, com acuidade, intervalos post mortem em algumas
forenses também é experiente em aspectos de Arqueologia, circunstâncias 21 •
eles tornam-se mais qualificados para tais averiguações. Em
muitos casos, a avaliação tafonô mica representa a m ais im- Diagnóstico Diferencial entre Alterações Tafonômicas e
po rtante contribuição feita por antropologistas. Isso é espe- Traumáticas
cialmente verdadeiro na interpretação de evidências ósseas Uma variedade de eventos peri mortem e processos post
decorrentes de tra umas. m ortem pode ser deduzida através do estudo da cor dos ossos,
dos detalhes de superfície e do formato dos mesmos. Crema-
Estimativa do Intervalo Post Mortem ção, escalpelamento e criação de amuletos a partir de despojos
Embora o estudo de artrópodes associados aos despojos ancestrais constituem alguns exemplos de muitas das condu-
e outros fatores possam contribuir para a estimativa do in- tas culturais que podem estar refletidas em amostras esquelé-
tervalo post mortem, usualmente tais interpretações em res- ticas antigas. Aspectos químicos, biológicos e físicos do am-
tos humanos amplamente esqueletizados não envolvem essa biente deposicional também deixam assinaturas diagnósticas
avaliação. Pesquisa recente e experiências têm documentado nos restos recu perados. Entre os mais comuns desses agentes
quão variável a taxa de decomposição pode ser. Alguns fa tores estão as condições erosivas do solo e roeduras por animais.
capazes de influenciar essas variações são: temperatura am- Tais mudanças podem revelar informação importante concer-
biente, quantidade de chuva, vestes, espécie de sepultamen- nente aos eventos peri mortem. Cadáveres expostos sobre ou
to, profundidade do enterra mento, extensão da mordedura sob o solo - isentos de técnicas para sepultamento, por exem-
animal e desarticulação, extensão do trauma peri m ortem, plo - mostram evidências da atividade de carnívoros ou inse-
peso corporal e condições ambientais gerais 10• tos, assim como mudanças na cor e na textura do osso2º· 22•23 •
O padrão das alterações post mortem varia regionalmente Algumas vezes é difícil distinguir mudanças post m ortem
e entre os microambientes dentro de cada região geográfica. daquelas que ocorreram antes da morte. Depressões ovais
Galloway e cols. (1989) documentaram evaporação rápida e que resultam da ação de insetos e acidificação do solo têm
sido frequentemente confundidas com os efeitos de d oenças
extensiva mumificação no clima seco do Sudeste do Arizo na.
Congelam ento e descongelamento, assim com o injúria m e- que produzem reabsorção óssea anormal.
Será abordada a seguir uma variedade de meios pelos
cânica, podem influenciar no processo. A for mação de adi-
quais os ossos podem ser alterados a partir da m orte, com
pocera em climas úmidos pode conduzir a uma excepcio nal
ênfase sobre as mudanças m ais comumente observadas em
preservação por longo tempo.
materiais norte-americanos. Essa apresentação descreve mu-
O padrão geral de desarticulação e desgaste ósseo do-
danças típicas na cor, na textura da superfície e no aspecto,
cumentad o em estudos experimentais, que servem de base
correlacionando os estados alterados com fa tores causais es-
par a os interesses paleontológicos, algumas vezes é aplicado
pecíficos, tais com o calor, exposição à luz solar e m ordedura
igualmente a h um anos. De fato, Bielenstein (1990) dem ons-
de animais.
trou que os estágios de Behrensmeyer (1978) relativos à se-
quência de desgaste ósseo se equivalem o u são muito simila-
res aos d os modernos casos fo renses 16 •20 • Tipos de Alteração
Animais diferentes geram padrões distintos de m arcas de
dentes em ossos humanos. A quantidade de atividade carní-
Cor
vora varia consideravelmente devido às circunstâncias que Ossos frescos (não tratados) exibem uma cor de m arfim.
abrigam os despojos ao acesso do animal e à densidade de Uma variedade de agentes, abra ngendo objetos colocados
população humana na área. Com restos humanos, Haglund junto ao corpo, rituais mortuários e o meio onde se fez o
60 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

sepultamento, pode ca usar mudanças na sua cor. Exposição O osso muitas vezes muda de cor em resposta à presença
a calor (carbo nização), quer acidental, quer intencional, ou de bactérias, fungos, vegetais e minerais do solo que estão
como parte de um procedimento de enterro (cremação), presentes no ambiente. A maioria desses agentes irá escu-
causa mudanças sistemáticas de cor que dão informação so- recer o osso, conferindo tonalidades marrom-avermelhada,
bre a fonte do calor e sua intensidade. A temperatura pode esverdeada, cinza ou enegrecida. Em contraste, a exposição
ser estimada pelo fato de que o osso queimado a temperatu- aos efeitos alvejantes da luz solar ou o contato prolongado
ras relativamente baixas (200 a 300°C) assume uma condição com a água do mar poderão levar o osso a assumir uma cor
acastanhada ou preta, com aspecto "esfumaçado", enquanto calcária, extrabranca.
em temperaturas mais elevadas o osso torna-se cinza-azula- Algumas condições específicas, tais como a espécie de
do ou branco calcinado ( 800ºC) 15•16• madeira utilizada na confecção do caixão, o uso de deter-
A padronização das mudanças de cor induzidas pelo au- minados metais para lacrar a urna funerária, a existência de
m ento de temperatura pode também dar informações sobre restaurações dentárias no cadáver, à base de amálgama ou
a condição dos cadáveres no momento da incineração. Áreas ouro, e o encontro de corpos estranhos no interior do corpo
dos ossos protegidas pelas partes moles costumam resistir - como próteses, órteses ou projéteis de arma de fogo-, cos-
mais às altas temperaturas; por isso, a coloração difere da tumam impregnar o esqueleto com manchas características
dos segmentos expostos, por ser sugestiva de temperaturas que necessitam de análise criteriosa, feita por pessoal treina-
mais baixas (Figs. 5.4A e B e 5.5). do, iniciando-se pelo exame do local2 1•24•
Objetos de metal enterrados com os despojos podem
produzir manchas nos ossos. O mais comum em materiais Mudanças de Superfície
inumados é a observação de uma coloração avermelhada
própria do contato com o cobre 24 • A textura da superfície do osso pode ser alterada por ca-
lor, raízes de plantas, insetos, vermes, características do se-
dimento do solo, animais escavadores e atividade humana.
Objetivando a apreciação completa da natureza das altera-
ções de superfície, o observador é encorajado a usar lentes
de aumento ou microscópio de baixo poder de resolução sob
luz brilhante.
Quando os ossos são expostos a calo r suficiente para
induzir calcinação, sua superfície externa tende a estalar e
apresentar fendas. Se o contingente ósseo está incluído em
um componente orgânico significativo e é queimado, as su-
perfícies externas passam a apresentar fendas transversais
e longitudinais (Fig. 5.6). Tal evidência de queimadura de
ossos frescos contrasta com aqueles queimados sem a ma-
téria orgânica. O padrão resultante da queimadura de osso
seco apresenta tipicamente m enor intensidade na modi-
ficação da superfície, fundamentalmente com rachaduras

Figura 5.4. A. Lesão craniana post mortem por ação térmica, interes- Figura 5.5. Carbonização intensa dos ossos do membro inferior, no-
sando os ossos parietal e temporal esquerdos. Caso do IMLAP-RJ: Guia tando-se maior destruição nos da perna, que se apresentam calcinados
04, de 2002 da Delegacia de Homicídios-RJ. B. Detalhe da figura ante- e de cores cinza-azulada e esbranquiçada. Ofêmur está mais preservado,
rior, onde se observam traços radiais de fratura, a partir da área carbo- embora igualmente fraturado e tem cor pardo-amarelada com áreas
nizada, bem como exposição da camada esponjosa da díploe. enegrecidas. Caso do IMLAP-RJ: Guia 129, da 1Oª DP, de 09/12/02.
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 61

rasas, paralelas ao eixo principal, isto é, o osso irá lascar corte. Marcas recentes terão cor mais clara, enquanto proce-
longitudinalmente 16• dimentos mais antigos são evidenciados por estarem man-
Raízes de plantas em contato com os ossos podem pro- chados, sujos ou modificados pelas deposições ambientais e,
duzir padrões dendríticos semelhantes às impressões deva- consequentemente, equiparam-se ao restante do osso 22•25•
sos sanguíneos. Essas trilhas de raiz podem tornar-se desco-
loridas por meio da descalcificação ácida. Esses sulcos não Modificações de Forma
devem ser mal interpretados como evidência de patologia ou
Diversos fatores peri mortem e post mortem podem cau-
atividades culturais.
sar mudanças na forma do osso. A pressão do solo pode in-
Os insetos, vermes e outros animais da microfauna da
duzir deformação, especialmente em crânios jovens, em que
cova podem produzir depressões ósseas ovais que mimeti-
pequenas compressões podem alterar o resultado das medi-
zam a reabsorção óssea anormal. Nos casos de lesão em vida,
ções dos diâmetros cefálicos. Do mesmo modo, ossos frescos
é possível ver focos de reação óssea.
queimados a temperaturas elevadas com frequência tornam-
O osso exposto no terreno será desgastado pelos fatores
atmosféricos, de acordo com uma sequência definida. Ini- se arqueados e podem encolher.
cia com pequenas rachaduras superficiais e termina com Algumas das causas de fratura post mortem são: desidra-
verdadeiras lascaduras 16 •2º. Tais alterações não sofrem in- tação, acúmulo de sal, carbonização, pressão exercida pelo
fluências locais. solo, ação de animais carniceiros e esmagamento por pisa-
Marcas de dentes, tanto de carnívoros como de herbívo- das. É importante distingui-las das fraturas produzidas por
ros (basicamente roedores ), são comumente observadas sobre seres humanos, à época da morte. Uma vez que fraturas em
restos humanos. Os carnívoros atacam, tipicamente, as epífises espiral podem resultar tanto de traumas induzidos pelo ho-
de ossos longos, onde podem ser vistos sulcos, marcas de furos mem como da atividade de animais, elas são indicativas de
e pequenas depressões cuneiformes, que fazem o diagnóstico. eventos ante mortem ou peri mortem. Quando a fratura ocor-
As costelas também estão sujeitas à ação dos carnívoros. re muito tempo após a morte, em tecidos com baixo teor de
Marcas de corte podem fornecer indício de escalpela- colágeno, tipicamente têm as bordas quadradas, com ângu-
mento ou preparação de cadáveres durante o curso de um los perpendiculares à superfície óssea, enquanto fraturas peri
ritual mortuário. As produzidas durante descarnamento e mortem tendem a formar ângulos oblíquos.
desmembramento com frequência agrupam-se ao redor de Outros sinais de atividade humana podem ser encontra-
regiões anatômicas específicas, tais como inserção de ten- dos como lesões características, produzidas por instrumen-
dões e ligamentos. O tipo de ferramenta usada para remover tos diversos, tais como: martelos, machados, enxadas, dentes
a carne pode ser deduzido por meio do exame de uma secção de serra, facas e projéteis de arma de fogo, tanto antes como
da área de corte. Secções transversais em forma de V estão depois da morte (Figs. 5.7 e 5.8).
associadas a lâminas de pedra ou facas de metal. Ferramen- Os ossos foram utilizados por um longo período de tem-
tas do tipo goiva usualmente produzem contornos amplos po, seja como elementos inalterados ou em formas escul-
e rasos. Cortes e arranhões produzidos durante a escavação pidas, como ornamentos ou ferramentas. Crânios, dentes e
podem ser distinguidos dos eventos peri mortem ou imedia- ossos longos eram os espécimes preferidos para decoração
tamente post mortem pela inspeção da cor do osso na base do através de pinturas e esculturas, ou então modificados para

GUiA 1D-'f1!-DP
oB I o 'J. fJ. f./ ºº
Figura 5.6. Fragmento de osso longo carbonizado junto com as partes
Figura 5. 7. Afundamento circular da calota craniana com fragmentos
separados por traços radiais e eventuais prolongamentos ao osso
moles, onde se notam fendas longitudinais e transversais em sua super- vizinho, localizado no parietal direito e causado por martelada. Caso do
fície. Caso do IMLAP-RJ: Guia 070, da 41 ª DP, de 08/07/04. IMLAP-RJ: Guia 087, da 37ª DP, de 11 /04/04.
62 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

)
~
/
Figura 5.8. Fratura linear, horizontal, com bordas voltadas para dentro,
situada no terço posterior do osso parietal esquerdo, estendendo-se
ao occipital, produzida por instrumento cortocontundente. Caso do
IMLAP-RJ: Guia 03 da DH-RJ/ 2002.

criar máscaras, pingentes ou outras formas de adorno. Uten-


sílios do tipo furadores, flautas, castiçais, pratos e xícaras
também estiveram em moda, feitos a partir de ossos huma-
nos. Fratura post mortem, próxima ao forâmen magno ou
sobre ambos os lados da abóbada craniana - acompanhada
por sinais de desgaste pelo tempo-, pode servir como evi-
dência de que um crânio foi colocado sobre uma estaca ou
usado como um suporte de prateleira.
Figura 5. 9. Tíbia humana, colocada para comparação, ao lado de osso
animal enviado ao IMLAP-RJ em março de 1987, como se fosse do
• DIAGNÓSTICO DA ESPÉCIE: HUMANO OU deputado Rubens Paiva. Opar da esquerda está visto por diante e o da
ANIMAL direita, pela face posterior.

A identificação isolada de fragmentos ósseos pode ser


uma tarefa difícil, mesmo para um especialista. Em algu- Em geral, os ossos longos da maioria das outras espécies
mas situações, restos humanos são encontrados junto aos de de animais adultos - com tamanho comparável à humana -
animais e, às vezes, mostram-se tão alterados pela exposição têm arquitetura óssea diferente e, usualmente, apresentam
ambiental, prática de sepultamento ou exposição a tempe- aspecto externo mais grosseiro, com camadas corticais mais
raturas elevadas, que os tra ços anatómicos característicos da compactas (Fig. 5.9). Todavia, o critério da comparação pelo
nossa espécie ficam pouco distinguíveis. tamanho entre ossos humanos e de animais não deve ser
Das amostras forenses americanas submetidas a exame, levado em consideração caso se trate de esqueleto humano
cerca de 10 a 15% não são humanas17• Em nosso meio, não imaturo ou juvenil'º·' 8•
encontramos análise estatística a respeito. Frequentemente, Em resumo, se o osso não é humano, o u não parece ser, o
são enviados aos Institutos de Medicina Legal ossos de ani- primeiro ponto a ser considerado nas amostras animais é o
mais domésticos, tais como cães, gatos, aves e também de seu tamanho. A seguir, deve-se sempre ter atenção com res-
bovinos, suínos e caprinos. Além disso, podem estar mistu- peito ao grau de crescimento e desenvolvimento ósseos, atra-
rados a objetos diversos, a maioria representada por pedaços vés do estudo das metáfises, para avaliar a idade do espécime.
de pedra, madeira, vidro, plástico etc. Logo, o primeiro pro- Quando os restos se encontram extremamente fra gm en-
blema a ser resolvido quando chega uma "ossada" é a dife- tados, ou quando os tra ços normais sofreram alterações
renciação entre ossos humanos e de animais. significativas, como observado em certas doenças, intempé-
A base técnica para o reconhecimento de ossos humanos ries climáticas ou procedimentos cirúrgicos, o diagnóstico
é o conhecimento detalhado das particularidades anatómi- só poderá ser realizado pelo aspecto microscópico do osso
cas de nosso esqueleto. Também é conveniente conhecer me- cortical.
lhor a estrutura macro e microscópica dos ossos das espécies Em humanos, os osteons, unidade histológica do osso
mais comuns de animais, com o objetivo de estabelecer pa- cortical, acham-se espalhados, dispersos, com um certo espa-
râmetros comparativos. çamento no interior do osso lamelar circunferencial, o qual
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 63

exibe um aspecto com disposição em camadas. Em muitos 1) o esqueleto se encontre completo e em bom estado de
outros animais, os osteons tendem a se alinhar em fileiras li- conservação;
mitadas por bandas ou em estruturas de formato retangular, 2) o indivíduo seja adulto;
chamadas de osso plexifo rme. Embora o encontro de um pa- 3) a variabilidade morfo métrica intragrupal da popula-
drão plexiforme possa afastar a possibilidade de ser humano, ção a que pertence o espécim e seja conhecida.
a grande variação entre as diversas espécies, inclusive entre As diferenças sexuais começam a se desenvolver no es-
os ossos de um mesmo animal, faz com que a dispersão de queleto antes mesm o do nascim ento. A largura da chanfra-
osteons seja inconclusiva 12•26• dura isquiática da pelve, a qual constitui um dos traços mais
A existência de diferentes padrões ósseos entre humanos distintivos em adultos, aumenta mais rapidamente em mu-
e animais tem que ser bem estabelecida. O osso plexiforme é lheres durante o crescimento feta117•
definido pelo seu modo de o rganização regular, retangular e Por todo o período da infância e durante a adolescência,
ho rizontal, sendo comumente visto em m amíferos. Tod avia, o dimorfism o sexual vai-se tornando mais marcad o com o
raramente pode ser observad o em ossos human os, especial- passar do tempo, e os métodos de reconhecimento do sexo a
mente em crian ças. O utros tipos de modelagem óssea são partir de restos esqueléticos adquirem m aior precisão. O fa to
mais difíceis para o estabelecimento da distinção entre hu- de que as mulheres crescem mais rapidamente e amadure-
manos e animais. cem m ais precocemente do que o hom em faz com que seja
Os osteons secundários ou sistemas de Havers consti- necessário considerar a idade, quando se está estimando sexo
tuem pequenos pacotes de osso lamelar que circundam um em indivíduos jovens.
canal de Havers, estando limitados por uma linha de cimen - Para adultos, o pesquisador deve considerar a morfolo-
to. Os osteons secundários substituem o osso primário e po- gia do esqueleto como um todo, porém valorizando m ais os
dem aparecer isolados, dispersos ou densamente agrupados, detalhes da pelve. As estimativas de sexo baseadas no exame
porém há uma tendência para a distr ibuição ao acaso. Em- cuidadoso de uma pelve bem conservada costumam ter pre-
bor a a m aio ria d os vertebrados não exiba um padrão de osso cisão de aproximadamente 100%. Se a pelve está fragmen-
haversiano denso, como nos seres humanos, estudos compa- tada ou desaparecida, outros critérios devem ser utilizados,
rativos revelam que nem sempre é possível uma identificação mas os resultados serão menos confiáveis. Se somente o crâ-
positiva pelo encontro desse padrão. nio estiver presente em um contexto populacional desconhe-
Um a o rganização linear d os sistemas haversianos em cido ou se o indivíduo é imaturo, o gr au de confiança pode
ossos de animais, em que os osteo ns se alinham em fileiras, oscilar entre 80 e 90%. A faixa etária entre os 15 e os 18 anos
tem sido relatada; entretanto, não foi quantificada. A pre- constitui um limite a partir do qual a estimativa do sexo tem
sença ou ausência de faixa s de osteons deverá ser registrada. maio r exatidão 1•5•17 •
Quando esses tipos de bandas estiverem presentes nas amos- Usualmente, o grau de robustez é empregado na quali-
tras, as espécies poderão ser diferenciadas. ficação do aspecto sexual diferenciador. Essa característica
Nos estudos realizados em po rcos, ovelhas e cães, as sec- pode estar relacionada ao tam anho do crânio, ao desenvol-
ções ósseas humanas e não humanas têm exibido várias di- vimento das inserções musculares, a vários índices que ex-
ferenças microscó picas. A maioria dos ossos de animais foi pressam a relação da largura/diâmetro com o comprimento,
prontam ente distinguida d os ossos humanos pela presença à espessura cortical, ao peso ósseo (absoluto ou relativo ao
difundida de osso plexifo rme. A falta de fo rmação de osteo ns tamanho ) ou a uma combinação de quaisquer desses fatores.
nas am ostras animais pode ser parcialmente atribuída à
idade jovem dos espécimes. Os animais mais velhos precisam Subadultos: Crianças e Jovens
ser pesquisados em estudos ulteriores par a analisar possíveis
padrões de bandeam ento 26 . O sexo de subadultos deve ser estimado pela compa-
A capacidade de identificar diferenças histológicas sutis ração do estágio de for mação e erupção dos dentes com o
entre ossos humanos e não humanos pode ser de grande im- estágio de maturação do resto do esqueleto, excetu ando-se
portân cia nas análises fo renses, particularmente nos casos o crânio (esqueleto pós-craniano) . O método está basead o
em que somente pequenos fragmentos ósseos estão disponí- no fato de que os esqueletos pós-cranianos amadurecem
veis. Em alguns casos, ossos de animais podem ser facilmente m ais lentamente em m eninos do que em meninas, enquan-
diferenciados pela presença de osso plexiforme. Se um frag- to o percentual de calcificação dos dentes é q uase o m esm o.
mento não apresentar esse indicador confiável, to davia, ou- Logo, o sexo pode ser dedu zido pela comparação entre o
tros fa tores como padrões de bandeamento deverão ser úteis desenvolvimento dentário e o do esqu eleto pós-cr aniano.
par a a sua identificação. Como ocorre um envelhecim ento independente da denti-
ção em relação ao esqueleto pós-craniano, usam -se os pa-
drões estabelecidos par a m asculinos ao se examinar um
• DETERMINAÇÃO DO SEXO subadulto desconhecido. Se as duas estimativas concordam ,
o esqueleto é provavelmente masculino. Por outro lad o, se
O diagnóstico correto do sexo pode ser realizado em os resultados divergem largam ente, o indivíduo desconheci-
100% dos casos, desde que: d o é provavelmente feminino.
64 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Em razão da fragilidade dos esqueletos muito jovens, bica masculina é grossa, curta e mais triangular. Finalmente,
geralmente encontrados incompletos, há necessidade de se como resultado da reabsorção da borda medial do forâmen
estabelecerem critérios para a determinação do sexo por obturador - mais do que por um alongamento do púbis -,
ossos isolados. As investigações de H. Schutkowsky (1993), sua forma triangular é mais comum nas mulheres de idade.
citado por Cuenca 1, realizadas em um cemitério infantil na Os limites descritos a seguir são prontamente perceptí-
Inglaterra, permitiram a definição de uma série de caracte- veis e suficientes para a identificação preliminar 1•16• 17 •27 •
rísticas da mandíbula e do ilíaco que possibilitam uma preci- Tamanho: a pelve feminina é mais larga, ainda que a
são no diagnóstico do sexo em cerca de 70 a 90% dos casos. pelve masculina possa ser mais pesada e mais robusta.
Entretanto, a maioria dos antropologistas reconhece a difi- Chanfradura isquiática ou grande incisura isquiática
culdade no diagnóstico do sexo de um esqueleto jovem. (Figs. 5.lOA e B e 5.11): está localizada na junção en-
tre o ílio (porção plana, horizontal e achatada, mais
superior da pelve) e o ísquio (porção mais baixa da
Adultos
pelve). Em femininos, a chanfradura é larga, ampla,
A partir da idade de aproximadamente 18 anos, as dife- grande, usualmente formando um ângulo de cerca
renças sexuais são bem definidas no esqueleto, e as distin- de 60°. Em masculinos, é tipicamente mais estreita e
ções podem, frequentemente, ser feitas com confiança. As forma um ângulo de cerca de 30°. Todavia, sua forma
diferenças mais significativas são de dois tipos: 1) tamanho; não é um bom indicador do sexo, tanto como a con-
2) forma relacionada à função. formação da região subpúbica, devido a uma série de
Em geral, os ossos de homens são mais longos, mais ro- fatores, incluindo a tendência de a incisura ser mais
bustos, e exibem aspectos mais ásperos do que os femini- estreita em mulheres portadoras de osteomalacia, se-
nos. Também existem diferenças estruturais que são espe- melhantemente aos homens. O ilíaco deverá ser se-
cialmente pronunciadas na pelve, refletindo os trabalhos de gurado em posição vertical, com a junção sacroilíaca
parto em mulheres. Abordaremos, sucessivamente, a pelve, o direcionada para cima e a sínfise para baixo.
crânio, os ossos longos e as equações para cálculo a partir de Área auricular: é a porção medial do ílio, que se arti-
medições, e alterações devidas à parturição. cula com o sacro. Tende a ser mais plana em homens
que em mulheres.
Pelve Sulco pré-auricular: é um entalhe entre a área auricu-
lar e a chanfradura isquiática. Quase sempre ocorre em
A pelve fornece os dados mais abundantes e fidedignos femininos, sendo rara em masculinos. Se presente em
para a estimativa do sexo. De acordo com o dimorfismo se- homens, é mais raso do que em mulheres. A Figura
xual, as mulheres possuem um corpo de tamanho menor que 5.12 mostra um sulco pré-auricular. Ele está localizado
o dos homens e, consequentemente, um púbis e to da a pelve na borda inferior da superfície auricular do ílio, esten-
geralmente mais delicados e mais leves; todavia, é observada dendo-se na direção da incisura isquiática. Quando
uma extensão maior das dimensões horizontais, sendo verti- ausente, sua superfície é lisa ou discretamente áspera,
calmente mais curta. Diferenças entre esqueletos masculinos relacionada à fixação dos ligamentos e músculos.
e femininos são bem acentuadas e têm sido confirmadas por Acetábulo: o acetábulo é uma depressão arredondada
considerável número de pesquisadores. na face lateral do osso ilíaco, onde se encaixa a cabeça
As diferenças sexuais ficam m ais evidentes na porção do fêmur. É mais ampla em homens do que em mu-
anterior da bacia, visto que as alterações ocorrem principal- lheres. Encontra-se situado em uma disposição mais
m ente na região mediana do púbis. Na porção posterior, a anteriorizada em indivíduos femininos.
metamo rfose na articulação sacroilíaca afeta ambos os ossos Púbis: o púbis é mais alongado em mulheres, e o
(sacro e ílio ), e as mudanças são mais variáveis. O cresci- ângulo subpúbico é mais aberto. Tais características
m ento adicional da superfície medial da sínfise pubiana am- guardam relação com o processo de parturição. Na
plia o canal pélvico das mulheres, configurando um ângulo região subpúbica, devem ser observadas três estrutu-
subpúbico largo e arredondado. Em geral, depois da fusão ras em particular: a marcação do arco ventral, a con-
do ramo isquiopubiano, usualmente feita aos 7 a 8 anos de cavidade subpúbica e a crista do ramo isquiopubiano
idade, não são apreciados outros centros de crescimento na (Figs. 5.13 e 5.14).
porção anterior da bacia. Ao nível da região acetabular do O arco ventral (ou crista do arco ventral) é uma discreta
púbis, que igualmente inicia seu processo de fusão por vol- elevação linear da margem do osso sobre a superfície ven-
ta da mesma idade, também se manifestam poucos sinais tral do púbis, que se inicia próximo ao centro e se estende
de aumento. Como consequência dessas mudanças, o arco para baixo e para dentro. Sua margem mais inferior está se-
subpúbico feminino é aberto e arredondado (nos homens parada da face sinfisiana por alguns milímetros de osso. Em
forma um ângulo agudo, m ais fechado ), e a sínfise é projeta- homens, essa elevação está tipicamente ausente; uma linha
da e quadrangular, com uma pequena área triangular de osso pode ocasionalmente ser observada - em correspondência
adicional em sua margem anteroinferior e com um evidente ao sítio do arco em mulheres-, e a sua margem inferior nun-
achatamento de seu ramo anterior. Por sua vez, a sínfise pú- ca se encontra separada da face sinfisiana, como acontece em
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 65

Figura 5.10. A. Bacia masculina: reparar a projeção das espinhas Figura 5.12. Superfície auricular de osso ilíaco direito, observando-se
ciáticas, diminuindo o estreito médio, e do sacro, reduzindo o estreito o sulco pré-auricular à esquerda. Coleção de Anatomia do Professor
inferior. Caso do IMLAP-RJ, Guia 021, da 37ª DP, de 13/02/74. B. Bacia Toledo, Universidade Gama Filho.
feminina: observar os diâmetros avantajados dos estreitos superior,
médio e inferior, bem como a abertura do ângulo retropubiano. Coleção
de Anatomia do Professor Toledo, Universidade Gama Filho.

Figura 5.13. Montagem de ilíacos feminino (esquerda) e masculino


Figura 5.11. Ilíacos masculino à esquerda e feminino à direita, nos (direita). Ofeminino tem púbis quadrangular e ângulo subpúbico amplo; o
quais há grande diferença na largura e na profundidade da grande masculino tem púbis triangular e ângulo subpúbico bem menor. A borda
chanfradura ciática. Coleção de Anatomia do Professor Toledo, Universi- do ramo isquiopubiano é côncava no feminino e convexa no masculino.
dade Gama Filho. Coleção de Anatomia do Professor Toledo, Universidade Gama Filho.
66 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Não há dúvida de que os ossos do quadril representam


os indicadores mais confiáveis para a determinação do sexo
no esqueleto humano. Em seu estudo, dá-se maior ênfase aos
atributos da região subpúbica, à presença ou ausência de sul-
cos pré-auriculares e à forma da grande incisura isquiática.
A pelve adulta é o melhor indicador do sexo. Na adoles-
cência, a bacia feminina se alarga como um meio de prepa-
ração para o parto, modificando a forma e o tamanho de
muitas de suas partes, convertendo a cintura pélvica em um
indicador fidedigno ao término dessa metamorfose. Radio -
grafias sugerem que esse período se estende aproximada-
mente por 18 meses e finaliza aos 15 anos de idade.

Articulação Sacroilíaca
l sca n e Derried, citados por Cuenca 1, desenvolveram um
método visual para a determinação sexual na articulação sa-
croilíaca que correlaciona a metade posterior do osso íliaco
e sua articulação com o sacro. As diferenças sexuais são ana-
lisadas em três estruturas dessa articulação e, de acordo com
os autores, apresentam a seguinte dicotomia diferencial:
1) sulco pré-auricular: nos indivíduos masculinos, é
muito raro. Nas mulheres, é profundo, largo, e englo-
ba uma grande extensão da borda auricular. Esse sul-
co pode desaparecer com a idade, quando a elevação
auricular colapsa;
2) espaço pós-auricular: nos homens é estreito; eventual-
Figura 5.14. Face articular do púbis e do ramo isquiopubiano (femi- mente, pode estar presente uma superfície articular
nino à esquerda e masculino à direita). Notar uma crista ao longo do adicional localizada na parte superior da tuberosidade
ramo feminino, que é delgado; no masculino, a superfície é plana e larga. ilíaca, que tem uma forma ondulada. Nas mulheres, o
Coleção de Anatomia do Professor Toledo, Universidade Gama Filho. espaço é muito grande; os dois ossos n ão têm contato
mútuo, exceto na superfície articular (Fig. 5.12);
3) tuberosidade ilíaca: no homem, é observada uma es-
femininos. Esse traço deve ser observado posicionando -se o trutura ondulada. Nas mulheres, é m ais variável, mas
osso com o púbis o rientado com sua face ventral virada dire- n ão se inclui a forma ondulada; geralmente é cortante
tamente para o observador. ou pode estar ausente. Se ocorrer esse último fenó-
A concavidade subpúbica é uma depressão na borda me- meno, manifesta-se uma gra nde cavidade e a tubero -
dial do ramo isquiopubiano, logo abaixo da sínfise. Em fe- sidade ilíaca se estende ao lon go da crista.
mininos, a borda inferior do ramo mostra uma concavidade
larga e evidente, enquanto em masculinos ela está usualmen- Sacro
te ausente ou tende a ser convexa. Essa observação deve ser É outro osso d e particular interesse para o diagnóstico do
feita com o osso sendo visto por sua face dorsal (Fig. 5.13). sexo em razão da sua situação posterior na cintura pélvica.
A crista do ramo isquiopubiano é a superfície medial É também o setor exclusivo da coluna vertebral a apresentar
d o ramo isquiopubiano imediatamente abaixo da sínfise, dimorfismo sexual. Durante a adolescência, quando se fu -
que forma uma elevação linear e estreita em mulheres. Essa sionam sua s partes laterais com o corpo, é o único sítio que
estrutura é larga e plana nos homens. A porção medial do incrementa a largura pélvica posterior, e o que alarga o sacro,
ramo isquiopubiano é u sualmente plana em homens. Como por sua vez, são as suas superfícies laterais ou aladas.
o grau de variação é elevado, esse traço é menos útil para a O sacro masculino é mais longo e mais estreito que o
estimativa do sexo do que o arco ventral ou a concavidade feminino, além de ter, às vezes, um sexto segmento, o que
subpúbica (Fig. 5. 14). jamais ocorre no da mulher. Fazendo-se a inspeção de sua
De acordo com Phenice, citado por Buikstra 16 e Ube- base, é possível ob servar que o diâmetro transverso da pri-
laker17, o arco ventral é o melhor indicador, e a crista do ramo meira vértebra é maior no homem, com relação às asas do
isquiopubian o é o índice de m en or confiabilidade. Essas três osso, d o que na mulher. Nesta, o diâm etro ocupa uma exten-
características são suficientemente distintivas para permitir são proporcionalmente m enor, conforme visto nas Figuras
a identificação correta em cerca de 96% dos espécimes m o- 5. 15A e B. Por isso, alguns autores desenvolveram índices
dernos examinados, sendo mais evidentes no sexo feminino. de proporcionalidade que discriminam bem os dois sexos
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 67

processos mastoides maiores, cristas supraorbitárias mais


salientes e marcas de inserção muscular mais exuber antes e
m ais ásperas, especialmente sobre o osso occipital. Embo-
ra as diferenças sexuais na morfologia craniana se diversifi-
quem ou se alterem pouco entre as populações, um antropo-
logista físico experiente deve ser consultado. Um especialista
pode identificar o sexo po r meio do exame do crânio com
uma precisão de 80 a 90%. Kalmey e Rathburn ( 1996), refe-
ridos por Ubelaker 17, forneceram um m étodo empregando
somente a porção petrosa do osso temporal.
Apesar de os homens apresentarem crânios de dimen-
sões maiores e de aspecto mais robusto do que as mulheres,
a determinação do sexo baseada nos caracteres morfológicos
cranianos é uma tarefa desafiadora. A estimativa do sexo pela
m orfologia do crânio é viável em alguns grupos, enquanto
para outros, não.

Dimorfismo Sexual do Crânio


Aparentemente, as mudanças mais significativas no crâ-
nio restringem -se aos rapazes no período da adolescência
tardia, enquanto as m eninas mantêm o aspecto juvenil. A
face masculina torna-se alo ngada, os arcos superciliares (in-
cluindo os seios frontais) aumentam, e o mento fica mais
proeminente e quadrado. Ao m esm o tempo em que se am-
plia a espessura dos arcos superciliares, diminui a altura or-
bitária, sua borda superio r torna-se mais encorpada e a órbi-
ta em geral adquire uma forma quadrangular.A chanfradura
supraorbital fica m ais profunda e pode desembocar em um
Figura 5.15. A. Sacro feminino visto de cima. Observar que o diâme- forâ men. Essas alterações conduzem também a modificações
tro transverso do corpo da primeira vértebra é um pouco maior do que na raiz e na fosseta nasal, levando a uma queda abrupta na li-
o da asa sacral. B. Sacro masculino visto de cima. Notar a proporção
nha que une o frontal aos ossos nasais, no násion, com proe-
bem maior do diâmetro transverso do corpo da primeira vértebra em
relação à asa sacral. minência da glabela.
Embora existam descrições sobre tabelas com medições
de diversos segmentos e acidentes ósseos do crânio e da face
para avaliação do dimorfismo sexual e do padrão racial d os
(Stewart, 1968; Kimura, 1982, citados por Knigh t28 ) . Ambos espécimes esqueléticos estudados, há outros atributos mais
são calculados por uma fração em que o denominado r é a simples relacionados ao tam anho, à fo rma e à robustez d o
largura da base e o numerador, o produto de 100, multipli- crânio que devem ser considerados em ordem, com a fi-
cado pela largura de uma das asas (Kimura) ou do corpo de nalidade de desenvolver-se um critério para a estimativa
Sl (Stewart)1 • do sexo a partir da m orfologia cr aniana. A m aioria d os
auto res dá ênfase a cinco aspectos mo rfológicos: a proe-
Índice de Kimura minência da glabela; a agudeza da m argem su praorbital; a
Raça existência de crista nucal (ou robustez da linha da nu ca); o
Sexo Nagroldes Japonesas Caucasoldes tam anho do processo mastoide e a projeção da eminência
mentoniana 16 •17•
Masculino 65,8 +/- 1O,1 76,2 +/- 10,9 66,7 +/- 15,3
Feminino 79,7 +/- 12,0 92,2 +/- 10,0 86,4 +/- 11 ,4 Proemi nência da Glabela
largura da asa x 100
fndice de Kimura: Observando-se o crânio de lado, o contorno do osso
largura da base
frontal é liso e reto nas mulheres, com pouca ou nenhuma
projeção óssea da linha média. Nos hom ens, há uma proe-
minência evidente da glabela para fo ra da linha média su-
Crânio
praorbital, conferindo uma inclinação ao osso frontal e fo r-
A estimativa do sexo feita por meio do crânio não é tão m ando uma projeção arredondada em forma de colina, com
precisa como aquela baseada na pelve, mas deve ser usada frequência associada a rebordas orbitais bem desenvolvidas
na ausência de dados pélvicos. Em geral, homens exibem (Figs. 5.16A e B).
68 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Figura 5.17. Vista de perfil posterior do crânio, onde sobressai crista


nucal em forma de gancho. Coleção de Anatomia do Professor Toledo,
Universidade Gama Filho.

Figura 5.16. A. Perfil de crânio feminino, no qual se notam fronte reta,


margens supraorbitárias pouco proeminentes e interrupção da linha
zigomática bem antes do conduto auditivo. Coleção de Anatomia do
Professor Toledo, Universidade Gama Filho. B. Perfil de crânio masculino,
no qual se observam acentuada inclinação da fronte, grande proeminên-
cia da glabela e das arcadas supraorbitárias, apófise mastoide volumosa
e linha zigomática ultrapassando o conduto auditivo. Caso do IMLAP-RJ:
Guia 113, da 1Oª- DP, de 31/10/01.

Margem Supraorbital
Por meio da palpação da margem superior da órbita até a
parte lateral externa do forâme n su praorbital, notam-se uma Figura 5.18. Visão posterior de uma crista nucal muito acentuada.
Caso do IMLAP-RJ: Guia 11 3, da 10ª- DP, de 31/10/01.
espessura menor e bordas cortantes nas mulheres, enquanto
nos homens a margem é mais espessa e romba.
gomá tico do osso temporal. A variável de maior importância
Crista da Nuca
na marcação desse traço é o volume do processo mastoide,
Visualiza-se o perfil do occipital e palpa-se a superfície e não propriamente o seu tamanho. Um processo mastoi-
do osso ao nível das linhas de inserção muscular posterior; de muito pequeno, que se projeta apenas a uma distância
nas mulheres, a superfície externa do occipital é lisa, com mí- mínima para baixo da margem inferior do meato acústico
nima projeção óssea visível quando observada lateralmente; externo e da ranhura digástrica, é comum em mulheres; já
nos homens, há rugosidade na su perfície, a protuberância é um processo mastoide maciço, com comprimento e largura
mais marcada, podendo definir uma forte crista na nuca, às muito maiores que o meato acústico externo, deve ser assina-
vezes em for ma de gancho (Figs. 5. 17 e 5.18). lado como masculino (Fig. 5.16B).

Processo Mastoide Eminência Mentoniana


Deve-se comparar o seu tamanho com as estruturas que Segurando-se a mandíbula com os dedos polegares sobre
o circundam, como o meato auditivo externo e o processo zi- o mento e movimentando-os em direção às bordas laterais,
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 69

partir d e uma série de mensurações específicas. Sua utilização


é válida em crânios fragmentados que tenham conservado essa
parte intacta e se não existirem outras fontes de informação.
Em um estudo realizad o por Teixeira (citado por Cuen-
ca1) em crânios brasileiros, foi en contrado que a área de su -
perfície dos indivíduos m asculinos alcançou uma cifra igual
ou superior a 963 mm 2 ; n os femininos, igual ou inferior a
805 mm2 • Vitória e Galvão ( 1996) analisaram os diâmetros
sagital e transversal d o buraco occipital de 11 4 crânios co-
nhecidos e concluíram que h á dimorfismo sexual; mas o ín-
dice de acertos no diagnóstico de cada indivíduo d eixo u a
d esejar. O melhor dado discriminante encontrado foi o diâ-
m etro sagital, m as com pou ca eficiência: 53,58% nas mulhe-
res e 65,52% n os ho mens29 •

Ossos Longos
As diferen ças sexuais no esqueleto apendicular estão b em
d ocumentadas, embora sejam menos consistentes do que
aquelas sobre a pelve e o crânio. Apesar de os ossos m ascu-
linos tenderem a ser m aiores e m ais ásperos, a precisão da
identificação sexual é reduzida, d evido a uma justaposição
entre as séries de masculinos e femininos em uma m esm a
população e pela variação entre populações diferentes.
No entanto, as medições d o diâmetro máximo da cabeça
d o úmero e do fêmur são especialmente vantajosas na esti-
mativa d o sexo 27•28•30.
Figura 5.19. Visão superior de mandíbulas feminina acima e mascu- De acordo com dad os da literatura, po demos construir a
lina abaixo. O contorno mentoniano é curvo na mulher e poligonal no Tabela 5. 1 par a determinação d o sexo pelo diâm etro vertical
homem. Caso do IMLAP-RJ referente à Guia 01 7, da 1sa DP, de 19/02/04. d a cabeça do fêmur e d o úmero. Corresponde a um plan o
perpendicular ao colo do osso.
O estudo de Pear son, citad o por Knight28, foi feito com
observam-se pouca projeção óssea circun dante e um fo rma- ingleses do século XVI I e, por isso, deve ser usado com cau -
to arred ondado n as mulheres; nos h omen s, há uma projeção tela, pois parece que a população teve aumento d o porte in-
maior e um fo rmato quadrangular (Fig. 5.1 9). dividual d esd e então. O estudo de Galvão foi feito em 102
esqueletos de um cemitério de Salvado r (BA), sendo 52 mas-
Determinação do Sexo a partir do Buraco Occipital
culinos e 50 femininos. Su a taxa de erro foi de 4,88% para as
A base do crânio, especialmente a porção da região occipi- mulheres e de 5,77% para os h omens30.
tal compreen dida pelo fo râmen e côndilos occipitais, constitui O diâmet ro m áximo d a cabeça do fêmur, úmero e rádio
uma área diferenciadora para o diagnóstico do padrão racial é nitidamente bom indicador do sexo em adultos, qu ando
e dimorfismo sexual (H olland, 1986, citado por Cu enca1), a ele se ach a for a de uma zon a de coincid ência 10 . A inclinação

Tabela 5.1. Determinação do sexo a partir do diâmetro vertical da cabeça do fêmur e do úmero (mm)
OSio 9 =9 ? = tt

Fêmur
Pearson* < 41 ,5 41 ,5-43,5 43,5-44,5 44,5-45,5 > 45,5
Galvãot < 42,8 42,8 > 42,8
Maltby < 37 < 43 43-46 > 46 > 56
úmero
Dwight 42,67 48,76
Galvão 39,05 45,46
' Citado por Knight" .
tFêmur direito.
70 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

que o eixo longitudinal do fêmur faz com a vertical também ria pertence. Para a estimativa da idade, deve-se considerar
serve como diferencial. O feminino é mais inclinado que o um conjunto de características morfológicas do esqueleto
masculino. que apresentam mudanças ao longo da vida. Essas alterações
A estimativa do sexo pelos metatarsos é importante em si- não acontecem simultaneamente e no mesmo grau nos dife-
tuações forenses, uma vez que costumam estar bem preserva- rentes ossos e articulações.
dos, sendo frequentemente recuperados do interior de m eias Desde o nascimento até a adolescência, pode-se diagnos-
e sapatos, os quais fornecem proteção contra as intempéries ticar a idade com boa aproximação por meio da observação
climáticas e animais carniceiros e são facilmente recobrados da forma e do grau de metamorfose dos centros de ossifica-
se os restos estão espalhados. Além disso, a natureza robusta ção, pela formação e erupção dentária, pela progressão do
dos metatarsos faz com que eles se tornem úteis em contextos fechamento metafisário e, também, pelo comprimento dos
bioarqueológicos porque geralmente permanecem intactos31• ossos longos.
A partir da puberdade, devem ser feitos a análise da bacia,
Parturição através das particularidades morfológicas da sínfise pubiana
Em virtude da importância dada à estimativa de fecun- e da superfície auricular da articulação sacroilíaca, o exame
didade em estudos forenses e paleodemográficos, não é de macroscópico das extremidades das costelas em sua articula-
surpreender que várias tentativas tenham sido feita s para ção condrocostal, o fechamento das suturas cranianas e o
documentar os efeitos do parto sobre os ossos. A determina- grau de desgaste dentário.
ção do número de partos pelo estudo da pelve feminina é de O estudo microscópico da idade, denominado também
relevante valor nos processos de identificação utilizados pela análise histomorfométrica mediante a contagem de osteons
Antropologia Forense. em cortes finos de osso, é um tanto mais complicado e exibe
As alterações são mais evidentes ao redor da sínfise, onde uma série de dificuldades, entre as quais se impõem a des-
a gravidez força a fixação dos músculos e tendões da pare- truição dos ossos longos para a extração dos cortes e, igual-
de abdominal central, onde também, durante o trabalho de mente, a falta de equipamento e de pessoal treinado. Embora
parto, os ligamentos arqueado e interpúbico são estirados e possa apresentar esses inconvenientes, é de grande utilidade
rompidos. Cistos (bolsas) e nós de fibrocartilagem seguem-se quando os ossos estão muito fragmentados, tornando difícil
às roturas e pequenas hemo rragias que ocorrem sob os liga- estimar a idade macroscopicamente.
m entos, especialmente sobre a superfície m ais interna, sepa-
rada do canal do parto somente pelas paredes da bexiga. So-
Em Jovens
bre a face anterior da sínfise púbica, todavia, desenvolvem-se
exostoses não diferentes daquelas vistas em artrite de esque- A estimativa da idade de morte de um esqueleto imatu-
letos mais idosos de ambos os sexos. Abaixo do tubérculo ro consiste na tentativa de estabelecer a idade fisiológica do
púbico, começa a se desenvolver, após um ou do is nascimen- esqueleto e então correlacioná-la com a idade cronológica. A
tos, uma pequena fossa chamada de espiral' 7• idade fisiológica de um esqueleto jovem deve ser obtida atra-
De acordo com Ubelaker 17, dados e opiniões adicionais vés de um ou mais dos seguintes sistemas: aparecimento e
foram fornecidos por Stewart ( 1970-1972) ,Nemeskéri (1972), união das epífises, tamanho ósseo, perda de dentes decíduos,
Ullrich (1975), Bergfelder e Herrmann (1978) e Holt (1978). erupção dos dentes permanentes e calcificação dentária.
Já foram descritas as seguintes alterações: afundamento na Idealmente, todos esses sistemas devem ser consultados para
margem ventral do púbis, alterações na parte superior da uma avaliação global da idade.
margem dorsal do púbis, depressões associadas com o sulco O desenvolvimento dos dentes, o comprimento dos ossos
pré-auricular do ilíaco e entalhes sobre a margem auricular longos e a união das epífises são os principais critérios para
do sacro. a determinação da idade em subadultos. O desenvolvimento
Mas Suchey e cols. (1979), referidos por Ubelaker 17, en- dentário fornece os resultados mais precisos, especialmente
contraram po uca correlação entre o número de gestações a entre o nascimento e os 10 anos; todavia, todos os dadoses-
termo e a extensão do entalhamento dorsal do púbis. Nota- queléticos devem ser empregados'·32•
ram que algumas mulheres nulíparas tinham afundamento
de médio a grande, enquanto outras, com várias gestações Desenvolvimento Dentário
a termo, careciam de mudanças ósseas. As alterações au-
m entavam com a idade ao morrerem, independentemente A formação do dente (calcificação) e a sua emergência
do número de gestações; entretanto, tornavam-nas um forte (erupção) pela gengiva constituem os indicadores mais pre-
indicador do sexo feminino. cisos de idade cronológica em subadultos. O desenvolvimen-
to dentário é fortemente controlado por fatores genéticos,
com influência mínima do m eio ambiente. Embora doenças
• DETERMINAÇÃO DA IDADE específicas - como o hipopituitarismo e a sífilis - possam
modificar a taxa de desenvolvimento dentário, a maioria das
Estabelecidos o diagnóstico da espécie humana e o sexo doenças afeta pouco os dentes como um to do, ainda que ou-
do indivíduo, o próximo passo é determinar a que faixa etá- tras partes do esqueleto possam estar grandemente alteradas.
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 71

Tem sido demonstrado que desordens endócrinas e outros Tamanho ósseo - Comprimento de Ossos Longos
problemas de desenvolvimento atingem os dentes somente
Na ausência de dentição, a determinação da idade em
em 1/4, se comparados com o resto do esqueleto.
crianças e adolescentes pode ser feita utilizando-se os com-
A literatura crescente sobre calcificação dentária tem
primentos dos ossos longos. Esse método não é muito exato,
fornecido dados consideráveis para a sua utilização na es- uma vez que as taxas de crescimento variam amplamente
timativa da idade, tanto para a dentição primária (decídua ) entre populações e, inclusive, entre indivíduos de um mes-
como para os dentes permanentes, mostrando, inclusive, que mo grupo social. Contudo, a sua avaliação aproximada é
as diferenças sexuais aumentam com a idade e que são maio- especialmente utilizada para crianças muito jovens ou em
res no canino mandibular. Pesquisas indicam que a erupção material fetal, quando a calcificação incompleta faz com que
dental é mais afetada por influência nutricional, doença, va- os dentes sejam facilmente perdidos ou quebrados. Padrões
riação populacional e perda prematura de dentes, do que a para a estimativa do comprimento fetal e, subsequentemen-
formação do dente propriamente dita (Tabela 5.2). te, da idade de ossos individuais foram desenvolvidos por
Estudos mais detalhados deverão ser realizados por Fazekas e Kósa (1978) (Tabela 5.3). Há equações de regres-
odontologistas forenses. são para calcular diretamente a idade da morte pelo com-

Tabela 5.2. Sequência e época da erupção dentária (Fonte: Mckern TW, sem data, citado por Steele e Bramblett, 1988)14
Dentei Decídlos
Idade
7,5M•1 1 Ano 2Anos 3Anos EnpllO(Mem)
lnc. Cent. lnf. + + + + 6a8
lnc. Cent. Sup. + + + 9 a 12
lnc. Lat. Sup. + + + 12 a 14
lnc. Lat. lnf. + + 14 a 15
2
1 PM Sup. + + 15 a 16
12 PM lnf. + + 15 a 16
Can. (Sup. e lnf.) + + 20 a 24
22 PM Sup. + 30 a 32
22 PM lnf. + 30 a 32

DentaPs••nte•
Meninos (Anos) Manias (Anos)
12 Molar lnf. 4,6 a 7,7 4,3 a 7,5
12Molar Sup. 4,8 a 7,9 4,6 a 7,7
lnc. Cent. lnf. 5,0 a 8,0 5,6 a 8,7
lnc. Cent. Sup. 5,8 a 9,0 5,6 a 8,7
lnc. Lat. lnf. 5,9 a 9,4 5,6 a 9,0
lnc. Lat. Sup. 6,7 a 10,5 6,2 a 10,1
1 PM Sup.
2 7,5 a 12,2 7,1a12,9
Canino lnf. 8,3 a 13,2 7,3 a 12,3
12 PM lnf. 7,9 a 13,7 7,3 a 13,0
2 PM Sup.
2 8, 1 a 14,2 7,8 a 13,9
2 PM lnf.
2 8,1a14,7 7,5 a 14,1
Canino Sup. 9,0 a 14,3 8,2 a 13,6
22 Molar lnf. 9,4 a 14,7 8,9 a 14,3
22 Molar Sup. 9,9 a 15,3 9,5 a 14,9
32 Molar lnf. 16,5 a 27,0 16,5 a 27,0
32 Molar Sup. 16,5 a 27,0 16,5 a 27,0
72 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Tabela 5.3. Correlação entre a média do comprimento do


corpo fetal e a idade em meses lunares (Fazekas e Kósa , 1978
- referidos por Ubelaker, 1999)17
M6dl1 do Comprl•nto Idade em MI•
do Corpo (cm) Llure1
9,5 3
12,3 3Y2
17,3 4
22,0 4Y2
25,6 5
27,3 5Y2
30,6 6
32,6 6Y2
35,4 7
37,5 7Y2
40,0 8
42,4 8Y2
45,6 9
48,0 9Y2
51,5 10

primento do fêmur, da tíbia, do úmero, do rádio e da ulna 17 . Figura 5.20. Aspectos radiográficos das epífises dos ossos longos,
Tabelas baseadas em exame de ultrassonografia podem ser com soldadura em andamento. Idade aproximada: se feminino, 12 anos;
vistas para comparação no Capítulo 29. se masculino, 15 anos. Caso nº 63.481 do Serviço de Radiologia do
Em que pesem as alegações de Fazekas e Kósa de que o IMLAP-RJ.
erro raramente excede a metade de um mês lunar, suas equa-
ções parecem consideravelmente menos precisas quando
aplicadas a amostras oriundas de populações diferentes e com as diáfises, terminando o crescimento longitudinal do
para contextos arqueológicos e forenses 32•
osso e o consequente aumento da estatura. Uma vez que
Uma série de publicações está disponível para possibilitar
ocorrem em tempos distintos sobre os diferentes ossos, es-
a estimativa da idade pelo tamanho dos ossos em crianças
sas uniões são bastante úteis para se estimar a idade, espe-
mais velhas, com dados derivados principalmente de radio-
cialmente entre 10 e 20 anos, quando os dados sobre denti-
grafias, algumas vezes conflitantes quanto ao grau de dimor-
ção e comprimento dos ossos lo ngos apresentam um valor
fismo sexual. limitado.
A união das epífises é fácil de ser observada porque a su-
Aparecimento dos Centros de Ossificação e União das
perfície diafisária separada é caracteristicamente áspera e de
Epífises
aspecto irregular.
O aparecimento dos centros de ossificação tem sido am- Os registros existentes sobre a união das epífises são os
plamente estudado por diversos autores, em idades que va- mais utilizados em Antropologia Forense, especialmente na
riam desde o período fetal até acima dos 15 anos. Todavia, os adolescência (Fig. 5.20 ). Existem na literatura padrões dis-
dados relacionados ao surgimento desses centros de ossifica- ponibilizados para a clavícula, mão, punho e joelho. Quase
ção são raramente empregados na ciência forense, uma vez todos os trabalhos se referem a uma acentuada diferença se-
que são extremamente frágeis, facilmente quebráveis e, com xual na época da união epifisária, ocorrendo mais precoce-
frequência, nem chegam a ser recuperados. Mesmo quando mente no sexo feminino em cerca de 1 ou 2 anos em relação
esses elementos estão presentes, a maioria dos investigadores ao sexo masculino. Deve-se notar, ainda, que a união começa
prefere estimar a idade a partir do desenvolvimento dentário mais cedo em mulheres que em homens e que em ambos os
ou pelo comprimento dos ossos lo ngos. sexos existe uma variação de 2 a 6 anos entre os indivíduos.
Até a adolescência, as hastes dos ossos longos (diáfises) A junção aparece mais precocemente no tornozelo e quadril,
estão separadas de suas cabeças ósseas (epífises) em ambas seguida pelo joelho e cotovelo e, finalmente, pelo ombro e
as extremidades. Próximo à puberdade, as epífises se unem punho (Tabela 5.4).
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 73

Tabela 5.4. Idade do início da união em diversos ossos (Ubelaker, 1999)17

Eplllle
Clavícula Extremidade medial
Hom••
18 a 22
.......
ldldl do Início da Unllo

17 a 21
Escápula Acrômio 14 a 22 13 a 20
úmero Cabeça 14 a 21 14 a 20
Grande tuberosidade 2a4 2a4
Tróclea 11 a 15 9 a 13
Epicôndilo lateral 11 a 17 10 a 14
Epicôndilo medial 15 a 18 13 a 15
Rádio Cabeça 14 a 19 13 a 16
Extremidade distal 16 a 20 16 a 19
Ulna Extremidade distal 18 a 20 16 a 19
flio Crista ilíaca 17 a 20 17 a 19
fsquio Púbis 7a9 7a9
Tuberosidade isquiática 17 a 22 16 a 20
Fêmur Cabeça 15 a 18 13 a 17
Trocânter maior 16 a 18 13 a 17
Trocânter menor 15 a 17 13 a 17
Extremidade distal 14 a 19 14 a 17
Tíbia Extremidade proximal 15 a 19 14 a 17
Extremidade distal 14 a 18 14 a 16
Fíbula Extremidade proximal 14 a 20 14 a 18
Extremidade distal 14 a 18 13 a 16

Então, se possível, o sexo deve ser determinado antes da São considerados os melhores indicadores: o úmero proxi-
idade por causa da união epifisária. Se o sexo for desconhe- mal, o epicôndilo medial do úmero, o rádio distal, a cabeça
cido, a estimativa deverá empregar ambos os padrões mas- do fêmur, o fêmur distal, a crista ilíaca, a clavícula medial, os
culino e feminino, com a inclusão de uma margem apro- 3/4 da junção sacra e as articulações sacrais laterais. Pode-se
priada de erro. citar como exemplo a extremidade proximal do osso fêmur,
Vários problemas devem ser considerados quando da - que exibe três estágios no processo de soldadura.
dos sobre a união epifisária são aplicados a casos forenses. Em resumo, quatro fatores devem ser considerados quan-
Comparando-se os dados de vários pesquisadores, têm sido do se for utilizar a união epifisária para o estabelecimento da
reveladas diferenças de 2 o u mais anos para a maio ria das idade: 1) o estágio exato da união de cada epífise; 2) o sexo
grandes epífises, indicando uma variação considerável na do indivíduo; 3) o limite de variação quanto às épocas de
época do fechamento metafisário no interio r de populações união; 4) as diferenças possíveis entre um exame grosseiro e
distintas. Stewart, referido por Ubelaker 17 , também observou os métodos radiográficos 1• 17•32 •
que a inspeção da união, grosso modo, geralmente produzes-
timativas ligeiramente mais elevadas do que a avaliação ra - Em Adultos
diográfica, porque em muitos locais podem persistir linhas
radiológicas que mimetizam uma união incompleta. Próximo à idade de 20 anos, a maio ria dos dentes está
A demonstração de que normalmente existe um lapso completamente formada e erupcionada, a maioria das epí-
temporal entre o início e o término do fechamento faz com fises está unida, e o crescimento longitudinal do osso está
que seja enfatizada a importância da definição do estágio terminado. Consequentemente, outros critérios devem ser
exato da união de cada epífise, sendo mais apropriado que o empregados para se estimar a idade em adultos. Do is tipos
uso de uma simples pontuação de "fechado" ou "aberto''. O de métodos são utilizados: macroscópicos e microscópicos.
mesmo estudo também mostra que as diversas epífises não Os macroscó picos são mais rápidos e não envolvem destrui-
apresentam um valor uniforme para a estimativa da idade. ção dos espécimes. Os microscópicos requerem um tempo
74 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

maio r, equipamento e experiência, necessitando de alguma


d estruição, por ém dão resultados m ais precisos.
As principais alterações m acroscópicas progressivas são
a metamo rfose da sínfise pubiana; as alterações na superfície
auricular do ílio; a mo dificação da extremidade anterior das
costelas na junção condrocostal; o fechamento e apagamen-
to das suturas no crânio; o exame da extremidade esternal
das costelas; alterações degenerativas na coluna, articulações
e crânio; reabsorção de osso espo njoso e perda dos dentes.
Vários elementos esqueléticos que se fusionam mais tardia-
mente, como as epífi ses esternais da clavícula, a crista ilíaca
e a sincondrose esfenobasilar, são igualmente úteis para a
distinção entre adultos jovens e indivíduos mais velhos. Os
limites de confiabilidade são diferentes para cada método na
determinação da idade.

A Pelve
O ilíaco ou osso inominado, pela denominação inglesa,
é composto por três ossos separados: o ílio, situado em sua
parte su perior; o ísquio, posteroinferior o u do rsal, e o púbis,
anterior ou ventral. Esses três elementos primários da bacia
se fusionam ao nível do acetábulo, em torno dos 13 anos de
idade nas meninas e dos 14 anos em meninos (Fig. 5.21). A
união final do ísquio com o púbis, no ân gulo posteroinferior
d o for âmen obturad or, e do ílio e ísquio - na chanfradura
ciática - realiza-se próximo aos 17 anos. A epífise ilíaca ou
lábio da crista ilíaca, centro secundário de ossificação locali-
zado em sua porção externa, apa rece em to rno dos 12 anos,
em meninas, e dos 13 anos, nos meninos. O início de sua
obliteração se faz aproximadamente aos 15 anos e se comple-
ta perto dos 20 anos de idade (Figs. 5.22 e 5.23) .
A pelve é um excelente foco para a estimativa da idade,
por alguns mo tivos: 1) a fusão dos centros está relacionada
Figura 5.21. Radiografia da bacia de adolescente. Observa-se a não
com a idade de adulto jovem; 2) a sínfise púbica se relacio- união das peças correspondentes ao ílio, ísquio e púbis (cartilagem em
na com a maturidade alcançada na terceira, quarta e quinta V). Idade provável: se feminino,< 13; se masculino, < 14. Caso 112 63.481
décadas de vida dos indivíduos. Além disso, esses períodos do Serviço de Radiologia do IMLAP-RJ.
correspo ndem , aproximadamente, às mudanças em outras
regiões do corpo: 1) com a união das epífises dos ossos do
cotovelo e, possivelmente, a obliteração da sutura esfenoba- sulcos, m argem d orsal, plataform a do rsal, rampa ventral,
silar; 2 ) com o fechamento m etafisário da mão, do ombro,
nódulos ossificados, limites das bordas e extremidades. A
d o joelho e da terminação esternal da clavícula; 3 ) está tam-
Figura 5.24 ilustra a posição correta para a observação des-
bém correlacionada, ainda que em menor grau, com o fecha- ses atributos.
m ento das suturas cr anianas.
Em adultos jovens, essa área apresenta-se muito áspera,
com cristas e sulcos profundos. À medida que os sulcos vão
Sínfise Púbica sendo gradualmente preenchidos para criar uma superfície
Um dos melho res critérios post m ortem par a a avalia- plana, fo rma-se uma elevação sobre a su perfície mais ven-
ção da idade em restos humanos de adultos é a observação tral. Depois que a crista está completa e a su perfície lisa ou
das mudanças mo rfológicas progressivas que ocorrem na plana, uma borda de osso é fabricada ao longo da circun-
face sinfisiana d o osso púbis, isto é, a superfície na qual um fer ência m ais externa da face. Finalmente, a face sinfisiana
púbis se articula com o o utro. Para a aplicação dos m o- começa a se deteriorar.
delos utilizados nessa técnica de aferição da idade, deve-se T. W. Todd (1920) estudou uma coleção de esqueletos de
atentar para a o rientação adequada d o osso púbis em rela- hom ens brancos com idades conhecidas e conseguiu identi-
ção ao observad or e também estar suficientem ente treina- ficar dez estágios entre as idades de 18 a 50 anos. Posterior-
d o para estabelecer o reconhecimento de certos caracteres mente, em 192 1, ele relatou que as m esm as alterações ger ais
m orfológicos fundam entais. São eles: sistemas de estrias e car acterizavam homens negros e mulheres negras e brancas,
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 75

Figura 5.23. Osso ilíaco de indivíduo jovem no qual se visualiza o ponto


de ossificação da crista ilíaca, parcialmente fundido com o corpo do osso.
Coleção de Anatomia do Professor Toledo, Universidade Gama Filho.

Figura 5.22. Radiografia da bacia de adolescente. Nota-se que o ponto


de ossificação da crista ilíaca não está soldado. Idade provável: se
feminino, entre 15 e 19 anos; se masculino, entre 16 e 20 anos. Caso
nQ63.787 do Serviço de Radiologia do IMLAP-RJ.

Figura 5.24. Posição ideal para examinar a face articular da sínfise


mas que elas ocorriam cerca de 2 a 3 anos m ais precocemen- pubiana, para a avaliação de idade, a partir de características morfoló-
te nessas populações d o que em ho mens brancos 16, 17•27 • gicas: 1) face articular; 2) rampa ventral; 3) margem dorsal. Caso do
Um método alternativo para a estimativa d a idade de ho- IMLAP-RJ: Guia 11 3, da 1Qa DP, de 31/10/01.
mens adultos à época d a morte através d a face sinfisiana do
púbis foi apresentado por McKern e Stewart (1957), citad os
Gilbert e McKern, segundo Ubelaker 17, propuseram que
por Ubelaker 17• O sistema deles colocava em evidência três
as diferenças sexuais na m etam orfose d a sínfise pubiana
aspectos m orfológicos da face sinfisiana: 1) a hemiface dorsal;
eram mais acentuadas do que o indicado por To dd, mos-
2) a rampa ventral; 3) a borda sinfisiana. Eles mostraram que trando discrepân cias de idade quando padrões originados
tais componentes sofriam alter ações isolad as independente- d e homens eram aplicados a mulheres de mesma idade, com
mente, em proporções diferentes, e que o métod o d e Todd aparência mais jovem se baseados na rampa ventral ou mais
simplificava, superestimando as mudanças, a expensas d a velha se baseados no platô dorsal. Então, o m étodo de Gil-
exatidão. O sistema de McKern e Stewart envolvia a gradua- ber t e McKern deve ser usado d a mesm a maneira que o de
ção de cada componente em uma escala de Oa 5 e adicionava McKern e Stewart, estabelecendo correlações e definições di-
os três valores numéricos para fornecer uma pontuação total ferentes de estágios para o sexo feminino. Assim como nos
que poderia ser correlacionada a uma determinada idad e. m étodos anteriores, há grande variabilidade nas mudanças,
Segundo Ubelaker 17 , em 1986, Angel e cols., aplicando os limitando a sua acuidade 17•
padrões de Todd e de McKern e Stewart a 739 indivíduos A necessidade de cuidado na aplicação dos padrões femi-
masculinos d e idade conhecida, provenientes d e Los Angeles, ninos existentes é enfatizada pela elevada taxa de erro obtida
Califó rnia, revelaram uma variabilidade tão alta que não re- d e uma grande série d a Califórnia de ossos púbicos d e idade
comendaram a utilização, par a hom ens, do sistem a de Todd. conhecid a. Discussão adicional sobre revisões na estimativa
Estudos realizados por Suchey e cols. (1986) também indi- d e idade foi realizada por Suchey 16 • 17•
caram que a face sinfisiana m asculina não é um indicado r Outro sistema de marcação de Suchey-Brooks para a de-
confiável para idades acima dos 40 anos 17• terminação da idade de morte também é baseado na morfo-
76 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

logia da sínfise pubiana, podendo ser aplicado para ambos Tabela 5.5. Relação encontrada entre as fases da sínfise
os sexos 16 . O uso de moldes plásticos feitos a partir dos ossos pubiana e a idade cronológica no material estudado por Suchey
analisados nos diferentes estágios de evolução etária é uti- e Brooks, 1990 (citado por Mays, 1998)15
lizado para comparação, realçando a acuidade do método
(Fig. 5.25) 16 .
Fia ldlde M1lhn1 Idade Ho••
15 a 24 15 a 23
Sistema de Suchey-Brooks para aSínfise Pubiana 16 li 19 a 40 19 a 34

Fase 1 -A face sinfisiana tem superfície ondulada, con sti- Ili 21a53 21 a 46
tuída por rugosidades e sulcos, de disposição transversal, que IV 26 a 70 23 a 57
incluem o tubérculo pubiano, com ausência de delimitação V 25 a 83 27 a 66
das extremidades superior e inferior.
VI 42 a 87 34 a 86
Fase 2 - A superfície da face sinfisiana mostra um de-
senvolvimento da sua borda, com ou sem nódulos calcifi-
cados em suas extremidades, que começam a se definir. O
crescimentos ósseos ligamentosos, enquanto em sua borda
esboço de um bisei ventral sugere a formação inicial de uma
dorsal podem aparecer labiações discretas.
rampa ventral, a partir da extensão de uma ou de ambas as
Fase 5 -A face sinfisiana apresenta bordas completamente
extremidades.
formadas e com depressões suaves em sua superfície. Uma la-
Fase 3 - A face da sínfise pubiana pode ser lisa ou apre-
biação moderada é usualmente encontrada em sua borda dor-
sentar estriações nítidas. Sua extremidade superior exibe
sal, com crescimentos ósseos ligamentosos proeminentes na
nódulos ósseos fusionados que se estendem ao longo da
borda ventral, a qual pode exibir pouca ou nenhuma erosão.
borda ventral. Sua extremidade inferior e a rampa ventral
Fase 6 - A face sinfisiana mostra depressões progressivas
apresentam-se em estágio final de definição. A formação do
e bordas erodidas, mais acentuadas na margem ventral. O
platô dorsal está completada. A margem dorsal da sínfise n ão
tubérculo púbico pode aparecer como uma projeção óssea
mostra labiação ou ligamentos ósseos em crescimento.
isolada. Sua superfície pode ser escavada ou porosa, confe-
Fase 4 - A fase sinfisiana é estreita e finamente granula-
rindo-lhe uma aparência desfigurada enquanto estiver em
da, embora remanescentes de estrias possam estar presen -
processo contínuo d e ossificação irregular (Tabela 5.5).
tes, mostrando borda nítida. Uma linha oval de demarcação
externa encontra-se visível, podendo ocorrer uma interrup-
A Superfície Auricular do Ílio
ção ao nível de sua extremidade superior, embora d efinida e
bem d elimitada. Na parte inferior do osso pubiano, ao nível A área auricular é a porção ilíaca da articulação sacroilía-
da borda ventral adjacente à face sinfisiana, podem ocorrer ca. Uma série de componentes que aparecem para sustentar

3 4 5 6

3 4
Figura 5.25. Desenho esquemático do sistema de Suchey-Brooks para determinação da idade pela análise da sínfise pubiana. A fileira superior
para o sexo feminino e a inferior para o masculino (segundo Buikstra e Ubelaker, 1994).
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 77

as mudanças regulares que ocorrem com a idade foi identi- hemiface inferior: porção da articulação abaixo do
ficada por Lovejoy e cols. (1985), citados por Ubelaker 17 , por ápice;
meio do estudo de uma ampla amostra obtida da coleção de área retroauricular: região localizada entre a porção
Todd em Cleveland, Ohio. A importância desse discriminan- posterior da superfície auricular e a espinha ilíaca in-
te está baseada no fato de que essa parte posterior da bacia ferior, onde se inserem os ligamentos lombossacro e
frequentemente se acha mais preservada que o púbis, tanto sacroilíaco;
em coleções arqueológicas como em alguns casos forenses, porosidade: são perfurações ovais do tecido subcon-
em que a sínfise se encontra destruída. dral da superfície auricular, de tamanhos variáveis
Ainda que o grau de exatidão na determinação da idade desde quase imperceptíveis até 10 mm de diâmetro,
de crianças e jovens possa oscilar entre uns poucos meses até 2 que não devem ser confundidas com a erosão surgi-
ou 3 anos, a margem de erro em adultos varia amplamente, na da post mortem, nem com as sequelas de patologias
dependência de sua situação nutricional, do tipo de profissão como a osteopenia e a hiperostose;
e do sexo. A maioria dos critérios existentes para o diagnóstico granulosidade: refere-se à aparência rudimentar da
da idade em adultos tem suas limitações, e é quase que inapli- superfície com relação à sua estrutura fina e com-
cável em indivíduos maiores de 50 anos. Vários estudos evi- pacta. Uma superfície fortemente granular é similar
denciam que existe uma forte correlação entre a idade e a me- à textura de uma lixa fina;
tamorfose da superfície auricular do ílio, com a grande van- ondulação: leva-se em consideração a presença ou
tagem de que a conservação dessa articulação é maior do que inexistência de tabiques transversos na superfície, de
em outras áreas do corpo por estar mais protegida e, portanto, dimensões variadas quando presentes;
poder ser apreciada em espécimes incinerados e em maiores densidade: está relacionada à aparência e não à quan-
de 50 anos de idade. À exceção do acentuado desenvolvimento tidade de osso presente. Uma superfície densa signi-
do sulco pré-auricular, observado nos indivíduos do sexo fe- fica aquela em que o osso subcondral aparece com-
minino, as mudanças que ocorrem na superfície auricular do pacto, liso e não granular (e mostra uma significativa
ílio praticamente não apresentam diferenças sexuais. ausência de granulosidade) (Fig. 5.26).
A Figura 5.26 ilustra as particularidades da região auri- Os intervalos de idade são classificados em oito fases, de
cular sacroilíaca que são utilizadas para a marcação das al- acordo com esses parâmetros gerais propostos, registrando-
terações associadas com a idade. A terminologia usada no se separadamente os lados direito e esquerdo.
estudo de Lovejoy e cols. (1985) compreende as seguintes Fase I -20 a 24 anos. A superfície exibe uma textura granu-
definições, segundo Buikstra e Ubelaker 16: losa fina e uma acentuada organização transversa. Não há po-
superfície auricular: representa a área do osso subcon- rosidade, nem atividade retroauricular ou apical. Tem aspecto
dral que forma a porção ilíaca da articulação sacroilía- jovem, devido às ondulações largas e bem definidas, de dis-
ca, cujo formato é semelhante a um bumerangue; posição transversal, que cobrem a maior parte da articulação.
ápice: área de contato da superfície auricular com a Fase II - 25 a 29 anos. Não são observadas mudanças
parte posterior da linha arqueada; substanciais em relação à fase anterior. Começa a perda pro-
hemiface superior: porção da articulação situada aci- gressiva da ondulação, que vai sendo substituída por estrias.
ma do ápice; A granulação é levemente mais grosseira. Ainda não existem
atividades apical ou retroauricular, nem porosidade. A apa-
rência da superfície continua sendo jovem em razão da acen-
tuada disposição transversa.
Fase III - 30 a 34 anos. Ambas as hemifaces permanecem
em repouso, com alguma perda da organização transver sal.
A ondulação se reduz bastante, sendo substituída por estrias
definitivas. A superfície é mais áspera e nitidamente mais
granular do que nas fases anteriores, com quase nenhuma
alteração no ápice. Podem surgir pequenas áreas de micro-
porosidade e discreta atividade retroauricular. Em geral,
ocorre uma substituição das ondulações pelo aspecto gra-
nuloso áspero.
Fase IV - 35 a 39 anos. Ambas as hemifaces se tornam
ásperas e uniformemente granulares. Há uma redução sig-
nificativa da ondulação e das estrias, ainda que essas últimas
possam persistir. A organização transversa está presente, po-
Figura 5.26. Regiões do ílio usadas para avaliação da idade através rém mal definida. Há pouca atividade retroauricular, geral-
da superfície auricular: 1) ápice; 2) linha arqueada; 3) hemiface superior; mente de grau leve. Mudanças mínimas são vistas no ápice,
4) hemiface inferior; 5) área retroauricular. Coleção de Anatomia do a microporosidade é leve e a macroporosidade está ausente.
Professor Toledo, Universidade Gama Filho. Período inicial da granulosidade uniforme.
78 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Fase V - 40 a 44 anos. Transição da granulação grosseira to das suturas pelo exame detalhado de cada sutura em 514
para superfície densa. Não há ondulações e as estrias podem crânios de homens e mulheres, brancos e negros, de idades
estar presentes, ainda que vagamente definidas. A face apre- conhecidas. Eles notaram as mesmas mudanças gerais na
senta-se parcialmente granulada, com perda da organização maioria das suturas, independentemente do sexo ou da raça.
transversa. O aumento na densidade da superfície se alia à O fechamento, usualmente, começa na parte interna da abó-
perda de granulação. Há uma atividade retroauricular de bada ( endocranialmente) e prossegue ectocranialmente (em
leve a moderada, acompanhada de macroporosidade ocasio- direção ao exterior). Embora essas características fossem
nal e atípica. Pequenas mudanças podem ser apreciadas no capazes de correlacionar os padrões de fechamento com a
ápice, e a microporosidade pode aumentar, na dependência idade, a variabilidade individual na progressão da união das
do grau de adensamento do osso. suturas é muito extensa, não se constituindo em um valioso
Fase VI - 45 a 49 anos. No ta-se perda importante da granu- marcador etário, a não ser quando associadas a outros fatores.
losidade, que é substituída por tecido ósseo denso e liso. Não Refinamentos desenvolvidos por Meindl e Lovejoy, ci-
são evidenciadas ondulações, estrias ou organização transver- tados por Uberlaker 17, através do estudo de 236 crânios na
sa. As mudanças no ápice estão sempre presentes, embora de coleção de Hamann-Todd em Cleveland, Ohio, apontaram a
grau leve a moderado. A microporosidade perde-se total ou exatidão do fechamento das suturas cranianas como um in-
parcialmente como consequência da densificação do osso. Há dicador de idade. Na determinação da idade por essa amos-
aumento da irregularidade das bordas, com atividade retroau- tra, eles encontraram uma confiabilidade maior das suturas
ricular moderada e pouca ou nenhuma macroporosidade. anterolaterais quando comparadas às suturas da abóbada e o
Fase VII - 50 a 59 anos. Como traço característico des- fechamento ectocranial como sendo superior ao fechamento
sa fase, ressalta-se a irregularidade da superfície. A hemiface endocranial. Também constataram que as mudanças etárias
inferior exibe labiação em sua porção situada atrás do corpo eram as mesmas para ambos os sexos e para diferentes gru-
do coxal. As alterações apicais são quase invariáveis e podem pos raciais. O método por eles proposto emprega dez seg-
ser significativas. Aumenta a irregularidade das bordas. A mentos e quatro estágios de fechamento 16, 17• Os locais estão
macroporosidade pode ainda estar presente em alguns casos. agrupados em dois sistemas, o da abóbada e o antero-lateral,
Fase VIII - 60 anos ou mais. Superfície irregular, não que devem ser examinados com o auxílio de lupa.
gra nular, com sinais evidentes de destruição subcondral. Há
perda completa de todos os aspectos observados nas fases Segmentos do Sistema da Abóbada (Fig. 5.27)
jovens: ondulação, or ganização transversa, estrias e granulo-
1) Mediolambdoide: ponto médio de cada metade da su-
sidade. A macropo rosidade está presente em cerca de 1/3 dos tura lambdoide.
casos. A atividade apical geralmente é acentuada, mas não um
2) Lambda: ponto de interseção entre o meio da sutura
requisito para essa categoria de idade. As bordas tornam-se lambdoide com a sutura sagital.
mais irregulares e com labiação, indicando degeneração ar- 3) Obélion: meio do terço distal da região sagital.
ticular. A área retroauricular encontra-se bem definida por 4) Sagital anterior: junção do terço anterior com os do is
intermédio de osteófitos de relevo baixo a moderado.
terços posterio res do comprimento da sutura sagital.
O Crânio
Atualmente, em razão da ampla variação observada
quanto ao dimorfismo sexual, à miscigenação racial e ao tipo
profissional, os diagnósticos de idade baseados nas suturas
cranianas e no desgaste dentário continuam a ser aceitos,
porém são de pouca confiabilidade, sendo úteis quando uti-
lizados em conjunto com o utros indicado res de idade no
esqueleto. No entanto, são de grande aplicabilidade quando
se dispõe somente do crânio para exame - fato que se apre-
senta com grande frequência em nosso meio -, constituindo
a única fonte de informação para a determinação da idade 1 •

Fechamento das Suturas Cranianas


Suturas são linhas ou junções entre os 22 ossos que com-
põem o crânio. Em adultos jovens e subadultos, elas são cla-
ramente visíveis. Ao longo da vida adulta, elas desaparecem
gradualmente pela união dos ossos adjacentes. Em indivíduos
idosos, muitas delas tornam-se completamente obliteradas.
Todd e Lyo n (1924, 1925), referidos por Ubelaker 17, ten- Figura 5.27. Localização dos segmentos das suturas cranianas a
taram quantificar as alterações que ocorriam no fechamen- serem pesquisados, conforme Meindl e Lovejoy, segundo Ubelaker" .
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 79

5) Bregma: ponto de interseção entre o meio da sutura


co ronal com a sutura sagital ou o ponto médio de en-
contro d as duas suturas.
6) Mediocoronal: ponto m édio de cada m etade da sutu-
ra coro nal.
7) Ptérion: usualmente é o ponto no qual a sutura pa-
~ .r"' e
rietoesfenoidal (região su perior da grande asa do es-
fenoide) encontra o osso fro ntal. J ' b ./\..
Segmentos do Sistema Anterolateral (Fig. 5.27)
6) Mediocoronal.
7) Ptérion.
8) Esfeno frontal: ponto m édio da sutura esfenofrontal.
9) Esfeno tempor al inferior: interseção da sutura esfeno-
temporal com uma linha de conexão entre ambos os Figura 5.28. Diferentes graus de fechamento das suturas cranianas:
tubérculos articulares da articulação temporoman- a) totalmente aberta (O); b) parcialmente fechada (1 ou 2); c) completa-
dibular. mente fechada (3). Coleção de Anatomia do Professor Toledo, Universi-
10) Esfeno tempor al superior: um ponto situado 2 cm dade Gama Filho.
abaixo de sua junção com o osso parietal.
Cada segmento está definido por uma área de 1 cm d as
suturas, confo rme representado nas Figuras 5.27 e 5.28,
sendo classificados d entro de um d os seguintes estágios de binada d e 10 no sistema antero lateral sugere uma idade mé-
união: dia d e 51,9 anos, com um desvio-padrão de 12,5 e um limite
O) aberto: sem evidência de qualquer fecham ento ecto- d e 33 a 76 an os.
craniano local; Além desses, são utilizados outros d ois sistemas:
1) mínimo: grau mínimo de fechamento, d esde que haja
pelo menos uma única ponte óssea cruzando a sutura
Segmentos do Sistema das Suturas Endocranianas
até cerca de 50% de sinostose do segmento; Uma ava liação independente sugere que o fechamento
2) significativo: com um gr au acentuado de fechamento, endocraniano forneça dad os mais confiáveis. Se o crânio se
m as com permanência d e algumas porções não fusio - encontra inteiro, as suturas internas pod em ser observadas,
nadas completamente; indiretamente, utilizando-se uma pequena lanterna e um
3) obliteração completa: o local está completamente fu- espelho dental1 7• São m arcadas d e acordo com os seguintes
sionado, com apagamento da sutura (Fig. 5.28). segmentos:
Para estimar a idade d e morte, a cad a um dos lados em A) sagital: sutura sagital completa;
qualquer dos do is sistemas o u em ambos, d everá ser atribuí- B) lambdoide: porção m édia da parte làmbdica e parte
da a pontuação de O a 3. O somatório dos pontos de cad a intermediária da sutura lambdoide esquerd a;
sistem a deverá ser comparado nas Tabelas 5.6 e 5.7 para a C) coronal: po rção média d a parte bregmática e parte
determinação da idade. Por exemplo, uma pontuação co m- complicata d a sutura coronal esquerda.

Tabela 5.6. Idade estimada à morte usando-se o fechamento das suturas ectocranianas da abóbada (Meindl e Lovejoy, 1985 -
referidos por Ubelaker, 1999)17
Pontuação Composta Nt Média de Idade Desvio-padrão Desvio Médio Faixa Etária
O(aberta) 24 - 49
1, 2 12 30,5 9,6 7,4 18 a 45
3, 4, 5, 6 30 34,7 7,8 6,4 22 a 48
7' 8, 9, 10, 11 50 39,4 9, 1 7,2 24 a 60
12, 13, 14, 15 50 45,2 12,6 10,3 2 a 75
16, 17, 18 31 48,8 10,5 8,3 30 a 71
19, 20 26 51,5 12,6 9,8 23 a 76
21 (fechada) 13 40 -
236
80 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Tabela 5. 7. Idade estimada à morte usando o fechamento das suturas ectocranianas anterolaterais (Meindl e Lovejoy, 1985 -
citados por Ubelaker, 1999)17
Pontuação Composta N1 Média de Idade Desvio-padrão Desvio Médio Faixa Et~rla
O(aberta) 42 - 50
18 32,0 8,3 6,7 19 a 48
2 18 36,2 6,2 4,8 25 a 49
3, 4, 5 56 41 ,1 10,0 8,3 23 a 68
6 17 43,4 10,7 8,5 23 a 63
7, 8 31 45,5 8,9 7,4 32 a 65
9, 10 29 51,9 12,5 10,2 33 a 76
11, 12, 13, 14 24 56,2 8,5 6,3 34 a 68
15 (fechada)
236

Sistema das Suturas do Palato Duro (Fig. 5.29) Em casos ambíguos, maior peso deverá ser dado aos ca-
racteres do resto do esqueleto do que à pontuação das sutu -
São marcadas em to do o seu comprimento.
ras cranianas. Deve-se considerar também a união epifisária,
Alguns autores também recomendam a utilização de um
o grau de desgaste dentário, as artrites, a ossificação de car-
terceiro sistema, baseado na avaliação do fechamento das su-
tilagens, os tendões e ligamentos, assim como a observação
turas palatais:
microscópica de mudanças relativas à idade.
11 ) sutura incisiva: transversal, separando a maxila (com
ca ninos, pré-molares e mo lares) da pré-maxila (so- Alterações Degenerativas
mente incisivos);
12) sutura anterior m édia do palato: longitudinal, com As alterações degenerativas no esqueleto servem, de igual
marcação de todo o comprimento da maxila, pareada modo, como um dos muitos indicadores gerais da idade de
entre o forâmen incisivo e o osso palatino; morte, mas três características são dignas de nota: labiação,
13) sutura posterior média do palato: também longitu- eburnação e ossificação de cartilagens.
dinal, em que a marcação é feita ao longo de toda a
extensão dos ossos palatinos pareados;
14) sutura transversa d o palato: a marcação é realizada por
toda a extensão entre os ossos da maxila e do palato.
Para a estimativa da idade de cada indivíduo adulto, con-
sidera-se a seguinte classificação didática: Adulto: jovem - 20
a 34 anos; maduro - 35 a 49 anos; senil - 50 anos em diante 16 •
A região anterolateral do crânio tem provado ser um
melhor indicativo da idade cronológica do que os locais de
marcação na abóbada craniana 16 •
As suturas endocranianas e palatinas também podem
servir de base para a estimativa da idade. Nos adultos jovens,
a sutura incisiva já se encontra fechada, com evidente ativi-
dade de fechamento em segmentos da palatina transversa e
da palatina posterior média 16 •
O fechamento das suturas incisiva, transversa do palato e
posterior m édia do palato - com a sutura anterior média d o
palato permanecendo parcialmente aberta - é característico
de adulto maduro. A fusão completa é típica de adultos senis.
O fechamento das suturas endocranianas coronal, sagital
e lambdoide começa na fase de adulto jovem. Estágios avan-
çados, mas incompletos d e fechamento, são característicos
de adultos maduros, enquanto suturas to talmente soldadas
são tipicamente encontradas em senis, conforme Buikstra e Figura 5.29. Suturas palatinas: 12) sutura anterior média; 13) sutura
Ubelaker) 16• posterior média; 14) transversal. A incisiva não está visível.
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 81

Stewart (1958), citado por Ubelaker 17 , chamou a atenção fratura, luxação ou, inclusive, infecções podem conduzir a
para a utilidade da labiação, ou seja, do desenvolvimento da uma ossificação da cartilagem ou a extensões ósseas que se
osteoartrite vertebral como um indicador geral da idade. À assemelham àquelas produzidas pelo processo de envelheci-
medida que envelhecemos, formam-se os crescimentos ós- mento normal. Se o esqueleto está suficientemente preserva-
seos externos, chamados osteófitos, que se prolongam para do, o fato observado é o de que os efeitos traumáticos estão
as margens dos corpos vertebrais (porções arredondadas das usualmente confinados a uma área, enquanto as mudanças
vértebras), especialmente onde a mobilidade da junção in- etárias estão distribuídas por todo o corpo, fornecendo uma
tervertebral é maior (Fig. 5.30). base para a sua distinção.
Tipos semelhantes de ossificação e extensões ósseas apa-
recem em outras partes do esqueleto com o avanço da idade. Reabsorção de Osso Esponjoso
A maioria das articulações, especialmente as do cotovelo e
A cavidade medular (porção central do osso) aumenta à
do joelho, desenvolve pequenos depósitos de osso ou depres- custa do osso medular nas extremidades proximais do úme-
sões nas superfícies articulares. Ocasionalmente, esses depó-
ro e do fêmur. Entre as idades de 41 e 50 anos, a extremidade
sitos crescem o suficiente para destruir a cartilagem. Quando
mais superior da cavidade medular no fêmur expande-se em
isso acontece, os ossos começam a entrar em contato, produ-
direção ao colo cirúrgico. Entre as idades de 61 e 74 anos, a
zindo abrasão ou polimento dessas superfícies. Esse efeito de
cavidade alcança a linha epifisária. Assim, o grau de expan-
polimento é chamado de eburnação. são fornece uma indicação geral da idade. O diâmetro da ca-
As extensões ósseas podem-se desenvolver sobre outras vidade medular também aumenta com a idade, produzindo
superfícies, usualmente através da cartilagem de ossifica-
por fim um adelgaçamento extremo das paredes, condição
ção. Elas são frequentemente encontradas no ísquio, calcâ-
osteoporótica que caracteriza muitos ossos longos de pesso-
neo e, especialmente, sobre as extremidades esternais das
as idosas 17 •
costelas.
Estudos de radiografias do fêmur proximal, úmero proxi-
Todas essas alterações são indicadores gerais de idade mal, clavícula e cakâneo de 130 indivíduos de idade conheci-
avançada. Entretanto, alguns cuidados devem ser tomados
da à morte - na coleção de Hamann-Todd - mostraram que
para evitar confusão com os efeitos de trauma local. Uma
a mais elevada correlação com a idade achava-se ao nível da
clavícula, seguida de perto pelo fêmur proximal.

Extremidades Esternais das Costelas


Uma nova técnica para avaliação de idade usando alte-
rações nas extremidades esternais das costelas foi introdu-
zida em 1984 por Iscan, Loth e Wright, baseada no exame
de 230 quartas costelas direitas removidas durante necrop-
sia de brancos de sexo e idade conhecidos. Foram testados
ambos os padrões, masculino e feminino, e classificados em
oito fases conforme a faixa etária, e se achou ser o método de
confiança, relativamente fácil de empregar e ocasionalmente
afetado pela experiência e treinamento do observador 16• 17•
O exame macroscópico das extremidades das costelas, em
sua articulação com o osso esterno, em virtude de sua posi-
ção e fun ção, constitui um sítio excelente para a observação
das modificações que ocorrem durante a vida do indivíduo.
A junção condrocostal tem uma localização relativamente
estável, pouco sujeita aos efeitos da locomoção, da gravidez,
do parto e do peso da pessoa. Esses fatores afetam o diagnós-
tico a partir da sínfise pubiana, superfície auricular do ílio e
dos ossos longos (Iscan e Loth, 1989, referidos por Cuenca 1) .
As extremidades esternais das costelas estão conectadas ao
esterno por cartilagem. Na infância, as extremidades das cos-
telas são relativamente rombas, com margens arredondadas e
superfície plana. No adulto jovem, a superfície articular tem
Figura 5.30. Segmento de coluna lombar no qual se observa forma-
ção de osteófitos na borda inferior da união da face anterior com a face ondulações transversais e vai progressivamente se tornando
posterior do corpo da vértebra superiormente situada. Os osteófitos escavada, assumindo um aspecto em forma de V, constituído
representam ossificação patológica que faz protrusão irregular para pelas bordas anterior e posterior da articulação condrocostal.
baixo e para fora do corpo vertebral. Caso do IMLAP-RJ: Guia 113, da Na maturidade, a depressão articular é notavelmente
1Oª DP, de 31/10/01. profunda, com um formato de U largo; suas paredes são
82 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Atrito Dentário
O atrito dentário, ou desgaste resultante da mastigação,
em geral progride durante a vida e tem sido usado para de -
terminar a idade.
Diferenças na extensão do desgaste dentário entre os mo -
lares - assim como entre outros dentes - podem ser usadas
para determinar a taxa de desgaste para cada indivíduo.Apli-
cando graus diferentes para a quantificação do atrito sobre
as superfícies oclusais, é possível chegar-se a uma estimativa
da idade de morte.

Método Microscópico
A macroscopia fornece dados úteis e rápidos para a es-
timativa da idade de adultos, os quais são suficientemente
precisos para permitir uma classificação da idade ao mor-
Figura 5.31 . Extremidade esternal da quarta costela direita, na qual
rer. No entanto, em certos casos, há necessidade de métodos
houve calcificação parcial da cartilagem costal, criando grande depres-
são da sua porção central. Indivíduo masculino entre 40 e 50 anos. Caso mais corretos, como os desenvolvidos para a utilização das
do IML.AP-RJ: Guia 113, da 1~ DP, de 31/10/01. alterações microscópicas que ocorrem no córtex dos ossos
longos e dos dentes. Embora as habilidades e os equipamen-
tos não sejam do pleno domínio da maioria dos profissionais
forenses, a discussão resumida das técnicas indica como uma
fina s, com margens gradativamente cortantes ou aguçadas,
maior quantidade de informação pode ser obtida e enfatiza
havendo irregularidade e calcificação das bordas da cartila-
a importância de preservar restos humanos esqueletizados,
gem , por projeções ósseas que se alargam em direção ao osso
ainda que fragmentados 33 .
esterno (Fig. 5.31).
Em idosos, o fundo da depressão na superfície articular
Remodelação Cortical dos Ossos Longos
pode estar ausente ou preenchido por projeções ósseas;
suas paredes são extremamente finas, frágeis e quebradiças, O processo de formação de osteons continua ao longo da
com margens aguçadas, apresentando porosidade acentua- vida, de forma que o seu número aumenta com a idade. Uma
da. Uma progressão similar acontece a partir do esterno vez que sua distribuição ocorre ao acaso, uma quantidade
(Tabela 5.8) . maior de osteons implica a maior probabilidade de que os
Pesquisas adicionais sugeriram que as mudanças com a novos virão a incidir sobre os outros mais antigos. O resulta-
idade são específicas de cada população. Contudo, aplican- do desse processo é prontamente observável ao microscópio.
d o-se os padrões para outras costelas, foram reveladas dife- Em 1965, Kerley3 4 descreveu um método para estimativa
renças entre os lados esquerdo e direito, assim como entre a da idade baseado no processo de formação de osteons, a par-
quarta costela direita e as outras, sugerindo cautela se outras tir do estudo de 126 cortes transversais, retirados das diáfises
costelas forem examinadas' 6•17 • de fêmures, tíbias e fíbulas de pessoas de idade conhecida à

Tabela 5.8. Estatísticas descritivas sobre as fases metamórficas correlacionadas às mudanças na extremidade esternal das
costelas com a idade (lscan et ai., 1987 - referidos por Ubelaker, 1999)17
Homens Mulheres
flll M6dla de Idade DllVlo-padrlo Inter. Conf. 95% M6dla de Idade DllVlo-padrlo Inter. Conf. 95%
17,3 0,50 16,5 a 18,0 14,0
2 21,9 2,13 20,8 a 23,1 17,4 1,52 15,5 a 19,3
3 25,9 3,50 24, 1 a 27,7 22,6 1,67 20,5 a 24,7
4 28,2 3,83 25,7 a 30,6 27,7 4,62 24,4 a 31,0
5 38,8 7,00 34,4 a 42,3 40,0 12,22 33,7 a 46,3
6 50,0 11 ,17 44,3 a 55,7 50,7 14,93 43,3 a 58,1
7 59,2 9,52 54,3 a 64,1 65,2 11,24 59,2 a 71,2
8 71 ,5 10,27 65,0 a 78,0 76,4 8,83 70,4 a 82,3
Inter. Conf. = intervalo de confiança com 95% de probabilidade.
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 83

mo rte, variando d esd e o nascimento até 95 anos. Envolve a Isso pod e ser explicado em razão do achatamento dos discos
contagem de quatro tipos d e estruturas: osteons completos, intervertebrais na posição bípede d o vivo, fato que não é veri-
fragmentos de osteons, percentagem restante d e osso lam e- ficado no cadáver nem no vivo em decúbito dorsaP·10• 16 •17 •
lar circunferencial e canais não haversianos. Estes eram fo r- Outro ponto a ser considerado no cálculo da estatura a
mados pela inclusão de vasos sanguíneos subperiósticos no partir das dimensões ósseas é que os ossos secos são discreta-
interior do osso, d evido à expansão rápida d o diâmetro do mente meno res do que os ossos frescos - em cerca d e 2 mm
córtex. Em 1978, Kerley e Ubelaker35 reexaminaram os dad os - , diferença provada por Rollet há mais de 100 anos.
originais e pro duziram tabelas atualizadas e equações de re- A estatura é um dado peculiar à espécie humana po rque
gressão mais adequadas. os outros animais não assumem uma postura ereta habitual
e fisiológica. Depende de vários segmentos: cefálico (altura
Microestrutura Dentária basibregmática), raquidiano (altura da coluna), pélvico e ex-
tremidades inferiores. Uma série de fatores contrib ui para a
Em 1950, Gustafso n (citado po r Ubelaker 17 ) propôs um
d eterminação da altura d o indivíduo ao serem considerados
méto do d e determinação da idade ao mo rrer usando sete
idad e, sexo, raça, condições socioeconômicas e psicossociais
características da microestrutura dentária: atrito, aposição
e, finalmente, tendências históricas.
do cimento (cemen tum ), reabsorção d a raiz, perio dontose,
Como o crescimento longitudinal d o esqueleto pred omi-
aposição de d entina secundária, transparência d a raiz e fe- na sobre o transversal, usam-se, preferencialmente, os com -
cham ento do canal d a r aiz. Quando observadas em conjun- primentos da extremidade inferior, da coluna e da extremi-
to, alterações nesses aspectos propiciam estimativas de idad e dade superior.
que exibem uma margem de erro d e apenas 3,6 anos 17 • A variabilidade racial e sexual da estatura pode ser com -
Usando o métod o de transluminescência, Lamendin e preendida tanto pelos distintos ritmos de crescimento como
cols. ( 1992)36 desenvolver am uma variação no estudo de uma pela diferença nas propor ções corporais. É fato de conheci-
amostra de autopsias francesas com sexo e idad e conhecid os, mento geral que a estatura das populações tem apresentad o
empregando dois caracteres dentários: alterações evolutivas ao longo do tempo. O aumento da es-
1) a altura da periodo ntose multiplicada po r 100, divi- tatura média dos povos recentes reflete uma mudança global
dida pela altura da raiz; d ecorrente de maior movimentação, intercâmbios genéticos,
2) t ransluminescência da raiz. m elho ria d a alimentação, progressos médicos e diferentes fa-
O métod o d e transluminescência consiste em colocar-se to res ambientais d e estresse.
o d ente contra uma fo nte de luz e avaliar-se o grau de trans- Finalmente, há que se considerar o increm ento secular da
parência d a raiz e a period onto se. São atribuídos valores dis- estatura, observável nas sociedades industriais, que ocorreu
tintos ao grau d e transparência e de period ontose, determi- nas duas ou três últimas gerações. Ao que parece, a estatura
nando a idad e à morte d e indivíduos adultos (acima de 25 m áxima é alcançad a em média em uma idad e mais precoce,
anos) po r meio de uma equação: em to rno d os 2 1 anos, enquanto no século XIX era apreciada
I = (0, 18 XP) + (0,42 X T) + 25,53 aos 25 anos nos homens, mudança d ocumentad a em vários
países europeus e americanos, inclusive na Colô mbia'.
em que: Os resultados d as técnicas estabelecidas para populações
I = idade não recentes poderão d ar resultados falsos quando aplicadas
P = altura d a perio dontose x 100, dividida pela altura da raiz na atualidad e, em razão desse maior crescimento d o homem
T = t ransluminescência d a ra iz x 100, dividida pela altura con temporâneo.
da ra iz.
A m argem m édia de erro dessa técnica é de som ente 8,4
Método Anatômico
anos, e sua acuidade é m aior acima do s 40 anos d e idade.
A m aioria dos autores que tem analisado as dificulda-
d es práticas concernentes à reconstrução da estatura vem
• ESTIMATIVA DA ESTATURA expressando suas reservas quanto à aplicação de fór mulas
d e regressão que permitam a obtenção de estimativas apro-
A estatura, porte ou disposição de pé é definida como priadas em m odelo s esqueléticos. Essas fó rmulas se baseiam,
a altura compreendida entre o vértice (ponto mais elevado geralmente, em coeficientes de correlação entre o compri-
da cabeça) e o solo com o indivíduo d e pé. Deve ser aferida m ento dos ossos longos e a estatura, publicados no fim d o
mediante um antro pôm etro ou régua gr aduada e expressa século XIX (Manouvrier e Pearson ) e princípio s do século
em centímetros'·3•17 • XX (Hrcllicka). O utros utilizam a totalidade dos ossos im-
É possível calcular-se a estatura que a pessoa teria em vida plicados no somató rio estatura!, incluindo os segmentos ce-
por meio d e dados obtidos no cadáver fresco, levando-se em fálico e raquidiano e o s memb ro s inferiores. Nesse sentido,
conta que entre as duas alturas, a do indivíduo vivo e a d o cad á- é consenso geral atribuir ao m étodo anatómico os melhores
ver, costuma haver uma diferença de 2 cm. O utros autores con- resultad os, ainda que não possa ser aplicável na maioria dos
firmaram essa relação, estabelecendo a diferença em 2,35 cm. casos por faltarem elementos ósseos'·'4 •17•
84 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

O caminho mais simples para estimar a estatura é pela o comprimento dos membros1•17•37 • A variação considerável
mensuração dos comprimentos de ossos relevantes, adicio- entre populações diferentes na relação entre comprimento
nando-se um fator para os componentes não ósseos (de par- de ossos longos e estatura faz com que se torne necessário
tes o u tecidos moles). gerar fórmulas população-específicas. Para o cálculo correto
da estatura, é necessário consultar tabelas ou aplicar fórmu-
Usando todos os Ossos Componentes las de regressão criadas para esse propósito, de acordo com
as populações a que pertencem os restos esqueléticos em
De acordo com Ubelaker 17, as medidas básicas para apli-
questão. Deve haver uma semelhança sexual, racial, étnica
cação do m étodo anatómico para a determinação da estatu-
ou ambiental e, sobretudo, temporal.
ra, segundo Fully, são as seguintes:
1) altura basibregmática do crânio (distância entre os A aferição do comprimento de ossos longos é feita com
o auxílio de uma placa osteométrica, que consiste em um
pontos craniométricos básio e bregma ). O básio é o
ponto médio de uma linha imaginária que passa so- dispositivo formado por duas tábuas perpendiculares ao
bre a margem anterior do forâmen magno, situado na plano no qual é colocado o osso, sendo uma delas deslizan-
te (Fig. 5.32).
base do crânio. O bregma é o ponto médio exocrania-
no situado na interseção das suturas coronal e sagital; Outro fator que incide nos cálculos comparativos entre a
2) altura máxima da linha média dos corpos vertebrais estatura estimada e aquela que as pessoas tinham em vida é
entre C2 (cervical) e 1 5 (lombar); apreciado nos erros observados e obtidos a partir da medida
3) altura anterior de S1, obtida em sua linha média; antropométrica. Existe uma diferença m édia de até 2,5 cm
4) comprimento bicondilar (fisiológico do fêmur); entre a estatura medida pela manhã, quando o organismo
5) comprimento da tíbia sem a eminência intercondilar; se encontra relaxado, e aquela obtida à tarde, como conse-
6) altura do tálus e do calcâneo articulados. quência da perda de tonicidade dos discos intervertebrais.
Os seguintes fatores de correção deveriam ser adiciona- Também se observam diferenças na obtenção da altura por
dos ao somatório dessas medidas para estimar a estatura problemas técnicos, sobretudo pela ausência de equipamen-
em vida: to antropométrico nas oficinas de controle e pela posição
10,0 cm, se o somatório fosse 153,5 cm ou menos; incorreta do indivíduo.
10,5 cm , se o somatório estivesse entre 153,6 e A Tabela 5.9 apresenta equações desenvolvidas por Trotter
165,4 cm; (1970 ), após ter estudado aproximadamente 850 esqueletos
11 ,5 cm, se o somatório fosse 165,5 cm ou mais. documentados na coleção de Terry, no Museu Nacional de
A aplicação dessa fórmula a indivíduos do sexo feminino História Natural de Washington e em cerca de 4.100 homens
ou pertencentes a outros grupos raciais não é adequada, vis- mortos durante a Segunda Guerra Mundial, de acordo com
to que ela é derivada de franceses masculinos 17• Ubelaker 17• Todas as medidas consistiam no comprimento
máximo em centímetros e deviam ser obtidas usando uma
Usando Ossos Representativos tábua osteométrica17 . Em decorrência d os erros demonstra-
dos nas aferições da tíbia fornecidas por Trotter, esse osso
Tem-se observado que o tamanho de muitos ossos, es- deve ser evitado. Se for o único osso disponível, instruções
pecialmente vértebras, acha-se fortemente correlacionado. mais precisas poderão ser obtidas em trabalho de 1995, feito
Fully e Pineau ( 1960), citados por Cuenca' e Ubelaker 17, con- por Jantz, Hunt e Meadows (citados por Bass'º e Ubelaker 17 ) .
cluíram que seria necessário medir somente uns poucos os-
sos representativos. Eles forneceram duas fó rmulas:
Estatura = 2,09 x (F + SVL) + 42,67 ± 2,35 K
Estatura = 2,32 x (T + SVL) + 48,63 ± 2,54 K
em que:
F = comprimento do fêmur
T = comprimento da tíbia
SVL = soma das alturas dos corpos das cinco vértebras
lombares
K = correção para partes moles.
Eles notaram que essas fórmulas podiam ser de maior
praticidade, uma vez que muitos esqueletos eram encontra-
dos incompletos ou apresentavam ossos danifi cados.

Método Métrico: Usando Ossos dos Membros


Figura 5.32. Placa osteométrica adaptada, que deve ser usada com
Todos os demais métodos para o cálculo da estatura em o auxílio de um esquadro. O quadriculado visível é formado por papel
vida estão baseados na correlação entre a altura corporal e milimetrado que deve ser colocado por baixo do osso.
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 85

Para usar as fó rmulas, deve-se medir o comprimento e mulheres pretos e brancos dos EUA estão reproduzidas
do osso na maneira correta, multiplicar o resultado pelo na Tabela 5.9 .
fator na fórmula e adicionar a quantidade especificada. Numerosas o utras fórmulas têm sido desenvolvidas
Por exemplo, se um fêmur é suspeito de ter pertencido a usando-se diferentes amostras e aproximações 17 .
um homem mexicano, poder-se-ia m edir o comprimento Deve-se enfatizar a necessidade de haver uma similarida-
m áximo do fêmur em centímetros, multiplicar essa medi- de entre a composição da população representada pelos casos
da por 2,44 e adicionar 58,67. Cada fórmula está acompa- forenses e a população usada para criar as fórmulas. Proces-
nhada por uma margem de erro, refletindo o fato de que sos usados para a estimativa da estatura estão também dispo-
a proporção entre o comprimento de um osso longo e a nibilizados por dados de computador utilizando-se o Forensic
estatura varia no interior das populações. O erro-padrão Data Base38• Os resultados são mais precisos se o sexo e o pa-
de 2,99 significa que somente cerca de 2/3 das estimativas drão racial já tiverem sido estimados com confiança.
estarão dentro de 2,99 cm mais alto ou m ais baixo que a Outras investigações têm incluído populações europeias,
estatura efetiva. Um terço será 2,99 cm mais alto ou mais oferecendo fórmulas apropriadas para caucasoides e negroi-
baixo do que o estimado. O erro parece ser maior quando des1. Mendonça (1999) estabeleceu fórmulas de regressão e
as fórmulas são aplicadas a populações diferentes. Outras tabelas de consulta baseadas na população portuguesa atual
correções devem ser feitas para indivíduos com idade su- que, por proximidade geográfica e similaridade étnica, po-
perior a 30 anos e para cadáveres. As tabelas fornecida s dem ser aplicadas na Espanha e - por extensão histó rica -
por Trotter para a estatura m áxima esperada de homens também ao Brasil3 (Tabelas 5.10 e 5.11).

Tabela 5.9. Equações para a estimativa da estatura em vida (cm) a partir dos ossos longos de homens e mulheres com idade
entre 18 e 30 anos (Trotter, 1970 - citado por Ubeaker) 17
Hom•• ..... Ho•• tlegr•
3,08 x úmero + 70,45 ± 4,05 3,26 x úmero + 62, 1O ± 4,43
3,78 X Rádio + 79,01 4,32 3,42 X Rádio + 81,56 4,30
3,70 X Ulna + 74,05 4,32 3,26 X Ulna + 79,29 4,42
2,38 X Fêmur + 61 ,41 3,27 2,11 X Fêmur + 70,35 3,94
2,52 X Tíbia + 78,62 3,37 2,19 X Tíbia + 86,02 3,78
2,68 X Fíbula + 71 ,78 3,29 2,19 X Fíbula + 85,65 4,08
1,30 x (Fêmur + Tíbia) + 63,29 2,99 1,15 x (Fêmur + Tíbia) + 71,04 3,53
11111. . 1ranca1 111111•• tlegl'll
3,36 X úmero + 57,97 4,45 3,08 X úmero + 64,67 4,25
4,74 X Rádio + 54,93 4,24 3,67 X Rádio + 71,79 4,59
4,27 X Ulna + 57,76 4,30 3,31 X Ulna + 75,38 4,83
2,47 X Fêmur + 54,10 3,72 2,28 X Fêmur + 59,76 3,41
2,90 X Tíbia + 61 ,53 3,66 2,45 X Tíbia + 72,65 3,70
2,93 X Fíbula + 59,61 3,57 2,49 X Fíbula + 70,90 3,80
1,39 x (Fêmur + Tíbia) + 53,20 3,55 1,26 x (Fêmur + Tíbia) + 59,72 3,28
1 Hom•1 AlliU• Ho•• llellClllOI
2,68 X úmero + 83,19 4,25 2,92 X úmero + 73,94 4,24
3,54 X Rádio + 82,00 4,60 3,55 X Rádio + 80,71 4,04
3,48 X Ulna + 77,45 4,66 3,56 X Ulna + 74,56 4,05
2,15 X Fêmur + 72,57 3,80 2,44 X Fêmur + 58,67 2,99
2,39 X Tíbia + 81,46 3,27 2,36 X Tíbia + 80,62 3,73
2,40 X Fíbula + 80,56 3,24 2,50 X Fíbula + 75,44 3,52
1,22 X (Fêmur + Tíbia) + 70,37 3,24
Obs.: Para estimar a estatura em indivíduos mais velhos, deve-se subtrair 0,06 x (idade em anos - 30) cm
Para estimar a estatura em cadáveres, deve-se adicionar 2,5 cm.
Estatura em morte (cm) = [E máxima - 0,06 x (idade - 30))
86 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Tabela 5.1 O. Estimativa da estatura a partir do comprimento Tabela 5.11. Estimativa da estatura a partir do comprimento
dos ossos longos (Mendonça, 1999)3 dos ossos longos (Mendonça , 1999)3
Sexo Masculino Sexo Feminino
Fim• Fim•
Om•o E'llllll'I Comprimento Comprl•nto Omn Eltlllr1 Comprimento Comprimento
Comprl•nto llMdll Rllol6glco Perpendlallr Comprimento M6dl1 Flllol6glco Perpendlal1r
Totll (mm) (cm) (mm) (mm) Totll (mm) (cm) (mm) (mm)
286 153 397 399 257 143 360 361
289 154 401 403 260 144 364 365
292 155 405 407 263 145 368 369
295 156 409 411 267 146 372 374
299 157 412 414 270 147 376 378
302 158 416 418 273 148 380 382
305 159 420 422 276 149 385 386
308 160 424 426 280 150 389 391
311 161 427 429 283 151 393 395
314 162 431 433 286 152 397 399
317 163 435 437 290 153 401 403
320 164 439 441 293 154 405 408
323 165 442 445 296 155 409 412
326 166 446 448 299 156 413 416
329 167 450 452 303 157 418 420
332 168 454 456 306 158 422 425
335 169 457 460 309 159 426 429
338 170 461 463 312 160 430 433
341 171 465 467 316 161 434 437
344 172 469 471 319 162 438 441
347 173 472 475 322 163 442 446
351 174 476 478 325 164 446 450
354 175 480 482 329 165 450 454
357 176 484 486 332 166 455 458
360 177 487 490 335 167 459 463
363 178 491 493 338 168 463 467
366 179 495 497 342 169 467 471
369 180 499 501 345 170 471 475
372 181 503 505 348 171 475 480
375 182 506 509 352 172 479 484
378 183 510 512 355 173 483 488
381 184 514 516 358 174 488 492
384 185 518 520 361 175 492 497
387 186 521 524 365 176 496 501
390 187 525 527 368 177 500 505
393 188 529 531 371 178 504 509
396 189 533 535 374 179 508 514
399 190 536 539 378 180 512 518
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 87

Aqui e em muitos outros países em desenvolvimento, a Reconstrução da Estatura em Esqueletos Imaturos


determinação da estatura de restos humanos esqueletizados
tem sido realizada a partir de ossos longos íntegros, median- A estimativa da estatura em indivíduos imaturos torna-se
te a aplicação de métodos referentes a populações antigas e bastante complicada pela ausência das epífises distal e proxi-
estrangeiras, fato que gera dúvidas quanto à confiabilidade mal, o que impede a mensuração total do osso, já que se acha
dos resultados. apenas a diáfise.
Quanto ao nível de representatividade estatística das Um dos estudos mais completos concernentes à recons-
fórmulas, cabe ressaltar que a maioria foi obtida a partir trução da estatura em fetos foi elaborado por Fazecas e Kósa
de am ostras pequenas, e, por conseguinte, as equações de (1978 ), citados por Ubalaker 17 , os quais propuser am várias
Trotter-Gleser constituem -se nas mais apropriadas para a fó rmulas de regressão a partir do comprimento diafisário
reconstrução da estatura. dos ossos (Tabela 5.1 2).
Ubelaker 17 referequeO rtner ePutshar (198 1) utilizaram um
comprimento de 80 mm para o fêmur como critério distin-
Reconstrução da Estatura em Ossos tivo entre o m aterial fetal (< 80 mm) e o pós-fetal (> 80 mm) .
Fragmentados
A ausência do calcãneo, do tálus, do cuboide e das epífises
Os esqueletos expostos ao ambiente, sob a ação de pre- distal do fêmur, proximal da tíbia e proximal do úmero aju-
dad ores e aqueles enterrados em solos ácidos apresentam , da a determinar a idade fetal. Para o cálculo da estatura em
com frequência, um grau de decom posição tal que muitos de material ameríndio, recomenda-se a utilização da tabela de
seus ossos - particularmente as vértebras - fragmentam-se, Ubelaker (1999) 17 •
impedindo a reconstrução da estatura segundo métodos tra- Finalmente, para a reconstrução da estatura fetal e in-
dicionais anatómicos e métricos. Nessas situações, recomen- fantil, deve-se considerar a taxa de crescimento desigual nos
da-se a utilização de métodos que levem em conta o estado primeiros anos de vida, o que por sua vez modifi ca os resul-
fragmentado do m aterial ósseo. tados, particularmente das etapas iniciais:
Par a superar o problema apresentado pela condição da- 1) primeira infância (do nascimento aos 6 anos): nos
nificada de muitos ossos em contextos arqueológicos e fo- primeiros anos apresenta um crescimento muito rá-
renses, alguns auto res pro puseram fó rmulas para a estima- pido, que se desaceler a gr adualmente;
tiva do comprimento original de um osso, a partir da aná- 2) média infân cia (dos 6 aos 10 anos): crescimento lento
lise de um frag mento. Segundo Ubelaker (1 999), Holland e unifo rme;
ofereceu uma técnica que possibilita que a estatura em vida 3) puberdade (dos 10 aos 15 anos nas meninas; dos 10
possa ser estimada pelas medições da extremidade proxi- aos 16 anos nos menin os): crescimento muito rápido;
m al da tíbia 17 • 4) adolescência (até 21 anos): caracteriza-se por ser essa
De acordo com Cuenca 1, Steele e McKern (1969), uti- a idade em que se obtém 95% da estatura adulta.
lizando os ossos fêmur e tíbia, aperfeiçoaram o método de
Müller para o cálculo da estatura em ossos fragmentados,
baseados na percentagem de cada segmento na composição • SINAIS PARTICULARES
total do osso. Utilizar am como população de refer ência uma
amostra ameríndia escavada entre St. Francis e o rio Missis- Quando um corpo é descoberto em decomposição, por
sippi no Arkansas, EUA (1 17 exemplares) . Posteriormente, vezes já esqueletizado, todos os esforços devem ser direcio-
Steele (1970) elaborou outras fó rmulas aplicáveis a cauca- nados visando à sua identificação. Critérios de apreciação
soides e negroides1• quanto à espécie, à idade, ao sexo e à estatura estarão dis-

Tabela 5.12. Equações de regressão para estimativa do comprimento de fetos a partir do comprimento da diáfise de ossos longos
(Fazekas e Kósa, 1978 - referidos por Ubelaker, 1999)17
úmero Comprimento (cm) X 7,52 + 2,47
úmero Largura (cm) X 28,30 + 3,95
Rádio Comprimento (cm) X 10,61 2,11
Ulna Comprimento (cm) X 8,20 + 2,38
Fêmur Comprimento (cm) X 6,44 + 4,51
Fêmur Largura (cm) X 22,63 + 7,57
Tíbia Comprimento (cm) X 7,24 + 4,90
Fíbula Comprimento (cm) X 7,59 + 4,68
88 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

poníveis mediante aferições métricas e através do cotejo de maior incidência entre os esquimós -, também pode ser no -
dados concludentes. tado. O toro auditivo é uma exostose que se desenvolve no
Entretanto, se o indivíduo desaparecido apresentar al- interior do meato interno, produzindo diferentes graus de
gum sinal particular no esqueleto, previamente conhecido oclusão do canal.
e registrado por história clínica, cirurgia, fotografia, ficha A conformação peculiar dos seios pneumáticos dos ossos
dentária, exam e radiológico, tomografia ou qualquer ou- da face geralmente é individual, podendo servir como forte
tro método complementar baseado em imagem, tal cir- indicador na identificação, desde que seja possível efetuar o
cunstância será de extrema importância no processo de confronto radiológico entre as radiografias do esqueleto e as
investigação. porventura realizadas previamente na pessoa desaparecida6
Uma vez que a ocorrência de caracteres morfológicos no (ver Capítulo 4).
crânio e na face pode variar desde discretas particularida- Entre as alterações patológicas, podemos citar os desvios
des até verdadeiras deformidades, torna-se necessária a sua do septo nasal (Fig. 5.34), as fissuras palatinas e alveolopa-
avaliação qualitativa. A persistên cia da sutura metópica no latinas (lábio leporino ), os diferentes tipos de prognatismo
adulto, situada na linha média do osso frontal (do ponto (maxilar, mandibular e dentário) e as anomalias dentárias
bregma até o násio ), que costuma fechar aos 8 anos de idade (de volume, de número, de forma e estrutura, de posição e
(Fig. 5.33 ), a presença de entalhes ou orifícios na margem de erupção) (Fig. 5.35 ).
supraorbitária do osso frontal, suturas infraorbitárias, bu- O estudo dos arcos dentários superior e inferior, ou seja,
racos nos ossos malares, m axilares e mandíbula, foramens do conjunto de todos os dentes, apresenta considerável im-
parietais (obeliônicos) que interessam a tábua óssea ex-
terna e a existência de ossículos em pontos específicos das
suturas da abóbada craniana (bregmática, coronal, sagital,
apical, lambdoide, asteriônica etc.) podem constituir sinais
identificadores 16 .
O osso inca, que consiste em um defeito na fusão dos
centros de ossificação primária da porção escamosa do osso
occipital, encontra-se separado do mesmo por uma sutura
transversa (sutura de Mendoza ), localizada acima da linha
nucal, e não deve ser confundido com ossos supranumerá-
rios da sutura lambdoide. Outra variação possível seria o
encontro de uma mudança na direção da flexura do sulco
sagital superio r do osso occipital, em bifurcação ou virada
para a esquerda, a qual se localiza comumente posicionada
à direita.
O achado de sulcos, pontes, nódulos e proeminências
ósseas (toro), particularmente na mandíbula - embora de
Figura 5.34. Desvio de septo nasal. caso do IMLAP-RJ: Guia 11 3, da
1Oª DP, de 31 /10/01.

Figura 5.33. Abóbada craniana mostrando divisão da escama do osso Figura 5.35. Presença de um dente incluso na face anterior do seg-
frontal, à custa de prolongamento da sutura sagital, constituindo a mento mentoniano da mandíbula. Pela sua baixa frequência, é um ele-
chamada sutura metópica. Coleção de Anatomia do Professor Toledo, mento importante na identificação de um esqueleto. caso do IMLAP-RJ,
Universidade Gama Filho. referente ao Memorando 11" 2.424 da 9ª DP, de 26/04/02.
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 89

Técnicas de Coleta e Armazenamento


As am ostras devem ser manipuladas com o uso de luvas
e instrumental limpo para evitar contaminação ou mistura
de material biológico durante a fase de coleta. Existem ins-
truções técnicas específicas par a a coleta, confo rme o tipo de
material examinado. Em restos putrefeitos e corpos carbo ni-
zados, poderão ser recolhidos ossos, dentes, músculos e ou-
tros tecidos internos encontrad os em áreas menos afetadas
pelo calor ou pelo processo putrefativo. No caso de ossadas,
deve-se aplicar o mesmo critério empregado para ossos e
dentes. São os seguintes os métod os utilizados para coleta e
armazenam ento 4 1•43 :
ossos: realizar duas secções transversais de 5 a 10 cm
Figura 5.36. Extremidade inferior das duas tíbias de um homem, em diáfises de ossos longos;
notando-se alteração da curvatura interna supracondiliana esquerda, por dentes: dá-se preferência à retirada de cinco molares
presença de calo ósseo. Caso do IMLAP-RJ: Guia 11 3, da 1Oª DP, de ou pré-molares;
31 /10/01. músculos e outros tecidos: coletar dois a quatro frag-
mentos de 1 cm 3 .
Os ossos e dentes devem ser lavados em água corrente,
secos à temperatura ambiente e, a seguir, estocados em en-
portân cia no esclarecimento de alguns problem as m édico- velopes de papel, sob igual temperatura. Os fragm entos de
legais, tanto no que se refere à identificação de vítimas e cri- tecidos moles devem ser acondicionados em sacos plásticos
minosos como à interpretação de lesões observadas no ca- limpos e armazenados à temperatura de -20ºC.
dáver, uma vez que representam instr umentos cortocontun- Nas circunstâncias em que somente são encontra dos
dentes, podendo-se ainda reconhecer - pelo tipo de marca cabelos, pelos, com o u sem bulbo capilar, e unhas, convém
deixada - qual a espécie de animal que a produziu. Podem secá-los à temperatura ambiente e guardá- los em envelopes
ser analisados quanto ao fo rmato, às dimensões, à curvatura de papel, sendo mantidos em local seco sob temperatura
e às inclinações10•39 . ambiente. Se tais condições de armazenamento não fo rem
As alterações dentárias ad quiridas são inúmeras e devem possíveis, procede-se, então, ao acondicionamento em sacos
ser inspecionadas por odontologistas forenses. Algumas ve- plásticos, mantidos à temperatura de - 20°C, não sendo ne-
zes, podemos deparar-nos com próteses semimóveis ou fixas cessária a secagem prévia do material.
(implante po r pinos), passíveis de simples observação visual Por ocasião do achado de m anchas ou vestígios de m ate-
ou radiográfica. rial biológico (sangue, saliva, esperma) em suportes sólidos
Assim com o no crânio, nos demais ossos do esqueleto é removíveis, tais como vestes, papel, preservativos, louças, ta-
igualmente possível verificar a existência de orifícios aces- lheres, alimentos, objetos, armas etc., o procedimento utili-
sórios, pontes, cristas, sulcos e nódulos ósseos variantes e zado é o mesmo para pelos e unhas. Se tais manchas fo rem
ossos extranumerários. Todavia, o encontro de calos em observadas em suportes sólidos e fixos, como tetos, paredes,
áreas de consolidação de fraturas (Fig. 5.36), incisões ósseas pisos, móveis, veículos etc., deve-se coletar o material bio-
características como trepanações, a presença de placas e pa- lógico com o auxílio de algodão umedecido com so ro fisio-
rafusos m etálicos para a fixação de focos traumáticos, ou de lógico ou cotonete. O método de armazenamento é o mesmo
fios cirúrgicos não absorvíveis constituem elementos há- dos descritos anteriormente.
beis para a identificação, quando o passado cirúrgico possa
ser d ocumentad o junto a terceiros (médicos, dentistas ou
Fundamentos Básicos
fa miliares)1•15•40 •
Durante o seu desenvolvimento, o hom em evoluiu de um
ser constituído por uma única célula (ovo ou zigoto) - um
• DNA (DEOXYRIBONUCLEIC ACID) -ÁCIDO ovócito (óvulo ) fertilizado por um espermatozoide - para
DESOXIRRIBONUCLEICO um organismo altamente complexo, contendo trilhões de
células individuais. A m aio ria dessas células é substituída
Quando os despojos humanos se apresentam muito de- ao longo da vida por processos de multiplicação próprios,
teriorad os, carbonizados, esquartejados ou reduzidos a pe- gerando um ciclo celular cuja duração é variável de acordo
quenos fragm entos ósseos, situações nas quais os parâmetros com os diferentes tipos de tecidos.
antro po métricos não podem ser aplicados de modo confiá- Quase todas as células são fo rmadas por um núcleo,
vel, cabe, então, a análise do material genético - DNA - par a imerso em um líquido, o citoplasma, onde há diversas or-
a sua identificação. ganelas providas de funções específicas (Figs. 5.37A e B). O
90 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

5 conjunto é revestido por uma membrana ou parede, através


da qual se efetuam as trocas com o meio externo. No interior
do núcleo celular existe uma substância denominada croma-
tina, que lhe confere um aspecto granular. Antes do início da
multiplicação celular, a cromatina se condensa para formar
pequenos corpos coráveis, designados cromossomos. Os ge-
3 nes - unidades básicas da herança - transmitidos dos genito-
res para a prole estão contidos nos cromossomos.
Os genes são compostos de ácido desoxirribonucleico
(DNA), que é o precursor para a formação de todas as pro-
teínas do corpo. Desse modo, os genes são os respo nsáveis
pelos aspectos estruturais e funcionais de todo o organismo.
Através de sua transmissão de uma geração a outra é que as
características físicas, como tipo de cabelo, cor da pele e dos
2 olhos, por exemplo, são herdadas nas famílias. Um erro ou
Figura 5.37A. Esquema de uma célula: 1) núcleo; 2) retículo endo- mutação em um ou em vários desses genes pode conduzir ao
plasmático; 3) aparelho de Golgi; 4) mitocôndria; 5) lisossoma; 6) citosol. aparecimento de doenças hereditárias, transmissíveis à prole.

Membrana
Face trans

~ ) Aparelho de Golgi

~ -5) (~\--)
<(__
~ Facecis
Citosol

Retículo endoplasmático

Membrana externa
Espaço perinuclear
Membrana interna

Núcleo

Figura 5.378. Esquema das estruturas celulares. A membrana nuclear é um envelope duplo em que a parte externa se continua com o retículo
endoplasmático, onde se acham os ribossomas. Tanto o retículo como o aparelho de Golgi estão imersos no citosol, o líquido citoplasmático. Adaptado
de Lewin, 199446•
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 91

o
1

8 H H
2 H
/
H.N
3 '
Purina Adenina Guanina
NH. o o
1 ' li

OH HO:
4 1
,,, CH 3

'Ó'
2

1
1
6
.//
o
H H
O
>?
H o>?
H
H

Pirimidina Citosina Uracila Ti mina


Figura 5.38A. Fórmula das bases nitrogenadas que integram os ácidos nucleicos. São duas purinas e três pirimidinas. A uracila só está presente
no RNA, e a timina, apenas no DNA. Adaptado de B. Lewin, 199446•

Em cada cromossom o, há uma única molécula de DNA 5' 1


1
enrolada ao redor de um cerne de proteínas (histonas). A '1
Pirimidina


1
mo lécula de DNA tem três componentes fundamentais: um
açúcar - a desoxir ribose, uma pentose; um grupo fosfato e
quatro tipos de bases nitrogenadas (assim denominadas pela
CH2
sua capacidade de combinação com íons hidrogênio em so-
luções ácidas): adenina, citosina, guanina e timina. As bases
citosina e timina exibem, em sua estrutura química, um anel
de carbono e nitrogênio, sendo chamadas de pirimidinas; as
outras duas, adenina e guanina, são anéis duplos de carbono
e nitrogênio, designadas purinas. As quatro bases costumam
ser representad as por suas primeiras letras em maiúsculo: A,
C, G e T7·44 (Fig. 5.38A).
No século passad o, Watson e Crick propuseram um
m odelo estrutural para demonstrar com o esses três com -
ponentes estão mo ntados para fo rmar o DNA: o fa moso
m odelo de dupla hélice, no qual o DNA seria representado
por uma escada reto rcida, com as ligações químicas cons-
tituindo os degr aus. Cada lado da escada é composto de
fosfatos e açúcares, unidos entre si por fo rtes ligações fos-
fodiéster. As bases nitrogenadas seriam projeções internas
Arcabouço de
de cada um dos lad os da escada, em intervalos regulares,
açúcar e fosfato
ligando-se aos pares por m eio de pontes de hidrogênio re-
lativa mente fracas, fo rmando os degraus da escada (Figs.
5.38B e D e 5.39). Figura 5.388. Estrutura básica do DNA, formada por um arcabouço
constituído por uma pentose - a desoxirribose - radicais fosfato e bases
O pareamento complementar de bases é obrigatório.
nitrogenadas. Adaptado de B. Lewin, 199446•
Logo, a adenina só pode se unir à timina e a guanina, somen-
te à citosina. As ligações químicas entre as bases por pontes
de hidrogênio são constituídas por três po ntes de H+ entre os A visão espacial da dupla hélice do DNA assemelha-se
pares citosina-guanina e por duas pontes entre os pares ade- a uma roda em torno de um eixo e apresenta depressões -
nina-timina (Fig. 5.38D ). A extremidade de cada fita da dupla m aio r e m enor - devido ao pareamento de bases pirimidinas
hélice - pontas da escada - termina com numer ações 3' ou e purinas, diferentes em tamanhos, com estrutura química
5', derivadas da ordem na qual são numerados os cinco áto- contendo, respectivamente, um o u d ois anéis de carbo no.
mos de carbono que compõem a desoxirribose (Fig. 5.38D). Esse pareamento imperativo na composição das duas bases é
Cada subunidade de DNA, chamada de nucleotídeo, consiste o responsável pela estabilidade da molécula porque mantém
em uma desoxirribose, um fosfa to e uma base (Fig. 5.38C)4 5• constante a distância entre as duas fitas (Fig. 5.39) .
92 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

Pirimidina Purina A dupla hélice do DNA não se encontra esticada no in-


terior da célula, pois cada molécula tem quase 2 m de com-
primento. Para comprimir todo o DNA de modo a que ele
caiba em um minúsculo núcleo celular, é necessário um
empacotamento progressivo da molécula ao redor de pro-
teínas, pelo sistema de helicoidização do DNA. Esses sole-
noides são organizados em alças de cromatina, ligadas a um
arcabouço proteico.
Com a sucessiva multiplicação das células para formar
OH OH outras novas, deverão ser feitas cópias idênticas do seu DNA,
para que sejam incorporadas às células-filhas, fato que com-
3-monofosfato 5-monofosfato prova o DNA como sendo o material genético básico.
A replicação do DNA significa que durante a divisão ce-
Figura 5.38C. Os nucleotídeos podem ligar-se a radicais fosfato tanto lular, ao longo do cromossomo, haverá um rompimento das
pelo carbono 3' como pelo carbono 5'. Qualquer das bases pode unir-se fracas pontes de hidrogênio entre as bases, deixando um
a qualquer desses carbonos. Adaptado de B. Lewin, 199446• único filamento de DNA com suas bases não pareadas - de -
nominado molde. Assim, o pareamento consistente de ade-
nina-timina e de citosina-guanina constituirá a base para a
Duas moléculas de DNA são idênticas quanto ao formato, replicação correta. Dessa forma, uma parte de um filamento
e o que diferencia cada DNA é a ordenação de suas bases, pro- único (molde) com a sequência de bases TATGCT irá unir-se
duzindo um sequenciamento de bases pareadas, princípio a uma série de nucleotídeos livres com as bases ATACGA,
da identificação pelo DNA. Então, sequências diferentes de construindo um filamento complementar. Ao término da re-
bases dos nucleotídeos especificam proteínas diferentes plicação, haverá uma nova molécula bifilamentar, idêntica à
(p. ex., ACCAAGTGC). que lhe deu origem (Fig. 5.40).

5'
\
1
1
\

Figura 5.380. A largura da dupla hélice é constante por causa do pareamento necessário das bases púricas com as pirimídicas. Adaptado de
B. Lewin, 199446•
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 93

Sulco menor Uma série de enzimas age na replicação do DNA: uma


desenrola a dupla hélice, outra separa os filamentos e as
demais executam atividades específicas. A DNA polimerase
é uma das principais enzimas envolvidas nesse mecanismo,
através da adição de nucleotídeos livres ao molde, e também
faz uma espécie de revisão, conferindo se o novo nucleotídeo
incluído é de fato complementar à base do molde. Mas, mes-
mo com toda essa precisão, poderão ocorrer erros de replica-
ção que irão produzir mutações.
Ao mesmo tempo em que o DNA guarda o seu longo
código genético no interior do núcleo da célula, registrado
na sequência de suas bases nitrogenadas, estando implícita
a programação de um ou mais caracteres hereditários, vai
ocorrendo no citoplasma a síntese de proteínas. Para que isso
aconteça, a informação contida no DNA deve ser, portanto,
transportada para o citoplasma, a fim de ditar a composi-
ção de cada proteína. Isso envolve dois processos distintos: a
transcrição e a tradução, ambas mediadas por um outro áci-
do, o ribonucleico (RNA).
Existem três diferenças simples entre o RNA e o DNA: na
composição do RNA o açúcar é a ribose em vez da desoxirri-
bose; uma de suas quatro bases é a uracila, em vez da timina,
e, por último, o fato de que, em geral, o RNA é constituído
por um filamento único.
Durante o processo de transcrição, forma-se uma se-
quência de RNA, o RNA precursor, a partir de um molde
de DNA. Segmentos desse RNA (íntrons) são removidos por
enzimas nucleares, e as porções restantes ( éxons) são reuni-
das para formar o RNA mensageiro (RNAm ), que irá codi-
ficar as proteínas no citoplasma pelo processo de tradução
Figura 5.39. Esquema tridimensional da dupla hélice do DNA. As (Figs. 5.41 e 5.42).
bases nitrogenadas são representadas pelas placas e o arcabouço de As pro teínas são grandes mo léculas constituídas por um
pentase-fosfato, pelas esferas. Adaptado de Griffiths, 200045• ou mais polipeptídeos, os quais são compostos de sequências

S-P
1
G
Nucleotídeos livres
l'r
.:
.i+
1
fJ.
1
iii
·G
1
G
1
a'/
íi
A1
/J

5'
5·. P- s- P- S- P- S" P-S -'1>-S'-' p-d_

Direção ~

-?·
-s-P-S-P-S- s-P-s-P-~
A
1 1
J
1
G e1 e.1, i
..' \
:.11' 1.' !!1
·:· ...ili \\\.,
.
\\

Nucleotídeos livres

Figura 5.40. Esquema da replicação do DNA pela enzima polimerase. A seta indica o sentido da separação dos filamentos que servirão de molde
para a duplicação. Adaptado de Griffiths, 200045.
94 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

RNA recém-formado Filamento modelo de DNA


'í' _S- P- S-P - S - P-S - P..- S- P- S - P-S -P---..
s' 1 1 1 1 1 1 1 S-
~" \ A )~ A ~ A C A / P".;s
.. . i' / '.o DNA de hélice dupla
/ -' 'S
- - S-P,-.S -P- S'
QI ' P -s-P
1 1 1
3' RNA G T ~
~ polimerase ! ;;
C A A
(, 1 1 1
\,....- p-S-' P-S- P-S- 3'
e,, / ç "
T A T G T ~ ~,..'ô
p-J- P-L P- ~- p-~- p- ~~ p -S ~
Figura 5.41 . Esquema da formação do RNA a partir do filamento do DNA. Adaptado de Griffiths, 200045 •

de aminoácidos que, por sua vez, são especificados por trin- Chama-se de ribossomo a estrutura citoplasmática onde
cas de bases nitrogenadas, denominad as códons. acontece a síntese de proteínas, através do RNA ribossom al e
O RNA mensageiro fornece um molde para a síntese de de diversas enzimas, finalizando a tradução do código gené-
um polipeptídeo, interagindo com outra espécie de RNA, o tico. Em resumo, pode-se concluir que os DNA são os "pro-
RNA transportador (RNAt), pois não pode ligar-se direta- gram adores" genéticos, enquanto os RNA são os "executo res"
mente a aminoácidos. O RNAt possui o anticódon do RNA dessas programações, por meio da formação de proteínas es-
mensageiro (trincas de bases pareadas), especificando a se- pecíficas que fo rnecem as características físicas do indivíduo.
quência correta de aminoácidos pa ra formar determinada O código genético é dito universal, visto que todos os or-
pro teína (Fig. 5.43 ). ga nismos vivos usam os mesmos códigos de DNA para espe-

Éxon 1 íntron 1 Éxon 2 íntron 2 Éxon 3

D Síntese de RNA

RNA

D União

mRNA

D Síntese de proteína

Proteína

<....--------.>
Figura 5.42. Os genes interrompidos são expressos por meio do RNA precursor, do qual são retirados os íntrons para que os éxons possam ser
unidos na sequência natural do RNA mensageiro (RNAm). Adaptado de B. Lewin, 199446•
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 95

NH,
R-C-H
C=O

RNAt

~ RNAm

Figura 5.43. ORNA transportador (RNAt) tem uma estrutura de quatro braços. Um deles tem o anticódon, elemento de reconhecimento do códon;
outro capta o aminoácido apropriado (seta maior). A seta menor indica o pareamento entre o códon do RNAm e o anticódon do RNAt. Adaptado de
B. Lewin, 199446•

cificar aminoácidos, à exceção do que ocorre nas mitocôn- Variação Genética e Perfil de DNA
drias, or ganelas citoplasmáticas responsáveis pela respiração
celular. A mitocôndria possui mo léculas próprias de DNA A variação genética explica as inúmeras diferenças cons-
extranuclear, provenientes de linhagem exclusivamente ma- titucionais entre os seres humanos. Do mesmo modo, as
terna. Vá rios códons do DNA mitocondrial codificam ami- doenças genéticas podem estar incluídas nesse rol de altera-
noácidos distintos dos códons do DNA nuclear. ções que ocorrem nos genes44 .
Em Genética, apesa r da maior ênfase conferida ao DNA A principal causa de variação genética é a mutação, que
que codifica pro teínas, deve ficar estabelecid o que somente consiste em uma mudança na sequência de bases d o DNA.
10% dos três bilhões de pares de nucleotídeos componentes As mutações podem ser induzidas ou espontâneas. Existe
do genoma humano desempenham esse papel. A maioria do um grande número de agentes que produzem mutações,
DNA constituinte do nosso genom a não apresenta função como as radiações (ioniza ntes e não ionizantes), substâncias
conhecida. químicas diversas e fa tores ambientais. As mutações de natu-
Existem vários tipos de DNA. Os principais são: reza espontânea são aq uelas que aparecem naturalmente no
DNA de cópia única: é aquele em que suas sequên- processo de replicação do DNA.
cias são verificadas apenas uma vez no genoma, As mutações podem afetar todas as células do organismo,
constituindo cerca de 75% do mesmo. Inclui os ge- mas as que interessam para a prática fo rense são somente
nes codificadores de proteínas, embora em pequena aquelas que comprom etem as células germinativas, produ-
proporção; to ras de gam etas, uma vez que serão transmitidas de uma
DNA repetitivo: apresenta sequências que são repeti- geração a outra. Cada uma dessas células possui 23 cromos-
das milhares de vezes no genom a. Representa 25% do somos: d o número 1 ao 21, X e Y.
genoma to tal e é classificado em duas modalidad es: Além da mutação, existem outras causas de variação ge-
o DNA repetitivo disperso (15%) e o DNA satélite nética, tais como a seleção natural, a deriva genética e o fluxo
(10%). No primeiro, as repetições tendem a ficar es- gênico, fatores q ue justificam a incidência de determinados
palhadas, e no segundo elas são agrupadas em certos caracteres físicos e doenças genéticas entre grupos étnicos
locais cromossómicos e ocorrem em tandem, como diferentes.
se fosse em fila. O começo de uma repetição segue As mutações podem determinar tanto alteração do nú-
imediatamente o final da anterior. m ero ou da estrutura dos crom ossomos, visíveis ao micros-
96 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

cópio, quanto mudanças ao nível de um único gene, seja em Entretanto, mutações que não chegam a afetar aminoáci-
DNA codificante ou em determinadas sequências regulado- dos e algumas substituições de aminoácidos que não alteram
ras, não observáveis à microscopia. a carga elétrica da molécula de proteína não podem ser de-
Quando a mutação afeta apenas um gene, ela pode ocor- tectadas por esse método.
rer por substituição, deleção ou inserção de um ou mais pa- Outra análise foi desenvolvida para a detecção de varia-
res de bases nitrogenadas, por diminuição da afinidade de ções em níveis de DNA, a partir do conhecimento das endo-
enzimas etc., modificando aminoácidos por alteração na re- nucleases de restrição ou enzimas de restrição, que são enzi-
gulação da transcrição ou da tradução e, por conseguinte, mas produzidas por várias espécies de bactérias cuja função
causando anormalidades na estrutura e no tamanho de uma seria coibir ou "restringir" a entrada de DNA exógeno na
proteína. bactéria, cortando o DNA em sequências especiais, passí-
Então, na dependência do tipo de mutação, a alteração veis de serem reconhecidas. Tais sequências são designadas
gênica poderá não apresentar qualquer efeito físico ou vir a sítios de restrição ou sítios de reconhecimento. Uma determi-
acarretar doenças genéticas de gravidade variável. nada bactéria produziria uma enzima de restrição, capaz de
Como vimos anteriormente, um gene, unidade de DNA reconhecer uma sequência de DNA do tipo GAATTC, por
com atividade transcricional, encontra-se posicionado ao exemplo. Cada vez que essa sequência aparecesse, a enzima
longo dos cromossomos. Um mesmo gene poderá apresen- a quebraria entre G e A, produzindo fragmentos de restrição
tar diferenças na sua sequência de DNA, como consequência deDNA.
de uma única ou de várias mutações. Essas sequências altera- Suponhamos, então, uma região da molécula de DNA
das pela mutação são designadas ale/os. Cada gene exibe uma que tenha milhares de pares de bases de comprimento e que,
localização específica em um cromossomo, que é chamado nessa sequência, inclua três sítios de reconhecimento para a
de locus, que significa "lugar" em latim e cujo plural é loci. enzima de restrição produzida por aquela bactéria. Se existir
Assim, pode-se exemplificar dizendo que uma pessoa porta- um polimorfismo no meio de um sítio de restrição - do tipo
dora de um distúrbio na síntese de hemoglobina possui um GAATTT, em vez de GAATTC, que é a sequência reconheci-
certo alelo no locus da a globina do cromossomo 16. da pela enzima-, esta não irá cortar a sequência polimórfica
Os alelos presentes em determinado locus constituem o e, sim, os sítios de restrição normais, situados a cada lado do
genótipo da pessoa. Essa combinação alélica dos loci deter- polimorfismo. Logo, esse fragmento específico de DNA que
mina o "mapa" genético de cada ser humano. O fenótipo é o contém o polimorfismo será mais longo nas pessoas que não
resultado da expressão gênica de um genó tipo, representado têm o sítio de restrição do que naquelas que o possuem. Se
pelas características físicas de um indivíduo, produzidas pela fosse possível a visualização direta dessa diferença entre os
interação entre os genes e o meio ambiente. comprimentos de fragmentos de DNA, poder-se-iam notar
Os alelos, sequências diferentes de DNA, decorrentes de diferenças nas sequências de DNA entre as pessoas - princí-
mutações, contidos em loci dos cromossomos, variam de for- pio do polimorfismo de DNA (Fig. 5.44).
ma considerável entre os indivíduos e apresentam frequên- Existem vários polimorfismos empregados nos processos
cias diferentes na população. de identificação por DNA, a saber:
Caso um locus tenha dois ou mais alelos cujas frequências RFLP - E.estriction Eragment Length Eolymorphism.
ultrapassem 1% da população, esse locus é dito po limórfico Polimorfismo de comprimento de fragmento de res-
(com muitas formas). Em geral, a presença de locus polimór- trição: polimorfismo decorrente da variação de sítios
fico é denominada polimorfismo. de enzima de restrição, que consiste nas diferenças de
Enquanto a mutação implica uma alteração na sequên- comprimento de fragmentos de restrição, resultantes
cia do DNA, que resulta em uma mo dificação da expressão das variações nas sequências de DNA em sítios de res-
gênica, o polimorfismo, embora constitua, igualmente, uma trição específicos.
alteração na sequên cia de DNA, não acarreta tal mudança. VNTR - Yariable l:{umber of Iandem E.epeats (minis-
Todavia, contribui para a identificação de uma pessoa por- satélites): tipo de DNA satélite que implica um núme-
que seus diferentes tipos consistem em características estru- ro variável de unidades de repetição em tandem (fila ),
turais do DNA. com comprimento de cerca de 20 a 70 pares de bases.
O estudo dos polimorfismos iniciou-se com os vários sis- STR - S.hort Tandem Repeats ( microssa télites): tipo de
temas de grupos sanguíneos ABO e Rh. A seguir, a técnica da DNA satélite constituído por pequenas unidades de
eletroforese de proteínas aumentou bastante o número de repetição com comprimento de dois, três ou quatro
polimorfismos detectáveis, com base no fato de que uma pares de bases.
única diferença de aminoácidos em uma proteína pode re- SNP- S.ingle N.ucleotide Eolymorphism. Polimorfismo
sultar em alteração de sua carga elétrica. No interior de um simples, de apenas um único nucleotídeo, em um seg-
gel atravessado por uma corrente elétrica, é colocada deter- mento de DNA.
minada amostra de tecido, que, após coloração específica, irá As técnicas comumente utilizadas para determinar o per-
formar bandas visíveis e distintas, representando moléculas fil de DNA são a transferência de Southern -blot e a amplifi-
com cargas elétricas diferentes, que correspondem a sequên- cação de DNA por reação em cadeia da polimerase (PCR =
cias diferentes de aminoácidos. polymerase chain reaction) 4•4 1•44 •
CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 97

O DNA tem três sítios de ataque na região A mutação elimina um sítio de ataque
>
V
n A clivagem produz dois
fragmentos internos
n A clivagem produz um
\! fragmento interno
~'\\,"\."\...'\."\... ~"\.
"\... '\\,'\\,"\."\...'\."\...'\\,~
Fragmento A Fragmento B Fragmento C

.JJ. Eletroforese Eletroforese .o.

B
~~- - - ; -L .........................................................r•·t::::.
.-· --: :.... . . . . ..... .... . .. . . . ...... . . . . . . ...... . .... .. . . . . . . .... ..... . .. . .... ..... . . . . .... ..... .. .. . .... .. .. . .. . ...
·----- -·
íl e

Figura 5.44. Uma mutação no DNA que afete um local de restrição altera o número e o tamanho dos fragmentos gerados pela ação da enzima
de restrição. Nesse exemplo, desaparecem as marcas dos fragmentos A e B e surge uma marca nova, do fragmento C, no gel onde se faz a eletro-
forese. As marcas de cada fragmento são reveladas pela acoplagem da extremidade de cada fragmento com material radioativo. Como a facilidade
de arrastamento de cada fragmento varia com o seu comprimento, as marcas de cada um ficam a diferentes distâncias da fonte elétrica. Adaptado
de B. Lewin, 199446 •

A tran sferên cia d e Southern-blot é um méto do qu e per- conter uma mutação que determine doen ça o u um
mite, em geral, analisar to do o genom a de uma célula ou polimorfismo d e repetição de minissatélite;
de um organismo com relação à orga nização estrutural do s 2) DNA polimerase, enzima que norm almente efetua a
sítios de reconhecimento d e en zim a de restrição, q ue requer replicação do DNA, obtida sob fo rma termicam ente
quantidad es relativam ente grandes d e D NA para que po ssa est ável a partir da bactéria Thermus aquaticus, que irá
ser utilizado. O procedimento laboratorial co nsist e na di- efetuar a ampliação do primer;
gest ão do D NA extraído de am ostras po r uma enzima d e 3) Um gr ande número de nucleotídeos livres de DNA;
restrição, o qu al é colocad o em um gel de agarose. O s frag- 4) DNA gen ômico de uma pessoa, mesmo em pouca
mentos de DNA obtidos pela eletroforese em gel, sepa rados quantidad e.
de acordo com o seu t amanho, são d esnaturados e transferi- O DNA genômico é su cessivam ente aquecid o a tempe-
dos para uma membran a sólida (blot ), como a nitrocelulose, ra turas progressivamente d ecrescentes, sen do inicialmente
onde são híb ridizad os com uma sonda radioativa e, post e- d esnaturado, ficando unifilamentar. A seguir, após resfria-
riormente, expostos a um filme d e raios X (au torradiogra- m ento, é exposto a grandes quantidades de primers, com os
ma ). A autorradiografia revela os fragm entos específicos quais se hibridiza e se h elicoidiza por parea mento com ple-
(ba ndas) d o DNA d as amostras, com diferentes t amanho s m entar de bases nitrogenadas. Depo is, na presença de um
(Fig. 5.44). gran de número de bases livres de DNA e da DNA polimerase
A PCR (reação em cad eia da polimerase ) é uma t écni- ocorre a síntese de um n ovo filamento de DNA, am pliando
ca mais sensível e m oderna que possibilita a análise de uma a sequência do primer. Vários ciclos de aqu ecimento-resfria-
região específica do D NA, por m eio da a mplificação bioquí- m ento são repetido s, de mo do que o DNA recém -sintetizad o
mica ou molecular d e uma sequ ência-alvo, capaz de gera r ligado ao primer sirva de m olde par a outras sínteses, produ-
com eficácia um grande número de cópias de um segm ento zindo uma am plificação geométrica do número de cópias d o
específico de DNA a partir d e pequena q uantidade de mat e- DNA o riginal.
rial genético. Outras técnicas par a detecção d e mutação podem tam -
O processo da PCR requer quatro co m po nentes obriga- bém ser u sadas, tais como o sequencia mento diret o do DNA, a
tório s: espectro metria de m assa e a hibridização co m chip d e DNA;
1) D ois primers ou iniciad ores, que são pequ en as se- to davia, a su a explanação ultrapassaria os limites de apren -
quências de DNA (oligonucleotídios com 15 a 20 pa- dizado pretendidos n este capítulo.
res de bases cad a um ) sintetizadas laboratorialmen - Em virtude d os inúmeros polimorfis mos existentes n os
te, con fo rme a sequ ência que se d eseja an alisar. O s seres human os, faz-se praticamente certa a afirmação d e que
primers correspondem a sequências d e DNA imedia- cada indivíduo seja geneticam ente único (à exceção d os gê-
t amente adjacentes à sequ ência-alvo, a qual poder á m eos idênticos).
98 • CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura

O princípio básico para estabelecer um perfil de DNA 19. Robbins S, Cotran RS, Kumar V e Collins T. Patologia estrutural e
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CAPITULO 5 Identificação de Restos Humanos. Determinação de Sexo, Idade e Estatura • 99

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Hygino de C. Hercules

• CONCEITUAÇÃO DA MORTE das na linha de montagem de proteínas, hormônios e outras


substâncias indispensáveis. Como uma fábrica, precisa de
O patologista forense britânico Bernard Knight ', de energia para funcionar. É o metabolismo celular que forne-
modo pouco claro, afirma que a morte não é a ausência de ce a energia a ser utilizada por aq uelas organelas através da
vida e sim a sua interrupção definitiva. Só se pode falar em queima da glicose e de o utros nutrientes.
mo rte onde deixou de haver vida. No dizer de Alves de Me- Explicando melhor nossa analogia, podemos dizer que
nezes2, o nde começa a morte da vida inicia-se a vida da mor- há uma divisão de tarefas dentro de uma célula, de modo a
te. Mas, resistindo à tentação das abordagens filosóficas, fica podermos identificar três setores principais responsáveis pela
claro que a tarefa de conceituar a morte deriva diretamente manutenção da vida: membrana celular, metabolismo energé-
do que se entende por vida. São dois estados que se excluem tico e síntese de proteínas3• A membrana é o setor de controle
mutuamente - estar vivo e estar morto - , sem que caiba um do que entra e do que deve sair da célula para o exterior.
meio -termo. Definido um, estará conceituado o outro como Assim como uma fábrica precisa receber a matéria-prima de
um corolário. Po r isso, achamos melhor descrever o proces- que necessita na quantidade e qualidade adequadas e desfa-
so vital para, em seguida, explicar como se deve entender a zer-se dos subprodutos indesejáveis da linha de produção, a
morte celular, a do organismo como um todo e a da pessoa . célula viva precisa absorver nutrientes e oxigênio para poder
funcionar e eliminar as substâncias nocivas que são geradas
pelo metabolismo. A integridade da membrana celular é
Morte Celular
indispensável para manter sua função de vigia da porta da
A vida pode ser encarada sob vários ângulos, conforme fábrica. Sua estrutura bioquímica é formada por associação
o ponto de observação que se proponha. Começando pelo de proteínas com lipídios especiais, de tal modo arrumados
nível celular, temos que entender o que é uma célula viva e que se comunicam com o citoesqueleto, um conjunto de
quando ela deixa de viver. É muito difícil definir o que, em microtúbulos de natureza proteica, que dão sustentação aos
essência, torna diferente a célula viva da que já morreu. Ou elementos celulares. Esses túbulos têm que ser renovados a
melhor, a dificuldade situa-se, na realidade, como veremos, partir das proteínas celulares, tarefa que depende da energia
em estabelecer o momento em que se dá a transição da vida produzida pela queima dos nutrientes dentro da célula.
para a morte. Os nutrientes são os glicídios, lipídios e as proteínas. A
A célula viva assemelha-se a uma fábrica. Apresenta um queima dos glicídios produz a maior parte da energia de
limite espacial demarcado pela membrana celular, onde que a célula precisa para lidar com as outras substâncias,
existem portões seletivos para a entrada de insumos básicos principalmente as de natureza proteica. Na presença de teor
(nutrientes) e para a saída de produtos acabados (moléculas adequado de oxigênio, essa queima produz quantidade sufi-
complexas sintetizadas). Em seu interior há organelas, como ciente de energia para mover todo o metabolismo celular. Na
o ribossoma e o aparelho de Golgi, com funções determina- falta de oxigênio, a queima é incompleta e sobram produtos

103
104 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

tóxicos, de modo semelhante ao que ocorre com um motor a a ser visível ao microscópio comum. Sua progressão a torna
explosão desregulado, que acaba por se prejudicar pelos resí- visível a olho nu somente depois de 8 a 12 horas de ocorrido
duos da combustão parcial. o infarto4 • Se for feita uma necropsia antes desse prazo, oco-
Há uma hierarquia dos vários tipos celulares quanto à ração poderá ter aspecto semelhante ao normal.
resistência à hipoxia. Os menos resistentes são os neurônios. O que se obtém ao se fazer um exame microscópico é
Os neurônios do córtex cerebral resistem por apenas 3 a 7 um instantâneo do transcurso de um processo dinâmico, tal
minutos após uma parada cardíaca. Outras células são ca- como uma fotografia da bola no fundo das redes, após um
pazes de resistir muito à privação de oxigênio. Há um teste gol, numa partida de futebol. E o flagrante pode ter sido to -
para determinação da hora da morte do indivíduo que se mado quando a alteração mortal era apenas bioquímica, sem
baseia na manutenção da excitabilidade das fibras muscula- tradução morfológica. Aquela foto de microscopia eletrônica
res esqueléticas. É possível provocar contração muscular no inicial "normal': obtida na fase em que a alteração é apenas
cadáver depois de várias horas. Fibroblastos da pele ainda funcional, é tão reveladora quanto a foto do corpo de um
podem ser cultivados em meio artificial cerca de 24 horas indivíduo deitado, que pode estar dormindo, em estado de
após a morte do indivíduo 1 • coma ou morto.
Diz-se que a célula está viva enquanto a membrana for As células podem morrer isoladamente ou em grupo. Até
seletiva, houver produção de energia e continuar a síntese relativamente pouco tempo, a morte individual de uma célu-
daquelas substâncias que serão exportadas pelo sangue ou la era pouco conhecida. Atualmente, sabe-se que pode ocor-
utilizadas na formação e renovação da própria estrutura ce- rer tanto em condições fisiológicas como pela ação de agentes
lular. A essa integração de funções celulares é que podemos cha- patogênicos. É a morte programada. Nessa forma de morte,
mar vida. Por conseguinte, célula morta é aquela em que essas a célula afetada é separada das suas irmãs, reduz seu tama-
funções não estão mais integradas. nho em cerca de 50%, fica mais densa por perda de líquido,
Para que se atinja e se ultrapasse o limite entre a vida e apresenta depressões em sua membrana, mas não apresenta
a morte celular, é preciso que o estímulo nocivo - a agres- grandes alterações de suas organelas, cuja morfologia à mi-
são - tenha intensidade e duração suficientes para romper o croscopia eletrônica não se desvia muito da normalidade. Tal
equilíbrio baseado naquele tripé funcional (membrana ce- processo é conhecido como apoptose. Ocorre tanto durante
lular, metabolismo energético e síntese proteica ). O ponto a vida embrionária como após o nascimento. Prom ove uma
de partida da agressão pode-se assestar em qualquer destas verdadeira modelagem do embrião. Tanto serve para criar
vertentes. Assim, há agentes que matam a célula, bloqueando cavidade em vísceras ocas e <lutos glandulares, como para
seu sistema energético. Com o exemplos, a privação de oxigê- formar as cavidades cardíacas, ou fazer involuir a genitália
nio e a intoxicação pelo cianeto. do sexo oposto ao determinado geneticamente. Na vida após
É bem mais fácil explicar o mecanismo da cessação dos o nascimento, é encontrada na atrofia de glândulas por falta
fenômenos vitais celulares d o que estabelecer o exato m o- de estímulo hormonal, em várias formas de agressão, como
mento em que uma agressão ultrapassa o ponto de não re- viroses, em reações imunológicas, e em outras condições. É
to rno, aquele em que o desarranjo bioquímico, e portanto um processo isolado que dura poucos minutos e não desen-
funcional, se torna irreversível. Na sequência de eventos, pri- cadeia uma resposta inflamatória5 (Fig. 6. 1).
meiro vem a alteração bioquímica de uma das três funções já Q uando a morte celular ocorre em grupo, em um teci-
citadas, depois o comprometimento das demais. A partir daí, do, diz-se que houve uma necrose. Resulta, basicamente, de
começam a aparecer as alterações morfológicas das or ganelas profunda alteração do meio extracelular desencadeada por
celulares, visíveis, inicialmente, ao microscópio eletrônico. imensa gama de agentes patogênicos. As células necróticas
Só mais tarde é que podem ser observadas ao microscópio apresentam alterações muito mais nítidas em suas organelas,
óptico comum. Mas o ponto de não retorno já pode ter sido com rotura da membrana celular e desaparecimento gradual
ultrapassado antes mesmo de surgirem as alterações das or- do núcleo. As substâncias produzidas pela destruição celular
ganelas. É o que ocorre, po r exemplo, quando o indivíduo funcionam como m ediadores químicos e desancadeiam uma
sofre um infarto d o miocárdio. A obstrução da artéria coro- reação inflamatória. Dependendo da extensão e da localiza-
nária reduz consideravelmente o oxigênio no tecido muscu- ção da necrose, a consequência será uma cicatriz sem im-
lar cardíaco, o que dificulta a queima dos nutrientes e a pro- portância, insuficiência funcio nal ou a m orte do organismo
dução de energia celular. Esta deixa de ser feita pela via nor- com o um todo (Figs. 6.2 e 6.3).
mal aeróbica e passa a utilizar a via anaeróbica, com acúmulo
de ácido lático e liberação de radicais livres oxidantes. Após Morte do Corpo
15 a 40 minutos, aparecem alterações mitocondriais, segui-
das por rotura da membrana celular. Segue-se distorção das No caso de seres unicelulares como, por exemplo, os
unidades contráteis do músculo. Isso quer dizer que, em mo- protozoários, a morte celular define a morte do indivíduo.
m ento muito precoce, mas já ultrapassado o ponto de não Mas, tratando-se de seres mais complexos, pluricelulares, a
retorno, o exame ao microscópio eletrônico ainda mostra demarcação dos limites entre estar vivo e estar morto fica
um aspecto de célula normal. Ela já está morta, mas aparece bem mais difícil. Pode haver morte de parte do organismo
como normal. Som ente depois de 4 horas é que a lesão passa sem que o todo seja destruído. Depende da parte perdida. Se
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 105

Figura 6.1. Corte de fígado que apresenta balonização dos hepatócitos Figura 6.3. Corte histológico da zona de transição entre o músculo
em geral, aumento do número das células sinusoidais e um corpúsculo cardíaco normal e uma área de infarto, que é mais clara e ocupa quase
acidófilo (hepatócito retraído e corado em vermelho pela eosina) situado todo o campo, a não ser a faixa mais escura da esquerda, que tem o tecido
próximo ao centro da figura. Objetiva de 40x. Coloração HE. Biópsia muscular preservado. Caso 5798 do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ.
2905/80 do Serviço de Patologia do HUCFF.

essa parte for essencial para o conjunto, sua perda acarreta a


morte do indivíduo.
Aqui, a primeira grande dificuldade é determinar o que
é, realmente, essencial. No caso do ser humano, uma unidade
biopsicossocial, a discussão gira exatamente em torno da de-
terminação do que é, ou não, essencial. A segunda é estabele-
cer em que ponto do processo destrutivo deve-se afirmar que
a perda se concretizou. Ou seja, na evolução da lesão que le-
vou à perda daquela parte, tem -se que determinar o ponto de
não retorno desse processo. O evento morte situa-se nesse pon-
to. Como o organismo só pode estar vivo ou morto, a morte
tem que ser esse ponto, não o processo de morrer6 • Dito de
outra forma, há uma sequência de eventos ao longo da qual
fazemos a transposição da nebulosa fronteira da morte7.
Ao longo da história, o conceito de morte do ser humano
passou por enunciados que refletiam as crenças e os conhe-
cimentos da época. Assim, a morte já foi conceituada como a
perda dos fluidos vitais, a separação da alma, a perda da ca-
pacidade de integração do corpo e até a perda da capacidade
de consciência e integração social. Quer dizer, o conceito
sempre foi reflexo do ambiente cultural vivido. Depende de
um contexto social que tem relações complexas com a me-
dicina8. Mas podemos dizer ser o conceito um estado em que
o indivíduo tem que estar para ser considerado morto. E para
se dizer que o conceito está presente são adotados os critérios
que o demonstram. Mas não devemos confundir o conceito
com os critérios utilizados para demo nstrá-106•1º.
A partir dos anos 50 do século passado, o desenvolvimen-
to de centros de tratamento intensivo (CTI) trouxe um pro-
blema que não existia na medicina: a manutenção, por meios
artificiais, da vida de pacientes muito graves pelo uso de
máquinas como as de diálise, de circulação extracorpórea e
Figura 6.2. Área extensa de amolecimento cerebral que ocupa a os respiradores6 •8. Mais tarde, a circulação extracorpórea, as-
cápsula interna e o núcleo lenticular esquerdos. A-68-26 do arquivo do sociada ao respirador de pressão positiva, nas cirurgias car-
Laboratório de Patologia da Santa Casa de Misericórdia do RJ. Autopsia díacas, fez com que indivíduos fossem mantidos vivos por
feita pelo autor em 1968. máquinas que lhes supriam as funções vitais circulatória e
106 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

respiratória. E tais funções embasavam o tradicional cri- bral, representado pela perda daquelas funções de regulação
t ério de morte. Se o indivíduo não estava a respirar por si e coordenação, passou a representar a morte do indivíduo.
nem seu coração bombeava seu sangue, preenchia os crité- No ser humano, tais funções servem para manter a con sciên-
rios tradicionais de morte. Mas n ão estava morto. Faltava a cia (córtex), a homeotermia e o equilíbrio neuroendócrino
irreversibilidade8•9• (dien céfalo ), e ajustar a respiração e a circulação conforme
A primeira tentativa de se desloca r o conceito de mor- as necesssidades (tronco cerebral). A partir daí, surgiram três
te da clássica parada cardiorrespiratória foi a de Mollaret e vertentes de conceituação da morte cerebral: 1) morte corti-
Goulon , em 1959, quando descreveram um estado de coma cal ou do cérebro superior, 2) morte encefálica ou cerebral to-
arresponsivo e irreversível a que deram o nome francês de tal, incluindo o tronco cerebral e 3) morte do tronco cerebral.
coma depassé, ou seja, coma ultrapassado. Eram doentes in- A maioria dos casos resulta d e traumatismo cranioence-
capazes de realizar por si próprios aquelas fun ções vitais. fálico. Mas os acidentes vasculares encefálicos, a encefalopatia
Em 1968, menos de 1 ano depois dos transplantes de co- anóxica e as neoplasias também são capazes de comprometer
ração feitos por Christiaan Barnard na África do Sul, o Co- o cérebro tão extensamente que suas funções integradoras
mitê Ad Hoc da Escola de Medicina de Harvard estabeleceu são suprimidas. O grau de comprometimento das funções
os critérios para considerar irreversível um estado de coma. cerebrais varia com a extensão do dano que o provocou 14•
Deveria ser de causa conhecida, excluindo-se os casos de in-
toxicação e aqueles com hipotermia, e acompanhado de au- Morte Cortical
sência co mpleta de atividade reflexa, inclusive espinal, com
Seus proponentes partiram daquele princípio de que o
apneia e traçado de eletroencefalograma (EEG) plano. Tal
homem é uma unidade biopsicossocial. Na impossibilidade de
quadro deveria perdurar por, no mínimo, 24 hora s 11 • A con -
interagir com seus semelhantes, pois que inconscientes d efi-
sequência imediata da aceitação dessa irreversibilidade seria
nitivamente, devem ser considerados mortos por lhes faltar
um novo conceito de morte. Mas a confusão entre conceito e
a capacidade de dar e receber afeto, de se alegrar ou ficar
critérios permanecia. Quase todos os estados no rte-ameri-
triste e de expressar seu s sentimentos e desejo' 5•16 • Faltaria a
canos baixaram normas estabelecendo os fundamentos do
con sciência, essencial para os componentes social e psíquico
diagnóstico da morte cerebral.
daquela unidade. Mal comparando, seria o contrário da afir-
Em 1981, uma Comissão Presidencial n orte-americana
mação cartesiana do "Penso, logo existo".
do governo Reagan propôs legislação específica, que ficou co-
Cabe, aqui, estabelecer algumas noções sobre consciên -
nhecida como Uniform Determination of Death Act (UDDA) .
cia, estado vegetativo persistente e coma. A plenitude da
Nela ficava estabelecido legalmente que: "Um indivíduo que con sciência caracteriza-se pela capacidade de trocar ideias
tenha sofrido parada irreversível das funções circulatória e res-
com outras pessoas e de comunicar-se de maneira adequa-
piratória ou parada irreversível de todas as funções do cérebro,
da e pertinente. No estado vegetativo persistente, o paciente
incluindo o tronco cerebral, está m orto'2• Não se tratava mais
não tem a percepção de si nem do meio que o cerca. Ora
de considerar morto e, sim, de estar morto. Essa pro posta foi
parece dormir, ora parece acordado. Suas funções vegetativas
endossada por várias associações, como a American Bar As-
são mantidas por si, d esd e que seja alimentado por sonda. A
sociation, American Medical Association, American Academy
estimulação visual, auditiva ou t átil d esperta respostas des-
of Neurology e American Eletroencephalographic Society' 3•
propositadas e inconstantes, que n ão se repetem de m odo
O conceito de m orte cerebral chegara para ficar, princi-
regular. A maioria dos seu s reflexos está presente. Revela in-
palmente porque era o meio adequado de favorecer o supri-
contin ência urinária e fecal. No estado de coma, o paciente
mento de órgãos de que tanto precisavam os doentes nas fi-
perde totalmente a consciência por um perío do pro lo ngado,
las de espera por transplantes, além de liberar leitos nos CTI mais de uma hora, e não pod e ser acordado. A morte cortical
e d e interromper o sofrimento dos familiares.
inclui tanto o estado vegetativo persistente como o estado
de coma, em que o indivíduo pode respirar por si próprio e
Morte Cerebral
manter sua circulação8 •14 •
O organismo de qualquer animal vertebrado é mais do que A adoção do conceito de morte cortical permitiria que se
a soma d e suas células e tecidos. Ele tem funções que surgem pudesse cessar a alimentação do paciente em estado vegeta-
da interação dos seus órgãos, funções próprias e inerentes ao tivo persistente que se to rnasse permanente. Mas o critério
tod o e que não se situam em qualquer das partes. Assim, a re- para rotular tal estado com o permanente é prognóstico e,
gulação da respiração, circulação e ho meostasia, e o controle como tal, tem alguma margem de erro. Há registro de que
nervoso dos diversos componentes do organismo constituem ocorre recuperação da consciência em 1% desses casos 17 •
funções d e integração exercidas por um intercâmbio entre o Como saber quem vai, ou n ão, voltar? E o que fazer duran-
cérebro e as outras vísceras. A n oção de morte do organism o te esse longo período d e ob servação? Q ue destino dar aos
tem relação com a perda dessas funções integradoras6• b ens d essa pessoa? Com o aplicar a lei sobre algum parente
A mudança para o paradigma da morte cerebral foi uma próximo que usasse de violência para sufocar tal paciente
evolução a partir da admissão de que o cérebro é o maes- no transcurso desse perío do? Do mesmo modo, seria válido
tro da orquestra orgânica. Assim, o conceito de morte cere- abrir o corpo desse paciente para lhe retirar os ó rgãos não
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 107

comprometidos com o fim de transplante? Acreditamos que intoxicações, hipotermia ou distúrbios metabólicos não de-
a nossa sociedade, por seus hábitos e costumes, ainda não vem ser submetidos ao critério da morte encefálica 22 .
está preparada para aceitar tal conduta. Quando se trata de Wijdicks23 pesquisou a legislação de 80 países membros
estabelecer um critério legal, não pode haver incerteza. A paz da ONU. Analisando os documentos e textos legais refe-
social exige, nesse caso, definição clara, de modo a impedir rentes à morte encefálica de adultos, notou que a maioria
intranquilidade daqueles que buscam socorro nos hospitais. guardava marcos comuns como: 1) afastar fatores de erro,
De qualquer modo, foi o que aconteceu com a americana p. ex., hipotermia; 2) irreversibilidade do coma; 3) ausência
Karen Ann Quinlan, cujos pais precisaram recorrer à Supre- de reflexos do tronco cerebral e 4) ausência de reação à dor
ma Corte de New Jersey para poderem desligar o seu suporte provocada. Todos os documentos citavam os reflexos a serem
ventilatório em 1976, após meses de permanência num es- pesquisados, embora não houvesse consenso no que se refe-
tado vegetativo, de modo a que ela pudesse morrer. Mas ela re a fazer, ou como fazer o teste da apneia. Em 78% desses
reassumiu os movimentos respiratórios e permaneceu por documentos, o diagnóstico tem que ser feito por um ou dois
mais 9 anos no estado vegetativo persistente, alimentada por médicos. Mas o tempo de observação para fechar o diagnós-
sonda 18• Outro caso foi o de Nancy Cruzan. Em janeiro de tico varia muito nos diversos países. É de apenas 6 horas em
1983, ela sofreu um acidente de carro numa estrada gelada alguns, podendo chegar a 72 horas na Hungria, nos casos de
do Missouri e ficou em estado de coma por lesão cerebral lesão hipóxica. A realização de testes para confirmação do
isquêmica. Foi mantida viva por vários anos, alimentada diagnóstico clínico é obrigatória em uns, utilizada para abre-
por sonda gástrica, a um custo hospitalar de 130.000 dóla- viar o tempo de observação em outros, ou mesmo opcional.
res anuais. O prolongamento sem fim de tanto sofrimento No Brasil, a Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de
fez com que seus pais requeressem à justiça do seu estado o Medicina 24, atendendo ao disposto no art. 3-º- da Lei dos
direito de interromperem o tratamento, o que lhes foi nega- Transplantes (Lei 9.434/97) 25 , estabeleceu os critérios para
do. Apelaram para a Suprema Corte americana, que julgou aplicação do conceito de morte encefálica. Devem ser reali-
que só seria permissível se houvesse prova indiscutível de zados dois exames clínicos com intervalos ditados pela faixa
que seria essa a decisão dela se pudesse se expressar. Com etária: de 7 dias a 2 meses incompletos - 48 h; de 2 meses a 1
essa decisão, eles procuraram e conseguiram o depoimento ano incompleto - 24 h; de 1 ano a 2 anos incompletos - 12 h;
de pessoas que afirmaram perante a corte estadual que, pelo e, para os maiores de 2 anos - 6 horas. Tais exames têm que
que conheciam de Nancy, seria essa a sua decisão. Os juízes, comprovar que o paciente apresenta coma aperceptivo com
finalmente, permitiram a retirada do tubo. Ela morreu 12 ausência de atividade motora supraespinal e apneia, como
consequência de causa conhecida e irreversível. A apneia e
dias depois, em dezembro de 199019•20 •
Veatch 21 defende esse conceito com o argumento de que a falta dos reflexos, cujo centro situa-se no tronco cerebral,
se pode mudar o enfoque de "matar por omissão" para "não tornam clara a opção pela morte encefálica. O mesmo do-
cumento obriga a realização de exames complementares
ter mais a obrigação de tratar': conforme decidiram a corte
(testes) que determinem, sem sombra de dúvidas, que ces-
de New Jersey no caso Quinlan e a Suprema Corte no caso
sou a atividade elétrica, ou a circulação, ou o metabolismo
Cruzan. O limite entre o deixar morrer e o matar torna-se
cerebral. A escolha dos exames é baseada na faixa etária do
muito nebuloso. Se se chegar à conclusão, diante de um caso
paciente: de 7 dias a 2 meses - 2 EEG com 48 h de intervalo;
concreto, de que a equipe médica tem que continuar tra-
de 2 meses a 1 ano - 2 EEG com 24 h de intervalo; de 1 ano
tando, a supressão do tratamento identifica-se com o ato de
a 2 anos - qualquer dos exames recomendados acima (se for
matar por omissão. Mas poucas pessoas admitiriam enterrar
EEG, tem que ser repetido após 12 h); nos indivíduos com 2
um ente querido capaz de respirar espontaneamente.
anos o u mais - qualquer um daqueles exames. A repetição
As diversas culturas, religiões e sistemas legais vigentes
dos testes é necessária para caracterizar a irrever sibilidade do
no mundo não aceitam a morte cortical por ser radical de-
processo. Nota-se a preocupação e o cuidado no diagnóstico
mais, por fugir ao senso comum da morte que temos arrai-
da morte encefálica em crianças pequenas por causa do po-
gado em nossa memória, em que pese ser atraente e lógi-
tencial extraordinário de recuperação do seu tecido nervoso.
ca. Mas é preciso distinguir a morte da pessoa da morte do
A ocorrência de movimentos, principalmente durante o
corpo que contém a personalidade. A perda da consciência
teste de apneia, não invalida o diagnóstico de morte encefá-
representa a extinção da personalidade, não a do organismo
lica. Podem ser vistos reflexos tendinosos, sinal de Babinski,
funcionan te6- 1º.
flexão do tronco e miofasciculações inclusive na face26 • Foi
dado o nome de sinal de Lázaro a um movimento dos mem-
Morte Encefálica
bros superiores descrito como flexão dos antebraços seguido
Foi o conceito proposto inicialmente tanto pela escola de pela colocação das mãos sobre a face anterior do tórax 27•28 •
Harvard como pela Comissão Presidencial dos EUA no go- Mas a postura de descerebração indica integridade do bulbo
verno Reagan. Os critérios para sua caracterização têm sido e da ponte22 •
modificados em po ntos não essenciais com o passar dos anos Crítica ao critério - Embora adotado quase universal-
e conforme o local. Em linhas gerais, primeiramente se deve mente e aceito tanto pela maioria da classe médica como pe-
estabelecer a causa e a sua irreversibilidade. Casos devidos a los legisladores e a opinião pública, o conceito e os critérios
108 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

de demonstração da morte encefálica foram alvo de críticas !idade de o traçado sofrer alteração por interferência vinda
desde o início de sua formulação até os dias atuais29.3º· 31·32. do ambiente do CTI, b) ser muito afetado por intoxicações e
Em 1971 , filósofos e teólogos denunciaram a morte encefá- hipotermia e c) avaliar apenas o córtex cerebral41.
lica como um expediente imoral e inaceitável dos cirurgiões Os testes, portanto, não são infalíveis. Longe disso, po-
para aumentar a oferta de órgãos para transplante33 . dem causar falso-negativos (casos de morte encefálica clínica
Os países que resistiram mais à adoção da morte ence- com exame complementar discordante ) ou, mais raramente,
fálica, inicialmente, foram a Suécia e o Japão 33. Em 1985, no falso-positivos (indicam morte encefálica em pacientes que
Japão, médicos foram indiciados por homicídio por retira- não preenchem os critérios clínicos). Além disso, um teste
rem órgãos de uma mulher em morte encefálica 33 . As críticas pode confirmar a morte encefálica mas outro não, no mesmo
envolvem desde a falibilidade dos testes empregados para sua paciente. Por isso, os pesquisadores têm procurado desen-
comprovação até a negação de que os pacientes estejam real- volver testes cada vez mais sensíveis para evitar esses enga-
mente mortos 34 • nos44. Atualmente, são usados, além da clássica arteriografia
Uma das mais contundentes é a de que nem todas as fun- cerebral, do EEG e da cintilografia, novos exames tais como:
ções cerebrais estão abolidas nesses pacientes. Para contestar, tomografia computadorizada associada a arteriografia con-
os autores afirmam que as funções de manutenção da homeo- trastada; Doppler transcraniano, tomografia por emissão de
termia e o controle neuroendócrino continuam presentes. Ar- fótons, idem por emissão de pósitrons, registro de potencial
gumentam que o corpo mantém a temperatura normal sem evocado auditivo ou somatossensorial e saturação de oxigê-
necessidade de ajuda externa. Também citam o caso de uma nio no sangue da veia jugular44•45.
mulher que entrou em morte encefálica quando estava no Quanto ao teste da apneia, há autores que o consideram
quarto mês de gravidez e foi mantida até a viabilidade fetal, a uma agressão a mais8·22 . Morenski22 aceita como válido ven-
pedido do marido, tendo sido, então, submetida a uma cesa- tilar o paciente com oxigênio puro por cerca de 10 minutos,
riana e dado à luz uma menina prematura30 • Bernat6, porém, desligar o respirador e esperar que se atinja concentração de
alega que as funções que faltam a esses pacientes são as mais PaC02 de 60 mmHg, sem chegar a causar asfixia. Do contrá-
importantes para a integração e manutenção do organismo. rio, a asfixia provocaria mais edema cerebral e dano irrever-
Outra contestação advém do exame histopatológico do sível naqueles casos que ainda não o tivessem.
cérebro dos pacientes necropsiados após a doação dos seus Wijdicks44 con sidera que o uso de testes pode ser dispen -
órgãos. Tem revelado áreas com neurônios ainda preserva- sado desde que o exame neurológico seja feito por profis-
dos de modo aleatório, sem preferência para qualquer região sional experiente para evitar situações de falso-negativos em
cerebral35·36 • Não se tem encontrado mais o que foi descri- pacientes com todos os sinais de morte encefálica. Para ele, a
to no início da era dos transplantes com o nome de respi- clínica é soberana.
rator brain. Era um cérebro com necrose e autólise difusas,
envolvendo tanto os hemisférios cerebrais como os outros Morte do Tronco Cerebral
segmentos, inclusive o cerebelo 37·38 ·39 . Houve descrição de ca-
É o critério adotado no Reino Unido pela Conference
sos em que parte das amígdalas cerebelares necrosadas foram
encontradas no espaço subaracnóideo medular. Atualmen- of Medical Royal Colleges desde 19766 e em Portugal desde
te, o paciente não permanece no CTI após o diagnóstico de 19948·46 • Consta da perda dos reflexos com centro no tron-
morte encefálica, de modo que o processo de destruição ce- co cerebral, apneia e inconsciência. Esta última por causa de
rebral não chega a tal ponto. Mas são encontrados sinais de destruição do sistema de ativação ascendente da substância
isquemia mais ou menos intensa (citoplasma retraído e eosi- reticular. Na realidade, é difícil conceber situações reais em
nófilo, núcleo picnótico e roturas em pontos das membranas que haja perda das funções do tronco cerebral sem que tenha
celular e nuclear) em neurônios tanto do tronco como dos havido lesão e destruição difusa cortical' 7·46. Teoricamente,
hemisférios cerebrais35·36.4°. é possível a ocorrência de um acidente vascular encefálico
A sequência fisiopatológica de agressão, edema cerebral, que comprometa apenas o tronco cerebral, impedindo o pa-
aumento da pressão intracraniana, pinçamento da micro- ciente de respirar por si, mas com manutenção da atividade
circulação, isquemia, tumefação celular e agravamento do cortical no EEG46 .
edema, fechando um círculo vicioso, é que responde pela
extensão do dano ao tecido nervoso 35. Retornando à Morte Cardíaca
Crítica aos testes - Alguns autores supervalorizam os tes-
tes. Por exemplo, Tourtchaninoff41 afirma que a não detec- Conforme já vimos, o problema da conceituação da mor-
ção de potenciais de ação seguindo-se a estímulos múltiplos te surgiu com o aprimoramento da assistência a pacientes
(auditivos, e somatossen soriais) seria prova cabal de morte críticos pela utilização do respirador de pressão positiva na
encefálica, mesmo diante de hipotermia, intoxicações ou década de 1950 6 • Até então, bastava constatar a parada respi-
distúrbios metabólicos. Mas foram descritos casos de persis- ratória definitiva e a inexorável parada cardíaca. A manuten-
tência de atividade elétrica detectável pelo EEG em pacientes ção da respiração por meios artificiais foi o fato que desen -
que preenchiam os demais critérios clínicos de morte ence- cadeou toda a discussão precedente sobre a morte cerebral,
fálica22·42•43. As objeções principais ao EEG são: a) a possibi- tornada pública pela repercussão dos transplantes cardíacos.
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 109

Em função da contestação da validade do conceito de lembrar uma divergência que surgiu entre anestesistas euro-
mo rte cerebral, e da necessidade de aumentar a oferta de peus, quanto a anestesiar os pacientes em morte encefálica
órgãos para transplante, foi proposto o retorno ao concei- diagnosticada, antes de se fazer a coleta dos seus órgãos32 •
to clássico da parada cardiorrespirató ria. Na Pennsylvania, Diante do modo como se dá o procedimento, tem-se que
em 1993, lançou-se o que ficou conhecido como Protocolo de admitir que o que causa a morte desse tipo de paciente é o
Pittsburgh. Era um documento que estabelecia as diretr izes desligamento do respirado r. Miller e Truog30 apelam para o
para a declaração da morte de pacientes irreversivelmente senso comum de causa e efeito. De acordo com eles, deve-
doentes, em fase final de evolução, com base na interrupção mos imaginar dois pacientes, A e B, cada um com o mesmo
das medidas extraordinárias de suporte e na parada cardíaca tipo de lesão ca paz de torná-los incapazes de respirar. A fa-
subsequente ao desligamento do respirador. Com esse cri- mília de A pede que o respirador seja desligado, de modo
tério, é possível atender aos familiares que desejem doar os a atender o que tal paciente gostaria que fosse feito e ele
órgãos do moribundo 33•47 • Podem ser distinguidos dois gru- morre minutos após. Já a família de B pede que seja man-
pos de pacientes nessas condições: a) parada cardiorrespira- tida a respiração artificial com base no que seria a postura
tória (PCR) espontânea - os que chegam nas emergências ou do enfermo, que continua vivendo por conta do respirado r.
sofrem tal parada po uco após a admissão, nos quais as ten- Afirmar que foi a lesão que causou a morte de A fica difí-
tativas de reanimação são infrutíferas; b) PCR programada cil de sustentar porque B tem a m esma lesão e continua vi-
- os traumatizados de crânio em estado de com a profundo vendo. Logo, o que mato u A foi a interrupção da ventilação
e irreversível, mas ainda sem critérios para o diagnóstico de artificial. Além do mais, tais pacientes não preenchem nem
mo rte encefálica; aqueles com trauma raquimedular cervical o critério de morte encefálica. Mas o fato de a remoção do
alto e incapazes de respirar; ou os que estão em fase final de respirador m atar o paciente não significa, necessariamente,
doenças neuromusculares irreversíveis, sem qualquer possi- que a interrupção do tratamento seja antiética.
bilidade de recuperar seus movimentos respirató rios48• Outra objeção importante é a falta de regras objetivas
Seja qual for o caso, de acordo com aquele protocolo, o para se determinar que tipo de paciente e em que fase da
paciente candidato a doador de órgãos é avaliado po r mé- evolução do quadro clínico estaria passível de se interrom-
dicos não relacionados com aqueles que buscam órgãos per o tratamento de suporte com base na irreversibilidade
para transplantar. Tratando-se de interrupção das medidas
do processo patológico. Em que situações seria eticamente
de suporte por impossibilidade de recuperação, a família é
válida tal interrupção? O mais importante aqui é que a in-
contactada e inquirida sobre a possibilidade de d oação dos tenção seja evitar a distanásia e, não, atender a uma demanda
órgãos de seu parente. Obtido o consentimento, o paciente é
de órgãos para transplantes. Na maioria dos casos, a adoção
levado ao centro cirúrgico. São colocados cateteres em seus
desse critério atende ao desejo de familiares que querem fa-
grandes vasos, o respirador é desligado, ele entra em apneia
zer a doação.
e espera-se o coração parar. Segue-se um tempo mínimo de
2 a 5 minutos para começar a perfusão de uma solução fria
por seus grandes vasos, de m odo a encurtar ao máximo o Abandonando a Regra do Doador Morto
tempo de isquemia quente d os seus órgãos, a fim de impedir
alterações autolíticas49 . Na impossibilidade de contato com a Já afirmamos que todo o debate acerca do conceito de
família, que é comum nos casos de PCR das emergências, é m orte foi embalado pela necessidade de obter órgãos vitais
adotada a presunção do consentimento. para transplante. Pelos caminhos anteriormente descritos,
A maior crítica a essa volta ao conceito tradicional de tem sido proposto um acordo social para se encontrar corpos
mo rte por PCR é o modo como o procedimento é feito. Al- mortos mas com órgãos sadios e disponíveis para uso. Os vá-
guns autores argumentam que o paciente ainda não estaria rios modelos de morte cerebral e a nova morte cardíaca têm
mo rto e que poderia ser reanimado depois da interrupção procurado atender a esse propósito, mormente a morte en-
da ventilação artificial e consequente parada cardíaca50• Mas cefálica. Mas, pelo que foi exposto até este po nto, percebe-se
a reanimação não é feita porque, por princípio, antes da re- que não é pacífico o conceito de morte, qualquer que seja o
moção da ventilação, tanto os médicos como a família con- critério adotado para caracterizá-la.
cordaram em retirar as medidas paliativas que apenas pro- Desde o início, vários autores têm contestado as pro-
lo ngam a agonia. Além disso, trabalhos de acompanham ento postas citadas. Afirmam categoricam ente duvidar que os
têm mostrado que não ocorre retom ada espontânea dos ba- pacientes considerados m ortos pelo conceito da mo rte en-
timentos cardíacos nesses casos5 1• cefálica, ou pelo protocolo de Pittsburgh, estejam realmente
Merece m enção o fato de que o Pro tocolo de Pittsburgh m ortos no mom ento da remoção dos órgãos descrita30.3 1•32•52 .
recomenda que se faça a sedação do paciente antes da re- No caso da morte encefálica, porque não aceitam que
moção dos seus órgãos para "evitar desconforto", o que nos todas as funções cerebrais estejam suprimidas, pois já hou-
permite pensar que a equipe não estaria tão segura quanto ve até um caso de manutenção de uma mulher grávida até
à morte real do paciente. A m enos que o desconforto seja o a viabilidade do feto, que foi retirado em bom estado, por
da equipe médica encarregada da coleta dos órgãos, o que cesariana. Truog32 fez uma tabela em que comparava as fun-
realmente ocorre e tem sido descrito. A propósito, convém ções orgânicas presentes nos vivos e as remanescentes em
110 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

"mortos encefálicos" e nos tradicionais. Concluiu que as Reflexões Atuais


pessoas em morte encefálica tinham muito mais em comum
Diante do que foi exposto, chega-se ao dilema: mudar o
com os vivos do que com os realmente mortos. Podiam man-
conceito de morte ou abandonar a regra que manda colher
ter sua temperatura, crescer, reproduzir-se e respirar com o
órgãos vitais somente após se declarar morto o indivíduo.
auxílio do respirador. Se estão mortos só porque não podem
Veatch2 1 afirma que a sociedade aceitaria melhor uma mu-
respirar, também deveriam ser dados como mortos os pa-
dança no conceito de morte do que saber que os médicos
cientes renais crónicos mantidos em uma máquina de diálise.
podem remover órgãos vitais de quem ainda está vivo. Acha
No caso da parada cardíaca após a retirada do respirador,
que a modificação conceituai afastaria as críticas. Ao contrá-
porque consideram que o paciente poderia ser reanimado se
rio, Miller e Truog30 •32 pleiteiam que se permita colher órgãos
as manobras de ressuscitação fossem tentadas. Além do mais,
dos pacientes, em morte cerebral ou não, antes que sejam
grande parte deles não preencheria nem os critérios para a
declarados mortos. Mas reconhecem que tal mudança é ra-
morte encefálica.
dical e pode não ter o efeito desejado de aumentar a oferta de
Mas, por outro lado, a manutenção do suporte a tais pa-
órgãos para transplante, por abalar a confiança da sociedade
cientes com lesões irreversíveis incorre no que se conceitua
nos serviços de saúde.
como distanásia. Callahan 53 adverte que o uso exagerado da
É oportuno, nesse ponto da explanação dos conceitos
tecnologia acaba nos tornando escravos dela. Reconhece que
de morte, relatar os resultados de uma pesquisa de opinião
existe, atualmente, forte pressão para insistir no tratamento
pública conduzida nos Estados Unidos por Siminoff, Burant
pelo uso da tecnologia avançada dos CTI, a ponto de criar
nos médicos um sentimento de culpa que os impede de per- e Youngner em 2004 55• Eles fizeram uma pesquisa aleatória
ceber a hora de parar, esquecendo-se de que a qualidade de por telefone e colocaram as pessoas maiores de idade diante
vida deve pesar na decisão de continuar ou não. São casos em de três casos hipotéticos que configuravam morte cerebral,
que a interrupção do tratamento se justifica por motivos eti- estado de coma ou estado vegetativo persistente. Indagaram
camente válidos: a ) beneficência - interromper a agonia do dos entrevistados quais dos três estariam mortos e se permi-
paciente; b) respeito à privacidade e autonomia do paciente tiriam a remoção de órgãos para transplante. Os resultados
- dar a ele o direito de não viver naquelas condições, confor- indicaram que seriam considerados mortos 87,2% dos em
me sua família testemunhe que seria sua opção se pudesse se morte cerebral, 57,2% dos em coma e 34,1% daqueles em
comunicar; e c) liberação do leito do CTI para outros doen- estado vegetativo persistente. E que a permissão para remo-
tes com melhor prognóstico47 • ção de órgãos para transplante seria a utorizada mesmo em
Acrescentam os defensores dessa mudança de postura que 1/3 dos pacientes não considerados mortos por algum da-
não seria antiético, nem ilegal, suprimir as medidas protela- queles critérios.
doras um pouco antes da morte, independentemente de os Resumindo, podemos dizer que é preciso obter um com-
pacientes preencherem, ou não, os novos critérios de morte, promisso entre a proteção devida aos pacientes em situação
porque a regra é ocorrer a parada cardíaca espontânea mes- crítica nos CTI, afetados por processos irreversíveis e fatais, e
mo com o suporte extraordinário. Mas não é tão verdadeira a necessidade de prover órgãos substitutos para os milhares
a afirmação de que sua morte é iminente. Shewmon3 1 refere de seres humanos que aguardam na fila dos transplantes -
casos de mais de 1 ano de sobrevivência em morte encefálica. sua única esperança de recuperação.
Essa nova postura tem vantagens e desvantagens. Entre Situações-limite nem sempre permitem uma solução in-
as vantagens, estariam: estabelecer a verdade de que os doa- dolor. Nesse choque de valores éticos será necessário o sacri-
dores ainda estão vivos; evitar o desconforto para médicos fício daquele que contribuir menos para o bem-estar e a paz
que, mesmo não acreditando intimamente na morte desses social. Radicalizar na defesa da vida trará a distanásia. Criar
pacientes, devem dizer à família que estão mortos; obter ór- o precedente de obter órgãos vitais de quem ainda não foi
gãos mais bem preservados; e a liberação antecipada de lei- declarado morto trará insegurança, por abrir a porta para
tos nos CTI. Como desvantagem, uma redução da permissão abusos contra doentes em fase terminal. O debate continua
para doação de órgãos por desconfiança da população, com aberto. A fronteira da morte continua nebulosa.
receio de açodamento no diagnóstico da irreversibilidade da
doença. Mas houve um programa de TV norte-americano Morte Real e Morte Aparente
(CES News 60 minutes) que denunciou a prática da atual
morte cardíaca ao público sem que houvesse a condenação Em face da discussão precedente, fica claro que, na maio-
que era esperada 32 • ria das vezes, o diagnóstico da morte de um indivíduo deve
Outra dificuldade é crucial. Já que não seria ilegal nem continuar a ser feito com base na parada irreversível da res-
antiético para aqueles em coma irreversível doar seus órgãos piração e da circulação, a não ser em casos excepcionais em
vitais em vida, porque não incluir também os que estão em que o paciente esteja ocupando um leito de CTI e seja ne-
estado vegetativo persistente? E os tetraplégicos conscientes e cessário fazer o diagnóstico de morte encefálica. Em geral,
mantidos à custa de respiração artificia l, que pedirem para o o médico é chamado para constatar um óbito já ocorrido.
aparelho ser desligado? E os demenciados em fase já vegeta- Nessas condições, tem que afastar a possibilidade de se tratar
tiva, que não trocam informações com o ambiente? de morte aparente.
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 111

A morte aparente é um estado de profundo embotamen- Convém comentar que pessoas leigas costumam chamar
to das funções vitais em que se torna muito difícil escutar os o estado de morte aparente de catalepsia e acreditam que tal
batimentos cardíacos, por muito débeis e pouco frequentes, estado pode perdurar por tempo suficiente para fazer com
ou perceber os movimentos respiratórios. Ocorre tanto em que o indivíduo seja enterrado vivo. Em verdade, o estado
causas naturais como em certos traumatismos. Entre as causas cataléptico é uma fase de flexibilidade cérea da musculatura,
naturais citadas pelos autores clássicos estão o coma epilépti- observado na esquizofrenia catatônica, no qual o doente as-
co, os estados sincopais e a morte aparente do recém-nascido. sume a postura em que se lhe coloquem os membros62 •
Contudo, o estado de morte aparente é bem mais comum por Quando os recursos postos à disposição do profissional
ação de energias externas, como nos casos de asfixia, envene- não incluem aparelhos de registro gráfico, como eletrocar-
namentos, eletroplessão, fulguração e hipotermia 54•56 •57•58 .59 • diógrafos e eletroencefalógrafos, o médico pode valer-se dos
Mesmo desprezando a maioria dos relatos mais antigos, sinais cadavéricos tardios, que serão descritos mais adiante,
fantasiosos, sobram alguns casos presenciados por médicos, ou de sinais precoces e testes preconizados para demons-
que servem como exemplos do estado de morte aparente. trar a ausência das funções cerebrais, ou a parada cardíaca
Um deles é o que Thoinot59 refere ter sido constatado por e respiratória.
um médico de Raab, Dr. Sikor. Este descreveu o caso de um
condenado à morte por enforcamento, de nome Takács, exe-
cutado às 8 horas da manhã, que ele declarou morto após
Ausência de Funções Cerebrais
cerca de 10 minutos, por não lhe escutar mais os batimentos Imobilidade
cardíacos, não perceber seus movimentos respiratórios, nem
conseguir resposta pupilar aos estímulos luminosos. Leva- Qualquer leigo sabe que cadáver não se mexe, mas des-
do para o necrotério, foram feitas experiências de excitação conhece que as fibras musculares ainda podem ser excita-
elétrica e, a pós mais 1O minutos, o coração voltou a bater e das e se contrair após algumas horas da morte. Por isso, a
foi possível palpar pulsação da artéria radial. Contudo, não presença de ocasionais contrações decorrentes de estímulo
houve recuperação da consciência. Kvittingen e Naess60 re- elétrico direto sobre os músculos do cadáver não invalida o
lataram o caso de um menino de 5 anos que caiu nas águas diagnóstico de morte.
geladas de um rio quando a capa de gelo em que pisava se
quebrou. Só foi resgatado 22 minutos depois, apresentando Flacidez Muscular Difusa
parada cardiorrespirató ria. Foi submetido a manobras de Provoca relaxamento geral dos esfíncteres, inclusive das
massagem cardíaca e respiração artificial no trajeto de am- pupilas. Por isso, pode ocorrer emissão de urina, fezes e es-
bulância. Ao chegar ao hospital, a circulação tinha voltado, perma. A pupila dilata-se intensa e bilateralmente. As partes
mas muito fraca, e interrompia-se quando cessava a massa- moles do corpo amoldam-se aos planos de apoio, o tórax
gem por algum tempo. Trinta minutos mais tarde, um ECG se achata, a boca fica entreaberta por queda da mandíbula
mostrava bloqueio completo do ritmo normal e frequência e as rugas de expressão facial fi cam atenuadas. Cortes feitos
de 30 por minuto, sem ser possível palpar as artérias radiais. em cadáver costumam ter as bordas menos afastadas do que
Duas horas mais tarde, o coração voltou a bater vigorosa- ocorreria no vivo, devido à diminuição da tensão da pele.
mente, ele recomeçou a respirar, teve crises convulsivas e
edema pulmonar agudo. Seis meses mais tarde, estava bem e Insensibilidade
sem sequelas neurológicas importantes.
Marshall6 1 relata o caso de um senhor que foi encontra- Pode ser demonstrada por meio de excitações dolorosas
do aparentemente morto no quarto de pensão em que vivia. tipo punção por agulha, queimaduras e beliscões no mamilo
O médico chamado, que lhe vinha prestando assistência nos ou em outras regiões mais sensíveis. Não há resposta à exci-
últimos meses, constatou ausência de batimentos cardíacos tação da mucosa nasal por cócegas nem pela ação de subs-
e declarou-o morto. A caminho da funerária, 3 horas depois, tâncias irritantes como a amônia. As pálpebras não reagem à
o motorista escutou um murmúrio vindo do corpo e viu a estimulação da córnea ou da conjuntiva e o atrito na mucosa
boca se mexer. Três minutos após, o indivíduo dava entra- da orofaringe não desperta vômito.
da num hospital, bastante cianosado, com 44 pulsações por
minuto e temperatura retal de 31ºC. Dois dias depois, estava Ausência de Circulação
bem e contou que ingerira cerca de sete a dez cápsulas de
remédio para dormir. Na década de 1980, Roberto Blanco, Em 1837, um professor italiano, Manni, sugeriu à Acade-
perito do IMLAP, removeu para o Hospital Municipal Sou- mia de Ciências da França criar um prêmio para o autor que
za Aguiar um recém -nascido de cerca de 617 meses de vida apresentasse um trabalho no qual fosse descrito um método
intrauterina que apresentou movimentos ativos ao ser colo- prático e seguro de caracterizar a parada irreversível da cir-
cado na fria chapa de aço da mesa de necropsias. Estava em culação.Passaram-se vários anos sem que surgisse uma res-
estado de morte aparente quando foi despachado para o ne- posta válida. Mas, em torno de 1850, Bouchut propôs que se
crotério e resistiu algumas horas na incubadora do hospital considerasse morto o indivíduo no qual não se conseguisse
para onde foi removido. ouvir batimentos cardíacos por mais de 5 minutos59 • Foi cri-
112 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

ticado po r alguns de seu s contempo râneos por cau sa da real o ambiente ofereça condições de tranquilidad e para tal. Na
dificuldade que se pod e encontrar pa ra fazer a ausculta em via pública, to rna-se difícil por causa do ba rulho.
casos de derrame pericárdico e em condições n as quais os
ba timentos fiquem muito fracos e de baixa frequência. Não
Acidificação dos Líquidos Tissulares
nos esqueçam os de que os est et oscópios daquele tempo eram
rudimentares, se comparados aos mod ernos. Além do mais, Com o já vimos ao estuda rmos a mo rte celular, a pa rada
m esmo hoje, quem já precisou faze r uma ausculta n a via pú- circulatória leva à não oxigenação d as células, com d esvio do
blica, com o b arulho d o trân sito, sabe que é possível errar metabolismo e acúmulo d e substâncias ácidas. Isso provoca
apesar d o u so d e bo ns aparelhos. Por isso, t êm sido pro pos- um abaixamento d o pH do meio interno, que pode ser det ec-
tos vários t estes co m a finalidade d e firmar esse diagnóstico. tado e servir co m o sinal seguro de mo rte, pois é impossível
a vida em meio ácido. A verificação do pH do m eio interno
Testes1,54,56,57,58,59,61
pode ser feita po r m eio da colocação de uma linha impreg-
Os de natureza ementa, que não reco m endam os por nada por um indicador de pH, como uma solução de azul
razões óbvias, serão apenas citados. Já fo ram pro postas a de bromotimol, no tecido subcutân eo, durante uma h ora. Se
arteriotomia, a punção do coração com uma agulha lon - ficar am arelado, o pH é ácido e indica que h ouve m orte 58•
ga (Middeldo rf) e a colocação de uma ventosa escarificada
(Levasseur). Mas é possível chegar ao mesmo diagn óstico
d e maneira mais elegante. Pod e-se amarrar um to rniquete • ESTUDO MÉDICO-LEGAL DOS
ao redo r de um dedo com pressão suficiente para barrar o TRANSPLANTES
sangue ven oso sem bloquear o arterial. Se h ouver circulação,
em pou cos minutos a parte distal fica arroxeada e con gesta Os tran splantes de ór gãos e tecid os são cham ados de
(Magnus). A instilação de uma gota de éter no fundo-de- autotransplantes quando feitos d e uma região para outra do
saco conjuntiva! d e um dos olhos produz intensa congest ão mesmo indivíduo; isotransplantes, quando entre dois gêmeos
n o vivo (H alluin). A injeção de éter no tecido subcutân eo univitelinos; alo transplantes, quando entre dois indivíduos
reflui pela ferida punctória d a pele, caso não haja circula- da m esm a espécie; e xenotransplantes, quando entre indiví-
ção; d o contrá rio, é ab sorvido e desperta reação inflama tória duos de espécies diferentes.
(Rebouillat ). É possível produzir uma coloração verde-es-
m eralda na esclerótica (parte branca dos o lhos) pela injeção Aspectos Biológicos
endovenosa ou intramuscular de uma solução d e fluoresceí-
n a esterilizada (Icard). M uito interessante é o qu e se ach a A possibilidade d e substituir órgãos doentes por outros
pelo exame do fundo do olho. Foi Bo uchut quem primeiro sadios, como se fôssem os m áquinas, sempre seduziu o ho-
cham ou a atenção para o desaparecimento da pa pila e das mem , mesmo antes d o d esenvolvimento da cirurgia. Becha-
artérias retinia nas, para a segmentação da coluna de sangue ra63 relata que os antigos egípcios, os gregos e os roma nos
d as veias e a mudança de cor d o fundo do olho d o averme- fa ziam tran splantes d entários, e qu e alguns autotran splantes
lhad o para o cin za-amarelado. Segundo Fávero 56, isso foi fo ram feitos por médicos euro peus d os séculos XVI a XVIII.
co nfirmado por Braga no Instituto Oscar Freire, em 1934. A partir da superação dos o bstáculos técnicos representados
Ma rshall61 refere que Kevorkian (196 1) verificou as altera- pela man obra cirúrgica d e substituição do órgão degenera-
ções ven osas retinian as em 85% dos casos examinados cerca do, fo i sen do acumulada experiên cia qu e demon strou que
d e 10 segundos após a para da da circulação, confirmou os o principal óbice er a d e n atureza imunológica. Assim, reco-
outros achad os d e Bouchut e d escobriu que a com pressão do nheceu-se que estavam isentos de rejeição apen as os ó rgãos
glob o ocular levava ao desaparecimento do desenho arterial. transplantados entre gêm eos idênticos (univitelinos), por te-
rem a mesm a constituição genética. Além disso, os trabalhos
Ausência de Respiração de MacFarlane Burnet , na Austrália, e de Peter Med awar, na
Inglaterra, mostraram qu e era possível fa zer alo tran splantes
Os antigos va liam -se da inspeção cuidadosa d o tórax. Al- para animais recém -n ascidos sem haver rejeição por causa
guns ch egaram a propor a colocação de um vaso com águ a da imaturidade do seu sistema imunológico64 • Com o passar
sobre as cost elas, n a face anterior, para detectar m ovimentos dos anos, fo i descob erto que o que cau sava a rejeição dos
mínimos (Winslow) . Outros recomendavam a aproximação órgãos transplantados era a diferença de co m posição quí -
d e um espelho ante as narinas e a boca para ver se ficava em- mica d as membranas celulares do doad or e d o receptor. Tal
baçad o pelo vapor d'águ a exalad o; ou a tremulação de uma diferen ça é causad a pela presen ça d os ch amados an tígenos de
cham a d e vela pela corrente de ar respirad o. É preciso n ão histocompatibilidade - substâncias de n atureza proteica cuja
ter pressa, pois pode haver pausas d e 30 segundos ou mais fórmula química e configuração tridimensional dependem
entre um movimento respiratório e outro durante o perío- dos genes herdados dos nossos pais. Tais substâncias cons -
d o agônico d e algumas d oenças61. Hoje em dia, um médico tituem o que se deno mina sist em a HLA (d o inglês h.uman
pode fa zer a au sculta pulmo nar, com estetoscó pio, desde que leucocyte ªntigen )65•
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 113

Sabe-se que há cerca de 150 tipos diferentes de tais subs- Tabela 6.1. Tabela para aproveitamento de órgãos de
tâncias e que cada um dos seres humanos apresenta apenas cadáver*
seis tipos. Daí poder-se deduzir que a probabilidade de ha- Óqlo OI Tempopn Tempo Múlmo
ver dois seres humanos com os mesmos seis tipos seja extre- T•ldo Retirada de Prea lo
mamente baixa. Contudo, há entre esses antígenos de his-
Córnea até 6 h pós-PC 7 dias
tocompatibilidade alguns que provocam estimulação muito
intensa do sistema imunológico do receptor e outros que são Coração antes da PC 4a6h
pouco eficientes em promovê-la. Por isso, ao se tentar trans- Pulmão antes da PC 4a6h
plantar um órgão de uma pessoa para outra não idêntica do Rim até 30 min pós-PC até 48 h
ponto de vista genético, é preciso que se faça a tipagem dos
Fígado antes da PC 12 a 24 h
principais antígenos de histocompatibilidade66 •
A maneira encontrada de viabilizar os alotransplantes foi Pâncreas antes da PC 12 a 24 h
impedir a resposta imune do receptor, o que se tem feito por Osso até 6 h pós-PC até 5 anos
meio de medicações imunossupressoras, das quais a mais 'Fonte: Medicina CFM. Agosto de 2002.
importante é a ciclosporina. Outras drogas são a azatioprina,
os corticoides e, mais recentemente, os soros antilinfocitá-
rios, que bloqueiam os locais da superfície dos linfócitos em processos inflamatórios no sangue dos doadores e que tal
que se ligam os antígenos do órgão ou tecido transplantado. fato tem correlação com a preservação dos órgãos trans-
Mas, como o que dá para rir dá para chorar, descobriu-se plantados no receptor68•
que a imunossupressão tinha seus malefícios. Reduzia dras- Outra dificuldade que teve que ser superada foi a preser-
ticamente as defesas contra germes como bactérias, fungos vação dos órgãos retirados do doador. Atualmente, eles são
ou vírus que dificilmente causam doenças em pessoas sa- perfundidos por soluções eletrolíticas apropriadas e manti-
dias. Além do mais, enfraquecendo a vigilância imunológica dos em temperatura em torno de 4°C, de modo a se evitar a
contra células neoplásicas (causadoras de câncer), propicia- degeneração e morte dos tecidos retirados de sua fonte de
va grande aumento da incidência de tumores malignos nas nutrientes e de oxigênio. O tempo de espera, mesmo em con-
pessoas imunossuprimidas65 . É interessante salientar que o dições ideais, varia conforme o órgão (Tabela 6.1).
fenô meno da rejeição não costuma ocorrer nos transplantes
de córnea, o que se explica por ser constituída por tecido
desprovido de vasos sanguíneos. Aspectos Éticos
Os xenotransplantes ainda não são utilizados, mas há
Serão discutidos em função dos princípios gerais da Bioé-
experiências em andamento em animais de laborató rio,
tica: beneficência, autonomia e justiça. Como, para que se
como macacos babuínos e porcos. No entanto, foi relatado o
realize um alotransplante, são necessários um doador e um
caso de um paciente americano de 38 anos em fase avançada
receptor, discutiremos separadamente os aspectos relativos
de AIDS no qual os m édicos do San Francisco General Hos-
a uns e outros. O doador pode ser pessoa viva ou cadáver.
pital fizeram o transplante de medula óssea de um macaco
A Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina (ver
babuíno e que teve alta hospitalar em melhores condições
Anexo) ratifica os princípios éticos que discutiremos a seguir.
de sa úde67• O maior temor dos médicos com relação aos xe-
notransplantes é a possibilidade de que vírus até então não
Doação de Órgãos, Tecidos ou Partes de Pessoa Viva
encontrados em seres humanos possam fazer o salto para a
nossa espécie e causar novas doenças. Poderiam ser causa A doação intervivos representa um ato de amor ao próxi-
de epidemias letais. Precedentes já existem, como as infec- mo, expressão máxima do princípio da beneficência. Porém,
ções pelos vírus Ebola, hantavírus e a própria AIDS, que os tal compaixão tem que ser restringida àqueles órgãos ou te-
cientistas atribuem ao contágio dos macacos para os seres cidos que não façam falta ao doador, que não lhe acarretem
humanos. Contudo, acreditam que, no futuro, tecidos de prejuízo irrecuperável à sa úde. Admite-se a doação de um
suínos poderão ser utilizados para transplantes em huma- dos órgãos duplos e de tecidos regeneráveis. Mas já tem sido
nos, uma vez que constituem espécie muito afastada do ser feita doação de parte do fígado, ou do pâncreas.
humano e, por isso, seus vírus teriam muito maior dificul- De um modo geral, as doações intervivos são feitas por pa-
dade de adaptação67 . rentes muito próximos, tal como irmãos, pais, filhos, em fun-
Embora não seja tão importante para o sucesso dos ção da maior compatibilidade dos seus tecidos e do compo-
transplantes como o controle da rejeição, a deterioração dos nente emocional. Alguns grupos de nefrologistas recusam-se
órgãos causada pela morte encefálica não deve ser despreza- a aceitar doadores não parentes pela possibilidade de tro-
da.Sabe-se que ocorrem importantes alterações de nature- ca de favores e mesmo de comercialização velada do órgão
za hemodinâmica, hormonal e inflamatória na maioria das doado. Isso, no entanto, não significa que não haja doado-
vísceras durante o tempo de permanência do paciente em res estranhos altruístas e doadores parentes interesseiros. É
morte encefálica no CTI. Já se tem demonstrado o aumento uma precaução contra a infração ética de se compactuar com
da concentração de substâncias químicas mediadoras dos a comercialização de órgãos ou tecidos humanos (art. 46 do
114 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

CEM). Por força de lei, entre nós, há necessidade da demons- pessoa em estado de coma. Se incapaz de se manter sem a
tração de quatro compatibilidades no sistema HLA quando aparelhagem do CTI, está em morte encefálica e, como mor-
se tratar de doador que não seja parente do receptor (§ 3º- to, pode ser fonte de órgãos para transplante63•64 •
do art. 15 do Decreto 2.268/97), o que, na prática, a inviabi- A vontade do doador deve ser exercida com toda sua ple-
liza. Na Índia, a remuneração da doação é aceita e praticada. nitude, livre de qualquer vício ou coação. Obter-se doação de
Seus defensores argumentam que tal doação equivale ao ris- órgão por coação constitui grave infração ética e crime pre-
co a que determinadas atividades profissionais expõem seus visto no Código Penal e na nova Lei de Transplantes. Mesmo
praticantes, como ser lutador de boxe, piloto de Fórmula-1, não se caracterizando a coação irresistível, qualquer forma
piloto de testes de aeronaves64 • Não concordamos. Uma coisa de influenciar a vontade do doador é abominável. Há certos
é concretizar um dano ao próprio corpo; outra é assumir o grupos de pessoas mais vulneráveis que não devem ser abor-
risco de certas profissões. Como veremos mais adiante, nossas dados para esse fim. Entre outros, podemos citar os detentos,
leis de transplantes sempre proibiram a comercialização total subalternos em corporações militares e índios.
ou parcial do corpo humano. Caso não haja compatibilidade imunológica entre o doa-
Nem todas as pessoas interessadas podem ser doadoras dor e o receptor, o que pode acontecer mesmo sendo eles
de órgãos. Há limitações de ordem médica e de ordem ética. parentes, o transplante seria contraindicado. Para contornar
Assim, temos contraindicações absolutas relativas ao doador, tal situação, foi proposto nos EUA que se criasse um banco
como infecções generalizadas, neoplasias malignas, doença de órgãos a partir desses doadores voluntários. Funcionaria
aterosclerótica difusa e lesões dos órgãos a serem transplan- assim: o órgão a ser doado, no caso de grande incompatibi-
tados. As principais contraindicações relativas são idade su- lidade dos antígenos HLA, seria cedido ao banco; o receptor
perior a 70 anos; hipertensão arterial; diabetes; uso de dro- a quem seria destinado esse órgão teria o direito de buscar
gas, como a dopamina, por tempo prolongado etc. 69 • um que fosse compatível consigo no referido banco. Desse
As limitações de ordem ética relativas ao doador resultam modo, aumentariam as chances de sucesso para todos os
basicamente do desrespeito ao princípio bioético da auto- participantes.
nomia. Esta pressupõe informação suficiente para a tomada
de decisão e a ausência de qualquer forma de coação ou ví- Doação Post Mortem
cio da vontade. No que diz respeito ao entendimento, tanto
se deve considerar a sonegação de informações relativas ao O doador cadáver tem limitações maiores do que o vivo,
procedimento de retirada do órgão como a incapacidade de tanto biológicas quanto éticas. Em primeiro lugar, na quase
compreensão por parte do doador. Qualquer pessoa que se totalidade dos casos é pessoa sem parentesco com o receptor.
propõe a doar algum órgão ou tecido tem que ser informada Além disso, o risco de deterioração dos órgãos é maior por
e esclarecida quanto aos incómodos e riscos a que ficará ex- causa da própria situação de morte encefálica, que requer
posta durante e após a operação (art. 44 do CEM). o uso de agentes farmacológicos, como a dopamina, para
São incapazes de entender: as crianças pequenas, os manter uma boa circulação do sangue nos tecidos, e pelo
doentes mentais, os o ligofrênicos graves e os surdos-mudos tempo que transcorre entre a retirada e o implante no recep-
não educados. No caso da doação de órgãos, a autorização tor. Quanto maior esse tempo, menores as chances de suces-
dada pelo representante legal não deve ser aceita, já que tal so. O Conselho Federal de Medicina 70 publicou, em agosto
poder decisório também deve ter suas limitações (art. 45 do de 2002, um encarte no seu boletim mensal sobre vários as-
CEM). A maioria dos autores não acha correto que sejam pectos do transplante de órgãos, no qual consta o tempo má-
usados órgãos de crianças mesmo com a autorização dos ximo que um órgão pode ser estocado depois de removido
seus responsáveis legais. Exceção deve ser feita para o caso do doador. Os menos resistentes são o coração e os pulmões
de gêmeos univitelinos, em que o sucesso do transplante é (4 a 6 horas). O fígado e o pâncreas podem aguentar por 12
praticamente assegurado pela identidade genética. a 24 horas (Tabela 6.1).
Outro problema é a geração de um irmão para que se Em estudo comparativo, chegou-se à conclusão de que as
tenha a possibilidade de um doador de medula óssea. Há ar- chances de bom resultado em transplantes é máxima a partir
gumentos a favor e contrários. Debate semelhante tem sido de doador vivo familiar, média com doador vivo sem laços
travado em torno da manipulação de embriões humanos e de parentesco e menor com doador cadáverM.
da clonagem de células do receptor para a obtenção de teci- Havendo uma manifesta ção da vontade do possível doa -
dos não sujeitos à rejeição 64 • dor, em vida, esta deveria ser respeitada após a sua morte.
É discutível e polêmica a utilização de órgãos de anencé- Não caberia aos familiares decidir contrariamente. Tal ma -
falos. Nos países em que se permite o aborto eugênico, acres- nifestação pode ter sido feita em documentos de identidade
centa-se o problema da manutenção dessa gravidez para fins ou através de comunicação verbal testemunhada por outras
exclusivos de transplante de órgãos. A maioria dos autores pessoas. Levantamento estatístico feito pela Associação Bra-
tem-se posicionado de acordo com o grau de desenvolvi- sileira de Transplantes de Órgãos, com base nos documen-
mento cerebral do anencéfalo. Se capaz de respirar e de se tos de identidade emitidos a partir de 1998 em vários esta-
manter vivo sem recursos extraordinários, como respirador dos brasileiros, constatou que, em média, 55,15% se mos-
artificial, sua vida deve ser respeitada tal qual a de uma outra traram contrários à doação. Mas houve grande disparidade
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 115

nos resultados entre os diversos estados pesquisados. Em Escolha do Receptor


Sergipe, a negativa chegou a 94%, enquanto no Paraná ficou
O tratamento por meio de transplantes, por causa do seu
em 27% 64 . Embora a família tenha o dever ético de seguir
custo e dos riscos que envolve, só é indicado para aqueles ca-
o desejo do falecido, do ponto de vista legal ela é titular do
sos em que não há mais outros recursos de ordem clínica ou
direito de decidir.
cirúrgica. Deve ficar restrito àqueles em que o paciente esteja
Não sendo conhecida a postura do possível doador com
preso a uma máquina de diálise renal, às cardiopatias em fase
relação à disponibilidade de seus órgãos e tecidos, é justo que
final e a outras doenças difusas de órgãos nobres, lesados de
caiba à família a decisão. E isso não constitui um entrave ao
modo irreversível.
aproveitamento de órgãos de pessoas em morte encefálica.
O sucesso dos transplantes também está relacionado com
Cerca de 70 a 80% das solicitações feitas para doação cos-
tumam ser atendidas, desde que a equipe de captação saiba a boa escolha do receptor. Vários fatores de ordem médica
abordar a família de modo respeitoso e com sensibilidade influem no resultado do procedimento. Existem contraindi-
suficiente para compreender o seu sofrimento64• Atitudes re- cações ligadas ao receptor tanto de ordem geral como espe-
veladoras de oportunismo e de ansiedade para dispor dos cíficas para cada órgão. As principais de ordem geral são a
órgãos costumam ser punidas pela recusa dos familiares, que existência de sensibilização prévia aos antígenos do doador,
sentem violado o seu sentimento de luto. Tal recusa tem que neoplasia maligna, infecção grave em atividade, idade avan-
ser aceita com o respeito e a naturalidade de quem sabe que çada ou mau estado de outros órgãos vitais que não aquele a
eles têm esse direito. E não deve ensejar qualquer atitude de ser substituído. Entre as contraindicações específicas, à guisa
represália contra o paciente. de ilustração, podemos enumerar: 1) o tamanho do órgão
A resposta negativa, porém, pode resultar de proibições a ser transplantado tem que ser compatível com o que será
religiosas ou de falta de informações adequadas quanto ao substituído; 2) no caso de transplante de fígado, o alcoolis-
que seja a morte encefálica. Interessante esclarecer que as mo crônico; 3) no caso do rim, a glomerulonefrite em ativi-
testemunhas de Jeová, radicalmente contrárias à transfusão dade; 4) no caso do coração, a aterosclerose generalizada nas
de sangue, aceitam os transplantes de órgãos de cadáver, por grandes artérias do receptor72•
paradoxal que isso possa parecer. Mas exigem que não se A escolha da pessoa a ser contemplada com órgão de
faça transfusão durante ou após o ato cirúrgico. Isso cria um cadáver precisa obedecer a normas éticas e legais. Em pri-
problema para a equipe médica. No Hospital das Clínicas da meiro lugar, dado o grande número de pessoas à espera de
Universidade de São Paulo, não são aceitos receptores que um órgão, quando surge um disponível, é necessário que se
sejam adeptos dessa religião64 • usem critérios para estabelecer as prioridades. Entre eles, a
A possibilidade da doação presumida, que consiste em gravidade do paciente é um dos mais importantes, uma vez
se considerar doadores os indivíduos que não se manifes- que a possibilidade de morte em curto prazo justifica a ante-
taram em vida, suscita fortes controvérsias. Os que são fa- cipação da reposição. O cumprimento rígido de uma fila de
voráveis argumentam que a presunção aumentaria a oferta espera esbarra nesse obstáculo de natureza ética. Mas, mes-
de ór gãos e, com isso, haveria uma diminuição do tempo mo esse critério é passível de discussão. Há casos em que a
de espera do receptor. Na verdade, o gargalo no fluxo dos doença já avançou tanto que houve comprometimento grave
transplantes não está na oferta de órgãos. Os que são con- de outros órgãos afetados secundariamente, de modo a tor-
trários alegam que a retirada de órgãos e tecidos do cadáver nar o êxito do transplante duvidoso. Seria válido desperdiçar
sem o consentimento dos familiares fere o sentimento das o órgão a ser doado com um paciente de tal modo compro-
pessoas enlutadas e cria um constrangimento desnecessá- metido pela doença?
rio. Além do mais, alegam que a sociedade, mal-informada Cumpre esclarecer que os que necessitam de rim podem
quanto aos critérios de mo rte encefálica, ficaria insegura esperar um pouco mais, uma vez que podem ser tratados
diante da possibilidade de que alguém possa ser declarado pela hemodiálise, enquanto os necessitados de coração, por
morto de modo açodado com o fito de se aproveitar seus exemplo, não têm como esperar muito. Além disso, sendo a
órgãos para transplante. E, com a precariedade dos serviços doação post mortem de natureza pública, a família do doador
de sa úde oferecidos pela nossa administração pública, te- não tem o direito de interferir na distribuição dos órgãos de
mos que convir que tal receio não é tão infundado. A favor seu ente querido. Se assim fosse, criar-se-ia o caminho para a
dessa postura contrária à doação presumida temos o fato de comercialização velada. Acrescente-se que a escassez de ofer-
estar na captação e distribuição dos órgãos o maior óbice ao ta de órgãos de cadáver, em função da má captação e distri-
aproveitamento da doação post mortem. Mesmo na Espa- buição, torna imperioso que se faça o transplante que tenha
nha, o país que tem a melhor estrutura para a captação e o a maior probabilidade de dar certo. Não são decisões fáceis.
aproveitamento de órgãos de cadáver, o percentual não ul- Outra dificuldade na alocação dos órgãos é a qualidade
trapassa 2% do que seria possível69 • Outro argumento con- do acompanhamento pós-operatório, que tem que vigiar de
trário à doação presumida e, a nosso ver, o mais importante, perto o aparecimento de sinais de rejeição. Aí surge o proble-
é que se furta à família, em momento de profundo pesar, o ma dos receptores de risco por condições psicológicas e so-
consolo de permitir que a desgraça de seu ente querido sirva ciais. Indivíduos de baixo QI, de baixa instrução e os de con-
como lenitivo para o sofrimento alheio7 1• dições sociais miseráveis, por estarem se sentindo bem, terão
116 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

dificuldades de entender a necessidade de comparecimento A Lei 8.489/92 75 excluiu de sua abrangência sangue, es-
assíduo aos ambulatórios por tempo prolongado a fim de perma e óvulos. Exigiu a declaração de disponibilidade dos
controlar o fenômeno da rejeição; ou terão dificuldades para seus ó rgãos, em documento público ou privado, por parte
o deslocam ento até os centros de tratamento por morarem do doador. Tornou compulsória e urgente a no tificação dos
longe e disporem de po ucos recursos para o seu transpor- casos de morte encefálica diagnosticados nas instituições
te. O risco de fracasso torna-se maior nessas pessoas64 . Seria hospitalares tanto públicas como privadas. Seu decreto de
válido dar preferência, em condições sem elhantes, àqueles regulamentação (879/93) 76 tornou também compulsória a
mais esclarecidos? Sabendo-se que os órgãos de doadores vi- notificação de pacientes necessitados de transplantes de ór-
vos têm maio r chance de serem aceitos, seria correto doá-los gãos e criou as Centrais de Notificação nas Secretarias de
a pessoas nesse grupo de risco, ou seria melhor que se vales- Saúde dos estados para coordenar os dois tipos de informa-
sem apenas de doador cadáver? Não há regras absolutas para ção. Adotou o critério do CFM para o diagnóstico da morte
essas questões. Os diversos fatores têm que ser pesados em encefálica (art. 32 , item V). E determinou que o Ministério da
conjunto no momento de decidir, sempre ouvindo todos os Saúde elaborasse um documento oficial, a ser distribuído ao
segmentos interessados. público em geral pelas instituições hospitalares, para decla-
Em qualquer caso, há um ônus para a sociedade, uma ração em vida da condição de doador.
vez que os procedimentos são caros, envolvendo recursos A nova lei de transplantes (Lei 9.434/97) 25 manteve a
que poderiam ser utilizados para a prevenção das doenças maioria dessas disposições, modificou alguns pontos e criou
que podem levar o paciente a precisar de um transplante. novas normas. Entre as modificações, a mais polêmica foi a
A doença de Chagas é um belo exemplo. Nessa matéria, é da doação presumida. No seu artigo quarto, estabelece: "Salvo
sempre prudente não se deixar levar exclusivamente pelo in- manifesta ção de vontade em contrário, nos termos desta Lei,
teresse individual do receptor. Há um conflito de interesses presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos, ou partes
entre a sua necessidade de atendimento superespecializado e do corpo humano, para finalidade de transplantes ou tera-
o de cobertura básica de saúde para a comunidade. Deve-se pêutica post mortem." No mesmo sentido, determina o artigo
14 do Decreto 2.268197 77 que a regulamentou: "A retirada de
atentar para o princípio bioético de justiça. O mais indicado
tecidos, órgãos e partes, após a morte, poderá ser efetuada,
é fazer tudo para que, com os recursos dispo níveis, se possa
independentemente de consentimento expresso da família,
pro mover o máximo de benefício para o maior número pos-
se, em vida, o falecido a isso não tiver manifestado sua obje-
sível de pessoas.
ção." No§ 1º destes dois artigos, ficou estipulado que a nega-
tiva da condição de doador teria que constar tanto da cartei-
Aspectos Legais ra de identidade quanto da carteira nacional de habilitação
pela inscrição da frase "não doad or de ó rgãos e tecidos". No
Do ponto de vista teórico, as leis devem cobrir de modo caso de haver tal declaração em apenas um dos documentos,
perfeito a moralidade de uma sociedade. Devem respo nder valeria o mais recente. As novas normas permitem, porém,
à necessidade de controle dos possíveis conflitos de interesse que a escolha seja modificada a qualquer momento pelo por-
surgidos no ambiente social. Com relação aos transplantes, tador do docum ento.
já foram promulgadas quatro leis especiais: Lei 4.280/63, A opção legal pela doação presumida foi fortemente in-
Lei 5.479/68, Lei 8.489/92 e Lei 9.434/97. As duas últimas fluenciada pela legislação espanhola. Lá, após a adoção da
foram regulamentadas pelos Decretos 879/93 e 2.268/97, nova norma, conseguiu-se aumentar consideravelmente o
respectivamente. aproveitamento de ó rgãos de cadáveres, embora os médicos
A Lei 4.280/6Y3 estabelecia normas legais apenas para o fossem aconselhados a consultar a família 64 • Aqui, diante dos
transplante de córneas. Ainda não havia o debate ético quan- protestos da sociedade em geral, através de entidades como o
to ao aproveitamento de órgãos de doador cadáver. Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasi-
A Lei 5.479/6874 surgiu po uco tempo após a realização leira, o governo editou a Medida Provisória 1.718, revogando
do primeiro transplante de coração pelo cirurgião sul-afri- a doação presumida, ao acrescentar um sexto parágrafo ao
cano Christiaan Barnard, no fim de 1967. Exigia o consen- artigo quarto da lei: "Na ausência de manifestação da von-
timento d o doador, se vivo e capaz, ou por ele expresso em tade do potencial doador, o pai, a mãe, o filho o u o cônjuge
vida, quando já morto. Na ausência de seu consentimento, poderá manifestar-se contrariamente à doação, o que será
o poder de doar passaria aos familiares ou aos responsáveis obrigato riamente acatado pelas equipes de transplante e re-
legais pelo falecido. Nos casos de pessoas não identificadas, moção." Mais recentemente, a Lei 10.211, de 23/03/200!78,
a doação poderia ser autorizada pelo diretor da instituição ratificou a titularidade do cônjuge ou, na sua impossibili-
respo nsável pelo corpo. Exigia, para a retirada post mortem , dade, dos parentes na linha sucessória reta ou colateral até o
que ho uvesse prova incontestável da morte, deixando-a a cri- segundo grau, inclusive com relação à autorização para a re-
tério médico. E foram lo ngos os debates, sem que se chegasse moção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano (art. P).
a uma definição legal da morte encefálica. Em nosso país, Essa lei também revogou a validade de qualquer tipo de de-
tivemos que esperar 23 anos até que o Conselho Federal de claração relativa à doação de órgãos constante das carteiras de
Medicina emitisse a Resolução 1.346/9 124 • identidade o u nacional de habilitação de motoristas (art. 2º ).
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 117

Com relação aos incapazes em estado de mo rte encefálica, to dos os casos em que seria permitida a remoção sem a au-
essa nova lei estabeleceu, no seu artigo primeiro, a necessida- torização do legista.
de de autorização expressa de apenas um dos pais o u respon- Além disso, deixando-se de lado tais contradições, na
sáveis legais. A lei anterior exigia o consentimento d e ambos m aio ria das vezes não há peritos em disponibilidade para
os pais o u respo nsáveis. se deslocarem dos institutos médico-legais ao local onde se
Alguns preceitos éticos têm sido referendados nos suces- encontram os possíveis doado res. Sem o exame do corpo do
sivos diplomas legais. Assim, a gratuidade da doação consta possível doador, perito algum autorizará a remoção. Ora,
do artigo primeiro d as Leis 5.479/68, 8.489/92 e 9.434/97. A desligados os aparelhos de manutenção das fun ções vitais da
necessidade de perfeita separação entre a equipe médica que pessoa em mo rte encefálica, cessam a respiração e a circula-
faz o diagnóstico da morte encefálica e a que capta os órgãos ção, sobrevém a isquemia tecidual e se inicia a autó lise. As-
é afirmada nos decretos que regulamentaram duas das leis sim, seria necessário aguardar a chegada do médico-legista
mais recentes ( §§ 1-º- e 2-º- do art. 8-º- do Dec. 879/93 e § 3º do para que se pudesse desligar os aparelhos, o que po deria cau-
art. 16 do Dec. 2.268/97). A recomposição do corpo do doa- sar uma demora desnecessária e prejudicial.
dor, de modo a não chocar os familiares, está determinada Um aperfeiçoamento trazido pela nova lei e seu decre-
nas quatro leis citadas (§ único do art. 1º d a Lei 4.280/63, to d e regulamentação foi a criação do Sistema Nacional de
art. 6º da Lei 5.479/68, art. 4º da Lei 8.489/92, art. 8º d a Lei Tran splantes (SNT), formado pelo Ministério da Saúde, as
9.434/97) e no artigo 21 do Decreto 2.268/97. Secretarias de Saúde dos estados e do Distrito Federal, as Se-
A necessidade de auto rização do médico-legista para a cretarias de Saúde dos municípios, os estabelecimentos hos-
retirada nos casos de interesse da justiça tem sido previs- pitalares autorizados e a rede de serviços auxiliares neces-
ta desde a lei de 1968. Aqui, reside um problema de difícil sários à realização dos transplantes. No âmbito estadual e
solução. Em primeiro lugar, porque a maioria dos casos de municipal, devem ser criados órgãos executivos - as Centrais
mo rte encefálica resulta de ação traumática, morte violen- de Notificação, Cap tação e Distribuição de Órgãos (CNCDO).
ta. As estatísticas mostram que chegam a cerca de 60% dos O Ministério da Saúde, através de criação de unidade
casos69 • Em segundo lugar, pelo fato de haver necessidade d e própria, é o órgão central do SNT. Tem as atribuições de
descrição das lesões pelos peritos oficiais, as equipes de reco- coordenar o sistema, baixar normas regulamentadoras, ge-
lhimento d os órgãos não estão autorizadas a intervir antes renciar uma lista única nacional de receptores (item III do
da realização d a perícia, já que poderiam modificar o aspecto art. 4Q do decreto), autorizar estabelecimentos hospitalares
das lesões de interesse médico-legal. Na Lei 5.479/68, houve a integrarem o SNT, cred enciar as CNCD O e avaliar o de-
proibição explícita no seu artigo 12: "As intervenções disci- sempenho de todo o sistema. Essa lista na cional refere-se às
plinadas por esta lei não serão efetivadas se ho uver suspei- doações de cadáver.
ta de ser o disponente vítima de crime", embor a seu artigo A lei vigente e seu decreto de regulamentação determi-
nono o permitisse desde que o legista autorizasse. No De- nam que o doador vivo declare expressamente que ó rgãos ou
creto 879/93 ficou estabelecido que o perito-legista teria que tecidos está disposto a doar e para quem ( § 4Qdo art. 9-º- da lei
autorizar a retirada e que a direção da instituição hospitalar e§ 4-º- d o art. 15 do decreto), com exceção da doação de me-
teria que lhe fornecer relatório no qual constariam as lesões dula óssea (§ 6-º- do art. 15 do decreto). Às CNCDO compete
observadas à internação d o paciente, os procedimentos ci- (art. 7º do d ecreto ): 1) coordenar as atividades no âmbito es-
rúrgicos porventura realizados e o critério adotado para o tadual, fazer a inscrição dos potenciais receptores com seus
diagnóstico d a morte encefálica (art. 10). dados imunológicos de compatibilidade e seu endereço, de
A lei vigente (9.434/97) e o seu decreto de regulamen- modo que seja informado sempre que houver doador com-
tação (2.268/97) tornaram mais nebulosa a conduta legal. patível; 2) classificar tais pacientes de acordo com as suas
Por um lado, a lei determina a necessidade de autorização necessidades e pela data de entrada na lista, dando-lhes o
do perito-legista responsável pela necropsia fore nse, ou do comprovante e informando o órgão gestor do Ministério da
patologista encarregado da verificação de óbito nos casos d e Saúde; 3) receber notificações de mo rte encefálica; 4) enca-
mo rte não assistida (§ único do art. 7-º- da lei) . Mas seu decre- minhar os órgãos disponíveis para os receptores ideais, de
to de regulamentação dispensa tal autorização para a remo- acordo com a ordem de inscrição(§ 4Q do art. 24 do decreto);
ção de ó rgãos, tecidos e partes de cadáver sujeito à necropsia 5) fiscalizar os estabelecimentos hospitalares e aplicar-lhes
obrigatória, desde que não sejam esses órgãos necessários à sanções administrativas; 6) encaminhar denúncia ao Minis-
verificação da causa da m orte (art. 17 do decreto) . De modo tério Público estadual quanto à ocorrêcia de ilícitos penais; 7)
contraditório, porém, o parágrafo único desse artigo exclui fazer relatório de suas atividades para o Ministério da Saúde.
da liberação tod os os casos de "m orte ocorrida sem assis- A escolha do receptor pelas CNCDO poderá não seguir
tência m édica ou em decorrência de causa mal definida, ou rigidam ente a ordem de inscrição na lista nacional de recep-
que necessite de ser esclarecida diante da suspeita de crime, tores, conforme disposto no § 5º do artigo 24 do decreto: ''A
quando a retirada, observadas as demais condições estabe- ordem d e inscrição prevista no parágrafo anterior poderá
lecidas neste D ecreto, d ependerá de autorização expressa do d eixar de ser observada se, em razão da distância e das con-
médico patologista ou legista''. A nosso ver, essa exceção re- dições de transporte, o tempo estimado de deslocamento do
tira a autorização dada no caput do artigo 17, pois abrange receptor selecionado to rnar inviável o transplante d e tecidos,
118 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

órgãos ou partes retirados, ou se deles necessitar quem se en- 4. Woolf N. Ischaemic heart disease. ln: The Circulatory System. Ox-
contre em iminência de óbito, segundo avaliação da CNCDO, fo rd Textbook of Pathology. vol. 2. McGee JD, Isaacson PG, Wright
NA, eds. Oxford: Oxford University Press; 1992. Capítulo 12.
observados os critérios estabelecidos pelo ó rgão central do 5. Wyllie AH, Duvall E. Cell Death. l n: Cell Injury and Death. Oxford
SNT." Achamos que a redação do § sn do artigo 24 atendeu Textbook of Pathology. vo l. 1. McGee JD, Isaacson PG, Wright NA,
às limitações atuais do nosso SUS, em que os serviços capazes eds. Oxford: Oxford University Press; 1992. Capítu lo 3.
de realizar os transplantes mais complexos estão disponíveis 6. Bernat JL, Culver CM, Gert B. On the defi nition and criterion of
apenas nos grandes centros urbanos. death. Ann Int Med; 1981. 94(3):389-94.
7. Hércules HC. A nebu losa fro nteira da morte. Rev IMLGb; 1969.
A única menção a uma regionalização consta do § 2n do 1( 1):35-7.
artigo sétimo do decreto: "Os receptores inscritos nas CN- 8. Lima C. Do conceito ao diagnóstico de morte: controvérsias e
CDO regionais, cujos dados tenham sido previamente en- d ilemas éticos. Medicina Interna; 2005. 12( 1):6-1 O.
caminhad os às CNCDO estaduais, po derão receber tecidos, 9. Hoffenberg R. Christiaan Ba rnard: h is first transplants and their
órgãos e partes retirados no âmbito de atua ção do órgão impact on concepts of death. Brit Med J; 2001. 323:1 478-1 480.
10. Bernat JL, Culver CM, Gert B. On the definition and criterion of
regional." Mas não está claro o critério para essa excepcio- death. Ann Int Med; 1981. 94(3):389-94.
nalidade, se a distância ou a gravidade do caso do candida- 11. Beecher HK. A defm ition of irreversible coma: report of the Ad
to. Contudo, a adoção de critérios rígidos de regionalização Hoc Committee of the Harvard Medical School to exam ine the
também esbarraria em conflitos causados pela ocorrência de definition of brain death . JAMA; 1968. 205:37-40.
morte encefálica próximo aos limites entre duas áreas. Indi- 12. The President's Comission fo r the Study of Ethical Problems in
Medicine and Biomedical a nd Behavioral Research. Guidelines fo r
víduos na vez para receberem o transplante em uma região
the Deter mination of Death. JAMA; 1981. 246( 19):2184-2 186.
deixariam de recebê-lo de um doador da região vizinha por 13. The President's Comission fo r the Study of Ethical Problems in
limitação puramente geopolítica. Medicine and Biomedical a nd Behavioral Research. Guidelines fo r
A legislação vigente pro íbe a retirada de ó rgãos, tecidos e the Deter mination of Death. JAMA; 1981. 246( 19):2184-2186.
partes de cadáver de pessoas não identificadas (art. 6º- da lei 14. Rosenberg AN. Consciousness, coma, a nd b rain death 2009. JAMA;
2009. 301(11 ):1172-1174.
e art. 19 do decreto). Não há como saber se tais pessoas eram 15. Veatch RM. The impending colapse of the whole-brain definition
ou não doadoras. Supondo-se a aplicação da presunção em of death . Hastings Center Report; 1993. 23( 4): 18-24.
um caso concreto, haveria a possibilidade de, uma vez esta- 16. Youngner SJ, Bartlett ET. Human death and high technology:
belecida a identidade, verificar-se que a retira da contrariara the fa ilure of the whole-brain formulations. Ann Int Med; 1983.
99(2) :252-8.
a vontade da família d o falecido. Fica proibida também a re-
17. Lynn J. The determ ination of death. Ann Int Med; 1983. 99(2) :
tirada de órgãos de indivíduos portadores das doenças elen- 264-6.
cadas em listas de exclusão emitidas pelo ó rgão central do 18. Wiki pedia. Karen Ann Quinla n. Disponível em: http://en.wikipedia.
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compensa, ou outro motivo torpe para a doação de ór gãos, a de Ética Médica), 1346/91e1 480/97 (as últimas sobre conceito de
pena é m aior. Se fo r doador vivo e ele vier a sofrer lesão grave morte encefálica) .
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point. JAMA; 1979. 242:1985-1990. Citado por Bemat, 2006. 73 . Brasil. Lei 4.280 de 6 de novembro de 1963.
53. Callahan D. Living and dying with med ical technology. Crit Care 74. Brasil. Lei 5.479 de 1O de agosto de 1968.
Med; 2003. 3 l (suppl):s344-s346. 75. Brasil. Lei 8.489 de 18 de novembro de 1992.
54. Bouchut E. Les signes de la mort et les moyens de prévenir les in- 76. Brasil. Decreto 879 de 22 de julho de 1993.
humations prématurées. 3• ed. Paris: Librairie JB. Balliere et Fils; 77. Brasil. Decreto 2.268 de 30 de junho de 1997.
1883. 78. Brasil. Lei 10.2 11 de 23 de março de 2001.
120 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

Anexo 1 Art. 52 • Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clíni-


cas n ecessárias para a caracterização da morte encefálica serão
Resolução 1.480 de 8 de agosto de 1997 do Conselho Federal definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado:
de Medicina a ) de 7 dias a 2 meses incompletos - 48 horas
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições b ) de 2 meses a 1 ano incompleto - 24 horas
conferidas pela Lei n" 3.268, de 30 de setembro de 1957, regula - c) de 1 ano a 2 anos incompletos - 12 horas
mentada pelo Decreto n" 44.045, de 19 de julho de 1958 e, d) acima de 2 anos - 6 horas.
Considerando que a Lei 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, que Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para
dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo hu - constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma
mano para fins de transplante e tratamento, determina em seu inequívoca:
artigo 3<> que compete ao Conselho Federal de Medicina definir a) ausência de atividade elétrica cerebral ou
os critérios para diagnóstico de morte encefálica; b) ausência de atividade metabólica cerebral ou
Considerando que a parada total e irreversível das funções c) ausência de perfusão sanguín ea cerebral.
encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabe- Art. 72 • Os exames complementares serão utilizados por fai-
lecidos pela comunidade científica mundial; xa etária, conforme abaixo especificado:
Considerando o ônus psicológico e material causado pelo a) acima de 2 anos - um dos exames citados no Art. 6º, alí-
prolongamento do uso de recursos extraordinários para o su- neas <'a", ''b" e ''e";
porte de funçõ es vegetativas em pacientes com parada total e b) de 1 a 2 anos incompletos - um dos exames citados no
irreversível da atividade encefálica; Art. 6º, alíneas "a", "b" e "c". Quando se optar por eletroencefa-
Considerando a necessidade de judiciosa indicação para in- lograma, serão necessários 2 exames com intervalos de 12 horas
terrupção do emprego desses recursos; entre um e outro;
Considerando a necessidade da adoção de critérios para c) de 2 meses a 1 ano incompleto - 2 eletroencefalogramas
constatar, de modo indiscutível, a ocorrência de morte; com intervalos de 24 horas entre um e outro;
Considerando que ainda não há consenso sobre a apli- d ) de 7 dias a 2 meses incompletos - 2 eletroencefalogramas
cabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e com intervalo de 48 horas entre um e outro.
prematuros; Art. 8º. O Termo de Declaração de Morte Encefálica, devi-
damente preenchido e assinado, e os exames complementares
RESOLVE: utilizados para diagnóstico da morte encefálica deverão ser ar-
Art. l º. A mor te en cefálica será caracterizada através da rea- quivados no próprio prontuário do paciente.
lização de exames clínicos e complementares durante intervalos Art. 9". Constatada e documentada a mor te en cefálica, de-
de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas et árias. verá o Diretor Clínico da instituição hospitalar, ou quem for
Art. 2º. Os dados clínicos e complementares observados delegado, comunicar tal fato aos responsáveis legais do paciente,
quando da caracterização da mor te encefálica deverão ser re- se houver, e à Central de Notificação, Captação e Distribuição
gistrados no "termo de declaração de mor te en cefálica" anexo de Órgãos a que estiver vinculada a unidade hospitalar onde o
a esta Resolução. mesmo se encontrava internado.
Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer Art. 10". Esta Resolução entrará em vigor na data de sua pu-
acréscimos ao presente termo, que deverão ser aprovados pelos blicação e revoga a Resolução CFM nº 1346/9 1.
Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdição, sendo veda -
da a supressão de qualquer de seus itens. Brasília, DF, 8 de agosto de 1997.
Art. 3º. A morte en cefálica deverá ser con sequência de pro-
cesso irreversível e de causa conhecida. Valdir Paiva Mesquita (Presidente)/
Art. 42 • Os parâmetros clínicos a serem observados para Antônio Henrique Pedrosa Neto (Secretário-Geral)
con statação de morte en cefálica são: coma aperceptivo com au-
sência de atividade motora supraespinal e apneia.
CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes • 121

Anexo li
Nome do Hospital
TERMO DE DECLARAÇÃO DE MORTE ENCEFÁLICA
Res. CFM nº- 1.480 08/08/1997

NOME:
PAI: _ _ _ _ _ _ _ _ __
MÃE: _ _ _.
IDADE: _ _ _ _ ANOS ____ MESES ____ DIAS DATA DE NASCIMENTO _ _! __! __

SEXO: M F RAÇA: A B N Registro Hospitalar:

A - CAUSA DO COMA
A. l - Causa do Coma:
A.2 - Causas do coma que devem ser excluídas durante o exame
a) Hipotermia ( ) SIM ( ) NÃO
b) Uso de drogas depressoras do sistema nervoso central ()SIM ()NÃO
Se a resposta for sim a qualquer um dos itens, interrompe-se o protocolo

B. EXAME NEUROLÓGICO -Atenção verificar o intervalo mínimo exigível entre as avaliações clínicas constantes da tabela abaixo:

Idade lntemlo
7 dias a 2 meses incompletos 48 horas
2 meses a 1 ano incompleto 24 horas
1 ano a 2 anos incompletos 12 horas
Acima de 2 anos 6 horas
(Ao efetuar o exame, assinalar um a das duas opções SIM/NÃO obrigatoriamente, para todos os itens abaixo)

Relulbldm
Bellllllllal dm Ela• lll•ol6glco 1 Enm1
1
Z.Enme
Coma aperceptivo ()SIM () NÃO ()SIM ()NÃO
Pupilas fixas arreativas ()SIM () NÃO ()SIM ()NÃO
Ausência de reflexo córneo palpebral ()SIM () NÃO ()SIM ()NÃO
Ausência de reflexos oculocefálicos ()SIM () NÃO ()SIM () NÃO
Ausência de respostas às provas calóricas ()SIM () NÃO ()SIM ()NÃO
Ausência de reflexo de tosse ()SIM () NÃO ()SIM ()NÃO
Apneia ()SIM () NÃO ()SIM ()NÃO

C. ASSINATURAS DOS EXAMES CLÍNICOS - (Os exames devem ser realizados por profissionais diferentes, que não poderão ser
integrantes da equipe de remoção e transplante.

1. PRIMEIRO EXAME 2. SEGUNDO EXAME


DATA: _ !_ !_ HORA: _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ DATA: _ !_ !_ HORA:
NOME DO MÉDICO: _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
CRM: _ _ _ _ _ _ _ _ FONE:_ _ _ _ _ _ _ __ NOME DO MÉDICO: _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
END.: - - - - - - - - - - - - - - - - - - CRM: _ _ _ _ _ _ _ FONE: _ _ _ _ _ _ __
ASSINATURA: _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ END.: - - - - - - - - - - - - - - - - - -
ASSINATURA: _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
122 • CAPITULO 6 Conceito de Morte. Estudo Médico-legal dos Transplantes

D. EXAME COMPLEMENTAR - Indicar o exame realizado e anexar laudo com a identificação do médico responsável

1. Angiografia Cerebral 2. Cintilografia 3. Doppler Transcraniano 4. Monitoração da 5. Tomografia


Radioisotópica Pressão lntracraniana Computadorizada com
Xenônio

6. Tomografia por Emissão 7. EEG 8. Tomografia por 9. Extinção Cerebral do 1O. Outros (citar)
de Fóton Único Emissão de Pósitrons Oxigênio

E. OBSERVAÇÕES:
1. Para o diagnóstico de morte encefálica, interessa exclusivamente a reatividade supraespinal.
Consequentemente, este diagnóstico não é afastasdo através da presença de sinais de reatividade infraespinal (atividade reflexa
medular), tais como: reflexos osteotendinosos (reflexos profundos), cutâneos-abdominais, cutâneo-plantar em flexão ou extensão,
cremastérico superficial o u profundo, ereção peniana reflexa, arrepio, reflexos flexores de retirada dos membros infer iores ou supe-
riores, reflexo tónico cervical.
2. Prova Calórica
2.1 - Deve-se certificar que não há obstrução do canal auditivo por cerúmen ou qualquer outra condição que dificulte a correta
realização do exame.
2.2 - Usar 50 mL de líquido (soro fisiológico, água etc.), em torno de 0°C em cada ouvido.
2.3 - Manter a cabeça elevada em 30 (trinta) graus durante a prova.
2.4 - Constatar a ausência de movimentos oculares.
3 - Teste da Apneia
No doente em coma, o nível sensorial de estímulo para desencadear a respiração é alto, necessitando-se elevar a pC02 até 55
mmHg, fenómeno que pode determinar um tempo de vários minutos entre a desconexão do respirador e o aparecimento dos
movimentos respiratórios, caso a região ponto-bulbar ainda esteja íntegra. A prova da apneia é realizada de acordo com o seguinte
protocolo:
3.1 - Manter o paciente no respirador com Fi0 2 a 100%, por 10 minutos.
3.2 - Desconectar o tubo do respirador.
3.3 - Instalar cateter traqueal de oxigênio com fluxo de 6 litros por minuto.
3.4- Observar o surgimento de movimentos respiratórios por 10 minutos, ou até atingir pC02 = 55 mmlHg.
4 - O exame clínico deve ser acompanhado de um exame complementar, que demonstre a ausência de circulação sanguínea
intracraniana, atividade elétrica ou atividade metabólica cerebral. Observar o disposto abaixo (itens 5 a 6), com relação ao tipo de
exame e faixa etária.
5 - Em pacientes com 2 anos ou mais, faze r um exame complementar entre os abaixo mencionados:
5.1 - Atividade circulatória cerebral: angiografia, cintilografia radioisotópica, Doppler transcraniano, monitoração da pressão
intracraniana, tomografia computadorizada com xenónio, SPECT.
5.2 - Atividade elétrica: eletroencefalograma.
5.3 - Atividade metabólica: PET, extração cerebral de oxigênio.
6 - Para pacientes abaixo de 2 anos:
6.1 - De 1 ano a 2 anos incompletos: o tipo de exame é facultativo. No caso de eletroencefalograma, são necessários dois registros
com intervalo mínimo de 12 horas.
6.2 - De 2 meses a 1 ano incompleto: dois eletroencefalogramas com intervalo de 24 horas.
6.3 - De 7 dias a 2 meses de idade (incompletos); dois eletroencefalogramas com intervalo de 48 horas.
7 - Uma vez constatada a morte encefálica, cópia deste termo de declaração deve obrigatoriamente ser enviada ao órgão contro-
lador estadual (Lei 9.434, art. 13).
Hygino de C. Hercules

A morte é um evento inevitável. Todos nós haveremos nheiro de sua casa, com a porta fechada por dentro, tanto
de morrer um dia. Mas, embora seja isso um fato natural, pode ter morrido por uma doença de evolução superaguda
o momento da morte pode ser antecipado se interferirem como pode ter cometido suicídio. Enquanto não se fizer a
energias externas, independentes do ciclo vital do indivíduo. necro psia, a m orte deve ser considerada suspeita 2• As m ortes
Por isso, costuma-se referir como natural a morte que ocorre súbitas serão estudadas no Capítulo 8.
por doenças e pelo inexorável processso de envelhecimento. Por vezes, mesmo após investigação bem dirigida e mi-
As outras são consideradas não naturais, uma vez que resul- nu ciosa, não se consegue chegar à conclusão quanto a se
tantes de fatores externos não relacionados com a curva vital. tratar de mo rte por acidente, suicídio ou crime. Nesses ca-
Essas mo rtes causadas pela ação de energias externas são cha- sos, a rubrica a ser utilizada deve ser morte de causa jurídi-
madas de violen tas em nosso m eio e podem ser provocadas ca indeterminada. Po r exemplo, é o que ocorre quando um
por acidente, suicídio ou crime. Conforme já explicamos na corpo é encontrado em estado de esqueletização no meio
parte referente aos atestados de óbito, preferimos usar o ter- do mato, mas não se percebem sinais de fratura s ou ou-
mo crime no lugar de homicídio. Em outros países, como os tras formas de violência. Tanto pode ter sido m orte natural
Estados Unidos da América do Norte, a conotação de morte como morte vio lenta, digamos, por sufocação. Nesse caso,
violenta inclui apenas aquelas em que a ação da energia ex- o médico-legista não pode dar a causa médica da morte
terna foi desencadeada intencionalmente. As acidentais são nem as autoridades podem chegar à sua causa jurídica.
colocadas em outro grupo para fins estatísticos. Tal posição Ressalte-se que este esclarecimento, a causa jurídica, não é
acompanha o conceito de violência proposto pela OMS: uso tarefa dele.
intencional de força física ou poder, ameaçado ou real, contra Outra dificuldade existe quando se sabe que a m orte
si mesmo, outrem, ou contra um grupo ou comunidade, que não foi natural mas não é possível classificar qual das três
resulta ou tem a probalilidade de causar lesões, morte, abalo formas de mo rte violenta ocorreu. É o que acontece em ca-
psicológico, mal desenvolvimento ou privações'. sos de pessoas acostumadas ao uso de r em édios para d or-
O evento que causa a morte é encarado, aqui, do ponto mir que são encontradas mo rtas no leito, ao amanhecer. Se
de vista jurídico, uma vez que o estabelecimento de qualquer o exame toxicológico confirmar um teor alto do hipnó tico
daquelas três causas traz consequências sociais de repercus- no sangue, não será possível distinguir entre acidente por
são muito distinta. Assim, do ponto de vista jurídico, as mor- superdosagem e suicídio quando não houver outros indí-
tes devem ser catalogadas como naturais ou violentas. E as cios, tais como bilhetes de despedida ou associação de dro-
violentas, com o acidentais, suicidas ou criminosas. gas até então não utilizadas. Outro exemplo que pode ser
Embora simples de entender, tal classificação esbarra em citado é o de indivíduo que pule de paraquedas e não o abra
dificuldades quando de sua aplicação aos casos concretos. para simular um acidente. Na perícia, o fato pode passar
Algumas vezes, a dificuldade reside no aspecto inesperado despercebido se não se procurar indícios de que o cordão
ou súbito da morte. Um indivíduo encontrado morto no ba- não foi acionado2•3 •

123
124 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

• IMPORTÂNCIA DA DETERMINAÇÃO DA • DIAGNÓSTICO DA CAUSA JURÍDICA DA


CAUSA JURÍDICA DA MORTE MORTE
O diagnóstico da causa jurídica da m orte é a principal ra- O diagnóstico diferencial das modalidades de causa ju-
zão da realização das necro psias fore nses4• Mesmo nos casos rídica apoia-se em dois pilares: boa investigação do local e
em que restam poucas dúvidas, tem que ser feita obrigatoria- necropsia conduzida com técnica apurada. Tanto um como
mente, e por peritos oficiais, por determinação do Código de outro serão beneficiados pelo exame do suspeito e por in-
Processo Penal (arts. 159 e 160 ). Contudo, não é atribuição formações colhidas com testemunhas, no pró prio local e no
d o m édico-legista estabelecê-la. Tanto é assim que os que- decurso da investigação policial.
sitos oficiais do auto de exam e cadavérico não incluem tal
indagação. Há mais de um século, já o entendiam autores Exame de Local de Morte Violenta ou Suspeita
clássicos como Vibert 5• O legista não pode deixar-se levar (Perinecroscopia)
pela pressão das autoridades e da opinião pública e afirmar
com o fato concreto aquilo que apenas lhe parece provável. Tanto nos casos de morte flagrantemente violenta como
É preciso muita cautela em tais afirmações, sendo conduta naqueles em que se suspeita de causa violenta, é indispensá-
mais sábia, ao emitir seu laudo, esperar por futuros quesitos. vel que se faça o levantamento do local de modo metódico e
Poderá, inclusive, orientar as autoridades na fo rmulação de rigoroso. Esse levantamento deve avaliar o ambiente ao redor
novos quesitos, sempre com a intenção precípua de se apro- do corpo e o cadáver. Or a se trata de local interior, dentro de
ximar o quanto possível da verdade. Por mais projeção que uma casa, apartamento ou outro tipo de construção; o ra, de
tenha o caso nos m eios de divulgação, a discrição será sem - local externo, na via pública ou em lugares ermos e afastados.
pre boa conselheira. A primeira condição para que se possam obter elementos
O esclarecimento da causa jurídica da mo rte não inte- valiosos é a preservação do local pelas autoridad es até a che-
ressa apenas ao processo penal. No foro civil, é importante, gada dos peritos. Infelizmente, não é o que ocorre na maioria
visto que os contratos de seguro, em geral, não cobrem as das vezes. É comum que pessoas que encontraram o corpo,
m ortes por suicídio. Nas mortes acidentais e nas causadas e mesmo outras que nada têm com a ocorrência, já tenham
por crime, porém, a maio ria das apólices tem cláusulas que entrado no local, adulterando-o po r ocasião da chegada dos
estabelecem uma indenização maior do que a devida por peritos. Po r ignorân cia ou por despreparo, o próprio agente
morte natural. da autoridade pode descaracterizar os indícios, andando por
Outra decisão importante, que depende da determinação sobre manchas, rem ovendo elementos do local ou mudando
correta da causa jurídica da m orte, é o planejamento de me- a posição relativa do corpo e dos objetos. De qualquer mod o,
didas de segurança pública. Quando as estatísticas começam ao chegarem ao local, os peritos devem fo tografar o corpo e os
a mostrar taxas crescentes de mortes violentas, as auto rida- objetos como se encontram e faze r um desenho com anota-
d es respo nsáveis têm a obrigação de verificar qual das formas ções dos achados. Atualmente, há program as de computador
é a mais importante - crime, suicídio ou acidente. Cada uma que facilitam a construção dos esboços em três dimensões7 •
das três requer a ado ção de medidas diferentes. No caso do
aumento de mo rtes acidentais, é necessário, ainda, esclarecer Exame de Interiores
o tipo de acidente, se de trânsito, do trabalho ou outro qual- Se ho uver desordem dos móveis, com peças tombadas
quer. No Rio de Janeiro, como nas demais gra ndes áreas me- ou fora de um lugar natural, ou utensílios quebrados, copos
tropolitanas do País, há muito que os índices de criminalida- ou garrafas com o líquido entornad o, pode-se presumir que
de já superaram o limite tolerável. Nos últimos an os, porém, houve luta. Janelas e portas fechadas por dentro e sem sinais
a ad oção de novas m edidas de prevenção e de ocupação de de arrombamento sugerem suicídio, mas podem resultar de
territórios até então dominados pelo crime o rganizad o tem acesso de pessoa que dispunha das chaves para entrar e pra-
levado a uma redução d os índices de criminalidade. As cha- ticar o crime.
m adas Unidades de Polícia Pacificador a criadas pela atual Devem ser procuradas manchas de sangue, tanto no chão
chefia da Secretaria de Estado de Segurança Pública vem, como nas paredes e no teto (Fig. 7.1 ). Tais manchas podem
progressivamente, libertando as populações carentes das fa- dar uma ideia de deslocam ento do corpo por arrastam ento
velas do jugo d os traficantes. ou por seus próprios meios, o que produz marcas distintas.
É preciso entender, ainda, que a uma causa jurídica po- O arrastamento produz faixas e estrias paralelas, enquan-
dem corresponder várias causas m édicas e que uma causa to os movimentos da vítima deixam m arcas das m ãos nos
m édica pode ter sido provocada por qualquer causa jurídica . pontos de apoio. Respingos de san gue deixam marcas carac-
Assim, tanto se pode m orrer assassinado com um tiro no co- terísticas conforme caiam perpendicular ou obliquamente,
ração, como no pulmão, fígado, cérebro ou outro ó rgão vital. ou projetem-se em movimento (Fig. 7.2). No caso de caí-
Do mesmo modo, uma ferida transfixante do coração tanto rem perpendicularmente, apresentam aspecto r adiado em
pode ter sido acidental como intencional, por terceiros ou toda a sua circunferência, tanto mais amplo quanto maior
pela própria pessoa6 • fo r a altura da queda (Fig. 7.3) . Quando em movimento,
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 125

assumem forma mais alongada, lembrando uma pera, com


aspecto radiado menor e um escorrimento na direção do
deslocamento da vítima. Quando as manchas representam
mãos ou pés, devem ser comparadas com as que poderiam
ser da vítima8 . Mesmo que o local tenha sido lavado, ain-
da é possível detectar resíduos de sangue que não tenham
sido totalmente removidos, invisíveis à simples inspeção. Os
peritos podem se valer de uma substância conhecida como
luminol (C8Hp 3N3), que produz fluorescência nas manchas
de sangue invisíveis a olho nu. A reação fotoquímica ocorre
pela presença do ferro na molécula da hemoglobina9 . Ou-
tros tipos de mancha de material orgânico também devem
ser procurados, como as de esperma em lençóis, toalhas e
mesmo no cadáver.
Havendo alguma arma no local, é imprescindível analisar
a sua posição com relação ao cadáver, se estava presa à sua
mão, se a direita ou a esquerda, se apenas encostada ou se-
gura. Tanto na arma como em outras superfícies lisas, devem
ser procuradas impressões digitais. Manchas de sangue em
armas brancas devem ser recolhidas para identificação do
grupo sanguíneo e, nos locais com recurso para tal, do DNA.
Mesmo que uma arma seja recolhida de um suspeito e que já
tenha sido lavada, ainda podem persistir resíduos de sangue
da vítima em reentrâncias do local de inscrição da marca e
na junção da lâmina com o cabo. O fato de não se achar a
arma no local de morte violenta sugere fortemente que se
trate de homicídio.
Figura 7.1. Tapete respingado por sangue da cabeça de um indivíduo
que se matou com um tiro na boca. Guia 216 da 16ª DP, de 16/09/02. A existência de bilhete ou carta de despedida indica sui-
cídio, principalmente se redigidas com a letra da vítima. A
irregularidade da escrita pode traduzir o estado emocional
alterado do suicida. Caso provenham de máquina de escrever
Alongamento da gota


2,10 m

Odiâmetro cresce
com a altura . ,som
. 1,50m

1,20m

•. 90cm

60an

. 30cm
Figura 7.2. Esquema para explicar a forma das manchas deixadas 15 an
por sangue pingado perpendicular ou obliquamente. A inércia faz com
que, ao tocar no solo, a gota assuma forma de lança com a ponta indi- Figura 7.3. Oaumento da altura torna maior o diâmetro da mancha por
cando a direção do deslocamento. Adaptado de Freeman, S. Disponível causa da maior velocidade de impacto. Adaptado de Freeman, S. Dispo-
em: www.science.howstuffworks.com/bloodstain-pattern.Acessado em: nível em: www.science.howstuffworks.com/bloodstain-pattern. Acessado
26 fev. 201 O. em 26 fev. 2010.
126 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

ou computador, devem-se procurar impressões digitais na fo- e da umidade relativa do ar, se possível. Em primeiro lugar,
lha de papel. Na presença de restos alimentares, é interessante os peritos devem anotar os sinais cadavéricos presentes no
procurar marcas de mordeduras em pedaços de pão ou de fru- momento do exame, pois resultam de processos dinâmicos
tas e comparar com as arcadas dentárias do cadáver (Fig. 7.4). que poderão já estar alterados mais tarde, quando for feita a
O exame das paredes e do teto pode mostrar mossas e necropsia. Isso deve incluir a tomada da temperatura retal6 •
perfurações. A existência de mossas pode indicar impacto As vestes devem ser descritas de modo minucioso, com
por projétil que ricocheteou e que deve ser procurado exaus- referência ao seu estado geral, ou seja, se estão desalinhadas,
tivamente no interior do recinto. No dia 31 de março de 2009 rasgadas, cortadas, sujas de terra, de sangue, tinta ou outras
foi encontrado um projétil deformado na varanda do aparta- substâncias. Havendo perfurações, estas serão anotadas quan-
mento ocupado pelo Autor, de frente para a Rua Teodoro da to ao seu número, à localização e às dimensões. Por vezes, não
Silva, Vila lzabel, que deixou uma mossa no marco de alumí- coincidem perfeitamente com as que são verificadas no cadá-
nio da porta (Figs. 7.SA e 7.SB). Se houver perfurações, de- ver. Isso pode traduzir mudanças de postura do corpo quan-
vem ser investigadas para se saber o sentido de transfixação. do atingido, perfurações por instrumento que não atingiu o
A posição relativa das mossas, das perfurações e do cadáver corpo ou o afastamento da roupa para desferir o golpe, o que
ajuda muito no esclarecimento da direção dos tiros. Nesses
casos, é preciso procurar por cápsulas de cartuchos deflagra-
dos, que são de valor na identificação da arma utilizada.

Exame de Locais Abertos


Quando o corpo é encontrado em ambiente externo, a
possibilidade de colher bons indícios fica reduzida, mas é
interessante, se possível, verificar rastros, pegadas e marcas
de pneus. Na via pública, a presença de curiosos costuma
descaracterizar o local, inviabilizando o seu levantamento.
Contudo, se se trata de estradas afastadas, locais de difícil
acesso, com ou sem vegetação abundante, podem ser acha-
das pegadas, rastros, trilhas, e mesmo marcas deixadas por
veículos (Fig. 7 .6 ). O encontro de cadáver em local de acesso
muito difícil praticamente inviabiliza a hipótese de suicídio
a não ser que se trate de um precipício.
Figura 7.5A. Mossa deixada por um projétil 9 mm no marco da porta
Exame do Cadáver de alumínio de acesso à varanda de um apartamento, voltada para o
Morro dos Macacos, no bairro de Vila lzabel, Rio de Janeiro, em março
Deve ser feito depois de anotadas e fotografadas as con- de 2009. O projétil vinha sem estabilidade, já ricocheteado e tocou o
dições ambientais, inclusive com o registro da temperatura marco pela base.

Figura 7.58. Imagem do projétil referido na Figura 7.5A. o achata-


Figura 7.4. Marca de mordida que mostra a curvatura e a dimensão mento da ponta resultou do primeiro impacto em outro anteparo. A forma
das arcadas dentárias. da mossa indica a colisão pela base do projétil.
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 127

Figura 7.6. Corpo de um homem encontrado em uma estrada deserta, Figura 7.8. Feridas de defesa causadas por instrumento cortante na
morto por estrangulamento e projéteis de arma de fogo. Exame de local borda cubital do antebraço e na região deltóidea. Guia 08 da 18ª DP, de
feito pelo autor na Estrada do Catonho, Jacarepaguá, Rio de Janeiro, em 26/02/69.
27/09/78.

Figura 7. 7. Suicídio cometido com faca. A camisa foi afastada pela Figura 7.9. Contenção por fios e cinto de couro preto ao redor do
vítima antes de se ferir. Tal aspecto indica autolesão. Coleção da Fac. de terço inferior das pernas. Só o pé esquerdo está calçado por uma meia.
Medicina da UFRJ. Guia 201 da 16ª DP, de 02/09/02.

é comum no suicídio (Fig. 7.7). Contudo, isso não é uma re- os gritos da vítima. A contenção desta pode ser revelada por
gra absoluta, podendo faltar em casos genuínos de suicídio. lesões situadas nos membros, entre as quais ressaltam os es-
Thoinot 10 cita um caso de suicida que se despiu parcialmente tigmas ungueais e marcas de algemas, ou de cordas ao redor
e dobrou cuidadosamente a ro upa antes de se matar. dos punhos e dos tornozelos (Figs. 7.9 e 7.10).
A presença de lesões de defesa indica que ho uve luta da As lesões de defesa podem faltar quando a vítima é apa-
vítima com um ou mais agressores. Tais lesões situam-se nas nhada de surpresa o u está dormindo no momento da agres-
regiões palmares, na borda cubital da mão e do antebraço, na são. Por outro lado, há registro de casos de suicídio por es-
face externa dos braços, nos joelhos, nas pernas. São mais co- gorjamento em que a vítima feriu a mão po r pegar o instru-
muns quando a agressão se faz por armas brancas (Fig. 7.8 ). mento pela lâmina 10 •
No caso de armas de fogo, é possível que a vítima tenha Quando se puder demonstrar que houve manipulação
segurado a arma e sua mão sido manchada por resíduos de do cadáver antes de ele ter sido encontrado, há fortes razões
pólvora saídos do espaço entre o tambor e a parte posterior para crer que houve crime e não suicídio ou acidente. Assim,
do cano, ou mesmo da boca da arma (Figs. 14.40 e 14.64). a presença de livo res de hipóstase em regiões opostas àque-
Outras lesões que podem indicar ter havido luta são las em que seria de se esperar pela posição do corpo mostra
equimoses e escoriações distribuídas nas partes expostas do que ele foi mudado de posição. Do mesmo modo, a presença
corpo, como joelhos, cotovelos, mãos, face etc. (Fig. 11.20). de rigidez muscular nos membros inferiores e na nuca e a
Também, a presença de eq uimoses e estigmas ungueais ao ausência nos membros superiores sugerem que ela foi par-
redor da boca como resultado de o agressor tentar impedir cialmente desfeita.
128 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

suicídio usando mais de um meio, como, po r exemplo, en-


fo rcamento e envenenamento. Temos visto alguns casos no
IMLAP do Rio de Janeiro. Por o utro lado, já observamos vá-
rios casos de homicídio com associação de estrangulamento
e uso de projéteis de arma de fogo (Fig. 7.11 ). O diagnóstico
da causa jurídica vai depender principalmente dos meios
utilizados, mas também de elem entos do local.
A remoção do corpo para o necrotério deve revestir-se
de certos cuidados a fim de que não se alterem indícios va-
liosos. O corpo deve ser colocado em um saco apropriado,
com fecho ecler, ou similar, de modo a evitar lesões ou con-
taminação por elementos do trajeto. Recom enda-se que as
mãos sejam pro tegidas por sacos plásticos, a fim de que não
Figura 7.10. Depois de removidos os fios e o cinto, restaram as marcas deixem cair algum m aterial importante porventura agarrado
sobre a pele, pouco intensas. Notam-se áreas de infiltração equimótica ou preso entre os dedos ou presente nos sulcos ungueais6 •
no terço médio das pernas e a marca da meia na perna esquerda. Mesmo
caso da figura anterior.
• QUESTÕES RELATIVAS AOS HOMICÍDIOS

O estudo das lesões encontradas no cadáver deve ser fei- Caso haja forte probabilidade, ou mesmo certeza de se
to no sentido de apurar número, sede, gravidade, direção e tratar de homicídio, surgem alguns pontos que podem ser
reação vital. A avaliação isolada de apenas um desses ele- esclarecidos pelos peritos. São perguntas frequentes durante
mentos po de levar a conclusões falsas. De um modo geral, as investigações ou o julgamento. Vejamos.
a presença de lesão única em região de eleição para suicídio
dificilmente terá sido causada por terceiros. Mas é possível 1) Qual a arma do crime?
o suicídio com m ais de uma lesão mortal, dependendo da Os peritos devem estabelecer, a princípio, o tipo de agen-
arma utilizada e do tempo de sobrevida associad o à primei- te lesivo que foi utilizado, ou se foi mais de um. Isso feito,
ra delas (Fig. 14.71). tentarão individualizar a arma. No caso de se tratar de arma
Algumas lesões, contudo, por sua localização, dificilmen- de fogo, podem comparar as estriações finas presentes em
te poderiam ser autoinfligidas, como na nuca e nas regiões projéteis disparados pela arma suspeita com as existentes na-
interescapulares (Fig. 14.35). O achado de lesões sem reação queles recolhidos do cadáver. Se fo r arma branca, a presença
vital sugere ação criminosa de terceiros. Os detalhes do diag- de manchas de sangue, o tamanho e a largura da lâmina de-
nóstico diferencial da causa jurídica das lesões pelos diversos vem ser comparados com as lesões presentes no corpo, não
agentes vulnerantes serão abo rdados de modo mais detalha- esquecendo que a profundidade e a largura dessas po dem
do quando do seu estudo. ser diferentes do esper ado ou ter havido agressão com m ais
A multiplicidade de meios tanto pode ocorrer no suicí- de um tipo de arma (Fig. 7.12). Para maiores detalhes, ver os
dio como no homicídio. Não é raro que pessoas com etam o Capítulos 13 e 14.

Figura 7.11. Multiplicidade de meios em homicídio. Há dois sulcos Figura 7.12. Grupo de feridas perfuroincisas no pescoço de uma
de estrangulamento e uma entrada de PAF na região parotídea. Guia 19 jovem morta com golpes de dois tipos de arma branca. Caso da Dra.
da 9ª DP, de 24/04/70. Vírgínia Rosa R. Dias, IMLAP.
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 129

2) Qual a atitude da vítima ao ser golpeada? 5) Em que ordem foram feitas as lesões?
Os escorrimentos do sangue no corpo podem dar uma Lesões de defesa devem preceder lesões mortais, embo-
ideia disso, mas podem falhar se o indivíduo mudar de po- ra possa haver exceções. De um modo geral, as mais graves
sição após os golpes, em atitude de defesa e de luta. Lesões e mortais por si são as derradeiras. Havendo lesão de uma
incidentes em dobras cutâneas podem revelar se o segmento grande artéria, ou do coração, o sangramento abundante e a
estava estendido ou fletido (Fig. 14.27) . queda rápida da pressão arterial fazem com que lesões pro-
A direção dos trajetos no interior do corpo serve para duzidas depois tenham pouca infiltração hemorrágica. Em
indicar as posições relativas dos seus segmentos. Várias fe- alguns casos de homicídio por grupos de extermínio, temos
ridas de um só lado do corpo demonstram que a vítima observado marcas de estrangulamento com intensa reação
poderia estar dormindo ou recostada pelo outro lado. A vital e ferimentos por projéteis de arma de fogo com escassa
posição da s perfurações das vestes deve ser comparada ou nula infiltração por sangue ao longo do trajeto. Isso in-
com as achadas no corpo, já que se deslocam com a sua dica que os tiros foram dados com o indivíduo já morto ou
movimentação. A presença de lesões no dorso não exclui agonizante. Obviamente, lesões em evolução inicial de pro-
a possibilidade de estar o agressor de frente para a vítima, cesso inflamatório foram feitas antes de outras que apresen-
bastando que ela estivesse abaixada ou que ambos estives- tam apenas infiltração hemorrágica. É o que ocorre quando
sem abraçados. a mesma pessoa sofre duas tentativas de homicídio, como
tem ocorrido às vezes com indivíduos eliminados por orga-
3) Qual a posição relativa entre vítima e agressor? nizações criminosas em hospitais de pronto-socorro onde
O melhor guia é a observação da direção e do sentido das estavam sendo tratados pelas feridas do primeiro atentado.
lesões. Se um acusado alega ter baleado a vítima em legítima No Capítulo 13, veremos como distinguir a ordem de produ-
defesa, estando ambos de pé quando foi ameaçado, o trajeto ção de duas feridas incisas que se entrecruzam. Caso haja fra-
do projétil tem que estar muito próximo de uma linha hori- turas múltiplas de crânio, os traços irradiados da que foi feita
zontal, mesmo havendo diferença de estatura entre ambos. A por último se interrompem ao chegar ao traço da primeira.
determinação das lesões de entrada e de saída é fundamen-
6) Houve mais de um agressor?
tal nessa avaliação. Agressores colocados em locais elevados
produzem lesões d e trajeto descendente no corpo d e uma A existência de lesões por mais de um agente vulnerante
indica para tal possibilidade, assim como o uso de armas de
vítima de pé. H á poucos anos, um m enino foi alvejado no
fogo de calibres diferentes. Se houver várias vítimas, prova-
tórax por uma flecha de competição esportiva em um bairro
velmente se trata de mais de um agressor. Nos casos de estu-
do Rio de Janeiro, e a direção do disparo foi fundamental
pro com marcas de contenção n os membros da vítima, é de
para se saber que teria vindo d e um apartamento d e um pré-
se admitir a participação de mais de um criminoso. O fato de
dio próximo ao local. A distâ ncia entre ambos também po de
estar a vítima manietada também o indica (Fig. 7.1 3).
ser avaliada pela presença de orlas de tatuagem, tisnado ou
queimadura nas agressões por arma de fogo.
7) A ferida era mortal por si própria?
Há lesões que matam qualquer pessoa, mas há outras que
4) Em que lugar se deu a agressão?
só são capazes de causar a morte de sujeitos com uma ten -
Nem sempre a pessoa ferida cai e morre no mesmo local.
d ência particular a agravá-las. Isso ocorre em certos casos de
Na dependência da lesão, é possível que haja deslocamento
da vítima por seus próprios meios, o que pode deixar rastros
de sangue se ela se arrastar, ou pingos com direção definida
se ela conseguir andar. Recentemente, as televisões mostra -
ram cenas captadas por câmera camuflada durante um as-
salto em uma farmácia norte-americana, em que o assaltante
atirou n o peito d o bakonista que reagira. A sequência mos-
tra que o ladrão foge logo após e o bakonista vai ao telefone
que estava na parede às suas costas, começa a digitar o nú-
mero e cai em seguida sem completar a chamada. A n otícia
do telejornal concluiu dizendo que ele mo rrera n o local. Le-
sões que seccionem artérias provocam jatos de san gue que
po dem manchar paredes ou o teto, indica ndo o local onde
foram feitas. Certas lesões impedem a vítima de abandonar
o local onde foi atingida, como nas feridas transfixantes de
medula e nos casos de fratura dos ossos de ambas as pernas.
Fraturas de crânio nocauteiam a vítima de imediato. São ra- Figura 7.13. O diagnóstico de homicídio neste caso impõe-se pela
ros os casos em que ela pode recuperar a consciência e se localização e número de entradas no dorso; e a atuação de mais de um
afastar do local sem auxílio. agressor, pela contenção. caso examinado peloAutor no IML.AP, em 1969.
130 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

homicídio preterdoloso, em que o agressor tem a intenção de


lesar, mas não de matar. Fonseca e Silva" publicaram o caso
de um garçom que foi agredido por um freguês, após uma
discussão, levando um soco no hipocôndrio esquerdo. Foi
para casa sentindo muitas dores e morreu de madrugada. A
necropsia mostrou hemorragia abdominal provocada por ro-
tura do baço, que estava aumentado e friável por ter doença
de Gaucher, um distúrbio do metabolismo dos lipídios. Ou-
tras vezes, embora com a intenção de matar, o agente provoca
lesão não letal, mas que se infecciona e leva à morte. É o caso
das feridas superficiais contaminadas pelo bacilo do tétano.

8) Qual foi a ferida mortal?


Seu conhecimento é importante quando há mais de um
agressor, mais de um tipo de agente lesivo ou múltiplas le- Figura 7.14. Explosão da cabeça por tiro de fuzil. Vêem-se fratura
sões. A regra é se referir como tendo causado a morte a mais cominutiva da base do crânio e extensas lacerações das meninges e do
grave delas. Mas pode ocorrer que a mais grave tenha sido encéfalo. Cedido gentilmente pelo Dr. José Carlos Pando Esperança do
infligida quando a vítima já agonizava, o que se traduz pela IMLAP-RJ. Guia 111 da 37ª DP, de 18/05/99.
escassez da hemorragia provocada. Havendo mais de um
agressor, como em casos de linchamento, o autor da lesão fa-
tal responde por homicídio. Na impossibilidade de se identi- o tempo varia entre indivíduos distintos comendo a mesma
ficar uma ferida como a causadora da morte, deve-se admitir refeição sob as mesmas condições. A presença de alimentos
o efeito cumulativo do conjunto das lesões. em pedaços grandes pode indicar um mau hábito alimentar,
mas também pode significar que a vítima fez uma refeição
9) Qual o tempo de sob revida após a lesão mortal? muito apressada, talvez por estar sendo procurada. O odor
A resposta é difícil e requer muita cautela por parte dos do conteúdo pode revelar a ingestão de bebidas alcoó licas;
peritos. Nos traumatismos de crânio, podem ocorrer casos e o tipo de alimento pode dar uma ideia de onde foi feita a
surpreendentes. Fraturas de crânio com afundamento e lesão refeição derradeira.
cortical podem ter sobrevida prolongada, como no caso rela- O utro dado que se pode pesquisar é o estado de plenitu-
tado por Vibert5 de um homem que recebeu uma martelada de ou vacuidade da bexiga e do reto. Nas mulheres, é interes-
no setor frontal esquerdo, teve lesão cortical de 4 x 2,5 x 1 cm, sante pesquisar a presença de espermatozoides, que podem
e sobreviveu por cerca de 30 horas para responder às per- ser encontrados ainda móveis em secreção vaginal até mais
guntas feitas pelo juiz de instrução. Feridas penetrantes do de 10 horas depois do último coito e imóveis até cerca de 2
coração nas câmaras direitas podem ter sobrevida compatí- a 3 dias2•
vel com a realização de atos como telefonar pedindo socorro,
sair de casa e fugir em direção à rua, antes de as vítimas caí- 11) As lesões podem dar uma ideia de quem as produziu?
rem para morrer. Contudo, as lesões da aorta, do ventrículo Um dos elementos a pesquisar é a direção dos golpes da -
esquerdo e de grandes artérias provocam brusca redução da dos com instrumento cortante, ou cortocontundente, que
pressão sanguínea, isquemia cerebral e queda no próprio lo- pode indicar tratar-se de agressor canhoto, pois se concentra-
cal. O impacto de projéteis de alta energia em órgãos vitais riam do lado direito da vítima. Mas é preciso cuidado porque
como o coração, ou na cabeça, derruba a vítima, que não a agressão pode ter sido feita por trás, por um indivíduo des-
mais consegue levantar-se (Fig. 7.14). tro. Pela posição da cauda de escoriação deixada por um ins-
trumento cortante, que indica sempre o final de uma ferida
10) Quanto tempo antes de morrer a vítima fez certos atos incisa, também se pode ter uma ideia. Raramente, o próprio
fisiológicos? instrumento utilizado na agressão já fornece alguma infor-
Um dos dados que ajudam nessa questão é o exame do mação, por exemplo, furador de gelo, que é um instrumento
conteúdo gástrico. É possível estabelecer se a digestão estava perfurante de calibre médio. Certos tipos de nós encontrados
no início, no fim, o u se o estômago estava vazio. O tempo ne- em corda que manieta a vítima, ou ao redor do pescoço de
cessário ao esvaziamento do estômago depende de diversas um estrangulado, revelam, por vezes, a profissão do agressor.
variáveis. Entre elas estão a quantidade ingerida na última
refeição, o tipo de alimento e a própria fisiologia do indiví-
duo, incluindo seu hábito de mastigação. Quanto mais bem • SUICÍDIO
mastigados os alimentos, mais facilmente são digeridos. O
tempo de esvaziamento após refeições leves gira em torno de Alguns aspectos psiquiátricos do suicídio serão abor-
2 horas, ao passo que para as copiosas pode atingir 6 horas 12 . dados na Parte 8 desta obra, relativa à Psiquiatria Forense.
Horowitz e Pounder 13 , revendo o problema, afirmaram que Contudo, alguns elementos devem ser realçados aqui. Em
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 131

primeiro lugar, na maioria das vezes, o suicídio ocorre na vi- Para que se estabeleça o diagnóstico de suicídio como
gência de uma crise pessoal relacionada com patologia men- a causa jurídica da morte, é preciso que haja uma história
tal ou com situações existenciais muito adversas. O histórico nesse sentido, um exame de local que afaste a possibilidade
colhido junto aos familiares geralmente traz informações de homicídio, ausência de lesões de defesa, bem como vestes
relevantes. Por vezes, trata-se de pessoa que já sobreviveu íntegras, e a presença de lesões situadas em locais de elei-
a outras tentativas. Em outras, descobre-se que estava em ção (Figs. 7.7, 13.22 e 14.65) . A presença de lesões resultan-
crise depressiva desencadeada por acontecimentos trágicos tes de tentativas anteriores malsucedidas é um dado muito
como a perda de um ente querido, a falência financeira, uma importante.
desilusão amorosa, perda do emprego, envolvimento com Há certas formas de morte violenta que são eminente-
escândalo financeiro, desonra, desfazimento do lar etc. Em mente suicidas, como o enforcamento e a imolação pela ação
outros casos, trata-se de doente mental já diagnosticado, do fogo. Vez por outra, os jornais mostram pessoas orientais
portador de psicose maníaco-depressiva, esquizofrenia, de- que se suicidam em praça pública como forma de protesto
mência ou personalidade anormal de tendência melancólica político, molhando o corpo com gasolina e ateando fogo às
ou autodestrutiva. vestes. Entre nós, era uma forma que acontecia mais em mu-
Almeida Junior 14 admite modalidades de suicídio como lheres, e de cor parda.
devidas a egoísmo, altruísmo, amor, vingança, misticismo, Os suicídios por defenestração suscitam, por vezes, a sus-
obrigação ética, patriotismo. Exemplos de suicídio patrióti- peita de crime. É o que ocorre quando uma mulher pula de
co foram dados pelos japoneses camicases ao fim da Segunda um apartamento onde estava com um companheiro. O fato
Guerra Mundial e pelos muçulmanos envolvidos no ataque de o corpo cair a uma distância maior ou menor da fachada
de 11 de setembro de 2001 ao Wo rld Trade Cen ter. É fato co- do prédio não é suficiente para afirmar que se jogou ou que
nhecido que agentes de espionagem são instruídos para não foi projetada por uma ou mais pessoas. Além do mais, a hi-
se deixarem apanhar vivos conforme o tipo de missão. pótese de acidente nem sempre pode ser afastada. A causa
Um problema atual, relativo ao tema, e punido por nossa jurídica, nesses casos, pode permanecer indeterminada.
lei (art. 122 do CP ), é o auxílio ao suicídio, em que o mé-
dico fornece os m eios para que o próprio paciente se mate.
O noticiário internacional relata que um patologista ame- • ACIDENTE
ricano, Jack Kevorkian, inventou uma máquina para auxi-
liar pessoas que pretendiam suicidar-se. Ele introduzia uma Os comentários relativos aos acidentes serão feitos na se-
agulha numa das veias do suicida, ligada a um dispositivo ção seguinte, que aborda a frequência das distintas causas
que, quando acionado pelo indivíduo, fazia correr em seu jurídicas.
sangue uma solução letal de cloreto de potássio' 5•16 . Em 1991,
Derek Humphry publicou um livro nos EUA ensinando téc-
nicas pouco onerosas e indolores de suicídio, tendo esgotado • FREQUÊNCIA DAS CAUSAS DE MORTE
a primeira edição de 40.000 exemplares em poucos meses 17. VIOLENTA
Em 1996, o Estado de Nova York removeu os entraves legais
ao m édico que auxiliasse um paciente terminal a se suici- De acordo com dados da OMS 21 , houve, no mundo, em
dar18. Atualmente, o auxílio médico ao suicídio é legal nos 2004, cerca de 3,9 milhões de mortes po r causas externas não
estados de Oregon, Washington e Montana. Na Holanda, em intencionais (acidentais) e 1,6 milhão provocadas intencio-
2002, foi legalizada uma conduta adotada pelo conselho dos nalmente, correspondendo a mais ou menos 10% do obituá-
médicos já havia 20 anos, pela qual a eutanásia e o suicídio rio geral. As intencionais são representadas pelos homicídios
assistido, em casos especiais, não poderia leva r os médicos e os suicídios. Considerando a população global de aproxi-
que assim agissem aos tribunais. Concordando em prestar o madamente 6,5 bilhões de seres humanos, temos taxas de
auxílio ao suicídio, o médico tem que comunicar a decisão ao mortalidade de 60 por 100 mil habitantes para as acidentais
conselho. No ano seguinte, houve relato de 1.626 eutanásias e 25 para as intencionais22. Os homens representaram 2/3 d o
e 148 auxílios. O auxílio ao suicídio também está regulamen- to tal. Mas, socialmente, o fato mais importante é que cerca
tado na Bélgica, Suíça, Luxemburgo, Colômbia, Alemanha e de 50% das vítimas estavam na faixa dos 15 aos 44 anos, com
Japão. Nos dois últimos, as exigências são tantas para a per- grande impacto na força de trabalho.
missão que quase a invalidam 19 . Almeida indica quatro mo- A análise das mo rtes intencionais indica que cerca de
tivos para a atual discussão sobre o suicídio assistido: 1) falta 90% dessas mortes ocorreram em países de renda per capita
de cuidados paliativos aos pacientes terminais; 2) aumento m édia ou baixa. Decompondo os dados conforme os tipos
da prevalência de doenças crónico-degenerativas; 3) avan- de violência, nota-se predomínio dos suicídios com 51,8%
ço do materialismo e 4) maior autonomia dos pacientes2(J. do to tal, conforme a Tabela 7.1. Em geral, os homens foram
É preciso não confundir suicídio assistido com eutanásia, as principais vítimas, com 80,8% dos homicídios e 62,6%
passiva ou ativa. Na passiva, há uma abstenção de prolongar dos suicídios e taxas de mortalidade de 14,9 nos homicí-
um tratamento sem esperança e, na ativa, o próprio médico dios e 16,3 nos suicídios, contra 3,6 e 9,9 para as mulheres,
aplica a substância letal no paciente. respectivamente.
132 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

Tabela 7.1. Distribuição das mortes intencionais no mundo no ano 2004*


N'lblollto
TID por 1DD.•D lllbltlntll
Tipo (x 1.D•) Proporflo(%) Tolal Ml•llno Feminino
Suicídios 844 51,8 13,1 16,3 9,9
Homicídios 600 36,9 9,25 14,9 3,6
Bélicos 184 11 ,3 2,85 4,8 0,9
TOTAL 1.628 100 25,2 36,0 14,4
'WHO - The Global Burden of Oisease - 2004 update".

Conforme a região terrestre avaliada, a proporção entre do o coeficiente para 71,3. Por fim, as últimas estatísticas
suicídios e homicídios se modifica. Assim, nas Américas e na disponíveis informam que, em 2007, os números foram de
África, as taxas de homicídios representam m ais que o dobro 188 .029.000 habitantes, 1.047 .824 óbitos, sendo 131.032 por
das de suicídios mas, na Europa e no Pacífico Ocidental, a causas externas, com redu ção da sua taxa de mo rtalidade
relação se inverte. Neste, os suicídios são quatro vezes mais para 69,7 24 •
frequentes que os ho micídios (taxas de 13,6 e 3,2) 21 . Tal fato, Confirmando o que foi referido no início desta seção,
no entanto, não impede que haja inversões das tendências os dados globais brasileiros escondem uma disparidade gri -
dentro dos países de cada continente e nas diversas regiões tante entre as diversas regiões e, mais ainda, não revelam os
de cada país 1• bolsões de máxima violência de alguns centros urbanos. De
Nos países desenvolvidos, o problema da morte violenta acordo com a Rede Interagencial de Informações para a Saú-
relaciona-se, principalmente, com as não intencionais, isto de (RIPSA) as regiões metropolitanas com maiores taxas de
é, as que não se devem a homicídios o u suicídios, principal- mortes por causas externas, no ano de 2006, foram Vitória,
mente acidentes de trânsito. Nos Estados Unidos da América Recife, Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte25 • A Tabela
do Norte, dados dos Centers for Disease Control referentes 7.3 mostra as mais conturbadas.
ao ano de 2006 indicam a ocorrência de 179.065 m ortes por Entre as cinco regiões da Tabela 7.3, Curitiba, Belo Hori-
causas externas, com uma taxa de 59,8 por 100 mil habitan- zonte e Vitória tivera m aumento do índice de violência entre
tes. A Tabela 7.2 mostra os detalhes 23• 2001 e 2006, enquanto Recife e Rio de Janeiro experimenta-
No Brasil, as estatísticas demonstram que aumentou ram moderada redução 24 •
a violência ao lo ngo das últimas décadas, principalmente
pela expansão da criminalidade nos gra ndes centros urba- Homicídios
nos. Mas o agravamento d os conflitos agr ários, nos últi-
mos anos, também tem colaborado para esse aumento. Em A taxa mundial de mortalidade por homicídios para
1980, para uma população de 11 9.071.000, tivemos 809.213 cada 100 mil habitantes foi de 7,6 no ano de 2004. Mas as
óbitos, sendo 57.317 po r causas externas (violentas), o que taxas para os diversos continentes e países pesquisados va-
dá um coeficiente de mortalidade por causas violentas de riou muito entre si e ao longo da última década em alguns
48,1/100.000 habitantes. Em 199 1, os números cresceram deles. Os três continentes com as maiores taxas são, pela
para 146.960.000, 823.438 e 85.725, respectivamente, o que ordem, Am érica Central (29,3), Am érica do Sul (25,9) e
produz um avanço do coeficiente de mortes violentas para África (20,0 )26• Confor me esses dados, o Brasil ocupa, com
58,3, de acordo com dados do IBGE. Dados do ano de 1999 base no ano de 2006, a 14ª posição no ranking da violên-
indicam população de 163.947.436, um to tal de 913 .607 cia. A Tabela 7.4 compara os coeficientes dos 20 países mais
óbitos, dos quais 11 6.861 por causas externas, amplian- violentos.

Tabela 7.2. Distribuição das mortes por causa externa segundo a causa jurídica. EUA, 2006*
Tipo li Allsolldo Tm por 1DD mll HabHlnta
Acidental (não intencional) 121.599 40,6
Suicídios 33.300 11 ,1
Homicídios 18.573 6,2
Indeterminados 5.131 1,7
Ação legal/guerra 462 0,2
!TOTAL 179.065 59,8
'Heron M. Deaths: Final Data for 2006. Natiooal Statistical Reports; 2009. 57(14)".
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 133

Tabela 7.3. Regiões metropolitanas com maiores taxas de mortalidade por causas externas no ano de 200625
Tina da Morlllldlda por 111 1111 Hlllltllltal
Regllea Mllropolltlll• 111la
Vlolllllll Tolll Homicídio Al:ldanta da Triano Sllcídlo
Vitória 120,8 75,2 21,8 3,9
Recife 104,9 69,2 14,3 2,6
Rio de Janeiro 90,7 47,2 17,3 2,1
Curitiba 86,1 41,5 23,8 5,1
Belo Horizonte 85,4 44,7 20,6 4,0

Tabela 7.4. Taxas de mortalidade por homicídios de alguns países nos últimos anos26
Pira Tm (Ano) Colol:lllo Pira Tm (Ano) Colol:lllo
Honduras 58 (2008) 12 Belize 33 (2008) 11 2
Venezuela 52 (2008) 22 Somália 33 (2002) 122
Serra Leoa 50 (2007) 32 Libéria 33 (2002) 132
EI Salvador 49 (2006) 42 Brasil 26 (2006) 142
Jamaica 49 (2006) S2 República Dominicana 24 (2006) 152
Guatemala 48 (2008) 62 Iraque 21 (2008) 162
Trinidad yTobago 42 (2008) 72 Equador 19 (2008) 172
Angola 40 (2002) B2 Porto Rico 19 (2006) 182
África do Sul 37 (2008) 92 Rússia 15 (2008) 192
Colômbia 36 (2008) 102 Suazilândia 14 (2004) 202

A evolução das taxas de alguns países ao lo ngo da atual A análise das taxas de mortalidade por homicídios no
década tem piorado progressivamente, principalmente na Brasil evidencia de mo do mais nítido as disparidades regio-
Venezuela, Honduras e El Salvador. A de outros, evidencia nais. Comparando as taxas das regiões metropo litanas lista-
diminuição continuada como na Rússia e na Colô mbia. No das na Tabela 7.3 com a taxa média brasileira, que foi de 26
Brasil, houve redução, porém discreta, nos últimos anos 26• no mesmo ano, percebe-se a concentração dos homicídios
É interessante comparar nossos números com os relata- naquelas regiões.
dos para outros países. Recentemente, foi divulgada uma lis- A população jovem é a mais afetada pela violência. Se
tagem de taxas mais atualizadas obtidas das agências oficiais forem consideradas apenas as vítimas entre 15 e 24 anos, ve-
internacionais e locais de 141 países 26• Segundo os autores, as remos que as taxas são muito mais elevadas do que as da po-
taxas anotadas devem ser analisadas com algumas ressalvas. pulação em geral. Enquanto estas oscilaram entre 25 e 28 de
Em primeiro lugar, esclarece que a definição de homicídio 1997 a 2007, aquelas variaram entre 45 e 56. Houve grande
de alguns países pode não incluir o utros crimes de morte aumento entre 1997 e 2003, com recuo importante até 2007
como latrocínio, infanticídio, lesão corporal seguida de mor- (Fig. 7.1 5). Entre as causas da redução das taxas de homicí-
te, execuções judiciais e confrontos entre forças de segurança dio a partir de 2003, a principal talvez seja a promulgação
e criminosos. Também adverte que a letalidade das agres- do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826 de 22/12/2003).
sões sofre a influência da variável qualidade do atendimento Com relação ao sexo, observamos predominância esma-
médico. Além disso, ocorre subnotificação por dificuldades gadora dos homicídios no sexo masculino. Em 2006, no Bra-
de comunicação e por motivo político26• Dificuldades como sil, a proporção foi de 49,7 para 4,2 no total da população25•
essas podem ocorrer também na notificação de homicídios Em 20 10, Weiselfisz28 publicou um estudo sobre a dis-
em países desenvolvidos e levaram as autoridades norte- tribuição dos homicídios no território brasileiro, com base
americanas dos Centersfor Disease Contrai (CDC) a empreen- em dados dos anos de 1997 a 2007. Nesse trabalho, o autor
der um sistema integrado de registro da violência - Natio- analisa os fatores implicados na disparidade regional e estu-
nal Violent Death Reporting System - a partir de 2003. Neste da a evolução dos números ao longo da década. Confirmo u a
sistema são cruzados dados das declarações de óbito, dos tendência de migração da violência dos grandes centros para
serviços médico-legais, do foro penal de cada estado e dos o interio r dos estados mais populosos, o que já tinha verifi-
registros hospitalares27• cado em trabalho anterior 29 • Em ambos os trabalhos, mais de
134 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

57 ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
56,1

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45,1

1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Figura 7.15. Taxas de homicídio de jovens brasileiros na década 1997-2007, segundo Weiselfisz28 •

90% das vítimas foram homens. Em seus dados, podemos Chama a atenção a escalada da violência em Maceió, Belo
destacar os municípios brasileiros com mais de 50 mil habi- Horizonte e Curitiba. Convém lembrar que a última já foi
tantes, que, em 2007, tiveram as maiores taxas de homicídio símbolo de qualidade de vida no País. Recife, Vitória, Por-
(Tabela 7.5). to Velho e Rio de Janeiro mantiveram taxas elevadas e em
Embora a vio lência relacionada ao tráfico de drogas nos crescimento 24•
grandes centros atraia mais a atenção, a ocupação progres- Weiselfisz 28 destaca que a maioria das vítimas de homicí-
siva da Amazónia Legal tem causado conflitos agrários im- dio no Brasil estão na população negra, com propo rção bem
portantes, com elevação dos indicadores de violência nos maior do que seria de se esperar pela distribuição racial,
estados da Região Centro Oeste e da Região Norte. Alguns principalmente entre os jovens. Considerando as diferenças
municípios com população abaixo de 10.000 habitantes nes- entre as taxas de ho micídios de brancos e de negros, no ano
tas regiões mostraram taxas de homicídio muito altas, como de 2007, houve uma propo rção de 107% a mais de negros
Juruena (MT), com taxa m édia de mortalidade por homicí- assassinados do que brancos. Distribuindo essa diferença
dios de 139 de 2003 a 200728• nos 27 estados da federação, nota-se a absurda diferença de
Se fizermos a pesquisa filtrando os dados para a popula- 1.189% na Paraíba. Q uer dizer, os paraibanos negros são 12
ção jovem ( 15 a 24 anos) do sexo masculino, residente nas vezes mais mortos do que os brancos. Tal tendência se re-
capitais, chegaremos a números verdadeiramente assustado- pete em outros estados no rdestinos, como Pernambuco e
res (Tabela 7.6). Alagoas.

Tabela 7.5. Municípios com mais de 50 mil habitantes que apresentam as maiores taxas de homicídio - ano 200728
Município Ellado Tm M6dla por 1• Mii Habltant11
Tailândia Pará 128,4
Viana Espírito Santo 99,0
Maceió Alagoas 97,4
Arapiraca Alagoas 96,7
Unhares Espírito Santo 96,3
Serra Espírito Santo 95,5
Foz do lguaçu Paraná 92,2
Marabá Pará 90,4
ltaguaí Rio de Janeiro 88,9
Limoeiro Pernambuco 88,6
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 135

Tabela 7.6. Evolução das taxas de homicídios em homens jovens (15 a 24 anos) das capitais mais violentas24
Clpltll 1991 2•1 ••
Maceió 70,4 218,0 425,3
Recife 178,6 333,8 339,8
Vitória 168,8 265,2 285,0
Rio de Janeiro 128,3 229,3 239,6
Porto Velho 199,3 185,5 216,1
Cuiabá 27,4 246,7 196,0
Belo Horizonte 45,9 120,3 194,3
Salvador 9,3 79,1 190,5
Curitiba 39,2 90,0 173,4
Macapá 81 ,0 199,5 164,3

Quanto ao meio utilizado, não paira dúvida quanto à Analisando os tipos de acidentes d e trânsito, podemos se-
eno rme preferência pelas armas de fogo. Houve mais de 550 parar de um lado os atropelamentos e, d e outro, colisões, ca-
mil mortes por projéteis d e arma de fogo entre 1979 e 2003 29 • potagens e outros tipos. Po rém, na verdade, quando as nos-
Dados preliminares do ano de 2008 referem 37 .476 mortes sas estatísticas se referem a acidentes de trânsito, na maioria
por projéteis de arma de fogo no Brasil, sendo 92,54% cau- d as ocorrências, o que houve foi crime de homicídio culpo-
sados por homicídios, 2,92% por suicídios e 4,54% de causa so por imprudência, negligência ou imperícia. Além disso,
jurídica indeterminad a24. quando nos referimos a at ropelamento é preciso alertar que,
confo rme a CID 10, há um subgrupo para ped estres (VO 1 a
Acidentes V09), outro para ciclistas (VlO a Vl 9) e, por fim, outro para
motociclistas (V20 a V29) . Mas a maioria dos ciclistas e d os
A mo rte por acidentes ocupa lugar de destaque nas esta- motociclistas, quando morrem no acidente, fora m vítimas
tísticas co nsultadas. Vimos, no início d esta seção, que a taxa d e atropelamento. Feita essa ressalva, podemos gerar o gráfi-
de mortalidad e mundial por acidentes é de 60 por 100 mil co da Figura 7.1 6 com os números relativos ao ano de 2008,
habitantes. Neste grupo predominam as vítimas de aciden- cujo total foi de 37.585 mortos em acidentes de transporte 24 .
tes d e transporte. Ro drigues refere que a cada 50 segundos Se tomarmos para estudo os do is estados com maiores
um a pessoa morre no mundo, vítima de acidente de trân si- frotas de veículos, São Paulo e Rio d e Janeiro, veremos que
to30. Dados do ano de 2006 revelam que, nos Estados Unidos a taxa de mortalidade por acidentes de transporte é quase
da América do Norte, ocorrer am 121.599 m ortes acidentais, igual à d o país como um tod o - em torno d e 19/100 milha-
com taxa de 40,6, sendo a quinta m aior causa de m orte da bitantes. Mas a discriminação dos componentes evidencia
população. D estas, 43.664 (36%) ocorreram pelos meios d e uma proporção m aio r de atropelamentos de pedestres, ci-
transporte23. clistas e mo tociclistas em relação às o utras ocorrências. Tal
No Brasil, temos observado um aumento gradual do fato é mais releva nte no Estado d o Rio de Janeiro, onde a
número absoluto de mortes acidentais ao longo da última proporção de atropelados no total de mortos no trânsito
década. For am 52.830 no ano de 2000 e 60.370 em 2008. Em cresceu d e 56,3% no ano 2000 para 62,7% em 2007. Além
tod os estes anos, pred ominaram as mortes por aciden tes de disso, ao longo d a atual década, a proporção d e motociclistas
transporte, mas a sua proporção no total tem aumentado. vitimados vem crescendo tanto no Brasil com o nesses dois
Assim, no ano d e 2000, era d e 56, l % mas cresceu para 62,2% estad os, principalmente nas regiões m etropolitanas das ca-
em 200824 . O coefi ciente de mortalidad e por acidentes de pitais (Tabela 7.7) . Nota-se que o número de m otociclistas
transporte no Brasil foi, em 1990, de 16, 11 , subindo para m ortos nas d uas Regiões Metropolitanas referidas aumentou
18,4/100.000 habitantes em 1998. Dad os mais recentes evi- quase oito vezes entre 2000 e 2007. No Brasil, o aumento foi
denciam aumento das taxas nesta década, atingindo 19,8 em menor - pouco mais d e três vezes 24. A causa m ais provável
2008 24. Estudo do Departamen to Nacional de Estradas d e é o grande aumento de veículos em circulação, que tornou
Rodagem m ostrou que, nas rodovias federais, entre 1960 e as motos mais procuradas para o deslocamento rápido no
1994, o número de acidentes cresceu 20 vezes, e o de mortes, t rânsito engarrafado d os grandes centros. D ados de países
18 vezes. O número de mortes no Brasil, quando feita a cor- co mo Itália, Áustria e Estad os Unidos da América d o Norte
reção para o tamanho da fro ta de veículos, é dez vezes maior revelam que os atropelamentos representam menos de 20%
do que nos EUA3º. no to tal dos acidentes de transporte.
136 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

• 1 - Pedestres

• 2 - Ciclistas

• 3 - Motociclistas

• 4 - Ocup. automóvel

• 5 - Ocup. veículo pesado

• 6 - Outros ac. terrestres

• 7 - Transp. aquático, aéreo e NE

Figura 7 .16. Proporção de mortos em acidentes de transporte no ano de 2008, no Brasil. 1 - 24%; 2 - 4%; 3 - 23%; 4 - 21 %; 5 - 2%; 6 - 24%
e 7 - 2%. A soma dos setores 1, 2 e 3 ultrapassa a metade do total dos mortos no trânsito brasileiro em 200824 •

Tabela 7. 7. Motociclistas vitimados em acidentes de Rússia, que é o 19º- país na Tabela 7 .4 referente aos ho micí-
trânsito 24 dios. Outro dado interessante na Tabela 7.8 é a concentração
Loal 2001 2114 2117 das maiores taxas em países da antiga União Soviética - Bie-
lorrússia, Rússia, Casaquistão e Ucrânia. No Brasil, o coefi-
Brasil 2.465 5.042 8.078
ciente d e m ortalidade por suicídios foi de 4,00 em 1984; 3,62
Estado de SP 250 573 1.321 em 1990; 4,52 em 2001 e4,7 1 em 200724 •
Região Metrop. de SP 65 222 509 Em geral, quando as taxas de homicídio são muito altas,
Estado do RJ 120 337 525
com o na Venezuela, Colô mbia e Brasil, as de suicídio tendem
a ser baixas. Pode-se especular que as pessoas atemorizadas
Região Metrop. do RJ 29 146 224 pela violência tendam a valorizar mais a própria vida. Por
exemplo, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro teve coe-
ficiente de homicídios de 47,2, enquanto o d e suicídios ficou
Suicídio em 2, 1 no ano de 2006 24 •
Compar ando as taxas d e homicídio e as de suicídio nos
Entre as causas jurídicas de mo rte violenta, o suicídio é a vários estad os brasileiros, observamos o mesmo fenô meno,
menos frequente. As taxas de mortalidade por suicídios va- com poucas exceções. Assim, se construirmos uma tabe-
riam entre um m áximo d e 35 e menos de um par a cada 100 la com base nos dados d e 2006, partindo d os cinco estados
mil habitantes numa lista de 943 1 a 10432 países. Em ambas as com maiores taxas de homicídio e aqueles co m as meno res
fo ntes, há dez países com taxas superio res a 20 (Tabela 7.8) . taxas, podemos confrontar com os n úm eros referentes aos
Nenhum destes tem taxa d e homicídios alta, com exceção da suicídios (Tabela 7.9).

Tabela 7 .8. Países com maiores taxas de mortalidade por suicídio 31•32
Plíl Ho•• M1lhere1 Talll Ano
Bielorrússia 63,3 10,3 35,1 2003
Lituânia 55,9 9,1 30,7 2008
Rússia 53,9 9,5 30,1 2008
Casaquistão 46,2 9,0 26,9 2007
Japão 35,8 13,7 24,4 2007
Guiana 33,8 11 ,6 22,9 2005
Ucrânia 40,9 7,0 22,6 2005
Coreia do Sul 29,6 14,1 21,9 2006
Sri Lanka 21,6 1996
Hungria 37,1 8,6 21,5 2008
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 137

Tabela 7.9. Comparação entre as taxas de homicídio e de No que tange ao agente utilizado pelo suicida, dados
suicídio do ano de 2006 nos estados brasileiros mais e nos brasileiros do ano de 2007 evidenciam maior incidência da
menos violentos24 asfixia por enforcamento sem diferenças relacionadas com
Eltado Tau de Homicídios Tau de Sllcídlos o sexo. Em segundo lugar, os homens optam pelas armas de
fogo e as mulheres por substâncias tóxicas como inseticidas,
AL 53,1 2,9
pesticidas ou medicamentos psicotrópicos. Estes mesmos
PE 52,6 3,5 agentes são a terceira opção, mas no sexo oposto. O quarto
ES 50,9 4,2 método de cometer suicídio para ambos os sexos é a precipi-
RJ 47,5 2,8 tação de um local elevado, seguido pelo fogo nas mulheres e
pelas armas brancas nos homens24.
RO 37,4 4,3
Trabalhos de revisão feitos independentemente em Porto
BRA51L 26,6 4,6 Alegre33 e em Londrina, entre 1994 e 199734, confirmaram a
RS 18, 1 10,5 maior proporção do sexo masculino e a preferência pelo en-
TO 17,2 4,7 forcamento e pelas armas de fogo. Em Salvador, porém, re-
visão feita no Instituto Médico-legal Nin a Rodrigues revelou
MA 15,7 1,9
como método mais comum a defenestração, embora con-
RN 14,9 4,3 firmasse a predominância do sexo masculino e apontasse a
PI 13,8 4,5 faixa etária entre 30 e 40 an os como a de maior incidência35 .
se 11 ,2 6,4 No Rio de Janeiro, uma revisão por amostragem quinquenal,
abrangendo do ano de 1966 até 1993, no IMLAP, confirmou
a maior incidência no sexo masculino e a mesma faixa etária
A leitura da Tabela 7.8 deixa muito clara a maior inci- dos baianos, mas as causas de morte mais frequentes foram
dência do suicídio entre os homens. A amplitude dessa dis- envenenamento, defenestração e enforcamento, nessa or-
paridade varia muito conforme o país, mas chega a oito vezes dem36. As armas brancas são cada vez menos utilizadas.
mais no Belize e no Panamá. O único país, de uma lista de
104, em que a taxa é maior no sexo feminino é a República
Popular da China, com 14,8 contra 13,0 do masculino31 ·32 . • REAÇÃO VITAL: DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
No Brasil, a proporção é de 3,78 vezes a mais para os ho - ENTRE AS LESÕES PRODUZIDAS EM VIDA E AS
mens, com base no período de 2000 a 200724 . FEITAS APÓS A MORTE
O suicídio no Brasil é praticado com maior frequência
por pessoas maduras que estão caminhando para a t erceira Um dos dados importantes no diagnóstico da causa ju-
idade. Os dados demonstram que as taxas crescem confor- rídica da morte é a determinação de se uma ferida foi feita
me se fica mais velho. No período que vai do ano 2000 ao em vida ou após a morte. Quando a lesão é produzida certo
2006, a maior incidência fo i n a sexta década da vida (Fig. tempo antes ou depois da morte, geralmente não há maio-
7.17) 24 . res dificuldades no diagnóstico diferencial. Contudo, quanto

Taxa de suicídios por 100 mil habitantes


Brasil - 2006
8
7
6
5
4
3 - + - Taxa de suicídios
2

o
0-9 10-14 15-19 20-24 25-29 30-39 40-49 50-59 60 e
acima

Figura 7.17. A curva mostra maior tendência ao suicídio nas pessoas mais velhas.
138 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

mais próximo do momento da morte, maior deve ser o cui- tendo a companhia de cães, se tiverem morte súbita, podem
dado do perito ao se pronunciar. Tal dificuldade levou Tour- ter o corpo parcialmente consumido pelos animais quando
des, citado por Thoinot, a chamar esse intervalo próximo da sentirem fome, por não lhes ter sido dada a ração usual. Ra-
morte de período de incerteza 10• ras vezes, pode haver um mal súbito que leve apenas a um
período de inconsciência. O animal estranha a imobilidade
do dono, tenta acordá-lo lambendo e, estressado, passa a
Lesões Post Mortem
mordê-lo. Feridas feitas em vida podem ser modificadas pela
Descreveremos, inicialmente, certas lesões feitas após a ação desses animais domésticos' 2 •
morte, que são encontradas com frequência na rotina das Nos corpos expostos ao ar livre, podem ocorrer maiores
necropsias forenses. São elas: lesões por animais necrófagos, perdas de tecido pela ação de urubus, cães e outros animais
lesões acidentais e lesões intencionais. (Fig. 7.19). Os corpos de afogados podem sofrer destruição
parcial pela ação de peixes e, principalmente, de crustáceos,
Lesões por Animais Necrófagos como os siris. Geralmente, as regiões atingidas são as pálpe-
bras, os lábios, as orelhas e o nariz, sempre com as bordas
Por vezes, tal diagnóstico é fácil porque a lesão difere
caracteristicamente crenadas no caso dos siris (Fig. 7.20). Em
das outras por não apresentar qualquer infiltração hemor-
rágica visível quer macroscópica, quer microscopicamente.
Além do mais, sua forma e distribuição são características.
As formigas costumam arrancar minúsculos pedaços da epi-
derme, deixando áreas expostas de derme com a coloração
amarelada e aspecto apergaminhado pela desidratação (Fig.
7.18). Sua forma varia bastante, tendo contorno irregular e
tamanho variado que dependem da confluência de lesões
elementares. Quando situadas em regiões onde os livores
cadavéricos são intensos, podem assumir coloração averme-
lhada e sugerir escoriações produzidas em vida. O aspecto do
conjunto das lesões, sua relação com os livores e a eventual
presença das formigas permitem fazer o diagnóstico.
Cadáveres que ficam no interior de residências podem
sofrer lesões parecidas, porém formadas por unidades lesio-
nais maiores e um pouco mais profundas, produzidas por
baratas, em virtude da maior dimensão das peças bucais des- Figura 7.19. Detalhe da face de um cadáver que foi encontrado, em
te inseto. Por vezes, o corpo é atacado por roedores, como dia de muita chuva, no meio do mato. Há destruição total dos lábios. As
camundongos e ratos, em comunidades carentes, que des- lesões não mostram infiltração hemorrágica e apresentam bordas crena-
troem grande parte dos tecidos nos diversos segmentos, dei- das. Faltam as escoriações-satélites comumente deixadas pelos ratos.
Guia 74 da 15ª DP, de novembro de 2002.
xando as margens crenadas pela ação dos seus dentes e pe-
quenas escoriações-satélites causadas pelas unhas do animal
ao segurar a pele. O achado de fezes e pelos desses animais
deve ser valorizado neste contexto. Pessoas que moram sós,

Figura 7.20. Áreas de destruição da pele nas regiões labiais, nariz e


orelha esquerda no cadáver de um afogado já em putrefação. Oaspecto
Figura 7.18. Placas pergaminhadas de arrancamento da epiderme do crenado das bordas lembra a ação de crustáceos, como os siris. Guia
cadáver causadas por formigas. Caso não identificado ao Autor. 51 da 1Ga DP, de 24/04/69.
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 139

alguns casos, é muito difícil estabelecer se a morte foi devida a


ataque de peixes grandes ou se se trata de lesões post mortem.

Lesões Acidentais
O corpo de indivíduos afogados pode ser lesado por em-
barcações, levando à produção de ferimentos de profundi-
dade e extensão variadas, na dependência de ter sido atin-
gido pela hélice do motor ou apenas pelo casco. Por vezes,
ocorrem mutilações extensas (Fig. 25.11). A correnteza do
mar, ou a dos rios, pode provocar lesões de arrastamento,
semelhantes a escoriações de raspão, mas de aspecto aper-
gaminhado. O transporte do corpo e mesmo o seu resgate
em locais de difícil acesso podem deixar marcas importantes
pela ação de ganchos, cordas e atrito com o meio no momen-
to do recolhimento.
Durante a realização da necropsia, podem ocorrer lesões
acidentais. A mobilização brusca dos membros e do pesco-
ço para desfazer a rigidez cadavérica pode causar fraturas se
se tratar de pessoa idosa e portadora de osteoporose. Ao ser
feita a desarticulação da clavícula com o esterno, é possível
que sejam seccionados os vasos subclávios, levando a escor-
rimento de sangue para dentro das cavidades pleurais. O uso
do raquítomo para a remoção da calota craniana, depois de
parcialmente serrada, pode causar fratura ao se acabar de
desprendê-la.

Lesões Intencionais
Podem resultar de ato médico ou de ato criminoso. Os
médicos podem ter feito manobras de reanimação com mas- Figura 7.21. Cadáver esquartejado e em avançado estado de putre-
sagem cardíaca externa e fraturas costais. Tais fraturas podem fação. Nota-se que o corpo está incompleto. Guia 123 da 2Qa DP, data
causar sangramento para dentro da cavidade pleural ou ab- ignorada, examinado pelo Autor.
dominal, em decorrência da própria eficiência da massagem.
É comum que o patologista encontre embolia de medula ós-
sea nos ramos das artérias pulmonares por causa do bom- por processo patológico prévio. Ele narra experiências feitas
beamento desse tecido para dentro das veias costais durante nessas condições em que a epiderme se descolava, formava-se
os movimentos forçados pelo médico. Segundo Mason 37, isso a bolha, mas não aparecia hiperemia ao redor. No entanto,
ocorre em 25% dos casos de massagem cardíaca externa. Mas Spitz39 afirma que pode ocorrer halo de hiperemia ao redor
essa embolização post mortem pode ser distinguida de uma de queimadura intensa feita em cadáver, com cocção dos te-
ocorrida em vida, pelo fato de que há maior número de êm- cidos, porque estes se retraem e espremem o sangue dos va-
bolos de gordura do que de medula óssea nos casos em que sos para os tecidos vizinhos, que ficam ingurgitados.
a fratura se deu em vida e não por manobras de reanimação.
O mais comum, no entanto, é que as lesões intencionais Lesões Produzidas Algum Tempo antes da Morte
sejam de origem criminosa. Ora são feitas com o intuito
de dissimular um homicídio (p. ex., colocando um cadáver Alguns elementos permitem afirmar com segurança que
dentro de um carro e empurrando-o para dentro de um rio uma lesão foi feita em vida. São eles: a reação inflamató ria e
ou um precipício), ora procuram ocultar a identidade da ví- o processo de reparação e de regeneração. Havendo sobre-
tima. Há exemplos de decapitação e de amputação das mãos vida suficiente, instala-se a reação inflamatória aguda. Esta
com tal finalidade (Fig. 7.21). é desencadeada pela agressão aos tecidos, seja por agentes
Alguns criminosos tentam destruir o corpo de suas víti- físicos, como os mecânicos, o calor, a eletricidade, seja por
mas por meio do fogo. A caracterização da reação vital em agentes químicos o u agentes biológicos. A reação inflamató-
queimaduras pode-se tornar difícil se for superficial e feita ria é um mecanism o de defesa pelo qual o organism o tenta
logo após a morte. Bouchut38, já em meados do século XIX, conter o agente agressor e limitar o dano causado. Só ocorre
alertava que é possível encontrar bolhas em áreas de queima- em vida. Consta de fenômenos vasculares e afluxo ao local de
duras feitas em cadáveres se a região queimada estiver pen- elementos celulares do sangue e dos tecidos, sob a influência
dente e sujeita a intensos livores, ou se já estiver edemaciada de substâncias conhecidas como mediadores químicos. Nos
140 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

primeiros minutos após a agressão, a região atingida aparece Quando a agressão produz lesão da aorta, do ventrículo es-
pálida por causa de uma vasoconstrição, que dura tanto mais querdo ou de outro vaso arterial calibroso, a pressão arterial
quanto maior tenha sido a intensidade da energia vulneran- cai a zero rapidamente, de modo que feridas superficiais fei-
te. Segue-se uma vasodilatação local causada pela abertura tas logo após podem se apresentar sem infiltração hemorrá-
dos esfíncteres das arteríolas pré-capilares, que faz com que gica de suas bordas e vertentes.
se abram outros grupos de capilares da mesma região. Essa Nos casos em que uma ferida tenha sido feita embaixo
vasodilatação faz com que a pele fique vermelha e quente. A d'água, as suas bordas podem parecer livres de hemorragia,
circulação fica mais lenta, dando oportunidade a que maior como se tivesse sido realizada após a morte. Tal fato pode ser
número de glóbulos brancos passe a ter contato direto com agravado sobremodo quando o corpo só é resgatado depois
a parede dos capilares. de ter entrado em putrefação.
A marginação dos glóbulos brancos permite sua ade- Por outro lado, é possível observar hemorragia externa
rência ao endotélio (célula de revestimento dos capilares) em lesões produzidas post mortem. É o que se vê em mem-
e ulterior migração para fora dos vasos, em direção à área bros pendentes de uma cama e em enforcados, quando a pele
conflagrada. Mas esses fenómenos levam algumas horas para é lesada e o sangue começa a sair passivamente pela ação da
atingir proporções que os tornem perceptíveis40• Assim, a in- gravidade. Algumas lesões por animais podem sangrar por
filtração por células inflamatórias só serve para diagnosticar esse mecanismo. Cortes feitos na pele logo após a morte
como in vitam lesões feitas pelo menos algumas horas antes podem produzir sangramento se interessarem alguma veia
da morte. superficial de médio calibre, mas sempre será de pequena
Sendo bem-sucedida a reação inflamatória, o agente monta. Thoinot'º refere os estudos de Taylor, que provocava
agressor é neutralizado, as células mortas durante o processo hemorragia de pequena monta seccionando os vasos veno-
são removidas e se inicia a proliferação das células próprias sos de membros recentemente amputados.
do tecido lesado para reparar o defeito causado pela agressão. As hemorragias internas podem-se fazer para as grandes
Nas feridas cirúrgicas, que evoluem mais rápido do que as fe- cavidades, para os espaços meníngeos, para o parênquima
ridas incisas comuns, a migração de células epiteliais das bor- das vísceras ou para o tecido conjuntivo intersticial. Para
das para cobrir a interrupção do revestimento começa cerca que se valorize uma hemorragia para a cavidade pleural, ou
de 18 a 24 horas depois da lesão. Mas os capilares da região le- abdominal, é preciso que não tenha havido lesão acidental
sada só começam a crescer em direção ao coágulo que a cobre durante a necropsia e que se possa identificar a origem do
após 2 a 3 dias, e com uma velocidade de 0,6 mm por dia 4 1• sangue. Hemotórax ou hemoperitônio volumoso só pode ter
Quando a destruição dos tecidos é grande, o preenchi- resultado de lesão produzida em vida 42 • Nesses casos, com
mento do espaço deixado pelas células mortas é feito por um frequência, o sangue está parcialmente coagulado (Fig. 7 .22).
tecido cicatricial. Lesões menores não deixam cicatriz. De Coleções sanguíneas nos espaços meníngeos indicam re-
qualquer modo, embora sejam sinal seguro de reação vital, ação vital, mas não podemos esquecer a possibilidade de im-
a utilidade da reação inflamatória e do processo reparador é pregnação sanguínea post mortem, seja do couro cabeludo,
limitada na Medicina Legal porque precisa de muito tempo seja das meninges, quando o corpo fica com a cabeça em pla-
de sobrevida para que se instale. no muito mais baixo do que o tórax, situação em que os livo-
Outro elemento importante, que depende da circulação res se acumulam nesse segmento. É o que ocorre, por exem-
linfática, é a presença de partículas estranhas nas células dos plo, com o corpo dos afogados. Com a hemó lise, o pigmento
linfonodos de drenagem da região lesada. Às vezes, os ma- sanguíneo tinge os tecidos, imitando infiltração hemorrági-
crófagos dos linfonodos apresentam tais elementos dentro
do seu citoplasma (partículas fagocitadas). Isso indica que a
lesão foi feita em vida.

Lesões Produzidas durante o Período de Incerteza


de Tourdes
Atenção especial devemos dar às hemorragias, à coagula-
ção do sangue, à retração das bordas de uma ferida e a alguns
sinais especiais.

Hemorragias
Podem ser externas, internas ou mistas. As hemorragias
externas, quando são intensas, não deixam dúvida quanto a
terem sido produzidas em vida. As decorrentes de lesão ar-
terial, além de serem profusas, atingem locais afastados do Figura 7.22. Volumoso hemotórax por contusão torácica com fraturas
corpo, onde se podem ver os respingos do sangue ejetado. costais e lesão pulmonar. Caso do IMLAP em 28/02/2003.
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 141

ca. Convém lembrar a experiência feita por Hoffmann, que É sabido pelos patologistas forenses que deixar o sangue
pendurou um cão recentemente morto com a cabeça para extravasado das veias do cadáver sobre os tecidos durante al-
baixo e o golpeou de modo a fazer uma fratura de crânio. gum tempo torna difícil esclarecer se é artefato ou se já havia
Formou-se um hematoma no couro cabeludo e por baixo a infiltração hemorrágica. É por isso que se recomenda fazer
da calota óssea, visualizados à necropsia horas depois'º. Em a dissecção do pescoço somente após a abertura das gran-
carbonizados, pode ocorrer hematoma epidural post mortem des cavidades e a retirada das vísceras e do cérebro. Assim
(Fig. 17.16). se impedem o sangramento artefatual e o mascaramento de
Não se deve confundir a infiltração hemorrágica decor- pequenas equimoses porventura existentes.
rente de minúsculas roturas capilares, formando pequenas As roturas viscerais levam a hemorragia para dentro das
petéquias nos locais de maior intensidade dos livores de hi- cavidades onde se encontrem, mas pode não haver infiltração
póstase, com hemorragia ocorrida em vida. É o que ocorre, significativa por sangue em suas próprias bordas. Isso não
por exemplo, nos membros inferiores de indivíduos mortos quer dizer que tenham sido feitas após a morte. Aconselha-se
por enforcamento, quando o corpo permanece pendurado fazer cortes perpendiculares a essas bordas e observar o pa-
por várias horas antes de ser cortado o laço (Fig. 7.23). Às rênquima vizinho onde se acha, em geral, infiltração por san-
vezes, é possível observar tal fenômeno na região dorsal de gue. Na dúvida, colher fragmentos para exame histológico.
corpos mantidos em decúbito dorsal por várias horas e de O tecido conjuntivo de áreas traumatizadas em vida
modo tão intenso a ponto de formar, pela confluência das costuma mostrar-se infiltrado por sangue. A extensão da
petéquias, verdadeiros lençóis hemorrágicos (Fig. 7 .24). hemorragia pode ser muito pequena quando a lesão tiver
sido feita pouco antes da morte. É o que ocorre nos casos de
morte muito rápida, como, por exemplo, nos esmagamen-
tos. Recomenda-se cautela redobrada no caso de cadáveres
encontrados em leito de via férrea e em vítimas de defenes-
tração. Pode-se tratar de dissimulação de homicídio por ou-
tra causa. A autopsia deve ser dirigida para a busca de outra
causa de morte violenta. Não sendo capaz de encontrar lesão
de outra natureza, impõe-se a pesquisa detalhada de hemor-
ra gia nas lesões cutâneas, nos focos de fratura e nas lesões
viscerais. Um dado importante nesses casos é medir a quan-
tidade de sangue colecio nado nas grandes cavidades.

Coagulação do Sangue
Embora se considere a coagulação do sangue um fenô-
m eno vital, os patologistas sabem que pode ocorrer na mesa
Figura 7.23. Presença de várias petéquias violáceas no membro in- de necropsia. Basta que a abertura do corpo se faça com pe-
ferior direito de indivíduo que se enforcou e ficou suspenso por várias queno intervalo após a mo rte. Já tivemos a ocasião de ver
horas. Guia 167 da 3sa DP, de 23/04/98. coagular o sangue drenado pela secção dos vasos calibrosos
em cadáver de pessoas mortas cerca de 4 horas antes. Por
outro lado, sabe-se que o coágulo post mortem é dissolvido
depois de formado quando a mo rte se processa rapidamente,
principalmente nas asfixias. Isso se deve à liberação de um
sistema fibrinolítico que não é ativado nos casos de mo rte
agônica43 .44. Mas o maior valor da coagulação como sinal de
reação vital é a aderência dos coágulos às bordas das lesões.
Sabe-se, hoje, que isso se deve à ação de uma glicopro teína,
a fibro nectina4 1• Nas lesões vitais, a lavagem com água não
consegue retirar o sangue aderido aos tecidos.

Retração das Bordas de uma Ferida


Os tecidos vivos apresentam elasticidade muito maior
que os do cadáver. Assim, as feridas feitas no vivo têm as
bordas bastante separadas pelas tensões decorrentes das li-
nhas de força da pele e d os planos musculares. Conforme
Figura 7.24. Extensas áreas de hemorragia post mortem, no dorso, vai passando o tempo após a morte, vai havendo uma de-
nas regiões de maior intensidade dos livores. Caso examinado pelo Autor sidratação da pele, com perda gradual da elasticidade. Por
no IMLAP-RJ, em 20/11/70. outro lado, a instalação da rigidez muscular faz com que os
142 • CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte

planos profundos permaneçam fixos, tirando a possibilidade rias pulmonares (Fig. 7.26). Mas a embolia pode ser gasosa,
de encurtamento das fibras musculares após sua secção. O como nos acidentes de mergulho em que ocorra embolia
grau de retração das bordas de uma ferida também varia de traumática pelo ar, e nas mortes maternas devidas a aborto
acordo com a região anatômica. Algumas regiões, como o criminoso feito pelo descolamento das membranas por meio
pescoço, costumam apresentar intensa retração, mesmo em de clisteres 46 .
cadáver, mas nunca com a exuberância do que ocorre em
vida. No dorso, as feridas tendem a ter menor retração das Histopatologia
suas bordas.
Ao contrário do que se possa pensar, a histopatologia não
é tão esclarecedora nesse contexto. Conforme referido com
Sinais Especiais
relação à reação inflamatória, os eventos só podem ser vi-
Conforme o mecanismo da morte, podem ser achados sualizados após período de sobrevida superior a uma hora,
alguns sinais que demonstram a reação vital. Nas feridas to- situando-se fora do período de incerteza de Tourdes. A pre-
rácicas que interessem a árvore brônquica, o sangue extra- sença de edema e de hemorragia sugere lesão feita em vida,
vasado pode penetrar nas vias aéreas e ser aspirado para a mas é preciso afastar a possibilidade de se tratar de hemorra-
periferia dos pulmões, onde aparece salpicado em áreas de gia post mortem dos locais com intensa hipóstase.
aspecto normal (Fig. 7.25). Vários trabalhos têm sido feitos com a finalidade de esta-
O mesmo pode ocorrer quando lesões da face interessem belecer o diagnóstico de lesões feitas em vida e de estabelecer
a faringe e nas lesões penetrantes da laringe, como nos esgor- a cronologia lesionai, dados muito importantes no esclareci-
jamentos. Parte do sangue pode ser deglutida e encontrada mento da causa jurídica das lesões47•
no interior do estômago, o que também confirma sua pro- Knight cita algumas alterações que podem ser úteis na
dução em vida. determinação da reação vital, embora faça restrições ao seu
Nos casos de afogamento, a presença de corpos estranhos uso. Nas feridas cutâneas, refere que existe uma faixa central
aspirados para as vias respiratórias pode indicar a reação vi- de tecido na vertente da lesão onde as ferida s feitas em vida
tal quando estiverem alojados nos brônquios segmentares estão desprovidas de enzimas importantes ao metabolismo
ou mais perifericamente45 (Fig. 25.12). Mas alguns autores celular, por exemplo, esterases e adenosino-fosfatases. Ime-
lhe negam esse valor43 . Para maiores d etalhes, ler o Capítulo diatamente por fora dessa faixa, portanto mais afastada das
25. Em cadáveres encontrados em local d e incêndio, a pre- vertentes da ferida, encontra-se outra faixa em que a ativida-
sença de fuligem nas vias aéreas indica ter a vítima respirado de dessas enzimas está, ao contrário, acima dos níveis habi-
durante o sinistro37 (Fig. 17.9). Em carbonizados, dosagem tuais nos tecidos vivos normais. A primeira seria uma zona
elevada de monóxido de carbono traduz respiração no am- de reação vital negativa e a segunda, de reação vital positiva.
biente em combustão37.43• Nenhuma das duas estaria presente nas lesões feitas após a
Só pode ocorrer embolia quando há circulação. Assim, morte. Mas a existência das alterações enzimáticas precisa-
fraturas extensas e lesões de largas áreas do tecido subcutâ- ria de, pelo menos, uma hora de sobrevida para se expressar.
neo podem provocar embolia gordurosa dos pulmões, pelo Além do mais, essas reações estão sujeitas a variações indivi-
deslocamento de gotículas de gordura, que penetram nas duais e a dificuldades de ordem técnica no processo de tra-
veias locais abertas pela lesão. Essas gotículas vão para o lado
direito do coração, e daí para os ramos menores das arté-

Figura 7.26. Corte de pulmão que apresenta, no centro do campo


Figura 7.25. As áreas mais escuras são focos de aspiração de sangue microscópico, uma artéria que contém êmbolos de gordura representa-
com distribuição lobular no pulmão esquerdo. Guia 418 da 3Ga DP, de dos pelas imagens circulares vazias. Caso 6336 do Serviço de Patologia
09/09/99. do IMLAP-RJ. Coloração HE, objetiva 1Ox.
CAPITULO 7 Causa Jurídica da Morte • 143

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Hygino de C. Hercules

Confo rme já referimos no capítulo anterior, a morte sofre uma crise repentina, cai e morre, como os casos em que
po de ser natural ou violenta. Mas há casos em que a origem a doença se instala em indivíduo considerado sadio e evolui
violenta só pode ser afastada depois de minucioso exame do para o óbito em torno de um dia. A mo rte rápida, e mesm o
local, complementado por cuidadosa necropsia. Constituem a fulminante, de indivíduo que já apresentava uma doença
o que se convencionou cham ar de morte suspeita. Assim, a com possibilidade de causá-la não deve ser considerada, a
mo rte é considerada suspeita sempre que houver a possibi- nosso ver, morte súbita. Muito m enos morte suspeita. Isso
lidade de não ter sido natural a sua causa. Os motivos da não significa, po rém, que tais pessoas não possam ser vítimas
suspeição ora decorrem de circunstâncias do local, ora de- de violência. O bom senso recomenda cautela e aconselha
pendem de características próprias do cadáver. Os elementos aos médicos que se informem de detalhes quanto ao mod o
relativos ao local já fora m abordados quando estudamos as de morte antes de dar a declaração de óbito.
causas jurídicas da m orte. No que diz respeito à pessoa en- Para nós, to da m orte súbita é suspeita. E deve ser escla-
contrada m orta, o fato que m ais provoca desconfiança quan- recida por necropsia forense. Acham os que a verificação da
to à possibilidade de se tra tar de morte vio lenta é a surpresa causa de mortes súbitas deve ser feita nos institutos médico-
causada pela notícia da sua morte. Seu car áter inesperado legais, onde há médicos afeitos à patologia das diversas for-
logo suscita desconfianças de que algo estranho aconteceu. m as de violência. Isso evita que cheguem a esses institutos
Assim, o conceito de morte súbita prende-se mais à inexis- já em estado de decomposição e com evidente prejuízo da
tência de uma patologia prévia que pudesse explicá-la do perícia, casos de m orte violenta necropsiad os inicialmente na
que ao tempo de evolução rá pido da causa da mo rte. Mas rede hospitalar. Todos que lidam em patologia forense sabem
é preciso não esquecer que determinadas pessoas cuidam o tempo que se perde nos trâmites legais desde a interrupção
tão pouco de si ou são tão estoicas que não valorizam sinais de uma necropsia clínica até a remoção do corpo para um
que levariam outras diretam ente ao médico. Às vezes, tais instituto m édico-legal, o que leva, ger almente, ao exam e de
indivíduos fazem automedicação errada, por interpretarem um corpo já em putrefação. Outra vantagem na realização
equivocada mente seus padecimentos. Assim, alguns confun- dessas necropsias pelos médicos-legistas é mantê-los em dia
dem as do res retroesternais de um infar to do miocárdio com com os aspectos anatomopatológicos das principais doenças
azia decorrente de esofagite. Em to dos esses casos, parentes e capazes de causar morte súbita. Quando só examinam casos
amigos não percebem os sinais da doença. de morte violenta indiscutível, acabam por ficar afastados dos
O critério temporal para a delimitação do que seria uma colegas que realizam necropsias clinicopatológicas e, por isso,
mo rte súbita é muito relativo e difícil de se estabelecer. Mas d estreinados no diagnóstico macroscópico dessas doenças'.
uma certeza pode-se ter: não é sinónimo de morte fulmi - Alguns relatos podem ratificar a necessidade de necro p-
nante. Não é necessário que o indivíduo adoeça e morra em siar tod os os casos de mo rte súbita. Adelson e Hirsch 2 refe-
menos de uma hora. A chamada morte súbita tanto inclui a rem o caso de um homem que foi preso po rque sua mulher,
mo rte fulminante, em que a pessoa aparentem ente normal que costumava se embriagar, foi encontrada caída em meio

145
146 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

a uma poça de sangue, com várias equimoses pelo corpo, Tabela 8.1. Informações das guias de remoção de 2.207
levantando a suspeita de que tivesse sido agredida duran- corpos (Instituto Médico-legal do Rio de Janeiro - 1971 )*
te uma discussão ouvida por vizinhos. A autopsia revelou Morte violenta** 1.401
cirrose hepática e rotura de varizes de esôfago. Já tivemos
ocasião de autopsiar indivíduos encontrados na via pública ~~~~b w
e removidos para o IML, por apresentarem ferida contusa Morte súbita 273
na região occipital, cujo exame demonstrou volumosa he- Encontrado morto 45
m orragia cerebral, que fora a origem da queda causadora da Morte a esclarecer 124
ferida d o couro cabeludo. Se essa pessoa estivesse dirigindo
Doença sem assistência médica 125
um veículo, poderia ter causado um acidente de trânsito e
sofrido lesões traumáticas por si só capazes de levar à morte. Casos com diagnóstico provável 45
Por outro lado, casos de real mo rte violenta podem Morte natural referida como violenta 20
ocorrer em que tudo leva a crer em mo rte súbita de causa Indeterminados 8
natural. Um jovem estava jogando futebol em um campo
de vá rzea quando, de repente, caiu passando mal e morreu Fetos 106
logo após. Seu corpo foi removido para o IML do Rio de TOTAL 2.207
Janeiro para verificação de óbito, sem suspeita de violência. ' Hercules HC, 1971' .
Lá, a autopsia revelou sufocação por gom a de m ascar presa "Desses, 20 eram de morte natural e quatro, indetenninada.
nas cordas vocais3 • Atualmente, com o uso frequente de dro-
gas proibidas, é preciso estar atento par a a possibilidade de
acidente de overdose nos casos rotulados como m orte súbi- A expressão m orte súbita da guia policial pode não cor-
ta. Também têm sido referidos casos de mo rte pela ação de responder ao conceito que expusemos inicialmente, adotado
drogas colocadas dentro de embalagens plásticas deglutidas pela maio ria dos auto res 1•7•8 •9 • Po r outro lado, a falta de maio-
pelo trafi cante. Tais casos são referidos como "síndrome do res detalhes impediu que se soubesse quantos casos rotula-
corpo embalagem" 4•5• dos como doença sem assistência médica (125) deveriam ser
As consequências de se declarar natural uma morte vio- considerados morte súbita. Encontramos, nos 2.207 iniciais,
lenta são de ordem penal e civil. Quanto ao aspecto penal, 60 casos de morte suspeita, dos quais 15 óbitos fo ram por
um criminoso pode ficar impune, pois o delegado encerra causa violenta. Nessa rubrica, costumam ser incluídos ca-
a investigação policial diante de um laudo que ateste mo rte sos em que a violência estava oculta, como em intoxicações
natural. Já no fo ro civil, havendo seguro de vida, a família do acidentais, e outros de difícil avaliação da causa jurídica da
m orto deixa de receber a indenização m aior que correspon- morte. Entre outras possibilidades, podemos citar aqueles
deria à morte violenta. em que houve uma altercação entre o falecido e alguma o u-
Apesar do tempo transcorrido, podemos ilustrar a dis- tra pessoa pouco antes da m orte, podendo m esmo ter chega-
cussão com um levantam ento que fizemos do m ovimento do do às vias de fato ou a lesões corporais leves.
necro tério do Instituto Médico-legal do Rio de Janeiro, em Alguns tipos de doença podem descompensar de modo
1971, com o fim de analisar a precisão das info rmações con- repentino e levar à morte por influência de violenta emoção
tidas nas guias de rem oção dos cadáveres, quando compa- ou de traumatismos pouco intensos. Do mesmo m odo, os es-
r adas com o resultado das necropsias. Na amostragem , que fo rços físicos e até o ato sexual. Serão analisados mais adiante.
não incluiu todo o ano, estudamos um total de 2.207 casos. Podemos agrupar sob a rubrica verificação de óbito todos
Desses, 1.425 (64,57%) já vieram com indicação de m orte os casos que não tenham sido enviados com o m orte violen-
violenta e não foram apreciados. No entanto, 20 desses ca- ta ou com suspeita inicial de violência. Em alguns estados
sos eram de morte natural, não violenta. Os 782 restantes brasileiros, existem serviços especializados para esse fim,
fo ram divididos de acordo com os dad os da guia policial de geralmente situados em local próximo, o u mesm o nas de-
remoção. A listagem dos tipos de info rmação contidos nas pendências do instituto médico-legal. No material que estu-
guias, por si só, revela a dificuldade de o rdem prática que se damos em 197 1, as mortes naturais constituíram cerca de 1/3
encontra quando se quer estudar as mortes súbitas. A Tabela do movimento do necrotério. Em 1995, com o aumento da
8.1 faz a listagem. violência urbana, correspondia somente a 12,88% do movi-
A observação atenta da tabela evidencia que quase 1% mento do necrotério. A Figura 8.1 dá uma ideia da mudança.
d os casos foi enviado como morte violenta, mas, na realidade, É interessante comparar esses números com os encon-
tratava-se de morte natural (20/2.207). Por outro lad o, feita trad os po r outros autores. Na Inglaterra e no País de Gales,
a especificação de cada rubrica de acordo com o resultado cerca de 80% do movimento nos necrotérios policiais são
final da necropsia, fo i observado que a proporção de mor- de morte natural súbita 1 • Dados coletados em San Antonio,
tes violentas nos que vieram com o m orte súbita (2/273) foi na Califó rnia, revelam que houve 45,5% de mortes naturais
bem menor que a encontrada nos que fora m ro tulados como no total de casos examinados pelo serviço médico-legal no
doença sem assistência médica (4/ 125). Isso significa que a in- período de 1983 a 19878 . A proporção é um pouco meno r no
formação prestada nas guias de remoção é pouco fidedigna. serviço médico-legal que atende aos casos da área metropo-
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 147

IML do Rio de Janeiro


100

80

60
~
40

20
' "'--
o
1973 1990 1991 1992 1993 1994 1995
1 M. violenta 51 ,9 75,98 84,44 83,68 82,3 84,84 87,12
M. natural 48,1 24,02 15,56 16,32 17,7 15,16 12,88

- M. violenta - M. natural

Figura 8.1. O gráfico mostra que, entre as décadas de 1970 e 1990, houve acentuado aumento da percentagem de mortes violentas e redução
equivalente das mortes naturais no serviço de necropsias do IMLAP.

litana de Buenos Aires, onde ho uve 38% de mortes naturais causa ainda é muito discutida, não havendo consenso. Como
diagnosticadas entre m arço de 1991 a março de 1992 1º. o quadro anatomo patológico é superpo nível ao encontrad o
À guisa de maior esclarecimento, é preciso lembrar que nas asfixias em geral, mas sem elementos para a determina-
ho uve, além d o aumento abso luto e relativo d os casos de ção da causa da asfixia, desperta a suspeita de morte violenta.
mo rte violenta, determinação da Secretaria de Estado de Compete aos patologistas fo renses esgotar todos os recursos
Saúde (Resolução 550 de 23/01/90) para que não fossem en- à m ão, dando o diagnóstico da síndro me na base de exclusão
caminhados para o Instituto Médico-legal Afrânio Peixoto de qualquer forma de asfixia violenta. Voltarem os ao tem a
os casos de verificação de óbito procedentes da rede hospita- no Capítulo 23.
lar. No mesmo sentido, o Boletim de Serviço 208 da Secreta- Na maturidade, a morte súbita torna-se mais frequente.
ria de Estado de Polícia Civil determinava a devolução desses Na maioria das vezes, resulta de arteriosclerose d os vasos
casos aos hospitais de o rigem. cardíacos ou cerebrais, principalmente nos ho mens. Apre-
sentamos na Tabela 8.2 um quadro sinóptico das d oenças
que podem causá-la com maior frequência, de acordo com
• CAUSAS DE MORTE SÚBITA dados da literatura 1•2•7•8 •9• 12 •

As causas de mo rte súbita variam conforme a idade do


indivíduo. Entre 1 ano e a fase adulta jovem é rar a sua ocor- Doenças do Aparelho Circulatório
rência. Abaixo de 1 ano, principalmente nos primeiros meses
Cardiopatia Aterosclerótica
de vida, existe um quadro clínico denominado síndrome da
morte súbita infantil, que tem causado grandes problem as A causa mais comum de mo rte súbita em adultos é a co-
judiciais pela suspeição de m orte violenta por asfixia 11 • Sua ronariosclerose - formação de placas de aterom a na túnica

Tabela 8.2. Causas de morte súbita em adultos


A. Clrculat6rto A. Resplral6rto A. Dlgelllvo S. Narv. Cenlrll Ml• llnea
Cardiopatia aterosclerótica Epiglotite Úlcera péptica Epilepsia Sepse por meningococo
Cardiopatia hipertensiva Asma Varizes esofágicas Aneurisma Diabetes
cardiopatia valvular Tuberculose Pancreatite aguda Hemorragia intracerebral Rotura de prenhez tubária
Cardiomiopatias Embolias Meningite Choque anafilático
Aneurismas Pneumonias Neoplasia maligna Anemia falciforme
Arritmias Malária
148 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

interna das artérias coronárias. Placas de ateroma são depó-


sitos de lipídios que se infiltram no tecido conjuntivo da tú-
nica interna das grandes artérias e fazem saliência para a luz
vascular, estreitando-a. São o substrato anatomopatológico
da aterosclerose. A cardiopatia aterosclerótica é responsável
por cerca de 300 mil a 400 mil casos de morte súbita nos
EUA, anualmente 13 . Representam 75% do total das mortes
súbitas examinadas pelos médicos-legistas8. Na maioria das
vezes, ocorre em pessoas que já apresentavam sintomas de
lesão do músculo cardíaco por circulação deficiente, mas em
25% dos casos é a manifestação inicial da doença coronaria-
na8. Ao contrário do que se acredita, em cerca de 3/4 dos ca-
sos1·13, ou mais8, não é possível fazer o diagnóstico morfoló-
gico do infarto do miocárdio por faltarem elementos macro
e mesmo microscópicos. Como já referimos no Capítulo 6,
para que se possa fazer o diagnóstico do infarto do miocár-
Figura 8.3. Superfície de corte da parede das cavidades esquerdas do
coração, na qual se vê área mais escura de infarto e obstrução por trom-
dio tem que haver uma sobrevida do paciente por algumas
bose da artéria coronária. Caso n2 5798 do Serviço de Patologia do IMLAP.
horas após a ocorrência da lesão. O que se encontra em 80 a
90% dos casos é o comprometimento das artérias coronárias
por um processo de esclerose, com estreitamento de mais de
cropsias sem sinais morfológicos de infarto. Isso sugere que
75% da sua luz, localizado em um ou mais de um dos seus
houve um infarto de evolução fulminante, sem tempo para
ramos principais8·13 (Figs. 8.2 e 8.3).
que a lesão necrótica se traduzisse em alterações visíveis. Há
Porém, o diagnóstico do grau de estreitamento arterial
que se considerar também a possibilidade de espasmo das
na mesa de necropsias é dificultado por detalhes de ordem
artérias coronárias, o que é observado, às vezes, quando se
técnica, já que a abertura dos vasos com uma tesoura im-
faz cateterismo cardía co. Mas tal distúrbio funcional não
pede de apreciar seu diâmetro antes da secção. Alguns pa-
pode ser visualizado nas mesas de necropsia 8.
tologistas preferem fazer cortes transversais paralelos com
O mecanismo de morte é, em geral, uma arritmia cardía-
1 mm de espaçamento ao longo dos trajetos arteriais co-
ca incompatível com a vida (taquicardia intensa, fibrilação
ronários. Mas, mesmo assim, persiste a dificuldade, pois os
ventricular, ausência de contração). Essa arritmia é causada
vasos seccionados estão vazios e com diâmetro diferente do
pelo aparecimento de focos de irritação miocárdica em áreas
que tinham submetidos à pressão do sangue em seu interior
de perfusão sanguínea deficiente não relacionadas com as fi-
quando em vida 1.
bras musculares do sistema de condução do impulso elétrico.
O estreitamento da luz das artérias pode acentuar-se agu-
Desses focos, nascem impulsos desordenados que levam à
damente caso ocorra hemorragia por baixo da placa de ate-
arritmia 13. Nos infartos do miocárdio que cursam silenciosa-
roma, ou se houver aderência de plaquetas sobre ela e pos-
mente, sem sintomatologia suficiente para levar o paciente ao
terior trombose do vaso, o que é menos comum. Em ambos
médico, como pode ocorrer em diabéticos, a morte pode so-
os casos, essas alterações podem ser o único achado em ne-
brevir por rotura do ventrículo esquerdo e consequente tam-
ponamento cardíaco pelo hemopericárdio (Figs. 8.4 e 8.5).

Cardiopatia Hipertensiva
A cardiopatia hipertensiva resulta do esforço que a bomba
cardíaca tem que fazer para vencer a maior resistência à pas-
sagem do sangue pelas artérias. Para vencê-la, o esforço do
músculo cardíaco aumenta, o que estimula a hipertrofia das
suas fibras (aumento do diâmetro e da quantidade de fibrilas
contráteis de cada fibra muscular). Mas há um limite para
essa hipertrofia. Ela não é infinita. À medida que a massa
muscular aumenta, também cresce o consumo de energia.
Chega a um ponto em que os vasos nutridores do músculo
cardíaco não conseguem mais levar a quantidade de nutrien -
tes e de oxigênio de que ele precisa. Ultrapassado esse limite,
começa a haver sofrimento e lesão de fibras miocárdicas, e
Figura 8.2. Artéria coronária aberta, na qual se nota um coágulo insuficiência da bomba cardíaca. Além das consequências
sanguíneo aderido a uma placa de ateroma. IMLAP. Guia 127 da 3sa DP, hemodinâmicas, como a possibilidade de edema pulmonar
de 31/05/72. agudo, pode haver formação de focos de excitação elétrica
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 149

Figura 8.5. Superfície de corte transversal do coração, que apresenta


área de infarto e rotura da parede do ventrículo esquerdo (parte superior
da figura). Há hipertrofia intensa do ventrículo esquerdo. IMLAP. Guia 86
da 2ga DP, de 07/06172.

Figura 8.4. Presença de volumoso coágulo sanguíneo no saco peri-


cárdico. O miocárdio da ponta do coração está rompido e infiltrado por
sangue. IMLAP. Guia 157 da 22~ DP, de 14/10/71.

capazes de provocar uma arritmia fatal. É comum a associa-


ção da cardiopatia hipertensiva com a de origem coronaria-
na, pois a hipertensão acelera o curso da coronariosclerose. Figura 8.6. A válvula aórtica está muito deformada e endurecida por
intensa calcificação. A parede do ventrículo esquerdo está hipertrofiada
Mas não é raro se acharem alterações próprias da hiperten-
por causa da estenose valvular. IMLAP. Guia 16 da ga DP, de 05/03/71.
são arterial no coração de vítimas de morte súbita, sem le-
sões importantes de coronariosclerose (Fig. 8.5).
da vida). Os depósitos calcários projetam-se para dentro, de
Valvulopatias
modo que o diâmetro útil da válvula fica muito reduzido.
De mo do semelhante, as doenças valvulares e as doenças Além do mais, a elasticidade valvular diminui muito 8•13 • As
primárias do músculo cardíaco podem levar à morte súbita. massas calcárias também podem obstruir, em grau variado,
Entre as valvulopatias, o achado mais comum em casos de o orifício das artérias coronárias13 (Fig. 8.6).
mo rte súbita é a estenose calcificada da válvula aórtica. Po de Cerca de 3% dos adultos apresentam uma degeneração
ocorrer tanto em válvulas normais como naquelas com ano- mixomatosa do tecido conjuntivo da válvula mitral que faz
malia congênita (presença de duas cúspides em vez de três). com que ela se dilate e passe a ter o o rifício e a superfície
Não se deve confundi-la com a estenose aórtica da cardio - maio res - é o prolapso da válvula mitra/1 3 • Por isso, quando o
patia reumática, hoje muito pouco frequente. A calcificação ventrículo esquerdo se contrai, a válvula estufa na direção da
resulta de alteração degenerativa d os tecid os que for mam a aurícula, como se fosse um paraq uedas aberto. Pessoas com
válvula e evolui lentamente, d e m odo que os sintomas só vão essa alteração valvular po dem ter morte súbita pelo apareci-
aparecer em idade avançada, mais ainda nos indivíduos que mento de arritmias ventriculares, mas tal ocorrência não é
tinham previamente válvula normal (oitava e nona d écad as comum8 (Fig. 8.7).
150 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

Figura 8. 7. Degeneração gelatinosa da válvula mitral. Caso n2 5762


do Serviço de Patologia do IMLAP. 1
na. - 6126
Figura 8.8. Superfície de cortetransversal do coração, na qual se nota
Cardiomiopatias grande hipertrofia do septo interventricular por cardiomiopatia hipertró-
fica obstrutiva. Caso n2 6126 do Serviço de Patologia do IMLAP.
Outra causa cardía ca de m orte súbita são as lesões pri-
m árias d o músculo cardíaco. São as cham adas cardiomiopa-
tias. Os autores em geral as dividem em três grupos: con-
gestivas, hipertróficas obstrutivas e restritivas. O que pode
causar morte súbita com mais frequência é o tipo hipertró-
fico obstrutivo. O coração revela grande aumento da m assa
muscular, principalmente no septo interventricular, que se
projeta para a luz do ventrículo esquerdo de tal for ma que
diminui o canal de escoamento do sangue logo abaixo da
válvula aórtica. O peso da víscera varia entre 400 e 800 g,
quando o no rmal é até 320 g'. O exame microscópico revela
fib ras de calibre bem aumentad o, dispostas de modo irre-
gular como um emaranhado. É uma doença transmissível
geneticamente 13 e uma das causas cardíacas de morte súbita
m ais frequentes em indivíduos jovens8 (Figs. 8.8 e 8.9) .
O grupo d as cardiomiopatias congestivas, também re-
feridas como dilatadas, engloba várias doenças, de etiologia Figura 8.9. Corte histológico do miocárdio em que as fibras muscu-
variada, desde tóxicas, como o alcoolismo, até inflam atórias, lares se dispõem em arranjo turbilhonado. Mesmo caso da Figura 8.8.
como as miocardites crônicas. No Brasil, a d oença de Chagas Coloração de HE. Objetiva 10x.
serve como exemplo típico. Os distúrbios do ritmo cardíaco
nessa doença explicam por que é de se esperar que os pacien-
tes tenham, por vezes, morte súbita (Fig. 8.10 ). evidenciou focos de degener ação e necrose de suas fibras as-
Miocardites agudas, primárias ou secundárias a infec- sociados a infiltrado inflamatório for mado por neutrófilos e
ções sistêmicas, po dem causar mo rte inesperad a, princi- mononucleares 15 (Fig. 8.11 ).
palmente em indivíduos jovens. Na maioria d as vezes, são O grupo restritivo é fo rmado por d oenças que não cos-
causadas por vírus. Em um grupo r azoável de casos, a etio- tumam causar morte súbita8• Mas tivemos oportunidade de
logia permanece não esclarecid a. Em 1972, examinam os o examinar um caso no IML do Rio de Janeiro (Fig. 8.12).
coração de um menino de 6 anos que apresento u qua dro clí-
nico infeccioso de evolução fulminante em cerca de um dia. Aneurisma Dissecante
Houve alegação de toxi-infecção alimentar, já que com eçara Os patologistas fo renses, com frequência, deparam -se
a passar mal pouco tempo depois de ter participado de uma com casos de tamponam ento cardíaco causados por rotura
festa de aniversário, na qual comera um tipo de chocolate de aneurisma dissecante da porção inicial da aorta. É uma le-
industrializado. Os exames bromatológicos, porém, não evi- são decorrente do enfraquecimento da parede da artéria por
denciaram agentes patogênicos nem suas toxinas em tabletes degeneração da sua túnica m édia, car acterizada por perda de
d o mesmo lote de fa bricação. O laudo do exame toxicológi- fibras elásticas e acúmulo de matriz conjuntiva alterada em
co de suas vísceras foi negativo. Mas o exame do miocárdio substituição ao tecido elástico. Como os espaços sem fib ras
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 151

Figura 8.1 O. Corte histológico do coração, no qual se notam um ninho


de leishmanias do T. cruzi no interior de uma fibra miocárdica e infiltra-
ção inflamatória mononuclear. Coleção didática de patologia da Univ.
Gama Filho. Coloração HE. Objetiva 40 x.

Figura 8.12. Coração aberto para mostrar fibrose que ocupa uma
faixa do endocárdio e do miocárdio subjacente na parede do ventrículo
esquerdo, interessando a válvula mitral. Caso de endomiocardiofibrose
do tipo Davies. IMLAP.

tuma mostrar sinais d e aterosclerose. Essa catástrofe costu-


Figura 8.11. Corte histológico do miocárdio, no qual se notam áreas ma vir sem aviso prévio. Não há dilatação da aorta, daí a im-
de infiltração por células inflamatórias e edema. Caso nQ5263 do Serviço propriedade da denominação aneurisma. A vítima não tem a
de Patologia do IMLAP. Coloração HE. Objetiva 10x. m enor ideia da ameaça que paira sobre si 15 • As outras formas
d e aneurisma aórtico são diagnosticadas muito antes da sua
rotura em função dos sintomas causados pela dilatação pro-
gressiva do vaso. Assim, a m orte d estes pacientes não preen-
elásticas assumem, por vezes, aspecto cístico, a lesão é cha-
che os requisitos para ser enquadrada como m orte súbita.
mada de degeneração cística da média. Esse enfraquecimen-
to da túnica média permite que haja roturas transversais da
Arritmias Primárias
túnica interna da aorta, por onde o sangue penetra e disseca
a parede arterial em duas camadas concêntricas ao longo de Em casos raros, a morte súbita resulta de distúrbios pri-
uma distância variável. A aorta fica como se fosse formada mários do sistema de excitação e controle das contrações do
por dois tubos, um dentro do outro, separados pelo hema- coração. O distúrbio puramente funcional não pod e ser d o-
toma. O sangue que disseca a parede arterial pod e romper cumentado pelo exame cadavérico. Em geral, o que ocorre
o tubo externo em qualquer ponto da dissecção. É mais co- é uma fibrilação ventricular sem prévia patologia quer do
mum que isso ocorra na po rção ascendente da aorta, o que aparelho valvular, quer do miocárdio ou das artérias coro-
explica o hemopericárdio e o tamponam ento cardíaco. Mas nárias. As alterações funcionais podem, no entanto, já ter
po demos achar casos em que a rotura foi feita para uma ca- sido observadas em vida por exames eletrocardiográficos
v idade pleural ou para a cavidade peritoneal1 5• feitos com outra finalidade. São exemplos a síndrome do QT
O aneurisma dissecante afeta, na maioria das vezes, ho - longo e as relacionadas com pré-excitação como a de Wolff-
mens entre 40 e 60 anos, portadores d e hipertensão arterial, Parkinson-White. Nesta, um feixe anómalo de condução do
mas é interessante notar que, nos casos de morte súbita por estímulo elétrico (feixe de Kent) causa excitação retrógrada
tamponamento cardíaco, a túnica interna da aorta não cos- das aurículas e nova descarga para os ventrículos. Isso gera
152 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

taquicardias ventriculares de alta frequência que podem evo- mais frequentes em pacientes adultos hipertensos e pouco
luir para fibrilação ventricular e morte 16 . Em outros casos, há comuns em crianças8·2º·21 . Sua incidência é um pouco maior
um bloqueio to tal da estimulação ventricular normal, com no sexo feminino 19·20 • Mas a taxa varia com o denodo com
redução muito drástica da frequência dos batimentos, ou que são procurados pelos patologistas.
mesmo a parada cardíaca por tempo suficiente para matar, O exame inicial do encéfalo mostra hemorragia subarac-
como na síndrome de Stokes-Adams 16 . Casos de morte sú- nóidea em sua face inferior, predominando ora na metade
bita de indivíduos jovens empenhados em intensa atividade anterior, ora na posterior, podendo estender-se até a convexi-
muscular ( esportes, treinamento militar), com informações dade cerebral (Fig. 8.13). Aconselhamos a lavagem cuidadosa
fidedignas de que não eram usuários de drogas nem de que com água corrente e a remoção dos coágulos com pequenas
teriam sofrido algum trauma, podem ser explicados por ar- pinças de dissecção. De preferência, evitar o uso de tesou-
ritmias cardíacas sem substrato anatomopatológico 17 (ver ras de ponta aguda. É um trabalho que exige paciência. Não
mais adiante). sendo achados aneurismas, pode-se injetar um corante pelas
artérias carótidas internas e pelas vertebrais para localizar o
Parada Cardíaca Reflexa (Morte por Inibição) ponto de sangramento, pois alguns aneurismas são muito
Em alguns casos, a morte súbita ocorre, no máximo, 2 pequenos e podem passar despercebidos ao primeiro exame.
minutos após traumatismo mínimo que não chega a pro- A localização mais comum desses aneurismas é mostrada
na Figura 8.14 mas, conforme a origem dos casos relatados,
vocar lesão. Adelson e Hirsch 2 chamam-na de morte instan-
tânea fisiológica por admitirem que seu mecanismo seja es- pode ser diferente. Quando os casos são provenientes tanto
timulação nervosa periférica, desencadeando resposta vagai de estudos clínicos por imagem como de necro térios, predo-
minam nas artérias cerebrais anteriores (Fig. 8. 15) e médias.
com bloqueio cardíaco e/ou vasodilatação generalizada, com
queda da pressão arterial, isquemia cerebral e choque. Nar- Mas, se computados apenas os casos dos serviços de verifica-
ram o caso de um menino de 8 anos que estava brincando ção d e óbito, prevalecem os de localização posterior. Tal di -
com seus coleguinhas e levou uma bolada no peito, caindo ferença pode ser explicada de dois modos: ou os aneurismas
fulminado. Várias pessoas testemunharam o acidente. A au- dos vasos posteriores do círculo arterial cerebral rompem-se
topsia completa não revelou qualquer lesão, mesmo à mi- mais facilmente, ou são mais letais quando se rompem 19.
croscopia, assim como foram negativos os exames laborato- A relação anatômica quase que exclusiva em bifurcações
riais2. Outros casos têm sido relatados em que o estímulo foi vasculares sugere uma falha na formação da túnica muscular
pancada na bolsa escrotal, no epigástrio, na laringe, pressão dessas áreas. Seu tamanho varia desde quase imperceptível
no seio carotídeo ou dilatação do colo uterino 2·12·18. Para que até 2,5 cm de diâm etro 21. Não é raro que sejam múltiplos,
se firme o diagnóstico de morte por inibição, é indispensá-
vel que haja uma história compatível e que a necropsia seja
branca, inclusive com exames toxicológico, microbiológico e
histopatológico negativos. É um diagnóstico de exclusão. Mas
não é sinônimo de morte de causa indeterminada. Particu-
larmente, somos muito resistentes a este último diagnóstico.

Doenças do Sistema Nervoso Central


Aneurisma Cerebral
Uma das doenças em que a morte mais suscita dúvidas
quanto à causa jurídica é a rotura de aneurisma cerebral. Em
primeiro lugar, porque o diagnóstico não é feito antes da
rotura arterial. Cerca de 12% dos aneurismas têm a morte
súbita como manifestação inicial. Dentre os que chegam aos
necrotérios médico-legais, metade não tinham qualquer sin-
tomatologia19. Em segundo lugar, porque não é inco mum que
a ro tura seja imediatamente precedida por um esforço inusi- Figura 8.13. Esquema com a localização mais frequente dos aneu-
rismas cerebrais no polígono de Willis (círculo arterial cerebral). A) 40%
tado, uma briga, uma em oção intensa ou mesmo uma relação
na união da cerebral anterior com a comunicante anterior; B) 34% na
sexual. Mas há, também, numerosos casos sem relação com
bifurcação da cerebral média; C) 20% na união da carótida interna com
esforços físicos e outros que ocorrem durante o sono 20 . a comunicante posterior; D) 4% na bifurcação do tronco basilar. 1) artéria
Os aneurismas cerebrais são estruturas saculares forma- cerebral anterior; 2) artéria comunicante anterior; 3) artéria carótida
das pela herniação da túnica interna (íntima) das artérias da interna; 4) artéria cerebral média; 5) artéria comunicante posterior; 6)
base do cérebro, através de falhas da túnica média, que fazem tronco basilar ou artéria basilar; 7) artéria cerebral posterior. Referência:
projeção par a fora da artéria. A incidência ger al na popu- Figura 30.1 6 em Robbins Pathologic Basis ot Disease, sa ed. Cotran RS,
lação adulta é d e cerca d e 2%. Em idosos va i para 5%. São Kumar V e Collins T, eds. Philadelphia: W.B. Saunders; 1999.
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 153

Figura 8.14. Extensa hemorragia subaracnóidea na base do cérebro.


IMLAP. Guia 133 da 20ª DP, de 21 /10/71.

po dendo variar essa incidência de 12 a 31o/o dos casos8•20 •


Com frequência, a multiplicidade está associada a o utras Figura 8.15. A remoção dos coágulos sanguíneos do espaço suba-
alterações hereditárias com o rim policístico, síndrom e de racnóideo revela, na maioria das vezes, o aneurisma rompido. Nesse
Marfa n, coarctação da aorta e displasia fibromuscular, o que caso, é o pequeno saco preso à artéria comunicante anterior no centro
indica sua origem hereditária20• da figura, indicado pela seta. Mesmo caso da Figura 8.14.
O episódio de ro tura do aneurisma é anunciado po r dor
de cabeça lancinante seguida por rigidez da nuca, vômitos
e rápida perda da consciência. Cerca de 50% dos pacientes pro porcionalmente ao volume da hemo rragia20 . A hiperten-
mo rrem em consequência do primeiro episódio de ro tura. são intracraniana causa gr ande elevação da resistência ao
O sangue invade o espaço subaracnóideo e envo lve os ou- fluxo sanguíneo vascular e hipertensão arterial tanto sistê-
tros ram os do círculo arterial da base cerebral (polígono de mica com o pulmonar, acompanhados de redução intensa da
Willis) . Por vezes, penetra no tecido nervoso adjacente ou frequência dos batimentos. Além disso, estudos do coração
nos ventrículos cerebrais. Cortes do encéfalo em planos co- por ecocardiografia e eletrocardiograma tem demonstrado
ronais evidenciam a hem orragia para essas cavidades em distúrbios do movimento cardíaco e da excitação e ritmo
63% d os casos, principalmente o quarto ventrículo 20 • das suas contrações, causando insuficiência do ventrículo es-
Discute-se qual o mecanism o da m orte. Alguns autores querdo e consequente congestão e edema pulmonares 20•
admitem que seja por espasmo dos outros ram os do círculo O grande problema médico-legal relacionado com a ro-
arterial em resposta à liberação de m ediadores químicos a tura desses aneurismas é saber até que ponto um pequeno
partir da interação com o sangue extravasado 19•22 . A m aioria, traumatismo na cabeça, um esforço ou uma emoção violen-
po rém, acredita que esteja a morte relacionada com a hiper- ta poderiam tê-la causado. Em se tratando de aneurism as
tensão intracraniana causada pela hemorragia, com ou sem volumosos, pode-se admitir que um trauma de intensidade
a inundação ventricular, uma vez que ocorre edema cerebral m édia possa causar sua rotura, m as não daqueles aneuris-
associado. A hipertensão intracraniana causa um intenso m as pequeninos. Por outro lado, a súbita elevação da pressão
edema pulmonar neurogênico, cujo mecanismo não está arterial relacionada com o estresse de uma luta corpor al, de
plenamente conhecido. O que se sabe é que se acha edema uma discussão acirrada, o u resultante de um assalto, pode
pulmonar agudo em mais de 90% dos casos de morte súbita levar ao rompimento de um aneurism a quiescente, que ain-
po r rotura de aneurisma cerebr al. E a incidência aumenta da permaneceria como tal por muito tempo. Cada caso deve
154 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

ser estudado minuciosamente para esclarecer o grau de par- hemorragia. Visto pela base, apresenta herniamento do giro
ticipação dessa concausa preexistente'. Ao se admitir o nexo do cíngulo por baixo da foice cerebral e do uncus por entre o
causal entre a ro tura do aneurism a e a ocorrência policial, tronco cerebral e a tenda do cerebelo. É comum que a hemor-
está-se caracterizando a lesão corporal seguida de mo rte ragia se estenda pelo espaço subaracnóideo adjacente e para
(§ 3Q do art. 129 do CP). o interior dos ventrículos cerebrais. As de pequeno porte cos-
Há hemorragias subaracnóideas não traumáticas em que tumam ficar restritas ao parênquima cerebral. Quando o san-
não se consegue identificar qualquer formação aneurismá- gramento situa-se no cerebelo, costuma haver herniamento
tica nas artérias da base cerebral. Representam de 10 a 15% das amígdalas cerebelares entre o bulbo, que é comprimido, e
dos casos, nos quais são achadas outras alterações vascula- o anel do buraco occipital. As hemorragias da protuberância
res congênitas ou inflamatórias. Também podem causá-las podem ascender e comprom eter o tronco cerebral.
processos infecciosos localizados nas artérias ou nas menin- Em alguns casos, pode surgir dificuldade no diagnóstico
ges8·'9. É possível, ainda, que o sangramento tenha-se origina- diferencial entre as hemorragias espontâneas e as de origem
do em pontos fracos da parede vascular nos quais surgiriam traumática. O elemento principal é a existência de focos
aneurism as com o passar dos anos. É sabido que a incidência de hem orragia cortical nestas. Mas é preciso atentar para a
de aneurism as em crianças é muito mais baixa que em adul- possibilidade de comprom etimento do córtex vizinho às he-
tos, o que justifica essa suposição'. Outra possibilidade é que morragias espontâneas. Nas traumáticas, a distribuição dos
se tratasse de aneurism a muito pequeno, que teria explodido focos corticais de hemorragia guardam relação com as zonas
to talmente no m omento da rotura sem deixar vestígios8. de contusão do couro cabeludo (lesões de golpe e de con-
tragolpe). Essa diferenciação é importantíssima, principal-
Hemorragia Cerebral mente nos casos em que a vítima sofreu queda antes de per-
Outra causa frequente de morte súbita é a hemorragia der a consciência. A evolução das hemorragias é rápida para
intracerebral espontânea, também chamada simplesmente de o estado de coma e a morte. Em apenas 10% dos casos, o
hem orragia cerebral. É a segunda causa m ais frequente de paciente consegue sobreviver por 3 dias no pronto-socorro.
hem orragias intracr anianas não traumáticas8. É própria de Quando localizadas na protuberância, a morte se dá em me-
adultos maduros e rara em jovens8•20• Cocainômanos cons- nos de 24 horas em 95% dos casos8.
tituem um grupo de grande risco20 . Em 85% d os casos, é O sangr amento das hem orragias espontân eas resul-
uma complicação da doença hipertensiva, m as também pode ta da rotura de minúsculas dilatações arteriolares, que são
ocorrer em pacientes não hipertensos' 9 .2°. Na ausência de in- muito mais frequentes nos hipertensos, mas que têm sido
formações clínicas, com o é a regra em verificações de óbito, a encontradas pelos patologistas em necropsias de pessoas
necropsia evidencia os estigmas da hipertensão arterial - hi- normotensas 21 ·22 .
pertrofia d o ventrículo esquerdo do coração e nefrosclerose. As outras causas de hem orragia cerebral que não a hiper-
Sua localização em mais da metade dos casos é na área dos tensão arterial são pouco frequentes. Dentre elas, destacam -
núcleos lenticulares e d o tálamo, seguindo-se a pro tuberân cia se malformações vasculares arteriovenosas, vasculites, d oen-
e o cerebelo8·19.2 ' (Fig. 8.16). O exame macroscópico do cére- ças do sangue com tendência hemorrágica e a amiloidose
bro nas hemorragias dos núcleos da base revela achatam en- primária. Entre as doenças do sangue estão leucemias, púr-
to das circunvoluções, principalmente do lado o nde houve a puras, coagulação intravascular disseminad a, iatrogenia por
anticoagulantes e, inclusive, a anemia falciforme'9·2º.

Epilepsia
A causa neurológica de morte súbita m ais controvertida é
a epilepsia. Surges e cols.23 referem que uma irmã de 17 anos
do presidente norte-americano George Washington morreu
logo após uma crise convulsiva po r ele presenciada. Até mea-
dos do século XX, havia a convicção entre os médicos de que
não havendo um estad o de m al epiléptico, uma crise convul-
siva seria incapaz de matar. Nas últimas décadas, porém, a
observação pessoal de neurologistas e peritos legistas, assim
como a realização de estudos prospectivos, acabou po r fir-
mar o conceito internacionalmente aceito da morte súbita e
inesper ada em epilépticos: "casos em que o epiléptico morre
inesperadamente, com ou sem testemunhas, sem ter sido en-
Figura 8.16. Volumosa hemorragia cerebral que compromete o ven- volvido em acidentes, com ou sem sinais de crise convulsiva,
trículo lateral direito e os núcleos da base cerebral do mesmo lado. Os excluindo o estado de mal epiléptico, nos quais a necropsia é
giros cerebrais estão achatados. Coleção de ensino da Faculdade de branca e o exame toxicológico, negativo"24. Di Maio8 afirma
Medicina da UFRJ. que é a causa mais comum de morte súbita de origem nervosa
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 155

encontrada pelos médicos-legistas, podendo chegar a 2% de quantidade aspirada. Em ataques terroristas, a quantidade
todas as mortes naturais examinadas nos serviços de patolo- pode ser tão grande que mate a vítima em menos de 2 dias.
gia forense. A chance de morte súbita entre os epilépticos é Em outubro de 2001, um mês após o atentado contra as Tor-
24 vezes maior do que no resto da população25• São descritos res Gêmeas de Nova York, foram enviadas correspondências
vários fatores de risco para os epilépticos, mas os mais impor- contaminadas por esses esporos a membros da mídia e do
tantes são doença de duração mais prolongada e severa, idade senado norte-americano, em um ataque bioterrorista. Cinco
adulta jovem e dificuldade de controle das crises 19•26 • pessoas morreram e 17 adoeceram mas conseguiram se re-
Na maioria das vezes, a pessoa é encontrada morta ao cuperar através de tratamento com antibióticos. Os esporos
amanhecer. Admite-se que o sono predisponha à ocorrência inalados vão aos alvéolos pulmonares, são fagocitados e dre-
das crises8• A morte, geralmente, ocorre durante ou logo após nados para os linfonodos do hilo pulmonar. Aí proliferam,
a crise convulsiva. Pequena proporção de casos são presen- causam inflamação hemorrágica e disseminam-se rapida-
ciados e as testemunhas relatam a ocorrência de convulsões mente pelo organismo. O que leva à morte é a ação das to-
tônico-clônicas generalizadas na maioria das vezes. Nos que xinas que produzem 29 • No ataque por cartas em Nova York e
não são presenciados, é comum o achado de sinais da crise, Washington, o responsável foi um biólogo de um laboratório
como contusões e feridas na língua, ou desordem dos obje- de biossegurança do exército, que tinha problemas mentais
tos próximos ao corpo do indivíduo 1•8•23 • No caso de epilép- graves e cometeu suicídio em 2008, pouco antes de ser for-
tico em tratamento por anticonvulsivantes, é preciso fazer a malmente acusado 30•
dosagem da medicação nos tecidos da vítima de modo a se Entre as infecções do aparelho respiratório, há uma con-
documentar uma parada no uso do remédioS. 17• Há, também, dição que pode causar morte extremamente rápida por
a possibilidade de morte súbita de epilépticos por crises do sufocação: é a epiglotite aguda, geralmente decorrente de
sistema nervoso vegetativo 17 • infecção pelo Haemophilus influenzae. É mais comum em
O cérebro das vítimas desse tipo de morte súbita revela crianças, mas também pode acometer adultos. Os sintomas
alterações em 50 a 70% dos casos. Além das patologias cau- iniciais podem ser escassos e sugerir uma laringite banal. De
sadoras das crises convulsivas, como lesões traumáticas cor- repente, ocorre obstrução do trato respiratório, impondo
ticais antigas, neoplasias do tecido nervoso ou das meninges medidas de emergência para salvar a vida, como intubação
e processos inflamatórios, são descritas lesões atribuídas às ou traqueostomia8 . Nos casos fata is, a autopsia revela intenso
sucessivas crises convulsivas 19 •27• Entre estas, são descritas edema da mucosa que reveste a epiglote, a laringe e a parte
esclerose da amígdala cerebral e atrofia progressiva com re- adjacente da hipofaringe 1•
dução do número de neurô nios no hipocampo, mas sem di- A tuberculose pulmonar escavada (forma ulcerocaseosa)
ferenças entre os epilépticos mortos subitamente e aqueles pode passar despercebida pelo paciente e só ser diagnosticada
vitimados por acidentes ou o utras causas naturais 19 •27•28• Têm após um episódio de hemoptise. Nesses casos, quando não
sido descritas lesões cardíacas, como aumento do peso e fi- se sabe ainda que o indivíduo está doente, a hemoptise pode
brose pouco intensa a moderada do miocárdio. Todas essas ocorrer sem que lhe seja prestado o devido socorro por morar
lesões têm sido atribuídas à hipoxia intensa que acompanha só ou por estar longe da família. Resulta daí o achado de um
as crises epilépticas, tanto no cérebro como no coração 19 • A corpo caído na via pública ou em um quarto em que morava
favor dessa afirmação fala o achado de lesões neuronais is- sozinho, com sangue vivo sujando-lhe o rosto e as vestes. A
quêmicas recentes no hipocampo de algumas vítimas desse suspeição de morte violenta é comum diante desse quadro. E
mal23. Os pulmões revelam edema de intensidade variada, só é desfeita quando o patologista do serviço de verificação de
porém constante. óbitos ou do necrotério médico-legal faz o diagnóstico. A ne-
A maioria dos autores concorda que a morte seja causa- cropsia revela ora uma caverna cheia de sangue parcialmente
da por arritmia cardíaca, que tanto pode ser por taquicardia coagulado, com paredes infiltradas por material caseoso, sem
evoluindo para fibrila ção, como por assistolia 19 •23• Os meca- disseminação; ora o processo é mais extenso e formado, além
nismos fisiopatológicos desses distúrbios do ritmo cardíaco da lesão escavada, por macro e micronódulos distribuídos
estão propostos na revisão feita por Surge e cols23 . principalmente nos lobos superiores dos pulmões.

Doenças do Aparelho Respiratório Asma


A asma é uma doença que acomete crianças e adultos,
Infecções
com prevalência geral de 10% naquelas e de 8% nestes. Até
Algumas formas de pneumonia podem evoluir de modo início do século XX, a maioria dos médicos não admitia que
tão rápido a ponto de causar uma morte suspeita, mas não pudesse matar3 1• Mas a observação mais apurada pelos clíni-
é a regra. Tal evolução, contudo, é mais comum em pessoas cos demonstrou que, em raros casos, poderia ser a causa da
com resistência diminuída por quimioterapia ou outras for- morte. A taxa de mortalidade por asma oscilou nos países in-
mas de comprometimento do sistema imunológico. dustrializados entre 1,5 e 8,5/100 mil habitantes nas três últi-
A aspiração de esporos do Bacillus anthracis pode pro- mas décadas do século passado 32• Nos EUA, a taxa aumentou
vocar uma infecção de curso fulminante, na dependência da de 1,3 para 1,932 • Autores da Nova Zelândia mostram taxas
156 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

entre 3 e 4,2 33 . No Brasil, entre os anos de 2000 e 2007, a


mortalidade pela asma variou entre 1,1 e 1,7. A região que
apresentou as maiores taxas no ano de 2007 foi a Nordes-
te, com 2,3 34 . No universo dos asmáticos, a morte incide na
proporção de 1/2.000 casos (0,05% )32·35 ·36, mas, em crianças,
é muito menor 1/10.000 37 . Sob o ponto de vista dos serviços
de verificação de óbito, a proporção das causadas pela asma
pode chegar a 7% das autopsias8.
Atualmente, sabe-se que a morte pela asma pode ocor-
rer pelo agravamento do quadro clínico, com crises mais in-
tensas e mais frequentes, em que o estado do paciente vai
se d eteriorando ao longo de dias ou semanas, ou d e modo
muito mais rápido e inesperado em intervalo de menos de
12 horas entre o início da crise e o óbito, o que atende ao
critério de morte súbita32.3 5·36 • Estes são os casos chamados de Figura 8.17. Corte histológico de pulmão de pessoa asmática. Há dis-
asma súbita fatal ou asma aguda asfíxica, que correspondem tensão difusa dos sacos alveolares. Caso 112 3848 do Serviço de Patologia
a 15 a 20% dos óbitos pela asma 32.35·36 • H á relato de casos com do IMLAP. Coloração de HE. Objetiva de 2,5x .
evolução ao óbito em meia hora 8.
Na asma asfíxica, se a vítima estiver só, em lugar em
que sua doença seja desconhecida, o diagnóstico da causa
da morte pode ficar difícil. Em mais da metade dos casos, a
morte ocorre fora de ambiente hospitalar31·32·38 . Mas o achado
de remédios ou bombinhas de aerossol para o tratamento
das crises nos seus bolsos fornece uma boa pista para a inves-
tigação. Existem fatores de risco que indicam os asmáticos
com maior probabilidade d e terem uma crise fatal. Os prin-
cipais são o fato de já terem sofrido crises que os obrigaram
a sofrer internações em serviços de emergência hospitalar,
intubação traqueal32·33 .36, assim como a baixa percepção da
gravidade da obstrução respiratória32·36 •39. Tais fatores pod em
ser indagados a parentes ou pessoas conhecidas da vítima
embora sua ausência não traga imunidade quanto à crise fa-
tal32. Sem esses elementos, o patologista forense tem que se
valer apenas da morfologia pulmonar. Figura 8.18. Vê-se bronquíolo obstruído por tampão de muco espesso.
Os pulmões dos asmáticos costumam ocupar todo o espa- Mesmo caso da figura anterior. Coloração de HE. Objetiva de 2,5x.
ço nas cavidades pleurais e recobrir parte da área cardíaca, o
que se nota pela remoção do plastrão condroesternal. Há um
enfisema agudo, os alvéolos estão muito distendidos e o ó rgão são os mais numerosos nos casos de evolução mais prolo n-
não colapsa ao ser retirado. A abertura dos ramos brônquicos gada41. Convém lembrar que é preciso estabelecer o diagnós-
revela a presença de muco muito espesso e pegajoso tampo- tico diferencial entre a asma asfíxica e os casos d e choque
nando vários segmentos. A microscopia confirma os aspectos anafilático com predominância de sinais respiratórios32·37 .
macroscó picos. Evidencia membrana basal do epitélio respi- Não há consenso quanto ao mecanismo de morte duran -
ratório espessada e ondulada, hipertrofia das fibras muscula- te a crise asmática. A maior dificuldade é a diferença entre a
res lisas e das glândulas mucoprodutoras dos brônquios. Há morte por crises graves que ocorre por falha do tratamento
infiltração do tecido conjuntivo brônquico e intersticial por hospitalar e a evolução dos casos não assistidos, em que a
eosinófilos e mononucleares8·40(Figs. S.17 a S.19). crise evolui naturalmente para o d esfecho fatal sem assis-
Trabalhos mais recentes revelaram algumas diferenças na tência médica. Nos casos que chegam aos hospitais, alguns
histo patologia entre as vítimas da forma lenta com as das formularam a hipó tese de que está relacionado com arritmia
formas mais agudas e rápidas. Nestas, faltam os tampões de cardíaca desencad eada por efeito colateral dos broncodila-
muco nos brônquios e o infiltrado inflamatório tem predo- tadores usados pelo paciente, potencializados pela baixa da
mínio de neutrófilos em vez de eosinófilos32·36. O utros au- concentração sanguínea de oxigénio. A obstrução ao fluxo
to res identificaram uma relação entre a concentração dos respiratório por si só não seria capaz de matar, já que não
subtipos de linfócitos T (com marcado res CD4 ou CDS) no acharam concentrações muito elevadas de C0/· 17. Outros
infiltrado inflamató rio presente no tecido conjuntivo dos admitem que a morte seja pela asfixia decorrente do enfise-
brônquios, e o tipo de asma. Nos casos de evolução muito ma agudo dos pulmões. Este é causado por um m ecanismo
rápida predominam o s linfócitos CDS+, enquanto os CD4+ valvular nos brônquios, em que o ar entra durante a inspira-
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 157

Figura 8.20. Embolia pulmonar maciça. Otronco da artéria pulmonar


está obstruído por volumoso êmbolo. Autopsia nº A-68-32 do Laboratório
de Patologia do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia do Rio de
Janeiro.

Doenças do Aparelho Digestivo


Hemorragia Digestiva Alta
Em cerca da m etade dos casos, esta hemorragia é causa-
d a por sangr amento de uma úlcer a péptica. A segunda causa
mais comum é a síndrome d e Mallory-Weiss, com incidên-
cia d e 5 a 15%, conforme o autor citado. A hem orragia d a
gastrite erosiva aguda, causada com m aior frequência pelo
uso continuado de anti-inflamatórios não esteroides, cos-
Figura 8.19. Detalhe da parede bronquiolar, que mostra espessa- tuma ser d e pequena m onta e, r aram ente, ameaça a vida d o
mento da membrana basal do epitélio respiratório e hipertrofia das fibras paciente pois as erosões da mucosa só atingem vasos muito
musculares lisas. Notam-se células inflamatórias permeando os diver-
pequenos42•
sos tecidos. Mesmo caso das Figuras 8.17 e 8.18. Coloração HE. Objetiva
úlcera péptica43 : É uma d oença que atinge de 10 a 12% d a
de aumento médio.
população, respectivamente, feminina e masculina. A lesão
característica é uma ulceração de diâmetro su perior a 5 mm
d e diâm etro, localizada ora no estôma go, or a no duod eno.
ção, que é ativa e o dilata, mas não sai na mesm a quantidade
Estudos de necropsia não têm mostrado preferência para um
na expiração por causa do espasm o bronquiolar. O tampão ou outro órgão mas as duod enais são mais diagnosticadas
de muco obstrui a luz quando cessa o esforço d os múscu- em vida pela maior frequência d os sintom as dolorosos. Em
los inspiratórios8 •32,35 . Por fim, também se sugere que haja
cerca d e 15% d os casos, ocorre sangram ento d a úlcera para
uma par ada respirató ria final possivelmente pelo cansaço d a
o interior do tubo digestivo. Quando o volume é grande, o
musculatura respiratória 32,3 5• paciente vomita e o m aterial eliminado ora é representado
por sangue parcialmente digerido (escuro e semelhante a
Embolia
bo rra de café), ora mais vermelho, na dependência da veloci-
A morte mais súbita no sentido cro nológico é a que ocor- d ade do sangram ento. Alguns pacientes portadores d e úlcera
re quando há uma embolia m aciça para os ramos principais péptica ainda não diagnosticada podem ter como primeiro
da artéria pulmonar. Isso se deve ao deslocamento de coágu- sintoma claro um sangramento intenso para o estômago.
los sanguíneos alojados em veias calibrosas, geralmente nos Po r vezes, não são socorridos a tempo e morrem de mod o
membros inferiores, que seguem pela veia cava inferior, au- inesperado. Q uando necropsiados, a causa da m orte é des-
rícula direita, ventrículo direito, e terminam por encalhar na coberta. Indivíduos que moram sozinhos podem ser vistos
artéria pulmonar. É ocorrência mais frequente em pacientes m ortos em m eio a san gue vomitad o, o que pod e levar à sus-
em pós-operató rio de cirurgias m ais amplas, ou trauma- peição de envenenam ento. O diagnóstico da úlcera péptica
tizados, quando voltam a deambular. Também ocorre no nesses casos é fácil. A abertura do estô mago ao longo da sua
pós-parto imediato, razão pela qual se deve fazer com que a grande curvatura permite visualizar a lesão ulcerada que se
puérpera deixe o leito o m ais precocem ente possível, a fim d e localiza preferencialmente na pequena curvatura, geralmen-
evitar a flebotrombose (Fig. 8.20). te no antro gástrico, tem bo rdas lisas e talhadas a pique, um
158 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

pouco atenuadas na metad e distal. Costuma haver uma certa


co nvergência de pregas da mucosa adjacente para as margens
d a lesão. No fundo da úlcera, acha-se o vaso sanguíneo que
originou a hemorragia. As úlcer as duod enais têm aspecto se-
m elhante e localizam -se na primeira po rção do ór gão, logo
d epois do piloro 44.
Outra complicação das úlceras pépticas é a perfuração
d o tubo digestivo e consequente peritonite. A incidência de
perfuração varia de 2 a 10% conforme os autores consulta-
d os43.45. É m ais comum nos ho mens e nas pessoas mais ido-
sas. Sua localização mais frequente é na face anterio r do an-
tro gástrico e da primeira porção do duod eno 45 . A tendência
maio r de perfuração nas pessoas idosas está relacionada com
o uso m ais intenso de an ti-inflam atórios não esteroides por
esse grupo de pacientes. Quando o indivíduo não procura
atendimento hospitalar nas primeiras 24 horas, a morta-
lidade é de mais de 10%. Não sendo atendido, evolui para
peritonite generalizada e morte por sepse45. Esses são os que
chegam aos serviços de verificação de óbito.
Síndrome de Mallory- Weiss46 : É outra patologia capaz de
levantar suspeita de morte violenta. São lacerações, e mes-
mo rotura do terço inferior d o esófago relacionadas com vó-
mitos repetidos, mais comuns em alcoólatras em estado de
etilism o agudo. A maioria dos pacientes apresentam hérnia
d e hiato (deslocam ento da junção esofagogástr ica para nível
acima do diafragma). Menos d e 10% dos pacientes vão ao
óbito por causa da hemorragia. O s casos mais graves pod em
ser de evolução fulminante, com rotura total da parede d o
esófago na sua transição para o estômago (Fig. 8.21 ).

Pancreatite Aguda Figura 8.21. Extensa hemorragia no terço inferior do esôfago em caso
de morte súbita por hematêmese. Síndrome de Mallory-Weiss. Guia 235
A pancreatite agud a é uma d oença grave que atinge, com da 21 ª DP, de 03/11 /68.
mais frequência, pessoas na sexta d écada de vida e costuma
eclodir após excessos do comer e d o beber4 7• Sua incidência
geral no mundo ocidental varia de acordo com o autor pes- ainda dentro d as células secretoras, o que leva à autodes-
quisado mas fica em torno d e 10 a 20 por 100 milhabitantes48 . truição das organelas e das memb ranas celulares. A tripsina
O fator predisponente mais importante no homem é o abuso liberada ativa uma outra enzima, a lipase, e libera numero-
do álcool e, na mulher, a existência de cálculos biliares48 .49. sas substâncias que agem na reação inflamatória aguda. Esta
A m aioria do s casos d e pancreatite aguda evolui bem e atrai grande quantidad e d e neutrófilos e altera intensamen-
caracteriza-se por simples edema do ór gão. Mas, em cerca de te a permeabilidade dos vasos da microcirculação. Segue-se
15 a 20% d os pacientes, a doença é muito mais grave e está ed ema intenso e hem orragia no interior do órgão. A expor-
associada a necrose extensa e hemorragia do pâncreas49.s0. A tação dos mediadores químicos da inflamação e das enzimas
mortalidade nesse contingente de pacientes tem sido avalia- ativadas para locais distantes através da corrente sanguínea
d a em 20 a 60%, confo rme o autor consultado. São men- desencadeia a chamad a síndrom e da resposta inflam atória
cionados dois picos de mortalidade para a fo rma grave d a sistêmica, seguida pela síndrome de disfunção múltipla de
pancreatite aguda, um precoce e outro tardio. O primeiro órgãos. A morte resulta de insuficiência respiratória, cardía-
ocorre durante a primeira semana e o segundo após 2 sema- ca ou renal de mo do isolado ou associado 49·50 .
nas. Cerca de 23% mo rrem no s 3 primeiros dias. Mas, ao fim Algumas vezes, uma pessoa em aparente bom estado
d a primeira semana, a taxa de mortalidade chega a 53% . O de saúd e, sem sinais prévios de qualquer doença, começa a
segundo pico de m ortalidade não costuma chegar aos servi- sentir dor abdominal, cada vez mais intensa, entra em cho -
ços de verificação de óbito. Ocorre cerca de 2 semanas após o que e mo rre sem que se po ssa fazer o diagnóstico clínico.
surgimento da do r abdominal e resulta de infecção dos focos Pode-se suspeitar até de envenenam ento. A necropsia revela
d e necrose do pâncreas49 . pancreatite aguda necrosan te, que é o substrato anatómico
O mecanismo patológico inicia-se com a ativação das da pancreatite agud a grave. O diagnóstico necro scópico da
enzimas digestivas d o pâncreas, principalmente a tripsina, pancreatite aguda necrosante baseia-se no aumento de vo-
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 159

Figura 8.22. Numerosos focos de esteatonecrose na retrocavidade Figura 8.23. Grande infiltração hemorrágica nas glândulas suprarre-
epiplóica e em vários pontos do peritônio visceral. São de cor amarela nais de uma criança morta por septicemia (síndrome de Waterhouse-
clara, diâmetro médio de 0,5 cm e, em algumas áreas, formam agrega- Friderichsen). Caso do IMLAP, em 19/08/71.
dos visíveis no mesentério e nos epíplons. As alças intestinais são de
cor violácea escura. caso de pancreatite aguda cedido gentilmente pelo
Dr. Elias Freitas do IMLAP. rias como, por exemplo, o pneumococo e o Haemophilus in-
fluenzae. Pessoas em bom estado de saúde, geralmente crian-
ças, adoecem com febre alta e aparecimento de petéquias ge-
lume do órgão pelo edema e pelos focos de hemorragia de neralizadas, que tendem a confluir, formando um quadro de
coloração escura. Pode ser suspeitado já no exame externo púrpura. Evoluem para estado de choque em algumas horas,
pela presença de infiltração equimótica periumbilical (sinal ocorrendo a morte em pouquíssimos dias, por vezes menos
de Cullen ) o u dos flancos (sinal de Turner). A ativação das de um. Há relatos com duração de menos de 10 horas de du-
lipases pancreáticas produz digestão da gordura e tecido adi- ração dos sintomas8 . Os exames de laboratório confirmam
poso adjacentes ao pâncreas com liberação dos ácidos gra- septicemia e coagulação intravascular disseminada.
xos, que se combinam com os íons de cálcio do plasma para No caso de ter sido o corpo refrigerado, a hemocultu-
formar pequenas massas branco amareladas semelhantes a ra pode dar resultado negativo se for por meningococo 8 .
pingos de vela ( esteatonecrose) (Fig. 8.22). Tais lesões podem A necropsia revela alterações compatíveis com o distúrbio
ser visualizadas nos epíplons, no retroperitônio e na parede da coagulação e o estado de choque, não sendo observadas
abdominal48 • É comum encontrar líquido turvo, por vezes alterações de meningite purulenta, a penas congestão da
com gotículas de gordura, em quantidade variada, livre na leptomeninge. Em geral, não há tempo para que se forme
cavidade peritoneal. Também se acha derrame pleural à es- pus nas meninges. As glândulas suprarrenais estão bilateral-
querda. Os pulmões costumam mostrar edema intra-alveo- mente aumentadas por infiltração hemo rrágica de intensi-
lar, com ou sem membrana hialina, e edema intersticial, que dade variada, por vezes maciça, principalmente na camada
representam o quadro anatómico da síndrome de estresse medular, onde se origina o sangramento5 1• A causa princi-
respiratório do adulto. pal dessas lesões é a vasculite devida às toxinas bacterianas 17
(Figs. 8.23 e 8.24).
Outras Causas
Gravidez Tubária
Há doenças que costumam ter evolução muito rápida A implantação do ovo humano em uma das trompas
para a morte, e outras cujas complicações podem ser inespe-
produz sua dilatação e enfraquecimento da sua parede pelo
radas e fatais. Em alguns casos, o diagnóstico pode ser feito trofoblasto invasor. Com o passar das semanas, va i havendo
em bases puramente morfológicas, mas, em outros, não é
distensão da parede tubária, que acaba por se romper por
possível se chegar à causa da morte sem o auxílio de infor-
volta do segundo para o terceiro mês 52 • A prenhez tubária
mações clínicas. Estão no primeiro grupo condições como ocorre em cerca de 1% das gestações e em mais da metade
a síndrome de Waterhouse-Friderichsen e a rotura de uma
dos casos está associada a patologia inflamatória o u à ligadu-
gravidez tubária. No segundo, condições como o choque
ra prévia das trompas. Mas um número elevado de casos se
anafilático e o diabetes. assesta em trompas normais. O episódio de rotura desenca-
deia um quadro abdominal agudo que pode ser confundido
Síndrome de Waterhouse-Friderichsen
com outras patologias da região, como salpingite aguda ou
É causada por infecção fulminante, na maioria dos casos apendicite aguda, se à direita. Causa hemorragia intensa para
pelo meningococo; mas há também aqueles por outras bacté- a cavidade abdominal, que pode ser fatal se a mulher não for
160 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

Figura 8.24. Corte histológico de glândula suprarrenal, na qual se vê r-l ~ í.q ll i'P~
intensa infiltração hemorrágica. Caso 6178 do Serviço de Patologia do
IML.AP. Coloração de HE. Objetiva de 2,5x.
Figura 8.25. Peça cirúrgica formada por um embrião de aproxima-
damente 2 meses, sua placenta e coágulos sanguíneos. A paciente
teve rotura tu bária por causa de gravidez ectópica. Caso 112 497 4 do
Laboratório de Patologia do Hospital Escola São Francisco de Assis, da
UFRJ.
socorrida a tempo. Por isso, só resulta em morte súbita se
não houver recursos disponíveis no local onde se encontra
a paciente (Fig. 8.25). A necropsia revela hemoperitônio de
intensidade variada, trompa dilatada e infiltrada por sangue, origem dos casos computados. Alguns autores revisam os
rompida no seu terço médio, que corresponde à ampola. O
arquivos de serviços de emergência ou de hospitais gerais.
ovo é encontrado, geralmente, solto em meio aos coágulos
Outros, por meio de pesquisa telefônica, buscam aprofundar
sanguíneos ou preso a fragmentos da placenta. Às vezes, é
as pesquisas para incluir também os casos que não chegam
muito difícil encontrá-lo53 .
aos hospitais. Fica, portanto, muito precário comparar os di-
versos trabalhos56 • Apesar dessas dificuldades, há avaliações
Choque Anafilático
de que a incidência de RA durante a vida das pessoas varia de
Entre as doenças capazes de causar m orte súbita, algu- 0,05 a 2% da população 56 • Nos Estados Unidos, foi calculada
mas só podem ser diagnosticadas com o auxílio de informa- prevalência de RA entre 1,2 1 e 15,04% da população, com
ções clínicas, pois não há alterações mo rfológicas suficien- mortalidade estimada de 0,002% 56•
tes para explicar o óbito. Uma dessas é o choque anafilático. Nessa forma de alergia, o o rganismo, ao entrar em con-
Resulta de uma reação alérgica imediata que ocorre quando tato com o alérgeno pela primeira vez, produz anticorpos
uma pessoa, previamente sensibilizada, entra em contato do tipo IgE (imunoglobulina E). Esse anticorpo fixa-se em
novamente com a m esma substância que a sensibilizara. recepto res localizados na superfície de dois tipos das células
Essa substância, conhecida com o antígeno ou alérgeno, pode envolvidas nas reações de hipersensibilidade: os mastócitos,
estar presente num alimento, na picada de um inseto, ou em localizados nos tecidos em geral, e os basófilos, presentes no
um rem édio. Essa patologia é conhecida como reação anafi- sangue. Essas duas linhagens de células têm funções seme-
lática (RA) ou anafilaxia54 • lhantes. Seu citoplasma alberga pequenos grânulos, que con-
É difícil estabelecer a incidência da RA. Em primeiro lu- têm substâncias biologicamente muito ativas - mediado res
gar, porque os casos mais leves, e também os fatais, não cos- químicos - como histamina, heparina e algumas enzimas.
tumam ser registrados pelos serviços de emergência. Os pri- Quando o antígeno se acopla com a IgE fixada na membrana
meiros porque o paciente não se sente ameaçado o suficiente dos mastócitos e basófilos, eles são ativados, liberam aqueles
para procurar um hospital; os fulminantes, porque a mo rte mediadores e produzem outros que, como esses, atuam nas
é muito rápida, cerca de 5 a 15 minutos, sem tempo para a reações inflamató rias, de causa alérgica ou não. À guisa de
chegada do socorro médico 55• Tais casos fogem às estatísticas ilustração, citamos: prostaglandina D2, leucotrienos C4, D4
estabelecidas com bases clínicas porque o cadáver é levado e E4, fator de ativação plaquetária, fator de necrose tumoral
diretamente para os institutos médico-legais ou os serviços etc. ARA, conforme vai se desenvolvendo, mobiliza também
de verificação de óbito. Em segundo, por causa da falta de outras células, tais como eosinófilos, plaquetas, macrófagos e
padronização do conceito e dos critérios de diagnóstico56• células endoteliais, todas comumente envolvidas nas reações
Em 2006, houve um simpósio internacional que estabeleceu de hipersensibilidade 55•58 .
o conceito que deve ser adotado para a RA: "é uma reação O resultado da reação anafilática (RA) pode ser apenas
alérgica grave que tem início rápido e pode causar a morte"56•57 • uma urticária, na qual o paciente evidencia coceiras espa-
Devemos lembrar que os relatos também diferem quanto à lhadas pelo corpo; ou quadros mais graves. A gravidade do
CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 161

quadro tende a ser maior quando a dose do antígeno for feito a tempo. Tal situação é de caracterização muito difícil
grande, mas não há como se prever o resultado. Sabe-se que numa sala de necropsias, por não haver informação clínica
cada indivíduo tem o seu órgão de choque, no qual a reação é dada por parentes ou amigos. Contudo, o perito deve pensar
mais intensa 55 • Com o agravamento do quadro, a tendência é nessa possibilidade diante de pacientes jovens sem qualquer
o comprometimento progressivo de outros setores nobres do lesão das mencionadas nos parágrafos anteriores. A melhor
organismo, pois os mastócitos estão espalhados pelo tecido conduta é colher material para exame toxicológico e realizar
conjuntivo de todo o corpo. Como consequência, no apare- testes para a detecção de glicose na urina e dosá-la no hu-
lho respiratório pode ocorrer edema da mucosa da laringe mor vítreo 17• O humor vítreo é especialmente valioso, pois
e espasmo dos bronquíolos (Fig. 8.26) . Ambos podem levar estudos recentes mostraram que sua quantidade de glicose
à asfixia. Nos casos mais graves, surge o comprometimento reflete de modo adequado o distúrbio presente no diabetes.
cardiovascular, que é o que desencadeia o estado de choque, Dosagens acima de 200 m gldL são de valor diagnóstico8 . A
no caso o choque anafilático55 •58• presença de glicogênio no epitélio tubular proximal dos rins
O choque anafilático caracteriza-se por intensa hipo- é considerada diagnóstica de diabetes não controlado8•
tensão arterial causada pela atuação daquelas substâncias O oposto, isto é, o coma hipoglicêmico, pode ser causado
liberadas inicialmente pelos mastócitos e pelos basófilos. por superdosagem insulínica em pacientes muito sensíveis,
Seu mecanismo é multifatorial. Tem-se como certo que e naqueles que apresentam tumores pancreáticos chamados
ocorre aumento intenso da permeabilidade da microcircu- de insulinomas. Nesses, a necro psia revela um tumor locali-
lação, com escape de fluido em grande quantidade do setor zado no pâncreas cujo aspecto histológico é suficientemente
intravascular para o interstício em quase todos os tecidos e sugestivo para que se faça coloração especial para confirma-
órgãos. Associa-se grande dilatação das vênulas de modo ge- ção do diagnóstico' 7•
neralizado, com retenção do sangue na periferia do corpo.
Essas duas alterações circulatórias reduzem rapidamente o
retorno de sangue venoso ao coração, produzindo, por con-
sequência, diminuição do débito cardíaco. Com a redução
do débito, a pressão arterial começa a cair rapidamente. Para
compensar, o coração acelera a sua frequência, o que, no iní-
cio, chega a compensar o distúrbio. Mas, com a continuação
da reação e a liberação de novos contingentes de substâncias
vasodilatadoras a pressão arterial despenca 55•59•
Admite-se que haja um compo nente miocárdico primá-
rio que diminui a força contrátil do coração independente-
mente da redução do fluxo sanguíneo pelas artérias coroná-
rias. Seria causado pela liberação de mediadores químicos
no próprio músculo cardíaco a partir dos mastócitos loca-
lizados principalmente na bainha dos ramos das artérias e
arteríolas coronárias58• Outro fator que prejudica ainda mais
o enchimento do coração é um aumento da resistência nas
artérias pulmonares, que diminuiria o fluxo sanguíneo in-
trapulmo nar e, como consequência, o enchimento do ven-
trículo esquerdo55•60 • Por fim, ocorre a parada cardíaca por
arritmia desencadeada pela redução intensa da irrigação do
pró prio miocárdio. É por essa razão que não se encontram
alterações significativas das vísceras à necropsia, visto se tra-
tar de distúrbios funcionais que matam sem tempo para que
se instalem lesões identificáveis.

Diabetes
Por fim, devemos acrescentar que pacientes diabéticos
podem vir a falecer subitamente tanto por falta quanto po r
excesso de m edicação. Isso é mais comum na forma juvenil
do diabetes, que é mais grave e de início mais súbito. Um
terço desses pacientes não evolui com os sinto mas clássicos
e abre o quadro clínico com estado de coma a esclarecer8.
A falta de tratamento adequado com insulina pode levar al- Figura 8.26. Intenso edema da mucosa da laringe causado por choque
guns desses pacientes à morte quando o diagnóstico não é anafilático. Caso não identificado.
162 • CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita

Morte por Esforço Físico Exagerado 5. Paiva LAS, Romano PB. Sínd rome do corpo e mbalagem - aspec-
tos característicos de uma nova realidade médico-legal no Brasil.
Sabe-se que a realização de esforços físicos pode des- An ais do XIII Congresso Brasileiro de Medicina Legal, Brasília;
1994.
compensar doentes cardíacos ou respiratórios, levando-os
6. Hercules HC. Morte súbita em Medicina Lega l Tema livre no III
à morte. Mas não é o que nos interessa no momento. Aqui, Congresso Brasileiro de Medicina Legal, Belém; 1971.
referimo-nos à morte de pessoa aparentemente sadia, ge- 7. Camps FE, Knight B. Sudden and unexpected death dueto natural
ralmente jovem , que ocorre de modo inesperado quando d isease. In: Gradwohl's Legal Medicine, editor Francis E. Camps, 2"d
da realização de exercício intenso, seja no esporte, seja no ed. Baltimore: Williams & Wilkins; 1968. Capítulo 15.
8. Di Maio DJ, Di Maio VJ. Deaths due to natural disease. In: Forensic
trabalho. A maioria dos autores a relaciona com cardiopatia Pathology. Boca Ratón: C.R.C. Press Inc.; 1993. Capítulo 3.
prévia desconhecidas,". Nos mais maduros, de meia-idade, 9. Knight B. Unexpected a nd sudden death from natural causes. In:
predominam os casos de coronariosclerose, enquanto nos Simpson's Forensic Medicine, 1o•h ed. Londres: Edward Arnold;
adultos jovens e adolescentes é mais frequente o achado de 1991. Capítulo 14.
estenose aórtica, miocardiopatia hipertrófica, miocardite e 10. Sotelo Lago RA, Eleta G, Odzak, Navari C. Violent death. Forense
96 Abstracts Book; 1996. p. 20.
outra causas2•7•8•9 . 11. Byard RW. Sudden death- an overview. In: Sudden Death in lnfan-
cy, Childhood a nd Adolescence. Roger W. Byard, Stephen D. Cohle,
eds. Cambridge: Cambridge University Press; 1994. Capítulo 1.
Morte por Emoção Violenta 12. Alvarado EV. Morte natural. ln: Medicina Legal. 3' ed. San José:
Lehma nn Editors; 1983. Capítulo 10.
Em indivíduos maduros, aparentemente sadios, é pos-
13. Schoen FJ. The heart. In: Robbin's Pathologic Basis of Disease. 6'h
sível que ocorra morte súbita como resultado de aborreci- ed. Cotran RS, Kumar V, Collins T, eds. Philadelphia: WB. Saunders
mentos ou recebimento de notícia capaz de provocar grande Company; 1999. Capítulo 13. p. 564.
emoção. Geralmente, a morte decorre de infarto miocárdico 14. Hercules HC. Um caso rumoroso de morte suspeita infantil. Arq
causado por espasmo arterial em paciente com prévia ateros- Soe Bras Med Legal; 2000. 3:77-84.
15. Schoen FJ, Cotran RS. Blood vessels. ln: Robbin's Pathologic Ba-
clerose coronária. A autopsia dessas pessoas pouco esclarece sis of Disease. 6'h ed. Philadelphia: W.B. Saunders Compa ny; 1999.
se não forem feitos testes para a detecção de áreas de necrose Capítulo 12, p. 493-541.
do miocárdio por meio de corantes sensíveis às enzimas li- 16. Dubin D. Interpretação rápida do ECG. Tradução b rasileira de Is-
beradas nessas áreas7 • Mas há casos de indivíduos jovens que mar Chaves da Silveira e Rosane Orofin o Costa da 3• ed. inglesa.
sucumbem ao receberem uma notícia muito triste, tal com o Rio de Janeiro: Editora de Publicações Científicas Ltda.; 2004.
17. Hirsch CS, Adams VI. Sudden and unexpected death from natu-
a morte de um irmão. ral causes in adults. ln: Medicolegal lnvestigation of Death. 3'd ed.
Na década de 1970, registramos o caso de uma ado les- Werner U. Spitz, ed. Springfield: Charles C. T homas Publishers;
cente que caiu m orta na entrada do necro tério d o IMLAP 1993. Capítulo V, p. 137- 174.
ao saber da m orte do seu no ivo (caso não publicado) . A 18. Rezek PR, Millard M. Of death and dying. ln: Autopsy Pathology.
Springfield: Charles C. Thomas Publisher; 1963. Capítulo 1.
necropsia nada r evelou de significativo, e os exames toxico-
19. Rubio A. Sudden death of central nervous system origin in adults.
lógicos foram negativos. Byard 6 1 refere alguns casos seme- In: Essential Forensic Neuropathology. Trancoso JC, Rubio A,
lhantes. Mas, na maioria das vezes, trata-se de cardiopatia Fowler D, eds. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins; 2010.
latente, não diagnosticada. Para alguns, pode-se tratar de Capítulo 14,p. 156- 171.
arritmia cardíaca causada por síndro me d o QT prolonga- 20. Trancoso JC. Vascular diseases in forensic neuropathology. ln: Es-
sential Forensic Neuropathology, Trancoso JC, Rubio A, Fowler D,
do ou por casos de síndrome de Wolff-Parkinson-White 8•
eds. Baltimore: Lippincott William s & W ilkins; 2010. Capítulo 10,
Nessas condições, o coração para em fibrila ção ventricular p. 105-121.
ou desenvolve taquicardia incompatível com a circulação 21. Co le G. Cerebrovascula r disease. In: Oxford Textbook of Pathology.
do sa ngue. volume 2b. McGee JD, Isaacson PG, Wright NA, eds. New York: Ox-
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CAPITULO 8 Morte Súbita e Morte Suspeita • 163

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Hygino de C. Hercules

Não é surpresa, ao assistirmos a filmes po liciais, ver o in- A determinação da hora da morte não é importante ape-
vestigad or perguntar ao legista a que horas ocorreu a mor- nas no foro criminal. Nas Varas de órfãos e Sucessões, não
te. Essa informação é necessária para o rientar a investigação são raros os casos em que é preciso estabelecer quem morreu
num sentido ou noutro, de acordo com os últimos passos primeiro, se o pai ou o filho. Na dependência da ordem de
da vítima. Para saber por onde andou e com quem poderia falecimento, a herança po de ir para uma ou o utra família.
ter estado antes de m orrer, a polícia precisa de uma estima- O Código Civil antigo estabelecia em seu artigo 11 que "Se
tiva da hora da morte. E esse problema parece ser tão antigo dois indivíduos falecerem na m esma ocasião, não se poden-
quanto a humanidade, já que homicídios não são atributos do averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros,
dos tempos m odernos. No pensar de Knight1•2, o que mudou presumir-se-ão simultaneamente mortos''. Adotou o critério
desde os tempos primitivos até hoje for am o saber e o ins- da com oriência. O novo código (Lei 10.406 de 10/01 /2002)
trumental disponível para a cronotanatognose, pois o perito manteve o princípio.
passou a contar com tabelas de resfriamento do corpo, ava-
liação da excitabilidade muscular, d osagens bioquímicas nos
humores do corpo, além do que sempre esteve à sua disposi- • FENÔMENOS CADAVÉRICOS
ção - visão, olfato, tato.
Apesar das técnicas mais mo derna s, ainda não pode o Alguns autores costumam incluir no estudo d os fenô-
perito consciente de suas responsabilidades estabelecer com menos cadavéricos os sinais precoces resultantes da parada
precisão determinada hora como aquela em que ocorreu a cardiorrespiratória'·3• A nosso ver, o estudo dessas alterações
mo rte. No máximo, deve fazer uma aproximação em uma não cabe na rubrica de fenômenos cadavéricos, mas, sim,
faixa de tempo tão segura quanto possível, de m odo que no capítulo do diagnóstico da realidade da morte. Thoinot4
inclua o real momento da morte. Nesse aspecto, é melho r chamava de fenômenos cadavéricos apenas as alterações pas-
ampliar a faixa e aderir à verdade do que ser vítima de um sivas, de ordem física, decorrentes daquela parada. Mas, ao
preciosism o irresponsável. Dessa informação pode resultar a listá-los, incluía a rigidez muscular, sabidamente de ordem
prisão de um inocente ou a liberação de um culpado cujo áli- química. Fávero 3 os divide em fenômenos abióticos, o u vi-
bi o coloque fora daquela estreita faixa garantida pelo "com- tais negativos, e fenômenos transformativos. Os abióticos
petente" perito. Além disso, o perito não pode esquecer que são por ele divididos em imediatos (decorrentes da para-
poderá vir a ser questionado severamente em um tribunal e da cardiorrespiratória) e os consecutivos (mais tardios); os
que só po derá resistir e manter sua ava liação se estiver bem transformativos, em destrutivos (putrefação e maceração) e
fundamentado. É imperioso que a interpretação dos resulta- conservado res (mumificação e saponificação ).
dos seja feita com parcimônia porque, apesar da tecnologia Estudarem os aqui as alterações que, embora começando
disponível, são muitas as variáveis que interferem na evolu- logo após a morte, só se tornam perceptíveis transcorrido
ção dos fenômenos cadavéricos'·2 • algum tempo. Simo nin5 as classifica confor me se devam a

165
166 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

mecanismo físico, químico ou biológico. Como os biológi- cialmente, na metade temporal da fenda, tem forma quase
cos, em última análise, devem-se a processos químicos, nós circular e coloração amarelada que vai tornando-se azulada
os gruparemos apenas em fenômenos de ordem física e fenô- e mais escura à medida que aumenta; depois fica enegrecida.
menos de ordem química. Os de ordem física são a desidra- Enquanto cresce na metade temporal começa a surgir tam-
tação, o resfriamento do corpo e os livores hipostáticos; os de bém na metade nasal da fenda. Por fim, chega a ocupar toda
ordem química, a autólise, a rigidez muscular, a putrefação, a porção exposta da esclera (parte branca do olho). Resul-
a maceração e os processos conservadores do cadáver (sapo- ta da sua maior transparência, que permite ver o pigmento
nificação e mumificação). escuro da camada coroide, que fica mais interiormente no
olho. Segundo Sommer, citado por Thoinot4, aparece em 1 a
3 horas, quando as condições de evaporação são muito favo-
• FENÔMENOS CADAVÉRICOS DE ORDEM ráveis, tornando-se negra em 6 horas (Fig. 9.lB).
FÍSICA A hipotensão do globo ocular é um dado que pode ser ob-
servado inclusive no vivo, quando acometido de grave estado
Desidratação
A perda de água, que nos vivos é compensada pela inges-
tão, segue no cadáver de modo contínuo, mas sem reposição.
Sua rapidez depende das condições que favorecem a evapora-
ção e que são: baixa umidade do ar, temperatura elevada, boa
ventilação e superfície ampla. Nos climas quentes e úmidos,
como na maioria dos países tropicais, a umidade alta dificulta
e retarda o aparecimento dos sinais que dependem da desi-
dratação. Assim, a adoção de parâmetros propostos por auto-
res norte-americanos e europeus deve ser feita com reservas.
A desidratação causa perda de peso, apergaminhamento
da pele, dessecamento das mucosas e fenômenos oculares
no cadáver. A perda de peso é tanto mais importante quan-
to maior a proporção de água no corpo, como nos recém-
nascidos. O apergaminhamento da pele ocorre nas áreas de
arrancamento post mortem da epiderme, e na pele fina da
bo lsa escrotal e dos grandes e pequenos lábios da genitália
feminina, quando desnudas. A pele fica endurecida ao toque,
semelhante a couro dessecado, e com coloração amarelada. É
possível encontrar aspecto semelhante na pele submetida a Figura 9.1A. A córnea está tão turva que não é possível discernir nem
uma compressão intensa e contínua, como no sulco dos en- a cor da íris.
forcados. Mas o que ocorre aí é uma expulsão dos líquidos or-
gânicos para as áreas vizinhas, não uma evaporação. O desse-
camento das mucosas aumenta-lhes a consistência e modifica
sua cor para uma tonalidade pardo-avermelhada. Por vezes,
tal aspecto é confundido com a ação de substâncias cáusticas,
principalmente se houver história de envenenamento.
São considerados fenômenos oculares: a tela viscosa, a
opacificação da córnea, a mancha negra da esclerótica e a
hipotonia do globo ocular. A tela viscosa é uma película que
substitui o brilho da córnea e que resulta da evaporação da
lágrima. É reversível, pois desaparece se pingarmos soro fi-
siológico. Aparece após alguns minutos da morte, quando o
olho permanece aberto.
Com o passar das horas, a córnea vai-se tornando opaca
e leitosa, não importando se os olhos estão abertos ou fecha-
dos. Marshall6 refere que, após 1Oa 12 horas, já não é possível
ver o fundo do o lho com o oftalmoscópio (Fig. 9.lA).
A mancha negra da esclerótica também é referida como
sinal de Sommer, autor que a descreveu em 1833 6 • É uma mo- Figura 9.18. Nota-se depressão da córnea, cujo brilho foi substituído
dificação da cor que se observa pela fenda palpebral quando pela tela viscosa, por perda de líquidos intraoculares. Na metade tem-
os olhos permanecem entreabertos após a morte. Surge, ini- poral da esclera há uma mancha escura (sinal de Sommer-Larcher).
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 167

de desidratação (Fig. 9.lB). Por isso, não é de admirar sua mais profundas do cilindro demoram mais a se resfriar, pois
ocorrência em cadáveres. estão insuladas pelas partes mais superficiais. Por outro lado,
Outras alter ações oculares que não dependem da desi- a produção de calor pelo metabolism o não para de imedia-
dratação já fo ram descritas quando abordamos o diagnósti- to, po is, como vimos ao abordarmos o diagnóstico da morte,
co da realidade da morte no Capítulo 6. os tecidos permanecem vivos e só vão mo rrendo aos poucos.
Assim, continua a produção e se perde o principal m odo de
eliminação do calor. Por isso, a temperatura retal logo após a
Resfriamento do Corpo (Algidez Cadavérica)
morte pode, inclusive, aumentar e demorar até 4 horas para
To dos sabem os que a tem peratura corporal é m antida voltar ao valor da hor a da m orte7. Confo rme o local em que
pelo equilíbrio entre a produção interna de calor, deco rrente se faça a medida da temperatura do cadáver, é possível encon-
das reações químicas que constituem a essência da vida, e as trar curvas de resfriamento diferentes. A temperatura retal
perdas para o m eio ambiente. Não existindo o metabolismo custa mais a abaixar do que a temperatura axilar.
e suas reações químicas exotérmicas, a nossa temperatura se- Vários autores têm proposto fórmulas para calcular a
ria sempre semelhante à do m eio ambiente. Continuamente, hora da morte construídas com base no registro da tem pe-
estam os perdendo calor por irradiação, convexão e condu- ratura a intervalos preestabelecidos, em numerosos casos
ção. Com a morte, o corpo humano tende a estabelecer um conhecidos. Alguns usam fórmulas matemáticas complexas
equilíbrio térmico com o ambiente. Embora possa causar e outros, regras bem mais simples. James e Knight, citados
espanto, a temperatura corpor al interna não se reduz, e até por Knight e Nokes 7 , estudaram 110 casos alternadamente,
aumenta um pouco no período imediato após a morte. Se se durante um ano, sem que soubessem o real tem po de mo rte
fizer um registro gráfico da tem peratura retal, com eçando de cada indivíduo, e calcularam a hora por meio da medida
logo após a morte, resultará uma curva sigm oide, com um da temperatura retal uma ou duas vezes com intervalos co-
platô inicial seguido por fase de queda rápida e outra final de nhecidos, tendo ciência de outros dados como temperatura
queda lenta (Fig. 9.2). ambiente, rigidez muscular, livores e dados do m orto com o
Esse fenôm eno não é difícil de explicar. Sabemos que um peso, estatura e vestuário. Seus resultados fo ram corretos em
dos principais mecanismos de perda de calor de nosso corpo apenas 11 % d os casos. O tempo calculado ficou abaixo d o
é a irradiação a partir da superfície cutânea, fato usado para verdadeiro em 57% e acima, em 32%.
se visualizar pessoas no escuro usando-se óculos sensíveis aos Para testar a fidelidade dos diversos procedimentos,
raios infravermelhos (radiação calorífica). Mas o que man- Nokes aplicou oito métodos diferentes a oito cadáveres nos
tém a pele aquecida e irradiando calor é a circulação do san- quais foi medida a temperatura retal após 10 horas da morte.
gue. Com a morte, cessa a circulação e desaparece o principal Seus resultados, paradoxalmente, evidenciaram que as fó r-
mecanismo de aquecimento da pele. A partir daí, ela passa a mulas mais complexas fo ram as que deram resultad os mais
se comportar como a superfície de um cilindro de m atéria afastados do tempo verdadeiro. O m étodo que teve m elhor
inerte, obedecendo às leis da termodinâmica. Mas as partes desempenho foi o de Moritz, que manda subtrair de 37ºC a
temperatura retal e somar mais 3 ao resultado. O número
achado é o tempo em horas após a morte. Mas parte do prin-
cípio de que a temperatura do corpo na hora da morte era
37ºC, o que pode não ser verdadeiro7•
Os clínicos sabem que, ao acordarmos, temos uma tem-
peratura corporal menor d o que na parte da tarde; duran-
te exercício físico, nossa temperatura aumenta um pouco;
as mulheres têm uma elevação da temperatura relacionada
com o ciclo menstrual. Várias são as condições clínicas que
causam alteração da temperatura para m ais (estados febris,
hem orragia cerebral, certos rem édios) ou para menos (hi-
potireoidismo, anemia aguda). Assim, não há como saber
a temperatura verdadeira do indivíduo ao morrer. Sempre
haver á a possibilidade de erro para mais ou par a menos. É
por isso que as estimativas devem sempre estabelecer uma
margem ampla de segurança em cujo centro fica a tempera-
tura calculada.
A velocidade do resfriamento do corpo pode ser influencia-
Tempo da por vários fatores. A posição em que morreu é importante,
FIGURA 9.2. Curva de resfriamento do corpo humano comparada com pois um corpo encolhido e com os segmentos superpostos
uma curva teórica ideal. A curva real corresponde ao corpo humano e tem menor superfície de irradiação de calor do que um es-
apresenta um pequeno platô antes de entrar na fase de resfriamento tendido. O estado de nutrição também importa. Os magros
rápido. representam um cilindro com raio menor e têm proporcio-
168 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

nalmente maior superfície para irradiação. Além disso, um


panículo adiposo espesso representa uma camada isolante
térmica. O vestuário pode fazer com que o corpo perca calor
mais devagar. A idade é outro fator importante. As crianças
apresentam maior área de irradiação do que os adultos, pois
sua relação superfície/massa corporal é maior.
A velocidade e o ritmo de resfriamento estão sujeitos a
fatores ambientais que são muito difíceis de aferir. Se o cor-
po está ao ar livre, as condições climáticas são da máxima
importância. O vento facilita o resfriamento, aumentando
as perdas de calor por convexão. A chuva aumenta muito a
sua velocidade, mas a umidade alta a diminui por reduzir
a evaporação ao nível da pele, já que cada grama de água
consome 0,54 cal ao se evaporar. Corpos que jazem em lo-
cais com temperatura mais alta que 37ºC vão-se aquecer. É Figura 9.3. Livores de hipóstase vistos na metade inferior da face
importante saber se houve, ou não, exposição direta ao sol e lateral do tronco, com coloração vermelho-violácea. Guia 117 da 21il DP,
de 16/05/1969.
por quanto tempo.
Nos ambientes fechados, o local onde jaz o corpo pode
representar uma proteção contra as perdas de calor, como
uma cama, ou facilitar a condução térmica como uma mesa
de necropsia metálica. A existência de refrigeração ou aque-
cimento do ambiente pode modificar o cálculo da hora da
morte se for desligado por algum tempo 8•
Resumindo, podemos afirmar que a determinação da
temperatura retal ajuda a avaliar a hora da morte quando
tomada nas primeiras 18 horas. Mas é preciso muita cautela
em face das numerosas causas de erro apontadas, principal-
mente o desconhecimento da temperatura do indivíduo ao
morrer e a variabilidade dos fatores ambientais. O mais pru-
dente é cotejar o cálculo feito a partir da temperatura com os
outros fenómenos cadavéricos e adotar uma margem grande
de segurança.

Figura 9.4. Área de livores hipostáticos na qual foi feita uma incisão
Livores Hipostáticos na pele. Notam-se pequenos pontos vermelhos e escuros que corres-
pondem a sangue que sai de pequenas veias. Ao contrário das equimo-
A pressão intravascular cai a zero tão logo se dá a parada ses, o sangue não infiltra a malha dos tecidos. Foto cedida gentilmente
da circulação sanguínea. Assim, a única força que continua pelo aluno David da turma de 1970 da Escola Médica do Rio de Janeiro
a atuar sobre o sangue é a de gravidade, atraindo-o para as da Universidade Gama Filho.
partes mais baixas do corpo, ou seja, aquelas que se situam
mais próximas do solo. A velocidade com que se produz o
deslocamento do sangue dentro dos vasos, após a morte, pela Tal coloração só não aparece nos pontos de apoio do corpo,
ação da força de gravidade, depende dos mesmos fatores que pelo fato de a compressão exercida sobre os capilares e vênu-
modificam o fluxo de qualquer líquido em um sistema de las locais bloquear o seu enchimento (Fig. 9.5 ).
vasos comunicantes. Desse modo, se o indivíduo morrer e ficar apoiado sobre
Os fatores mais importantes, aqui, são o diâmetro dos va- uma grade, por exemplo, o desenho da grade ficará impres-
sos e a viscosidade do sangue. O diâmetro dos vasos cutâneos so como faixas claras no território dos livores. É interessante
pode estar aumentado pela exposição ao calor, ocorrendo o notar que costumam ser muito mais fracos, ou mesmo ine-
contrário no frio. Quando os vasos sanguíneos estão dilata- xistentes, nas cicatrizes, em função da sua pouca vasculari-
dos e o sangue tem viscosidade diminuída, a migração para zação9. Com o passar do tempo, intensificam-se, e a pressão
as regiões em mais declive se faz mais rapidamente. do sangue vai aumentando dentro dos vasos até que alguns
Essa migração do sangue leva ao aparecimento de peque- capilares e vênulas são rompidos6• Isso leva ao aparecimen-
nas áreas circulares de tonalidade mais avermelhada, em zo- to de petéquias (minúsculos focos hemorrágicos) nas zonas
nas separadas, os livores de hipóstase, que vão aumentando e de maior intensidade dos livores. Segundo Di Maio8, apare-
confluindo até constituírem uma mancha extensa que ocupa cem nos membros inferiores dos enforcados após cerca de
toda a face do corpo voltada para o solo 2'4 '6 (Figs. 9.3 e 9.4). 2 a 4 horas de suspensão do corpo (Figs. 9.6A e 9.6B ). O
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 169

Figura 9.5. Intensos livores de hipóstase nas faces anterior e esquerda Figura 9.6A. Numerosas petéquias nas pernas de um suicida por
do corpo, notando-se faixa pálida que corresponde à pressão exercida enforcamento, que ficou várias horas pendurado antes de ser encon-
por este sobre o braço esquerdo, que estava entre ele e o solo. Caso do trado. São alterações pós-morte. Guia 19 da 1 ~ DP de 16/05/1969.
IMLAP não identificado.

legista precisa estar atento a essa possibilidade para não as


confundir com equimoses produzidas em vida. Podem ser
tão extensas a ponto de formarem sufusões hemorrágicas
(Fig. 7.24).
Se o corpo for mudado de posição depois da formação
dos livo res, a gravidade passa a atuar em outra direção e o
sangue se desloca para as regiões que se voltaram para a par-
te mais próxima do solo, desaparecendo gradualmente das
áreas onde se haviam formado primitiva mente. Diz-se que
ainda não estavam fixados. Uma manobra fácil de fazer para
saber se os livores já estão fixados, isto é, se não vão desapa-
recer com a mudança de decúbito do corpo, é exercer sobre
a m ancha pequena compressão digital, ou com qualquer
corpo rígido. Se a área comprimida clarear, ainda não houve Figura 9.68. Numerosas petéquias na área côncava da região plantar
fixação. Os autores têm dado explicação diversa para esse co- e intensa palidez nos pontos de apoio do pé. Caso de enforcamento
nhecido fenômeno. Outrora, a mais aceita era a coagulação incompleto em que os pés da vítima estavam apoiados no solo. Guia 54
intravascular do sangue, que alguns autores modernos ainda da 2~ DP, de 24/09/1998.
advogam 5•9 . Mas é sabido que os coágulos formados após a
mo rte são dissolvidos po r um sistema fibrinolítico, princi-
palmente nas mortes de evolução rápida, que constituem a desse pigmento refletem-se nos livores. Assim, nos casos de
maioria dos casos de interesse médico-legal. Alguns alegam intoxicação pelo m onóxido de carbono, assumem coloração
que a fixação decorre da impregnação dos tecid os pela he- vermelho-carmim por causa da formação da carboxiemo-
moglobina liberada das hem ácias pela hemólise que se ini- globina, que tem cor vermelho-cereja (Fig. 9.7). Marshall6
cia pouco antes da putrefação, ou com o início dela5•6•8• Nos refere que essa mudança de cor é nítida quando se atinge
corpos de afogados, a hemólise pode ser tão intensa a ponto concentração de 30% de carboxiemoglobina.
de simular extensas hemorragias na face profunda do cou- Nas intoxicações pelo cianeto e pelo fluoroacetato, há
ro cabeludo 8•9 . Há os que falam em passagem das hemácias bloqueio da respiração celular e do consumo de oxigênio, o
por rotura8 ou através das paredes vasculares para infiltrar que leva à manutenção de altos teores de oxiemoglobina no
os tecidos de modo difuso. Mais recentemente, foi proposto sangue, tornando os livores de cor vermelha mais intensa,
que a fixação dos livores ocorre por causa da passagem da mais viva9• Contudo, há quem afirme que essa cor resulta da
parte líquida do sangue (plasma) para os tecidos, deixando formação de cianoemoglobina6• Quando a morte resulta de
as hemácias muito aglomeradas dentro dos vasos, o que im- asfixia, seja qual for a causa, a proporção de hemoglobina
pediria seu deslocam ento para outras regiões 10 • reduzida é muito grande, e os livores assumem colo ração
Um dado de importância médico-legal é a cor dos livo- violácea-escura, mais ou m enos intensa, na dependência do
res, que pode variar de acordo com a causa da morte. Como teor de hemoglobina no sangue. Nas intoxicações por agen-
o que lhe confere a cor é a hemoglobina, alterações na cor tes oxidantes enérgicos, como os cloratos, nitratos, nitroben-
170 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

Valor Médico-legal dos Livores


Os livores hipostáticos são sinal tardio da realidade da
morte. Mas há referências a seu aparecimento um pouco
antes da morte nos casos de agonia6•8 o u de coma pro longa-
dos2. Há autores que atribuem o fenômeno à ocorrência de
colapso circulatório periférico anterior à mo rte, e outros, à
dificuldade de reto rno venoso associado à flacidez muscular
dos m embros paralisados2. Pela cor dos livores, é possível ter
uma ideia da causa da morte em alguns casos. A mudança de
posição de um corpo pode ser denunciada pela fixação dos
livores, pois eles não desaparecem onde estiverem fixados e
formam -se em outras áreas que tenham sido colocad as em
Figura 9.7. Livores de tonalidade vermelho-carmim em um caso de posição m ais próxima do solo. Assim, o achado de um indi-
morte por intoxicação por monóxido de carbono. Caso do autor, década víduo debruçado sobre uma mesa, com um revólver na mão,
de 1960, não identificado. uma ferida de entrada na região temporal do mesmo lado
e livores hipostáticos nas regiões d orsais indica seguramen-
te que ele não morreu naquela posição. Deve-se pesquisar a
zeno e anilinas, forma-se m etemoglobina, que é de cor muito possibilidade de tentativa de dissimulação de ho micídio.
escura, o que torna os livores pardo-avermelhad os 2·5•6 • Cadá- Q uanto à cronologia da morte, seu valor é relativo. Como
veres mantidos em ambientes muito frios, como em geladei- é um fenô meno progressivo, que depende da atuação de uma
r as, costumam mudar a cor dos livores para uma tonalidade força constante, sua evolução é previsível. Contudo, depende
vermelha mais clara 6 • O m esmo ocorre em corpos expostos de avaliação subjetiva visual, o que pode explicar as discrepân-
ao ar livre em regiões de inverno rigoroso. Alguns autores cias encontradas entre os autores clássicos e modernos. Quan-
explicam-no pela retenção de oxigénio nos tecidos8, pela fal- do um autor se refere a início dos livores, pode estar pensando
ta de dissociação da Hb 2ou pela maior pressão de difusão do nas pequenas manchas iniciais ou nas manchas maiores e re -
oxigénio da atmosfera através da pele. sultantes da confluência daquelas mais elementares.
Não há qualquer dificuldade no reconhecimento dos Do mesm o modo, a fixação depende de um critério sub-
livores quando já estão difundidos. Mas, no início de sua jetivo, como, por exemplo, o tempo esperado para que desa-
fo rmação, pode ser difícil distingui-los de focos de hipere- pareça de uma face do corpo par a se fo rmar de novo na face
mia. Nas pessoas que morrem por anemia aguda, o u que oposta. Além do mais, o ra os livores mudam de posição com -
apresentavam intensa anemia no curso de outra doença, os pletamente, or a parcialmente, ou até não se fo rmam na nova
livores são muito pálidos, quase imperceptíveis, e dem oram posição de declive. Suzutani e cols., citados por Knight 11 ,
estudaram 430 corpos comprimindo a área de livores com o
mais a se evidenciar. Nos indivíduos de raça negra, torna-se
lado de uma pinça, a intervalos de tempo conhecidos, para
impossível reconhecê-los, mas, faze ndo-se cortes na pele, é
ver se já estavam fixados. Acharam que com 6 a 12 horas a
possível ver o sa ngue brotar dos pequenos vasos das áreas
fixação ocorrera em 30% dos casos; com 12 a 24 horas, em
dos livores.
50%; e entre 1 e 3 dias, em 70%. Knight" afirma que o que
Os vasos viscerais também sofrem a ação da força de gra-
podem os esclarecer quanto à hor a da morte pelos livores é
vidade. Isso produz a hipóstase visceral. A redistribuição do
que se iniciam de 30 minutos a 4 horas, atingem o máximo
sangue nas vísceras modifica sua coloração conforme a po-
com cerca de 12 horas e persistem até à putrefação 11 •
sição do cadáver e pode levar os peritos menos experientes a
De acordo com os mecanismos descritos, não nos deve
erros de interpretação 11 • Assim, não é raro que necropsistas
causar surpresa que as condições que antecipam a fo rmação
interpretem como infa rto do miocárdio a coloração verme-
e difusão dos livores sejam: temperatura ambiente alta, mor-
lha mais escura da metade posterior d o septo interventricu-
te rápida sem perda sanguín ea, asfixias e certas intoxicações;
lar e porção adj acente do ventrículo esquerdo. As porções
e as que tendem a retardá-los: frio, anemias, morte lenta,
posteriores dos lobos pulmonares costumam ficar mais es-
diarreias, vômitos e outras causas de desidratação.
curas e congestas do que as anteriores quando o corpo fica
muito tempo em decúbito dorsal. Mas a distribuição dessa
congestão, que não obedece a um padrão de segmentação
d os brônquios nem d os vasos, auxilia a confi rmar que se
• FENÔMENOS CADAVÉRICOS DE ORDEM
trata de hipóstase. No couro cabeludo, a parte tomada pelos QUÍMICA
livores m ostra-se muito congesta e sangra bastante quando Autólise
dos cortes feitos durante a necropsia. A m esm a congestão
pode ser evidenciada nos vasos da pia-aracnoide, que envol- É a destruição das células pela ação descontrolada das
ve a metade posterior do cérebro, o cerebelo e a medula, e suas próprias enzimas. Assim que ocorre a parada circulató-
nos seios venosos da dura-máter. ria, cessa o aporte de oxigénio aos tecidos. Por isso, as reações
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 171

das vísceras ocas, nos vasos sanguíneos e em outras estrutu-


ras sólidas do organismo.
É preciso ter uma ideia de como se dá a contração de
qualquer fibra muscular para tentar compreender o fenó-
meno da rigidez. Tomaremos como exemplo uma fibra de
músculo estriado esquelético. Os músculos esqueléticos são
formados por feixes de fibras musculares, os fascículos, sepa-
rados por septos de tecido conjuntivo. Cada fibra muscular é
formada por 1.000 a 2.000 fibrilas (Fig. 9.9).
Cada fibrila muscular é formada por milhares de miofila-
mentos. Existem dois tipos de miofilamentos: um fino, forma-
do pela actina, e um espesso, pela miosina. Esses miofilamen-
tos estão arranjados paralelamente ao longo das miofibrilas,
mas de modo entremeado, como os pelos de duas escovas que
Figura 9.8. Corte de pâncreas em que os ácinos são de cor variada, fizéssemos se interpenetrar, conforme a Figura 9.10.
alguns com separação individual de suas células, outros totalmente O comprimento entre duas linhas Z corresponde a uma
autolisados. Caso 5556 do Serviço de Patologia do IMLAP. unidade funcional da fibrila e, como consequência, da fibra
muscular - o sarcômero. A contração faz com que haja uma
aproximação das linhas Z entre si porque elas estão presas
químicas dependentes de um bom nível de oxigenação dão aos filamentos de actina, e esses são puxados pela miosina,
lugar a outras de natureza anaeróbica. Por exemplo, a quei- no momento da contração, na direção do centro do sarcô-
ma da glicose para na fase de produção de ácido lático, sem mero. Isso ocorre porque a molécula da miosina tem uma
chegar a produzir gás carbónico e água. Esse desvio meta- cadeia proteica central pesada, à qual se prendem cadeias la-
bólico leva a um acúmulo de radicais ácidos, com baixa do terais mais leves, com a propriedade de se combinar com a
pH do sangue e liberação das enzimas até então contidas nos molécula do ATP (adenosin-triphosfate). Depois dessa com-
lisossomas. As células afetadas mais rapidamente pela au- binação, as cadeias leves formam um complexo com a actina
tólise são aquelas mais ricas em enzimas proteolíticas, pelo - complexo actina-miosina. Q uando se forma esse complexo,
simples fato de que essas enzimas passam a destruir as pro- realiza-se um movimento de pivô no sentido do centro do
teínas constituintes das estruturas celulares. Assim, as células sarcômero, como se fosse uma remada, puxando a actina.
da mucosa gástrica, da mucosa intestinal e do pân creas são as Após esse deslocamento, há degradação do ATP por uma en-
que primeiro sofrem a destruição autolítica. Os neurónios, zima, a ATPase, o que fornece energia para liberar a actina.
embora mais carentes de oxigênio e, por isso, mais vulnerá- As fibrilas podem encurtar seu comprimento em até 50%,
veis a uma parada cardíaca, não sofrem autólise tão rápida uma vez que o deslocamento de cada linha Z corresponde
porque não contêm lisossomas cheios de enzimas. É interes- a 1/4 do comprimento do sarcômero (Fig. 9.10). Como há
sante, nesse aspecto, saber que a autólise do tecido nervoso cerca de 4.000 sarcômeros por centímetro de fibrila, a ampli-
pode ser diminuída se, antes da parada circulatória, houver tude do movimento muscular é bem grande 12•
um período prolongado de má oxigenação. Durante esse pe- Logo em seguida, o ATP tem que ser regenerado. A ener-
ríodo, a quantidade de enzimas é reduzida, sobrando menos gia necessária para a renovação do ATP provém da queima
delas para efetuar a autólise. da glicose, ou da fosfocreatina. Mas a queima da glicose pode
As modificações histológicas de cada tecido pela autólise ser por via aeróbica, na presença de oxigênio, com produção
fogem ao escopo desta obra. Mas é preciso que se diga que de co2e água; ou por via anaeróbica, com produção de áci-
costumam atrapalhar muito o exame histopatológico, por do lático. A via aeróbica é lenta e pode manter a contração
vezes impedindo que se chegue a um diagnóstico (Fig. 9.8). muscular por muito tempo, desde que haja oxigênio dispo-
nível, mas a outra via esgota-se rapidamente, em menos de
Rigidez Muscular 1 minuto8• Com a renovação do ATP, o ciclo de formação do
complexo actina-miosina pode-se repetir para aumentar ou
É facilmente reconhecida, tanto por médicos como por manter a contração muscular.
leigos, já que leva a um aumento da consistência muscular O que determina o comportamento metabólico da fibri-
que torna os segmentos do corpo de difícil manuseio. Quem la, isto é, se vai usar a via aeróbica ou não, é o tipo de mio-
já tentou vestir um ente querido morto, já em rigidez, sabe sina que constitui a maioria dos seus filamentos. Se a cadeia
a que nos referimos. Mas a compreensão dos mecanismos central da miosina for do tipo 1, a fibrila será aeróbica; se for
bioquímicos que levam à sua instalação ainda não é com- do tipo 2, será anaeróbica 13• Assim, há dois tipos de fibras
pleta. Sabe-se que ocorre tanto nos músculos esqueléticos musculares, na dependência do tipo de fibrila que predo-
como no cardíaco e na musculatura lisa. Esta última é for- mine: tipo 1 - que refaz o ATP por via aeróbica e, por isso,
mada por células musculares pequenas, providas de apenas tem resposta lenta aos estímulos, sendo mais avermelhada
um núcleo, que se associam em feixes encontrados na parede por possuir mais mioglobina; e tipo 2, que depende da via
172 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

Corte transversal Fibra muscular com


de músculo centenas de fibrilas
Sarcômero

_,
Linha Z ;;.. -..... Linha Z

\
y
/ '----.y, , - - - - /
Disco 1 Disco A Disco 1
Corte longitudinal de fibrila muscular

Figura 9.9. Esquema de corte transversal de um músculo. É formado por vários fascículos de fibras musculares, cada um revestido por tecido
conjuntivo próprio. Cada fascículo é constituído por numerosas fibras musculares. Estas, por sua vez, constam de centenas de miofibrilas que correm
ao longo do seu citoplasma. Quando a fibrila muscular é vista em corte longitudinal, sob grande aumento, revela estriações transversais de cores
diferentes, umas claras (disco 1) e outras escuras (disco A). As linhas Z têm densidade maior e delimitam um sarcômero, unidade funcional da fibrila
muscular. Como as fibrilas são paralelas e alinhadas, as fibras musculares também são estriadas.

anaeróbica para restaurar o ATP, contrai-se rapidamente e é A instalação da rigidez dependerá do número total de
mais clara. Cada músculo tem os do is tipos de fibra s mistu- fibras musculares e da predominância d e fibras rápidas ou
radas de m odo irregular, na dependência do tipo d e inerva- lentas. Quanto maio r o número d e fibras, e consequente-
ção que possuam. O tipo de neurónio que a estimula é que mente a massa muscular, maior será o tempo para que se
determina a velocidade de reação da fibra muscular'3•14 • perceba a rigidez, embora ela já tenha começado a se instalar
A rigidez nada m ais é do que uma variante da contração em várias fibras. A clássica regra de Nysten de que a rigidez
muscular provocada pela escassez de oxigênio nos tecidos. evolui de forma descendente, ou seja, principia na mandí-
Resulta da diminuição da renovação do ATP após a morte bula e nuca e atinge, sucessivamente, membros superiores e
porque ela passa a depender apenas da via anaeróbica, com inferiores, poder ia ser assim explicada.
aumento do teor d e ácido lático e consequente acidificação O fato de as fibras não entrarem em rigidez a um só tem-
(diminuição do pH) do tecido muscular. Assim, os comple- po tem o utra consequência. Durante o perío do inicial de sua
xos actina-miosina não se desfazem. Isso torna o músculo instalação, quando ainda é incompleta, voltará a se instalar
enrijecido na posição em que estava no mom ento da m orte
se for d esfeita, embora com intensidade m enor. Depois de
(Fig. 9.10). É interessante salientar que não ocorre encurta-
atingido seu máximo de intensidade, se desfeita, não se refaz.
mento da fibra durante a rigidez, pelo menos de modo per-
ceptível6. A instalação da rigidez não fará disparar uma arma
Intensidade da Rigidez
d e fogo colocada na mão de pessoa recentemente morta. Ces-
sa o deslizamento dos miofilamentos de actina e miosina, o Varia de acordo com condições rela cionadas ao cadáver
que torna a fibra muscular muito resistente à distensão. É isso e à causa da mo rte. Costuma ser pouco intensa, por vezes
que dificulta o desfazimento manual da rigidez cadavérica. imperceptível, em recém-nascidos, crianças pequenas e
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 173

Qualquer condição que determin e redução do oxigênio


Linha Z Actina Linha Z
no tecido muscular (anemias, asfixias, intoxicação por m o-
nóxido de carbono), dificuldade de sua utilização (intoxica-
ção por cianetos) ou excesso de consumo (exercício muscu-
lar intenso, convulsões, hipertermia) reduz a concentração
do ATP muscular, dificultando a separação do complexo
actina-miosina, responsável pela rigidez. Animais sacrifica-

Disco 1 •
Disco A Disco 1
dos por choque insulínico apresentam rigidez muito preco-
ce e intensa6. Trabalhos experimentais demonstraram que
quanto menor o teor de ATP, maior a intensidade da rigidez
Figura 9.10. Esquema de um conjunto de miofilamentos de actina e muscular 12 . Mesmo sem conhecerem a teoria, as donas de
miosina de uma fibrila muscular relaxada. Na contração, as linhas Z são
casa sabem que não se deve cansar uma galinha pouco antes
puxadas na direção do centro do disco A pelas cadeias laterais da
de matá- la, porque sua carne fica dura.
miosina, que aderem aos filamentos de actina e executam um movi-
mento de remada, deslocando-os para o centro. OdiscoA fica do mesmo
tamanho, mas os discos 1 ficam muito mais estreitos. Evolução da Rigidez Muscular
A rigidez obedece a uma sequência de instalação, ge-
neralização, m áxima intensidade e desfazimento. A cro no-
indivíduos idosos o u depauperados por doença consump- logia dessas etapas será analisada mais adiante. Na fase de
tiva4·6·8. Nas pessoas robustas, bem-nutridas, pode atingir generalização, podem ocorrer variações na sucessão dos
grau tão intenso que só pode ser desfeita m anualmente, nos segm entos atingidos, fugindo à lei de Nysten, conforme já
m embros inferio res, à custa de muito esforço. Quando com - fo ra descrito por Niderkorn, segundo Thoinot4. Em certas
pleta, permite que um corpo seja levantado por fo rça apli- situações, a musculatura de um segm ento corporal po de
cada apenas na cabeça, com apoio dos pés no solo 6. Como sofrer influências ca pazes de favo recer a instalação anteci-
uma regra geral, já diziam antigos autores do início do sécu- pada da rigidez. A passagem da corrente elétrica em um
lo XX que, nos indivíduos sadios, vítimas de m orte súbita, membro faz com que a rigidez nele se instale antes d os de-
ela tende a se instalar m ais tarde, sendo for te e durado ura4 m ais, fato que já havia sido relatado por outros autores na
(Fig. 9.11 ). literatura 12. Po r outro lado, a secção do nervo ciático de um
A causa da mo rte influencia tanto na intensidade quanto dos memb ros posteriores de animais de experimentação
na duração da rigidez. Assim, nos casos de m orte rápida, na- retarda o aparecimento da sua rigidez12. A maioria dos au-
tural o u violenta, demora um pouco mais para se instalar e tores afirma que o frio ambiental retarda o aparecimento e
atingir o máximo de intensidade, persistindo por m ais tem- prolonga a duração da rigidez e que ocorre o contrário na
po. Mas nas asfixias e anemias agudas, tende a aparecer m ais vigência de tem peraturas elevadas 2·6·8·12 • Isso já foi verifica-
cedo e a durar menos. O fator que determina esta diferença d o experimentalmente pelo estudo da musculatura da pata
de comportamento é o teor de ATP muscular no m om ento posterior de coelhos 12.
da morte.
Cronologia
"A rigidez muscular é o evento post mortem mais conhe-
cido, porém o m ais incerto e menos confiável:' Essa frase de
Keith Simpson tra duz toda a cautela que deve ser exercida
por quem quiser ava liar a hora da morte pela rigidez muscu-
lar12. É a opinião da m aioria dos autores m odernos 2·12.
Mallach, segundo Krom pecher 12 , fez uma revisão da
literatura abrangendo os anos de 18 11 a 1960 quanto à
cro nologia da rigidez muscular. Embora se reconheça que
há muita subjetividade na interpretação do qu e se com-
preenda como início, m áxima intensidade e desfazimento,
e não se possa com parar de m od o estatístico os valo res d os
diversos auto res, sua tabela m erece ser reproduzida (Ta-
bela 9.1 ).
Confo rm e é possível notar, o desvio-padrão dos valo-
res pesquisados na literatura por Mallach foi muito grande,
Figura 9.11. Corpo em intensa rigidez muscular que permite apoiá-lo o que demonstra a insegurança da rigidez como critério
pelas suas extremidades, sem que haja flexão das articulações. Foto único para calcular a ho ra da m orte. Se quisermos usá-la
cedida gentilmente pelo Dr. Carlos Henrique Durão, legista do Instituto em um caso concreto, o mais prudente é nos valermos dos
Nacional de Medicina Legal de Portugal. valores limites.
174 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

Tabela 9.1. Cronologia da rigidez muscular (segundo Mallach)


Horas ap6s a Morta
Limitas da Confiança (95,5%) Limitas das Varlaçlas
Média Nllmaro da
Fasa da Rigidez (Desvio) Inferior Superior Inferior Superior Publlcaçlas
Início 3 (2) 7 < Yi 7 26
Pode ser restabelecida até 5 2 8
Completa 8 (1) 6 10 2 20 28
Duração 57 (4) 29 85 24 96 27
Desaparece 76 (32) 12 140 24 192 27

Espasmo Cadavérico
É um fenômeno muito discutido e raro. Significa a ma-
nutenção da última atitude tomada pelo indivíduo antes de
morrer, fixada até à instalação da rigidez muscular. É como
se os músculos pudessem se manter contraídos após a mo rte
sem a fase de relaxa mento que antecede a rigidez. Thoinot4
refere que ocorre mais frequentemente nos campos de bata-
lha e faz citações de o utros auto res que o precederam, como
no caso de um soldado sulista da Guerra Civil americana,
que foi encontrado em atitude que lembrava a tentativa de
montar seu cavalo para fugir da carga inimiga, ainda man-
tendo o fuzil na mão - fora atingido por duas balas, uma na
cabeça e outra no peito. Outros relatos descrevem soldados
em atitude de prece. Ou, ainda, como se estivessem levando
uma xícara de chá à boca, nesse caso um indivíduo com o
Figura 9.12. Intensa hiperextensão plantar dos pés de uma mulher
crânio esfacelado por uma granada. Etienne Martin, citado
que morreu por ação contundente e instrumento perfurocortante. Guia
por Tho inot4, relatou o caso de um soldado que foi ferido 111 da 29ª DP, de 11 /10/01.
mortalmente nas ruas de Paris por um tiro na cabeça e caiu
em atitude de defesa, ficando imediatamente tão rígido que
seu corpo podia ser rolado para um e outro lado sem des- apresentava nessa atitude. A bem da verdade, nem sempre
fazer a postura. São descritos casos em que a fisio nomia do acertávam os. Como essas condições patológicas cursam
cadáver demo nstrava expressão emotiva de pavor, de raiva, com convulsões, que esticam fortemente os membros, ad -
de alegria 4 • São tantas as histórias, e descritas por autores tão mitimos que tal atitude do corpo ocorra por espasmo cada -
conceituados, que é difícil descartá-las como pura fantasia vérico (Fig. 9. 12) .
de tempos dificeis.
Autores modernos reconhecem a sua existência 2·6,8•9 •
Marshall6 acha que o encontro de folhas e pequenos galhos
Putrefação
fo rtemente presos na mão cerrada de um afogado indica que É a decomposição do corpo pela ação de bactérias sapró-
o indivíduo estava vivo ao cair na água e que sofreu espasmo fita s que o invadem passado algum tempo da morte. Começa
cadavérico. Po r vezes, vítimas de homicídio são encontradas a partir das espécies que se acham normalmente no intestino
com a mão crispada segurando cabelos do agressor9• Krom- grosso, como o Clostridium welchii6 , principalmente no ceco.
pecher12 refere que procurou conversar com colegas médicos Podemos dizer que, do ponto de vista biológico, ela se inicia
que atuaram na Segunda Guerra Mundial e não conseguiu assim que o indivíduo morre, pois o meio interno vai ser
colher um único relato de espasmo cadavérico. modificado pela falta de oxigênio e pela autólise dos tecidos,
Em nossa experiência de vários anos no necrotério do o que favorece a pro liferação da flora saprófita. As enzimas
IMLAP, pudemos observar que os corpos de indivíduos bacterianas decompõem protídios, lipídios e glicídios, com
com graves lesões cerebrais ou meningite tinham, frequen- produção de grande quantidade de gases, entre os quais me-
temente, os pés muito esticados na direção da região plan- tano, gás sulfídrico, gás carbô nico, amônia e mercaptanos.
tar por contratura da musculatura da panturrilha. Tal cor- Vários desses gases são inflam áveis, o que pode ser demons-
relação era tão frequente que passamos a iniciar a necropsia trado furando-se a bolsa escrotal de um cadáver podre e
pelo exame da cavidade craniana sempre que o cadáver se aproximando-se um fósforo aceso. O odor nauseabundo que
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 175

exala dos corpos em decomposição resulta desses gases e de A velocidade de evolução da putrefação varia de acordo
outros produtos voláteis derivados das moléculas proteicas. com o meio em que se acha o cadáver: ao ar livre, enterrado
Estas são decompostas em aminoácidos elementares. O trip- no solo ou sob uma coleção líquida. Há quem diga que 1
tofano, por exemplo, sob a ação bacteriana, transforma-se semana no ar equivale a 2 na água e a 8 no solo 9• Contudo,
em indol e escatol, de odor muito desagradável. acreditamos que são muitos os fatores que podem modifi-
Diversos fatores relacionados com o indivíduo e com o car tal influência do meio. A ação da fauna cadavérica é uma
meio ambiente interferem na instalação e evolução da pu- das mais importantes nesse contexto. No caso de submersão,
trefação porque ela é um processo bioquímico causado pela torna-se muito importante o grau de poluição bacteriana da
ação de enzimas bacterianas. É imprescindível que a tem- água pela ação de esgotos. Em águas assim contaminadas, a
peratura esteja numa faixa ideal entre 30° e 40°C, como é putrefação pode ser muito antecipada.
comum nos países tropicais. No Brasil, com variações de Fatores individuais podem acelerar muito a sua instala-
temperatura muito significativas de uma região para outra ção e evolução. Qualquer condição que cause hipertermia
e num mesmo local, tanto ao longo do ano como de um dia antes da morte, ou que dificulte o resfriamento do corpo,
para o outro, torna-se muito difícil estabelecer prazos para as como o uso de agasalhos, pode precipitá-la. Na década de
sucessivas fases da putrefação. No Rio de Janeiro, durante o 1970, examinamos o corpo de uma mulher e de seu filho,
verão, já vimos putrefação inicial em menos de 24 horas após mortos na mesma ocasião, e notamos que o rapaz, que veio
a morte. Já nos meses de inverno, com temperatura ambiente envolto em um cobertor, já estava em início de putrefação,
média em torno de 18 a 24°C, o ritmo tende a ser semelhante enquanto a mãe estava em rigidez generalizada, sem sinais de
ao descrito nos tratados de autores europeus e norte-ameri- decomposição. Perper9 relata caso muito parecido, ocorrido
canos. Nesse período, a fase inicial é observada em torno de com um casal morto pelo próprio filho, doente mental.
36 horas após a morte. Indivíduos gordos, ou edemaciados, apodrecem mais ra-
A umidade alta do ar também auxilia a instalação da pu- pidamente do que os magros e as crianças8• Quando a morte
trefação, enquanto nos ambientes quentes e secos, principal- é causada por sepse, a instalação e a evolução da putrefação
mente em locais bem ventilados, a putrefação pode começar, são muito mais rápidas. Se a bactéria for do tipo anaeróbio,
mas a rápida desidratação do cadáver modifica sua marcha a putrefação é extremamente rápida e evolui a olhos vistos9 .
pela mumificação do corpo. É interessante salientar que Tivemos ocasião de necropsiar uma mulher de meia-idade
pode haver diferenças entre o grau de putrefação de distintos que deu entrada no Serviço de Emergência do Hospital Uni-
segmentos de um mesmo corpo em função da quantidade versitário Clementino Fraga Filho, na década de 1980, que se
de líquido. Já observamos um caso em que o membro infe- queixava de dor abdominal e em cuja região glútea foi aplica-
rior esquerdo apresentava putrefação mais avançada que o da uma injeção analgésica. Em poucas horas, instalou-se uma
direito por ter ficado pendente e com maior quantidade de infecção local de disseminação rápida e produção de enfise-
sangue pela ação da gravidade (Fig. 9.13). ma. Foi ao óbito ao amanhecer. No momento da realização
da necropsia, cerca das 9 horas da manhã, já estava em estado
avançado de enfisema de putrefação. O exame bacteriológico
do fígado demonstrou infecção por Clostridium perfringens.
Para fins didáticos, podemos dividir a putrefação em
quatro fases ou períodos: coloração, enfisema, coliquação e
esqueletização.

Fase de Coloração
Começa com a chamada mancha verde abdominal, que
se forma primeiro na fossa ilíaca direita por causa da proxi-
midade do ceco com a pele. O gás sulfídrico produzido pelas
bactérias difunde-se pelos tecidos e combina-se com a he-
moglobina, formando a sulfoemoglobina 15 ou sulfometemo-
globina3, que tem cor verde (Fig. 9.14).
Há quem afirme que a cor verde depende de prévia trans-
formação da hemoglobina em biliverdina, que seria modifi-
cada pela ação do gás sulfídrico9 .Aparece em cerca de 18 a 24
horas após a morte, nos meses do nosso verão, e pode só apa-
recer depois de 36 a 48 horas em nosso inverno, desde que o
Figura 9.13. O membro inferior esquerdo está em estado de putre- corpo não fique sob a ação direta do sol nem esteja agasalha-
fação mais avançado do que o direito, caracterizado por coloração mais do. Com o passar do tempo, a cor verde espalha-se por todo
escura e numerosas bolhas de conteúdo pardo escuro. Guia 25 da 25ª o abdómen, tórax, cabeça e membros. A cor da cabeça pode
DP, de 30/03/99. ficar tão escura que faz nítido contraste com o resto do corpo
176 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

Figura 9.16. Período gasoso da putrefação.Além da coloração escura


da cabeça, destaca-se intensa acentuação do desenho venoso (circula-
ção póstuma de Brouardel).
Figura 9.14. Grande mancha esverdeada que ocupa a fossa ilíaca
direita. Foto cedida gentilmente pela Dra. Virgínia Rosa Rodrigues Dias,
do IMLAP.

Figura 9.17. Fígado visto por baixo. As áreas escuras correspondem


às relações com o cólon. Os gases produzidos no intestino grosso
impregnam as vísceras vizinhas. Guia 88 da 10ª DP, de 07/06/72.
Figura 9.15. Período gasoso da putrefação. As partes moles estão in-
sufladas pelos gases; a cabeça tem cor anegrada; os olhos estão pro-
so atravessam sua parede e, penetrando nas vísceras maciças,
trusos; as veias superficiais estão muito realçadas (circulação póstuma
de Brouardel).
conferem-lhes cor anegrada nos pontos de contato (Fig. 9.17).

Fase de Enfisema
nas pessoas de tez clara (Fig. 9.15). Nos recém-nascidos e nos Também é chamada de período gasoso. Resulta do au-
afogados, a mancha verde começa no tórax. mento progressivo e rápido da produção dos gases pela flora
Enquanto se difunde a mancha verde, vai ocorrendo in- saprófita, agora já disseminada por todos os tecidos. Mas,
tensa hemólise, que modifica a cor de vários tecidos, prin- para se notar o enfisema das partes moles (tecido subcutâ-
cipalmente a parede interna do coração e dos vasos sanguí- neo e músculos), é necessário que se passem 2 a 3 dias. O
neos e a mucosa da árvore traqueobrónquica, que assumem máximo de intensidade pode ser atingido antes de 1 sema-
coloração avermelhada escura. Nesse mesmo período, já há na, sempre na dependência da temperatura e umidade do
produção de gás suficiente para distender o abdómen e es- ambiente. A decomposição proteica é máxima durante esse
premer os grandes vasos e o coração, empurrando o sangue período, com grande desprendimento de compostos nitro-
para as veias superficiais, que se tornam mais visíveis e de cor genados de odor repulsivo e formação de substâncias seme-
pardo-esverdeada escura, desenhando uma rede. É a circula- lhantes a alcaloides, as ptomaínas. Os fenómenos observados
ção póstuma de Brouardel (Fig. 9.16). nesse período são causados principalmente pela força dos
Na cavidade abdominal, observa-se que o pigmento biliar gases nas grandes cavidades. O aumento da pressão abdo-
atravessa a parede da vesícula e se impregna nas vísceras vi- minal produz prolapso do útero e do reto e elevação do dia -
zinhas, tornando-as esverdeadas. Os gases do intestino gros- fragma (Fig. 9.18).
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 177

Figura 9.18. Prolapso uterino após a morte por aumento da pressão


abdominal à custa dos gases da putrefação. Caso do IMLAP não identi-
ficado, examinado pelo autor. Figura 9.19. Grande distensão da bolsa escrotal pelos gases da putre-
fação. Guia 177 da 24ª DP, de 11 /10/01.

As bases pulmonares são espremidas, havendo elimina-


ção de líquido pardo-avermelhado escuro pelas narinas e
boca. É formado por líquido intersticial, água resultante das
reações de decomposição e sangue que escapa de pequenos
vasos pulmonares, cujas paredes são destruídas tanto pela
ação das enzimas bacterianas como pela penetração passiva
de conteúdo gástrico nas vias respiratórias, em decorrência
da expressão do estômago. Pelo mesmo motivo, pode ha-
ver eliminação de fezes, urina ou esperma. Estando grávida
a mulher, pode o concepto ser expelido em um parto post
mortem. A bolsa escrotal aumenta muito de volume, assim
como há pseudoereção do pênis pela distensão dos corpos
cavernosos e esponjoso pelos gases (Fig. 9.19). O aumento
de volume do conteúdo orbitário faz a protrusão dos globos
oculares (Fig. 9.14). A língua aumenta e se projeta para fora
do limite das arcadas dentárias (Fig. 9.20).
Figura 9.20. Protrusão da língua, tumefação das partes moles e
A epiderme descola-se pela grande produção de líquidos
destacamento da epiderme em cadáver no período gasoso da putrefa-
que migram para a superfície e formam bolhas de tamanho ção. Caso do IMLAP, do primeiro semestre de 1969.
variado, por vezes grandes, de conteúdo pardo-avermelhado
escuro (Figs. 9.21 e 9.22). Ao contrário das flictenas de ori-
gem inflamatória, essas apresentam escasso teor proteico.
Com o passar dos dias, há destacamento total da epiderme e
perda dos fâneros (pelos, unhas e cabelos).
A pele das mãos sofre um processo de destacamento da
epiderme, imitando uma luva no caso de afogados, que pode
ser utilizada para registro da individual dactiloscópica. As
vísceras maciças sofrem um processo de amolecimento, e a
sua superfície de corte exibe numerosas cavidades de peque-
no porte, de modo semelhante a queijo suíço. Isso é muito
bem observado no fígado e, de modo menos intenso, nos
rins. O coração mostra-se amolecido e formado por mio-
cárdio pardo com alguma crepitação à palpação. Os pulmões
estão muito colapsados por causa da compressão e têm cor
parda muito escura ou cinza enegrecida. As cavidades pleu-
rais chegam a conter 200 mL de líquido pardo-escuro. O cé- Figura 9.21. Presença de numerosas bolhas de conteúdo pardo-
rebro fica reduzido a uma massa acinzentada, pegajosa, que avermelhado escuro, percebendo-se nível líquido em seu interior. Guia
se escoa da cavidade craniana assim que aberta. 19 da P DP, de 16/05/69.
178 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

Figura 9.22 . O rompimento das bolhas mostra a derme, que tem Figura 9.24. Esqueleto removido de sambaquis e localizado no Museu
cor bem mais clara porque se trata de homem de cor parda. Percebe- de Paranaguá. Foto feita pelo autor em 1969.
se, ainda, a circulação póstuma de Brouardel. Guia 118 da 16ª DP,
23/04/98.

Fauna Cadavérica
Fase de Coliquação Ainda no início do período de coloração, certas espécies
de moscas procuram o cadáver para depositar seus ovos,
É aquela em que se dá a deliquescência geral dos tecidos,
principalmente nas fendas palpebrais, narinas, boca, con-
com desaparecimento paulatino do enfisema e grandes per-
das líquidas. Inicia-se cerca de 3 semanas após a morte. Sua dutos auditivos e orifícios provocados por traumas (Figs.
9.25 e 9.26). As larvas penetram nestes orifícios em busca
duração é extremamente variável, conforme as condições
de alimento e crescem rapidamente. Como são muito nu-
ambientais. Nesse período, sucedem-se os animais que cons-
tituem os chamados trabalhadores da morte até a completa merosas, destroem prontamente as partes mo les e vísceras
do cadáver. Orifícios de projéteis de armas de fogo e feridas
destruição das partes moles e a esqueletização do corpo.
por instrumentos perfurocortantes podem ser rapidamente
Fase de Esqueletização descaracterizados9 •

É o resultado final do processo destrutivo do cadáver,


qualquer que seja o ambiente. Pelo que foi exposto ante-
riormente, pode-se concluir que o tempo necessário para a
esqueletização é extremamente variável conforme as condi-
ções climáticas e do ambiente - ar livre, solo ou água (Fig.
9.23 ). Conforme passam -se os anos, os ossos vão ficando
mais desidratados e alterados pelos processos tafonômicos
(Fig. 9.24).

Figura 9.23. Cadáver esqueletizado, removido da floresta da Tljuca Figura 9.25. Numerosas larvas de moscas em fase inicial de evolução
para o IMLAP. nas narinas e na boca do cadáver. Guia 76 da 32ª DP, ano de 1994.
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 179

Figura 9.27. Feto natimorto macerado. A pele tem cor róseo-parda


na derme desnuda. Os segmentos do corpo amoldam-se à mesa e a
face mostra-se deformada por disjunção parcial de seus ossos. A pla-
centa tem cor bem mais escura do que o normal. Caso não identificado,
Figura 9.26. Várias moscas verdes sobre a pele do antebraço de um examinado pelo autor no IMLAP.
cadáver em decomposição. Guia 177 da 24ª DP, de 11 /10/01.

ma o nome de maceração séptica. Mas a maceração que estu-


Não são apenas os dípteros (moscas) que afluem ao ca- daremos aqui é a que ocorre com o feto que morre dentro do
dáver. Outros insetos, como coleópteros (besouros), lepi- útero a partir do quinto mês e não é expelido. Os conceptos
dó pteros (mariposas e borboletas), ortópteros (baratas) e menos desenvolvidos costumam ser mumificados ou total-
himenópteros (formigas), também se servem dos corpos em mente reabsorvidos. Poucas horas após a morte, o feto reti-
decomposição. Também os predadores dos insetos e animais do já apresenta menor aderência da epiderme, que pode ser
carniceiros se aproximam para buscar alimento. Assim, o descolada pela pressão feita obliquamente com o dedo 16 • Per-
conceito de fauna cadavérica pode ser estendido para incluir manecendo no ambiente líquido da cavidade amniótica por
insetos, ácaros, aves e mamíferos que de algum modo se ser- mais 3 a 5 dias, a epiderme passa pela fo rmação de bolhas de
vem dos cadáveres. Num sentido mais estrito, Oscar Freire tamanho cada vez maior, confluentes, que, por fim, se rom-
considera fauna cadavérica os insetos e ácaros "que têm uma pem, vertem seu líquido avermelhado na cavidade amniótica
fase de sua vida ligada ao cadáver, ou que são necrófagos e deixam a derme à m ostra. Ao ser expulso, o feto apresenta
frequentes na idade adulta, produzindo alterações de certa coloração róseo-avermelhada universal, tem os cabelos des-
importância médico-legal nos corpos, ou que concorrem de tacados e o couro cabeludo muito frouxo, desliza ndo ampla-
modo eficaz para a sua destruição" 3. mente sobre os ossos da calota (Fig. 9.27). Esses mostram-se
Segundo Mégnin, citado por Fávero 3, o conhecimento do frouxos, por vezes soltos uns dos outros se a retenção durar
ciclo evolutivo desses animais pode ajudar muito na deter- m ais alguns dias.
minação aproximada da data da m orte. O achado de larvas A flacidez exagerada das partes mo les deforma a face. O
em fase inicial, já crescidas o u se transformando em pupas tronco, principalmente no abdômen, achata-se sobre a su-
permite fazer o cálculo, desde que se saiba em quanto tempo perfície da mesa como um saco plástico contendo água. Os
evoluem e em que fase da putrefação são atraídas pelo cadá- m embros revelam flacidez extrema, com tal mobilidade que
ver. A ideia de Mégnin de que esses animais chegavam em têm aspecto de polichinelo. O cordão umbilical, de aspecto
ho rdas sucessivas o levou a chamá-los de trabalhadores da suculento, tem coloração róseo-parda devido à infiltração
mo rte, propondo a existência de oito esquadrões. hemoglobínica. As cavidades pleurais e abdominal contêm
Oscar Freire, citado por Fávero3, aceita uma certa ordem m oderada quantidade de líquido r óseo-pardo semitranspa-
na chegada dos insetos e ácaros ao cadáver: moscas, besou- rente, e as vísceras evidenciam parênquima amolecido e de
ros, ácaros, baratas, formigas e mariposas. Contudo, mesmo cor igualmente alterada pela hemoglobina liberada pela he-
essa ordem pode apresentar variações. Por exemplo, é co- mólise. A velocidade dessas transformações varia bastante de
mum ver formigas consumindo a epiderme de corpos fres- um caso para outro, de modo que não é seguro utilizá-las
cos encontrados no mato. para determinar a data da m orte fetal4 •
O estudo dos artrópodos que têm importância na cro-
nologia da morte está detalhado no Capítulo 35 desta obra.
Saponificação

Maceração Alguns autores criticam o termo saponificação porque,


na realidade, são formados compostos mais semelhantes às
Alguns autores estendem o conceito de maceração aos ceras do que aos sabões6 • É um fenômeno raro, que produz
fenô menos putrefativos que ocorrem nos corpos submersos, material esbranquiçado, mo le e um pouco friável, de aspecto
modificados pelo excesso de umidade. Fávero 3 dá a essa for- céreo, que aparece nas partes moles gordurosas de um cadá-
180 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

ver quando certas condições ambientais estão presentes, cha-


m ado de adipocera. Tem cheiro rançoso adocicado, e sua cor
varia de matiz entre o amarelado, o róseo e o acinzentado.
Para que se fo rme, há necessidade de que se inicie a putrefa-
ção, po is as enzimas bacterianas, principalmente do gênero
Clostridium, têm que com eçar a hidrólise d as gorduras neu-
tras (triglicerídios) para que os ácidos graxos sejam libera-
d os6. Perper 9 cita trabalho recente em que foi demonstrada a
ação de bactérias desse gênero transformando o ácid o oleico
em hidroxiesteárico e oxiesteárico. Figura 9.28. Cadáver mumificado de menina de 8 anos que foi ne-
cropsiada e guardada em geladeira por meses. Os tecidos têm cor parda,
Sob temper atura ambiente abaixo de 2l ºC, esse fenó-
apesar de ser de raça branca. Caso Araceli, Vitória, ES.
meno não ocorre, ou é muito retardado, pois a putrefação
dem ora m ais para se instalar6·8. Locais de difícil acesso ao
ar atmosférico, com baixa oxigenação e calor úmido, como
ocorre em terrenos argilosos, são necessários à sua fo rmação.
Embora não percebida, a adipocera já começa a se fo rmar
após a primeira semana. Mas só a vem os quando o teor de
ácidos graxos atinge 70%, ao cabo de 3 meses. Os ácidos mais
importantes para sua formação são o palmítico e o esteárico.
A adipocera é insolúvel na água, solúvel no éter e, a quente,
no álcool. Como tem densidade menor do que a da água, fa-
cilita a flutuação do corpo d os afogados. Queima com cham a
amarelada e desprende odo r amoniacal6. Reage com o sulfato
de cobre diluído, produzindo uma cor azul-esverdeada (rea-
ção de Benda) 17•
Com o é fo rmada a partir das gorduras do corpo, é mui-
to mais frequente em indivíduos gordos. Pode ocorrer com
pessoas gr andes e bem nutridas, mesmo em túmulos sem Figura 9.29. Detalhe do pé do cadáver mostrado na figura anterior. A
grande umidade local, pois a quantidade de água do próprio pele tem aspecto de couro, consistência dura e está pregueada por
corpo prepar a o ambiente. Pode ser encontrada em recém - causa da desidratação do corpo.
nascidos, mas não aparece nos prematuros.
Por ser um produto de difícil degradação no processo da
putrefação, a formação da adipocera funcio na como fenó- Na década de 1970, participam os do exame do corpo de
m eno conservad or do cadáver. Além do m ais, a produção de uma menina de cerca de 8 anos que fo ra morta em outro es-
ácidos modifica o pH e inibe a ação das bactérias de putrefa- tado da Federação e que chegou mumificada ao IMLAP. Ti-
ção. As feições e as fo rmas do corpo podem ser preservadas nha sido examinada no local de o rigem, mas o envolvimento
por meses e anos a fio. Aí reside seu valo r médico-legal. Além de pessoas muito influentes levou as autoridades locais a co-
de permitir o reconhecimento do indivíduo após todo este locarem o corpo no frigorífico por algumas semanas, para a
tempo, mantendo a forma, favorece o exame de lesões por- realização de novos exames pela equipe do Rio de Janeiro 19
ventura existentes. No entanto, é mais comum que se note a (Figs. 9.28 e 9.29).
adipocer a apenas em alguns segmentos do corpo. A mumificação é muito mais comum em indivíduos ma-
gros, e m ais fácil de ocorrer em corpos de crianças, pela me-
Mumificação nor quantidade de água e maior superfície de evaporação. O
corpo mumificado tem seu peso e volume muito reduzidos. A
É um processo de conservação do cadáver que depende pele torna-se ondulada pela redução das partes m oles, endu-
de condições que facilitem uma evaporação rápida, de modo recida, com aspecto de couro, de coloração parda, e soa como
a sustar o processo de putrefação. Ocorre em ambientes de cartão ao toque. Os músculos e tendões transformam -se
temperatura elevada, secos e muito bem ventilados, como em fibras quebradiças. Po r vezes, acom ete apenas alguns
em solos arenosos de áreas com po uca chuva. Alguns locais segmentos do corpo, em geral os de menor diâmetro, como
ficaram conhecidos pela frequência com que se dava a mu- mãos e pés. Pode afetar os segmentos superiores de vítimas
mificação dos corpos. Em um deles, Tolosa, eram enterrados de enforcam ento cujo corpo fique suspenso por vários dias
frades fra nciscanos previamente expostos no campanário em local quente e seco.
das igrejas, onde sofriam intensa evaporação, dadas as con- A mumificação pode ocorrer como resultado de embal-
dições climáticas18• Entre nós, Euclides da Cunha encontrou sam amento, que é o tratamento do cadáver por m eio da subs-
corpos mumificad os no sertão nordestino, quando de sua tituição do sangue por injeção de mistura fixadora, geralmen-
expedição a Canudos. te à base de formol e álcool. Os corpos embalsamados têm o
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 181

processo de putrefação impedido pela ação antisséptica dos vasos sanguíneos, tecido conjuntivo e epitélio. Alguns autores
agentes fixadores e podem permanecer por muitos anos sem têm afirmado que há correlação entre o aumento da concen-
serem destruídos. Se ficarem em ambiente que permita a eva- tração do potássio no LCR e o tempo após a morte. Mas a
poração de sua água, fatalmente se transformarão em múmias. repetição do mesmo trabalho por outros autores chegou a re-
Como todo processo de conservação do cadáver, a mu- sultados discrepantes. Por ora, não é um método confiável2 1•
mificação favorece o patologista forense por preservar lesões
e, guardadas as devidas proporções, viabilizar a identificação
Dosagem do Potássio no Humor Vítreo
mesmo depo is de anos.
Não há dúvida de que a concentração do potássio no hu-
mor vítreo aumenta com o passar do tempo após a morte .
• EXAMES LABORATORIAIS Mas a correlação desse aumento com o tempo tem sido mui-
to criticada por vá rios autores, principalmente pela disper-
Vários autores, por meio de numerosos trabalhos, têm são dos resultados encontrados quando são avaliadas amos-
procurado estabelecer critérios precisos para avaliação da tras amplas. Foram identificados vários fatores que influem
ho ra da morte com base na dosagem de eletrólitos e substân- nos valores achados, tais como a duração do período agóni-
cias normalmente presentes nos líquidos orgânicos. O fun- co, a temperatura ambiente, a idade, a distribuição dos casos
damento dessas técnicas vem da mudança brusca do meta- no período post mortem e outros aspectos técnicos. Uma das
bolismo dos tecidos resultante da falta de oxigênio por causa m aio res dificuldades é a falta de um outro parâmetro bioquí-
da parada circulatória. Com a perda da sua fonte de energia, mico que possa informar se havia, no mo mento da morte,
as células sofrem desintegração das suas membranas e conse- grande distúrbio eletrolítico 22 •
quente perda de sua capacidade de selecionar ativamente as
substâncias e os eletrólitos que devem entrar ou sair da célu-
Excitação Muscular
la. Com isso, ela to rna-se passiva e permite a difusão desses
elementos de acordo com os seus gradientes de concentração Os músculos esqueléticos, se excitados, continuam a res-
intra e extracelular. A presunção de haver proporção entre ponder por contração durante algum tempo após a morte.
a intensidade dos desvios da concentração e o tempo levou A excitação tanto pode ser mecânica como por ação elétrica.
alguns autores a propor a dosagem dessas substâncias par a
avaliação da hora da morte. Excitação Mecânica
Outros têm procurado apoio na continuação de certos
A resposta muscular depende tanto da intensidade do
processos fisiológicos por algum tempo após a morte, du-
estímulo quanto do músculo excitado e do tempo transcor-
rante um período chamado de supravital, no qual o indiví-
rido d esde a morte. Assim, para poder haver comparação dos
duo morreu, mas ainda vivem alguns tecidos. Entre esses,
resultados obtidos por autores diferentes, é preciso que haja
destacam-se os dados relativos à excitabilidade muscular post
padronização do local e dos estímulos. A resposta se modifi-
mortem e à pesquisa da atividade de algumas enzimas em
ca com o passar do tempo23 •
células de metabolismo muito ativo, como os hepatócitos e
Os autores descrevem três fases de acordo com o tipo de
as fibras musculares cardíacas.
resposta. Logo após a morte, e até 2 horas e m eia, nota-se
uma contração que envolve todo o músculo, conhecida
Bioquímica do Sangue como fenómeno de Zsako. Conforme se avança no tempo,
passa-se a observar uma contração localizada significativa,
Uma das melhores revisões da literatura foi realizada
que produz elevação da massa muscular no local da percus-
por Coe20• Nokes e Madea2 1 analisaram os dados referentes
são, que se dispersa mais lentamente e desaparece em menos
a glicose, ácido lático, ureia, creatinina, amónia, enzimas e
de 1 segundo. Pode ser evocada no período de 4 a 5 horas
eletrólitos. De todos os tópicos abordados, achamos mais in-
após a morte. Na terceira fase, a contração localizada é fraca,
teressante um trabalho realizado com ratos, em que o autor
mas persiste por várias horas. Pode ser obtida no período de
encontrou forte correlação do tempo de morte entre 6 e 96
8 a 12 horas após a morte. Parece não haver interferência da
ho ras com o número que expressa a relação entre as concen-
temperatura ambiente no tipo de resposta, pelo menos nos
trações plasmáticas de sódio e potássio. Mas não aplicou o climas temperados23 •
método a cadáveres humanos. A vantagem dessa pesquisa é
que, por ser um dado relativo, independe dos valores abso- Excitação por Ação Elétrica
lutos do sódio e do potássio vigentes no mom ento da morte.
A capacidade dos músculos esqueléticos de um cadá-
ver de responderem a estímulos elétricos por contração já
Bioquímica do Líquido Cefalorraquidiano (LCR)
era conhecida dos fisiologistas do início do século XIX. A
As modificações da concentração de eletrólitos no LCR princípio, era pesquisada com a intenção de evitar inuma-
decorrem de alterações anóxicas das células do plexo coroide, ções precipitadas. Mais tarde, passou a ser pesquisada com
estrutura respo nsável pela formação do liquor, formada por a finalidade de determinação da hora da morte. De modo
182 • CAPITULO 9 Cronotanatognose

semelhante ao que ocorre com a excitação mecânica, para • CRONOTANATOGNOSE


que se possa comparar os resultados, é necessário que o
tipo de estímulo e a avaliação da resposta sejam padroni- A avaliação aproximada da hora e data da mo rte, como
zad os. Madea24 , um dos m aiores estudiosos do assunto na referimos no início deste capítulo, é de fundamental impor-
atualidade, idealizou um aparelho que aplica uma corrente tância na elucidação da m aioria dos homicídios. Mas, ape-
constante de 30 mA, durante 10 ms, com uma frequência sar de todos os elementos técnicos apresentados aqui como
de 50 por segundo. Esse dispositivo pode ser levado para os fenôm enos cadavéricos, ainda não foi possível se chegar à
locais de morte suspeita por ser leve e de fácil transporte. acuidade pretendida e desejada pelas autoridades. O uso de
Os eletrodos em fo rma de agulha devem ser introduzidos mais de um método simultaneamente tem a vantagem de es-
no tecido subcutâneo da metade nasal da pálpebra su perio r, treitar os limites superior e inferior do cálculo aproximado
afastad os entre si de 15 a 20 mm. A resposta é graduada de da hora da morte, desde que sejam tomados de cada método,
acordo com a extensão da contração realizada pelos múscu- não a média, mas os seus limites de confiança com 95% de
los da face. Alguns a dividem em seis, outros em quatro, ou probabilidade (avaliação correta de 95 em 100 casos). Por
m esmo em três graus. Quanto m ais detalhada a descrição exemplo, a associação da temperatura retal com o m étodo
desses gra us, melhor a avaliação do tempo após a morte, de excitação elétrica dos músculos da face e a reação pupi-
pois há uma redução da intensidade da resposta conforme lar a agentes fa rmacológicos pode diminuir a faixa de tempo
passa o tempo. Madea 24 divide a extensão das respostas em calculada para a morte, desde que sejam levadas em conside-
seis graus confo rme os grupos musculares que respondam ração as limitações de cada método e as suas ca usas de erro.
por contração. Quanto mais extensa a onda de contração, É impró prio afirmar que tal ou qual m étodo é melhor
m eno r o tempo após a m orte. ou pior que outro. Conforme as circunstâncias particulares
de cada caso com o, por exemplo, o tempo aproximado após
Estimulação Química da Íris a m orte em que o corpo foi encontrado, os peritos escolhe-
rão o processo mais indicado. Não é razoável tentar avaliar a
Os músculos lisos, tal como os esqueléticos, conservam hora da morte partindo da temperatura retal em um corpo
sua excitabilidade por longo tempo após a mor te. Por isso, que já demonstra sinais iniciais de putrefação. Do mesmo
a musculatura lisa da íris pode ser estimulad a, responden- modo, é quase impossível fazer uma avaliação, mesmo apro-
d o com contração ou dilatação. Além da excitação feita por ximad a, em corpos carbonizados. É importante reconhecer
eletrodos, é possível obter resposta a agentes farmacológicos. que não se pode compar ar os resultados obtidos por uma
De modo semelhante ao que ocorre em vida, a adrenalina eq uipe bem treinad a, e familiarizada com os m étodos apli-
e a atropina provocam dilatação da pupila (midríase), e a cados, com aqueles obtidos por um perito do interior, cuja
acetilcolina, uma redução do seu diâmetro (miose). Convém vivência se restringe a ocasionais casos e à leitura de uns
medir o diâmetro pupilar antes da aplicação dessas substân- poucos manuais.
cias, que deve ser feita por baixo da membr ana conjuntiva É imprescindível a colaboração entre os policiais que
d o olho junto ao contorno da córnea, o u diretam ente dentro primeiro chegarem ao local da morte suspeita e os peritos
da câmara anterior do olho. A resposta costuma dem orar 5 a para uma boa avaliação da hora da mo rte. Um dos dad os de
30 minutos e persistir por aproximadamente 1 hora. Confor- grande valor - a temper atura ambiente - pode ser registrado
me passa o tempo após a morte, a reação demora mais para pela autoridade policial assim que chegar ao local. É comum
se instalar e se torna mais fraca . A concentração das drogas haver mudança da temperatura de um recinto fechad o, após
pode ser meno r d o que a necessária para se obter o mesmo o achad o de um corpo, por vários fatores: acio namento ou
efeito no vivo po rque é como se o músculo da íris estivesse desligamento de condicio nado r de ar, abertura de portas ou
desnervado. Estudos feitos em grande n úm ero de casos de- janelas, ou a penetração de várias pessoas, elevando a tempe-
m onstraram que é possível se obter resposta até um máximo ratura do côm odo. Em locais ao ar livre, os policiais poderão
de 14 a 46 hor as após a morte25 . registrar se o corpo estava exposto ao sol, se havia ventila-
ção, se a temperatura oscilo u entre o tempo de encontro do
Atividade Enzimática dos Tecidos corpo e a chegada dos peritos. Estes devem pesquisar sinais
cadavéricos como livores, rigidez muscular e, se possível, a
A virada do m etabolismo aeróbio para o anaeróbio pela temperatura retal o u axilar. Toda a equipe, incluindo poli-
parada da circulação leva a alterações do pH intracelular ciais e peritos, deve-se esfo rçar para que a necropsia seja feita
e a m odificações da atividade das enzimas. Partindo des- com a maior brevidade possível a fim de que a permanência
sa premissa, pesquisadores têm tentado avaliar o tempo de do corpo em o utros ambientes (viatura, antessala do necro-
morte com base na redução do teor de algum as enzimas tério) seja a m enor possível.
importantes em células de grande atividade metabólica Infelizm ente, em nosso meio, a regra é a não observação
como no fígad o. Na Faculdade de Medicina de Ribeirão dos cuidados devidos. Os peritos recebem um corpo cuja ri-
Preto, Martin 26 rea lizou pesquisas nesse campo, com resul- gidez já fo i parcialmente desfeita pelos serventes que despem
tados animadores. o cadáver, ou que permaneceu por várias horas no local à
CAPITULO 9 Cronotanatognose • 183

espera da perícia, e mesmo na antessala do necrotério, por 10. Henssge C, Madea B, Knight B. Practical casework. In: The Esti-
vezes por um dia inteiro. Além do mais, nem sempre há o mation of the Time Since Death in the Early Postmortem Period.
Bernard Knight, ed. Londres: Edward Arnold; 1995. Capítulo 7, pp.
cuidado de se registrar no laudo a hora em que foi iniciada
239-256.
a necropsia. Nunca vimos, mesmo em instituições de reno- 11. Knight B. H ypostasis and timing of death. In: Musde a nd tissue
me, o registro da temperatura do corpo, quer no momento changes after death. The Estimation of the Time Since Death in the
da necropsia, quer antes. Enquanto não houver condições de Early Postmortem Period. Bernard Knight, ed. Londres: Edward
trabalho que permitam aos nossos legistas aplicar os méto- Arnold; 1995. Capítu lo 5, pp. 138-220.
dos descritos anteriormente, de modo a confrontar de modo 12. Krompecher T. Rigor mortis: estimation of the time since death by
evaluation of the cadaveric rigidity. In Muscle and tissue changes
científico os dados colhidos com os registrados por autores after death. In: The Estimation of theTime Since Death in the Early
europeus e norte-americanos, a avaliação da hora da morte Postmortem Period. Bernard Knight, ed. Londres: Edward Arnold;
feita em nossos institutos médico-legais continuará a reque- 1995. Capítulo 5, pp. 138-220.
rer margens muito amplas, prejudicando as investigações. 13. Andersen JL, Schjerling P, Saltin B. Muscle, genes and athletic per-
Por fim, cumpre destacar que determinados fatos de ob- formance. Scientific American. 2000;283(3):30-37.
14. Franks AJ. Muscle. In: The Locomotor System. Oxford Textbook of
servação nada técnicos podem ajudar na determinação da
Pathology. McGee JD, Isaacson PG, Wright NA, eds. Oxford: Ox-
data da morte. O encontro de jornais e revistas não recolhi- ford University Press; 1992. Capítu lo 27.
dos em uma caixa de correio, de recibos nos bolsos da roupa, 15. Watanabe T. Atlas of Legal Medicine. Philadelphia: J. B. Lippincot
de esquemas de programação de TV, de arquivos de compu- Company; 1968.
tador com a data e hora da última modificação é de grande 16. Potter EL. Pathology of the Fetus a nd the Newborn. Chicago: T he
Year Book Publishers; 1952.
proveito. Luzes acesas ou apagadas no cômodo em que o cor-
17. Alvarado EV. Tanatologia. em Medicina Legal, 3• ed. San José:
po é encontrado também podem ajudar. Lehmann Editores; 1983. Capítulo 7.
18. França GV. Tanatologia médico-legal. In: Medicina Legal. 5• ed.
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Capítulo II. rense. III Congresso Mundial de Medicina Legal, São Paulo, 1996.
Hygino de C. Hercules

A parte da Medicina Legal que se ocupa das implica- energias mecânicas das de o rdem física, representadas pelo
ções jurídicas dos traumatismos é a Traumatologia Foren- calor e pela eletricidade, o que não nos parece razoável, já
se. Com o a Traumatologia, ela é extensa e abr ange enorme que as três fo rmas resultam de fenómenos físicos . As ener-
gama de agentes vulnerantes, capazes de lesar o organismo gias de ordem bioquímica, de ordem biodinâmica e de or-
ou de prejudicar de algum modo seu perfeito funcionamen- dem mista são representadas nessa classificação pelas do-
to. Neste capítulo, faremos uma sistem atização desses agen- enças em geral (infecciosas, pa rasitárias, carenciais), pelos
tes e analisaremos as implicações legais de sua atuação. estados de esgotamento do orga nismo por esforço exagera-
É preciso, em primeiro lugar, conceituar trauma e lesão. d o e por distúrbios de ordem emocional que ocorrem em
Consider a-se traum a a atuação de uma energia externa sobre seguida a outras fo rmas de agressão po r energias de ordem
o corpo da pessoa, com intensidade suficiente para provoca r física ou química. Não concordamos em que se incluam as
desvio da no rmalidade, com ou sem expressão mo rfológica. doenças em geral numa classificação de agentes traumati-
Isso quer dizer que um trauma pode ser insuficiente par a zantes. Muito menos acham os que se deva misturar causa
causar lesão perceptível, mas alterar de m odo importante a com efeito. Bo rri chamava de energia de ordem bio dinâ-
função. De um modo geral, admite-se que lesão seja a alte- mica os efeitos gerais dos gra ndes tra umatismos, como o
ração estrutural proveniente de uma agressão ao o rganism o. estado de choque por anemia aguda, por exemplo, e os dis-
Pode ser visível macroscopicamente, com o, por exemplo, túrbios neuropsíquicos q ue costumam acompanhar fo rmas
uma fratura, apenas microscopicamente, como nas ro turas graves de lesões traumáticas A nosso ver, trata-se, aqui, de
de axónios pelas contusões do encéfalo, ou som ente ao mi- consequências de traum as; e não de agentes vulnerantes.
croscópio eletrónico, com o nas alterações iniciais d as alças Mas é preciso compreender que o m estre italiano não dis-
dos capilares d os glomérulos renais, em casos de diabetes. punha dos conhecimentos de fi siopato logia que temos hoje
Há autores que se referem a lesões bioquímicas. Seriam as sobre a evolução das lesões traumáticas e sobre as doenças
pr imeiras a aparecer, antes mesmo das ultraestruturais re- infecciosas e parasitárias.
veladas pelo microscópio eletrónico. Em nossa opinião, só Os traumatismos, na realidad e, resultam da ação de ener-
devemos chamar de lesão as alterações demonstráveis mor- gias estranhas ao organismo, que nele atuam modificando
fologicamente. À Medicina Legal interessam m ais as lesões o seu estad o de equilíbrio fisiológico, de m odo reversível
violentas, quer dizer, aquelas causadas por traumatismos. ou não. Uma bactéria que venha a agredir o organismo não
As energias vulnerantes devem ser classificadas, para me- pode ser incluída nessa conceituação. Do mesmo mo do, os
lhor compreensão, de acordo com o tipo de fenómeno desen- estad os carenciais e os distúrbios do metabolismo não de-
cadeante. Fávero' adota a classificação de Borri, que divide os vem ser estudados na traumatologia.
agentes lesivos em várias ordens: mecânica, física, química, Em função dessas divergências, resolvemos modificar
físico-química, bioquímica, biodinâmica e mista. a classificação de Borri. Assim, dividimos as energias trau-
Estudando atentamente sua classificação, notaremos matizantes em apenas três ordens: 1) física; 2) química; 3)
que, à guisa de melhor dividir o assunto, o autor separa as físico-química.

187
188 • CAPITULO 1O Traumatologia Forense Geral

As de ordem física incluem as seguintes formas de ma- bemos. Podem ser exemplificadas por pequenas equimoses
nifestação energética: a) cinética; b) barométrica, que é um e escoriações resultantes de uma queda sem maiores conse-
caso especial da primeira; c) térmica; d) elétrica; e) radiante. quências, pequenos choques elétricos que apenas nos cau-
Na energia cinética, abordamos as lesões e morte cau- sam um susto, queimaduras leves sofridas ao preparar algo
sadas por instrumentos e ações contundentes, perfurantes, na cozinha. Enfim, são tão insignificantes que não procura-
cortantes, perfurocortantes, cortocontundentes e perfuro- mos atendimento médico e, por isso mesmo, não podem
contundentes. Na barométrica, estudamos as baropatias, que ser contabilizadas. As demais costumam levar as vítimas aos
incluem os distúrbios causados por variações bruscas da hospitais e clínicas. Dentre estas, cerca de 10% evoluem para
pressão ambiente, conforme se observam nos mineiros, avia- o óbito diretamente ou em decorrência de complicações su-
dores e, principalmente, mergulhadores. Mas, também, as al- pervenientes. Segundo registros da Organização Mundial de
tera ções produzidas pela permanência em locais de pressão Saúde para o ano de 2004, foram registradas no mundo cerca
muito alta, muito baixa, e por explosões. de 3,9 milhões de mortes não intencionais (acidentais) e 1,6
No estudo dos efeitos da energia térmica, devem ser milhão provocadas intencionalmente (homicídios e suicí-
considerados aqueles que se devem ao calor, ao excesso de dios). Considerando a população global, isto dá uma taxa de
energia, e os decorrentes do frio, ambos de forma difusa ou mortalidade de 60/100.000 e 25/100.000, respectivamente.
localizada. Além ou aquém de certas temperaturas, ocorrem As mortes violentas, que englobam ambos os tipos, corres-
alterações de tal ordem que as funções orgânicas são com- pondiam a cerca de 10% do obituário em geral2.
prometidas irreversivelmente, ou surgem lesões nos pontos
de contato.
Quanto à ação da energia elétrica, inclui tanto os fenó- • REAÇÃO AOS TRAUMAS
menos e lesões causados pela eletricidade industrial (eletro-
plessão) como os devidos à energia natural ou cósmica (ful- O organismo reage a qualquer forma de traumatismo,
guração). A forma radiante de energia é rara como causadora independentemente de sua natureza ou intensidade. A res-
de lesões, incapacidades ou morte, a não ser nos ambientes posta, porém, depende da capacidade de adaptação do or-
de trabalho especializado. Inclui os efeitos no ser humano ganismo e consta de uma reação local e outra geral, que o
das radiações ionizantes e da radiação solar. envolve como um todo.
As energias de ordem química incluem a ação das subs-
tâncias cáusticas e a ação sistémica de todas as substâncias
Reação Local
tóxicas que podem ser chamadas genericamente de venenos.
Damos o nome de cáusticos àquelas substâncias que têm As lesões locais resultam da transferência de qualquer
ação intensa e d estrutiva sobre os tecidos com que sejam forma de energia em um fluxo tal que supere a capacidade
postas em contato. do organismo de neutralizá-la e/ou removê- la. Estabeleci-
As diversas formas de asfixia constituem o grupo das da uma lesão traumática, é comum se pensar que o mal já
energias de ordem físico-química. A expressão "físico-quí- está feito. Ledo engano. A lesão inicial pode ser de tal ordem
mica" não é das mais felizes, pois traz à lembrança as reações que provoque fenómenos, como destruição de tecidos, per-
químicas dependentes da concentração de eletrólitos e suas da sanguínea e infecção, que a ampliem consideravelmente.
leis. Mas, em nosso estudo, refere-se a ações m ecânicas que Além disso, pode ter causado comprometimento dos vasos
desencadeiam graves perturbações do metabolismo, pelo que nutrem a região atingida, o que impede a atuação dos
bloqueio da respiração. Po r serem de causa física e deter- mecanismos de defesa 3•
minarem alterações da química do organismo, preferimos O mecanismo de defesa mais importante é a reação infla-
m anter a designação original de Borri. As asfixias são esta- matória. Inicia por uma resposta circulatória que aumenta o
dos anormais do organismo em que, no sangue arterial, a aporte de sangue ao local por meio de vasodilatação. Além
concentração do oxigénio está diminuída e a de gás carbó- disso, esse aumento do fluxo sanguíneo favo rece a libera-
nico, aumentada. Tanto podem ser de causa violenta como ção dos glóbulos brancos para a região comprometida. No
decorrentes de doenças que interfiram no processo normal processo inflamatório, ocorre aumento da permeabilidade
de captação e distribuição dos gases respiratórios. As violen- vascular, o que leva à passagem de proteínas do interior dos
tas, pois que de origem traumática, são as que interessam à vasos para o interstício do foco lesional. O aumento do fluxo
Medicina Legal. sanguíneo e o da permeabilidade vascular produzem o edema
- aumento da quantidade de líquido no espaço intersticial.
Embora constituam mecanismos de defesa, os fenóme-
• INCIDÊNCIA GERAL nos inflamatórios podem-se transformar num tiro pela cula-
tra. O edema pode comprimir os vasos, desde que seja mui-
As lesões traumáticas, quanto à gravidade, podem ser di- to intenso e situado em área delimitada por paredes pouco
vididas em lesões leves, as que precisam de assistência médi- distensíveis. O aumento da pressão nos tecidos bloqueia a
ca e as mortais. São leves a imensa maioria. São aquelas que microcirculação e, por isso, prejudica os mecanismos de
sofremos no dia a dia e, com frequência, nem nos aperce- defesa, com o agravamento da lesão inicial. É o que se chama
CAPITULO 1O Traumatologia Forense Geral • 189

de síndrome compartimentai, que ocorre, por exemplo, nos integridade física, desassossego, irritabilidade e pouca socia-
traumatismos musculares graves3.4. bilidade. A par disso, há distúrbios físicos como palpitações,
Quando a lesão não é contaminada, como no caso de tremores e dificuldade respiratória pela simples evocação da
uma ferida cirúrgica, a reação inflamatória é menos intensa violência sofrida. Alguns indivíduos chegam a mudar sua ro-
e dura menos tempo. Mas os traumas de interesse médico- tina de vida6 •
legal resultam de condições muito diversas das encontradas
numa sala de operações. As lesões traumáticas, em geral, são
contaminadas por bactérias, corpos estranhos, substâncias • PROBLEMAS MÉDICO-LEGAIS RELATIVOS
tóxicas e pelos restos do tecido necrosado pela agressão ini- AOS TRAUMAS
cial. Todos esses fatores atrapalham a reação do organismo,
que visa a neutralizar os efeitos do trauma. As lesões de natureza traumática constituem, por sua fre-
quência, um problema social grave. A análise dos índices de
Reação Geral ou Sistêmica mortalidade por causas violentas já foi feita no Capítulo 7.
Mas o problema ressalta com impacto bem maior se forem
Assim como há gradação entre as lesões locais, também considerados não apenas os casos fatais, mas também os que
existe uma escala na gravidade do envolvimento sistêmico sobreviveram, com ou sem incapacidades. Conforme já as-
do organismo. Na fase inicial, há o aumento da liberação sinalado, apenas 10% das vítimas de violência vão ao óbi-
de adrenalina, com elevação da pressão arterial, taquicardia to. Isso significa que um número enorme de pessoas ficou
e hiperglicemia. O paciente sente-se intranquilo e agitado. incapacitada, pelo menos por algum tempo, de exercer suas
Nessa fase, há um balanço nitrogenado negativo, que signi- atividades. É fácil imaginar o prejuízo causado à produção
fica uma predominância do catabolismo (perda de substân- nacional pelas lesões traumáticas visto que a maioria das ví-
cia corporal) sobre o anabolismo (ganho ponderai). A causa timas são pessoas em plena idade produtiva.
principal do catabolismo é o aumento da concentração das Na realidade, os traumatismos constituem a terceira
catecolaminas, que levam a um grande aumento do consu- maior causa de mortes. No Brasil, em 2010, corresponde-
mo de energia do organismo. A imobilização dos indivíduos ram a 12,58% do total de 1 136 947 óbitos. Ficaram atrás das
com traumatismo grave acentua esse aspecto e leva também mortes causadas por distúrbios cardiovasculares (28,67%) e
a maiores perdas de potássio e de cálcio. Nos casos em que a
das por neoplasias (15,74%)7.
agressão inicial é muito grave, o indivíduo pode sofrer inten- Sendo tão reiteradas, e envolvendo aspectos jurídicos
sa queda da pressão arterial, apesar do teor elevado das ca- como a responsabilidade penal e a civil, as lesões violentas
tecolaminas, e acentuada redução da perfusão e oxigenação
ensejam, por força de lei, a atuação de peritos criminais e
dos tecidos, o que se denomina estado de choques.
legistas. Estes podem ajudar a resolver questões como a gra-
A fase de equilíbrio é alcançada em tempo maior o u me-
vidade das lesões, sua cronologia, a causa jurídica e a res-
nor, de acordo com a intensidade do traumatismo, mas o
ponsabilidade.
retorno à normalidade é mais lento que o desvio inicial. É
A gravidade, ou quantidade do dano, será estudada quan-
caracterizada por sensação subjetiva de melhora e pelo de-
do forem discutidas as lesões corporais elencadas no artigo
saparecimento dos sinais de hiperatividade suprarrenal. A
129 do Código Penal, no Capítulo 20.
retenção de sódio e de água da fase inicial va i sendo subs-
tituída por diminuição da perda de potássio e por aumento
gradual da diurese. A perda de peso pode persistir por algum Causa Jurídica
tempo, principalmente se a ingestão alimentar ainda estiver
restringida. Assim que o indivíduo volta a se alimentar nor- A das lesões mortais já foi exaustivamente analisada no
malmente, o balanço nitrogenado passa a ser positivos. Capítulo 7.
A fase de recuperação caracteriza-se por sensação de bem- Quanto às outras, pode-se tratar de crime, autolesão ou
estar, aumento da força física e do vigor e ganho ponderai acidente. As lesões de origem criminosa podem ser dolosas
lento e continuado. Convém lembrar que o efeito geral dos ou culposas e, geralmente, ajustam-se ao tipo do artigo 129
traumas depende ainda de fatores pessoais como idade, esta- do Código Penal8• Mas há crimes praticados sob violência,
do nutricional, doenças prévias e outras intercorrências. De dos quais pode resultar lesão corporal como elemento subsi-
qualquer modo, o tempo de recuperação é sempre bem maior diário. São exemplos o roubo (art. 157) e o estupro (art. 213) .
do que o período de deterioração da saúde. Progressivamente, E outros em que a violência agrava a pena, como no cons-
a pessoa volta a ganhar peso, aumentam o apetite e a disposi- trangimento ilegal (art. 146, § 2Q) e no aborto (art. 127) 8•
ção para o trabalho, o que anuncia a recuperação totaI5. A autolesão não constitui crime por si só. Mas pode ser
Em longo prazo, pode ocorrer, em cerca de 35% das pes- elemento do crime de estelionato (art. 171, § 2º-, item V)
soas submetidas a violências marcantes, a chamada síndrome quando for praticada para obtenção de vantagem ilícita,
de estresse pós-traumático. É uma desordem m ental caracte- como para receber seguro ou para se furtar ao cumprimento
rizada por vários sintomas de ordem emocional e física, em do dever8. Nesses casos, a perícia pode fornecer elementos de
que predomina uma maior suscetibilidade a ameaças à sua valor, pois a sede das lesões, geralmente, é sugestiva. São mais
190 • CAPITULO 1O Traumatologia Forense Geral

observadas na face anterior do antebraço, face superio r ou A cicatrização, por sua vez, pode-se fazer com a cura, ou
interna da coxa, regiões palmar ou plantar, todas facilmente não. Uma ferida incisa na região plantar, que tenha evoluído
acessíveis ao próprio indivíduo. É importante que o perito bem, sem infecção, para a formação de uma cicatriz comum,
não se esqueça de valorizar, nessa avaliação, o fato de ser a sem redução da função do pé, está curada. Mas uma cicatriz
pessoa destra ou não. de queimadura que estabeleça aderência entre dois ded os da
As lesões acidentais constituem a m aio ria. Em geral, são mão está cicatrizada, mas com grande prejuízo da função.
leves e relacionadas com a atividade diária das pessoas. Com Uma amputação bem -sucedida leva à formação de um coto
frequência, estão ligadas ao trabalho e causam incapacidade bem cicatrizado, mas a fun ção do segmento perdido jamais
temporária, já que o trabalhad or deve fi car afastado das fun- será recuperada. O utro parâmetro complicador é a existên-
ções enquanto durar o tratamento. Após a alta, deve ser feita cia de processos de cicatrização muito exuberantes, causado-
uma avaliação para se determinar se restou, ou não, uma in- res de prejuízo estético - os queloides.
capacidade permanente. No lar, são muito comuns, embora As aderências de alças intestinais entre si e a outras vís-
não se faça um registro oficial. O capítulo 21 estuda, detalha- ceras por tecido fibroso cicatricial, após cirurgia abdominal,
damente, os acidentes do trabalho. podem passar despercebidas, mas também são capazes de ge-
O problem a da autoria está intimamente relacionado rar quadros de obstrução intestinal de consequências graves.
com o da causa jurídica. É importante, nesse contexto, esta- Assim, podemos dizer que são lesões consolidadas e cicatri-
belecer primeiro se se trata de lesão provocada po r terceiros. zadas, mas não curadas, uma vez que o conceito de cura deve
Em segundo lugar, afastar a hipótese de acidente. Sabendo-se incluir a restituição plena das funções.
que alguém foi responsável pela lesão, resta esclarecer se O diagnóstico da idade de uma lesão só pode ser feito nas
houve dolo ou culpa na ação ou omissão que a provocou. recentes e nas intermediárias. As consolidadas são de avalia-
A perícia pode ajudar nas investigações, principalmente se ção cronológica extremam ente difícil. Vejamos.
for possível determinar que houve um padrão lesionai. Algu-
mas alterações costumam ser tão características que são cha- Rotura de Hímen
m adas de lesão com assinatura. É o caso das m ordidas, por
exemplo. O confronto entre a equimose deixada e a arcada No primeiro dia, as bordas estão infiltradas por sangue,
dentária do suspeito pode estabelecer a autoria, principal- edem aciadas, e são muito sensíveis ao toque. Conform e se
mente se faltar um dos elementos dentários. passam os dias, as bordas ficam recobertas por uma pequena
membrana de fibrina, o edem a se reduz progressivam ente, a
hemorragia é reabsorvida e a fenda que corresponde à rotura
Cronologia se torna mais abrupta. Com 1 semana, a rotura pode já estar
As lesões podem ser classificadas com o recen tes, interme- completamente reepitelizada, sem edema, mas com coloração
diárias e consolidadas. É preciso, porém, que desde já se faça um pouco diferente do restante da orla. Depois desse tempo,
uma crítica a essa divisão, um tanto ou quanto arbitrária. torna-se muito difícil afi rmar que se trata de rotura recente
O limite entre lesão recente e lesão intermediária é abstrato ou antiga. Tanto é assim que o nosso Código Civil antigo dava
e subjetivo, não havendo um padrão consensual. O critério um prazo de 10 dias para que o marido iludido denunciasse
cronológico, inclusive, é falho, já que uma equimose de con- o defloramento anterior da mulher para propor anulação do
to rno amarelado é considerada antiga e não tem mais do que casam ento (arts. 219, IV e 178, § P) 9 . O novo Código Civil'º,
10 dias de evolução. Mas uma ferida penetrante de qualquer contudo, não reconheceu mais o deflo ramento da mulher ig-
das grandes cavidades do corpo deve ser encarada como re- norado pelo marido como uma forma de erro essencial.
cente transcorrido o mesmo tempo. A gravidade, assim, é
decisiva na conceituação. Espectro Equimótico de Le Gran du Saulle
São ditas intermediárias aquelas lesões que, não mais
As equimoses sofrem mudanças de cor com o passar dos
sendo recentes, ainda não chegaram a um estágio de con-
dias. É o que se deno mina espectro equimó tico de Le Gr an
solidação. É o caso das inflamações crónicas, das fístulas, do
du Saulle. Inicialmente violáceas, passam pelo azulado, es-
perío do de for mação de um calo ósseo e das feridas em fase
verdeado e amarelado antes de sumir. A transição é gradual,
de reparação.
mas admite-se que a evolução total de uma equimose de cer-
Contudo, a consolidação não quer dizer cura. Uma lesão
ca de 5 cm de diâmetro termine em mais ou menos 15 dias.
consolidada é aquela que parou de evoluir. Tanto pode ter
Mas pode variar para mais ou para menos, de acordo com a
parado porque houve a cicatrização, como pode ter cessado
circulação local.
de evoluir sem ter cicatrizado. Um exemplo dessa condição é
a pseudoartrose, que resulta de fraturas em que o tratamento
Consolidação de Fraturas
não fo i bem-sucedido e nas quais as extremidades ósseas não
se uniram. A pseudoartrose permanecerá como tal por tem- Uma fratura do rádio, por exemplo, pode-se consolidar
po ilimitado, se não for instituído um tratam ento cirúrgico. com formação de um bom calo ósseo em cerca de 30 dias. A
O u seja, está consolidada a lesão porque paro u de evoluir, evolução pode ser registrada radiologicamente nos vivos e
mas não ho uve a cura da fratura. demonstrada histologicamente em cadáveres e em animais
CAPITULO 1O Traumatologia Forense Geral • 191

de experimentação. Contudo, o tempo necessário à consoli- o resultado não foi previsto, mas o agente poderia tê-lo an-
dação varia com o osso e o tipo de fratura 4, assim como com tecipado se fosse mais cuidadoso. Exemplo: cirurgião que es-
a idade e as condições gerais do indivíduo 11 • quece uma compressa no abdômen do paciente. A previsibi-
lidade a que se refere a doutrina é aquela do homem médio,
não a do extremamente cauteloso. Há, portanto, um aspecto
Responsabilidade
subjetivo da culpa 12 •
Sempre que ocorre uma lesão violenta, cria-se um fato A outra faceta da responsabilidade é o seu aspecto civil,
social que demanda investigação para apuração das res- ou seja, aquele que causou o dano tem a obrigação de repará-
ponsabilidades. Mesmo que se trate de acidente, as medidas lo. Está no Código Civil1º·13:
necessárias à sua prevenção podem não ter sido tomadas, o
que transforma o acidente em um crime de natureza culpo- Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187),
sa por negligência. É o que ocorre quando os freios de um causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo.
veículo mal cuidado falham e causam uma colisão. Assim, Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano,
sempre há necessidade de atuação da autoridade competen- independentemente de culpa, nos casos especificados em
te para o esclarecimento da causa jurídica e atribuição das lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
responsabilidades. autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os di-
A respo nsabilidade penal deve ser apurada pelo poder reitos de outrem.
público através do indiciamento do suspeito e abertura do
inquérito policial. Se o agente deu causa à lesão intencio- A reparação deve ser feita mediante o pagamento de
nalmente, responde por crime doloso; se manifestou im- quantia que satisfaça o montante das perdas decorrentes da
prudência, imperícia ou descuidou-se e foi negligente, por inatividade (lucros cessantes), das despesas com o tratamen-
crime culposo. A noção de dolo está descrita no artigo 18, I, to e de incapacidades que porventura sobrevenham à lesão.
do Código Penal8:
Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste,
Diz-se o crime doloso quando o agente quis o resultado sem excluir outras reparações:
ou assumiu o risco de produzi-lo. I - no pagamento das despesas com o tratamento da
vítima, seu funeral e o luto da família;
Age dolosamente quem pratica a ação, ou se omite, cons- II - na prestação de alimentos às pessas a quem o morto
ciente e voluntariamente. É necessário para a sua existência os devia, levando-se em conta a duração provável da vida
a consciência da conduta e do resultado. E que o agente a da vítima.
pratique voluntariamente. O dolo é a vontade dirigida para a Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o
realização da conduta prevista no código 12 • ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento
Mas também age dolosamente aquele que, embora não e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de
querendo o resultado típico, prevê que é bastante provável algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.
que ele ocorra e não se refreia diante desta previsão, assu- Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofen-
mindo o risco de produzi-lo. Nesse caso, há o chamado dolo dido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe
eventual ou dolo indireto. Por exemplo, seria o caso de um diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das
mo torista que, vendo o sinal fechar, põe a mão na buzina e despesas do tratamento e lucros cessantes até o fim da con-
acelera quando os pedestres já estão atravessando. Ele sabe valescença, incluirá pensão correspondente à importância
que, agindo assim, corre o risco de atropelar alguém, mas do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que
prefere dar curso à ação 12 • ele sofreu.
A noção de culpa está contida no mesmo artigo 18, in- Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exi-
ciso II: gir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.

Diz-se o crime culposo quando o agente deu causa ao Não cumprindo a obrigação de reparar, o devedor res-
resultado por imprudência, negligência ou imperícia. ponde por perdas e danos (a rt. 389 do novo Código Civil 10•13 ) .

Segundo Mirabete 12 , "Tem-se conceituado na do utrina o Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o deve-
crime culposo como a conduta voluntária (ação ou omissão) dor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária
que produz resultado antijurídico não querido, mas previ- segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e hono-
sível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida rários de advogado.
atenção, ser evitado". Doutrinariamente, podem-se distin-
guir dois tipos de culpa: consciente e inconsciente. Na culpa Mas a responsabilidade civil é independente da criminal.
consciente, o resultado foi previsto, mas o agente acredita- Contudo, se houver condenação no foro penal, não mais se
va que pudesse evitá-lo por sua habilidade ao se conduzir. cogitará da existência do fato ou de quem seja o seu autor
Exemplo: dirigir em alta velocidade. Na culpa inconsciente, (art. 935 do novo Código Civil) 10•13 •
192 • CAPITULO 1O Traumatologia Forense Geral

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


criminal, não se podendo questionar mais sobre a existên-
cia do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas
!. Fávero F. Traumatologia. 3• parte em Medicina Legal. 8' ed. São
questões se acharem decididas no juízo criminal. Paulo: Livraria Martins Editora; 1966.
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pacientes sem pre que lhes causa rem lesão, incapacida- dos séculos, Evand ro Freire, ed. São Paulo: Editora Atheneu; 200 !.
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agravar-lhe o m al, causar-lhe lesão ou inabilitá-lo para Medicine; 2002. 346(2): 108-114.
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de Inform ática do SUS, Informações de Saúde (TABNET). Captado
do sítio www.tabnet.datasus.gov.br em 03/04/2013.
Esses profissionais também estão suie1tos a processo 8. Brasil. Decreto-Lei 2.848 de 07/12/1940 (Código Penal).
ético-disciplinar nos respectivos Conselhos de Classe e a 9. Brasil. Lei 3.07 1de01 /01/1916 (Código Civil, antigo).
processo administrativo quando fo rem funcionários públi- 10. Brasil. Lei 10.406 de 10/01/2002 (Código Civil, novo).
cos. Em qualquer desses foros, torna-se necessário exame 11. Athanasou NA, Woods CG. Bone. l n: Locomotor System. Oxford
Textbook of Pathology. McGee JD, Isaacson PG, Wright NA, eds.
pericial para constatação da lesão e estabelecimento do nexo Oxford: Oxford University Press; 1992. Capítulo 27.
de causalidade com o evento alegado 10 •13 . 12. Mirabet JF e Fabbrini RN. Fato Típico. Capítulo 3, pag. 129, no
Nos Capítulos 11 a 19 desta parte, serão estudados os volum e 1 de Manua l de Direito Penal, 24' edição, Editora Atlas SA,
principais agentes vulner antes. São Paulo; 2007.
13. Rodrigues S. Direito Civil. Parte Geral. Volum e 1, 32•ed. São Paulo:
Editora Saraiva; 2002 .
Hygino de C. Hercules

• INTRODUÇÃO também as perturbações funcionais e lesões consequentes a


grandes acelerações, positivas o u negativas.
É possível distinguir três tipos gerais de fenó m enos na
natureza: físicos, químicos e biológicos. Dizemos que é físi-
co quando a composição química dos participantes não se • AGENTES MECÂNICOS
altera do início ao fim do fenóm eno. Nos químicos, ocor-
rem transformações que alteram a composição dos corpos Os agentes mecânicos são capazes de lesar porque trans-
envolvidos, de modo que as substâncias presentes no início ferem toda a sua energia cinética, ou parte dela, à área da
não são as mesmas ao final. Os biológicos dependem essen- su perfície corporal com que entram em contato. A energia
cialmente da participação de seres vivos para se realizarem. cinética é expressa pela equação: E = mv2/2, em que E é a
A produção dos fe nómenos físicos depende da existên- energia; m, a massa do agente e v, a sua velocidade. Como se
cia de uma diferença de potencial energético entre dois cor- nota, varia com a massa do agente e com o quadrado da sua
pos, o que torna possível o escoam ento de energia e, através velocidade.
dele, o aparecimento do fenómeno. O m ovimento, o calor, a A quantidade de energia antes do choque de dois corpos
eletricidade, a pressão e as radiações são manifestações das tem que ser igual à energia presente após a colisão, pelo prin-
diversas modalidades de energias de ordem física. Outras cípio ger al da conservação da energia. Mesm o que o corpo
formas de energia, com o a química e a atómica, produzem atingido não se ponha em m ovimento, tal princípio conti-
alterações mais complexas e foge m ao nosso objetivo no nua a ser verdadeiro, uma vez que a energia trazida pelo m ó-
m omento. vel será utilizada na realização de trabalho mecânico (defor-
O corpo humano pode sofrer lesões, perturbações fun - mação d os corpos postos em contato) e no desprendimento
cio nais ou d oenças, quando submetido à ação das energias de certa quantidade de calor gerada pelo atrito.
de ordem física, dependendo a extensão do dano da quan - O choque pode ser unidirecional ou oblíquo, confor me
tidade de energia que lhes seja cedida em cada unidade de os corpos mantenham a mesma direção após a colisão ou so-
tempo - fluxo de energia. Desse modo, as alter ações bruscas fra m desvio da trajetória, respectivamente. No choque oblí-
são m ais perigosas do que as de ritmo lento, por não permi- quo, os efeitos de deformação são menores, já que apenas
tirem que haja adaptação do organism o. De acordo com a parte do movimento é transformada em trabalho. Po r isso, se
forma atuante, a ação d os agressores físicos poderá ser pelas um automóvel atropela um indivíduo e o apanha de raspão
energias cinética, térmica, elétrica o u radiante. com o pa ra-lam a, provoca menor dano que se o atingir com
A energia cinética produz uma ação mecânica que decor- o para-choque dianteiro.
re de modificação do estado de repouso ou de movimento do Os efeitos do choque, seja ele unidirecional, seja ele oblí-
nosso corpo. Encontramos, aqui, alterações produzidas pelo quo, são semelhantes tanto na fo rma ativa, como na passiva .
choque com os agentes mecânicos, de um modo geral, como Assim, as lesões decorrentes de queda sobre o solo dependem

193
194 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

da altura de que cai o corpo e são parecidas com as prove- Tendão extensor
nientes da atuação de veículos, desde que a energia cinética
seja a mesm a. Naturalmente, a dinâmica da colisão é que de-
termina o resultado final. Este independe da fo rma de atua-
ção, se ativa ou passiva. O mais importante é a quantidade de
energia cinética transferida na unidade de tempo. Um projé-
til de arma de fogo, apesar da pequena massa, possui energia
suficiente para penetrar os tecidos m ais resistentes por causa
de sua velocidade. Um machado, atuando com a mesma ve-
locidade de uma faca, produz lesão muito mais importante,
Figura 11.1. O movimento brusco e forçado da falange distal produz
por ser do tado de maior massa.
um estiramento do tendão extensor, que arranca parte do osso na sua
A produção de lesões depende também da extensão da base.
área sobre a qual atua um agente mecânico. A pressão exer-
cida por um corpo sobre uma superfície é diretamente pro-
porcional à sua fo rça e inversam ente à extensão da área com
que entre em contato (P = F/S). Por isso, um alfinete precisa dos dedos da mão podem causar pequenos arrancam entos
de pouca fo rça para penetrar na pele. ósseos na face dorsal da base da falange distal, pela formação
Quando um objeto incide sobre a su perfície do corpo, a de um braço de alavanca por essa falange com ponto fixo
força com que pressiona a pele é contrariada pela resistência na superfície articular (Fig. 11.1). As torções de ossos longos
que ela oferece para não ser deformada. Como a resistência podem improvisar um sarilho e consequente multiplicação
à deformação é aproximadamente igual numa mesma região da força, levando à fratura da diáfise. É o que ocorre na tíbia
do corpo humano, quanto maior a área de impacto, maior quando o corpo gira, estando o pé preso.
terá que ser a energia disponível para realizar a mesma com- Quando uma víscera oca, como o estômago, sofre um
pressão e o mesm o deslocamento da pele. impacto, a força pode não ser suficiente para romper sua pa-
A extensão e a intensidade das lesões produzidas pelos rede, m as ser capaz de alargar seus orifícios o bastante para
agentes mecânicos dependem ainda do tempo de contato en- produzir fissuras longitudinais, principalmente quando a
tre eles e o nosso corpo. Sabemos que o impulso provocado víscera contém razoável q uantidade de líquido, pois os líqui-
por uma fo rça depende d o tempo durante o qual ela atua dos são quase incompressíveis e tendem a fo rçar o esvazia-
(I = Ft). Além disso, sabe-se que o impulso adquirido por mento pelo aumento da pressão no interior do órgão. No
um corpo é igual à variação de sua quantidade de movimen- caso de a víscera oca estar cheia de ar, a compressão da pare-
to, o u seja, o produto da massa pela velocidade (mv). Assim, de produz aumento de pressão e redução do volume aéreo,
um corpo em movimento, ao se chocar com outro menos ve- sem grande alargamento dos orifícios.
loz, tem sua velocidade reduzida, enquanto o outro tem sua A transferência da energia de um agente mecânico para o
velocidade aumentada de mo do proporcio nal a suas massas. nosso corpo pode ser feita por contatos distintos, de acordo
A som a da quantidade de movimento de ambos é igual antes com a sua forma. O tipo de contato permite classificá-los.
e depois d o choque, já que a massa é uma constante. Po rtan- Assim, temos: 1) contato por m eio de uma superfície - agen-
to, o impulso que um corpo pode fornecer a outro é sempre te contundente; 2) por uma ponta - instrumento perfurante;
igual à mesma velocidade de colisão. 3) po r uma borda aguçada - instrumento cortante; 4) por
Por o utro lado, para um mesmo impulso, se o tempo au- uma ponta e uma borda, simultanea mente - instrumento
m entar, a fo rça de colisão tem que diminuir na m esm a pro- perfurocortante; 5) por uma borda aguçada, tendo gr an-
porção para que o produto Ft se m antenha constante. Isso de massa - cortocontundente; 6 ) por uma ponta ro mba
quer dizer que, se um indivíduo cair de uma certa altura e - perfurocontundente.
se agachar lentam ente ao tocar o solo, estará aumentando o Neste capítulo, estudaremos os agentes co ntundentes.
tempo de transmissão do impulso e reduzindo a força do im-
pacto. O corpo flácido das crianças faz com que, ao caírem,
entrem em contato com o solo mais lentamente, um seg-
m ento após o outro. Pela mesm a razão, os pugilistas sabem • AÇÃO CONTUNDENTE
que devem recuar a cabeça ao serem atingidos, para dissipar
com esse movimento parte da energia trazida pelo golpe. Resulta da atuação de agentes que transferem sua energia
Esse princípio tem o rientado a construção de equipamentos cinética par a o nosso corpo por meio de uma superfície, uma
de segurança em veículos automotores (air bags) . área. Há que se estabelecer, primeiramente, a conceituação
Outros fatores podem, também, modificar o resultado do que se deve entender por instrumen to contundente. O ins-
da atuação dos agentes agressores mecânicos. A form ação de trumento tem fo rma e volume definidos, podendo ser ma-
alavancas pela aplicação de forças externas sobre determi- nuseado para provocar a lesão. Por vezes, deixa sinais carac-
nados pontos d o esqueleto pode provocar fra turas à distância terísticos e denunciadores de sua atuação, como as arcadas
do ponto de incidência do impacto. Flexões bruscas e fo rçadas dentárias e os cassetetes. Mas, em geral, lesões produzidas
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 195

por uma pedra, um pedaço de pau e outros não permitem tos relativos desses órgãos, decorrentes da inércia, geram for-
que se diga, pelo seu exame, que tipo de instrumento as cau- ças de tração em seus pontos de fixação às cavidades que os
sou. Mas foram causadas por um corpo de forma e volume contêm. Já tivemos oportunidade de observar arrancamento
definidos. Diferentemente, quando o corpo colide com o da aorta na sua origem como resultado de colisão de veículos
solo, ou uma parede, não se pode falar em lesão por instru- em alta velocidade.
mento contundente. Mas as lesões são muito semelhantes às Algumas lesões podem aparecer longe do ponto de im-
provocadas pelos instrumentos que não deixam assinatura. pacto após algum tempo. As equimoses tardias decorrentes
Assim, não havendo um padrão lesionai, o perito responderá da migração do sangue extravasado em focos de fratura e
que o meio que provocou a lesão foi uma ação contundente, as necroses isquêmicas por secção ou compressão arterial
pois estará correto quer se trate de um instrumento que não constituem dois exemplos. As fraturas de teto orbitário cos-
determine um padrão lesionai característico ou de algo que tumam manifestar-se, clinicamente, pelo aparecimento de
não possa ser brandido como um instrumento. Em ambos os equimose tardia na pálpebra superior (Fig. 11.3) .
casos, trata-se de agentes contundentes. A transmissão da energia cinética de um agente contun-
Os agentes contundentes, em geral, podem atuar de dente para o corpo humano pode-se fazer por compressão,
modo ativo, quando estão em movimento e incidem sobre o tração ou deslizamento sobre os tecidos. A forma mais comum
nosso corpo, ou passivo, quando somos nós que nos precipi- é a compressão, em que o agente incide diretamente sobre a
tamos de encontro a eles. superfície corporal e comprime os tecidos (soco, martelada,
As lesões produzidas pelos agentes contundentes podem- pedrada). A tração ocorre quando uma parte do corpo, por
se situar no próprio local do impacto ou aparecer em regiões exemplo os cabelos, é presa e puxada por alguma engrena-
mais ou menos afastadas. Na primeira hipótese, a ação é di- gem. Nesses casos, pode ocorrer o escalpe, que é o arranca-
reta; na segunda, indireta. Um tipo especial de lesão indireta mento do couro cabeludo. As torções articulares provocam
é a lesão por contragolpe que ocorre no encéfalo em certas lesões por causa da força de tração exercida sobre os ligamen-
formas de traumatismo craniano. São hemorragias subarac- tos da face oposta à flexão ou extensão exageradas. As lesões
nó ideas e corticais que ocorrem no lado oposto ao de inci- por deslizamento devem-se ao atrito entre o agente e a pele. O
dência do agente contundente. Devem-se ao deslocamento exemplo mais comum são as escoriações. De qualquer modo,
do cérebro dentro do crânio. Sabem os que o cérebro não está dificilmente o agente contundente atua apenas por um desses
em contato direto com o crânio, mas, sim, através das menin- m ecanism os básicos. Na maioria das vezes, o que se observa,
ges, onde circula o líquido cefalo rraquidiano. Durante uma na prática, é a combinação de lesões produzidas por mais de
fração de segundo após o impacto, o cérebro fica parado en- um dos três mecanismos no mom ento do choque.
quanto a caixa craniana se desloca na direção do m ovimento Para fins didáticos, podemos dividir as lesões produzidas
causado pelo choque. Isso cria, no polo oposto ao da colisão, pelos agentes contundentes em fechadas e abertas, conforme
forças de tensão que rompem vasos das meninges e podem esteja rompida, ou não, a pele. São lesões fechadas: rubefação,
lesar o tecido nervoso dos giros cerebrais (Fig. 11.2) . tumefação, equimose, hematoma, bossas sanguínea e serosa,
Quando o agente contundente que atinge o corpo hu- entorse, luxação, fratura e roturas (visceral ou das partes mo-
mano tiver energia suficiente para deslocá-lo bruscamente, les). As abertas são: escoriação e ferida contusa, podendo-se
poderão ocorrer lesões por m ecanismo indireto. Elas resul- incluir as fraturas e luxações expostas. Quando há verdadeira
tam de forças de tração entre os diversos órgãos e segmentos, trituração dos diversos planos do segmento atingido, com
cada qual com massa e densidade diferentes. Os deslocamen - ou sem abertura da pele, a lesão é chamada de esmagamen to.

F ~

F = força impulsora F' = linhas de tração


Figura 11.2. O esquema da esquerda mostra o ponto de aplicação da força F. O da direita indica as forças de tensão e de tração geradas pela
inércia do cérebro (F').
196 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

Figura 11.4. Equimose de uma semana de evolução na face externa


da coxa.

Figura 11.3. Grande infiltração equimótica das pálpebras superiores,


principalmente à esquerda, causada por fratura dos tetos orbitários por
projétil de arma de fogo que penetrou na região temporal direita. Guia
253 da 36ª DP, de 25/06/91.

Lesões Fechadas
Figura 11.5. Equimose no dorso da mão, onde também existem
Rubefação escoriações de cor pardo-avermelhada irregulares. Foi feita uma incisão
para mostrar o tecido subcutâneo infiltrado por sangue. Guia 186 da 27ª
É a lesão mais simples das pro duzidas por ação contun-
DP, de 14/03/95.
d ente. É constituída por hiperemia observada no local de im-
pacto de um agente contundente que não tinha energia para
causar mal maior. Resulta da dilatação de capilares e vênulas de hiperemia do ponto de impacto, extensão da hiperemia
locais d esencadeada pela liberação d e m ediadores químicos para pequena área ao redor e, depois, palidez da zona central
como a histamina. Aparece nos primeiros instantes e alcança causada por edema. O valor da tumefação é o mesmo da ru -
o máximo em 1 minuto. Após esse tempo, a hiperemia pode befação, com a vantagem de demorar mais a desaparecer.
estender-se a pequena faixa dos tecidos vizinhos de mod o
irregular. Nessa área, a hiperemia resulta de vasodilatação Equimose
arteriolar decorrente de reflexo axônico. Persiste por cerca É a infiltração do sangue nas malhas dos tecidos. Em geral,
d e 10 minutos. Seu valor m édico-legal reside em poder ca-
deve-se à rotura de capilares, vênulas e arteríolas; mas pode
racterizar que houve uma ação contundente. Como é fugaz,
formar-se também por diapedese (passagem das hemácias
sua comprovação pericial é quase impossível, e a vítima de através das paredes vasculares). De acordo com a sua forma,
uma agressão que lhe tenha produzido apenas uma rubefa- é chamada de petéquia, sugilação ou sufusão. A petéquia tem
ção, como no caso de uma bofetada, se for a exame de corpo
tamanho de um ponto a uma cabeça de alfinete. A sugilação
d e delito, receberá um laudo negativo. é formada por confluência d e numerosas lesões puntiformes
em uma área bem delineada. A sufusão representa hemorragia
Tumefação
mais extensa, de tamanho variado (Figs. 11.4 e 11.5).
O trauma que a produz é um pouco mais intenso. Consta De acordo com o plano anatómico em que se situam , as
de elevação da pele na área do impacto, surgindo depois de 1 a equimoses podem ser superfi ciais ou profundas, e mesmo
3 minutos, pouco depois da rubefação, que sempre a acompa- viscerais. Podem resultar de traumas que atuaram no local
nha. Ambas fazem parte da tríplice reação de Lewis, que consta ou longe do ponto em que são vistas.
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 197

Mecanismos de Produção
As equimoses que aparecem no local da ação do agente
decorrem de compressão, tração ou sucção exercidas sobre a
pele. A compressão violenta da pele provoca rotura de pe-
quenos vasos do subcutâneo e infiltração hemorrágica da
região. A tração produz rotura dos vasos da região por es-
tiramento. É o que ocorre quando se dá um puxão na pele,
ou quando ela é esticada intensamente pela ação de correias
ou outro agente que exerça a mesma ação. Em alguns casos
de atropelamento, a roda do veículo pode passar tangen-
ciando um segmento do corpo de modo a tracionar a pele,
puxando-a na direção do solo. As equimoses por sucção, ou
sugilações, estão geralmente associadas a atos libidinosos. Os
lábios aplicados contra a pele provocam sucção como se fos- Figura 11 .7. Aspecto da lesão da figura anterior depois de 5 dias. O
sem ventosas, diminuindo muito a pressão nos tecidos, de volume do hematoma diminuiu mas surgiu infiltração equimótica ao
modo que os vasos capilares e venosos ficam ingurgitados e o redor da tumefação sobre a patela e em parte da face lateral do joelho.
sangue tende a passar ao interstício por diapedese. Apresen- O sangue do hematoma começou a se espalhar.
tam-se sob a forma de numerosas petéquias confluentes que,
vistas de longe, dão uma ideia de continuidade. São vulgar-
mente chamadas de "chupão''.
As equimoses que surgem à distância resultam de migra-
ção do sangue extravasado em outras contusões, por exem-
plo fraturas, ou do aumento da pressão venosa por compres-
são das veias de drenagem da região. Fraturas do colo do
úmero costumam apresentar, após alguns dias, equimose na
região do cotovelo por causa da queda do sangue derramado
no foco de fratura pela ação da força de gravidade.
Quando uma contusão produz rotura de vasos pro-
fundos, a equimose só se torna visível depois de 2 a 4 dias.
Durante esse período, o sangue extravasado faz a migração
para os planos superficiais, aflorando ora no mesmo local,
ora distante do contundido (Figs. 11.6 a 11.9). As constrições
cervicais por estrangulamento podem causar o aparecimen-
to de petéquias nas conjuntivas oculares, por obstrução total Figura 11.8. Aspecto dos joelhos no gu dia de evolução. A tumefação
ainda é intensa em ambos. O volume do hematoma regrediu um pouco
mais, porém a pele suprajacente revela equimose violácea escura que,
agora, extende-se nitidamente pela face anterior do terço superior da
face anterior da perna. Não se nota equimose do lado esquerdo.

Figura 11 . 6. Intensa tumefação de ambos os joelhos, principalmente


no direito, que apresenta um hematoma por sobre a patela e abaula-
mento da pele logo abaixo da área tingida por solução antisséptica Figura 11.9. No 18!! dia de evolução, ainda há tumefação das duas
amarelada, também visível no esquerdo. A paciente sofreu queda de articulações, um pouco mais intensa à esquerda. A equimose foi quase
joelhos no dia 12/04/12 ao tropeçar. Suspeita de fratura da patela não que completamente reabsorvida e tem coloração um tanto parda onde
confirmada pelo exame radiológico. ainda é bem visível. Caso acompanhado e documentado pelo autor.
198 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

Figura 11 .11 . As setas indicam a fuga do sangue para os vasos


vizinhos à área comprimida pelo agente contundente.

Figura 11.10. Petéquias na conjuntiva ocular, causadas por estran-


gulamento. Guia 83 da 32~ DP, de 20/05/71.

das veias jugulares e apenas parcial das artérias caró tidas.


Com isso, o sangue vai para a cabeça e não retorna, causando
intensa pletora no setor venoso (Fig. 11.10). O mesmo meca-
nismo explica equimoses semelhantes que ocorrem nos aces-
sos violentos de tosse da coqueluche e nos esforços intensos
que algumas pessoas fazem ao vomitar.

Forma
As equimoses costumam ter forma pouco definida, na
maio ria das vezes irregular, em geral arredondada. Eventual-
mente, podem denunciar o instrumento que as causou.
São as lesões com assinatura. Estas equimoses, causadas por
compressão rápida e intensa da pele pelo instrumento con-
tundente, resultam de pequenas roturas vasculares nas áreas
Figura 11.12. Duas equimoses em forma de faixa dupla separadas
adjacentes. A compressão dos vasos da área de contato pro-
por tecido normal, situadas transversalmente na região escapular
voca uma onda de esvaziamento brusco, com fluxo rápido esquerda. Costumam ser também chamadas de equimoses em crescen-
do sangue para os capilares das regiões vizinhas que se co- tes paralelos. Guia 283 da 37~ DP, de 20/10/98. Perícia feita pelo Dr.
municam com eles. Quando esse aumento de pressão nos Celso Lara do IMLAP.
vasos vizinhos, causado pelo afluxo súbito de sangue, ultra-
passa o limiar de resistência de suas paredes, dá-se a rotura.
As lesões deixadas por golpes de cassetete exemplificam esse cordas, todos fazendo surgir sugilações nas áreas vizinhas às
m ecanismo. A área de contato continua clara, mas fica guar- de compressão pelo agente (Figs. 11.11, 11.12, 11.13 e 11.14 ).
necida por duas faixas de tecido, uma de cada lado, em que Outra alternativa para explicar o aparecimento dessas
há numerosas petéquias confluentes. O mesmo mecanismo equimoses seria o estiramento súbito dos vasos vizinhos no
explica o desenho deixado por palmatórias, chicotes, cintos e momento do impacto do instrumento, com rotura dos ca-
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 199

Figura 11.13. Equimoses que podem identificar o calçado do agres-


sor pelo desenho. A forma é compatível com algumas solas de borracha Figura 11.15. Caso de estupro seguido de morte em que o agressor
mais comuns em tênis. Há, à direita da marca principal, mais duas outras mordeu a vítima em várias partes do corpo. Nota-se a marca das arcadas
superpostas, também causadas por pisão. Todas apresentam estriação dentárias sob a forma de equimose no antebraço. Na região tenar, ferida
fina ondulada. Guia 495 da 22ª DP, de 29/08/02. com retalho pendente de partes moles por mordida mais profunda. Guia
da 3sa DP, de 08/05/89.

Figura 11 .14. Marcas de bandagem de pneu na perna de pessoa


atropelada. Guia 259 da 33ª DP, de 14/10/99.

Figura 11.16. Equimose de cor vermelho-escura, forma irregular, na


pilares. Uma vez aliviada a pressão, o sangue extravasa nessa face dorsal do antebraço em pele muito enrugada, característica da
linha de conto rno que traduz a forma do instrumento, mas senilidade. Foto cedida gentilmente pelo Dr. Flávio Marcondes Hercules.
não o faz na parte central po rque seus vasos são apenas com-
primidos, não rompidos 1• As mordidas produzem equimo-
As equimoses espontâneas aparecem em qualquer região
ses individuais que, em conjunto, reproduzem o desenho das
do corpo, desde os locais mais expostos até os de difícil acesso,
duas arcadas (Fig. 11.15) .
como a face interna dos braços, as axilas, face posterior do
joelho, dentro de um quadro geral em que costumam ser
Diagnóstico Diferencial das Equimoses Traumáticas
de distribuição simétrica nas duas metades do corpo. Além do
Para que se afirme que uma equimose é traumática, de- mais, são acompanhadas por outros sinais próprios das
ve-se afastar a possibilidade de que sejam espo ntâneas por doenças do sangue (anemia, aumento de linfo nod os e altera-
se tratar de doenças hemo rrágicas (púrpuras) o u de que ções do hemograma).
tenham-se formado após a m orte, nos locais de livores in- Em pessoas idosas, a pele atrófica tem resistência muito
tensos. As petéquias causadas por asfixia, embora também diminuída aos pequenos traumatismos. Contusões que pas-
traumáticas, não se confundem com as por ação contunden- sariam despercebidas em pessoas mais novas podem levar
te em função de sua localização preferencial nas pleuras e no ao aparecimento de equimoses de forma irregular. Com fre-
pericárdio. Também há de se fazer o diagnóstico diferencial quência, os pacientes se surpreendem com o aparecimento
com a mancha verde abdominal, causada pela putrefação, e das lesões e não conseguem correlacioná-las ao traumatismo
com o nevo azul. (Fig.11.16).
200 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

Em indivíduos de cor negra muito intensa, há dificuldade


na visualização das equimoses. Em alguns casos, justifica-se
a realização de incisões da pele nas regiões do corpo mais
suspeitas para confirmar, ou não, a sua existência.
As equimoses post mortem já foram abordadas no estudo
da tanatologia, onde também descrevemos a mancha verde
abdominal. Basta referir, aqui, que as que surgem após a
morte o fazem nas regiões de livores intensos, por exemplo
nos membros inferiores dos enforcados (Fig. 9.6).
O nevo azul é uma lesão de cor azulada, geralmente con-
gênita, que costuma situar-se nas imediações da região sacra,
sendo formada por deposição do pigmento melanina por
entre as fibras conjuntivas da derme profunda e hipoderme2.
No cadáver, a secção da pele permite fazer o diagnóstico di-
ferencial, pois o tecido tem cor pardo-escura e não vermelha,
como nas equimoses.

Evolução Cromática das Equimoses


A tonalidade violácea, mais bem vista nas pessoas de tez
clara, resulta de fenômenos da absorção da luz. A luz bran-
ca, cujo espectro vai do vermelho ao violeta, penetra até o
foco de hemorragia. Quanto mais profundo for esse foco,
mais luz vermelha refletida pelo sa ngue será absorvida pe-
los tecidos mais superficiais. Como a luz violeta tem menor
comprimento de onda, é menos absorvida e consegue atra-
vessa r a pele, sendo percebida pelos nossos olhos. Por isso,
as equimoses mais superficiais são de cor mais avermelhada.
Exemplo disso são as equimoses que constituem a púrpura
senil. Esta é caracterizada por equimoses avermelhadas de Figura 11.17. Grande equimose na face externa da coxa esquerda,
forma variada, que surgem na face dorsal das mãos e dos causada por queda da própria altura sobre piso de pedras, aos 5 dias
de evolução. Acidente doméstico do autor em 02/06/2000.
antebraços de pessoas idosas aos menores traumatismos.
Resultam de alterações regressivas da pele, como elastose
solar e degeneração do colágeno mais profundamente si- fagos, em cujo interior sua membrana é destruída e a hemo-
tuado2 (Fig. 11.1 6).
globina, digerida. Ela tem a porção proteica (globina ) sepa-
Com o passar dos dias, as equimoses superficiais mudam
rada do núcleo heme, que contém o ferro. O núcleo heme,
de cor. Inicialmente, são de cor vermelho-violácea, seguida,
por sua vez, perde o ferro, que é agrupado em moléculas
sucessivamente, pelo azulado, esverdeado e o amarelado an-
complexas, as ferritinas, para formar grãos de hemossiderina.
tes de desaparecerem. Uma equimose de tamanho médio, de
O resto do heme é transformado em biliverdina, de cor es-
cerca de 4 a 5 cm, costuma desa parecer em 15 a 20 dias. Ao
verdeada, e bilirrubina, de cor amarelada. Assim, entende-se
longo desse período, as cores vão-se sucedendo na referida
ordem ( Figs. 11.17 e 11.18) . É o espectro equimótico de Le por que a colo ração final da equimose é amarelada 3• Quando
Gran du Saulle. Mas não se pode ser dogmático com relação há equimoses recentes no couro cabeludo, a sua visualização
à cronologia desse espectro. Há variações amplas o bastante
pela face profunda revela uma cor vermelho-escura. Com
para invalidar os diagnósticos pretensamente mais apurados. o passar dos dias, o contorno dessas equimoses vai ficando
Conforme a vascularização da região e a idade do indivíduo, amarelado. Fenômeno semelhante ocorre com as equimoses
a velocidade na mudança das cores pode ser acelerada ou re- situadas no córtex cerebral. Mas há exceções. As equimoses
tardada. É mais rápida nas regiões da face e nos indivíduos conjuntivais permanecem vermelhas do início ao fim de sua
jovens. Já nos membros inferiores de pessoas idosas, custam evolução. Alguns autores dizem que isso se dá porque se trata
mais a desaparecer. de tecido muito oxigenado4 • Não cremos que seja por isso.
A causa da mudança de cor é a progressiva reabsorção da Na realidade, não temos uma explicação aceitável.
hemorragia pela ação dos macrófagos (células de limpeza do Como é óbvio, equimoses petequiais desaparecem mais
tecido conjuntivo local). O sangue extravasado passa a ser rapidamente e equimoses com grandes sufusões hemorrá-
considerado corpo estranho ao tecido e desperta reação de gicas excedem o prazo das de tamanho médio e mantêm o
defesa com a finalidade de removê-lo. Logo nos primeiros centro violáceo enquanto as mudanças de cor se processam
dias, as hemácias extravasadas são fagocitadas pelos macró- na sua periferia (Fig. 11.18).
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 201

Figura 11.19. Equimoses em faixas transversais ao redor do pescoço


de um menino de cerca de 8 anos que sofreu tentativa de homicídio por
estrangulamento. Caso E-95 18 576 do IPPMG da UFRJ, em 30/08/95.

Figura 11.18. Mesma lesão depois de 14 dias. Notar a tonalidade


amarelada do terço inferior e a reabsorção parcial da metade superior.
O centro, porém, mantém a tonalidade violácea.
Figura 11.20. Lesões de defesa representadas por equimoses alon-
gadas e centralizadas por escoriação pardo-avermelhada no terço médio
da borda cubital do antebraço. A vítima foi espancada e, depois, estran-
Localização gulada. Guia 63 da 24ª DP, de 24/06/02.

Casos com localização preferencial das equimoses nas


regiões erógenas suger em atentado sexual. A presença de
equimoses em regiões mamárias, glúteos, coxas e pesco-
ço pode confirmá -lo. Q uando nas faces anterior e laterais
do pescoço, ajudam na caracterização da esganadura ou
do estrangulamento (Fig. 11.1 9) . Por vezes, podem ates-
tar que houve luta. Em casos de agressão com bastões de
madeira ou barras de ferro, podemos encontrar lesões de
defesa sob a forma de eq uimoses na bo rda cubital e face
posterior dos antebraços e dorso das mãos (Figs. 11.20 e
11.21 ). Seu aparecimento tardio em certas regiões ajuda a
dia gnosticar fraturas .

Valor Médico-legal das Equimoses


As equimoses, quando bem avaliadas, auxiliam o médico-
Figura 11.21. Grande infiltração equimótica violácea e tumefação de
legista por vários motivos. Atestam que houve uma ação con- ambas as mãos e terço inferior dos antebraços em mulher morta por
tundente; dem onstram que havia vida no mom ento da sua golpes de instrumento contundente em forma de bastão. As lesões tanto
produção; podem identificar o agente traumatizante e, pela podem ser de defesa como forma de castigo por golpes desferidos di-
localização e distribuição, podem sugerir o tipo de agressão. retamente sobre as mãos. Guia 495 da 4ª DP, de 28/11/02. Caso da Ora.
Pela sua cor, permitem saber a época da agressão. Virgínia R.R. Dias do IMLAP.
202 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

Hematoma circulatório localizado. Pode ser apenas serosa ou apresentar


mistura de quantidade variada de sangue. É mais comum no
É hemorragia que, pelo seu volume e velocidade de for-
setor occipital do couro cabeludo de recém-nascidos cujo
mação, afasta os tecidos vizinhos e ocupa um espaço próprio,
parto foi com apresentação cefálica. A pressão exercida pela
formando uma neocavidade. Não há, como nas equimoses,
cabeça sobre o orifício interno do colo uterino é acompa-
uma infiltração do sangue nas malhas dos tecidos, a não ser,
nhada por uma reação igual e contrária deste, conforme as
em pequena extensão, na sua periferia. Os tecidos vizinhos
leis da física. À medida que se vão sucedendo as grandes con-
são deslocados e comprimidos (Figs. 11.6 a 11.9).
trações uterinas, a cabeça vai aflorando na cavidade vaginal,
Os hematomas podem passar despercebidos e não se
aparecendo primeiro o setor occipital. Assim, a porção do
constituírem em agravo à saúde, ou comprimir estruturas
couro cabeludo que está já insinuada fica voltada para a cavi-
vitais, levando o indivíduo à morte. Depende de sua loca-
dade vaginal e não recebe pressão. No anel que circunscreve
lização. Hematomas subperiósticos, localizados na face an-
essa porção, a pressão é forte o suficiente para barrar a saída
terointerna da perna, são comuns, principalmente em joga-
do sangue venoso, mas não o fluxo de sangue arterial para
dores de futebol, e não chegam a causar maiores problemas,
aquela porção circular do couro cabeludo. Por isso, o san-
a menos que sejam infectados. Já os de localização intracra-
gue venoso fica sob pressão aumentada, o que desequilibra
niana tornam-se mais graves porque, além de comprimirem
a microcirculação. Assim, forma-se edema nesta porção do
o tecido nervoso vizinho, aumentam a pressão dentro do
crânio, provocando herniamento de partes do tecido ner- couro cabeludo, fazendo com que surja a bossa . Quanto mais
demorar o parto, maior será o volume da bossa. O aumento
voso do cérebro e do cerebelo através de buracos e fendas
de volume do setor occipital do couro cabeludo é chamado
das estruturas anatómicas. Por exemplo, as amígdalas cere-
belares podem insinuar-se no buraco occipital; e parte do
lobo temporal pode insinuar-se entre a membrana tentorial
e o tronco cerebral. Os hematomas intracranianos podem-se
localizar nos espaços epidural, subdural, subaracnóideo, ou
no próprio tecido nervoso (Figs. 11.22 a 11.24). Serão anali-
sados com mais detalhes no Capítulo 12, dedicado aos trau-
matismos de crânio.
Hematomas resultantes de contusão abdominal podem
evoluir com dor localizada, como os subcapsulares do baço
ou do fígado. Podem romper-se e causar hemoperitônio im-
portante. O paciente experimenta alívio da dor, mas começa
a apresentar quadro clínico de anemia aguda, pois o sangra-
mento, até então contido pela cápsula do órgão, aumenta de
intensidade (Figs. 11.25 e 11.26 ).

Bossas Sanguínea e Serosa


É um aumento de volume dos tecidos por coleção de lí- Figura 11 .23. Hematoma epidural volumoso relacionado com a
quido que os infiltra intensamente, decorrente de distúrbio fratura da Figura 11.22.

Figura 11.24. Coloração azulada por transparência da dura-máter,


Figura 11.22. Fratura de crânio com afundamento da calota. Guia 71 causada por hemorragia subdural sobre os dois hemisférios cerebrais.
da 9ª DP, de 01 /11/68. Guia 2.152 do Hospital Souza Aguiar, de 29/11 /68.
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 203

Figura 11 .25. Hematoma subcapsular hepático no lobo direito. Caso


do IMLAP, autopsiado pelo autor em 24/01 /74.

Figura 11 .27. Formação da bossa occipital. Em 1 está o limite entre


as zonas de compressão com e sem reação da parede uterina; em 2
está a área em que não há resistência sobre os tecidos do couro cabe-
ludo; em 3 está o canal cervical, que será dilatado pelas contrações
uterinas. Osangue arterial atinge a área 2, mas não retorna pelas veias,
que estão comprimidas em 1. (Modificado da Figura 98 de Atlas de
Anatomia Humana, de Sobotta, 18ª edição, tradução para o espanhol.
Buenos Aires: Editorial Médica Panamericana; 1985.)

culares ficam infiltrados por sangue, e, às vezes, observa-se


estiramento ou arrancamento dos tendões. Como os tecidos
articulares são ricamente inervad os, as lesões da entorse pro-
Figura 11.26. Superfície de corte do fígado mostrado na Figura 11.25, vocam muita dor. A reação inflamatória leva a edema e infil-
em que se nota o volume ocupado pelo hematoma. tração celular para remover o sangue extravasado 5• O sangue
porventura derramado na cavidade articular é rapidamente
reabsorvido sem sequelas. Os edemas periarticulares pós-
vulgarmente de tumor do parto, o u caput succedaneum. Seu traumáticos parecem estar na dependência de fenómenos
valor médico-legal é atestar que o feto estava vivo durante o vasomotores desencadeados pela disfunção das terminações
trabalho de parto (Fig. 11.27) . nervosas simpáticas e parassimpáticas 5•
As entorses têm interesse médico-legal po rque causam
Entorse incapacidade funcio nal. No caso de ser provocada por agres-
É o estiramento da cápsula de uma articulação, com ou
são e a vítima ficar por mais de 30 dias sem poder realizar
sem rotura ligamentar. Aparece sempre que a amplitude suas atividades costumeiras, serve para caracterizar lesão
corporal de natureza grave.
normal dos movimentos articulares é ultrapassada, em de-
corrência de forças externas. É mais comum na articulação
tibiotársica e, nessa articulação, afeta com maior frequência
Luxação
o feixe perônio-astragalino do liga mento lateral externo. De- É o deslocamento permanente das superfícies articula-
corre de movimento brusco e forçado de adução do pé. Na res. É mais comum nos homens e nos membros superiores,
entorse, pode haver lesão da cápsula articular, dos ligamen- principalmente na articulação escapuloumeral. As crianças
tos e dos tecidos periarticulares. A cápsula pode ser rompida são m enos vulneráveis porque têm articulações bastante
em um ou vários pontos, com hemorragia para a cavidade móveis, com reserva funcional maior. Nelas, são mais co-
articular. Os ligamentos podem sofrer arrancamento, rotura muns os descolamentos epifisários. Por o utro lado, são pou-
ou alongamento, o que é mais frequente. Como são pouco co frequentes nos velhos porque seus ossos, enfraquecid os
vascularizados, têm escassa capacidade de regeneração e per- pela osteoporose, não resistem ao esforço e fraturam-se an-
manecem alongados após a fase aguda. Os tecidos periarti- tes de haver a luxação5 •
204 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

As luxações costumam ser provocadas por uma ação a o arrancamento de pequenas tuberosidades ósseas e desin-
distância d o agente contundente. As causadas por trauma di- serções, ou ro turas, de músculos e tendões. Por vezes, ocor-
reto sobre a articulação são pouco comuns. De acordo com a rem compressões vasculares e/ou nervosas, em decorrência
posição final dos ossos articulados, as luxações são chamadas do d eslocamento dos ossos articulad os.
de completas quando as su perfícies articulares perdem total- Não é comum a ocorrência de luxações expostas. A aber-
m ente as relações anatômicas; e de incompletas - subluxação tura para o exterior, através dos planos superficiais, é pouco
- quando ainda resta algum contato entre as duas peças. comum nas luxações. As grandes articulações, pro tegidas
O esforço a que é submetida a cá psula articular pode por m assas musculares robustas e possantes liga mentos, es-
produzir rotura em seus pontos fracos, ou desinserção. Atra- tão isentas dessa complicação grave. Mas as luxações de pe-
vés d o pertuito formado, insinua-se uma das epífises, que é quenas articulações, como as interfalangianas, podem rom -
m antida na posição viciosa pela retração da própria cápsula per a pele nos traumatismos m ais violentos.
e pela ação da musculatura que atua sobre os ossos deslo- As luxações são lesões mais graves do que as entorses e
cados. Como, nos diversos indivíduos, os pontos fracos de constituem, certamente, lesão corporal de natureza grave.
cada articulação são em geral os mesmos, a posição anormal
assumida pelo segmento luxad o tende a ser constante - lu- Fratura
5
xação regular • É uma solução de continuidade do osso. Na maioria dos
Outra consequência da rotura da cápsula articular é o casos, tem origem traumática, mas pode ocorrer espontanea-
derramamento de líquido sinovial nos tecidos periarticula- mente quando o osso está enfraquecido por alguma doença.
res de permeio ao sangue extravasado. A reação inflamatória Nesses casos, é chamada de f ratura patológica.
despertada por esse derrame e pela própria laceração dos te- O mecanismo de produção das fraturas pode ser direto,
cidos evolui nos moldes clássicos e, se não fo r feita a redução quando o agente contundente incide sobre o osso e o rom -
da luxação, termina por estabelecer aderências fibrosas das pe no local d o impacto. São exemplos algumas fraturas da
superfícies articulares em suas novas relações anatômicas. A clavícula e da tíbia. Mas podem ocorrer de modo indireto
partir do mom ento em que se estabeleçam essas aderências, por fl exão exagerada (fratura da diáfise umeral), por torção
a luxação dever á ser co nsiderada antiga. (ossos da perna), po r arrancamento (tuberosidade posterior
A tração exercida sobre ossos, músculos e tendões é capaz do cak àneo), ou por esmaga mento (extremidade inferior do
de ger ar lesões nessas estruturas. São relativam ente comuns rádio, falanges distais) (Fig. 11.28 ).

Figura 11 .28. Mecanismos de fraturas. /!is de números 4, 7, 12, 14, 15, 16, 18, 21, 22 e 26 são diretas na maioria das vezes. Com exceção da
de número 4, todas podem ser indiretas, mas isso é raro nas de números 7, 12, 21 e 22. Esquema adaptado da Figura 11 8 de Simonin6 .
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 205

Diz-se que uma fratura é completa quando o seu traço osso em vários fragmentos, estaremos diante de uma fratura
separa uma parte do osso ou o divide em mais de um seg- cominutiva. Se o agente atuar mais de uma vez e provocar
mento. Os arrancamentos ósseos que ocorrem na zona de in- mais de uma fratura, sucessivamente, os traços da segunda se
serção de tendões e ligamentos não chegam a dividir o osso, interrompem ao atingirem os traços da primeira. Isso ocorre
são fraturas parciais, mas destacam completamente peque- na calota craniana quando alguém é morto a pauladas.
nos fragmentos. As que chegam a dividir o osso são referidas O traço de fratura pode estar localizado na haste do osso
como fraturas totais (Fig. 11.29 ). (diáfise) ou nas extremidades (epífises), interessando algu-
As fraturas são chamadas de incompletas quando não ma cavidade articular. As fraturas articulares são mais graves
chegam a dividir o osso. É o caso dos afundamentos de ossos porque a possibilidade de prejuízo funcional é maior após
esponjosos, como o díploe da calota craniana (Fig. 11.30), a consolidação. O sangue derramado na cavidade articular
das fissuras e das fraturas em ramo verde das crianças. Nes- em grande volume e a lesão da cartilagem favorecem o esta-
tas, o estojo perióstico é bastante espesso e só se rompe com belecimento de aderências fibrosas entre as duas superfícies
dificuldade. Por isso, os ossos são protegidos e não costu- articulares5 •
mam sofrer fratura completa>. As fraturas completas dos ossos longos costumam com-
De acordo com a intensidade do traumatismo, pode ha- plicar-se pelo deslocamento dos segmentos ósseos, tanto por
ver mais de um foco de fratura no mesmo osso. Nesse caso, serem tracionados pelos músculos como pela própria força
ela é múltipla; do contrário, única. Em cada foco, porém, o do agente contundente. Esses deslocamentos podem-se rea-
traço pode ser simples ou ramificado. Se houver divisão do lizar ao longo de vários planos (Fig. 11.31 ).

Figura 11.29. Fratura completa do colo do fêmur em pessoa idosa Figura 11.30. Pequeno afundamento da tábua externa do díploe, com
atroplelada. Tais fraturas são comuns por causa da osteoporose própria alguns cabelos aderidos, em vítima de agressão com instrumento con-
da idade. Caso necropsiado pelo autor no IMLAP, em 1968. tundente. Caso autopsiado pelo autor em agosto de 1969, no IMLAP.

Afastamento
Penetração

Angulação

Baioneta
Figura 11.31 . Formas possíveis de deslocamentos dos fragmentos de ossos que sofrem fratura completa.
206 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

As extremidades ósseas fraturadas podem lesar os teci- ou na tentativa de andar, a ferida é mais regular e não apre-
dos vizinhos ao se deslocarem, tanto no momento da lesão senta escoriação nas bordas. Nesse caso, o risco de infecção é
como, mais tarde, pela sua mobilização. É por isso que are- um pouco menor.
dução das fraturas só deve ser tentada pelo ortopedista. Po- A consolidação de uma fratura de osso longo costuma
dem apresentar pontas ou bordas agudas, capazes de causar fazer-se em 20 a 30 dias aproximadamente. Após esse tempo,
lesões musculares, nervosas, vasculares, viscerais, ou mesmo os dois fragmentos já estão reunidos por um tecido ósseo
a abertura do foco de fratura (Figs. 11.32 e 11.33 ). Por exem- formado a partir da organização do hematoma do foco de
plo, o nervo radial pode ser rompido nas fraturas diafisárias fratura - o calo ósseo. Contudo, a capacidade para suportar
do úmero. As lesões arteriais, pouco frequentes, manifestam- carga depende de um amadurecimento do calo que só é atin-
se por formação de hematoma pulsátil e por fenômenos is- gido com maior tempo. Por isso, a remoção da imobilização
quêmicos distais ao foco de fratura. não deve ser precoce, pois se corre o risco de romper um calo
A abertura do foco de fratura para o exterior, mais co- ainda pouco consistente. Há variações individuais quanto
mum nas fraturas diafisárias da tíbia, constitui séria ameaça ao tempo necessário à cura completa em função da idade e
à consolidação, pelo risco de contaminação (Fig. 11.34) . do estado geral do paciente. Os jovens reparam uma fratura
Quando ocorre em decorrência do próprio impacto que em menor tempo do que uma pessoa idosa, em que os ossos
a produziu, pela ação direta do agente contundente, a feri- apresentem osteoporose. Da mesma forma, carência de cál-
da cutânea tem bordas escoriadas e irregulares. Se resulta de cio, de fósforo e insuficiências hormonais podem retardar a
atuação do fragmento ósseo de dentro para fora, como nas consolidação de uma fratura 7•8
fraturas por flexão, nas manobras intempestivas de redução A princípio, durante a primeira semana, as células osteo-
gênicas que se acham no revestimento externo e interno do
osso, respectivamente periósteo e endósteo, multiplicam-se
e invadem o hematoma do foco de fratura. Na verdade, elas
não estão presentes normalmente. São o resultado da dife-
renciação de células pluripotenciais capazes de se transfor-
mar em osteoblastos quando adequadamente estimuladas 7•8•
Ao mesmo tempo, entram em atividade as células destrui-
doras de osso, os osteoclastos, que reabsorvem o tecido
ósseo lesado e liberam substâncias no foco de fratura que
estimulam a ação dos osteoblastos8. Conforme passam os
dias, elas vão depositando material osteoide sob a forma de
trabéculas, que se espessam e sofrem posterior calcificação,
constituindo uma massa que excede os limites externos e
internos do osso fraturado.
Com 2 para 3 semanas, a massa de tecidos do foco de
fratura já tem consistência suficiente para manter as extre-
midades do osso unidas, mas a densidade do calo, decorrente
Figura 11.32. Rotura do lobo inferior do pulmão esquerdo relaciona- da calcificação das trabéculas, só atinge o máximo em cerca
das com fraturas costais não visíveis na foto. O tecido adjacente está de 1 mês. Depo is, o calo tem que ser remodelado, havendo
bastante infiltrado por sangue. Coleção de ensino da Faculdade de
Medicina da UFRJ.

Figura 11.33. Fratura exposta do terço superior do fêmur através de


ampla ferida que vai do púbis à face posterior do joelho. Caso não iden- Figura 11.34. Foco de fratura da tíbia em que a cirurgia não logrou
tificado, autopsiado pelo autor no IMLAP. êxito por causa de infecção. Guia 125 da 14ª DP, de 13/05/71.
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 207

Figura 11.36. Enfisema subcutâneo generalizado em caso de com-


pressão do tórax e rotura do pulmão. Coleção de ensino da Faculdade
de Medicina da UFRJ.
Figura 11 .35. O membro inferior esquerdo está encurtado por apre-
sentar uma tumoração no terço superior do fêmur, onde há pseudoar-
trose. Apele sobre o grande trocanter revela uma escara. Caso do autor, dos vasos da base, tem que haver fratura do estojo ósseo, ou
IMLAP-RJ, ano de 1968.
grande modificação da inércia de todo o corpo.
As ro turas pulmonares estão, em geral, relacionadas a
fra turas costais com su perposição dos fragmentos. Um dos
reabsorção do excesso de osso e reorientação das trabéculas segmentos ósseos perfura a pleura e penetra na face costal do
de acordo com as linhas de fo rça próprias do osso fraturado7• pulmão (Fig. 11.32). Isso produz um hemopneumotórax. A
Esse processo consom e vários dias, e o resultado final é menor elasticidade das costelas em pessoas idosas torna-as
a reconstituição do canal m edular do osso, mas o local fica mais propensas às fraturas costais e às lesões pulmonares.
permanentemente marcado por uma saliência da superfície Em alguns casos, as roturas pulmonares situam -se no inte-
do osso onde ocorreu a fratura. Tal fato, a persistência do calo rior do ór gão, em ger al relacionadas a brônquios interme-
ósseo, é muito importante como elemento de identificação diários. O ar proveniente do brônquio rompido e o sangue
de despojos humanos e em catástrofes com grande número extravasad o for mam uma cavidade que pode ser ocupada
de vítimas, como nos naufrágios e desastres aéreos. Contudo, tanto por um quanto por outro, em proporção variad a, po-
fraturas lineares incompletas podem não deixar vestígiosª. dendo haver apenas hematom a, o u somente cavidade aérea.
Para que uma fratura se consolide de m odo satisfatório, A presença do sangue dentro dos alvéolos desperta uma rea-
é necessário que os fragmentos sejam realinhados sem inter- ção inflamatória que atrai macrófagos para removê-lo. Se o
posição de partes mo les e, depois, imobilizados. A não obser- indivíduo não mo rrer em decorrência de o utras lesões, após
vân cia desses princípios pode impedir que os segmentos se algum tempo, a lesão cura, deixando pequena cicatriz fibro-
soldem, ou causar a fo rmação de um calo em posição viciosa, sa. Por vezes, o ar infiltra-se no tecido intersticial do pulmão
não fun cional. Quando não ocorre a união dos ossos fra tura- e espalha-se pelo m ediastino e pelo resto d o corpo sob a for-
dos, fo rma-se o que se denomina pseudoartrose (Fig. 11.35). m a de enfisema (Fig. 11.36).
As pseudoartroses são lesões incapacitantes, pois impedem A compressão do tórax no sentido anteroposterior, por
a movimentação normal do osso, que se dobr a onde ela se uma força suficiente para levar o esterno de encontro à co-
situa quando os músculos se contraem. luna vertebral, provoca roturas irregulares no cor ação e nos
vasos da base. Nos indivíduos adultos, os arcos costais são fra-
Roturas Viscerais
turados por causa da gr ande acentuação de sua curvatura no
As vísceras abd ominais e torácicas podem ser ro mpi- terço médio. A mesma fo rça pode causar fra tura do esterno,
das como resultad o de um impacto sobre o tronco, ou por embora ela seja mais frequente nos impactos rápidos e po ten-
compressão fo rte e progressiva desse segm ento. A diferença tes, como os que resultam da projeção do corpo de motoristas
de consistência entre a parede abdo minal e a caixa torácica, de encontro ao volante de carros, durante colisões frontais.
bem como a natureza e a textura dos respectivos órgãos, faz Nas compressões lentas, por exemplo quando uma roda
com que seja preciso maior energia cinética em um agen- de caminhão passa por cima do tórax, a rotura pode atin-
te contundente para que ele produza lesões intratorácicas, gir qualquer das cavidades card íacas. Mas, nas causad as por
quando comparada com a necessária para produzir lesão nas cho ques violentos, as cavidades direitas são rompidas com
vísceras abdominais. Por isso, analisaremos separadamente m aio r freq uência, por terem paredes m enos resistentes, que
as roturas d os órgãos torácicos e dos abdominais. não suportam a elevação súbita da pressão em seu interior.
O gr adil costal e o esterno to rnam a parede torácica menos A necessidade de rápido escoamento explica a ocorrência de
compressível que a abd ominal. A resistência é ainda m aio r pequenas roturas na entrada das veias pulmonares, na au-
na face posterior, à custa da coluna e d os músculos paraver- sência de outras lesões. O aumento brusco da pressão intra-
tebrais. Assim, para que haja rotura pulmonar, cardíaca ou auricular fo rça a saída do sangue através de seus orifícios,
208 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

que não têm diâmetro suficiente para lhe dar vazão, rompen- vocar sua rotura, principalmente do lado esquerdo, já que
do-se por alargamentos. o direito está protegido pela presença do fígado. A rotura,
A aorta pode ser rompida tanto nas compressões brus- de direção quase sempre radial, ocorre, geralmente, entre a
cas e nos esmagamentos, como nas grandes desacelerações porção tendinosa e os feixes posteriores, o ponto mais fra-
resultantes de colisões ou de quedas. O local de maior inci- co. Pode estender-se até o hiato ou ao pericárdio. Quando
dência da rotura situa-se logo abaixo da emergência da arté- extensas, são acompanhadas por herniamento do conteúdo
ria subclávia nas colisões e nos esmagamentos. Nas quedas, abdominal, principalmente o estômago, para dentro da cavi-
porém, tem sido referida como mais frequente na porção dade pleural esquerdas.
ascendente da croça, junto à sua origem. Estudos de coli- As vísceras abdominais maciças tendem a ser lesadas
sões frontais a cerca de 95 km/h, feitos por Cammak (1959) 9 , com frequência tanto nos impactos quanto nas compres-
demonstraram grande aumento da pressão intra-aórtica, sões lentas. Com maior frequência, observam-se roturas
chegando a 1.250 mmHg, o que seria, para esse autor, sufi- hepáticas ou esplênicas, seguidas pelas renais e as pancreá-
ciente para romper a parede do vaso. Mas Zehnder (1956) 10 ticas. A extensão das lesões varia com a violência do trau-
já havia referido que a aorta torácica pode resistir à pressão matismo e com a consistência do órgão. Estados patológi-
de 2.000 mmHg sem se romper. cos que aumentem o seu volume e a sua friabilidade fazem
Parece que, na realidade, o efeito do aumento da pres- com que traumatismos não muito intensos sejam fatais.
são intraluminal é agravado pela fixação da aorta à parede Fonseca e Silva (1970) 11 descreveram um caso de rotura de
torácica pela artéria subclávia esquerda, que, assim, exer- baço e morte por hemoperitônio em um garçom portador
ceria tração em seu local de origem, explicando a maior de doença de Gaucher, um distúrbio do metabolismo dos
incidência das roturas naquele segmento. O mesmo meca- lipídios. Ele havia levado um soco de um freguês no flanco
nismo explicaria a rotura da aorta ascendente nas quedas esquerdo. Após o trauma, começou a sentir dores abdo-
de grandes alturas. A rotura se faz de dentro para fora e, minais, foi para casa e, na manhã seguinte, foi encontrado
por vezes, não chega a interessar toda a espessura da pare- morto em seu leito.
de vascular. Nesses casos, a sua túnica externa, a pleura e As roturas de vísceras maciças podem ser superficiais,
o mediastino podem conter por algum tempo o extravasa- apenas subcapsulares, ou extensas, interessando todo o ór-
mento do sangue, permitindo que a vítima sobreviva o su- gão. Alguns autores afirmam que as vísceras se rompem por-
ficiente para ser socorrida. Há relato de sobrevida prolon- que há um aumento da sua curvatura. Outros admitem que
gada com aneurismas formados após roturas incompletas a rotura se deva a uma forma de explosão, pelo fato de conte-
da parede aórticas. rem muito sangue. É mais provável que os dois mecanismos
Os impactos sobre o abdómen provocam súbita eleva- sejam reais.
ção da pressão em seu interior. As vísceras em conjunto são As lesões pancreáticas, em geral, costumam ser acompa-
comprimidas e tendem a se insinuar em brechas da parede, nhadas de outras em órgãos vizinhos, como o duodeno e as
se houver. É o caso das hérnias traumáticas, que são o agra- vias biliares. Relativamente frequentes são as fissuras e os pe-
vamento brusco de condições preexistentes (Fig. 11.37). quenos esmagamentos mesentéricos (Fig. 11.38) .
O diafragma é empurrado para cima e distendido violen- As lesões de vísceras ocas são mais comuns nos impac-
tamente nas contusões abdominais. Essa distensão pode pro- tos violentos, principalmente se o órgão estiver parcialmente

Figura 11.37. Hérnia traumática, com passagem de alças intestinais


para a face anterior da coxa esquerda, por baixo da arcada crural. Guia Figura 11.38. Três roturas mesentéricas, a maior ocupando a porção
34 da 29ª DP, de 26/02/71. central da figura. Coleção de ensino da UFRJ.
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 209

cheio de líquido ou de alimentos. Mas também podem ser le- epitélio. Camadas cada vez mais profundas serão atingidas à
sadas por compressão de encontro à coluna vertebral, princi- medida que se aumentar a ação abrasiva.
palmente o duodeno. Contudo, pelo volume e a extensão que As escoriações que desgastem apenas o terço superior da
ocupa na cavidade abdominal, o jejunoíleo é a víscera atin- camada espinhosa da epiderme traduzem-se macroscopica-
gida com maior frequência, quando computadas também mente por exsudação de líquido seroso incolor, que evapo-
as lesões penetrantes. Segundo Campos e Ferraz, mais de ra, deixando pequeno coágulo amarelado que produz uma
90% dessas lesões são causadas pelas feridas penetrantes do crosta sérica por evaporação. As que passem em plano inter-
abdómen, embora essa proporção possa não ser tão grande mediário entre o ápice e a base das papilas dérmicas apare-
em estudos realizados por autores estrangeiros 12• cem como um pontilhado hemorrágico em meio à exsuda-
O aumento súbito da pressão no interior do estômago, ção serosa e formam crosta serossanguinolenta. Já as lesões
nos traumatismos de andar superior do abdómen, pode pro- mais profundas, que passem em plena derme por toda a sua
vocar lacerações e rotura do terço inferior do esófago, no seu extensão, formam um lençol hemorrágico uniforme que dá
trajeto intra-abdominal. Tais lesões, em geral, têm direção origem a uma crosta hemática (Fig. 11.39) .
longitudinal5 . Conforme já descrevemos ao estudarmos a reação vital
As roturas viscerais devem ser consideradas lesões graves no Capítulo 7, as células do epitélio vizinho à lesão levam
nos exames de lesão corporal dolosa. Qualquer que seja sua 18 a 24 horas para começar a cobrir a zona lesada, por baixo
sede, constituem, a nosso ver, perigo de vida. Como nas de- da crosta, nos casos de feridas assépticas como as cirúrgicas.
mais lesões por agentes contundentes, os acidentes e os cri- Acreditamos que o tempo necessário nas escoriações seja
mes culposos são suas causas jurídicas mais frequentes. mais prolongado em face da irregularidade da lesão e do fato
de ser contaminada. Como é natural, o tempo necessário
para a reparação de uma escoriação depende da profundi-
Lesões Abertas dade que atingiu. As mais superficiais, que produzem apenas
Escoriação crosta sérica, evoluem muito mais rapidamente que as pro-
fundas, de crosta hemática.
É o arrancamento traumático da epiderme. Não deve ser O tempo necessário ao descolamento da crosta depende
confundida com os descolamentos causados por outros tipos de fatores locais do tecido como a sua vascularização e ave-
de agentes, como as queimaduras, ou doenças bolhosas da locidade de renovação normal do epitélio. Assim, as escoria-
pele. Nela, o agente contundente desliza sobre a pele e, de- ções da face evoluem mais rapidamente que outra de m esma
vido ao atrito, arranca as camadas celulares da epiderme em profundidade, situada na perna. Se houver dificuldade cir-
profundidade variada, expondo a derme. Os efeitos depen- culató ria, como varicosidades e edema, a diferença torna -se
dem da pressão exercida sobre a pele e do grau de aspereza da ainda maior. Isto tem importância médico-legal, já que é
superfície do agente. Quando a energia trazida pelo agente é possível encontrar escoriações em fase evolutiva diferente
pequena, são arrancadas apenas as camadas superficiais do conforme a região do corpo, por exemplo, 1 semana após

Figura 11.39. Conforme a profundidade, as escoriações formam crosta sérica, serossanguinolenta ou totalmente sanguinolenta.
210 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

uma agressão a socos e pontapés. A ignorância dessa parti- presença de maior número de capilares. Essa zona hipo-
cularidade pode fazer com que o perito admita a ocorrência crômica é chamada de marca de escoriação e tende a desa-
de mais de uma agressão em datas diferentes. parecer com o tempo, sem deixar cicatriz. Por isso, marcas
A crosta das escoriações profundas fica fortemente ade- extensas de escoriações no rosto devem ser avaliadas com
rida e tem cor pardo-avermelhada. Com 1 semana de evolu- cautela. Geralmente, não autorizam o perito a afirmar que
ção, tem consistência bem firme, contorno nítido, e começa a lesão corporal deixou deformidade permanente, a não
a esboçar um levantamento na periferia (Figs. 11.40 a 11.42). ser que sejam muito fibrosas. Nesses casos, impõe-se novo
Com 2 semanas, pode já ter sido totalmente eliminada. A exame após 6 meses e outro após 1 ano. Algumas vezes, a
evolução costuma sofrer retardo se houver novo traumatis- área passa por uma fase de hiperpigmentação temporária,
mo na área, ou infecção e consequente formação de pus sob mas que também desaparece em médio ou longo prazos.
a crosta. Contudo, nas escoriações mais profundas infectadas pode
O descolamento da crosta deixa ver uma superfície de haver formação de tecido fibroso que persiste no local por
cor rósea, muito mais clara que a pele vizinha, resultado da tempo indeterminado.
ausência de pigmento de melanina no epitélio jovem e da Quando o arrancamento da epiderme é feito em cadá-
ver, o desnudamento da derme não produz a exsudação que
ocorreria em vida, por falta de pressão dos líquidos teciduais.
A evaporação da umidade da superfície da derme exposta
gera uma placa amarelada, de consistência firme ao toque,
semelhante a couro, que se chama de placa pergaminhada
(Fig. 11.43). Por vezes, aparecem em vários trechos da pele
pela ação de formigas (Fig. 7.18).
Algumas escoriações têm forma característica e permi-
tem reconhecer o agente contundente que as produziu. As
unhas deixam escoriações de forma côncavo-convexa, se-
melhante à lua crescente, que permitem determinar inclu-
sive a posição dos dedos do agressor - estigmas ungueais.
São impo rtantes nos casos de esganadura (ver Capítulo 24).
Por vezes, o deslizamento da unha produz faixas de esco-
riação com início convexo e final côncavo. Unhas de felinos
produzem três ou quatro escoriações lineares paralelas. Os
Figura 11.40. Escoriação de uma semana de evolução na face ante-
rior do joelho, causada por queda da própria altura sobre piso de pedras. arrastamentos produzem escoriações formadas por estrias
Notar a crosta hemática de cor parda com retração no centro, discreta paralelas, compactamente distribuídas, com a m esma dire-
retração da periferia e hiperemia dos tecidos vizinhos. Lesão ocorrida ção do deslocamento do agente. São chamadas de escoriação
em 25/02/98 na residência e fotografada aos 6 dias de evolução. de raspão (Fig. 11.44). Além de equimoses, as arcadas dentá-

Figura 11 .41. Mesma lesão da Figura 11 .40 aos 1Odias de evolução.


Nota-se que já houve descolamento do terço superior da crosta principal Figura 11.42. Marca de escoriação resultante da lesão mostrada nas
e das pequenas crostas satélites do terço inferior. A área onde houve o duas figuras anteriores, duas semanas após o trauma. A pele tem cor
descolamento tem tonalidade rósea, e o halo esbranquiçado, que repre- rósea por causa da escassa pigmentação do epitélio e do maior número
senta a reepitalização, aumentou de largura. de capilares sanguíneos da área lesada.
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 211

Figura 11 .43. Área de arrancamento da epiderme do cadáver de um Figura 11 .45. Faixas de escoriação em forma de sulcos entrecruza-
negro. Notam-se duas áreas claras: uma amarelada, que já sofreu desi- dos nas faces anterior e lateral direita do pescoço, de cor pardo-aver-
dratação, e outra branca, feita de propósito, pouco antes de ser fotogra- melhada escura. Caso de estrangulamento periciado pelo Dr. Nereu G.M.
fada. Guia 323 da 30ª DP, de 18/11 /97. Guerra-Neto. Guia 361 da 36ª DP, de 22/09/98.

rias podem produzir escoriações com a mesma forma. Nos


acidentes de trânsito, certos componentes do veículo podem
causar escoriações cujo desenho imita perfeitamente a sua
forma, como a porção central do volante de alguns automó-
veis, nas colisões frontais. Indivíduos manietados, ou presos
e algemados, podem apresentar escoriações lineares parale-
las ao redor dos punhos. O afastamento das linhas é igual à
espessura do aro no caso de algemas. Escoriações em forma
de sulco ao redo r do pescoço sugerem fortemente estrangu-
lamento, desde que horizontais e de profundidade uniforme
(Fig. 11.45).

Valor Médico-legal das Escoriações


As escoriações podem fornecer importantes informações
ao perito-legista. Em primeiro lugar, confirmam a existência
de reação vital e que houve atuação de um agente contun-
dente. Pelo aspecto de sua crosta, podem dar ideia do tem-
po em que foram produzidas. Pela sua localização e forma,
sugerem certos tipos de agressão: 1) em forma de sulco, no
pescoço, estrangulamento; 2) em forma ungueal, no pesco-
ço, esganadura; 3) imitando arcada dentária, mordeduras;
4) nos braços, antebraços e pernas, contenção; 5) nas regiões
erógenas, crime de natureza sexual; 6) lineares ao redor dos
punhos, algemas.

Ferida Contusa
É a solução de continuidade, ca usada por ação contun-
dente, que interessa todos os planos da pele, inclusive o
subcutâneo. Sua forma e demais características variam de
Figura 11.44. Escoriação de raspão cujos componentes lineares são acordo com o mecanismo de produção. Um desses mecanis-
paralelos e se iniciam numa linha reta imaginária transversal ao eixo do mos é a compressão da pele entre duas superfícies rijas, uma
antebraço. Pequeno acidente do trabalho por queda de sobre um muro delas o agente contundente (Fig. 11.46). A superfície do
de pouca altura. O aspecto resultou da ação da aresta do muro na agente força, inicialmente, a epiderme de encontro à derme
tentativa de se apoiar para não cair. e esta de encontro ao plano subjacente, geralmente um osso.
212 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

Figura 11.46. Esquema de ferida por compressão. O instrumento


contundente esmaga as camadas da pele contra os planos mais profun-
dos, por exemplo, o muscular ou o esquelético.

A epiderme é arran cada e as fibras da derme são deslocadas


lateralmente e rompem -se quando a pressão ultrapassa seu
limite de resistência. Assim sendo, as bordas apresentam -se
escoriadas, as vertentes anfractuosas e infiltradas por san-
gue, e o fundo, irregular e sujo. Notam -se po ntes de tecido
unindo as vertentes opostas próximo às suas extremidades
(Fig. 11.47).
As feridas por com pressão são mais frequentes no cou-
ro cabeludo. Q uando decorrentes de queda sobre superfície
plana, situam-se próximo ao equado r do cr ânio e m ais no
setor occipital. Nesses casos, assumem uma fo rma estrelada
irregular, com as bordas solapadas, e ocu pam o centro de
um a escoriação circular. Instrumentos aproximadamente Figura 11.47. Feridas de bordas irregulares e escoriadas na face e no
esféricos, por exemplo um m artelo de bola, também cau- couro cabeludo causadas por agressão com cano de ferro, o que explica
sam feridas estreladas irregulares, mas a escoriação é m enor sua forma linear. Caso periciado pelo autor no IMLAP, ano de 1969.
e não aco mpanha as fissuras d o cou ro cabeludo que se ir-
r adiam do centro da lesão. Tais prolonga mentos devem -se
à distensão e ao afastam ento da pele na região adjacente à
d o impacto 13•
Pedaços de madeira usados na construção civil, tipo
perna de três, causam lesão linear com ramificação em "Y"
quando incidem pela extremidade. As ramificações devem-se
ao afastamento brusco das margens, não são solapadas e re-
velam numerosas pontes de tecido unindo as bordas. Q uan-
d o essa peça de madeira incide pela aresta, age como intru-
mento cortocontundente.
A direção de deslocamento do instrumento causad or da 2
lesão po de ser reconhecida nas incidências oblíquas pelo
grau de solapamento das margens da ferida. Depois de
rompida a pele, o instrumento tende a empurrar a margem
da ferida que corresponde ao prosseguimento do seu des-
locamento, a q ual fica mais solapada. Se o golpe for muito
oblíquo, pode ocorrer descolamento dessa margem por uma
extensão variada (Fig. 11.48 ).
O outro m ecanismo de produção das feridas contusas é Figura 11.48. No esquema nQ1, o agente contundente traciona a pele
a tração. O agente contundente traciona a pele fo rtem ente, obliquamente e o vetor horizontal Fhda decomposição da força Ffaz com
de modo continuado e lento, ou faz movimento de desliza- que ela seja esticada até a sua rotura, visível no esquema nQ2. A seta
mento sobre o segmento. O atrito faz com que a pele seja para a esquerda representa a força de resistência elástica da pele, F(
CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente • 213

Figura 11 .49. Ferida contusa por forte tração da pele. Notam-se Figura 11 .50. Esmagamento de cabeça e tórax em vítima de atrope-
pontes de tecido íntegro unindo as vertentes, ausência de escoriação lamento por ônibus. fts marcas do pneu podem ser vistas como equi-
nas bordas e fissuras paralelas na pele adjacente, principalmente junto moses em linha quebrada na face anterior do tórax. Guia 55 da 22ª DP,
da borda inferior. Caso autopsiado pelo autor no IMLAP, ano de 1969. de 26/02/69.

puxada até o limite de sua elasticidade e comece a se romper


aos poucos em várias fendas irregulares e paralelas, até que
uma delas interessa tod a a espessura e a pele é rompida (Fig.
11.49) . As margens da lesão pod em não ser escoriadas, estão
parcialmente descoladas do tecido subcutâneo, apresentam
fissuras paralelas na área contígua e um pouco à distân cia, e
estão unidas por extensas traves d e tecido íntegro. São exem-
plos desse mecanism o o escalpe pro duzido por correias que
prendam os cabelos e os tracionem de mo do violento e o
estiramento d a pele por pneu de viatura que passe sobre um
segm ento corporal.

Valor Médico-legal das Feridas Confusas


Servem para atestar a ação contundente e, em alguns ca-
sos, por sua fo rma sui generis, indicar o agente vulnerante. Figura 11.51 . A violenta compressão arrancou o coração e o deslocou
através de um espaço intercostal e do oco axilar para a face anterior do
braço direito. Mesmo caso da Figura 11.50.
Esmagamentos
São lesões em que todos os planos anatómicos d e um
segmento d o corpo são comprimidos e triturados pelo agen- d e insuficiência renal aguda, que faz parte d a chamada "sín-
te contundente. Po dem interessar apenas pa rte d e uma ex- drome de esmagamento''.
tremidade, a cabeça, o tronco ou a totalidad e d o corpo (Figs.
11.50 e 11.5 1).
O agente causador dos esm agam entos é, sempre, um • CAUSA JURÍDICA DAS LESÕES POR AÇÃO
agente do tado de excessiva ener gia cinética, em geral d e CONTUNDENTE
grande massa. Prensas, veículos, polias de máquinas em mo-
vimento, marretas, martelos, todos podem causar esmaga- A m aioria das lesões, leves ou fatais, é causad a por aci-
mento na dependência do segm ento lesad o. As partes moles d en te. Entre as mortais, a causa mais comum são os atro-
são extensamente lacerad as, e os ossos sofrem fratura do tipo pelamentos e as colisões de veículos. Seguem -se os suicídios
cominutivo. No esmagam ento, estão reunidas q uase tod as as por defenestração. Mas não são raros os casos de agressão
lesões por agentes contundentes. com instrumentos contundentes com o barras de ferro, pe-
A d estruição extensa d e tecidos, além d e provocar per- d aços de madeira e pedras. Nas agressões com instrumentos
da sanguínea importante, excita as terminações nervosas e em forma de bastão, é possível encontrar lesões de defesa re-
libera substâncias nocivas na circulação. Se o indivíduo não presentadas por eq uimoses e escoriações situadas na borda
mo rrer nos primeiros dias, pode desenvo lver quadro clínico cubital d o antebraço e nas mãos (Figs. 11.20 e 11.21).
214 • CAPITULO 11 Lesões e Morte por Ação Contundente

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Editorial JIMS; 1966. Charles C. Thomas Publisher; 1993. Capítu lo VII.
José Carlos Pando Esperança

• INTRODUÇÃO rizada por cefaleia intensa, vómitos e edema de papila. A hi-


pertensão intracraniana pro longada é uma condição grave,
Várias estatísticas nacionais e internacionais apontam sendo causa comum de morte por causar danos irreversíveis
que a principal causa de morte violenta são os acidentes de ao tecido.
trânsito. Todavia, análise estatística recente feita por nosso Outra característica impo rtante em relação à caixa cra-
grupo no Instituto Médico-legal Afrânio Peixoto do Rio de niana é que a face interna possui vários acidentes ósseos. Al-
Janeiro (IMLAP-RJ) revelou que cerca de 60% das mortes guns funcionam com instrumentos cortantes, em particular
violentas são causadas por PAF (projétil de arma de fogo), os situados nos andares anterior e médio da base.
seguidas, em ordem de frequência, das mortes por atropela - As m eninges são estruturas m embranáceas que recobrem
mentos e colisões. Nessas m odalidades, em mais de 70% dos o encéfalo, contribuindo assim para a sua proteção. A dura-
casos, há lesões cranioencefálicas, muitas vezes relacionadas m áter é espessa, opaca e contém os seios venosos. O pro-
diretamente com a morte. longamento mediano chamado foice separa os hemisférios
Portanto, é fundamental para os profissionais da área de cerebrais. A aracnóidea e a pia-máter, também chamadas de
saúde conhecer os tipos, a terminologia e os principais m e- leptom eninges, são finas e transpa rentes, e a última é que
canismos de lesão. Antes de entrar no assunto propriamente
tem contato direto com o tecido nervoso. Entre essas duas
dito, é necessário tecer alguns comentários superficiais, mas
m embranas (espaço subaracnóideo) circula o liquor. Dife-
importantes, referentes à anatomia e histologia do sistema
rentemente do tecido nervoso, o processo de restauração das
nervoso central (SNC).
meninges é pelo reparo cicatricial po r fibrose.
Outro aspecto anatómico importante refere-se à consis-
tência do tecido encefálico. Geralmente as pessoas têm a im-
• CONSIDERAÇÕES GERAIS ANATÔMICAS E
pressão de que o encéfalo tem consistência algo firme, visto
HISTOLÓGICAS
que as peças anatómicas de estudo são fixadas pela solução
O Sistema Nervoso Central é a mais complexa e espe- de formol. A fresco, o encéfalo tem consistência algo amole-
cializada estrutura do nosso o rganismo, do ponto de vista cida, semelhante a gelatina. A comparação é tão perfeita que
anatómico, fisiológico e histo lógico. Por essa razão, o encéfa- existem estudos experimentais utilizando esse produto. Em
lo apresenta algumas particularidades em relação aos outros m eio à massa gelatinosa, vasos e fibra s axonais se entrecru-
órgãos, a começar pelo local onde se situa. zam. Notam-se pontos mais fixos principalmente ao nível do
A caixa craniana é uma estrutura óssea resistente que tem tronco, onde estão situados vasos sanguíneos mais calibro-
como finalidade a proteção contra traumatismos po r agen- sos e nervos cranianos. Tal fato é de suma importância para
tes mecânicos. Porém, devido a esse fato, lesões expansivas o entendimento da patogenia de certas lesões de etiologia
podem elevar a pressão intracraniana, clinicamente car acte- traumática.

215
216 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

Diferentemente dos outros tecidos, a drenagem é realiza- Inspeção Interna da Cabeça


da pelo sistema liquórico. O liquor é produzido pelo plexo
Retirada do Encéfalo
coroide dentro dos ventrículos e circula pelas leptomeninges.
Uma de suas funções é a proteção, por amortecimento, dos O encéfalo deve ser retirado e examinado morfologica-
impactos causados por diversos agentes. mente em todos os casos. A técnica de retirada é bastante tra-
Cabe ressaltar que o sistema nervoso central é todo ma- balhosa e tem que ser realizada com certos cuidados. Em pr i-
peado, existindo perfeita correlação entre a topografia das meiro lugar é feita uma incisão bimastóidea perpendicular ao
lesões com sinais e sintomas neurológicos. As manifesta- plano sagital, rebatendo-se o couro cabeludo em dois retalhos
ções clínicas vão depender principalmente do tipo, da ex- (anterior e posterior). É importante observar a face profunda
tensão, do número e do local das lesões. Exemplificando, do couro cabeludo. A presença de infiltrações hemorrágicas
um ponto hemorrágico situado na substância branca do indica que ocorreu trauma, ajudando no diagnóstico diferen-
lobo frontal pode não ter tradução clínica; por outro lado, cial com entidades de etiologia não traumática. Logo após,
o mesmo ponto no tronco encefálico pode levar à morte. são feitos o rebatimento dos músculos temporais e a raspa-
Esse raciocínio serve para qualquer tipo de lesão, traumá- gem da fina membrana que recobre parcialmente a calota
tica ou não, constituindo o princípio básico da correlação (periósteo), procedimento importante para detectar peque-
clinicomorfológica. nas fraturas. A calota craniana é seccionada com uma serra
A histologia do tecido nervoso é bastante complexa, acoplada a um arco. Segundo recomendação do Ministério
formada por um emaranhado de células com origens di- da Saúde, a serra elétrica não deve ser utilizada para esse fim,
ferentes e por uma matriz bem peculiar. O neurô nio é a devido à geração de partículas e aerossóis. De preferência, a
principal célula do sistema nervoso central e a mais espe- dura -máter é retirada com uma tesoura de ponta curva, se-
cializada do nosso organismo. Devido à alta especialização, guindo o plano de corte da serra. O encéfalo é removido com
essas células têm baixa capacidade de divisão. Em casos de cautela em virtude da sua consistência, segurando-o com
destruição neuronal, o local é restaurado por meio da hi- uma das m ãos e, com a outra, cortando os pares cranianos
perplasia e hipertrofia de astrócitos, processo denominado bem rente às estruturas ósseas. Por fim, são cortados os vasos
astrocitose o u gliose. e nervos que ficam adjacentes ao tronco encefálico. A medula
São consideradas células de linhagem glial os astrócitos, é seccio nada na porção superior, que a une ao bulbo, se pos-
os oligodendrócitos e as células ependimárias. A micróglia sível com uma faca de po nta fina (Fig. 12.1 ).
não faz parte das células da glia, tendo a m esma origem e
função dos macrófagos, com papel importante no processo Exame da Superfície de Corte do Encéfalo
de restauração. Os astrócitos têm com o função a restauração Nas autopsias hospitalares, logo após a retirada, o encéfa-
d os tecidos e contribuem para formação da barreira hema- lo é pesado e examinado externamente, sendo imediatamen-
toencefálica. Os oligodendrócitos são células pequenas com te colocado em uma cuba contendo solução de formo! (ideal
prolongam entos curtos responsáveis pela produção de mie- a 30% e cerca de dez vezes o volume do ó rgão) . O ó rgão deve
lina no SNC. As células ependimárias revestem as cavidades ficar pendurado por um barbante que passa através dos va-
ventriculares, o canal medular, o aqueduto de Sylvius e o fi- sos da base, de m odo que não encoste no fundo, para se evi-
lamento terminal. Têm a função de modular a passagem de tar a deforma ção pela fixação. O exame interno é feito após
líquido e substâncias entre as células do SNC e o liquor. 15 dias de fixação, pois isso possibilita análise macroscópica
de melhor qualidade. Os cortes podem ser realizados por di-
ferentes técnicas, porém atualmente se prefere a clivagem no
• NEUROPATOLOGIA FORENSE plano tom ogr áfico para m elhor correlação com os m étodos
de imagem.
Exame Externo e Interno da Cabeça Geralmente, nas autopsias médico-legais, o encéfalo é cli-
vado na hora. Tal procedimento eventualmente prejudica a
Inspeção Externa da Cabeça
visualização das lesões e das estruturas anatômicas, em vista
O exame externo deve ser minucioso, a começar pela da consistência amolecida d o tecido. Não há qualquer impedi-
descrição fisionômica. Faz parte da rotina o relato das ca- mento em adotar a rotina das autopsias hospitalares, se o legis-
racterísticas dos cabelos, olhos, presença de material estra- ta julgar que o diagnóstico morfológico da lesão é fundamen -
nho nos orifícios externos da face, arcadas dentárias, além tal para a conclusão do laudo. Nesse caso, o perito pode colo-
de o utros sinais significativos para identificação. Lesões car no atestado de óbito "aguarda exame anatomopatológico''.
violentas, recentes o u antigas devem ser detalhadamente Em certas situações, o legista terá que enviar fragm entos
descritas e medidas, bem como as feridas cirúrgicas. Aten- do encéfalo para exam e histopatológico. Caso não haja lesão
ção especial deve ser dada ao couro cabeludo que, por ve- visível para orientar a clivagem, a rotina é retirar as seguintes
zes, pode mascarar algumas lesões, tais como escoriações, áreas, em ordem de importância: núcleos da base, hipocam -
equimoses ou mesmo pequenas ferida s produzidas por po, tronco encefálico, córtex moto r, núcleo denteado do ce-
projéteis de arma de fogo. rebelo e córtex cerebelar.
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 217

Figura 12.1. Principais etapas da técnica de retirada do encéfalo - IMLAP-RJ.


Continua
218 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

Figura 12.1. (cont.) Principais etapas da técnica de retirada do encéfalo - IMLAP-RJ.


CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 219

• ASPECTOS GERAIS DAS LESÕES E


MECANISMOS DOS TRAUMATISMOS Tipos de deformação

CRANIOENCEFÁLICOS
Apesar de a palavra trauma significar a ação de alguma
forma de energia externa sobre o organismo, abo rdaremos
neste capítulo as alterações morfofuncionais decorrentes ape-
nas da ação mecânica. Didaticamente, os traumatismos cra-
nioencefálicos são divididos em duas categorias: os causados
e os não causados por PAF. Na categoria dos não causados
por PAF, os acidentes de trânsito são a modalidade m ais co- Compressão Tensão Cisalhamento
mum, observando-se principalmente lesões produzidas por
ação contundente. Em relação aos PAFs, a maioria possui Figura 12.2. Possíveis mecanismos de deformação do encéfalo por
ação perfurocontundente, resultando em feridas bem carac- agentes mecânicos.
terísticas, abordadas com mais detalhes nos Capítulos 14 e 15.
As lesões cranioencefálicas encontradas dependem de
vários fatores e podem ser divididas, segundo Adams e cols., que o vaso sanguíneo, que, por sua vez, resiste mais que as
em primárias e secundárias ao trauma. As lesões primárias fibras axo nais. Isso é fundamental para o conhecimento dos
ocorrem imediatamente após a agressão, tais como lesão tipos de lesão e da sequência de aparecimento.
axonal difusa, contusões, lacerações e fraturas. São conside-
Impulso
radas lesões secundárias a tumefação encefálica, os hema-
tom as intracranianos, a hipertensão intracr aniana e a lesão A força impulsiva ou inercia! ocorre quando o corpo está
encefálica isquêmica difusa. Em primeiro lugar, vamos dis- em m ovimento e bruscamente para, sem haver impacto di-
cutir os traumatism os não causad os por PAF, lembrando que reto sobre a cabeça, fenómeno comum nas colisões. Quando
algumas lesões e mecanism os são comuns aos encontrad os há desaceler ação brusca, a cabeça pode deslocar-se em vários
nos traumas causados pelos projéteis. sentidos. A m assa encefálica "gelatinosa" rechaça dentro da
cavidade e pode ser arremessada vio lentamente contra as
partes ósseas do crânio (Fig. 12.3) .
Traumatismos Cranioencefálicos Não Causados
As lesões, discutidas mais adiante, são atribuídas unica-
por PAF
mente ao fenó meno físico de inércia. Nesses casos, o exame
Mecanismos de Lesão necroscópico não revelará lesões de natureza violenta na ins-
peção externa da cabeça, na face profunda do couro cabelu-
As forças mecânicas que atuam sobre a cabeça dividem- do ou no crânio.
se basicamente em dois tipos: estática e dinâmica. A força es- Em colisões gr aves, o cinto de segurança, o air bag e mes-
tática, menos comum, ocorre em situações como terremotos m o o capacete (acidentes de moto) não são capazes de pre-
e desabam entos de terra, em que há uma agressão gradual, venir tais lesões, já que esses dispositivos protegem apenas d o
lenta e contínua sobre a caixa cr aniana. As vibrações podem impacto direto. É comum a dúvida de se atividades recrea-
resultar em fraturas graves e danos severos teciduais.
As forças dinâmicas são bem mais frequentes, compreen-
dendo basicam ente dois tipos: o impulso (inércia) e o impacto
direto sobre a cabeça. Um fenómeno físico importante para Impulso
entendimento das lesões é o da aceleração/desaceleração rá-
pida da cabeça, em que se observa o rechaço (deslocamento
brusco) do encéfalo no interior da cavidade. Em certas oca-
siões, observa-se a associação do impulso com impacto, o
que agrava ainda mais as lesões.
O encéfalo pode sofrer deformações tanto na fo rça im-
pulsiva quanto no impacto direto. Os tipos de deformação
são: por compressão; por tensão (referente à viscoelasticidade
do tecido); por cisalhamento (deformação por ação de fo rças
opostas) (Fig. 12.2) . Aceleração Desaceleração brusca sem impacto
Esse fa to justifica o aparecimento e a patogenia de lesões
comuns importantes, comentadas adiante. É preciso sa- Figura 12.3. Mecanismo de lesão por força impulsiva (inércia). Re-
lientar que cada tecido tem a sua "taxa de deformação''. Po r parar o rechaço do órgão dentro da cavidade (setas em direções opostas)
exemplo, o osso é bem mais resistente às forças mecânicas quando ocorre a desaceleração brusca sem impacto da cabeça.
220 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

tivas como montanha-russa (aceleração angular ), queda li- ser devida à herniação transtentorial ou ao dano irreversível
vre com desaceleração amortecida e alguns esportes radicais do tronco encefálico. A concussão pode estar relacionada a
tipo bungee jump (salto com corda elástica) podem deter- qualquer uma das lesões descritas a seguir.
minar alterações morfofuncionais. Talvez a cronicidade da
atividade, comum nesses esportes, seja um fator relevante. A Contusão e Laceração
realização de estudos experimentais poderia confirmar essas
O termo contusão é amplamente aplicado em processos
hipóteses.
traumáticos. Porém, a expressão "contusão encefálica" é bem
definida, constituindo um dos achados morfológicos mais
Impacto Direto
frequentes.
É caracterizado pelo impacto da cabeça contra um ins- É caracterizada pela rotura de pequenos vasos nas partes
trumento, ou vice-versa, constituindo um dos mecanismos mais profundas do córtex, com ou sem comprometimento
mais comuns de trauma. Como dito anteriormente, é fre- da substância branca. O tecido encefálico subjacente não
quente a associação com a inércia, como, por exemplo, nas mostra solução de continuidade.
colisões, nos atropelamentos, nas quedas e agressões com Foram descritos vários tipos de contusões, a saber: por
rápida desaceleração (Fig. 12.4). fratura, por golpe e contragolpe, por herniação, ocorrendo
Características específicas do instrumento de impacto principalmente nas hérnias do giro para-hipocampal e das
(forma, massa, área e consistência), bem como a velocidade amígdalas cerebelares. Nas contusões por golpe, a lesão ence-
do golpe, determinam o grau de energia cinética transferida fálica está abaixo da área de impacto. Por exemplo, uma agres-
para o segmento cranioencefálico. Além das lesões encefáli- são na região frontal com contusões no lobo frontal. As con-
cas pela inércia, podemos encontrar danos referentes ao im- tusões por contragolpe ocorrem no lado oposto ao trauma,
pacto, principalmente na ectoscopia. explicadas pelo rechaço da massa encefálica contra o crânio.
A distribuição topográfica está relacionada a fatores
Lesões Cranioencefálicas como mecanismo do trauma, tipo de deslocamento da cabe-
Concussão ça e efeito abrasivo da base do crânio. Os locais mais comuns
são, em ordem de frequência: face inferior dos lobos frontais
A concussão não tem substrato mo rfológico específico. e temporais, face lateral d os parietais, face anterior do lobo
É um termo clínico genérico utilizado comumente por pro-
frontal e lobo occipital (Fig. 12.5) .
fissio nais da área de saúde. Conceitua-se como déficit neu- As contusões recentes aparecem na macroscopia como
rológico temporário e reversível causado por trauma cra- um pontilhado hem orrágico, por vezes confluente, na crista
nioencefálico, resultando em perda da consciência. Amnésia dos giros. O diagnóstico é feito facilmente durante o exame
retrógrada e pós-traumática pode fazer parte do quadro. A externo do órgão. A microscopia óptica independe do tipo
duração das manifestações clínicas está relacio nada com a de trauma. Nos estágios iniciais, observam-se áreas hemor-
gravidade do processo. As alterações neuropatológicas são rágicas e edema em torno de vasos corticais, podendo esten-
mínimas e inespecíficas, porém estados prolongados de
der-se para a substância branca adjacente (Fig. 12.6).
inconsciência podem determinar danos teciduais difusos. Eventualmente, pode existir necrose neuronal do tipo
Algumas vítimas têm o chamado "intervalo lúcido" entre a
coagulativa em vista da hipoxia, em geral cerca de 24 horas
concussão e a perda de consciência. Tal manifestação pode
após a agressão, embora a alteração funcional apareça mais
cedo. Edema axonal surge entre 24 e 48 horas em torno dos
neurónios lesados o u em fibras mielínicas que atravessam a
área comprom etida.
Impulso + impacto O processo de restauração se faz basicam ente por micró-
glia e astrócitos, com pequena participação dos fibroblastos
perivasculares. Macroscopicamente, observa-se uma lesão
algo retraída de cor amarelo-acastanhada chamada de placa
amarelada, devido ao acúmulo de pigmento hemossideríni-
co característico de hemorragia antiga (Fig. 12.7).
Laceração significa rotura do tecido encefálico. Estão
associadas comumente às fraturas com afundamento e feri-
mentos penetrantes, produzidos principalmente por projé-
teis de arma de fogo. Em geral aparecem nos locais de contu-
Aceleração Desaceleração brusca com impacto sões, principalmente quando há aceleração/desaceleração da
cabeça (Fig. 12.8).
Figura 12.4. Associação da força impulsiva com impacto. Lembrar Nesse caso, os acidentes ósseos da base podem "cortar" as
que a cabeça e o encéfalo podem sofrer vários deslocamentos (setas) partes inferiores do encéfalo, mesmo na ausência de fratura.
quando há desaceleração. A aceleração angular também pode provocar lacerações por
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 221

A B

Figura 12.5. Um dos mecanismos decontusão encefálica com os locais mais comumenteafetados. Em A, o encéfalo rechaça sobre a face abrasiva
da base do crânio; em B, as faces laterais dos hemisférios se chocam contra as partes ósseas pela rotação da cabeça.

Figura 12.6. A. Face inferior do encéfalo com contusões recentes nos lobos frontais e temporais devido aos acidentes ósseos da base do crânio
(colisão - IMLAP-RJ); B. Detalhe mostrando pontilhado hemorrágico característico; e. Superfície de corte com pontos hemorrágicos no córtex;
D. Microscopia óptica revelando áreas de hemorragia e edema circunjacente (HE 250x).
222 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

cisalhamento de estruturas fixas como corpo caloso, fórnix e Fraturas do Crânio


tronco encefálico, resultando em rompimento de vasos san-
Ocorre fratura quando a resistência do osso é vencida
guíneos e de fibras axonais. Por esse m esmo mecanism o, a
pelo impacto. Na maior parte dos casos, a presença de fra-
própria foice pode contundir e lacerar o tecido, especialmen-
tura craniana tem origem traumática. Cabe ressaltar que, em
te na fa ce interna d os lobos frontais.
certas situações, pode ocorrer fratura sem associação a lesões
encefálicas.
As fraturas são frequentes e estão relacionadas à causa
da morte em mais de 70% dos casos, segundo Adams. Po-
rém Pittella e Gusmão, analisa ndo somente os acidentes de
trânsito, viram uma baixa frequência, concluindo que um
dos principais m ecanismos de lesão é a inércia. Em nossa
experiência, o baixo número de fraturas em colisões pode
ser devido à obrigatoriedade da utilização do cinto de se-
gurança e ao número considerável de veículos dotados de
air bag.
Podemos classificá-las em: linear, diastática, em dobradi-
ça, com afundamento, cominutiva e exposta.
A fratura linear é a mais comumente encontrada, ge-
ralmente devido a traumatism os cranianos fechad os o u
não penetrantes, estando relacionada ao impacto direto e
não aos m ecanismos de deslocamento da cabeça ou inércia
(Fig. 12.9) .
Figura 12. 7. Contusão antiga no lobo temporal caracterizada pela
coloração amarelo-acastanhada. A diastática se caracteriza pela disjunção (separação) das
suturas, geralmente produzida por uma força intensa sobre
o crânio.
A fratura cominutiva é decorrente de uma força intensa
e mais localizada sobre o crânio, provocando frag mentação
dos ossos. É comumente encontrada em acidentes de trân -
sito com impacto da cabeça e quedas de grandes alturas
(Fig. 12.10).
A fratura em dobradiça (hi nge fracture) é resultante de
impacto intenso sobre o crânio, comprometendo todo o
andar médio da base. É comum nos atropelamentos e nas
quedas de gr ande altura (Fig. 12. 11) .
O afundamento do crânio é uma fratura com depressão
do segmento ósseo decorrente de uma força intensa, comu-

Figura 12 .8. Laceração na parte inferior do lobo frontal esquerdo. Figura 12. 9. Discreta fratura linear no osso temporal direito. Atrope-
Atropelamento - IMLAP-RJ. lamento - IMLAP-RJ.
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 223

mente localizada, podendo resultar em hemorragia extradu-


ral, subdural e laceração encefálica (Fig. 12.12).
O termo "esmagamento da cabeça" é empregado quan-
do grande parte do segm ento es tá achatada. É comum
nos atropelamentos por ô nibus ou caminhão, notando-se
múltiplas fraturas cominutivas e lacerações do tecido (Fig.
12.13).
As fraturas expostas são ca racterizadas pela visualização
do osso fraturado através de uma ferida existente no couro
cabeludo. Vários tipos de fratura citados anteriormente, so-
bretudo a cominutiva, podem resultar em fratura exposta.
Na maior parte das vezes, a visualização das fraturas é
fácil. Procura-se raspar bem a calota craniana com instru-
mento específico e sempre descolar a dura-máter da base do
crânio, para não deixar passar fraturas lineares pequenas.
As fraturas da base do crânio são importantes e geral-
mente cursam com saída de sangue ou de liquor pelas na-
rinas e orelhas externas. As do andar anterior interessando
Figura 12.10. Fratura cominutiva difusa do crânio com extensa lace- o teto da órbita podem d eterminar equimose ou hematoma
ração do encéfalo. Queda de grande altura - suicídio - IMLAP-RJ.
nas regiões orbitárias. Quando a lâmina crivosa é atingida,
pode resultar em epistaxe (sangramento pelas narinas). As
do andar médio que comprometem a orelha interna podem
causar otorragia (Fig. 12.14).
A presença de fratura em crianças associada a dano ence-
fálico severo, principalmente junto com infiltrações hemor-
rágicas focais na face profunda d o couro cabeludo, significa,
na maioria das vezes, espancamento. É frequente o fato de
pais e babás alegarem que a criança caiu do berço para es-
conder os maus-tratos (Fig. 12.15) .
Podem ocorrer várias complicações decorrentes de fra-
tura. As espículas ósseas po dem seccionar vasos sanguíneos
e também lacerar o tecido encefálico. É comum a fratura d o
osso temporal determinar lesão da artéria meníngea média e
consequente hem orragia intracraniana. As fraturas d o andar
anterior e m édio da base do crânio podem causar fístulas
liquóricas, respectivamente rinorreia e otorreia. Funcionam
como porta de entrada para micro rganismos e desenvolvi-
Figura 12.11. Fratura de todo o andar médio da base, caracterizando mento de infecções (meningites e abscessos) recorrentes,
o aspecto em dobradiça. Atropelamento - IMLAP-RJ. causadas principalmente por pneumococos (Fig. 12.16).

Figura 12.12. Esmagamento da cabeça. Notar que o achatamento Figura 12.13. Fratura do osso temporal esquerdo com afundamento
tem a forma do pneu. Atropelamento por ônibus - IMLAP-RJ. do segmento. Queda de penhasco - IMLAP-RJ.
224 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

Figura 12.15. A. Face profunda do couro cabeludo de um lactente


com várias infiltrações hemorrágicas; B. Fratura linear ampla do osso
parietal esquerdo. Opai alegou que a criança tinha caído do berço, porém
essas lesões são muito compatíveis com espancamento - IMLAP-RJ.

Hemorragias
As hemorragias intracranianas são muito comuns e fre-
quentemente estão relacionadas com a causa de morte. São
classificadas, segundo a topografia, em extradural (epidural),
subdural, subaracnó idea, intraparenquimatosa e intraventri-
cular (Fig. 12.1 7).
O conhecimento dessa classificação é extremamente ne-
cessário para se entender os aspectos etiopatogênicos, clínicos
e imagenológicos dos processos. Sabe-se que as hemorragias
extradural e subdural são tipicamente de etiologia traumáti-
ca. Já as hem orragias subaracnóidea e intraparenquimatosa
são decorrentes mais comumente de processos patológicos.

Figura 12 .14. A. Hematoma orbitário bilateral, epistaxe e otorra-


gia (acidente de moto - IMLAP-RJ); B. Fratura do andar anterior, Hemorragia Extradural
interessando a lâmina crivosa, e de todo o andar médio (mesmo
caso); e. Equimose violácea em região mastoide esquerda com otor- O extravasamento de san gue ocorre entre a calota e a
ragia, presente em fraturas do andar médio da base (atropelamento dura-máter. Esse tipo está comumente associado a processos
- IMLAP-RJ). traumáticos. O meca nismo de formação se dá pela fratura do
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 225

Figura 12 .17. Classificação topográfica das hemorragias intracrania-


nas: 1) extradural ou epidural; 2) subdural; 3) subaracnóidea; 4) intra-
parenquimatosa ou intra-encefálica.

lúcido" que pode durar horas entre o trauma e o apareci-


m ento das manifestações neurológicas.

Hemorragia Subdural
A coleção de sangue está situada entre a dura-m áter e a
Figura 12.16. A. Meningite pós-traumática devido à fratura do andar aracnóidea. O mecanismo principal ocorre pelo deslocamen-
anterior da base; B. Extenso abscesso intraparenquimatoso por fratura to brusco rotacional o u linear da cabeça (aceleração/desace-
do osso frontal. Reparar que a fratura reproduz a forma do instrumento. leração). O rechaço do encéfalo nos dois sentidos permite
Agressão com martelo - IMLAP-RJ.
o deslizamento da aracnóidea em relação à dura-m áter, que
se encontra aderida ao crânio, resultando em estiramento e
rotura das veias-pontes (Fig. 12.1 9).
osso temporal, geralmente com afundamento do segmento, e Experimentalmente, a hemorragia subdural foi reprodu-
consequente rotura da artéria meníngea média. A espessura zida através da aceleração angular da cabeça em primatas.
óssea nesse local é fina, e a dura -máter, menos aderente. Ocorre, frequentemente, em traumatismos fechados da ca-
A massa de sangue (hematoma) provoca efeito de massa beça, como nas colisões, quedas e lutas de boxe.
elevando a pressão intracraniana, além do colabamento dos Nos nossos casos, é comum a hemorragia subdural em
ventrículos e compressão de estruturas internas. Podem sur- pessoas idosas que sofrem queda da própria altura. Isso pode
gir herniações do giro do cíngulo (subfalcina), do úncus e ser explicado por fatores como atrofia senil (maior mobili-
das amígdalas cerebelares, essa última de curso fatal e causa dade d o encéfalo na caixa craniana), fragilidade vascular ( co-
comum d e morte súbita (Fig. 12.18). mum nessa faixa etária ) e firme aderência da dura-m áter à
O sangue parcialmente coagulado no espaço extradural calota. O sangue coagulado forma uma massa (hematoma)
raramente se liquefaz. O processo de organização é seme- que tem as mesmas consequências da hemorragia extradural.
lhante ao observado nos hematomas subdurais, e será deta- Clinicam ente, o hematoma é dividido em agudo, subagu-
lhado mais adiante. d o e crónico. O estudo histopatológico é bastante relevante,
Eventualmente, fraturas lineares pequenas podem acar- visto que, a partir dos achados mo rfológicos, pode-se deter-
retar esse tipo de hemorragia. Mais raramente, a hemorragia minar a patocronia da lesão.
nesse espaço pode ocorrer em o utros locais, associada ou Entre 24 e 48 horas ocorre infiltrado inflamatório com pre-
não às fraturas. domínio de neutrófilos em meio ao coágulo. Posteriormente
O sangramento rápido e volumoso traz repercussões clí- (2 a 5 dias), a população neutrofílica é gradativamente subs-
nicas imediatas. Por vezes, as vítimas apresentam "intervalo tituída por macrófagos e linfócitos. Os macrófagos fagocitam
226 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

Figura 12.18. Patogenia da hemorragia extradural. A. Esquema mostrando forte impacto da cabeça contra o chão em caso de atropelamento;
B. Fratura do osso temporal com rotura da artéria meníngea média e formação do hematoma. Notar o efeito de massa e herniação da amígdala
cerebelar. e. Grande massa de sangue coagulado com compressão da área subjacente (atropelamento - IMLAP-RJ); D. Herniação de amígdala
cerebelar direita com compressão do tronco cerebral.

hem ácias, fibrina e restos celulares, assumindo aspecto espu- vascular característica do tecido de granulação. Em decor-
moso devido ao acúmulo citoplasmático de hemossiderina e rência dos múltiplos sangra mentos e reo rganizações, às vezes
lipídios. Há, então, estímulo quimiotático, que determinará a fica difícil estabelecer histologicamente com precisão a idade
migração e proliferação de fibroblastos ao nível da junção da dos hematomas.
dura com a aracnóidea. Começa a se formar tecido de granu-
lação em torno do quinto dia, iniciando a deposição de matriz Hemorragia Subaracnóidea
pelos fibroblastos. A cápsula fibrosa do lado durai e do lado da
aracnóidea torna-se espessada em torno da segunda semana. A infiltração sanguínea pode ser localizada ou difusa, fi-
A maio ria das hemorragias se organiza deixando um cando presa no espaço liquórico (Fig. 12.20).
material algo pastoso de coloração amarelo-acastanhada, em Clinicamente, as vítimas podem apresentar meningite
virtude da presença de hemossiderina acumulada em ma- asséptica com sinais de irritação. Um diagnóstico diferencial
crófagos. No final da quarta semana, pode ocorrer fusão do importante é com as meningites bacterianas agudas. Gran-
tecido fibroso com a dura-máter normal. O tecido encefálico des hemo rragias podem evoluir para fibrose das leptome-
subjacente pode apresentar atrofia devido à compressão. ninges. Isso dificultará a circulação e reabsorção do fluxo
Um fato comum nos hematomas é o aparecimento de liquó rico, resultando em dilatação dos ventrículos (hidrocé-
episódios repetidos de sangram ento devido à neoformação falo pós-traumático).
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 227

Figura 12.19. Patogenia da hemorragia subdural - rotura das veias-pontes por deslocamento linear do encéfalo (A) ou pela rotação da cabeça
(B); hematoma subdural por colisão (C) e por queda da própria altura em vítima idosa (D). Notar que a dura-máter está aderida ao osso da calota,
e os coágulos, presos à sua face profunda - IMLAP-RJ.

Hemorragia lntraparenquimatosa
As hemorragias intracerebrais são provocadas, na maio-
ria das vezes, por doenças, mas também podem ser causadas
por traumas fechados ou ferimentos penetrantes do crânio
(Fig. 12.21).
Po dem ocorrer associadas a hemorragias em outros
locais do crânio, principalmente no espaço subdural. Um
d os mecanism os d e lesão é a rotação rápida da cabeça
com efeito de cisalham ento, determinando ro tura de vasos
sanguíneos.
Na casuística de Pittella e Gusmão, o hematoma intrapa-
renquimatoso ocorre em 9,2% d os casos e quase sempre está
associado à lesão axonal. Gennarelli e Adams sugerem que a
força para romper os vasos tem de ser mais intensa do que
para os axônios. É rara a presença d e hemorragia intraparen-
quimatosa isolada.
Figura 12.20. Hemorragia difusa ocupando o espaço subaracnóideo. O alcoolismo constitui uma importante causa d e hemor-
Notar a atrofia global do órgão pela idade avançada da vítima. Atrope- ra gia intracerebral, já que favorece distúrbios na coagulação,
lamento - IMLAP-RJ. como a disfunção plaquetária. Além disso, o paciente alcoó-
228 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

Figura 12.22. Hemorragia intraparenquimatosa volumosa por hiper-


tensão arterial nos núcleos da base, indistinguível macroscopicamente
de hematoma traumático. Cortesia da Profa. Leila Chimelli.
Figura 12.21 . Hemorragia intraparenquimatosa extensa de etiologia
traumática na substância branca. Notar que a massa de sangue (hema-
toma) tem limites precisos. Cortesia do Prof. Francisco Duarte. co, como já foi referido. As principais causas de hemorragia
intracraniana de origem não traumática estão relacionadas
a seguir.
latra possui fragilidade vascular, o que torna mais fácil a ro-
tura mesmo com traumas de pequena intensidade. Hipertensão Arterial
Diminutas hem orragias podem ser observadas em crian-
É a causa mais comum de hemorragia intraparenquima-
ças que são sacudidas de forma mais intensa e contínua.
tosa não traumática, frequentemente localizada na face late-
Tais deslocamentos bruscos podem provocar a ro tura tanto
ral do putâmen e no tálamo (Fig. 12.22).
de vasos pequenos quanto de fibras axonais, muitas vezes
O m ecanismo de hemorragia se dá pela ro tura de aneu-
de curso fatal. A consistên cia encefálica mais amolecida do
rismas de pequenos vasos ( microaneurismas de Charcot-
recém-nascid o também contribui para isso.
Bouchard), podendo ocasionar hematomas volumosos. Di-
ferenciá-la de hematoma intraparenquimatoso traumático é
Hemorragia lntraventricular
extremamente difícil sem história. O exame morfológico de
Alguns autores não incluem essa hemo rragia na classifi- outros órgãos, principalmente coração e rim, é importante,
cação. Está frequentemente associada a outras hemorragias visto que pode revelar alterações características da doença
e tem prognóstico muito ruim. Um dos mecanism os de for- hipertensiva.
mação é a rotação rápida da cabeça, determinando ro tura do
corpo caloso, do septo pelúcido ou do fórnix. lnfarto Hemorrágico
A hemorragia na área de infarto pode surgir devido à dis-
Diagnóstico Diferencial das Hemorragias
solução de um êmbolo arterial proveniente de um trombo
O diagnóstico diferencial entre hemorragias traumáticas e ou quando há trombose venosa. Geralmente se localiza no
não traumáticas constitui uma das situações mais difíceis em córtex sob a forma de pontilhado hemorrágico, po r vezes
autopsia médico-legal e hospitalar. Tem implicação importan- confluente, podendo ser confundido com focos de contusão
te no que se refere às respostas dos quesitos, principalmente o (Fig. 12.23).
terceiro (qual o meio ou instrumento que produziu a morte ). É importante para o dia gnóstico o aspecto amolecido do
Uma situação comum é quando a vítima cai da própria altura tecido, com infiltração sanguínea na periferia, diferentemen-
e há dúvida de se a causa da m orte foi pelo trauma ou por te da cavidade bem delimitada formada por um hematoma
doença. Nesses casos, é fundamental que o legista estabeleça (Fig. 12.24).
o nexo causal e temporal. Ajudam na definição diagnóstica a Na falta de história ou na ausência de outras lesões vio -
história clínica, a ectoscopia bastante minuciosa e o exame in- lentas, o exam e microscópico também pode auxiliar no
terno apurado com conhecimentos anatomopatológicos. diagnóstico diferencial. A histopatologia do infarto pode
A presença de infiltração hemorrágica na face profunda demonstrar neurônios vermelhos (necrose de coagulação),
do couro cabeludo e/ou fratura no crânio indica processo indicando processo isquêmico, além de trombos e êmbolos.
traumático, po rém pode não ter relação com a morte. O sítio Contudo, essas alterações não afastam por completo o diag-
da hemorragia também pode ajudar no diagnóstico etiológi- nóstico de trauma.
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 229

Figura 12.23. lnfarto hemorrágico interessando principalmente a


região cortical no lobo temporal, podendo ser confundido com uma con-
tusão. Cortesia da Profa. Leila Chimelli.

Malformações Vasculares
São divididas em malformação arteriovenosa, angioma
venoso e hemangioma cavernoso (Fig. 12.26) .
Entre elas, o angioma venoso é mais comum, acometen-
do indivíduos jovens. A histopatologia mostra um aglo me-
rado de pequenos vasos venosos separados por tecido nervo-
so íntegro. A malformação arteriovenosa é caracterizada pela
presença de um emaranhado de veias e artérias malforma-
das, com localização preferencial nos hemisférios cerebrais
estendendo-se até as leptomeninges. Para diagnóstico dife-
rencial, é imprescindível o exame histopatológico.

Discrasia Sanguínea
Em pacientes com trombocitopenia grave de qualquer
etiologia, podem existir episódios hemorrágicos sob a forma
Figura 12.24. lnfarto hemorrágico em região insular. Notar o amole-
de petéquias difusas o u mesmo hematomas volumosos. A
cimento do tecido característico de necrose. A hemorragia infiltra as
áreas circunjacentes, diferentemente da cavidade bem delimitada dos correlação clínica é fundamental para o diagnóstico.
hematomas. Comparar com a Fig. 12.21 - IMLAP-RJ.
Higroma Subdural
É o acúmulo de líquido no espaço subdural, que pode
ser de aspecto serossanguinolento, xantocrômico ou de apa-
Rotura deAneurismaSacular rência semelhante ao liquo r. Ocorre por uma comunicação
Mais frequente em jovens e raro em crianças e idosos. entre a aracnóidea e o espaço subdural, geralmente ocasio-
Os sítios mais comuns são na junção da cerebral anterio r nada por uma rotura na leptomeninge devido ao processo
com a comunicante anterior e na junção da carótida in- traumático.
terna com a comunicante posterior. A ro tura resulta em
hemorragia subaracnó idea o u intraparenquimatosa (Fig.
Lesão Axonal Difusa (LAD)
12.25). Em 1956, Strich descreveu, pela primeira vez, o quadro
Constitui um dos mais difíceis diagnósticos macroscópi- de degeneração difusa da substância branca em uma série de
cos de auto psia, sendo praticamente impossível identificar a pacientes com demência pós-traumática. Atualmente, LAD
dilatação aneurismática rota devido ao grande sangramento. é um termo consagrado, encontrada comumente nos aci-
É necessário dissecar o polígono com muito cuidado e pa- dentes de trânsito. É considerada uma das principais lesões
ciência, visando aos pontos mais comuns de lesão para iden- responsáveis pelo estado comatoso com evolução para a
tificação da área rompida. m orte.
230 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

Figura 12.27. Esquema mostrando o principal mecanismo de lesão


Figura 12.26. Angioma cavernoso comprometendo as regiões talâ- axonal difusa. A rotação da cabeça provoca efeito de cisalhamento
mica e hipotalâmica, além do tronco encefálico. Cortesia da Profa. Leila rompendo fibras axonais no corpo caloso etronco. Dependendo da força,
Chimelli. pode ocorrer também rotura de vasos sanguíneos.

O principal mecanismo de lesão é a aceleração angular forma de "torpedo': traduzem o acúmulo de proteínas no
(rotacional) da cabeça, com ou sem impacto. A rotura de fi- coto de amputação do cilindro eixo (Fig. 12.29) .
bras axonais e eventualmente dos vasos sanguíneos ocorre Degeneração walleriana pode aparecer após 1 mês da
preferencialmente pelo cisalhamento mencionado anterior- agressão, sendo possível detectá-la por meio de colorações
mente (Fig. 12.27) . especiais.
Na aceleração angular de curta duração (p. ex., quedas e Um estudo experimental realizado por Generralli e cols.,
socos), é raro o encontro de lesão axonal. Nesses casos, no ta- em 1982, revelou que a intensidade da aceleração está relacio-
se frequentemente rotura das veias-pontes com hematoma nada aos diferentes graus e ao quadro clínico neurológico. Tal
subdural e contusões na superfície do tecido. feito é considerado um marco para a correlação morfofun -
Os sítios mais comuns de acometimento são, em ordem cional. De uma forma geral, as vítimas com lesão do grau 1
de frequência: tro nco encefálico, corpo caloso, cá psula inter- podem ser assintomáticas ou apresentar m oderada incapa-
na, substância branca cerebral, fórnix, comissura anterior e cidade clínica com perda da consciência. Nos graus 2 e 3, o
substância branca cerebelar. Esses locais são considerados quadro neurológico foi bastante grave, observando-se que no
pontos de consistência mais firme do parênquima, sendo último todas as vítimas evoluíam para o estado comatoso e o
mais suscetíveis ao cisalhamento. óbito. A presença de intervalo lúcido completo (fala de forma
Estudos experimentais e neuropatológicos, realizados orientada e racional ) pôde ser observada em lesões de grau 1.
principalmente por Genneralli e cols., definiram três graus Intervalo lúcido parcial (fala de forma não orientada e racio-
de lesão axonal, a saber: 1) apenas alterações microscópicas nal) foi detectado nas lesões dos graus 1 e 2. Todas as vítimas
esparsas na substância branca dos hemisférios, corpo caloso com lesão do grau 3 não apresentaram intervalo lúcido.
e tronco encefálico; 2) lesões focais no corpo caloso caracte-
rizadas por lacerações e pontilhado hemorrágico; 3) lesões Lesão Encefálica Hipóxica
hemorrágicas e lacerações no rostro do quadrante dorsolate- A diminuição de oxigênio por hipoxia ou isquemia é
ral do tronco encefálico (Fig. 12.28). considerada lesão secundária ao trauma bastante frequente,
Cabe ressaltar que as alterações macroscópicas só são evi- estando presente em boa parte dos casos associada à LAD.
dentes no segundo e terceiro graus. O aspecto morfológico Recentes estudos experimentais sugerem que o encéfalo
vai depender também d o tempo da lesão após o trauma. seja mais suscetível à hipoxia após os traumatismos.
À luz da microscopia óptica com a coloração de rotina Existem vários fatores que podem contribuir para lesão
(hematoxilina-eosina), só é possível detectar lesão axonal hipóxica no paciente com TCE, entre eles a hipotensão ar-
após 15 horas do trauma. Marcadores imuno-histoquímicos terial, a hipertensão intracraniana por diminuição do fluxo
recentemente desenvolvidos (p. ex., beta APP) podem ser sanguíneo, além das perdas sanguíneas por o utras lesões
aplicados para o diagnóstico mais precoce. Edema axonal traumáticas. Outras possíveis causas de isquemia são: a ace-
aparece logo no início, seguido da fagocitose de axônios des- leração da cabeça com rechaço e deformação encefálica; o
truídos pela micróglia. A lesão histo lógica clássica é caracte- estiramento e a distorção dos vasos sanguíneos; herniações
rizada pela presença de esférulas de retração que se coram com compressão de vasos; alterações pós-traumáticas na mi-
intensamente pela eosina. Esses esferoides, por vezes com crocirculação e vasoespasmo.
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 231

Figura 12.28. Vários aspectos macroscópicos de LAD. A. Corte co-


ronal revelando hemorragia e pequenas lacerações no corpo caloso
(colisão); B. Corte sagital mostrando pontilhado hemorrágico no corpo
caloso (colisão); C. Pontilhado hemorrágico em cápsula interna (colisão);
D. Focos de hemorragia no tronco encefálico. Ee F. Focos de hemorragia
no tronco encefálico.
232 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

co. Um terceiro tipo, denominado hidrocefálico, pode surgir


por obstrução do fluxo liquórico.

Edema Vasogênico
É o tipo de edema secundário a um aumento na permea-
bilidade vascular. A barreira hematoencefálica, que é com-
posta por junções compactas de células endoteliais, regula a
transferência de líquido e de outras substâncias no SNC. O
comprometimento da barreira permite o extravasamento de
constituintes do plasma para a matriz extracelular.
As causas mais comuns de edema vasogênico incluem os
processos traumáticos, as infecções (encefalites, m eningites e
abscessos), os infartos e as hemorragias.
O diagnóstico macroscópico é facilmente feito no exame
externo, chamando atenção para os giros alargados e achata-
Figura 12.29. Microscopia óptica revelando esférulas eosinófilas de dos, além do apagamento dos sulcos (Fig. 12.30).
retração, por vezes com forma de torpedo, características da LAD. Notar Pode-se graduar subjetivamente em leve, moderado e
ainda presença de edema e hemorragia de permeio (hematoxilina- acentuado comparando-se com o normal. A superfície inter-
eosina 400x), IMLAP-RJ.
na pode revelar substân cia branca brilhante, além de peque-
na diminuição da espessura do córtex. A microscopia óptica
mostra presença de vacuolização entre as fibras mielinizadas
É importante lembrar que, quando existe diminuição
configurando aspecto frouxo, tornando a coloração pela eo-
global de 0 2 no encéfalo, ocorre o fenômeno de seletividade sina mais pálida.
lesionai. Tal situação é caracterizada pela lesão inicial de cer-
tas zonas normalmente po uco oxigenadas. São exemplos a Edema Citotóxico
zona de transição entre a vascularizada pela cerebral anterior
e pela cerebral m édia (infarto de zona limítrofe ) e as cama- É um dos tipos mais frequentes relacionados aos pro-
das profundas do córtex (necrose laminar). Sabe-se que esse cessos traumáticos. O mecanismo de formação se dá pela
conceito se aplica também às células do SNC. Os neurô nios alteração da permeabilidade da membrana celular devido a
são as células mais sensíveis, por possuírem alto metabolis- um estímulo agressivo, permitindo a entrada de líquido na
mo. Todavia, existe uma sensibilidade individual de acordo célula. Na lesão isquêmica difusa, comumente observada nos
com o local anatômico. Os neurônios mais vulneráveis se traumas, há um distúrbio da permeabilidade na fase inicial
situam no hipocampo (setor de Sommer ) e no cerebelo (cé- reversível da lesão. Essas alterações são mais evidentes na
lulas de Purkinje) . substância cinzenta, onde podem ser visualizados neurônios
Já está estabelecido que o prognóstico dos traumatism os tumefeitos com citoplasma vacuolizado.
De uma maneira geral, é importante também para o
cranioencefálicos em geral depende fundamentalmente das
diagnóstico etiológico definir o padrão de distribuição, se
lesões secundárias causadas pela hipoxia. Quanto mais tem-
local ou difuso. O edema pode ser: localizado (circunjacente
po durar a agressão hipóxica, maior será a probabilidade de
às áreas de contusão e laceração); difuso, mas restrito a um
ocorrerem lesões irreversíveis neuronais (necrose), culmi-
hemisfério (p. ex., hemorragias e abscessos); difuso compro -
nando em estado vegetativo e morte.
metendo ambos os hemisférios (p. ex., citotóxico e menin-
Tumefação Encefálica gites agudas).
A tumefação cerebral difusa compromete frequentemen -
Esse termo, que vem do inglês brain swelling, é utilizado te crianças e adolescentes. O mecanismo de lesão ainda não
quando há associação de edema e hiperemia cerebrovascular. foi bem esclarecido; porém, postula-se que após o trauma
A hiperemia ocorre por processo ativo levando à vasodilata- com rechaço violento do ó rgão há um estímulo do tronco
ção e a aumento do fluxo sanguíneo. Uma simples hiperemia encefálico produzindo uma paralisia vaso motora. A partir
difusa pode resultar em aumento da pressão intracraniana. daí ocorre uma cascata de eventos, com eçando com vaso-
Cabe ressaltar que essas duas alterações são consideradas fe- dilatação difusa, aumento do volume sanguíneo cerebral
nôm enos vitais, sendo importantes no dia gnóstico diferen- (hiperemia), aumento da pressão intracraniana, compressão
cial entre lesões in vitam e post mortem. das veias cerebrais, aumento da resistência vascular cerebral,
Conceitualmente, edema significa acúmulo anormal de diminuição do fluxo sanguíneo cerebral e isquemia, culmi-
líquido no espaço intersticial ou nas cavidades corpóreas. nando com edema do tipo citotóxico. Torna-se, então, um
Constitui frequente causa de morte e em geral tem etiologia ciclo vicioso grave, visto que perpetua o aumento da pressão
traumática. O edema relacio nado ao trauma craniano é cau- intracraniana e a hipoxia, resultando em necrose de células
sad o principalmente por mecanismo vasogênico e citotóxi- neuronais, obedecendo à seletividade lesionai.
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 233

Figura 12.31 . Representação de ferimento transfixante da cabeça por


PAF. Observar o efeito das ondas de pressão pela passagem do projétil
e a consequente herniação de amígdala cerebelar homolateral.

de. Os tipos mais comuns são os de baixa velocidade (p. ex.,


calibres 38 e 45) . Os de alta velocidade ou energia são os pro-
jéteis de fuzil ( p. ex., AR-15) considerados armamentos de
guerra, usados em larga escala por traficantes e policiais no
Rio de Janeiro.
O mecanismo de lesão encefálica depende de fatores
como tipo e forma do projétil, além da distância e número
d e disparos. As feridas podem ser divididas em transfixantes
e penetrantes.

Feridas Transfixantes
Os ferimentos transfixantes atravessam totalmente a
cabeça, sendo encontrados com maior frequência nos pro-
jéteis de alta velocidade. Na superfície d e corte d o órgão,
pode-se observar uma laceração em forma d e túnel ou ca-
nal, que será comentada mais adian te. Um mecanismo de
m orte importante, também observad o com projéteis de bai-
xa velocidade, ocorre pela passagem da bala através da caixa
craniana, provocando expansão tecidual (ondas de pressão).
A pressão intracr aniana aumenta de forma súbita, po dendo
Figura 12.30. A. Edema encefálico difuso intenso, caracterizado por resultar em herniação imediata das amígdalas cerebelares
giros alargados e achatados, além de apagamento dos sulcos (colisão),
(Fig. 12.31).
IMLAP-RJ; B. Encéfalo normal para comparação.
Na saída dos proj éteis d e alta energia, frequentemente se
observa fratura cominutiva, além de extensas áreas de lace-
ração e grande perda de massa encefálica. Por vezes, é muito
Traumatismos Causados por Projéteis de Arma de difícil identificar as lesões produzidas por eles, dada a grande
Fogo (PAF) d estruição cranioencefálica. Raramente, pode-se visualizar
orifício típico em tronco de cone como nos ferimentos por
As mortes por projéteis de arma de fogo atualmente são PAF de baixa velocidade. Eventualmente, é comum a con-
muito frequentes, constituindo cerca de 60% das mortes vio- fusão com feridas produzidas por outros instrumentos. Um
lentas da nossa série, acometendo principalmente homens aspecto importante é que a ferida de saída tem formato es-
jovens de classe média baixa ligados ao tráfico de drogas. trelado, devido ao efeito tipo explosão na cavidade craniana,
As características dos projéteis e a descrição detalhada das característico desses projéteis (Fig. 12.32).
feridas são estudadas nos Capítulos 14 e 15. De forma sumá- É extremamente difícil encontrar o projétil ou fragme n-
ria, para entendimento dos mecanismos das lesões cranioen- tos sem o auxílio d o exame radioscópico. Raramente, a víti-
cefálicas, classificamos os projéteis em baixa e alta velocida- m a atingida na cabeça consegue chegar viva ao hospital.
234 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

Figura 12.32. Ferimentos causados por projéteis de fuzil. A a e. Todas as feridas de saída são amplas e têm formato estrelado; D. Nesse caso
não foi possível identificar a ferida de entrada. Notar a grande deformação da cabeça por fratura cominutiva de praticamente todos os ossos do
crânio e da face. Recebemos depois a informação de tratar-se de suicídio por fuzil e queda de grande altura - IMLAP-RJ.

Feridas Penetrantes canal central denominado cavidade permanente, igual ou


algo maior que o diâmetro do projétil. Em torno dessa área,
A maioria dos ferimentos penetrantes costuma ser causa-
aparece uma zona intermediária de necrose infiltrada por
da por PAFs de velocidade baixa ou m édia. Mas eles podem
sangue, que por sua vez é envolta por uma área de coloração
também transfixar o crânio, na dependência das áreas da en-
róseo-acinzentada, chamada de marginal (Fig. 12.33).
trada e da saída. Se não incidirem em ossos resistentes com o As duas últimas zonas aparecem após o desaparecimento
o rochedo e não forem deformáveis (p. ex., PAF de pistola da cavidade temporária. Como o próprio nom e diz, essa ca-
9 mm ), causarão ferida transfixante. vidade some rapidamente após a transfixação e geralmente é
Os ferimentos penetrantes geralmente são causados por maior que o projétil. A cavidade temporária tende a ser mui-
projéteis de baixa velocidade, pois esses não possuem força to grande nos disparos com projéteis de alta energia. Ondas
suficiente para transfixar a cabeça. Esses projéteis causam de pressão intensas, formadas principalmente nas feridas por
laceração do parênquima com rotura de vasos sanguíneos PAFs de alta velocidade, podem resultar em contusões dis-
e grandes hemorragias, provocando aumento mais gradual tantes do local de penetração. Não há relatos na literatura de
da pressão intracraniana. A partir desse ponto, o mecanis- se a deformidade do ó rgão causada pela entrada do projétil
mo de morte é o mesmo descrito para os projéteis de alta pode determinar lesão axonal em zonas adjacentes.
velocidade. Se a vítima sobreviver ao trauma inicial, podem ocorrer
Na análise macroscópica dos dois tipos de lesões, trans- sequelas como déficit neurológico residual (dependendo da
fixantes e penetrantes, notam-se três zonas nítidas que po- área atingida), fístulas cerebroespinais, infecções secundárias
dem ser observadas na superfície de corte. Observa-se um de repetição e epilepsia pós-traumática.
CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos • 235

é atribuído mais comumente à lesão axonal difusa e à lesão


cerebral isquêmica difusa, ambas consideradas secundárias
ao trauma. Portanto, a gravidade do quadro neurológico
deve-se mais a essas lesões do que ao comprom etimento d o
tronco encefálico.

Epilepsia Pós-traumática
É importante distinguir epilepsia pós-traumática precoce
e tardia. A epilepsia precoce se caracteriza pelo aparecimen-
to de convulsões, geralmente dentro de uma semana após
a agressão. Rara mente ocorre epilepsia precoce em adultos
sem associação com amnésia pós-tra umática, hematoma
intracraniano ou fratura com afundam ento. É interessante
ressaltar que epilepsia precoce em adolescentes pode evoluir
rapidamente para o cham ado estad o epilético, o qual, não
controlado adequadam ente, evolui para lesões encefálicas is-
quêmicas irreversíveis.
Figura 12.33. Esquema mostrando as três zonas formadas pela pas-
sagem do projétil: 1) canal permanente; 2) zona intermediária; 3) zona A epilepsia tardia é uma manifestação bastante comum,
marginal. As duas últimas surgem após o desaparecimento da cavidade principalmente associada aos traumatismos po r projéteis de
temporária. arma de fogo. A expressão morfológica m ais frequente rela-
cionada é a cicatriz formada por astrócitos (cicatriz astroci-
tária), que funciona como um foco estimulador, presente no
• PRINCIPAIS SEQUELAS DOS TRAUMATISMOS tecido encefálico o u nas meninges. A lesão cicatricial se fo r-
ma quando há d estruição tecidual significativa po r qualquer
CRANIOENCEFÁLICOS
tipo de lesão vista anteriormente.
É fundam ental o reconhecim ento das repercussões clíni- Outras situações também comuns q ue podem deflagrar
cas pós-traumáticas relacionadas às lesões cranioencefálicas. esse quadro são: episódio de epilepsia precoce, hematom a
O espectro cliniconeurológico é bem variado e depende intracraniano crônico, fraturas compostas, presença de cor-
fundamentalmente d os diversos aspectos já abordados neste pos estranhos e infecções.
capítulo. Hoje em dia, com o ava nço tecnológico e dos co- As primeiras convulsões podem aparecer um ano ou
nhecim entos na área m édica, há m aior sobrevida das vítimas mais depois do trauma. Há uma boa correlação entre o grau
de traumatism os cranioencefálicos. Devido a esse fa to, impli- de lesão encefálica focal e o risco de epilepsia.
cações médico-legais e éticas torn am-se bastante relevantes.
Fatores diversos podem influenciar na recuperação da ví- Doenças Degenerativas
tima, como duração do estado comatoso, resolução da amné-
sia pós-traumática e melhora da função cognitiva, incluindo Existem evidências relacionando trauma como agente
a memória. Apesar da falta de estudos relacionados aos aspec- causador de algumas doenças neurológicas degener ativas
tos morfofuncionais, já está estabelecido que as sequelas por como a doença de Alzheimer, a doença de Pick, a doença de
trauma são causadas po r lesões teciduais reversíveis e irrever- Parkinson e a doença de Creutzfeldt-Jakob (encefalopatia
síveis. A amnésia retrógrada é uma manifestação comumente espo ngifo rme relacionada a príon). Estudos envolvendo as-
encontrada, em virtude de lesões no hipocampo, região pre- pectos epidemio lógicos, clínicos, morfológicos e genéticos
ferencialmente atingida em casos de hipoxia global. estão sendo realizados para confirmar essa hipótese. Talvez
O estudo m ais detalhado das sequelas neurológicas pós- o traumatismo cranioencefálico seja apenas um cofator para
traumáticas deve ser realizado em livros específicos de neu- deflagrar tais entidades.
rologia e neurocirurgia. Contudo, cabe aqui fazer algumas
considerações sobre as principais manifestações. Lesões dos Lutadores de Boxe

Disfunção Neurológica Grave e Estado Vegetativo As lesões dos lutadores de boxe podem ser divididas em
agudas e crônicas. O m ecanismo principal de lesão dos pugi-
Os danos encefálicos que levam a uma disfunção grave listas está ligado à rotação rápida da cabeça, bem como à m ovi-
podem ser tanto pelos efeitos primários quanto pelas lesões mentação brusca no sentido anteroposterior. Falando na lin-
secundárias ao trauma, tais como lesões no tronco, hernia- guagem esportiva, o "cruzado" e o "direto': respectivamente.
ção transtentorial, hematom a intracraniano, tumefação ce- As alterações morfofuncio nais precoces estão associadas
rebral e distúrbios cardiorrespirató rios. O estado vegetativo à aceleração angular rápida, resultando principalmente em
236 • CAPITULO 12 Estudo Médico-legal dos Traumatismos Cranioencefálicos

rotura das veias pontes e consequente hemorragia subdural. observado ocorre pela degeneração e despigmentação dos
Também podem ser observadas contusões e lacerações por neurónios responsáveis pela produção de dopamina na subs -
golpe ou contragolpe na superfície cortical. É menos comum tân cia negra.
o aparecimento de LAD devido à curta duração do trauma.
O quadro clínico varia desde a perda de consciência até a
morte, dependendo pr incipalmente do tipo, da extensão e BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
do local da lesão.
Sabe-se que o desfalecimento ocorre por lesão axonal no 1. Adams JH. Head injury. In: Adams JH, Duchen LW, eds. Green-
tronco encefálico, em decorrência do deslocamento rotacio- field 's Neuropathology. 5•h ed. Oxford: Oxford University Press;
nal intenso do segmento. Há casos relatados de vítimas com 1992. p. 106-152.
fraturas graves por impacto direto sem rotação que se man- 2. Contran RS, Robins SL, Kumar V. Infla mmation and repair. In:
têm lúcidas por um determinado período de tempo. Robins Pathologic Basis ofDisease, 5•hed. Philadelphia: W. B. Saun-
ders; 1999. p. 51-92.
As lesões tardias dos lutadores podem determinar um
3. Graham DI, Gennarelli TA. Trauma. In: Graham DI, Lantos PL, eds.
quadro demencial progressivo denominado encefalopatia Greensfield's Neuropathology. 6'h ed. Oxford: Oxford University
ou demência pugilística. Atrofia cortical e dilatação dos ven- Press; 1997. p. 197-248.
trículos são alterações morfológicas comuns decorrentes da 4. Guerra NGM, Esperança JCP. An álise estatística de 10.000 necrop-
perda neuronal gradativa que se correlacionam com o qua- sias realizadas no IMLAP-RJ, Anais da I Jornada de Odontologia e
dro clínico demencial. Medicina Legal da Bahia. 29 a 01 de junho, 1996. p. 1.
5. Hardma n JM. Cerebrospinal trauma. In: Davis RL, Robertson DM,
As lesões são encontradas frequentemente na região cor-
eds. Textbook of Neuropathology. 200 ed. Baltimore: Willia ms &
tical do lobo temporal, núcleos amigdaloides e hipocampo. Wilkins; 1991. p. 962-1003 .
Os achados histopatológicos e bioquímicos são semelhantes 6. Leestma JE. Forensic neuropathology. In: Garcia JH, eds. Neuropa-
aos encontrados na doença de Alzheimer, observando -se thology: The diagnostic approach, l" ed. St. Louis: Mosby; 1997. p.
frequentemente neurô nios com aspecto em "chama de vela" 475-527.
(emaranhado neuro fibrilar) . Outro achado neuropatológico 7. Pittela JEH, Gusmão SNS. Patologia do trauma cranioencefálico. P
ed. Rio de Janeiro: Revinter; 1995. p. 1-137.
comum é a presença de placas difusas formadas pela proteí-
8. Rowbotham GF. Acute Injuries of the Head. 3'ded. Edinburgh: E. &
na amiloide beta A4. S. Livingstone Ltd.; 1949.
Algumas hipóteses sugerem que o processo final de le- 9. Vogel FS. The nervous system. In: Rubin E, Farber JL. Pathology. 2nd
são independa da etiologia. O parkinsonismo comumente ed. Philadelphia: Lippinco tt; 1994. p. 1373- 1455.
Hygino de C. Hercules

To do objeto concebido e executad o com a finalidade es-


pecífica ou predominante de ser utilizado pelo homem par a
o ataque ou para a defesa é considerad o uma arma'. As armas
devem ser classificadas em man uais ou de arremesso, confo r-
me representem com o que um prolongam ento d o membro
superior do indivíduo ou ajam à distância, arremessadas
sobre o adversário. As armas de arremesso ora são simples,
porque totalmente jogadas contra o oponente, por exemplo,
uma lança, ora complexas, por dispararem projéteis contra
ele' . Os instrumentos perfu rantes, cortantes, perfurocortan-
tes e corto contundentes devem ser consider ados armas ma-
nuais, embora eventualmente possam ser arremessados. Re-
cebem a denominação genérica de armas brancas, talvez em
anteposição às arm as de fogo, que são armas de arremesso.
Mas parece que essa denominação se refere mais ao brilho do Figura 13.1. Exemplos de instrumentos perfurantes de calibre pe-
aço, que lhes confere uma coloração esbranquiçada quando queno.
sobre eles incide a luz2•3 . Estudarem os cada um dos tipos de
arma branca separadamente, neste capítulo, e as armas de
fogo no Capítulo 14 .

• INSTRUMENTOS PERFURANTES
São instrumentos perfurantes aqueles que transferem
sua energia cinética por meio de uma ponta, pressionan-
do e afastando os elem entos dos tecid os. São fo rmados por
uma ponta continuada por uma haste cilíndrica. Conforme
o diâmetro dessa haste, são considerados de calibre peque-
no, com o os alfinetes, agulhas e espinhos (Fig. 13.1 ); ou de
calibre médio, como o fu rad or de gelo e a sovela (Fig. 13.2).
Quanto aos pregos, podem ser considerad os de calib re pe-
queno o u de calibre médio, de acordo com a impressão sub-
jetiva do perito. Figura 13.2. Exemplos de instrumentos perfurantes de calibre médio.

237
238 • CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas

A ação dos instrumentos perfurantes pode ser ativa ou Em injeções com agulhas mal esterilizadas, o paciente corre
passiva. Será ativa quando o instrumento atingir o corpo o risco de contrair doenças como hepatites e outras infec-
em repouso ou quase em repouso. É o caso das picadas por ções. A troca de seringas entre parceiros usuários de drogas
agulha de injeção, agressão com furador de gelo ou mesmo injetáveis é um dos mecanismos importantes de transmissão
certas flechas dos índios. Será considerada passiva quando o da síndrome da imunodeficiência adquirida.
corpo em movimento se chocar com o instrumento localiza- A falta de cuidados de antissepsia na aplicação de injeções,
do em um anteparo. Por exemplo: pisar em um prego ou cair com formação de abscessos, fleimões e até septicemia, gera
sobre grade com elementos pontiagudos. O modo de ação responsabilidade penal por crime culposo, e civil para repa-
dos instrumentos perfurantes está implícito em sua concei- ração do dano. Se a lesão for intencional, o agente responde
tuação: a ponta atua por pressão e vai afastando as fibras dos por lesão corporal dolosa. Havendo infecção de evolução fa-
tecidos à medida que se faz a penetração da haste. tal, incide no crime de homicídio preterdoloso, previsto no
§ 3º do artigo 129 do nosso Código Penal:
Instrumentos de Calibre Pequeno
Código Penal
Os instrumentos de calibre pequeno produzem feridas Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de
que são chamadas de punctórias (Fig. 13.3). Têm forma apro- outrem.
ximadamente circular e diâmetro muito pequeno, em geral § 3"- Se da lesão resulta morte e as circunstâncias indi-
menor que 1 mm. Apresentam-se recobertas por crosta he- cam que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco
mática e podem passar despercebidas em exames pouco mi- de produzi-lo.
nuciosos. Sua característica essencial é o grande predomínio
da profundidade em comparação com o aspecto externo. A As lesões por esses instrumentos são frequentes no traba-
profundidade será tanto maior quanto maior for o grau de lho e podem causar incapacidade temporária ou permanen-
penetração da haste nos tecidos (Fig. 13.4). te, na dependência das complicações supervenientes.
Geralmente, não ocorre sangramento capaz de prejudi-
car a vítima. Mesmo nos casos em que se atinja uma veia ou Instrumentos de Calibre Médio
uma artéria, a elasticidade da parede desses vasos promoverá
rápido estancamento da hemorragia. Como exemplo, temos Causam lesões diferentes das feridas punctórias quando
a flebocentese para colheita de amostra de sangue, em que penetram nos tecidos. Sua forma e direção, segundo Thoi-
basta pequena compressão local para cessar o sangramento. not4, foram estudadas de modo minucioso por Filhos, em
Injeções intracardíacas de adrenalina são feitas nas tentativas 1833, ao produzir lesões experimentais em cadáveres. Ele
de reanimação dos batimentos, e a hemorragia que provoca notou que as feridas tinham forma biconvexa alongada
não aumenta a probabilidade de morte dos pacientes. (em botoeira), com bordas regulares e simétricas, que eram
A gravidade dessas feridas resulta dos processos de infec- providas de ân gulos muito agudos e conservavam a mesma
ção causados pela penetração de bactérias com o instrumen- direção na mesma região anatômica do corpo dos diversos
to. A dificuldade de limpeza e drenagem dos líquidos extra- indivíduos examinados. Observou que eram tanto mais ex-
vasados e a exsudação criam condições favoráveis para a ins- tensas quanto maior fosse o diâmetro da haste. Atribuiu esse
talação da infecção. O tétano é a complicação mais temível.

Figura 13.4. Corte da parede abdominal de pessoa que sofreu uma


Figura 13.3. Feridas punctórias recobertas por crostas pardas ao punção exploratória com fins diagnósticos. O ponto mais escuro na
longo das veias superficiais do antebraço de usuário de drogas injetá- superfície é a ferida punctória enquanto que a grande infiltração hemor-
veis. A maior visibilidade dos trajetos venosos deve-se à esclerose das rágica que atravessa o plano subcutâneo revela o trajeto da agulha no
veias em função de repetidas flebites. Guia 1524 da 24ª DP, de 1973. tecido adiposo. Caso não identificado do IMLAP, de 30/04/2007.
CAPITULO 1 3 Lesões e Morte por Armas Brancas • 239

aspecto à elasticidade da pele. Hoje, sabe-se que a derme mais violentos desferidos no abdómen. Isso, por vezes, causa
está fo rmada por fibras colágenas, reticulares e elásticas, que escoriação das bordas, de modo a lembrar um pouco lesão
assumem direção preferencial confo rme as linhas de força por instrumento perfurocontundente.
a que a pele está submetida nas diversas regiões do corpo. Quando atuam em vísceras ocas do tubo digestivo, apre-
Com o o instrumento perfurante apenas afasta e separa as fi- sentam fo rma de fenda com direção paralela às fibras mus-
bras, penetrando entre elas, produz vetores de força que são culares. Como essas vísceras têm duas camadas musculares,
contrariados por uma reação igual e contrária dos tecidos. uma longitudinal externa, paralela à direção do tubo, e outra
Enquanto ele está dentro da ferida, ela tem forma circular, subjacente a essa, interna, de disposição circular, a direção
po is as forças envolvidas estão em equilíbrio. Assim que o da ferida é longitudinal na túnica externa e transversal na
instrumento é retirado, atuam os vetores de resistência de- interna, o que permite firmar o diagnóstico do tipo de ins-
correntes da elasticidade da derme, que tende a restaurar a trumento. No caso dos perfurocortantes, as duas camadas
posição primitiva d as fibras (Fig. 13.5). apresentariam fendas superpostas e com a mesma direção.
Mais tarde, em 1861, Langer repetiu os estudos de Filhos Quando interessam um plano ósseo, deixam a marca d o
e observou que essas feridas podiam ter a forma de uma instrumento sob a forma de um baixo-relevo em forma de
po nta de seta, um triângulo ou algo parecido, quando locali- cone invertido, o que é mais comum nos ossos espo njosos
zadas em um local de encontro de linhas de fo rça4 • Enfim, o como costelas, crista ilíaca, esterno e corpos vertebrais.
aspecto das feridas causad as pelos instrumentos perfurantes
de calibre m édio obedece a três princípios:
1) têm aspecto semelhante às produzidas por instru-
Problemas Médico-legais dos Instrumentos
m entos perfurocortantes de dois gumes - princípio
Perfurantes
o u lei da semelhança de Filhos; Diagnóstico
2) têm sempre a mesma direção numa mesma região do
corpo - princípio ou lei do paralelismo de Filhos; Baseia-se no conhecimento da morfologia das lesões e
3) podem ter forma diferente, bizarra, nos pontos de en- d as leis de Filhos e Langer. Quando se observar um grupo de
contro de linhas de fo rça - lei de Langer. feridas em forma de botoeira tendo a m esma direção, numa
As feridas pelos instrumentos perfurantes de calibre m é- m esm a região do corpo, ou em várias regiões, mas sempre
dio podem ser classificadas em superficiais, penetrantes e aco mpanhando as linhas de força, a conclusão será de lesões
transfixantes, confo rme não penetrem as grandes cavidades por instrumento perfurante de calibre médio. No caso de se
do corpo, penetrem -nas ou atravessem qualquer segm ento do tratar de lesão única, o perito não poderá faze r o diagnóstico
corpo de uma face à outra. A profundidade varia de acordo diferencial com uma lesão po r instrumento perfu rocortante,
com o gra u de penetração da haste. Pode ser igual, maio r ou a m enos que a lesão tenha direção diferente da d as linhas
menor d o que ela. Será menor se houver penetração parcial. de fo rça da região atingida. Nesse caso, terá sido produzida
Mas pode ser maior, se houver compressão dos planos super- por um instrumento perfurocortante. O trajeto, por sua vez,
fi ciais pela empunhadura do instrumento, como nos golpes mostrará sempre dissociação das fibras dos planos mais pro-
fundos, e não secção, se causada por instrumento perfurante.
Vetor de ação
Gravidade
Varia conforme o instrumento tenha causado ferida pene-
trante, ou não, e os ó rgãos atingidos. Mesmo que não sejam
atingidas vísceras, a penetração do instrumento contamina a
cavidade e enseja a instalação de infecções, o que justifica sua
abertura exploratória para diagnóstico e limpeza profilática.

Causa Jurídica
Mesmo não levando em conta as lesões produzidas por
instrumentos de calibre pequeno, podem os afirmar que são
mais comuns as de origem acidental. Apenas eventualmente
são esses instrumentos utilizados em agressões. Realmente,
não são instrumentos apropriados para fins crimin osos. Os
crimes cometidos são perpetrad os no local de trabalho, onde
Figura 13.5. A penetração da haste do instrumento afasta as fibras
dos tecidos, tal qual um pente nos cabelos. A elasticidade tecidual cria esses instrumentos podem ser encontrados, geralmente du-
vetores de reação que contrabalançam a força de afastamento enquanto rante uma briga. Deve-se mencionar um caso de suicídio,
o objeto está presente. Quando de sua retirada, cessa a força de ação necro psiado no IMLAP pelo professor Nilton Salles5, em que
e os vetores de reação predominam e aproximam as bordas da ferida, a vítima usou um prego de grosso calibre e enterrou-o no
deixando uma lesão em botoeira. ápice da calota craniana. Já tivemos oportunidade de exami-
240 • CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas

nar o corpo de uma menina de cerca de 1 ano, morta por me-


ningite purulenta causada por penetração acidental de uma
farpa de madeira com cerca de 4 cm de comprimento por
0,3 cm de diâmetro na haste, no setor frontal do crânio. A
calota pouco resistente da criança permite a penetração des-
se tipo de instrumentos sem maio r dificuldade. Esse tipo de
lesão é chamado de encravamento por alguns autores6 •

• INSTRUMENTOS CORTANTES
São os que transferem a energia cinética por deslizamen-
to e leve pressão através de uma borda aguçada a que se dá o
nome de gume ou fio. O exemplo típico desses instrumentos
é a navalha. Porém, qualquer objeto provido de gume pode Figura 13.6. Evisceração por ferida incisa no abdômen. Caso não
identificado do IMLAP.
atuar como instrumento cortante. Podem ser instrumentos
cortantes: cacos de vidro, pedaços de folhas metálicas e até
mesmo folhas de papel. Devemos referir aqui o cerol. Cons-
ta de uma linha de algodão ou náilon em que se passa cola
misturada com vidro moído. O cerol assim preparado é uti-
lizado por soltadores de pipas com o fim de cortar a linha de
outros aficcionados pela brincadeira quando as pipas estão
no ar. Tem causado acidentes graves em motoqueiros que
passam velozmente nos locais em que a linha cortante tenha
sido muito abaixad a.
O gume dos instrumentos cortantes, por definição, atua
mais por deslizam ento que por pressão. As fibras dos tecidos
são seccionadas e os vasos permanecem abertos, com intenso
sangramento nas vertentes das feridas.

Tipos de Lesões
Figura 13. 7. Ferida incisa de defesa na face posterior do antebraço,
As feridas produzidas pelos instrumentos cortantes re- com cauda de escoriação voltada para a esquerda do observador. Guia
velam nítido predo mínio da extensão sobre a profundida- 08 da 1sa DP, de 26/02/69.
de. São feridas, em geral, superficiais. Mas, dependendo da
região do corpo atingida e da força do golpe, bem como do
estado do gume, é possível observar feridas que penetram atos cirúrgicos. Apresentam características próprias. Têm
nas gra ndes cavidades, com evisceração parcial. Certos gol- maior regularidade, profundidade uniforme, e o seu ân gulo
pes de navalha no abdômen podem produzir evisceração de saída não apresenta cauda de escoriação. Por esse mo tivo,
(Fig. 13.6) . Nilton Salles 5 preferia chamá-las de ferida s incisas, denomi-
Quando agem de modo típico, os instrumentos cortan- nando o conjunto das demais de feridas por instrumentos
tes produzem feridas que apresentam bordas regulares, ver- cortantes. Infelizmente, não há um termo próprio em por-
tentes planas e ân gulos muito agudos. Sua profundidade é tuguês para designar esse último grupo de lesões, que é o
m aior na porção correspondente ao terço inicial. A partir daí, mais importante do ponto de vista médico-legal. A expressão
superficializam -se gradualmente para terminar em uma es- "ferida cortada" não soa bem nem dá uma ideia real, po is
coriação linear que as continua ao longo da epiderme. A essa é passível de confusão com qualquer outra ferida à qual se
escoriação linear que indica a saída do instrumento dá-se tenha sobreposto a ação de um instrumento cortante. Prefe-
o nom e cauda de escoriação (Fig. 13.7). Resulta do afasta- rimos chamar as feridas feitas por m édicos de ferida cirúrgica
m ento da epiderme ao longo do trajeto dérmico por causa da e guardar a expressão ferida incisa para as de maior interesse
obliquidade do gume. Q uando essas feridas são observadas médico-legal. A forma e a localização das feridas cirúrgicas
em secção transversal e perpendicular à superfície, revelam são típicas e familiares a qualquer médico, m esmo os não
forma triangular de base externa, devida ao afastamento das especializados em cirurgia (Fig. 13.9).
vertentes a partir do fundo (Fig. 13.8). Em condições excepcionais, as feridas incisas podem apre-
Há um tipo especial de feridas praticadas com instru- sentar aspecto diferente do usualmente descrito. Se o instru-
mentos cortantes. São as feridas praticadas por médicos, em mento atuar de modo oblíquo em relação à pele, pode produ-
CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas • 241

Figura 13.10. Esgorjamento suicida.As bordas da ferida são plenas


de entalhes por ser feita em vários pequenos golpes sucessivos. Caso
autopsiado pelo autor no IMLAP, ano de 1969.

Figura 13.8. Odesenho 1 representa uma ferida incisa vista de cima;


o número 2 mostra um corte longitudinal da ferida, notando-se o apro-
fundamento rápido e a saída gradual do instrumento; o de número 3
representa um corte perpendicular e transversal às suas bordas. C é a
cauda de escoriação e V, a vertente.

Figura 13.9. Esquema de uma ferida cirúrgica vista de lado. A pene-


tração e saída perpendiculares do bisturi respondem pela ausência da
cauda de escoriação.

zir ferid a em bisei, por vezes com retalho cutâneo abundante,


tanto mais extenso quanto menor for o ângulo de incidência.
Figura 13.11. Detalhe do ângulo esquerdo da ferida mostrada na
Mas, se o gume atuar de modo extremamente oblíquo, ou
Figura 13.1 O, notando-se lesão de hesitação um pouco acima da borda
por deslocamento lateral, produzirá apenas uma escoriação e, superior.
porta nto, agirá como um instrumento contundente.
Os instrumentos co rtantes também podem ca usar muti-
lação se atingirem extremidades sem esqueleto, tais como o ção do sangue extravasado através da laringe ou da traqueia
nariz, as orelhas, a ponta de dedos, o pênis etc. seccionados. Algu ns autores admitem também a possibili-
Algumas feridas incisas recebem nom es especiais de dade de morte por embolia gasosa através das grandes veias
aco rdo com a sua localização no corpo. As profundas e lo- jugulares7 •
calizadas no pescoço são chamadas de esgorjamento quando As feridas incisas localizadas na mão o u no antebraço,
nas faces laterais ou anterior (Figs. 13.10 e 13.11 ) e degola principalmente na borda cubital, são chamadas de lesões de
se situadas na face posterior. A secção dos vaso s ca libroso s defesa (Fig. 13.12) e têm grand e valor no esclarecimento da
da região carotídea pode levar o indivíduo à morte tanto ca usa jurídica da lesão. As situadas na palma da mão tradu-
po r anemia aguda qu anto por asfixia provocada pela aspira- zem a tentativa de a vítima segurar a arma do agressor. Tais
242 • CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas

Figura 13.12. Feridas de defesa na mão e no antebraço.Ao se fechar


a mão, as feridas dos dedos e da região hipotenar se antepõem, o que Figura 13.13. A ferida horizontal foi feita antes da vertical porque
indica que a vítima segurou a arma do agressor. Coleção de ensino da ambas estão bem coaptadas ao serem aproximadas as suas bordas (ver
Faculdade de Medicina da UFRJ. explicação no texto).

feridas podem não ser regulares devido aos movimentos da Sentido e Ordem de Produção
m ão e ao deslocam ento da pele em relação às pregas naturais.
O sentido do deslocamento do instrumento no momen-
to do golpe pode ser avaliado pela posição da cauda de es-
Problemas Médico-legais coriação, que m ostra a saída do gume. Em alguns casos, na
reconstituição de crimes, a posição da cauda de escoriação
Algumas questões podem surgir diante de lesões produ- pode contradizer a versão do agressor, sendo impo rtante sa-
zidas por esse grupo de instrumentos mecânicos. ber se ele é d estro ou canhoto.
Q uando há entrecruzam ento de duas feridas incisas, a
Diagnóstico do Tipo de Instrumento ordem em que fo ram produzidas pode ser determinad a. Na
Inicialmente, o perito deve determinar o tipo de instru- segunda ferida, o instrumento incide sobre tecido já sec-
mento que produziu a lesão, o que é fácil na maioria dos cionado e que já sofreu a ação das linhas de fo rça geradas
casos, dadas a regularidade e as características já descritas das pelas fibras colágenas e elásticas, que repuxa m as bo rdas da
feridas. Se o gume estiver pouco afiado, as bordas da ferida primeira lesão. Para sabermos qual foi feita em primeiro lu-
podem apresentar-se um pouco escoriad as. É interessante gar, devemos tentar a coaptação das bordas de uma delas.
lembrar que as feridas ca usadas pela arcada supraorbitária Se a escolha tiver sido correta, poderemos suturar as bordas
na região do su percílio por vezes são difíceis de distinguir da segunda ferida ao lo ngo de duas direções defasadas, mas
d as produzidas por instrumentos cortantes. paralelas. Se escolhermos para coaptar em primeiro lugar
a segunda ferida, não conseguirem os boa confro ntação na
Reação Vital primeira, que terá excesso de tecido em uma das m etades
(Fig. 13.1 3) .
As feridas produzidas em vida são caracterizadas, em
parte, pelo grau de afastamento das suas bordas e verten-
Gravidade
tes. A retração é mais acentuada quando a ferida interessa o
plano muscular, principalmente se a secção fo r com direção Varia de acordo com a região atingida e a profundidade
transversal às fibras musculares. No cadáver, as feridas inci- da lesão. As lesões de esgorjamento são as mais graves e as
sas ficam menos abertas porque a pele sofre desidratação e que produzem a morte com maior freq uência. Mas, por ve-
to rna-se um pouco menos elástica. Além d o mais, a retração zes, a intenção do agressor não é m atar e, sim, deformar a
d os planos musculares é muito diminuída por causa da rigi- vítima. As deformidades podem decorrer de amputação par-
dez cadavérica. Há regiões em que a retração é muito gran - cial ou to tal de orelha, nariz, ou mesmo da genitália mascu-
de, como no pescoço, e outras em que é mínima, como nas lina. Neste caso, o motivo pode ser vinga nça po r crime de
regiões palmares e plantares. Por outro lado, a embebição sedução, estupro ou adultério. Ou ciúm e, quando praticada
de sangue nas malhas dos tecidos é de tal intensidade que, pela parceira sexual, como tem sido referido na mídia mais
m esmo após lavagem com água, as vertentes permanecem frequentemente, na atualidade. Em alguns casos, uma fe-
infiltradas, o que não é comum nas feridas feitas em cadáve- rida que não seria deformante pode sofrer hipertrofi a por
res. Contudo, se o corte no vivo for feito embaixo da água, a excesso de produção de tecido fib roso - queloide - e causar
infiltração poderá ser muito discreta. deform idade.
CAPITULO 1 3 Lesões e Morte por Armas Brancas • 243

Causa Jurídica
No caso de a vítima morrer, a causa jurídica pode ser
orientada pela disposição, pelo número e pela localização
das lesões. São típicas de suicídio as feridas incisas situadas
na face anterior do punho, embora possam fazer parte de
uma dissimulação de homicídio. A existência de lesões já ci-
catrizadas de outras tentativas contribui para a caracteriza-
ção do suicídio.
A existência de lesões de defesa é de grande importância
no diagnóstico dos homicídios, pois elas atestam ter havido
luta e resistência por parte da vítima. Além de servirem para
caracterizar o homicídio, podem ser usadas pela defesa do
acusado para afastar a qualificação do crime, já que a vítima
. .. ...
·~·····-~
·----~·~r

não teria sido atacada de surpresa e ficado sem chance de


Figura 13.14. Instrumentos perfurocortantes de um e de dois gumes.
se defender. Localizam-se, como já referimos, de preferên-
Oterceiro e o quarto, de cima para baixo, têm dois gumes.
cia nas regiões palmares e na borda cubital do antebraço,
podendo ser encontradas nos joelhos, nas pernas e nos pés.
No entanto, a existência de ferida incisa na fa ce palmar dos tas. Conforme as faces sejam lisas ou ásperas, as bordas das
dedos não exclui totalmente a possibilidade de suicídio, pois feridas podem apresentar-se normais ou escoriadas.
o suicida pode cortar as m ãos acidentalmente com o instru-
mento, em função de seu estado emocional. A multiplicidade
Tipos de Lesões
de golpes é dado importante e frequente nos homicídios.
No caso particular do esgorjamento, o suicídio é carac- Os instrumentos perfurocortantes produzem lesões que
terizado pela presença de múltiplos entalhes nos lábios da evidenciam predomínio nítido da profundidade sobre a ex-
ferida e pela existência de escoriações lineares, ou m esm o tensão, de modo semelhante ao que ocorre com os instru-
feridas menores e mais superficiais paralelas à ferida princi- mentos perfurantes. Mas sua forma varia de acordo com
pal - lesões de hesitação (Fig. 13.11 ). Traduzem as tentativas o número de gumes. Os que apresentam apenas um gume
do suicida de testar a sua sensibilidade à dor. Os entalhes das causam lesões em forma de botoeira, com um dos ângulos
bordas devem-se ao fato de ser a ferida feita em sucessivos pe- bem mais agudo que o outro, podendo exibir exígua cauda
quenos golpes, aos poucos. Nos homicídios, costumam faltar. de escoriação que corresponde ao gume (Figs. 13.15 e 13.16).
Mas pode haver casos de homicídio em que se achem lesões São lesões semelhantes às dos de dois gumes, principalmente
paralelas ao corte principal, decorrentes de tortura e sadismo se o dorso do instrumento não entrar em contato com a pele
do agressor. A lesão do homicídio costuma ser feita de um após a penetração da ponta.
só golpe, é profunda e tem as bordas regulares, sem entalhes. As feridas por instrumentos de do is gumes têm forma de
Levando-se em consideração a totalidade das lesões por fenda e ângulos bastante agudos e semelhantes. Na porção
instrumentos cortantes, inclusive as leves e superficiais, pre- central, o afastamento das bordas é máximo, atenuando-se
dominam de modo absoluto as acidentais, principalmente gradualmente em direção aos ângulos. Os de mais de dois
as decorrentes de atividades profissionais. Os acidentes do gumes deixam lesão de forma estrelada, com tantas pontas
trabalho por instrumentos cortantes são extremamente fre- quantas forem as arestas do instrumento. Suas bordas são
quentes. Mas, quando se trata de lesões mortais, a causa jurí- curvas e convexas em direção ao centro da ferida. Tal peculia-
dica mais frequente é o homicídio, depo is o suicídio. ridade da forma das lesões causadas pelos instrumentos poli-
gumes resulta da elasticidade da pele, que oferece resistência
ao ser empurrada pelas faces do instrumento. Enquanto ele
• INSTRUMENTOS PERFUROCORTANTES estiver enfiado nos tecidos, a força de suas faces é contrariada
e equilibrada pela elasticidade da pele; e a ferida tem a forma
São os que possuem uma ponta e um ou mais gumes. da secção da haste do instrumento. Ao ser retirado o instru-
Transferem sua energia cinética por pressão, através da pon- mento, a força de resistência elástica da pele é liberada para
ta, e por deslizamento dos gumes, que seccionam as fibras levar as bordas da ferida em direção ao seu ponto central,
dos tecidos. Entre os que possuem apenas um gume, pode- ficando, porém, a meio caminho (Figs. 13.17 e 13.18).
mos tomar como exemplos a faca de cozinha e o canivete; As lesões podem apresentar ângulos acessórios relacio-
entre os de d ois gumes, o punhal, a baioneta e a espada (Fig. nados com cada um dos gumes se o instrumento for torcido
13.14). Os de mais de dois gumes são representados, em ge- no m omento da saída, representados por pequenos entalhes
ral, por instrumentos especiais de trabalho, como certos ti- localizados na borda da ferida em direção à qual se deu a
pos de lima, e estoques feitos de vergalhões de construção to rção (Figs. 13.19 e 13.20). A não ser nesses casos, as bordas
por presidiários, em que a haste é facetada em uma das pon- e as vertentes da ferida serão sempre regulares.
244 • CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas

C-------

Figura 13.17. Esquemas de lesões por instrumentos perfurocortantes


de dois, três e quatro gumes. As bordas das feridas causadas pelos que
possuem mais de dois gumes tendem a se aproximar do centro por
causa dos vetores de reação gerados pela elasticidade dos tecidos assim
que o instrumento é retirado.

Figura 13.15. Esquemas de lesões produzidas por instrumentos per-


furocortantes de um gume. No superior, o instrumento penetrou desli-
zando a ponta e fez dois ângulos muito agudos. No do meio, o dorso da Figura 13.18. Feridas de defesa no antebraço de um presidiário que
faca forçou a pele e o ângulo ficou menos agudo. No inferior, houve foi morto por instrumento perfurocortante de quatro gumes feito dentro
torção da faca ao sair, causando um terceiro ângulo. da prisão. Guia 121 da 34ª DP, de 25/10/68.

Com o aumento do número de gumes, os instrumentos


tendem a se comportar com o os perfurantes de calibre médio,
obedecendo às leis de Filhos e de Langer, uma vez que as suas
arestas já não cortam mais os tecidos, apenas os deslocam.
As lesões pelos instrumentos perfurocortantes podem ser
classificadas em superficiais, penetrantes e transfixantes, da
mesma maneira que nos instrumentos perfurantes. As su-
perficiais podem tornar-se atípicas por predomínio da ação
cortante do instrumento, de modo a produzir feridas inci-
sas. Se a ponta do instrumento deslizar sobre a pele sem que
o gume atue, far-se-á uma escoriação linear. Quando essas
escoriações são achadas no corpo de vítimas de crimes, tra-
duzem luta; se paralelas, situadas em regiões outras que não
as de defesa, ou esboçando desenhos, podem indicar tortura
Figura 13.16. Ferida perfuroincisa por instrumento de um gume. No por sadism o do criminoso.
ângulo inferior, bem mais agudo, existe pequena cauda de escoriação As mais graves são as feridas penetrantes, não só pela
causada pelo gume. Guia 94 da 29ª DP, de 21 /06/72. contaminação bacteriana das cavidades como pela possibi-
CAPITULO 1 3 Lesões e Morte por Armas Brancas • 245

tivo de ampliar e multiplicar as lesões viscerais. Tal conduta


caracteriza plenamente o animus necandi.
Ao longo do trajeto, observa-se retração dos tecidos, de
modo que a fenda tem suas bordas um pouco afastadas de
modo desigual, principalmente nos planos musculares, mais
ainda se cortados transversalmente.
É importante atentar para o fato de que a posição dos
órgãos muda conforme esteja o indivíduo em pé ou deita-

l do. A inobservância desse fato pode levar a falsas conclu-


sões quanto à direção do instrumento no corpo da vítima
e, por conseguinte, com relação à posição do agressor e da
vítima.
A penetração do instrumento em superfície óssea pode
deixar sua forma impressa em baixo-relevo. Às vezes, a pró-
Figura 13.19. Grupo de cinco feridas por instrumento perfurocor- pria lâmina pode quebrar e ficar parcialmente encravada.
tante de um gume. O diagnóstico é possível porque uma delas apre-
senta um ângulo acessório por torção na sua saída. Guia 08 da 18~ DP, Em outubro de 1996, o noticiário dos telejornais mostrou o
de 26/02/69. caso de um rapaz de uma cidade do interior que fora golpea-
do com uma faca na face. A equipe médica que o atendeu
só descobriu que a lâmina ficara cravada na base do crânio
quando notaram sinais de comprometimento neurológico e
submeteram-no a exame radiológico.

Problemas Médico-legais
Diagnóstico do Tipo e da Arma
A forma da ferida e a sua direção podem atestar que foi
provocada por instrumento perfurocortante. O número de
gumes pode ser avaliado pelo número de ân gulos das fe-
ridas, e a dificuldade maior surge na distinção das feridas
por armas de um e de dois gumes. São muito parecidas,
e, na prática pericial, pode ficar muito difícil o dia gnós-
tico diferencial. O fato descrito de qu e o ângulo que cor-
responde ao dorso do instrumento é menos agudo que o
oposto pode não ser muito nítido, principalmente quan-
do a lâmina é pouco espessa, a m enos que haja pequena
cauda de escoriação denunciadora da posição do gume. A
Figura 13.20. Grupo de feridas em forma de botoeira em que a maior, dificuldade diminui quando há torção do instrumento no
à esquerda, tem dois ângulos em uma das extremidades, causadas por
instrumento de um só gume. Guia 139 da 37ª DP, de 08/06/2004. momento de ser retirado, seja por manobra intencional do
agressor, seja por movimentação da vítima (Figs. 13.19 e
13.20). Nesse caso, a borda da ferida para onde girou o
gume vai apresentar um entalhe. Tratando-se de instru-
!idade de lesões de vísceras e de vasos calibrosos. Sua profun - mento de do is gumes, ambas as bordas apresentarão o en-
didade não imita, necessariamente, o comprimento da lâmi- talhe. Camps 9 refere a possibilidade de se diagnosticar a
na do instrumento. Tanto pode ter havido penetração apenas posição do dorso do instrumento na lesão por meio do
parcial como ter sido o golpe muito violento, de modo a exame histológico em cortes paralelos à superfície cutânea.
que a mão do agressor empurre as partes mo les superfi ciais, No ângulo correspondente ao dorso, as fibras mostrar-se-
produzindo trajeto maior do que o comprimento da lâmina. iam empurradas, e não seccionadas.
Aqui, o batente da empunhadura da arma pode deixar uma A avaliação da largura máxima da lâmina de um ins-
escoriação nas bordas da ferida. Pelo seu formato, essa esco- trumento perfurocortante pode ser feita grosseiramente
riação pode ajudar a identificar a arma do crime8. pelo cálculo da média do comprimento das feridas maio-
O trajeto é constituído por um túnel em forma de fenda res. Contudo, nessa avaliação não devem ser computadas
nas feridas por instrumentos de um ou de do is gumes. O as feridas em que a ação do instrumento foi predominante-
mais comum é haver um trajeto para cada lesão superficial. mente cortante. Caso haja apenas uma ferida, não é possível
Mas é possível que o agressor execute movimentos de vaivém afirmar com segurança, pois a lâmina pode ter penetrado
sem retirar o instrumento do corpo da vítima, com o obje- parcialmente.
246 • CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas

Gravidade
Depende de ter havido penetração das gra ndes cavidades
do organismo e de se ter atingido alguma víscera ou vaso
sanguíneo calibroso. Mas as feridas superficiais também po-
dem interessar vasos arteriais, nervos e tendões, principal-
mente se predominar a ação cortante.

Reação Vital
Lesões feitas em vida evidenciam afastamento das bordas,
infiltração sanguínea das vertentes e grande acúmulo de sangue
dentro das cavidades, principalmente se as feridas externas fo-
rem pequenas ou tamponadas de algum modo. Certas feridas
na região escapular, se feitas com a escápula afastada para fora,
podem ser completamente tamponadas pela volta do ombro à Figura 13.22. Caso de suicídio com faca de cozinha. Nota-se uma
posição natural anatómica. Por outro lado, grande quantidade lesão na face anterior do punho esquerdo e a lesão mortal na região
de sangue nas roupas e no local em que o corpo foi encontrado precordial, onde ainda está cravado o instrumento. Caso cedido gentil-
denota que a lesão foi produzida em vida. Convém lembrar, mente pelo Prof. Ivan Nogueira Bastos.
como foi referido no Capítulo 7, que lesões produzidas logo
após a morte, em regiões de formação de livores, podem apre-
sentar infiltração hemorrágica, mas nunca levam a sangramen- Nos casos de suicídio, as lesões estão situadas, geralmen-
to intenso como o observado naquelas feitas antes da morte. te, na região precordial. É comum que o indivíduo afaste a
camisa para desferir o golpe na pele desnuda (Fig. 7.7) . Pode
Causa Jurídica haver mais de uma lesão na mesma região, o que não afas-
ta o dia gnóstico, e outras por ação cortante do instrumento
Consideradas to das as lesões, inclusive as superficiais em
no punho ou no pescoço. O mais importante, nesses casos,
que predomina a ação cortante, a causa mais comum são os
é a ausência de lesões de defesa (Fig. 13.22) . Os orientais,
acidentes. Mas, tratando -se de lesões fatais, a maioria é de
principalmente os japoneses tradicionais, preferem a região
origem homicida. Nesses casos, costuma haver várias lesões,
epigástrica na prática do haraquiri.
com distribuição aleatória, em geral no tórax. O mais impor-
tante para o diagnóstico é a presença daquelas próprias de
defesa (Fig. 13.2 1). Porém, a existência de apenas uma lesão
não permite excluir a hipótese de ho micídio, mesmo quando
• INSTRUMENTOS CORTOCONTUNDENTES
localizada no precórdio ou na região epigástrica. A vítima
São considerados cortocontundentes os instrumentos
pode ter sido atingida quando incapaz de reagir, durante o
que, dotados de grande massa, transferem sua energia por
sono, em estado de embriaguez, em coma etc.
meio de um gume. A forma geral dos instrumentos desse
grupo po de variar, mas consta de uma empunhadura de ta-
manho variado à qual se prende a espessa lâmina que atua
como cunha. São exemplos desse grupo cutelos, machados,
enxadas, foices, facões, alfanjes e, inclusive, rodas d e trem
(Fig. 13.23) .
Ao contrário dos instrumentos cortantes, que atuam
mais por deslizam ento, os cortocontundentes agem princi-
palmente por pressão. O gume força os tecidos perpendicular
ou obliquamente, penetra e abre caminho para a cunha que
constitui o instrumento. Com o regra geral, atravessam com
facilidade as partes moles do corpo e não se detêm mesmo
no plano esquelético (Figs. 13.24 e 13.25). Mas podem agir
com o instrumento cortante desde que tenham gume afiado e
predomine a ação de deslizamento em vez da pressão. A ação
dos dentes incisivos pode ser considerada cortocontundente.
Um instrumento desse grupo tornou-se famoso - a gui-
lhotina. Seu uso foi advogado pelo Dr. J. 1. Guillotin para as
Figura 13.21. Homicídio por instrumento periurocortante. Notam-se execuções judiciais, durante a Revolução Francesa, dizendo
várias lesões no tronco e lesões de defesa no braço esquerdo e cotovelo ser um método rápido e eficiente10 . Contudo, o rei Luís XVI,
direito. Guia 77 da 13ª DP, de 25/10/69. que era forte e corpulento, ao ser executado em 21 de ja-
CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas • 247

~
-- 1 ..
Figura 13.23. Três instrumentos cortocontundentes: machado, cutelo
e facão.

neiro de 1793, teve que receber mais de um golpe, porque o


primeiro não foi suficiente para decapitá-lo" . Na indústria,
existem guilhotinas que servem para aparar folhas de metal
nas estamparias e blocos de papel nas gráficas. Vez por outra,
causam acidentes graves no trabalho.

Tipos de Lesões
A maior característica das lesões causadas por esse grupo Figura 13.24. Ferida cortocontusa no setor parietal esquerdo, junto
é a frequência com que são encontradas mutilações. Devido à linha mediana. Guia 90 da 40ª DP, de 30/03/99.
à inércia, os instrumentos cortocontundentes incidem vio-
lentamente sobre o corpo, o que se traduz por lesões muito
profundas e graves. Denominam-se feridas cortocontusas.
São comuns as amputações de segmentos dos membros.
Quando incidem sobre a cabeça o u o pescoço, podem pro-
duzir tanto fratura exposta de crânio com o decapitação. As
feridas produzidas por esses instrumentos são, em geral, re-
tas e apresentam bordas afastadas, regulares, porém escoria-
das. Suas vertentes são planas, mas deixam ver certo grau de
laceração dos diversos planos, principalmente os muscula-
res. A abertura de seus lábios varia com o grau de penetração
da cunha. No plano esquelético, podem produzir fraturas
tanto na área de impacto como à distância. Na área atingida
diretamente, a fratura apresenta bordas regulares e vertentes
em geral impregnadas por resíduos de ferrugem o u o utros
materiais presentes nas faces do instrumento. Não havendo
secção completa do osso, a abertura interrompe-se abrup-
tamente ou é prolo ngada po r traços de fratura irregulares Figura 13.25. Fratura linear regular que acompanha obliquamente a
(Figs. 13.24 e 13.25 ). sutura sagital, encontrada ao se rebater o couro cabeludo. Há uma
fratura transversal que se interrompe ao encontrar a maior. Mesmo caso
da figura anterior.
Problemas Médico-legais
Diagnóstico
a atenção do perito no sentido de identificar o tipo de ins-
O diagnóstico de lesões por esse tipo de instrumentos trumento. Por outro lado, as circunstâncias que envolvem o
está baseado na presença de mutilações e perdas de substân- caso geralmente são bastante claras e sugestivas da atuação de
cia, que indicam atuação de instrumento dotado de grande instrumentos cortocontundentes. Ora se trata de ocorrência
força viva. As amputações e as lesões do plano ósseo chamam na zona rural, onde são mais utilizados esses instrumentos,
248 • CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas

ora de acidentes do trabalho, ou ainda de atropelamento por ferrugem. No Rio de Janeiro, ocorrem mais com passagei-
trem. Por vezes, são vistas mutilações causadas por mordidas ros que viajam como pingentes dos trens urbanos e com os
em casos de luta corporal e de atentado sexual. As margens chamados "surfistas ferroviários", que costumam ficar no
da lesão imitam o desenho das arcadas dentárias e podem teto dos vagões. É preciso cautela ao se examinar os corpos
mostrar escoriação das bordas e infiltração equimótica da desses indivíduos, pois é possível que se queira dissimular
pele vizinha (Fig. 11.15). homicídio por outros meios jogando o cadáver no leito da
via férrea. Recentemente, houve um atropelamento em que
Reação Vital a pessoa teria se jogado da plataforma do metrô do Rio de
Janeiro na frente da composição que chegava à estação, ten-
Seu diagnóstico baseia-se nos mesmos parâmetros já
do sofrido esmagamento parcial do tronco, que quase ficou
analisados para os outros grupos de instrumentos.
dividido em dois segmentos na transição toracoabdominal
Causa Jurídica (Figs. 13.27 e 13.28). Em outras ocasiões, o que ocorre é
uma decapitação (Fig. 13.29).
A distribuição das formas de causa jurídica difere con- As lesões mutilantes não fatais são causadas principal-
forme consideremos todas as lesões ou apenas as graves e mente por acidentes do trabalho. Na zona rural, acontecem
mortais. Como regra geral, pode-se afirmar que os casos fa- acidentes com cortadores de cana e outros trabalhadores
tais são o resultado de homicídio ou de acidente. Raramen- braçais. O cansaço pela longa jornada de trabalho faz com
te, pessoas em desespero, ou crise de depressão, suicidam-se que a atenção seja reduzida, ocorrendo assim os acidentes. O
pulando na frente de um trem. mesmo fato propicia acidentes em guilhotinas de estampa-
Os homicídios são mais comuns no campo do que nas rias e de gráficas no ambiente urbano.
áreas urbanas. Na zona rural, ocorrem tanto no local de tra-
balho como nas residências. Em geral, resultam de rixas em
que o ofendido lava sua honra em sangue. É comum que • OUTROS INSTRUMENTOS
haja multiplicidade de golpes e graves mutilações relaciona-
das com as lesões de defesa. Os segmentos corporais mais A classificação de alguns instrumentos que podem ser
visados são a cabeça e o pescoço (Fig. 13.26). Os instrumen- usados como arma branca é difícil por causa de sua forma,
tos mais usados são a foice e o facão. O corpo mutilado da que não se ajusta de modo simples aos grupos anteriormente
vítima ora é deixado no mesmo local, ora é arrastado para analisados. As serras e os serrotes causam lesões de forma li-
dentro do mato. Por vezes, são os abutres que indicam seu near regular, porém com bordas escoriadas e margens discre-
local ao sobrevoarem a área, atraídos pelos gases emanados tamente laceradas que, quando examinadas mais atentamen-
do cadáver já em decomposição. te, evidenciam minúsculas roturas de fibras ao lo ngo da linha
A causa mais comum de acidentes fatais no meio urbano de atuação da lâmina. Dependendo da velocidade de desli-
são os atropelamentos por trem. As lesões são extremamente
mutilantes, ocorrendo um misto de ação cortocontundente
e contundente. Há segmentação do corpo e esmagamento
de várias partes. Nas feridas que promovem a segmentação,
as bordas são escoriadas e acompanhadas da deposição de
detritos dos trilhos e das rodas dos vagões, como graxa e

Figura 13.27. Corpo de indivíduo atropelado por trem do metrô do


Rio de Janeiro. O terço inferior do tórax e o superior do abdômen estão
exageradamente afastados, onde há uma larga faixa escura transversal
com abertura da cavidade abdominal para o exterior. Notam-se algumas
feridas menores de direção longitudinal no meio da faixa escura. A ferida
situada transversalmente ao hipogástrio, pouco acima do pênis, tem
bordas irregulares, porém limpas, continuando por faixa de escoriação
Figura 13.26. Vítima de homicídio com numerosas lesões cortocon- larga para o dorso. O membro superior direito revela várias lesões e
tusas na cabeça. Coleção de ensino da Faculdade de Medicina da UFRJ. fratura dos ossos do cotovelo. Guia da 1na DP, de 19/09/2002.
CAPITULO 1 3 Lesões e Morte por Armas Brancas • 249

zamento e do tamanho dos dentes da serra, bem como do


travamento desses dentes, a irregularidade das margens varia.
Quanto mais veloz, mais regulares a borda e as vertentes da
ferida; quanto maiores e mais travados os dentes, mais irregu-
lares. Se um serrote atuar por deslizamento lateral, provocará
uma série de escoriações lineares e paralelas, cujo espaçamen-
to permite confronto para identificação do instrumento.
As serras e os serrotes, para fim de estudo de seu me-
canismo de ação, podem ser considerados uma sucessão de
instrumentos perfurocortantes ao longo de uma linha, onde
agem sucessivamente. A serra circular, utilizada em marce-
narias, é responsável por grande número de amputações em
acidentes do trabalho (Fig. 13.30). As chamadas motosserras
são formadas por uma corrente que prende numerosas peças
de aço enfileiradas de forma complexa, que se projetam para
fora. As lesões produzidas têm largura igual à dessas peças
(Figs. 13.31 e 13.32).

Figura 13.28. Detalhe da Figura 13.27 para mostrar a irregularidade


das bordas da ferida suprapubiana, pontes de tecido unindo as vertentes
nos planos profundos e discretas fissuras paralelas à borda superior
(seta), atestando que ela foi feita por tração da pele no momento em Figura 13.30. Serra circular elétrica portátil. Cada dente pode ser
que as rodas do trem fizeram a lesão principal. considerado como um instrumento perfurocortante. Quando a serra gira,
eles se sucedem rapidamente. Cada um amplia a lesão produzida pelo
anterior.

Figura 13.29. Decapitação por ação de roda de trem. fts bordas da Figura 13.31 . Motosserra. Os dentes são formados por peças de aço
lesão estão escurecidas por impregnação de sujeira das rodas e do enfileiradas e presas em uma corrente. Tais peças têm forma complexa.
trilho, principalmente na parte contígua à cabeça. Coleção de ensino da Conforme o seu tamanho, o corte tem sulco de largura proporcional. A
Faculdade de Medicina da UFRJ. força motriz costuma ser por motor a explosão.
250 • CAPITULO 13 Lesões e Morte por Armas Brancas

Figura 13.32. Os elementos são complexos nesta corrente, com uma


parte em canaleta e outra como um gancho, tendo espaçamento entre
si maior do que cada peça.

Figura 13.33. Porção distal de uma goiva (à esquerda) e de um


formão (à direita).
Ainda na marcenaria, existem outras máquinas, como a
desempenadeira e a tu pia. A primeira é um cilindro de metal
provido de lâminas paralelas entre si e ao seu eixo que ser- pes de formão, goiva ou chave de fenda sem que se tenha sur-
vem para desbastar as partes empenadas da madeira, ou tor- preendido o agressor em flagrante ou encontrado a arma do
nar sua superfície mais regular (madeira aparelhada). Atuam crime. O problema principal a que nos referimos é a maneira
como se fossem instrumentos cortocontundentes, agindo de responder ao terceiro quesito do exame cadavérico: "Qual
sucessivamente em função do giro da máquina. Pela sua ve- o instrumento ou meio que causou a morte?''. A resposta
locidade e gume afiado, se atuar sobre algum segmento do deve ser cautelosa e precedida de uma boa discussão das le-
operário, provoca perda de substância tanto de partes moles sões. Conforme o aspecto predominante, o perito poder-se-á
como do esqueleto. Causa mutilações importantes. A tupia, definir por um tipo de ação, ou deixar em aberto a possibi-
utilizada para modelar a madeira, tem princípio de atuação lidade de se tratar de um instrumento especial e diferente
semelhante, mas é mais perigosa porque tem lâminas mais dos geralmente usados.
salientes e de forma muito variada.
Por fim, achamos difícil enquadrar nas categorias que es-
tudamos até aqui as goivas, os formões e as chaves de fenda. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
São todos instrumentos alongados que podem penetrar no
corpo humano se utilizados em agressões. Assim, possuem !. Alvarado EV Heridas por arma bianca. In: Medicina Legal. 3• ed.
características dos instrumentos perfurantes ao atuarem por Costa Rica, San José: Lehmann Editores; 1983. Capítulo 17.
2. Caldwell RG. Guillotine. In: Encyclopedia Britannica. Volume 10.
pressão, mas não têm ponta. As goivas e os formões apresen-
Chicago: William Benton Publisher; 1964.
tam uma lâmina afiada que pode atuar como instrumento 3. Camps FE. Wounds and trauma. In: Gradwohl's Legal Medicine. 2nd
cortante se deslizar sobre a pele. Seriam instrumentos perfu- ed. Baltimore: The Williams & Wilkins Company; 1968. Capítulo
rocortantes sem ponta? Ou cortocontundentes? A sua ação 16.
típica exercida sob golpes de um malho que os fazem atuar 4. França GV. Traumatologia médico-legal. In: Medicina Legal. 3' ed.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan SA; 1991. Capítulo 4.
por impacto de grande pressão sugere que a última hipótese
5. Godechot J. French Revolution. In: Encyclopaedia Britannica. Vo-
esteja mais correta (Fig. 13.33). lume 9. Chicago: William Benton Publisher; 1964.
Sem ponta nem gume, as chaves de fenda apresentam 6. Hércules HC. Agressores físicos: introdução à Patologia Forense.
a extremidade da haste terminando por uma borda reta de In: Mecanismos Básicos de Doença. Domingos de Paola, ed. São
largura e espessura variadas. Ao atuarem por pressão sobre Paulo: Livraria Atheneu; 1977. Capítulo XX.
a pele, podem causar uma ferida superficial de bordas esco- 7. Hércules HC. Mecanismos do trauma. In: Trauma: a doença dos
séculos. Evandro Freire, ed. São Paulo: Editora Atheneu; 2001.
riadas, mas que não acompanha as linhas de força da região. Capítulo 4, p. 77- 102.
Assim, não podem ser enquadradas como instrumentos per- 8. Rabello E. Armas em geral. In: Balística Forense, 3• ed. Sagra DC.
furantes, mesmo porque não têm ponta. Ao longo do túnel Porto Alegre: Luzzatto Editores; 1995. Capítulo II.
que produzem ao penetrar, as fibras dos tecidos são rompi- 9. Salles N. Comunicação pessoal.
10. Spitz WU. Sharp force injury. In: Medicolegal Investigation of
das. Seriam instrumentos perfurocontundentes?
Death Werner U. Spitz, ed. Springfield: Charles C. Thomas Pu-
Por isso, esses instrumentos de trabalho podem causar blisher; 1993. Capítulo VIII.
muita dor de cabeça a peritos que tenham a necessidade de 11. Thoinot L. Les atteintes a la vie ou a la santé. Livro III. In: Précis de
examinar o corpo de alguém que tenha sido morto por gol- Médecine Légale. Paris: Octave Doin et Fils Éditeurs; 1913.
Hygino de C. Hercules

Instrumentos perfurocontundentes são aqueles que construção ou em navios de guerra. Sua mobilidade é muito
atuam por m eio de uma ponta ro mba, por pressão, e produ- restrita, dispo ndo apenas de d eslocamentos verticais e hori-
zem lesões em fo rma d e túnel. Estão representados, na maioria zontais limitados. São móveis aquelas montad as em carros
dos casos, pelos projéteis d e arma d e fogo, mas incluem tam - d e combate o u sobre dispositivos com ro das, que pod em ser
bém qualquer instrumento formad o por qualquer haste que d eslocadas de acordo com as conveniências de combate. Se-
não termine como uma ponta afilada, como acontece com os miportáteis são as que pod em ser mo ntadas e desmontadas
perfurantes. Aqui, situam-se os vergalhões de construção ci- d o suporte com facilidad e, para uso, m as que não po dem ser
vil, certas grad es e flechas e pedaços de m adeira alon gados. Os carregadas por um só homem .
projéteis de arma d e fogo, por serem responsáveis pela quase As de maior interesse médico-legal são as portáteis, que
totalidade das lesões provocad as por esse tipo de instrumento, podem ser longas ou curtas. São armas longas o fu zil, a ca ra-
receberão atenção especial ao longo deste capítulo. bina, o mosquetão e a espingarda. São curtas as pistolas e os
revólveres (Figs. 14.1 a 14.4) .

• ESTUDO DAS ARMAS DE FOGO


As arm as de fogo são m áquinas construídas com a fina-
lidade de disparar projéteis por meio da fo rça expansiva d os
gases liberados pela queima d e certa quantidade de pólvora.
Devem ser consider adas armas de arrem esso complexas'. São
formadas basicamente por um mecanismo desencadeador
da queima da pólvora, uma câmara de combustão o nde se
aloja o cartucho e um cano que deve ser percorrido pelo pro-
jétil antes de atravessar o ar que o separa do alvo. De acordo
com as variedades desses elementos básicos, as armas de fogo
po dem ser classificadas segundo vários critérios .

• CLASSIFICAÇÃO DAS ARMAS DE FOGO

Quanto ao Porte
As armas po dem ser fixas, móveis, semiportáteis e por- Figura 14.1. Revólver Taurus, calibre .38 SPL, com indicação das
táteis'. São fixas as peças de artilharia montadas em uma partes principais.

251
252 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Figura 14.2. Mesmo revólver da figura anterior com o tambor reba- Figura 14.4. Mesma pistola da figura anterior com o ferrolho retraído
tido. Este contém seis cartuchos alojados nas câmaras de combustão, de modo a deixar aberta a janela de ejeção do estojo do cartucho
menos uma que está vazia. deflagrado.

licoidal cavadas ao longo do cano, separadas por cristas para-


lelas em que o metal não está rebaixado, os cheios. A raiação
do cano serve para imprimir um movimento de rotação ao
projétil, tornando seu deslocamento através das camadas do
ar mais regular e estável. Conforme a direção do movimento
de rotação, são chamadas de destrógirasquando o projétil roda
da esquerda para a direita em torno do seu eixo longitudinal,
ou de sinistrógiras quando em sentido contrário. O número de
raias varia de um fabricante para outro, mas são, no mínimo,
cinco. Pode ser par ou ímpar. Algumas armas possuem raias
mais estreitas e em maior número: microrraiação. A distân -
cia necessária para um giro de 360° é chamada de passo. Essa
medida é de tal ordem importante que não pode ser reduzi-
da além da conta, sob pena de promover verdadeiro descas-
camento do projétil. A velocidade angular do movimento de
rotação do projétil depende do passo e da carga propelente.
As armas longas po dem ter o cano de alma raiada o u
Figura 14.3. Pistola Taurus .PT 940 com o carregador separado e lisa. As de alma raiada são denominadas genericamente de
indicação das partes principais. rifles, seguindo a nomenclatura anglo-saxônica. Entre nós,
são denominadas de fuzil, mosquetão o u carabina. O fuzil e
o mosquetão são armas para a guerra ou a caça de animais
Na literatura de língua inglesa, o termo pistol inclui tam- de grande porte, com o cano m edindo mais de 20 polega-
bém os revólveres, sendo definida como a arma de fogo que das. Já as carabinas, são providas de cano cujo comprimen-
pode ser utilizada com apenas uma das mãos. O revólver é, to não ultrapassa essa medida. Além disso, o fuzil de guerra
por isso, considerado como um tipo de pistola. Entre nós, tem funcionamento automático, ao passo que o mosquetão
pisto las são, em geral, armas modernas semiautomáticas ou e a carabina, não 2• Os fuzis de caça não têm mecanismo au-
armas antigas tipo garrucha, não incluindo as que usam um tomático. Outra diferença entre o fuzil e o mosquetão por
tambor para alojar os cartuchos. No Decreto 2.998/97, que um lado, e a carabina, por outro, é o tipo de munição utili-
dá diretrizes para a fiscalização das atividades relacionadas zada. Esta usa cartuchos de armas curtas; aqueles, munição
a armas de fogo, as armas portáteis curtas são classificadas fabricada especialmente. Há carabinas em que os projéteis
como armas de porte. são disparados por meio de ar comprimido ou uma mola.As
metralhadoras podem ser armas semiportáteis o u portáteis e
Quanto à Alma do Cano utilizam munição semelhante à dos fuzis, especialmente fa-
A face interna do cano das armas de fogo (alma) pode ser bricada para elas. Existem, ainda, as chamadas submetralha-
lisa, ou provida de raias. As raias são depressões de forma he- doras (Fig. 14.5), como a Uzi israelense, que utilizam muni-
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 253

Calibre

Figura 14.5. Submetralhadora HKMPS, calibre 9 mm. É capaz de


disparar em rajadas. Figura 14.6. Determinação do calibre real de uma arma raiada.

ção semelhante às empregadas em pistolas3• As armas longas Quanto à Legislação


com alma lisa são as espingardas.
Todas as atividades relacionadas à produção, comerciali-
As armas de guerra, que disparam projéteis de alta ener-
zação, importação, exportação, cadastro, registro, posse e por-
gia, serão estudadas no Capítulo 15.
te de armas de fogo estão regulamentadas pela lei 10.826/03
(Estatuto do Desarmamento) e pelo Decreto 5. 123/04 que a
Quanto ao Calibre
regulamentou. Tais diplomas legais foram atualizados pelas
Chama-se de calibre real o diâmetro da boca das armas de Leis l 0.867 /04, l 0.884/04, 11.118/05, 11.191 /05, 11.501/07,
fogo raiadas, quando med ido entre dois cheios opostos (Fig. 11.706/08 e 11.922/096 .
14.6) . Quando ele é referido de acordo com o número dado O Estatuto do Desarmamento consolidou o cadastro ge-
pelo fabricante dos cartuchos, é dito nominal. Mais de um ca- ral das armas de fogo através do Sinarm e do Sigma. O Si-
libre nominal podem corresponder a um m esmo calibre real, narm -Sistema Nacional de Armas- instituído no Ministério
seja da arma, seja do projétil. O calibre nominal é um referen- d a Justiça e no âmb ito do Departamento de Polícia Federal,
cial necessário, pois cartuchos de calibre nominal diferente tem a missão de cadastrar as armas de fogo dos seguintes ór-
destinam-se a armas distintas em função de suas qualid ades gãos e instituições: Polícias Civis dos Estados/DF e da União
balisticas díspa res, embora os projéteis possam ter o mesmo (Polícia Federal, Polícia Rodoviária, Polícia Ferroviária),
diâmetro. Por exemplo, o cartucho Magnum .357 tem projé- Guardas Municipais, Guarda do Senado e Guarda da Câma-
til com o mesmo d iâmetro e peso do .38 SPL, mas seu estojo ra dos Deputados, bem como do cidadão comum, certas ca-
mais longo co ntém maior quantidade de pólvora, o que tor- tegorias profissionais, agentes prisionais, guardas portuárias,
na perigoso seu uso nos revólveres .38 longo comuns1•4 • escoltas de presos e caçadores de subsistência6 •
O calibre das armas raiadas pode ser d esignado de acordo O Sigma - Sistema de Gerenciamento Militar de Armas
com dois sistemas de m ed ida. Um deles é o europeu, qu e se - instituído no Comando do Exército, faz o cadastro das ar-
vale de uma escala em milímetros (7,65 mm; 9 mm). O ou- mas de fogo das Forças Armadas, das Forças Auxiliares d i-
tro é o anglo-americano, que se vale de fra ções de polegada, versas, Polícias Militares e Corpos d e Bombeiros Militares,
em centésimos (americano: .22; .32; .38) o u em milésimos ABIN (Agência Brasileira de Informações), GSI (Gabinete
(inglês: .220; .320; .360; .375 o u .380). Pode ocorrer confusão de Segurança Institucional da Presidência da República), Re-
porque, às vezes, cartuchos idênticos são designados por nú - presentações Diplomáticas oficiais, fábricas de armas, cole-
meros difere ntes, conforme a sua origem europeia ou ameri - cionadores, atiradores e caçad ores. Quando nos referimos às
cana. Por exe mplo: 7,65 mm Browning = .32 ACP/AUTO; 9 armas institucionais, falam os daquelas que constam em seus
mm curto = .380/ACP'.s. registros próprios, mas também d evem ser cad astradas no
A designação do calibre nominal das espingardas segue respectivo sistema (Sinarm ou Sigma) as armas particulares
referencial d iferente, medido pelo cartucho, e não pela boca dos integrantes daquelas instituições.
da arma. O número do calibre da espingarda é igual ao nú- Como se depreende, o maior acervo de cadastro está no
mero de esferas de chumbo com o mesmo diâmetro da câ- Sinarm, que tem um banco de dados de base mais ampla.
mara da arma que são necessár ias para formar a massa de Mas o armamento mais letal e perigoso é o que consta do
uma libra-peso (l libra = 453,6 g). Os calibres encontrados Sigma. Por isso, pode-se afirmar que a preocupação maior
no comércio são, do menor para o maior: 36 - 32 - 28 - 24 - do Sinarm é a segurança pública, enqu an to a do Sigma é a
20- 16 e 12. A espingarda calibre 12, quando tem o cano am- d efesa do Estado.
putado em cerca d e 1/3 do seu comprimento para transporte É importa nte fazer a distin ção entre cadastro e registro
clandestin o mais fácil, é vulgarmente chamada de escopeta. d e uma arma de fogo. O cadastro é uma informação que
254 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

indica a existência física da arma, enquanto o registro cor- .243 Winchester, .270 Winchester, 7 Mauser, .30-06, .308
responde ao seu estado legal. É documento oficial emitido Winchester, 7,62 x 39, .357 Magnum, .375 Winchester e
pelo ó rgão competente da administração pública que lega- .44Magnum;
liza a arma, como se fosse um registro de nascimento. Após V - armas de fogo automáticas de qualquer calibre;
o cadastramento, a arma deve ser registrada para que o seu VI - armas de fogo de alma lisa de calibre doze ou
proprietário possa ter a sua guarda ou porte. Guarda é a per- maior com comprimento de cano menor que vinte e quatro
missão para ter a arma em sua casa ou em seu estabeleci- polegadas ou seiscentos e dez milímetros;
mento comercial. Porte é a licença oficial para portar a arma VII - armas de fogo de alma lisa de calibre superior ao
fora desses locais em função de características particulares doze e suas munições;
da profissão exercida ou da situação atual de exposição a VIII - armas de pressão por ação de gás comprimido ou
perigo da pessoa6 . por ação de mola, com calibre superior a seis milímetros,
A separação do cadastro das armas em dois sistemas, que disparem projéteis de qualquer natureza.
com preocupações voltadas ora para a segurança pública, ora IX - armas de fogo dissimuladas, conceituadas como
para a segurança do estado, também está fundamentada no tais os dispositivos com aparência de objetos inofensivos,
poder de destruição e maior letalidade daquelas cadastradas mas que escondem uma arma, tais como bengalas-pistola,
no Sigma. O Decreto 5.123/04, que regulamentou o Estatuto canetas-revólver e semelhantes;
do Desarmamento, ratificou a divisão legal das armas, que já X - arma a ar comprimido, simulacro do Fz 7,62 mm,
vinha da antiga legislação, em armas permitidas e armas de M964,FAL;
uso restrito. XI - armas e dispositivos que lancem agentes de guerra
química ou gás agressivo e suas munições;
Art. 10. Arma de fogo de uso permitido é aquela cuja ........................... até o inciso XXI
utilização é autorizada a pessoas físicas, bem como a pes- Art. 17. São de uso permitido:
soas jurídicas, de acordo com as normas do Comando do I - armas de fogo curtas, de repetição ou semiautomá-
Exército e nas condições previstas na Lei 10.826103. ticas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, ener-
Art. 11. Arma de fogo de uso restrito é aquela de uso gia de até trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules
exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança e suas munições, como por exemplo os calibres .22 LR, .25
pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devida- Auto, .32 S & W, .38 SPL e .380 Auto;
mente autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo II - armas do fogo longas raiadas, de repetição ou se-
com legislação espedfica. miautomáticas, cuja munição comum tenha, na saída do
cano, energia de até mil libras-pé ou mil trezentos e cin -
Como a leitura desses artigos não permite saber quais ar- quenta e cinco joules e suas munições, como por exemplo os
mas em particular são de uso permitido ou de uso restrito, é calibres .22,LR, .32-20, .38-40 e .44-40;
preciso suprir a lacuna. Isto tem que ser feito pelo chamado III - armas de fogo de alma lisa, de repetição ou se-
R-105, o Regulamento para a Fiscalização dos Produtos Con- miautomáticas, calibre doze ou inferior, com comprimento
trolados (pelo Exército), com a nova redação dada pelo De- de cano igual ou maior do que vinte e quatro polegadas
creto 3.665/00. que descreve as características de cada grupo ou seiscentos e dez milímetros; as de menor calibre, com
nos seus artigos 16 e 17. qualquer comprimento de cano, e suas munições de uso
permitido;
Art. 16. São de uso restrito: IV - as armas de pressão por ação de gás comprimido
I - armas, munições, acessórios e equipamentos iguais ou por ação de mola, com calibre igual ou inferior a seis
ou que possuam alguma característica no que diz respeito milímetros e suas munições de uso permitido:
aos empregos tático, estratégico e técnico do material bélico ........................... até o inciso XI.
usado pelas Forças Armadas nacionais;
II - armas, munições, acessórios e equipamentos que, Como se nota, os limites de energia do projétil ao sair
não sendo iguais ou similares ao material bélico usado pe- do cano da arma para torná -las de uso permitido são de até
las Forças Armadas nacionais, possuam características que 407 J para as armas curtas e de até 1.355 J para as armas lo n-
só as tornem aptas para emprego militar ou policial; gas, ambas raiadas. No caso das espingardas, até o calibre 12,
III - armas de fogo curtas, cuja munição comum tenha, desde que com cano de comprimento igual ou maior do que
na saída do cano, energia superior a trezentas libras-pé ou 24 polegadas. As espingardas com calibre superior ao 12, in-
quatrocentos e sete joules e suas munições, como por exem- dependentemente do cano usado, são todas de uso restrito. A
plo os calibres .357 Magnum, 9 Luger, .38 Super Auto, .40 expressão "de uso proibido", usada por textos legais antigos,
S & W, .44 Magnum, .45 Colt e .45 Auto; foi substituída por "de uso restrito", conforme o inciso LXXX
N - armas de fogo longas raiadas, cuja munição co- do art. 3l' daquele decreto.
mum tenha, na saída do cano, energia superior a mil li- O Estatuto do Desarmamento introduziu ainda novos
bras-pé ou mil trezentos e cinquenta e cinco joules e suas avanços no controle das armas, ao estabelecer que os fa-
munições, como por exemplo .22-250, .223 Remington, bricantes de armas de fogo raiadas façam, obrigatoriamen-
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 255

te, antes de colocá-las no mercado, identificação do cano e II - atender às exigências previstas no art. 4Q desta Lei;
disparo com a finalidade de ter o registro da estriação fina III - apresentar documentação de propriedade de arma
impresso no corpo do projétil: de fogo, bem como o seu devido registro no órgão competente.
§ 2Q A autorização de porte de arma de fogo, prevista
Art. 2Q.Ao Sinarm compete: neste artigo, perderá automaticamente sua eficácia caso o
portador dela seja detido ou abordado em estado de em-
X - cadastrar a identificação do cano da arma, as ca- briaguez ou sob o efeito de substâncias químicas ou alu-
racterísticas das impressões de raiamento e de microestria- cinógenas.
mento de projétil disparado, conforme marcação e testes
obrigatoriamente realizados pelo fabricante; As normas relativas a armas de fogo são alteradas fre-
quentemente por portarias do atual Comando do Exército e
do Ministério da Justiça, bem como por leis e decretos presi-
Mas, na prática, o cumprimento dessa exigência é inviá- denciais. Mais detalhes podem ser encontrados em publica-
vel do ponto de vista económico. A despesa com a realização ções especializadas, como, por exemplo, a obra de Facciolli6
do tiro de prova em cada arma fabricada, a documentação e a de Tochetto2 •
microfotográfica e sua digitalização elevam o preço das ar-
mas a um nível não condizente com sua comercialização.
Munição
Acresce que é preciso o escrutínio das imagens por peritos
em balística para selecionar aquelas que deveriam ser pro- As armas de fogo usam cartuchos que compreendem o
cessadas pelo equipamento armazenador e codificador. Fa- projétil, o estojo, a carga de pólvora, a espoleta e, no caso das
zer tal exame levaria um tempo colossal, incompatível com espingardas, a bucha. Vejamos cada uma dessas partes (Fig.
a produção industrial. Outra dificuldade é que existe apenas 14.7 A e B).
um equipamento que atende a essa necessidade no mundo
inteiro, que é fabricado pela Forensic Technology Inc. , no Ca-
nadá. Além disso, os canos das armas são feitos a partir de
um tubo de aço de cerca de 2 m, que são cortados e geram de
10 a 15 para cada tubo, com estriação fina semelhante. Logo,
não há a identidade do cano6 •
O porte de arma por pessoa não autorizada deixou de
ser apenas contravenção e passou a ser considerado crime
pelo novo Estatuto. Será inafiançável se o portador não for
o dono registrado da arma. Para poder portar uma arma, o
cidadão comum tem que obter, na Polícia Federal, após au-
torização do Sinarm, o documento que o autoriza ao porte.
Mas tal autorização pode ter restrições territoriais e tempo-
rais, conforme o caso. Além disso, o cidadão pode perder a
autorização se for encontrado embriagado ou sob o efeito de
substâncias controladas. Profissionais das Forças Armadas,
das diversas polícias federais e estaduais, bombeiros milita- Cartucho de caça
res, agentes de outros serviços de segurança e pessoas em ou-
tras situações explicitadas por lei estão autorizadas ao porte
de arma, conforme os artigos 611 da Lei 10.826/03 e arts. 22 ao
29A do Decreto 5.123/04 que a regulamentou.

Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826103)


Art. 1O. A autorização para o porte de arma de fogo
de uso permitido em todo o território nacional é de com-
petência da Polícia Federal e somente será concedida após
B
autorização do Sinarm.
§ ]Q A autorização prevista neste artigo poderá ser
Figura 14.7. A. Quatro cartuchos para armas de fogo, a saber, da
concedida com eficácia temporária e territorial limitada, esquerda para a direita: espingarda calibre 12, fuzil calibre 7.62 mm,
nos termos de atos regulamentadores, e dependerá de o revólver calibre .38" e pistola calibre 9 mm. B. Esquema de cartucho de
requerente: caça para espingarda: 1) base metálica, 2) estojo de cartão, 3) carga de
I - demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício pólvora, 4) bucha plástica, 5) bagos de chumbo, 6) fechamento tipo
de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua inte- estrela do estojo e 7) espoleta. Fonte: Livreto de propaganda da Com-
gridade física; panhia Brasileira de Cartuchos.
256 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Projétil revólveres com revestimento por liga de cobre ou de alumí-


nio, de modo a torná-los mais duros e facilitar a construção
Todas as armas raiadas usam cartuchos com projétil úni-
dos de ponta oca7 •
co, enquanto as espinga rdas usam preferencialmente cartu-
As armas semiautomáticas e as auto máticas, como regra,
chos com projéteis múltiplos, embora possam usar cartucho
utilizam projéteis jaquetados. Não usam os de chumbo nu
de projétil único (Fig. 14.8). Os cartuchos de espingarda são
para evitar que, com a sequência de tiros, o mecanism o de
mais utilizados para a caça, já que seus projéteis costumam
reposição dos cartuchos na câm ara de combustão e as ra -
for mar um cone de dispersão à medida que se afastam da
nhuras da raiação fiquem prejudicados por minúsculas las-
boca da arma e, assim, é possível atingir alvos móveis mais
facilmente do que se daria se o projétil fosse único. Mas nada cas de chumbo. Poderia ocorrer a obstrução do cano por
impede que sejam utilizados com fins criminosos, e isso algum projétil impactado, uma vez que a sequência de tiros
ocorre com certa frequência. costuma ser bem mais rápida que nos revólveres. A jaqueta
Confo rme o tipo de arma raiada, os projéteis têm ca- pode ser completa, o u aberta na ponta ou na base. A inter-
r acterísticas diferentes, na dependência da finalidade para a rupção da jaqueta na ponta serve para construí-la oca ou de
qual fora m construídas. As armas de guerra, que são dese- metal mais mole7.
nhadas para longo alcance e para causar baixas, antes que Chama-se de poder de parada (stopping power) a capa-
para matar, usam projéteis de po nta afilad a, aerodinâmicos, cidade teórica que um projétil teria de incapacitar um o po-
formados por um núcleo de chumbo revestido por uma ja- nente ao atingi-lo. Assim, os proj éteis que transferem sua
queta de latão ou outra liga à base de cobre bem mais dura energia cinética rapidamente teriam m aior poder de parada
(blindagem ). Serão estudad os no Capítulo 15. do que os que penetram mais rápido e chegam a transfixar
Estudando apenas as armas de uso civil, verificamos que o alvo. Os chamados tiros defensivos devem ser dados com
os revólveres costumam usar projéteis de chumbo nu, sem projéteis ca pazes de impedir resposta do pretenso agressor
jaqueta. Seu corpo é cilíndrico e apresenta, a alguma distân- assim que for alvejado. Desse modo, os de maior calibre são
cia da base, um ou mais sulcos transversais ao seu eixo, em preferíveis aos de calibre pequeno. E, quanto maior a veloci-
to da sua circunferência, preenchidos por graxa pa ra facili- dade, maio r o poder de parada.
tar seu deslocam ento por dentro do cano da arma. A ponta Existem modificações introduzidas pelos fabricantes de
desses projéteis pode ser do tipo ogival, truncada (cilindro- cartuchos para aumentar a capacidade de o projétil transfe-
tronco-cônico) ou plana (canto vivo) (Fig. 14.9). rir a sua energia ao atravessar o alvo. Em primeiro lugar, isso
As m ais com uns são as ogivais, m as as truncadas tam - é conseguido construindo projéteis que se deformem e se ex-
bém são muito usadas. As do tipo canto vivo são desenhadas pandam ao entrarem em contato com os tecidos do corpo
para uso em competições porque cortam o cartão da po n- humano, ampliando o diâm etro da área de contato. Outro
tuação com m aio r precisão, facilitando a identificação das modo é fazê-los fragm entar-se.
perfurações e, consequentemente, a contagem dos pontos. Os projéteis deformáveis são chamados popularmente de
Nada impede que sejam usados para matar. É interessante bala dundum . O nome deve-se ao fato de terem sido usados
destacar que q uanto mais plana a extremidade do projétil, pela primeira vez pelos ingleses, durante a guerra de inde-
menos ele penetra e mais transfere sua energia cinética para pendência da Índia, na localidade de Dum-Dum. Para au-
o alvo. Mais recentemente, têm sido produ zidos projéteis de mentar a deformabilidade dos projéteis, os fabricantes ora os

Figura 14.9. Três cartuchos para revólver, todos de chumbo nu. A


Figura 14.8. Cartucho com balote para espingarda 12, com o estojo forma é cilíndrica com ponta ogival, plana truncada e do tipo canto vivo,
aberto. Como o cano da espingarda não tem raiação, o projétil tem o da esquerda para a direita. O último é empregado em competições de
seu corpo raiado para adquirir movimento de rotação. tiro ao alvo.
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 257

fazem com a ponta formada por liga de chumbo mais mole, fragmentáveis - Exploder e Glaser (Fig. 14.12). O Silvertip é
truncada (soft nose) ou não (soft point), ora são construídos um projétil de ponta oca revestido por uma jaqueta de alu-
com a ponta escavada (hollow point) com a mesma finali- mínio de espessura variada de acordo com a velocidade a ser
dade. Os projéteis deformáveis costumam ser parcialmente atingida, menos espessa que as de latão, que reveste também
blindados, tendo a parte apical nua. Sua blindagem, com a cavidade da ponta, de modo que se deforme rapidamente,
frequência, é serrilhada longitudinalmente na metade pró- mesmo contra superfícies mais macias. Expande-se três vezes
xima da ponta para que se abra como aletas no momento do mais rápido do que os de ponta oca com blindagem de latão 8•
impacto, de modo a ampliar muito a transferência de ener- A produção desse projétil, fabricado pela firma Winchester,
gia e a destruição dos tecidos. Alguns tipos são totalmente foi descontinuada porque tinha baixo poder de penetração e,
blindados, mas revelam fendas na ponta ou nas laterais da em raros casos, não chegava a atingir órgãos vitais. Produzia
blindagem com o mesmo intuito' (Figs. 14.10 e 14.11 ). cavidade permanente muito ampla em trajeto curto.
Sempre com a intenção de melhor transferir a energia O Hydra-Shock é um tipo de projétil de ponta oca que
cinética para o alvo, foram desenvolvidos alguns tipos espe- apresenta uma haste mais dura presa no centro da cavida-
ciais de projéteis deformáveis - Silvertip, Hydra-Shock - e de frontal com a finalidade de facilitar a sua expansão, que,
por vezes, chega a causar sua fragmentação. Quando atinge
o alvo, os tecidos entram na cavidade frontal e são desviados,
centrifugamente, na direção das paredes dessa cavidade e da
blindagem pela ação da haste. O Exploder é um ponta oca
que apresenta uma carga de pólvora e uma espoleta muito
sensível ocupando a cavidade frontal. Essa pólvora é de quei-
ma muito rápida. Ao penetrar no alvo, a espoleta detona a
carga de pólvora, o que provoca a fragmentação do projétil
dentro do alvo. Apesar da sensibilidade da espoleta, é um pro-
jétil seguro, que não detona mesmo se sofrer queda de 2,5 m
de altura, de ponta para baixo, no chão8• O Glaser é forma-
do por uma jaqueta de liga de cobre oca, que tem no seu
interior balins de chumbo n!! 12, tamponados por pequena
bucha plástica na ponta. Quando atingem o corpo, penetram
Figura 14.10. Quatro projéteis para revólver .38 SPL. Da esquerda menos que os outros porque se abrem e liberam as esferas
para a direita: o primeiro, de chumbo nu, tem cavidade escavada na sua de chumbo, com grande estrago nos tecidos. Sua capacidade
ponta; o segundo, de chumbo nu, com cavidade na ponta, é mais claro
de dano é maior do que a dos tipo hollow point, não só pela
e conhecido como si/ver point (não confundir com o Silvertip da fábrica
disper são dos balins, como pelo fato de serem mais leves e
Winchester); o terceiro tem camisa de latão escavada amplamente na
ponta, onde é serrilhada; o quarto é de forma cilindro-cônica truncada, adquirirem maior velocidade. Seja qual for o segmento do
com ponta plana, de chumbo nu. corpo atingido, não são transfixantes 4•8 (Fig. 14.12).
Na prática, porém, as coisas não funcionam exatamente
assim. Em primeiro lugar, a probabilidade de um único tiro
derrubar uma pessoa é muito baixa. Isso só ocorreria se o in-
divíduo fosse atingido na cabeça ou na coluna cervical, com
lesão, respectivamente, cerebral ou medular. E aí tanto faz
ser o projétil sólido, deformável ou fragmentável. Fora destas
lesões, a probabilidade de incapacitação do oponente com
apenas um tiro é quase nula. Mesmo com o uso de projéteis

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3 3

Figura 14.11. Projéteis deformáveis retirados de um cadáver remo-


Hydra-Shock Exploder Glaser
vido com a Guia 105 da 31.a DP para o IMLAP, em 28/05/98. Na fileira
superior, há dois do tipo hollow point, com jaqueta fendida, e outro com Figura 14.12. Esquema de três projéteis especiais: 1) haste; 2) cavi-
jaqueta ogival não deformada; na inferior, três projéteis deformados, dade; 3) jaqueta; 4) espoleta; 5) carga de pólvora; 6) tampa de plástico;
sendo os dois da esquerda providos de jaqueta fendida. 7) bagos de chumbo n2 12.
258 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

de grosso calibre. Aquela cena de filme em que a vítima é Carga de Pólvora


puxada vio lentamente para trás po r disparo fro ntal de es-
Inicialmente, é preciso esclarecer o significado dos ter-
co peta é fantasiosa. Par a que tal ocorra é preciso um tiro de
mos combustão, deflagração e detonação. Combustão é uma
canhão. A energia cinética dos projéteis de armas po rtáteis
reação química exotérmica em que há queima da substân-
de grosso calibre, mesmo que rapidam ente transferida para
cia de mod o lento, ao ar livre, na qual o calor desprendido
o baleado não é suficiente para vencer a inércia do seu corpo
pode dissipar-se e os gases produzidos não exercem pressão
como um todo. Além disso, o tiro certeiro na aorta ainda
sobre o combustível. A deflagração consiste numa combus-
deixa um tem po de 10 a 15 segundos de consciência na víti-
tão rápida, de modo que haja aquecimento progressivo do
m a antes que ela caia sem ação. Nesse tempo, o cérebro usa
combustível e aumento da pressão ambiente pelo desprendi-
suas reservas de oxigênio para comandar a ação de responder
mento dos gases. É o que ocorre com as pólvoras balísticas.
ao tiroteio9 ·'º· Lesões letais no fígado o u em outras vísceras
Já a detonação resulta de um processo extremamente rápido
importantes deixam lapso ainda maior, pois é preciso que o
que se propaga quase que instantaneamente a toda a massa
sangue extravase pelas lesões durante algum tempo para que
de combustível, como uma onda de choque explosiva. É o
ocorra a anemia aguda que levará à isquemia cerebral. Outro
caso das espoletas e da dinamite".
aspecto pouco lembrado é que a reação do oponente depois
Antigam ente, a pólvor a usada nos cartuchos er a a cha-
de baleado não depende somente da gravidade do ferimen-
mada pólvora negra, o u pólvora com fumaça, que é uma mis-
to. Também está subo rdinada a seu modo de reagir às agres-
tura de 75 partes de salitre (nitrato de potássio) , 15 de carvão
sões. Indivíduos valentes continuam a atirar até perderem a
e dez de enxofre. O salitre é o comburente e os o utros com -
consciência, enquanto que os m ais sensíveis desistem da luta
ponentes, o combustível. Queima rapidam ente, desprenden-
m esmo que baleados superficialmente'º·
do muita fumaça. Dos gases produzidos, cerca da m etade é
Os projéteis de espingardas são cham ados de balins ou
representada pelo gás carbônico e 30%, pelo nitrogênio. Dei-
bagos. Seu fo rmato é esférico, e o seu diâmetro não tem mui-
xa resíduos sólidos fo rmad os principalmente por carbonato
ta relação com o calibre da arma. Uma espingarda 12 po de
de potássio (quase a m etade do total), sulfito (25% ), sulfato
usar cartu chos com qualquer tipo de bagos, dependendo do
(16%), sulfocianetos, tiossulfatos, carbonato de am ônia e
fabricante. Existem, contudo, projéteis de espingarda úni-
escassas sobras dos componentes iniciais'. Desde sua inven-
cos, que apresentam fo rma cilindro-ogival, sulcos cavad os
ção por volta do século XIV até meados do século XIX, fo i o
de modo helicoidal na face externa e corpo escavado pela
propulsor usado em todos os tipos de cartuchos. Mas, com a
base. São chamados de balote ou de bala ideal. A fo rma de
descoberta das pólvoras de base química, a pólvora negra foi
sua ponta varia de um fabricante para outro. Quando dis-
caindo em desuso.
parad os sobr e ser humano, penetram m enos que os projé-
Atualmente, os cartuchos usam a chamada pólvora sem
teis comuns de revólver, m as levam ener gia muito m aior
fumaça, obtida a partir da nitrocelulose. Ora ela é misturada
(Fig. 14.8) .
com nitroglicerina e dissolvida com álcool e éter, de m odo
a fazer uma solução coloidal gelatinosa (pólvora de base
Estojo
dupla), ora apenas a nitrocelulose coloidal (pólvora de
É a parte d o cartucho que recebe e acomoda as demais. Na base simples). Esta tem a vantagem de poder ser moldada
munição de armas raiadas, é fo rmado por latão. Apresenta em minúsculos grãos, discos, flocos, tubos ou bastões, pela
um orifício pequeno na base, o nde se aloja a espoleta. A base evapor ação desses solventes, de m odo a se poder regular sua
ou culote difere conforme se trate de munição para revólver velocidade de queima 1• Destas fo rmas, os grãos esféricos são
ou para pistola. Nos cartuchos para revólver, existe uma orla os que queimam mais lentamente, sobretudo os de maior
saliente (rim med) onde se encaixa o extrator para removê-los diâmetro, po is que queimam da superfície para o interior do
das câmaras de combustão do tambor (Fig.14.9). No caso das grão. Uma das características importantes da pólvora à base
pistolas, não há orla ( rimless), e sim um sulco, também cha- de nitrocelulose é que ela queima de modo lento se ao ar
mado de trilho, onde o extrator atua. Algumas pistolas ado- livre mas, se confinada como nos cartuchos, sua queima é
tam munição com trilho e discreta orla (semirimmed )S. Ao se progressiva e acelerada pelo aumento da pressão dentro do
dar a explosão da carga, o estojo sofre pequena distensão que estojo. À medida que queima e libera gases, o aumento da
sela qualquer espaço porventura existente entre sua superfí- pressão acelera sua combustão7 . Os cartuchos para armas
cie e a parede da câmara de combustão9• Ao mesmo tempo, a curtas usam pólvora formada em ger al por minúsculos dis-
base do estojo bate violentamente contra a culatra da arma. cos ou flocos de nitrocelulose, que queimam de m odo m ais
Desse choque, resultam impressões no culote, que podem rápido que os bastonetes e tubos utilizados nos cartuchos de
servir pa ra identificar a arma que disparou o projétil'. Algu- armas lo ngas. Nestas, há necessidade de continuar a combus-
m as armas autom áticas ou semiautom áticas têm câm aras de tão e, assim, a produção de gases por todo o tempo em que
combustão providas de peq uenos sulcos longitudinais para o projétil transita dentro do cano, de modo a manter uma
permitirem pequena vazão dos gases e facilitar a remoção do fo rça de aceleração crescente sobre o projétil'·" . A forma e
estojo. Esse estojo retirado mostra discretas cristas longitu- a quantidade da pólvora de um cartucho são calculadas de
dinais que correspondem aos sulcos 7• acordo com a arma para que se destinam. Por isso, não é
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 259

aconselhável usar cartuchos de Magnum .357 em revólveres e tetrazeno. Como o nome sugere, a pesquisa de resíduos à
.38 especial. Há o risco de explosão do tambor. base de chumbo, antimónio e bário é negativa 2•

Espoleta Bucha
Qualquer que seja o tipo de pólvora de um cartucho, É uma espécie de disco de cartão, cortiça ou de serra-
sua queima tem que ser iniciada a partir de um dispositivo gem prensada, que separa a carga de pólvora dos balins, nos
com material que se inflame e transmita sua chama à carga cartuchos para espingardas. Em geral, há um nessa posição
principal. Ao longo da história das armas de fogo, já foram e outro distal aos balins, que os mantém separados do fecha-
usados pavios, pederneiras e, por fim, cápsulas que se infla- mento do cartucho. Nos mais modernos, a bucha é de plás-
mam ao toque. As cápsulas de espoletamento são formadas tico, em forma de copo, e tem também a função de manter
por uma taça de metal em forma de disco, que contém a os balins juntos durante pequena porção inicial do trajeto
mistura iniciadora. São colocadas no furo central que existe no ar. São construídas de tal modo que a resistência do ar
na base do estojo metálico, em quase todos os cartuchos, faz com que se abram em pétalas e fiquem a meio caminho
com exceção dos de calibre .22. Nestes, a mistura iniciadora do alvo nos tiros de meia distância (Fig. 14.14). Nos tiros de
ocupa um sulco que existe na margem do culote do estojo curta distância, a bucha, principalmente a de cartão, também
e fica em contato direto com a carga de propulsão. As espo- atinge o alvo, podendo ser encontrada no interior da ferida.
letas centrais são providas de um ou dois furos (eventos ) Quanto mais denso o material de que seja feita, maior a dis-
que estabelecem continuidade de seu conteúdo com a carga tância que ela atinge. Sendo encontrada, serve para caracte-
propulsora e contêm um sal que se inflama pelo toque do rizar o calibre da espingarda 12•
percussor da arma (Fig.14.13).As espoletas de cartuchos de
armas longas são revestidas por folha de metal mais espessa
e têm diâmetro maior do que as usadas em cartuchos de
Balística
armas curtas9 • É a parte da mecamca que estuda o movimento dos
Inicialmente, a substância utilizada nas espoletas foi o projéteis e as forças envolvidas na sua impulsão, trajetória
clorato de potássio. Mas seu uso foi abandonado porque cau- e efeitos finais. No caso particular dos projéteis de arma de
sava uma corrosão intensa das partes de aço com que seus fogo (PAF), abrange o conhecimento dos propelentes e do
resíduos entravam em contato. Seguiu-se o fulminato de mecanismo das armas (balística interna), das trajetórias (ba-
mercúrio, que não ataca o aço. Mas, com cerca de 1 a 2 anos, lística externa) e dos efeitos produzidos no alvo (balística
começava a se decompor e a liberar o mercúrio, que atacava terminal).
o latão do estojo, inutilizando-o. Alguns fabricantes procura- O impulso dado a um PAF depende da potência da carga,
ram evitar esse inconveniente misturando o fulminato com que determina a velocidade com que sai da boca da arma.
outras substâncias, como sulfeto de antimónio, sulfocianeto Por sua vez, a velocidade é o elemento mais importante na
de chumbo, nitrato e carbonato de bário, sílica e trinitroto- fórmula da energia cinética, conforme já vimos no Capítu-
luol. As munições modernas usam misturas com estifinato de lo 12. A Tabela 14.1 demonstra a velocidade e a energia dos
chumbo, nitrato de bário, trissulfeto de antimónio, tetrazeno PAFs de algumas das armas curtas mais comuns.
e alumínio atomizado". Em 1998, a Companhia Brasileira Iniciada a deflagração, os gases forçam o estojo em to-
de Cartuchos lançou no mercado uma espoleta chamada de dos os sentidos. Por trás, ele é projetado sobre a culatra;
clean range, formada por diazol, nitrato de estróncio, pólvora lateralmente, distende-se um pouco de modo a vedar qual-
quer via de passagem de quase todo o gás produzido, mas
não explode por causa da resistência da câmara de com-
bustão, restando para o escape dos gases a base do projé-
til. Pequena parcela de gases encontra passagem na junção
entre o tambor e o orifício posterior do cano, no caso dos
revólveres (Fig. 14. 15).
O projétil é forçado a girar em torno do seu eixo longitu-
dinal pelos cheios da raiação, ao ser empurrado ao longo do
cano da arma, já que o seu diâmetro externo é ligeiramente
superior ao calibre real da arma. Assim, os cheios fazem um
sulco oblíquo no corpo do projétil. A rotação é fundamental
para a estabilidade do projétil ao longo do trajeto em direção
ao alvo. Não fosse por ela, a resistência do ar faria desviar seu
eixo com relação à trajetória, de modo que, a meio caminho
4 entre a boca da arma e o alvo, o projétil ficaria de lado ou
Figura 14.13. Esquema de uma espoleta: 1) estojo do cartucho; 2) mesmo com a base para diante. Além do mais, isso reduziria
bigorna; 3) carga da espoleta; 4) cápsula da espoleta. o seu alcance.
260 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Figura 14.14. Funcionamento da bucha plástica. A combustão da carga propelente empurra a bucha para fora do cano da espingarda. A pressão
dos gases faz com que se abram as dobras do cartão do estojo, que fica preso na câmara de combustão. Nas figuras de baixo, a bucha desliza em
direção à boca da arma e, quando no ar, abre-se e libera os bagos de chumbo. Fonte: livreto de propaganda da Companhia Brasileira de Cartuchos.

Tabela 14.1. Energia cinética dos projéteis de armas curtas comuns 1


1Clltlcllo Palo llD ProJMll (1) Veloc. Inicial (11/1) En. ClnMlca (llgm)
7,65 mm autom. 4,6 298,7 20,02
32 S&WL 6,35 242,3 19,08
38 S&WL 10,24 265,1 36,78
9 mm Luger 8,035 350,5 50,47
45 Colt 16,2 265,1 58,82
357 Magnum 10,24 441 ,9 95,42

Durante a translação, que é o movimento em direção ao o alvo. No caso de ser o corpo humano o alvo, ela se restringe
alvo, o projétil sofre a influência da força de gravidad e. Por ao estudo d as lesões.
isso, quando o atirad or faz pontaria com a arma, a direção d o
cano aponta para um ponto um pouco acim a d o local onde
se situa o alvo. Essa compensação é calculada pelo fabricante • LESÕES PRODUZIDAS PELOS PROJÉTEIS DE
quando constrói o aparelho de po ntaria da arma. Existem ARMA DE FOGO DE USO CIVIL
revólveres em que a alça de mira é ajustável confo rme a dis-
tância do tiro. O s projéteis de arma de fogo lesam os tecidos por o nde
Os elementos de balística extern a serão mais bem estuda- passam por d ois mecanismos distintos: esmagamento e esti -
d os no Capítulo 15. A balística terminal, o u de efeitos, estuda ramento. O esmagamento rompe as fibras e as células e fo rma
o trabalho mecânico realizado pelo projétil ao se chocar com um túnel co m diâmetro u m pouco menor que o calibre do
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 261

Figura 14.15. Desenho que demonstra o momento da combustão da


carga propelente. Fonte: Livreto de propaganda da Companhia Brasileira
de Cartuchos.

Enxugo Escoriação
projétil, por causa da elasticidade tecidual, chamado de ca-
vidade permanente. O estiramento resulta do deslocam ento
centrífugo que os tecidos vizinhos ao túnel sofrem impulsio-
nados pelo contato com o projétil. É a cavidade temporária. A
força atuante são as ondas de pressão geradas pela passagem
do projétil, que promovem o deslocamento das paredes des-
se túnel de modo semelhante ao que se observa ao deixar cair
uma pedra em uma poça d'água. No caso das armas de uso
civil, com projéteis de baixa velocidade, m enos de 300 m /s 13,
o mecanismo mais importante é o esmagamento. O estira-
mento e a distensão dos tecidos vizinhos fo rmam cavidade
Orifício Hipoderme
temporária de pequena m onta, incapaz de ampliar de m odo
significativo as lesões. Contudo, nos projéteis de alta energia, Figura 14.16. Oprojétil força a pele para dentro, arranca a epiderme
tem gr ande importân cia, com o verem os no Capítulo 15. Da e se limpa na derme. De dentro para fora vemos: orifício, orla de enxugo,
interação do projétil com o corpo humano resultam a lesão orla de escoriação.
de entrad a, o trajeto e a lesão de saída, se houver.

pelo cano. Po r vezes, a orla de enxugo só é observada nas


Entradas roupas da vítima. É orla exclusiva dos orifícios de entrada.
Inicialmente, estudaremos as entrad as dos projéteis de O mesmo, no entanto, não se pode dizer com relação à esco-
armas raiadas. Por ser um instrumento perfurocontunden- riação, que pode estar presente no o rifício de saída quando a
te, o projétil de arma de fogo comum atua po r pressão so- pele fo r espremida pelo projétil contra algum anteparo, por
bre uma su perfície aproximadamente circular em que a sua exemplo, um cinto de couro ou o encosto de uma cadeira.
po nta ro mba penetra. O primeiro plano com que entra em A forma do orifício e a das orlas de escoriação e de enxu-
contato é a epiderme, depois a derme. A epiderme é arranca- go dependem do ângulo de incidência do projétil. Quando
da por sua ação contundente, resultando numa orla de esco- ele incide perpendicularmente à su perfície da pele, as forças
riação ao red or do orifício de entrad a. A derme, por ser m ais de ação e de reação distribuem -se uniformemente ao red or
elástica, é esticada em fo rma de dedo de luva por invaginação da circunferência, resultando uma fo rma circular tanto d o
e só se rompe quando o limite de sua elasticidade é ultrapas- orifício com o das orlas. De dentro para fora, temos o orifício,
sado. Por isso, o diâmetro da entrada é menor que o calibre a orla de enxugo e a orla de escoriação, todos concêntricos.
do projétil (Fig. 14.1 6). O mesmo não ocorre nos tiros de incidência oblíqua. Aqui,
O projétil sofre grande atrito com as fib ras conjuntivas o projétil produz m aior contato, e m aior atrito com a pele,
da derme durante a penetração e transfere-lhe as impurezas do lado em que o ângulo é agudo, justam ente o que indica a
que carregou ao d eslizar pelo cano da arma. Assim, fo rma-se sua procedência. Assim, o o rifício apresenta fo rma oval, fica
uma orla que guarnece o orifício, situada interiormente com excêntrico e circunscrito por orlas de enxugo e de escoriação
relação à orla de escoriação, chamada de orla de enxugo ou mais largas do lado de onde veio o projétil. A largura dessas
de limpadura. Tem esse nome porque é como se o projétil se orlas aumenta confor me diminui o ângulo de incidência d o
enxugasse, ou se limpasse, na derme, nela deixando sujidades projétil (Figs. 14.1 7 e 14.1 8) .
como o sarro da pólvora, m aterial de oxidação do cano, óleo É possível haver lesão de entrada sem orla de escoriação.
de limpeza da arma e mesmo certa porção de graxa o u cera Isto pode ocorrer quando se tratar de projéteis de velocidade
que alguns deles trazem de fábrica para melhor deslizarem m édia, su perior à d os cartuchos comuns, com o se observa
262 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo


Figura 14.17. Esquema das forças que interagem nos tiros oblíquos.
Onde o ângulo é agudo, o atrito é maior. Oorifício é circundado por orla
de enxugo, em cinza, e orla de escoriação, em preto. /!is setas indicam Figura 14 .19. Três entradas de projétil calibre .38 do tipo Silvertip da
as forças de atrito do projétil com a pele. Winchester. Todas apresentam bordas a pique, sem orla de escoriação
ou de enxugo visível. Estudo experimental feito pelo autor e colabo-
radores 15.

Figura 14.20. Entrada na região palmar, na qual a epiderme foi frag-


mentada de forma irregular, dando aspecto estrelado ao orifício. Nota-se
um halo roxo circular que corresponde a hemorragia por baixo da epi-
derme. Caso da Dra. Zuleika Kubrusly, IMLAP, 08/10/2001.

de escoriação, no qual a direção do disparo foi revelada pelo


deslocamento dos fra gmentos ósseos da fratura causada pelo
mesmo projétil 14 •
Figura 14.18. Ferida de entrada oblíqua na região masseterina es- Em algumas regiões do corpo, em que a camada córnea
querda. A orla de escoriação é mais larga na metade anterior da lesão, da epiderme é muito espessa, como as palmares, as lesões de
indicando que o disparo foi feito por diante e pela esquerda. Guia 91 da entrada, além de não apresentarem orla de escoriação, têm
25ª DP, de 11 /10/68. forma estrelada irregular (Fig. 14.20).
A morfologia dos orifícios de entrada interessa tanto aos
peritos como aos cirurgiões que tenham que socorrer a víti-
nos do Magnum .357 jaquetados e no Silvertip da Winches- ma e avaliar o trajeto do projétil no interior do corpo. Os pri-
ter (Fig. 14.19 ). As bordas do orifício são talhadas a pique meiros, interessados em recolher o projétil, os últimos, para
e, por vezes, apresentam minúsculas lacerações radiadas. Di planejar a tática operatória. Assim, a presença de um orifício
Maio refere um caso de ferida transfixante na panturrilha, ovalar com orlas de escoriação e de enxugo mais largas no
em que tanto a entrada como a saída não apresentavam orla polo inferio r, localizado no hipocôndrio direito, deve ter le-
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 263

jétil pode não penetrar pela ponta. É o que se vê quando o


tiro é disparado de distância muito longa ou quando se faz
um disparo para o alto. Nesse último caso, há duas possibili-
dades. Quando o tiro é inclinado, a tendência é que o projétil
percorra uma trajetória parabólica na qual o atrito com o
ar vai diminuindo sua velocidade e a força de gravidade vai
freiando sua ascenção. A partir de certo ponto, ele passa a
cair de modo gradual até atingir um ponto distante no hori-
zonte, animado de escassa energia cinética. Se atingir alguém
o fará pela base, ponta ou de lado. O mesmo não ocorre se o
disparo for a prumo. Aqui, o projétil sofre retardo pela força
da gravidade até parar no alto. A partir daí, inicia-se a queda.
Como se sabe da física, a velocidade de queda é a mesma
que a de subida. Assim, a energia com que o projétil atinge
Figura 14.21. Duas equimoses violáceas situadas na transição do alguém no solo é suficiente para causar graves lesões.
flanco com o dorso de uma mulher grávida de 7/8 meses. Guia 353 da
Mas é preciso ponderar que ele não cai na mesma posição
36ª DP, de 10/09/02.
com que subiu. Seu centro de massa está mais próximo da
base do que da ponta. Por isso, ele desce com a base voltada
para baixo e sofre maior resistência do ar. Di Maio 16 cita dados
experimentais que referem a velocidade de chegada de vários
tipos de projéteis disparados nessas condições. Para um .38
especial, a velocidade de chegada é de cerca de 72,3 m/s, bem
acima da velocidade mínima necessária para o mesmo atra-
vessar a pele humana, que é de aproximadamente 58 m/s.
Há ocasiões em que o projétil sofre deformação por ri-
cochetear em alguma superfície antes de entrar no indiví-
duo. A forma da ferida de entrada, nesses casos, depende da
modificação produzida no projétil e da parte dele que entra
em contato com a pele. Por isso, um projétil que colida com
uma chapa de aço, pilastra ou asfalto, e fique achatado de
modo a exibir uma borda quase cortante poderá causar uma
ferida em forma de fenda se incidir por essa borda, ou ovalar
irregular se incidir pela face achatada (Fig. 14.23). O ângulo
de saída após o choque com uma superfície plana e sólida é
Figura 14.22. Dois projéteis de arma de fogo retirados do tecido cerca de duas a três vezes menor que o de incidência. A partir
subcutâneo em correspondência com cada uma das equimoses mostra- do choque, a trajetó ria é imprevisível1 7 • Parte da energia com
das na Figura 14.21. A palpação da pele nesse tipo de equimoses que incide é perdida no trabalho de deformação que o projé-
permite sentir o projétil sob a forma de um nódulo duro e móvel no plano til sofre. Já se calculou que essa perda é diretamente propor-
subcutâneo, o que facilita muito a determinação dos trajetos mesmo cional ao ângulo de incidência. Para um ângulo de incidência
antes de se abrir o corpo.
de 10 graus a perda é de mais ou menos 25%, para um de 50
graus, 80%. Quanto maior o ângulo de incidência também é
maior a deformidade do projétil, que tende a se fragmentar 17 •
sacio o fígado, subido para o tórax e atravessado o diafragma
Os projéteis encamisados tendem a ter o núcleo de chumbo
e o pulmão direito.
separado da jaqueta, principalmente os semijaquetados que
No trajeto pelo tecido subcutâneo, o projétil rompe va-
têm a ponta descoberta. Na década de 1990, durante uma
sos de calibres médio e pequeno, o que provoca infiltração
aula sobre lesões por projéteis de armas de fogo no anfiteatro
hemorrágica que se traduz externamente por uma orla equi-
do IMLAP, houve um disparo acidental de um revólver .38
mótica ao redor do orifício. Essa orla não é constante nem
que, apesar da remoção dos cartuchos do tambor, ficara com
exclusiva da entrada, podendo ser observada nos tecidos vi-
um em uma das câmaras de combustão. Por felicidade, o tiro
zinhos ao orifício de saída e, mesmo, servir como indicação
foi perpendicular e o projétil fragmentou-se completamente,
para a localização do projétil (Figs. 14.21 e 14.22). Serve para
espalhando-se pelo chão sem ricochetear (Fig. 14.24).
caracterizar a reação vital na ferida.
Em 28 de março de 1968, o Rio de Janeiro foi palco de um
fato histórico que poderia ter evoluído de modo ainda mais
Entradas Atípicas
trágico do que foi se não tivessem os protagonistas e líderes
Há fatores que podem alterar a forma do orifício de en- estudantis usado de bom senso. Os governantes haviam proi-
trada e de suas orlas de contorno. Em primeiro lugar, o pro- bido a realização de uma passeata de protesto com receio de
264 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

111111111
1
Figura 14.24. Fragmentos de um projétil de chumbo nu disparado
acidentalmente contra o chão de marmorite do anfiteatro do IMLAP do
Rio de Janeiro, perpendicularmente. Não houve ricochete, apenas frag-
mentação múltipla. Ninguém ficou ferido.

Figura 14.23. Projétil que ricocheteou em superfície plana, dura e modificada tanto pela deformação do proj étil quanto pela
áspera ao lado da lesão de entrada. A borda direita da ferida, sobre a penetração total o u parcial do corpo estranho. Foi o que ob -
papila mamária, não apresenta escoriação porque o projétil se achatou, servamos na região precordial de um indivíduo mo rto por
ficou com uma borda cortante, por meio da qual entrou. Caso necrop- um projétil de chumbo nu que, antes de penetrar, acertou
siado pelo autor no IMLAP. um rosário de alumínio que a vítima portava dentro do bol-
so de sua camisa. A princípio, pensamos que a ferida poderia
não ter sido causada por PAF, mas o exame da ro upa per-
que apedrejassem a embaixada americana, mas os estudantes, mitiu concluir que o rosário penetrara parcialmente com o
reunidos no Restaurante do Calabouço, resolveram não aca- projétil e fora arrancado da lesão no momento em que o ser-
tar a proibição. Houve confronto com a polícia militar, à dis- vente despira o corpo (Figs. 14.25 e 14.26).
tância, sem que os dois grupos entrassem em contato direto. Mesmo sem interposição das roupas, em regiões de pre-
Segundo depoimentos de jornalistas da época, foram ouvidos gas naturais, o projétil pode raspar os dois lados da pele an-
disparos e um dos estudantes caiu ferido no peito para mor- tes de penetrar na sua linha de união e modificar o aspecto
rer instantes depois. Seu corpo foi levado pelos colegas para o da entrada. É o que acontece no cotovelo, axila, pescoço etc.
prédio da Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara, de (Fig. 14.27).
onde disseram que não sairia para se fazer a necropsia. Diante Nas regiões anatómicas em que a pele está sobre eminên-
do impasse, o Governador do Estado, o diplomata Negrão de cias ósseas, a lesão po de ter forma estrelada e ser confundi-
Lima, determinou que uma equipe do IML fosse para o local da com saída como, por exemplo, no dorso do cotovelo, na
e lá realizasse o exame cadavérico. A equipe, formada pelos glabela e na borda mandibular 17• O mesmo pode ocorrer em
Drs. Ivan Nogueira Bastos e Nilo Ramos de Assis, na presença regiões com escasso tecido subcutâneo 20 • Quando no couro
de representantes dos estudantes e de parlamentares de par- cabeludo, podemos encontrar lesões de forma estrelada irre-
tidos de esquerda, como o médico e deputado Jamil Haddad, gular, providas de roturas da pele irradiadas do centro, mas
encontrou uma ferida atípica de entrada na região precordial sem queimadura das bordas nem resíduos do disparo no
e um projétil deformado de chumbo nu que havia transfixa- tecido subcutâneo, o que permite afastar a possibilidade de
do o coração. Em uma das faces, o projétil apresentava marcas tiro encostado. Quando a entrada é oblíqua essas lacerações
da trama do tecido grosso da túnica que o rapaz vestia 1S. 19 • saem da metade do orifício oposta à o rigem do projétil. A
O uso de uma roupa de textura grossa, por si, é capaz de outra metade, que indica o contato inicial, mostra uma o rla
modificar o aspecto da ferida de entrada. O pano pode ser de escoriação nítida (Fig. 14.28). Por vezes, a ferida toma o
empurrado para dentro da ferida e ampliar a orla de esco- aspecto de um pé de pássaro 20 (Fig. 14.29).
riação, tornando-a muito irregular. Se a roupa tiver algum Nos casos em que incide de modo muito oblíquo, a orla
m aterial resistente dentro dos bolsos, a ferida pode ser muito de escoriação tem forma de faixa extensa com a mesma di-
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 265

Figura 14.27. Ferida de entrada na axila direita provida de duas es-


Figura 14.25. Entrada atípica com forma e bordas irregulares. Guia coriações amplas, uma em cada vertente dos limites da região. Guia 121
21 7 da 21• DP, de 18/07/84. da 3 1 ~ DP, de 27/11/70.

reção d o projétil. O trajeto subcutâneo pode ser de extensão


variad a, d ependendo d a região anatómica, e é cham ado de
ferida em sedenho. Tal palavra era usad a para os fios que er am
passados nos planos d e feridas infectadas que se queria drenar
(Fig. 14.30 ). Aumentando ainda mais a obliquidade, o projétil
não mais penetra e causa uma ferida de bordas irregulares
e escoriadas, sem orifício, em forma d e canaleta, com lace-
rações oblíquas e d e tamanho variado nas margens, conver-
gindo para o centro da abertura e para o ponto inicial, onde
se no ta escoriação em crescente. Se o contato fo r um pouco
m ais superficial, ele d eixa apenas uma faixa de escoriação. As
duas últimas são chamad as de lesões de raspão (Fig. 14.31).
Alguns tipos d e projéteis podem causar lesões diferentes
d as convencionais. O autor viu um caso, necropsiado pelo
Dr. Abrão Lincoln de Oliveira, em que o crime foi praticad o
com projéteis d e chumbo nu do tipo canto vivo. As lesões
d e entrada, situad as na face, apresentavam fo rma um tanto
irregular, com amplas lacerações das bordas com direção ra-
diad a. O utra lesão (Fig. 14.29), localizad a na metad e direita
d o setor frontal, com incidência oblíqua, era bem m ais irre-
gular. To das as entrad as m ostravam orla d e esfumaçamento
(Figs. 14.32 e 14.33).

Entradas a Curta Distância (à Queima-Roupa)


Figura 14.26. Mesmo caso da Figura 14.25, mostrando a camisa e Quando o tiro é dado a curta distância, ou à queima-rou-
o crucifixo amassado que estava dentro do bolso. pa, somam-se às lesões produzidas pelo projétil as alterações
266 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Figura 14.28. Orifício de entrada localizado na metade direita do setor Figura 14.30. Ferida em sedenho. É o conjunto de entrada, trajeto
frontal com orla de escoriação larga na metade inferior do contorno e subcutâneo e saída que vemos nesta figura situada na perna. A lesão da
duas roturas da pele, sem escoriação, dirigidas para cima e para trás. direita é a entrada, que tem orla de escoriação alongada e mais escura.
Caso necropsiado pelo autor no 1Q semestre de 1969. A seta indica a direção do projétil. Guia 176 da 27ª DP, de 16/03/99.

Figura 14.31. Escoriação em forma de faixa regular na face externa


do joelho, com direção oblíqua, quase horizontal, provocada por projétil
de raspão. Guia 72 da 3oa DP, de 31 /11 /68.

causadas pelo cham ado cone de explosão, que é o conjunto


dos gases su peraquecidos (cham a), dos grãos de pólvora in-
combusta e dos resíduos da combustão. Esse cone tem o vér-
tice na boca da arma e a base voltada par a o alvo (Fig. 14.34) .
Os elementos do cone de explosão vão desaparecendo à
medida que se afastam da boca da arma, de modo que, con-
fo rme a distância, os três alcançam o alvo, apenas dois, ou
somente um. O que tem menor alcance é a cham a, que pro-
duz a orla o u zona de queimadura. Os resíduos da combus-
tão, representados pela fuligem, têm pouca possibilidade de
atravessar o ar por serem pouco densos, mas vão um pouco
Figura 14.29. Orifício de entrada atípico, localizado na metade direita
do setor frontal do couro cabeludo, que apresenta roturas irregulares mais longe que a chama e causam a orla ou zona de esfumaça-
irradiadas para os lados e para baixo. Há zona de esfumaçamento na men to ou de tisnado (Fig. 14.35 ). Essa orla tem cor acinzenta-
pele acima da lesão e infiltração equimótica violácea na pele situada da mais ou menos escura, conforme a pólvora, sendo negra
abaixo da entrada. O projétil era de chumbo nu, tipo canto-vivo. Guia naquelas com muita fu maça. Pode ser removida lavando-se
201 da 16ª DP, de 02/09/2002. Caso do Dr. Abrão Lincoln de Oliveira do a pele com água e sabão. É tanto m ais densa quanto m ais
IMLAP. próximo for o disparo.
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 267

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Figura 14.32. Três orifícios de entrada de projéteis de arma de fogo


localizados na hemiface direita, regiões masseterina e parotídea, provi- ~.t..J•.:;..!'..; :C ·.,_y·- ""•; . .
dos de orla de esfumaçamento. O mais inferior tem orla de escoriação ·~ ~·.-,,._~:.::
muito estreita. Os outros revelam forma um tanto irregular por apresen-
tarem roturas das bordas de modo radiado, com tendência divergente Figura 14.34. Esquema do cone de explosão, que tem o vértice na
da frente para trás. Mesmo caso da Figura 14.29. boca da arma e a base voltada para o alvo.

Figura 14.33. Três projéteis de arma de fogo, tipo canto vivo, de Figura 14.35. Ferida de entrada a curta distância, mostrando nítida
chumbo nu, um pouco deformados, recolhidos do mesmo cadáver da orla de tisnado. Caso cedido, gentilmente, pelo Dr. Ivan Nogueira Bastos,
Figura 14.32. do IMLAP.

Já os grãos de pólvora em combustão ou ainda não quei- casos concretos, é imperioso realizar tiros de prova contra
mados são de maior alcance e podem constituir-se na única anteparos de cartão, de prefer ência usando o m esmo lote de
prova d e que o disparo foi a curta distância. Atravessam a munição com a m esm a arma do crime, se apreendida 14 •
epiderme e incrustam-se na derme, fo rmando uma zona ou Nos tiros oblíquos, o cone d e dispersão é interceptado em
orla de tatuagem, que só pode ser rem ovida por m eio de ci- um plano não perpendicular à sua altura. A figura geom étri-
rurgia plástica, se a vítima sobreviver (Fig. 14.36) . ca ger ada pela interseção é uma oval. O o rifício de entrad a
À medida que o alvo fica mais distante, a densidade d a fica excêntrico nessa oval e mais próximo d o polo de onde
orla de tatuagem diminui, pois os grãos seguem uma traje- veio o dispa ro. A concentração d os componentes das orlas é
tória dispersiva no cone de explosão. A m aio r distân cia em m aio r d esse mesm o lado, em função d e sua m aior proximi-
que os grãos ainda conseguem atingir a pele depende de fa- d ade da boca da arma (Fig. 14.37).
tores como o comprimento d o ca no, a fo rma d esses grãos É importante notar que as orlas características dos tiros
e o calibre d a arma. Conforme já referimos, os canos m ais d e curta distância (queimadura, esfumaçamento e tatuagem )
lo ngos permitem queima d e maior quantidad e de grãos, so- podem estar presentes apenas na roupa, não sendo percebi-
b rando menos para penetrar na pele. Os grãos esféricos vão d as ao redor do o rifício de entrad a (Fig. 14.38) . Mas isso de-
mais longe que aqueles em flocos ou em cilindros. Mas, nos pende da trama do tecido e da forma dos grãos de pólvora.
268 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Figura 14.36. Ferida de entrada a curta distância no limite entre as Figura 14.38. Blusa de malha de lã, que reteve toda a zona de esfu-
regiões masseterina e parotídea esquerdas. Nota-se nítida orla de tatua- maçamento. Caso examinado pelo autor no IMLAP, em 1969.
gem ao redor do orifício. Guia 11 5 da 34ª DP, de 20/04/99.

Figura 14.37. Esquema da orla de tatuagem de um tiro dado com


direção indinada, a curta distância. Aconcentração da incrustação é maior
do lado de onde veio o projétil, e o orifício de entrada é excêntrico.

Tecidos mais finos e de fibr as menos aglomeradas são mais


permeáveis. E grãos esféricos atravessam um mesmo tecido Figura 14.39. Esquema do residuograma de um disparo feito a curta
com mais facilidade do que aqueles em flocos ou em cilin- distância com arma provida de compensador de recuo: 1) orla de esfu-
maçamento; 2) acentuação do esfumaçamento pelo escape através do
dros. A cham a dos disparos muito próximos pode cham uscar
compensador de recuo; 3) orlas de escoriação e de enxugo.
a rou pa, mas o resultado depende do tipo de fib ra d o tecido.
Já examinam os o corpo de um jovem que cometer a
suicídio, estando vestido com uma camisa de fio sintético
o cano de um revólver. Em casos de luta entre a vítima e o
(Ban-lon), que não acompanhou o corpo ao necrotério. O
ferimento, situado na região pr ecordial, não apresentava agressor pela posse da arma, o disparo pode ocorrer quando
a mão ou o utra parte do corpo daquela esteja em contato
qualquer o rla suges tiva de tiro a curta distância, o que tor-
ou muito próximo do espaço entre o tambor e o cano (Fig.
naria descartável a hipótese de suicídio.
Algumas armas apresentam orifícios de alívio da pressão 14.40). Q uando esse espaço é gr ande, pode haver até lesão da
pele pela fo rça dos gases.
junto à boca do can o, com o fo rma de compensar o recuo du-
rante o disparo. Nesses casos, os resíduos que saem por esses
Entradas com a Arma Encostada na Pele
orifícios mancham a pele ao redor da entrada do projétil,
formando um desenho radiado intercalado por zonas mais Entre os fa tores mais importantes que interferem na di -
claras (Fig. 14.39). nâmica de produção das lesões de entrada com a arma en-
A caracterização do disparo a curta distância pode ser costada na pele, devemos ressaltar a consistência d o tecido
feita também a partir do escape de gases entre o tambor e subjacente e a fo rça com que a boca da arma a pressiona. Nos
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 269

o
Figura 14.41. Esquema que mostra o solapamento das bordas de uma
ferida de entrada com a arma encostada no crânio. A explosão ocorre por
baixo do couro cabeludo, onde se depositam os resíduos do disparo.

Figura 14.40. Mancha acinzentada de esfumaçamento na mão de


uma mulher que lutou com o agressor antes de morrer com vários tiros
na face. Caso necropsiado pelo autor no IMLAP, não identificado.

disparos contra o crânio, a arma pressiona o couro cabeludo,


que é sustentado pela calota craniana. Em regiões de partes
mo les, porém, o plano subcutâneo cede com maior facilida-
de, o que torna o aspecto da lesão bem diferente. Analisare-
mos, em primeiro lugar, o que ocorre quando a entrada se
localiza no crânio.

Tiro Encostado no Crânio


Nos disparos efetuados em contato com o crânio, o pro-
jétil perfura a pele e abre caminho para os elementos do cone
de explosão. Prossegue seu caminho e perfura a calota crania-
na, mas os gases e demais elementos do disparo não são capa-
zes de atravessar o osso e refletem-se lateralmente e para trás,
entre o periósteo e o couro cabeludo. Como o desenvolvi-
mento da pressão é muito rápido, a pele não resiste e estoura
de dentro para fora, causando uma ferida de for ma estrelada Figura 14.42. Entrada de projétil disparado com a arma encostada
irregular, com as bordas solapadas e delimitando uma câmara no setor frontal do couro cabeludo, um pouco acima do nariz. A pele
de paredes escurecidas pelo d epósito dos resíduos da pólvora. está estourada de dentro para fora, com lacerações radiadas, cujas
bordas não têm escoriação. A parte central da ferida tem cor cinza
É chamada de lesão em "buraco de mina"21 ou em "boca de
escura por impregnação dos resíduos do disparo e ação térmica dos
mina" 22, cujo nome é atribuído a Hoffman, que a descreveu e gases incandescentes. A aderência desses resíduos no osso é conhecida
explicou seu mecanismo de for mação 23 (Fig. 14.41 ). como sinal de Benassi. Guia 227 da 23ª DP, de 10/06/99. Cedido gen-
Observada por fora, a ferida tem uma porção central cir- tilmente pela Dra. Virgínia Rosa R. Dias, do IMLAP.
cular em que a pele está escura e queimada numa área com
diâmetro semelhante ao da boca da arma. A partir dessa por-
ção central, irradiam-se fendas radiais e irregulares em que tância. Mas o exame minucioso d o o rifício de entrada m os-
as bordas não estão escoriadas, pois resultaram de uma rotu- tra suas bordas queimadas e a inspeção do subcutâneo com
ra por distensão dos tecidos de dentro para fora (Fig. 14.42). uma lupa revela grãos de pólvo ra. Tem-se recomendado fa-
O tamanho desta ferida varia com o calibre da arma e zer a d osagem de monóxido d e carbono nesses tecidos. Se
com a força com que foi pressio nada contra a pele no mo- estiver em concentra ção alta, atestam o tiro encostado 14 •
mento do disparo. Cartuchos mais potentes, como os do A pele adjacente às feridas feitas com a arma encostada
Magnum .357 podem simular, pelas dimensões da ferida, pode apresentar uma escoriação cuja forma imita a da massa
lesão por arma de cano longo. Por outro lado, projéteis de de mira ou a do pino da mo la recuperadora, se se tratar de
revólver calibre .32 curto ou .22 podem não ter energia su- pisto la. Tal escoriação é conhecida como sinal de Werkgartner
fi ciente para fazer a clássica lesão em boca de mina. Nesses (Figs. 14.43 a 14.45). Resulta d o choque da pele com a boca
casos, o diagnóstico da distância de tiro fica dificultado pela da arma no momento em que os gases se expandem no plano
ausência das orlas características dos disparos de curta dis- subcutâneo 22 •24•
270 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

O orifício de entrada no osso da calota craniana tem


forma circular e apresenta um contorno com as bordas ta-
lhadas em bisei pela face interior, de modo a formar um va-
zio em forma de tronco de cone com a base maior voltada
para dentro (sinal de Bonnet). Isso ocorre porque o crânio
é formado por duas camadas compactas separadas por uma
de osso esponjoso - o díploe. O projétil atravessa primeiro
a tábua externa, destacando fragmentos que são lançados
para dentro do crânio e aumentam o buraco da tábua in-
terna. É comum observarem-se traços de fratura irradiados
das suas bordas. Os resíduos da combustão produzem, em
alguns casos, um anel acinzentado no osso que delimita a
face externa desse orifício. É conhecido como sinal de Be-
nassi22 (Figs. 14.42 e 14.45).
A formação do tronco de cone na perfuração de saída do
crânio tem sentido contrário, ou seja, a base mais larga fica
do lado externo do díploe, porque o bisei é feito à custa da
tábua externa (Fig. 14.46).
Quando a pressão exercida pela boca da arma é leve,
abre-se um exíguo espaço entre ela e a pele, que recua um
pouco empurrada pela pequena quantidade de gases que vão
na frente do projétil e pelo próprio recuo da arma (coice).
Parte dos gases que vêm por trás impulsionando o projétil
consegue escapar por essa fenda assim formada. Nesses ca-
sos, ocorre esfumaçamento da pele ao redor da ferida, com
aspecto um tanto radiado, semelhante ao que veremos se o
disparo for em partes moles.

Figura 14.43. Ferida de entrada de projétil de pistola 7,65 mm, dis- Tiro Encostado em Partes Moles
parado com a arma encostada. A escoriação circular situada pouco
Nos casos em que o tiro é disparado em região de partes
abaixo do orifício foi feita pelo pino da mola recuperadora da pistola. É
o sinal de Werkgartner. O couro cabeludo está raspado porque a vítima moles, como no abdômen ou no pescoço, ocorre um recuo
ainda chegou a ser hospitalizada. Guia 303 da 14ª DP, de 27/11 /70. da pele com escape de quantidade de gases que é inversa-
mente proporcional à pressão exercida pela boca da arma.
Do mesmo modo, a impregnação da pele adjacente pela orla
de esfumaçamento, que revela aspecto radiado (Fig. 14.47).

Figura 14.44. Ferida de entrada com a arma encostada na região


temporal esquerda. As bordas do orifício estão impregnadas por resíduos
do disparo e são um pouco irregulares. A pele adjacente revela hiperemia
e uma escoriação circular situada um pouco por diante do orifício (sinal Figura 14.45. Tiro com a arma encostada no setor occipital do couro
de Werkgartner). Tal posição do pino da mola recuperadora indica que cabeludo. A orla escura ao redor do orifício no osso é o sinal de Benassi.
a coronha da arma estava um pouco rodada para cima e a massa de Mesmo com o retalho posterior do couro cabeludo rebatido, dá para ver
mira na direção da orelha. Não é posição usual de suicídio, mesmo que a ampla ferida estrelada de entrada na pele. Guia 418 da 36ª DP de
se trate de indivíduo canhoto. Guia 72 da 37ª DP, de 07/03/02. 09/09/1999.
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 271

Com a perfuração da pele pelo projétil, os gases propul-


sores penetram e expandem-se violentamente nos planos
subcutâneo e muscular. A pele é jogada de volta, de encontro
à boca da arma, mas não se rompe como acontece no cou-
ro cabeludo, pois a resistência dos planos profundos é bem
menor. Podemos encontrar, adjacente ao orifício, escoriações
que imitam a massa de mira, o pino da mola recuperadora
ou o suporte do extrator nos revólveres de cano curto, como
o da Figura 14.l (Fig. 14.48). O orifício é circular e tem as
margens carbonizadas. Por vezes, vê-se um halo de escoriação
ao seu redor, fora da área carbonizada, que resulta do conta-
to forçado com a boca da arma. Seu diâmetro costuma ser
um pouco maior que o desta 14• Se houver sobrevida, forma-se
um halo avermelhado de hiperemia ao seu redor (Fig. 14.49).
Independentemente da pressão da arma na pele, os planos Figura 14.48. Ferida de entrada com o cano encostado na região pre-
cordial, em que se nota o sinal de Werkgartner representado por esco-
subcutâneo e muscular apresentam um espaço neoformado
riação parda em curva, que toca o orifício, e zona de esfumaçamento
cujas paredes hemorrágicas são impregnadas pelos resíduos com aspecto um tanto radiado. Oorifício contém sangue etem as bordas
da combustão e pelos grãos da pólvora que não se queimou. parcialmente carbonizadas. Guia 02 da 34~ DP, de 26/02/69.

Figura 14.46. Orifício de saída de projétil do crânio. A tábua externa da


calota craniana está talhada em bisei de modo irregular e dela partem
dois traços de fratura. Caso do IMLAP necropsiado em 06/12/66 pelo autor.

Figura 14.49. Ferida de entrada com a arma encostada na região


carotídea direita. O orifício é delimitado por pele parcialmente carboni-
Figura 14.47. Orla de esfumaçamento radiada ao redor de orifício de zada, escura, com um halo de hiperemia na periferia da lesão. Essa
entrada com o cano encostado sob pressão de média intensidade. Caso hiperemia resulta da reação inflamatória pela ação térmica dos gases e
do autor, ano de 1968. indica sobrevivência por vários minutos.
272 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Trajeto
Começa na entrada do projétil. Constitui um túnel lesio-
nai feito pelo deslocamento do projétil dentro do corpo, que
termina no seu ponto de repouso ou de saída. Ao longo do
trajeto, os tecidos são rompidos de modo semelhante ao que
acontece com a pele, diferindo o resultado lesionai de acordo
com a textura de cada um.
Quando o projétil atinge um osso, produz fratura es-
quirulosa, cujos fragmentos se compo rtam como projéteis
secundários. Sua posição com relação à entrada e ao foco
de fratura é sinal excelente na determinação d o sentido do
disparo. No crânio, aos efeitos diretos e hidrodinâmicos do
projétil somam -se os devidos aos fragmentos da calota que
acompanham sua direção, formando um cone de dispersão.
Os ossos longos mais fortes, como o fêmur, quando fratu-
r ados por um projétil, apresentam um foco lesionai muito
extenso. Além disso, o projétil que toca um osso pode se
desviar, mudando a direção do trajeto. Depende da massa
do projétil e da robustez do osso. Vimos um caso em que
um ad olescente foi encontrado morto na via pública, apre-
sentando uma equimose violácea nas pálpebras esquerdas.
Tinha sido atingido no olho. O projétil atravessou o teto or-
bitário, fraturou o rochedo homolateral, mudou de direção
e foi-se alojar na escama do osso occipital, próximo da linha
m ediana (Figs. 14.50 e 14.5 1). O próprio projétil pode frag- Figura 14.50. Ferida de entrada no olho esquerdo, cujas pálpebras
mentar-se e ampliar a lesão. Ora a fragmentação é causada apresentam tumefação e equimose. Guia 228 da 30ª DP, de 06/05/69.
pelo impacto em um osso, ora depende de características da
própria construção do projétil.
Ao atingir as partes moles e as vísceras, a extensão e a gra-
vidade das lesões vai depender, enfatizamos, do tipo de teci-
d o atravessado. Víscer as m aciças como o fígado e os rins cos-
tumam apresentar cavidade permanente cercada por paredes
constituídas por tecidos bastante lacerad os po r ação da ca-
vidade temporária que, embora de pequena monta, produz
lesões significativas por causa da friabilidade do parênquima
desses órgãos. Eles são fo rmados por muito tecido epitelial,
grande quantidade de vasos sanguíneos e pouco conjuntivo.
Tanto o sangue contido nos vasos como o tecido epitelial são
praticamente inelásticos. Já nos pulmões ocorre o inverso.
São fo rmad os por alvéolos cujas paredes apresentam grande
elasticidade e contêm o ar, que é de gra nde compressibili-
dade. Os trajetos pulmonares são fo rmados pela cavidade
permanente, de diâm etro bem menor que o do projétil, com
paredes pouco laceradas (Fig. 14.52 ).
O cérebro é um caso à parte. O tecido nervoso tem gran-
de teor de água, que é quase incompressível, e está contido
em continente rígido - o crânio - que dificulta muito a ex-
pansão da cavidade temporária. Assim, as ondas de pressão
ger adas pela passagem do projétil produzem compressão in-
tensa do tecido nervoso a partir do túnel lesionai.
Quando se procura determinar um trajeto, é preciso es-
tar atento para o fato de que a posição relativa dos segm en-
tos corporais e das vísceras depende da postura (Fig. 14.53). Figura 14.51. Aspecto da base do crânio do mesmo indivíduo da Rgura
Além disso, há vísceras móveis, cuja topografia muda com 14.50, notando-se perfuração doteto orbitário, do rochedo e do quadrante
os m ovimentos respiratórios. Assim, não se pode esperar inferior esquerdo da escama do osso occipital, de onde foi removido.
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 273

encontrar trajetos sempre retilíneos, sendo tarefa bastante As lesões de entrada e de saída nas artérias de grosso ca-
árdua estabelecer o caminho seguido por projéteis dentro do libre têm forma estrelada irregular quando observadas pela
corpo humano. A dificuldade aumenta muito em se tratando túnica interna. Se o projétil passar de raspão no vaso, a lesão
de indivíduos atin gidos por vários projéteis, situação em que terá fo rma de fenda irregular, com pequenas roturas que se
os trajetos se cruzam e, por vezes, impossibilitam uma ava- estendem perpendicularmente à direção da lesão principal
liação precisa. O m ais aconselhável nesses casos é m apear as (Fig. 14.54). As artérias e veias de médio calibre são com-
entradas e as saídas antes de iniciar a autopsia. pletamente rompidas pela ação contundente do projétil e
retraem-se, principalmente as artérias.
No coração, a entrada tem fo rma circular o u oval, com
as bordas esgarçadas e fo rmadas pelo tecido muscular arre-
bentado, apresentando um halo hemorrágico no epicárdio.
Vista pela face luminal, a lesão mostra -se mais irregular,
com feixes de fibras ro tas nas margens (Figs. 14.55 e 14.56).
Além do perigo de hemorragia para o saco pericárdico e de
tamponamento, o trajeto no cor ação pode interessar estru-
turas nobres como válvulas, músculos papilares ou feixes de
condução (estruturas especializadas que comandam o ritmo
d os batimentos).
Em casos excepcio nais, o projétil perde a força ao cair
no interior do coração. Pode lá permanecer e ser encontra-
d o durante uma cirurgia ou necropsia. Mas pode seguir a
corrente sanguínea e funcionar com o um êmbolo arterial.
No caso de a vítima sobreviver, os sinto mas da obstrução ar-
terial denunciarão sua localização. Quanto menor o projétil,
maio r a probabilidade de que isso ocorra. Pode acontecer
fato parecido quando um projétil ficar livre no canal ra quia-
no. Com a movimentação do corpo, ele se desloca e ilude o
necro psista que o havia visualizado através de r adioscopia. Já
tivem os experiência sem elhante.

Figura 14.52. Perfuração do lobo inferior do pulmão direito com halo Saídas
hemorrágico intenso. Nota-se que o orifício parece estar em baixo relevo
por causa da elevação dos tecidos vizinhos pela infiltração hemorrágica. Na dependência da quantidade de energia com que pe-
Guia 105 da 31 ª DP, de 28/05/98. netrem e da resistência dos tecidos atravessados, os projéteis

Figura 14.53. Esquemas para mostrar possíveis trajetos de projéteis que pareceriam anômalos não fosse a mudança de posição dos segmentos
do corpo. Gentileza de Rabello1•
274 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Figura 14.56. Ferida transfixante do septo interventricular. /!is bordas


Figura 14.54. Rotura ampla da crossa da aorta, de bordas irregulares mostram fibras musculares rompidas e voltadas para dentro da cavi-
e com prolongamentos perpendiculares, causada por projétil que incidiu dade ventricular. Caso do IMLAP, necropsiado pelo autor na década dos
tangencialmente. IML.AP, janeiro de 2007. anos 60.

Figura 14.55. Ferida penetrante do ventrículo direito. Nota-se halo de Figura 14.57. Ferida de saída na região masseterina direita, de forma
hemorragia ao redor do orifício. Caso do IMLAP, necropsiado pelo autor estrelada, com orla equimótica. Mesmo caso da Figura 14.38.
na década dos anos 60.

podem ficar retidos no corpo humano, ou sair em qualquer é mais teórico do que real. Em nossa prática de 26 anos no
região. Assim, as saídas são lesões produzidas de dentro para necrotério do IMLAP, pudemos perceber o quanto de ver-
fora, o que por si já explica por que são diferentes das entra- dade há nessa afirmação do autor francês. Nas feridas trans-
das. Quando o projétil atinge a pele no local de saída, já vem fixantes do crânio, por exemplo, tanto o orifício de saída
com meno r quantidade de energia, por vezes deformado, ou quanto o de entrada revelam bordas evertidas em função da
em posição diferente da com que entrou. Pode, inclusive, estar hipertensão intracraniana e da eliminação de tecido nervoso
acompanhado por fragmentos de tecido a ele aderidos. Por lacerado e sangue por ambos. Quando o orifício de saída fica
isso, o orifício de saída costuma ser maior e tem formava- pressionado por um anteparo sob o peso do corpo da vítima,
riada, podendo ser uma ferida estrelada, uma fenda o u outro as bo rdas também não se apresentam evertidas. Raramente,
padrão qualquer (Figs. 14.57 e 14.58). Pode, inclusive, ser cir- o proj étil fica preso à pele no orifício de saída. É o que ocorre
cular e escoriada se o projétil imprensar a pele contra algum quando a vítima está encostada em um anteparo resistente
anteparo (Fig. 14.59). No caso dos projéteis de alta velocidade, ou quando o projétil já não tem mais força para sair comple-
outros fatores entram em jogo para modificar seu aspecto. tamente (Fig. 14.60).
É comum dizer-se que as bordas do orifício de saída são O número de saídas pode ser maior que o de projéteis
evertidas, enquanto as dos de entrada são voltadas para den- que penetraram no corpo. A explicação dessa discrepância
tro. Já no início do século XX, Thoinot 21 afirmava que isso pode ser a fragmentação do projétil ou a formação de projé-
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 275

Figura 14.58. Duas feridas de saída de projéteis de pistola .45, Figura 14.60. A pinça remove um projétil que não chegou a sair na
localizadas no dorso de um homem negro. São de forma irregular e uma região dorsal, embora tenha perfurado a pele. Guia 60 da 32ª DP, de
delas tem as bordas nitidamente evertidas. Foi encontrado morto em 06/07/11.
estrada deserta da Zona Rural do município do Rio de Janeiro, em
27/09/68. Fora executado por estrangulamento e disparos de pistola .45.
Mesmo caso da Figura 7.6.

Figura 14.61. Ferida transfixante do braço esquerdo com entrada na


região deltóidea, saída na face interna, próximo da axila, e penetração
Figura 14.59. Ferida de saída atípica na região dorsal, de forma na região costal um pouco abaixo de escoriação parda irregular. A
ovalar, bordas providas de grande orla de escoriação de forma muito deformação do braço deve-se a fratura do úmero. Guia 53 da 22ª DP,
desigual e irregular. Guia 84 da 3aa DP, de 10/06/2002. de 21 /05/91.

teis secundários ao longo do trajeto. Em alguns casos, o pro- minalística, mas que lhes são pertinentes. Inicialmente, exa-
jétil incide obliquamente sobre pele que recobre um osso e minaremos aspectos da perícia criminal que o legista pode
se fragmenta. Uma parte penetra e outra sai por um orifício auxiliar a resolver.
de saída próximo do de entrada e ligado a ele por um trajeto
subcutâneo. Outras vezes, o projétil fratura um osso no lo- Identificação do Atirador
cal de saída, e esquírulas ósseas podem fazer orifício de saída
próprio. Na Figura 14.61, notam-se dois o rifícios de saída na Quando alguém dispara uma arma de fogo, recebe uma
face interna d o braço. Um dos orifícios corresponde ao projé- parte da descarga dos gases que escapam da câmara de com -
til e o outro pode ter sido causado por fragmento do úmero. bustão por minúsculas brechas, que variam de uma arma
para outra. A presença e distribuição dos resíduos depende
do tipo de arma, da munição, do tamanho da mão e da ma-
• PROBLEMAS MÉDICO-LEGAIS neira de empunhar a arma'. Nos revólveres, os principais
pontos de escape são o espaço entre o tambo r e a antecâm ara
Esta discussão versará tanto sobre as questões clássicas d o cano e entre o tambo r e a culatra. Nas pistolas, o escape
da perícia médico-legal como sobre algumas de ordem cri- para a mão do atirador é muito menor e se faz pela janela de
276 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

ejeção e a culatra 1•2. Esses gases resultam tanto da queima da pela posse da arma. Já vimos marcas de pólvora nas mãos de
carga propulsora quanto da carga de espoletamento. Assim, uma mulher assassinada com vários tiros à queima-roupa na
as diversas técnicas desenvolvidas para tentar esclarecer o face (Fig. 14.40 ).
problema, isto é, se a pessoa atirou ou não, estão fundamen- Antes do advento da pólvora sem fumaça, os testes vi-
tadas na detecção dos resíduos da combustão da espoleta e savam apenas os nitritos produzidos por sua combustão. O
da pólvora, principalmente da primeira. As regiões da mão reagente usado era o de Griess, à base de ácido parassulfa-
do atirador atingidas com maior frequência pelos resíduos nílico25. Mas seu valor foi contestado em função da grande
são as faces radial e palmar do indicador, a prega entre esse e possibilidade de falso -positivos causados por contamina-
o polegar, as faces dorsal e interdigital do polegar e o resto do ção prévia da mão por substâncias sem qualquer tipo de
dorso da mão (Figs. 14.62 e 14.63). rela ção com disparos de arma de fogo como, por exemplo,
Quando se suspeita de suicídio, a pesquisa deve abranger urina, cinza de cigarro, fertilizantes ou alimentos em con-
também a face palmar vizinha dessas zonas e a outra mão. serva. Já se demonstrou, inclusive, que tanto a saliva quanto
O caso da Figura 14.64 mostra distribuição compatível com o suor contêm nitritos2·6 • Além disso, como o teste é feito
acionamento da arma com a mão esquerda, semelhante à da para nitritos, que podem ser oxidados a nitratos pelo oxigê-
Figura 14.63. O tiro foi disparado dentro da boca (Figs. 14.65 nio do ar, é possível que ocorra falso-negativo após algum
e 14.66). Mas é preciso não confundir esse tipo de impreg- tempo 2. Já foi muito usado o teste da parafina, de lturrioz,
nação com o decorrente de luta da vítima contra o agressor com a finalidade de detectar nitritos profundamente situa-

Figura 14.62. Nessa forma de empunhar a arma, o escape pelos Figura 14.64. Manchas de resíduos do disparo na mão esquerda de
pontos assinalados (setas) atinge principalmente o dorso do polegar, do vítima de suicídio, que disparou a arma com o cano dentro da boca. Guia
indicador e do espaço entre ambos. 58 da 12~ DP, de 16/09/2002.

Figura 14.63. fts áreas pintadas com pó de grafite são as que re-
cebem maior quantidade de residuos quando se atira com um revólver.
É nessas áreas, preferencialmente, que os peritos devem recolher amos- Figura 14.65. Orifício de entrada no teto da boca. A mucosa ao redor
tras para exame. tem coloração acinzentada escura. Mesmo caso da Rgura 14.64.
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 277

dos na pele e, assim, resistentes à lavagem. Foi abandonado fabricação de papéis no caso do bário e de fabricação de fios
pelas mesm as razões2•26 • sintéticos no do antimónio 2•25 •
Mais recentemente, são mais valorizados os resíduos O método mais prestigiado pelos cientistas forenses, po-
produzidos pela queima da espoleta. Na maioria das vezes, as rém, é a microscopia eletrônica de varredura complementada
incrusta ções na pele são invisíveis a olho nu mas se situam pela espectrometria da dispersão de raios X. A coleta do ma-
na mesma topografia já referida. Se a folga entre o tambor terial para exame deve ser feita por meio de fita adesiva tipo
e as outras partes da armação for maior, notam-se manchas dupla face. A fita é presa a um suporte móvel do microscópio
acinzentadas, de contorno pouco preciso e intensidade va- por uma das faces, de modo a que se possa fazer a outra face
riada, nas áreas mais próximas ao escape. A pesquisa desses entrar em contato com a pele das áreas a serem pesquisadas.
resíduos da espoleta pode ser feita pela chamada via úmida, Com isso, as partículas contendo chumbo, bário e/ou anti-
que se vale de reações químicas para os metais presentes nos mónio, porventura existentes, são removidas e levadas no
sais da mistura iniciadora, ou pela microscopia eletrônica de mesmo suporte ao microscópio. Sua morfologia denuncia
varredura 2•25 • sua composição, que deve ser confirmada pela espectrome-
O material a ser examinado deve ser colhido com fita tria aos raios X. Os autores em geral são acordes em consi-
adesiva comum, à qual ficam aderidas as partículas con- derar a presença de partículas que contenham os três ele-
tendo os sais de chumbo, bário e antimónio da espoleta. O mentos como diagnósticas de realização do disparo de arma
chumbo e o bário podem ser identificados com o rodizona- de fogo. Se forem encontradas partículas formadas por ape-
to de sódio; o antimónio, com o trifenilarsênio 2•25 • Aqui, a nas dois desses elementos, a conclusão será de indicativo de
especificidade é para os referidos metais. Por isso, procede disparo. Mas se as partículas encontradas forem compostas
a crítica de que pode haver falso-positivos. Assim, pessoas cada uma por apenas um dos elementos, nada se concluirá,
que trabalhem como mecânico de motor a explosão, mo- pois deve ser contaminação. A grande vantagem desse exame
torista, frentista, soldador, bombeiro hidráulico, pintor etc. é que se pode fazer a documentação fotográfica dos achados,
podem ter resíduos de chumbo nas m ãos sem terem usado bem como repeti-lo mais tarde, se houver necessidade, já que
uma arma de fogo. O bário e o antimónio também podem não destrói o resíduo. Além disso, é muito mais sensível do
contaminar a mão de outros profissionais, por exemplo, de que os testes químicos2• Dá resultados positivos em 90% das
pessoas pesquisadas que efetuaram disparo de arma de fogo.
Com o é um m étodo apenas qualitativo, que não dosa os ele-
m entos encontrados, tem sofrido críticas. Mas a concentra-
ção de partículas na pele pode suprir essa falha 25 •
Outra técnica é a espectrometria de absorção atômica sem
chama. É método analítico e quantitativo. Tem baixo custo, e
detecta chumbo, bário, antimónio e cobre se o projétil forja-
quetado. Tem sensibilidade na faixa dos nanogramas. Consi-
dera-se positivo quando houver mais de 35 ng de antimónio,
150 ng de bário e 800 ng de chumbo. Mas ocorrem muitos
falso-negativos. Nos disparos de pistola a positividade não
ultrapassa os 32% 25 •
Em 1998, a Companhia Brasileira de Cartuchos colocou
no mercado cartuchos em que a espoleta não contém mais
os sais de chumbo, bário e antimónio. É formada por diazol,
nitrato de estróncio, tetrazeno e pó lvora. Po r isso, novos mé-
todos terão que ser desenvolvidos para a sua identificação
nas m ãos do atirador2 •
Apesar de todo esse progresso, as questões básicas sus-
citadas historicamente continuam presentes. Em primeiro
lugar, a demonstração de que alguém dispa rou uma arma
de fogo não indica que foi a autora do dispa ro incriminado.
Em segundo, a reação positiva pode ser encontrada em quem
tenha ficado muito próximo do atirador po r projeção das
partículas sobre sua mão. Por fim, a reação negativa não ex-
clui categoricamente a possibilidade de que o indivíduo te-
nha feito uso de arma de fogo. O resultado do exame deve ser
valorizado na sua exata m edida, dentro das circunstâncias
que envolvem o suspeito nos fatos. Os testes devem ser mais
Figura 14.66. Presença de resíduos do disparo na mucosa da língua. um dado dentro dos indícios encontrados. Cabe, aqui, trans-
Mesmo caso da Figura 14.64. crever a citação feita por Tochetto 2 de uma das deliberações
278 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

tomadas no I Seminário Nacional de Balística Forense, em bastando que sejam de calibres diferentes ou de construção
Porto Alegre, de 20 a 25 de outubro de 1996: 'i'l presença ou característica de armas diversas. Por exemplo, projéteis de
ausência de resíduos compatíveis com os provenientes do tiro, chumbo nu ao lado de outros blindados. Pela inspeção do
na mão de um suspeito, não pode ser usada como único ele- corpo desses projéteis, é possível distinguir o sentido de ro-
mento de vinculação com a ocorrência, não devendo ser utili- tação das estrias da arma. O exame do estojo permite deter-
zada para diagnóstico diferencial entre suicídio e homicídio." minar o modelo de arma, se automática ou semiautomática,
Quando o projétil penetra no corpo da vítima, ocorre um pela posição relativa das marcas do extrator e do ejetor.
refluxo de sangue e, em menor escala, de tecidos através do A tentativa de identificação da arma que atirou os pro-
orifício de entrada. A quantidade de material regurgitado de- jéteis recolhidos só pode ser feita se alguma houver sido
pende da região anatómica atingida, do calibre do projétil e apreendida. Identificar é estabelecer uma igualdade, e toda
de sua velocidade. Projéteis mais calibrosos e de maior velo- igualdade tem dois membros. Devem-se fazer tiros de prova
cidade de impacto produzem refluxo mais intenso. Esse ma- com a arma suspeita em dispositivos apropriados, de modo a
terial espalha-se em todas as direções com sentido retrógrado se poder recolher o projétil disparado. Assim, os peritos pro-
a partir do orifício de entrada. O alcance desse salpico de san- curarão comparar a estriação fina deixada pelos cheios da
gue depende do tamanho das gotículas expelidas. Em geral, raiação no projétil recolhido do corpo com os encontrados
os tiros que mais produzem essa regurgitação são os dispa- no projétil disparado pela arma suspeita durante os testes
ros com a arma encostada na cabeça. Formam-se gotículas (Fig. 14.67). Isso é feito sob microscópio comparador.
grosseiras e microgotículas. As maiores percorrem maior Os detalhes da mossa deixada pelo pino percussor na
distância em direção à arma. A maioria fica nos primeiros espoleta também devem ser comparados, se se dispuser de
50 cm mas algumas podem alcançar mais de 1 m 17• Testes rea- estojos recolhidos do local do crime. O culote do estojo, ao
lizados com bezerros mostraram que podem ser encontrados ser jogado para trás pela detonação, choca-se com a culatra
na mão do atirador e na arma situados a 10 cm de distância e sofre gravação de seus relevos, o que também pode ser pes-
da cabeça alvejada 17 . Assim, em casos de suicídio, principal- quisado ao microscópio esteroscópico.
mente os com tiro na cabeça, deve-se procurar identificar os
salpicos de sangue e de tecido nervoso na mão que tenha,
possivelmente, disparado a arma. O mesmo deve ser feito em
Número de Projéteis que Atingiram a Vítima
outros casos, mesmo que a entrada não seja na cabeça. O número de entradas costuma ser igual ao de projéteis
que atingem o corpo, mas pode ser maior, ou ainda, rara-
Determinação de que a Arma foi Utilizada mente, menor. Por vezes, um mesmo projétil transfixa um
Recentemente segmento do corpo e, a seguir, penetra em outra região. Isso
sucede com frequência em tiros que atravessam um membro
Qualquer pessoa que já tenha realizado algum disparo com superior e depois penetram no tórax (Fig. 14.68 ). A segun-
arma de fogo sabe que as partes expostas aos gases da combus- da entrada pode ser irregular em função de deformação do
tão ficam sujas de seus resíduos, o que pode ser verificado a
olho nu sem maiores problemas. Armas com o cano recober-
to por óxidos ao longo de sua face interior não foram utiliza-
das recentemente. Por outro lado, armas utilizadas há pouco
podem ter sido objeto de limpeza e demonstrar resíduos do
material utilizado ao longo da alma do cano. Os peritos cri-
minais estão de acordo em que se pode afirmar que a arma
foi utilizada, mas acham temerário afirmar há quanto tempo2 •
Em função do refluxo descrito acima, devem ser procura-
das marcas de sangue na arma suspeita sempre que se tratar
de disparos de curta distância. Em um estudo de revisão de
centenas de armas usadas em suicídios foi possível mostrar
presença de gotículas de sangue nas proximidades da boca da
arma em mais de 75% dos casos25 •

Identificação da Arma
Caso não se tenha apreendido uma arma no local ou com
algum suspeito, será possível fazer uma determinação gené- Figura 14. 67. Comparação de dois projéteis em microscópio de ba-
rica do seu tipo com base em projéteis recolhidos do corpo, lística. A identidade é feita pela coincidência das estriações finas. Écomo
ou pelo exame de estojos e projéteis recolhidos da cena da comparar dois códigos de barras. Foto feita pelo autor no Laboratório de
ocorrência. Projéteis recolhidos do corpo podem informar Balística do Instituto de Criminalística Carlos Éboli em julho de 1991 ,
imediatamente se houve uso de mais de um tipo de arma, assistido pelo Dr. Nelson Pereira da Silva.
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 279

Figura 14.68. No caso ilustrado nesta foto, o projétil atravessou o Figura 14.69. Dois projéteis acoplados. Um deles ficou retido no cano
antebraço e, em seguida, penetrou no tórax. Mesmo caso das Figuras e foi desalojado pelo outro, disparado em seguida. Caso cedido gentil-
14.21 e 14.22. mente pelo Prof. Dr. Ivan Nogueira Bastos.

projétil, ao atravessar o primeiro segmento ou por estar em que transfixam apenas a roupa, sem penetrarem em qualquer
contato íntimo com a primeira saída (Fig. 14.61). segm ento corporal. Por isso, o estabelecimento do número
Em alguns casos, ocorre sucessão de entradas cuja pos- de tiros que foram desferidos contra o indivíduo só pode ser
sibilidade é remota, mas possível. Tivemos que responder a feito após exame minucioso tanto do corpo quanto da roupa.
uma consulta da prom otoria em um caso de ho micídio em O número de tiros conjugado com o local do corpo atin-
que a vítima apresentava uma ferida transfixante do joelho gido pode dar uma ideia quanto à intenção do autor dos
com entrada na face anterior, ao lado da rótula, e saída na disparos. A repetição de disparos depois de atingida a víti-
face anterior da parte mais baixa da coxa, que voltou a pe- ma no tór ax, no pescoço ou na cabeça ultrapassa o que seria
netrar no corpo ao nível do abdômen. Tal trajetó ria seria razoável para uma alegação de legítima defesa e indica um
possível desde que a vítima estivesse deitada com as costas comportamento ho micida.
na cama e o membro inferior flexionado, e o atirador de pé.
Raramente, o que ocorre é o inverso, ou seja, casos em que Ordem dos Tiros
se acham mais projéteis no corpo do que o número de en-
tradas. Duas possibilidades existem. Uma é a penetração de É tarefa muito difícil dizer em que ordem penetraram os
um projétil em algum orifício natural do corpo. Outra, mais projéteis no corpo de uma vítima de homicídio, principal-
remota, é a penetração de dois projéteis pelo mesmo o rifício. mente se forem vários disparos. Mas, em situações especiais,
Foi o que aconteceu em um crime passional, em que o ho- há possibilidade de acrescentar alguma informação. Quando
mem traído tentou matar a amante infiel desfechando-lhe um trajeto tem reação vital e os outros não, a dúvida fica
cinco tiros e tentando o suicídio com o último cartucho. dirimida. Se um projétil tem entrada de média distância, por
A amante sobreviveu aos quatro projéteis que a atingiram, exemplo na coluna vertebr al, e o utro penetrou por disparo
enquanto o atirador suicida teve o crânio perfurado pelos de curta distância na nuca, tudo leva a crer que esse foi o últi-
dois últimos projéteis, que penetraram pelo mesmo orifício mo. Cada caso oferece possibilidades e dificuldades distintas
de entrada. O penúltimo disparo deixara o projétil dentro do que devem ser analisadas com bom senso.
cano da arma (Fig. 14.69) .
Por vezes, é possível encontrar entrada em orifício natu- Distância dos Tiros
ral que estivesse aberto no momento do disparo como, po r
exemplo, a boca. Mesmo que não haja fratura de qualquer Deve ser avaliada com base na morfologia dos o rifícios
dente, os peritos devem examinar toda a cavidade bucal de entrada e das suas orlas de contorno, derivadas do cone de
(Figs. 14.65 e 14.66). explosão. Na ausência de qualquer das orlas dependentes
As roupas costumam estar perfuradas em correspondên- da explosão da carga propelente e das marcas características
cia com os orifícios de entrada, a não ser nas partes desnudas do disparo com a arma encostada, a presunção é de se tratar de
do corpo. De qualquer modo, é importante pesquisar minu- tiro de média o u lo nga distância. Contudo, os peritos não
ciosamente as perfurações das vestes, tendo em mente que o podem deixar de examinar as vestes, pois as zonas de esfu-
pano podia estar dobrado quando da incidência do projétil, maçamento, tatuagem e queimadura podem ter sido barra-
por exemplo em golas de camisas. Além disso, há projéteis das no plano do vestuário (Fig. 14.38).
280 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Para se medir de mo do aproximado a distância, será pre- O utro fator de erro na avaliação da direção é a mudança
ciso faze r disparos de prova com a arma d o crime, municiada das relações anatômicas dos órgãos de acordo com a posição
com o mesmo tipo de cartucho. O mais comum é o uso de do corpo e até os movimentos respiratórios (Fig. 14.53 ). É
placas de papelão de cor clara sobre as quais são dados os ti- necessário, muitas vezes, anotar os orificios de entrada e de
ros a distâncias conhecidas. A figura produzida é cham ada de saída em esquem as das regiões anatô micas e realizar um es-
residuograma. Desse m odo, é possível conhecer as distâncias forço de compreensão imaginando as posições possíveis dos
em que deixam de existir as orlas de queimadura, de esfu- diversos segmentos. Um projétil com direção horizontal no
m açamento e de tatuagem, pela repetição dos disparos em espaço pode percorrer o corpo da cabeça ao abdômen se o
placas diferentes. Efetuando disparos de prova com pistola indivíduo estiver deitado quando fo r atingido. Pela mesma
Walther 7,65 mm em folhas de cartolina branca, é possível razão, um projétil de direção a prumo pode atravessar a ví-
verificar que a chama atinge apenas 3 a 4 cm; a zona de esfu- tima com entrada na face anterio r do tórax e saída na região
maçamento é muito densa nessa distância, tem aspecto um dorsal. Os movimentos de torção da coluna são suscetíveis
pouco radiado e obscurece a de enxugo e a de escoriação; dos de causar muito embaraço no mo mento de se reconstituir
5 aos 10 cm ela vai aumentando de diâmetro e diminuindo uma trajetória de projétil. Sem auxílio d os dados levantados
de densidade, para sumir aos 20 a 30 cm. A zo na de tatuagem no local do crime, o perito deve evitar um compromisso com
é imperceptível aos 5 cm porque seus elementos form adores a direção do tiro no espaço e se referir sempre ao trajeto com
estão muito agrupados e projetam -se no interio r do orifí- o corpo na posição anatômica clássica.
cio ou nas suas m argens. À medida que o plano de impacto
se afasta, o diâm etro aumenta e a concentração diminui, de
Reação Vital e Tempo de Sobrevivência
m odo que, com 60 a 70 cm, já não é mais visível. Ela desapa-
rece porque os grãos de pólvora perdem o impulso e/ou se A presença de sinais que caracteriza m a reação vital de-
queimam no trajeto'. pende diretam ente do tempo de sobrevivência. Como foi
Neste ponto, é interessante lemb rar que a forma da área visto no Capítulo 7, a presença de hemorragia não tem va-
de cada zona de contorno pode variar de aco rdo com a dire- lor absoluto para indicar terem as lesões sido feitas em vida.
ção do tiro ser, ou não, perpendicular ao plano de impacto. No chamado período de incerteza de Tourdes, mom ento um
Nos tiros de incidência oblíqua, o orifício é excêntrico com pouco antes e um pouco depois da m orte, é preciso mui-
relação ao contorno de cada zona, notando-se m aio r con- to cuidado ao valorizar as áreas de hem orragia relacionadas
centração do lad o de que veio o projétil (Fig. 14.37). O mes- com as lesões violentas. No caso dos projéteis de arma de
m o efeito existe quando o tiro é feito contra superfície curva, fogo, a presença de nítida infiltração hemorrágica nas mar-
com o costuma ser nos segmentos do corpo humano. Se a gens do trajeto significa que foi feito em vida. As coleções de
curvatura é do tipo convexa, com o é a m ais comum, a porção sangue volumosas em cavidades pleurais e abdo minal têm
periférica das zonas de contorno fica mais afastada da boca franca origem vital. Os hemato mas colecionados nos espaços
da arma, exagerando a dispersão dos seus elementos forma- meníngeos indicam o mesmo. Um bom sinal de reação vital
dores. Os grãos de pólvora incombusta ficam mais afastados é a aspiração de sangue para o parênquima pulmonar nos
entre si, sugerindo uma distância de tiro maior do que a real. ferimentos que interessam as vias aéreas (Fig. 7.25). Outro é
Se a su perfície é côncava, o efeito é o oposto. a existência de volumoso coágulo sanguíneo tamponando o
Os mesmos testes preconizados para a determinação da cor ação na cavidade pericárdica.
mão que atirou podem ser aplicados no sentido de se des- A coagulação do sangue, com o já foi estudado, pode
cobrir se o tiro foi a curta distância, podendo ser feitos em ocorrer após a mo rte. No entanto, sua aderência aos tecidos
m aterial colhido da pele o nde está o o rifício de entrada ou da lesados depende de uma glicoproteína produzida em vida, a
roupa q ue a recobria. fibronectina 27 • O encontro de sinais de reação inflamatória
como congestão, edema e afluxo leucocitário só se consegue
Direção dos Tiros depois de algumas horas de sobrevida.
O exame do local pode demonstrar a realização de certos
De uma maneira simplista, podemos dizer que a direção atos pela vítima depois de atingida. Manchas de sangue em
de um tiro pode ser determinada pela reta que une o o rifício rastros pelo chão, pingos seguindo uma direção indicam o
de entrada ao de saída ou ao local onde foi encontrado o deslocam ento da vítima por seus pr óprios m eios. Assassinos
projétil. Mas há causas de er ro. Em primeiro lugar, o projétil que tivessem o cuidado de mover o corpo depois de m orto,
pode sofrer desvios dentro d o corpo humano, por tocar em provavelmente, apagariam as m anchas.
algum osso (Fig. 14.5 1) o u por se deslocar do seu lugar de Admite-se que uma pessoa possa permanecer consciente
repo uso por causa de contrações musculares ou falta de sus- por 10 a 15 segundos após o bloqueio completo da circulação
tentação. Projéteis soltos nas cavidades abdominal e pleurais, pelas artérias carótidas primitivas 16• Lesões penetrantes do
mudam de posição com o decúbito e pela ação da gravidade. coração ou da aorta por projéteis reduzem muito o fluxo
Q uando nas cavidades cardíacas, a corrente sanguínea tam- de sangue para o cérebro, mas não o bloqueiam de imediato.
bém pode movimentá-los. Assim, a capacidade de agir ainda pode ser mantida por cerca
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 281

de meio minuto com essas lesões. Di Maio 16 relata o caso de ção e o número das entradas são os mais importantes quando
um jovem de 17 anos que foi atingido na metade esquerda associados com a distância dos tiros. Os suicidas têm pontos
do dorso e teve ferida transfixante do coração e da artéria de eleição: região temporal, conduto auditivo, cavidade oral,
pulmonar esquerda. Pois foi capaz de permanecer consciente região precordial (Figs. 14.43, 14.47, 14.48, 14.65 e 14.70).
por mais de 1 hora, ocasião em que ficou agitado e entrou É importante, nesse contexto, o lado do corpo atingido
em choque hipovolêmico. É possível manter-se consciente quando se sabe qual o membro dominante da vítima. Ou-
mesmo depois de perder cerca de 25% do volume sanguíneo. tras regiões de fácil acesso à mão armada também podem
A vida fica em perigo aos 40% de perda. Mas a velocidade ser alvejadas com menor frequência, como o epigástrio. Por
com que se progride nessa rota para a morte depende doca- outro lado, regiões da face posterior do corpo, e dos flan-
libre do projétil causador das lesões. No caso do Di Maio, era cos, e na testa e alto da cabeça são muito suspeitas, quase
um projétil de pistola 6,35 mm, que produz furos de peque- exclusivas de homicídio, mesmo com tiros encostados (Figs.
no diâmetro, por onde o sangramento é mais lento. 14.35 e 14.42).
De acordo com a gravidade das lesões, é possível imagi- O número de disparos é importante. Em regra, o suicídio
nar o tempo de sobrevida da vítima. Mas pessoas alvejadas costuma ser efetuado com tiro único. Mas tivemos a oportu-
na cabeça podem, excepcionalmente, não perder a consciên- nidade de examinar o corpo de um suicida que deu dois tiros
cia e realizar atos bem coordenados. Vários são os relatos de na região precordial com revólver de calibre .22" (Fig. 14. 71).
suicídio em que a vítima sobreviveu mais de 1 hora depois
de alvejar o próprio crânio. Isso é mais comum nos casos em
que o projétil lese apenas os lobos frontais. Em um desses
casos, tratava-se de um revólver Magnum .357 e a vítima so-
breviveu por mais de 1 hora. Em outro relato, houve lesão da
ponta dos dois núcleos caudados e a vítima sobreviveu tem-
po suficiente para conversar com a esposa e a equipe médica
chamada para lhe prestar socorro 16 •

Causa Jurídica
A causa mais comum é o homicídio, seguida pelo suicídio
e o acidente. Em fun ção dos índices calamitosos de violência
das nossas metrópoles, a proporção de suicídios caiu muito
diante da frequência dos crimes de mo rte. Dados numéricos
podem ser vistos no Capítulo 7.
O diagnóstico da causa jurídica da mo rte depende da Figura 14.70. Ferida de entrada com a arma encostada, na região
comparação e análise ra cional dos dados já apresentados. O precordial. Mesmo caso da Figura 14.48.
primeiro elemento a ser procurado é o laudo de exame do
local do crime. Não cabe, como algumas autoridades pare-
cem admitir, ao médico-legista determinar a causa jurídica.
É o perito do local, com os dados lá recolhidos, o técnico
mais indicado para dar uma o rientação inicial. Partindo
desse po nto, e de posse do laudo do local, o médico-legista
pode orientar sua necropsia forense e melhor contribuir
para esse diagnóstico.
A necropsia forense deve começar pelo exame das vestes.
O legista deve verificar quantas são as perfurações e se suas
características indicam terem sido produzidas recentemente,
qual a direção do deslocamento dos fios do tecido, se há orla
de enxugo; se apresentam sinais de luta como rasgões, bolsos
ou pregas descosturados, sujidades. As manchas de sangue
que não tenham correspondência com as regiões de entrada
e de saída dos projéteis devem ser recolhidas para tipagem
do grupo sanguíneo. É interessante pesquisar resíduos dos
disparos na roupa, ainda que pouco visíveis, ou mesmo in-
visíveis a olho nu. As técnicas para tal já foram discutidas.
Uma boa abordagem para iniciar a necropsia é mapear to-
das as lesões com aspecto de entrada e de saída em esquemas Figura 14.71. Suicídio com dois tiros de revólver calibre .22" na região
do corpo humano e imaginar os possíveis trajetos. A localiza- precordial. Caso do IML.AP examinado pelo autor, não identificado.
282 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

Isso é mais fácil de acontecer com armas automáticas. Natu- Tipos de choques
ralmente, é muito mais difícil que isso ocorra nos suicídios
com a arma encostada na cabeça. A pesquisa de resíduos nas
mãos do cadáver deve ser feita sempre. Os prós e contras já Choque pleno
foram analisados.
....§
• LESÕES POR TIROS DE ESPINGARDA Choque modificado

As lesões causadas por armas que utilizam cartuchos de


projéteis múltiplos diferem das causadas por projéteis úni- Choque cilíndrico
cos. Em primeiro lugar, cada bago produz sua própria entra- • · Melhor intervalo
da e trajeto. Em segundo lugar, a concentração das lesões é de utilização
inversamente proporcional à distância do tiro. Mas o grau de
dispersão dos bagos ao longo do trajeto depende das condi- Figura 14.72. Tipos de choque: o esquema mostra que a dispersão
ções de fabricação e de artefatos produzidos deliberadamen- dos bagos é protelada nos canos com choque pleno. Ocone vermelho
te na arma para aumentá-lo ou diminuí-lo. indica a distância mais eficiente do disparo em função dessa dispersão.
Fonte: Livreto de propaganda da Companhia Brasileira de Cartuchos.
As espingardas modernas apresentam uma redução pro-
gressiva da luz do cano, em direção à boca da arma. Essa re-
dução é chamada de choque (do inglês choke) e serve para variar bastante por vários fatores: comprimento do cano,
concentrar os bagos de modo a mantê-los agrupados pela grau do choque, tipo de bucha, diâmetro dos bagos, calibre
maior distância possível ao longo do trajeto. O grau de choke da arma e tipo de pólvora. Quanto mais longo for o cano,
pode ser medido pela percentagem de bagos que ficam den- mais alto o grau do choque e maior o diâmetro dos bagos,
tro de um círculo com diâmetro de 30 polegadas (cerca de maior sua tendência a se manterem juntos por maior dis-
76 cm) quando disparados a 40 jardas (cerca de 36,6 m ). As- tância. Alguns tipos de bucha tendem a diminuir a dispersão
sim, o cano pode ser: cilíndrico - 35 a 45%; cilíndrico me- dos bagos, como as formadas por um estojo de plástico com
lhorado - 45 a 55%; modificado - 55 a 65%; o u choque total quatro aletas que se abrem ao encontrarem a resistência do
ou pleno - 65 a 75% 2º (Fig. 14.72). ar no início do trajeto (Fig. 14.14).
Contrariamente, se o cano de uma espingarda for serrado, A interposição de um anteparo entre a arma e o alvo faz
a dispersão dos bagos dar-se-á precocemente. É o que se faz com que os bagos colidam uns com os outros e se dispersem
nas chamadas escopetas, espingardas de grosso calibre em que precocemente, de modo que a rosa de tiro tem um diâmetro
o cano foi encurtado, em geral, para nove a dez po legadas. muito maior do que o esperado pela distância do disparo 20
O grupamento dos o rifícios produzidos pelos bagos é (Fig. 14.73).
chamado de rosa de tiro . Pelo diâmetro externo do grupa- Os cartuchos usados nas espingardas contêm bagos esfé-
m ento, é possível calcular de modo aproximado a distância ricos de diâm etro uniforme. Mas cada calibre de espingarda
do disparo, desde que se saiba qual foi o modelo de espin- pode ter cartuchos com bagos de qualquer tamanho. Assim,
garda. Grosseiramente, o diâmetro em centímetros correspon- um cartucho para espingarda 12 pode conter nove bagos SG,
de ao dobro ou triplo da distância em metros. Mas isso pode cada um com 8,4 mm de diâmetro e massa semelhante à de

2 3

Figura 14. 73. Efeito bola de bilhar. O cone de dispersão dos bagos tem sua base alargada quando encontra um anteparo transfixável antes de
atingir o alvo. O retardo que os bagos que vão na frente sofrem ao colidirem com o anteparo 1 faz com que os que vêm mais atrás os toquem,
provocando uma maior dispersão. Oresultado é que o alvo no plano 2 fica com uma rosa de tiro com diâmetro máximo maior do que o esperado.
Tal diâmetro teria ocorrido no plano 3 se não houvesse o anteparo 1.
CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo • 283

um projétil calibre .32", como é mais utilizado pela polícia. A lesão em "boca de mina': observada nos tiros de pistola e
Ou um número maior de bagos menores. A numeração dos de revólver com o cano encostado no crânio, não é vista em
bagos pelo seu diâmetro varia muito de um país para outro e função do aspecto devastador das feridas.
mesmo entre diversos fabricantes num mesmo país. Os disparos efetuados com o cano encostado em partes
Nos tiros dados a distâncias inferiores a 7 m, costuma ha- moles produzem grande distensão dos planos subjacentes
ver uma lesão acessória causada pela bucha, mas certos tipos à pele, que é jogada de volta contra a arma, o que produz
de cartuchos apresentam buchas com alcance muito maior, escoriações características, imitando a forma da boca do
chegando a cerca de 17 m. Como é natural, a forma dessa cano. Se o contato não for muito firme, há escape de gases
lesão varia com o tipo de bucha. As buchas em forma de dis- e de resíduos da combustão da pólvora, que se impregnam
co deixam uma escoriação circular (Fig. 14.74), enquanto as na pele adjacente, tornando-a enegrecida. Além disso, os
plásticas produzem escoriações de aspecto variado conforme pelos da região ficam crestados. Isso pode ocorrer mesmo
o seu modelo. que a boca da arma fique a pouco mais de 2 cm da pele20 .
Se a distância for suficiente, elas podem abrir as suas ale- A roupa em contato com a boca da arma é queimada, fica
tas e essas deixarem faixas largas de escoriação irradiando-se suja pelos resíduos da pólvora combusta e pode produzir
do orifício principal. Nos tiros de curta distância, muito pró- escoriações com a impressão da sua textura na pele quando
ximos ao alvo, os bagos de chumbo abrem um buraco por essa é jogada para fora pela distensão dos gases nos planos
onde entra a bucha nos tecidos da vítima. Acima de 4 m de mais profundos.
distância isso não costuma ocorrer mais. O achado da bucha Nos tiros de curta distância, é preciso considerar o al-
dá informações preciosas quanto ao calibre da espingarda e cance do cone de explosão e o início de dispersão dos ba-
ao fabricante da munição2(J. gos de chumbo. O orifício de entrada é único. Suas bordas
A quantidade de gases produzida pelos cartuchos dases- são escoriadas e tanto mais regulares quanto mais próximo
pingardas é comparável à dos cartuchos de rifles. Quando o o tiro. À medida que os bagos começam a se dispersar, o
tiro é realizado com o cano encostado, ou a distância muito orifício de entrada passa a apresentar contorno cada vez
curta, a sua penetração no corpo pelo orifício de entrada da mais crenado. A dispersão inicial dos bagos depende muito
massa constituída pelos bagos agrupados provoca enorme da forma do cano, se cilíndrica ou com choque total. No
distensão dos tecidos. A pressão é tão grande que a pele ao primeiro, com 1,5 m já começa a haver dispersão; mas, no
redor do orifício de entrada mostra pequeninas lacerações último, eles permanecem juntos ao longo de cerca de 6 m
devidas à hiperdistensão2(J. de trajetória em direção ao alvo. Em média, é possível ver
Nos tiros dados com a arma encostada contra o couro orla de tatuagem com tiros dados à distância de até 1,5 m.
cabeludo, a força expansiva dos gases provoca fratura comi- O achado de orla de tatuagem em meio a entradas distintas
nutiva dos ossos do crânio e da face. Em alguns casos, fica para cada bago sugere fortemente que se trate de espingarda
difícil determinar o orifício de entrada, uma vez que a cabeça com o cano serrado (escopeta)2°.
como que explode, com eliminação parcial ou total do cére- A penetração dos bagos de chumbo produz vários traje-
bro. Lacerações superficiais por distensão são observadas na tos no interior do corpo humano, com lesão visceral geral-
pele adjacente à entrada e nas regiões vizinhas da boca e das mente múltipla. Esse é o motivo da extrema gravidade dos
fendas palpebrais quando a entrada está na face. Os elemen- ferimentos por tiros de espingarda (Fig. 14.75).
tos do disparo, como a fuligem e os grãos de pólvora, vão ser O diagnóstico da causa jurídica da morte em lesões por
encontrados nos tecidos subjacentes ao orifício de entrada. disparo de espingardas leva em consideração, além dos ele-
mentos já discutidos com rela ção às armas raiadas, o tama-
nho do cano da arma. O acionamento do gatilho com a mão
nos casos de suicídio requer que o membro superior da víti-
ma o alcance. Há casos em que a vítima pressiona o gatilho
com o primeiro pododáctilo e apoia o cano da arma na boca
ou por baixo do queixo. Em algumas vezes, o pé utilizado
está descalço e o outro calçado. Por vezes, o gatilho é acio-
nado com a mão por meio de um bastão rígido. Os suicídios
com espingardas não são comuns em nosso meio.

• OUTROS INSTRUMENTOS
PERFUROCONTUNDENTES
Figura 14.74. Escoriação em forma de disco ou anel deixada por Como assinalamos na introdução deste capítulo, há ou-
bucha de cartão na pele de uma vítima de homicídio por tiros de espin- tros instrumentos que podem ser enquadrados como per-
garda. Caso do Dr. Celso Lara do IMLAP-RJ. Guia 283 da 37ª DP, de furocontundentes. Mais comumente, as lesões são causadas
20/10/98. por vergalhões em acidentes do trabalho. Em geral, são aci-
284 • CAPITULO 14 Lesões e Morte por Instrumentos Perfurocontundentes. Armas de Fogo

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Hygino de C. Hercules

No Capítulo 14, classificamos as armas de fogo de acordo Existem fuzis usados por caçadores, m as os de guerra
com vários critérios, mas não o fizemos quanto à energia do diferem deles por apresentarem m ecanism o autom ático, em
projétil ao sair da boca da arma. Vimos que as armas de fogo que a pressão continuada no gatilho permite disparar rajadas,
portáteis, isto é, as qu e são transpo rtadas co m facilidade por de modo sem elhante às metralhad oras. Os de caça são de
apenas um hom em, podem ser curtas e de m ão, ou longas ação semiautomática ou de repetição e não podem imitá-las.
e destinadas a disparos mais precisos com apoio no ombro. Além do mais, a sua munição não está sujeita às convenções
As longas, quando providas de cano com alma lisa, são cha- internacionais de guerra, podendo ser d o tipo dundum, com
m adas de espingardas; m as, se apresentarem raiação, serão projéteis expansivos o u explosivos. Já os projéteis dos fu zis
referidas como carabina, mosquetão e fu zil (Fig. 15. l ). As de guerra têm que ser totalmente revestidos por jaqueta de
carabinas usam a m esma m unição q ue as armas de m ão; já m etal duro, de mo do a não se deformarem fa cilmente ao
o mosq uetão e os fuzis são municiados co m cartuchos para atingirem o corpo humano 1•2 • São construídos par a provocar
eles especialmente desenvo lvidos e podem ser de guerra feridas transfixantes (Figs. 15.2 e 15.3).
ou de caça. O mosquetão é um fu zil um pouco mais curto,
cujo m ecanism o de repetição é um ferrolho acionado pelo
atirador.

t li

111111111111111111111111111111111111111 111111111111111111111111111111111111111111111111111
Figura 15.1. Fuzil AR-15 apreendido pela polícia do Rio de Janeiro.
Logo abaixo, há três cartuchos. Odo meio foi disparado e consta apenas 0 1 2 3 4 5 6 7 B 9
do estojo. Foto feita com autorização da direção do Departamento de Figura 15.2. Três cartuchos defuzis. Omaior é de uma arma obsoleta
Fiscalização de Armas e Explosivos da Polícia Civil do Estado do Rio de da Primeira Guerra Mundial; o do meio é munição de 7,62 mm do fuzil
Janeiro. FAL; o menor é um cartucho do fuzil AR-15.

285
286 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

foram criados os de forma cilíndrico-cônica revestidos por


uma liga dura de cobre. Eram mais leves, menos calibrosos
e de forma aerodinâmica, sofrendo menor resistência do ar5 .
Os projéteis esféricos de chumbo tinham de 31,5 a 37,7 g, e
os de Minié, entre 36 e 45 g. Já os novos projéteis pesavam
em torno de 9 a 10 g1• A primeira convenção a proibir o uso
dos projéteis expansivos em guerra foi realizada em 1899, na
cidade de Haia.
A maior eficiência dos cartuchos modernos deve-se à
descoberta da nitrocelulose, que gera menos fumaça e muito
mais força expansiva, além de ser possível dosar sua veloci-
dade de queima pelo tamanho e pela forma de seus grãos 3•5•6 •
Esse aumento da velocidade não seria possível sem o revesti-
Figura 15.3. Projétil de fuzil 7,62 mm ao lado de outro usado por mento dos projéteis por uma liga dura de cobre. Sem esse re-
pistola 9 mm. O 7,62 mm tem forma de bote, de modo a ter um com- forço, simplesmente, os cheios da raiação da arma descasca-
portamento aerodinâmico mais eficiente. Ambos são do tipo encamisado riam a parte superficial do corpo do projétil se o chumbo en-
total (FMJ). trasse em contato direto com ela dada a grande velocidade 1•
Os fuzis de guerra modernos, conforme a finalidade de seu
uso, podem ser fabricados para tiros de longo alcance, com
Os projéteis disparados tanto pelos fuzis de guerra quan- calibre de 7,62 mm, e para combates a distâncias mais cur-
to pelos de caça alcançam velocidades muito altas e, por isso, tas, em torno de 100 m ou menos, geralmente com projéteis
são dotados de alta energia. Em termos numéricos, a velo- de 5,56 mm. Os primeiros são mais pesados, usam cartuchos
cidade dos projéteis de arma de fogo deve ser considerada maiores, e seus projéteis de quase 8 g atingem velocidades em
baixa quando inferior a 300 m/s, média daí até 600 m/s, e alta torno de 700 a 800 m/s. Os outros são mais leves, alguns feitos
acima desse limite 3• Assim, quando nos referirmos a projéteis parcialmente em alumínio, em vez de madeira, municiados
de alta energia, estaremos nos reportando aos dos fuzis. com cartuchos menores, mas que disparam projéteis de 3,6 g
a velocidades superiores a 900 m/s. Como são mais leves e
menores, tornam-se fáceis de transportar, e, além disso, o car-
• DADOS HISTÓRICOS regador pode conter maior número de cartuchos 7.s.
Assim que houve o colapso do bloco de nações socialis-
A histó ria das mo dernas armas de guerra é longa, po- tas, acabou a Guerra Fria e a humanidade julgou estar en-
dendo-se dizer que vem desde a invenção da pólvora. As ar- trando numa era de paz e prosperidade, na qual seria pros-
mas de fogo longas eram todas, a princípio, desprovidas de crito o uso de armas de guerra. Mas, de lá para cá, já houve
raiação. Seu aperfeiçoamento pela introdução da raiação do duas guerras na região do Golfo Pérsico patrocinadas pela
cano não correspondeu, de início, a um aumento do poder única superpotência que restou e outra na região da antiga
de fogo, pois em geral eram alimentados pela boca do cano, Jugoslávia. Na realidade, continuaram a existir conflitos lo-
e essa raiação aumentava em preciosos minutos a operação calizados e também intenso contrabando dessas armas para
de car ga . Mas o aumento do alcance efetivo de 100 m para guerrilheiros, terro ristas e organizações mafiosas. Além do
aproximadamente 800 m fez com que esses fuzis fossem indi- mais, a substituição dos fuzis militares por versões mais
cados para determinadas situações de combate. modernas, conforme evolui a indústria bélica, faz com que
Em meados do século XIX, um capitão chamado Minié os tornados obsoletos sejam vendidos para nações subde-
inventou um projétil cônico, feito de chumbo mole, cujo ca- senvolvidas ou para organizações civis de segurança. Mas,
libre era discretamente menor que o da arma e tinha a base ao venderem para uso paramilitar, os fabricantes alteram o
côncava, de modo a que se alargasse ao receber o impacto mecanismo de disparo de modo a transformar a ação au-
dos gases e se ajustasse firmemente à raia ção. Com isso, o tomática em semiautomática, para qu e possam atender às
tempo de alimentação da arma tornou-se bem menor, e a exigências legais regionais7 •
repetição dos tiros, mais rápida 1A. Nessa época, também foi O uso dessas armas em tempos de paz é excepcional. Al-
criado um dispositivo de retrocarga. Os alemães foram os guns países que fazem face a insurreições e levantes armados
pioneiros ao inventarem um fuzil carregável pela culatra, do- presenciam seu efeito funesto. Em algumas comunidades,
tado de um dispositivo em agulha que atravessava a base do a população é apanhada em meio a tiroteios nos quais são
cartucho para tocar uma espoleta situada na base do projétil. empregadas armas tradicionalmente usadas apenas por
O aperfeiçoamento desse mecanismo e a adoção de projéteis soldados.
cilíndrico-ogivais, pois até então eram esféricos, foram ou- Infelizmente, em regiões metropolitanas brasileiras,
tros passos importantes na evolução do rifle ao seu papel de com o no Rio de Janeiro, é frequente traficantes disputarem
arma ideal para a infantaria4 • A velocidade dos projéteis foi territórios para venda de drogas proibidas, travando bata-
aumentada em cerca de 50% ao findar o século XIX, quando lhas em que são usados vários tipos de armas, inclusive fuzis
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 287

e granadas. As favelas, geralmente situadas em morros, por fogo, pode ser dividida em balística interna, balística externa
vezes densamente povoadas, são o seu teatro de operações. e balística terminal. A balística interna, ou interior, é a que
Os moradores das vizinhanças desses morros são acordados estuda a estrutura e os mecanismos das armas e abrange o
em plena madrugada pelo som repetitivo dos disparos des- conhecimento dos propelentes. A externa ocupa-se das tra-
ses fuzis e pelas rajadas dos modelos automáticos contraban- jetórias, dos movimentos do projétil e dos fatores que inter-
deados dessas armas. Vez por outra, vítimas de balas perdidas ferem na sua estabilidade, direção e alcance desde que sai do
acorrem aos hospitais, ou são recolhidas pelos rabecões do cano até encontrar o alvo. A terminal, ou dos efeitos, é a que
Corpo de Bombeiros. No dia 13/12/1995, torcedores do San- mais interessa ao médico-legista, pois os efeitos dos projéteis
tos Futebol Clube, que haviam vindo ao Estádio do Maraca- no ser humano são as lesões"·12 •
nã ver o seu clube disputar uma das semifinais do campeo- A velocidade de queima da carga propelente de um car-
nato brasileiro, erraram o caminho na Avenida Brasil, rumo tucho para arma de fogo pode ser regulada por meio do
a São Paulo, e foram recebidos a bala ao penetrarem inocen- tamanho e da forma dos grânulos da pólvora. Por isso, a
temente nas favelas do Complexo da Maré, situado nas pro- pólvora para os cartuchos usados em armas curtas queima
ximidades da Penha e da Ilha do Fundão, onde fica a Cidade mais rapidamente, de modo a se poder aproveitar ao má-
Universitária. Resultaram em um morto e três feridos. O que ximo a produção e a força expansiva dos gases. Nas armas
morreu recebera um tiro de fuzil AR- 15 na cabeça. de cano longo, deve ser menos rápida, de modo a que con-
Desde então as ocorrências relacionadas com a guerra en - tinue a exercer forte pressão por trás do projétil, ao longo
tre quadrilhas organizadas de traficantes, por exemplo, Co- do cano, mantendo-se a aceleração por mais tempo, a fim de
mando Vermelho, Terceiro Comando, ou entre essas e a Po- obter uma velocidade maior. Isso favorece a construção dos
lícia Militar, têm transformado o dia a dia dos habitantes das fuzis, já que a pressão necessária à obtenção de grandes ve-
grandes áreas metropolitanas em verdadeiro inferno. Já são locidades não precisa ser desenvolvida instantaneamente.
incontáveis as vítimas inocentes desse conflito. Em meados Consequentemente, o reforço da câmara de combustão pode
de 2001, a Praça Saenz Pena, tradicional ponto cultural da ser menor. A redução do comprimento do cano diminui a
Zona Norte do Rio de Janeiro, teve o comércio fechado velocidade do projétil em cerca de 2 a 12 m/s para cada po-
por ordem dos traficantes de drogas dos morros vizinhos. legada amputada9 •
A audácia dos marginais chegou ao ponto de atacar roti- Conforme já visto no Capítulo 11, o potencial lesivo dos
neiramente as viaturas da Polícia Militar. Contudo, sob os agentes mecânicos depende basicamente da sua energia ciné-
auspícios da escolha da nossa cidade para sediar a Copa do tica, que é expressa pela fórmula:
Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o Governo do Estado
E =mv2/2
do Rio de Janeiro vem ocupando militarmente as favelas da
Zona Norte da cidade com o auxílio de carros de combate Desse modo, os projéteis que estamos estudando pos-
dos fuzileiros navais. Nessas comunidades são instaladas as suem grande energia justamente porque ela é uma função
Unidades de Polícia Pacificadora. Como consequência, os ín- exponencial da velocidade. Contudo, para que esse potencial
dices de criminalidade no Município do Rio de Janeiro vêm se realize, é necessário que o projétil transfira sua energia,
caindo de modo significativo nos últimos 5 anos. realizando um trabalho mecânico que se constata pelas de-
formações produzidas no alvo. Pequena fração da energia
cinética é transformada em calor, mas em quantidade insufi-
• ELEMENTOS DE BALÍSTICA ciente para causar qualquer tipo de lesão' 3• A energia cinética
de que são dotados alguns projéteis está expressa na Tabela
A balística é a parte da mecânica que estuda o movimen- 15.1. Segundo Barach9, o rifle mais poderoso é o .475", de caça,
to dos proj éteis e as forças envolvidas na sua impulsão, tra- que dispara projéteis de 32,5 g a uma velocidade de 908 m /s.
jetória e efeitos finais6•9 . O termo deriva da palavra "balista': (Ec de 13.424 j).
uma máquina militar romana destinada a lançar pedras e Ao atravessar a distância que o separa do alvo, o projétil
outros projéteis9 ·'º· No estudo dos projéteis e das armas de sofre a influência de duas forças principais: a ação da gravi-

Tabela 15.1. Energia cinética média de alguns projéteis na boca da arma 1•4•5•9•14•1s.1s
Prol6tll li (g) '(11/1) Ec (JOlll)
38 Sp 10,2 245 307,32

357 Mag 10,2 376 723,84

7,62 mm (AK-47) 7,9 710 1.991,19

5,56 mm (AR-15) 3,6 977 1.718, 15


288 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

Figura 15.4. Esquema da linha de pontaria (1) e da trajetória do projétil (2).

dade e a resistência do ar. A força de gravidade atua puxando


o projétil para baixo, fazendo com que a sua trajetória não
seja retilínea. Desde o momento em que sai da boca da arma,
ele tende a se desviar da linha que representa o prolonga- 1 = 1,40 1 = 0,44
mento do cano, em direção ao solo. Desprezando a resistên-
Figura 15.5. Ofator de forma 1 é menor nos projéteis pontiagudos.
cia do ar, o cálculo por meio de modelos teóricos descreve
uma trajetória parabólica simétrica. Na realidade, porém, a
resistência do ar faz com que ela seja um segmento de elip- pois é uma função exponencial. Sendo constantes os outros
se17. É por causa da influência dessas duas forças que a linha parâmetros, ao dobrarmos o calibre de um projétil estaremos
de mira não pode ser paralela à reta que prolonga a direção reduzindo seu poder de penetração à quarta parte do que
do cano até o alvo. Tem que assumir uma direção que, se possuía antes (22 = 4). Por o utro lado, quanto maior a mas-
percorrida pelo projétil, acertaria um local mais acima com sa do projétil, maior a sua inércia e maio r a sua capacidade
relação ao alvo. Quanto mais distante o tiro, maior tem que de atravessar o alvo. O projétil penetrante por excelência
ser a elevação da linha de pontaria (Fig. 15.4). deve ser delgado, pontiagudo e pesado. Esferas de alumínio
A resistência ao deslocamento do projétil no ar é in- ou de madeira teriam poder de penetração muito menor9•
flu enciada por diversos fatores, os mesmos envolvidos na
resistência que nossos tecidos oferecem à sua penetração no
corpo humano. O principal fator que faz a diferença de re- . ARRASTO
sultado entre uma e o utra interação é a densidade do meio
atravessado. A densidade do tecido muscular é cerca de 800 Representa a força que oferece resistência ao desloca-
vezes maior que a do ar9 • Alguns desses fatores serão anali- mento do projétil. Seu valo r depende, por sua vez, de vários
sados a seguir. outros fatores. É diretamente proporcional à densidade do
meio atravessado, ao valor do fator de forma e ao quadrado
tanto da velocidade quanto do calibre do projétil. Desvios do
• COEFICIENTE BALÍSTICO (CB) eixo do projétil em relação à sua direção de vôo aumentam o
arrasto por oferecerem maior área de contato com o meio. A
O coeficiente balístico representa o poder de penetração frenagem, ou retardo, que um projétil sofre ao atravessar um
do projétil. É expresso pela fórmula: meio é diretamente proporcional ao arrasto e inversamente
proporcional à sua massa. Quanto maior o retardo do projé-
CB = m! I d2
til, maior a quantidade de energia transferida. Desse modo,
em que: um projétil que não transfixe o alvo terá transferido toda a
m = massa, I = fator de forma, d = calibre energia que trazia ao penetrá-lo. Uma comparação entre os
projéteis 7,62 mm do fuzil M-14 e 5,56 mm do M-16 (AR-15)
O fator de forma é um número que expressa o quão pon- pode ilustrá-lo. A 270 m de distância da boca da arma, ave-
tiagudo é um projétil. Seu valor é meno r nos projéteis com locidade do 7,62 mm já foi reduzida em 198 m/s (de 823 para
ponta afilada, tornando-se maior nos de ponta truncada e 625) e a do 5,56 mm, em 32 1 m/s (de 987 para 666). Isso faz
máximo nos de ponta plana, tipo canto vivo. A Figura 15.5 uma redução da energia cinética de 2.675 para 1.543 J no
dá dois exemplos. M-14 e de 1.753 para 798 Jno caso do M-16, menor que a
A equação do CB mostra-nos a impo rtância do calibre energia do projétil do Magnum .357 na boca da arma.A 900 m
do projétil para a avaliação da sua capacidade de penetração, de distância, o M-14 ainda é letal, mas o M- 16 é incapaz de
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 289

perfurar a pele7 • O fator mais importante nesse caso é a mas- Enquanto não adquire estabilidade, ao longo desse es-
sa muito m enor d o projétil do AR-15: 3,6 g contra 7,9 g. paço, o desvio do eixo do projétil, contrabalançad o pelo
m ovimento de rotação, faz com que ele execute m ovimen-
tos periódicos como o de precessão e o de nutação. Ambos
Estabilidade
se assemelham aos m ovimentos que observamos em um
Um projétil tem estabilidade na trajetória quando o seu pião de brinquedo quando o tocam os later almente tentando
centro de massa e o seu centro de pressão estão alinhados to mbá-lo ou quando sua velocidade an gular diminui muito.
com a trajetó ria. Centro de pressão é o ponto de aplicação O movimento de precessão é realizado de mo do sem elhante
das forças de arrasto. Alguns fatores tendem a estabilizar o ao de um lápis sustentado por seu ponto médio, cuja ponta
projétil, como a ro tação em tomo do seu eixo, a sua massa seja deslocada em círculos. No caso do projétil, o fulcro d o
elevada, a posição anterior do centro de massa com relação m ovimento é o seu centro de massa. Se, dentro desse m ovi-
ao centro de pressão e uma densidade baixa do meio atra- m ento, a ponta do projétil descrever círculos menores e mais
vessado. Quando o centro de pressão está situad o próximo frequentes, o desenho dos dois movimentos vistos de frente
à base do projétil e o de massa junto à ponta, ele tende a assumirá uma forma de roseta. Chama-se de nutação o se-
ser muito estável, como nas flechas com ponta metálica e gundo m ovimento descrito, o que se insere dentro do m aior,
haste de madeira. No caso dos projéteis de fuzil, o centro de que é o de precessão6•9·' 3•18 (Fig. 15.7) .
pressão fica mais próximo à po nta do que o centro de m assa Barach refere que o ân gulo fo rmado pelos projéteis de
(Fig. 15.6) . Com isso, há uma tendência a que a turbulência fuzil com a direção de sua trajetória ao longo dos primeiros
provocada pelo atrito com as moléculas do meio faça o pro- 100 m de percurso não chega a ultrapassar 3 graus. Ao co-
jétil desviar-se da linha da trajetó ria, inclinando-se. O que o brir essa distância, o projétil executa um ciclo completo de
impede de ficar de lado é o m ovimento de ro tação que lhe nutação em 3,5 a 6,5 metros 9 . Mas, na realidade, são mais
é conferido pela raiação da arma. Quanto maio r a distância complexos os movimentos do projétil, já que outros fatores
entre o centro de massa e o centro de pressão, m ais estável é o desestabilizado res também atuam no início do seu deslo-
projétil. Assim, os m ais curtos tendem a tombar mais super- cam ento. Quando ainda no interior do cano, o movimento
fi cialmente ao longo do trajeto dentro do alvo9 •13 • 1s. do projétil não é perfeitamente alinhado com o seu eixo. E
Os projéteis de fuzil têm uma velocidade angular em isso se dá porque não há coincidência absoluta do centro de
torno de 3.500 rotações por minuto. Apesar disso, quando m assa com o seu centro de gravidade. Embor a pareça simé-
o projétil penetra em um meio muito mais denso que o ar, trico, o projétil tem discretas irregularidades na distribuição
como a água, que tem densidade cerca de 900 vezes maior, da m assa, que são realçadas pela deformação da sua base no
essa rotação não o impede de tombar. Para que não tombe, é m omento da explosão do cartucho. O não alinham ento d o
preciso um aumento da velocidade de rotação que se expres- centro de massa com o eixo do projétil, associado à rotação,
se pela raiz quadrada da relação entre as densidades dos dois faz com que se pro duza um movimento helicoidal ao longo
meios. Assim, no caso da água em relação ao ar, teria que ser, do cano. E m ais, no m omento em que o projétil sai da boca
no mínimo, 30 vezes mais rápida 18• da arma, os gases que o empurram ao longo do cano, e que
O alinhamento do eixo do projétil com a direção do seu estavam por esse contidos, expandem -se com violência, ime-
deslocamento no ar, que car acteriza sua estabilidade, só é diatamente por trás do projétil, ultrapassando-o por peque-
atingido depois de cerca de 100 m de percurso9• Segundo na fração de segundo. Forma-se, assim, uma força na base
Wood (1964), citado por Hopkinson, a distância da arma em do projétil que tende a empurrá-lo de modo não axial e a
que o projétil se estabiliza é de cerca de 6.000 vezes o seu
calibre 18 • Por exemplo, o projétil 7,62 mm ficaria estável a
45,72 m .
Movimento de precessão

~ii.... ----i1:1>•
p m
M

Movimento de nutação

Figura 15.6. p é o centro de pressão; m é o centro de massa. As Figura 15.7. Análise dos movimentos dos projéteis de armas raiadas.
setas reversas formam um binário, representado pelas forças de arrasto O movimento de precessão é o mais amplo; o de nutação é o menor,
(F.) e de inércia (F1) . Tendem a desviar o projétil da trajetória estável. inscrito nas voltas do maior. M é o centro de massa do projétil.
290 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

d esestabilizá-lo. Acresce que a vibração do cano pelo disparo


e a pressão decorrente do impacto com as primeiras cam adas
de ar tendem a desviar o seu eixo com relação à direção do
seu voo 18 •
O estudo desses aspectos balísticos é indispensável para a
compreensão do comportamento do projétil ao penetrar nos
tecidos animais. Os movimentos descritos são extremamen-
te ampliados ao atravessar o corpo humano, resultando em
perda de estabilidade e tombamento precoce do projétil, o
que se traduz, na prática, por uma aceleração da transferên-
cia de energia para o corpo da vítima. Ondas de pressão Ondas de choque

Figura 15.8. /!is ondas de choque vão adiante do projétil, e as de


pressão o seguem e deslocam os tecidos de modo centrífugo.
• ONDAS DE CHOQUE E ONDAS DE PRESSÃO
Ao ultrapassar a velocidade do som, a interação de um e esmagados pelo contato direto com o projétil é ampliada
avião com o ar leva à formação de ondas de choque que são temporariamente pelo afastamento de suas paredes.
ouvidas como um estrondo e resultam da incapacidade das A duração das ondas d e pressão é m edida em milissegun-
moléculas gasosas de transmitirem as vibrações com a mes- dos, pois é muito maior que a das ondas d e choque acima
ma velocidade com que chegam, o que gera um acúmulo de referidas. Essas ondas de pressão formam-se a reboque do
energia, que depois é liberada d e modo abrupto. Para que projétil5 •9 •19 , e sua velocidade de propagação é de cerca de um
tal fenô meno ocorra em meio líquido, é preciso que a ve- décimo da do projétil9•1º. A Tabela 15.2 resume os dados refe -
locidade do corpo em movimento seja maior que a propa- rentes aos dois tipos d e ondas descritas.
gação do som nesse líquido. O mesmo ocorre nos tecidos
humanos ao serem atingidos por projéteis que se desloquem
a mais d e 1.500 m/s (velocidade aproximada do som no te- • LESÕES PRODUZIDAS PELOS PROJÉTEIS DE
cido muscular)" 19 • ALTA ENERGIA
Para Berlin 13, projéteis d e ponta romba, ou truncada,
podem gerar ondas de choque a velocidades um pouco me- Têm sido os cirurgiões militares, ao longo da história, os
nores. A pressão d esenvolvida por essas ondas pode chegar responsáveis pela descrição dos efeitos lesivos dos projéteis
a 60 ou 100 atmosferas, mas não pro duz danos aos tecidos das armas de guerra. Desde o advento das armas de fogo e do
porque sua duração é extremamente curta, d a ordem de 25 a seu uso em combates, eles têm registrado em seus relatos o
15 ou 25 microssegundos9•18 • As o ndas de choque são gera- progressivo aumento da sua capacidade destrutiva. Não por
das quando o projétil supersô nico toca a pele, e se deslocam acaso, o primeiro grande livro de Medicina Legal ocidental
adiante d ele5•13•19 (Fig. 15.8) . A inocuidade d as ondas d e cho- foi o Traité des Relatoires, d e Ambroise Paré, brilhante cirur-
que é atestada pelo seu uso em urologia para destruir cálcu- gião do exército francês, em 1575. Nele, o autor descreve mi-
los renais sem a necessidade de cirurgia 19 • nuciosam ente as lesões produzidas pelos projéteis esféricos
As ondas de pressão, porém , são diferentes. Resultam do usados pelas armas da época4•2º.
d eslocamento dos tecidos percutidos pelo projétil. O desliza- O s relatos cirúrgicos e a descrição minuciosa feita pelos
mento de partículas do meio ao longo do projétil tende a ser patologistas fore nses das forças armadas que atuaram nas di-
paralelo à sua direção, mas, quando elas esbarram em uma versas guerras que afligiram a humanidade documentaram
curva da sua superfície, afastam-se d e mo do centrífugo. Isso a evolução das armas e do efeito cada vez mais devastador
leva a que se forme uma zona de vazio e de baixa pressão dos seus projéteis. Mas diversos fatores dos campos de ba-
atrás do projétil, embora o d eslocamento d os tecidos se d eva talha prejudicam a análise do efeito terminal dos projéteis.
a o ndas de pressão positivas que chegam a 4 atm9•13•19 • Assim, Em primeiro lugar, não se sabe que tipo de projétil causou
a cavidade permanente representada pelos tecidos lacerados a lesão nem se ele ricocheteou em algum anteparo. E ele-

Tabela 15. 2. Comparação entre as ondas de choque e as ondas de pressão


Clracllrfltlca Ond1 de Prado Ondl de Clloq•
Duração ms µs
Velocidade (v) v/ 10 1.500 m/s
Pressão 4 atm 60 atm
Posição em relação ao PAF atrás e ao lado adiante
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 291

mentos do uniforme, inclusive, podem modifica r as lesões, A avaliação da transferência de energia é feita , no entan-
como capacetes, botas e fivelas. Em segundo lugar, o grande to, de modo diferente pelos diversos grupos de pesquisado-
número de atendimentos pode levar a erros no registro das res. Alguns medem a velocidade de ingresso e a de saída do
lesões e da evolução dos casos, gerando, mais tarde, falsas projétil, calculam a diferença e, assim, a energia cedida para o
conclusões 5. Para determinar, com certa precisão, os efeitos alvo 13·27·33.34.37.3s.42. Outros optam por avaliação indireta e qua-
lesivos de um d eterminado projétil, é necessário elaborar um litativa, por m eio do registro das cavidades deixadas no alvo
protocolo rígido de pesquisa em que as diferentes variáveis e das deformações produzidas no projétil2·' 5·19·3º. O modelo
envolvidas sejam controladas e analisadas cientificamente. que utiliza a diferença de velocidade ao entrar e sair do alvo
Só assim, poder-se-á atribuir certos efeitos a determinadas não pode ser aplicado aos casos em que ocorre fragmentação
características do projétil e da arma investigada. Tais estudos do projétil, pois ele sairá mais leve e, portanto, com menor
são úteis tanto à balística militar quanto à balística forense, energia cinética2. Além do mais, a fragmentação, comove-
em que pese o objetivo diferente de ambas - a primeira aper- remos adiante, aumenta o volume das cavidades e consome
feiçoando a arte de destruir e a segunda visando a identificar parte da energia.
a arma usada, no sentido de punir o responsável6. As mudanças de forma e de trajetória sofridas pelo pro-
jétil no interior do alvo podem ser documentadas com o au-
Estudo Experimental xílio de fontes de raios X que emitem feixes com intervalos
de milionésimos de segundo 11•13·27·33 ·36·37·39, ou com o uso de
A balística terminal dos projéteis de alta energia tem m eios transparentes como a gelatina, associados a câmeras
sido investigada por cientistas forenses e militares, ora usan- cinematográficas extremamente velozes 11 •18·3º· 31·32. Tanto em
do material inerte, ora se valendo de animais de porte mé- um quanto em outro caso, o registro é feito em duas cha-
dio. Entre os diversos materiais inertes disponíveis, alguns pas colocadas em posição ortogonal, de modo a darem uma
são inelásticos como barro 2'·22 , sabão 23·24 .z5.Z6.Z7 e resinas28·29 • noção espacial dos possíveis desvios e/ou fragmentações do
Outros meios comportam-se de modo mais próximo ao projétil. Entre os métodos e técnicas descritos nos trabalhos
que ocorre com os tecidos animais. A gelatina é um bom que revimos, achamos mais barato e mais completo o des-
exemplo1s,19,30,31,32.
crito por Fackler, em 1985 19 . Seu grupo utiliza blocos de ge-
Os simuladores inelásticos têm a vantagem de demons- latina a 10%, m edindo 25 X 25 X 50 cm a uma temperatura
trar de modo permanente o grau máximo de deslocamento d e 4°C, colocados alinhados, de m odo a cobrirem todo o
das partes tocadas pelo projétil em seu trajeto no interior d o
trajeto d o projétil. Depois do tiro, os blocos são cortados
alvo. Por se manterem fixos na posição de distensão, os limi-
ao longo d o seu maior eixo, passando pelo centro do traje-
tes da cavidade d eixada expressam a quantidade de energia
to. No caso de haver fra gm entação, o projétil é recolhido e
cinética transferida ao longo do trajeto e permitem comparar
pesado, e os seus fra gm entos facilmente localizados. Nessa
os efeitos de vários tipos d e projétil. Já a gelatina, que tem
temperatura e concentração, a gelatina tem comportamen-
certa elasticidade e é transparente e friável, mantém o registro
to muito próximo do que ocorre com o tecido muscular.
da cavidade permanente que corresponde ao trajeto e indica,
A transparência da gelatina permite filmagem ultrarrápida
por m eio de fissuras radiadas, o grau de expansão temporá-
que mostra as mudanças de posição do projétil ao longo do
ria dessa cavidade permanente sob a influência das ondas de
pressão. A filmagem por câm eras ultrarrápidas proporciona trajeto. Além disso, o autor faz gráficos em que são plotadas,
uma visão dinâmica da formação e da evolução dessas cavi- em escala de centímetros, a pro fundidade em que se dão as
dades'8·30·31·32. Mas é preciso cautela ao aceitar as conclusões alterações do projétil ao longo do trajeto e suas relações com
desses estudos como válidas para tecidos animais. Os resulta- as cavidades geradas 15·19 .
dos devem imitar da maneira mais fiel o grau de penetração e
a deformação dos projéteis que ocorrem no vivo 5. Lesões de Entrada
Alguns grupos de pesquisadores valem-se de animais
de po rte médio, como cães, ca rneiros e porcos, nos estudos Ao lo ngo dos últimos 15 anos, temos observado nume-
de balística terminal. Alguns autores usam cães pequenos e rosos casos de morte po r projéteis de alta energia, por causa
amarram os do is membros posterio res de modo que o pro- da chamada guerra d o tráfico. Na maioria das vezes, as lesões
jétil atravesse as duas coxas d e um só golpe, o que lhes per- são semelhantes às deixadas pelos projéteis comuns de uso
mite atingir trajeto um po uco maio r, mas ainda insuficiente civil, tanto com entrada perpendicular com o nas entradas
para simular de modo adequado uma coxa humana33·34·35. Os oblíquas (Fig. 15.9 ). Mas Di Maio' d escreve as entradas de
po rcos, usados com frequê ncia pelos pesquisadores escandi- projéteis de fuzil como lesões circulares ou ovais, confor-
navos, ora são pequenos' 3·36•37·38, ora de tam anho m édio 23·39 . me a incidência do projétil seja perpendicular o u oblíqua,
Mas o grupo americano de Fackler, que tem usado suínos com bordas talhadas a pique, com o u sem orla de escoria-
com cerca de 90 kg, ainda prolongou o trajeto por m eio ção, apresentando, com frequência, micro lacerações de até
de blocos de gelatina a fim de não perderem os projéteis40. 1 mm, dispostas radialmente em toda a sua circunferência ou
Carneiros com peso médio de 55 kg foram usados por um em apenas um setor (Fig. 15.10 ). Não se sabe a que atribuir
grupo polonês41. a ausência de o rla de escoriação em algumas dessas feridas.
292 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

Figura 15. 9. Entrada oblíqua de projétil de fuzil, na qual se observa Figura 15.11. Explosão do crânio por ferida transfixante por tiro de
a orla de escoriação excêntrica, semelhante às observadas com os fuzil. Não é possível reconhecer o ponto de entrada nem o de saída.
projéteis de uso civil. Guia 114 da 21 ª DP, de 14/03/95. Caso do IMLAP de 2/9/2008.

projéteis de três fuzis diferentes {7,62 mm M-62 finlandês,


7,62 mm AK-47 russo e 5,56 mm M-16 americano), a dis-
tâncias de 30 me 100 m, encontrou diâmetros maiores nas
feridas causadas pelos disparos a distância mais curta. Atri-
buiu a diferença ao efeito da maior estabilidade dos projéteis
aos 100 m de trajetória. Nos tiros a 30 m, o projétil atingiria
o alvo com uma discreta inclinação do seu eixo, devido aos
movimentos de precessão e de nutação.
O tamanho e a forma das lesões de entrada desses projé-
teis podem variar de acordo com a região do corpo atingida.
Nas regiões anatómicas em que se encontra osso no plano
subcutâneo, como no crânio e na região esternal, a resistên -
cia óssea faz com que o projétil tenha grande parte da sua
Figura 15.10. Entrada de projétil de fuzil 7,62 mm. A borda tem energia transferida de modo abrupto logo na entrada. Di
microlacerações radiadas e é pouco escoriada. Esse detalhe foi descrito Maio' afirma que qualquer coisa que altere a estabilidade
por Di Maio12. Guia 323 da 5ª DP, de 18/11 /97. do projétil na sua entrada tende a ampliar muito a ferida.
Exemplifica com o fato de que entradas no setor occipital
são muito mais amplas e estreladas do que as que ocorrem
A forma pontiaguda do projétil faz com que o o rifício na região temporal, po r causa da espessura maior da calo ta
de entrada seja menor que o projétil, na maioria dos casos. craniana no occipital. Para esse autor, as lesões do crânio
Mas há fatores que podem torná-lo maior. A velocidade de podem ser tão intensas a ponto de serem chamadas de ex-
impacto é um dos principais. Estudos feitos por Wang34 e plosivas. Nos tiros dados nessas regiões com osso, há uma
Liu 33 em cães de 15 -20 kg, alvejados a uma distância de 10 m transferência muito rápida da energia, que vem a distender
com projéteis de 7,62 mm e 5,56 mm, demonstraram que o a pele do o rifício de entrada, promovendo uma ferida "ex-
aumento da velocidade do 7,62 correspondia a um aumento plosiva", lacerada, por vezes estrelada. As feridas por pro-
do diâmetro do orifício de entrada que chegava a ultrapassar jéteis de fuzil na cabeça podem ser tão ampliadas por esse
o do projétil, enquanto a redução da velocidade do 5,56 fazia fenómeno, que impossibilitam a distinção entre a entrada e
com que diminuísse o diâmetro da entrada até valores bem a saída' (Fig. 15.11 ).
m enores que o do projétil. Fackler28 fez disparos de proj éteis No Rio de Janeiro, o perito-legista José Carlos Esperança
maciços de latão com a mesma forma dos de 5,56 mm con- documento u uma entrada de projétil 5,56 mm no terço su-
tra a coxa de carcaças de porcos de 90 kg a fim de estudar os perior da região esternal, com aspecto semelhante ao de uma
efeitos do aumento da velocidade e verificou que o diâmetro saída. O projétil foi encontrado deformado e fragmentado
da entrada era de 5 mm a 963 m/s e de 7 mm a 1.585 m/s. na região dorsal (Figs. 15.12 e 15.13).
A distância do tiro também influencia o diâmetro da Projéteis de alta velocidade com a ponta romba, truncada
ferida de entrada. Tikka 38, estudando os efeitos locais dos ou deformável, como os usados por rifles de caça, interagem
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 293

Para se estudar a influência da área de contato entre o


projétil e o corpo, é preciso ter certeza da extensão dessa área
em cada projétil pesquisado. Para isso, o melho r é o emprego
d e projéteis esféricos, que sempre tocam uma área circular
igual ao seu diâmetro. Além disso, tal área não se modifica
com os movimentos do projétil ao longo da trajetó ria. Vários
autores têm adotado esse modelo, usa ndo como alvo blocos
de gelatina 15•18.3°·43 ou animais 10. 28 •35•31>.44 • Os trabalhos feitos
com gelatina prestam-se mais ao estudo da cavidade tempo-
rária e serão apreciados mais adiante. Os realizados em ani-
m ais permitem visualizar os efeitos das mudanças de diâme-
tro e de velocidade dos projéteis sobre a forma das entradas.
Pesquisadores chineses 10.44 fizeram disparos de esferas de
aço d e 3,175 mm, 4,763 mm, 5,56 mm e 6,35 mm de diâme-
Figura 15.12. Ampla entrada de projétil de fuzil AR-1 5 no terço su- tro contra as coxas de cães d e 15 a 20 kg, a velocidades dife-
perior da região esternal. O aspecto lembra uma lesão de saída, mas rentes, chegando próximo à do som nos tecidos (1.500 m/s).
não havia entrada que a justificasse. Gentileza do Dr. José Carlos Pando Observaram que os diâmetros da entrada e da saída eram
Esperança, do IMLAP. semelhantes entre si e iguais ao diâmetro da esfera quando
a velocidade ficava em to rno de 500 m!s. Conforme aumen-
tavam a velocidade, havia um aumento do diâmetro da en-
trada, que se tornava maior que o da saída. Nas velocidades
mais altas, a ferida d e entrada tornava -se estrelada, de bordas
serrilhadas, e bem maior que a projétil (esferas de 6,35 mm
a 1.285 m /s produziram entradas de 31 mm X 28 mm ). Com
uma mesma quantidade de energia cinética de impacto, as
esferas menores causaram dano maior, embora com menor
penetração, em função da sua velocidade. Como já vimos,
o poder de penetração (coeficiente balístico) é diretamente
proporcional à massa do projétil. Tian-Shun42 explica o fato
com base na frenagem que a esfera sofre logo no início do
trajeto tecidual, o que lhe reduz drasticamente a energia ci-
nética. O trajeto deixado assume a fo rma de um cone alon-
gado, com a base voltada para a entrada e a ponta para a saí-
Figura 15.13. o projétil à esquerda foi encontrado no dorso doca- da. Quanto maior a velocidade, mais larga e rasa é a lesão de
dáver que apresentava a ferida da Figura 15.12. A seu lado está um entrada. Esferas de 3,2 mm a 1.000 m/s produziram entradas
projétil de pistola 9 mm para comparação. É comum que projéteis de maiores que a d os projéteis de 7,62 mm cilíndrico-cônicos.
fuzil calibre 5,56 mm sejam encontrados assim deformados quando não Fackler28 demonstrou a importância da forma dos projé-
abandonam o corpo, mesmo que não tenham atingido qualquer osso. teis de alta velocidad e na morfologia das lesões produzidas
em carcaças de porcos. Fez disparos a 3 m de distância, usando
três tipos de proj éteis: esferas de 6 mm, cilindros de 5,56 mm
de modo diferente co m os tecidos animais, ao contrário do de altura e 5,56 mm de diâmetro, ambos de aço, e projéteis de
que acontece com os usados em armas de guerra, que são latão maciço feitos em torno, com forma idêntica à dos de ca-
cilíndrico-cônicos e totalmente encamisados. Tais pontas fa- lib re 5,56 mm do fuzilM -16,atuando ora pela ponta, o ra pela
zem com que o coeficiente balístico seja menor, reduzindo o base. No caso das esferas, a velocidade foi crucial. A 764 m/s
seu poder de penetração. Por outro lado, aumentando a área o orifício de entrada foi puntiforme; a 1.147 m /s, uma elip-
de contato, fazem com que a transferência de energia se tor- se de 15 mm x 8 mm; a velocidades acima de 1.420 m/s, a
ne muito maior desde a entrada. O resultado disso é seme- ferida tornou-se estrelada, até atingir 100 mm x 75 mm a
lhante ao que ocorre quando o aumento da transferência de 1.639 m/s. O cilindro teve comportamento semelhante. Já os
energia d eve-se à presença d e osso sob a pele. Em ambas as projéteis de latão, ao incidirem pela base, produziram lesões
situações, a ferida d e entrada é ampliada pelo enorme fluxo estreladas irregulares, com diâmetro máximo de 80 mm a
de transfer ência de energia que antecipa a formação de uma 960 m!s e de 180 mm a 1.556 m/s. Contudo, ao penetrarem
cavidade temporária. Conforme veremos mais adiante, no d e ponta, conforme o uso convencional dos projéteis d e fu-
estudo do trajeto dos projéteis de alta energia, os tecidos são zil, produziram lesões de 5 a 7 mm de diâmetro.
deslocados violentamente pelas ondas de pressão e formam A Tabela 15.3 resume os dados referentes às entradas de
essa cavidade nos planos mais profundos. projéteis de alta energia.
294 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

Tabela 15. 3. Resumo das entradas de projéteis de alta energia

ProJttll Velocldlde (111/1) Anl•I (q) Enlrldl (mm) DlltlnCll (m) Autor (Ano)
7,62 mm 959 Cães (15 a 20) 10,9 20 Wang (1982)
955 Idem 9,44 20 Liu (1982)
884 Cães(?) 7,5 ? DeMulh (1966)
725 Cães (15 a 20) 7,23 20 Wang (1982)
721 Idem 6,18 20 Liu (1982)
Usual Porcos (25 a 30) 7,28 30 Tikka (1982)
Usual Idem 6,25 100 Idem
Usual Cadáver 7 Longa Di Maio (1983)
517 Cães (15 a 20) 6,28 20 Wang (1982)
513 Idem 6,18 20 Liu (1982)
5,56 mm 1.585 Porcos (90) 7 3 Fackler (1988)
940 Cães (15 a 20) 5,97 20 Wang (1982)
929 Idem 5,41 20 Liu (1982)
Usual Porcos (25 a 30) 6,04 30 Tikka (1982)
Usual Idem 5,78 100 Idem
963 Porcos (90) 5 3 Fackler (1988)
711 Porcos (15 a 20) 5-41 20 Wang (1982)
716 Idem 5,05 20 Liu (1982)

Trajeto: O Fenômeno da Cavitação pulso dado aos tecidos vizinhos à cavidade permanente e,
consequentemente, maior o volume da cavidade temporária.
O trajeto dos projéteis de alta energia difere do deixado Desse m odo, projéteis deformáveis, que transferem rapi-
pelos projéteis comuns por causa da maior potência das on- damente a sua energia aos tecidos, são capazes de produzir
das de pressão que produzem. Como já referimos, os projéteis cavidades temporárias significativas, capazes de ampliar o
em geral rompem os tecidos e formam um túnel cujas pare- dano representado pela cavidade permanente, mesmo sem
des são deslocadas por essas ondas em direção radial e sentido penetrar em alta velocidade. Os diversos fabricantes de muni-
centrífugo. Quanto maior a energia transmitida aos tecidos, ção têm desenvolvido projéteis construídos exatamente com
maior a potência das ondas de pressão. No caso dos projéteis esse fim, ou seja, ampliar o fluxo de energia para aumentar o
de alta velocidade, o fluxo de energia pode ser tão intenso que seu "pod er de parada". Conforme a velocidade de expansão
as paredes da cavidade em túnel são de tal modo deslocadas, do projétil, seu poder de penetração pode diminuir. Alguns
que o resultado simula o efeito de uma explosão do projétil tipos de projéteis expandem-se, ou fragmentam-se, tão ra-
dentro do corpo. Amato relata que Huguier, em 1848, exami- pidamente que penetram menos em função do esgotamen-
nando soldados feridos, foi o primeiro a chamar a atenção to precoce de sua energia cinética. Ajustes técnicos podem
para esse aspecto nas lesões por certos projéteis d e fuzil 11 • Isso equilibrar o grau de penetração e de expansão dos projéteis.
desencadeou pro testos de combatentes que julgavam estar Entre os projéteis com grande capacidade expansiva, pode-
sendo vitimados por projéteis fabricados com carga explosi- mos incluir o Glaser Safety Slug, o Hydra -Shock e o Silvertip.
va. Mas o primeiro autor a atribuir o fenómeno à formação O último, na versão fabricada na d écada de 1980, é capaz
de uma cavidade temporária foi Woodruff, em 1898 3•11 •30 • de causar uma grande cavidade temporária, em prejuízo da
A cavidade temporária é o resultado do alargamento da penetração. Essa particularidade fazia parte do conceito de
cavidade permanente sob a influência das ondas d e pressão. tiro defensivo da polícia.
É tanto maior quanto maior o fluxo de energia. Mas logo se Contudo, em 1986, agentes do FBI usaram cartuchos
retrai sob a influência da elasticidade dos tecidos. Tem sido Silvertip 9 mm Parabellum ao trocarem tiros com dois as-
associada exclusivamente aos projéteis de alta energia. O saltantes de banco fortemente armados. Apesar de cercados,
que é um erro. Qualquer projétil pode produzir as ondas de os bandidos conseguiram matar dois policiais e ferir outros
pressão responsáveis pela sua formação, dependendo apenas antes d e serem m ortos. O exame do corpo de um deles mos-
da velocidade de transferência da energia aos tecidoss.s.9 .ii, i s . trou que um projétil d esse tipo havia atravessado o seu braço
Quanto mais rápido o fluxo de energia cinética, maior o im- e penetrado no tórax, parando no pulmão. Grande parte da
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 295

energia do projétil fora desperdiçada na musculatura dobra- meios inelásticos, como o sabão' 3·24·25 •26·27 ·37·39, demonstram
ço, o que impediu que atingisse o coração'*. bem a forma e o volume máximo que ela atinge. Já o método
Pudemos comprovar a formação da cavidade temporá- do perfil lesionai, criado por Fackler' 5·28 , evidencia muito bem
ria pelo projétil Silvertip da Winchester em trabalho expe- a formação, a evolução, a posição e as dimensões da cavidade
rimental feito no Campo de Provas da Marambaia, Rio de temporária em blocos de gelatina.
Janeiro, em 2002, autorizados pelo seu comandante, General A dinâmica das cavidades tem sido documentada em ani-
Fernando Veloso Manguinho (Figs. 15.14 e 15.15 ). mais por meio de chapas radiográficas obtidas em posições
A distensão dos tecidos pela cavidade temporária, entre- ortogonais, impressionadas por fontes de raios X emitidos
tanto, só deixa lesões visíveis à macroscopia quando a velo- a intervalos regulares de 10-6 s. A repetição dos disparos dos
cidade dos projéteis é média ou alta (acima de 300 m /s). O emissores de raios permite acompanhar o comportamen-
sinal mais importante é a infiltração hemorrágica dos tecidos to do projétil no trajeto intramuscular e registrar a cavita-
adjacentes ao trajeto. É causada pela rotura de vasos de pe- ção'3·18·27·33.34·36·37'42. Recentemente, foi proposta a associação
queno calibre. Essas lesões representam, na realidade, o resul- do estudo em blocos de parafina, conforme proposto por
tado da ação contundente das ondas de pressão. No caso dos Fackler16, com o emprego de material opaco aos RX (sulfa-
projéteis de alta velocidade, as ondas de pressão, como vimos, to de bário) . A área a ser alvejada pelo projétil recebe um
são muito mais potentes. Dependendo do órgão e dos tecidos pequeno tubo que contém o contraste. Ao ser atravessado
atingidos, a cavidade temporária pode ser devastadora. pelo projétil e se formar a cavidade temporária na gelatina, o
meio de contraste penetra nas fendas produzidas na gelatina,
Estudo Experimental da Cavidade Temporária o que permite registrar nos filmes toda a distensão gerada
pela cavitação e visualizar sua forma em 3D, ao se fazer o
Vários grupos de pesquisadores têm-se ocupado do estudo
exame radiológico por tomografia computadorizada48 .
experimental da cavidade temporária, ora em material iner-
te2.13.15.1s.19.22.37.39.46, ora em modelos animais'3.33.34.36,37.38.39.40.4I.42.47. Os autores que usam animais valem-se de meios indi-
retos para determinar a extensão atingida pela cavidade
Entre os estudos realizados com material inerte, os que usam
temporária. Alguns fazem a remoção cirúrgica e pesam os
'Segundo Oliveira, JAV em http://www.geocities.comltiropoliciaVstopwer/ tecidos considerados desvitalizados' 3.2 3·24·26.3 3·34·36.39·42 . Mas a
fbi.html [Captado em 27/06/2002).
avaliação quantitativa por esse método é passível de severa
objeção, em face do aspecto subjetivo da observação feita
pelo cirurgião 5A0. A fim de reduzir a subjetividade, alguns au-
tores injetam tinta nanquim nos vaso s nutridores dos tecidos
para auxiliá-lo s na delimitação das margens de ressecção. E
removem apenas os tecidos que não captam a tinta34.42.
Por meio desses métodos, foi possível analisar a cavidade
temporária sob vários aspectos e descrever suas característi-
cas principais.

Figura 15.14. Dois projéteis .38 SPL+P Silvertip recolhidos de massa


plástica balística. As jaquetas de alumínio apresentam abertura em Figura 15.15. Visão da cavidade deixada na massa plástica pelo pro-
pétalas e os núcleos de chumbo expandidos são vistos abaixo. Foto jétil .38 SPL+P Silvertip. Percebem-se, nas paredes da cavidade, sulcos
proveniente de trabalho experimental realizado pelo autor e colaborado- helicoidais que vão da sua borda até o fundo, onde está um projétil
res no Laboratório de Balística do Campo de Provas da Marambaia do expandido. Tais sulcos são devidos à rotação do projétil. Mesmo trabalho
Ministério da Defesa, no Estado do Rio de Janeiro45. referido na Figura 15.14.
296 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

Forma e Volume Ragsdale28, usando vários tipos de munição, verificou que os


dados não eram muito confiáveis, ao comparar as previsões
Conforme já referimos, o tamanho e a localização da
feitas e as medições diretas obtidas a partir de filmagem com
cavidade temporária dependem, basicamente, do fluxo de
câ mera ultrarrápida (cerca de 8.000 quadros por segundo ).
energia cinética para os tecidos, ao longo do trajeto. Projé-
Alguns autores admitem que a cavidade temporária possa
teis pontiagudos e totalmente revestidos por ligas duras de
ter diâmetro que ultrapasse 30 vezes o calibre do projétil 1·30,
cobre, como os de guerra, penetram bem alinhados com a
outros são mais restritivos e calculam que não chegue a 13 23.
trajetória. Como são estáveis, costumam produzir um trecho
O diâmetro máximo atingido varia em função da velo-
inicial do trajeto, chamado de colo, em que há pouca trans-
cidade e da resistência tecidual à distensão. Para um mesmo
ferência de energia e no qual a cavidade temporária é pouco
nítida. Esse colo é mais longo nos projéteis de 7,62 mm do projétil, num mesmo meio, é proporcional à velocidade21·47.
que nos de 5,56 mm, em função da maior estabilidade do A distensão, por sua vez, depende da quantidade de tecido
primeiro9·13·15·19·27·49 . Isso é importante quando se examina fe- ao redor da cavidade permanente17·23·26, bem como de sua
rida transfixante de braço ou de perna e se acha pouca des- complacência 1. Mas isso não quer dizer, necessariamente,
truição dos tecidos19. que quanto maior a distensão, por conseguinte o volume da
Depois do colo, o projétil começa a tombar, oferece aos cavidade temporária, maior o dano aos tecidos. Há tecidos
tecidos uma superfície de contato maior, sofre grande au- muito elásticos, como os dos pulmões, que absorvem bem a
mento do arrasto e transfere quantidades enormes de ener- energia sem grandes roturas (Fig. 15.17). Já os do fígado e dos
gia. Nesse trecho do percurso, ocorre um alargamento da ca- rins, por serem mais friáveis, são gravemente lacerados5·8·9·11 •15
vidade permanente, que acompanha o grau de tombamento. (Figs. 15.18 a 15.22). O coração pode ser estourado pela pas-
Mas é a cavidade temporária que sofre o maior alargamento. sagem do projétil, principalmente se estiver no fim da diástole
Seu diâmetro é máximo no ponto em que o projétil assume (Fig. 15.23). As feridas no crânio costumam apresentar aspec-
posição perpendicular ao trajeto. Logo após, com a redução to explosivo por causa da formação da cavidade temporária
da velocidade e o realinhamento do projétil, diminuem gra- dentro de um estojo rígido 1(Figs. 15.24 e 15.25).
dualmente a transferência de energia e, assim, o diâmetro da A fragmentação do projétil aumenta o volume da cavida-
cavidade9·13·15·19 . O fato de poder girar até 180° nesse realinha- de temporária. Ocorre quando ele é construído para esse fim,
mento explica a deformação da base de projéteis que percu- ou quando penetra com velocidade muito alta. Os de guer-
tem o osso 19. Tal fato é relevante do ponto de vista pericial. ra, em geral, não se fragmentam. Mas os de calibre 5,56 mm
Vista de lado, a forma mais comum da cavidade temporária podem vir a se fragmentar. O usado pelo fuzil AR- 15 tem
é obervada na Figura 15.16. uma tendência a tombar precocemente ao longo do traje-
A forma da cavidade tem sido visualizada tanto nos es- to, sofrendo maior estresse mecânico, que o faz dobrar-se
tudos feitos com material inerte, tais como barro 16 ·21·22 , sa- transversalmente e expelir o seu núcleo d e chumbo. Quando
bão13,24,26,27,37,39, gelatina2.1s,1s.1 9,29,31,46 e água49, como nos reali- recolhidos, mostram ponta intacta e a base rompida 1·2·5·9. O
zados em animais13,33,34,36,37,38,39,40,41,42,47. projétil do fuzil russo AK-74 costuma fragm entar-se ao lon-
Em geral, os autores calculam o diâmetro da cavidade go do trajeto e mudar de direção. Tal fato pode ser atribuído
tempo rária a partir das fissuras da gelatina que se irradiam à sua construção, já que apresenta um espaço interior vazio
perpendicularmente a partir da cavidade permanente. Mas entre o seu núcleo de aço e a ponta do revestimento de latão.

-[ ~ c:::I
'

Ocm 30 cm 60 cm
Figura 15.16. Perfil da lesão por projétil de fuzil 7,62 mm OTAN em
bloco de gelatina. A cavidade temporária é de cor acinzentada; e a
permanente, de cor branca, a que contém o projétil. Há uma porção
inicial, o colo, em que ambas as cavidades são discretas. Quando o Figura 15.17. Perfuração pulmonar por projétil de alta energia. A
projétil começa a tombar, alarga a cavidade permanente e libera quan- lesão é semelhante às deixadas por projéteis comuns. Forma-se um
tidades enormes de energia, ampliando consideravelmente a cavidade túnel de paredes infiltradas por sangue, com entrada e saída delimitadas
temporária. Adaptado de Fackler15• por tecido hemorrágico em relevo. Guia 105 da 31ª DP, de 28/05/98.
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 297

Com o impacto no alvo, o núcleo desloca-se para a frente, dos pela mesma arma, que diferiam apenas pela ponta, que
deforma o projétil e o desestabiliza. O trecho do trajeto em era deformável ou n ão. Verificou que o volume da cavidade
que isso ocorre é aquele no qual as cavidades permanente e deixada pelos deformáveis chegava a 40 vezes o da causada
temporária têm maior diâmetro 30• pelos de uso militar9 • A cavidade permanente acompanha o
Em meados da década de 1970, a fábrica Remington alargamento da cavidade temporária resultante da fragmen-
criou uma munição de calibre .30" chamada de accelerator. tação15·19. Fackler admite que os fragmentos metálicos sec-
É formada por um projétil de calibre 5,56 mm, de ponta cionam as fibras musculares perpendicularmente ao trajeto.
mole, envolvido por uma bucha plástica, de calibre maior, Segundo afirma, quando se dá a distensão dos tecidos pela
que se ajusta ao cano e às raiações do fuzil 7,62 mm. Assim, cavidade temporária, são sequestrados segmentos de tecido
a velocidade atingida pode chegar a mais de 1.200 m/s e o que se destacam dos feixes musculares e caem para dentro da
projétil tende a se fragmentar ao atravessar as partes moles, cavidade permanente, que, por isso, fica ampliada 2•19.
ampliando as lesões'.23 . A localização da cavidade temporária ao longo do trajeto
Barach refere que De Muth (1966) comparou as cavida- pode ajudar a determinar o sentido de um tiro transfixan-
des deixadas por projéteis de mesmo calibre e peso, dispara- te, desde que se tenha conhecimento do tipo de projétil que

Figura 15.18. Fígado com numerosas roturas de direção perpendi-


cular à sua borda, em ambos os lobos. Há intensa infiltração hemorrá-
gica e coágulos sanguíneos ao redor das alças intestinais. Guia 115 da Figura 15.20. Outro fígado lesado por projétil de alta energia. Oórgão
40ª DP, de 03/10/02. está totalmente estraçalhado, como se houvesse explodido uma bomba
em seu interior. Guia 11 Oda 37ª DP, de 18/05/99.

Figura 15.21. Ferida transfixante por projétil de alta energia na


região lombar direita. A entrada está situada na região raquiana e a
saída na altura da loja renal. O maior diâmetro da saída acompanha
Figura 15.19. Aspecto do fígado da Figura 15.18 depois de removido as linhas de força da região. A escoriação irregular relacionada com a
da cavidade abdominal. A cavidade temporária como que explodiu o lobo borda superior da lesão não tem explicação precisa. Mesmo caso da
direito e rompeu alguns setores do lobo esquerdo. Figura 15.18.
298 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

Figura 15.24. Ferida de entrada de projétil de alta energia na transi-


ção entre as regiões mastóidea esquerda e occipital. Ocrânio apresenta
depressão irregular. Pela palpação, percebia-se fratura cominutiva.
Mesmo caso das figuras precedentes.
Figura 15.22. Aspecto do rim do mesmo indivíduo da Figura 15.18.
O órgão está explodido no seu terço médio. No polo inferior há nume-
rosas lacerações superficiais que lembram um mecanismo de distensão.
É possível que tanto as lesões hepáticas como as renais tenham sido
produzidas pelo mesmo projétil.

Figura 15.25. Aspecto da saída do projétil que penetrou pela ferida


da Figura 15.24. A ferida tem forma irregular, vai da linha sagital do
Figura 15.23. Coração do mesmo indivíduo cujo fígado foi mostrado couro cabeludo até a implantação da orelha direita, e por ela saem
na Figura 15.18. Visto pela face anterior, revela ampla rotura do ventrí- fragmentos ósseos, tecido nervoso e retalhos das meninges. Houve
culo esquerdo, que interessa o septo interventricular. como que uma explosão do crânio.
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 299

causou a lesão. Quando situada logo no início do trajeto, sem

~
o colo, como costuma ocorrer com os projéteis expansivos,
po de servir para indicar de onde veio o disparo 15 •19 .
CT ...
Duração e Pulsação
Como já referimos, os tecidos deslocados pelas ondas
de pressão são comprimidos e acumulam parte da energia
como se fossem uma m ola, na dependência da sua elastici-
dade. Quanto m aior a elasticidade, maior a capacidade de
reação. Assim, logo após a distensão máxima da cavidade
temporária, que se dá cerca de 2 a 4 ms após a passagem do
projétil, ocorre uma retração8•18 . A esta segue-se nova dis-
tensão, porém um pouco m enor, de m odo que o resultado
é uma cavitação pulsátil de amplitude decrescente3•9 •13•16•18 • B e
Para alguns autores, a duração total do ciclo é de menos de
10 ms8 •31 ; para outros, atinge de 20 a 30 ms11 •18 • Se o meio fo r Figura 15.26. Em A o projétil começa a penetrar. Em B, já atravessou
a água, pode chegar a 90 ms49 • É claro que isso não se dá em quase todo o membro, deixando uma cavidade temporária atrás de si.
meios inelásticos. Nesse instante, forma-se um anel de elevação da pele ao redor do
As variações da pressão intracavitária agem com o um orifício de entrada. Em C, o projétil já saiu e a cavidade começa a co-
sistema de fole com relação ao ar exterior. Filmagens ul- lapsar, expulsando material do seu interior. Logo após, torna a se expan-
dir e aspira material do exterior para dentro da ferida, repetindo o ciclo
trarrá pidas demonstram tanto a expulsão de fragmentos de
várias vezes, com amplitudes decrescentes.
tecido pelos orifícios da ferida como aspiração de materiais
contaminantes para dentro d o espaço cavitário. Hopkinson e
Marshall 18 transfixaram a coxa de um membro inferior hu- • SAÍDAS
mano amputad o, com um projétil de alta velocidade, e fil-
maram a sequência de eventos desde a penetração até pouco Os projéteis de fu zil são construídos para transfixar o
depo is da saída. Descrevera m uma invaginação da pele no segmento do corpo humano que fo r atingido, a menos que
ponto de penetração até se dar a perfuração. Assim que o se fragm entem por se chocarem com algum osso, ou espon-
projétil atravessa os planos musculares, a cavidade temporá- taneamente, como é possível aco ntecer com os de 5,56 mm.
ria neles fo rmada faz uma tumefação das partes m oles, que Segundo Hopkinson, se os projéteis mantivessem a sua esta-
form am um anel elevado ao redo r d o orifício, de modo que bilidade ao longo do trajeto, produziriam saídas um pouco
esse fica em zona de relativa depressão. O deslocamento cen- menores que as entradas 18• Porém, não é isso o que acontece.
trípeto dessa tumefação faz com que as bordas do o rifício se- Ao longo do trajeto, como já vimos, os projéteis, por sofre-
jam, a seguir, elevadas e, logo após, evertidas. Nesse m omen- rem desvios de eixo e de trajetória, costumam sair de lado ou
to, o colapso da cavidade temporária ejeta partes de tecido e pela base, o que amplia o tamanho da lesão de saída.
líquidos para o exterior através dos orifícios de entrada e de A fo rma e o tamanho das saídas variam sob a influência
saída (Fig. 15.26). de vá rios fatores. Talvez o mais importante seja o compri-
No momento em que ocorre a distensão dos tecidos que mento do trajeto. O exame da Figura 15.16 mostra que, nos
formam a cavidade tempo rária, verifica-se uma queda da primeiros 10 cm do trajeto, ainda não há uma cavidade tem -
pressão intracavitária, o que produz evaporação da água do porária significativa. Aos 30 cm , porém , ela tem diâm etro
meio e aspiração de ar para o interior da ferida pelos orifícios máximo, para ir diminuindo à medida que o projétil pros-
de entrada e saída, se houver. A cavidade vem a ser ocupada segue em sua trajetória, até desaparecer. Swan3, observando
pela mistura d o ar que entra com o vapor de água3•13•18• Isso os trajetos produzidos em suas experiências, chegou à mes-
faz com que as feridas por projéteis de alta energia sejam ma conclusão que o leitor já deve ter imaginado. O tama-
contaminad as por fragm entos de ro upa e outros elem entos nho d as lesões de saída depende do plano em que ela se situe
relacionados com a pele3•13•18 •44•47• no trajeto. Se o segm ento do corpo for muito delgado, por
Os projéteis de arma de fogo, seja qu al for sua veloci- exemplo, o braço, e o projétil não tocar no esqueleto, não há
dade, não se aquecem muito ao atravessarem o ar e os teci- tempo para que tombe e produza uma cavidade temporária
dos. Assim, não há uma esterilização de sua superfície. As importante (Fig. 15.26). Mas, se o segmento atravessado for
bactérias presentes são semeadas ao longo do trajeto. Tal como a coxa, pode ser muito grande, pois o plano da pele na
fato ficou demonstrado em um trabalho no qual se pince- saída pode coincidir com o de maior diâm etro da cavidade
lou suspensão de bactérias na ponta de projéteis que fo ram temporária (Figs. 15.27 a 15.29). O mesmo pode acontecer
dispara dos contra blocos de gelatina esterilizada própria nas feridas cervicais (Figs. 15.30 a 15.32). As saídas situadas
pa ra cultura. Apareceram colônias bacterianas ao longo do no tronco podem ter diâm etros variados, na dependência da
trajeto 18 • trajetória do projétil antes de sair (Figs. 15.33 a 15.35 ).
300 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

Quando os segmentos mais delgados têm o esqueleto


atingido pelo projétil, a saída vem a ser maior do que seria
caso os ossos não fossem lesados (Fig. 15.36). O alargamento
da lesão decorre dos projéteis secundários, formado pores-
quírulas ósseas e pela antecipação da formação da cavidade
temporária. Mas, quando o segmento corporal é mais robus-

Figura 15.29. Ferida biconvexa, provida de dois ângulos arredonda-


dos nas extremidades, com bordas um pouco rasgadas, que dá saída a
tecido adiposo. Há uma outra bem menor, de direção paralela à maior e
às linhas de força da região. Mesmo caso da Figura 15.18.

Figura 15.27. Saída de projétil de alta energia representada por ferida


estrelada irregular, na face externa do braço. Guia 115 da 21 ª DP, de
14/03/95.

Figura 15.28. Ampla ferida de forma irregular, que dá saída a frag- Figura 15.30. Entrada de projétil de alta energia na região mastóidea
mentos de músculo e tecido adiposo localizada na face interna da coxa esquerda. As bordas do orifício apresentam microlacerações. Guia 118
direita. Guia 487 da 35ª DP de 12/08/02. da 30ª DP, de 07/03/02.
CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia • 301

Figura 15.33. Ferida biconvexa na axila direita, com direção quase


horizontal, lembrando uma boca aberta. As bordas estão escoriadas no
terço médio. Guia 114 da 21 ª DP, de 14/03/95.

Figura 15.31. Saída do projétil que entrou na ferida mostrada na


Figura 15.30. Tem forma biconvexa, com dois ângulos agudos e bordas
um pouco laceradas perpendicularmente.

Ferida 15.34. Ferida de saída biconvexa, com dois ângulos arredon-


dados, na região peitoral esquerda. As bordas apresentam pequenas
lacerações perpendiculares ao maior diâmetro. Guia 121 da 21 ª DP, de
14/03/95.

Figura 15.35. Ferida transfixante do tórax, com entrada na região


Figura 15.32. Base do crânio atravessada pelo projétil que causou costal esquerda e saída na altura do apêndice xifóide do esterno. A ferida
as lesões das Figuras 15.30 e 15.31. Nota-se fratura do andar posterior, de saída tem direção transversal e forma biconvexa, com um ângulo
cujos traços interessam a escama do osso occipital e a parte inferior do agudo em cada extremidade. Parte das cartilagens costais aflora do
temporal direito. interior da lesão. Guia 775 da 4ª DP, de 13/08/72.
302 • CAPITULO 15 Lesões e Morte por Projéteis de Alta Energia

Figura 15.36. Ferida estrelada irregular de saída de projétil de alta Figura 15.38. A abertura dos planos profundos da coxa mostrada na
energia que transfixou a mão direita. No centro da lesão, notam-se Figura 15.37 revela fratura cominutiva do fêmur e infiltração hemorrá-
fragmentos ósseos fraturados. Guia 283 da 37ª DP, de 20/10/98. gica dos planos musculares.

to do 7,62 mm, que tombava um pouco antes de sair. Com


o outro, a mudança era no sentido oposto. Fosse o alvo mais
volumoso, não teriam registrado tais alterações, pois a cavi-
dade temporária teria ficado completamente contida pelos
tecidos do trajeto.
O aumento da distância de tiro, permitindo que o projétil
fique mais estável, faz com que a saída seja menor nos alvos
de pouca espessura, já que isso aumenta o colo do trajeto e
pospõe a cavidade temporária 38 . O mesmo tipo de influência
foi registrado por Scepanovic37, ao aumentar a estabilidade
dos projéteis SS 109 de 5,56 mm pela redução do passo da
raiação da arma de 12 para 7 polegadas, com o resultante
aumento da velocidade de rotação.
Quando há fragmentação do projétil, a saída pode ser
maior ou menor do que a entrada. Se a saída coincidir com
Figura 15.37. Deformidade da coxa esquerda relacionada com ferida a cavidade temporária, será muito grande; mas, se ficar além
de entrada de projétil de alta energia, localizada na face externa da união
do plano da cavitação, a saída de apenas uma parte do projé-
do terço médio com o inferior. Necropsia feita pelo Dr. Celso Lara. Guia
til produzirá uma lesão de área inferior à da entrada.
283 da 37ª DP, de 20/10/98.

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Hygino de C. Hercules

O ser humano está adaptado para viver em uma mistura pressões parciais de cada componente da mistura". A pres-
gasosa, a atmosfera, que exerce sobre seu corpo uma pressão são parcial corresponde à pressão que exerceria qualquer dos
de 760 mmHg ao nível do mar. Apesar de seus aparelhos res- componentes, se estivesse disperso sozinho por todo o espa-
piratório e circulatório estarem preparados para dar o máxi- ço ocupado pela mistura. Além do mais, importa saber que
mo de rendimento nessas condições, guardam certa reserva "a concentração de um gás dissolvido em uma massa líquida
funcio nal, que permite ao indivíduo suportar pressões um é diretamente proporcional à pressão exercida pela fase gaso-
pouco maiores, o u meno res, sem prejuízos para o organismo. sa da mistura líquido-gás''. É a chamada lei de Henry. Signi-
Ultrapassado o limiar de tolerância, surgem distúrbios he- fica que, se aumentar a pressão parcial de um dos gases do ar
mo dinâmicos e ventilatórios, a princípio reversíveis. Aumen- inspirado, sua quantidade dissolvida no sangue aumentará
tando a variação barométrica ainda mais, aparecem, então, na mesma proporção; e que variações para menos também
alterações funcionais e estruturais em diversos tecidos. Po- serão acompanhadas com a m esma intensidade.
demos chamar o conjunto dessas alterações de baropatias, ou
seja, doenças causadas pela pressão atmosférica. Os elemen-
tos de composição antepositivo baro e o elemento pospositi- • BAROPATIAS
vo patia são de origem grega e significam, respectivam ente,
pressão atmosférica e m al, doença, conforme Houaiss'. As alterações provocadas no organismo pela permanên-
Para compreender os mecanismos que atuam nas diver- cia em ambientes de pressão muito alta, ou muito baixa, bem
sas síndromes decorrentes de alterações da pressão ambien- como as decorrentes de variações bruscas da pressão am-
tal, é necessário recordar alguns princípios da cinética dos biental, podem ser englobadas sob a denominação genérica
gases, que é um capítulo particular da Mecânica. de baropatias.
Estão preferencialmente sujeitos a baropatias os indiví-
duos que precisam trabalhar em ambientes pressurizados,
• NOÇÕES BÁSICAS DE CINÉTICA DOS GASES como mergulhadores e mineiros, bem como os que correm
o risco de descompressão de ambientes artificialmente man-
Várias são as leis que determinam o comportamento dos tidos a pressão no rmal, como aviadores. Mas há efeitos ma-
gases nos diversos fenô menos físicos. A lei de Boyle-Mariotte léficos advindos da pressão atmosférica normalmente baixa,
enuncia: "Sob temperatura constante, o volume ocupado vigentes nas grandes altitudes. Dentro das baropatias tam-
po r uma massa de gás é inver samente proporcional à pres- bém são incluídas as alterações produzidas pelas ondas de
são suportada''. Assim, quando dobramos a pressão sobre choque das explosões.
uma massa gasosa, seu volume reduz-se à m etade, desde que Na imensa maioria dos casos, as baropatias são de causa
se mantenha a m esma temperatura. Dalton provou que "a acidental e relacio nadas com o trabalho. Mas as causadas por
pressão exercida por uma mistura gasosa é igual à som a d as explosões tanto podem ser acidentais como decorrentes de

305
306 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

ação criminosa terrorista em tempos de paz. Em conflitos Quando o indivíduo é exposto a atmosferas rarefeitas,
armados, as lesões por explosões chegam a causar maior nú- como as vigentes em grandes altitudes, seu organismo tem
mero de baixas do que os tiros de fuzilou metralhadora. que otimizar o transporte do 0 2 ao longo desse caminho. Os
ajustes fisiológicos são feitos em cada uma das etapas. Assim,
a renovação do ar alveolar é acentuada pelo aumento da am-
• BAROPATIAS DECORRENTES DA plitude dos movimentos respiratórios. O estímulo para tal
PERMANÊNCIA SOB PRESSÕES MUITO BAIXAS 2 vem da excitação de quimiorreceptores localizados em célu-
las dos corpúsculos carotídeos e aórticos, que são sensíveis
A pressão atmosférica normal resulta do peso das di- à diminuição do teor de º2' ao aumento do teor de co2 e à
versas camadas de ar sobre a superfície terrestre. Ao nível diminuição do pH do sangue arterial. Esses corpúsculos são
do mar, corresponde ao peso de uma coluna de mercúrio pequeninos nódulos de tecido neuroendócrino de 2 a 3 mm
com 760 mm de altura, ou seja, 1 atm (atmosfera). Isso sig- de diâmetro, muito vascularizados, localizados na túnica
nifica que, à medida que se atinge altitude maior, diminui adventícia da bifurcação das artérias carótidas e na adven-
proporcionalmente a pressão exercida pelo ar. Em seu livro tícia da porção ascendente da aorta. No caso, respondem à
sobre Medicina das Grandes Altitudes, Heath e Williams2 hipoxia, pois a eliminação do co2não está dificultada nas
reconhecem que não há consenso quanto ao que se deve grandes altitudes.
considerar como grande altitude, mas estabelecem o limite A difusão do 0 2 dos alvéolos para o sangue dos capila-
de 3.000 m, pois é o nível em que indivíduos normais pas- res alveolares depende da espessura das membranas a serem
sam a apresentar sintomatologia relacionada com a queda atravessadas. Essas são representadas pelo epitélio alveolar,
da tensão do 0 2 no ar inspirado. A uma altitude superior o endotélio do capilar, suas respectivas membranas basais,
a 5.800 m, o organismo já não consegue mais se adaptar, bem como o teor de líquido do interstício alveo lar (espaço
entre uma e outra membrana basal). Se houver algum grau
pois a pressão atmosférica está reduzida a pouco menos da
de edema da parede alveolar, aumenta o espaço a ser atraves-
metade de seu valor normal. É o que esses autores chamam
sado e fica prejudicada a difusão do 0 2 (Fig. 16.1 ).
de altitudes extremas.
Quando se é exposto a redução do 0 2 no ar alveolar por
De acordo com a lei de Dalton, a pressão parcial do oxi-
tempo prolongado, a hipoxia do sangue que passa pelos rins
gênio (p0 2) também está reduzida na mesma proporção. Ao
estimula a produção de um hormônio - a eritropoietina - a
nível do mar, ela é de 159 mmHg (20,93% de 760 mm). A
partir das células justaglomerulares (células especializadas,
3.500 m de altitude, com pressão atmosférica de 493 mmH g,
com capacidade de secretar hormônios, situadas no polo
reduz-se para cerca d e 103 mmHg (20,93% de 493), o que
vascular dos glomérulos renais) . Esse hormônio atua na me-
é insuficiente para manter a oxigenação do sangue e dos te-
dula óssea, fazendo com que haja maior produção de glóbu-
cidos em nível satisfatório sem a interferência de mecanis-
los vermelhos para o sangue.A partir daí, ocorre aumento da
mos de ajuste do organismo. Mas o mais importante para a
dosagem da Hb, do número das hemácias e do hematócrito
oxigenação do sangue é a pressão parcial do oxigênio no ar (percentagem ocupada pelas hemácias em um tubo calibra-
alveolar. E esta é ainda menor, pois que se tem que subtrair a do, depois da centrifugação do sangue). Com isso, o sangue
pressão exercida pelo vapor d 'água dentro do espaço alveo- passa a captar e a transportar maior quantidade de 0 2 para
lar, que é de 47 mmHg. Assim, ao nível do mar, a p0 2 alveolar os tecidos. Astrónomos levados ao alto do vulcão Mauna
é, na realidade, de 149 mmHg (20,93% de 713 mm). Kea, no Havaí (4.500 m ), já mostravam elevações significati-
Conforme aumenta a altitude, reduz-se ainda mais a vas desses parâmetros do sangue após 5 dias de permanência.
quantidade de oxigênio do ar inspirado. Além disso, como a Com o retorno ao nível do mar, em cerca de 20 dias, tudo
tensão do vapor de água no ar alveolar não sofre variação, já volta ao normal. É interessante notar que indivíduos que
que depende apenas da temperatura do corpo, grande parte moram em altitudes em torno de 3.000 m desde o nascimen-
da pressão intra-alveolar passa a ser exercida por esse vapor. to não apresentam essa resposta hematológica. O ajuste é fei-
A 12.800 m, é necessário respirar oxigênio puro para manter to principalmente por um aumento da capacidade funcional
em nível satisfatório a pressão parcial desse gás no ar alveolar. dos pulmões e por um aumento do fluxo san guíneo alveolar.
A concentração do 0 2 no sangue que chega aos tecidos de- Mas os que habitam locais a mais de 4.300 m apresentam he-
pende, sucessivamente, do teor desse gás no ar inspirado, da matócrito muito elevado, chegando a 70%, quando o normal
ventilação pulmonar, da difusão dele para o sangue através ao nível do mar é 40 a 45%.
da barreira alveolocapilar e da capacidade d e transporte do Na vigência de hipoxia, o transporte e a difusão do 0 2
sangue arterial. Chegando aos tecidos, o aproveitamento nos tecidos são favorecidos pelo aumento do número de ca-
do 0 2 pelas células fica na dependência da sua difusão atra- pilares que se abrem. Além do mais, principalmente nas cé-
vés da parede dos capilares, do interstício e das membranas lulas musculares, existe uma proteína - a mioglobina - que
celulares. Só depois disso é que alcança as mitocôndrias, or- ajuda molecularmente o d eslocamento do oxigênio para o
ganelas celulares em que será utilizado. Ao longo desse ca- interior das células. Os habitantes das grandes altitudes têm
minho, o 0 2 perde pressão cada vez que tem que ultrapassar teor bem maior de mioglobina nos tecidos do que os do
uma barreira - é a cascata do 0 2• nível do mar.
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 307

Septo alveolar 2

o Espaço
alveolar

o
Espaço
alveolar

c - capilares
3
Figura 16.1. À esquerda, esquema de um septo alveolar. Aparte realçada por um quadrado é a membrana alveolocapilar, e aparece muito ampliada
à direita: 1) epitélio alveolar; 2) interstício; 3) membranas basais; 4) endotélio do capilar alveolar; 5) hemácias. O oxigênio tem que se difundir do
espaço alveolar para a luz dos capilares alveolares, onde estão as hemácias.

Outro ajuste fisiológico à hipoxia é um maior t ónus das Doença das Montanhas (DM)2
artérias e arteríolas pulmonares, aumentando a resistência ao
esvaziam ento do sangue das cavidades do lado direito do co- Costuma aparecer nos recém-chegados, em média, de-
ração. Isso promove disten são do átrio direito, o que propicia pois de 12 horas, mas o tempo pode variar entre 6 a 96 ho-
estímulo para a liberação do chamado hormônio natriurético ras, n a dependência da suscetibilidade individual. O mais
atrial, presente nas suas células musculares. Esse h ormónio comum é que apareça quando se chega aos 3.000 m , mas
tem ação diurética, fazendo o indivíduo perder líquido. pode ocorrer também em altitudes menores, como pouco
Apesar de todos esses mecanismos fisiológicos de defesa, mais de 2.000 m. Heath e W illiams 2 a dividem, conforme o
a possibilidade de o organismo se reequilibrar depende da quadro clínico, em for mas agudas e a forma crónica conhe-
altitude atingida, do tempo gasto n a subida e do tempo de cida como doença de Monge. Entre as agudas, a mais comum
permanência lá. A velocidade ascensional é muito impor- é a forma clássica benigna. São muito menos frequentes as
tante n o aparecimento dos sinto mas agudos da hipoxia. Por formas agudas malignas, com edema pulmonar, edema ce-
exem plo, voos em aviões providos de cabines n ão pressuriza- rebral ou ambos. A diferença fundamental entre as formas
das expõem o pilo to a hipoxias de evolução rápida, sem tem- benigna e maligna é a exist ência de importante distúrbio da
po para acomodação. Nesses casos, costuma-se observar ex- coagulação sanguínea, com forte tendência para a ocorrên-
citação mental, euforia, tagarelice, crises de riso ou de ch oro, cia de tromboses vasculares na forma maligna. Além disso, a
irritabilidade e aparecimento de ideias fixas. Usando cabines primeira pode ser tratada no local em que se acha o paciente,
de descompressão con struídas para fins experimentais, tem mas a remoção para locais mais baixos é imperiosa n as for-
sido n otada dificuldade em obedecer a o rdens mais comple- mas malign as, sob pen a d e se o perder.
xas, efetua r cálculos, executar testes de memória ou analisa r
dados. São efeitos semelhantes aos da embriaguez alcoó-
Forma Clássica
lica leve. A uma altitude simulada de 8.000 m , durante 15 Qu ando se faz uma ascensão a 4.000 m de modo rápido,
minutos, nenhum indivíduo foi capaz de manter estado de su a incidência sobe para at é 75% das pessoas expost as. O
consciência útil para as tarefas mais simples. Mas a escalada sintoma principal é a dor de cabeça. Geralmente de locali-
de montanhas provê tempo suficiente para que o indivíduo zação frontal , é intensa ao ponto de tornar o indivíduo im-
acione seu s mecanismos de regulação. Contudo, a conquista produtivo, podendo ser, ou n ão, associada a embotamento
do Monte Everest (8.800 m ), em 1952, só foi possível graças cerebral. Não se sabe a su a causa, mas já foi verificado que
ao u so de oxigênio suplementa r pelos alpinistas. h á um aumento do fluxo san guíneo cerebral. Melhora com
A incapacidade de adaptação dos recém-chegados às a hiperventilação pulmonar. Outros sintomas comuns são
grandes altitudes, ou a perda dessa adapt ação por parte dos insónia, fotofobia, anorexia, tonteiras, náu seas e dispneia.
seus habitantes, leva ao apareciment o de sinto matologia de Costuma desaparecer com o repouso após 2 a 5 dias. A rea-
gravidade variada conforme as condições enfrentadas. Tais lização de esforços físicos é causa desencadea nte. Por mais
distúrbios são conhecidos como "mal das montanhas" ou paradoxal que pareça, não se pode prever quem apresentará
"doença das montanhas''. o quadro clínico. Exames prévios denotando bom estado de
308 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

saúde não são garantia de imunidade, sendo mais comuns pela boca. Há aumento do som de fechamento da válvula
em jovens do que em pessoas idosas. pulmonar à ausculta cardíaca, aumento da frequência respi-
Não se sabe o mecanismo desencadeador da DM. Con- ratória, que pode chegar a 40/min, taquicardia e diminuição
tudo, parece que há interferência de fatores distintos da da pressão arterial. Por vezes, há febre de pequena intensi-
hipoxia, pois que há um período de latência entre a chega- dade, sem alterações sugestivas de infecção no hemograma.
da à altitude e o surgimento dos sintomas. Uma tendência Os exames revelam aumento acentuado do hematócrito e da
maior do indivíduo a reter líquidos no organismo poderia densidade urinária, sugerindo uma hemoconcentração. A
ter influência, por aumentar a distância entre o ar alveolar e radiografia de tórax evidencia imagens de hipotransparência
o sangue dos capilares alveolares (Fig. 16.1 ) por causa do au- nodulares distribuídas de modo irregular nos campos pleu-
mento do espaço intersticial, o que dificultaria o transporte ropulmonares, sem o predomínio para-bilar que se nota no
do 0 2 para o sangue, com agravamento da hipoxia. Em apoio edema causado por insuficiência cardíaca esquerda. A arté-
a essa teoria está o fato de que foi constatado que pessoas ria pulmonar e seus ramos principais estão dilatados. Com
com atividade menor do hormônio natriurético atrial ao a regressão do quadro clínico, uma nova radiografia mostra
nível do mar têm incidência maior da DM quando expos- aspecto normal após 6 a 48 horas, podendo persistir imagens
tas à hipoxia hipobárica das grandes altitudes. Além disso, residuais dos infiltrados nodulares por até 2 semanas.
as células justaglomerulares renais, já citadas anteriormente, É comum a associação de sintomas relacionados com
produzem uma outra substância, a renina, que é capaz de trombose de ramos das artérias pulmonares com ou sem in-
aumentar a atividade da aldosterona, cuja ação é oposta à do farto pulmonar2.3. A tendência à trombose não fica restrita à
hormônio natriurético atrial, retendo sódio e água. Tais indi- artéria pulmonar e seus ramos. Pode ocorrer em veias perifé-
víduos costumam reter maior quantidade de líquidos. Outro ricas como as das panturrilhas e as que atravessam o espaço
argumento é a eficácia de diuréticos como a acetazolamida subaracnóideo. Também são vistas nos seios da dura-máter.
no tratamento da DM. O exame anatomopatológico dos pulmões revela aumen-
to de volume e de consistência, congestão e eliminação de
Edema Pulmonar das Grandes Altitudes líquido espumoso arejado, róseo, da superfície de corte. Os
brônquios estão preenchidos por essa espuma. Não é raro
É um quadro agudo, de aparecimento brusco, que pode
acharem-se focos de broncopneumonia. Ao microscópio, os
não ter sintomas prévios de alerta. Em alguns casos é tão rá- alvéolos estão ocupados por material proteico de composi-
pido que o indivíduo parece estar-se afogando em seus pró- ção e forma semelhantes ao que se encontra em recém-nasci-
prios líquidos, com sons que lembram gargarejo. É mais co- dos com membrana hialina. Isso sugere que o edema se deva
mum em jovens sadios da segunda ou terceira décadas sem a um aumento da permeabilidade da parede dos capilares
qualquer patologia pulmonar ou cardíaca. alveolares, que deixam passar as macromo léculas proteicas
O início dos sintomas aparece 1 a 3 dias depois da chega- por entre suas células endoteliais. O aspecto das artérias e ar-
da à altitude, podendo demorar até 10 dias. Costuma ocorrer teríolas pulmonares depende de se tratar de highlander ou de
em subidas rápidas a níveis superiores a 3.000 m. Na maio- recém-chegados. No caso dos habitantes antigos da região,
ria das vezes, ocorre quando a subida rápida é seguida de os vasos arteriais revelam espessamento das paredes, confor-
imediato por trabalho físico intenso. Mesmo os habitantes me se observa em qualquer indivíduo do grupo; nos recém-
(highlanders) são acometidos, bastando para isso que pas- chegados, não há alterações. Trabalhos feitos com catete-
sem um período ao nível do mar, de duração que varia entre rismo cardíaco demonstraram que a pressão sanguínea nas
1 dia e até 6 meses. Na verdade, é mais comum nesse gru- veias pulmonares e no átrio esquerdo não está aumentada.
po de indivíduos do que nos recém-chegados. Um estudo A explicação para esse aumento da permeabilidade da
feito em Leadsville, Colorado, em local a 3.100 m, mostrou microcirculação pulmonar pode ser a súbita elevação da pres-
que apenas dois em 39 casos diagnosticados eram de recém - são arterial pulmonar em função da hipoxia. Como as ar-
chegados, o restante era de highlanders. Ficou demonstrado térias pulmonares dos highlanders são mais ricas em fibras
o maior risco para tais pessoas, assim como uma tendência musculares e o seu coração tem hipertrofia do ventrículo
familiar nítida na distribuição dos casos. direito, a hipoxia, ao promover o espasmo das artérias e ar-
Se forem computados todos os casos, incluindo alpinis- teríolas pulmonares, produz uma brusca hipertensão pul-
tas, soldados, turistas, a incidência fica em torno de 1,5% . monar. Como, de acordo com alguns autores, nem todas as
Incluindo os casos mais leves, diagnosticados apenas quan- arteríolas são contraídas, os capilares alimentados pelas não
do se faz radiografia do tórax, sobe para 6% dos indivíduos contraídas ficam mais expostos ao trauma mecânico de uma
expostos ao risco. Quando se faz a contagem apenas entre pressão exagerada e deixam escapar as proteínas do plasma
aqueles que já tiveram um episódio desse edema, a incidên- para o setor extravascular, ocasionando o edema.
cia sobe para 66%. Outro fator a ser considerado é que o sangue dos high-
Os pacientes queixam-se de moleza, falta de ar, cefaleia e landers, que tem uma quantidade bem maior de hemácias
tosse seca. O exame físico revela cianose acentuada, esterto- que o dos habitantes do nível do mar, sofre uma redução
res de intensidade crescente à ausculta pulmonar, seguidos do número desses glóbulos vermelhos quando eles vão para
de eliminação de uma espuma rósea densa pelas narinas e regiões baixas, mas mantém o volume plasmático elevado.
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 309

2 cerebral. Como consequência dessa hipertensão intracrania-


na, ocorre herniamento do úncus e das amígdalas cerebela-
res nos casos mais graves. Isso contraindica a realização de
punção lombar para colheita do líquido cefalorraquidiano
para exame.
Ao lado do edema, ocorre trombose dos seios venosos e
das veias da aracnoide, bem como focos de hemorragia suba-
racnóidea, subcortical, nos núcleos da base e em outras áreas
Espaço da substância branca cerebral. São lesões irreversíveis, capazes
alveolar
de deixar sequelas incapacitantes se o indivíduo sobreviver.

Doença de Monge
É a forma crônica da DM. É própria de indivíduos já ma-
duros que habitam há muito tempo nas grandes altitudes.
Caracteristicamente, apresentam lábios enegrecidos, muco-
sas de cor vinhosa muito escura, ambos em função do hema-
tócrito muito elevado d essas pessoas. Os dedos apresentam
3 extremidades em baqueta de tambor. Há diminuição da ap-
Figura 16.2. Esquema da membrana alveolocapilar. Nota-se o alar- tidão aos esforços físicos e sintomas de ordem neurológica,
gamento do interstício (3), que contém muitas macromoléculas (pontos como cefaleia, tonteiras, parestesias e sonolência. São co-
escuros). Comparar com a Figura 16.1. muns alterações do psiquismo, como irritabilidade, depres-
são e, mesmo, alucinações. O fator básico na patogenia é adi-
minuição da ventilação pulmonar e o consequente prejuízo
da oxigenação do sangue, o que estimula ainda mais a pro-
Essa quantidade maior de volume plasmático, quando eles dução de glóbulos vermelhos pela medula óssea, em função
retornam às grandes altitudes, favorece o acúmulo de líquido d o aumento da liberação da eritropoietina. A hiperten são
n os septos alveolares, agravando a hipoxia por dificultar a pulmonar leve dos highlanders agrava-se e torna -se um fator
difusão do 0 2 do ar alveolar para o sangue (Fig. 16.2) . de sobrecarga ao trabalho do coração. Radiografias do tórax
revelam alargamento da área cardíaca, com predominância
Edema Cerebral d o lado direito e dilatação da sombra da artéria pulmonar.
É uma forma rara da DM. Na série de 1.925 casos india- Como é de ocorrência esporádica na população das monta-
nos relatados po r Singh , citado por Heath, houve apenas 25 nhas, deve haver um fator individual na sua gênese.
com a forma m aligna cerebral, associados, ou n ão, ao edema Para Heath e Williams2 , os highlanders em geral pod em
pulmonar. O diagn óstico dessa forma clínica n ão é fácil, pois ser acometidos de qualquer tipo de patologia pulmonar, de
sintomas como cefaleia e alterações hemorrágicas focais ao modo semelhante ao que ocorre com os habitantes do nível
exam e de fundo de olho também são ob servad os na forma do mar, por exemplo, enfisema. A redução da capacidade vi-
clássica da DM. O que leva ao diagn óstico da forma cerebral tal pulmonar que va i-se instalando com o passar dos anos
é o aparecimento de alterações da consciência, ataxia, refle- n os que vivem ao nível do mar também acomete os habitan-
xo de Babinsky e disfunção vesical. O fundo d e olho revela tes das m ontanhas. Quando isso ocorre, dadas as condições
edema da papila óptica de grau variado . A pressão do líqui- ambientais em que vivem , respirando ar rarefeito, a hipoxia
do cefalorraquidiano está aumentada, mas sua composição to rna -se mais intensa, ocorrendo a descompensação dos seu s
química é n ormal. Se for feita t omografia por computador, ajustes fisiológicos. Por essa razão, a doença d e Monge n ão é
observar-se-ão compressão dos ventrículos, diminuição da observada em highlanders jovens.
profundidade dos sulcos cerebrais e alargamento da substân -
cia branca, principalmente d o corpo caloso. É um quadro Aspectos Periciais
gravíssimo, de evolução r ápida, que requer imediata remo -
ção do paciente para locais bem mais baixos. A possibilidade de interven ção pericial para avaliar lesões
O m ecanism o de formação d esse edema cerebral não ou doenças decorrentes da permanência em locais de pressão
está bem esclarecido, mas se supõe que resulte d os mesmos subatmosférica existe quando um trabalhador é deslocado
fatores responsáveis pela retenção líquida que pro duz o ede- para região montanhosa. Para fazer o diagnóstico da doença
ma pulmonar. Não é por acaso que os d ois quadros estão das montanhas, o perito precisa saber se h ouve exposição de
frequentemente associados. Além do mais, verificou-se que indivíduo não aclimatizado, o tempo de permanência na re-
o fluxo sanguíneo cerebral está aumentado na fase de insta - gião alta, e contar com a ajuda de um bom laborató rio para
lação do edema. Com o aumento progressivo da pressão in- os exames complementares. No Brasil, tal possibilidade é
tracr anian a, contudo, tende a diminuir e a agravar a hipoxia bastante remota, já que não temos montanhas muito altas.
310 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

• BAROPATIAS DECORRENTES DA AÇÃO DE ção das vias de passagem do ar, o que leva ao desequilíbrio
entre as pressões vigentes no interior dessas estruturas e a
PRESSÕES ALTAS presente no exterior.
No estudo do barotrauma, é importante saber se o mer-
Algumas atividades humanas submetem o indivíduo a
pressões ambientes superiores à que ele está acostumado ao gulho é livre ou se é feito com o auxílio de aparelhos. Estes
servem para ministrar a mistura respiratória a uma pressão
nível do mar, ou seja, 1 atm. Tal situação ocorre principal-
mente com mergulhadores, mas também existe no ambien- equilibrada com a do meio aquático. Para isso, eles dispõem
te de trabalho de mineiros que retiram matérias-primas do de um sistema valvular de dupla ação, pelo qual o ajuste en-
tre a pressão ambiente e a da mistura respiratória fornecida
subsolo. Além do mais, há que se considerar ainda a com-
pressão sofrida por pessoas que passam de um ambiente su- é atingido. Se não fosse assim, o mergulhador teria que fazer
muito esforço para inspirar contra a pressão exercida pela
batmosférico para a pressão normal ao nível do mar, como
na descida de aeronaves comerciais ou militares. água sobre o seu tórax. No mergulho sem aparelhos, o tórax
Se o corpo humano fosse constituído apenas por teci- do mergulhador vai sendo espremido pela pressão da água.
dos incompressíveis, não haveria perigo em se aumentar a
Barotrauma Auditivo
pressão ambiente em larga escala. Mas, como há diferenças
de elasticidade e de dureza entre os diversos tecidos que o O ouvido médio consta de uma cavidade óssea cheia de
constituem, bem como cavidades pneumáticas naturais, os ar, localizada no osso temporal, ao nível do rochedo, delimi-
aumentos da pressão externa levam a compressões que po- tada por fora pelo tímpano e, pela face interior, pelo ouvido
dem traduzir-se por alterações funcionais e orgânicas se não interno. Contém três pequeninos ossos, o martelo, a bigorna
forem contrabalançadas. e o estribo, que conduzem as vibrações sonoras aos elemen-
Por outro lado, o aumento da pressão parcial dos com- tos sensitivos do ouvido interno. Este é formado por duas
ponentes do ar inspirado, por si, é capaz de causar distúrbios estruturas, a cóclea e o labirinto, responsáveis pela audição
relacionados com o aumento da sua concentração no sangue. e pelo equilíbrio postural, respectivamente. Essas estruturas
Seja qual for o fluido no qual esteja o corpo, gasoso ou contêm um líquido que fica separado do ouvido médio por
líquido, o aumento de sua pressão faz-se de modo igual sobre uma membrana que fecha dois buracos situados na interface
toda a superfície exposta do organismo, e isso pode trazer óssea entre o ouvido médio e o ouvido interno - as janelas
consequências prejudiciais ao seu bom desempenho se os circular e oval. A membrana da janela oval dá inserção ao
mecanismos compensatórios falharem ou forem insuficien- osso estribo e transmite suas vibrações ao líquido do o uvi-
tes. Aqui, é importante distinguir os efeitos hemodinâmicos, do interno. O ouvido médio se comunica com a faringe por
os efeitos tóxicos dos gases respirados e os desequilíbrios de meio de um conduto membranoso, a trompa de Eustáquio,
pressão que ocorrem entre o ambiente hiperbárico e alguns que serve de passagem para o ar de modo a igualar as pres-
setores do organismo, como as cavidades naturais que con- sões nesses dois locais4 (Fig. 16.3A).
têm ar, como o ouvido e os seios da face, as vísceras ocas e os Q uando o indivíduo mergulha, a pressão da água empur-
pulmões. A incapacidade de igualar as pressões pode causar ra o tímpano para dentro. Como a pressão também aumenta
lesões nessas estruturas. É o que se denomina barotrauma. na faringe, em função do sistema valvular do equipamento, o
eq uilíbrio se faz através da trompa de Eustáquio (Fig. 16.3B).
Barotrauma A abertura da trompa pode ser facilitada pelo mergulhador
por meio de manobras que ele aprende a fazer durante o seu
O barotrauma é muito mais comum entre mergulhado- treinamento. Uma delas é a de Toynbee, que consiste em tapar
res, uma vez que, a cada 10 m de profundidade, a pressão o nariz e deglutir. Outra é a de Valsalva, em que o indivíduo
ambiente eleva-se de 1 kg/cm 2 (mais o u menos 1 atm). Cor- sopra com força contra nariz e boca fechados5• Nas descidas
responde ao peso de uma coluna de água com 10 m de altura de aeronaves, os passageiros sentem o mesmo incómodo, já
e 1 cm2 de base. Assim, a 1Om, o corpo do mergulhador está que as cabines costumam ser mantidas com pressão interior
submetido a 2 atm de pressão (uma do ar e o utra dos 10 m aproximadamente igual à que existe a 2.440 m de altitude,
de água); a 20 m, está sob 3 atm, e assim por diante. durante o cruzeiro 5• Quem já viajou de avião sabe que é bom
Se o aumento da pressão ambiente não for contrabalan- deglutir, bocejar ou mascar chicletes durante a descida, a fim
çado por elevação da pressão no interior das cavidades e ór- de aliviar o desconforto auditivo.
gãos que contêm ar, podem ocorrer roturas de membranas Em caso de obstrução da trompa de Eustáquio, a pressão
de separação, o u alterações circulatórias locais com apareci- externa força o tímpano cada vez mais para dentro, chegando
mento de edema e de equimoses. a rompê-lo nos casos mais graves (Fig. 16.3C). Inicialmente,
Conforme o local do desequilíbrio barométrico, o baro- o mergulhador sente dor, que vai-se tornando mais intensa
trauma pode ocorrer no ouvido, médio ou interno, nos seios à medida que atinge maiores profundidades. No momento
da face, nos pulmões, na parede do tórax, no tubo digestivo, da rotura, há alívio da dor, mas ocorre sensação vertiginosa
na região da máscara, ou em dentes que apresentem bolsas intensa, pela excitação dos elementos do o uvido interno pelo
de ar. O denominador comum a essas alterações é a obstru- ingresso da água fria. É acidente muito grave, já que o mer-
CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias • 311

gulhador perde a orientação e pode-se afogar. Como norma,


são treinados para saber que as bolhas de ar sempre sobem e
indicam o caminho a seguir.
O exame otoscópico revela grau variado de lesão do tím-
pano, desde a simples hiperemia, passando pelo edema, a
hemorragia e a rotura. Antes de se dar a rotura, pode haver
inundação da cavidade do ouvido médio por líquido seroso
ou hemorragia, o que alivia a diferença de pressão e pode até
evitar que o tímpano se rompa. A rotura do tímpano costu-
ma curar espontaneamente na maioria dos casos5•
A sobrecarga de pressão no ouvido médio pode levar à
rotura da membrana que fecha a janela redonda e separa o ar
nele contido do líquido do ouvido interno. É o barotrauma
do ouvido interno, que também produz sintomas vertigino-
sos, surdez e zumbido.
Diante do exposto, torna-se óbvio que há contraindica-
ção ao mergulho de pessoas portadoras de qualquer tipo de
inflamação das vias aéreas superiores, por exemplo resfria -
dos, capazes de entupir a trompa de Eustáquio com secreções
mucosas.
No caso de aviadores, é importante comentar também a
possibilidade de barotrauma na subida. Nas aeronaves não
pressurizadas, a redução rápida da pressão atmosférica du -
rante a subida, faz com que a pressão do ar contido na ca-
vidade do ouvido médio fique maior do que a do ambiente.
Nessas circunstâncias, o tímpano fica estufado para fora, em
direção ao o uvido externo. Quando a diferença de pressão
atinge 15 mmHg, a trompa se abre e deixa escapar o ar do
ouvido médio para a faringe, igualando as pressões5• Qual-
quer um de nós já sentiu estalidos no ouvido ao viaj ar de
automóvel para as regiões serranas.
No caso de haver obstrução unilateral das trompas de
Eustáquio, ao subir, o m ergulhador experimenta uma dife-
rença de pressão de um ouvido m édio com relação ao outro.
Isso produz sensação vertiginosa que é chamada de vertigem
alternobárica6 •
Situação semelhante pode surgir quando um m ergulha-
dor usa tampões auditivos. O conduto auditivo externo fica
fechado por fora pelo tampão e, por dentro, pelo tímpano.
Assim, como o aumento da pressão exterior não pode ser
comunicado a esse espaço, ele fica com pressão relativamente
baixa. O tímpano, então, fica abaulado para fora por causa
da pressão que vem pela trompa. É o que se chama de ouvido
reverso (Fig. 16.3D ). O resultado é congestão, edema e, às ve-
zes, derrame seroso ou hemorrágico para o conduto auditivo
externo, a partir do tímpano e da pele do canal auditivo 38 .
Com o o barotrauma auditivo é inerente a certas ativida-
des profissionais, além de ocorrer no mergulho esportivo, Figura 16.3. Em A, vê-se um esquema do ouvido externo, ouvido
constitui motivo para lides em ações trabalhistas. Os peritos médio e da trompa de Eustáquio: 1) conduto auditivo externo; 2) tímpano;
3) ouvido médio; 4) trompa de Eustáquio; 5) faringe. Em B, a pressão
são chamados a avaliar os casos agudos e a reconhecer as
externa atua sobre o tímpano e comprime o ar contido no ouvido médio,
possíveis sequelas, como perfuração consolidada do tímpa- que é expulso pela trompa de Eustáquio. Em C, a obstrução da trompa
no, graus variados de surdez e, raramente, morte por afoga- não permite equilibrar as pressões e a distensão do tímpano pode
m ento, resultante de barotrauma auditivo grave com perda chegar à sua rotura, com invasão do ouvido médio pela água. Em D, o
da orientação. Na maio ria dos casos, um otorrinolaringo- conduto auditivo externo fica com pressão relativamente negativa por
logista deve ser consultado para avaliar o grau de incapaci- causa do tampão, sofrendo pressão positiva de dentro para fora através
dade. O exame do paciente deve incluir a otoscopia. Nesse da trompa de Eustáquio.
312 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

particular, é interessante lembrar que a permeabilidade das punção abdominal para esvaziar o gás e, em seguida, cirur-
trompas po de ser verificada pela realização da manobra de gia para suturar o estô mago 7•
Toyn bee durante a otoscopia par a ver se ocorre movimen- Com o a produção de gás continua no intestino grosso,
tação d o tímpano. durante a permanência no ambiente profundo, o mergulha-
dor continua a acumular gases intestinais. Quando da subi -
Barotrauma Sinusal da, esses gases dilatam -se e tendem a ser expelidos, causando
flatulência, por vezes embaraçosa. Não sendo expelidos, po-
Sua ocorrência depende de haver obstrução do orifício de
dem causar distensão e cólica abdo minais.
comunicação de qualquer cavidade sinusal com a cavidade
nasal. Os seios paranasais se abrem no espaço formado pelos
Barotrauma Torácico
cornetos, projeções ósseas em forma de concha que partem
da parede lateral das fossas nasais. Com o os cornetos são re- A caixa torácica, com suas paredes semirrígidas, é pouco
vestidos pela mucosa nasal, os processos inflamató rios dessa compressível, e, quando o indivíduo se submete a pressões
memb rana reduzem o espaço po r eles delimitado, podendo crescentes, reduz seu volume dentro de certos limites. Nos
chegar a fechar os meatos (orifícios de drenagem d os seios). casos de m er gulho livre, sem o auxílio de aparelhos, a massa
A impossibilidade de equalização das pressões dentro dos de ar contida nos pulmões não varia, mas vai reduzindo seu
seios e na cavidade nasal cria condições para a instalação do volume à medida que aumenta a profundidade. A 10 m , re-
baro trauma. Na descida, o ar contido nos seios m antém-se duz-se à metade o volume pulmonar (2 atm de pressão), de
à pressão vigente ao nível do mar, uma vez que sua cavidade acordo com a lei de Boyle-Mariotte; a 50 m, a redução volu-
não se comunica mais com a cavidade nasal. Isso cria uma métr ica deveria atingir cerca de 1/6 do no rmal. Isso provoca
diferença de pressão em que a vigente no ambiente de mer- grande aumento da curvatura costal, com possibilidade de
gulho é superior à sinusal. Como esta fica relativamente ne- fratura. Porém , a existência de mecanism os compensatórios,
gativa, os vasos da mucosa sinusal ficam congestos e, com como a elevação diafragmática e o d eslocamento de san gue
o aumento da diferença tensional, ocorrem edema, derrame para os vasos intratorácicos, permite ao hom em descer, im-
seroso e mesmo hemorragia para o interior da cavidade. Tais punemente, a profundidades ainda maiores. O aumento do
alterações são acompanhadas de dor intensa, que inviabili- volume sanguíneo nos vasos torácicos e pulmonares pode
za a continuação do mergulho. Ao subir, as pressões dentro atingir mais de 1 L e, por sua relativa incompressibilidade,
e for a das cavidades paranasais tornam a se equilibrar, m as compensa a redução do volume dos gases alveolares.
Havendo ultrapassado os limites referidos anteriormen-
a inflam ação e os derrames líquidos persistem e podem ser
te, a pressão intra-alveolar não aumenta mais na mesma pro-
complicados por infecção secundária. O exame radiológico
porção da pressão ambiente. Os alvéolos, então, não poden-
demonstra a presença do derrame sinusal, se fo r o caso.
do mais reduzir seu volume, passam a ter pressão menor que
Barotrauma Dental a intravascular e são inundados por líquido de edema.
Nos casos em que o mergulhador usa roupas especiais de
Mergulhadores que tenham dentes com tratamento mal- proteção, a pressão no interior da rou pa deve contrabalançar
feito d o canal pulpar, em que parte da cavidade contém ar, a do meio ambiente. Isso se consegue pressurizando-se o ar
podem acusar do r tanto na descida como na subida. Ao des- no interior da roupa por meio de bombas. Havendo defeito
cerem, a pressão relativamente maio r nos vasos dos alvéo- do equipamento e escapamento do ar da roupa, a água com -
los dentários e na ra iz produz inundação do espaço livre do prime a pele e os tecidos su perficiais e espreme-os como no
canal por líquido seroso, ou mesmo sangue. Ao subir, a ex- mergulho livre, mas com pressões bem m aio res.
pansão do ar do canal empurra esses líquidos contra o ápice O barotrauma pulmonar será estudado na seção seguin-
dentário, causando dor intensa por compressão dos filetes te, relativa à descompressão.
nervosos apicais.
Intoxicação pelos Gases Hiperbáricos
Barotrauma Digestivo
É raro. Resulta de distensão aguda de uma víscera oca Confo rme expusemos no início do capítulo, a pressão
pela diminuição da pressão ambiental. Ocorre no estô mago exercida por cada componente de uma mistura gasosa é pro-
por falhas no equipam ento de mergulho ou por causa de porcional à sua quantidade relativa nessa mistura. Assim,
deglutição de ar por m er gulhadores inexperientes, no meio quando aumenta a pressão do ar inspirado, também aumenta,
hiperbárico. Durante a subida, o ar deglutido expande-se e proporcionalmente, a pressão parcial de cada componente.
distende o estômago. Se a subida for muito rápida, como Isso leva a um aumento da concentração de cada gás no san-
em casos de pânico, ou a partir de razoável profundidade, a gue, respeitando a sua maior ou menor solubilidade na água.
parede gástrica não resiste e se rompe. O ar é expelido para
Toxidez do Nitrogênio (N 2)
a cavidade perito neal, causando um pneumoperitônio. Um
exame r adiológico confirma a suspeita clínica diante da d or Mergulhadores que descem e permanecem a mais de 40 m
e da distensão abdominal. O tratamento está baseado na de profundidade por cerca de 1 ho ra começam a sentir seus
CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias • 313

efeitos. São muito semelhantes aos da embriaguez alcoó- compressão intempestiva) ou infecciosa. A listagem das in-
lica, inclusive na sua evolução. Inicialmente, o indivíduo dicações cientificamente reconhecidas para a oxigenoterapia
experimenta uma desinibição, uma certa loquacidade e di- hiperbárica está na Resolução 1.457 /95 do CFM. Conforme
minuição do senso crítico. Aos 80 m, há grande diminuição o caso, o paciente é submetido diariamente a uma ou duas
da atenção, da capacidade de trabalho e da percepção e da sessões de 60 a 120 minutos dentro de câmaras a 2,5 atm,
coordenação psicomotora. Aos 120 m, surgem manifestações inalando 0 2 puro'º·
psicóticas que podem evoluir para um estado maníaco de
grande euforia. À fase de excitação, seguem-se depressão e Toxidez do Gás Carbônico (C02)
incapacidade de buscar socorro, entorpecimento progressi- Os aparelhos tipo SCUBA (self-contained underwater
vo e perda da consciência. O nitrogênio hiperbárico atua de breathing apparatus) não permitem que a concentração do
modo semelhante aos anestésicos, alterando a polaridade co2aumente porque seu sistema de válvulas comporta a
da membrana celular dos neurónios8• A substituição do ni- expiração para o meio líquido. No entanto, alguns outros
trogênio pelo hélio impede a instalação desse quadro clínico equipamentos de circuito fechado fazem a captação desse
por três motivos: 1) seu efeito narcótico é cinco vezes me- gás por meio químico. Havendo falha nesse mecanismo, o gás
nor; 2) sua solubilidade no sangue é metade da do nitrogênio vai-se acumulando. Quando a pressão parcial do co2atinge
e, por ter menor afinidade, elimina-se com maior rapidez; 80 mmHg no ar alveolar, alguns mergulhadores começam
3) sua densidade é sete vezes menor, o que reduz a resistência a apresentar sintomas de intoxicação. Sentem necessidade
aos esforços respiratórios8• de maior esforço respiratório, com aumento do volume por
minuto que chega a mais de dez vezes o valor normal. A par-
Toxidez do Oxigênio (02) tir daí, continuando a aumentar a concentração do gás, co-
Como já vimos no estudo dos distúrbios causados pela meça a se instalar uma acidose respiratória, acompanhada
redução da pressão ambiente, existe uma cascata decrescente de aumento da pressão arterial. Chega um ponto em que a
da pressão do 0 2 desde o ar inspirado até o que chega às concentração mais elevada, em vez de excitar, passa a inibir
células dissolvido no plasma. Por isso, a sua pressão normal o centro respiratório, porque o acúmulo de acidez deprime
nos tecidos é de apenas 20 a 40 mmHg para uma pressão de a atividade neuronal. O quadro se agrava por depressão das
160 mmHg no ar inspirado ao nível do mar (2 1o/o de 760 funções cerebrais, sonolência e, por fim, perda da consciên-
mmHg). Se, porém, o indivíduo respirar 0 2 puro, ele já se cia. É interessante notar que, por ter ação vasodilatadora so-
torna irritante, pois passa a ter uma pressão de 760 mmHg. A bre a circulação cerebral, o co2potencializa o efeito tóxico
uma profundidade de 90 m ( 10 atm), respirando uma mistu- do nitrogênio e do oxigênio8•
ra com 50% de 0 2 , sua pressão sobe para 5 atm.
Cabe lembrar que, normalmente, são produzidos no or- Aspectos Periciais
ganismo radicais livres com oxigênio ativo, capazes de lesar
as células e de desestabilizar o metabolismo. Contudo, esses Os acidentes devidos à permanência em ambientes de
radicais são inativados por enzimas como as peroxidases, as pressão muito alta acontecem com mergulhadores e, às ve-
catalases e as dismutases. Sob tensões de 0 2 maiores, a quan- zes, mineiros. Os aspectos periciais serão estudados mais
tidade desses radicais aumenta proporcionalmente e supera adiante, ao tratarmos da perícia em acidentes de mergulho.
a capacidade de o organismo os inativar. Experiências fei-
tas fazendo-se o indivíduo respirar oxigênio puro a 4 atm
produzem uma tensão desse gás no plasma superior a 1.200 • BAROPATIAS DECORRENTES DE
mmH g8. Com essa concentração de 0 2 nos tecidos, a quanti- DESCOMPRESSÃO RÁPIDA
dade de radicais ativos aumenta tanto que passa a haver de-
sintegração das membranas celulares e inibição de enzimas As descompressões podem realizar-se da pressão nor-
importantes para o nosso metabolismo. mal para pressões menores o u de ambientes hiperbáricos
Os neurónios são as células mais sensíveis a esse efeito para o nível do mar. Na primeira hipótese, ora se trata
tóxico. A exposição por meia hora a essas concentrações de subida rápida em aeronaves não pressurizadas, ora de
provoca sérios distúrbios neurológicos que culminam com acidentes de descompressão explosiva em aviões civis ou
convulsões e estado de coma8• Camundongos expostos a am- militares, decorrentes de combate, atos de sabotagem, de
biente de oxigênio puro sob 8 atm morrem em cerca de 20 a terrorismo, ou qualquer outra causa de rompimento da fu-
25 minutos. A necropsia desses animais revelou necrose em selagem. Na segunda, os profissio nais atingidos são mergu-
núcleos da substância cinzenta cerebral9 • lhadores e trabalhadores em escavações profundas, como
A fim de se utilizar o potencial destrutivo dos radicais li- os mineiros.
vres em benefício dos pacientes, tem-se utilizado a chamada Quaisq uer que sejam os valores barométricos, porém, os
oxigenoterapia hiperbárica. Está indicada como tratamento fatores que mais importam são a velocidade da descompres-
principal ou coadjuvante em doenças agudas ou crónicas, de são, o gradiente entre os valores inicial e final e o tempo de
natureza isquêmica, traumática (como as causadas pordes- permanência do indivíduo no ambiente de pressão maior.
314 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

Na v1gencia de descompressão intempestiva, podem sente na atmosfera em grande quantidade, é o principal res-
ocorrer dois quadros clínicos diferentes, tanto na gravidade ponsável pelo surgimento das bolhas na doença de descom-
e prognóstico como no mecanismo determinante. São eles pressão. Mas, na realidade, também participam o oxigênio, o
a doença de descompressão e a embolia traumática pelo ar. gás carbônico e até o vapor d'água, embora em proporções
bem menores em função de sua maior solubilidade e menor
Doença de Descompressão pressão parcial14. Essas bolhas aparecem em todos os líquidos
do organismo, tanto no sangue como no líquido intersticial
Por volta da metade do século XIX, o desenvolvimento e no intracelular14·15·16.
industrial criou a necessidade de se construírem os pilares de As bolhas intravasculares são revestidas por uma capa de
pontes e as bases de portos em locais submersos e de difícil lipoproteína e, por confluência, vão crescendo e distendendo
acesso. Assim, os engenheiros imaginaram diversos disposi- os vasos. Sabe-se, atualmente, que há aderência de plaquetas
tivos de contenção (os caixões) para os operários poderem sobre essa capa, levando à liberação de adrenalina, serotoni-
trabalhar nas profundezas sem que as operações fossem pre- na e do fator III da coagulação 17. Outros acham que o que
judicadas pela água do ambiente. À medida que foram sendo desencadeia a agregação plaquetária é a lesão do endotélio
atingidas profundidades maiores e o tempo de permanência vascular pelas pequeninas bolhas6. A presença de bolhas no
submerso foi aumentando, os mergulhadores começaram a sistema arterial provoca fenômenos isquêmicos localizados,
apresentar sintomas de uma doença desconhecida até então. que são agravados pela constrição vascular induzida por
Coube ao engenheiro francês Triger, em 1841, fazer a pri- aquelas aminas e pela tendência a microtromboses decor-
meira descrição do quadro clínico em operários de uma mina rente da liberação dos fatores da coagulação.
de carvão pressurizada 11 • Paul Bert foi o primeiro a sugerir, Embora de observação e demonstração microscópicas
em 1878, que o quadro clínico decorresse da formação de difíceis, tem sido possível demonstrar a formação de bolhas
bolhas gasosas no interior do organismo dos mergulhadores intracelulares, principalmente em adipócitos, hepatócitos e
durante e após a subida ao nível do mar6·11 •12. Mas consta que células da medula espinal.
Robert Boyle, um dos enunciadores da lei de Boyle-Mariotte, Alguns fatores tendem a facilitar o aparecimento das bo-
já em 1670, havia notado o aparecimento de bolhas no hu- lhas nos tecidos. A maior solubilidade do nitrogênio na gor-
mor aquoso do olho de uma cobra colocada em uma câmara dura faz com que as bolhas apareçam de preferência nos te-
de vácuo 11 ·13 • Realmente, o elemento fundamental na gênese cidos ricos em lipídios, como o nervoso. As contrações mus-
da doença descompressiva é o aparecimento de bolhas no culares criam locais de redução da pressão tecidual nos seus
interior dos líquidos orgânicos. A prova maior, contudo, foi pontos de inserção, o que tende a formar bolhas nas áreas
dada por um engenheiro inglês, Moir, que decidiu instalar periarticulares. Tem-se observado, na prática, que a execução
uma câmara hiperbárica para recomprimir os operários que de trabalhos árduos predispõe o mergulhador ao apareci-
apresentassem os sintomas da doença e, depois, descompri- mento dos sintomas. Além disso, mesmo seguindo as tabelas
mi-los gradualmente. Com isso, reduziu o índice de mortali- de descompressão, algumas pessoas apresentam a doença de
dade de 25% para 1,6% e introduziu, de modo empírico, um descompressão 16 .
tratamento até hoje adotado 11 • O quadro clínico da doença de descompressão é poli-
Por outro lado, nas primeiras décadas do século XX, o morfo e de gravidade variável conforme a profundidade e
desenvolvimento da aviação tornou evidente que a descom- o tempo de permanência submerso. Assim, existem o tipo 1,
pressão para ambientes de pressão subatmosférica também com predominância de sintomas musculoesqueléticos, cutâ-
era capaz de desencadear a mesma sintomatologia, o que
neos e os relacionados com linfonodos; e o tipo 2, mais gra-
obrigou a indústria aeronáutica a vedar os aviões, de modo
ve, com sintomatologia cardiorrespiratória, neurológica e a
a permitir que pudessem alcançar maiores altitudes sem in-
relacionada com o ouvido interno. Mas há casos em que os
convenientes para a tripulação e os passageiros. Não sendo
sintomas dos dois tipos estão misturados. Como a atitude
tomadas medidas profiláticas, os sintomas da doença de
terapêutica é diferente, conforme o tipo, o diagnóstico dife -
desco mpressão costumam instalar-se em aviadores quando
rencial é muito importante 16.
tenham alcançado e permanecido 20 a 30 minutos a cerca de
11.000 m de altitude. Se a tarefa do piloto incluir exercícios
Tipo 1
físicos cansativos, o quadro clínico pode começar em níveis
mais baixos (8.500 m) em cerca de 43% dos indivíduos 13. O início pode ser insidioso. Começa cerca de meia hora
Pela lei de Henry, sabemos que os aumentos da pressão depois da emersão, mas pode ocorrer mesmo após 24 ho-
intra-alveolar tendem a forçar os gases do ar a se dissolverem ras6·16·18. Se a ascensão for muito rápida e a partir de grande
mais intensamente no plasma. Sendo levados aos tecidos em profundidade, pode-se iniciar já durante a subida. Dados da
concentração elevada, deslocam-se para o líquido intercelu- marinha americana informam que 48% dos casos de doen-
lar, também chamado de intersticial, e daí para o setor in- ça de descompressão começam já na primeira hora após a
tracelular, sempre em concentração superior e proporcional emersão 16. A princípio, é uma dor surda, mal localizada, pro-
à profundidade. O gás mais importante nesse contexto é o funda, que se vai agravando com o passar do tempo, podendo
nitrogênio, uma vez que não é metabolizado e, por estar pre- tornar-se insuportável. As formas mais leves caracterizam-se
CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias • 315

por dores nos tecidos relacionados com as articulações do A sintomatologia, no entanto, é variável e depende do setor
cotovelo, do pulso, da mão, do joelho e do quadril. Pode medular atingido.
começar com pequena intensidade em pontos ao redor dos Os sintomas respiratórios são tosse, dispneia, taquip-
joelhos, geralmente próximo de inserções tendinosas que neia, sensação de queimação retroesternal e dor que se agra-
se mostram sensíveis à palpação6. 13 •16 • A movimentação dos va com a inspiração forçada. A ausculta pulmonar revela es-
membros pode aumentar ou não sua intensidade. Com o tertores subcrepitantes. São acompanhados por taquicardia
agravamento da dor, os pacientes assumem atitude antálgica e, nos casos mais graves, hipotensão e choque. A causa des-
com os membros fletidos, encolhidos, a fim de obter melhora. ses sintomas é a formação de numerosas bolhas no interior
Por isso, essa forma é chamada pelos autores de língua inglesa dos vasos pulmonares6 • 16 •
de bends, que significa dobras. A melhora das dores nessa po- Quando as bolhas se formam no líquido dos canais semi-
sição deve-se ao aumento da pressão nos tecidos periarticula- circulares e da cóclea no ouvido interno, o indivíduo apresen-
res, que faz diminuir o tamanho das bolhas12 • Acredita-se que ta um quadro clínico com perda da audição, vertigem, náu-
as bolhas comprimem terminações nervosas locais. O exame seas, vômitos e nistagmo (movimento conjugado de vaivém
objetivo mostra que não há bloqueio das articulações, com dos olhos para um dos lados). Essa forma da doença de des-
mobilidade passiva normal. Um problema diagnóstico é que compressão tem que ser distinguida do barotrauma do ouvi-
essa dor pode mascarar ou ser confundida com dores decor- do interno e da forma neurológica com predomínio de sin-
rentes de traumas sobre os membros. Quando sua localiza- tomas cerebelares. Nessa última, porém, não há nistagmo 16 •
ção é torácica ou abdominal, pode resultar de acometimento Cerca de 75% dos indivíduos que trabalham em con-
das articulações costovertebrais, com irradiação em forma de dições hiperbáricas há longo tempo apresentam alterações
faixa ao redor do segmento afetado. Nesses casos, tem que ser ósseas ao exame radiológico. Apresentam-se como imagens
afastada a forma grave com lesão medular 16 • de hipotransparência, alternadas com zonas de reação e con-
A forma cutânea mais comum caracteriza-se por sensa- densação óssea. Localizam-se preferencialmente na cabeça do
ção de picadas esparsas e prurido, seguidos de vermelhidão fêmur e do úmero e na extremidade superior da fíbula. Pare-
da pele. Nas formas mais intensas, alternam-se áreas ver- ce haver proporção definida entre a gravidade das lesões e o
melhas com outras pálidas, e mesmo cianóticas, chegando tempo de permanência em condições hiperbáricas. Tem sido
encontrada em trabalhadores que nunca sofreram doença de
a produzir um aspecto malhado, com sensação de espessa-
descompressão. A lesão óssea é uma necrose asséptica provo-
mento da pele. Tais lesões costumam aparecer primeiro no
cada, ao que tudo indica, pela obstrução de pequenos ramos
tórax e abdômen e espalhar-se para os membros13•16 • Acre-
das artérias nutridoras do osso. A zona de infarto ósseo sofre
dita-se que resulta de espasmo dos vasos nutridores causado
calcificação por causa da degeneração da gordura da medula
por bolhas no tecido subcutâneo. Outros admitem embolia
óssea, o que torna a imagem radiológica mais densa, hipo-
gasosa para vasos da microcirculação cutânea6 .
transparente. Em geral, não são percebidas pelo paciente, a
Os linfonodos estão, por vezes, aumentados e dolo rosos.
não ser que haja comprometimento da cartilagem articular.
Os tecidos drenados por eles apresentam edema moderado.
Nesses casos, há dor e manifestações de osteoartrose.
Essas alterações resultam de obstrução dos canais e <lutos
Tanto a doença de descompressão em si como a osteone-
de drenagem por pequeninas bolhas. A recompressão alivia
crose são doenças profissionais reconhecidas pela lista oficial
a tumefação e a dor, mas o edema demora um pouco mais
da Previdência (Anexo II da Lei 8.213/9 1) 19 •
para desaparecer 16 •

Tipo 2 Embolia Traumática pelo Ar (Barotrauma Pulmonar)


É a forma grave. Pode com eçar de forma branda com uma O barotrauma pulmonar da subida é um dos acidentes
sensação de cansaço que não passa após a emersão e tende mais graves do mergulho. Mas pode ocorrer situação seme-
a se agravar, em geral acompanhada por cefaleia. O quadro lhante em CTis por uma distensão exagerada do pulmão por
neurológico ora afeta as fun ções motoras, ou sensitivas, ora causa de respiração assistida com pressão positiva exagerada
as funções superiores do cérebro. Assim, podemos perceber (barotrauma pulmonar iatrogênico). Ocupar-nos-emos ba-
diminuição da força dos membros, que o mergulhador sente sicamente do que resulta da atividade submarina.
pesados; paralisias; incoordenação motora; perturbação do É um acidente que acontece na subida. É de instalação
equilíbrio; distúrbios sensitivos como formigamentos; pica- súbita e constitui a segunda causa mais frequente de mo rte
das; choques elétricos. Outras vezes, o indivíduo sente como nos mergulhos autônomos, superada apenas pelo afogamen-
que a cabeça estivesse vazia, ou predominam distúrbios do to20. Apresenta diferentes graus de gravidade, dependendo da
comportamento, mesmo alucinações, amnésia ou perturba- velocidade da subida, da quantidade de ar contida inicial-
ções visuais, como vista turva 16 • mente nos pulmões e da proximidade da superfície. Pode
Segundo Méliet6, a forma medular é a m ais frequente surgir inclusive em mergulhos realizados em piscinas com
(50% dos casos). Por vezes, começa com uma do r em forma mais de 2 m de profundidade 16 •21 • Nos casos mais graves, o
de punhalada no dorso, mas o mais comum é o início com mergulhador chega inconsciente à superfície e entra em cho-
parestesias nos membros inferiores seguidas de paraplegia. que rapidamente. Pode também ocorrer quando a roupa es-
316 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

pecial pressurizada se romper por acidente em ambiente de mergulhador que chegue à superfície inconsciente ou que
pressão bem menor que a vigente em seu interior22 . perca a consciência poucos minutos após a emersão é sus-
Conforme já referimos ao estudar o barotrauma em geral, peito de ter embolia gasosa. Contudo, se subir incon sciente,
à medida que o mergulhador afunda, vai encontrando pres- mas recuperar os sentidos após respirar o ar normalmente,
sões cada vez maiores. A cada 10 m de profundidade temos não deve estar com embolia 16.
mais 1 atm d e pressão. No mergulho livre, o tórax vai sendo O aparecimento de sinais neurológicos logo após a emer-
comprimido, mas quando o mergulhador desce provido de são, como perturbações motoras, sensitivas ou mentais, é in-
aparelho tipo scuba, que lhe forneça o gás à pressão ambiente, dício de embolia traumática pelo ar. No aspecto motor, são
isso não ocorre. A massa de ar vai aumentando para man- descritas sen sação de membros pesados, paresias, paralisias,
ter con stante o volume pulmonar, conforme a lei de Boyle- convulsões e parada respiratória; na esfera sensitiva, descre-
Mariotte. Numa profundidade de 30 m, o volume alveolar vem-se visão turva, vertigem e dormência nos membros; na
teria que diminuir a 1/4 do normal por causa da compressão parte mental, agitação, estado confusional, torpor e coma.
de 4 atm. Assim, mantendo o volume normal, cada alvéolo O exame físico revela estertores intensos na ausculta pul-
contém quatro vezes o ar que conteria na superfície23. monar, escarros com sangue ou espuma rósea saindo pelas
Se o mergulhador subir rápido e não eliminar o ar em narinas e pela boca. Os sinais circulatórios são taquicardia e
excesso, haverá uma hiperdistensão alveolar que poderá che- acentuada hipotensão arterial que evolui rapidamente para o
gar ao ponto de romper as suas paredes. Ocorrida a rotura, choque. Mas os sintomas neurológicos variam conforme as
a pressão do ar forçará sua pen etração no tecido conjuntivo áreas cerebrais irrigada s pelas artérias mais comprometidas.
de sustentação pulmonar e na rede vascular. Pelo tecido de Por vezes, o indivíduo perde a consciência sem sintomas pré-
sustentação, o ar atinge o mediastino, seguindo pela bainha vios16. A morte costuma ser atribuída a arritmias cardíacas
conjuntiva dos brônquios e dos vasos. Alcan ça a pleura, a decorrentes de lesão do tronco cerebral ou de obstrução das
partir dos alvéolos mais periféricos. Penetrando nos capila- artérias coronárias26.
res e nas veias pulmonares, alcança o lado esquerdo do cora- Como a hiperdistensão pulmonar que leva ao barotrau-
ção e, através dele, os grandes troncos arteriais 16.2 3• Assim, o ma resulta, em última análise, da não expiração do excesso de
baro trauma pulmonar de subida pode causar pneumotórax, ar, qualquer condição que impeça ou reduza muito o fluxo
enfisema do mediastino e a embolia traumática pelo ar. expirató rio pode desencadear o quadro. Por isso, pessoas que
A incidência exata da ocorrência do barotrauma pulmo- tenham qualquer tipo de patologia pulmonar que aumente o
nar é muito difícil d e ser avaliada se forem considerados os ar residual não devem mergulhar, a menos que um pneumo -
casos mais leves, que passam despercebidos. Mas, conside- logista seja consultado. A asma tem sido considerada uma
rados os que levam o paciente aos serviços de emergência, contraindicação aos m er gulhos, mas, recentemente, há uma
n ota-se que não são muito comuns. Raymond 24 descreveu tendência para liberar os pacientes que tenham asma estável,
nove casos atendidos em um serviço de pneumologia espe- sob controle2º·27.28• O mais importante fator de risco tem sido
cializado, num período d e 6 anos, na cidade de Grenville, considerado a redução do fluxo máximo expiratório medido
Carolina do Norte. no meio e no final da expiração forçada 2º·27. Por isso, o enfise-
As formas leves de barotrauma causam enfisema do me- ma pulmonar é contraindicação absoluta ao mergulho com
diastino, que pode estender-se às partes moles d o pescoço e aparelhos tipo scuba.
da face. Nesses casos, é comum haver dor local e aos movi-
m entos de d eglutição. Esse quadro clínico é patogn omô ni- Anatomia Patológica da Embolia Traumática pelo Ar23
co6. Ora os sintomas aparecem logo após a subida, ora só
são percebidos várias horas depois, como em um dos casos Os sinais encontrados podem ser alterados pelo tempo
d e Raymond, em que o enfisema do pescoço só apareceu na transcorrido entre a mo rte e a n ecropsia, bem como pelas
manhã do dia seguinte, associado a disfagia. condições do mergulho. Nos casos em que a permanência
Os casos de pneumotórax podem ser acompanhados, ou na profundidade tenha sido curta, não se acham alterações
não, de enfisema do mediastino ou de embolia traumática decorrentes de um excesso de nitrogênio nos líquidos orgâ-
pelo ar. O volume d e ar liberado para a cavidade pleural pode nicos, por não ter havido tempo para isso. Assim, faltam as
ser pequeno nas pro fundezas, mas se tornar importante pela b olhas nas veias da grande circulação, como ocorre na d oen-
sua expansão durante a subida. Aqui, os últimos metros são ça de descompressão. Mas, se o mergulho foi prolongado e
os mais importantes. Basta recordar que o aumento de vo- a uma profundidade com pressões elevadas, a subida intem-
lume do ar é de 100% de 10 m até a superfície. Na maioria pestiva não dá tempo para a eliminação do gás dissolvido
das vezes, o m er gulhador já apresentava b olhas d e enfisema, nos líquidos do organismo. Por isso, após a morte, o corpo
cistos pulmonares ou aderências fibrosas pleurais 25. trazido para o nível d o mar tende a sofrer a influência da
A embolia traumática pelo ar é, sem dúvida, a forma mais descompressão e a formar b olhas de modo difuso, numa ver-
grave d o barotrauma pulmonar. Os sintomas começam no dadeira "doença de descompressão pós-m orte".
fim da subida ou até 10 segundos após a em ersão. O mer- Ao exame externo, nota-se eliminação de líquido róseo
gulhado r refere dor torácica e relata uma sensação como e espumoso pelas narinas e pela boca. Como os casos fatais
se tivesse sofrido um golpe n o peito. Com o regra, qualquer evoluem rapidamente, pode-se não notar o enfisema das
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 317

partes moles do pescoço e da face, a menos que faça parte da Os pulmões em geral estão distendidos, a menos que
descompressão generalizada. O ideal é que o corpo seja man- tenha havido simultaneamente um pneumotórax. Apre-
tido até o momento da necropsia sob a mesma pressão a que sentam desenho lobular salientado através da pleura, com
estava submetido antes do acidente. Dessa forma, evita-se alternância de áreas hemorrágicas e áreas mais claras, per-
a formação de bolhas indesejáveis nas grandes veias e nos te- cebendo-se aspecto enfisematoso difuso e pequenas bolhas
cidos em geral. A cavidade peritoneal pode revelar distensão subpleurais (Fig. 16.7) . Aos cortes, revela áreas de cor ver-
do estômago, de alças intestinais e do intestino grosso pela melho -escura, principalmente nos lobos inferiores, por ve-
descompressão dos gases que já continham. O exame deve zes confluentes, mas alternadas com zonas um pouco mais
concentrar-se na pesquisa de bolhas de gás no interior das claras, mormente nos lobos superiores (Fig. 16.8). Tal as-
principais artérias, como aorta e seus ramos. Em um caso pecto se deve às roturas dos septos alveolares. A árvore
que examinamos em 1970, pudemos documentar a presença brônquica revela mucosa congesta e está ocupada por espu-
de colunas de ar no interior das artérias gastroepiploica (Fig. ma rósea abundante (Fig. 16.9).
16.4), radial (Fig. 16.5) e cerebrais (Fig. 16.6)23 • A microscopia dos pulmões evidencia septos interlo-
A presença de bolhas nas veias pulmonares e nas cavida- bulares em que o conjuntivo perivascular e peribrônquico
des esquerdas do cora ção (átrio e ventrículo) deve ser pro- está desgarrado, com rotura de suas fibras (Fig. 16.10) . Os
curada com o cuidado de as abrir sob água que se coloca sacos alveolares estão distendidos e ocupados por líquido de
dentro do saco pericárdico, de modo a cobrir o coração. Des- edema, ou sangue, com numerosas imagens circulares vazias
se modo, se houver ar misturado com o sangue, as bolhas que correspondem às bolhas de ar, uma vez que dão reação
vêm à superfície do nível líquido. negativa para gordura. Notam-se septos alveolares rompi-
dos, o que se põe em evidência corando suas fibras elásticas
pela orceína (Fig. 16.11) .
As lesões cerebrais decorrentes da obstrução arterial
não costumam ser visualizadas ao exame microscópico por

Figura 16.4. Detalhe da cavidade abdominal, vendo-se a artéria gas-


troepiploica ocupada por uma coluna de ar (seta). Caso autopsiado pelo
autor no IMLAP, em 8/01/7023•

Figura 16.5. Artéria radial esquerda bloqueada pelo ar. Mesmo caso
da Figura 16.4. Figura 16.6. Artérias cerebrais contendo êmbolos gasosos. Idem.
318 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

Figura 16.7. Visão da superfície pulmonar, notando-se distensão difusa Figura 16.9. Presença de grande quantidade de espuma na luz tra-
do parênquima, realce da lobulação e focos de hemorragia (áreas mais queal. Idem.
escuras). Idem.

Figura 16.10. Corte histológico do pulmão que mostra amplo des-


Figura 16.8. Aspecto da superfície de corte do pulmão, com áreas garro do tecido conjuntivo perivascular pelo ar sob pressão. O ramo
mais escuras de hemorragia entremeadas com outras mais claras de arterial é realçado pela coloração das fibras elásticas de sua parede em
distensão. Idem. cor pardo-escura. Coloração pela técnica da orceína de Weigert. Pequeno
aumento. Idem.

falta de tempo de sobrevida para que o tecido morto exi-


ba o aspecto necrótico. Mas são descritos pequenos focos de
hemorragia anular em qualquer parte, inclusive na medula
espinaF. Pela mesma razão, não se costuma achar focos de
infarto do miocárdio .

• ASPECTOS PERICIAIS DOS ACIDENTES DE


MERGULH0 22 •29 ·3º
O levantamento das causas e consequências dos aciden-
tes de mergulho, bem como a sua prevenção, constituem um
capítulo especial da medicina do trabalho. Só nos deteremos
nas partes cujo conhecimento poderá ser útil ao perito não
especialista. O ideal para esclarecimento de um acidente de
mergulho é que os exames sejam deixados a cargo de um
grupo especialmente treinado para isso. A equipe mínima Figura 16.11. Rotura de um septo alveolar indicada pela interrupção
deve ser composta por um mergulhador experiente, um mé- abrupta das fibras elásticas. Coloração pela técnica da orceína de
dico especializado em medicina submarina, um patologista Weigert. Grande aumento.
CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias • 319

forense com bom conhecimento dos efeitos das baropatias no local do acidente, quando isto for possível. O tempo entre
e um oficial bombeiro ou naval para conexão com as auto- o óbito e a necropsia deve ser abreviado para que não haja
ridades locais. uma doença de descompressão post mortem nem formação
Algumas medidas iniciais devem ser tomadas, quando de bolhas por putrefação. Além disso, as alterações cadavéri-
possível, antes que o local do acidente seja modificado. Tudo cas podem inviabilizar a dosagem de eletrólitos no sangue das
deve ser fotografado na posição em que for encontrado. Nos cavidades cardíacas para diagnóstico de afogamento. A inspe-
casos fatais, a vítima deve ser removida com todo o equipa- ção externa vai procurar marcas de elementos da água sobre o
mento que usava para uma câmara hiperbárica mantida na corpo, como mordida por animais, escoriações por recifes ou
mesma pressão do ambiente em que se deu o acidente. Os rochas, algas presas nas mãos, lesões de arrastamento, lesões
elementos do ambiente devem ser anotados, como profundi- do resgate e alterações próprias das baropatias, inclusive por
dade, visibilidade, temperatura da água, correntezas, presen- meio de otoscopia. Deve ser complementada pela medida da
ça de animais potencialmente agressivos, presença de algas e temperatura retal o mais breve possível, no sentido de diag-
alterações em materiais de suporte, como gaiolas, sinos etc. nosticar uma possível hipotermia. A hipotermia pode modi-
No histórico do caso, é importante saber a experiência ficar a cor da pele, tornando-a rósea, de modo semelhante ao
prévia do mergulhador, se já sofrera acidentes anteriores, que se observa em corpos mantidos em refrigeradores.
qual o tipo de trabalho que estava realizando, por quanto O exame interno requer cuidados especiais para que se
tempo permaneceu submerso e se subiu por suas próprias possa detectar a presença de bolhas de gás dentro de veias,
forças ou foi resgatado da profundidade. artérias e do coração. Alguns patologistas advogam a aber-
Com relação ao mergulhador, devem-se fazer anotações tura do tórax dentro da água e a utilização de aparelhos e
quanto ao uniforme e seu equipamento e fotografar as altera- técnicas requintadas. Achamos que é possível detectar a pre-
ções encontradas antes de despir o corpo. É interessante verifi- sença de bolhas nas cavidades cardíacas pela introdução de
car se estava equipado com medidor de profundidade, relógio, uma agulha grossa unida a uma seringa com água dentro das
lastro de chumbo, faca, meio de comunicação com os outros aurículas. Se houver gás, surgirão borbulhas dentro da água
membros da equipe. A posição da máscara deve ser anotada, da seringa. A pesquisa de gás nos ramos arteriais, que é diag-
bem como o conteúdo de seu espaço. Às vezes, encontram-se nóstica de embolia traumática pelo ar, pode ser feita pela dis-
água, vômito ou alterações faciais que denotam desequilíbrio secção de artérias periféricas e pela inspeção pura e simples
de pressão entre esse espaço e o meio ambiente, como no baro- das artérias gastroepiploicas. As artérias da base do cérebro
trauma, que se acompanha de congestão intensa e edema das podem ser visualizadas pela abertura do crânio da maneira
conjuntivas oculares e mesmo da pele. A peça bucal deve ser usual antes de se abrir o tórax. Basta afastar os lobos frontais
examinada com cuidado, para verificar marcas de mordida que para inspecionar as cerebrais anteriores e deslocar o lobo da
poderiam denunciar a ocorrência de convulsões. O estado geral ínsula para visualizar as artérias cerebrais médias.
da roupa deve ser anotado, principalmente se houver rasgos. A presença de bolhas nas veias não serve para fazer o diag-
Uma parte que não compete ao perito médico, mas é mui- nóstico diferencial entre a doença de descompressão e a em-
to importante, é a análise química dos gases contidos nos tu- bolia traumática pelo ar, pois elas aparecem em ambas. Além
bos e sistema de aeração do equipamento para verificar a pro- do mais, a doença de descompressão não costuma ser mortal,
porção de oxigênio e dos outros gases da mistura fornecida. a menos que se trate de uma descompressão explosiva.
Nos casos com sobrevivência, que correspondem à maio- Como meio subsidiário de valor, pode-se usar a radiolo-
ria, a evolução clínica permitirá fazer o diagnóstico do tipo gia tanto nos vivos como nos cadáveres. A maior transparên-
de barotrauma e de sua extensão. É necessário avaliar se as le- cia do ar à radiografia permite diagnosticar pneumotórax,
sões têm nexo de causalidade com o mergulho, se não foram enfisema em vários planos do corpo, presença de ar nas cavi-
precipitadas por patologia preexistente ou se se trata ape- dades cardíacas etc.
nas de manifestação de doenças prévias, sem relação causal. Havendo suspeita de morte por afogamento, os testes
Conforme já vimos, indivíduos com sinusite, ou otite, são apropriados devem ser feitos.
muito mais suscetíveis ao barotrauma.
As sequelas deixadas dependem do tipo de patologia e
podem ser detectadas em pouco tempo após o acidente, ou • BAROPATIAS POR EXPLOSÕES 31-53
só se manifestar bem mais tarde. Indivíduos que sofreram
doença de descompressão podem vir a apresentar infarto Explosões, em tempos de paz, costumam ocorrer com
ósseo que só trará sintomatologia se houver acometimento finalidade pacífica definida, como abrir túneis, demolir pré-
do osso subcondral das articulações. As incapacidades por- dios, ou produzir efeitos pirotécnicos em comemorações.
ventura persistentes têm que ser avaliadas para fins de in- Mas também podem ser produzidas com propósitos crimi-
denização. O anexo II da Lei 8.213/9 1 estabelece as doenças nosos, como nos atos de terrorismo, raros em nosso país, e
profissionais relativas ao ambiente de ar comprimido no nos atentados contra o patrimônio da rede bancária, cada
item XXIII dos agentes patogênicos' 9• vez mais frequentes. Além dessas causas, ocorrem as explo-
Nos casos de morte, a necropsia tem que ser feita e, de sões inesperadas, acidentais. Na guerra, são as bombas o
preferência, em ambiente de pressão semelhante à existente meio de combate que mais causa baixas.
320 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

Desconsiderando as duas grandes guerras, a história do supersônica com velocidade aproximada de 4.500 m/s, nos
século XX registra inúmeros atentados à bomba, principal- de baixa potência a onda de choque só chega a 1.000 m/s 50 .
mente na segunda metade, desde os praticados pelo IRA Isto é importante porque a onda de choque produzida pelos
(Irish Republican Army) contra as forças inglesas de ocupa- de alta potência tem pico mais alto e duração menor, o que
ção na Irlanda do Norte até os decorrentes do conflito políti- interfere no potencial lesivo do blast. São explosivos de baixa
co-religioso do Oriente Médio. potência a nitrocelulose e a pólvora negra, usadas como pro-
Ao longo desses anos, a tecnologia tem modificado os ex- pelentes dos projéteis de arma de fogo. Também é de baixa
plosivos, razão pela qual começaremos por pequeno resumo potência o combustível dos foguetes balísticos.
dos materiais utilizados. Modificações dos explosivos - A evolução tecnológica e os
objetivos terroristas de aumentar o número de vítimas em
atentados trouxe inovações que merecem registro. Em pri-
Tipos de Explosivos31 ·42 ·48·50
meiro lugar, devemos citar as chamadas bombas sujas, que
Em primeiro lugar, cabe recordar os conceitos já expos- consistem geralmente no uso de munição de artilharia pesada
tos no Capítulo 14, ao descrevermos a carga de pólvora dos à qual são agregadas outras peças de metal das mais varia-
cartuchos das armas de fogo. Combustão é uma reação quí- das formas (pregos, parafusos, peças de máquinas), material
mica em que um corpo é queimado com desprendimento de biológico (bactérias), produtos químicos que geram gases
grande quantidade de calor e de gases. Quando a combustão tóxicos, ou material radioativo. Sempre com a intenção de
é muito rápida, como na queima da pólvora negra, dá-se o aumentar o número de vítimas. Merece destaque o uso do
nome de deflagração ao processo. Mas, quando a combustão fósforo branco, um alótropo do fósforo amarelo, que tem a
de toda a massa do combustível é praticamente instantânea, propriedade de entrar em combustão espontânea em con-
fala-se em detonação. Uma explosão pode resultar tanto de tato com o oxigênio do ar39• A explosão espalha o fósforo
uma detonação como de uma deflagração contida em espa- branco, que gruda na pele e continua queimando, o que cau-
ço confinado. Os materiais que queimam lentamente não sa queimaduras profundas. Enquanto não se cobre o local
têm a capacidade de explodir. Desse modo, os explosivos com ataduras embebidas em soro fisiológico, impedindo o
podem ser classificados em explosivos de alta potência e ex- contato com o ar, a combustão continua e o dano aos tecidos
plosivos de baixa potência. vai aumentando. Além disso, a combustão produz pentóxido
Explosivos de alta potência - detonam mesmo quando de fósforo, que é um gás irritante das vias respiratórias e dos
não confinados. O primeiro deles surgiu quando foi sinte- pulmões39• As bombas sujas são apenas um dos vários tipos
tizada a nitroglicerina, em 1864. Como era um líquido mui- de bombas improvisadas, que são preparadas pelos terroristas.
to instável, e por isso perigoso, sua manipulação requeria Outros tipos usam explosivos de alta potência disfarçados
cuidados extremos e seu transporte tinha que ser altamente dentro de malas, mochilas ou, quando a quantidade tem que
cuidadoso porque explodia com pequenos abalos. Em 1867, ser maior, dentro de automóveis e caminhões, podendo che-
Nobel a modificou pela mistura com materiais inertes, o que gar a centenas de quilos de explosivos. Na Guerra do Iraque
a tornou mais segura para o uso industrial. Surgia a dinami- tais artefatos causaram mais de 2/3 das mortes de soldados
te50. Ao longo do século XX, surgiram novos compostos com das forças invasoras33•5º.
características de explosivos de alta potência. Atualmente, O utro aperfeiçoamento foi a invenção das bombas termo-
são divididos em primários e secundários. Os primários são báricas34·45.so. São engenhos em que há uma carga central que

detonados tanto por choque mecânico como pelo calor. São explode e espalha outro combustível por extensa área no ar,
exemplos sais de chumbo, como o estifinato e a azida, e o que explode a seguir com uma onda de choque um pouco
fulminato de mercúrio48•50 , aos quais já nos referimos no Ca- menos potente mas de duração bem maior do que as con-
pítulo 14 quando descrevemos a mistura iniciadora contida vencionais. Por isso, também são chamadas de bombas com
nas espoletas. Os secundários necessitam de uma ação ini- blast ampliado. São usadas em guerra para limpar campos
ciadora, que pode ser uma pequena explosão. Ora são subs- minados, lesar inimigos em trincheiras, atrás de rochas ou
tâncias simples (TNT - trinitrotoluol, PETN - tetranitrato em cavernas. Na Guerra do Yom Kippur, foram usadas pelo
de pentaeritritol) ora misturas (dinamite, C4, ciclonita, óleo Egito para tirar de ação radares israelenses44 •
combustível-nitrato de amônio) 48 •50 . Entre estes explosivos,
o C4 é o protótipo do explosivo plástico. É feito à base de Dados Históricos
RDX (ciclotrimetilenotrinitramina) misturado a pequena
proporção de borracha, óleo e um plastificador48 • Como tem Segundo Frykberg35 , a explosão não nuclear mais potente
consistência semelhante ao barro, pode ser moldado como da história ocorreu no porto da cidade de Halifax, Canadá,
se quiser para colocar em locais difíceis e para disfarçar sua em 6 de dezembro de 1917. Foi provocada pela colisão de
presença em atentados à bomba. dois navios, um belga e um francês, o Mont Blanc, que car-
Explosivos de baixa potência - Quando queimam ao ar regava combustíveis e munição. As 35 toneladas de benzeno
livre, sofrem deflagração. Mas, quando queimam em espaço que estavam no <leque superior produziram um grande in-
confinado, explodem de modo mais lento que os de alta potên- cêndio que, 15 minutos depois, fez detonar o equivalente a
cia. Enquanto os de alta potência geram uma onda de choque 200 toneladas de TNT em munição. Como consequência, o
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 321

navio francês foi alçado a mais de 1.600 m de altura. Des- mo em 11 de junho de 1996, quando houve uma explosão
truiu prédios num círculo de 2,5 km 2 • Morreram cerca de no Osasco Plaza Shopping, na Grande São Paulo, causada
2.000 pessoas, inclusive todos os bombeiros que já estavam por vazamento de gás da tubulação que passava por baixo
a combater o fogo, e ficaram feridas outras 9.000. Janelas fo- da praça de alimentação. Segundo jornais da época, circula-
ram quebradas a mais de 100 km de distância. vam pelo shopping naquele momento cerca de 2 mil pessoas
Dados da literatura especializada confirmam que entre porque era véspera do Dia dos Nam orados. Resultaram 42
1968 e 1980 houve um aumento de dez vezes no número d e mortos e 372 feridos, vitimados pelo desabamento do piso52 •
atentados terro ristas35; e que, de 1999 a 2006, a prática desses Raramente, a pobreza faz com que pessoas carentes ar-
atos com bombas aumentou quatro vezes, enquanto o nú- risquem a vida na tentativa de reciclar m etais de projéteis
mero de vítimas cresceu oito vezes50 . Dois aspectos devem d e canhões em campos de prova, como ocorreu em abril de
ser realçados nesse contexto. Em primeiro lugar, a colocação 1974 em Gericinó, um local de treinamento de tiro do Exér-
de duas bombas no mesmo local, em pontos diferentes, pre- cito brasileiro no Rio de Janeiro. Geralmente, são indivíduos
paradas para explodir com intervalo de menos de meia hor a, leigos que manipulam os petardos, não tendo a técnica ne-
a fim de vitimar os profissionais que atuam no socorro às cessária para trabalho tão arriscado (Figs. 16. 12 a 16.15 ).
vítimas. Em segundo luga r, para burlar os sistemas de segu- Em m aio de 2002, no Rio de Janeiro, em função da ousa-
rança, o uso dos chamados homens-bomba, muito presentes dia cada vez maior dos traficantes de drogas que infestavam
nos conflitos do Iraque e entre palestinos e israelenses33 •35•37.43• as favelas e as comunidades carentes, impondo leis e regras
A explosão terrorista mais forte d e que se tem notícia foi
a do atentado contra o quartel dos fuzileiros navais norte-
americanos em Beirut, no ano de 1983. Equivaleu a 6 to-
neladas de TNT. Parte do edifício de oito andares desabou.
Ho uve 346 vítimas, das quais 234 (68%) morreram nomes-
mo instante da explosão. Em 1995, na cidade de Oklahom a,
foi d etonada uma bomba amplificada d e nitrato d e amônio,
com poder equivalente a 2 toneladas d e TNT, em frente a um
prédio federal norte-am ericano. Parte do prédio veio abaixo.
Ho uve 759 vítimas co m 162 mortes imediatas. A proporção
de mortos na área que desabou foi muito maior do que nas
áreas que permaneceram firmes (87% e 5%, respectivamen-
te) . Nesse incidente, foi possível constatar a importância do
desabamento do prédio como variável mais relevante na taxa
de mortalidade 35 . O mesmo se deduz da estimativa de que
99% das pessoas que estavam nas torres gêmeas de Manhat- Figura 16.12. Acidente de explosão de obus. A vítima costumava
tan morreram no atentado do dia 11 de setembro de 200 1, desmontar as peças para vender o metal do petardo. Seu corpo apre-
no qual o total de mortes chegou a cerca de 3.000. Calcula-se senta arrancamento do braço esquerdo e de partes da face e do tórax.
que o colapso das torres tenha liberado uma energia equiva- A cor escura deve-se a resíduos de pólvora e a queimadura da pele.
lente a 900 toneladas de TNT35 • Guia 101 da 3~ DP, de 19/04/74.
Até países tradicionalmente tranquilos, como os da Es-
candinávia, não estão isentos. Recentemente, no dia 22 de
julho de 20 11 , um fanático de tendências radicais, neona-
zista, praticou um atentado com um carro-bomba contra o
prédio do governo da Noruega e, em seguida, dirigiu-se a
um acampamento de verão onde se realizava um encontro
de militantes políticos governistas, no qual fuzilou covarde-
mente cerca de 80 pessoas.
Felizmente, a nossa realidade não é essa. As explosões que
fazem vítimas em nosso m eio são produto de acidentes que
resultam, na maio ria das vezes, da inobservância de mínimos
cuidados de prevenção. Em 2 1 de agosto de 1958 houve uma
série de explosões de intensidade variada no Depósito Cen-
tral de Armam ento e Munição do Exército, em Deodoro, Rio
de Janeiro. O fato ocorreu de madrugada e os moradores das
imediações saíram de casa apavorados, mesmo em trajes de
dormir. Conta-se que o som das explosões foi ouvido a vá- Figura 16.13. Outra vítima do mesmo acidente da figura anterior.
rios quilômetros d e distância, onde vidraças fora m quebra- Notar rotura posterior do tórax e os retalhos de pele nas bordas da ferida.
das. Não houve relato de mortes5 1• Mas não ocorreu o mes- Guia 102 da 3~ DP, de 19/04/74.
322 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

próprias, desafiando o poder constituído e estabelecendo


um poder paralelo, um dos seus elementos, ao lidar de modo
atabalhoado com explosivos, foi vítima do próprio engenho.
A bomba que jogaria nos carros da polícia militar explodiu
ao ser manipulada (Figs. 16.16 a 16.19).

Patogenia
Qualquer explosão decorre de uma reação química em
que o material explosivo, líquido ou sólido, é transformado
quase que imediatamente em grande volume de gases que se
expandem de forma violenta. O aumento de volume pode
atingir até 100.000 vezes o original48 • O resultado imediato é
a compressão súbita do ar circundante e o seu deslocamen-

Figura 16.14. Visão da face anterior do corpo da mesma pessoa da


Figura 16.13. A pele está escurecida pelos resíduos da pólvora e revela Figura 16 .16. Destruição das partes moles da parede abdominal an-
extensa ferida que dá acesso à cavidade torácica e à abdominal. terior, da face anterior do tórax, da genitália externa e da faces anterior
e interna da metade superior das coxas, bem como amputação de
ambas as mãos. Caso da Dra. Virgínia Rosa R. Dias do IMLAP. Guia 193
da 21 ª DP, de 12/05/2002.

Figura 16.15. Extensas lesões nos membros inferiores, genitália e


terço inferior do abdômen em outra vítima do mesmo acidente das fotos
anteriores. Reparar o arrancamento parcial da genitália e o grande Figura 16.17. Aspecto da face com destruição das pálpebras e do
número de lesões pequenas e escuras, salpicadas e de forma quase globo ocular esquerdos, escalpo parcial e diversas feridas superficiais
circular. Guia 103 da 3~ DP, de 19/04/74. de bordas irregulares e escoriadas. Mesmo caso da Figura 16.16.
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 323

to a velocidades supersônicas. H á uma onda d e aumento da ser visto na Figura 16.20. Essas variações da pressão atmos-
pressão ao redor do foco, que tende a diminuir com a distân - férica ao redor d o foco geram também um deslocam ento de
cia. A po tência d essa onda cai expon encialmente à medida ar proporcional à intensidade da explosão. É o vento explo-
que se afasta do foco. Já se verificou que a diminuição é pro- sivo. Pod e ter velocidade superior a várias centenas d e qui-
porcion al ao cubo d a distância d o foco (regra de Hopkin- lôm etros por hora 50.
son )48. Po r exemplo, um aumento d e três vezes na distâ ncia O blast, considerado com o o conjunto de efeitos lesivos
proporciona uma redução da pressão da ordem de 27 vezes da explosão, tem sido dividido em primário, secundário, ter-
(3 X 3 X 3 = 27). ciário e quaternário 33·34 ·35·3s.4z.43.46. 5o, O p rimário é a onda de
Forma-se uma onda son ora de alta a mplitude que se ir- cho que propriam ente dita, ou seja, a propagação d o som
radia d o foco da explosão com velocidade inicial d e 3 a 5 através do meio onde se deu a explosão, pois que ela pod e ser
mil m etros po r segundo 45, tanto maior quanto m ais próxima no ar, na água, o u mesmo subterrânea. O secundário resulta
deste, uma vez que o ar comprimido conduz o som mais r a- d e projéteis originad os ta nto do estilhaçam ento do invólu-
pidam ente. É a chama da onda de choque - o blast. Se a ex- cro d o material explosivo como da fragmentação dos corpos
plosão for n a água, a velocidad e dessa onda mantém -se por que estejam suficientemente próximos d o foco. O terciário
grande distâ ncia, pois que o som na água se propaga com d ecorre do deslocam ento súbito do indivíduo pelo vento ex-
muito mais facilidade. plosivo, de mod o que ele pode ser lançado às alturas e cair,
Assim que passa o pico d e aumento de pressão, h á uma ou ser jogado de encontro às estruturas sólidas d o ambiente
qu eda, qu e é tão inten sa que torna a pressão n egativa, ou circundante. Algun s autores incluem com o efeito terciário a
seja, subatmosférica. O gráfico da variação da pressão pod e ação co ntundente do desabam ento d e construções 17·34·42. O
quaternário varia, em seu conteúdo, de um para outro autor.
De um m odo geral, há acordo d e que inclui todas as lesões
não d ecorrentes dos anteriores, como queimaduras, intoxi-
cações por gases e produtos químicos, e irradiação. Recen-
temente, um grupo de autores israelenses descreveu o que
cham am de blast quinário. Seria um estad o hiperinflamat ó-
rio persistente qu e evolui com sudo rese intensa, hipertermia
e retenção hídrica38 •42 .5°.

Mecanismo de Ação do Blast Primário


O interesse pelo estudo da on da d e ch oqu e veio da ob -
servação da m orte de soldado s atingidos por explo sões que
n ão apresentavam lesões externas significativas, como visto
n a Guerra Civil Espanhola e n as duas gran des gu erras mun-
diais38·47. Os estudos iniciais m ais importantes fora m feitos
Figura 16.18. Perda da mão e do punho direitos, restando os ossos por pesquisadores alemães durante a 2~ Guerra Mundial e fo-
do antebraço sem as partes moles de sua metade distal. Idem. ra m seguido s por outros autores no pó s-guerra. Atualmente,

10
Tempo (em mseg)

Figura 16.20. Representação gráfica de um blast. Opico de pressão


Figura 16.19. A abertura da cavidade torácica mostra intensa infil- ocorre nos microssegundos iniciais e é seguido por uma queda tão
tração hemorrágica na parede torácica e no mediastino além de hemo- brusca que chega a causar pequena fase de pressão subatmosférica
tórax. Idem. (negativa) aos 1Omseg.
324 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

os conhecimentos sobre o modo de ação da onda de choque Estudos experimentais mostraram que a duração do
e as lesões por ela provocadas decorrem tanto de trabalhos pico de pressão positiva é muito importante na extensão
de pesquisa como da observação clínica civil e militar. do dano provocado. Quanto maior sua duração, mais in-
Vimos que a onda de choque tem um pico de pressão tensas são as lesões. A integração das duas variáveis (pico
imediato que logo diminui e chega a nível subatmosférico ao de pressão e duração) constitui o impulso. Mas, acima de
longo de aproximadamente 10 ms. Durante a fase positiva, 30 ms, a duração não tem mais grande importância, sendo a
ela promove uma forte agitação das moléculas dos corpos al- intensidade das lesões dependente apenas da intensidade do
cançados, de modo semelhante ao que ocorre quando da con- pico de pressão 44 •48 .
dução do som, seja no ar, seja na água ou num sólido. Assim Outros fatores importantes na patogenia do blast são a
como a velocidade do som é muito diferente conforme a den- posição do indivíduo com relação à direção de propagação da
sidade do meio, o mesmo se dá com o blast primário. Como onda de choque e a repetição da ação. Quando deitado com
a maior diferença de densidade é entre o ar, por um lado, e a os pés ou a cabeça voltados para o foco da explosão, as lesões
água e os sólidos, por outro, os efeitos fazem-se sentir justa- são menos intensas do que se estiver em pé, perpendicular-
mente na interface entre o ar e esses elementos. É semelhante mente à direção do blast48 . A repetição do blast é capaz de
ao que vemos quando observamos um bastão reto sofrer o aumentar muito o resultado lesivo. Experiências feitas com
fenómeno da refração e apresentar uma inclinação a partir do animais de médio porte evidenciaram que um blast capaz de
ponto de entrada, ao ser colocado na água (Fig. 16.21 ). matar 1o/o deles, se repetido depois de 1 minuto, matava 20%
A onda de choque lesa preferencialmente os órgãos e ca- e, se aplicado pela terceira vez após mais 1 minuto, liquidava
vidades que contém ar (ouvido, pulmão, tubo digestivo). Ao com todos. Mas também é importante o intervalo entre uma
entrar em contato com nosso corpo, ela se propaga através e outra onda de choque. Quando cresce o tempo entre as
da pele e dos tecidos subjacentes com grande velocidade mas, explosões diminui a letalidade48.
ao atravessar a parede de um espaço que contenha ar, provo- A onda de choque pode ser refletida por paredes, pelo
ca deslocamento e rotura da parede que delimita esse espaço solo e até pela superfície da água. Quando a explosão ocor-
para o interior da cavidade47'48·50• É semelhante ao que se ob- re em recinto fechado, gera um blast complexo. As ondas se
serva na superfície da água em seguida a uma explosão de refletem várias vezes e multiplicam o efeito lesivo. A onda
carga submersa. Segundo Schardin, citado por Stuhmiller48, o refletida tem efeito m áximo para quem estiver encostado na
blast primário atua por meio de três tipos de forças: de frag- parede ou outro anteparo similar, independentemente da
mentação, de implosão e de inércia. A de fragmentação é a que posição do indivíduo. O máximo de reflexão ocorre quando
lasca e rompe as estruturas da parede do espaço aéreo; a de o obstáculo for perpendicular à direção da onda de choque.
implosão resulta da reexpansão do ar que foi comprimido; Há uma somação dos efeitos da onda incidente e da refleti-
a de inércia representa a resistência dos diversos tecidos dos da48 (Fig. 16.22).
órgãos ao deslocamento, que é maior naqueles mais densos, o
que causa forças de tração entre uns e outros44·50• Blast Primário Submarino
A onda de choque decorrente de explosões submarinas
não costuma ser observada em tempos de paz. Fica mais ou
menos restrita à guerra no mar. Resulta tanto do torpedea-
mento de navios como da detonação de cargas de profundi-
dade na caça aos submarinos.
Quando uma bomba explode dentro d'água produz um
blastque se propaga, como de costume, em todas as direções,

Figura 16.21 . A imagem do lápis sofre deslocamento brusco na in-


terface entre o ar e a água por causa da grande diferença entre os
índices de refração de ambos. Do mesmo modo, a grande diferença
entre as densidades do ar e dos tecidos distorce a interface quando Figura 16.22. Esquema para mostrar a reflexão das ondas de choque
atravessada pelo blast. no solo a partir de uma explosão aérea.
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 325

Em segundo lugar, a distân cia da vítima do foco da ex-


plosão. Como já vimos, a inten sidade do blast diminui ex-
ponencialmente à m edida que a pessoa fica mais dist ante da
explosão. Para uma m esma carga, conforme já vimos, tri-
plicando-se a distân cia, sua inten sidade diminui 27 vezes. A
seguir, interfere o m eio, se a éreo ou aquático. E sendo aéreo,
co mo é a regra, o fato de ser em ambiente aberto ou fechado.
Nos ambientes fechados, com o num ónibu s ou trem , ocor-
re o fen ómen o da reflexão, fo rmando-se um blast comple-
xo, que amplia bastante o pot encia l de dano. Em ambientes
ab ertos, se a vítima estiver posicionada com o corpo parale-
lo ao deslocam ento d a onda de ch oque, por exemplo, de pé
abaixo de uma explosão no ar acima d e sua cabeça, sofrerá
m enor dan o do que se estiver posicionada frontalmente ao
blast. No último caso, estaria deitada sobre o solo e sofreria
Figura 16.23. As ondas de choque A, B e e são refl etidas da superfície também a ação das ondas por ele refl etidas35.43•44 .48•
e vão interferir com a ação das ondas 1, 2 e 3, que vão diretamente ao
Co nfo rme já referimos, são os órgãos e as cavidades que
corpo. As ondas 1, 2 e 3 atuam sem atenuação por tempo que é maior
na onda 3 porque o segmento do corpo que ela atinge está mais distante contêm ar os mais afet ados pelo blast primário. Pela ordem
da superfície e, por isso, a onda C demora mais a chegar. Adaptado de d e frequência, o ouvido médio, o pulmão e o tubo digestivo.
Stuhmiller JH48• Mas, direta o u indiretamente, qualquer setor do co rpo pode
ser lesado, na d ependên cia de todos os fa tores acima referidos.

mas com velocidade maior, pois que a água conduz m elho r


Lesão do Aparelho Auditivo34 •42•4s .4 1.so
do que o ar. Ao chegar à tona ocorre uma reflexão ao m es- O tímpano é o ponto mais sen sível ao blast primário em
mo tempo em que a superfície líquida fragmenta-se e produz n osso cor po. Para que haja rotura, basta um pico de pressão
uma pulverização para o ar adjacente. A o nda refletida tem d e apen as 5 psi acima d a pressão atmosférica. E não poderia
sentido descendente e interfere com a original. Admite-se ser d e outra fo rma, pois é a parte especialmente preparad a
que um n áufrago com colete salva-vidas (obviamente em para sentir as vibrações son oras. Sua lesão já foi con siderada
posição de pé) t em maior ch ance d e sofrer lesões abdominais co mo um marcad or indica tivo d a presença d e lesões internas
do que torácicas porque a onda original age por tempo um viscerais, mas já n ão d esfruta desse conceito . Atualmente, é
pouco maior quanto m ais baixo e profundamente estiver o certo qu e pode ocorrer sua rotura isoladam ente sem que ou -
segm ento corporal48 . É como se a onda refletida da superfície tros órgãos tenham sido lesionad os, ou haver lesão pulmo-
atenuasse os efeitos d a original. Como a refletida custa um nar sem lesão d o tímpano.
po uco m ais a ch egar nas partes m ais b aixas, a original tem O exame rotineiro de vítimas de explosão tem demon s-
mais tem po para atuar com total inten sidade nesses segmen - t rado que as lesões d o tímpano pod em a lcançar até 94%
tos (Fig. 16.23 ). d essas pessoas50 • Os sintom as qu e indicam ter h avido lesão
d o tím pano são dor, sen sação de zumbido inten so e surdez
Lesões Causadas pelo Blast Primário t ran sitó ria. As lesões vão desde a simples infiltração h emor-
rágica a té às ro turas extensas e irregulares. Mas, na ma ioria
Algumas variáveis são muito importantes na produção d as vezes, as roturas são pequ enas e ocorrem n a parte mais
de lesões pela onda de ch oque. Em primeiro lugar, e m ais fibrosa e ten sa da m embrana. Pode, nos casos mais graves,
importante, é a potência d a carga explosiva. É aferida em acompanhar-se d e deslocamento dos ossículos do o uvido mé-
termos da pressão máxima atingida pelo pico da onda de dio e d e contusão das janelas oval ou circular do ouvido in-
choque. As unidad es d e medida m ais u sadas n as publicações terno, com lesão do órgão de Corti 47• As roturas pequ en as
internacionais podem ser vistas na Tabela 16.1. costumam curar espontaneamente em cerca de 92% d os
casos e as gran des, em 20%45 ; 30%, evoluem para surdez re-
lativa às altas frequ ências45 • As roturas maiores pod em d ar
Tabela 16.1. Unidades de medida da pressão origem à fo rmação d e um cisto epidérmico ou d e um co-
lesteatoma durante o processo de repa ração, com destruição
Unidade Eqalnll•la 111 Pa•I parcial dos ossos adjacentes e surdez d efinitiva.
pa (pascal)*
psi (libra por polegada quadrada) - 6.895 pa Lesão Pulmonar36•44-47•5º
atm (atmosfera)' - 101.325 pa O pulmão é a víscer a lesada m ais frequentemente pelo
' Pascal = Nlm' (Newton por metro quadrado); blast primário. Nos pacientes vitimados por explosões que
' 1 atm = 14,7 psi. são internados nos hospitais, há lesão pulmonar em 44% dos
326 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

casos. Mas, se considerados apenas os de maior gravidade, a Normal Pico de pressão


incidência sobe para 71%50• A causa de morte mais frequente
nos sobreviventes iniciais é a lesão pulmonar4 2• Admite-se que I
começa a ocorrer lesão pulmonar quando o pico de pressão
atinge 15 psi. Mas não se pode esquecer que a duração do
blast é extremamente importante nesse contexto. As explo-
sões em locais fechados e as submarinas são mais perigosas.
Os sintomas e sinais clínicos que indicam a possibilida-
de de lesão dos pulmões são taquipneia, dispneia, tosse e Bronquíolo Bronquíolo comprimido
dor torácica. Nos casos mais graves, hemoptise e/ou sinais
de pneumotórax. Um dos exames mais importantes para a
comprovação do comprometimento pulmonar é o radioló-
gico. Nos pacientes que necessitam observação hospitalar, a
radiografia simples de tórax mostra zona de infiltração dos
campos pleuropulmonares de distribuição para-hilar que
lembra uma borboleta ou as asas de um morcego4»46»0• É Bronquíolo reexpandido
interessante realçar que há um visível descompasso entre a Fase de pressão negativa
gravidade das alterações pulmonares e a escassez de lesões
da parede torácica. Figura 16.24. Hipótese de Ho36 para explicar a hemorragia e a embolia
gasosa causadas pelo blast primário. Quando o pico da onda de choque
Ho 36 propôs um mecanismo lesionai baseado nos efeitos
atravessa o pulmão, há uma compressão das unidades alveolocapilares,
da passagem da onda de choque através dos septos e espa-
que diminuem de volume às custas da redução dos espaços alveolares,
ços alveolares. Conforme passa o pico de pressão positiva do uma vez que o sangue (Sg), sendo líquido, é incompressível (esquema
blast, ocorre compressão da unidade alveolocapilar. Como o superior direito). Desse modo, as camadas de tecido entre o sangue e o
sangue dos capilares é incompressível, a compressão dessa ar são rompidas em alguns pontos pela força de fragmentação do blast.
unidade faz-se às custas da redução de volume do ar alveolar. Ao mesmo tempo, o bronquíolo respiratório é fechado pela mesma força
As forças de fra gmentação do blast rompem vários pontos de compressão. Assim que vem, logo em seguida, a negativação da
das membranas que separam o sangue contido nos capilares, pressão, o ar reexpande-se e várias bolhas penetram na luz vascular,
do ar alveolar, pois o conjunto dessas membranas é a interfa- originando a embolia gasosa (esquema inferior).
ce entre esses dois meios de densidades muito diferentes. As-
sim que cessa o pico de pressão, vem a fase negativa da onda inércia e resistiriam por mais tempo do que o conjuntivo
de choque (força de implosão) e o ar alveolar reexpande-se frouxo circundante ao impulso dado pela onda de choque. O
violentamente e invade o sangue através das ro turas deixadas conjuntivo deslocar-se-ia um po uco antes. Isto criaria forças
pelo pico positivo (Fig. 16.24).
de tração e distorção dos vasos capilares e vênulas dessa in-
De acordo com a intensidade e a duração do blast, os fo- terface44. As forças de tração geradas pelo blast também rom -
cos de rotura das paredes alveolares são ocasionais e espar- pem os alvéolos vizinhos a essas áreas, o que permite a en -
sos, ou mais densamente agrupados por todo o parênquima trada de ar no próprio interstício do parênquima pulmonar.
pulmonar. As hemorragias vão desde petéquias vistas por
Esse enfisema intersticial invade o mediastino, o conjuntivo
transparência da pleura, passando por lesões confluentes, até
pleural e pode atingir o tecido subcutâneo do pescoço e de
sufusões hemorrágicas extensas44 . Experiências feitas com
outros segmentos do corpo. Onde houver rotura da pleura
animais de médio porte dem onstraram que a distribuição
contribui para formar o pneumo tórax. Nos casos graves, é
das lesões é preferencial para o pulmão voltado para o foco
preciso muito cuidado se ho uver necessidade de ventilação
da explosão, quando em campo aberto, e que as costelas pro-
assistida. O uso de pressão positiva no respirador pode agra-
tegem o parênquima pulmonar. Assim, nas agressões mais
var os fenômenos embólicos.
intensas, são encontradas faixas hemorrágicas ao longo dos
Houve época em que se acreditava que o vento explosivo
espaços intercostais, vistas através da pleura. A inspeção da
poderia penetrar as vias respiratórias de modo a expandir os
superfície de corte do pulmão confirma que os focos de he-
sacos alveolares até a sua rotura. Contudo, experiências feitas
m orragia se concentram mais nestas áreas, mas também são
com cães traqueostomizados mostraram que, protegendo o
vistos em pontos afastados delas47.
tórax do animal mas, deixando a cabeça e o pescoço, provido
O exame histopatológico em pequeno aumento revela
de uma cânula na traqueia, do lado de fora da proteção, não
distensão irregular d os sacos alveolares, com rotura ocasio-
eram observadas as lesões pulmonares44 •
nal de septos. Comprova as áreas de infiltração hemorrágica
visualizadas à macroscopia e evidencia outras no conjuntivo
Lesões do Tubo Digestivo 34.42 .45.41.so
que engloba os ramos broncovasculares4»47 . Alguns autores
propõem uma explicação mecânica para essa localização. Pelo fato de conter gases, o tubo digestivo torna-se vulne-
Como os tecidos das paredes brônquicas e vasculares são rável aos efeitos do blast primário, mas com incidência bem
mais densos do que o conjuntivo adjacente, teriam maior meno r do que a do pulmão. Havendo apenas uma expio-
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 327

são ao ar livre, a incidência de lesões intestinais varia entre de débito cardíaco diminuído fica abolida 42, havendo ação
0,3 a 1,2% dos sobreviventes42•45. Em ambientes fechados e de um reflexo vagal45. Tal síndrome instala-se em segundos
embaixo d'água a incidência é duas a quatro vezes maior50 • após a explosão e pode matar sem deixar outras alterações
A localização mais frequente é no cólon e na junção ileo- importantes. Nos que sobrevivem, dura de 15 a 30 minutos
cecal34·42.45.47.so. O mecanismo de lesão resulta das forças de antes de reverter à normalidade42·43 . Phillips44 cita um rela-
implosão e de inércia (tração entre os planos da parede intes- to no qual 13 marinheiros nadavam por diversão quando
tinal). Os vasos sanguíneos são estirados. Alguns se rompem foi detonada uma carga explosiva muito próximo a eles, na
e outros não chegam a tanto mas sofrem microtromboses. água. Todos fugiram logo. Seis deles sofreram parada cardí-
Resultam hemorragias, edema e isquemia do segmento in- aca. Dois no primeiro minuto, dois aos 1O e mais dois aos
testinal afetado 50. Esse comprometimento vascular responde 30 minutos após a explosão. Apenas três sobreviveram ao
pelas roturas tardias que são observadas com frequência nes- acidente. Experiências feitas com animais de médio porte,
ses pacientes. mortos por ação explosiva, revelaram a presença de embo-
As hemorragias vão desde petéquias até hematomas lo- lia para as artérias coronárias naqueles com lesão pulmonar
calizados na parede intestinal. Podem ser observadas por importante47 .
transparência da serosa. Além das hemorragias, podemos
encontrar roturas intestinais, imediatas ou tardias, e lace- Lesões pelo Blast Secundário33,34,3a,42,43,5o
rações do mesentério e de seus vasos. Equimoses com mais
de 10 mm de diâmetro têm potencial de evoluir para rotura Constitui a principal causa de lesões por explosões e, se
tardia do segmento intestinal34·42·4s.47.so. não houver desabamento de prédios, a causa de morte mais
Clinicamente, tem-se que pensar em lesão do tubo diges- comum34·38 •42. Conforme já referimos, compreende as lesões
tivo quando houver dor abdominal, náuseas, vómitos, hema- produzidas pelos estilhaços do invólucro da bomba, pelos
têmese, melena, dor retal, tenesmo, dor testicular ou outros pedaços de metal porventura colocados em seu interior,
sinais de irritação peritoneal. Estes sintomas podem levar bem como pelos decorrentes da fragmentação dos corpos
alguns dias para se manifestar4 2·45 . O exame por imagens per- circundantes. A fragmentação desses elementos ocorre pelo
mite visualizar pneumoperitónio e a presença de líquido li- blast primário, mas os pedaços são propelidos pelo vento
vre na cavidade abdominal, além de coágulos aderidos tanto explosivo. Transformados em projéteis supersónicos, esses
à parede intestinal como ao mesentério 45. fragmentos penetram no corpo da vítima com uma ação
perfurocontundente. Se mais volumosos, provocam ação
Outras Lesões pelo Blast Primário32,34,45,41,so contundente de intensidade variada de acordo com a carga
Sistema nervoso central - A possib ilidade de lesão dire- detonada. No caso de vidraças, alguns atuam como cortan-
ta do tecido nervoso cerebral e medular pelo blast primá- tes e mesmo perfurocortantes. Um exemplo histórico é o da
rio é muito controvertida. O mais aceito é o dano causado fragmentação das vidraças do Alfred P. Murrah Federal Buil-
pela embolia gasosa proveniente de lesão grave dos pul- ding no atentado de Oklahoma, em 199543 .
mões32·34·42·47. A comprovação experimental foi feita num es- O raio de alcance desses projéteis é muito maior do que
tudo com cães que eram submetidos a explosões embaixo os efeitos do blast primário. A detonação de um obus de
d'água mas com a cabeça acima da superfície. A necropsia 155 mm produz blast primário cujos efeitos lesivos ao ar
mostrou a presença de bolhas no interior dos vasos da base livre atingem, no máximo, 40 m. Mas seu s fragmentos são
cerebral. A quantidade de ar embolizado é proporcional ao capazes de lesar quem esteja a mais de 500 m da explosão 33 .
grau de lesão pulmonar47 . A embolia gasosa compromete, Como as bombas terroristas têm a finalidade de causar
além do cérebro, a medula. o maior número possível de vítimas, seus autores costu-
Outras alterações cerebrais descritas são a lesão axónica mam colocá-las em locais de aglomeração popular, como
difusa (LAD), focos de hemorragia, e cromatólise em diver- estações de trem, e botar objetos metálicos como parafusos,
sos neurónios32 ·45 . Recentemente, tem sido correlacionada pregos etc. em seu interior para aumentar seu potencial de
a presença da síndrome de estresse pós-traumático (SEPT) a lesar42.
essas lesões cerebrais difusas. Estudo feito com 1.303 sobre-
viventes de explosões, que foram divididos em um grupo Lesões pelo Blast Terciário
com sinais de blast primário e outro sem tal possibilidade,
mostrou que a SEPT incidiu em 30% do primeiro grupo A maioria dos autores considera o blast terciário como a
contra apenas 4% no segundo45 . ação do vento explosivo que lança as vítimas para o ar e de
Cardiovasculares - Acredita-se que parte das vítimas encontro aos objetos fixos33.38•43·45·49. Mas outros acrescentam
que morrem poucos minutos após o impacto da onda de os efeitos do desabamento de prédios e outras construções
choque tenham sofrido uma parada cardíaca precedida de bombardeadas34·42·50 • De qualquer modo, o resultado é a pro-
um quadro de bradicardia, redução do débito cardíaco e dução de lesões por ação contundente passiva e ativa. Con-
hipotensão, com ou sem apneia 42·43 ·44 ·45 . Parece que a respos- vém realçar aqui a ocorrência da síndrome de esmagamento
ta reflexa de aumento da resistência periférica na vigência e da síndrome compartimental50•
328 • CAPITULO 16 Estudo Médico-legal das Baropatias

Lesões pelo Blast Quaternário prédio onde estava em curso uma apresentação de artistas
populares, com a finalidade de culpar os esquerdistas pelo
A tendência geral na literatura especializada é conside- ato. O sargento, que morreu, teve a genitália destruída pela
rar como blast quaternário todas as alterações não causadas bomba que estava em seu colo. O outro caso, ao qual já nos
pelos tipos anteriores. Ou seja, tudo que não puder ser en- referimos, está ilustrado nas Figuras 16.16 a 16.19.
quadrado como primário, secundário ou terciário 33·34·38·46·49·5º.
Stuhmiller50 considera quaternário tudo que não for causado
pela pressão e pelo vento explosivo. Pennardt43 inclui como Aspectos Periciais em Explosões
quaternários os efeitos dos desabamentos. O que nos interessa aqui são os aspectos relativos às ví-
Seguindo a maioria, podemos incluir aqui as queima- timas de explosões. O exame do local é assunto para peritos
duras, a ação química cáustica, os efeitos de gases tóxicos, a
especialistas que trabalham junto a esquadrões de desmonte
radioatividade e o agravamento de lesões e doenças preexis-
de bombas.
tentes34.38·42.s0. Distúrbios psíquicos nos sobreviventes também
Nos acidentes de massa, em que várias pessoas são vi-
devem ser enquadrados aqui50. O uso de bombas incendiárias,
timadas, os que estavam junto ao foco de explosão podem
como as de napalm, aumenta muito a incidência de queima-
ser literalmente destroçados pela onda de choque, restando
duras34·42. As queimaduras decorrentes de bombas costumam
pouco de seus corpos para uma tentativa de identificação.
abranger menos de 20% da superfície corporal3 2. Em ambien-
É o que ocorre com os homens-bomba do Oriente Médio.
tes fechados, ocorre lesão de inalação em cerca de 18% das
Além disso, os fragmentos dos corpos atingidos e desintegra-
vítimas por causa dos gases (monóxido de carbono, gás cia-
dos misturam-se e espalham-se em área com um raio geral-
nídrico) e outros produtos tóxicos liberados pela explosão 32 .
mente maior do que 100 m. É preciso um trabalho paciente
Merecem menção especial as chamadas bombas sujas.
para recolher e juntar todos os despojos humanos encontra-
São artefatos que, com a explosão, espalham materiais no-
dos nas proximidades de uma explosão violenta. A triagem
civos à saúde, como o fósforo branco, material infectado de
dos fragmentos deve ser feita de modo a que se possa contar
lixo hospitalar e resíduos radioativos descartados por clíni-
quantas mãos, pés, bacias, mandíbulas ou crânios foram en-
cas de medicina nuclear. contrados, Enfim, quantas teriam sido as vítimas da explo-
O fósforo branco é um alótropo do fósforo amarelo. Tem
são. Em seguida, a determinação do sexo, da idade e da esta-
a propriedade de entrar em combustão espontânea em con- tura. Nesse particular, é muito importante o achado do útero
tato com o oxigênio do ar numa reação química exotérmi-
ou da próstata porque caracterizam o sexo das vítimas. Um
ca que produz o pentóxido de fósforo, gás muito irritante elemento que se tem que considerar e que pode atrapalhar a
das vias aéreas. É utilizado em guerra química. Quando faz
contagem dos corpos é a presença de segmentos de animais,
contato com a pele, fica aderido e em combustão, de modo
o que não é raro (ver o Capítulo 5 para mais detalhes) . In-
que a queimadura vai se aprofundando. Para interromper a
formações quanto às pessoas que deveriam estar no local e
agressão, aconselha-se remover o material aderido visível e
quanto às desaparecidas devem ser buscadas com parentes
tratar a região com solução de sulfato de cobre a 1o/o para
e amigos e confrontadas com os dados obtidos nesse levan-
neutralizar a reação química. O sulfato reage com o fósforo
tamento. Havendo disponibilidade técnica, a identificação
para produzir fosfato de cobre, que tem cor azul-escura39 .
pelo material genético (DNA) é definitiva.
O corpo das vítimas fica impregnado de resíduos da
Amputações combustão, fuligem e, por vezes, fragmentos do envoltório
Quando as pessoas estão muito próximas do foco de ex- da bomba. É muito comum que se achem numerosas lesões
plosão, podem ter segmentos do corpo amputados, princi- tipo escoriação, pequenas perfurações da pele ou lacerações
palmente nos membros. Sua incidência em vítimas de ex- de bordas escoriadas, resultado do impacto dos fragmentos
plosões varia de 1 a 7%. Particularmente mutilantes são as e resíduos da bomba. Em geral, as lesões são muito próxi-
minas terrestres, que fazem vítimas sobretudo em tempos de mas entre si e de forma circular ou ovalar. As mais alongadas
guerra. Mas podem ficar como armadilhas para os tempos guardam uma certa coerência na direção do seu maior eixo,
de paz se não forem desativadas ao término dos conflitos. As sugerindo seu ponto de origem.
forças atuantes são complexas mas os elementos mais im- A distribuição das lesões mais graves, concentradas em
portantes são o vento explosivo e o blast primário 50. certos segmentos do corpo, juntamente com a orientação das
Dois casos que ocorreram no Rio de Janeiro merecem ser escoriações mais alongadas, pode informar a posição relati-
lembrados. Pouco antes do fim da ditadura militar, em 30 de va da vítima e da bomba. Mason 53 apresenta algumas fotos
abril de 1981, houve uma tentativa de ato terrorista por parte de indivíduos atingidos por bombas terroristas em que essa
das forças radicais de repressão, que não queriam o prosse- distribuição é característica, como no caso de um indivíduo
guimento da abertura política. Havia uma comemoração no vitimado por uma bomba colocada sob o assento do banco
Riocentro pelo Dia do Trabalho e, durante o show, ouviu-se do motorista, acionada por um contato de mercúrio. Ao ar-
uma explosão no estacionamento. Explodira uma bomba rancar com o carro, o metal líquido fechou o circuito e cau-
dentro de um carro Puma, onde estavam um sargento e um sou a detonação. As lesões mais graves foram nos membros
capitão do exército, que iriam colocá-la em algum ponto do inferiores e na bacia53 .
CAPITULO 1 6 Estudo Médico-legal das Baropatias • 329

Nas explosões em ambientes fechados, o efeito do blast é 4. Gardner E, Gray DJ, O' Rahilly R. T he ear. In: Anatomy. A Regional
mais intenso por causa das ondas refletidas e pela projeção Study of Human structure. Philadelphia: W.B. Saunders; 1963.
Capítulo 70, p. 778-793.
de materiais da própria construção, como vigas, janelas, por-
5. Newbegin C, Ell S. Ear barotrauma after flying and diving. Practi-
tas, que funcionam como projéteis e instrumentos contun- tioner; 2000. 244 ( 1607):96/9,102/2, 105.
dentes (blast secundário). 6. Méliet JL. Conséquences physiopathologiques de la plongée suba-
A busca de substâncias radioativas é necessária nos casos quatique et prise en charge médicale des plongeurs. Bull Acad Natle
de ações terroristas, tanto para evitar a contaminação de ou- Méd; 1996. 180(5):985-1002.
7. Molenat FA, Boussuges AH. Rupture of the stomach complica-
tros ambientes como para se determinar o tipo de material
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utilizado, o que é um passo importante para o esclarecimen- (abstract).
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Conforme o tipo de explosivo, são produzidos gases tó- baric conditions. In: Textbook ofMedical Physiology. 9•h ed. Phila-
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intoxicar as pessoas situadas nas galerias e ser, ele próprio, cina/Conselho Federal de Medicina; 2002. 134(maio/junho): 15-6.
o combustível da explosão. Os cianetos são liberados pela 11. OHB - Rio Medicina Hiperbárica Ltda. A História do Mergulho e a
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med.br/mergulho.html.
óxidos ácidos de enxofre e de nitrogênio capazes de se com-
12. Davis RH, Taillez PM. Diving apparatus. vol. 7. Chicago: Encyclo-
binar com a água presente nas vias aéreas, produzindo a le- paedia Britannica; 1964. p. 507-11.
são de inalação (ver Capítulo 17). 13. Fu lton JF. Decompression sickness. Philadelphia: W.B. Saunders;
Os acidentes com fogos de artifício como cabeças-de- 1951.
negro, rojões e bombinhas lesam preferencialmente as mãos, 14. Kane AB, Kumar V. Environmental and nutritional pathology. In:
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que podem ser inutilizadas. Resultam de imprudência na
1999. Capítulo 1O, p. 403 -457.
manipulação ou de defeitos de fabricação. O exame de ou- 15. US Navy Diving Manual, Revisão 6- Volume !: Diving Principies
tros fogos da mesma partida comercial é imperioso para que and Policies. Capítulo 3: Underwater Physiology an Diving Disor-
se avalie a margem de segurança de sua fabricação. O pró- ders, pp. 3- 1 a 3-64. Acessado em 03/05/13, no sítio www.usu.edu/
prio autor deste capítulo quase foi vítima de um rojão de três scuba/navy_manual6. pdf.
tiros por ocasião de uma das vitórias do Brasil no campeo- 16. US Navy Diving Manua l, Revisão 6 - Volume 5: Diving Medicine &
Recom pression Chambers Operation. Capítulo 20: Diagnosis and
nato mundial de futebol de 1986. O terceiro tiro, que deveria Treatm ent of Decompression Sickness and Arterial Gas Embolism,
subir e estourar no ar, desceu para a haste que deveria estar pp. 20- 1 a 20-50. Acessado em 03/05/13, no sítio www.usu.edu/
presa pela mão do usuário. Por sorte, o autor segurava essa scuba/navy_manual6. pdf.
haste com medo, na ponta dos dedos, não tendo sido atin- 17. Woolf N. Embolism. Capítulo 7-4, pp. 52 1-524. In Oxford Text-
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Os sobreviventes podem apresentar apenas lesões leves 18. Matos A. Emergências em med icina submarina. Marinha do Brasil.
ou ser gravemente feridos e internados em serviços de emer- Rio de Janeiro: Força de Submarinos; 1973.
gência dos hospitais vizinhos. O exame para avaliação inicial 19. Brasil. Lei 8.213 de 24 de julho de 1991 (Regula mento da Previdên-
da gravidade é feito pelo próprio corpo clínico dessas ins- cia Social).
tituições. Mas, passado o impacto inicial, capaz de saturar 20. Tetzlaff K, Reuter M, Leplow B et al. Risk facto rs fo r pulmonary
barotrauma in divers. Chest; 1997. 112(3) :654-9.
o sistema de saúde local, cada vítima deve ser reavaliada a
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médio e a lo ngo prazo para ver ser restaram sequelas incapa- ba divers in a swimming pool. Chest; 1995. 107(6): 1653-4.
citantes como, por exemplo, amputações. É necessário esse 22 . Eckert W. Injuries from increased atm ospheric pressure. Capítulo
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nas de fundo psiquiátrico o u neurológico, como na síndro- 23 . Hercules HC. Embolia pelo ar na emersão rápida. Rev IMLGb;
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Hygino de C. Hercules

A energia térmica é percebida por nossos sentidos tanto atingir temperaturas elevadas. Tal fenô meno se deve a uma
pelo calor com o pelo frio, que são, respectivamente, excesso constante física de cada substân cia, que se convencionou
e falta de energia. Tanto um quanto o o utro podem alterar de cham ar de calor específico. Quanto maior o calo r específico
tal maneira o o rganismo, que chegam a provoca r modifica- de um corpo, tanto m aior o número de calorias de que se
ções irreversíveis, traduzidas por lesões de maior ou meno r necessita para elevar sua temperatura em 1 grau. Ainda por
intensidade. A exposição de um ser vivo a temperaturas ex- convenção, diz-se que a água tem calor específico igual a 1. O
tremas acarreta modificações de sua matéria que variam da calor específico das outras substâncias é medido por compa-
congelação à carbonização. Contudo, as doenças e os aciden- ração com o da água. Os metais são aquecidos e se resfriam
tes pelo calor são muito mais frequentes, em virtude do clima rapidamente porque têm calor específico muito baixo.
tropical de nosso país e do uso da energia térmica par a fins De acordo com a quantidade de calor que possua, cada
dom ésticos e industriais. Os acidentes pelo frio limitam -se substância pode estar no estado sólido, líquido o u gaso-
às regiões geográficas de inverno rigoroso e às indústrias de so. Sempre se apresenta no mesmo estado físico à mesma
refrigeração. temperatura, desde que não varie a pressão exercida sobre
Tanto o calor como o frio podem lesar o organism o, quer sua su perfície. Assim, por exemplo, a água é líquida acima
atuando de mod o difuso, ou concentrando-se em determi- de OºC e sólida abaixo desse limite. Diz-se, portanto, que o
nado ponto de sua superfície. Para entender os mecanism os ponto de fusão da água é 0°C. Mas a pressão pode modificar
lesionais da ação térmica, é preciso conhecer algo dos princí- para mais ou para menos o ponto de fusão de uma substân-
pios da termo dinâmica. cia, desde q ue o seu volume sofra m odificação do estado só-
lido para o líquido. Assim, as substân cias que diminuam de
volume ao se fundirem terão seu ponto de fusão abaixad o
• NOÇÕES BÁSICAS DE TERMOLOGIA 1 pelo aumento da pressão sobre sua massa. Fundir-se-ão a
temperaturas m enores.
A energia térmica de que um corpo é dotado é medida em Porém , o próprio fenôm eno da fusão consome calor. Se
unidades chamadas calorias. Uma pequena caloria é a quan- precisarmos fundir alguns gram as de enxofre, terem os que
tidade de calor necessária para elevar de 1 grau centígrado aquecê-lo até que atinja sua temperatura de fusão. Enquanto
a temperatura de 1 g de água sob pressão constante. A tem - ainda houver qualquer quantidade de enxofre não fundido, a
peratura de um corpo qualquer depende da quantidade de temperatura manter-se-á constante por m ais que aqueçam os
calor que possua no m omento da aferição. É a expressão do o frasco que o contém. Isso só ocorre porque todo calo r fo r-
estado de aquecimento de determinado corpo, m as não diz necido ao frasco é usado no processo da fusão. Terminada a
exatam ente se possui grande ou pequena quantidade de calor. fusão, a temperatura voltará a se elevar no mesmo ritmo. Por
Certos corpos se aquecem muito mais rapidam ente que outro lado, a recíproca é verdadeira. O resfriamento da subs-
outros e, por isso, requerem menor quantidade de calor par a tância fundida provoca diminuição de sua temperatura, que

331
332 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

vai caindo até atingir o ponto de solidificação, que é igual ao mais do organismo - metabolismo básico. Um acréscimo de
de fusão. Nesse momento, não mais haverá abaixamento da 70 kcal, se não for dissipado, vai elevar a temperatura corpo-
temperatura, até que toda a massa da substância esteja soli- ral de um homem médio em 0,8°C4. Alguns hormónios são
dificada. Durante o fenómeno da solidificação, a substância capazes de acelerar esse metabolismo e, por consequência,
devolve todo o calor que usou para se fundir. aumentar a produção basal de calor, como a tiroxina (da ti-
O calor também provoca a passagem de uma substância reoide), o hormónio hipofisário do crescimento, a testoste-
do estado líquido para o gasoso. O aquecimento continuado rona e a adrenalina. Como veremos mais adiante, a própria
de uma substância líquida faz com que ela passe ao estado de elevação da temperatura corporal também acelera o ritmo
vapor, consumindo para esse fenómeno algumas calorias do metabolismo.
que constituem o calor latente de evaporação, assim como no Se considerarmos cada tipo de célula por si, teremos de
exemplo anterior há o calor latente de fusão. O calor neces- reconhecer o hepatócito como a que tem o maior potencial
sário para passar 1 g do estado líquido para o gasoso varia de produção, seguida pelos neurónios e pelas fibras muscu-
de uma substância para outra. Um grama de água consome lares esqueléticas. Mas, no conjunto, o tecido muscular é o
0,58 cal para se evaporar2• O calor latente de evaporação é que mais calor produz por causa de sua grande massa 5• A
sete vezes maior do que o de fusão. Certas substâncias que se Tabela 17.1 mostra o calor produzido pelo corpo de um ho-
evaporam muito rapidamente provocam resfriamento brus- mem de 70 kg em algumas situações rotineiras.
co da superfície com que estejam em contato. Esse princípio A temperatura normal do ser humano varia, conforme a
é utilizado na construção de refrigeradores e pode ser senti- pessoa, de 36 a 37,SºC. Já em 1868, Wunderlich afirmava que
do quando molhamos a mão com éter. não há uma temperatura que se possa chamar de normal,
Sempre que dois corpos entram em contato, o mais aque- sim um intervalo, pois que ocorrem variações ao longo do
cido cede calorias ao de menor temperatura. Esse fenómeno, dia e conforme a atividade física desenvolvida 3. O valor mais
ao qual se dá o nome de troca de calor, é a base da termodi- baixo ocorre nas primeiras horas da manhã e o mais alto, ao
nâmica. Mas a dissipação do calor de um corpo não se faz final da tarde3•6•7• A diferença média é de 0,5ºC7. Há, inclusi-
apenas quando ele entra em contato com outro menos aque- ve, uma correlação funcional entre a curva térmica ao longo
cido. Ocorre também sob a forma de energia radiante, com do dia e o sono. Sabe-se, hoje, que tal relação é muito mais
ondas de maior comprimento que as da luz, ou por meio da estreita do que se supunha algum tempo atrás. Os neurónios
convexão, que é o arrastamento do calor de um corpo através que regulam o sono estão localizados na mesma região do
de uma corrente líquida ou gasosa, posta em contato com cérebro que os encarregados da manutenção da temperatu-
sua superfície. Embora pareça supérfluo, o conhecimento ra normal8• Além disso, a temperatura corporal varia com o
desses conceitos básicos é imprescindível para a compreen- ciclo menstrual. No período de ovulação há um aumento de
são dos fenómenos que passaremos a estudar. cerca de 0,3 a 0,5°C, sob a influência da progesterona 9•
Recém-nascidos tendem a um comportamento pecilotér-
mico, o u seja, ter a Te (temperatura central) desviada para
• AJUSTE DA TEMPERATURA CORPORAL mais o u para menos conforme o ambiente. Isso ocorre por-
que a relação da sua superfície corporal com o peso é, em
A vida resulta de numerosas e complexas reações quí- média, três vezes maio r do que a dos adultos'º, seu sistema
micas, catalisadas por substâncias especiais, geralmente pro- de termorregulação ainda não está maduro, sua capacidade
teínas, chamadas enzimas. As enzimas formam sistemas que de produção de calor é pequena, pois tem massa muscular
constituem verdadeiros centros de construção e de demoli- escassa, e sua capacidade de suar ainda é baixa4 •
ção do edifício orgânico da matéria viva. Para que os siste- Durante a prática de exercícios físicos intensos, a produ-
mas enzimáticos possam funcionar eficientemente, necessi- ção de calor chega a aumentar 20 vezes", e a temperatura
tam de ótimas condições, entre elas uma temperatura ade-
quada a cada um. É por isso que cada espécie precisa manter
a temperatura de suas células dentro de certos limites, fora Tabela 17 .1. Gasto de energia durante diferentes atividades5
dos quais os sistemas enzimáticos se tornam inoperantes,
sobrevindo a mo rte. Tipo de AUvldade calaria (tal por hora)
O calor corporal provém das reações oxidativas que Dormir 65
ocorrem no interior celular, principalmente a oxidação aeró- Ficar de pé relaxado 105
bica da glicose, transformada em água e gás carbónico. Em Andar devagar 200
repouso, mais da metade desse calor resulta da incapacidade
Exercitar-se intensamente 450
de os processos bioquímicos armazenarem sob a forma de
ATP toda a energia gerada pela queima dos alimentos3 • A Nadar 500
molécula do ATP (adenosina trifosfato ) possui ligações quí- Correr a quase 1O km por hora 570
micas ricas em energia que, quando rompidas, liberam-na. O Andar muito rápido 650
restante do calor do indivíduo em repouso é produzido pelas
Subir escada 1.100
reações químicas necessárias à manutenção das funções nor-
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 333

interna pode atingir 40°C sem que isso signifique anormali- simpáticos do sistema nervoso autónomo, a substância reti-
dades. Medições feitas em maratonistas mostraram que sua cular do tronco cerebral, o sistema límbico e o hipotálamo 3 .
temperatura pode chegar a 41°C quando correm sob clima A área pré-óptica do hipotálamo anterior tem os neurónios
temperado, a 25°C. Quando medida no reto, tem cerca de sensíveis ao calor e ao frio que comandam as respostas refle-
1ºC a mais do que a registrada na cavidade oral. Mas é pre- xas e comportamentais do indivíduo. No hipotálamo poste-
ciso referir que, conforme o local escolhido para a aferição, rior, há grupos de neurónios, próximos aos corpos mamila-
a diferença pode ser ainda maior. Por isso, os autores cos- res, um à esquerda e outro à direita, que recebem as infor-
tumam especificar se a medida foi realizada na superfície mações dos sensores periféricos e estímulos provenientes dos
cutânea ou no interior do corpo, quando publicam estudos a neurónios pré-ópticos. A maioria dos neurónios posteriores
respeito da influência do calor e do frio sobre o nosso orga- comanda a retenção e o aumento da produção de calor, que
nismo. A temperatura interior, ou temperatura central, pode são respostas ao frio. Normalmente, a resposta hipotalâmica
ser medida no esófago, na cavidade timpânica, no cérebro, pode ser antecipada pela temperatura da pele. Se ela subir,
ou por meio de termómetro colocado no interior de uma os termorreceptores cutâneos enviam sinais que iniciam a
grande cavidade corporal. Qualquer que seja a temperatura, resposta apropriada antes mesmo de ser atingido o ponto
porém, seu valor sempre será o resultado do balanço entre a de ajuste. É como se o organismo prevenisse a subida da Te.
produção de calor pelas reações energéticas do metabolismo Quando a temperatura da pele desce, ocorre o inverso, ou
e a sua dissipação. seja, entram em ação os mecanismos de ajuste ao frios.
Para que seja mantida a faixa de temperatura normal, é Na realidade, a resposta dos núcleos posteriores é mo-
preciso que haja um sistema de detecção de aumento da pro- dulada pelos estímulos inibitórios provenientes dos neuró-
dução ou da perda de calor de modo a restabelecer o equi- nios sensíveis ao calor da área pré-óptica. Assim, quando o
líbrio sempre que houver uma alteração de qualquer dessas sangue que passa pela área anterior está mais quente do que
duas variáveis. Isto é feito pelo sistema nervoso por meio de o tolerável, os neurónios sensíveis ao calor, que são a maio-
sensores periféricos e centrais, de centros de termorregula- ria nessa área, emitem sinais que vão inibir os neurónios
ção e de mecanismos efetores. Tal sistema é tão eficiente que conservadores de calor dos núcleos posteriores. Essa via de
a Te se mantém na faixa entre 36,l e 37,7°C mesmo quando comunicação neuronal é mediada pela dopamina. Os neu-
um indivíduo de porte m édio é mantido nu por várias horas rónios hipotalâmicos responsáveis pela perda de calor são
em ambiente de ar parado e seco sob temperaturas baixas dopaminérgicos 14•1s. Sua sensibilidade pode ser aumentada
como 13ºC o u altas como ss0 c s. pela ação de uma substância, a bombesina 3• Os responsáveis
pelo aumento da Te são serotoninérgicos 15 • Se o sangue es-
tiver mais frio do que o conveniente, cessa a ação inibitória
Sensores
da área pré-óptica e os centros posteriores aumentam suas
São estruturas nervosas especializadas, capazes de res- descargas que comandam a conservação do calor 3•5 . A maio-
ponder a estímulos de aumento e de baixa da temperatura ria dos fisiologistas atuais acredita que o sistema termorre-
do sangue e dos tecidos vizinhos. Estão localizadas tanto na gulador integra as diversas informações e trabalha como um
pele como no sistema nervoso central, nas vísceras e paredes termostato que tem uma faixa de temperatura de ± 0,2°C,
das grandes veias 12 . No sistema nervoso central, os sensores cujo limite superior é o ponto de início da resposta ao calor,
são neurónios especializados localizados principalmente na sendo o limite inferior o de início da resposta ao frio. Dentro
área pré-óptica do hipotálamo. Cerca de 3/4 deles são sen- dessa faixa está o ponto de ajuste3•5•16• O ponto de ajuste é a
síveis ao calor e 1/4 é sensível ao frio. Também participam temperatura máxima que os neurónios da área pré-óptica
neurónios medulares. Na pele, são terminações de fibras dos podem aceitar sem comandarem a resposta necessária de re-
nervos periféricos em que predominam os sensíveis ao frio, dução da produção e aumento da eliminação do calor. Há,
que chegam a atingir proporções de até 10:1 em algumas re- porém, doenças em que o ponto de ajuste é deslocado para
giões do corpo, como nos lábios. Os corpúsculos de Ruffini cima, como na febre dos processos infecciosos, e outras em
e os bulbos de Krause, tidos outrora como receptores térmi- que é rebaixado, como na hipotermia periódica espontânea7 •
cos, na realidade parecem ser mecanorreceptores12 •13 • Ainda
não foram identificados histologicamente os receptores ao
Efetores
calor, mas os sensores cutâneos ao frio são ramificações ter-
minais de fibra s sensitivas que fazem protrusão para a base São os processos orientados para a correção dos desvios
das células da camada basal da epiderme 12• da Te. Podem ser abordados como mecanismos de abaixa-
mento e de elevação da Te. Ao lado desses mecanismos,
Centros Reguladores ocorrem ajustes gerais da fisiologia do organismo nos siste-
mas cardiovascular, respiratório e endócrino, que discutire-
A parte do sistema nervoso que regula a temperatura é mos a propósito da exposição das pessoas ao frio ou ao ca-
um conjunto complexo de vias e centros nervosos. Fazem lor. Por exemplo, a proporção de plasma no sangue costuma
parte feixes de fibras ascendentes medulares que conduzem aumentar no início da exposição ao calor (hemodiluição ) e
os impulsos nervosos dos sensores periféricos, os gânglios diminuir pela ação do frio (hemoconcentração) 17•
334 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Mecanismos de Abaixamento da Te sua maior condutibilidade. Aqui é impo rtante lembrar que o
tecido subcutâneo, rico em gordura, exerce papel fundam en-
Baseiam-se tanto no transporte do calor gerado no inte- tal na proteção individual contra as perdas de calor. Assim,
r ior do corpo para a pele e dela para o m eio ambiente com o os indivíduos gordos resistem por mais tempo em águas frias
na diminuição da sua produção. Tal tra nspo rte tem uma do que os m agros.
via ativa e outra passiva. A ativa é a circulação sanguínea. A
passiva resulta da transferência por contiguidade das cama- Evaporação
d as profundas para as superficiais. Com o, normalmente, a
pele tem temperatura menor que a do interior do corpo, o Em condições habituais, há uma evaporação imperceptí-
sangue a aquece em ritmo diretamente proporcional à dife- vel de água na pele e nas vias respiratórias, com um consumo
rença. Confor me a temperatura do m eio ambiente, a perda de 12 a 16 calorias po r hora. Mas, quando os m ecanismos
dar-se-á de mo do mais o u menos rápido, podendo até não descritos anteriormente são ineficazes, o organismo lança
ocorrer se o ambiente estiver mais aquecido do que a pele. O mão da sudorese para aumentar a evaporação com o fim de
fluxo sanguíneo da pele pode ser ajustado às necessidades da dissipar o calor endógeno e mesmo para resistir aos ganhos
regulação térmica pelos centros nervosos. de calor provenientes do meio ambiente.
As perdas de calor para o ambiente resultam de mecanis- Em função dessas fo rmas de dissipação do calor, o nosso
m os distintos: irradiação, condução, convexão e evaporação. organismo consegue diminuir a tendência de elevação da Te
por vias distintas mas sincronizadas. São elas:
Irradiação 1) Vasodila tação - Tem a finalidade de oferecer mais san-
gue aos tecidos da pele, de modo a haver m aior irradiação do
O calor é uma m anifestação de energia radiante com calor para o meio ambiente. A pele tem duas redes vasculares
comprimento de onda maior do que o extremo visível da luz importantes nessa função (Fig. 17.1 ). Um plexo papilar, lo-
vermelha. Nessa faixa, ficam os raios infravermelhos. Siste- calizado nas papilas dérmicas, e uma rede venosa importante
mas ópticos sensíveis a essa radiação permitem ver pessoas e situada no limite entre a derme e a hipoderme. O calibre das
animais de sangue quente na escuridão. Aparelhos desse tipo arteríolas e vênulas que irrigam essas redes vasculares pode
são usados na patrulha de fronteiras e em operações milita- sofrer grandes variações, de modo que o fluxo sanguíneo
res durante a noite. Sendo a temperatura da pele superior à pode ser controlado, de acordo com as necessidades, por
do ambiente, ocorre perda de calor por irradiação, podendo impulsos nervosos do setor simpático do sistema nervoso
correspo nder a mais de 60% do total das perdas. Caso con- autô nom o em resposta a com andos hipo talâmicos. O ple-
trário, o corpo humano absorve energia calorífica do meio, o xo venoso que fica entre a derme e a hipoderme é su prido
que não é raro em nosso clima tropical. pelo sangue dos capilares do plexo papilar e por anastomoses
arteriovenosas localizadas na hipoderme vizinha e presentes
Condução em m aior número nas mãos, pés e orelhas. A abertura e o
Resulta da transferência de calo r por contato direto da fechamento dessas anastomoses são regulados pelo grau de
pele com outros materiais. O mais comum é com o ar. As ca- contração de esfíncteres de m úsculo liso ali situados. Quan-
madas de ar em conta to com a pele são aquecidas e transfe- do o fluxo é máximo, pode representar até 30% do débito
rem o calor para as camadas vizinhas superpostas, formando card íaco, tornando o poder de condução do calor para o
meio ambiente cerca de oito vezes m aiors.
uma corrente de energia calo rífica. Mas, como a condutibi-
2) Sudorese - O estímulo à sudorese vem por via d o sis-
lidade térmica do ar é muito baixa, sem haver a renovação
das camadas em conta to com a pele, tal mecanism o torna-se tema nervoso autônomo simpático, cujas fib ras termin ais
liberam a acetilcolina, não a noradrenalina, com o m ediador
pouco eficiente, podendo chegar apenas a 15%. Rou pas que
químico. Aumenta quando a Te ultrapassa 37ºC como con-
mantenham uma camada de ar ao redor da pele são mais
sequência de atividade muscular m ais intensa ou de sobre-
eficientes na pro teção contra o frio do que as que ficam mais
carga externas. Sob temperaturas superiores a 20°C, a eva-
justas no corpo.
poração do suor é a fo rma m aior de dissipação do calor 11 •18 •
Convexão Sabendo-se que cada grama de água consome 0,58 Cal para
se evapor ar, concluímos que cada litro de suor evapor ado
Ocorre quando um fluido se desloca sobre a pele. Assim, elimina do corpo 580 Cal. Um grau a mais na Te pro duz
a renovação das mo léculas em contato com o nosso corpo aumento da perda de calo r por eva poração equivalente a dez
faz com que a rem oção do calor seja muito acelerada. Os vezes a produção basal do organismos. O início do aumento
ventiladores servem como meio de refrigeração por esse da sudo rese em ambientes de temperatura elevada depende
mecanismo. Mas é preciso que o ar esteja com temperatura da atividade física exercida e da umidade relativa do ar. Como
inferio r à da pele. Se o fluido for a água, a capacidade de verem os mais adiante, a resultante da temper atura ambien-
refrigeração será muito maior. Os banhos frios durante o te e da umidade do ar é o que se chama de temperatura
verão são muito salutares. O corpo imerso em água fria per- efetiva' 8·' 9 • As glândulas sudoríparas também respondem à
de calor muito m ais rapidam ente d o que exposto ao ar em adrenalina circulante, mas com suor de composição diversa
movimento por causa do maior calor específico da água e da da habitual. É o que ocorre nos estados de medo e de tensão.
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 335

Epiderme como resposta dos esfíncteres das anastomoses arterioveno-


sas e da musculatura lisa das paredes vasculares a estímulos
provenientes do hipotálamo posterior através do sistema
nervoso autónomo simpático.
2) Ereção dos pelos - A pele fica arrepiada. É um meca-
Derme nismo vestigial no ser humano, mas eficiente na maioria
dos outros mamíferos. Os pelos eriçados conservam uma
camada de ar não renovado e aquecido em contato com a
pele. A ereção dos pelos deve-se à contração dos músculos
piloeretores.
3) Tremores -Ao contrário dos dois anteriores, que redu-
zem as perdas, os tremores visam a aumentar a produção do
calor. Resultam de descargas de um núcleo nervoso situado
Figura 17.1. Desenho esquemático de um corte histológico de pele, na parede lateral do terceiro ventrículo cerebral, que entra
mostrando a epiderme, a derme e a hipoderme: 1) haste de pelo com em atividade quando a Te cai, mesmo que por menos de 1ºC.
glândula sebácea; 2) glândula sudorípara; 3) músculo piloeretor; 4) plexo Essas descargas excitam os neurónios medulares responsá-
vascular subpapilar; 5) plexo vascular profundo. veis pelo tónus muscular. O aumento do tónus distende
certas estruturas, os fusos musculares, que comandam o seu
relaxamento. Como os estímulos continuam, o tónus volta a
Habitualmente, as células secretoras das glândulas sudo- aumentar, criando-se, assim, uma sequência rápida de con-
ríparas produzem um suor que tem composição muito pa- trações e relaxamentos sucessivos. Quando o tremor está no
recida com a do plasma, mas sem as proteínas. Contudo, ao auge, a produção de calor aumenta cerca de quatro a cinco
longo dos <lutos excretores glandulares, ocorre uma absorção vezes o valor normais.
dos íons de sódio e de cloro. Tal absorção, porém, depende 4) Aumento do metabolismo - Os neurónios do hipo-
da velocidade da secreção. Se for lenta, quase a totalidade tálamo anterior, quando resfriados, liberam um neuro-hor-
é reabsorvida, de modo que a concentração do sódio, por
mónio que age na adeno-hipófise, fazendo-a liberar o TSH
exemplo, reduz-se a apenas 5 mEq/L, quando no plasma o
(thyroid stimulating hormone - hormónio tireoestimulante).
normal é de 142 mEq/L. Por isso, a água também é reabsorvi-
Por sua vez, o estímulo da glândula tireoide libera outros
da, o que, no final, aumenta a concentração dos outros solu-
hormónios que aceleram o ritmo do metabolismos. Mas esse
tos, e do próprio cloreto de sódio. Se a velocidade da sudação
ajuste é lento. Não resolve o problema imediato. Mais eficaz
for mais rápida, não dá tempo de haver muita reabsorção ao
é o estímulo à queima da chamada gordura marrom, pre-
longo dos <lutos, e a concentração do sódio no suor elimina-
sente nos animais hibernantes e nos infantes humanos sob
do chega a 65 mEq/L, como ocorre em atletas mal condicio-
a ação da adrenalina. Essa queima produz energia que não
nados18. Isso leva a pessoa não acostumada ao calor a perder
é armazenada como ATP, e sim eliminada sob a forma de
15 a 30 g de cloreto de sódio por dia quando exposta ao cli-
ma tropical. A adaptação vem em 4 a 6 semanas através do calor. Além disso, admite-se que os núcleos posteriores do
aumento da reabsorção nos <lutos e da produção de maior hipotálamo possam intervir diretamente no metabolismo
quantidade de aldosterona pelas glândulas suprarrenais, re- quando houver um desvio para menos da Tc7• Mas essa ação
duzindo a perda de sal a apenas 3 a 5 g por dias. Esquemas pode ser anulada quando a Te descer exageradamente, como
de carga de trabalho muscular crescente dia após dia permi- na hipotermia. Aqui, ocorrerá redução do metabolismo pelo
tem encurtar o tempo de aclimatação para 1 a 2 semanas 19. abaixamento da temperatura das células em geral. É o con-
Atletas bem condicionados e aclimatados chegam a suar 4 L trário do que acontece quando a Te se eleva, qualquer que
por hora, mas com concentração de apenas 5 mEq/L, o que seja a causa. O metabolismo celular basal aumenta em 10%
impede a hiponatremia 18. para cada 0,6ºC de elevação da Te acima do valor normal1 8•
3) Inibição da produção de calor - A velocidade das rea-
ções químicas metabólicas pode diminuir por influências Controle Local
hormonais. Além disso, há uma redução do tónus muscular.
Além do controle central pelo hipotálamo, existem rea-
Mecanismos de Aumento da Te ções de ajuste locais. A dilatação ou a constrição dos vasos
sanguíneos e a sudorese podem ser ativadas diretamente pela
Quando há necessidade, sempre que for detectada uma temperatura do segmento e por via reflexa medular. Mas a
tendência de diminuição da Te, o organismo executa algu- intensidade dessas respostas também depende de um con-
mas manobras para reduzir a perda de calor e aumentar a trole superior exercido pelo hipotálamo. Interrompendo-se
sua produção pelo metabolismo. São elas: a conexão com os núcleos hipotalâmicos, as respostas seg-
1) Vasoconstrição - Tem a finalidade de reduzir o fluxo mentar e local não são suficientes para corrigir distorções
sanguíneo cutâneo de modo a reter o calor interior. Ocorre mais amplass.
336 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Controle Voluntário dos mórbidos podem mantê-los no leito, com prejuízo das
perdas calóricas por irradiação 20 •
Apesar da sintonia fina do sistema de controle da Te, o A manutenção de uma boa hidratação é fundamental para
ajuste mais eficiente é exercido pelo próprio indivíduo. Ins- impedir a instalação das doenças mais graves relacionadas ao
tado pelo desconforto causado pelo calor ou pelo frio, ele calor. A falta de líquido no organismo dificulta a sudorese e
procura ambiente que Lhe reduza o mal-estar. No calor, pro- o aumento do débito cardíaco necessários aos mecanismos
cura ambiente mais fresco e ventilado, diminui sua atividade de ajuste. Desidratações da ordem de 1% do peso corporal já
física e procura ingerir maior quantidade de água. No am- prejudicam o desempenho de atletas que realizam provas de
biente frio, procura um abrigo, veste agasalhos e procura in- resistência 19 . Nas finais do Campeonato Brasileiro de Futebol
gerir bebidas mais quentes. Como veremos mais adiante, as de 2002, o horário estabelecido para os jogos foi postergado
modificações nesse padrão de comportamento em idosos e por 1 hora, de modo que os atletas não tivessem que enfrentar
em doentes mentais são fatores predisponentes às patologias temperatura superior a 40ºC dentro de campo.
ambientais causadas tanto pelo calor como pelo frio. Como já referimos, o efeito do calor ambiente sobre as
pessoas é mais intenso naquelas não aclimatizadas. A fase
de aclimatização costuma ser acompanhada por alterações
• AÇÃO DO CALOR DIFUSO na composição e no volume do suor durante atividade fí-
sica intensa. Em regiões quentes como o Rio de Janeiro, as
A exposição de um indivíduo a ambiente de temperatura doenças relacionadas ao calor são mais comuns em turistas
elevada pode levar ao aparecimento de distúrbios que são provenientes de locais de clima temperado ou frio do que
chamados genericamente de doenças relacionadas ao calor. nos seus habitantes. Em particular, é preciso que se esclareça
Resultam da incapacidade de o organismo eliminar o calor que a agressão de um dia de calor muito intenso é menos
a mais recebido do meio ambiente, que vem se somar ao ca- prejudicial do que ondas de calor com dias seguidos de tem-
lor endógeno. Como, pelo efeito estufa, tem-se notado um peraturas altas, mesmo que um pouco menos elevadas32 •33• A
aumento da temperatura global, que é agravado periodica- sequência ininterrupta de sobrecarga térmica acaba esgotan-
mente pelo fenómeno El Nino, é de se esperar um aumento do a capacidade de resistência do organismo não adaptado.
da incidência dessas doenças. Chama-se de intolerância ao A ocorrência de doenças relacionadas ao calor depende
calor o fato de algumas pessoas apresentarem aumento da Te também das condições de habitação de cada pessoa. Em pri-
mais rápido do que a maioria sob condições semelhantes 15• meiro lugar, o ambiente urbano é mais agressivo do que o rural.
A par dos elementos climáticos, fatores individuais cons- Nas cidades, a proximidade das construções entre si faz com
titucionais e/ou ocasionais podem favorecer o desajuste da que haja maior retenção do calor atmosférico pelo concreto e
regulação térmica. A idade modifica a capacidade de ajuste pelo asfalto, bem como interceptação da ventilação. No bairro
térmico. Crianças e idosos são os grupos mais suscetíveis. de Copacabana, no Rio de Janeiro, os moradores de aparta-
Conforme já assinalamos, os recém -nascidos são muito mentos localizados em edifícios de quadras mais afastadas da
vulneráveis ao estresse térmico, tanto positivo como negativo. praia sentem maior desconforto térmico, pois não recebem a
Lidam mal com o calor e com o frio ambientais. Seu excesso brisa do mar. De um modo geral, apartamentos desprovidos
de superfície corporal, contudo, favorece mais as perdas tér- de ar-condicionado são menos confortáveis do que uma casa
micas. Entretanto, se deixados em ambientes quentes, sua Te situada em local mais ventilado. É o que se nota, por exemplo,
pode subir rapidamente. Durante os primeiros anos de vida, nos bairros pobres de Nova York31• Semenza 33 verificou maior
as crianças continuam mais sensíveis porque seu metabolis- mortalidade entre os moradores desses tipos de apartamentos
mo é mais intenso que o dos adultos, e sua Te costuma subir na onda de calor que assolou a cidade de Chicago no verão de
mais rapidamente, sobretudo quando se associa certo grau 1995. No Rio de Janeiro, as favelas formadas por casas de alve-
de desidratação. A observação atenta é fundamental, pois naria e laje, sem cobertura por telhado, muito próximas entre
quadros graves, e mesmo fatais, de hipertermia podem-se si, separadas por estreitas vielas, são altamente insalubres. Mas
instalar em crianças muito ativas sob estresse térmico em seus moradores já estão aclimatizados.
menos de 1 hora 18 • Mesmo pessoas acostumadas podem ver-se em situações
Os idosos costumam ter menor capacidade de ajuste de acentuado estresse pelo calor, seja por causa da profissão,
porque não conseguem aumentar seu débito cardíaco por como bombeiros, caldeireiros e foguistas, seja por não esta-
causa de sua baixa reserva de função, ou mesmo insuficiên- rem vestindo roupas leves e adequadas ao ambiente quente.
cia cardíaca. Assim, a vasodilatação cutânea não é tão efi- Sterner34 refere a ocorrência de síncopes em soldados e em
ciente por causa do fluxo baixo. A sudorese costuma estar integrantes de bandas de música perfilados em cerimónias
prejudicada, uma vez que só sentem sede em fases de desi- militares, ou civis, ao sol e sob temperaturas muito elevadas.
drata ção mais avançada. Conforme o grau de aterosclerose, Em outras, a dificuldade decorre de estarem sob o efeito
podem ter comprometimento dos centros termorregulado- de medicamentos que interferem no ajuste térmico. A Tabe-
res do hipotálamo, patologias neurológicas como o mal de la 17.2 sintetiza os fatores de risco para doenças relaciona-
Parkinson, ou estar em uso de substâncias que favorecem a das ao calor, e a Tabela 17.3, os medicamentos e as drogas
hipertermia (Tabelas 17.2 e 17.3) . Além disso, outros esta- predisponentes.
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 337

Tabela 17.2. Fatores que aumentam o risco de se ter doenças pelo calor11 • 18 ·21-25 •84
fllol'al
Pessoais fisiológicos
Aclimatação Necessária para pessoas de clima frio expostas ao calor
Desidratação Dificulta ou impede mecanismos de ajuste (sudorese, aumento do volume plasmático)
Idade Os extremos são mais vulneráveis (crianças e idosos)
Índice de massa corporal* Quanto mais alto, maior o risco
Privação de sono Aumenta a produção de ll-1 e de TNF8
Patológicos (doenças)
Cardiovasculares Insuficiência cardíaca, coronariosclerose, hipertensão
Mentais Psicoses, oligofrenias graves, demências
Nervosas e musculares Parkinsonismo, paralisia espástica
Da pele lctiose, esclerodermia
Endócrinas e metabólicas Hipertireoidismo, feocromocitoma, diabetes
Infecciosas Todas as febris
Fibrose cística Dificulta a sudorese
Sociais e ambientais
Alcoolismo Deprime os centros hipotalâmicos e tem efeito diurético
Profissão Foguistas, bombeiros, atletas de provas de resistência
Vestuário Uniformes pesados, excesso de agasalhos (crianças RN)
Habitação Teto com laje sem telhado; pouca ventilação; aglomeração de casebres; local sem árvores
Umidade do ar Se alta, dificulta a evaporação do suor
' Peso em kg/quadrado da estatura em metros.

Não conseguimos encontrar estatísticas sobre a incidên- comum em mulheres, e a localização mais frequente é nos
cia de d oenças associadas ao calor nas tabelas de morbidade pés, nos tornozelos e nas mãos. Costuma aparecer nos pri-
e de mortalidade d o Datasus nem no Anuário Estatístico do m eiros dias de exposição ao ambiente quente, m as desapare-
Ministério da Saúde. São o missos da mesma fo rma os regis- ce assim que a pessoa se adapta 11 .z3 .
tros nas páginas da internet das Secretarias de Saúde do Esta-
do e do Município do Rio de Janeiro. Por isso, não podem os Miliária
saber se são frequentes em nosso meio.
Atualmente, a maioria dos autores afirma que as cha- Muito mais comum em crianças pequenas, resulta da
m adas "doenças pelo calo r" constituem um largo espectro obstrução d o fluxo do suor ao longo dos <lutos excretores das
de síndro mes, sem que haja limite preciso entre um a e o u- glân dulas sudoríparas écrinas (comuns). O suor retido rom -
tra4·18·23. Vão desde o simples edema à insolação. A maio- pe os limites <lutais e infiltra-se nos tecidos vizinhos. Como
ria d os trabalhos de conceituação das doenças pelo calor é irritante, pode causar uma reação inflamatória de inten-
descreve a câimbra, a exa ustão e a insolação4·18·34 •35 , mas sidade variada. Confo rme o nível da obstrução, o aspecto
alguns autores descrevem o utras va riantes, com o a sínco- macroscópico é diferente. Nas obstruções muito su perficiais,
pe e a miliária 11 ·23 •36 • Estudarem os a seguir, com base nas na camada córnea da epiderme, fo rmam-se vesículas peque-
noções já expostas, as diversas fo rmas clínicas de apresen- ninas, de conteúdo muito claro e incolor, muito próximas
tação partindo dos quadros mais simples e benignos para entre si, sem reação inflamatória local. Também é chamada
os m ais graves. de sudamina ou de miliária cristalina. Q uando a obstrução
está no seio da cam ada intermediária da epiderm e (ou cam a-
Edema da espinhosa), o suor retido escapa para o espaço intercelular
e exerce ação irritativa local que desperta reação inflamatória
Decorre da permanência de um indivíduo não aclima- caracterizada por intensa hiperemia e prurido, com forma-
tizado por tempo demorado em posição ortostática, de pé ção de pápulas e vesículas. Essa forma é chamada de miliária
ou sentado, sem adequada movimentação. Há vasodilatação rubra ou brotoeja. Menos frequentes são a miliária pustulosa
intensa na pele, assim como retenção de sódio e água. É mais e a miliária profunda, que decorrem de obstruções em níveis
338 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Tabela 17. 3. Medicamentos e drogas predisponentes às doenças pelo calor4·11 •18•22•23.26 •27

De uso psiquiátrico
Neurolépticos (antipsicóticos) Fenotiazinas (clorpromazina) Os neurolépticos favorecem a hipertermia por ação
anticolinérgica (bloqueio da sudorese) e por aumento do tônus
e da atividade muscular via extrapiramidal
Butirofenonas (haldol)
Dibenzodiazepínicos (clozapina)
Benzisoxazol (risperidona)
Antidepressivos Tricíclicos (amitriptilina) Bloqueiam a recaptação da serotonina e da adrenalina15
Antiparkinsonianos Fluoxetina Inibem a recaptação da serotonina
Fenelzina Inibe a ação das monoamina-oxidases; síndrome da serotonina28
Lítio Inibe a liberação da dopamina no hipotálamo e potencializa a
ação da fluoxetina29
Benztropina (Cogentina) Ação anticolinérgica26
De uso clínico geral
Bloq. 13-adrenérgicos Propanolol Diminuem a frequência e potência cardíacas30
Bloq. canais de Ca++ Nifedipina Diminuem a contratilidade do miocárdio30
Simpaticomiméticos Adrenalina Reduzem a circulação cutânea e aumentam o metabolismo
Anti-histamínicos Prometazina (Fenergan) É uma fenotiazina
aorfeniramina (Descon) Possível ação como os antidepressivos tricíclicos
Diuréticos Furosemida (Lasix), tiazida Reduzem o volume plasmático
Drogas proibidas
Excitantes Cocaína Ação simpaticomimética31
Anfetaminas: MDMA (ecstas}? Ação no hipotálamo; hiperatividade muscular
Alucinógenos Fenciclidina: PCP Hipertonia muscular; convulsões28
Dietilamida do ác. lisérgico (LSD) Ação térmica no hipotálamo4

m ais baixos do <luto glandular, ao nível d a cam ada basal ou ção e a realização de esforços físicos sem pausa para descan-
na junção dermoepidérmica36 •37, so. Em formaturas militares, sob sol intenso, a queda de um
A causa d a obstrução é o desenvolvimento d e um tampão soldado pod e como que contagiar a tropa e desencadear uma
d e ceratina que se forma no interior dos <lutos glandulares sucessão de outros casos 11 •23 •34 •
sudoríparos em qualquer desses níveis. As áreas cutâneas
mais atingidas são as que ficam cobertas pelo vestuário e as
Câimbras
regiões d e dobr as naturais37 ,
São contrações espasm ódicas e muito d olorosas da mus-
Síncope culatura esquelética das pernas, d o abdómen ou d o braço
que ocorrem ao final ou logo após o término de esforços
Pessoas não aclimatizad as pod em sentir tonteiras, zum- musculares intensos realizad os sob temper atura ambiente
bido auditivo, visão escura e desmaio quando são obrigadas elevada. São precedidas de sudorese abundante durante o
a permanecer de pé, em posição ortostática por tempo pro- exercício 11 • 18 •19•23•34 • Já fo ram d escritos casos de câimbras tar-
lon gado sob temperatura ambiente alta, mesm o que não es- dias, acompanhadas de náuseas e vómitos várias horas após
tejam expostas diretamente ao sol. Em geral, ficam pálidas e o términ o da atividade física35• Certas atividades profissio-
muito suadas. O mesmo pode ocorrer quando estão d eitadas nais (câimbr a dos foguistas, caldeireiros) e esportivas (ma-
e levantam -se rapidamente. A causa desse mal-estar é uma ratonistas, futebolistas) predispõem às câimbras. A maioria
queda brusca da pressão arterial, com diminuição do retor- dos autores afirma que se devem a uma hiponatremia causa-
no venoso e d o débito cardíaco e consequente redução da da pela ingestão apenas d e água para repor as perdas hídricas
circulação cerebral. São fa tores predisponentes a desidrata- pelo suor 11 •34 • Wexler 18 afirma que ocorrem tanto em pessoas
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 339

que repõem o suor com água como naquelas que não fazem esteja suando. O nível da Te não serve como fator importan-
qualquer tipo de reposição. Mas reconhece a hiponatremia te de separação entre as duas síndromes. Em primeiro lugar
como a causa básica. Nos indivíduos que não repõem a água porque, embora esteja normal nos casos leves de exaustão,
perdida pelo suor, ocorre hiponatremia quando o esforço é pode estar muito elevada nos casos mais graves. Em segundo
intenso e prolongado por muitas horas em função da perda lugar, o limite é muito controvertido. Hales38 admite casos de
lenta e contínua de sódio. Barrow 11 considera como predis- insolação com Te mesmo um pouco abaixo dos 39°C. Mas a
ponentes a falta de aclimatização ao calor e o uso de diuréti- maioria considera que para que se fale em insolação a Te tem
cos. Mas outros autores consideram que a maior incidência que ultrapassar 40°C 11•18 •32 ou 4l°C4•15•35 •
é em pessoas aclimatizadas 18 •23• As câimbras são consideradas Se não há consenso quanto aos limites clínicos da exaus-
por alguns autores como um prenúncio de síndromes mais tão térmica, há com relação ao tratamento. Todos estão de
graves pelo calor 11 • 18 • A correção do distúrbio é feita pela dis- acordo que o fundamental é remover o paciente para um lu-
tensão do músculo contraído. Para evitar que se repita, urge gar mais fresco, reduzir sua Te, se estiver elevada, e reidratá-lo
remover a pessoa para ambiente mais fresco e fazer a reposi- de maneira adequada à gravidade do caso. Os mais graves de-
ção eletrolítica de modo adequado ao caso 11•18 •19 •23•34 . vem ser internados e submetidos à reidratação por via endo-
venosa com solução salina normal, 0,5 N, ou solução de Rin-
ger, acrescidas de dextrose a 5%, conforme as necessidades.
Exaustão Térmica
Também é conhecida como prostração térmica ou inter- Insolação
mação. É um quadro clínico grave, que pode vir a ser fatal
diretamente, ou evoluir para outro bem mais agressivo, que É a forma mais grave das síndromes causadas pela ex-
é a insolação. Atualmente, a maioria dos autores admite que posição ao calor ambiente. Há que se distinguir as mortes
representa uma fase inicial da descompensação dos ajustes por insolação das mortes relacionadas ao calor. O Comitê
do organismo ao calor ambiente, e a insolação é a fase final do Ad Hoc da Sociedade de Médicos-legistas dos EUA tentou
descontrole térmico 4•18 •23•34 . Apesar disso, manteremos a sepa- estabelecer critérios para se considerar a morte relacionada
ração na descrição dos quadros clínicos. ao calor. Seria aquela em que a exposição prolongada a ca-
Os sintomas da exaustão térmica são cansaço, sudorese lor em ambiente natural ou artificial causaria a m orte por si
profusa, palidez, fraqueza muscular, mialgias, dor de cabeça, só o u ajudaria muito no êxito letal39• No caso de ser direta-
tonteiras, náuseas e vômitos, anorexia, taquicardia e hipoten- m ente responsável pela mo rte, o diagnóstico deve ser o de
são arterial. Caracteristicamente, não há manifestações de insolação. Mas, quando o calor promove a descompensação
ordem neurológica4 • 11 • Mas Wexler 18 admite formas graves da de uma patologia prévia cardiovascular, cerebrovascular ou
exaustão com sinais neurológicos como irritabilidade, confu- respiratória e leva ao óbito, sua ação é indireta. A rela ção di-
são mental e incoordenação. Esse autor distingue dois grupos reta pode ser atestada quando a Te no momento do qua-
de pacientes, um com depleção de água (desidratado) e ou- dro final for de 40,6°C e se puder afastar outras causas de
tro com depleção de sódio (hiponatremia). Os desidratados hipertermia. Diante de temperaturas um pouco menores,
podem apresentar-se com hipernatremia, o que complica a ainda é possível firmar esse diagnóstico quando tiver havido
reposição hídrica pelo risco de se causar um edema cerebral alterações do estado mental, elevação das enzimas hepáticas
iatrogênico. É que as células em geral, e particularmente as do e/ou musculares, ou a m orte tenha sido precedida de tenta-
sistema nervoso, retraem-se por causa da maior concentra- tiva de resfriamento do paciente22 •39 • A maior dificuldade no
ção salina do plasma. No mom ento da reposição, podem au- diagnóstico de mo rte causada pelo calor é nas verificações de
mentar rapidamente de volume por causa da entrada de água óbito em que não se tem informações clínicas, pois o quadro
para o interior celular em função da volta da osmolaridade anatomopatológico é inespecífico. Contudo, havendo infor-
do plasma aos valores no rmais, causando o edema cerebral1 8• mação de ocorrência do óbito após 2 a 3 dias de início de
A descompensação resulta da impossibilidade de aumen- uma onda de calor, é possível admitir o diagnóstico desde
tar o débito cardíaco no volume necessário à manutenção da que se excluam outras patologias22• Convém lembrar, porém,
pressão arterial diante da redução da resistência periférica que o conceito de onda de calor usado nos países temperados
promovida pela vasodilatação intensa comandada pelos cen- é o de 3 dias seguidos de temperaturas superiores a 32,2°C23 •
tros hipotalâmicos. O débito cardíaco não pode aumentar, Não é o que ocorre nos países tropicais como o nosso.
seja por incapacidade de o coração arcar com maior trabalho Infelizmente, não dispom os de dados relativos à mortalidade
por não dispor de reservas funcionais, seja pela desidratação, pelo calor em nosso meio. Cremos que a população tropical
ou por ambas as coisas. Por isso, é mais comum em pessoas está acostumada ao calor úmido, de modo que a incidência
idosas ou debilitadas por outras causas. seja menor diante de mesmos níveis de temperatura ambien-
O diagnóstico diferencial entre a exaustão e a insolação é, te. Em favor dessa hipó tese está a constatação do grupo eu-
po r vezes, muito difícil23, havendo discordância entre os au- ropeu liderado por Keatinge40 de que o nível de temperatura
tores quanto aos limites clínicos. Waters4 adota a presença de ambiente capaz de desencadear aumento de mortes por ação
sintomas neurológicos como divisor de águas. Se presentes, do calor nos países frios é mais baixo do que o necessário para
já se deve falar em insolação, mesmo que o paciente ainda aumentar esse número nos países europeus mais quentes.
340 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

A mortalidade por insolação depende de vários fatores, o pensação fosse favorecida pela liberação para o sangue de
que explica as diferenças referidas pelos diversos autores 21•25• endotoxinas a partir dos intestinos em função da diminuição
Barrow" relata 10% de óbitos no to tal de casos e uma cifra do aporte sanguíneo vigente na fase em que o débito cardía -
anual de 240 óbitos nos EUA. Outros referem 25% 23 , 33%2º co está muito diminuído. As endotoxinas promovem a libe-
50%' 8 e até 80% no caso de bombeiros4• A faixa etária mais ração no sangue de m ediadores químicos como a interleu-
afetada é a dos indivíduos com mais de 65 anos, tanto pela cina l(IL-1) e o fator de necrose tumoral (TNF), que atuam
ação direta como pela indireta do calor. O risco dos idosos nos centros termorreguladores. Barrow" refere que citocinas
de mo rte pelo calor chega a ser de três4 1 a cinco vezes42 o do com o a IL-6 e o TNF atuam no agravam ento da insolação.
resto da população. O uso de cocaína durante perío dos O utros grupos propõem que a descompensação esteja na
de onda de calor aumenta bastante a possibilidade de mo rte dependência da temperatura atingida, o que tem respaldo
pela ação térmica3 1•43 • Semenza 33 analisou os fatores de maior clínico, po is quanto mais intensa a hipertermia, menores as
risco para os idosos na o nda de calo r que assolou Chicago, chances de recuperação. A partir de 42°C, haveria inativação
em 1995, e concluiu que a falta de ar-condicionado na mo- de várias enzimas com ação no metabolismo, d esnaturação de
radia, depender de cuidados de enfermagem, estar acam ado, proteínas e, principalmente, comprom etimento da oxidação
viver só, não costumar sair de casa o u ser doente mental são fosfo rilativa nas mitocôndrias, com redução da restauração
os fatos mais importantes. Não se deve esquecer de todos os do ATP4·42 • A deficiência de ATP reduz a atividade da enzima
outros fatores de risco referidos na Tabela 17.2. responsável pela manutenção de concentrações altas d o po-
tássio no interior e do sódio extracelular. Na falha desse sis-
Patogenia tema, as membranas celulares tornam -se m enos polarizadas,
com aumento de sua permeabilidade 15•42,46 .
O reconhecim ento de que a insolação resulta do agrava-
É possível ainda que estejam envolvidas as cham adas
mento da exaustão térmica desloca as pesquisas sobre sua
"proteínas do choque térmico''. São fa mílias de proteínas que
patogenia do enfoque concentrado na parada da sudorese. A
sobrecarga térmica mobiliza os mecanismos de dissipação de aparecem nos seres vivos em geral na vigência de estresse tér-
calo r, de modo a impedir que a temperatura suba de modo mico. Sua produção é proporcional à intensidade e à duração
da exposição ao calor. Parecem atuar por se ligarem a poli-
descontrolado. Como vimos ao estudarmos a fisiologia da re-
gulação térmica, os principais mecanismos de eliminação do peptídeos liber ados pelas células agredidas. Nos mamíferos,
é preciso um aumento da Te em to rno de 4°C para que sua
calo r são a vasodilatação superficial e a sudorese. Ambas ten-
síntese aumente de modo significativo47 •
dem a diminuir o retorno de sangue ao coração, de modo que
o aumento do débito cardíaco, indispensável ao equilíbrio, Diante de tantas possibilidades, é forçoso admitir que a
insolação tem mecanism o inicial conhecido, m as ainda não
fica co mprometido. O desvio do sangue para o leito vascular
se sabe por que se torna irreversível a partir de determina-
superficial causa um sequestro do volume circulante, que vem
do ponto. Devem estar em jogo simultaneamente diversos
a ser agravado pela desidratação causada pela sudorese. Ini-
fatores.
cia-se um círculo vicioso em que o retorno venoso diminui,
cai o débito cardíaco, reduz-se o fluxo sanguíneo periférico e,
Quadro Clínico
assim, a eliminação de calor. A insolação começa desse modo,
passando por uma fase prévia de exaustão térmica, que pode Há duas fo rmas clínicas de insolação 11•18•23 •34.42 . Uma está
ser muito curta, mesmo imperceptível, na fo rma relacionada relacio nada à atividade física intensa, na prática de esportes
aos esforços físicos. Até aqui, os autores estão de acordo. ou no ambiente de trabalho, e acomete pessoas sadias e jo-
Mas o agravamento do quadro, de modo a se tornar ir- vens; a outra - fo rma clássica - é a que atinge pessoas idosas,
reversível, depende de numerosos fatores, enfatizad os por ou debilitadas por doenças crónicas, e crianças pequenas. Há
teorias diversas confo rme o grupo de pesquisadores. Assim é sinais e sintom as comuns às duas fo rmas, com o: temperatu-
que a vasoconstrição superficial que indica uma descompen- ra muito elevada, distúrbios mentais e neurológicos, taqui-
sação do ajuste é explicada pela existência de barorreceptores cardia, taquipneia, pressão arterial normal ou hipotensão.
localizados nas vísceras e nos vasos profundos, que captam a Há diferenças quanto ao nível de Te a partir da qual se
diminuição da pressão venosa central. Sob sua influência, o deva falar de insolação. Alguns propõem acim a de 41ºC4•15•35 ,
sangue é desviad o da superfície para as vísceras nobres com o outros chegam a aceitar níveis em torno de 39 a 39,5ºC38•48 . O
o coração, o cérebro, o fígado e os rins38 .44. Mas Romanovsky45 melhor local para registrá-la é o reto. O quadro neurológico
admite que tal alteração hemodinârnica se deve à ação de é dominado por incoordenação, convulsões e coma. O men-
opio ides internos ( endorfinas ), pois conseguiu tornar por- tal começa por irritabilidade, e po de evoluir para delírios e
quinhos-da-índia mais resistentes ao calor pelo uso de blo- alucinações. Há relato de casos que com eçar am com sinto-
queadores dos recepto res dos opiáceos. mas psiquiátricos sem hipertermia significativa 49 .
Observando semelhanças entre os sinais e sintom as da A fo rma clássica, própria dos debilitados, costuma ocor-
insolação e do choque endotóxico (presença de hipotensão rer durante ondas de calo r, é de instalação lenta, com com -
arterial, coagulação intravascular disseminada - CID, diar- prometimento mental e neurológico progressivo. A sudorese
reia, hipertermia e acidose), Hales38 propôs que a descom- cessa e o paciente apresenta pele quente, seca" e, por vezes,
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 341

avermelhada48• Pode haver coagulação intravascular dissemi- de hipertermia intensa acompan hado de grande aumento do
nada (CID ), mas não é comum nessa forma". tônus muscular que surge em cerca de 134 a 3% 42 dos doentes
A forma relacionada aos esforços físicos pode ocorrer em mentais sob tratamento com neurolépticos e não depende da
ambiente de temperatura não muito elevada 15. Sua instala- dose nem da duração do tratamento 14·34 •42 . Embora não haja
ção rápida, por vezes fulminante, difere da forma clássica. história de estresse térmico, pode instalar-se durante ondas
Em função de o distúrbio ser causado por excesso de produ- de calor, o que dificulta o diagnóstico. Além do mais, por
ção de calor pelo trabalho muscular, são mais comuns nessa sua ação anticolinérgica, a maioria dos neurolépticos inibe
forma a rabdomiólise (morte de fibras musculares esquelé- a sudorese e, por ação antidopaminérgica, prejudica a dissi-
ticas) e suas consequências, como mioglobinúria e depósito pação de calor pelos centros hipotalâmicos 14. Por isso, pode
dessa proteína nos túbulos renais distais, o que pode causar haver insolação genuína nesses pacientes, que, como vimos,
insuficiência renal. O paciente ainda apresenta sudorese, mas têm risco bem maior do que o resto da população. Tanto na
insuficiente para dissipar o calor produzido. Também é mais insolação como na SNM pode haver rabdomiólise e elevação
frequente a CID". da enzima fosfocreatina quinase; contudo, são muito mais
intensas nessa que naquela. Mas não se nota rigidez da mus-
Anatomia Patológica culatura nos casos de insolação e, sim, flacidez 15. A rigidez
A insolação não tem um quadro morfológico característi- muscular da SNM pode ser intensa a ponto de causar disar-
co, o que dificulta muito o diagnóstico anatômico nos servi- tria, dificuldade respiratória e parkinsonismo14. Ademais, as
ços de verificação de óbito quando não há informações sobre alterações mentais da insolação estão ausentes na SNM, que
a clínica. As alterações dependem do tempo de sobrevida e se restringe à redução do nível de consciência.
da intensidade da hipertermia 22• Se o paciente sobreviver por Outro quadro que deve ser separado da insolação é a
mais de 1 ou 2 dias, é possível encontrar focos de rabdomió- hipertermia maligna. Ocorre em anestesias, apresenta tem-
lise4·18.22.34.35, necrose tubular aguda renal, com depósito de peratura muito elevada, mas os comemorativos do caso são
mioglobina nos túbulos distais4·18·22·34, os pulmões estão con- diferentes 14·35 .
gestos, com edema, e podem apresentar depósito de material Também podem causar hipertermia intensa a tireotoxi-
proteico sobre as paredes dos septos alveolares (síndrome da cose (tempestade tireóidea ), a síndrome da serotonina e in-
angústia respiratória do adulto - SARA) 23 .35; há edema cere- toxicações por certas drogas, inclusive ilícitas11 •42. O uso da
bral'5·22·35, degeneração e necrose cerebelar, principalmente cocaína tem sido responsabilizado por aumento do número
das células de Purkinje 15, o que causa a ataxia; pancreatite de mortes relacionadas ao calor. Em Nova York, Marzuk31
aguda 22 ; necrose centrolobular hepática é muito comum"·' 5. encontrou teste positivo para cocaína em 25% dos casos de
Em 10% dos pacientes que sobrevivem aos três primeiros morte relacionada ao calor analisados no serviço médico-
dias, a lesão hepática pode agravar-se e matar por insuficiên- legal de 1990 a 1995.
cia hepática50 . É comum encontrar alterações de depósito de
fibrina em pequenos vasos como consequência da CID4·11 •23 • Tratamento
A forma mais eficiente de combater os males do calor,
Diagnóstico Diferencial em especial a insolação, é a prevenção 51. A identificação dos
Inicialmente, é importante deixar claro que a hipertermia fatores de risco referidos na Tabela 17.2 permite traçar a es-
da insolação não é o mesmo que febre. Febre é um estado de tratégia conforme o caso.
elevação da Te que é parte dos mecanismos de defesa de que Sem ter a pretensão de ensinar como tratar pessoas com
os organismos multicelulares se valem para reagir à invasão insolação, cumpre assinalar que a pedra angular do trata-
por matéria viva ou inanimada. Depende da ação de subs- mento é o rápido abaixamento da Te, sempre com cuidado
tâncias chamadas pirógenas liberadas pelos microrganismos para não resfriar demais23 . Entre os métodos de resfriamen-
invasores ou pelas células do próprio organismo invadido, to externos, a evaporação forçada é a melhor opção4·' 8.34.3s.42 .
que agem nos centros da termorregulação elevando o seu Deve-se cobrir o paciente com panos molhados e fazer inci-
ponto de ajuste (set point). Já a elevação da Te na insolação dir sobre ele corrente de ar proveniente de ventiladores pos-
depende de desequilíbrio entre o aporte e a eliminação do santes. O consumo de calor para a evaporação de 1 g de água
calor, sem alteração do ponto de ajuste 3. é sete vezes maior do que o necessário para a fusão da mesma
Como a hipertermia da insolação é superior, na maioria massa de gelo 42. Assim, esse método é superior aos banhos de
dos casos, a 40°C, o diagnóstico exclui as doenças febris que imersão em água gelada, podendo chegar a reduzir a Te num
cursam com temperaturas mais baixas. Contudo, casos de ritmo de 0,3 1°C por minuto 18. Pode-se acelerar o resfria-
sepse podem apresentar temperaturas tão altas como a in- mento colocando-se sacos de gelo sobre regiões da pele onde
solação, mas não há história de exposição ao calor ambiente, passam artérias calibrosas como a virilha, a axila e o pesco-
a não ser por coincidência. Além do mais, as infecções na ço'8·38·42. Além do mais, a imersão dificulta o manuseio do pa-
maioria das vezes cursam com sintomatologia local típica. ciente e produz vasoconstrição superficial, que, por sua vez,
Um dos quadros mais difíceis de separar da insolação é impede o aporte de sangue para os tecidos superficiais, difi-
a síndrome neuroléptica m aligna (SNM) . Esse é um quadro cultando o resfriamento 4·" ·42 . Acresce ainda a possibilidade
342 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

de bradicardia por estímulo vagai 11 .A eva po ração é usada com ação de chamas, de jatos de vapor, de líquidos quentes, de só-
frequência nos peregrinos que vão a Meca nos meses de verão lidos aquecidos e de explosões. A lesão par ticular por líquidos
e são acometidos de m al-estar pelo calor. Como são muitos quentes é chamada de escaldadura. As cham as podem resultar
para pouco espaço, a capacidade de eliminar calo r d o cor- de incêndios ou de acidentes domésticos ou industriais pelo
po fica prejudicada pelo chamado "efeito pinguim". Sabe-se fogo. A intensa onda térmica resultante de explosões, como
que essas aves ficam aglomeradas no frio do ambiente an- no caso de vazamento de botijões de gás, é capaz de causar
tártico de mod o a reterem calor e poderem enfrentar tem - extensas lesões, mas de profundidade não muito grande, en-
per aturas baixíssimas'8•3s,4 2• Se houver calafrios ou tremores, quanto a combustão de líquidos inflamáveis sobre o corpo da
podem-se administrar relaxantes musculares4 ' 11 ', opiáceos 4 vítima acarreta lesões não só extensas com o profundas.
ou neuro lépticos 11 • 18• A incidência de queimaduras em geral é muito grande,
mesmo que se contabilizem apenas aquelas que chegam
Prognóstico às salas de emergência dos hospitais. Seu número real, no
entanto, é muito m aio r em face da subnotificação. A inci-
As taxas de mortalidade já fo ram analisadas. São fatores
dência de atendimentos em cinco hospitais com Centro de
de mau prognóstico: Te muito alta, demora no resfriamento
Tratam ento de Q ueimados da rede pública do Rio de Janeiro
do paciente, duração do coma superior a 2 horas, hipoten-
chegou a 1.339 entre os anos de 1998 e 1999 53• Nos EUA, a
são, aumento do tempo de protrombina, grande elevação das
incidência anual de atendimentos por queimaduras em geral
enzim as hepáticas e da fosfocreatina quinase, insuficiência
varia, segundo os autores, entre 1 a 2,5 milhões por ano54 •55 ,
renal e CID 11 •15•
incluindo as causadas por cáusticos e pela eletricidade. No
Reino Unido, são atendidos cerca de 250.000 56 , e na França,
Aspectos Periciais aproximadamente 500.00057•
O número de mortes e as taxas de m ortalidade variam de
As doenças causadas pelo calo r ambiental apresentam um país para outro. Nos EUA, morrem cerca de 12.000 pes-
interesse médico-legal quando resultam de condições espe- soas por ano vítimas de queimaduras em geral55 • Marshall58
ciais de trabalho, como é o caso de bombeiros, usineiros que refere que, lá, a taxa de mortalidade em incêndios é de 2,3
trabalham nas fo rnalhas de siderúrgicas, caldeireiros de m á- por 100.000 habitantes e que só em 1996 houve 417 .000 sinis-
quinas a vapor, em minas etc. As incapacidades são, em geral, tros, com 19.000 feridos e 4.035 mortes. Três quartos desses
temporárias, e o trabalhador volta à plenitude de suas ativi- incêndios fo ram residenciais. Estudando os incêndios com
dades em pouco tempo. Nos casos mais graves, o compro- vítimas fatais que ocorreram no Estado da Carolina do Norte
m etimento neurológico sério e as sequelas podem acarretar de fevereiro de 1988 a janeiro de 1989, esse autor confirmou
incapacidades permanentes de grau variado, exigindo um a que crianças m enores de 5 anos, idosos m aiores de 64 anos,
readaptação profissio nal' 5•29• A sequela mais comum é a sín- deficientes físicos ou mentais e pessoas intoxicadas pelo ál-
drome pancerebelar 15.s2 • Indivíduos que já sofreram uma cri- cool ou por drogas de abuso têm quatro vezes mais chances
se de insolação são mais propensos a outra que os demais38• de morrer, a menos que haja outra pessoa apta a resgatá-los.
Po r isso, é recomendável que aqueles que já apresentaram Uma estatística feita no IMLAP, em 1973, revelou que
um quadro grave devido ao calor sejam postos a trabalhar houve 302 mortes por ação térmica (6,8%) no total de 4.413
em ambientes menos quentes. necropsias realizadas. Nos 302 casos, 272 fora m por aciden-
Por vezes, o perito é chamado a vistoriar o local de traba- tes (90%) .
lho a fim de constatar ou não as condições particularmente
nocivas do ambiente. É importante consider ar aí a chamada
Noções de Anatomia e Fisiologia da Pele
temperatura efetiva, que tem relação com a umidade doam -
biente e a renovação do ar, conforme já analisamos ao dis- Em condições normais, a pele sadia é capaz de dissipar
corrermos sobre os mecanismos de dissipação do calor. 0,04 cal/s/cm 2• Além desse limite, o calo r em excesso pode
O exam e da vítima visa a afastar a possibilidade de outras causar alteração irreversível de suas células, constituindo le-
patologias não relacionadas com os fatores ambientais do sões chamadas de queimaduras2•
trabalho na fase aguda e a constatar o grau de incapacidade O calor que agride a pele pode alcançá-la a partir de
residual porventura existente após a alta. objetos próximos, por irradiação, ou pelo contato direto do
corpo aquecido com sua su perfície. Par a que se com preen-
dam os efeitos lesivos ao o rganismo causados pelas queima-
• AÇÃO LOCAL DO CALOR (QUEIMADURAS) duras, é necessário que se conheçam as funções da pele e sua
importância.
Esta seção tem por finalidade estudar as queimaduras A pele é um órgão vital que representa, em peso e tama-
resultantes da ação térmica. Não serão abordados aqui os nho, o m aio r do corpo humano. Apresenta, em um indiví-
efeitos térmicos da corrente elétrica nem as queimaduras de- duo adulto, superfície de 1,5 a 1,9 m 2 e corresponde a 14 a
correntes da ação cáustica. As situações capazes de provocar 17% do peso total do corpo humano 2• É for mada por duas
lesão da pele pela ação térmica ocorrem de várias maneiras: camadas distintas - a epiderme e a derme. A epiderme é a
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 343

9 de sua destruição, constituem o aspecto mais importante do


estudo das queimaduras. Antes de analisarmos os aspectos
5
legais, estudaremos o mecanismo de produção e a reação lo-
4 cal e geral do organismo às queimaduras.

3
Produção do Dano e Reação Local às
2 Queimaduras
Como vimos anteriormente, a velocidade de remoção de
calorias da pele tem um limite máximo de 0,04 cal/s/cm2•
Ultrapassado o limite, vai-se elevando a temperatura local.
A colocação da mão, por alguns minutos, em água a 44ºC
6 provoca apenas sensação de desconforto. Mas a sua perma-
nência ali por 5 horas acaba por provocar uma queimadura.
Por outro lado, bastam 3 segundos para que se queime a pele
na água a 60°09 . Temperaturas mais altas necessitarão de
7 tempo cada vez menor para causar o mesmo dano. Assim,
basta um contato rápido com um corpo a 70°C para que se
faça uma queimadura.
8
As queimaduras provocam morte instantânea de algu-
mas células, tardia de outras e lesões reversíveis em outro
grupo. As células localizadas no ponto de maior elevação da
temperatura sofrem necrose coagulativa, ou seja, suas pro-
teínas são desnaturadas pela ação do calor. A morte dessas
Figura 17 .2. Esquema de corte histológico de pele: 1) camada basal;
células libera substâncias que têm o poder de desencadear
2) camada espinhosa; 3) camada granulosa; 4) camada lúcida; 5) ca-
mada córnea (queratina); 6) derme papilar; 7) derme profunda; 8 e 9) a resposta inflamató ria. Substâncias como endotelina, hista-
duto excretor de glândula sudorípara. mina, bradicinina, serotonina, catecolaminas, vasopressina,
prostaglandinas, mo nóxido de nitrogênio e citocinas são li-
beradas e atuam como m ediadores químicos tanto no local
parte que está em contato com o meio ambiente; é consti- como à distância 60 . A reação local às queimaduras é seme-
tuída por tecido epitelial pavimentoso estratificado, no qual lhante à desencadeada por o utros agentes vulnerantes, mas
podem ser distinguidas cinco camadas: basal, espinhosa, de intensidade maior. Tem uma vertente vascular e outra
granulosa, lúcida e córnea. A basal é representada pela parte celular, ambas dependentes daqueles mediadores químicos.
proliferativa e que dá origem às células das outras camadas.
Resposta Vascular
Essas últimas representam etapas sucessivas de maturação e
de transformação até atingirem a camada córnea, que cons- Primeiro, há uma constrição arteriolar imediata que
titui um envoltório de substância especialmente elaborada dura muito pouco, menos de meio minuto nas lesões leves.
para maior proteção contra a desidratação e as trocas de ca- Em seguida, essas arteríolas se dilatam e promovem a aber-
lo r (Fig. 17.2). tura de novos grupos de capilares, tornando a região ver-
A derme é formada por tecido conjuntivo com as fun- melha e quente. As vênulas permanecem contraídas, o que
ções de oferecer sustentação e nutrir a epiderme. Está dividi- ajuda a manter abertos os capilares e causa edema da pele
da funcional e anatomicamente em duas camadas distintas: lesada. A permeabilidade dos capilares e vênulas pós-capila-
derme superficial, ou papilar, e derme profunda. A derme res aumenta, e há a passagem de proteínas para o interstício
superficial é constituída por tecido pouco denso, provido de através do alargamento dos poros e fendas endoteliais 61• A
vascularização e inervação abundantes. A derme profunda concentração pro teica no interstício chega a ser de 20 a 40
é formada por tecido mais denso, mais resistente às trações, vezes o valor normal, de modo que se instala edema mesmo
por seu maior teor em fibras elásticas e colágenas. Nessa em tecidos de regiões afastadas do local lesado diretamente.
camada, estão os músculos eretores dos pelos e suas hastes A esse tempo, nota-se estagnação da circulação local, com
com as glândulas sebáceas. Além dessas camadas de tecido, hemácias aglomerando-se no interior dos vasos. A fase de
a pele apresenta estruturas importantes chamadas de anexos estase custa a aparecer nas lesões mais leves, mas é vista em
cutâneos, que são constituídos pelas glândulas sudoríparas, poucos minutos nas lesões graves61 • O aumento da permea-
sebáceas e os pelos (Figs.1 7. 1 e 17.2). bilidade capilar dura 24 a 48 ho ras, mas cede, deixando no
Esse órgão importante tem as seguintes funções: sensibi- interstício as proteínas que escaparam do sa ngue62• Na pe-
lidade, regulação térmica e proteção. Os fenómenos relacio- riferia das áreas mais lesadas, tudo se passa como nas lesões
nados com a perda das funções da pele, como consequência mais brandas.
344 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Resposta Celular e chega a 400 g por dia6 2• Para obter glicose, o organismo
lança mão de proteínas estruturais dos tecidos (gliconeogê-
Normalmente, há pequeno número de neutrófilos que
nese) e da gordura. As perdas proteicas são agravadas pela
migram dos vasos para o interstício. Para atravessarem a pa-
exsudação que ocorre na pele queimada. Ao todo, pode che-
rede endotelial, os neutrófilos a ela aderem e emitem pseu-
gar a 200 g por dia62 • Esse processo de balanço metabólico
dópodos, insinuando-se através das fendas intercelulares.
negativo deve-se à ação das catecolaminas, é proporcional à
Em condições especiais, como nas inflamações agudas das
gravidade da agressão e pode persistir por até 9 meses65• É o
queimaduras, sua velocidade de migração aumenta em cerca
principal fator de morbidade e mortalidade dessa fase. Cau-
de 50 a 100 vezes a normal, por causa da quimiotaxia exer-
sa diminuição da resistência em geral, prejuízo notável da
cida pelos mediadores químicos liberados no tecido lesado.
resposta imune e retarda o processo de cura e reparação das
Isso faz com que se acumulem no espaço intersticial. Sua
lesões6 2.63 • Para combater tal estado, têm-se feito tratamento
permanência nesse espaço, porém, é curta, pois logo se dege-
com reposição nutricional precoce e intensa e uso de anabo-
neram. Mais tarde, são substituídos pelos macrófagos, já que
lizantes e hormônio do crescimento62•63 • Baseado nas pesqui-
esses se acumulam paulatinamente desde a agressão e têm
sas que indicam que a causa maior desse intenso catabolismo
meia-vida muito mais longa que a dos neutrófilos61 •
é a ação das catecolaminas, Herndon 64 experimentou tratá-lo
com bloqueadores ~-adrenérgicos, como o propranolol, e foi
Reação Geral às Queimaduras bem-sucedido.

Dependendo da gravidade das queimaduras, a vítima


pode experimentar alterações gerais em seu organismo como Classificação das Queimaduras
parte da resposta à agressão e à destruição maciça de tecidos
Quase todas as classificações das queimaduras apoiam-se
pelo agente térmico. Ocorre uma resposta humoral, na qual
na profundidade atingida pela lesão inicial, variando apenas
tomam parte hormônios e mediadores químicos liberados
o plano que limita os diversos graus. Mas é preciso não per-
tanto pela necrose tecidual quanto pela reação inflamatória. der de vista que cada região queimada pode apresentar áreas
Nas primeiras horas, há uma hipovolemia grave em fun-
cuja profundidade é diferente. Além disso, devemos lembrar
ção da passagem de líquido do setor intravascular para o a ponderação de Krisek 2 de que o que importa mais na con-
intersticial e deste para o exterior pelas áreas lesadas. Esta duta diante de uma queimadura não é o que foi destruído, e
queda do volume de sangue circulante reduz o retorno venoso sim o que permanece indene. Modernamente, as lesões são
e, consequentemente, o débito cardíaco. A perda de líquido classificadas em superficiais, parciais e totais, corresponden-
intravascular é agravada pela estagnação na microcirculação do, respectivamente, ao irr, 2u e 3rr graus antigos 2•54 •
e pela formação de edema fora das áreas diretamente lesadas
pelo agente térmico. Além disso, a saída de líquidos causa Queimaduras Superficiais
hemoconcentração e aumento da viscosidade do sangue, o
que aumenta a dificuldade do escoamento nos capilares. Tal Consistem na hiperemia que se instala na área atingida
dificuldade de perfusão dos tecidos em geral caracteriza um pelo agente térmico que traz pouca energia ou estabelece
quadro de choque hipovolêmico grave, que pode to rnar-se contato muito fugaz. A vermelhidão desaparece se a área for
irreversível rapidamente se não for tratado60 . Felizmente, comprimida, mas retorna assim que se desfaz a pressão. Des-
hoje em dia, o choque dos grandes queimados pode ser con- trói apenas as células mais superficiais da epiderme, que des-
trolado e revertido prontamente pela infusão de soluções camam to talmente em menos de 1 semana. O indivíduo sen-
hipertônicas à base de cloreto de sódio a 7,5% associado a te dor espontânea no local, que fica mais sensível ao toque. A
soluções eletrolíticas balanceadas e à glicose. É interessante dor cede em poucas horas, mas a hipersensibilidade perdura
realçar que a medição da pressão arterial não é um bom guia bem mais conforme a extensão. Não deixam cicatriz. Ara-
para o diagnóstico da hipovolemia, po is pode não estar mui- diação solar ultravio leta pode causar lesão difusa em áreas
to baixa em função da grande quantidade de catecolaminas não protegidas da pele com as mesmas características54 •
circulantes, liberadas pela resposta ao estresse agudo62 .
Queimaduras Parciais
Durante o choque, em função do prejuízo à oxigenação
dos tecidos, o metabolismo fica diminuído. Assim que se São lesões que comprometem toda a epiderme e a parte
consegue controlar o choque, o que é comum nos centros superficial da derme, mas poupam os anexos cutâneos, como
de tratamento de queimados, inicia-se uma outra fase, em a matriz dos pelos e os ácinos das glândulas sebáceas e su-
que há aceleração do metabolismo em até 250% 62 . Nessa fase, doríparas. Devem ser divididas em superficiais e profundas,
há grande consumo de energia. O paciente entra em proces- conforme o nível atingido. As queimaduras parciais super-
so de intenso catabolismo, com perda acentuada de massa ficiais destroem a epiderme até a camada basal, provocando
corporal magra (principalmente tecido muscular ). Clinica- intenso edema da derme superficial, que se traduz pelo acú-
mente, isso se traduz por intensa perda de peso e aumento mulo de líquido sob a epiderme de modo a constituir bolhas
da excreção de nitrogênio não proteico 57•62•63.64. Para suprir de conteúdo seroso límpido. Ao redor das bolhas, a pele está
a demanda de energia, a queima da glicose aumenta muito hiperemiada por queimaduras superficiais. São muito dolo-
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 345

rosas, sensíveis ao ar e ao calor. Costumam evoluir sem com- gordura. As bolhas rompem -se com facilidade, deixando ex-
plicações se as bolhas permanecerem intactas. O rompimen- posto o conjuntivo da derme, que tem aspecto céreo, de cor
to das bolhas favorece a instalação de processo infeccioso. amarelada ou avermelhada e que não clareia pela compres-
No exame de cadáveres, devem ser distinguidas das bolhas são. Ao contrário da parcial superficial, não é sensível à pica-
de putrefação. Estas têm conteúdo escuro, são m ais frágeis, e da com uma agulha, pois as terminações nervosas da camada
seu conteúdo é muito pobre em proteínas. H á controvérsia basal da epiderm e são totalmente destruídas. Mas são sensí-
quanto à conduta diante de bolhas intactas, havendo autores veis ao toque superficial e à pressão profunda. Se não ho uver
que aconselham sua rotura e limpeza do local e outros que infecção, evoluem para cicatrização em mais de 3 semanas
recomendam que sejam apenas protegidas contra traumatis- (Fig. 17.4) . A epiderme restaurada, geralmente, não forma
mos mecânicos para que não se rompam. Não havendo com- as cunhas interpapilares da pele normal, o que concorre
plicações, costumam curar em 1 a 3 sem anas, dependendo para uma m aior vulnerabilidade aos traumas m ecânicos por
do tamanho. A única sequela que deixam , nesses casos, é dis- atrito 2• D ependendo de predisposição genética individual, o
túrbio da pigmentação do local, o que regride com o tempo 54 processo de reparação pode gerar uma cicatriz hipertró fica ,
(Fig. 17.3) . conhecida como queloide. A retração cicatricial po de causar
As queimaduras parciais profundas destroem, além da danos posteriores se a queimadura for circunferencial. As-
epiderme, a d erme superficial e parte da d erme profunda, sim, é possível haver prejuízo circulatório de segmentos de
mas deixam preservados os anexos cutâneos, localizados no m embros, o u da expansão torácica. É comum observar alte-
limite entre a derme profunda e a hipoderm e, onde está a rações na pigmentação da zona queimada. No centro, perda
dos melanócitos e coloração muito esbranquiçada; na peri-
feria, em função da retração cicatricial, hiperpigmentação
intensa que contrasta tanto com a zona central quanto com a
pele normal (Fig. 17.5 ).

Queimaduras Totais
Destroem todos os planos da pele, inclusive os anexos
cutâneos e a vascularização. São lesões pálidas, com aspecto
e consistência sem elhante a couro, sem elasticidade, que não
exsudam, uma vez que o sangue não co nsegue chegar aos
tecidos queimados por causa do fechamento da rede vascular
pro funda (Fig. 17.6).
Estudos experimentais verificaram que enxertos cutâ-
neos parciais não sobrevivem nessas áreas, só os totais, com
vascularização própria. O nível atingido pode incluir os
Figura 17 .3. Queimadura parcial superficial com algumas bolhas planos situados abaixo d o panículo adiposo, como a mus-
ainda intactas. Caso não identificado do IML.AP, da década dos anos 60. culatura subjacente. H á quem classifique essas lesões mais
pro fundas como queimaduras de quarto grau 2• Mas, em
vista de a fisiopatologia ser também dominada pelo com-

Figura 17 .4. Membro inferior de criança de 1 ano e 7 meses, que fora


queimada 13 dias antes por água fervente. Morreu de sepse. Nota-se
extensa área pardo-avermelhada de queimadura parcial profunda ou Figura 17 .5. Cicatrizes retraídas na região costal esquerda, com o
total, cercada de pele indene. A linha mais clara corresponde à reepite- centro pálido e as bordas hiperpigmentadas. Coleção de ensino da FM
lização em curso. Guia 306 da 4J! DP, de 21/05/98. da UFRJ.
346 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Figura 17 .6. Queimadura total em membro superior, com exposiçã? Figura 17. 7. Vítima de queimadura por gás. Otronco não está quei-
da gordura do tecido subcutâneo. A parte esbranquiçada corresponde a mado por ter sido protegido pela camiseta. Guia 354 da 20ª DP, de
derme profunda. Caso não identificado do IMLAP. 14/11/75.

prometimento vascular, a maioria dispensa tal separação54 • Quando as queimaduras são produzidas por fogo, é co-
Em alguns casos, a intensidade da agressão é tão grande, que mum que sejam encontradas partes da roupa carbonizadas
pode haver carbonização superficial. As queimaduras totais
e, o mais importante, pelos crestados. Mesmo que se trate
são insensíveis. O paciente só percebe a pressão profunda. A
de chama de curta duração, se atingir alguma área do corpo
evolução se faz no sentido da eliminação do tecido necró- provida de pelos, eles serão queimados e apresentarão a ex-
tico sob a forma de uma escara. Com o passar do tempo, tremidade distal retorcida e friável, com aspecto e cheiro
vai-se formando uma linha de contorno mais avermelhada
característicos.
na periferia, delimitando o tecido morto, que se transforma
Há sempre uma tendência de propagação do fogo nas
numa placa escura cercada por pele em que a lesão foi menos
vestes de baixo para cima. Conforme o tipo de tecido da rou -
profunda. Mais tarde, a escara é eliminada, deixando uma
pa, ele próprio pode funcionar como combustível rápido e
perda de substância no local. A cicatriz resultante, mesmo
agravar as lesões da chama inicial. Uma faixa da população
sem formação de queloide, é deformante, a menos que se
particularmente exposta a esse risco são mulheres idosas,
faça a correção com cirurgia plástica. As queimaduras totais
que têm as vestes incendiadas pelo contato com a chama das
podem levar até 2 anos para a cura completa, incluindo aí o
bocas do fogão ao prepararem comida66 • Por outro lado, cer-
período de reabilitação 54•
tos profissionais com risco elevado de queimadura por fogo
O diagnóstico diferencial entre as queimaduras parciais
costumam ser protegidos por roupas especialmente cons-
profundas e as totais é muito difícil nos primeiros instantes.
truídas. É sabido que os pilotos de Fórmula-1 usam macacões
Com frequência, só é feito com a evolução do caso, em que
feitos de tecido especial que resiste ao fogo por alguns mi-
se constata o prejuízo da rede vascular local. Além disso, as
nutos, tempo suficiente para que ele saia de um carro em
queimaduras totais por escaldadura podem apresentar-se
chamas ou seja retirado pelas equipes de resgate. Militares
avermelhadas desde o início, confundindo-se com as parciais
em campanha costumam usar uniformes adaptados ao clima
profundas. Outro ponto de dificuldade é a presença ocasional
do teatro de operações. Os mais pesados e grossos costumam
de bolhas sobre áreas de queimadura total, mas de conteúdo
proteger contra chamas de curta duração, principalmente
turvo. A presença de bolhas que não se reabsorvem por várias
porque formados por diversas camadas de tecido separadas
semanas indica certamente queimadura mais profunda54 .
por camadas de ar. As ro upas mais leves, usadas em am-
bientes tropicais, protegem contra flashes, mas não contra
Aspectos Periciais chamas67• O fogo é a causa mais frequente de queimaduras
graves em adultos57 •
A perícia em casos de queimadura pode ser feita em pes-
Gases ou vapores muito aquecidos, mas não inflamados,
soas vivas e em cadáveres. Há aspectos que são comuns a am- são capazes de provocar lesão nas partes desnudas do corpo
bos e outros que dizem respeito apenas à necropsia forense. (Fig. 17.7). A quantidade do jato e a sua temperatura podem
Po r exemplo, o diagnóstico da reação vital. ser suficientes para causar queimaduras parciais profundas.
Acidentes com panelas de pressão, autoclaves e, às vezes, sau-
Diagnóstico do Agente Térmico
nas podem servir de exemplo.
De acordo com a forma e a distribuição das lesões, é Líquidos escaldantes costumam produzir queimaduras
possível saber o estado físico do agente e, em alguns casos, descendentes de acordo com a força de gravidade. Nos aci-
identificá-lo. dentes em que o líquido é jogado ou cai sobre a vítima, há
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 347

uma área de maior intensidade, situada em plano superior civis, a quantidade de dano tem importância na avaliação do
com relação ao solo, da qual surgem prolongamentos escor- quanto a ser arbitrado pelo juiz como indenização devida,
ridos, de intensidade cada vez menor conforme se afastam seja o crime doloso, seja culposo.
da sua origem. É possível também agressão enquanto a víti- A gravidade das queimaduras depende de vários fatores:
ma está dormindo. Nesse caso, o lado voltado para o colchão extensão, profundidade, localização, idade da vítima e agente
costuma ser poupado. Em casas onde há crianças pequenas causal. A Associação Americana de Queimaduras distingue
que têm acesso à cozinha, podem ocorrer acidentes em que três grupos de pacientes de acordo com a intensidade da
elas puxam o cabo das panelas que estão no fogo. Em outras agressão: discreta, moderada e grave. A maioria dos pacientes
ocasiões, a criança pode ser colocada em água muito quen- atendidos, 95%, apresenta-se com lesões discretas54 • Os cri-
te para o banho, daí resultando queimaduras características térios para inclusão nesses três grupos estão na Tabela 17.4.
nas nádegas, genitália e pés. Tais descuidos são passíveis de Para chegar ao diagnóstico da gravidade do caso usando
enquadramento do responsável no Estatuto da Criança e do essa tabela, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer o grau
Adolescente por negligência. Os líquidos quentes são a maior da queimadura, como já referido anteriormente, e avaliar a
causa de queimaduras em crianças57 . Analisando os casos sua extensão. A avaliação da extensão pode ser feita de modo
atendidos entre janeiro de 1996 e março de 2001 no Cen- prático usando-se a regra dos nove para adultos, ou a regra
tro de Tratamento de Queimados do Hospital do Andaraí, dos cinco para crianças. A Tabela 17.5 as resume.
no Rio de Janeiro, Barbosa e cols. 68 verificaram que 34,75% A percentagem queimada de lesões pequenas pode seres-
( 1.302) eram crianças e adolescentes e que 51,22% desses fo- timada aproximadamente comparando-a com a área ocupa-
ram causados por líquidos. da pela mão da vítima aberta. Até pouco tempo atrás, havia
Há muito que são usados metais em brasa para marcar discrepância entre os autores, variando o cálculo entre 1 e
de modo indelével o logotipo do dono em gado e outros ani- 2,5%. Recentemente, Perry e cols. 70 reavaliaram os cálculos
mais. Durante o período colonial, os ladrões; mais tarde, até e chegaram à conclusão por meio de análise por computa-
a Constituição de 1824, os escravos fujões eram marcados a ção gráfica de que é válido considerar que a área de uma das
ferro, de modo a que se pudesse saber seu comportamento mãos estendida representa 0,8% da superfície corporal.
à primeira vista69• As queimaduras assim produzidas costu- Outro fator que deve ser levado em consideração nessa
mam ser profundas, de contorno nítido e forma bem defini- avaliação é a espessura da pele na região anatômica afeta-
da. Acidentes domésticos com ferros de engomar costumam da. Em crianças abaixo dos 5 anos e em adultos acima de 55
deixar lesões triangulares que imitam a ponta do utensílio. anos, a pele é sempre mais fina do que a das outras pessoas.
Estas, porém, apresentam áreas em que a pele também é
Diagnóstico da Gravidade muito fina - face anterior dos braços, interna das coxas, pe-
A avaliação da gravidade das queimaduras, embora pa- ríneo e orelhas. Nas áreas de pele mais fina, o aspecto inicial
reça ser um problema afeito apenas aos clínicos, também pode iludir os menos experientes, de modo a subestimarem
interessa à Medicina Legal. Em primeiro lugar, se a lesão é a profundidade das lesões 54 •
dolosa, a sua gravidade tem importância na caracterização O local da queimadura também é muito importante.
de certos itens dos§§ l Qe 2Q do artigo 129 do Código Penal Queimaduras na face, na genitália, nas mãos e nos pés de-
(lesões corporais) e, por consequência, na aplicação da pena. vem sempre ser consideradas potencialmente graves. Cada
Como possibilidades, temos a caracterização do perigo de uma dessas regiões oferece riscos diferentes, e só a evolução
vida, a redução da capacidade funcional de um membro, a do caso concreto vai dizer se houve gravidade ou não da le-
incapacidade por mais de 30 dias para as ocupações habituais são. As queimaduras da face podem deixar um dano estético
ou a deformidade permanente. Em segundo lugar, para fins de vulto. As de m ãos e pés podem comprometer os tendões,

Tabela 17 .4. Gravidade das queimaduras


Crlt6rlo1 Dlmata Mad1r1da Grave
% SCQ em adultos < 10 10 a 20 > 20
% SCQ em crianças <5 5 a 10 > 10
% SCQ com lesão total <2 2a5 >5
Lesão de inalação Não Suspeita Presente
Queimadura circunferencial Não Sim lndepende
Outros* Não Tendência à infecção** Localização***
SCQ - superfície corporal com queimadura parcial ou total.
'Se for por ação elétrica de alta voltagem, nunca será discreta
" Diabetes, anemia falciforme, deficiência imunológica etc.
'"Queimadura<> importantes em face, olhos, orelhas, genitália, articulações.
348 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Tabela 17. 5. Regras para avaliar a percentagem de SCQ74

Segmentai
Cabeça e pescoço
Adultal
9
Pen:enllgem da Slpllffcle Co1Poral
Infantes
20
............
15
Dois membros superiores 18 20 20
Dois membros inferiores 36 20 30
Todo o tronco 36 40 40
Períneo e genitália Desprezível Desprezível
TOTAL 100 100 - 100

formando aderências, com redução da função própria des- queimada e a idade do paciente55.s 7• Rya n73 procurou, em es-
ses segmentos corporais. As lesões da genitália trazem gran- tudo retrospectivo conduzido no Shriners Burns Institute e
de risco de infecção, com dano ao órgão genital masculino, no Massachusetts General Hospital, envolvendo 1.665 pacien-
menos frequentemente ao feminino, causando impotência tes, entre 1990 e 1994, avaliar a influência desses três fatores
instrumental. Recentemente, foi publicado o caso de um na mortalidade. Concluiu que, na ausência dos três, a mor-
menino que se submeteu a uma cirurgia de fimose e teve o talidade foi de 0,2%; na presença de um, 5%; na presença
pênis queimado porque o termocautério usado inflamou o de dois, 30%, e na presença dos três, 95%. Smith 55 (1994)
mertiolate usado na antissepsia. Sobreveio infecção que cul- analisou os mesmos fatores em 1.447 pacientes internados
minou com a castração do garoto7 1• Além disso, há possibili- no único centro de tratamento de queimados do Estado da
dade de infecção ascendente pelas vias urinárias e instalação Carolina do Norte, entre 1988 e 1993, e achou que o mais im-
de pielonefrite aguda. portante era a percentagem queimada da superfície corporal.
As queimaduras profundas que interessam to da a cir- Mas suas tabelas mostram claramente que havia um parale-
cunferência de um segmento - queimaduras circunferen- lismo entre o aumento da superfície queimada, a incidência
ciais - podem causar constrição na fase aguda, por edema, de lesão de inalação e a idade. Herndon73 , em revisão feita
e na de cicatrização, pela retração dos tecidos. Quando for com 1.018 pacientes, mostra tabelas em que a mortalidade
o tórax ou o pescoço, é possível que haja dificuldade res- dos pacientes com lesão de inalação era claramente superior
piratória. Se em um m embro, pode-se instalar a chamada à do grupo sem tal comprometimento pulmonar. Nos que
síndro me compartimentai, em que os tecidos são compri- tinham até 20% de pele queimada, a mortalidade foi de 36%
midos a tal ponto que há prejuízo da circulação e dano aos quando havia lesão de inalação e 1% se ausente; naqueles
planos mais profundos. Em qualquer dos casos, a correção com 81 a 100% de superfície queimada as taxas foram, res-
tem que ser feita por cirurgia - escarotomia - para aliviar pectivamente, de 47 e 83%. A Tabela 17 .6 resume as rela ções
a p ressã 0 6 2•54 • entre a lesão de inalação e a mortalidade dos grandes quei-
mados hospitalizados.
Prognóstico Quanto à Vida A fumaça produzida em incêndios contém substâncias
Graças ao estudo da fisiopatologia dos grandes queima- tóxicas e irritantes sob a forma gasosa o u adsorvidas à super-
dos e à aplicação dos novos conhecimentos nas técnicas de fície das partículas de carvão em suspensão. Para se ter uma
tratamento, a mo rtalidade tem diminuído significativa men- ideia ger al, é interessante observar a Tabela 17.7.
te nos últimos 25 anos66 . As complicações hemodinâmicas A lesão de inalação resulta da ação irritante dessas subs-
dos primeiros momentos, como referimos anteriormente, já tân cias sobre a mucosa das vias aéreas, e não do efeito tér-
não matam como outrora. Mas as lesões pulmonares ainda mico dos gases inalados73•74 • A capacidade de a mucosa respi-
acentuam muito a mortalidade, principalmente no grupo de ratória dissipar o calor é muito alta e impede a queimadura
pessoas vitimadas em lugares fechados, como apartamen- da traqueia e dos brônquios. Mesmo que as chamas causem
tos, salas comerciais e casas de espetáculos. Nessas vítimas, queimaduras na face, o que se pode diagnosticar pela pre-
a aspiração da fumaça, com os gases exalados na combustão, sença de pelos crestados, inclusive nas fossas nasais, o calor
causa grave prejuízo da função respiratória, como veremos é absorvido pela mucosa das vias superiores. Nesses casos, é
a seguir. É a lesão de inalação. Na ausência de lesão por ina- possível que ocorra queimadura nas fossas nasais, faringe e
lação, as alterações pulmonares resultam da exportação dos laringe. A vítima apresenta ruídos respiratórios decorrentes
fatores da inflamação, que vão causar edema intersticial e do edema da mucosa, como estridor ("tosse de cachorro"),
in tra-alveolar 72•73• chiado e barulho de cornagem na laringe. O exame direto
A inalação de fumaça pelas vítimas de incêndios repre- por laringoscopia faz o diagnóstico74 • Raramente, quando se
senta, provavelmente, o maior fator de aumento da mortali- trata de vapor d'água muito aquecido, é possível haver quei-
dade, juntamente com a percentagem da superfície corporal madura térmica da mucosa do terço inferior da traqueia. A
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 349

Tabela 17.6. Relação entre a lesão de inalação (LI) e a mortalidade


Moltalldade
Autora (ano) Pacientes (Período) Com LI(%) Geral(%) Com U (%) Sem LI(%)
Ryan et ai. (1998) 1.665 (5 anos) 244 (15) 67 (4) 59 (24,2) 8 (0,5)
Smith et ai. (1994) 1.447 (5 anos) 284 (19,6) 138 (9,5) 88 (30,9) 50 (4,3)
Tredget et ai. (1990) 1.705 (10 anos) 124 (7,3) 43 (34,7)
Hemdon et ai. (1987) 1.018 88 (8,6) 120 (11,8) 51 (57,6) 69 (7,4)
Shirani et ai. (1987) 1.058 (5 anos) 370 (35) 173 (46,6)

Tabela 17.7. Produtos tóxicos de combustão*


Mataria! Queimado Sublllnclas T611ca1
Madeira, papel ou algodão Aldeídos (acroleína, formol), ácidos acético, fórmico, N02, CO
Cloreto de polivinil (acrílicos) Acido clorídrico, cloro, fosgeno
Poliuretano Acido cianídrico, isocianatos, CO
Derivados de petróleo Acroleína, ácido acético, ácido fórmico
'Baseada em Meyer AA e Salber PR" .

capacidade calorífica do vapor é cerca de 4.000 vezes a do ar. A m aioria d os pacientes com lesão de inalação demo ra
A lesão de inalação é reconhecida hoje como devida à ação 24 a 48 horas para apresentar dificuldade respiratória e chia-
química d aquelas substâncias 73• d os. Se presentes quando da admissão ao hospital, a lesão
A existência d e lesão d e inalação deve ser suspeitad a em é muito grave. Concentração elevada d e m onóxido de car-
tod a vítima de incêndio em recinto fechado, nas que apre- bono no sangue é um indicador seguro da lesão, mas não é
sentem queimaduras faciais, nas que tenham muita secreção muito frequente73•
fluida nos brô nquios ou que eliminem escarros com carvão O diagnóstico de certeza d epende de exame de b ro ncos-
ou cinza73• Cerca de 70% dos pacientes com lesão de inalação copia. Se fo r negativa, d eve ser repetida nas primeiras 24
apresentam queimadura d e face, mas 70% dos que têm quei- horas se ho uver for tes razões para crer que a lesão exista.
madura de face não a têm 73 (Fig. 17.8). As alterações mais características d a mucosa lesada são in-
tensa congestão e ed em a, focos de descamação e necrose e
a presença de secreção contendo restos d e carvão e cinza . O
exame radiológico do tórax não é suficiente, pois revela ape-
nas aumento da trama vascular e ed em a pulmonar. Às vezes,
permanece normal ao longo de 1 semana73•74 •

Mecanismos de Morte dos Grandes Queimados


A causa da morte d epende das circunstâncias da ocor-
rência, do agente térmico e de fatores pessoais. A vítima pode
m orrer no próprio local do sinistro ou durante o tempo de
hospitalização. No local, depende d e se tratar de recinto fecha-
do ou de ocorrência ao ar livre. Os incêndios em edifícios, re-
sidências, casas d e espetáculos, igrejas e em veículos expõem o
indivíduo à ação direta do fogo e dos produtos de combustão
inalados. Aqui, a causa mais precoce de morte é a intoxicação
pelo monóxido de carbono. A concentração de monóxido de
carbono no ar em incêndios de locais fechados chega a 571.400
Figura 17 .8. Criança de poucos meses com queimaduras de quase ppm (partes por milhão), enquanto em locais abertos só vai a
todas as regiões da face, notando-se destruição dos cabelos no setor 35. 700 ppm73• Além disso, outros fatores agravam a insuficiên-
frontal. As bolhas palpebrais e o edema labial indicam reação vital. cia respiratória, como o consumo do oxigênio do ambiente
Quando presentes, estas lesões indicam a possibilidade de haver lesão pela combustão dos materiais e o espasmo dos bronquíolos
de inalação. Guia 31 da 36' DP, 11/02/2003. em decorrência da ação irritante das substâncias inaladas.
350 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Nas primeiras 24 horas, as alterações hemodinâmicas, A falta de atenção dos idosos e a sua lentidão de reflexos
como o choque, podem levar à morte diretamente, ou por são causa frequente de acidentes domésticos com fogo e com
meio de complicações como a insuficiência renal e o cha- líquidos escaldantes. A deficiência de visão colabora para au-
mado pulmão de choque. A insuficiência renal decorre da in- mentar as estatísticas.
tensa redução da filtração glomerular ou de necrose tubular O hábito de fumar aumenta o risco de acidentes, pois
aguda. O pulmão de choque resulta de congestão e intenso sabemos que os velhos costumam adormecer inadvertida-
edema que atinge tanto o espaço alveolar como os septos e mente e às vezes o fazem com um cigarro aceso, num sofá
o tecido intersticial de sustentação. É comum, à necropsia, ou numa cama. Di Maio 76 recomenda a pesquisa de nicotina
observar grande aumento do peso dos pulmões, que têm na urina para apurar se uma vítima de incêndio estava fu-
superfície de cor vermelho-vinhosa e redução ou abolição mando. O hábito de fumar é a maior causa de incêndios nos
da crepitação à palpação. Mais tarde, depois de 48 horas, o países em que esse dado é computado. Ora é o cigarro em si,
exame microscópico revela depósito de membranas hialinas ora o dispositivo usado para acendê-lo. Responde por 30%
sobre as paredes septais e frequente obliteração de pequenos das mortes em incêndios nos EUA. Estima-se que 100.000
vasos por trombos de fibrina 75 • Obviamente, o paciente com incêndios são causados por crianças que brincam com fósfo-
tal comprometimento pulmonar não pode sobreviver. ros ou isqueiros, anua lmente, nos EUA. O prejuízo causado
Superado o choque hipovolêmico, o que é o mais comum chegou a 6,95 bilhões de dólares em 1998 77•
se o tratamento for bem orientado, a lesão de inalação, quan- Outro fator que aumenta o risco de acidentes pelo fogo
do presente, cobra o seu preço. Durante a primeira semana, é o uso de drogas. Pessoas embriagadas ou drogadas correm
a insuficiência respiratória por ela causada tem que ser com- maior risco porque têm a coordenação muito diminuída.
batida por adequada assistência ventilatória. Mais de 50% dos casos relatados por Marshall58 apresenta-
A maior causa de morte, porém, é a infecção. Cerca de vam alcoolemia superior a 100 mg/dL. Além disso, é comum
75% dos grandes queimados morrem de infecção generali- que bêbados também sejam fumantes.
zada (sepse) 6 2• A ocorrência de infecção nos tecidos queima- Não é comum que se achem autolesões pelos agentes
dos era tão comum que chegou a ser considerada por Krisek2 térmicos. Mas a ocorrência de lesões criminosas não é rara.
como inevitável, parte da evolução natural do processo in- Em geral, estão relacionadas com a prática de tortura para
flamatório dos grandes queimados. Atualmente, com inter- a obtenção de confissões ou de informações sobre ativida-
venção precoce e mais agressiva do cirurgião, removendo os des criminosas. São atribuídas com frequência à polícia, mas
tecidos necrosados já no primeiro dia, e com o tratamento grupos rivais de marginais também usam esse método com
antibacteriano local, sua incidência diminuiu muito. a mesma intenção. Ora são usados isqueiros de automóveis,
A tendência à infecção das áreas queimadas resulta de fa- que deixam marcas características, ora usam-se pontas ace-
to res locais e de alterações gerais do organismo, causadas pe- sas de cigarro o u de charuto.
las queimaduras, ou preexistentes. Localmente, a área quei- As lesões por agentes térmicos também são infligidas a
mada representa um ótimo meio de cultura para as bactérias crianças como forma de castigo corporal. Às vezes, são sen-
porque elimina os mecanismos normais de defesa - quera- tadas à força em bacias com água quase fervente; outras são
tinização e descamação das células superficiais, produção de queimadas com ferro quente nas mãos para aprenderem a
substâncias lipídicas antibacterianas e concorrência da flora não mexer no que não devem. Em 1987, foi publicado um
normal62• caso norte-americano em que duas crianças foram colocadas
Além disso, conforme o grau da queimadura, os tecidos num forno de micro-ondas e sofreram queimaduras pela
necróticos não são alcançados pelas células de defesa nem por ação térmica. Por causa do mecanismo da ação das micro-
antibióticos dados por via sistêmica, pois o comprometimen- ondas, que esquentam preferencialmente os tecidos que con-
to da circulação local pelo edema e a trombose dos pequenos têm mais água, havia queimadura intensa da pele e do plano
vasos o impedem. Entre as alterações gerais, favorecem a in- muscular, com menor grau de lesão no tecido adiposo78 •
fecção a depressão imuno lógica decorrente do hipermetabo- A segunda causa de morte pela ação térmica direta é o
lismo e a insuficiência circulatória a que já aludimos. Doenças suicídio. Em 1971, foi publicado um estudo retrospectivo do
preexistentes, como o diabetes, pioram o prognóstico54•57•62• material registrado na década de 1960 no IMLAP sobre o
suicídio, em que a causa mais comum entre as mulheres foi
Diagnóstico da Causa Jurídica das Queimaduras a ação do fogo 79• Delas, a maioria era formada por jovens
de cor parda. Entre os homens, essa foi a quinta causa mais
A maior causa de queimaduras são os acidentes. Entre frequente. Mais recentemente, foi feito outro estudo, com
esses, os mais frequentes são os que ocorrem no lar, prin- amostragem de casos nos meses de janeiro e julho, ao longo
cipalmente com crianças e com idosos. Os acidentes com dos anos de 1966 a 1993, de 5 em 5 anos. De um total de
crianças resultam de uma vigilância descuidada, quando os 8.843 casos de necropsia forense, 256 foram de suicídio, e
adultos permitem que brinquem com fósforos, substâncias apenas 7,8% destes foram por meio do fogo 80 •
inflamáveis como álcool, querosene e outros. Na maioria das O suicídio como forma de protesto político ou religioso
vezes, felizmente, os acidentes não são fatais, causando quei- cometido pelo fogo é mais comum entre membros de reli-
m aduras de pequena monta. giões orientais. A vítima usa líquido inflamável e ateia fogo
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 351

ao corpo riscando um fósforo. Geralmente, no local em que Nos casos de dissimulação de homicídio praticado por
cometem o suicídio é possível achar o vasilhame em que outros meios, tentada através da carbonização do corpo, ge-
transportaram o líquido e a caixa de fósforos. Na maioria das ralmente as vísceras estão preservadas e podem servir de fonte
vezes, não morrem no local. São transportados para um hos- para colheita de sangue para exame. A quantidade de calor e
pital, onde morrem por complicações após sofrimento atroz. o tempo exigidos para consumir um corpo humano por cre-
O homicídio pela ação térmica já foi muito raro. No Bra- mação são muito maiores do que os decorrentes de tentativas
sil, infelizmente, os casos estão deixando de ser esporádicos. com gasolina ou outros combustíveis. Além do mais, a face
Os jornais têm noticiado alguns casos. No Rio de Janeiro, um do corpo voltada para o solo fica bem preservada (Fig. 17 .10 ).
mendigo que dormia ao relento e uma mulher incendiada
com gasolina, pelo genro; em Brasília, mais de um caso, in-
cluindo o de um índio pataxó. E o mais recente e hediondo,
ocorrido na Região Metropolitana de São Paulo, em 25 de
abril de 2013. Uma dentista foi queimada viva, durante
um assalto a seu consultório, porque dispunha de apenas
R$30,00 em sua conta bancária 8' . Não incluímos aí os vários
casos em que a vítima é baleada e depois queimada dentro
de um barril ou de uma pilha de pneus, por vezes ainda viva.
Fora das mortes dolosas diretas pelo fogo, devemos lem-
brar a possibilidade de morte em incêndios criminosos. Estes
podem ser praticados para fraudar seguros, por motivo de
vingança, por irresponsabilidade de piromaníacos ou para
ocultar outro crime. Nesses casos, o mais importante é a ca-
racterização da reação vital nas queimaduras.
O suplício pelo fogo já foi um modo de execução. É clás-
sica a história de Santa Joana D'Arc, heroína francesa que foi
acusada de bruxaria e queimada viva em 143 1.

Diagnóstico da Reação Vital


Saber se uma lesão pelo calor foi provocada em vida pode
ser muito difícil, dependendo do tempo transcorrido entre a
produção da lesão e a morte. Nos indivíduos que sobrevivem
por algumas horas, é possível caracterizar a reação vital atra-
vés da reação inflamatória. As bolhas das queimaduras par-
ciais superficiais aparecem em menos de 1 hora. A presença
de um halo de hiperemia ao redor de áreas de carbonização Figura 17 .9. Mesmo caso da Figura 17.8. A laringe apresenta mucosa
parcial ou de cocção dos tecidos superficiais não serve para congesta e recoberta por secreção serosa com resíduos de combustão.
atestar a reação vital. É uma falsa reação inflamatória que
resulta da migração do sangue das áreas cozidas para a pele
da vizinhança porque os vasos sanguíneos daquelas são es-
premidos pela retração dos tecidos82 •
Como vimos em outra parte, a causa da morte em am-
bientes de incêndio pode não ter sido a ação térmica direta-
mente, mas a inalação de gases tóxicos, d os quais o principal
é o mo nóxido de carbono. Assim, a dosagem do monóxido
de carbo no no sangue das vítimas de incêndio impõe-se
como uma rotina. Em geral, os teores de carboxiemoglobina
estão acima de 50%, mas pode haver casos genuínos de mor-
te em incêndios, em que a concentração esteja muito aquém
desse nível. Isso pode dever-se à produção de outros produ-
tos tóxicos, por exemplo os cianetos, durante a combustão
dos materiais presentes no ambiente, ou às condições precá-
rias de saúde da vítima76 .
Juntamente com os gases tóxicos, são aspiradas partícu- Figura 17.10. Cadáver de indivíduo morto a tiros e, em seguida,
las de carvão, fuligem, cinza, que po dem ser vistas pela aber- incendiado. Ocorpo está parcialmente carbonizado, com as mãos amar-
tura das vias respiratórias (Fig. 17.9). radas por trás do tronco. Guia 32 da 24ª DP, de 07/03/2002.
352 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

• CARBONIZAÇÃO
A carbonização pode ser completa, como ocorre nos cre-
matórios, mas em geral não chega a esse termo. A tempera-
tura necessária e o tempo exigido para tal não costumam
ser atingidos na maioria dos incêndios. Além do mais, ela
pode ser apenas superficial, interessando apenas a epiderme
(Fig. 17.11 ).
Nas formas mais comuns, encontramos transformação
das partes moles superficiais, incluindo pele, subcutâneo
e musculatura, em material duro, friável, preto, com uma
diminuição do volume corporal e a apresentação de uma
postura com membros semifletidos (de lutador de boxe)
como resultado da retração muscular. Notam-se roturas
irregulares desses planos em várias regiões anatômicas, Figura 17 .12. Face posterior das coxas e dos joelhos de corpo par-
cialmente carbonizado. Nota-se a musculatura muito bem delineada e
predominando nos membros. Em um grau mais avançado,
formada por tecido torrado e rompido em alguns pontos. É possível ver
podemos encontrar destruição completa das extremidades a flexão dos joelhos. Mesmo caso da Figura 17.1 O.
dos membros e fraturas espontâneas dos seus ossos (Figs.
17.12 a 17.15).
Os corpos carbonizados oferecem problemas particula-
res, por vezes impossíveis de resolver. Um dos maiores é a
determinação da identidade. Apesar do grau avançado de
destruição superficial, na maioria das vezes, as vísceras mos-
tram-se bem preservadas, podendo ser examinadas sem difi-
culdade. Tornam possível o exame do DNA. Mesmo que haja
destruição da genitália externa, pode-se reconhecer o sexo do
cadáver pelo achado do útero ou da próstata. Contudo, é o
exame dos dentes o melhor processo de identificação quan-
do se dispõe de um registro prévio da fórmula dentária do
falecido. É uma tarefa para o odontolegista. Outro método
que pode ser utilizado, quando as alterações do esqueleto
não são muito pro nunciadas, é o radiológico. Podem ser pes-
quisados calos ósseos de fraturas antigas, bem como aspectos
particulares, como a forma dos seios paranasais, principal- Figura 17.13. Rotura da parede abdominal por carbonização, com
evisceração. Guia 38 da 32ª DP, de 23/04/98.
mente os frontais83 •

Figura 17 .14. Carbonização intensa, com destruição parcial até do


Figura 17 .11 . Carbonização superficial da face em caso de explosão esqueleto. O fêmur mostra calcinação nas áreas esbranquiçadas e car-
de botijão de gás liquefeito de petróleo. Nota-se destruição dos pelos da bonização quase completa à esquerda; à direita da figura, nota-se
face e do couro cabeludo. Caso do IMLAP, do segundo semestre do ano fratura irregular, com metade da secção do osso carbonizada. Guia 129
de 1968. da 1oa DP, de 09/12/2002.
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 353

.....
Figura 17 .15. Intensa carbonização do corpo de uma das vítimas de
um acidente aéreo na Serra de Petrópolis, RJ, em 1971. Foram destruí-
dos pelo fogo as pernas, os pés, o membro superior direito e parte do
superior esquerdo e do crânio. Perícia realizada pelo autor.

Figura 17 .17. Presença de sangue em pequena quantidade no espaço


subdural, sobre os lobos occipitais, sem qualquer lesão cortical. Mesmo
caso das Figuras 17.8 e 17.9.

• AÇÃO DO FRIO DIFUSO - HIPOTERMIA


A incidência de casos de hipotermia tende a aumentar
em função da prática de esportes do gelo como esqui, alpi-
Figura 17 .16. Coleção de sangue parcialmente cozido no espaço nismo e snowboard. Mas, em países tropicais como o Brasil,
epidural, em crânio de indivíduo carbonizado. Tal alteração não traduz em que não há m ontanhas geladas, a tendência é que os casos
reação vital. É um artefato pelo grande aquecimento do cérebro e das sejam raros. Contudo, embora vivamos em um país tropical,
meninges. fts veias da dura-máter rompem-se e a fervura do sangue a possibilidade de efeitos adversos do frio existe, uma vez que
faz com que ele migre para o espaço sob o osso da calota. Coleção de a extensão de nosso território é tão grande que, durante o
ensino da FM da UFRJ. inverno, vemos os jornais e noticiários televisivos mostra-
rem neve caindo nas serras catarinense e ga úcha. Além disso,
os trabalhadores em frigoríficos e em indústrias de sorvetes
O exame interno dos carbonizados deve incluir a coleta estão expostos diariamente ao frio de seu local de trabalho.
de sangue para dosagem do monóxido de carbono e a ins- Estatísticas nacio nais indicam registro de quatro mortes por
peção da árvore respiratória e do conteúdo gástrico para frio excessivo durante o ano de 1992 no Brasil86 •
pesquisa de fuligem. É preciso cautela para não interpretar Nos países de clima frio, como no Norte da Europa e no
as fraturas pela ação do calor como lesões po r ação contun- Canadá, a incidência não é tão grande como era de se prever
dente. Nesse particular, é importante saber que é possível en- porque a população já está aclimatizada e sabe como se pro-
contrar hematoma intracraniano de formação após a morte, teger. A esse respeito, é interessante a conclusão a que chegou
no setor epidural, por causa de rotura de veias da dura -máter um grupo europeu que analisou as taxas de mortalidade pelo
quando ocorrem fraturas do crânio pela ação do fogo84 (Fig. frio em países de inverno rigoroso e em outros com clima
17.16) . Além disso, o cérebro ferve e expulsa o sangue para mais ameno. O aumento da mortalidade nos países menos
as meninges. Pela retração da dura- má ter, os vasos de drena- frios, como a Grécia, foi desencadeado por temperaturas
gem rompem-se e o sangue pode colecio nar-se, inclusive no ambientais menos baixas do que as necessárias para o mes-
espaço subdural85 (Fig.1 7.17) . mo efeito nos de clima mais frio87 •
354 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

A maioria dos trabalhos a que tivemos acesso não refe- ao frio por depressão dos centros termorreguladores e por
re a incidência de casos de hipotermia atendidos nas redes causar vasodilatação superficial, tornando a pessoa mais
hospitalares. Cingem-se à mortalidade21. Mas Hislop88 e cols. suscetível91·95 ; do mesmo modo, agem alguns neurolépticos,
estudaram 93 pacientes durante o inverno 1993 a 1994 da tranquilizantes e barbitúricos95 . Algumas doenças comuns,
Escócia, com uma incidência de 1:14.000 habitantes, cons- como a cirrose hepática, e outras consumptivas dificultam
tatando 29 óbitos. Calcularam que, em todo o arquipélago o ajuste ao frio por diminuírem a produção de calor. Além
britânico, a incidência deve ser de 4.000 casos anuais, com disso, a hipotermia pode surgir espontaneamente de tempos
mortalidade de 25%. em tempos - hipotermia periódica espontânea - em pessoas
Diz-se que há hipotermia quando a Te cai abaixo dos com disfunção do hipotálamo 7.
35°C89-93 , Essa medida da temperatura deve ser feita no reto A hipotermia pode fazer parte de um esquema terapêuti-
ou, melhor ainda, no esôfago. É possível identificar formas co clínico ou cirúrgico, conforme estudaremos mais adiante.
distintas de hipotermia: acidental e induzida ou terapêutica. Mas pode ocorrer durante procedimentos cirúrgicos longos
A hipotermia é chamada de acidental quando a queda por causa da refrigeração das salas de operação96• Além dis-
da Te abaixo de 35°C não é forçada por uma atuação médi- so, veremos alguns aspectos das complicações causadas pela
ca89. Ocorre quando alguém, saudável ou não, fica exposto hipotermia na evolução clínica das pessoas traumatizadas, o
a ambiente de temperatura muito baixa por tempo prolon- que não é raro.
gado o suficiente para esgotar sua capacidade de produção
de calor. Mas, se o meio for a água, esse tempo é bem me- Classificação e Aspectos Clínicos da Hipotermia
nor, e não é necessário que a sua temperatura seja muito
baixa. Pode resultar de um acidente propriamente dito (de De acordo com a temperatura central atingida, a hi-
trânsito, ou esportivo ), ou de situações relacionadas à fal- potermia costuma ser dividida em leve (entre 35 e 32ºC),
ta de moradia ou de agasalhos, má alimentação ou falta de moderada (entre 32 e 28°C) e grave (abaixo de 28ºC) 89·91·93 ,
aclimatação, além de por deficiências relacionadas à idade e Giesbrecht90 delimita as faixas nas temperaturas de 35, 30 e
a doenças debilitantes. As crianças pequenas são mais vul- 25ºC, valorizando mais as alterações clínicas. Há quem acres-
neráveis porque sua relação superfície/massa corporal é alta; cente os graus de hipotermia profunda (20 a 10°C), muito
os idosos porque sua capacidade de gerar calor é menor em profunda (10 a 5ºC) e ultraprofunda (menos de 5ºC) 97, Na
face de seu estilo sedentário e sua atrofia muscular. Certas forma leve, a vítima está consciente e treme; na moderada,
doenças endócrinas, como o hipotireoidismo, a insuficiên- cessa o tremor, e o embotamento das fun ções cerebrais se
cia suprarrenal e a insuficiência hipofisária diminuem a aprofunda, com alterações da consciência, alucinações e, pa-
taxa do metabolismo de modo a tornar eficiente uma ex- radoxalmente, a pessoa pode tirar a roupa; na forma grave,
posição ao frio que não levaria uma pessoa normal à hipo- o indivíduo já está em coma, podendo já apresentar parada
termia (i n tolerância ao frio), Certos medicamentos usados cardíaca e respiratória89·90. Ao longo da queda da Te, as alte-
em anestesia, como a meperidina, retardam a resposta dos rações clínicas vão-se modificando. A Tabela 17.8 resume os
centros hipotalâmicos ao frio 16·94; o álcool embota a reação aspectos mais importantes.

Tabela 17. 8. Alterações presentes conforme o grau da hipotermia87•89•91


Gl'lll 81118• Nll'VOIO CanllOVllCUlll'll Raplrat61t11 Matab611m
Leve Consciente, deprimido e Vasoconstrição Taquipneia, depois Produção de calor aumentada
(35 a 32ºC) sonolento Taquicardia, depois bradicardia hipopneia Diurese aumentada
Amnésia, apatia Débito aumentado Broncospasmo Hormônios aumentados:
Comportamento bizarro Pressão arterial elevada Broncorreia catecolaminas,
Disartria, tremor ECG: alargamento do ciclo tireoidianos,
incontrolável, ataxia cardíaco corticosteroides
Moderada Depressão progressiva Redução progressiva do débito Hipoventilação Redução do consumo de
(32 a 28°C) Alucinações cardíaco e do pulso Perda dos reflexos de oxigênio em 50%
Desnudamento Arritmias defesa das vias Função renal ainda normal
Dilatação pupilar Sístole prolongada respiratórias
Hiporreflexia e rigidez da ECG: onda J (Osbome)
musculatura
Grave Perda da consciência Pele fria e avermelhada Congestão e edema Redução do consumo de
(< 28°C) Redução do fluxo do Redução progressiva débito e pulmonares oxigênio em 75%
sanguíneo cerebral da frequência cardíaca Parada respiratória Pecilotermia
EEG: redução de atividade Hipotensão arterial Oligúria intensa
Reflexos oculares ausentes Fibrilação ventricular ou
Imobilidade e arreflexia assistolia
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 355

Os exam es complementares revelam hematócrito eleva- d oenças agravadas pelo frio ou de doen ças sazonais, como a
do, desvios do pH d o san gue, hiperpot assemia e tromboci- gripe95•10º. Metade das agravadas correspo nde à descompen -
topenia89·97. O h ematócrito traduz a hemocentração e pod e sação de doen ças cardíacas e cerebrais de origem vascular. As
aumentar 2% para cada queda d e l ºC na Tc89. O pH do coronariopatias são agravadas por cau sa de espasm o dessas
san gue arterial demonstra acidose nas fases iniciais em d e- artérias, d a h em oconcentração e do aumento d a pressão ar-
corrência do desvio do metabolismo para respiração celular terial. O resto é representado por doen ças respirató rias, pr in-
anaeróbica e d o aumento do ácido láctico pelos tremores. A cipalmente infecções, em d ecorrência da baixa da imunidade
partir d o m omento em que a queda da temperatura reduz cau sada pelo frio excessivo87 .
o m et ab olism o, o pH aumenta e tende para uma alcalose, O risco de m orte por hipotermia é aumentado por fa tores
principalmente por cau sa da queda d o co2 e da redução d e ordem social (sem -teto) e pessoais (idade avançada, doen-
da dissociação iô nica89. O eletrocardiograma revela alarga- ças graves, alcoolism o e u so de certos medicamentos) 2'·'º'.
mento dos espaços e das ondas, aparecimento de uma o nda
pat ogn omô nica entre o complexo QRS e a onda T, conhe-
cida como onda J ou de Osborne, e alterações do traçado
Patogenia
semelhantes às observadas n o infa rto d o miocárdio . Além Os efeitos maléficos da hipotermia com eçam a partir dos
disso, a hipotermia pode mascarar as alterações d evidas à próprios m ecanismos d e d efesa do organismo. Persistindo
hi perpotassemia89·92 . a alter ação ambiental cau sadora do frio, o esgot amento da
capacidad e de reação faz com que a Te comece a cair. Ini-
Outras Alterações Causadas pelo Frio Difuso cialmente, a excitação d os receptores t érmicos da pele des-
perta uma reação adren érgica comandada pelos centros d o
Algumas pessoas apresentam reações pa rticulares quan - hipotálamo . Assim, há vasocon strição periférica, aumento
do expostas ao frio, na dependên cia de exagero dos reflexos da pressão arterial, taquica rdia e aceleração do metab olis-
fi siológicos ou de mecanism os d e hipersensibilidade. No m o. Aumenta, d esse m odo, o trabalho ca rdíaco. Os tremores
primeiro grupo, temos alter ações cardiovasculares relacio- fazem com que aumente a circulação nos músculos, o que
nadas com a atividade adrenérgica, como angina do peito solicita maior esforço d o coração 102 .
e crises d e hipertensão art erial, que aco m et em pessoas sen - Por o utro lado, ocorre aumento d a concentração do san-
síveis quando tom am b anho ou m ergulham em água muito gue por três m ecanismos: fuga d e líquido d e dentro dos vasos
fria. Descreve-se um quadro de síncope pelo frio, em que a para o espaço intersticial, d esidratação e aumento da diurese
ingest ão rápida d e bebida gelad a cau sa espasmo d o cárdia à cu sta de liberação do ho rmônio natriurético atrial 1º2. Isso
( esfíncter que controla a passagem do esôfago para o estô- tudo leva a aumento d a viscosidade e dificuldade de escoa-
mago), distensão d o esôfago e excitação d o nervo vago, com m ento do sa ngu e na microcirculação. Com o co nsequência,
inten sa bradicardia. ter-se-á redu ção da oxigenação d os tecidos.
Entre as doenças de hipersensibilidade desencadeadas pelo H á grande controvérsia quanto ao efeito d a hipo termia
frio estão um qu adro de urticária, uma vasculopatia cutân ea sobre a coagulabilidade do san gue. O fat o é qu e se d escreve
chamada livedo reticularis e uma form a de anemia hemolítica uma redução tanto da função das plaquetas como dos fatores
causada por anticorpos da classe IgM co ntra as h em ácias, qu e plasm áticos da coagulação. Tem -se comprovad o qu e essa é a
são ativados quan do desce a temperatura d o sangue98. razão do aumento d e sangra mento d as lesões em indivíduos
Há relato de amnésia global, que durou 20 minutos, em traum atizados hipotérmicos97. Mas h á trabalhos qu e referem
um paciente que foi voluntário em trabalho experimental uma m aio r concentração do fibrinogênio e um estado de hi-
sobre hipotermia quando sua temperatura ret al ainda estava percoagulabilidade d o san gue, com tendên cia à fo rmação de
em 35,6°C99 • trombos89·97 . Isso favorece a ocorrência de trombose coroná-
ria e infarto d o miocárdio nos indivíduos hipot érmicos. H á
Mortalidade necessidade de maiores estudos para explica r efeitos assim
antagônicos da hipotermia.
Com relação à m ortalidad e, h á dois aspectos a serem Com a redução m ais inten sa da Te, esgot a-se a fase ex-
considerad os. O primeiro é a m ort alidad e pela hipotermia citató ria e co m eça a fase de descompensação. Diminuem a
pura e simplesm ente. O segundo é o das mortes relacionadas frequ ência cardíaca e a respiratória, b em com o a atividade
com o frio . Qu anto ao primeiro, podem os dizer qu e é muito d o sistema n ervoso e o m et ab olism o celular. Para cada grau
rara a ocorrência desses casos em nosso país. Nos EUA, h ou - centígrado de abaixam ento da Te diminuem em 7% o fluxo
ve 13.970 casos entre 1979 e 1998, com uma média a nual d e san guíneo e o m etab olism o cerebral89 ·103 . A Te m ais baixa au -
699. A taxa de m ortalidade n esse estudo foi de 0,2 e 0,5 po r m enta a afinidad e da combinação entre o oxigênio e a hem o-
100.000 h abitantes para mulheres e h omens, respectivamen - globina, d e m odo qu e se reduz a liberação desse gás para os
te. Cerca de 50% das mortes for am de pessoas com mais d e tecidos, com prejuízo d a respiração celular. Passa de aeróbica
65 an os95• Q uando se analisa o excesso de mortes que ocor- para an aeróbica89. Várias en zim as importantes para o m et a-
rem n o inverno, perceb e-se que apenas 10% desse contin - bo lismo têm su a a tividade diminuída ou su primida, como as
gente se devem à hipotermia pura. A m aior parte resulta d e envolvidas na síntese de prot eínas.
356 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

Estudos feitos por Boutilier104, baseados em seus traba- As camadas mais superficiais dos diversos segmentos cor-
lhos com animais de laboratório e dados da literatura médi- porais são as primeiras a ceder calor para o exterior. Assim,
ca, mostram semelhança acentuada entre os mecanismos de como são várias camadas de tecidos, forma-se uma onda de
morte celular por hipoxia e por hipotermia. Como já vimos condução de calor desde o interior dos segmentos até as ca-
anteriormente, a maior parte do calor metabólico provém madas superficiais porque sempre há uma diferença de tem-
da atividade das enzimas que atuam no bombeamento quí- peratura entre a mais profunda e a mais superficial. Além dis-
mico dos íons para dentro ou para fora das células, man- so, o sangue que vem dos vasos profundos sempre vem mais
tendo uma concentração maior do que a que haveria se aquecido do que os tecidos superficiais e, ao passar por esses
esses íons atravessassem a membrana celular passivamente. tecidos, perde mais calor.Ao voltar para os planos profundos,
São as chamadas ATPases (Na+/K+-ATPase, Ca2+-ATPase). novamente se aquece e repete o ciclo, de modo que a tempe-
O trabalho químico dessas enzimas é feito com a energia ratura vai caindo. Sempre há, porém, resfriamento progres-
derivada de uma das ligações fosfato do ATP, que é assim sivo enquanto o meio ambiente estiver mais frio do que as
transformado em ADP. Esse movimento de íons é funda- camadas superficiais do corpo. Mas, ao se iniciar o reaqueci-
mental para manter a polarização das membranas celulares, mento, o processo se inverte. As camadas superficiais ficam
indispensável à excitabilidade das células. Com a excitação, um pouco mais aquecidas, seus vasos sanguíneos se abrem e
ocorre despolarização de sua membrana, seguida pela ati- o fluxo sanguíneo cutâneo aumenta rapidamente. Como no
vação da maquinaria celular e a consequente resposta efe- início do reaquecimento os tecidos superficiais ainda estão
tora (contração, secreção, impulso nervoso). Ora, quando a mais frios do que os mais profundos, esse aumento do fluxo
atividade da Na+/K+-ATPase diminui, como na hipotermia na superfície rebaixa a temperatura do sangue a uma tempe-
e na hipoxia, as membranas celulares ficam menos polariza- ratura menor do que a dos planos profundos. Destarte, quan-
das e as células, incapazes de exercer suas funções. Tanto na do volta para os planos profundos, esse sangue faz com que
hipoxia como na hipotermia o mecanismo é semelhante. A a Te abaixe um pouco mais do que o valor que apresentava
dificuldade de repolarização da membrana das células, por no início do reaquecimento. É a teoria da perfusão, também
sua vez, permite a entrada do íon de cálcio ( Ca 2+) para o chamada de convexão, para explicar a queda subsequente.
líquido intracelular, o que ativa outras enzimas (lipases e Uma prova prática da existência desse mecanismo é a
proteases) que vão demolir a estrutura de lipídios das mem- parada da subida da Te nos indivíduos com hipotermia leve
branas e as proteínas do citoesqueleto. É a morte celular. que estão sendo reaquecidos pelo tremor o u por exercícios
Mas há alguns animais que são capazes de botar o pé no musculares se eles forem colocados dentro de banheira com
freio do metabolismo, como os hibernantes, de modo a re- água à temperatura de 40°C. O contato com a água quente
duzir muito a atividade-fim específica de cada célula para abre rapidamente a circulação superficial e provoca o fenó -
usarem o po uco ATP que resta na repolarização das m em - meno do afterdrop90 • Uma complicação que pode ocorrer
branas celulares. Nessas condições, o consumo de oxigênio é o agravamento do quadro clínico por queda da pressão
pelos tecidos fica muito diminuído, o que lhes permite resis- arterial à custa da redução da resistência periférica, o que é
tir tanto à hipoxia como à hipotermia 1º4 • grave se o paciente estiver com diminuição do volume san-
Na fase de hipotermia grave, o paciente, que já não treme guíneo (p. ex., por desidratação) . Pode chegar a haver cho -
mais, perde também o poder de guardar o calor que ainda que vascular periférico 89 •
lhe resta porque os vasos sanguíneos da pele, até então fecha- Se não houvesse a circulação do sangue, a simples inver-
dos pela vasoconstrição, dilatam-se por paralisia da muscu- são da corrente térmica faria com que o aquecimento fosse
latura lisa de suas paredes. O indivíduo passa a se comportar atingindo gradualmente as camadas mais profundas. Mas,
como um animal pecilotérmico97 • Pecilotermia é o indivíduo enquanto não atravessasse todos os planos, a onda prévia de
ter variações de mais de 2°C na Te sob a influência do meio resfriamento ainda estaria em atuação nos planos profundos
ambiente, sem haver reação do organismo 105• quando se iniciasse a onda do reaquecimento superficial. Em
Entre 32 e 28ºC, o coração fica muito suscetível à fibri- dado momento inicial, a temperatura superficial estaria su-
lação ventricular, que pode ser desencadeada por hipoxia, bindo enquanto a Te estaria ainda caindo. É a teoria da con-
hipovolemia ou abalos mecânicos como intubação o u o dução para explicar a queda subsequente. Na verdade, ambos
massageamento externo89 • Não é possível reverter a fibrila- os mecanismos podem estar em marcha durante o reaque-
ção ventricular se o paciente não for reaquecido. A parada cimento, dependendo do grau de hipo termia e do método
cardíaca também pode ser po r assistolia, embora a fibrilação utilizado para o reaquecimento90 •
seja mais comum97 • A amplitude da queda subsequente depende da velocidade
do reaquecimento e da Te inicial. Em revisão da literatura,
Fenômeno da Queda Subsequente ou Afterdrop Giesbrecht90 encontrou valores de até 6°C. Usando a conve-
xão de ar quente dirigido principalmente ao tronco da víti-
É uma queda ainda maio r da Te que ocorre quando se ma de hipotermia leve, seu grupo conseguiu reduzir a queda
começa a reaquecer a vítima de hipotermia89•9º· 1º6 • Para en- subsequente a apenas 0,9°C, enquanto no grupo -controle
tender esse fenómeno, é preciso analisar como se processa o reaquecido espontaneamente pelos tremores e por agasalhos
resfriamento do corpo durante a exposição ao ambiente frio. o valor foi de l ,4ºC.
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 357

Considerando-se que, abaixo de 32°C, o coração fica mais do um quadro final de insuficiência cardíaca congestiva. Os
propenso à fibrilação ventricular, o abaixamento da Te pelo pulmões apresentam edema moderado a intenso, com focos
afterdrop pode ser suficiente para desencadear essa arritmia de hemorragia parenquimatosa. Em 50% dos casos, revelam
fatal. Daí a grande importância da adequação do método de focos de broncopneumonia 109 . Os brônquios e a traqueia
reaquecimento ao grau da hipotermia. O uso do reaqueci- contêm espuma rósea. O estômago pode apresentar erosões
mento passivo na hipotermia moderada pode levar o pacien- numerosas de sua mucosa, com incidência variada confor-
te à morte, constituindo imperícia médica. Quando o reaque- me o autor, porém mais frequentes nos velhos, chamadas de
cimento externo se concentra no tronco e não nos membros, úlceras de Wischnevsky, que as descreveu em 90% dos seus
a magnitude do afterdrop é menor. Por outro lado, se for mais casos. O pâncreas pode mostrar focos de esteatonecrose e
intenso nos membros, haverá tendência para uma queda de pancreatite hemorrágica, provavelmente causadas por
subsequente maior da Te no início do reaquecimento89·1º6 • microinfartos relacionados com estagnação da microcircu-
lação59 ou refluxo de suco biliar decorrente de paralisia do
peristaltismo intestinal1 10 • Walpoth e cols. 109. acompanharam
Métodos de Reaquecimento 15 pacientes que sobreviveram a acidentes com hipotermia
A boa escolha do processo de reaquecimento de uma ví- grave a ponto de terem parada cardíaca. Ao fim de mais de 6
tima de hipotermia é crucial para o resultado do tratamento. anos, apenas um deles tinha sequela caracterizada por atrofia
Por não ser objetivo desta obra, não descreveremos os diver- cerebelar bilateral pouco intensa, demonstrada por exame de
sos métodos utilizados nos centros de resgate e recuperação ressonância magnética. Os demais não apresentavam lesões
dos acidentados. Apenas daremos uma classificação atual dos atribuíveis à hipotermia.
diversos métodos, sua indicação geral e o rendimento dos
principais. Mais detalhes podem ser vistos nas referências Hipotermia Terapêutica
bibliográficas de Ducharme 107, Giesbrecht90, Goheen 106 , Ko-
ber108 e Walpoth 109 . Quanto mais baixa a Te, maior o embotamento das fun-
O grupo de Giesbrecht90 divide os diversos processos de ções celulares e, por conseguinte, menor o consumo de ener-
reaquecimento em: 1) endógenos; 2) exógenos. Os endógenos gia. Baseados nisso, alguns pesquisadores começaram a usar
são fisiológicos, como tremores, exercícios físicos e o aumento a hipotermia para prevenir lesão cerebral em cirurgia cardía-
natural do metabolismo quando há hipotermia. Os exógenos ca e neurocirurgia, ou para frear lesões já em andamento 111 .
podem ser por meios externos (vão desde os aparelhos de ca- Pacientes em coma após parada cardíaca foram resfriados a
lefação, passando por cobertores aquecidos por meio de resis- uma Te de 33ºC durante 12 horas, começando 2 horas depois
tência elétrica e ventiladores de ar quente à imersão em água de se restabelecer a circulação espontânea. Quando compara-
quente), ou por meios internos não invasivos (inalação de ar dos com um grupo-controle não resfriado, notou-se que as
com vapor aquecido, beber e comer alimentos aquecidos), chances de sobrevivência e de estado neurológico satisfatório
ou meios internos invasivos (infusão de soro aquecido endo- foram 5,25 vezes maiores112. Essa redução do dano após a pa-
venoso, lavagem peritoneal ou pleural, com soro fisiológico rada cardíaca é tanto maior quanto mais precoce e mais dura-
quente e derivação extracorpórea do sangue). Nas formas gra- doura for a hipotermia. Aumentando o tempo de 24 para 48
ves de hipotermia, o melhor é usar a derivação extracorpórea, horas de hipotermia leve, o resultado melhora, mesmo que a
que chega a elevar a Te em 1 a 2ºC a cada 3 a 5 minutos, se a demora em instituí-la suba de 4 para 12 horas 113 .
velocidade da circulação for de 2 a 3 L por minuto89. Bernard 103 usou hipotermia moderada (33 a 30°C) em 43
pacientes com traumatismo de crânio grave que não estavam
melhorando com o tratamento convencional e obteve res-
Anatomia Patológica
posta satisfatória em 47% dos casos. Kirkpatrick97 também
Nos casos de hipotermia fatal, os livores hipostáticos são adota conduta semelhante, mas seleciona mais os casos, in-
de cor vermelho-viva por causa do maior teor de oxiemoglo - cluindo apenas pacientes que não tenham outros traumatis-
bina do sa ngue em função da maior estabilidade dessa molé- mos relevantes. Alerta, no entanto, para as possíveis compli-
cula no frio. A rigidez muscular é mais forte e mais duradou- cações que podem ocorrer durante a fase de reaquecimento.
ra. A pele costuma apresentar áreas de coloração mais inten- Atualmente, já se faz uso de parada cardíaca com derivação
sa, cuja tonalidade varia entre o rosa escuro e o róseo-pardo, do sangue para circulação extracorpórea sob hipotermia
localizadas com mais frequência sobre a face extensora das profunda para se poder suturar vasos em locais em que seria
grandes articulações como joelhos e cotovelos, mas também impossível atuar se a circulação não tivesse sido suspensa,
presentes sobre as cristas ilíacas, no dorso das interfalangia- como nas feridas da veia cava por trás do fígado97.
nas proximais e em regiões da face como as malares, o nariz
e as orelhas. Parece que resultam de início de formação de Aspectos Periciais
lesões locais pelo frio. Em regiões mais baixas, como os pés e
Diagnóstico da Hipotermia
o terço inferior das pernas, é possível achar edema59.
Ao exame interno, nota-se uma congestão polivisceral. O No vivo, baseia-se na tomada da Te. Conforme já foi co-
coração tem as cavidades direitas bastante dilatadas, sugerin- mentado no início do capítulo, o local mais apropriado para
358 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

a medição é o esófago. Não sendo possível, pode-se usar a A exposição ao frio de condenados à morte como um
temperatura retal. O grau de hipotermia também pode ser modo de execução de pena jam ais havia sido registrada antes
ava liado pela clínica. Se o indivíduo treme, ela é leve; se não da Segunda Guerra Mundial. No entanto, coube aos nazistas
trem e, mas m antém vasoconstr ição periférica e está cons- do III Reich a inovação. Sem julgamento, muito menos con-
ciente, deve ser m oderada; mas, se está inconsciente e tem denação, no ano de 1942, um tal Dr. Rascher colocava prisio-
a pele avermelhada, com rigidez d os músculos e arreflexia, é neiros do campo de concentração de Dachau em tanques com
grave. As alterações do ECG podem confirmar o diagnóstico água a temperaturas de 2,5 a 12ºC com ou sem o unifo rme da
nos casos duvidosos, principalmente se for achada a onda J, Luftwaffe, para ver o tempo que levavam para morrer. Após
que é car acterística . Com o a hipotermia é mais comum em 2 horas, em média, estavam m ortos. Tais execuções reves-
idosos, os sintomas de doenças prévias podem desviar a tiam-se de uma roupagem de experiência científica, pois as
atenção d o clínico, principalmente se a pessoa veio de casa vítimas eram m onitoradas com registro contínuo de eletro-
para o hospital. cardiograma (EEG), frequência respiratória, pressão arterial
Tratando-se de cadáver, o diagnóstico fi ca mais difícil, e temperatura corporal. Mas a metodologia deixava muito a
pois não há lesões patognomónicas da hipotermia. As alte- desejar, uma vez que não havia uniformidade nas condições
rações externas e as internas referidas na seção sobre a ana- experimentais nem controle rígido da Te durante o experi-
to mia patológica encaminham o r aciocínio. Mas é preciso mento nem no mo mento da m orte. Mas chegaram a anotar o
examinar o local e pesquisar as condições do tem po nos dias fenómeno da queda subsequente. As alterações do ECG, por
anteriores. Desarrumação de móveis e o achado do corpo em exemplo, eram precárias. Não foram capazes de perceber que
locais inusitados, como embaixo de uma cama, ou sem rou- a fibrilação ventricular era muito frequente como distúrbio
terminal. A finalidade era desenvolver um sistema de prote-
pas, não invalidam a possibilidade de m orte por hipotermia,
ção para os pilotos que caíssem em águas geladas. Quem esti-
pois são descritos casos com tais características na literatura
ver interessado em conhecer os detalhes mais chocantes dessa
médica. Decorrem de delírios provocados pela própria hipo-
barbárie deve ler o trabalho de Robert L. Berger , publicado
termia enquanto o paciente ainda está consciente59• É preci-
em 1990 no New England Journal of Medicine"\ ou as obras
so, ainda, afastar outras causas de morte violenta e de mo rte
"Ascensão e queda do Terceiro Reich", de William L. Shirer 115
natural precipitada pelo frio. No Rio de Janeiro, é comum
e "Os cientistas de Hitler': de John Cornwell 116 •
aumentarem os casos de verificação de óbito durante a pas-
sagem das frentes frias no inverno. Na maioria das vezes, a
causa da mo rte é por pneumo nia lo bar, tuberculose pulmo-
nar ou cardiopatia aterosclerótica.
• AÇÃO DO FRIO LOCAL
Em nosso meio, as lesões locais pelo frio são raras e cau-
Causa Jurídica sadas pelo contato da pele com serpentinas de aparelhos de
refriger ação, ou com gás carbónico no estado sólido, o cha-
A causa jurídica mais importante de lesões e m orte pelo mado gelo seco. Existem também as que são feitas sob con-
frio é o acidente. Apesar de ser o Brasil um país tropical, exis- trole, propositalmente, por dermatologistas, com nitrogênio
tem pequenas regiões em que a temper atura cai, por vezes líquido, como medida terapêutica cosmética - crio terapia. Já
abaixo de zero grau, como as serras gaúcha e catarinense. houve época em que se usava gás liquefeito em ampolas de
Mesm o no Estado do Rio de Janeiro, há microrregiões ser- vidro (Kelene), à semelhança de lança-perfume, para tratar
r anas, com o Teresópolis, Petrópolis e Itatiaia, em que a tem - as lesões cutâneas causadas por larvas migratórias de vermes
peratura se aproxima de zero durante a madrugada. Justa- nematódeos, conhecidas com o larva migrans. Nos locais em
mente po r ser um país tropical, a po pulação não tem hábitos que há neve, outro tipo de lesão pelo frio pode ocorrer, de
de proteção contra o frio. Por essa razão, ocorrem acidentes de instalação mais lenta, podendo constituir grave problema
hipotermia com pessoas sem teto que perambulam pelas ci- militar, conhecida vulgarmente com o "pé-de-trincheira''.
dades e com alpinistas amad ores que se perdem em meio à Como acontece, em geral, na traumatologia, o tipo de lesão
Ma ta Atlântica das regiões serranas sem vestuário adequado produzida nesses exemplos depende da intensidade do agen-
ao frio da madrugada. te e do tempo de exposição.
Eventualmente, também ocorrem crimes dolosos com o As lesões produzidas localmente pelo contato com cor-
o abandono de incapaz ao relento, no frio; crimes culposos pos a temperaturas capazes de congelar os tecidos ou por ex-
relacionados com atividade terapêutica clínica ou cirúrgica posição prolo ngada a temperatura ambiente congelante são
e, m uito raram ente, suicídio por se expor deliber adam ente chamadas genericamente de geladuras. O pé-de-trincheira é
ao frio ambiental. Nos países de clima frio, com o já vimos, a um tipo particular de geladura.
hipotermia acidental resulta da prática de esportes no gelo, A Histó ria tem realçado a importância dessas lesões. No
acidentes de trânsito em pistas nevadas, queda em lagos par- século III a.C., cerca de metade do exército de Aníbal foi
cialmente congelados, ou naufrágios. Nestes, a hipo termia perdida nas m ontanhas geladas dos Alpes pelo frio, não pela
mata tanto quanto o afogamento. O contato com a água ge- ação do inimigo. Napoleão Bo naparte, em 1812, foi derrota-
lada produz hipotermia muito mais rápida do que ao ar livre. do m ais pelo inverno do que pelo exército russo. As tropas
CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica • 359

nazistas repetiram o mesmo erro durante a Segunda Guerra liberação de mediadores da inflamação como o tromboxano
Mundial e foram punidas sever amente pelo inverno russo. A2 e prostaglandinas, principalmente a PGF2.
Assim, as lesões pelo frio têm sido uma preocupação m aio r Observações de ordem clínica levaram os pesquisadores
entre os militares que para os civis. Contudo, pela crescente a considerar que as lesões são basicamente isquêmicas. A in-
atividade turística e esportiva em ambientes gelados, a inci- cidência do pé-de-trincheira é maior em pessoas que já têm
dência tem aumentado consideravelmente, principalmente algum prejuízo circulatório nos membros inferiores. Além
entre adultos jovens117 • disso, as lesões coincidem com áreas d os pés em que o cal-
Há certos fatores que aumentam a probabilidade de se çado exerce compressão 119• Por serem isquêmicas, havendo
instalar uma geladura. Com relação ao ambiente, é impor- descongelamento, a reperfusão sanguín ea pode pôr em curso
tante assinalar que o efeito da temperatura baixa se torna uma ampliação da destruição tecidual de modo semelhante
muito m aior quando há vento. A temperatura efetiva é re- ao que ocorre em locais de infarto. Durante a fase que ante-
sultad o da temperatura d o ar e da velocidade d o vento. As cede a necrose dos tecidos pela hipoxia, ocorrem modifica-
correntes de ar que se deslocam sobre as partes expostas da ções bioquímicas complexas, que não valem a pena discutir
pele aceleram muito o congelamento dos tecidos. A sensação aqui, m as que levam à form ação de r adicais oxigenados ati-
térmica corresponde a temperatura bem m ais baixa se hou- vos durante a reperfusão. Esses radicais ativos aumentam a
ver deslocamento do ar. lesão inicial61 • Por isso, não é aconselhável promover o des-
Dentre os fatores individuais que m ais favorecem a ins- congelamento do segmento se ho uver a possibilidade de ele
talação das lesões pelo frio devem os destacar a aterosclerose, ser congelado o utra vez. É melhor fazê-lo só no hospital, se o
o diabetes, o hábito de fumar, o consumo de drogas como tempo calculado para a remoção do paciente for longo9 1•117 •
o álcool e as doenças m entais. Roupas úmidas aumentam a O exame anatom opatológico de segmentos amputados
condutibilidade térmica e facilitam o resfriamento; sapatos revela trombose das artérias de calibre médio, com infiltra-
e bo tas apertados e pouca mobilização d os segmentos cor- ção inflamatória polimo rfonuclear de suas paredes, caracte-
po rais reduzem a circulação local e antecipam a instalação rizando uma vasculite aguda 119 .
de lesões. Submetidos a hipotermia, po r motivos óbvios, po-
dem ter lesões mais graves.
Os segmentos mais atingidos são os pés e as m ãos, em Gravidade
cerca de 90% dos casos 117• Em soldados bem protegidos, du-
As geladuras devem ser avaliadas somente após o descon-
rante manobras em território congelado, a maior incidência
é nas orelhas, no nariz e nas regiões malares 118 • gelamento, porque tod as são muito parecidas quando vistas
inicialmente. Após o degelo é que se pode avaliar o grau de
comprometimento do segmento exposto. Podem ser classi-
Patogenia ficadas em su perficiais e profundas ou em quatro graus. As
su perfi ciais correspondem ao primeiro e segundo graus; as
Embora o resfriamento dos tecidos reduza o metabolis-
profundas, ao terceiro e quarto graus. As lesões de l º- grau
mo, o seu congelam ento causa lesões por três mecanismos
constam de uma área pálida em que a pele tem consistên-
intimamente relacionados. Em primeiro lugar, o congela-
cia aumentada, m as ainda pode ser deprimida com pequena
mento dos líquidos intra e extracelulares cria cristais de
pressão, cercada por um halo de hiperemia. Nas de segundo
gelo cujo tam anho depende da velocidade do resfriamento.
grau, além do edema, formam -se bolhas grandes ou de ta-
É d o conhecimento de quem faz exames de histopato logia
po r congelação a distorção de células e tecidos por cristais manho médio, de conteúdo límpido cristalino, nas 6 ou 12
grosseiros de água se o abaixamento da temperatura não fo r primeiras horas após o descongelamento. O paciente ainda
muito rápido (experiência pessoal). Ora, nos tecidos vivos, refere sensação se a pele for espetada com uma agulha9 1• Se
expostos a temperaturas abaixo de zero, o congelamento é a coloração da pele for de tonalidade rósea mais escura, e a
lento, formando cristais que distorcem o citoesqueleto e as consistência for de uma placa endurecid a, não depressível, e
membranas celulares. Além disso, a formação dos cristais de houver bolhas pequenas e de conteúdo hem orrágico, já são
gelo faz aumentar muito a concentração dos íons dissolvi- do terceiro grau. Não há m ais a sensação às picadas. As bo-
dos nos líquidos celulares, o que é lesivo 9 1•117• O revestimento lhas hemo rrágicas instalam-se m ais lentam ente. O quarto
endotelial dos vasos é lesado. Daí resulta aumento da per- grau caracteriza-se pela necrose d o segmento afetado 117 • As
meabilidade, com passagem de líquido com proteínas para o geladuras profundas apresentam grave prejuízo do apo rte
setor extracelular intersticial e edema. sanguíneo à região por trombose das artérias nutridoras.
Em segundo luga r, há gr ande redução da circulação lo-
cal por m eio de intensa vasoconstrição. O efeito é ampliado Sintomas
pelo aumento da concentração do sangue, que dificulta ain-
da mais o escoam ento, gerando hipoxia dos tecidos. A hipo- Inicialmente, a pessoa tem uma sensação de peso e entor-
xia local produz desvio da respiração celular aeróbica par a pecimento no segmento comprometido. Ao ser reaquecida a
anaeróbica, com a formação de radicais ácidos. Seguem-se lesão, surge dor intensa, latejante, que pode durar dias o u se-
agregação de plaquetas sobre o endotélio lesado, trombose e manas e chega a precisar de tratamento com opiáceos. Mais
360 • CAPITULO 17 Lesões e Morte por Ação Térmica

tarde, há sensação de fo rmigamento ou de choque elétrico 6. Castellani JW, Young AJ, Kain JE, Sawka MN. Thermoregulatory
na área lesada, por até 6 meses. Nas formas graves, forma-se responses to cold water at different times of day. J Appl Physiol;
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uma escara negra, que é eliminada com o passar dos dias. O 7. Kloos RT. Spontaneous periodic hypothermia. Baltimore: Medi-
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tar e a necessidade de escarotomia. Ou precisar de amputa- 8. Krueger JM, Takahashi S. Thermoregulation and sleep. Closely
ção do segmento necrosado para evitar infecção e gangrena. linked but separable. Ann NY Acad Sei; 1997. 813:281-6.
Às vezes, é preciso acompanhar a evolução por mais de 1 mês 9. Carr BR, W ilson JD. Disorders of the ovary a nd female reproduc-
tive tract. In: Harrison's Principies of Interna i Medicine. 12'h ed.
e esperar a delimitação natural da lesão para se chegar a uma New York: McGraw-Hill, International Edition; 1991. Capítulo
conclusão quanto ao grau de comprometimento da circula- 322.
ção do segmento e decidir por amputar ou não. A pressa aqui 10. Behrman RE. Routine delivery room care. "The fetus and the neo-
é má conselheira 11 7. natal infant". In: Nelson's Textbook of Pediatrics. 14'h ed. Richard E.
Behrman, Robert M. Klugman, Waldo E. Nelson, Victor C. Vaughan
III, eds. Philadelphia: W.B. Saunders; 1992. Seção 9 .4 do Capítulo 9,
Aspectos Médico-legais p.426.
11. Barrow MW, Clark KA. Heat-related illnesses. Am Fam Physician;
Como são provenientes de acidentes, a maioria das le- 1998. 749:56-59.
sões está mais ligada às ações de ressarcimento de dano e, 12. Guyton AC, Hall JE. Somatic sensations: II. Pain, headache, and
thermal sensations. In: Textbook ofMedical Physiology. 9•h ed. Phil-
principalmente, às indenizações por acidentes de trabalho.
adelphia: W. B. Saunders Company; 1996. Capítulo 48, p. 609-20.
Como referimos no início desta seção, são pouco comuns em 13. Ham AW, Cormack DH. O sistema tegumentar (pele e anexos). In:
nosso meio. Mas os princípios gerais que norteiam a conduta Histologia, 8' ed. Versão para o português por grupo de Faculdade
dos peritos em casos de acidentes aplicam-se perfeitamente de Medicina da UFRJ. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan;
a esses casos. 1983. Capítulo 20, p. 577-605.
14. Adnet P, Lestavel P, Krirosic-Horber T. Neuroleptic Malignant Syn-
A suspeita diagnóstica deve ser feita no momento do
d rome. Br J Anaesth; 2000. 85( 1):129-135.
acidente e relatada no prontuário, de modo a poder ser 15. Epstein Y, Albukrek D, Kalmovitc B, Moran DS, Shapiro Y. Heat
consultado mais tarde. O acompanhamento do caso é in- intolerance induced by antidepressants. Ann NY Acad Sei; 1997.
dispensável, já que o diagnóstico da gravidade depende da 813:553-8.
evolução. E o tratamento tem que ser orientado de acordo 16. Sessler D. Perioperative thermoregulation and heat ba lance. Ann
com a avaliação feita. Tudo deve ser documentado. Ao se dar NY Acad Sei; 1997. 813:757-77.
17. Kaupinen K. Facts and fables about sauna. Ann NY Acad Sei; 1997.
a alta, é preciso pesquisar a existência de incapacidades por 813:645 -62.
amputação de segmentos, ou deficiências residuais motoras, 18. Wexler RK. Evaluation and treatment of heat-related illness. Amer
sensitivas ou psíquicas. Fam Physician; 2002. 65( 11):2307- 14.
As sequelas dos acidentes pelo frio foram descritas em 19. Aragón-Vargas LF et ai. Atividade física no calor: regulação térmica
veteranos da Guerra da Coreia reexaminados 4 anos depois. e desidratação. Documento Suplementar de Apoio ao Consenso.
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Foram constatados hiperidrose (aumento da sudorese nas 1999.
mãos e nos pés), hipotermia dos segmentos afetados, distúr- 20. Sathyavagiswaran L, Fielding JE, Dassy D. Heat-related deaths. Los
bios de pigmentação, dormência e aumento da sensibilidade An geles County, California, 1999-2000, and United States, 1979-
ao frio 119 . É possível que alguns desses distúrbios vasculares 1998. JAMA; 2001. 286(8):911 -2.
21. Doyle R. By the numbers. Deaths from excessive cold and excessive
já estivessem presentes antes do acidente e, na realidade, ti-
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vessem predisposto o indivíduo às lesões. Mas as alterações 22. Green H, G ilbert J, James R, Byard RW. An analysis of factors con-
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A eletricidade é uma forma de energia cujas manifestações pelo uso dos transformadores, podia ter a voltagem muito
naturais já eram percebidas e temidas pelos povos primitivos. aumentada, o que permitia sua distribuição muito mais fácil
Os raios que caíam durante as tempestades eram considerados do ponto de produção até os locais de consumo. Era um em-
fruto da ira dos deuses diante dos pecados humanos. Seus efei- bate entre a segurança e a economia.
tos destrutivos e lesivos inspiravam m edo e reverência. A ima- Quando veio à baila a discussão sobre o uso da energia elé-
gem do deus Zeus, da mitologia grega, representa-o segurando trica (EE) como método de suplício, Edson propôs construir
raios que ele usava para advertir ou punir os que o desobede- uma cadeira elétrica para mostrar que a corrente alternada
cessem '. Muito tempo teria que passar até que o hom em des- era perigosa. Westinghouse foi contra o projeto, por achar
cobrisse que o raio era apenas uma manifestação energética. que abalaria a confiança do público na corrente alternada.
Somente em meados do século XVIII é que a eletricidade O termo eletrocução foi preferido a outros propostos, como
começou a ser investigada cientificamente. Foi quando Ben- amperemorte, eletromorte, eletrocídio. Houve um partidário
jamin Franklin2 empreendeu estudos sérios no sentido de de Edson que chegou a cunhar a palavra westinghoused ao
conhecê-la e interpretá-la. se referir ao eletrocutado. A cadeira elétrica foi construída e
Em meados do século XIX, sua utilização restringia-se às usada pela primeira vez em Nova York, em 06/08/1 890, na
baterias e às máquinas eletrostáticas de corrente contínua. execução do criminoso William Kemmler. Como era de se
O primeiro acidente fatal pela eletricidade produzida pelo prever, passado o impacto emocional da execução, prevaleceu
homem ocorreu em 1879, na França'·3 . Por volta de 1880, o critério económico. A corrente alternada venceu a batalha.
os geradores e os motores de corrente alternada já estavam A energia passou a ser produzida em voltagem mais alta, que
sendo projetados e desenvolvidos. Ao fim daquela década, era amplificada mais ainda para a distribuição e reduzida ao
ho uve a famosa "Batalha das Correntes", uma controvérsia chegar aos locais de consumo, como ainda hoje é feito 4•
sobre o uso geral das correntes contínua ou alternada. Durou Dá-se o nome de eletroplessão às lesões causadas pela EE
cerca de 10 anos, de 1885 a 1895. Thomas Edson, o inven- produzida em usinas e de fulguração à ação da eletricidade
tor da lâmpada elétrica, era defensor da corrente contínua natural. Este capítulo será dividido em duas partes - a pri-
por achá-la mais segura, enquanto George Westinghouse meira estudará a ação da eletricidade industrial e a segunda,
propugnava pela corrente alternada, que era de mais fácil a da eletricidade natural.
distribuição4 • Sendo a potência elétrica o produto da volta-
gem pela intensidade da corrente, para manter uma potência
elevada na corrente contínua era necessário aumentar mui- • ELETRICIDADE INDUSTRIAL
to a voltagem, uma vez que o aumento da intensidade da (ELETROPLESSÃO)
corrente forçava o emprego de condutores de calibre muito
grande e a construção de centrais a cada poucos quilómetros Ainda que se tenha ampliado o uso da energia elétrica
de distância. Mas o aumento da voltagem era muito difícil (EE) com o passar do tempo, o índice de acidentes vem dimi-
na corrente contínua. A corrente alternada, por outro lado, nuindo paulatinamente graças ao desenvolvimento d e prin-

363
364 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

cípios de segurança no trabalho e no lar. É o que demons- balho. A ação da EE é a quarta ' ou quinta 6·15 causa de morte
tram os dados de Lee5, que comparou a taxa anual de mortes por acidentes do trabalho nos EUA, com 5 a 6% do total'.
por eletroplessão com o consumo de quilowatts da popu- Na França, a EE é, quase que totalmente, gerada e distri-
lação britânica entre 1920 e 1964. Ele verificou que houve buída pela companhia estatal Electricité de France. Os aciden-
uma média de 6,5 mortes para cada milhão de quilowatts tes pela eletricidade representam cerca de 3% de todos os aci-
consumidos entre 1920 e 1924, mas que a taxa caiu para 1,3 dentes do trabalho mas, se contados apenas os fatais, perfazem
entre 1960 e 1964. 20% de todas as mortes acidentárias. Em 2.080 acidentes pela
Os dados numéricos relativos aos acidentes pela EE, po- eletricidade, no período de 20 anos entre 1970 e 1989, houve
rém, são de comparação difícil. Ora se referem apenas aos 56 mortes (2,7%), sendo 38 imediatas e causadas pela eletro-
acidentes do trabalho, ora englobam também os domésticos plessão ou por ação contundente resultante de quedas. Os 18
e os causados pela energia natural (fulguração). Por outro restantes morreram durante a evolução das queimaduras re-
lado, a coleta de dados proporciona outro fator de erro, uma cebidas12. No mesmo período, a mortalidade dos acidentes do
vez que ora são usados dados de centros de tratamento de trabalho em geral foi de 0,3%. Em 1992, houve apenas uma
queimados, ou de traumatologia geral, ora de serviços ge- morte por acidente elétrico. A redução notável da mortalidade
rais de emergência ou hospitais mantidos por companhias é explicada pela adoção de medidas preventivas e educativas 12 .
de geração e distribuição da EE, o que introduz distorção de No Brasil, em 1992, houve 1.065 casos de morte por ele-
amostragem6 • Além disso, os dados recolhidos em países em troplessão para um total de 52.311 mortes acidentais, não
desenvolvimento são pouco fidedignos por falta de critérios só os do trabalho (2,04%) 16 . Comparando com a população
na classificação dos casos e por subnotificação, esta resultan- estimada de 150 milhões de habitantes àquela época, a taxa
te tanto do mau preenchimento dos boletins de ocorrência anual ficava em 0,71/100.000.
como do fato de o acidentado não buscar socorro médico Analisando dados provenientes de centros de tratamento
nos casos menos graves. de queimados, verifica-se que 4% 7•8·' 7 a 5,3%'º são socorridos
Segundo Kelley7, de acordo com questionário respondido por causa de lesões pela EE. Quando se comparam os dados
por eletricistas, apenas 11 o/o dos acidentados procuram so- referentes à gravidade, por meio de parâmetros como o grau
corro médico. Isso em um país desenvolvido como os EUA. de incapacidade permanente das vítimas sobreviventes, enfa-
A mesma pesquisadora conclui que, lá, ocorrem cerca de tiza-se ainda mais a gravidade dos acidentes por EE. Enquan-
100.000 acidentes por ano, se incluídos aqueles não atendidos to a proporção de indivíduos que ficam com algum grau de
nos serviços de emergência. Gowrishankar8 informa a ocor- incapacidade permanente no total de atendidos nos centros
rência de cerca de 2.400 acidentes notificados por ano naque- de tratamento de queimados gira em torno de 20%, essa taxa
le país. No Canadá, havia cerca de sete a nove acidentes não sobe para 85,7% se computados apenas os casos provocados
fatais atendidos na década de 1960 para cada morte por EE9• por EE6• As vítimas dos acidentes graves por EE costumam
Mais da metade dos acidentes elétricos é representada ser adultos jovens do sexo masculino, no ambiente de traba-
pelos infortúnios ocupacionais', chegando a 74% em algu- lho1º·12·18. No lar, a maioria das vítimas é de crianças pequenas.
mas estatísticas'º. Os setores da indústria mais atingidos por Cerca de 2 a 3% das queimaduras infantis são por EE'.
esses acidentes são o da construção civil, o de produção e Antes de estudarmos as lesões causadas pela eletricidade
distribuição de eletricidade e o dos serviços públicos". e os seus mecanismos, faremos breve resumo dos princípios
Considerando-se o total dos acidentes de trabalho pela físicos que os determinam.
EE, fatais ou não, a incidência foi de 4,11/1.000 eletricitá-
rios numa revisão feita em 19 países desenvolvidos na dé- Aspectos Físicos19· 21
cada de 1960" . Dados da França em 1992 encontram apenas
0,83/1.000 trabalhadores expostos ao risco 12 . Embora sejam Passando-se ao largo da conceituação do que seja a eletri-
populações distintas, a diferença de incidência pode ser atri- cidade, podemos descrever os fenôm enos elétricos. Já na An-
buída ao desenvolvimento da prevenção ao longo desses 32 tiguidade, os gregos observaram que, logo após ser atritado
anos. Dados do mesmo trabalho francês permitem calcular na pele de um gato, um pedaço de âmbar tornava-se capaz de
que, em 1960, eram 2,56/1.000 operários. atrair minúsculos fragmentos de outros corpos. Repetindo as
Os números são um pouco mais confiáveis quando se experiências de atrito no século XVI, o inglês Gilbert, inspira-
referem à mortalidade, pois os dados são recolhidos nas do no nome grego do âmbar (electron), criou o termo eletri-
listagens de causa de morte dos registros públicos e nas es- zar para o fenômeno. Os corpos atritados ficavam eletrizados.
tatísticas das companhias de seguro. Nos EUA, a taxa de O utros pesquisadores perceberam que alguns corpos
mortalidade por EE era de 0,54/100.000 habitantes no início atraíam e outros repeliam um terceiro constituído por ma-
da década de 1980 13. Atualmente, ocorrem cerca de 500' a terial diferente e que a diferença estava na substância de que
1.00014·15 mortes anuais, conforme a fonte consultada, o que eram feitos os corpos que eram atritados. Como uns atraíam
dá uma taxa de 0,19 a 0,38/100.000 habitantes, respectiva- e outros repeliam o mesmo material, admitiram que havia
mente. Os acidentes domésticos respondem por pequena dois tipos de eletrização. No século XVII, Benjamin Franklin
fração da mortalidade. Em 1994, a taxa era de 0,09/100.000 descobriu que, enquanto um dos corpos ficava eletrizado
habitantes6 • A maioria das mortes deve-se a acidentes do tra- num sentido, o outro ficava eletrizado no sentido oposto, e
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 365

com intensidades semelhantes. Admitiu que havia um fluxo tecendo com a força de atração se forem de sinais opostos.
elétrico entre os dois no momento da atrição. Isso pode ser Assim, para deslocar uma carga elétrica de um ponto para
verificado facilmente quando passamos um pente nos cabe- outro dentro do campo elétrico, é preciso que se realize um
los secos e observamos que o pente atrai os cabelos logo em trabalho, que pode ser de ganho ou de perda de energia. Para
seguida. Diz-se que um está carregado positivamente e o ou- levar a carga contra sua tendência natural, é preciso que se
tro negativamente. É a eletricidade estática. Na realidade, o gaste energia, fazendo com que ela armazene essa energia
que ocorre é um fluxo de elétrons de um para o outro corpo. durante o deslocamento e fique com maior potencial ener-
Assim, um corpo eletrizado recebe elétrons e fica negativa- gético. Por isso, duas cargas situadas em um campo elétrico
mente carregado enquanto o outro, que cedeu os elétrons, só apresentam o mesmo nível de energia se estiverem à mes-
fica positivamente carregado. ma distância da carga geradora desse campo. Se estiverem a
As cargas elétricas modificam de algum modo o meio ao distâncias desiguais, terão potenciais energéticos diferentes.
redor do corpo eletrizado, de modo que passa a existir nesse É semelhante ao que se observa quando duas caixas-d'água
espaço algo semelhante ao que existe ao redor da Terra. O estão em alturas diferentes com relação ao solo. A mais alta
campo ao redor da Terra é chamado de campo gravitacional, tem mais energia potencial mecânica que a mais baixa.
e o que existe ao redor da carga elétrica é chamado de cam- Assim como a água fluirá da caixa mais alta para a mais
po elétrico. O campo gravitacional é uma grandeza vetorial baixa se estabelecermos uma comunicação entre elas por
que faz com que atue sobre qualquer corpo nele colocado meio de um cano, a energia elétrica se escoará se ligarmos
uma força, a força de gravidade*. Da mesma forma, o campo dois pontos com potenciais energéticos diferentes por meio
elétrico é uma grandeza vetorial que faz com que atue sobre de um fio. Esse fio é chamado de condutor e tem a fun ção de
uma carga elétrica colocada em seu interior uma força de escoar a energia elétrica do maior para o menor potencial.
atração ou de repulsão, na dependência do sinal da carga ge- Quanto maior a diferença de potencial, maior o fluxo de ener-
radora do campo e da carga que nele é colocada. A direção gia através do condutor. A diferença de potencial é chamada
da força é a mesma direção do campo elétrico. O sentido, de voltagem, e é medida em volts (V). O Código Elétrico Na-
porém, será o mesmo do sentido do campo elétrico somente cional norte-americano, que regula a distribuição doméstica
se as duas cargas tiverem o mesmo sinal (Fig. 18.1 ). e industrial, considera altas as voltagens acima de 600 V1A .
O valor do vetor campo elétrico é expresso em termos Mas a maioria dos autores reconhece como altas as voltagens
de força sobre a ca rga elétrica. Ou seja, a força de atração acima de 1.000 V12• 18 •22•23 •
ou repulsão exercida sobre a unidade de carga elétrica. Pode Convencio nou-se chamar de positivo o que tem nível
ser expresso em N/C, em que N é o newton (unidade de for- mais elevado e de negativo o de nível inferior. Assim, a pas-
ça) e o C é o coulomb (unidade de carga elétrica) . Também sagem de energia faz-se do polo positivo para o negativo de
costuma ser representado po r Vim, em que V é a unidade de modo sem elhante ao que ocorre quando se ligam os dois re-
diferença de potencial e m é o m etro. servatórios de água. O fluxo de energia constitui a corrente
Uma carga elétrica colocada dentro de um campo elétri- elétrica. Na verdade, porém, o que ocorre é um fluxo de elé-
co sofre uma influência cada vez menor da carga geradora do trons do polo negativo para o positivo.
campo à medida que se afasta d ela. Se for do m esmo sinal, a Cada corpo conduz a energia elétrica com maior ou me-
força de repulsão torna-se cada vez menor, o m esmo acon- nor facilidade, na dependência do que se chama de resistên-
cia elétrica. A resistência é a dificuldade que o corpo oferece
*Grandeza vetorial é aquela que precisa, para ser definida, de um valor, uma ao escoamento da eletricidade. É também chamada de impe-
direção e de um sentido.
dância e m edida pela unidade chamada ohm ( O) em home-
nagem ao físico alemão Georg Simon Ohm. O inverso da re-
sistên cia é a condutância, ou seja, a facilidade de escoamento

~l/
da energia através do condutor, medida em siemens (S), em
homenagem ao físico alemão Werner von Siemens. De modo

• B •
E7 t
•q . análogo a um sistema de vasos para transporte de líquidos,

/r~
Q a quantidade de eletricidade que flui por um condutor varia
com sua resistência ao escoamento e com a diferença de po-

A e Q•
E7
. t

-q
tencial entre as duas extremidades do sistema.
A resistência varia de um para outro condutor de acordo
com seu comprimento, seu diâmetro e com a substância de
Figura 18.1 . A. Uma carga elétrica Q gera um campo elétrico ao f que é feito. Aumenta na razão direta do comprimento e da
seu redor com direção que corresponde aos raios de uma esfera virtual resistividade do material e na razão inversa da área de sua
cujo centro é ocupado por essa carga; B. Uma carga positiva q, colocada secção transversal.
em qualquer ponto do campo, vai sofrer a ação de uma força que tende a R = l•r/s
afastá-la de O, com a mesma direção do vetor campo elétrico f;
C. Se
a carga q for negativa, a força F será de mesma intensidade mas com em que l é o comprimento, r é a resistividade e s a secção
sentido contrário, sendo atraída para Q. transversa do condutor
366 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétri ca

Quanto mais longo o condutor, também chamado de re- É preciso levar em consideração, em cada caso estudado,
sistor, maior sua resistência; quanto m ais calibroso, menor a existência, ou não, de m eios isolantes interpostos entre a
ela será. Tudo se passa de modo semelhante ao que ocorre pele e o condutor, com o luvas ou sapatos de borracha. Con-
com os tubos de escoamento de água de um reservatório. tudo, conforme a voltagem do circuito, o meio pode não ser
Os resisto res po dem ser associados de m odo linear contí- suficiente para impedir o fluxo da corrente.
nuo ou por m eio de ligações colaterais que derivam d o tronco A corrente elétrica é chamada de contínua quando os po-
principal. No primeiro caso, dizemos que estão associados em los permanecem constantes; e de alternada quando eles tro-
série e no segundo, que estão associados em paralelo. Quando cam de sinal periodicamente. A velocidade com que os polos
em série, cada um dos resistores transporta to da a corrente; da corrente alternada trocam de sinal é chamada de frequên-
quando em paralelo, a corrente flui em maior intensidade cia, ou ciclagem , e é medida em ciclos por segundo - hertz.
pelo de m enor resistência (Fig. 18.2). Esses conhecimentos Falar que uma corrente tem frequência de 60 hertz significa
são importantes po rque a maneira de associação da vítima que o seu polo positivo muda para negativo 60 vezes em cada
com o condutor nos acidentes causad os pela eletricidade vai segundo. A corrente alternada é representada por uma curva
determinar a intensidade das lesões. senoide (Fig. 18.3) .
Consider ando o hom em um condutor elétrico, verem os Nos circuitos de corrente alternada, o fio que traz a ener-
que ele não é um resisto r simples, mas sim uma associação gia é chamado de fase, e o que faz o retorn o tem o nome
de vários resistores, representados pelos diversos tecidos que de neutro. É recom endável que os aparelhos e m áquinas que
o constituem . A resistência elétrica global do seu corpo varia funcionem com corrente alternada sejam providos de um
de acordo com o estado da pele, onde é máxima, justamente terceiro fio, o terra, como medida de segurança contra aci-
o local de entrada e de saída da corrente na grande maioria dentes de eletroplessão.
d os acidentes. Se estiver úmida, a resistência diminui muito. O utro princípio que precisamos conhecer para melhor
Isso aumenta o risco dos acidentes elétricos em banheiras e entender os mecanismos das lesões pela eletricidade é que a
em piscinas'. corrente flui pelo caminho mais curto entre os dois polos do
As medidas realizadas pelos diversos autores são, por circuito. Assim, se o contato fo r feito com uma mão em cada
vezes, discordantes. Há quem diga que as va riáveis que in- polo, a corrente atravessa o tronco, mas quase não passa pe-
terferem no seu valor são tão numerosas, que o cálculo não los membros inferiores. Se fo r entre a mão e o pé direitos, o
é confiável24 • Mas há um certo acordo em que a pele seca e lado esquerdo é atravessado por corrente m enos intensa. Em
calosa de um operário tem cerca de 106 ohms9· ' 3•22 •25•26• Não ambos os casos, a corrente não passa pela cabeça, o que não
sendo calosa, o cálculo varia confo rme o autor: 105 25, 500 a quer dizer que essa não seja influenciada pelo campo elétri-
1.0004, 5.0009.22 , ou 200.000 ohms8 • Já a pele úmida tem re- co gerado por aquela. Não po demos esquecer que a corrente
sistência avaliada entre 100' 3•25 e 1.000 ohms'·9 •22•25 • Bridges 27 consta de cargas elétricas em movimento capazes de gerar
reporta os valores a que chegou a Comissão Eletrotécnica In- um campo elétr ico ao redor do condutor.
ternacional, na publicação número 479-1. Segundo os dados Par a que ocorra um acidente pela EE não é necessário que
transcritos, a impedância do corpo humano diminui com o indivíduo segure o u faça contato com os dois polos d o cir-
o aumento da voltagem . Para m aiores detalhes, consultar o cuito. Basta que ele toque no polo positivo e escoe a energia
trabalho o riginal. para o solo, que é o m anancial para onde tende a se dirigir
Mesmo nos casos em que a resistência inicial é muito toda a corrente. O solo é o referencial elétrico de valor zero.
elevad a, pode haver seu abaixamento, se o contato for pro- Q uando uma pessoa segura a ponta de um fio eletrizado
longado, em virtude de lesão provocada pela passagem da com uma das m ãos, fica associada em série ao conduto r e
corrente8• Mas há quem admita o contrário, que a resistên- escoa toda a energia para a terra, a menos que esteja isolada
cia aumenta durante a passagem da corrente em função da por um sapato de borracha, por exemplo. Mas, se segurar um
desidratação da área de contato 28 • A menor resistência da
pele úmida explica a maior letalidade dos acidentes ocorri-
d os em banheiros.

Figura 18.2. Associação de resistores. R,, R2, R3 e R4 estão associados


em série; R5, R6 e R7 estão associados em paralelo. Figura 18.3. Representação de um ciclo de corrente alternada.
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 367

fio íntegro de uma rede aérea, está associada em paralelo, e a de luz está na dependência de um aquecimento exagerado
quantidade de energia que se escoa para o solo depende do do filamento. Após certas temperaturas, os corpos tornam-se
valor da resistência global do seu corpo, incluindo luvas ou incandescentes e passam a emitir luz.
sapatos que possa estar usando (Figs. 18.4 e 18.5). Estudando o tipo de associação do corpo humano com
A eletricidade pode ser transformada em o utras formas os condutores elétricos, Lee 29 fez observações dignas de men-
de energia, como o calor, a luz e o movimento. Algumas ção. Sabemos que a associação de resistências em paralelo faz
dessas propriedades explicam parte dos seus efeitos sobre com que se mantenha a diferença de potencial e flua mais
os seres vivos. Chama-se de efeito Joule a transformação da corrente pelo resisto r de menor resistência conforme a Fi-
corrente elétrica em calor ao atravessar uma resistência. As gura 18.6.
fórmulas a seguir po dem ser usadas para o cálculo da quanti- De acordo com os esquemas das Figuras 18.6 e 18.7,
dade de calor gerada pela passagem de uma corrente elétrica quando um indivíduo segura a ponta de um fio elétrico, as-
através de um resistor. socia-se com ele em série e a corrente flui pelo seu membro
Q =V •I•t•A(l)ou superior. Mas, ao longo do membro, a pele, os músculos, os
vasos e o osso dispõem -se em uma associação em paralelo.
Q = R • I2 -t •A (2)
Assim, o maior aquecimento será no tecido muscular, aquele
Nessas fórmulas, Q é a quantidade de calor gerada, V é a de meno r resistência elétrica.
diferença de potencial em volts, I é a intensidade da corrente Contudo, se os eletrodos forem colocados em faces opos-
em amperes, R é a resistência em ohms e A é a constante de tas de um segmento de membro, conforme o esquema da
Jo ule, que vale 0,24. Figura 18.7, a corrente o atravessará do polo positivo para
A quantidade de calor produzida é diretamente propor- o negativo. Desse modo, a pele, os músculos, os vasos e o
cional à intensidade da corrente, à voltagem do circuito, ao osso estarão associados em série, não em paralelo. Por isso, o
seu tempo de duração e à resistên cia do resistor. No caso da maio r aquecimento ocorrerá na pele.
fórmula que usa R em vez de V, é proporcional ao quadrado Outra propriedade da corrente elétrica é a de promover a
da intensidade da corrente. Assim, quanto maior for a resis- migração de partículas eletricamente ativas de uma solução
tência, maior esforço fará a corrente para atravessá-lo, e esse - os íons - para o polo de sinal oposto. A passagem de uma
esforço aquecerá o resistor. É o que ocorre na pele dos ani- corrente contínua por uma solução de cloreto de sódio fará
mais em ger al quando atravessada pela corrente elétrica. Nas com que o íon cloro (carregado com carga nega tiva) se des-
lâmpadas comuns, o fenómeno é semelhante, e a produção loque para o polo positivo e o sódio (carregado com carga

Figura 18.4. Associação em paralelo. Figura 18.5. Associação em série.


368 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

A B

Músculos

Figura 18.6. Os resistores Rl' f\ e R3 estão submetidos à mesma voltagem 0/A -V8). Se o valor de R1 < R2 < R3, a intensidade da corrente 11 será
maior que 12 e essa maior que 13• Como a voltagem é a mesma, o aquecimento maior será no resistor R1, que conduzirá maior fluxo de energia. No
esquema do segmento de membro à direita, a passagem de uma corrente ao longo do seu eixo aquecerá mais os músculos porque Rm< R0 < RP
(baseado em Lee e Kolodney29).

Pele (RJ

Figura 18. 7. Os resistores R1, R2 e R3 são percorridos pela mesma intensidade de corrente 1. Sendo R1 < R2 < R3, haverá maior produção de calor
em R3, uma vez que 1é constante (Q = R • 12 • t ·A). No esquema do membro à direita, a corrente cruza-o transversalmente e atravessa os planos
cutâneo, muscular e ósseo com a mesma intensidade. Como Rm< R0 < RP, o aquecimento mais intenso será na pele (baseado em Lee e
Kolodney29) .

++ Ação da Eletricidade sobre os Seres Vivos


Há três formas pelas quais a eletricidade pode agir sobre
os seres vivos: ação elétrica, ação térmica e ação luminosa.
+ +
+ +
Ação Elétrica
A ação elétrica se faz sentir tanto pelos efeitos excitató-
++ rios da corrente quanto pela formação de um campo elétrico
através das membranas celulares. Analisaremos primeiro as
Célula polarizada Célula despolarizada consequências da modificação do potencial transmembrana
(PTM) pelo campo elétrico.
Figura 18.8. Polarização da membrana celular.
Ação do Campo Elétrico
Na parte inicial deste capítulo, explicamos o que vem a
positiva) busque o polo negativo da corrente. Esse fenómeno ser o campo elétrico e que ele pode ser medido em termos de
é chamado de eletrólise e tem muita importância biológica, já unidade de força por unidade de carga elétrica (N/C), o u em
que a matéria viva consta de uma solução aquosa complexa função da voltagem pela distância entre os dois polos (Vim).
em que estão dissolvidas substâncias minerais e orgânicas, Os trabalhos mais recentes sobre a ação elétrica têm referido
muitas delas com aquela capacidade de se dissociar em íons. o campo elétrico em V/m.
A corrente alternada não é capaz de produzir a eletrólise por- Toda célula é revestida por uma membrana po r o nde
que seus polos positivo e negativo trocam de posição com entram nutrientes e por onde saem substâncias indesejáveis.
muita r apidez. Para que a membrana celular (MC) funcione bem, é necessá-
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 369

rio que tanto o núcleo quanto o citoplasma da célula estejam mas dos eletrodos 38•38ª. Somando toda a área ocupada pelos
íntegros e que mantenham sua constituição físico-química. poros, tem-se apenas 0,1o/o da superfície celular, segundo
Normalmente, há uma polarização da MC, que apresenta alguns autores39 •
cargas positivas do lado externo e negativas do lado inter- A eletroperfuração tem sido muito usada nas últimas dé-
no (Fig. 18.8). A diferença de potencial entre as duas faces cadas em biotecnologia. Serve como método para introduzir
da MC dos mamíferos, em média, é de 90 m V em estado de medicamentos, corantes ou macromoléculas como genes, ou
repouso, graças ao trabalho de enzimas que mantém um ex- fundir duas células. Além disso, é fundamental nos estudos
cesso de cargas positivas na face externa 13•30 • Desse modo, a de eletropatologia atuais40•
membrana está polarizada. Essa polarização resulta do acú- A formação dos poros deve-se às alterações provocadas
mulo principalmente de íons de sódio (Na+) do lado de fora pelos campos elétricos na camada lipídica dupla que toda
e de íons de potássio (K+) do lado de dentro da célula, mas MC apresenta. Essa camada de lipídios, inclusive, é conside-
com maior quantidade do Na +. Essa sobra de sódio atrai car- rada por alguns um dos elementos mais importantes para o
gas elétricas negativas que ficam aderidas à face interna da surgimento da vida sobre a face da Terra4 1 . Ela serve como
MC (Fig. 18.8). um meio de separação que impede a mistura das substân-
Para se ter uma ideia da magnitude dessa diferença de cias dissolvidas no citoplasma com as que estão presentes no
potencial, podemos fazer o seguinte raciocínio. Imaginemos meio extracelular. É a base física da vida4 2• Como essa camada
um homem cuja envergadura seja de 2 m e que faça contato de lipídios está intimamente aderida às moléculas proteicas
com um fio de 20.000 V de potencial com a mão direita e, que integram o citoesqueleto e a própria MC, seu rompi-
com a mão esquerda, escoe a energia para o solo através de mento acaba forçando a permeabilização da membrana.
um portão de ferro. Ele terá um campo elétrico da ordem A ação de campos elétricos intensos altera a estrutura
de 10.000 V/m (104 V/m). Considerando a diferença de po- tridimensional dos lipídios e das macromoléculas - como
tencial através da MC como sendo 100 mV, ou seja, 0,1 V as proteínas - na MC. Além disso, os canais proteicos que
( 10- 1 V), e sabendo que a espessura da MC é de cerca de 10 existem normalmente na MC e que servem para permitir ou
nanômetros (1Onm ou 10-s m), verificamos que o campo elé- barrar o ingresso de íons como sódio, potássio e cálcio na cé-
trico através da MC é de 107 V/m, ou seja, 10.000.000 V/m31• lula também são distorcidos em seu arranjo tridimensional
Assim, percebemos que as forças elétricas que atuam através pelas forças geradas pelo campo elétrico. O aumento da per-
da MC são enormes. meabilidade e a perda da seletividade da MC, que são pro-
Modificações no valor do potencial transmembrana porcionais ao número de poros formados e ao seu diâmetro
(PTM) afetam intensamente a estrutura molecular da MC médio, comprometem as funções celulares, principalmente a
por causa da grande alteração do campo elétrico. A partir entrada de íons de cálcio, que ativam reações químicas que
da década de 1970, começaram a surgir trabalhos científicos acabam por destruir a estrutura da célula 38ª.
voltados ao estudo das alterações da MC pelas variações do Cálculos baseados nos potenciais induzidos, na forma ge-
PTM. O que despertou esse interesse foi a dificuldade de ex- ométrica das células, na condutância do meio extracelular e
plicar os efeitos tardios observados em vítimas de graves aci- intracelular e na corrente gerada pela diferença de potencial
dentes elétricos, como as sequelas neurológicas, musculares têm sido feitos tanto com membranas artificiais fabricadas
e psíquicas7•32•33,34•34", atestadas pelo achado de células lesadas com camada dupla de lipídios39 , como em células cultiva-
ao lado de células normais, necroses musculares tardias e le- das em laboratório e em tecidos vivos 33•38•38ª·39•4º. As previsões
sões progressivas nos exames histopatológicos33 . No mesmo baseadas nas equações estabelecidas por esses cientistas têm
sentido, parestesias, espasmos musculares, redução da for- confirmado as observações diretas do fenômeno da eletro-
ça e paralisias referidos pelas vítimas quando socorridas em perfuração quando visualizado sob microscopia óptica40•43
serviços de emergência7,3z, 33.34,J4a. ou eletrônica37•
Tais sintomas apresentados não podem ser explicados Abaixo de 250 mV, é difícil a forma ção dos poros. É pre-
apenas pela ação térmica da corrente elétrica. Uma prova ciso que esses choques, ou pulsos elétricos, tenham duração
disso são os casos em que se encontram pouca lesão na pele maior ou que sejam mais próximos entre si. Q uando são
e intensa alteração muscular e nervosa no mesmo segmento muito próximos entre si, há uma somação dos seus efeitos.
corporal 15•18•33•35•36 • Assim, a atenção voltou-se para a MC, uma O primeiro pulso forma alguns poros; antes que eles se fe-
vez que alguns dos sintomas eram compatíveis com a dificul- chem, vem o novo choque, que forma outros poros e assim
dade na repolarização das fibras musculares. Por esse cami- por diante. À medida que eles se vão formando, aumenta a
nho, chegou-se à alteração da MC conhecida como eletroper- corrente elétrica para dentro da célula, reduzindo o potencial
furação (eletroporation em inglês) ou eletropermeabilização. elétrico transmembrana (PTM) necessário para a abertura
A eletroperfuração é uma lesão das MCs caracterizada de novos poros 14•
pela formação de poros com diâmetro de 20 a 120 µm, em A ação dos pulsos elétricos depende de alguns parâ-
forma de cratera, semelhantes a vulcões 37 , que estabelecem metros como amplitude (voltagem), duração, frequência e
a continuidade entre o citoplasma celular e o meio extra- número. Hoje, os autores já podem escolher o protocolo de
celular. Sua distribuição na superfície celular é irregular, eletroperfuração conforme o efeito desejado, pois há apare-
predominando nos polos celulares e nas regiões mais próxi- lhos preparados para emitir os pulsos elétricos necessários.
370 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

A voltagem mais comumente usada fica entre 300 m V e Existe um momento breve, mas importante, o chamado
1 V 14•33•35 •39; a duração de 4 m s para cada pulso é a preferida período refratário da célula excitada, que ocorre depois da
por alguns autores porque corresponde aproximadamente despolarização. Consiste no tempo em que o sistema ener-
aos picos de corrente alternada de 60 Hz35 ; a frequência dos gético da célula funciona para restabelecer o estado normal
pulsos, ou seja, o intervalo entre um e outro, varia ora pela de polaridade. Durante esse período, a célula não responde a
ciclagem da corrente alternada, ora pelo número de fecha- novas excitações. Quando é excitada por uma corrente contí-
mentos e aberturas do circuito na unidade de tempo quan- nua, a fibra muscular contrai-se e mantém-se assim enquan-
do se trata de correntes contínuas. Admite-se que pulsos de to durar o fluxo elétrico e até que se esgote a sua energia
1 V com duração de 4 ms são suficientes para permeabilizar contrátil, sem que se repolarize.
a MC dos mamíferos em geraJ33.39 • De Bruin e Krassowska 38 o Os efeitos que mais nos interessam com relação à pas-
demon straram matematicamente. sagem da corrente elétrica por nosso corpo são a simples
Outro dado importante com relação à eletroperfura- percepção do fluxo, a retirada brusca da mão, alterações da
ção é o tempo em que permanecem abertos os poros. Esse sensibilidade, espasmos musculares, que chegam a prender a
tempo depende da intensidade do campo elétrico que os pessoa ao condutor, a parada respiratória periférica e a fibri -
causou e da forma geométrica das células permeabilizadas. lação ventricular (Tabela 18.1) .
As células alongadas, como as fibras musculares estriadas e Embora pareça desprezível a corrente capaz apenas de
os neurónios, sofrem permeabilização mais intensa quan- causar o afastamento reflexo e brusco da mão do condutor,
do seu maior eixo é paralelo à direção do campo elétrico. esse ato pode significar perder o equilíbrio no alto de uma
Mas a medida desse tempo depende do poder de resolu- escada, tocar um corpo muito aquecido ou uma lâmina cor-
ção da aparelhagem usada pelo pesquisador. Assim, alguns tante. São todas situações geradoras de risco para a saúde e
autores referem fechamento alguns microssegundos após o para a vida 31• De acordo com Bernstein\ num circuito do-
choque44 e outros, vários segundos 37• Os dados são de com- méstico de 120 V, considerando-se o mínimo valor possível
paração muito difícil porque não há padronização das con- para a resistência da pele, o máximo de intensidade da cor-
dições experimentais. rente entre as duas mãos, ou de uma mão a um dos pés, será
Quando os poros permanecem abertos, a célula não con - de 240 mA.
segue manter as indispensáveis con centrações dos íons de só- Excitar uma fibra muscular por corrente alternada de
dio e de potássio, respectivamente fora e dentro do citoplas- 50 Hz é o mesmo que aplicar uma série de choques de li 100 s,
ma, e a consequente polarização da sua membrana, po rque separados por esse mesmo tempo, por causa da oscilação
seu estoque de energia logo se esgota, tentando compensar sucessiva dos polos positivo e negativo. O tempo de 1/100 s
os fluxos estabelecidos através desses poros. Lembremos que
é o trabalho bioquímico celular, utilizando a energia forne-
cida pelo ATP, que con segue manter a polaridade da MC. Se Tabela 18.1 . Efeitos da corrente elétrica
essa membrana fi ca mais permeável, o consumo energético Elalto lnllaldlda (Rafslncl•)
aumenta exageradamente e a célula morre exaurida. Tsong45
Retirada reflexa da mão 0,5 mA4
lembra que as funções celulares ainda levam tempo variável
para se recuperar após o fechamento dos poros. Sensação de formigamento 1 mA1
1,5 mA24
Recentemente, tem-se proposto o u so de subst âncias
com propriedades surfactantes para acelerar o fechamento Parestesia no antebraço 4 mA24
dos canais formados pela eletroperfuração. Surfactantes são Espasmo e tremores no antebraço 5 mA24.25
substâncias que reduzem a tensão superficial de massas lí- Não larga o fio > 5 mA4
quidas como, por exemplo, os d etergentes. Uma d essas subs- 7 a 9 mA1
t âncias, o poloxâmero 188, já foi u sada com sucesso para 6 a 10 mA27
tratar a eletroperfuração de mo do a reduzir a formação dos 15 mA24.25,31
poros e para acelerar o seu fechamento 36•4 2•46• 16 mA13
Parada respiratória periférica 20 a 30 mA27
Ação da Corrente Elétrica 20 a 50 mA1
Uma condição básica para que haja estimulação celular Fibrilação ventricular 30 mA por > 1 s durante
é que algum agente desencadeie uma modificação do PTM a onda T27
no mínimo de 15 a 20 mV3 1• A resposta pode ser uma secre- 50 mA por 2 s4
ção, um impulso nervoso ou uma contração, de acordo com 50 a 100 mA1·15
o sistema enzimático da célula. Por um mecanismo físico- 75 a 100 mA25
100 mA13.24
químico, a despolarização propaga-se por toda a superfície
500 mA por O, 1 s27
celular. É assim que se desloca, por exemplo, o impulso ner- 500 mA por 0,2 s4
voso de um neurónio moto r à placa mo tora do músculo. Por
Assistolia 1 a 5 A12 > 2 Al,13.25
vezes, esse impulso caminha mais de 1 m.
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 371

pode parecer muito breve, mas é suficiente para que a fibra se Tabela 18.2. Fator de corrente cardíaca nos possíveis trajetos
repolarize e esteja pronta para responder com nova contração no corpo 27
quando chegar o novo estímulo, já que o período refratário TraJllo da Comnte Valor do Fator
tem duração aproximada de 1/1.000 s30 . O resultado final é
Mão esq. a qualquer ou ambos os pés; 1,0
uma contração espasmódica de toda a musculatura do seg-
ambas as mãos aos dois pés
mento atravessado pela corrente, só interrompida pelo des-
Mão esquerda à mão direita 0,4
ligamento do circuito. Como a musculatura flexora é mais
potente que a extensora, caso alguém segure um fio eletriza- Mão direita a qualquer ou ambos os pés 0,8
do, fica preso com a m ão crispada sobre o condutor. Mas há Dorso à mão direita 0,3
controvérsia quanto ao valor da corrente capaz de provocar
Dorso à mão esquerda 0,7
tal situação. Alguns autores admitem que a intensidade seria
de cerca de 15 mA para homens adultos 24•2 5 .3 1 e cerca de 50% Tórax à mão direita 1,3
menos no caso de crianças3 1• Outros referem correntes ainda Tórax à mão esquerda 1,5
menores: 7 a 9 mA para homens adultos e 3 a 5 mA para Nádegas a qualquer das mãos ou a ambas 0,7
crianças 1• Correntes alternadas de 60 Hz um pouco mais in-
tensas já são capazes de causar parada respiratória periférica
por espasmo da musculatura torácica. Alguns referem valores
correntes alternadas de 1.000 Hz, a intensidade tem que ser
de 20 a 30 mA5•27, enquanto outros, entre 20 e 50 mA 1•
14 vezes maior do que a necessária em frequência de 60 Hz4 •
Fibrilação Ventricular
Outros Efeitos
Consiste na contração descoordenada das fibras muscu-
A intensidade da contração muscular depende da inten-
lares cardíacas, sem o sincronismo necessário para esvaziar
sidade da corrente. Em alguns casos, é tão forte a ponto de
os ventrículos. Se não for revertida, leva à morte rapida-
produzir fraturas ou luxações de um ou mais ossos4•13 •15•24 •
mente, porque corresponde a uma parada cardíaca. Entre
Tais fraturas são mais comuns por arrancamento, em tubér-
os riscos da ação da corrente elétrica é esse o mais temível. culos e apófises onde se inserem os músculos. Podem passar
A intensidade da corrente elétrica capaz de causar fibrilação
despercebidas nos primeiros instantes e só serem diagnos-
ventricular tem gerado muita discussão. Basta anotar os va- ticadas dias depois. Localizam-se com maior frequência na
lo res propostos pelos diversos autores, que variam entre 30 epífise superior do úmero e na ulna. Nas vértebras, a sede
e 500 mA 1•4•5 •13•24 •25•27• As causas de tanta discrepância residem mais comum são as apófises espinhosas. Mas são descritas
na desconsideração do tempo de duração da corrente, do seu fraturas mais graves e luxações com lesão medular e con-
trajeto no corpo do indivíduo e no mo mento do ciclo car- sequente prejuízo neurológico 1•15 • A for te contração pode
díaco em que chega o choque. Bernstein 4 relata 50 mA com causar também rotura do próprio músculo, geralmente na
duração de 2 se 500 mA com duração de 0,2 s, e Bridges27 re- junção com o tendão que lhe dá continuidade 13 •
fere 30 mA por mais de 1 s e 500 mA por 0,1 s. A intensidade A ação estimulante da corrente tem outros usos na práti-
da corrente tem que ser aumentada na m esma proporção da ca médica. Correntes de 300 mA são empregadas no eletro-
redução do tempo, desde que ela tenha cerca de 50 a 60 H z. choque terapêutico (convulsoterapia) usado por psiquiatras
Os pontos de contato do corpo humano com a fonte para tirar pacientes de crises depressivas graves. Correntes de
de energia e com o solo fazem com que o fluxo de corren- alta frequência são utilizadas na produção de calor profundo
te através do coração varie. Bridges27 leva em consideração em tratamentos fisioterápicos (dia termia) .
o que ele chama de "fator de corrente cardía ca'; que reflete
a densidade de corrente nos tecidos ao redor do coração e Ação Térmica
que depende dos pontos de entrada e saída da corrente nos
acidentes. A intensidade real no coração seria calculada pela A ação térmica da eletricidade se faz sentir pelo efeito
divisão da que penetrou no corpo pelo fator correspondente Joule da corrente através dos segmentos do corpo humano
ao trajeto da corrente. A Tabela 18.2 lista alguns desses valo- e pela energia das faíscas que constituem os chamados arcos
res. Assim, se uma corrente de 100 mA fluir de uma mão até voltaicos.
a outra, o coração será percorrido por 250 mA.
A ciclagem da corrente também altera o seu potencial
Ação Térmica da Corrente (Efeito Joule)
para causar a fibrilação ventricular. Infelizmente, as corren- As lesões térmicas encontradas em cada acidente pela
tes alternadas mais perigosas nesse sentido são as utilizadas eletricidade dependem, entre o utros fatores, da voltagem, da
na iluminação das casas e na indústria, ou seja, 50 a 60 H z. resistência dos contatos, da forma de associação da vítima
O limiar de intensidade dessas correntes para causar fibri- com o condutor e da facilidade de escoamento da energia
lação cardíaca é de apenas 2,5 vezes a necessária para a ex- para o solo. Ora são lesões encontradas nos pontos de con-
citação dessas fibras musculares por causa da repetição dos tato, ora são aquelas causadas por arcos voltaicos. Na amos-
estímulos em função da forma sinusoidal da corrente 31• Com tragem de Yan 18 de pacientes atendidos no Shangai Power
372 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

Hospital, 70% dos casos foram decorrentes de contato e mais tecidos do segmento. Assim, a pele da mão tem que ser
30% resultaram de arcos voltaicos. No Canadá, Tredget 10 atravessada por toda a corrente, qualquer que seja o tipo de
reviu os arquivos de 1 década de atendimentos na Unidade associação. Depois que a corrente a atravessa, distribui-se pe-
de Tratamento de Queimados da Universidade de Alberta e los outros tecidos com fluxo maior naqueles de maior con-
achou 5,3% decorrentes de ação elétrica, dos quais 56,8% dutância. Por isso, é comum que encontremos lesão intensa
por contato e 40,5% por arcos. da pele, principalmente quando ela está seca, em função da
A voltagem do circuito que atua sobre o acidentado resistência mais alta. Nos acidentes causados por voltagens
pode ser alta ou baixa. Conforme a fonte consultada, predo- baixas, dependendo da resistência da pele e do tempo de
minam os acidentes de baixa ou de alta voltagem. Revisão duração do contato, podemos encontrar uma lesão muito
feita na França por Gourbiere 12 registra 57% de acidentes característica: a marca elétrica. Foi descrita minuciosamen-
por voltagem baixa, 18% por alta e 25% sem registro do te por Jellinek4 7, que a considerava uma lesão diferente, não
potencial no universo de atuação da Electricité de France, a uma queimadura. Atualmente, é ponto pacífico que a marca
estatal que praticamente detém o monopólio de produção e elétrica é uma forma especial de queimadura.
distribuição. Nos centros de atendimento a queimados, en- Na década de 1960, fizemos a necropsia do vigia de
tre as vítimas de eletroplessão, predominam as de acidentes uma fábrica de tecidos localizada no subúrbio de Deodoro.
por alta tensão, como no Shangai Power Hospital, na China, Apresentava uma lesão em canaleta, alongada, endurecida,
com 67,9% dos casos 18• de bordas elevadas e fundo branco-amarelado, semelhante
Já vimos, ao fazermos breve recordação dos princípios a uma marca elétrica. Como a guia de remoção do cadá-
físicos da eletricidade, que um indivíduo pode associar-se a ver não referia acidente de eletroplessão, resolvemos visitar
um circuito elétrico em série ou em paralelo (Figs. 18.4 e o local onde o corpo fora encontrado. Havia uma grande
18.5). Quando se associa em série com o condutor, conduz caldeira e tubos condutores de vapor quente que passavam
toda a intensidade da corrente, o que não ocorre quando está rente ao solo, sob a grade em que se apoiara o cadáver. Não
associado em paralelo. Mas isso não significa que todos os havia rede elétrica a descoberto nas proximidades. Assim,
tecidos do segmento que estabelece o contato estejam asso- concluímos que a lesão era uma queimadura post mortem
ciados do mesmo modo. Lee e Kolodney29 mostraram que causada pelo contato prolongado da perna com a grade
o caminho percorrido pela corrente é que vai determinar o aquecida pelo vapor48 .
tipo de associação. Assim, o membro superior está associado A extensão da marca elétrica costuma ser pequena, mas
em série, no caso de a mão segurar a ponta de um fio vivo, atinge grande profundidade. Evolui sem exsudação e não
mas os diversos planos dos tecidos estão em paralelo (Fig. tem tendência a se infectar, já que os vasos sanguíneos da
18.6). É como se o braço fosse constituído por alguns cilin- região são igualmente coagulados pela ação térmica. É esse
dros de tecido um dentro do outro, sendo o osso o cilindro o princípio do bisturi elétrico, que corta os tecidos sem pro-
central. Quando a corrente flui ao longo do membro supe- vocar sangramento.
rior, as camadas dos tecidos ficam em paralelo; quando atra- Pode ter forma circular, ou elíptica, branco-amarelada,
vessa o membro de uma face à oposta, tais camadas ficam em firme, que aparece no meio da pele sadia como que incrusta-
série (Fig. 18. 7) . da, com bordas elevadas e o fundo retraído (Fig. 18.9).
Como os tecidos de menor resistência são o san gue e o
muscular, nos tipos comuns de contato da pessoa com um
fio eletrizado, o fluxo da corrente far-se-á mais po r eles, que
serão os mais aquecidos pelo efeito Joule da corrente. Já se
admitiu que o osso, por ter menor condutância (maio r resis-
tência ), seria mais aquecido do que os músculos adjacentes
e para eles cederia calor. Na verdade, ocorre o contrário, os
músculos é que aquecem o osso. Mas, no caso da Fig. 18.7,
o osso seria o tecido mais aquecido, pois a corrente seria a
mesma para os diversos planos.
Nos casos em que o indivíduo toca um condutor forte-
mente eletrizado mas íntegro, associa-se em paralelo (Fig.
18.5). A corrente que flui por seu corpo para o solo é menor
do que a que fluiria se ele segurasse a ponta viva de um fio
partido. Como o condutor está íntegro, continua a transpor-
tar a maior parte da corrente. Mas, novamente, os tecidos
do seu membro superior estariam associados em paralelo, Figura 18.9. Duas marcas elétricas na mão esquerda. A menor, na
como vimos anterio rmente, porém expostos a uma corrente região tenar, tem forma cirular e cor esbranquiçada; a maior está situada
bem menor. na borda radial do punho e tem a epiderme descolada. A mancha escura
Convém lembrar que a pele da área que recebe a cor- é um coágulo sanguíneo sem relação com as marcas elétricas. Guia 56
rente está associada em série, quando comparada aos de- da :µ DP, de 01 /11 /68.
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 373

Com frequência, a marca elétrica tem forma que imita ses casos, a presença de um halo de hiperemia ao redor de
a do condutor, podendo reproduzir em baixo-relevo as ir- uma marca elétrica endurecida resulta da expulsão do san-
regularidades de sua superfície. Quando se trata de um fio, gue do interior dos vasos da pele afetada, que são espremi-
observam-se lesões alongadas, em forma de canal, cruzando dos, de modo semelhante ao que se dá nas queimaduras post
a região palmar e a face palmar dos dedos (Fig. 18.10). Con- mortem 25•48 (Fig. 18.12). Di Maio 25 afirma que não é possível
forme aumenta a quantidade de calor, o fundo fica mais es- fazer o diagnóstico diferencial entre a marca elétrica do aci-
curo, passando do amarelado ao pardo e ao negro, se houver dente com morte imediata e a produzida num cadáver.
carbonização 24•2s,49 (Fig. 18.11). Os cortes histológicos da pele lesada apresentam altera-
Nas áreas adjacentes à marca elétrica, com o passar das ções características decorrentes da ação térmica da corren-
horas, surge uma reação inflamatória nos moldes clássicos, te. O vapor produzido pela ebulição dos líquidos tissulares
com hiperemia e edema após 12 a 24 horas 3• Dias depois, o desloca os tecidos e forma cavidades de tamanho variado
tecido morto começa a se destacar da pele vizinha, forman - cercadas por elementos comprimidos tanto na derme quan-
do-se ao redor da zona seca um sulco que se vai desprenden- to na epiderme. Esta revela núcleos alongados e perpendi-
do paulatinamente. culares à superfície formando feixes e paliçadas, com pouca
Quando a morte se dá no momento do acidente, não há nitidez dos detalhes da cromatina. O conjuntivo da derme
tempo para que se instale qualquer sinal de reação vital. Nes- apresenta coloração alterada pela cocção, com tendência à
basofilia (afinidade por corantes básicos como a hematoxi-
lina), de modo semelhante ao que se observa nas queima-
duras comuns24 A 9.so.
Os pontos de entrada da corrente geralmente estão situa-
dos nas mãos, nos pés, na cabeça ou em outra região da pele.
Os contatos em mucosas são menos frequentes, mas acon-
tecem. São mais comuns os acidentes em que crianças colo-
cam uma ponta de fio ou extensão de tomada na boca. Lee
e Kolodney3 3 referem o caso de uma menina que colocou na
boca uma tomada tipo plugue e sofreu graves queimaduras
que interessaram os lábios e a comissura labial direita, com
destruição inclusive da musculatura. Nesses acidentes com
crianças pequenas, há lesão da artéria labial e hemorragia
após 2 a 3 semanas em 10% dos casos' 5.I7. Mason49 cita um
caso de perversão sexual em que foram colocados eletrodos
Figura 18.10. Marcas elétricas na região tenar direita em forma de no ânus com o fim de maior excitação sexual. Em alguns ser-
canaleta de bordas elevadas, brancas e endurecidas, lembrando con- viços de "inteligência" são empregados pequenos geradores
tacto com haste cilíndrica (fio desencapado?). São observadas duas de eletricidade estática em que um capacitor acumula ener-
outras lesões na base do dedo indicador e porção adjacente da região gia para liberá-la sobre pontos de contato nas mucosas geni-
palmar. Coleção de ensino da Faculdade de Medicina da UFRJ. tal, uretra! ou em outros locais.

Figura 18.12. Marca elétrica na borda cubital do punho, com pele


Figura 18.11. Marca elétrica profunda, situada transversalmente na endurecida e um halo de hiperemia. Este halo é devido à expulsão do
borda cubital da mão de um menino. As bordas têm cor cinza escura e sangue dos vasos da área queimada e não indica reação vital. Guia 185
o fundo é seco e amarelado. Guia 125 da 34ª DP, de 25/08/70. da W DP, de 05/09/71.
374 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

Quando se trata de alta voltagem, o efeito Joule da cor- a haver depósito nos túbulos renais, com obstrução e con-
rente é muito m ais intenso. Às vezes, o m embro fica tão aque- sequente insuficiência renal. Além disso, a lesão muscular
cido que o pessoal da equipe de saúde que socorre a vítima desperta reação inflamatória, com intenso edema do tecido
não pode tocá-lo com as mãos descobertas. Essa gra nde ele- conjuntivo de sustentação das fibras musculares. Isso leva a
vação da temperatura provoca lesões vasculares impo rtan- aumento da pressão hidrostática dentro das lojas delimita-
tes, principalmente nas artérias. Há quem atr ibua tais lesões das pelo conjuntivo que circunscreve cada grupo muscular.
ao fato de o sangue ser bom condutor de eletricidade, o que Em 3 a 4 horas, já é possível haver necrose muscular 17• Desse
aumentaria o fl uxo de corrente pelos vasos e, consequente- modo, surge uma síndrom e compartimentai, que obriga à
mente, o aquecimento das suas paredes' 3•50a. Com o já vimos, intervenção cirúrgica (fasciotomia ), uma vez que a pressão
a direção dos vasos mais calibrosos é a m esma do fluxo e do muito grande dentro d os compartimentos bloqueia a cir-
campo elétrico. culação, com grande agrava mento das lesões iniciais. Por
Uma das consequências do aquecimento dos vasos é a vezes, é a queimadura da pele que exige que se faça escaro -
lesão do endotélio, que leva à agregação de plaquetas, coagu- tomia (Fig. 18.13 ).
lação d o sangue e tro mbose. O vaso afetado é obstruído' 5• A Na parte dos m embros em que há uma redução da secção
prova disso é a prevenção das lesões decorrentes da trombose transversa, com o nos punhos e joelhos, a densidade do fluxo
arterial pelo uso de antagonistas do tromboxano liberado pe- elétrico aumenta e as linhas do campo elétrico ficam mais
las plaquetas 22• A obstrução arterial explica a extensão d as le- próximas entre si. Desse modo, o aquecimento é m ais inten-
sões iniciais a territó rios inicialmente não comprom etidos' 5• so nessas regiões (Fig. 18.14). Pela mesm a razão, é incomum
Lee e Kolodney33 construíram um modelo experimental o achado de lesões pela ação térmica da corrente nas vísceras
de membro superior humano para estudar os efeitos tér- torácicas e abdominais10•22•29 •
micos da corrente elétrica, o qual contava com um sistema
circulatório de m odo a simular m elho r as condições natu- Lesões por Arcos Voltaicos
rais. Verificou que a temperatura atingida durante a passa-
São centelhas, ou faíscas, de intensa luminosidade, que
gem da corrente não sofria grande influência da circulação.
pulam do conduto r com alta voltagem para qualquer corpo
Contudo, o tempo de resfriamento er a reduzido em algumas
que permita o escoamento da energia para o solo. Não se for-
horas quando havia circulação efetiva. Isso, certamente, tem
mam abaixo de 350 V através do ar normal. Par a q ue surjam,
influência na gravidade, pois a ação prolongada das tempe-
é preciso que haja gr ande proximidade entre o condutor e
raturas elevadas produz lesões mais intensas.
o po nto de escoamento, tendo o ar de permeio. A for ma do
Além da trombose, as artérias sofrem degener ação da
condutor pode facilitar a fo rmação d o arco se houver pontas.
túnica média' 5•5 ' · 52 • Experiências antigas feitas por Jaffé52 em
Bernstein4 relata o caso de um faze ndeiro que usava luvas
artéria femoral de cães mostraram que havia uma degenera-
grossas de couro e botas de borracha quando fez contato
ção das fibras elásticas e dilatação da parede vascular, que se
com fio de 7.200 V. Foi eletrocutado. Uma das botas tinha
to rnava muito friável e se rompia pela manipulação 1 sema-
na depois. Dale5 1 acompanhou uma vítima de eletroplessão
com queimaduras e carbonização do m embro superior es-
querdo, havendo comprometimento axilar, que evoluiu re-
lativam ente bem até o 23º- dia, q uando m orreu por anemia
aguda causada por ro tura da artéria subclávia para a cavida-
de pleural. Recentemente, Tredget'º descreveu um caso em
que ho uve rotura espontânea da artéria radial no sexto dia
após contato com linha de 50.000 V, depo is de se ter reali-
zado uma fasciotomia. Jellinek47 reporta um caso em que a
vítima teve que sofrer amputação de dois dedos da mão e,
horas m ais tarde, teve hemo rragia e precisou fazer ligadura
da artéria radial. Como o vaso estava muito friável, foi pre-
ciso subir para ligar a artéria umer al, m as o paciente acabou
falecendo em consequência das perdas sanguíneas.
Como já referimos, o fluxo da corrente ao longo de um
m embro aq uece preferencialmente o tecido m uscular, que
apresenta a maior condutância. Nos casos de alta voltagem ,
há grave comprometimento dos músculos, mesmo que não
se percebam lesões cutâneas muito intensas. A destruição
m aciça das fibr as musculares libera gr ande quantidade de
mioglobina para o sa ngue, o q ue pode ser d osado par a a Figura 18.13. Escarotomia no tórax para reduzir a resistência à
avaliação da gravidade d o caso 22 • Essa proteína é elimina- expansão respiratória. Guia 414 da 36' DP, de 21 /11 /2002. Caso do Dr.
da pelos rins e, ultrapassado o limiar de excreção, começa Fernando Gaspar do IMLAP.
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 375

um prego grosso no calcanhar, o que facilitou a passagem mico independe da temperatura e está relacionado mais com
da corrente para o solo sob a form a de arcos. Somogyi e Te- a voltagem 4. A intensidade da carbonização e da cocção dos
deschi24 reproduzem uma tabela que correlaciona a distância tecidos depende da voltagem e da repetição das descargas, o
entre os dois po los e a diferença de potencial necessária para que ocorre se o circuito não é desligado.
gerar a faísca (Tabela 18.3) . Além de se formarem entre o conduto r e algum segm en-
A corrente elétrica que flui é pequena nas centelhas e to da vítima, os arcos podem for mar-se entre dois segmentos
grande nos raios. Assim, a roupa pode incendiar-se por cau- do próprio indivíduo durante a passagem da corrente, sem-
sa dos arcos de grande energia e aumentar as áreas de pele pre buscando o caminho m ais curto para o solo. Assim, po-
queimada'. demos ter uma faísca saltando para a m ão e outra da m ão
A temperatura atingida no arco voltaico varia, segundo para o tron co do indivíduo 22 .
os autores, entre 3.000 e mais de 5.000ºC1·4·13·25·2s, 53 . Mas o A pele e os tecidos subjacentes do local onde atua o arco
mais importante é a quantidade de energia, pois o efeito tér- voltaico são carbonizados (Figs. 18.15 e 18.16). Nos casos
mais intensos, os ossos são destruídos de modo incomple-
to, formando-se pérolas ocas de fosfato de cálcio, com 0,5 a
1 cm de diâmetro, que podem ser encontradas sobre o osso
lesado e no local do acidente24. Quando o conta to é feito com
a cabeça, pode haver explosão da caixa craniana por causa da
ebulição instantânea do cérebro.
Quando a pessoa é atingida por um arco voltaico sobre
um objeto metálico que esteja m anuseando, o metal funde e
se vaporiza de modo explosivo, sendo lançado sobre a pele
da vítima. É o que se chama de metalização. Nos casos de
instrumentos de aço, a cor é cinza-escura e nos de instru-
m entos de cobre, avermelhada. A pele fica dura e seca, e sua
elasticidade diminui tanto que se torna difícil de preguear.
Com o tempo, descama e volta ao normal, desde que se tenha
o cuidado de evitar infecções.
Não chegando a haver carbonização dos planos profun-
dos, é possível achar fissuras finas no osso, de trajeto irregu-
lar, que passam despercebidas aos raios X. Sachatello e Ste-
venson54 relatam um caso de contato com 13.000 V em que
uma das pernas da vítima sofreu carbonização parcial das
partes moles na face posterior. Três meses depois, quando
da alta, a vítima tentou andar e sofreu fratura da tíbia. O
exame radiológico m ostrou intensa osteoporose responsável
pela fra tura patológica. Só depois de alguns meses é que se
formou um calo ósseo resistente.
A área de saída da corrente costuma ser maior do que a de
entrada, o que diminui a densidade do fluxo de eletricida-
de em cada ponto da pele. Assim, o aquecimento é menor e
não chega a produzir lesões sem elhantes às de entrada (Fig.
18.17).
Nos casos em que a voltagem é muito alta, mesmo haven-
do um meio isolante entre a região de saída e o solo, como

Tabela 18. 3. Relação entre potencial e distância para


formação de arco voltaico66
Voltagem Dlstlncla
1.000 V Milímetros
5.000 V 1 cm
Figura 18.14. Ação térmica da corrente elétrica. Choque de alta
voltagem através de contacto com vergalhão de construção civil. Há 20.000 V 6cm
queimaduras profundas nas duas mãos (A e B), com perda do indicador 40.000 V 13 cm
e parte do pelogar direitos (B). Acidente de trabalho com mais de uma
semana de evolução. Mesmo caso da Figura 18. 13. 100.000 V 35 cm
376 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

Figura 18.17. Pequena marca elétrica nas imediações da base do


primeiro pododáctolo direito indicativa do escoamento da corrente para
o solo. Guia 38 da 38ª DP, de 18/05/99.

Figura 18.15. Carbonização parcial do couro cabeludo por acidente nosidade intensa dos arcos voltaicos pode ser lesiva. É o que
de alta voltagem. Parte da calota craniana está exposta e os cabelos ocorre com operários que trabalham com solda elétrica sem
estão crestados. Mesmo caso da Figura 18.11. a devida proteção.

Complicações das Lesões pela Eletricidade


A complicação mais importante é, obviamente, a morte.
Já abordamos a mortalidade dos acidentes pela EE ao co-
mentarmos os dados estatísticos. Os mecanismos de morte
serão apreciados mais adiante. As outras complicações de-
pendem de fatores relativos ao circuito, ao próprio indivíduo
e à disponibilidade de meios de socorro imediato. No que
tange ao circuito, são importantes a voltagem, a forma de
associação e a existência de relés sensíveis o suficiente para
interromper a corrente assim que houver o seu desvio para o
solo através do acidentado. A demora em desligar o circuito
pode fazer a diferença.
Com relação ao socorro, quanto mais bem preparados os
serviços do local onde se deu o acidente, maiores as chances
de sobrevivência e de recuperação total da sa úde. Nos locais
Figura 18.16. Várias lesões circulares, escuras, distribuídas irregu- com equipes bem treinadas, a maioria dos sobreviventes não
larmente, de tamanho variado, na região dorsal, causadas por arco apresenta sequelas. Numa revisão francesa, só houve seque-
voltáico. Mesmo caso da Figura 18.11. las em 24,5% das vítimas 12 •

Complicações Devidas às Queimaduras


um sapato, a diferença de potencial entre a pele eletrizada e
A gravidade das queimaduras po r EE pode ser avaliada
o chão fica tão grande que se formam pequenos arcos vol-
quando comparada com as provocadas pelo calor. Isso pode
taicos através da pele e do sapato, com grande concentração
ser feito em centros de tratamento de queimados. Entre a
de feixes de elétrons. Nessas condições, a área de saída revela
população atendida nesses centros, cerca de 4 a 5% são víti-
lesão diferente da marca elétrica, caracterizada por numero-
mas de eletroplessão. Analisando 1.399 pacientes admitidos
sos pontos de carbonização agrupados, mas separados por no centro da Universidade de Alberta, no norte do Canadá,
pele m enos lesada ou íntegra. Os autores de língua inglesa Tredget 10 verificou que as lesões pela EE costumam ser de
chamam-na de are burns, ou seja, queimaduras de arco.
meno r extensão, mas tendem a se ampliar muito mais com o
tempo do que as pelo calor. Para avaliar sua extensão real, é
Ação Luminosa
preciso esperar entre 1 e 2 semanas. Sua morbidade é maior.
A transformação da energia elétrica em luz é fato cor- A frequência de amputações fica em to rno de 14 a 19% nos
riqueiro e que normalmente não causa lesões. Mas a lumi- casos de alta voltagem 1º· 12 • 1s,soa, sendo realizada geralmente
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 377

por volta do décimo dia após o acidente 10 (Fig. 18.14). Em gia, conforme a extensão e o nível da lesão. Porém, são mais
lo ngo prazo, as queimaduras podem levar a rigidez articular, frequentes as deficiências relacionadas aos nervos periféricos
por fibrose das partes moles, e ao prejuízo estético em grau dos segmentos mais comprometidos no acidente. Assim, é
variado conforme a localização 12 •23• comum achar distúrbios da sensibilidade e da força de um
membro. Em alguns casos, nota-se atrofia muscular com o
Distúrbios do Psiquismo passar do tempo.
Quando se faz um acompanhamento em longo prazo,
com aplicação de testes de rendimento das funções cerebrais Dos Órgãos dos Sentidos
superiores e exame psiquiátrico, notam-se alterações que O sentido mais comprometido nos acidentes elétricos é o
têm sido pouco enfatizadas pela maioria dos autores, mas da visão 12•24 • Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que o olho
que são muito mais frequentes do que imaginado. pode ser atingido diretamente se fizer parte dos pontos de
Na década de 1990, pesquisadores da Universidade de contato. Mas são descritas lesões causadas tanto pelo efei-
Chicago7" 5 acompanharam um grupo de pacientes vítimas to Joule da corrente quanto pela ação luminosa dos arcos
de eletroplessão por tempo variado, que chegou a mais de voltaicos. A lesão mais relacionada com o efeito térmico da
9 anos. Aplicaram testes de avaliação de QI, memória, aten- corrente é a catarata tardia e a atribuída à ação luminosa é
ção e concentração, funções motoras e grau de depressão e a ceratite.
ansiedade. Excluíram aqueles que haviam sofrido lesão na
cabeça, tanto pela eletricidade quanto pela ação contunden- Catarata Tardia
te secundária. Ao fim, comparando com grupos-controle
formados por eletricistas não acidentados e por vítimas de Atualmente, não há mais dúvidas quanto à relação causal
queimaduras comuns, verificaram maior frequência de de- da redução progressiva da transparência do cristalino com
pressão, alterações cognitivas e distúrbio de estresse pós- os acidentes em que a corrente elétrica passa pela cabeça. O
traumático (DEPT). Houve, inclusive, comprometimento da calor produzido seria capaz de alterar a estrutura do crista-
atenção, da capacidade de concentração e da aprendizagem lino. Uma prova indireta disso seria a maior incidência de
e da memória, principalmente a visual. Notaram que tais catarata em profissionais expostos rotineiramente a ambien-
alterações costumam ser progressivas ao longo do tempo e tes de temperatura muito elevada, como os sopradores de
que não têm relação com a gravidade do acidente sofrido. vidro e os que trabalham nas fornalhas das siderúrgicas 24•56 .
Analisando as circunstâncias do acidente, constataram inci- Pode ser uni ou bilateral. Quando bilateral, a lesão mais in-
dência maior de depressão e de DEPT naqueles que ficaram tensa fica do lado que corresponde ao contato de entrada da
presos ao ponto de contato. Observaram nos pacientes com corrente 12 • Mas há referência a casos em que a cabeça não
DEPT que os que eram eletricistas tinham quadro depres- estava no caminho entre os contatos de entrada e de saída
sivo associado, enquanto entre os sem depressão não havia da corrente 23 •24• Pode aparecer em menos de 1 mês 15 , poucos
eletricistas. Atribuíram tal fato ao sentimento de culpa dos meses24, ou somente após 123 ou mais de 2 anos 24 e tende a ser
eletricistas por não poderem mais ter o mesmo desempenho progressiva. O sintoma inicial é a redução da acuidade visual.
profissional que tinham antes do acidente. Isso torna mais
difícil a readaptação desses indivíduos a novas funções e ao Cerati te
ambiente familiar. Outros autores descrevem tais complica- É a inflamação da córnea por lesão do seu epitélio. Ao
ções juntamente com as sequelas neurológicas sob a rubrica contrário da catarata, é complicação imediata. Aqui, são os
de distúrbios neuropsíquicos 12•15 • raios ultravioleta presentes na luz dos arcos voltaicos o agen-
te causal. Eles são parcialmente absorvidos pelo epitélio cor-
Neurológicas neano, cujas células podem ficar apenas tumefeitas ou se de-
São descritas complicações relacionadas aos sistemas generar e descamar 12•24•57 • A lesão desperta uma reação infla-
nervosos central, periférico e autônomo 12•15 •22 •23 • A mais co- matória na conjuntiva do globo ocular, uma vez que a córnea
mum é a perda imediata da consciência, que ocorre em cerca é formada por um tecido avascular. Conforme a intensidade
de 1/3 dos casos de baixa voltagem e 3/4 dos de alta 24 • São da agressão, há edema que pode estender-se às pálpebras e
frequentes também as convulsões e os espasmos musculares chegar a ocluir o olho 24 • Essa lesão é mais comum em ope-
violentos. As lesões resultam de eletroperfuração da MC, da rários que trabalham com solda elétrica sem usar óculos ou
ação térmica da corrente sobre os neurónios e seus prolon- máscaras que barrem a irradiação ultravioleta. A princípio,
gamentos, e de ação contundente. Esta consta de fraturas e há fotopsia (persistência da sensação luminosa após cessado
luxações decorrentes das contrações musculares ou de que- o estímulo) seguida, poucas horas depois, de lacrimejamento
das sofridas no momento do choque. intenso, sensação de areia nos olhos e distúrbio visual ca-
Dependendo da passagem da corrente, qualquer setor racterizado por presença de um halo luminoso ao redor dos
pode ser afetado. São descritos distúrbios do equilíbrio, da objetos. Mais tarde, pode haver espasmo da musculatura pal-
coordenação motora e da fala. Lesões medulares podem le- pebral homolateral. A inflamação cede em 2 a 3 dias se não
var a paresias ou mesmo evoluir para paraplegia ou tetraple- houver infecção secundária. A repetição frequente desse tipo
378 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

de acidente pode levar a retinite com degeneração da mácula sos recuperados após horas de respiração artificial é que foi
(ponto de maior percepção visual da retina )24 . possível estabelecer a conduta de mantê-la até que a vítima
São muito menos comuns os acidentes industriais que pudesse respirar por seus próprios meios26•
levam a perdas auditivas. As lesões do ouvido ocorrem nos A experiência acumulada demonstra que a morte dos
casos de fulguração. eletrocutados pode-se dar por parada respiratória, central ou
periférica, parada cardíaca ou hemorragia tardia. Não consi-
Osteoarticulares deramos morte causada pela eletricidade aquelas decorren-
A maioria decorre de quedas e de contrações vigorosas tes de ação contundente por quedas e as devidas a queima-
de grupos musculares 1•12•15 • Tais contrações podem levar à duras provocadas por fogo iniciado por arcos voltaicos.
fratura de ossos longos e de vértebras ou a luxações. No caso
das vértebras, há a possibilidade de lesão medular. Qualquer Parada Respiratória Central
vítima de acidente elétrico grave deve ser manuseada como No eletrochoque terapêutico, no qual flui uma corrente
se tivesse lesão da coluna, pois é comum e pode passar des- de 300 mA pela cabeça, de um polo temporal ao outro, há
percebida se a pessoa estiver inconsciente' . perda de consciência que dura quase 5 minutos, acompa-
nhada de convulsões e parada respiratória de menos de 1 mi-
Viscerais nuto. Pouco se conhece acerca do mecanismo íntimo dessa
O coração é o órgão mais vulnerável à corrente elétrica. parada. Trabalhos experimentais e a observação de acidentes
Além dos efeitos mais graves e imediatos, como a fibrilação têm demonstrado que ocorre quando o tronco cerebral está
ventricular e a assistolia, são descritos outros distúrbios do interposto no circuito. A passagem da corrente de uma mão
ritmo e da frequência cardíacos demonstrados nos traçados à outra, de uma mão a um dos pés ou de um para o outro
eletrocardiográficos. Podem ocorrer durante a passagem da pé não costuma causá-la, a menos que a voltagem seja muito
corrente, logo após ou em longo prazo. Entre os mais comuns elevada ou a duração bastante prolongada 26 •
estão a taquicardia, os bloqueios da condução do impulso e A princípio, os autores procuravam explicar a perda da
os relacionados com a repolarização. São descritos focos de consciência e a parada respiratória por uma despolarização
necrose das fibras contráteis e de condução em pacientes que dos neurónios corticais e do tronco cerebral, respectivam en-
sobreviveram aos acidentes'. te. Mas essa explicação falhava porque as células podem re-
Os rins podem ser lesados pelo depósito de mioglobina polarizar-se rapidamente, sobretudo durante a passagem da
nos túbulos distais nos casos em que há extensa necrose de corrente alternada.
músculos esqueléticos, como nos acidentes de alta voltagem. Embora não tenha havido demonstração cabal, pode-
Conforme a intensidade do depósito, é possível haver insu- mos admitir que a perda da consciência e a paralisia dos
ficiência renal aguda, de modo semelhante ao que ocorre na centros respiratórios ocorram pela eletroperfuração dos
síndrome de esmagamento 1•22 . neurónios. Já vimos, ao analisarmos os mecanismos de le-
Não se costumam encontrar lesões no aparelho respi- são pela eletricidade, que a formação de campos elétricos
ratório a não ser nos casos de alta voltagem com formação poderosos é capaz de perfurar as membranas celulares em
de arcos voltaicos e combustão de materiais capazes de des- grau variado na dependência da intensidade e da duração
prender gases irritantes. Por vezes, esses gases causam lesão da corrente. Os poros formados podem fechar-se quase que
da mucosa respiratória semelhante à lesão de inalação dos imediatamente ou persistir por vários minutos, conforme já
grandes queimados'. ana lisamos. Assim, o tempo de perda da consciência e o de
parada respiratória central podem estar na dependência da
Mecanismos de Morte pela Eletroplessão intensidade dos campos elétricos formados e do tempo ne-
cessário ao fechamento dos poros. Embora não conhecesse
No início do século XX, era comum dar-se por morto o fenómeno da eletroperfuração, com base em observações
qualquer indivíduo acidentado por corrente de alta tensão clínicas, Jellinek47 aconselhava a instituição de respiração
quando prostrado ao solo 47 • Muitas vidas se perderam desse artificial po r tempo prolongado, o suficiente para evitar a
modo sem que algo fosse tentado no sentido de reanimar morte de pessoas com parada respiratória muito prolonga-
as vítimas. O indivíduo era considerado morto a priori até da. Como a eletroperfuração é irreversível nos traumatis-
por médicos de bom gabarito. Mais tarde, pela observação mos mais graves, levando à morte celular, nesses casos have-
de casos não fatais de acidentes provocados por alta tensão, ria parada irrecuperável.
modificou-se aquela crença tão nefasta da inexorabilidade da O utro mecanismo capaz de produzir a parada de origem
morte nesses acidentes. central é a lesão dos neurónios pela elevação da temperatu-
Como as necropsias de casos fata is de eletroplessão evi- ra corporal nos acidentes de alta tensão 13• É o que ocorre,
denciam, em geral, sinais de asfixia, foi proposta a institui- por exemplo, nos casos de execução na cadeira elétrica. O
ção de respiração artificial em todos os indivíduos vitimados calor gerado pela passagem da corrente causa uma hiperter-
pela eletricidade. Mas o tempo de manutenção da assistên- mia em que a temperatura cerebral ultrapassa os 60ºC24 •25 •
cia ventilatória era curto. Somente depois do relato de ca- As células nervosas sofrem dano irreparável já na faixa dos
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 379

45°C, o que já referimos ao estudarmos os efeitos do calor graves perdas sanguíneas pela abertura de vasos importan-
ambiente (ver Capítulo 17). tes cujas paredes estavam lesadas e bloqueadas pelo tecido
necrótico'.
Parada Respiratória Periférica Resumindo, a morte por eletroplessão pode ser causada
por cinco m ecanismos. Nos acidentes de alta tensão, o mais
É de explicação mais simples. Ocorre quando a corrente
comum é a parada respiratória central, podendo ocorrer
passa pelo tronco do indivíduo. Tanto o diafragma quanto
também parada cardíaca em assistolia, ou hemorragia tar-
os músculos da parede costal e abdominal contraem-se de
dia. Nos casos de baixa tensão, o mais comum é a fibrilação
modo espasmódico e impedem a movimentação respirató-
ria. Enquanto durar a corrente, a vítima não consegue respi- ventricular, mas também pode ser causada por parada respi-
rar. Se não se desligar o circuito por mais de 3 a 5 minutos, ratória periférica.
instala-se um processo de asfixia que evolui para a morte. As
correntes que produzem esse efeito, como vimos, estão na Causa Jurídica da Morte
ordem de 20 a 50 mA. Como são mais que suficientes para
manter o indivíduo preso ao condutor, não havendo meca- Como já vimos, a quase totalidade das mortes por ele-
nismo de desligamento automático do circuito, a salvação troplessão deve-se a acidentes, principalmente infortúnios
depende de ajuda externa. do trabalho. Os acidentes domésticos de gravidade suficiente
para serem notificados são menos frequentes. A maioria não
Parada Cardíaca chega a causar lesões importantes. De um modo geral, são
causados pelo uso de aparelhos com defeitos no circuito in-
Na virada do século XIX para o XX, já se propunha que terno. Esses aparelhos permitem a passagem da corrente para
a parada cardíaca se desse por fibrilação ventricular nos a sua carcaça. Como no Brasil não é muito comum o empre-
acidentes em circuitos de baixa voltagem ou por assistolia go de tomadas de três pinos, com fio terra, cria-se uma condi-
nos casos de alta tensão 4• As condições que levam à fibrila - ção de risco quando isso acontece. Com a atual obrigação do
ção ventricular já foram explicadas. Correntes acima de 2 A uso de tomadas de três pinos a incidência deve ser reduzida.
são tidas como desfibrilantes. Provocam contração global da Mas há acidentes que podem ser confundidos com suicí-
musculatura cardíaca, com parada em sístole. Se mantidas dio, como nos casos do uso de dispositivos elétricos em prá-
por mais de 2 minutos, o coração m antém -se contraído e ticas er óticas. Mason49 publicou um caso em que um casal
ocorre dano cerebral irreversível. A ação de correntes muito morreu eletrocutado por um bastão metálico introduzido
elevadas gera campos elétricos de grande intensidade, capa- no ânus de cada parceiro.
zes de lesar de forma irreversível as fibra s musculares cardía- Raros são os casos de suicídio po r eletroplessão. Mant58
cas, levando à morte por assistolia. narra o de um homem de 38 anos que já havia tentado con-
O tipo de acidente mais comum a causar fibrilação ven- tra a vida cortando os pulsos, que subiu em um poste de alta
tricular acontece preferencialmente no lar. É quando a pessoa tensão, segurou os fios de 130.000 V e fez contato para o solo
tem as m ãos m olhadas, está descalça e toca num condutor com as pernas. No caso de técnicos de eletricidade, o suicida
de 110 ou 220 V. Na maioria das vezes, ocorre no banheiro. pode armar dispositivos de tempo para fecharem o circuito
Ora se trata de chuveiro elétrico com fio desencapado, o ra de a uma hora prefixada. Por vezes, o contato é feito através da
banheira provida de aquecimento elétrico da água. A pessoa pulseira de m etal do relógio de pulso28•49 • Outros fecham o
grita ao sentir o choque e cai logo depois 13.25 • Entre o choque circuito por meio de uma mola disparada a distância, com o
e a queda inconsciente passam -se cerca de 15 segundos. No em armadilhas para prender animais 24 • Entre nós, temos o
caso de banheiras, a superfície de condução fica muito am- relato de um técnico em eletrónica de Brasília que usou um
pliada pela água de sabão ao redor do corpo da vítima. O dispositivo imaginado por ele com terminais de 220 V ao re-
sabão dissolvido na água constitui uma solução eletrolítica dor do tórax59 •
que conduz bem a corrente. Nos EUA, um dos modos de execução da pena capital é a
cadeira elétrica. É um dispositivo formado por uma cadeira
Hemorragia Tardia
em que existem dois eletrodos e braçadeiras e correias para
Conforme referimos ao estudarmos a ação térmica da prender o condenado. Um dos eletrodos faz conta to na cabe-
corrente, o aquecimento da parede das artérias pode causar ça e tem forma de ca pacete ou de tiara metálica; o outro cir-
trombose e obstrução, mas também pode levar à degenera ção cunscreve uma das pernas, geralmente a direita. Nos pontos
da parede arterial. Essa lesão torna as artérias friáveis e m e- de contato, esfrega-se uma pasta eletrolítica para diminuir
nos resistentes à pressão do sangue. A partir daí, dilatam-se a resistência da pele. A voltagem aplicada é de 2.000 V ou
progressivamente, podendo chegar à rotura. Se a artéria for um pouco mais, e a corrente, de cerca de 5 a 10 A. Durante a
de calibre médio ou grande, a hemorragia pode ser fatal se o execução, a voltagem é sucessivamente abaixada para 500 V e
acidentado não for prontamente socorrido. novamente elevada várias vezes a cada 30 segundos. Em cer-
A queda de escaras resultantes de necrose maciça de te- ca de três minutos o indivíduo já está morto. A temperatura
cidos do segmento atingido 2 a 3 semanas antes pode causar do cérebro chega a atingir 65ºC após a passagem da corrente.
380 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

Como vimos no início deste capítulo, a primeira execu- de mortalidade infantil. Conclui que quanto menos desen-
ção na cadeira elétrica foi cercada de grande polêmica (a ba- volvido o país, maiores os índices de mortalidade e de mor-
talha das correntes). Atualmente, a pena capital existe em 32 bidade pelos acidentes com eletricidade. A divulgação para o
estados dos EUA. Dentre estes, predomina a execução através público em geral das normas de segurança ajuda na redução
de injeção letal. Mas, em nove estados (Alabama, Arkansas, dos acidentes domésticos. Vale lembrar, a esse respeito, que as
Florida, Illinois, Kentucky, Oklahoma, South Carolina, Ten- pessoas devem ser alertadas para não tocarem a vítima antes
nessee e Virginia), existe a possibilidade de o condenado es- do desligamento do circuito e de não se aproximarem muito
colher a cadeira elétrica61 •62 • se o chão estiver molhado e se se tratar de alta voltagem. Há
Embora considerada crime hediondo, a prática de tor- possibilidade de passagem da corrente pelo solo úmido '.
tura não foi abolida na investigação das mais variadas for- Deve também o pessoal ser instruído no que diz respei-
mas de crimes, principalmente os de conotação política. En- to às técnicas de respiração artificial e de ressuscitação por
tre os instrumentos usados para causar dor aos torturados massagem cardíaca para socorrer companheiros que tenham
incluem-se dispositivos geradores de corrente elétrica cujos sido eletrocutados.
eletrodos costumam ser colocados em regiões sensíveis como De um modo geral, os circuitos são protegidos contra so-
vagina, uretra, ânus, ouvido etc. Como as mucosas são úmi- brecargas capazes de prejudicar ou queimar equipamentos.
das e têm resistência baixa, a corrente torna-se mais intensa. Para isso, são usados disjuntores ou fusíveis. Mas, quando
de trata de proteção aos seres humanos, a interrupção do
circuito tem que ser imediata e desencadeada por mínimas
Prevenção de Acidentes Elétricos
variações da corrente dentro do sistema. A interposição de
A prevenção dos acidentes baseia-se em três aspectos sistemas de relé que o desligam permitiu que muitas pos-
principais: 1) proteção e isolamento perfeito dos condutores; síveis vítimas de eletroplessão escapassem. Esses dispositi-
2) adestramento do pessoal técnico encarregado de executar vos de segurança interrompem automaticamente o circuito
obras e reparos em instalações elétricas; 3) interposição, no quando há escoamento de parte da energia da rede para a
circuito, de sensores capazes de interromper a corrente assim terra, o que ocorre durante os acidentes. Os relés fazem um
que houver qualquer perda de potencial por outros contatos monitoramento do fluxo de corrente entre a fase e o neu-
da rede com a terra. tro do circuito. Havendo um desvio de corrente em torno de
A proteção contra a eletroplessão começa com um bom 5 mA, eles o desligam em cerca de 1/40 s' 3•27•53 •
aterramento de máquinas e aparelhos. O uso de tomadas Do ponto de vista económico, os acidentes pela EE são de
com três pinos, incluindo um fio terra, permite que qualquer alto custo, pois costumam incidir sobre adultos jovens e tec-
quantidade de energia que passe da fase do sistema para a nicamente diferenciados. As perdas incluem assistência mé-
carcaça do aparelho seja escoada para o solo através desse fio. dica, reabilitação, afastamento do trabalho, substituição de
Isso impede que a corrente flua através da pessoa, já que ela mão de obra qualificada, dano aos equipamentos, investi-
oferece resistência maior à sua passagem. Também podem gação do acidente e manutenção de uma comissão de segu-
ser instalados dispositivos que detectem a aproximação de rança do trabalho. Aconselha-se não se fazer economia nos
fontes de alta voltagem em aparelhos e em veículos de trans- gastos com prevenção e se investir na pesquisa de novos mé-
porte de carga, como tratores e guindastes 27• todos de tratamento capazes de diminuir o período de inati-
O pessoal que lida diariamente com a eletricidade deve vidade e o grau de incapacidade do trabalhador6 •
ser alertado do perigo latente que os condutores represen-
tam. Os profissionais devem usar luvas de borracha e sapatos Perícia
isolantes que impeçam o escoamento da corrente para a ter-
ra por seu corpo. Sabe-se, contudo, que, mesmo com luvas A perícia nos casos de eletroplessão inclui o exame do
de borracha e toda a proteção, é possível ainda o fluxo de local, da aparelhagem utilizada e da vítima. Nos vivos, o ob-
parte da corrente pelo corpo do eletricista que toca conduto- jetivo do exame é constatar lesões, possíveis incapacidades, e
res de alta tensão. Pode-se trabalhar com o circuito desligado estabelecer o nexo causal com o acidente. Geralmente, não
ou ligado. Mesmo em circuitos de alta voltagem, é possível há uma responsabilidade penal a ser apurada, mas sim um
trabalhar com a linha viva, basta impedir o escoamento da aspecto civil de indenização. A gravidade das lesões deve ser
energia para o solo 12 • No caso de trabalho em circuitos desli- avaliada tanto na fase aguda como ao longo da evolução, pois
gados, deve haver comunicação perfeita entre o operador da complicações tardias são frequentes. Passada a fase aguda, a
central elétrica de distribuição e o eletricista que trabalha na maioria das vítimas tem recuperação completa. Em um tra-
rede alimentada por aquela central. balho de revisão, Gourbiere achou incapacidade considerada
De suma importância é o treinamento dos eletricistas. leve em 20% e grave em 2,9% dos sobreviventes12•
Quanto mais bem orientados tecnicamente, menor a chance Nos acidentes por alta tensão, as lesões causadas pela
de acidentes. Wyzga6 fez uma pesquisa em que procurou cor- ação térmica são muito extensas e inconfundíveis, de modo
relacionar o número de acidentes com o grau de instrução e que não costuma haver dificuldade diagn óstica tanto nosso-
desenvo lvimento do povo utilizando como parâmetro a taxa breviventes quanto nos casos fatais.
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 381

A autopsia das vítimas de acidentes por baixa voltagem de chegar ao solo e, às vezes, dar a impressão de que é ascen-
pode trazer sérias dificuldades diagnósticas. A marca elétrica dente. No entanto, mais da metade das descargas elétricas
da entrada po de ser muito pequena e difícil de encontrar. Às dos cúmulos-nimbos ocorre dentro da própria nuvem e se
vezes, só é visualizada após se raspar um pouco a pele com distingue do raio por ser de maior duração e ter luminosida-
uma lâmina. Ou pode simplesmente não existir. Mesmo o de intensa e difusa63 • Quando duas nuvens estão eletrizadas
exame histopatológico pode ser negativo, principalmente com cargas opostas e a diferença de potencial ultrapassa cer-
porque não havendo lesão macroscópica não se tem um pon- to limiar, a descarga faz-se entre elas.
to de referência para colher o retalho cutâneo para exame. O raio comum é uma corrente contínua de amperagem
O exame interno é, via de regra, inespecífico. Ora revela imensa'. Forma-se porque se desenvolve uma gigantesca di-
sinais ger ais de asfixia, ora é totalmente nulo. O diagnóstico ferença de potencial entre a face inferior da nuvem e a ter-
não pode ser feito, já que a fibrilação ventricular, que é a causa ra. Há várias teorias que visam a explicar o mecanismo da
mais comum da morte, não deixa qualquer sinal. Como vi- eletrização das nuvens, a maioria baseando-se no atrito de
mos, a vítima continua consciente por 15 a 20 segundos após partículas de densidade diferente formadas dentro da nu-
o choque que causou a fibrilação. É capaz de desligar uma vem, algumas descendo e outras subindo graças às correntes
tomada com a mão livre durante esse período e, logo depois, aéreas de grande velocidade que se formam entre as diversas
cair definitivamente6.2 5• A causa da morte tem que ser baseada camadas do cúmulo-nimbo. O fato é que esse atrito leva a
no histórico e no depoimento de testemunhas, se ho uver. E um acúmulo de cargas negativas na face inferior da nuvem e
a busca deve ser complementada pelo exame do local e dos de cargas positivas nas porções mais elevadas. E o cúmulo-
aparelhos que a pessoa utilizava no momento do acidente. nimbo pode ter até mais de 6 km de altura64 •
Embora a perícia do local e dos aparelhos seja tarefa do Como se sabe, as cargas elétricas de sinal oposto tendem
perito criminal, o legista deve saber que é possível achar frag- a se atrair e as de mesmo sinal, a se repelir. Por isso, quan-
mentos de epiderme colados ao condutor que eletrocutou a do um condutor que tem uma ponta é eletrizado, tende a
vítima. O exame dos aparelhos pode dar muito m ais infor- acumular suas cargas nessa extremidade. A aproximação de
mação que o do cadáver, principalmente quando se tratar de um corpo eletrizado faz com que as cargas opostas do outro
acidentes domésticos, em que pode não haver testemunhas, tentem colocar-se o mais próximo possível do primeiro. A
esse fenô meno dá-se o nome indução eletrostática. Pois bem,
principalmente se ocorrer no banheiro.
a nuvem cúmulo-nimbo, por sua proximidade da terra, in-
duz o acúmulo de car gas positivas no solo. E essas cargas po-
sitivas procuram as po ntas mais altas e nelas concentram-se
• ELETRICIDADE NATURAL (FULGURAÇÃO) até que a energia se escoe formando o raio. Esse é o princípio
d o para-raios65.
A ação da eletricidade natural sobre o organismo deve
O escoamento da energia, embora pareça instantâneo,
ser chamada de fulguração, embora haja quem use o termo
passa por fases d istintas. Sem entrar em detalhes, sabe-se que
fulminação. Mas fulminar quer dizer lan çar raios, coriscos. A
se forma primeiro uma descarga invisível, chamada de líder,
ação dos raios atmosféricos é a fulguração.
que desce da nuvem para o solo sob a forma de passos de 50 m,
Médicos, juízes e autoridades policiais são solicitados
a intervalos de 50 µs, e ramifica-se ao se aproximar da terra.
a resolver problemas decorrentes da ação da eletricidade
Quando está a cerca de 50 a 100 m, forma-se outra líder da
atmoférica apenas ocasionalmente. Os médicos, pela rarida-
terra em direção a um dos ramos e as duas se encontram. É
de dos acidentes de fulguração; os juízes, porque a ação da um fen ômeno semelhante ao que ocorre quando duas placas
eletricidade natural constitui risco genérico, não sendo co- condutoras com grande diferença de potencial são aproxi-
berto como acidente pela maioria dos contratos de seguro; madas entre si. Salta uma faísca de uma para a outra per-
os policiais, por não haver a quem responsabilizar criminal- pendicular às superfícies eletrizadas. Como a face inferior
mente. Sendo assim, é pequena sua experiência nesse campo. da nuvem não é plana, os raios líderes for mam-se em várias
Mas, quando há vítimas da queda de um raio, as circuns- direções até que um deles encontre um caminho de menor
tâncias podem ser tais que seja possível suspeitar de algum resistência do ar. Mas esse caminho não é necessariamente o
tipo de atentado contra a pessoa. As informações que pas- mais curto para o solo65•
saremos a dar têm o objetivo de servir de consulta para o Essas descargas líderes ionizam o ar, que se to rna bom
esclarecimento dos fatos. condutor, de modo que passa um raio mais forte pelo mes-
mo caminho, seguido por outros durante tempo geralmente
Noções Físicas m enor que 1 s. Seu conjunto constitui o raio visível. As des-
cargas comuns têm duração variável, com média de 0,01 s,
A eletricidade atmosférica pode manifestar-se de várias mas podem chegar a 1,6 s4 •63•65 • Assim, a maioria dos raios que
maneiras, embora a maioria das pessoas só tenha tido opor- vem os tem carga negativa, intensidade de corrente variável
tunidade de ver uma delas - o raio. Na maioria das vezes, o com picos altíssimos da o rdem de 50.000 A. O primeiro pico
raio é visto como uma centelha que une uma nuvem do tipo é alcançado em 2 µs, atinge 30.000 A, cai à metade em 40 µs
cúmulo-nimbo à terra. Essa centelha pode ramificar-se antes e dura alguns ms4 • Mas cerca de 5% deles vêm com cargas
382 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

positivas, admitindo-se mecanismos complexos de contra- fulguração. Dados nacionais indicam que houve 159 mortes
corrente para explicar sua polaridade64 •66 . Os raios comuns por fulguração no Brasil, em 1992 16 • Nos EUA, com área um
têm sido observados em tempestades de neve, de areia, em pouco maior que a nossa e densidade dem ogr áfica m aior, há
to rnad os e em erupções vulcânicas64• Interessante é a afirma- autores que registram uma média de 100 a 200 casos63 e ou-
ção feita por Coo per67 de que a quantidade to tal de energia tros que assinalam 200 a 400 mortes por ano70 para um total
de um raio não é tão grande quanto se possa imaginar. Daria, de 800 a 1.000 pessoas atingidas65•7 1• Na Inglaterra, a média
no máximo, para acender apenas uma lâmpada comum por anual era de 12 casos em 1960 58•
alguns meses. O problema é que essa energia está concentra- A mortalidade média referida varia um pouco de um au-
da no tempo e no espaço. tor para outro. Para uns, atinge 50% dos casos 13 , para outros
Se um raio de 30.000 A atingir uma pessoa que tenha fica em torn o de 40% 58 , 30% 7 1, ou 10% 65 • Mas há os que afir-
1.000 O de resistência, a diferença de potencial seria, teorica- mam que não ultrapasse 1/3 das vítimas24 •72• Tem diminuído
mente, de 30.000.000 V porque V = I x R. Mas tal voltagem nas últimas décadas pelo avanço tecnológico dos centros de
não pode ser alcançada porque o ar só suporta potenciais de tratamento intensivo4 •
no máximo 500.000 V. Acima desse valor, fo rmam-se arcos
voltaicos para os corpos que estejam ao redor. Desse m odo, a
Lesões e Morte por Fulguração
maio r parte da energia se escoaria por fora do indivíduo sob
a fo rma de raios secundários laterais4 • A probabilidade de um corpo qualquer ser atingido por
Quando se dá a ionização do ar e a descarga total ocorre, um raio é pro po rcional ao quadrado da altura e à área da
o ar explode. Forma-se uma onda de choque como em qual- sua base4 • O corpo humano não é exceção. A gravidade dos
quer outro tipo de explosão, capaz de, por si, provocar danos acidentes de fulguração costuma ser cinco a dez vezes maior
materiais e lesões corporais. É o que produz o som do trovão65 • que a dos casos de eletro plessão 1 • As vítimas sofrem efeitos
Um tipo raro de relâmpago tem a for ma de uma bola lu- da eletricidade, da onda de choque gerada pela ionização do
minosa (ball lightning) de cor vermelha, com diâmetro mé- ar e da luminosidade intensa.
dio de 20 cm , e desce da nuvem a uma velocidade de cerca A onda de choque produz lesões semelhantes às cau-
de 100 m/s, depois reduzida a menos de 2 m/s quando mais sadas pelo blast proveniente de outras formas de explosão,
próxima do solo. Em geral, explode após vida média de 3 a 4 conforme abordamos no estudo das baropatias. Ao serem
segundos. Não se tem uma explicação para o fenômeno64•65• arremessadas, as pessoas são passíveis de lesões por ação
contundente.
Incidência O efeito do raio difere confo rme o tipo de acidente. Há
várias possibilidades quanto à maneira de o r aio incidir so-
A incidência de acidentes de fulguração deve ser maior bre a vítima: 1) cai diretamente; 2) dispersa-se sobre uma
nos países tropicais, haja vista a m aior frequência de tempes- área em que ela está; 3) cai perto e emite ramos laterais que
tades nessas regiões. Mas os dados estão sujeitos a correções atingem a pessoa; 4) cai perto e induz voltagem em corpo
decorrentes da extensão territorial, da densidade demográfica metálico que mantém contato com ela; 5) cai perto e vem
e da irregularidade da distribuição populacional desses paí- pelo chão, passando de um pé ao outro pelo corpo; 6) a víti-
ses. Regiões com grande extensão de florestas tropicais são ma é atingida dentro de casa por estar em contato ou muito
sujeitas a tempestades frequentes, mas a maioria atinge áreas próxima a to madas e aparelhos elétricos ligados a uma rede
de baixa concentração humana, tornando pouco provável externa atingida; 7) a pessoa é atingida por um raio hori-
que haja vítimas. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais zontal que atravessa a casa de uma face a outra por janelas
gerencia a Rede Brasileira de Detecção de Descargas Atmos- e portas abertas1•24• Blanco-Pampin e cols.73 relataram o caso
féricas (BrasilDat), que monitora a ocorrência de descargas de um hom em que foi atingido no ombro direito, quando
atmosféricas. Suas observações para o biênio 2009-2010 mos- dormia em seu quarto, por um raio que entrou pela antena
traram que as cidades com m aior densidade de raios são Por- da TV e passou ao longo da fiação q ue corria por trás da
to Real (RJ), São Caetano do Sul (SP) e Barra Mansa (RJ), a cama, tendo perfu rado a madeira do encosto da cabeceira.
primeira com 27 descargas por km 2 por ano. Estima-se que Q uando o indivíduo é apanhado sozinho pela descarga,
caiam no Brasil 50 milhões de raios por ano concentrados em um local descampado, dificilmente escapa com vida. A
nos meses de verão68 . Mas a rede não cobre a Amazónia. corrente que flui por seu corpo é a m aio r possível. Nas zonas
Em regiões urbanas, a incidência é bem m enor que no rurais, lavradores são apanhados pelo raio, às vezes, quando
campo 24• Os dispositivos de proteção das construções por carregam sobre o ombro instrumentos metálicos, como en-
m eio de para-ra ios reduzem muito a probabilidade de os xadas e ancinhos. Nesses casos, os efeitos são bem m aio res.
r aios atingirem as pessoas. Assim, a incidência no municí- O raio incide sobre o metal e se escoa para a terra tanto pelo
pio do Rio de Janeiro não é alta, confo rme verificamos nos corpo da vítima quanto através de outros corpos que estejam
registros do IMLAP em d ois quinquênios distintos. No pe- próximos sob a fo rma de raios secundários. Por vezes, ocorre
ríod o de 1950 a 1954, houve quatro casos e no de 1968 a uma passagem da corrente apenas pela superfície corporal,
1972, dois casos69• Ao lo ngo de 26 anos de trabalho naquela sem penetração nos planos profundos, conhecida pelos au-
instituição, só fizemos o exame de d ois corpos de vítimas de tores de língua inglesa como fiashover70•
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 383

Lesões Cutâneas
A pele apresenta queimaduras de forma e profundidade
variadas. Na maioria das vezes, ao contrário do que ocorre
nos acidentes de alta voltagem pela eletricidade industrial,
são lesões superficiais 74 • Fahmy e cols.66 descreveram uma
queimadura de espessura total na ponta do grande pododác-
tilo, bilateral, circular, escura, em 10 de 11 pessoas atendidas
na emergência de um hospital em decorrência de um aci-
dente em que um raio caíra sobre 17 pessoas abrigadas em-
baixo de árvores ao lado de um campo em Essex, Inglaterra,
onde crianças jogavam futebol. Como havia também lesões
na parte lateral da região plantar, atribuíram as lesões ao fato
de ser essa a topografia das partes mais finas do calçado e,
por consequência, a via de escoamento do raio para o solo.
Algumas queimaduras são decorrentes diretamente da
ação térmica da corrente, podendo ser puntiformes e pro-
funda s ou lineares e mais superficiais. Outras estão relacio-
nadas ora com o aquecimento de metais que o indivíduo
porta, como colares, medalhas, brincos, fechos ecler e fivelas;
ora com a ignição das roupas 49•58 •75 • Por vezes, as queimaduras
relacionadas com o aquecimento e a possível fusão de metais
imitam de modo preciso a sua forma.
Uma lesão característica é a chamada figura de Lichten- Figura 18.18. Duas figuras de Lichtenberg localizadas na região
berg. Também é referida como figura arborescente, em sa- peitoral direita, com origem na projeção da clavícula e ramificação para
mambaia, em pena, ou em rabo de andorinha 1•24A9•58 •75 • São baixo. Caso autopsiado pelo autor no IMLAP, em 17/01 /74.
marcas avermelhadas formadas por uma linha central de
onde partem r amificações laterais irregulares, que formam
ângulos agudos sempre no sentido craniocaudal, localiza-
das com mais frequência no tór ax, pescoço e abdómen (Fig.
18.18). Somogyi e Tedeschi 24 as encontraram em 1/6 dos ca-
sos que examinaram. Não se tem uma explicação consensual
de sua patogenia, apenas hipóteses as mais díspares. Quando
o acidente não é fatal, desaparecem desde algumas58 até 24
horas25 depois. O exame histopatológico revela pele normal
a não ser pela presença de um ou outro foco de pequeno ex-
travasamento de hemácias no tecido subcutàneo 75 .
Os pelos do tronco e dos membros podem formar gru-
pos enroscados, conforme já observamos pessoalmente, por
vezes crestados, principalmente nos homens76• É possível que
tal aspecto esteja relacionado com o estado das vestes, que se
apresentam muito rasgadas de modo irregular (Fig. 18.19).
A maioria dos autores acredita que os rasgões da roupa se Figura 18.19. Enroscamento dos pelos do tórax e do abdômen em
devem a uma explosão de dentro para fora a partir do corpo caso de fulguração. Os pelos não estavam crestados, o que afasta a
da vítima, principalmente se estiver molhado. Haveria uma ação térmica como causa. Guia 9 da 2ª DP, de 17/02/78.
vaporização violenta da água 1•25•4 9•53 .
a longo prazo, são observadas alterações vestibulares como
Outras Lesões
tonteiras e náuseas74•
Os autores em geral referem alterações da audição, da vi- Quanto ao sentido da visão, há referência a catarata
são e do sistema nervoso. As auditivas resultam de lesão do tardia, semelhante à referida quando estudamos os arcos
tímpano pelo blast gerado pelo raio, geralmente do lado onde voltaicos 1•24, e outras lesões menos comuns, como da cór-
ele caiu. Por isso, não costuma ser bilateral24 •53• Dependendo nea, hemorragia na câmara anterior ou no humor vítreo, e
da intensidade da lesão, pode acarretar desde sensação de iridociclite 70 •
zumbido no ouvido até surdez de condução definitiva, mas As alterações do sistema nervoso causam sintomas neu-
os especialistas afirmam que pode haver cura espontânea em rológicos e psíquicos precoces e tardios. Logo após o aciden-
prazo longo que chega a 1 ano 74•77• Nas pessoas sobreviventes, te, as pessoas podem apresentar paresias e parestesias nos
384 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

membros. Algumas não conseguem ficar de pé por fraqueza Ravitch78 relata o caso de um menino de 10 anos atingido
muscular; outras evidenciam ptose palpebral24 • É possível por um raio quando passeava de bicicleta. Vendo o aciden-
que tenham abalos musculares, por vezes intensos, a pon- te, seu companheiro, que vinha metros atrás, correu a bus-
to de parecerem convulsões. É comum a queixa de cefaleia. car socorro. Chegando ao hospital, foi instituída massagem
Mais tarde, podem ser observados distúrbios do sono e do cardíaca com o tórax aberto e respiração artificial. Embora
comportamento. Foram descritas incapacidade de processar tendo permanecido em morte aparente, com parada cardior-
mais de uma tarefa simultaneamente e dificuldade de exe- respiratória por cerca de 7 minutos, sua recupera ção fez-se
cutar as mesmas atividades que desenvolviam antes. Alguns de modo gradual, e, após permanecer cerca de 1 semana em
autores comparam sua situação à de um computador que estado de coma, teve alta curado aos 29 dias de internação. A
tenha sofrido uma sobrecarga elétrica que não tenha torra- sobrevida das células nervosas, nesse caso, ultrapassa de so-
do os circuitos. Parecem normais mas não funcionam ade- bra os limites de tolerância dos acidentes comuns de parada
quadamente. Apresentam irritabilidade e tendem ao isola- cardíaca. É possível que a passagem do raio cause, nesses ca-
mento social. Tais atitudes costumam evoluir para rejeição sos, uma arritmia conhecida como torsade de pointes, precur-
e depressão 24 ' 74• sora da fibrilação ventricular, mas capaz de prover pequena
Comparando as alterações encontradas a longo prazo en- circulação do sangue imperceptível ao exame clínico 67•
tre vítimas de acidentes elétricos de alta tensão e vítimas de O tipo mais frequente de acidente, no entanto, ocor-
fulgura ção descritos em mais de 100 artigos especializados, re quando pessoas apanhadas por um temporal procuram
Primeau e cols. descreveram uma síndrome pós-choque elé- abrigar-se da chuva sob árvores, ou qualquer outro tipo de
trico74. Verificaram que, entre os dez sintomas mais comuns cobertura. O raio que cai sobre a árvore, ou a cobertura, salta
em cada grupo, os mais frequentes eram distúrbios do sono, ao acaso sobre as pessoas "abrigadas", como se fossem respin-
deficiências de memorização e da atenção, cefaleia, irritabi- gos ou estilhaços de uma explosão. Cada pessoa recebe parte
lidade e incapacidade de superar dificuldades, sem um perfil da energia trazida pelo raio, e elas sofrem menos que quan-
característico de um grupo com relação ao outro. A maioria do atingidas isoladamente. A maioria fica aturdida, alguns
dos sintomas e sinais neurológicos e psiquiátricos presentes perdem a consciência temporariamente e poucos morrem se
em um grupo também eram encontrados no outro sem di- não forem socorridos. Os nocauteados pela queda do raio
ferenças significativas de incidência. A diferença que encon- começam a recobrar a consciência dentro de poucos minu-
traram foi que, nas vítimas de fulgura ção a distribuição era tos e, assim que dão por si, são capazes de se locomover ou de
bimodal (grave ou leve) enquanto nas de eletroplessão era falar, sentem forte cefaleia e zumbido intenso no ouvido. Aos
possível traçar um espectro de continuidade entre os casos poucos, vão recuperando a movimentação, podendo buscar
leves e os mais graves. socorro. Não se lembram de ter o uvido nada, mas alguns se
A neuropatologia da fulguração foi revista recentemen- recordam de um clarão. A amnésia em relação ao fato é a
te por Kleinschmidt-DeMasters72 , que refere a presença de regra. Os que são atingidos de modo mais violento sofrem
parada cardiorrespiratória de duração variável de um para
petéquias principalmente no tronco cerebral, hemorragias
outro caso. Ao se recuperarem, recobram primeiro os bati-
maiores ao longo da passagem da corrente, certo grau de
edema e focos de necrose. Outras alterações cerebrais rela- mentos cardíacos, depo is os movimentos respiratórios e, por
fim, a motilidade voluntária79 . A probabilidade de morte é
cionam-se com parada cardía ca ou ação contundente.
de 76% para os que sofrem parada cardiorrespiratória, de
Não têm sido descritas lesões viscerais nos casos de ful-
36% para os que têm queimaduras na cabeça e de 30% para
guração. Mas podem ser notadas alterações do ECG, como
aqueles com queimaduras nas pernas71 •
desnivelamento do segmento ST, referido por Fahmy e cols.66•
No grande prêmio do turfe em Ascot, na Inglaterra, em
1955, pequena multidão foi colhida por um raio. Muitas pes-
Mecanismos de Morte
soas foram lançadas ao solo, várias perderam a consciência e,
As vítimas de fulguração mo rrem por parada respira- ao se reanimarem, notaram incapacidade de se mover. Des-
tória central e por parada cardíaca em assistolia'· 24 •7º, mas sas pessoas, 45 foram hospitalizadas. Entre essas, 27 apresen-
a maioria morre pelo coração 7 1• O tempo de passagem da taram diminuição da sensibilidade, hipo rreflexia e fraqueza
corrente, embora muito pequeno, é suficiente para gerar muscular; 15 sofreram queimaduras de vários tipos e cinco
enorme campo elétrico capaz de lesar os neurônios dos ficaram surdas, uma delas bilateralmente. Uma das vítimas
centros respiratórios e despolarizar todas as fibras cardía- de Ascot que foram hospitalizadas faleceu em decorrência de
cas. A duração da parada cardiorrespiratória pode ser lo nga, fratura de crânio. A surdez irreversível de algumas foi causa-
o que leva a vítima à morte se não forem instituídas medi- da pela onda de choque, que lhes rompeu o tímpano79 •
das como massagem cardíaca e respiração boca a boca. A Em 26/01/1994, no mar da praia de Ipanema, caiu um
recuperação dos batimentos cardíacos faz-se com o ritmo raio que produziu efeitos em várias pessoas que procuravam
normal depo is de tempo variável. Acreditamos que a demo- abrigar-se da tempestade embaixo da cobertura da barraca
ra esteja no tempo necessário ao fechamento dos poros das de uma vendedora de lanches. A barraca ficou destruída, e
membranas celulares formados durante a passagem da cor- sua do na teve as vestes rasgadas. Não houve mortes, mas dez
rente, pelo campo elétrico. pessoas ficaram um pouco queimadas e apresentaram sinto-
CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica • 385

matologia neurológica como inconsciência transitória, pare- Algumas pessoas atingidas podem ter um quadro de
sias e parestesias dos membros inferiores. Como não podiam morte aparente que ilude os menos avisados. Apresentam-se
andar, foram transportadas para o Hospital Miguel Couto, inconscientes, com parada cardiorrespiratória e pupilas não
onde ficaram poucas horas antes de sua total recuperação. reativas à luz, fixas e dilatadas por distúrbio do sistema nervo-
Algumas foram arremessadas ao ar pela explosão. Poucas se so autónomo. Para evitar que a morte se torne real, devem ser
recordavam do estrondo e do clarão80 • submetidas à reanimação pelo tempo que for necessário24•7º.
Na tarde de 13/01/1997, na localidade de Gericinó, mu-
nicípio do Rio de Janeiro, dois amigos evangélicos resolve-
Perícia
ram subir no alto da Pedra do Gavião para fazerem orações,
como de costume, apesar da tempestade que começava. Ao Em primeiro lugar, é preciso que tenha havido uma tem-
chegarem ao topo do morro, caiu um raio que matou um de- pestade com raios pouco tempo antes. Nesse caso, se houver
les e lançou o outro ladeira abaixo pelo efeito explosivo. Não testemunhas, não há qualquer dificuldade em se estabelecer
havia lesões no corpo do falecido, enquanto o sobrevivente o diagnóstico diante de lesões cutâneas compatíveis e ausên-
apresentava lesões leves por ação contundente81 • cia de outras alterações importantes.
Mas, como já referimos, alguns acidentes fatais de fulgu-
Prevenção ração podem levantar suspeitas de agressão, principalmente
se não tiverem sido testemunhados, por causa do mau estado
O principal cuidado de prevenção na cidade é a insta- das roupas e da presença de lesões por ação contundente.
lação de para-raios nas construções e nas torres. No cam- O exame do local, nesses casos, é imprescindível. Devem ser
po e no mar, longe desses dispositivos protetores, a melhor procurados sinais de ventania, de chuva forte, galhos quebra-
atitude preventiva é a antecipação da ameaça: procurar não dos ou lascas no tronco das árvores 24 •25•49.s 3• Objetos metálicos
ser apanhado por uma tempestade, ter uma visão antecipada podem apresentar marcas de combustão ou pequenos pon-
da probabilidade de que isso ocorra82 • Poucos sabem que tos de fusão. Alguns podem ficar magnetizados24 •58 .
os raios não caem somente durante a tempestade. Após sua No exame do cadáver, deve-se atentar para o estado das
passagem, ainda podem ocorrer. Eles podem ser formados vestes e dos calçados, presença de objetos metálicos fundi-
em um ponto da nuvem, fazer um trajeto horizontal de até dos e queimaduras da pele adjacente a esses objetos quando
mais de 10 km antes de descer à terra67. Atualmente, existem nos bolsos, cintos etc. A sola dos calçados pode apresentar
dispositivos que permitem guiar os raios para onde sejam perfurações irregulares e de bordas crestadas, assim como
menos prejudiciais. Um deles baseia-se em lançar um peque- queimaduras relacionadas com pregos. Alterações da pele e
no foguete provido de um fio de cobre para a base da nuvem dos pelos devem ser procuradas. O exame interno, em geral,
de modo a forçar uma descarga líder para o local desejado evidencia apenas sinais gerais de asfixia.
que o raio caia.
De acordo com o que foi exposto, é conveniente observar
algumas regras na vigência de tempestades. No campo, não REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
se deve buscar abrigo sob árvores, principalmente se muito
afastadas entre si, nem de cercas metálicas. Evitar ficar de pé 1. Koumbourlis AC. Electrical injuries. Crit Care Med; 2002. 30( 11
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desligados da tomada, para evitar a possibilidade de arcos
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386 • CAPITULO 18 Lesões e Morte por Ação Elétrica

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Nos albores da história humana, já se sabia estabelecer a macologia. Tanto a Química quanto a Farmacologia fo ram
diferença entre o que po dia ser consumido como alimento e essenciais para o nascimento da Toxico logia. Hoje, pode-
o que, se ingerido, podia causar dano. Também se conhecia o m os dizer q ue a aplicação dos conhecimentos toxicológicos
poder medicamentoso de alguns vegetais. Toscano Jr. 1 relata é tão grande que vai da arte de curar - medicina - à arte de
que o homem de Neanderthal, 60 mil anos a.C., em Shani- matar - guerra.
dar, no Iraque atual, já conhecia pelo menos oito plantas de Coube a um químico espanhol, que migrou para a Fran-
valor medicinal. ça e lá estudou medicina, naturalizando-se francês, a inicia-
O homem aprendeu, com o passar do tempo, que a di- tiva de aplicar seus conhecimentos à elucidação de casos de
ferença entre alimento e veneno está, na maioria das vezes, intoxicação pela pesquisa da substância suspeita em material
relacio nada com a quantidade ingerida. O mais inofensivo proveniente da vítima. Estamos nos referindo a José Matio
pode-se tornar prejudicial se consumido abusivamente, en- Bo naventura O rfila (1787- 1853). Ele é considerado o pai da
quanto o veneno mais poderoso pode não ser fatal se a dose m oderna Toxicologia. Foi o precursor da Toxicologia clíni-
for extremamente pequena. Mas não há um ponto divisor de ca e do tratamento dos envenenamentos por antídotos com
águas que estabeleça um limite rígido entre o que é nocivo e base nas suas pro priedades químicas. Introduziu o estudo
o que é útil. O que existe é uma escala de efeitos que depende quantitativo dos efeitos tóxicos das substâncias em animais
da dose administrada. Segundo Passagli, no século XVI, Pa- de laboratório. Foi o primeiro a correlacionar a dosagem das
racelsus já enunciara que a diferença entre medicamento e substâncias ingeridas com o quadro clínico das intoxicações.
veneno estaria na dose2• Assim, a Toxicologia tem -se transfo r- Incentivou as medidas terapêuticas de suporte nos casos gra-
mad o no estudo quantitativo da ação das drogas42• O escopo ves de intoxicação, como a respiração artificial, a fim de que
da toxicologia afeta o ser humano desde antes do nascimento o organismo pudesse ter tempo de eliminar o tóxico 3 • Em
até após a morte, pois as drogas absorvidas pela mãe podem 1814, publicou o Traité des Poisons ou Toxicologie Génerale,
agir sobre o feto, enquanto, em alguns casos, há necessidade primeira obra de Toxicologia com bases científicas, vo ltada
de exumação para esclarecimento da causa da morte4 • para o diagnóstico dos envenenamentos, que teve grande
Para que surgisse a Toxicologia com o ciência, foi fun - importância par a o nascimento da Toxicologia Forense.
<lamentai que se passasse do empirismo da Alquimia para a Segundo Garriott5, o American Board of Forensic Toxico-
metodologia científica da Química. Na busca da pedra filo- logists define Toxicologia Forense como "o estudo e a práti-
sofal, que poderia transfo rmar qualquer material em ouro, ca da aplicação da Toxicologia aos propósitos da lei''. Mas é
os alquimistas misturavam as substâncias conhecidas, e, com preciso entender essa aplicação num sentido amplo, uma vez
isso, fo ram adquirindo conhecimentos sobre as reações quí- que a lei abrange todos os aspectos da atividade humana. As-
micas. Nesse processo, fo ram lançadas as bases da química sim, é correto afirmar que a Toxicologia Forense tem impor-
como ciência. tância na poluição ambiental e dos ambientes de trabalho,
Do mesmo modo, pela descrição dos efeitos biológicos nos acidentes pelo uso indevido de drogas, de abuso ou me-
das substâncias de origem vegetal e miner al, surgiu a Far- dicamentosas, naqueles causad os por pessoas drogadas, nos

389
390 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

esportes (dopping), nas iatrogenias e nas tentativas de suicí- O nítrico e, principalmente, o sulfúrico são muito corrosi-
dio. Felizmente, em nosso meio, ainda não precisamos nos vos, destruindo os tecidos intensamente.
preocupar com os efeitos de uma guerra química nem com Dependendo da concentração da solução e do tempo
o uso de venenos como meio de execução judicial, conforme de contato com os tecidos, a profundidade das lesões varia.
ocorre em outros países. Com o passar das horas, vai-se formando uma hiperemia ao
Nosso estudo da ação química será dividido em duas redor das lesões, fruto da reação inflamatória inicial.
partes: ação cáustica (estudo dos cáusticos) e ação sistêmica No caso das bases ou álcalis fortes, as lesões tendem a ser
(estudo dos venenos). Ao abordarmos a ação sistêmica, não mais úmidas, moles e escorregadias ao toque por causa da
poderemos deixar de analisar mais pormenorizadamente as formação de sabões com as gorduras dos tecidos6•7• As ba-
drogas ilícitas mais difundidas e relacionadas com o tráfico, ses fortes tendem a dissolver os tecidos, enquanto os ácidos
em função dos problemas de segurança pública que enfren- costumam destruí-los por ação corrosiva. A amónia anidra
tamos e da grande difusão do seu uso. produz queimaduras graves em que a necrose dos tecidos
tem aspecto liquefativo e pode ultrapassar o plano cutâneo'º·
O fenol (ácido carbólico ), em contato com a pele, produz
• AÇÃO CÁUSTICA lesões esbranquiçadas, duras, quebradiças, bem demarcadas
das áreas vizinhas".
Cáusticos, ou corrosivos, são substâncias que modificam Quando um indivíduo bebe a solução da substância
os tecidos com que são postos em contato, de modo a provo- cáustica, costuma haver queimaduras da pele ao redor da
carem uma necrose química. De acordo com o tipo de lesão, boca, das narinas, e lesões de escorrimento que obedecem à
devem ser classificados como coagulantes ou liquefacientes. ação da lei da gravidade. Se a pessoa estiver de pé ou sentada,
Entre as substâncias coagulantes podemos incluir ácidos for- a tendência é de se achar lesões no mento e para baixo ao
tes como o clorídrico, o sulfúrico, o nítrico e o acético glacial; longo do pescoço e do tórax. Se deitada, as lesões dirigem-se
sais como o nitrato de prata, o cloreto de zinco e o cloreto para as laterais e para a parte posterior do pescoço. As quei-
mercúrico (sublimado corrosivo); e substâncias orgânicas maduras dos lábios podem dar, inclusive, uma orientação
como o fenol. As substâncias liquefacientes são as bases for- quanto à forma do vidro que continha o cáustico. Se forem
tes como a soda cáustica, a potassa e a amônia6•7•8• Convém largas, abrangendo de uma à outra comissura labial, o mais
acrescentar o fósforo branco, que é uma das formas alotró- provável é que tenha sido uma xícara ou um copo. Se mais
picas desse metaloide, que entra em combustão espontânea concentradas na porção central e no interior da boca, deve
quando em contato com o oxigênio do ar. Na verdade, foge ter sido uma garrafa ou frasco semelhante (Fig. 19.1). Parte
ao conceito de cáustico porque as queimaduras que produz dessas lesões decorre de ato reflexo da vítima, que regurgita
decorrem do calor gerado por sua combustão. A outra forma ou cospe a substância ingerida" (Fig. 19.2).
alotrópica, o fósforo vermelho, não tem essa propriedade9•
Lesões Internas
Lesões Externas
Devem-se à ingestão e/ou aspiração do cáustico. São
A forma geral das lesões externas pelos cáusticos depende observadas na boca e em toda a extensão do esófago e es-
das circunstâncias que levaram ao contato da substância com tômago, assim como ao longo das vias aéreas nos casos de
a pele. Em casos de explosão de vasilhames o u de destampa- aspiração. Dependendo da quantidade ingerida e do tempo
mento intempestivo, o líquido espirra sobre a vítima sob a de sobrevida, pode haver comprometimento do duodeno e
forma de gotas de tamanho variado e causa lesões circula- da po rção inicial do jejuno. Mas isso não é comum porque
res de diâmetros diferentes, mais o u menos concentradas. costuma haver espasmo do piloro 11 • A mucosa oral e do tubo
Quando a quantidade é bem maior, pode haver escorrimen- digestivo revela coloração e consistên cia modificadas de
to do cáustico sobre a pele, obedecendo à lei da gravidade. acordo com o tipo de cáustico e do tempo entre a ingestão
As diferenças qualitativas das lesões dependem de se tra- e o início do tratamento médico. Como é óbvio, a mucosa
tar de substância coagulante ou liquefaciente. Os ácidos fortes resiste muito menos do que a pele porque não tem a camada
são ávidos por água.Ao entrarem em contato com os tecidos, de células queratinizadas presente na epiderme.
promovem rápida desidratação local e inativação de suas en- O órgão mais lesado, na maioria das vezes, é o estômago,
zimas pela modificação intensa do pH. Assim, as lesões são já que o esófago é apenas um canal de passagem, o que não
secas, de contorno preciso e consistência dura. Sua cor tende impede que ele seja sede de intensas lesões e mesmo perfu-
a ser amarelada com o ácido nítrico, parda com o sulfúrico ração, com mediastinite ou formação de fístulas. Mas as alte-
e negra com o clo rídrico. Mas todos transformam a hemo- rações mais características de cada cáustico são encontradas
globina presente nos tecidos em hematina, um composto de na parede gástrica. Em geral, notam-se congestão intensa e
cor pardo-escura. Havendo muito sangue no local atingi- hemorragia de intensidade variável, conforme o cáustico e o
do, o u contato prolongado, todos tendem a produzir lesões tempo de sobrevida, caracterizando uma gastrite aguda gra-
escuras muito bem demarcadas com relação à pele indene. víssima (Figs. 19.3 e 19.4).
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 391

Figura 19.1. Queimadura química na metade direita dos lábios, prin- Figura 19.3. Após a remoção do plastrão condroesternal, vê-se in-
cipalmente o inferior. Tal localização faz suspeitar do uso de uma garrafa. tensa congestão do estômago, que está mais escuro do que o fígado.
Guia 235 da 2 1 ~ DP, de 03/11/68. Mesmo caso da Figura 19.2.

Pode haver perfuração do órgão e consequente peritonite


química. H avendo sobrevida por mais de um dia, é possível
reconhecer extensas áreas d e necrose e destruição da mucosa
e edema das outras camadas da parede do órgão, que fica
muito espessada. A intensidade das lesões pode ser atenuada
se o cáustico en contrar o estômago ch eio de alimentos. Em
todos os casos de ingestão de cáusticos, a morte é precedida
de choque e colapso circulatório7•11 •
Qualquer que seja o agente cáu stico, se a vítima sobre-
viver, haverá fibrose das lesões d evido à evolução da reação
inflamatória da fase aguda. Apesar de o esófago ser um órgão
de passagem para o estômago, as queimaduras evoluem para
a formação de aderências entre as faces anterior e posterior
do órgão, levando à estenose cicatricial. Conforme a extensão
dessas aderências, pode ser necessário fazer sua retirada ci-
rúrgica e transposição do estômago por trás do esterno, para
Figura 19.2. As manchas de cor parda na face, pescoço e tórax são uni -lo à faringe.
por queimadura química de permeio a sangue em decorrência de vômito Simultaneamente à ingestão, pode ocorrer inalação de
após ingestão de cáustico. Guia 190 da 3~ DP, de 03/07/70. vapores ou aspiração do cáustico. Conforme o grau de pene-
392 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

Ácido Clorídrico
O vendido no comércio é também conhecido como áci-
do muriático. Serve para limpeza de manchas de cimento
branco após a colocação de pisos e azulejos. A dose letal é de
4 a 18 mL e leva à morte em cerca de 4 a 24 horas7• A parede
gástrica fica muito espessada e edematosa, coberta por líqui-
do espesso, com coloração que vai do acinzentado ao negro,
conforme a quantidade de sangue modificada pelo ácido. Há
possibilidade real de perfuração em vida ou após a morte 11 •

Ácido Oxálico
Pode ser ingerido sob a forma de cristais ou de solução
concentrada. A dose letal vem a ser de 0,3 a 1 g, levando à
morte nos casos agudos em menos de 1 hora7 • Apresenta efei-
tos locais corrosivos menos intensos do que os outros ácidos,
mas tem intenso efeito sistêmico. As mucosas oral, faríngea
e esofagiana mostram coloração esbranquiçada, com peque-
nas estrias avermelhadas por hemorragia 7' 11 • Já o estômago
apresenta mucosa de coloração pardo-avermelhada de tona-
lidade tão mais escura quanto maior a quantidade de sangue,
e consequente produção de hematina, do segmento lesado.
Há erosões e despregamento de áreas da mucosa ao exame
necroscópico7• 11 • É possível encontrar cristais de oxalato de
Figura 19.4. Mucosa gástrica de cor pardo-acinzentada escura, com
cálcio em meio ao conteúdo gástrico. A morte é muito mais
pregueamento normal e conteúdo hemorrágico no antro. Mesmo caso
da Figura 19.2. rápida do que com os outros cáusticos citados em função da
absorção do ácido, que é um agente quelante para o cálcio, ou
seja, combina-se com o cálcio do sangue e dos tecidos, pro-
tração nas vias aéreas, as lesões podem restringir-se à laringe movendo uma hipocakemia gravíssima. Formam-se cristais
ou interessar os pulmões. Nesse caso, há intenso edema pul- de oxalato de cálcio que vão depositar- se nos túbulos renais.
monar, e a morte pode ser antecipada 11 • A redução drástica dos níveis de cálcio do sangue tem efeito
A seguir, descreveremos aspectos particulares de alguns sobre os músculos em geral, causando contrações invo luntá-
agentes. rias que culminam com convulsões e parada respiratória 11 •

Ácidos Fortes Bases Fortes


Ácido Sulfúrico Amônia
É também chamado de óleo de vitríolo. A ingestão de 3,5 Pode ser encontrada como solução concentrada (30% de
a 7 mL já é considerada dose letal, com morte em 18 a 24 HONH 4 em água) ou sob a forma anidra de gás amoníaco
horas7• Tem taxa de mortalidade muito alta. É extremamen- (NH 3) liquefeito em cilindros pressurizados. Ambos são ex-
te corrosivo e tende a desidratar a parede gástrica, que sofre tremamente irritantes para as mucosas. Assim, tanto é possí-
a ação do calor intenso gerado pela reação do ácido com a vel ocorrer a ingestão intencional do líquido como acidentes
água do suco gástrico. A coloração fica pardo-acinzentada por escapamentos ou explosão dos cilindros de gás. A dose
escura, de intensidade variada. Pode chegar ao negro, con- mortal é de 4 mL, com sobrevida mínima de 4 a 5 minutos já
forme o teor de sangue do segm ento afetado, a concentração registrada 7• Logo após a exposição, as mucosas ficam muito
da solução e o tempo de contato 11 • congestas, seguindo-se edema intenso. No caso de ingestão, a
ação cáustica se faz sentir em todo o trato superior, com cor-
Ácido Nítrico
rosão de intensidade menor do que com os ácidos fortes. A
A dose letal média é de 7 mL, levando à morte em tempo mucosa gástrica fica edemaciada, havendo vómitos logo em
que varia de 1 hora e meia a 30 horas7 • As lesões gástricas seguida à ingestão, po r vezes com eliminação de fragmentos
tendem a ser secas, como nos ácidos em geral, mas de colora- de mucosa e estrias de sangue. Há edema da mucosa laríngea
ção amarelada. A perfuração do estômago é bem menos fre- e das cordas vocais, com rouquidão característica 7 •
quente que no caso do sulfúrico. Caso a quantidade ingerida Os acidentes com o gás causam queimaduras cutâneas
tenha sido grande, é possível observar vapores amarelados de extensão variada, que podem ser parciais ou totais. A pele
emanarem do conteúdo gástrico 11 • sofre necrose liquefativa. É comum haver lesão de inalação,
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 393

com edema da mucosa respiratória e edema pulmonar. Por chega a causar perfuração do intestino delgado 13• Di Maio 13
isso, nos casos em que houver lesão da face, é aconselhável refere um caso de suicídio em que uma mulher ingeriu soda
intubar a vítima para impedir obstrução da laringe pelo ede- cáustica e 4 semanas depois sofreu hemorragia fatal por for-
ma da glote 10• mação de fístula esofagoaórtica.

Soda Cáustica e Potassa Óxido de Cálcio (Cal Virgem ou Cal Viva)


São encontradas no comércio sob a forma sólida, em pó É muito usado na construção civil para a pintura de pa-
ou em flocos, para limpeza doméstica, ou em soluções mui- redes (caiação ). Mas já foi muito usado para a demarcação
to concentradas. A soda cáustica é o hidróxido de sódio e a dos limites de jogo em campos de futebol. Sua ação cá ustica
potassa cáustica, o hidróxido de potássio. A dose letal é de motivou sua substituição por outros materiais inertes pela
3,5 a 5 g, e a morte se dá, em geral, nas primeiras 24 ho- ocorrência de queimaduras nos atletas. O óxido de cálcio,
ras7. Os acidentes com a soda cáustica são mais frequentes e quando misturado com água, sofre reação química exotér-
ocorrem principalmente no lar. Outrora, não havia soluções mica intensa, capaz de causar queimaduras cutâneas. Resulta
concentradas disponíveis para uso comercial, e as tentativas da reação o hidróxido de cálcio, que é a cal extinta.
de suicídio eram feitas com soluções preparadas pela própria Também podem causar queimaduras químicas os diver-
vítima. Assim, a concentração variava. Carrara 12 descrevia sos tipos de cimento. Em sua composição, entram silicatos,
um quadro em que as mucosas ficavam edematosas e esbran- aluminatos e aluminossilicatos de cálcio, que são substâncias
quiçadas, salientes e de consistência viscosa. O estômago era higroscópicas, alcalinas abrasivas e capazes de causar lesões
descrito como contraído, com sua mucosa gelatinosa e per- eritematosas, que costumam evoluir para erosões e ulcerações
corrida por traços hemorrágicos, com formação de escaras mais profundas, na dependência do tempo de contacto. O aci-
escuras enegrecidas. Atualmente, sabe-se que a ingestão da dente mais comum ocorre com pedreiros e serventes de pe-
solução concentrada é capaz de causar necrose transmural dreiro que trabalham sem botas, ou quando a mistura úmida
do esôfago em tempo curtíssimo 13• Alcança o estômago, do cimento cai dentro da bota. Se o trabalhador não para a
onde causa necrose intensa e de cor muito escura, quase ne- fim de limpar os pés, o contacto prolonga-se e as lesões são,
gra, pela formação de hematina alcalina (Fig. 19.5). Às vezes inclusive, potencializadas pela ação abrasiva do cimento 14 •

Agente Fixador
Formol
É um fixador não coagulante, e o mais usado em histolo-
gia. As soluções comerciais têm concentração de 40%. Para
uso, deve ser diluído a 4%. Sua ação fixado ra está baseada
na capacidade de inativar os principais sistemas enzimáticos
celulares através da ligação com alguns radicais - N H 2 pre-
sentes nos aminoácidos, como a lisina, formadores das ca-
deias proteicas. Essas ligações to rnam as m oléculas proteicas
mais firmes pela formação de pontes químicas de metileno
entre seus peptídeos 15• Os tecidos tratados pelo formo! ad-
quirem consistência firme, com diminuição da sua elastici-
dade, e coloração pardo-acinzentada de tonalidade m ais ou
menos escura conforme a quantidade de sangue presente.
Para comparação, informamos que o couro curtido difere
da pele do animal pelo fato de ter sido fixado. A pele hu-
mana viva, em contato com o formo!, to rna -se mais seca e
consistente. Com o passar dos dias, há descamação das ca-
madas superficiais. É comum que patologistas e anatomis-
tas se queixem de diminuição do tato pela ação cáustica do
formo!. Raramente, ocorrem acidentes em que esse cáustico
entra em contato com mucosas, po r exemplo, a conjuntiva
ocular, diretamente ou pela emanação de seus va pores alta-
Figura 19.5. Porção alta do tubo digestivo, que consta de língua, m ente irritantes e lacrimogêneos. Tivemos a oportunidade
esôfago e estômago. A mucosa tem cor quase negra e pregueado um de estudar dois casos de suicídio. Em um deles, a vítima, um
pouco aumentado. Caso de suicídio por ingestão de soda cáustica, com prático de farmácia, ingerira formo! em sua residência, e foi
sobrevida de cerca de uma semana. Coleção de ensino da Fac. de encontrado já morto. Seu estômago, à necropsia, estava con-
Medicina da UFRJ. traído, tinha consistência aumentada, pouca elasticidade, e
394 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

continha líquido aquoso com forte cheiro de formo!. Sua À microscopia, o traço marcante era o contraste entre a
mucosa tinha pregueamento exagerado e coloração róseo- excelente preservação das estruturas histológicas do estôma-
acinzentada (Fig. 19.6). go e do intestino delgado e a autólise dos tecidos não atingi-
A porção inicial do intestino delgado estava contraída, dos diretamente pelo formol, como o pâncreas (Figs. 19.8 e
de consistência aumentada, com exagero do pregueamento 19.9). No outro caso, uma mulher tomara um copo de formol
da mucosa, onde era possível ver nitidamente o aspecto vi- dentro de uma enfermaria, vindo a falecer em apenas 30 mi-
loso. Os órgãos vizinhos tinham coloração de tonalidade nutos, apesar dos esforços da equipe médica. O aspecto ma-
acinzentada e consistência aumentada na face em contato croscópico era semelhante, mas não foi feita a microscopia 16 •
com o estômago, por causa da difusão post mortem do cáus-
tico (Fig. 19.7).
Fósforo Branco
É um alótropo do elemento fósforo insolúvel em água, de
cor branca ou amarelada, semitransparente, que se funde a
44ºC. Entra em combustão espontânea na presença do oxigê-
nio, com chama amarelada e fumaça esbranquiçada. O princi-

Figura 19.8. Corte da mucosa gástrica. Notam-se perfeitamente os


limites intercelulares do epitélio colunar alto, o que nunca é possível
Figura 19.6. Estômago aberto, no qual se vê mucosa com pregueado observar em material de necropsia por causa da autólise quase que
um pouco exagerado e coloração roseo-acinzentada. Suicídio por inges- imediata. Mesmo caso da Figura 19.6.
tão de formol comercial a 40%. Guia 116 da 17ª DP, de 27/06/69.

Figura 19.9. Corte de pâncreas no qual há extensa área de autólise


na metade direita do campo, onde os ácinos não são visíveis. À esquerda,
Figura 19.7. Face inferior do fígado, na qual se nota área de tonali- há ácinos bem mais preservados, provavelmente por fixação post
dade acinzentada no lobo esquerdo que corresponde à relação anatô- mortem da face anterior do órgão, que tem relação anatômica com o
mica com o estômago. Mesmo caso da Figura 19.6. estômago. Mesmo caso da Figura 19.6.
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 395

pai produto dessa combustão é o pentóxido de fósforo (Pp 5), cáusticos costumam ser agrupadas com as queimaduras em
um gás muito irritante para as vias respiratórias9• Na ausência geral, que englobam aquelas por ação térmica, e por vezes
de oxigênio, a luz o transforma no fósforo vermelho, um outro também as elétricas, sendo referidos apenas os totais. É o que
alótropo comum na natureza. Este não queima espontanea- ocorre nas estatísticas hospitalares dos centros de tratamento
mente na presença do ar e, consequentemente, não tem ação de queimados. Mas é fato de domínio público que a maioria
cáustica como o branco. Além do seu uso industrial, o fósforo das lesões superficiais é acidental e incide mais no lar, onde as
branco é um componente de artefatos militares como projéteis maiores vítimas são as crianças. Nesse contexto, são impor-
de canhão, granadas de mão e bombas. É proibido o seu uso tantes os produtos de limpeza como soda cáustica, amônia,
com o fim de atingir soldados inimigos, mas pode ser lançado limpa-fornos e os desinfetantes à base de fenol ou de formo!.
para fazer cortinas de fumaça de modo a ocultar deslocamen- No que diz respeito às lesões internas, temos que nos
tos de tropas9• Quando atinge uma pessoa, como resultado de reportar aos obituários. Mas aqui também há dificuldades.
uma explosão, já o faz em plena combustão. Por isso, gruda na No fornecido pelo IBGE para 1992, por exemplo, existem as
pele e vai queimando os tecidos e se aprofundando enquanto rubricas "acidentes por substâncias quentes ou cáusticas" e
houver contacto com o oxigênio do ar. A alta solubilidade em "acidentes por substâncias corrosivas e cáusticas". Como sa-
gordura facilita a penetração do fósforo branco nos tecidos da ber a incidência apenas das cáusticas? Além disso, as mesmas
pele. Resultam lesões de forma variada que têm aspecto necró- referências não entram nos dados de suicídios. Assim, não se
tico, cor amarelada e exalam cheiro de alho 17 • pode conhecer o total. Na parte referente aos suicídios cons-
O fósforo branco é muito tóxico se ingerido. A dose letal tam apenas "suicídios por sólidos ou líquidos"2º.
fica em torno de 1 mg/kg. Em pequenas quantidades, causa O suicídio pela ingestão de cáusticos é raro. Atualmente,
náuseas, vômitos e cólicas abdominais. As vítimas relatam a as pessoas com intenção de se matar apelam para drogas me-
nos irritantes como agrotóxicos, raticidas ou medicamentos.
eliminação de fezes que desprendem fumaça. É comum o apa-
Outrora, antes do desenvolvimento da farmacologia, eram
recimento de graves lesões hepáticas, cardíacas e renais. A le-
muito mais comuns.
são do fígado começa por esteatose que predomina na perife-
Mas não é raro o uso de substâncias cáusticas com o fim
ria do lóbulo hepático e pode se extender daí para a zona cen-
de prolongar licença para tratamento de feridas superficiais
trolobular. A par dessa vacuolização gordurosa, os hepatócitos
por acidentes do trabalho. Poucos dias antes da volta ao mé-
sofrem degeneração acidófila em grau variado por destruição
dico para reexame, o acidentado pinga o corrosivo sobre
do retículo endoplasmático rugoso 17 •18 • As alterações cardíacas
a lesão, reativando o processo inflamatório. Esse tipo de au-
são anunciadas por alterações do traçado eletrocardiográfico tolesão é punível de acordo com o inciso V do § 2º- do artigo
tais como alongamento e infradesnivelamento do segmento 171 do Código Penal:
ST, inversão da onda T e arritmias, que podem estar relaciona-
dos com a elevação da fosfatemia e redução da calcemia 17• Nos
casos fatais, a necropsia evidencia palidez, coloração amarela- V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa
da e grande diminuição da consistência do músculo cardíaco. própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as
As cavidades cardíacas estão dilatadas. A microscopia revela consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver
degeneração gordurosa do miocárdio e focos d e necrose 19 . A indenização ou valor de seguro.
função renal costuma ser prejudicada. Há redução da depura-
ção da creatinina, proteinúria, oligúria e outros sinais de insu- O uso doloso de agentes cáusticos para matar pratica-
ficiência. O exame histopatológico revela degeneração gordu- mente desapareceu. Mas o crime de vitriolagem ainda é pra-
rosa do epitélio tubular por ação direta do fósforo e lesões de ticado. O nome provém da denominação que o ácido sul-
necrose tubular relacionada com os efeitos hemodinâmicos da fúrico tinha - óleo de vitríolo. Consiste em lançar o ácido,
hipotensão decorrente da intoxicação (tubulorrexis) 19 . ou outra substância corrosiva, no rosto de alguém com a in-
tenção de causar dano estético grave (a deformidade perma-
Problemas Médico-legais nente do § 2º- do art. 129 do CP). Há cerca de 10 anos, no Rio
de Janeiro, um rapaz, que fora abandonado pela namorada,
Diagnóstico da Ação Cáustica seguiu-a, entrou no mesmo ônibus, aproximou-se do banco
onde ela se sentara e lançou-lhe ácido na face, provocando
Está baseado na história de contato externo, ou de inges-
graves queimaduras químicas. Foi preso e condenado por le-
tão da substância corrosiva, e no exame macroscópico, seja
são corporal gravíssima.
da pele, seja da porção alta do tubo digestivo (boca, esôfago
e estômago ). Como já vimos, as queimaduras químicas dife-
rem daquelas causadas por agentes térmicos.
• AÇÃO SISTÊMICA
Diagnóstico da Causa Jurídica
Conforme já referimos na introdução deste capítulo, o
É preciso, antes de qualquer comentário, esclarecer que efeito da absorção de qualquer substância depende da dose
a consulta às estatísticas é difícil. As lesões superficiais pelos administrada. Por isso, até a água pode ser nociva se introdu-
396 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

zida em grande volume por via venosa. Decorre desse fato que e dosagem, capazes, hoje em dia, de achar substâncias em
não se pode considerar sinónimas as expressões "intoxicação concentrações da ordem de picogramas (10- 12 g) 23 .
exógena" e "envenenamento". Toda substância pode causar A frequência com que produzem danos ao ser humano
uma intoxicação, mas nem todas podem ser consideradas ve- varia muito de acordo com vários parâmetros: idade da ví-
neno. O conceito de veneno tem sido enunciado por diversos tima, se no campo ou nas cidades, no lar ou no ambiente
autores e mesmo pela legislação. O Código Penal de 1890 de trabalho, bem como a sua disponibilidade. Os dados es-
definia veneno como "toda substância, mineral ou orgânica, tatísticos referentes à ação química sistêmica, de modo se-
que, ingerida ou aplicada sobre o corpo, sendo absorvida, melhante ao que comentamos com referência aos cáusticos,
determine a morte, ponha em perigo a vida, ou altere pro- também são de obtenção difícil. Mesmo os que fazem parte
fundamente a saúde"2 1• Almeida Jr. 22 propunha que veneno dos obituários acham-se dispersos sob várias rubricas. Op-
fosse "toda substância que, atuando química ou bioquimi- tamos por nos reportarmos aos dados do SINITOX, Sistema
camente, sobre o organismo, lese a integridade corporal ou Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas da Fiocruz,
a saúde do indivíduo, ou produza-lhe a morte''. Nessas duas por ser de âmbito nacional; embora saibamos que represen-
definições, há alusão ao malefício causado pelo veneno ao tam apenas uma tendência de nossa sociedade, não o univer-
organismo, mas não é possível separar os danos provenientes so dos casos de intoxicações exógenas. Abordando este pro-
da superdosagem de substâncias não consideradas veneno- blema, Alves24 comparou três bancos de dados: do Sistema
sas.Agrada-nos mais o conceito emitido por Heitor Vascon- de Informação de Mortalidade do SUS, do SINITOX e do
cellos, que afirmava que "veneno é toda substância que, por Serviço de Toxicologia do IMLAP. Encontrou, entre os anos
sua natureza, em dose relativamente pequena, quando ingeri- 2000 e 2004, subnotificação gritante nos sistemas do SIM e,
da ou introduzida no organismo, tem, como efeito habitual, em principalmente, no SINITOX, quando comparados com os
pessoas sadias, provocar o desequilíbrio das funções orgânicas,
dados do IMLAP, no tocante ao abuso de drogas e, um pouco
menor, no uso de medicamentos. Para se obter uma quanti-
ou desorganizar os tecidos, acarretando grave perturbação da
ficação em nível nacional seria preciso fazer a mesma busca e
saúde, ou a morte''. Em primeiro lugar, ele dá valor essencial
comparação nos outros estados brasileiros.
à dose empregada, que tem que ser pequena, o que exclui as
Os dados do SINITOX são recolhidos a partir de 35 Cen-
intoxicações por excesso de outras substâncias. Em segundo,
tros de Informação e Assistência Toxicológica distribuídos
ressalta que o efeito nocivo deve ser observado em pessoas
em 18 estados brasileiros, a saber: 15 na Região Sudeste, oito
sadias, o que afasta os efeitos tóxicos de certos medicamentos
na Nordeste, seis na Sul, quatro na Centro-oeste e dois na
sobre pessoas com doenças capazes de prejudicar o metabo-
Região Norte. O Estado de São Paulo conta com 11 centros,
lismo ou a excreção da substância. É sabido que pessoas com
sendo três na capital. No Estado do Rio de Janeiro há apenas
insuficiência hepática não devem ser medicadas com anticoa-
um centro, situado no Hospital Universitário da UFF. Talvez
gulantes orais, pois eles são antagonistas da vitamina K e os
seja esta uma das causas da subnotificação encontrada por
hepatopatas já têm deficiência dessa vitamina. Assim, rapi-
Alves. O conjunto de centros constitui a Rede Nacional de
damente seria atingida a dose tóxica, reduzindo a margem de
Centros de Informação e Assistência Toxicológica, coorde-
segurança do remédio. Por isso, podemos afirmar que todo nada pela ANVISA25• Desde o ano de 1985, divulga dados
envenenamento é uma intoxicação exógena, mas nem toda sobre a incidência e as tendências das intoxicações em geral
intoxicação exógena é um envenenamento. na sociedade brasileira. Com base nesses dados, foi possível
constatar uma tendência de aumento da incidência ao longo
Incidência e Causa Jurídica da década 1985-1994 (Fig. 19.10). Mas é preciso que se tenha
alguma cautela quanto à amplitude desse aumento porque
As intoxicações exógenas incluem a ação de vá rios tipos pode, e certamente está, influenciada pelo alargamento do
de substâncias dos reinos mineral, vegetal e animal. Ora são sistema de captação dos dados com o passar dos anos.
produtos naturais, como os extratos de plantas e as peçonhas De acordo com o relatório do SINITOX sobre o ano de
animais, ora são substâncias provenientes da extração mine- 2009, foram relatados 101.086 casos de intoxicação humana
ral. Também os decorrentes da industrialização de qualquer no Brasil, dos quais mais da metade causada por medica-
deles e das novas substâncias que surgem no m ercado a cada mentos (26,04%) e animais peçonhentos (24,88%), com
momento. grande proporção devida a escorpiões ( 11 ,01 % ). Os acidentes
Atualmente, o crescimento rápido do número de subs- pessoais representaram 62,45%, sendo 5,56% de natureza
tâncias disponíveis a cada ano tem tornado a tarefa dos to- ocupacional. As crianças foram as maiores vítimas. A faixa
xicologistas forenses cada vez mais difícil. Em 2001, segundo etária de 1 a 4 anos representou 20,57% do total dos casos,
Klug 23, havia cerca de sete milhões de substâncias conhecidas. seguida da de 20 a 29 anos, com 18,66%. Por isso, é impor-
Os produtos farmacêuticos continham aproximadamente tante que, no lar, se mantenham os produtos tóxicos tranca-
2.900 princípios ativos, e havia em torno de 1.000 diferentes dos em local seguro, fora do alcance e da vista das crianças.
pesticidas e produtos de uso doméstico. Além disso, a dose Os produtos que mais causam acidentes domésticos infantis
efetiva de muitos desses compostos to rna -se cada vez menor, são os remédios e os usados na limpeza, como alvejantes,
exigindo aprimoramento constante dos meios de detecção querosene, polidores, solventes e detergentes.
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 397

Casos registrados de intoxicação humana lei 3.530/08, que propõe alterar o art. 16 da Lei 6.360/76, que
no Brasil no período de 1985 a 1994 trata do registro de novos medicam entos, acrescentando o
Milhares inciso VI II que obriga o fabricante à adoção de embalagem
7 0~-------------------~
especial de pro teção para torná -la de abertura significativa-
mente difícil para as crianças. Já foi aprovado na Comissão
de Constituição e Justiça26 •
Ampliando o ho rizonte de estudo, é importante acres-
centar que as drogas de abuso, lícitas o u ilícitas, aumentam
de modo significativo o número de mortes violentas. Tanto
alteram os reflexos dos que seguram um volante com o acir-
ram o ânimo dos brigões. As pesquisas de álcool ou outras
20 substâncias psicotrópicas em moto ristas, passageiros ou pe-
destres mo rtos no trânsito são positivas em m ais da m etade
10 d os casos. Da mesma forma, mais da metade das vítimas de
º...__.. .__.. . __. . . . _. . . . __.. .__. . . ...___._,___.....__. . . .
_~ homicídio consumiu bebidas alcoólicas pouco antes de se-
1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 rem mortas5• Em Nova York, de 1990 a 1992, cerca de 2/3 das
Fonte: MS; FIOCRUZ/SINITOX.
mortes ocorridas em seguida ao consumo de cocaína foram
Registro no período n = 336.597 casos de intoxicação humana. violentas e decorrentes de homicídios, suicídios, acidentes de
trânsito ou quedas 27•
O uso de venenos para a prática de homicídios era co-
Principais agentes tóxicos que causaram mum na Antiguidade e na Idade Média porque não era fei-
intoxicação humana. Brasil, 1985 a 1994 ta a perícia nos casos de morte violenta. Mesmo depois que
Milhares passou a ser obrigatória, com a Lei Caro lina, ainda não havia
100 surgido a Toxicologia Forense. A impunidade decorrente da
89.533
• Animais peçonhentos (26,60%) falta de comprovação dos envenenamentos incentivava o seu
• Medicamentos (22,58%) uso. Entre outros, o agente químico m ais empregado para
80 76.018 • Prod. químicos ind ustriais (8,08%)
Animais não peçonhentos (7,75%)
esse fim era o arsênio, por ser um pó insípido e inodoro.
• Pesticidas agropecuários (7,66%) Mais tarde, a partir dos trabalhos de Orfila, tornou-se mais
60 arriscado matar os desafetos por envenenamento.
Atualmente, é raro. Garriott5 estima que menos de 0,2%
dos homicídios pr aticados nos EUA sejam por ação quími-
40
ca. Em 199 1, no Estado de Washington, houve três casos de
colocação criminosa de cianeto de potássio em cápsulas de
20 um remédio par a resfriados (Sudafed-12) . Duas das vítimas
morreram. A publicidade dada aos casos fez com que surgis-
sem outros dois, um no mesmo Estado e outro no Canadá28•
o'---'-- --'- Em 1978, houve um homicídio por m otivos políticos em
Figura 19.10. Na parte superior, histograma que mostra a incidência Londres, no qual o dissidente comunista Geor gi Markov, que
de intoxicação humana durante a década 1985-1994. Na inferior, estão
passara a trabalhar para a BBC depois de fugir da Bulgária,
representados os principais agentes de intoxicação humana durante
foi envenenado pela penetração de uma minúscula esfera de
essa década.
menos de 2 mm de diâmetro em sua perna, provavelm ente
disparada por uma arma de ar comprimido disfarçada de
No mesmo ano, for am comunicados 409 casos fatais, guarda-chuva. Continha ricina, uma proteína presente na se-
correspondendo a apenas 0,40% do total de atendimentos. mente de mamona, que permanece no bagaço restante após
Entre os óbitos, a causa jurídica mais frequente foi o suicídio, a extração do óleo de rícino. É altamente venenosa tanto por
com 60,39% das mortes, seguido pelos acidentes pessoais via oral quanto por via subcutânea e simula morte natural
( 12,44%) e o abuso de drogas, que subiu de 4, 77% em 1999 porque o quadro clínico evolui com febre e leucocitose 29•3º·31•
para 10,5 1% em 2009, o que é preocupante. Nos 247 mortos Até a segunda metade do século XX, algumas substâncias
por suicídio, os agentes mais empregados for am os agrotó- eram usad as esporadicamente para fins homicidas porque
xicos (59,5 1%), os medicamentos (18,63%) e as drogas de dificilmente eram detectadas nos exames toxicológicos: digo-
abuso (7,29% )25. xina, succinilcolina e insulina. Atualmente, podem ser iden-
Felizmente, a proporção de casos fata is entre as intoxica- tificadas e dosadas sem maiores problemas 13• Ficou famoso,
ções infantis (de 1 a4 anos) é extremamente baixa, da ordem nos EUA, o caso do anestesista Dr. Coppolino, que matou
de 0,15%, sendo mais comumente causados por medica- a mulher com uma injeção de succinilcolina na região glú-
mentos e agro tóxicos. Para reduzir a incidência dos acidentes tea e dispensou a necropsia porque era o perito-legista che-
infan tis, está tramitando no Congresso Nacional o projeto de fe da localidade. Mais tarde, ela foi exumada e constato u-se
398 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

a presença da droga no tecido subcutâneo subjacente a uma depois, voltar para o coração pelo lado esquerdo, a fim de
lesão punctória na região glútea 29 • serem distribuídas pelas artérias. Aí reside a principal dife-
No Brasil, o uso de veneno para cometer crimes contra rença entre a cocaína em pó e o crack. A primeira é cheirada
a pessoa é um agravante genérico previsto no Código Penal, e o segundo, aspirado.
no inciso II, alínea d do art. 61; e agravante específico con- A absorção das substâncias tóxicas depende muito da via
forme o inciso III do § 2Q do art. 121 do Código Penal: pela qual são introduzidas no organismo. Há agentes que só
são ativos por via oral e outros, apenas por via parenteral. Por
Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, exemplo, os venenos de cobra e o curare só exercem sua ação
quando não constituem ou qualificam o crime: tóxica quando introduzidos por via parenteral. Sua ingestão
não causa dano porque são inativados pelo suco gástrico.
li - ter o agente cometido o crime: Para que um agente tóxico alcance o seu receptor apro-
priado nos diversos tecidos, é preciso que atravesse as mem-
d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura, ou branas biológicas do sítio de introdução e as que contém
outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar pe- os receptores específicos. São várias etapas: 1) membrana
rigo comum. das células do tecido do primeiro contacto, 2) membrana das
Art. 121. Matar alguém. células de revestimento dos capilares (endotélio) daquele
tecido, 3) depois do transporte pelo sangue, endotélio dos
§ 2"- Se o homicídio é cometido capilares do órgão alvo, 4) membrana das células do tecido
onde estão os receptores e, em alguns casos, 5) membrana
Ili - com o emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, das organelas intracelulares. Desse modo, cabem aqui algu-
tortura ou outro meio insidioso ou cruel ou de que possa mas considerações quanto aos mecanismos envolvidos nes-
resultar perigo comum; sa travessia 33 •
As membranas celulares são formadas por uma camada
Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas patro- dupla de fosfolipídios. Ambas apresentam um radical fosfato
cinaram momentos de extrema crueldade quando mataram em uma das pontas da molécula e os ácidos graxos na outra
milhões de judeus nos campos de extermínio por meio de extremidade. As duas camadas estão arranjadas de tal modo
câmaras de gás disfarçadas em banheiros coletivos. As ví- que a porção gordurosa de cada uma se toquem. Assim, os ra-
timas eram convencidas de que se tratava de um banho de dicais fosfato da camada externa ficam voltados para o exte-
desinfecção para acabar com piolhos e outros parasitas cutâ- rio r e os da camada interna, para o interior celular. Em meio
neos. Após trancar as portas, era injetado gás cianídrico pe- às moléculas lipídicas da m embrana, espaçadamente, existem
los tubos de onde deveria sair a água32• moléculas de proteínas que atravessam as duas camadas e to-
Mas as câmaras de gás não foram banidas do planeta. cam tanto o meio extra como o meio intracelular. Os ácidos
Pelo contrário, são hoje instrumento legal de execução da graxos dessas camadas apresentam-se em estado quase fluido,
pena de morte em alguns estados norte-americanos. Na o que favorece o transporte de substâncias lipossolúveis. Pois
maioria dos outros estados, a execução é feita por injeção bem, os mecanismos de absorção dependem dessa composi-
letal. O condenado é preso a uma maca e tem uma veia pun- ção molecular das membranas celulares33.34 .
cionada e ligada a um aparelho que libera, sucessivamente, o As substâncias lipossolúveis atravessam as membranas
fluxo de um barbitúrico, um relaxante muscular e, por fim, por difusão passiva, com velocidade diretamente proporcio-
cloreto de potássio. nal à diferença de sua concentração a cada lado da mem-
brana, geralmente de fora para dentro. As hidrossolúveis,
Fisiopatologia geralmente capazes de se ionizar, não conseguem atravessar
as camadas lipídicas e permeiam as membranas por filtração,
Vias de Introdução (Exposição) através de canais formados por algumas das pro teínas nela
presentes. Também as atravessam por poros existentes entre
Substâncias sólidas, por motivos óbvios, costumam pe-
células endoteliais dos capilares e epiteliais da epiderme e das
netrar no organismo po r ingestão, enquanto as voláteis o
mucosas. Por fim, num terceiro mecanismo, o agente tóxico
fazem pelas vias respiratórias. Os líquidos ora são bebidos,
é acoplado a uma proteína transportadora capaz de fazê-lo
ora são injetados. A via oral retarda um pouco a absorção,
atravessar as membranas ativamente, com consumo de ener-
principalmente se o estômago estiver com alimentos. Não
gia do metabolismo celular. É o transporte ativo33•
considerando a via endovenosa, a inalação é o caminho
mais rápido para que uma droga atinja os locais dos teci-
Via Oral
dos onde estão os seus receptores, pois a absorção ao nível
dos pulmões faz com que caia diretamente no sangue que Se não se considerar o contato constante da pele com
vai dos pulmões para o lado esquerdo do coração e daí para substâncias estranhas e a inalação dos poluentes atmosféri-
o sistema arterial. Quando injetadas nas veias, as drogas têm cos, é a via principal de introdução de tóxicos no organis-
que passar pelo lado direito do coração, ir aos pulmões e, só mo. Mas é preciso advertir que a simples presença de algu-
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 399

ma substância na luz do tubo digestivo não significa que ela substância tem que ser volátil ou estar em partículas muito
esteja dentro do organismo. Assim, o vidro moído pode ser pequenas, em suspensão, no ar inspirado. Do contrário, não
deglutido que jamais sua matéria fará parte do organismo, consegue atingir os <lutos alveolares. As substâncias inaladas
pois nunca será absorvida. O tóxico precisa ser dissolvido em caem rapidamente no sangue arterial porque não precisam
água ou emulsificado em minúsculas gotículas gordurosas passar pelo lado direito do coração.
para ser absorvido. Embora possa haver pequena absorção na A via aérea costuma ser usada pelos serviços de seguran-
boca ou ao longo do esófago, o local onde a absorção começa ça ao lidarem com distúrbios de rua pelo uso do gás lacri-
a ser significativa é o estômago. Várias substâncias são dire- mogéneo, uma acetofenona. Em 26/10/2002, o serviço de se-
tamente absorvidas através de suas paredes, como o álcool, gurança russo subjugou um grupo terrorista checheno que
mas outras precisam ser alteradas pelo suco gástrico, rico mantinha e ameaçava explodir cerca de 700 reféns dentro de
em ácido clorídrico. Assim, o cianeto de potássio reage com um teatro em Moscou introduzindo um aerossol de fentanil
esse ácido e produz o gás cianídrico, que é altamente tóxico. na atmosfera do recinto. Além de vários terroristas, morre-
O mesmo ocorre com a dixirazina, um tranquilizante, que é ram mais de 100 reféns pelo efeito anestesiante do gás 37 . O
alterado para subprodutos mais tóxicos pelo suco gástrico 35 • fentanil é um opiáceo sintético usado em anestesia, mas que
A presença de alimentos, geralmente, diminui a velocidade tem margem de segurança pequena38•
de absorção no estômago. Mas há exceções. A griseofulvina, A absorção por esta via é influenciada por fatores ligados
usada para tratamento de micoses superficiais, é absorvida ao agente tóxico e pelos decorrentes da anatomia e fisiologia
mais rapidamente quando tomada em meio a refeição rica do aparelho respiratório. Entre os que dependem do agente,
em gorduras 36 . temos seu estado físico-químico, que pode ser como gases,
Quando se ingere uma substância tóxica, o organismo vapores e partículas. A diferen ça entre gás e vapor é que os va-
costuma se defender por meio de vómitos ou de diarreia. Os pores são gerados pela evaporação de substâncias que se apre-
vómitos decorrem da ação irritante sobre a mucosa gástrica, sentam em estado líquido na temperatura ambiente. Con-
o que produz inversão do peristaltismo de modo a expeli-la, forme a natureza da substância, a vaporização é mais ou me-
a menos que a substância tenha efeito bloqueador das termi- nos rápida. Para medir a velocidade de evaporação toma-se
nações nervosas da mucosa gástrica como, por exemplo, o o éter como unidade. Mantendo-se a mesma temperatura, o
fenoF. As diarreias resultam de modificações do pH do con- tempo de evaporação de qualquer substância deve ser com-
teúdo intestinal o u de ação irritante direta sobre a mucosa, parado com o do éter nas mesmas condições 33 •
como no caso do vinagre. A absorção dos gases e vapores depende de variáveis
As substâncias absorvidas por via digestiva seguem dois como a pressão parcial do gás ou vapor na mistura inalada e
caminhos. Algumas são transportadas pelos vasos linfáticos, sua solubilidade no sangue. Ao estudarmos as baropatias, no
mas a maioria entra na circulação sanguínea pela veia porta, Capítulo 16, explicamos os princípios físicos que governam
indo diretamente ao fígado antes de serem distribuídas pelo a passagem dos gases para o sangue como, por exemplo, a lei
resto do organismo. Por isso, chegam ao fígado em concen- de Henry e a de Boyle-Mariotte. Os gases e os vapores alcan-
tração maior do que se forem administradas por meio de çam os alvéolos com facilidade.
injeção. No caso de serem hepatotóxicas, o dano ao órgão As partículas podem ficar em suspensão no ar por um
também será mais grave. O tiopental, barbitúrico usado em tempo que varia de acordo com o seu tamanho e a sua den-
anestesia, é menos tóxico quando por via endovenosa. Mas a sidade. Existem suspensões de partículas sólidas e de partí-
posição estratégica do fígado faz com que seja uma barreira culas líquidas. Como exemplo, temos a poeira de uma estrada
seletiva que impede que vários tóxicos atinjam outros órgãos. não asfaltada, que é sólida, e a névoa matinal, que é líquida.
Além disso, é ele o principal agente detoxificador, pois me- Atualmente, existe o conceito de aerossol, que é "um sistema
taboliza a maior parte das drogas. Parte dessas substâncias é de partículas sólidas ou líquidas suspensas no ar ou em outro
excretada na bile após conjugação com substratos orgânicos, meio gasoso", aceito pela maioria dos autores 39 • Inclui tanto
como o ácido glicurô nico, ou eliminada diretamente. Algu- partículas medidas em escala de micrôm etros (µ m) como as
mas voltam a ser absorvidas a partir da luz intestinal, fazen- menores, na escala dos nanômetros (nm). Um nanômetro
do o que se chama de ciclo êntero-hepático. É o que ocorre m ede 0,001 µm. O estudo das partículas demonstra que suas
com o cloranfenicol, um antibiótico, que é eliminado pela propriedades dependem basicamente do seu diâmetro.
bile sob a forma conjugada, sofre hidrólise na luz intestinal Cafiadas33 divide as partículas, de acordo com seu diâme-
e é reabsorvido livre para novamente passar pelo fígado34 • tro, em poeiras (100 a 400 µ),névoas (50 a 100 µ)e aerossóis
(menos de 50 µ).As poeiras sedimentam-se rapidamente e,
Via Aérea quando inaladas, ficam na parte alta das vias respiratórias,
É a via dos poluentes do ar, como o monóxido de carbo- principalmente nas narinas. Sua absorção é feita na mucosa e
no e os produtos derivados do petróleo. Por isso, tem muita depende de serem solúveis em gordura o u na água. Se lipos-
importância nos locais de trabalho, onde o ambiente pode solúveis, são absorvidas por difusão passiva; se hidrossolú-
fi car contaminado por substâncias emanadas ao longo da li- veis, a absorção vai depender de sua capacidade de ionização
nha de produção. Para ter acesso ao sangue por inalação, a e da existência de mecanismo de transporte ativo33·4-0.
400 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

De acordo com Lehman-McKeeman 40, os aerossóis com A absorção, nessas condições, fica 2 a 3 vezes mais rápida40•
diâmetro superior a 5 µm costumam ficar retidos no muco Doenças que modifiquem a camada córnea, de modo a torná-
nasal, de modo semelhante às poeiras. Daí, o movimento dos la mais porosa, facilitam a penetração dos agentes tóxicos
cílios das células do epitélio respiratório empurram as par- tanto lipo como hidrossolúveis. Áreas de pele submetida a
tículas retidas para a rinofaringe e elas acabam por ser de- ação abrasiva absorvem mais, principalmente, se chegar a
glutidas. As de cerca de 2,5 µm alcançam a mucosa traqueo- escoriar. Sob temperaturas mais elevadas, a taxa de absorção
brônquica até os bronquíolos e são absorvidas ou removidas aumenta porque o fluxo de sangue na pele fica mais rápido
pela ação do mecanismo ciliar. Aquelas com 1 µm ou menos e volumoso como parte dos mecanismos de ajuste térmico,
penetram nos sacos alveolares e alvéolos. A absorção destas conforme visto no Capítulo 17.
faz-se pelos mecanismos já referidos e descritos com relação
às membranas biológicas. A parte não absorvida é drenada Via Parenteral
por via linfática, uma vez que o endotélio dos capilares lin- É uma via em que as substâncias penetram de modo in-
fáticos apresenta poros bem maiores que os sanguíneos, ou tencional, seguindo a vontade do indivíduo. Na maioria das
removida pelo deslocamento do fluido produzido pelo epi- vezes, corresponde a ações terapêuticas, mas também é em-
télio alveolar. pregada por viciados em drogas injetáveis e, raramente, em
tentativas de homicídio. Abrange injeção intradérmica, sub-
Via Cutânea cutânea, intramuscular, intravenosa, intratecal (no espaço
A pele é formada por duas camadas principais: epiderme subaracnóideo do sistema nervoso) e, inclusive, no interior
e derme. A epiderme consta de um epitélio plano estratifica- das grandes cavidades, como as pleurais e a peritoneal. A in-
do cuja porção superficial é constituída por células mortas travenosa lança o tóxico diretamente na corrente sanguínea,
e queratinizadas, a camada córnea. Dependendo da região mas as outras colocam a substância em um local de onde ela
do corpo, apresenta, em concentração maior ou menor, pe- tem que ser removida e distribuída depois de atravessar a pa-
los, glândulas sebáceas e glândulas sudoríparas. Nas regiões rede dos vasos capilares. Em se tratando de injeção intradér-
palmares e plantares, a camada córnea é bem mais espessa mica, subcutânea ou intramuscular, enquanto não houver
e não existem pelos nem glândulas sebáceas. Esses detalhes a remoção, a concentração do agente químico permanece
são importantes porque explicam a vulnerabilidade da pele muito alta no local de injeção, o que tem muito interesse se
à penetração de agentes tóxicos, maior ou menor conforme for necessário realizar uma perícia. Nesses casos, o perito
a região anatómica. tem que remover os tecidos relacionados com a ferida punc-
De um modo geral, a camada córnea constitui uma bar- tória identificada na pele da região e os adjacentes ao trajeto
reira de defesa que dificulta muito a penetração de agentes hemorrágico deixado pela agulha.
químicos. Quanto mais espessa mais difícil de ser atravessa- Convém lembrar que a concentração sanguínea de uma
da. A região que tem a camada córnea mais delgada é a bolsa substância injetada, e, consequentemente, sua ação bio lógica,
escrotal, o que a torna mais vulnerável4 º. dependem da velocidade de injeção, se for intravenosa, e da
A absorção por via cutânea depende de difusão direta velocidade de remoção, se for intramuscular ou subcutânea,
através da epiderme e, neste particular, os agentes liposso- por exemplo. Alguns viciados em heroína fazem a injeção
lúveis penetram mais facilmente, ou melhor, com menor intravenosa com o garrote ainda preso, e só depois o libe-
dificuldade. Por isso, há perigo de intoxicação quando, por ram, de modo a ampliar o efeito farmacológico da droga. Por
exemplo, o indivíduo faz pulverização de inseticidas o rgano- outro lado, alguns medicamentos injetados são de remoção
clorados ou fosforados sem usar roupas com mangas e calças mais difícil do local de injeção, de modo a que o organismo
compridas para proteger a pele. Como a extensão exposta tenha tempo de excretar a substância ativa, impedindo que a
costuma ser grande nestes casos, a via cutânea passa a ter concentração atinja níveis não desejados. É o que ocorre com
importância toxicológica. A taxa de absorção é diretamente a penicilina benzatina do Benzetacil.
proporcional à solubilidade do agente em gordura e inver-
samente proporcional ao seu peso molecular. É interessante
Mecanismos da Ação Tóxica Sistêmica
que o uso de solventes do agente tóxico favorece a sua absor- Nesta seção, não serão considerados os efeitos indire-
ção mas quanto mais solúvel m enor o ritmo de penetração40 . tos dos agentes químicos sobre os tecidos e o organismo
A limpeza da pele com uma m istura de clo rofórmio e de me- como um todo. Como exemplo, a presença de um gás iner-
tanol aumenta bastante o ritmo da absorção 3• Uma vez ultra- te como o metano no ar inspirado, em proporção suficiente
passada a camada córnea, o resto do epitélio oferece menor para reduzir a pressão parcial do oxigênio na atmosfera,
resistência à difusão do tóxico. causa uma situação de hipoxia semelhante à que ocorre nas
As substâncias hidrofílicas, solúveis em água, costumam grandes altitudes, como estudamos nas baropatias (ver Ca-
penetrar pelos anexos cutâneos. Mas algumas situações favo- pítulo 16). Conforme a intensidade e a duração da hipoxia,
recem a passagem desses agentes tóxicos através da camada efeitos <lanosos irreversíveis poderão ocorrer, mas não por
córnea. Quando a camada córnea fica mais hidratada do que conta de toxidez do gás. Além disso, também não voltaremos
o normal, aumenta de volume e se torna mais permissiva. a discorrer sobre a ação cáustica. Procuraremos nos ater às
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 401

consequências das reações bioquímicas desencadeadas pelos oxidase e, assim, bloqueia o metabolismo energético celular.
agentes tóxicos, e não ao seu mecanismo intrínseco, o que Sem energia, as células morrem.
fugiria ao escopo deste capítulo por ser muito complexo e
extenso. Assim, em última análise, descreveremos os efeitos Tetanização
mais graves e perigosos dos agentes químicos. Algumas substâncias provocam contração espasmódica
duradoura dos músculos esqueléticos, de modo que impe-
Bloqueio do Transporte de Oxigênio dem os movimentos respiratórios e levam o indivíduo à as-
A hemoglobina (Hb) é a molécula responsável pelo fixia. Algumas, como a estricnina, atuam na modulação da
transporte de quase todo o oxigênio absorvido nos pulmões resposta motora da musculatura esquelética. Essa modula-
(97%). Seu grupamento heme, que contém um átomo de ção deve-se a uma ação inibitória que depende de neurô-
ferro divalente, combina-se com uma molécula de oxigênio. nios localizados na substância cinzenta da medula (células
Mas, ao contrário do que pode parecer, a combinação não de Renshaw). Tal inibição da contração serve para dosá-la e
é iônica como ocorre no óxido de ferro divalente. É uma li- impedir que grupos musculares antagonistas, por exemplo
gação em ponte, de pouca afinidade, frouxa, que se desfaz flexores e extensores, atuem descoordenadamente. As célu-
facilmente sob várias circunstâncias. Pois bem, algumas las de Renshaw liberam um mediador químico, a glicina, no
substâncias, como o monóxido de carbono, têm afinidade ponto de contato com os neurônios motores, que atua re-
cerca de 250 vezes maior pela Hb do que o oxigênio. Por isso, duzindo sua atividade. A estricnina compete com a glicina
mesmo presente em pequenas concentrações no ar inspira- pelos mesmos receptores químicos dos neurônios motores,
do, o monóxido de carbono vai substituindo o oxigênio na antagonizando seu s efeitos reguladores. A intoxicação pela
molécula da Hb02 (oxiemoglobina), de modo a formar um estricnina causa hipertonia muscular, convulsões intensas e
bloqueio dos movimentos respiratórios43 • Outras atuam na
composto mais estável, a carboxiemoglobina (HbCO). Com
fenda da junção neuromuscular, inativando a colinesterase.
o passar do tempo e de acordo com a sua concentração no
Desse modo, a acetilcolina permanece na fenda sináptica
ar, as hemácias acabam por transportar menos oxigênio do
por maior tempo e mantém o estado de contração das fibras
que o necessário para os tecidos. Para competir com o oxigê-
musculares esqueléticas. São exemplos a neostigmina, a fi-
nio em condições equiparadas, basta uma pressão parcial de
sostigmina e o di-isopropil-fluo ro fosfato. O último é um gás
mo nóxido de carbono de 0,4 mmHg no ar alveolar (1 /250
altamente venenoso porque t em ação que se prolon ga por
de 100 mmHg) . Pressão de 0,6 mmHg já pode ser letal4 1•
semanas, podendo ser u sado em guerra química 44•
Outra forma de bloquear o transporte do oxigênio é a
Há, ainda, substân cias que atuam indiretamente sobre os
oxidação do ferro do grupamento heme de divalente (Fe++)
músculos esqueléticos, por retirarem de circulação os íon s
para trivalente (Fe+++ ). O resultado é a produção da metemo-
d e cálcio. Quando a con centração d e cálcio d esce abaixo de
globina, uma proteína de cor parda, incapaz de transportar
6 mg/dL (normal = 9,4), as terminações dos nervos que provo-
o oxigênio. Várias substâncias são capazes de provocar essa
cam a contração muscular ficam muito mais ativas, promo-
oxidação: benzocaína (anestésico local), nitritos, clorato de vendo um estado de contratura, tanto maior quanto menor
potássio, nitrobenzeno, fenol, anilinas, pirídio, dapsona (uma a taxa de cálcio44• É o caso do ácido oxálico e do EDTA (ethy-
sulfona usada no tratamento da lepra). Os efeitos dependem Iene-diamine-tetracetic acid), um tipo de anticoagulante. O
da proporção de Hb oxidada (com Fe+++) no sangu e7. ácido oxálico combina-se com o cálcio para formar o oxalato
de cálcio, que se deposita sob a forma de cristais na urina,
Bloqueio da Respiração Celular por onde é eliminado. O EDTA remove os íons de cálcio cir-
A utilização do oxigênio pelas células depende da ação culantes por quelação, formando um composto estável.
de substâncias localizadas nas mitocôndrias, que atuam no
metabolismo aeróbico. Entre essas substâncias estão os cito- Paralisia da Musculatura Esquelética
cromos, que formam uma cadeia de transporte de elétrons. A transmissão do impulso nervoso na junção neuro-
No final desse processo de transporte está o citocromo A 3, muscular depende da liberação de acetilcolina na fenda
uma enzima, também chamada d e citocromo-oxidase, que existente entre a terminação nervosa e a fibra muscular 44
ced e do is elétrons a uma molécula de oxigênio de mo do a (Fig . 19.11 ). Qualquer subst ância que impeça essa libera-
gerar íons que se combinam com os íons d e hidrogênio para ção, blo queie os recepto res musculares ou inative por qual-
formar água 42 • Ao lon go d esse processo, é liberada grande quer outra forma a acetilcolina causa prejuízo à contração
quantidade de energia, que serve para transformar a mo - muscular. O exemplo clássico desse grupo são as substâ ncias
lécula adenosina-difosfato (ADP ) em adenosina-trifosfato curarizantes, como a d -tubocurarina, que compete com a
(ATP). Esse ATP é u sado em qua se todos os processos m e- acetilcolina pelos mesmos receptores. Assim, a acetilcolina
tabólicos que precisam de energia. Qualquer agente químico n ão po de acoplar-se aos receptores da fibra muscular e esta
que bloqueie aquele transporte de elétrons citado anterior- não pode ser excitada. O resultado é a incapacidade d e haver
mente impede a respiração celular. É o que faz o cianeto de a contração muscular. A mo rte sobrevém pela paralisia dos
potássio, quando absorvido. Impede a ação da citocromo- músculo s respirat órios44 •
402 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

Placa motora e fenda da junção

Figura 19.11. Esquema da fenda da junção neuromuscular. A acetil- Figura 19.12. Sinapse entre o axônio terminal noradrenérgico ea célula
colina liberada no interior da fenda liga-se aos receptores da fibra efetora (por exemplo, músculo cardíaco): 1) bulbo terminal do axônio;
muscular, permitindo a entrada de íons de sódio para iniciar a despola- 2) vesícula que contém noradrenalina; 3) fenda da sinapse; 4) membrana
rização que causa a contração: 1) vesícula contendo a acetilcolina; da célula cardíaca; 5) receptores para noradrenalina; 6) célula muscular
2) recesso onde estão os receptores; 3) fenda da junção. cardíaca. A cocaína impede o reingresso da noradrenalina no bulbo
terminal (setas), o que causa o seu acúmulo na fenda.

Depressão do Sistema Nervoso Central


bloqueia a recaptação da noradrenalina liberada na fenda
Vários agentes farmacológicos podem deprimir a ativi-
sináptica, de modo a perpetuar os seus efeitos (Fig. 19.12).
dade neuronal. Quando essa depressão é muito intensa, os
Lange45 refere que os distúrbios do ritmo cardíaco causa-
centros respiratórios são comprometidos de modo a causar
dos pela cocaína ocorrem principalmente em pessoas que já
uma parada respiratória central. Entre as substâncias capa-
tenham alguma lesão isquêmica do miocárdio. Mas é possí-
zes de deprimir o sistema nervoso central estão os agentes
vel também em usuários crônicos, talvez por apresentarem
anestésicos em geral, os barbitúricos, os opioides, os tran-
lesão muscular pelo próprio uso repetido da droga. Também
quilizantes, os antidepressivos e os neurolépticos, além de
causam arritmias graves as anfetaminas e, paradoxalmen-
várias outras, quando administradas em doses tóxicas, por
te, alguns agentes usados no tratamento desses distúrbios,
exemplo o álcool comum das bebidas. Os anestésicos são
como a quinidina e a procainamida46•
usados exatamente por sua ação depressora do sistema ner-
As paradas cardíacas po r falta de contração são observa-
voso central. O sono anestésico é um tipo de estado de coma
das na intoxicação pelos sais de potássio, dos quais o prin-
induzido e controlado pelo anestesista com o fim de permi-
cipal é o cloreto. A hiperpotassemia deprime a produção e
tir os atos cirúrgicos que não podem ser realizados com o
condução dos estímulos à contração do músculo cardíaco a
paciente consciente. Não seria sensato tentar resumir aqui
ponto de provocar a parada definitiva do coração quando
o m ecanismo bioquímico da parada respiratória causada pe-
sua concentração no sangue atinge cerca de 8 a 9 mEq/L
los diversos grupos de substâncias. O leitor deve consultar os
(normal = 4 a 5) . Substâncias como a digoxina (metabólito
compêndios de Farmacologia.
da digitoxina, um cardiotônico), em doses tóxicas, agem por
Arritmias ou Parada Cardíaca meio da elevação dos níveis plasmáticos do po tássio e aca-
bam por impedir a contração do coração 47 •
Arritmias são alterações da frequência ou da forma das
contrações do músculo cardíaco. A maioria dessas alterações Fatores que Modificam a Ação Tóxica
não chega a causar a morte do indivíduo, mas taquicardias
Além da via de introdução, vários outros parâmetros
muito intensas e a fibrilação ventricular podem matar. A fi-
modificam a ação sistêmica dos tóxicos.
brilação é uma forma de parada cardíaca em que as fibras
musculares continuam a se contrair, mas sem a coordenação
Suscetibilidade Individual
necessária para que haja o esvaziamento dos ventrículos. Em
outras ocasiões, há uma parada genuína em que a muscula- A metabolização das substâncias introduzidas no orga-
tura cardíaca realmente não se contrai - é a assisto/ia. nismo depende da presença de receptores e da atuação de en-
Algumas intoxicações causam arritmias fatais. São exem - zimas capazes de com elas interagir. Se a substância introdu -
plos aquelas causadas pelas chamadas catecolaminas (adre- zida é naturalmente tóxica, as enzimas capazes de transfor-
nalina, noradrenalina, isoproterenol) e por substâncias de má-la aliviam o or ganismo de sua presença prejudicial. Mas
efeito análogo, como a cocaína. Esta facilita e amplia a ação se a substância for praticamente inócua, porém seus produ-
da noradrenalina existente normalmente nas terminações das tos de transformação metabólica forem tóxicos, a ação das
fibras nervosas simpáticas, que atuam no músculo cardíaco enzimas que a transformam passa a ser nociva para o indi-
aumentando sua excitabilidade e contratilidade. A cocaína víduo. Como o equipamento enzimático de cada indivíduo,
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 403

e de cada espécie, depende do seu DNA, a presença ou a au- Hb para metemoglobina. A enzima é a diaforase, também
sência de código para produzir determinada enzima pode ser chamada de metemoglobina redutase. Outro grupo nasce
benéfica ou maléfica. Como consequência, os indivíduos po- com um defeito na própria hemoglobina: uma alteração na
dem nascer com maior sensibilidade a determinadas drogas sequência dos aminoácidos da cadeia 13 da molécula. Esses
- hiper-reatividade - ou apresentar hiporreatividade. E isso indivíduos costumam produzir muito mais metemoglobi-
pode ser um atributo da sua espécie animal, ou o resultado na do que os normais quando expostos a uma substância
de uma mutação dentro da população da própria espécie. metemoglobinizante3.
Alguns autores chamam a hiper-reatividade de idiossincra- Algumas pessoas sofrem de uma doença metabólica
sia, enquanto outros consideram idiossincrasia as respostas transmitida por um gene dominante autossômico, chama-
incomuns tanto para mais como para menos48 . Não se trata, da porfiria aguda. Pois bem, esses indivíduos costumam ter
aqui, de reação de hipersensibilidade imunológica. Esta mo- crises caracterizadas por dor abdominal, por vezes intensa a
difi ca a ação das drogas, mas depende de uma prévia sensi- ponto de simular um quadro de peritonite, desen cadeadas
bilização do indivíduo. Como exemplo, temos a produção de pelo uso de barbitúricos, sulfonas e vários outros tipos de
antissoro contra venenos de cobra pela injeção repetida de drogas, como agentes anti-infecciosos (eritromicina, rifam-
pequenas doses em animais de grande porte, como equinos. picina, griseofulvina) 3·53 . A enzima deficiente é a desaminase
A hiporreatividade também é denominada tolerância. do porfobilinogênio53.

Hiper-reatividade Tolerância
A isoniazida, usada no tratamento da tuberculose, é me- A tolerância natural pode resultar de defeito enzimáti-
tabolizada no fígado por uma enzima, a N-acetil-transferase, co que dificulta a metabolização de drogas que são inócuas
que a transfo rma em acetilidrazina e ácido nicotínico. Há inicialmente, mas que se tornam nocivas depois de metabo-
pessoas que fazem essa reação de modo rápido e outras que lizadas e transformadas em metabólitos tóxicos. O exemplo
o fazem de modo lento, na dependência da atividade dessa mais conhecido e estudado é o do tetracloreto de carbono
enzima. O uso prolongado dessa droga costuma ser acom- (CClJ Para que ele se torne mais tóxico, é preciso que seja
panhado por sintomas de toxidez para o sistema nervoso e oxidado no fígado por um grupo de enzimas conhecido
para o fígado. Independentemente de serem acetiladores rá- como sistema de oxidases de função mista (MFO), presentes
pidos o u lentos, há indivíduos que, em cerca de 2 meses de no retículo endoplasmático dos hepatócitos, que o trans-
uso continuado, apresentam um quadro de hepatite medica- formam em um radical ativo CC!r Esse metabólito do CC14
mentosa sem elhante histologicamente à hepatite por vírus. destrói as membranas celulares e causa necrose das células
Com o essas complicações não são acompanhadas de outros hepáticas. A maioria dos mamíferos dispõe desse complexo
sintomas que caracterizem uma reação imunológica, os au- de enzimas, mas aves, como as galinhas, não. Por isso, essas
tores em geral acreditam que se trate da ação tóxica de meta- são bastante resistentes ao veneno50.
bólitos da isoniazida, formados apenas nesses pacientes po r Outra forma de tolerância natural surge pela seleção na-
mo dificação da ação das enzimas envolvidas no seu metabo- tural. É o que ocorre quando uma população é agredida por
lism o3·49·50. É interessante acrescentar que a incidência dessa um agente químico, por exemplo inseticidas como o DDT
hepatite aumenta com a idade do paciente 3·50 . no combate à malária. O uso continuado leva ao apareci-
A succinilcolina é uma droga usada como relaxante mento de mosquitos mutantes resistentes. O mesmo meca-
muscular, tanto em anestesia como no controle das con- nismo explica a resistência bacteriana aos antibióticos.
vulsões geradas pelo eletrochoqu e usad o em psiquiatria. É Mas a tolerância pode ser adquirida. Conta a história
m etabolizada por uma colinesterase, e sua ação, em ger al, é que Mitrídates VI, o último e mais famoso rei de Ponto, um
rápida. Mas há pessoas qu e têm pouca atividade da colines- estado independente localizado ao Sul do Mar Negro, que
terase e, por isso, apresentam uma ação bem mais longa do foi conquistado pelos romanos no século 1 a.C, homem de
que a maioria 3. muita força física, costumava tomar pequenas doses de vá-
Um dos agentes usados no tratamento da malária, a pri- rios tipos de veneno. No ano de 63 a.C., ao ser traído pelo
maquina, pode causar hemólise e oxidação do núcleo hem e seu exército, liderado por seu pró prio filho, tentou o suicídio
da hemoglobina em um pequeno percentual de pacientes pela ingestão de veneno, mas não morreu. Ordenou então a
porque eles têm deficiência da enzima glicose-6-fosfato- um soldado mercenário da Galácia que o matasse, o que foi
desidrogenase. Há uma distribuição racial dessa alteração, feito. A morte de familiares na busca do poder, comum entre
que ocorre em cerca de 10% dos negros americanos e em as famílias reais antigas, já havia sido praticada po r ele, que
alguns grupos de europeus3.S 1•52 . matara a própria mãe e os irmãos54 . Mais tarde, a adaptação
Algumas famílias têm indivíduos que nascem com de- d o o rganism o a um veneno passou a ser conhecida como mi-
ficiência de uma enzima responsável pela redução do fer- tridatização, e o fenóm eno, como mitridatismo.
ro trivalente da metemoglobina para ferro divalente. Essas É fato corriqueiro que pessoas acostumadas ao consumo
pessoas costumam apresentar efeitos tóxicos, por vezes de álcool custam a ficar embriagadas. Além disso, costumam
graves, quando expostas a substâncias capazes de oxidar a necessitar de doses mais elevadas de anestésicos para que se
404 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

obtenha o necessário efeito depressor d o sistema nervoso cen- de farmacocinética quando uma interfere na velocidade de
tral. Isso se deve ao fenôm eno da indução enzimática. A expli- absorção, na ligação com proteínas de tra nspo rte, na m eta-
cação, de m odo resumido, está no fato de que algumas subs- bolização ou na taxa de excreção da outra droga. Ser á far-
tâncias como o álcool, barbitúricos e outras têm a capacidade macodinâmica quando uma atuar no mecanismo de ação da
de estimular a síntese de enzimas do sistema de oxidases que outra, seja nos receptores, seja na ação final56 •
m etabolizam o próprio álcool e também substân cias depres- Duas drogas A e B podem ter efeito aditivo. Isso quer di -
soras d o sistem a nervoso, inclusive drogas ilícitas 50 . Um dos zer que o resultado final será a soma do efeito de uma com
aspectos da dependência de drogas é a necessidade de doses o da outra. Em geral, isso ocorre quando elas são similares.
progressivamente maiores para a obtenção do mesmo efeito, Quando o efeito de A mais B fo r maior do que o aditivo, esta-
o que se cham a de hábito, uma forma de tolerân cia adquirida. rem os diante do sinergismo. É o que ocorre nas intoxicações
por tetracloreto de carbono em pessoas alcoolizadas. Um ou-
Peso tro tipo de sinergismo é a potencialização, em que A é muito
bem to lerada, mas, na presença de B, to rna-se tóxica em do-
Pessoas de grande m assa corporal têm m ais sangue do
ses menores - associação de álcool e benzodiazepínicos. Em
que as pequenas. Por isso, a dose de qualquer droga deve ser
anestesia, podemos imaginar que A seja um pré-anestésico e
prescrita em função dessa variável para que a concentração
B o anestésico. O uso de A faz com que se necessite de uma
eficaz seja alcançada. Da mesma fo rma, os agentes tóxicos
dosagem menor de B para conseguir o efeito desejad o. Por
são diluídos no sangue depois de absorvidos. Assim, a dose exemplo, o uso do diazepam diminui a quantidade de anes-
letal para uma pessoa, excluindo outras variáveis, é propor-
tésico geral a ser usada para se atingir um mesmo nível de
cional ao seu peso.
anestesia. Outro exemplo é o perigo de se dar ácido acetilsa-
licílico (AAS) a pessoas sob uso de anticoagulantes orais. O
Idade
risco de hemorragia grave aumenta porque o AAS suprime
É uma variável que não pode ser encarada apenas em um dos mecanismos de hem ostasia que é a agregação de pla-
função do volume corporal, mas como consequência de quetas para iniciar a coagulação, que já está comprometida
diferenças entre o m etabolism o do adulto e o da criança. pela competição do anticoagulante em relação à ação coagu-
Experiências sobre a toxidez do tetracloreto de carbono em lante da vitamina K57•
ratos demonstrara m que os recém -nascidos são muito mais Mas as associações também podem agir no sentido con-
resistentes do que os adultos. A causa da diferença é a baixa trário. Haveria um antagonismo entre A e B. Na realidade,
atividade do sistem a de oxidases microssômicas hepáticas há m ais de uma fo rma de ação antagônica. A mais comum
(MFO ), que só adquire o nível normal depois de 1 semana do é com relação aos receptores, em que uma droga que se liga
nascimento. O mesmo ocorre nos seres humanos: os recém- ao receptor não tem efeito, mas impede que outra capaz de
nascidos têm atividade muito diminuída dessas enzimas50 • produzir aquele efeito se una ao receptor - antagonismo por
Isso, no entanto, torna-os m ais sensíveis a drogas como o competição. A naloxona bloqueia os receptores para os opiá-
cloranfenicol, um antibiótico, e analgésicos opio ides55 . ceos, como a m orfina, e diminui os seus efeitos depressores
sobre os centros respiratórios38 • A mifepristona compete com
Patologia Prévia a progesterona na ligação com seus receptores endometriais.
Desse mod o, impede a reação decídua!, indispensável para a
Não é difícil de entender que indivíduos co m doenças manutenção da nidação do ovo fecundado, e causa aborto58 .
hepáticas ou renais sejam agredidos m ais intensamente pe- O efeito antagônico pode ser obtido também pela neu-
las substâncias tóxicas. Como o fígado é o principal órgão tralização do tóxico. É o princípio básico da antidotia. Assim,
detoxificador e os rins, a via mais comum de excreção, fica A reage co m B de modo que sobra m enos B para atuar to-
claro que o m au funcionam ento desses órgãos ca usa um xicamente. O BAL (de British antilevisite ) é um agente que-
acúmulo das drogas introduzidas no organismo. Assim, an- lante para os metais pesados como o chumbo, o arsênio e o
tes de administrar uma droga qualquer, os médicos devem mercúrio, que forma com eles um composto estável, retiran-
avaliar o risco do seu uso por pessoas doentes. Daí decor- do-os de circulação. Serve como antído to nas intoxicações
rem contraindicações absolutas na prática terapêutica q ue, por esses elementos57• Foi descoberto pelos ingleses e usado
quando não atendidas, podem instruir processos por erro durante a 1.. Guerra Mundial.
médico na dependência das consequências. Por exemplo,
não se deve dar anticoagulantes à base de dicumarínicos a
pacientes com insuficiência hepática porqu e eles já têm de- Intoxicações Crônicas
ficiência de vitamina K.
Há situações em que o indivíduo fica exposto com fre-
quência ao contato com substâncias tóxicas, acidental ou de-
Associação de Drogas
liberadam ente. Na verdade, são m ais comuns as intoxicações
A introdução no organismo de mais de uma droga pode crô nicas acidentais relacionadas com a poluição dos locais de
levar ao aumento, à diminuição, ou não interferir nos efeitos trabalho. Mas a ação prolongada e repetida dos tóxicos pode
biológicos de cada um a delas. Tal interação deve ser chamada resultar também do uso voluntário, medicamentoso ou abu-
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 405

sivo. As intoxicações crônicas de origem criminosa, porém, face a uma emergência, por exemplo uma lesão traumática,
constituem, atualmente, raridade. Procuraremos abordar os e ocorrer interação medicamentosa com efeitos adversos ao
aspectos forenses dessas intoxicações nessa mesma ordem. paciente. A seguir, daremos alguns exemplos.
É comum que pacientes cardiopatas precisem tomar al-
Intoxicações Profissionais gum cardiotônico digitálico como a digitoxina, usar hipo-
Os diversos ramos da atividade laborativa humana ex- tensores, diuréticos etc. Como uma das ações da digitoxina
põem os trabalhadores a uma crescente gama de substân- é diminuir a ação da enzima que mantém o sódio fora e o
cias. Estas contaminam o ambiente como poluentes do ar, potássio dentro das células, e os diuréticos reduzem a con-
entram em contato direto com sua pele ou penetram no or- centração do potássio no sangue, os dois efeitos se somam
ganismo por qualquer outra via. Qualquer que seja a forma em longo prazo e ca usam perturbação do ritmo e da coorde-
de exposição, porém, o traço comum é a continuidade da nação dos batimentos cardíacos (arritmias ), que pode causar
agressão. Além disso, não se pode esquecer de que qualquer a morte. A intoxicação digitálica produz alterações no tra-
ambiente de trabalho pode expor o profissional a mais de çado do eletrocardiograma (ECG), que deve ser feito para
um poluente químico. acompanhar o tratamento6-0.
Deve-se pensar em intoxicação profissional quando qua- Doentes reumáticos em uso prolongado de AAS (ácido
dros clínicos complexos e de difícil esclarecimento etioló- acetilsalicílico) podem apresentar hepatite medicamentosa,
gico surgem com sintomatologia semelhante entre número ou gastrite com possível erosão da mucosa e sangramento di-
razoável de operários encarregados de executar uma mesma gestivo. Por outro lado, pacientes com insuficiência hepática
tarefa. A melhora clínica, com frequência , coincide com as grave devem evitar o AAS porque já têm tendência a sangra-
férias ou com os períodos de licença para tratamento, mas mentos por deficiência de fatores da coagulação produzidos
se nota recrudescência dos sintomas pela retomada das ati- pelo fígado, uma vez que ele reduz a agregação das plaquetas,
vidades profissionais. As substâncias suspeitas devem estar um importante mecanismo de defesa contra hemorragias61 •
presentes no ambiente de trabalho e ser capazes de causar O uso do paracetamol em pacientes epilépticos controla-
dano por ação cumulativa, sem aparecimento de tolerância. dos por barbitúricos os expõe a um risco maior de lesão he-
Sua dosagem no paciente tem que ser maior do que a encon- pática. Como os barbitúricos induzem aumento de atividade
trada na população em geral. das enzimas do sistema de oxidação mista dos hepatócitos
A experiência acumulada na prática da m edicina do tra- (MFO ), e essas enzimas reagem com o paracetamol produ-
balho permitiu que se estabelecessem valores máximos to- zindo um radical ativo que lesa as membranas celulares, tais
leráveis de poluição do ambiente. O tipo de poluição mais pacientes terão maior quantidade desse radical e possível he-
comum é a do ar por gases e por substâncias voláteis. Mas patite medicam entosa7 .
também são importantes os aerossóis e as poeiras indus- Pacientes psicóticos em uso de neurolépticos, como o
triais. Quando se trata de gases e va po res, os valores máxi- haloperidol, em longo prazo, apresentam aumento do tônus
mos permitidos são referidos em partes por milhão no ar. No muscular, chegando a um quadro que se confunde com o
caso de poeiras e aerossóis, a relação é em milhão de par- parkinsonismo. Além disso, essas drogas podem causar uma
tículas por metro cúbico de ar. Os manuais de Medicina do grave complicação já comentada no Capítulo 17, a síndrome
Trabalho trazem informações mais específicas relativas aos neuroléptica maligna62 • Ainda na psiquiatria, o tratamento
diversos agentes 59 • das depressões graves com antidepressivos tricíclicos sujeita
Alguns poluentes dos ambientes de trabalho já estão bem os pacientes a um efeito anticolinérgico intenso, do qual re-
caracterizados como causa de doenças profissionais. O Ane- sultam episódios de hipotensão postural e possíveis quedas.
xo II do Decreto 3.048/99 lista as substâncias reconhecidas Além disso, aumenta o risco de insolação, principalmente
como causadoras de acidentes do trabalho e de doenças pro- para pacientes idosos62 •
fissionais, bem como as atividades laborativas relacio nadas a
cada tipo de poluente (ver Capítulo 21 ). Toxicomanias
O uso abusivo e repetido de drogas que causam depen-
Intoxicações Medicamentosas dência física ou psíquica acaba levando as pessoas predispos-
Várias doenças crônicas obrigam os pacientes ao uso tas a se tornarem toxicômanas, viciadas. É interessante frisar
prolongado de medicamentos. É o que ocorre em cardiopa- que a maioria dos usuários não se torna dependente, apenas
tias, algumas forma s de reumatismo, disfunções hormonais, aqueles com base genética. Para Uhl6 3, a vulnerabilidade ao
doenças neurológicas e psiquiátricas. São exemplos a epilep- alcoolismo e à dependência de drogas tem 60% de partici-
sia, as psicoses, as doenças infecciosas como a tuberculose, a pação genética. Os outros fatores seriam de ordem social e
hanseníase etc. Assim, podem ocorrer sinais de intoxicação psicológica. A vinculação da dependência a fatores genéti-
pelo acúmulo exagerado do m edicamento no organismo, cos tem sido demonstrada por meio de vários trabalhos em
principalmente se capaz de formar depósitos por se combi- que os autores verificaram maior incidência de alcoolismo
nar firmemente com elementos celulares. Além disso, pode em filhos de pais alcoólatras que foram adotados por pes-
haver necessidade da introdução de outra droga para fazer soas normais, quando comparados com os filhos naturais do
406 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

casal adotante. É mais frequente mesmo quando comparada A absorção do álcool é rápida porque é muito solúvel em
com a frequência do alcoolismo em filhos ad otivos de pais água. Com eça já na mucosa oral, mas é no estômago que se
alcoólatras. Além disso, gêm eos univitelinos (m esm a com - intensifica, para se to rnar máxima no intestino delgado. A
posição genética) apresentam maior concordância quanto velocidade de absor ção varia na dependência de vários fato-
à incidência de alcoolismo do que os bivitelinos (genetica- res. Para uns, em 30 a 60 minutos, cerca de 80 a 90% já fo ram
m ente diferentes )64 • absorvidos68 • O utros afirmam que são absorvidos 60% em
A dependência costumava ser dividida em física e psí- 1horae90% em 1 hor a e m eia69 . Contudo, depende do esta-
quica. Na física, a retirada da droga teria que levar à crise do de plenitude do estômago. Se a pessoa bebe sem, simulta-
de abstinência caracterizada por profundo m al-estar psi- neam ente, comer alguma coisa, a absorção é muito acelerada,
cológico aco mpanhado de sintomas e sinais orgânicos, por principalmente porque o álcool atinge o intestino delgado
exemplo, sudorese, lacrimejamento, tremores, calafrios, do- precocemente. A curva da alcoolemia, quando são com pa-
res pelo corpo, cólicas abdominais, náuseas e vômitos no rados d ois episódios de ingestão de álcool nos mesmos indi-
caso dos opiáceos. Na psicológica, os dependentes sentiriam víduos, em jejum e depo is de se alimenta rem , mostra que as
a necessidade imperiosa de consumir a droga ("fiss ura") , ir- taxas máximas são mais elevadas e mais precoces quando a
ritabilidade e depressão, sem a contrapartida de alterações ingestão é feita com o estômago vazio. Mas há grande varia-
somáticas65• Na realidade, os critérios para o diagnóstico da ção de uma pessoa para outra. Por isso, não é possível prever
dependência são bem mais complexos. Atualmente, rejeita- com que velocidade dar-se-á a absorção em cada indivíduo
se essa classificação, considerada uma simplificação exage- em particular 67 . Além disso, uma refeição plena de alimentos
r ada. A partir dos estudos relacionados com a dependência go rdurosos fo rra a mucosa gástrica e retarda ainda mais a
à cocaína, foi reconhecido que há alterações neuroquímicas absorção, pois o álcool não é solúvel na gordura.
responsáveis pelos sintomas de ansiedade, depressão, fadiga O tipo de bebida e o seu teor alcoólico são importantes
e sonolência que costumam acompanhar a interrupção d o na velocidade de absorção. O pico atingido pelo consumo
uso. O sistema nervoso estabelece um estado geral de adap- de cerveja não passa de 50% do decorrente da ingestão de
tação à d roga, neuroadaptação, principalmente no sistem a destilados69• Acredita-se que bebidas alcoólicas gaseificadas,
límbico, relacionado com a sensação de prazerM·66 • com o o champanhe, permitam absorção m ais rápida. Por
As substâncias que atuam no psiquismo são chamadas outro lado, as destiladas, de teor alcoólico muito alto, podem
de psicoativas, ou psicotrópicas. Podem ser classificadas em causar espasmo do piloro e diminuição do peristaltism o gás-
drogas psicolépticas, psicoanalépticas e psicodislépticas, con- trico, retardando sua passagem para o intestino delgad o69 •
fo rme exerçam, respectivamente, ação depressora, estimu- A gradação alcoólica costuma vir escrita no rótulo das
lante ou perturbadora da atividade psíquica do cérebro. garrafas. Mas não há um consenso quanto à unidade a ser
Mas é preciso não aderir muito rigidam ente a essa divisão. usada. Alguns fabricantes usam o percentual de álcool volu-
Por exemplo, o álcool, que é um depressor, atua como exci- me por volume; outros, massa por volume. Como a densidade
tante em doses baixas, provocando um estado de liberação do álcool é de 0,79, a representação do teor alcoólico em
comportamental. Alguns componentes do grupo das anfe- volume por volume costuma ser m aio r do que se fo r massa
taminas, que são excitantes, causam alucinações. É o caso do por volume. Um teor de 40% vol/vol corresponde a 31,60
ecstasy . Além do mais, o grupo dos psicodislépticos é bastan- em m/vol. Há, ainda, os que usam uma escala m edida em
te heterogêneo, produzindo estados delirantes e alucinações graus Gay-Lussac (ºGL). Essa escala foi construída a partir
que podem ser acompanhados de excitação ou de depressão, da diluição do álcool com água destilada, partindo-se do
confo rme o agente e a reação individual. mais concentrado para o mais fraco. Sua vantagem é levar
A seguir, analisarem os aspectos toxicológicos particula- em conta a m assa e o volume ao m esm o tempo70 .
res dos principais integrantes de cada grupo. A Tabela 19. l apresenta os teores alcoólicos de algumas
bebidas nacionais e estrangeiras.
Psicolépticos Depois de absorvido, o álcool é levado, através dos r amos
da veia porta, ao fígado, onde sofre a ação das enzimas he-
Podem ser enquadrados nesse grupo o álcool etílico (eta- páticas. Cerca de 90 a 98% do álcool ingerido são oxidados.
nol), os barbitúricos, os opiáceos e os benzodiazepínicos. O restante é eliminado, sem ser metabolizado, pelos rins,
pulmões e secreções como o suo r, a saliva e o leite68•69•71• As
Álcool Etílico (Etanol)
enzimas mais importantes são as d esidrogenases presentes
É a substância depressora mais consumida no mundo. no citosol (parte líquida do citoplasma dos hepatócitos), que
Tem muita importân cia m édico-legal porque grande parte oxidam o etanol a aldeído acético. Há cerca de 20 desidro-
dos homicídios e a m aio ria dos acidentes de trânsito estão genases hepáticas, algumas de ação mais rápida que outras.
relacionad os com o seu uso. Jones revisou 25.000 necropsias Outro grupo de enzimas que oxidam o etano l está presente
forenses e encontrou teste positivo par a álcool no sangue de na membrana do retículo endoplasmático liso dos hepató-
32% d os corpos6 7• Mas não serão abordados aqui os aspectos citos e tem importância no alcoolism o crônico o u após in-
psiquiátricos da embriaguez nem do alcoolismo crônico, tema gestão abundante. São as enzimas do MEOS (m icrossomal
d o Capítulo 34. Ater-nos-emos aos aspectos toxicológicos. ethanol ox idizing system ). Sua quantidade aumenta nos he-
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 407

Tabela 19.1. Teor alcoólico de algumas bebidas


Glnaro Elp6cla MIJCI Oltgam Gradlflo*
Destilados Gim Seager's Brasil 45,3%
Gilbey's Brasil 43,5%
Uísque Ballantines Escócia 43%
Grant's Escócia 43%
Old Parr Escócia 43%
Cachaça Velho Barreiro Brasil 40° GL
Pirassununga Brasil 39° GL
Rum Baccardi Brasil 40° GL
Montilla Brasil 38%
Cointreau Cointreau Brasil 40° GL
Conhaque Macieira Brasil 39%
Dreher Brasil 38%
Vodca Rodnik Rússia 40%
Orloff Brasil 38%
Licores Campa ri Brasil 28,5%
Frangelico Itália 24%
Anisete Brasil 18%
Vermutes Seco Martini Brasil 18%
Tio Pepe Espanha 15%
Branco Martini Brasil 16%
Vinhos Doce licoroso Porto Ruby Portugal 18%
Moscatel de Setúbal Portugal 18%
Tinto Terrazas de los Andes Argentina 13,7%
Periquita Portugal 12,5%
Bolla Itália 12,5%
Cios des Nobles Brasil 12%
Chateau Duvalier Brasil 10,5%
Branco Terrazas de los Andes Argentina 13%
Almadén Brasil 11,5%
Cios des Nobles Brasil 11 %
Espumante Chandon Brasil 11 ,9%
Pol Clement França 10,5%
Cerveja Clara Antarctica Brasil 5%
Brahma Brasil 4,8%
Skol Brasil 4,7%
ltaipava Brasil 4,5%
'% em proporção de volume; GL - grau Gay-Lussac.

patócitos pela repetição frequente da exposição ao álcool. É o vado que há duas isoenzimas ALDH2: uma ativa e outra ina-
fenô meno chamado d e indução enzim ática, responsável pela tiva. A inativa foi achada em japoneses e habitantes do sudeste
maior to lerância dos alcoólatras às grandes libações72 • Nos asiático. Como os japoneses tendem a metabolizar o álcool
bebedores m oderados a leves são de po uca importân cia67•73 • rapidamente, os que têm a fo rma inativa da ALDH2 passam
Pequena parcela do álcool é oxidada pela ação de catalases6 7• a acumular o ald eído e a sen tir os seus efeitos tóxicos, com o
Mais de 90% do aldeído acético são oxidados rapidamente cefaleia, rubor facial e taquicardia. Por isso, evitam beber72 •
a acetato pelas aldeído desidrogenases, principalmente a que Recentemen te, tem se dado valor à via não oxidativa de
está nas mitocôndrias, designada pela sigla ALDH2. Foi pro- elim inação do etan ol. Por essa via, são produzidos compos-
408 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

tos como glicuronato de etila, sulfato de etila, fosfatidil eta- Outra variável que interfere nessa avaliação é o fato de
nol e ésteres de ácidos graxos. Como são reações mais lentas, haver uma espécie de fadiga do conjunto de enzimas de oxi-
os produtos formados custam um pouco mais para atingir dação do etanol quando a sobrecarga é intensa. Sua capaci-
sua concentração máxima no sangue e demoram mais para dade de eliminar o álcool não é diretamente proporcional à
serem eliminados. Por isso, tem se dado valor médico-legal à dose ingerida. A velocidade de metabolização diminui67 •
pesquisa e dosagem do glicuronato de etila, pois se mantém Como já referimos, cerca de 2 a 3% do álcool consumi-
presente no sangue mesmo depois do desaparecimento do do é eliminado pela urina, cuja produção aumenta sob sua
etanol, o que atestaria a ingestão de bebida alcoólica, além de influência. O pico de concentração alcoólica na urina ocorre
afastar a possibilidade de contaminação da amostra 67• cerca de uma hora depois de se atingir a alcoolemia máxima
A velocidade de metabolização tem importância médico- e coincide com o período de maior volume urinário67 •
legal, pois o seu conhecimento permite avaliar, retrospecti- O uso da urina para dosagem tem a vantagem da fácil
vamente, o teor alcoólico no sangue de uma pessoa envolvi- obtenção, mas traz sérios problemas na interpretação dos
da em uma ocorrência policial no momento do fato. Mas tal resultados. Primeiro porque a quantidade de álcool no filtra-
avaliação só tem valor após se atingir o pico da concentração. do glomerular equivale à do sangue, mas a reabsorção desse
Enquanto houver álcool para ser absorvido, ela não deve ser filtrado ao longo dos túbulos renais faz com que a urina te-
feita. É medida em termos de queda da alcoolemia relacio- nha concentração maior do que a sanguínea, na proporção
nada ao tempo. Em média, pode-se dizer que o fígado reduz de 123:10069• Segundo, é possível que já houvesse urina na
a alcoolemia em torno de 0,15 a 0,18 g/L/h' 3•69 . Jones67 refe- bexiga quando o indivíduo começou a beber, o que seria um
re que a velocidade de metabolização pode ser classificada fator de erro pela redução da concentração alcoólica nessa
como lenta (0,08 a 0,1), moderada (0,1 a 0,15), rápida (0, 15 amostra. Também é prejudicada porque o teor na urina re-
a 0,25) e ultrarrápida (0,25 a 0,35), medida em g/L/h. Além presenta uma média dos valores ao longo do tempo em que
disso, o homem metaboliza mais rapidamente que a mulher. a urina se acumula na bexiga, não um valor referido a deter-
Se o indivíduo for um metabolizador rápido, qualquer dosa- minado momento69 •
gem feita fornecerá um valor que, se usado para cálculo da O chamado bafômetro é um aparelho usado para medir
alcoolemia no momento da ocorrência, levará a uma possí- a quantidade de álcool eliminada pelo ar expirado. Mas só o
vel taxa mais baixa do que a real. ar alveolar reflete fielmente o teor alcoólico do sangue, uma
Por esse fato e pela possível interferência de outras variá- vez que os vapo res atravessam a barreira alveolocapilar. Con-
veis, Marlet7' propôs que fossem feitas duas coletas em in- tudo, ao se fazer a medição pelo ar expirado, é preciso levar
tervalo de tempo conhecido. Dispondo da dosagem de cada em consideração o ar residente no chamado espaço morto
amostra de sangue colhida, é possível fazer-se o cálculo da respiratório (vias aéreas superiores, traqueia e brônquios),
alcoolemia no momento do delito, seja lançando os dados que se mistura com o ar alveolar no momento da expiração.
em um papel milimetrado, seja usando uma fórmula geo- Os aparelhos comercializados, em geral, já fazem uma com-
m étrica (Fig. 19.13). pensação para esse fator de erro. Suas escalas são aferidas
para representar equivalentes da alcoolemia no momento do
teste. A maioria trabalha usando uma proporção de 2.000 a
2.300/L. Ou seja, a quantidade de álcool contida em 2 a 2,3
litros de ar equivale à presente em 1 mL de sangue67 .
No caso de coleta de sangue para avaliação de alcoolemia
em cadáver, a taxa vai mostrar a concentração no momento
da morte. Sua contribuição ao esclarecimento dos fatos só
será importante se conhecido o intervalo entre a ocorrência
e a morte. Assim, em casos de atropelamento com morte no
local, o teor alcoólico da vítima, se elevado, pode ser usado
pela defesa para tentar isentar o motorista de culpa. Mas,
se a vítima for socorrida e passar algum tempo em um leito
hospitalar, o exame poderá dar, inclusive, resultado negativo,
por já ter sido eliminado todo o álcool. Além disso, é preciso
atentar para o local da coleta da amostra de sangue, urna vez
que alguns fatores podem interferir no resultado da dosagem.
T Enquanto não tiver sido atingida a alcoolemia máxima,
o teor do sangue arterial é até 40% maior que o do sangue
Figura 19.13. Nesta figura, o segmento CD é a diferença de concen-
tração entre a primeira amostra C1 e a segunda amostra C2. T é o tempo venoso' 3 • A maior concentração, no entanto, é a da veia por-
entre o delito e a segunda dosagem; t é o intervalo entre as duas ta, que tem todo o álcool absorvido no tubo digestivo antes
dosagens C1 e C2; Cd é a concentração à época do delito. Pelas pro- da ação do fígado. A predominância no sangue arterial com
priedades dos triângulos retângulos, CD/t =AB/T. O segmento AB pode, relação ao venoso, nas cavidades cardíacas, deve-se ao fato de
então, ser calculado e somado a C2 para se achar o valor de Cd. o sangue venoso ser aquele que já foi distribuído por todo o
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 409

corpo, por onde perde razoável quantidade do álcool. É pre- Tabela 19. 2. Efeitos neuropsíquicos do álcool*
ciso, ainda, que se evite colher o sangue extravasado para as
Alcoolamla
gr andes cavidades, como a abdominal e as pleurais. O álcool (lllllfl• ml) Efltto1
contido no estô mago costuma difundir-se para os tecidos e
> 30 Dificuldade para tarefas finas como dirigir
espaços vizinhos, onde se mistura com o sangue porventu-
ra extravasado de lesões viscerais, causando taxas excessiva- 30 a 50 Sem capacidade para dirigir
mente altas de alcoolemia. Quanto ao sangue das cavidades 50 a 100 Desinibição, loquacidade, risos e início de
cardíacas, há controvérsias, mas Knight 29•69 aconselha que distúrbios sensoriais
não se o use por causa da possibilidade de contaminação 100 a 150 Voz arrastada, distúrbio do equilíbrio
pós-morte por essa difusão. 150 a 200 Nítida embriaguez, andar ébrio
Quando não for possível colher sangue do cadáver, seja
200 a 300 Estupor, vômitos, possível coma
por ter havido esquartejamento d o corpo, seja por putrefa-
ção, ou outra causa, aconselha-se faze r a dosagem no humor 300 a 350 Estupor ou coma, perigo de aspiração de
vítreo (substância gelatinosa da parte posterior d o interio r vômito
do globo ocular). Depois do sangue, é o melhor lugar par a > 350 Perigo progressivo de morte por parada
fazer a dosagem d o álcool. Mas é preciso atentar para alguns respiratória central
detalhes. Como o humo r vítreo tem maior teor de água, sua ' Tabela 28.1 de Knight B" '.
concentração de álcool é maior que a do sangue total, equiva-
lendo à do plasma. A proporção é de 1,2: 1. Mas isso não é ver-
dadeiro na fase de absorção porque a concentração do sangue Apenas cerca de 50 estão em uso na farmacopeia mundial
está em ascensão e a difusão do álcool do sangue para o vítreo atualmente. No Brasil, poucos são usados, com o o tiopental
é lenta. Como a dosagem nele reflete a alcoolemia de 1 a 2 (anestésico), o fenobarbital (antiepiléptico, hipnótico e seda-
horas antes, durante a absorção a concentração no vítreo é tivo) e o pentobarbital (hipnótico e sedativo). Os barbitúri-
menor 13• Outra vantagem do vítreo é o fato de ficar prote- cos são produtos apoiares e insolúveis em água, m as os seus
gido, po r um tempo razoável, das alterações de putrefação. sais - barbituratos - são solúveis e prontamente absorvidos
Acredita-se que a ação depressora do etanol esteja rela- no tubo gastrointestinal74 • Depois da absorção, passam pelo
cio nada aos efeitos inibitórios do ácido ga ma-aminobutíri- fíga do e são m etabolizados em duas fases - oxidação e con-
jugação com o ácido glicurônico, que é eliminado pela urina.
co, um neurotransmissor presente no sistema nervoso cen-
A velocidade dessas reações sofre variação de um indivíduo
tral. Agiria sobre os receptores desse neurotransmissor. Os
para o outro e com o tipo de composto74 . Existem agentes de
efeitos começam pelos neurô nios corticais, o que explica a
ação muito rápida como o tiopental e outros de ação muito
desinibição e m aio r sociabilidade do bebedor no início da
lenta e prolongada como o fenobarbital. Quanto mais lipos-
embriaguez68• Com o passar do tempo, a alcoolemia aumen-
solúveis m ais r apidam ente penetram no tecido nervoso75 •
ta e vão sendo deprimidos os neurônios dos centros subcor-
O fenobarbital tem, além da ação depressora do SNC,
ticais. Knigh t69 apresenta uma tabela dos efeitos neuropsí-
a propriedade de induzir a síntese de enzimas hepáticas d o
quicos de diversas concentrações alcoólicas no sangue, que
sistema MFO, referido ao cuidarmos d o metabolismo d o
transcrevemos a seguir (Tabela 19.2) .
álcool. Este fenômeno torna o indivíduo mais resistente ao
Os valores da Tabela 19.2 representam a m édia obtida
próprio barbitúrico e a várias outras substâncias. Além disso,
pela observação de numerosos indivíduos, o que significa
pode ser usado par a aumentar a conjugação da bilirrubina
que para cada pessoa pode haver discrepância nos dad os
com o ácido glicurô nico na doença de Gilbert7 6 •
comportamentais. Pessoas acostumadas a beber são mais
Os barbitúricos agem nos centros nervosos relacionados
resistentes e têm comportamento que seria observado com
com o sono por prolongarem o tem po de atuação inibitória
taxas meno res na população em geral. Por isso, o diagnóstico
do ácido gama- hidroxibutírico (GABA), um neuro transmis-
do estado de embriaguez tem que ser feito em bases clínicas.
sor inibitório. Conforme aumenta a dose, os efeitos são seda-
O mesmo ocorre com a dose letal. Knight69 cita um caso re-
ção, indução d o sono, anestesia e coma75•
latado por Jo hnson e cols., em que uma mulher sobreviveu
As intoxicações costumam ser po r tentativas de suicídio
a 15 g/L. A m aioria teria morrido antes de alcançar tal con-
e evoluem de modo semelhante à ação do álcool. O coma
centração. Jones67 relata 693 casos de m orte por intoxicação
to rna-se profundo e se acom panha de depressão respirató-
alcoólica em que a alcoolemia m ais frequente foi de 3,6 g/L.
ria, com posterior queda da pressão arterial e choque por
depressão da contração cardíaca. Ao longo desse curso, ocor-
Barbitúricos re insuficiência renal. A dose letal varia entre 15 a 30 vezes a
São fá rmacos derivados da malonilureia, que foi sinteti- d ose terapêutica. Nos de ação rápida, fica em torn o de 2 a 3 g
zada já eml864 e ficou conhecida como ácido barbitúrico. A e nos de ação lenta, como o fenobarbital, de 5 a 10 g75•
partir dessa substância, em meados do século XX, já haviam Atualmente, não são mais usados como hipnóticos por
sido produzidos mais de 3.000 derivados mas a maioria, causa do advento dos benzodiazepínicos, que são muito mais
por vários motivos, não ganhou aceitação para uso clínico. seguros.
410 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

Benzodiazepínicos o fentanil. As substâncias sintéticas são conhecidas também


como opioides. As substâncias desse grupo apresentam, em
Surgiram nos anos 60 como resultado de pesquisas com
comum, forte poder analgésico, ação depressora do sistema
tranquilizantes como a clorpromazina e o meprobamato.
nervoso central (SNC) e tendência a causar dependência e
Resultou um grupo cada vez mais numeroso de substâncias
tolerância com a repetição do uso 78•
que passaram a ser usadas largamente como ansiolíticos, hip-
O ópio é a resina obtida do fruto da papoula - Papaver
nóticos, miorrelaxantes e anticonvulsivantes. Substituíram
somniferum. Tem aspecto leitoso quando fresca e assume co-
os barbitúricos, principalmente como drogas usadas para
loração parda mais ou menos clara quando desidratada e con-
induzir o sono, por sua maior segurança, já que são muito
vertida em pó ou pedras para distribuição e consumo. Já havia
bem toleradas pelo organismo, sendo raros os casos de morte
referência ao seu uso medicinal no Papiro de Éber em 1500
por ação medicamentosa em que tenham sido usadas iso-
a.C.) 78. Os principais alcaloides naturais contidos no ópio são
ladamente. A dose letal é cerca de 50 vezes maior do que a
a morfina, a codeína e a papaverina. Os efeitos do ópio são
terapêutica 75. Geralmente, as mortes resultam do uso de ben-
semelhantes aos da morfina, quando isolada, pois é ela o alca-
zodiazepínicos associados a outros depressores do sistema
loide presente em maior proporção. A papaverina não tem as
nervoso, como o álcool, por exemplo. As intoxicações evo-
mesmas propriedades das outras substâncias do grupo.
luem com perda da consciência, embora o paciente possa ser
A maior parte do ópio consumido no mundo vem da
acordado, depressão respiratória pouco intensa e hipotensão
Ásia, principalmente do Afeganistão. Nas Américas, a pro-
arterial. Esta deve-se a redução da resistência do leito vascular
dução é baixa, sendo liderada pelo México 79•
periférico e a diminuição da força contrátil do miocárdio 75•
Os opiáceos são chamados, de um modo geral, de narcó-
A droga mais conhecida é o diazepam (Valium), mas a
ticos ou entorpecentes. O termo 'entorpecente' vem do fato de
família é grande: bromazepam (Lexotan), nitrazepam (So-
essas substâncias causarem um entorpecimento da consciên-
nebon), estazolam (Noctal ), lorazepam (Lorax), flunitra-
cia e é mais empregado em nosso meio. Já 'narcótico', de raiz
zepan (Rohypnol), flurazepam (Dalmadorm), midazolam
grega, é usado universalmente e deve-se à ação sonífera des-
(Dormonid), triazolam (Halcion) e alprazo lam (Frontal). O
sas drogas. Assim, o Conselho Econômico e Social da ONU,
midazolam, por sua grande potência, tem sido usado como
reunido em 1961 , em Nova York, promulgou a Single Con-
medicação pré-a nestésica 74 •75•
vention on Narcotic Drugs, assinada por 73 países membros,
O uso dos benzodiazepínicos tornou-se tão popular, que
inclusive o Brasil, para unificar os documentos dos vários
trabalhos feitos em São Paulo demonstraram que um pou-
países membros sobre o tráfico de drogas. Suas resoluções
co mais de 10% da população adulta os tem utilizado, por
foram revistas e atualizadas em Genebra, em 197280 . Entre
mais de 1 ano, principalmente como indutor do sono. Se se
nós, a primeira ficou conhecida como Convenção Única so-
considerar apenas a população psiquiátrica, a prevalência
bre Entorpecentes e foi promulgada pelo Decreto 54.216 de
sobe para mais de 28%. Um estudo analítico da forma de
27/08/64; a segunda pelo Decreto 76.248 de 12/09/1975 81•
obtenção de receitas, uma vez que é medicamento controla-
Nesses documentos, há 4 listagens da s substâncias a serem
do, mostrou que cerca de 90% foram assinadas por clínicos,
consideradas como narcóticos ou entorpecentes. Além disso,
e não por psiquiatras77 •
estabeleceu-se que estas listas deveriam ser revistas e atuali-
A ação dos benzodiazepínicos em geral se faz nos recep-
zadas anualmente a partir de propostas dos estados mem-
tores A do ácido gama-aminobutírico (GABA), promoven-
bros das Nações Unidas82• Mas, desde o início, elas incluíam
do uma entrada de ions c 1- para o interior dos neurônios
também substâncias fora do grupo dos opiáceos como, por
e consequente hiperpolarização da membrana, que se torna
exemplo, os derivados da maconha e da coca. A razão dis -
menos excitável. São, portanto, inibidores da atividade n eu-
so foi a preocupação da ONU focada no controle do uso e
ronal. Como esses receptores são muito frequentes nas si-
na repressão ao tráfico de drogas em geral, o que alargou a
napses do sistema nervoso central, podendo chegar a 50%
abrangência do termo narcotic.
conforme a área, nota-se como são importantes no funcio-
Em 1988, em Viena, nova reunião dos estados da ONU
namento cerebraF 7• Os benzodiazepínicos são metabolizados
promulgou a Convenção sobre o Tráfico Ilícito de Entorpe-
no fígado por hidroxilação ou por conjugação com o ácido
centes e Substâncias Psicotrópicas, que deu mais instrumen -
glicurônico, conforme o subgrupo a que pertençam 77• Não se
tos para combater o tráfico internacional de drogas e criou
tem demonstrado a existência de quadros característicos de
uma lista vermelha de produtos químicos usados como pre-
dependência psíquica ou física nos usuários crônicos de ben-
cursores para o fabrico das substâncias controladas83•84 • No
zodiazepínicos, embora surjam alguns sintomas em alguns
Brasil, as novas diretrizes foram promulgadas pelo Decreto
pacientes. É um tema ainda aberto a discussões.
154 de 26/07/9181•
Nossa legislação atual sobre o combate ao tráfico e ao
Opiáceos
abuso dessas e de outras substâncias psicotrópicas apoia-se
É preciso, incialmente, esclarecer que o grupo dos opiá- na Portaria 344 da ANVlSA, na Lei 11.343 de 23/8/2006 e no
ceos inclui alcaloides presentes no ópio, como a morfina, Decreto 5.912 de 27/7/2006, que a regulamentou. De acordo
substâncias semissintéticas deles derivadas, como a heroí- com o parágrafo único do artigo 12 da Lei 11.343, drogas são
na, e outras totalmente sintetizadas em laboratório, como substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 411

especificadas em lei ou relacionadas em listas a tualizadas pe- Heroína - É a diacetilmo rfina. É produzida a partir da
riodicam ente pelo Poder Executivo da União81• As listas são as m orfina, que, por sua vez, provém do ópio, extraído da pa-
que constam naqueles documentos internacio nais ratifica- poula. Há duas regiões geográficas impo rtantes na sua pro-
dos pelo Brasil. dução: Sudeste asiático, com grau de pureza de 80 a 90%, e
Resumindo, o termo 'ento rpecente' do nosso vernáculo Ásia Meno r, de qualidade inferior. Sob a forma de pó, costu-
refere-se aos opiáceos e inclui as substâncias conhecidas como m a ser adulter ada por pós brancos baratos, como bicarbona-
narcóticos no m eio médico. Mas não é a mesma coisa que tos, talco, farinha, barbitúricos etc.
'narcotic' do texto em inglês das convenções internacionais, Na maioria das vezes, a droga é injetada por via venosa
pois que estas incluem o utros psicotrópicos não opiáceos. depois de ser dissolvida em água, a quente, em uma colher
Devemos lembrar que o conceito legal de droga expresso na ou coisa que o valha. São comuns o uso de seringas improvi-
lei antidrogas difere do farma cológico ado tado pela OMS, sadas e grande falta de cuidados de antissepsia, o que torna
que diz: droga é qualquer substância que, introduzida no or- o dependente exposto a uma série de infecções por diversos
ganism o, é capaz de modificar uma ou mais de suas fu nções. agentes (HIV, hepatites B e C, endocardites bacterianas). O
Já for am descritos três tipos de receptores para os opiá- dependente pesado, intenso, apresenta esclerose de várias
ceos em geral:µ (mi), K (kapa) e 8 (delta). Estão localizados em veias superfi ciais como consequência de flebite, principal-
todo o sistema nervoso central, no sistema nervoso autóno- m ente nos antebraços e na prega dos cotovelos. Nos países
mo e nos glóbulos brancos do sangue. Servem de local de li- em que há distribuição de seringas esterilizadas aos usuários,
gação para as endorfinas, encefalinas e dinorfinas, peptídeos são menos comuns tais alterações venosas 13•85•
produzidos por um sistema de analgesia natural do sistema Estima-se que haja 500 mil a um milhão de heroinóma-
nervoso. Estabelecida a ligação, o indivíduo esquece a dor, nos na Europa e quase o mesmo número nos EUA85 • Entre
os derivados do ópio, a heroína é a droga que está envolvida
sente-se bem-disposto, mesmo eufórico. O efeito dos opiá-
com maior frequência nos casos de morte por superdosa-
ceos é semelhante ao dessas substâncias naturais. A hero ína é
gem. Após a injeção, ela é rapidamente hidrolisada a 6-m o-
um agonista que atua principalmente nos receptores µ.
noacetil-morfina e, em seguida, a morfina 5• Sua meia-vida
Morfina - É o principal alcaloide entre os extraídos do
no or ganism o é de 3 a 10 minutos, enquanto a da mo rfina
ópio. Po r causa de sua ação sonífer a, Serturner, que conse-
gira em torno de 1 hora e 50 minutos a 4 horas85• Nos casos
guiu isolá-lo, deu-lhe o nom e morfina com o hom enagem a
de morte rápida, as pesquisas no sangue do cadáver revelam
Morfeu, deus d o sono78 •
quantidades aproximadam ente iguais dos dois metabólitos.
A morfina passou a ser utilizada na medicina como anal-
Dosagens de morfina no sangue dessas vítimas revelam 0,5
gésico de grande potência. Atua m ais nas dores viscerais e a 3 m g/L. Se o indivíduo sobrevive algumas horas, a taxa de
pouco nas de origem neuropática. Age em neuró nios da morfina diminui rapidamente no sangue, chegando a 0,01
coluna posterior da medula e em outros centros nervosos, m g/L, e aumenta nos tecidos, na urina e na bile. Em m ate-
inclusive do sistema límbico. Modifica o modo do paciente rial colhido vá rias horas depois da morte desses indivíduos,
encarar a dor intensa, tornando-o mais tolerante e afastando a dosagem no cérebro chega a ser 3,5 vezes maior que a d o
o medo e a ansiedade relacionados com a sensação dolo rosa. sangue5. Os valo res achados, porém , não servem para confir-
Doses maiores por via intravenosa chegam a causar prazer e mar a superdosagem, pois pessoas que se aplicaram hero ína
euforia. Com a disseminação do seu uso, começaram os mé- e morrer am de outra causa (por exemplo, homicídio) apre-
dicos a reconhecer o fenómeno da tolerância, que os obriga- sentam dosagem semelhante. Em sobreviventes, é possível
va a aumentar as doses progressivamente com a repetição do encontrar morfina na urina dias ou semanas após, e na bile,
uso. As causas da tolerância são o aumento da metabo lização até depois de 1 m ês5 .
e uma espécie de adaptação celular. Mas o maior óbice ao Os opiáceos, e a heroína em particular, atuam nos re-
seu uso foi a observação de crises de abstinência quando da ceptores µ do sistema simpático de fo rma inibitó ria. O uso
descontinuação da m edicação78 . continuado da droga diminui a produção de noradrenalina,
Doses de 50 mg já são tóxicas par a pessoas não tolerantes e os receptores adrenérgicos torn am -se hipersensíveis para
e produzem embotamento progressivo da consciência, tor- compensar a falta do seu neurotransmissor. Por causa des-
por e com a. Aumentando a dose, a frequência respiratória e sa hipersensibilidad e, quando se suprime a hero ína ocorre a
a amplitude d os m ovimentos diminuem, levando a insufi- crise de abstinência, que tem características de uma descarga
ciência respiratória por ação depressora central - os centros adrenérgica85•
passam a não responder aos estímulos decorrentes da hiper- A causa da morte nos acidentes de superdosagem não é
capnia e da hipoxia. Embora haja pouca ação direta sobre o de explicação fácil. Há dependentes que passam anos usando
músculo cardíaco, a pressão arterial cai por causa de vasodi- a droga sem demonstrar distúrbios graves da saúde orgânica.
latação periférica generalizada (ação direta na túnica mus- Admite-se que a morte nesses acidentes possa ocorrer por
cular, ação vagai e liberação de histamina) e bradicardia por três motivos: 1) chegada de uma partida mais pura da droga
ação vagai central. Admite-se que a dose letal pa ra humanos no mercado; 2) associação com outras drogas, por exemplo a
seja de 250 mg. A vítima morre por insuficiência respirató ria cocaína; 3) diminuição da tolerância por ter passado alguns
e choque vascular78• dias sem se drogar5•
412 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

Psicoanalépticos para qualquer das três aminas neurotransmissoras, confor-


me a droga em particular. Por exemplo, a fenfluramina tem
As substâncias estimulantes do psiquismo mais conheci-
ação predominante sobre a serotonina, o que explica as al-
das são as anfetaminas, a cocaína, a nicotina e a cafeína. Seu
terações valvulares cardíacas parecidas com as observadas
uso abusivo está relacionado a aspectos culturais e à busca de
na síndrome do carcinoide (um tumor intestinal de baixa
desempenho superior ao usual das pessoas. Apresentaremos
malignidade), na qual as células tumorais produzem grande
alguns aspectos peculiares aos seus principais representantes.
quantidade de serotonina.
Anfetaminas - A anfetamina já foi usada como medi-
Além dos efeitos no sistema nervoso central, as anfeta-
camento por sua capacidade de prolongar os estados de vi-
minas agem na periferia por ação simpaticomimética, cau-
gília, aumentar a concentração nas tarefas e vencer o cansa-
sando hipertensão arterial, taquicardia, hipertermia, sudo-
ço.Acredita-se que, durante a Segunda Guerra Mundial, a
rese, dilatação das pupilas e boca seca86. Não são comuns os
metanfetamina foi usada para manter os combatentes mais
acidentes de superdosagem e morte pela ação da s anfetami-
atentos, principalmente em missões de patrulha, tanto pe-
nas. Os casos relatados estão ligados mais ao uso do ecstasy
los aliados como pelos alemães e japoneses. Há referência (MDMA) e da Eva (MDEA- metilenodioxietilanfetamina)87 .
ao consumo de doses tóxicas pelos pilotos camicases japo- Os achados mais importantes foram síndrome hipertérmica,
neses86. Posteriormente, o uso das anfetaminas foi amplia- com acidose metabólica, coagulação intravascular dissemi-
do, sendo indicadas como um adjuvante no tratamento da nada, necrose de músculos esqueléticos e insuficiência renal
obesidade, por seu efeito moderador do apetite. Mas foram aguda; hepatite tóxica grave; e arritmias cardíacas fatais 86 • É
abandonadas por causa dos seus efeitos colaterais, como a interessante lembrar que, por vezes, os acidentes fatais pelo
ocorrência de crises hipertensivas, arritmias e hipertermia. uso de drogas ilícitas se devem à adulteração do produto pela
H ouve época em que a metanfetamina (Pervitin) era mui- adição de outras substâncias. No caso da MDMA, a substi-
to usada por estudantes do ensino médio (antigo 2" grau) e tuição pela parametoxianfetamina (PMA), uma droga muito
universitários com a finalidade de varar a madrugada estu- mais ativa, levou dois adolescentes de Chicago à morte88 •
dando nas vésperas das provas. Caminhoneiros a consomem A excreção das anfetaminas é feita pelos rins. Alguns
para superar o sono e poderem dirigir à noite, de modo a membros do grupo também podem ser excretados pela sali-
fazerem maior número d e viagens. É o chamado "rebite''. va e pelo suor, como a metanfetamina.
Atualmente, algumas anfetaminas foram proscritas do Cocaína - A cocaína é o principal alcaloide da folha da
nosso arsenal terapêutico, sendo sua prescrição considerada coca, um arbusto natural da zona tropical dos Andes, tam-
ilícita, de acordo com a Portaria 344 de 12/05/1998 da Secre- bém chamado de epadu - Eritroxylon coca. Há referência ao
taria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. Assim, uso das folhas da coca no século VI a.C. pelos povos andi-
não podem ser legalmente prescritas: metilenodioxianfeta- nos, que já as mascavam para combater o cansaço e mesmo
mina (MDA), metilenodioximetanfetamina (MDMA), tam- a fome89. Atualmente, o maior cultivo é feito na Colômbia,
bém conhecida como ecstasy (êxtase), parametoxianfetami- Bolívia e Peru, onde o plantio para uso local dos camponeses
na (PMA) e benzofetamina 86• é permitido e as restrições de ordem legal à produção refe-
Esse grupo de substâncias, na realidade, é formado por rem -se apenas à quantidade. Mas a produção clandestina é
dezenas de compostos cuja ação farmacológica pode ter três muito maior e abastece o tráfico internacional. O Relatório
variantes: basicamente psicoanaléptica, estimulante com Anual sobre Drogas do United Nations Office on Drugs and
ação alucinógena, ou predominantemente sedativa. O protó- Crime de 201 1 revela que, ao longo da primeira década do
tipo do primeiro grupo é a própria anfetamina. No segundo 32 milênio, a Colômbia continua a ser o maior produtor de
grupo, sobressaem a MDA e a MDMA, que são distribuídas cocaína. Mas houve um recuo da produção, em parte com-
por traficantes e têm efeito predominantemente alucinóge- pensado pelo aumento da produção no Peru e na Bolívia 79.
no. No terceiro grupo está a fenfluramina, droga mais recen- Ao longo do tempo, houve aumento do consumo no sé-
te, que foi muito usada como moderadora do apetite. Mas culo XIX, quando se tornaram populares os vinhos de coca,
seu uso foi proscrito por causa da morte de usuários devido sendo mais usado na Europa o de Mariani, considerado re -
a hipertensão pulmo nar grave por alterações degenerativas vigorante. A famosa Coca-Cola, inventada nessa época nos
observadas nas válvulas aórtica e mitral do coração86• EUA, continha cocaína até o ano de 1905, quando foi proi-
As anfetaminas em geral aumentam a quantidade de bida sua presença no xarope da bebida. O grande psiquatra
monoaminas neurotransmissoras, como a dopamina, a no- Freud (1 856- 1939) prescrevia fórmulas com cocaína aos seus
radrenalina e a serotonina, nas sinapses (comunicações en- pacientes. Mas, com a observação da dependência e dos si-
tre neurônios), principalmente nas áreas relacionadas com nais da abstinência, passou a combater o seu uso, chegando
o prazer. Três mecanismos provocam esse aumento: 1) ini- a considerá-la um dos grandes flagelos da humanidade89 ·90•
bição da recaptação daqueles neurotransmissores por parte Em 1914, os EUA a proibiram, assim como a maioria das
do bulbo terminal dos axônios; 2) aumento da sua libera- nações ocidentais. Daí por diante, seu uso foi descontinuado.
ção pelos mesmos bulbos; 3) inibição da monoamina-oxi- Veio a se tornar frequente, novamente, a partir dos anos 70,
dase (MAO), enzima que destrói esses neurotransmissores86. quando seu consumo generalizou-se nos embalos noturnos
Cada uma dessas três vias po de estar mais ou menos ativa das classes mais favorecidas. Com a nova demanda social e
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 413

po r continuar a pro ibição d o u so, surgiram os traficantes lis (cal virgem, am ônia) 94·95 ou pela adição de água e ácidos
profissionais, que passaram a m ovimentar qua ntias elevadís- fortes (em geral o sulfúrico) 95. Obtém -se uma pasta cuja cor
simas. Nos an os 80, surgem os cartéis de Med ellin e de Cali, vai do amarelado ao marron , que os agricultores vendem aos
na Colômbia 90 • trafi cantes90 . Segundo algumas fo ntes, esta pasta ma rron se-
O co nsumo mundial de cocaína est á concentrado prin - r ia o produto ch amado de merla, que tem d e 40 a 70% de
cipalmente na América do Norte; m as t ambém é intenso n a cocaína96 . A partir d aí, há diferenças e a literatura disponível
Europa Ocidental e Central. Nos últimos 5 anos, porém, essa não é clara. Segundo O liveira e Wagner 95 , tanto uma com o
relação atenuou -se. A diferença d e consumo, que já foi o quá- outra forma de extração conduzem à chamada pasta-base de
druplo, tende a se igualar por ca usa d e redução do con sumo cocaína pela ação de produtos químicos distintos. Como a
n orte-am erican o e aumento d o europeu. A prevalên cia d e extração produz um filt rad o e um resíduo, o filtrado é apro-
u so a nual na América do Norte caiu d e 2,5% em 2006 para veitad o para fa zer a past a-b ase e o resíduo, desca rtado . Al-
1,9% em 2009. Calcula-se que o va lor d o m ercado consumi- guns t raficantes reaproveitam o resíduo para fazer a merla
dor esteja em to rno de 37 bilhões d e dólares na América do e o oxi. Este seria um crack oxidado, obtido pelo tratamento
Norte e de 33 bilhões na Europa. H á uma tendência de alta d aquele resíduo com cal e querosen e, d aí o seu n ome97. O
do consumo na América do Sul, África e Ásia 79. oxi chegou ao Brasil pela fronteira d o Acre com a Bolívia.
No Brasil, o u so da cocaín a, nas diversas fo rmas de apre- Admite-se que seja duas vezes mais po tente d o que o crack
sentação, fo i pesquisado pelo INPAD (In stituto Nacional d e e com potencial de ca usar dependência já nas primeiras d o-
Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Ou - ses97. Seu perigo para a sociedad e é maior por ser b em mais
tras Drogas) da UNIFESP (Universidade Federal do Estado barato do que o crack. De acordo com Ribeiro 90, a pasta-base
de São Paulo) em duas am ostragens d omiciliares aleató rias tem cerca de 90% d e sulfato de cocaína. Conforme o proces-
feitas n os anos de 2006 e 2012. Na primeira, for am colhidos samento químico que se seguir a partir dela, ch egar-se-á ao
dad os de 3.007 pessoas maiores d e 14 a nos e, na segunda, crack ou ao cloridrato de cocaína, que é a cocaína refinada9º·95 .
4.607 na m esma faixa et ária. Os autores da pesquisa a nali- Esta apresentação costuma ser u sada por aspiração nasal ou
saram o uso da cocaína com o pó, ch eirado ou injetado n a injetada na veia já que é hidrossolúvel. Não serve para ser
veia, e como pedras de crack ou merla. São apresentações da fumada, com o o crack, a m erla e o oxi, porque o cloridrato se
droga que diferem n a fo rma de preparo a partir das folhas d ecom põe em t em peraturas elevadas antes de atingir o pon-
de coca e que serão descritas mais adiante. Verificaram que, to de sublimação (passar ao est ado gasoso) 89·9º·92 • Estas três
n o tot al, a prevalência anual de u so n o Brasil, quer dizer, a últimas form as de apresentação são vendidas sob a form a
proporção de pessoas que u saram a droga pelo menos uma d e pedras, que são colocadas em cachimbos improvisados
vez no perío do de um a no que antecedeu a entrevist a, fica ou em latas recicláveis de alumínio. Sua cor varia do bran co
em 2% d a população estudada, havendo variações region ais ao m arron mais ou m enos escuro. O crack produ z estalidos
qu anto ao tipo de apresentação d a droga e quanto à quanti- quando aquecido nos cachimbos, daí o seu nome.
dad e usad a. A m aior prevalên cia anual foi de 2,6% na região A cocaína é a d roga ilícita m ais frequentemente u sada pe-
Centro Oest e. No tot al de usu ários brasileiros, 78% cheiram las pessoas que buscam atendimento nas unidad es de pron-
o pó, 5% fumam o crack, ou a m erla, e 17% con somem am - to -socorro n orte-am erican as n a atualidade. Além disso, é a
b as as formas. Concluíram que o Brasil é, n a atualidade, o responsável pela maioria das mo rtes relacio nad as ao u so de
2-º- m ercad o mundial de con sumo de cocaín a, fica ndo atrás d rogas n os serviços médico-legais dos EUA45 . Mar zuk27 en -
apen as dos EUA. Mas é o maior mercado mundial de con - co ntrou benzoilecgonina, um m etabólito da cocaína, na uri-
sumo d e crack9 1• Ab ordando outros aspectos d o con sumo n a d e 26,7% d as pessoas mortas por traumatismo na cid ade
n acion al, como o perfil d o usu ário, o utro trabalho, realizado d e Nova York entre 1990 e 1992. Isso significa que um em
pelo m esmo grupo de pesquisadores, d escobriu que o u suá- cada qu atro indivíduos vitimados por mo rte violenta est ava
rio típico d e cocaína é jovem e d o sexo m asculino. Focando sob o efeito da cocaína o u a havia consumido, no máximo,
o grupo de crianças e adolescentes em situação de rua nas 27 at é 4845 ou 72 hor as antes d a m orte5. Se se fizer a pesq uisa n os
capitais dos estados b rasileiros, Noto e cols. verificaram altas cabelos, as taxas de uso pela população aumentam de três a
taxas d e prevalência d e uso anual de cocaína. Nest e gru po, a cinco vezes45 . Nu ma cidad e do interior de São Paulo, o ser-
média brasileira foi d e 12,6% e as m aiores taxas fora m en - viço médico-legal d etect ou a presen ça de cocaína n o corpo
contrad as no Rio d e Jan eiro (45,2%), em São Paulo (3 1,0%) d e 14% das vítimas d e mo rte violenta92. A cocaína é a droga
e em Boa Vist a (26,5%)92.93 . m ais relacionad a com o tráfico e com o crime79 •
A cocaína é apresentada a con sumo sob form as distintas, Os efeitos fa rm acodinâmicos d as fo rmas d e cocaína são
decorrentes da fase d e produção em que o produto é reco- semelhantes, m as sua farmacocinética é diferente. O início
lhido. A primeira etapa é a secagem ao sol d as folhas, que d a ação, o tem po n ecessário para atingir um máximo de
n ão deve passar de 3 dias porqu e com eça a haver perda do efeito e a duração dependem da via d e introdução. A que
teor da droga por d ecom posição natural. A seguir, as folhas pro duz efeitos mais precoces e de meno r duração é a respi-
secas são trituradas, em geral com auxílio de um cortador d e r atória, através do fumo d a pedra de crack, m erla ou oxi. No
grama po rtátil. A ext ração do alcaloide pod e ser feita pela outro extrem o está a for ma ch eira da, que leva m ais tempo
adição de solventes orgânicos (querosene, gasolina) e álca- para fazer efeito, cuja duração é, n o entanto, muito mais lon -
414 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

Tabela 19. 3. Tempo de início da ação e da duração dos efeitos da cocaína


Via da lnlrodlflo Langa RA• Nappo 8" Pmagll P
Nasal
Início 1a5 min 10 a 15 min
Duração 1 h 30 min 30 a 45 min 60 min
Pulmonar
Início 3 a 5 seg 10a15seg Imediato
Duração 5 a 15 min 3 a 5 min 10a30min
Intravenosa
Início 3 a 5 min
Duração 10 a 15 min 10 a 30 min

ga. É possível que o prolongamento da ação aqui se deva à nervosa e os recepto res do ó rgão efetor4 5•90•99• Impedidas de
vasoconstrição que ocorre na mucosa nasal, pelo seu efeito voltar para a terminação nervosa que as liberou, essas ami-
sim pa tico mimético. nas neurotransmissoras acumulam-se na fenda e saturam
Depois de absorvida, a cocaína é rapidamente transpor- os receptores, mantendo uma ação intensa e prolongada
tada pelo sangue ligada a proteínas plasmáticas, como a al- (Fig. 19. 12). Admite-se que a cocaína também iniba a ação
bumina e uma glicoproteína ácida. É transformada em éster da monoamina-oxidase, enzima responsável pela inativação
de metilecgonina pelas colinesterases hepática e plasmática; desses neurotransmissores9º·99• O acúmulo de dopamina nos
ou se degrada a benzoilecgonina por perda de um radical me- receptores Dl e D2 do sistema límbico seria responsável pela
tila. Esses metabólitos são inativos45•99 . Mas as enzimas mi- euforia do usuário e pela busca compulsiva da droga por
crossomais do fígado transformam 6% dela em norcocaína, parte dos dependentes90•99•
um metabólito ativo 99 • Se a pessoa ingere bebida alcoólica Os efeitos psíquicos da cocaína são euforia, hiperativi-
ao mesmo tempo, forma-se, no organismo, outro compos- dade, sensação de bem-estar, au mento da autoestima, che-
to - cocaetileno - com a mesma ação farmacodinâmica da gando à onipotência. Nos usuários que adotam a via pul-
cocaína89•99 • Como o metabolismo é muito rápido, após cerca monar ou a venosa, tais sensações são muito amplificadas
de 45 a 90 minutos ela desaparece do sangue 27•45•99, restando e conhecidas como high66 ou fiash 89 • Este estado po de ser
apenas os seus metabólitos, que são excretados. Somente em acompanhado por redução do juízo crítico, impulsividade,
to rno de 1o/o da droga aparece na urina inalterada. A excre- agitação psicomotora, insónia e pânico 66• Conforme va i
ção dos metabólitos na urina perdura no máximo de 3645 a passa ndo o efeito da droga, sobrevem depressão, inquie-
72 horas 5• O aquecimento que a droga sofre no ato de fumar tude e ansiedade, que levam à necessidade de novamente
pro duz um derivado, a metilecgonidina, que é absorvido e consumir. Por vezes, o usuário fica alguns dias em consumo
depois excretado. Pode servir como marcador para o perito continuado (binges )66 •
químico afirmar que o produto consumido foi o crack89• Mas o maior perigo para o usuário é a ação simpatico -
A cocaína tem efeitos locais e sistémicos. No local, por mimética. Tem-se como certo o aumento das mortes súbi-
contato com mucosas ou por injeção parenteral, tem ação tas em pessoas intoxicadas pela cocaína quando comparado
vasoconstritora porque prolo nga os efeitos da noradrenalina com grupos de pessoas não usuárias5 A 5.s 7• Tanto ocorrem
sobre os recepto res do músculo liso das paredes vasculares, crises hipertensivas fatais e hemorragia cerebral87 como pa-
aumenta a produção da endo telina (um vasoconstritor pro- radas cardíacas por arritmias e infarto do miocárdio5•45 • Os
duzido pelas células endoteliais) e diminui a produção de casos de infarto são causados pelo efeito vasoconstritor so-
óxido nítrico, que é vasodilatador45• Essa ação vasoconstrito- bre as artérias coronárias, pela hipertensão arterial e pelo
ra pode ser tão intensa a ponto de causar isquemia e necro- aumento do consumo de oxigénio do miocárdio em função
se dos tecidos do local66• Isso explicaria os casos de necrose da taquicardia e maior contratilidade muscular. Além disso,
e perfuração do septo nasal dos usuários que cheiram o pó a cocaína aumenta a tendência à trombose arterial45• O diag-
com muita frequência. Além disso, é anestésico local porque nóstico do infarto em usuários de cocaína não é fácil, pois é
impede a despolarização das membranas celulares e a con- comum que eles se queixem de dor torácica não traumática,
dução do impulso elétrico, por bloquear os canais de sódio. parecida com a causada por isquemia do miocárdio. E o ele-
Sem a entrada de sódio, a despolarização da m embrana das trocardiograma pode não ajudar, uma vez que há casos com
terminações nervosas não se completa45 • traçado sugestivo de infarto sem que haja a lesão cardíaca,
A ação sistémica da cocaína deve-se ao bloqueio da re- assim como casos de real infarto sem alterações característi-
captação da noradrenalina e da dopamina presentes nas cas. Além disso, não se observa relação com a dose, a via de
fendas sinápticas localizadas no contato entre a terminação administração ou a repetição do uso45 •
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 415

Casos de superdosagem ocorrem, o ra po r liberação d e A caracterização da morte por superdosagem requer que o
uma partida m ais pura d a droga no m ercado, ora por se exame toxicológico revele altas concentrações tanto dos me-
tratar de usuário ainda não tolerante exposto a d ose alta. tabólitos como da cocaína não metabolizada no sangue do
A adulteração do pó pode ser feita pela adição de diluentes cadáver 5• Co ntudo, é preciso que se leve em consideração que
inertes como talco, amido, sulfato de magnésio e açúcares a cocaína presente no sangue sofre uma degradação ao longo
par a aumentar o volume; ou por meio de o utras substâncias d o tempo de estocagem no laboratório antes da dosagem,
ativas como lidocaína, anfetamina e outras89• mesmo que mantido a 4°C. Tal redução de concentração
Os sinais e sintom as das intoxicações graves foram divi- pode ser atenuada pela mistura de fluoreto d e sódio à amos-
didos em três fases por Maldonado e Albornoz 100 . Na primei- tra colhida5 . O resultado da dosagem no humor vítreo parece
ra, distúrbios psíquicos, que vão desd e a ansiedad e e insta- mais fiel, pois a droga fica resguardada da ação das enzimas
bilidade emocional até alucinações, e sinais com o náuseas, presentes no sangue5•
vômitos, bradicardia e hipertensão arterial (ou taquicardia e A autopsia das vítimas de superdosagem nada revela de
hipo tensão), arritmias, taquipneia, fasciculações musculares específico. O que se pode encontrar são estigmas que carac-
e midríase. Na segunda, convulsões parecidas com grande
mal, dispneia, cianose e acidose láctica. Na terceira, paralisia
muscular, arreflexia, insuficiência respiratória e circulatória,
coma e m orte100•
Um acidente pouco comum é a m orte de traficantes que
ingerem invólucros de plástico contendo a droga para pod e-
rem burlar a vigilância em aeroportos e em postos de fron-
teira. É a síndrome do corpo-embalagem. Campos Neto regis-
trou mais de 100 casos em Cáceres, fronteira com a Bolívia.
Segundo sua experiência, os traficantes costumam envolver
a pasta de cocaína em embalagens feitas com bo rracha sinté-
tica de dedos d e luvas cirúrgicas e balões de festa infantil, d e
mo do a moldar cápsulas que são engolidas pelas "mulas hu-
manas". Desse mod o, tentam burlar a fiscalização d a polícia
de fronteira. Confo rme seu relato, os traficantes tentam tor-
nar as cápsulas imunes ao exa me r adiológico envolvendo -as
com outros materiais, tais como insulfilm , m as sem êxito
( Figs. 19.14 a 19 .1 6). Por vezes, a rotura acidental de um d os
pacotes libera d ose letal de cocaína dentro do estô mago 10 ' · 102 • Figura 19.15. Corte transversal de TC do abdômen de uma "mula hu-
Os acidentes de superdosagem correspondem a 1/3 d as mana", no qual aparecem com nitidez absoluta as cápsulas de cocaína.
mo rtes violentas relacionadas com o seu uso 27 • Knigh t8 7 Imagem cedida gentilmente pelo Dr. Manoel F. Campos Neto, perito
considera letal uma d ose d e 1.000 mg por via intravenosa. oficial médico-legista da POLITEC Regional de Cáceres, MT, Brasil.

Figura 19.14. Imagem por tomografia computadorizada plana em que Figura 19.16. Numerosas cápsulas de cocaína expelidas por uma
são nítidas as imagens das cápsulas em topografia gástrica. Imagem "mula humana". Imagem cedida gentilmente pelo Dr. Manoel F. Campos
cedida gentilmente pelo Dr. Manoel F. Campos Neto, perito oficial médico- Neto, perito oficial médico-legista da POLITEC Regional de Cáceres, MT,
legista da POLITEC Regional de Cáceres, MT, Brasil. Brasil.
416 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

terizam o usuário de drogas injetáveis em geral. Externa- THC varia muito conforme as partes da planta e o local onde
mente, a presença de flebite e esclerose das veias superficiais, é cultivada. Em média, é de 3%, mas pode chegar a 20% nas
principalmente nos antebraços e cotovelos (Fig. 19.1 7). A inflorescências femininas não fertilizadas 104 . Karniol achou,
perfuração do septo nasal é rara87 • Internamente, podem-se no máximo, 2,5% nas amostras de maconha brasileira ana-
descobrir abscessos relacionados com a propagação de focos lisadas. Outros canabinóis, como o delta-8-canabinol, o ca-
infecciosos superficiais. A cocaína, segundo alguns autores 45 , nabidiol (CBD) e o canabinol (CBN), têm atividade muito
tem, também, ação imunodepressora, o que facilita a disse- reduzida ou nula. O CBD existe em grande teor nas plantas
minação das infecções. A complicação mais grave nesses ca- usadas para a feitura de cordas de cânhamo. Considerando-se
sos é a endocardite bacteriana, causada com maior frequên- que um cigarro pesa 0,5 a 1 g, se o teor for de 1%, a dose ina-
cia por estreptococos45•87• Entre as drogas de abuso injetáveis, lada fica em torno de 5 a 10 mg. Admite-se que com 2 a 3 mg
a cocaína é a que traz o maior risco de endocardite para o já se "curte um barato" 104 .
usuário, possivelmente pela ocorrência de lesões valvulares No Norte da África e no Oriente Médio, a planta é culti-
mecânicas decorrentes do aumento da pressão arterial e da vada e dela se extrai a resina das extremidades, brotos e in-
taquicardia. É possível que isso também explique o fato de as florescências. Ela é desidratada de modo a formar pequenas
lesões acometerem mais o lado esquerdo do coração, ao con- pedras, que são fumadas em cachimbos. É o haxixe, que tem
trário das outras drogas injetáveis, em que a endocardite lesa concentração muito maior de THC do que os cigarros feitos
de preferência o lado direito 45 • Os pulmões podem apresen- das folhas e inflorescências secas e prensadas103·'º4 . Há lendas
tar granulomas tipo corpo estranho relacionados com grâ- e fatos reais relacionados ao haxixe e narrados ao longo da
nulos de amido, talco ou outros pós brancos que costumam história. Para aprofundar o tema, consultar Toscano Jr' .
ser misturados à cocaína antes da venda aos usuários. Após Após a inalação, a absorção é rápida, mas os efeitos da
a injeção endovenosa, essas partículas encalham nos vasos droga custam um pouco para surgir e dependem da expe-
capilares ou pré-capilares pulmonares e despertam a reação riência prévia do fumante e do ambiente em que se faz o
inflamatória granulomatosa. O exame histopatológico feito consumo. O tempo de retenção da fumaça nos pulmões in-
com luz polarizada revela a birrefringência desses materiais terfere na quantidade absorvida pelo usuário. Na dependên-
no centro dos granulomas87 . cia desses fatores, o início dos efeitos pode aparecer já nas
primeiras tragadas'º4 ou em 10 a 30 minutos38•62·99 • O máximo
Psicodislépticos da ação ocorre depois de pouco menos de 1 hora, quando já
há taquicardia e o nível de THC no sangue começa a dimi-
São drogas que perturbam, modificam qualitativamen- nuir'º\ e dura por 2 a 3 horas 38 .62·99• O THC é metabolizado
te a atividade m ental, levando o indivíduo a ter percepções por hidroxilação e carboxilação, principalmente no fígado.
irreais. Constituem um grupo quimicamente heterogéneo, No homem, já foram encontrados 20 produtos eliminados
que inclui produtos sintetizados em laboratório, substâncias na urina e nas fezes, numa proporção de 65 e 18%, respec-
de uso industrial e princípios ativos de plantas e cogumelos. tivamente. Após uso eventual, os metabólitos continuam a
Po r vezes, são designados genericamente como alucinóge- ser eliminados durante 2 a 6 dias, conforme o autor consu1 -
nos, ou substâncias psicodélicas. Alguns autores'º 3 conside- tado62·99·104. Quando se trata de usuário crónico (várias vezes
ram alucinógenos apenas as substâncias cuja ação típica é a por dia durante meses a fio ), é possível ter exame de urina
modificação da percepção, excluindo aquelas em que as alu- positivo 20 a 50 dias depois da última tragada62.
cinações só ocorreriam em doses tóxicas, como certas anfe- O reaparecimento dos efeitos depois de terem sumido de -
taminas e a fenciclidina (um anestésico). Assim, seriam alu- ve-se à liberação da droga que se fixa no cérebro e constitui o
cinógenos o LSD, a psilocibina e a mescalina. Inclusive, essas que se chama de flashback. Por isso, é muito difícil correlacio-
três substâncias apresentam tolerância cruzada. Analisare- nar os efeitos psíquicos com os níveis de THC no sangue'º4 •
mos os aspectos toxicológicos de algumas dessas substâncias. Atualmente, sabe-se que existem um sistema de recepto-
Maconha -No Brasil, recebe também outros nomes, con- res canabinoides no cérebro e uma substância endógena (do
forme a região: birra, dirijo, <liamba, fumo-d'angola, fumo- próprio organismo) semelhante ao THC, a anandamida, que
de-caboclo, erva, pango etc 35• Acredita-se que foi trazida para funciona como um tipo de neurotransmissor. Essa substân-
o Brasil pelos escravos africanos já no século XVI. Seu nome cia não é solúvel em água nem fica acumulada em vesículas
científico é Can nabis sativa. As fibras dos seus galhos eram nas terminações nervosas pré-sinápticas. Parece que atua in-
usadas na confecção de cordas, por serem muito resistentes. teragindo com os outros neurotransmissores'º4 • A presença
É a "droga" ilícita mais consumida mundialmente, estiman- de numerosos receptores para o THC nos núcleos da base e
do-se que cerca de 140 milhões de pessoas fumem cigarros no cerebelo poderia explicar os sinais de descoordenação e
de maconha'º4 feitos a partir da desidratação das inflores- a ataxia, no homem, e a catatonia observada em animais de
cências femininas, uma vez que a planta é monossexuada, e laboratório. As alterações da memó ria dependem de recep-
das folhas. A planta produz cerca de 400 substâncias diferen- tores localizados no hipocampo. A euforia e a sensação de
tes, entre as quais os canabinóis, presentes na sua resina88•99• estar sonhando relacionam-se com os localizados no córtex
O princípio ativo mais importante é o isómero levógiro do frontal. A sensação de prazer e a dependência estariam rela-
delta-9-tetraidrocanabinol, ou simplesmente THC. O teo r de cionadas com receptores presentes no nucleus accumbens104 •
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 417

Os efeitos psíquicos do THC estão relacionados com a LSD (dietilamida do ácido lisérgico) - É o alucinógeno
percepção, o humor e a cognição. Descrevem-se uma dis- mais potente. Tem ação 3 .000 a 4.000 vezes maior do que a
torção da sensação das cores, que se tornam mais brilhantes, mescalina e cerca de 100 vezes a da psilocibina. Seu uso foi
aceitação prazerosa de sons normalmente irritantes e ava- grande nos anos 1960, pela revolução hippie. Foi quase aban-
liação distorcida do tempo, que parece passar mais devagar donado nos anos 1970, mas ressurgiu nos anos 1980. Na dé-
- minutos parecem horas38•8S. 104• O humor melhora, o indi- cada de 1990, nos EUA, cerca de 10% dos colegiais já haviam
víduo fica desinibido, simpático, de bem com a vida. Mas há experimentado a droga. No Brasil, seu uso é muito mais
alguns que apresentam mal-estar, ansiedade e sensação de restrito, apenas 1o/o dos jovens admite tê-lo utilizado 103 . Foi
pânico, principalmente as pessoas que temem os efeitos ma- sintetizado por Albert Hoffman a partir da ergotamina, ob-
léficos atribuídos à droga. Parece que o resultado depende tida do fungo fogo-de-santo-antônio ( Claviceps purpurea),
da experiência prévia do sujeito e do ambiente social em que infecta o centeio99•103• É de fácil transporte por meio de
que se dá o consumo 104 • Na área cognitiva, nota-se que a papéis de filtro embebidos pela solução aquosa. Os pedaci-
memória para fatos recentes fica prejudicada e que diminui nhos de papel têm dose de mais ou menos 30 a 50 µg de LSD.
a capacidade de concentração para tarefas que exijam várias Podem ser colocados em uma bebida ou sob a língua, sendo
etapas e maior atenção88 ·'º4 • Testes feitos com usuários crô- absorvido rapidamente. Após a absorção, é distribuído prin-
nicos da droga (mais de 10 anos) mostraram desempenho cipalmente para o fígado, os rins e os pulmões. Paradoxal-
intelectual inferior a um grupo-controle, mas a relação de mente, a concentração no cérebro é muito baixa, cerca de
causa e efeito não ficou comprovada88 • Há relatos de surtos 0,01 o/o da dose99 • Os efeitos psíquicos começam entre meia
psicóticos em pessoas com doença mental prévia e nas que a 1 hora depois da ingestão, atingem o máximo em cerca de
consomem doses altas, como as decorrentes do uso do haxi- 3 horas e duram até 7 a 9 horas99 ·'º3 • Um fato interessante é
xe62. Karniol' 04 , contudo, afirma jamais ter observado surtos que pode haver uma repetição dos efeitos até mais de 1 ano
psicóticos tanto em estudos de campo como em pacientes depois pela simples lembrança, pelo estresse ou pelo fato de
de enfermaria. o indivíduo se achar no escuro 38·'º3•
Os efeitos físicos agudos da maconha são taquicardia, Os efeitos psíquicos do LSD incluem alteração da percep-
sensação de boca seca e congestão da mucosa conjuntival. ção, do pensamento e do humor. Os distúrbios da percepção
transformam o mundo em um local onírico, do qual o indi-
A taquicardia é revertida pelo propr anolol, um bloqueador
víduo participa de modo pouco ativo, muitas vezes obser-
~-adrenérgico38 . Nos usuários cr ônicos, notam-se alterações
vando a si mesmo em meio a ambientes bizarros, geralmente
das vias respiratórias semelhantes às descritas nos fumantes
belos, povoados de alucinações visuais que se transformam
de cigarro, inclusive lesões tidas como pré-cancerosas88•104 •
ao longo do delírio. Há consciência plena das sensações, mas
Alguns acham que o THC agiria como agente promotor do
o indivíduo não tem controle de suas vivências. Torna-se
crescimento de células neoplásicas, por aumentar a produ-
introspectivo, e as reais sensações ganham um colorido de
ção de radicais livres88 • O uso prolongado pode causar dimi-
sonho vivido. O sentido e a significação dos objetos se so-
nuição do número de espermatozoides e ciclos anovulató-
brepõem ao seu valor real. Os elementos do ambiente costu-
rios, com prejuízo da função reprodutora do ser humano38•62 . mam se mesclar, de modo que a percepção de cada um perde
O risco de se criar dependência à maconha é baixo, cer- seu contorno e individualidade. As alterações psíquicas ao
ca de 9% dos usuários pesados. Para comparação, o mesmo longo da ação da droga podem vir em ondas que alternam
trabalho cita risco de 15% para o álcool, 23% para a heroína efeitos antagônicos: vigilância e distração, euforia e depres-
e 33% para o ciga rro. No caso da maconha, a retirada gera são. Pode-se passar de um estado de bem-estar para ansie-
crise de abstinência leve, cara cterizada por insônia, ansieda- dade, medo e pânico. Pode haver dificuldade em identificar
de e d or de estômago88 . as sensações reais, misturando-se as vias sensitivas (ver um
Atualmente, vários grupos de pesquisadores nacionais e som, ouvir uma luz) 38 •
estrangeiros advogam a liberação do uso medicinal da maco- Não se pode predizer como será a próxima "viagem''. Mes-
nha. Na Inglaterra, foi liberada para uso pró prio. Há uma fir- m o os que já experimentaram sensações agradáveis em con-
ma - Britain GW Pharmaceuticals - que está realizando um tatos prévios com a droga podem alguma vez sentir insegu-
estudo em larga escala com um spray para ser usado por via rança, medo e pânico 38 • O maior perigo do consumo do LSD
oral. Nos EUA, apesar da m á vontade do governo, existe na sem companhia é sentir-se to do-poderoso, capaz m esm o de
Califórnia um centro de pesquisas m édicas sobre a maconha, voar, e se lançar no espaço a partir de uma janela muito alta87 •
com dotação anual de US$ 3.000.00088• Embora através dos Psilocibina - É extraída de um cogumelo existente nas
séculos já se tenha usado a maconha para muitos males, o in- Am éricas, principalmente no México, na Índia e no Sudeste
teresse atual está centrado mais na sua capacidade de abolir da Ásia, o Psylocibe. Como são parecidos com outras espé-
as náuseas e os vômitos dos pacientes que recebem quimio- cies muito tóxicas, ocorrem acidentes fatais. São ingeridos
terapia para o câncer. Mas apenas 20 a 25% desses pacientes in natura ou depois de secos. A droga ativa foi isolada po r
conseguem controlar tais sintomas apenas com a maconha 88 • Albert Hoffman, o m esmo que sintetizo u o LSD'º 3• As espé-
Além disso, o THC é insolúvel em água, o que dificulta sua cies do cogumelo são várias e contêm uma outra substância
administração por via oral'04• também tóxica, a psilocina. Doses pequenas induzem efei-
418 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

tos parecidos com os do LSD. A ingestão de cerca de 15 g relatados na literatura. Quando isso ocorre, o mais comum é
do cogumelo cozido produz sintom as de envenenamento o uso de metais pesados como arsênio, tálio etc.
em 15 a 30 minutos. A pessoa sente excitação, ansiedade,
tonteiras, ataxia, fraqueza, desorientação; as pupilas ficam Arsênio
dilatadas, e há ainda boca seca, pele quente, vermelha e
O arsênio é um elemento do grupo V da classificação
seca, hipertermia e cólicas abd ominais. Crianças podem ter
periódica, que inclui também o nitrogênio, o fósfo ro, o an-
convulsões 30 . timônio e o bismuto. É um elem ento que não pode ser cha-
M escalina - Vem do cacto peio te (Lophophora williamsii),
mado de m etal nem de metaloide, uma vez que tem compor-
que não tem espinhos e cresce rente ao chão, de m odo a ficar
tamento químico de ambos os grupos. Pode ser tri ou penta-
para fo ra da terra apenas uma espécie de coroa com posta por valente e fo rmar óxidos arsenioso (Asp,) e arsênico (As20 5),
vários elementos cônicos largos, dispostos radialmente, lado
que, por sua vez, reagem com a água para dar ácido arse-
a lado, como se fosse m mamelões protrusos, de cor verde- nioso (H 3AsO 3) e ácido arsênico (H3AsO 4), respectiva mente.
escura. Esses mamelões, o u botões de mescal, são cortados em .
O ácid o arsênico, por exemplo, reage com os outros metais,
forma de discos e secad os ao ar livre. Par a consumo, são co-
formando sais com o os arseniatos de sódio (Na,AsO 4), de
locados na boca até amolecer e ingeridos, ou usados com o chumbo (Pb/As0 4)) e de cálcio (Ca3(As0 4)), usados como
chá, o u ainda sob a fo rma de pó em cápsulas105. A mescalina,
inseticidas e herbicidas na lavoura9• O arsênio está presente
o princípio ativo d o peiote, é a trimetoxifeniletilamina 38 ·103 .
em qualquer tecido animal, por vezes em concentração alta
Embora tenha estrutura parecida com a catecolamina, age com o em crustáceos e moluscos. Pessoas que comem mui-
sobre o receptor sero toninérgico 5HT2 • A dose usual é de 200
to desses frutos do m ar podem apresentar taxas acima das
a 300 mg, contida em seis a 12 botões de m escal'º'. Com o usuais, o que deve ser levado em consideração ao se interpre-
não é metabolizada pelo fígado, é excretada sem alterações tar resultad os de análises toxicológicas7• 11 •
pelos rins e tem ação prolongada.
O arsênio metálico puro não é tóxico. Mas são altamente
O peiote já era usado em rituais religiosos pelas tribos venenosos os compostos de arsênio trivalente. A maioria dos
indígenas à época d o descobrimento da América. Ao longo
casos de intoxicação deve-se ao óxido arsenioso, usado como
dos séculos, a religião indígena assimilou aspectos do cristia- inseticid a. Esse é um pó branco, insípido, que, por isso, pode
nismo, numa espécie de sincretismo religioso. Hoje constitui
ser colocado na comida ou bebida sem ser percebido pela
o peiotismo, praticado pela Igreja Nativa Americana, com
vítima". As intoxicações agudas causam um quadro súbito
cerca de 250.000 adeptos nas comunidades nativas no rte-
com vômitos, choque e depressão respiratória. A mo rte so-
americanas'º5. Por essa razão, o uso do peiote fica de fo ra da brevém em poucas hor as. A dose letal varia de uma pessoa
legislação que proíbe o abuso de drogas nos EUA. para outra, na dependência de contato prévio com doses
Os efeitos psíquicos da mescalina constituem alucinações tóxicas (ver comentário sobre mitridatismo). Atualmente,
de cores vivas, descompasso do tempo vivido e grau variado
sabe-se que o arsênio interfere com enzimas mitocondriais,
de ansiedade. Em doses tóxicas, produz náuseas e depressão
como as fosfa tases e a oxidase pirúvica, que têm grupos
respiratória 105. sulfidrila (S-S) 11 •50 • Nas intoxicações crônicas, ocorre um
Ay auasca - É uma bebida alucinógena feita pela mistura
acúmulo do elemento sempre que as doses sejam superio res
do caule do mariri (Banisteriopsis caapi ) com as folhas da
à capacidade de eliminação do organismo. Os sintomas são
chacrona (Psycotria viridis). A primeira contém as betacar-
inespecíficos, mas, em geral, ocorre neuropatia periférica,
bolinas harmina e harmalina, inibidoras da monoamina-
principalmente sensoriaF.
oxidase (MAO); a segunda, a dimetiltriptamina (DMT )104 .
Os achados de necropsia nos casos agudos podem ser de-
O chá feito com essas plantas tem sido usado há milênios
cepcionantes. A par de uma gastrite aguda, o que chama m ais
por índios da Amazônia e, recentem ente, por seitas religiosas
a atenção é a presença de hem orragia subendocárdica intensa,
como a União do Vegetal e o Santo Daime. O resultado do relacionada provavelmente com o estado de choque terminal
uso conjunto das duas plantas é um estado de transe cau-
ou a lesão endo telial. Knight 11 descreve hemorragia tão inten-
sad o pelos efeitos alucinógenos da harmina, da harmalina
sa a ponto de formar pequenas bolhas de sangue por baixo
e da DMT. Na verdade, as betacarbolinas têm pouco poder do endocárdio da m etade superior do septo interventricular e
alucinógeno, mas potencializam a ação da DMT porque im- músculos papilares da válvula mitral, o que ele considera sufi-
pedem sua inativação pelas m onoamina-oxidases104 . A DMT
ciente para indicar a pesquisa do tóxico. Caso a vítima sobre-
. ' . 5HT 'ª99 .
liga-se ao receptor serotonmerg1co viva alguns dias, é comum haver lesão hepática, que vai desde
esteatose de intensidade variada até necrose periportal50 •
Intoxicações Criminosas Nos casos de intoxicação crônica, o diagnóstico é muito
Com o referimos no início deste capítulo, os envenena- difícil. Simula uma gastroenterite crônica. O exam e externo
m entos criminosos pr aticam ente desapareceram das investi- mostra pele seca, descam ativa e hiperceratótica. Encontra-se
gações policiais na atualidade. A impunidade, que era a regra distúrbio da pigmentação caracterizado por máculas hiper-
antes do advento da Toxicologia, deu luga r a punições com crômicas salpicadas principalmente nas regiões de flexão
agravantes em função do meio utilizado. Poucos são os casos da pele, da testa e do pescoço. A presença de edema túrgido
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 419

difuso e de perda de pelos no couro cabeludo pode sugerir Também se faz exame toxicológico em materiais suspei-
mixedema 11 • O exame interno revela gastrite crônica, com tos de serem drogas de uso proibido apreendidos em blitzes
excesso de muco, hipertrofia do pregueamento da mucosa e, de rua. Mas o que interessa mais de perto ao patologista fo-
por vezes, focos de hemorragia. O intestino delgado está um rense são os exames feitos em material proveniente de ne-
tanto dilatado, contém líquido semelhante a "água de arroz" cropsias de pessoas com suspeita de intoxicação exógena.
e sua mucosa mostra sinais inflamatórios inespecíficos 11 • O Abordaremos os aspectos de maior interesse nessas perícias,
fígado pode apresentar esteatose e focos de fibrose nos espa- nas sucessivas etapas do exame.
ços porta, podendo chegar à cirrose50 • Os rins podem apre-
sentar necrose tubular. O miocárdio revela focos de degene- Histórico
ração de fibras e de infiltração inflamatória 11 •
Deve ser procurado nos prontuários hospitalares, se a
Os exames toxicológicos devem abranger amostras de vítima tiver sido socorrida ainda com vida, ou na guia de
sangue, urina, vítreo, pedaços das diversas vísceras e, prin-
remoção do cadáver, quando for encontrada já morta. Os
cipalmente, cabelos. Estes podem fornecer uma história de
prontuários hospitalares são muito úteis, tanto quando aso-
exposição repetida ao tóxico, se o exame for orientado em brevida tiver sido razoável como nas intoxicações crônicas.
diversos setores ao longo do comprimento, a partir da raiz.
Nos casos de intoxicações agudas, o plantonista do pronto-
socorro deve relatar o que ouviu do paciente durante a
Tálio
anamnese, se ele estiver ainda consciente, ou o que for infor-
É o metal mais pesado do grupo III da classificação pe- mado pela família ou por quem tiver acompanhado a vítima.
riódica. Sua densidade é de 11,83 g/cm3, e é mole como o É comum que se faça referência a algum tipo de veneno, de
chumbo. Em função de sua estrutura eletrônica, pode ser medicamento, ou de contato com animais peçonhentos. Isso
mono ou trivalente. Os compostos trivalentes se assemelham facilita as pesquisas toxicológicas ulteriores.
aos do alumínio e são muito tóxicos9• É pouco abundante na Nas intoxicações crônicas, tanto pode haver uma histó-
face da Terra e costuma ser usado na indústria de vidros. Al- ria típica de doença profissional, ou de consumo de drogas
guns compostos são usados como raticidas. Entre os metais proibidas, como um quadro clínico confuso, mal definido, de
pesados, é o que ainda é usado hoje como agente de envene- difícil diagnóstico. Convém lembrar que, quando os clínicos
namentos. Knight 11 cita um caso inglês em que duas pessoas têm muita dificuldade em estabelecer hipóteses diagnósticas
morreram e outras ficaram doentes pela administração cri- coerentes com os sintomas e sinais do paciente, uma das pos-
minosa de tálio às vítimas, em 1971. Como é opaco aos raios sibilidades a se aventar é a de intoxicação exógena, seja por
X, pode-se radiografar o cadáver nos casos de suspeita de contaminação ambiental, seja por ação criminosa.
envenenamento. Pode ser detectado mesmo nas cinzas ob- Nos prontuários, encontram-se assinalados os dados do
tidas após cremação do corpo 11 • Um dos sinais mais chama- exame físico, as intercorrências, a evolução do caso e todos
tivos de intoxicação pelo tálio é a queda dos cabelos, que se os tipos de medicamentos utilizados. São importantes a evo-
destacam em tufos. Há queda dos pelos do terço externo da lução do nível de consciência, a ocorrência de convulsões, a
sobrancelha, o que se considera um sinal fortemente suges- dificuldade respiratória, os vômitos, a diarreia, as variações
tivo da intoxicação. A queda de cabelos pode começar após da pressão arterial e os exames complementares realizados,
1 ou 2 semanas do início da administra ção. Os cabelos ainda inclusive traçados de eletrocardiograma. Nos centros bem
presentes costumam apresentar uma capa anegrada na raiz, orientados, o material dos vômitos, a urina e as amostras
quando arrancados e examinados 11 • O exame dos segmentos colhidas de sangue são guardados em refrigerador para o
a partir da raiz, à semelhança do arsénio, indica os períodos caso de se precisar fazer alguma pesquisa toxicológica. Esse
de intoxicação e os de afastamento do veneno, o que pode conjunto de materiais fornece a dosagem das drogas nos di-
auxiliar nas investigações do caso. versos momentos da evolução clínica, livre de artifícios de-
correntes de alterações post mortem ou de contaminação das
Perícia nos Envenenamentos e nas Intoxicações amostras por vício de coleta.
Não tendo havido socorro médico, as informações virão
O exame toxicológico pode ser necessário tanto no vivo
da guia policial, nem sempre muito confiável, e de contato
como no morto. No vivo, a maioria dos casos decorre de
pessoal entre a equipe de peritos e os familiares da vítima.
avaliação de motoristas a fim de se verificar se estavam diri-
Tendo havido perícia do local, é importante saber se os pe-
gindo sob a ação do álcool ou de qualquer outra substância
ritos criminais acharam algum frasco de veneno ou medica-
de efeito análogo. Existem, como já vimos, aparelhos usados
mento encontrado no mesmo ambiente do cadáver. A ausên-
pela polícia - bafômetros - que servem ao propósito de tria-
cia desse indício pode sugerir não se tratar de suicídio nem
gem para ver o teor alcoólico e encaminhar o motorista para
acidente, e sim de homicídio.
exame clínico médico-legal. Contudo, em 28 de março de
2012, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar um recurso de
Necropsia
motorista condenado por crime de trânsito, decidiu que so-
mente o teste do bafômetro e a dosagem do álcool no sangue Nos casos em que o histórico demonstra que se trata de
podem servir de prova de embriaguez4 9a. um caso de intoxicação exógena, a sequência da necropsia
420 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

inclui o exame externo, o exame interno e a coleta de mate- congestão à gastrite erosiva hemorrágica. O achado de in-
rial para exame toxicológico. tensa gastrite aguda, na ausência de outras lesões, obriga o
O exame externo pode fornecer alguns dados impor- perito a solicitar exame toxicológico.
tantes, a começar pelos fenômenos cadavéricos. Os livores Alguns tipos de venenos podem provocar lesões caracte-
hipostáticos podem indicar, por exemplo, tratar-se de pro- rísticas desde que o indivíduo sobreviva por tempo suficien-
vável envenenamento pelo monóxido de carbono se a cor te para que as alterações micro e macroscópicas se instalem.
for vermelho-carmim, ou cereja. A combinação da hemo- É o caso do monóxido de carbono. Quando a vítima fica em
globina com o CO forma a carboxiemoglobina, que confere coma e só morre alguns dias depois, é possível encontrar fo-
aos livores aquela coloração. Nos casos de intensa metemo- cos de hemorragia petequial e focos de necrose no encéfalo,
globinemia, os livores passam a ter coloração de tonalidade principalmente nos núcleos da base, corpo caloso e cápsula
parda, mais escura nos pontos de maior intensidade. Isso interna (Figs. 19.18 e 19.19 ). Algumas drogas hepatotóxicas
ocorre nas intoxicações por agentes oxidantes como nitra- provocam lesão preferencialmente centrolobular, como o te-
tos, cloratos, sulfonas etc. As intoxicações por substâncias tracloreto de carbono, outras lesam mais as células peripor-
contraturantes, como a estricnina, causam uma antecipação tais, como o fósforo e alguns compostos de arsênio.
da rigidez muscular, o mesmo ocorrendo nos casos de tóxi-
cos que matam por asfixia. Coleta de Material para Exame Toxicológico
A pele ao redor da boca e as mucosas labial e bucal apre- As diretrizes aqui propostas podem e devem ser altera-
sentam lesões escorridas, em se tratando de cáusticos, tanto
das conforme os recursos do laboratório de toxicologia para
pelo próprio contato no momento da ingestão como por
o qual o material será enviado. É imperioso que o patologis-
ocasião de vômitos. A presença de feridas punctórias ao lon-
ta forense vá ao laboratório de toxicologia e que o toxico-
go dos trajetos venosos superficiais, flebite ou esclerose das
logista vá ao necrotério. Um precisa do outro. E só servirão
veias sugere fortemente o uso repetido de drogas de abuso
bem à sociedade se aceitarem o trabalho em equipe. De nada
injetáveis (Fig. 19.17) . A queda de pelos, principalmente no
adianta um serviço de toxicologia muito bem equipado se o
couro cabeludo, é outro indício de ação prolongada de al- material que chegar para exame estiver mal acondicionado
guns tóxicos, o tálio, por exemplo. A distribuição simétrica
ou for colhido de maneira incorreta. Da mesma forma, não
de equimoses nos segmentos do corpo sugere púrpura, que
adianta o patologista colher tipo e quantidade de material
pode estar relacionada ao uso de sulfas, barbitúricos, tiazidas
de acordo com as regras padronizadas para os laboratórios
etc1° 7 • Algumas drogas hepatotóxicas causam icterícia se a ví-
mais bem aparelhados se o que vai analisá-lo não dispõe dos
tima da intoxicação sobreviver alguns dias.
mesmos recursos e necessita de maiores volumes para a ex-
O exame interno pode ser tão importante quanto a pró-
tração e análise.
pria pesquisa toxicológica, uma vez que o tempo durante o
A valorização do resultado dos exames toxicológicos de-
qual a vítima permanece em tratamento permite a metabo-
pende do momento da coleta, do local do corpo em que as
lização dos tóxicos e sua eliminação. A esofagite e a gastrite amostras foram colhidas, do uso de preservativos, da quan-
corrosivas já foram referidas ao comentarmos a ação cáusti-
ca. Podem estar presentes e não se achar mais o cáustico no
tubo digestivo. Na maioria das vezes, as intoxicações agudas
produzem alterações da mucosa gástrica que vão da simples

Figura 19.18. Corte frontal de cérebro passando pelos núcleos da


base. Notam-se focos de hemorragia petequial e de necrose que pre-
Figura 19.17. /!is veias superficiais têm seus trajetos realçados por dominam nos núcleos lenticulares na substância branca do corpo caloso
minúsculas crostas pardas e estão mais salientes. Morto em tiroteio com e da cápsula interna. Os núcleos caudados não revelam lesões. A-65-59.
a polícia após realizar assalto a um banco. Guia 1.524 da 24ª DP, de Caso do IML fotografado no Lab. de Patologia da Santa Casa de Miseri-
1973. córdia do Rio de Janeiro pelo autor.
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 421

difundir passivamente através das paredes do tubo digestivo


e infiltrar-se nas vísceras vizinhas5.i9 • Observamos pessoal-
mente tal fato na necropsia de um prático de farmácia que
se matou ingerindo formol. O estômago ficou totalmente fi-
xado pelo formol, que se difundiu para o lobo esquerdo do
fígado e fixou-o parcialmente (Figs. 19.6 e 19.7) 16 •
O álcool contido no estômago, como já referimos ante-
riormente, pode-se difundir e contaminar o líquido presente
no saco pericárdico. Assim, a coleta de sangue derramado
para o saco pericárdico pode fazer com que resulte uma do-
sagem muito maior do que a real. A coleta de sangue das
cavidades cardíacas pode padecer do mesmo defeito. Por
isso, vários autores preferem o das veias periféricas mais ca-
'/ librosas, como a femoral e a subclávia 13•29 . Knight2 9 cita um
outro trabalho em que os pesquisadores fizeram uma mistu-
ra de algumas drogas, inclusive álcool, e a introduziram pela
traqueia e brônquios de um cadáver para simular aspiração
de vômito. Depois de 48 horas, dosaram-nas no sangue de
várias partes do corpo. O da veia femoral estava limpo, mas
o das veias torácicas estava muito contaminado 29 . Se houver
lesões de perfuração do estômago ou do intestino delgado,
seu conteúdo se espalha pela cavidade abdominal e contami-
na todas as vísceras.

Preservação do Material
Um dos primeiros cuidados a se ter com os materiais co-
lhidos deve ser impedir sua deterioração. No caso do san-
gue, é imperioso o uso de anticoagulantes, principalmente
se a autopsia for feita pouco tempo depois da morte, pois o
Figura 19.19. Mesmo caso. Aqui, as lesões predominam no globus sangue ainda quente costuma coagular-se até nos recessos da
pallidus de ambos os lados, mas permanece a simetria do compro- mesa de necropsia. Mesmo que já tenha havido a dissolução
metimento. do coágulo post mortem, como nos casos de morte rápida
autopsiados depois de várias horas, as amostras devem ser
tratadas pelos mesmos anticoagulantes, que também atuam
tidade correta e da forma de estocagem até o transporte para como preservativos. O sangue assim colhido deve ser colo-
o laboratório de toxicologia. cado em refrigerador e mantido em temperatura baixa, mas
não é preciso que seja congelado. Mas é conveniente colher
Momento da Coleta uma parte em separado, sem preservativos, que deve ser con-
gelada e estocada como reserva 5•13 . Contudo, os segmentos
As amostras de material devem ser colhidas o mais pró- das vísceras devem ser colocados em freezer, de modo a inibir
ximo possível do momento da morte. Se a autopsia tiver que as ações enzimáticas em curso e a deterioração das amostras,
esperar várias horas por questões de ordem administrativa, já que não podem ser permeados por preservativos da mes-
convém colocar o corpo em um refrigerador. Em alguns ser- ma forma que os líquidos orgânicos.
viços, faz-se a coleta de sangue da veia femoral, de urina e de O sangue coletado de um cadáver pode refletir a con-
humor vítreo por punção externa do cadáver, mesmo antes centração das drogas no momento imediato da morte, ou
de se começar a necropsia. não. Se ficar estocado por várias horas antes da análise, em
temperatura ambiente, pode haver alteração da concentra-
Local da Coleta
ção das substâncias. Em primeiro lugar, as células do sangue
Sabe-se que, mesmo no vivo, a concentração dos tóxicos permanecem vivas por algum tempo depois da morte e são
varia conforme o local de onde for colhido o sangue. A do- capazes de metabolizar, por exemplo, o álcool, diminuindo a
sagem de cocaína proveniente do crack é maior no sangue sua concentração na amostra. Em segundo lugar, a hemólise
arterial do que no sangue venoso; a dosagem de drogas ab- libera as enzimas intracelulares das hemácias, que vão ajudar
sorvidas por via oral é maior no sangue da veia porta do que nesse processo. Por outro lado, a putrefação pelas bactérias e
no da veia femoral. Além disso, cessada a circulação, as dro- fungos saprófitas produz álcool por fermentação da glicose,
gas contidas no estômago e no intestino delgado podem-se o que pode chegar a 150 mg/100 mL em 24 horas se a tem-
422 • CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense

peratura ambiente for elevada 29• Assim, é interessante que as Geralmente, os músculos esqueléticos ainda estão razoavel-
amostras de sangue que só serão examinadas várias horas de- mente preservados e devem ser colhidos. O mesmo se diga
pois sejam tratadas por agentes conservantes. A maioria dos dos cabelos.
autores recomenda o uso do fluoreto de sódio (10 mg/mL )29 ,
por vezes associado ao oxalato de potássio 13• Esses preserva- Quantidade de Material
tivos, além de serem anticoagulantes, inibem a ação enzimá- A única maneira de saber qual a quantidade de material
tica e o crescimento de bactérias e fungos. Há quem use uma que se deve colher de cada líquido ou víscera é conversando
mistura de 0,1 mg de cloreto mercúrico associado a 0,5 mg com o toxicologista que fará os exames. Não adianta seguir à
de citrato de sódio para cada mL de sangue29• Essa mistura risca as recomendações contidas nos tratados de toxicologia
tem a vantagem de esterilizar o material, tornando o teor de estrangeiros. O montante de material a ser colhido depende
álcool constante. Os preservativos devem ser utilizados tam- das técnicas de extração e purificação adotadas pelo toxico-
bém nas amostras de urina, vítreo e bile. logista. Para se ter uma ideia, basta ver as divergências quan-
A coleta de sangue pode ser feita antes do exame interno, to ao volume de sangue a ser colhido segundo autores ame-
por punção venosa profunda, ou durante a abertura dos pla- ricanos e ingleses. Knight 29 diz que colhe 30 mL, Di Maio 13 ,
nos superficiais, quando as veias jugulares internas, as sub- 50 mL e Spitz 1º8 não se contenta com menos de 100 mL.
clávias e as femorais ficam expostas. Por vezes, a dissecção da
fossa supraclavicular expõe os vasos do pescoço, que podem Estocagem e Transporte
ser puncionados com facilidade. A coleta de urina pode ser
feita antes da abertura do corpo, por punção suprapubiana Outro aspecto é o acondicionamento do material colhi-
com agulha longa e seringa. Knight29 recomenda a coleta do do. Novamente, é importante conversar com o toxicologista.
humor vítreo por punção dos globos oculares bem próxima Em alguns serviços, é o laboratório de toxicologia que forne-
ao ângulo palpebral externo, de modo que não seja notada ce os frascos e sacos a serem utilizados. Alguns autores prefe-
pelos familiares. Aconselha, inclusive, a injeção de água pelo rem os frascos de vidro com tampas de cortiça, de borracha
mesmo orifício para impedir que o olho fique colapsado. ou esmerilhadas, dependendo do tipo de substância de que
se suspeita. No caso de se pensar em produtos voláteis ou sol-
O que Colher ventes, aconselham o uso de tampas esmerilhadas de vidro,
ou as de náilon, que não são atravessadas por essas substân-
O material a ser colhido depende do caso particular e dos cias. Outros, por motivo de economia, admitem que se usem
recursos oferecidos pelo laboratório de toxicologia. Quando frascos de polietileno para a maioria dos casos, exceto na sus-
se tem uma informação confiável quanto ao tóxico de que se peita de solventes. Na Inglaterra, o sangue, a urina e o humor
trata, a melhor conduta é fazer contato pessoal com o toxi- vítreo podem ser colocados, por meio de agulha e seringa, em
cologista e perguntar quais os tecidos que melhores informa- vidros semelhantes aos que se usam aqui para penicilina 29 •
ções fornecerão quanto à presença e concentração daquela Conquanto haja diferenças quanto ao modo de acondi-
substância. cionar as amostras, todos estão de acordo em que tudo se
Outra é a situação quando não se dispõe de dados quan- tem que fazer para preservar a autenticidade do material.
to ao possível agente tóxico envolvido. Nesse caso, é preciso Para isso, o melhor é que o patologista só use frascos la-
abrir um leque de opções mais largo através da coleta diver- crados e rotulados pelo laboratório de toxico logia para se
sificada. Um mínimo de materiais deve conter amostras de assegurar de que estão perfeitamente limpos, sem qualquer
sangue, urina, humor vítreo, bile, segmentos de vísceras (fí- tipo de contaminante químico. Ao enviar as amostras de lí-
gado, rins, cérebro), músculos esqueléticos, tecido adiposo, quidos e tecidos, deve rotular os frascos, esclarecendo o que
cabelos e estômago com o conteúdo (se se tratar de intoxica- cada recipiente contém, e novamente lacrar sua tampa, de
ção aguda sem assistência m édica ). Uma providência correta modo que só o serviço de toxicologia possa ter acesso ao
é colher um dos pulmões sem cortá-lo, amarrar firmemente seu conteúdo. Qualquer descuido quanto à manutenção da
o seu hilo (brônquio-fonte e vasos sanguíneos) e colocá-lo autenticidade no caminho entre o necrotério e a toxicologia
em frasco de vidro de boca larga e tampa esmerilhada. Isso pode ser usado por um advogado competente para invalidar
permite a pesquisa de substâncias voláteis como derivados o resultado dos exames.
de petróleo e hidrocarbonetos halogenados (clorofórmio, Nos casos de exumação por suspeita de envenenamento,
tetracloreto de carbono, tricloroetano, tricloroetileno etc.). o corpo na maioria das vezes já está em estado avançado de
Nos casos em que o corpo já está em estado de putrefa- putrefação. Assim, alguns auto res recomendam que se o em-
ção, pode ocorrer de não se conseguir sangue, urina e ou- balsame para interromper o processo de decomposição 108 .
tros líquidos para análise. A pressão dos gases no período Certas pesquisas e dosagens são possíveis mesmo em corpos
enfisematoso expulsa o sangue das veias profundas e força embalsamados; por exemplo, de cocaína 13 • É impo rtante que
a eliminação da urina e do conteúdo gástrico. Mas também se colha amostra da terra ao redor do caixão, uma vez que,
ocorre transudação de líquidos para as cavidades pleurais. no período coliquativo, a perda de líquidos do corpo é gran-
Nesses casos, o patologista deve colher amostra desse líqui- de, o que carreia os tóxicos porventura presentes para o solo
do, juntamente com o coração e pedaços de fígado e rins 13 • onde se deu a inumação. Contudo, é forçoso colher amostra
CAPITULO 19 Ação Química. Toxicologia Forense • 423

de área afastada do sepulcro para evitar a possibilidade de sível pesquisar os grupos para os quais haja teste disponível
falsos exam es positivos por contaminação prévia do terreno. no mercado. Além disso, o fato de muitas vezes identificarem
É de suma importância que o patologista forense ano te grupos de substâncias e não uma substância em particular
no pedido de exame toxicológico um resumo do histórico faz com que seja necessário um outro exame mais específico.
do caso e das principais substân cias suspeitas de terem in- Feita a triagem pelo método enzimático, a identificação
toxicado a vítima. Isso facilita a perícia por po upar tem po e da substância pode vir a ser feita por método de cromatogra-
recursos do laboratório de toxicologia, além de demonstra r fia por gás e/o u por espectro metria de massa. Os toxicologis-
respeito com o toxicologista. tas aconselham faze r sempre a pesquisa do tóxico por dois
m étodos diferentes, a fim de se ter certeza da identificação da
Exame Toxicológico droga. O mais utilizado é a associação da cromatografia por
gás com a espectrometria de massa. Não dispo ndo de espec-
O propósito d esta seção não é detalhar a metodologia
trómetro de m assa, é aceitável que se repita a cromatografia
dos exam es realizados nos laborató rios de toxicologia. Sim-
por gás usando colunas diferentes. O fundamento da croma-
plesmente, pro curaremos info rmar aos peritos-legistas e ou-
tografia é o tempo de retenção da substância ao atravessar as
tros profissionais estudiosos da Medicina Legal o que se faz
com o material recolhido nos necrotérios. colunas do aparelho. Mais detalhes devem ser buscados nos
compêndios técnicos de toxicologia.
Cabe dizer que nem todo material enviado é processado
em todas as etapas. Em geral, os toxicologistas usam parte
Dosagem da Substância
da amostra para a extração, purificação e análise, guardan -
do outra parte como reserva para eventuais necessidades de Feita a identificação do tóxico, o passo seguinte é a sua
reexame. Por vezes, é o próprio toxicologista que tem a ini- dosagem na amostra enviada pelo patologista. A avaliação
ciativa de repetir a técnica . Em outras ocasiões, isso é feito a quantitativa é indispensável. Sem se saber a quantidade de
pedido das autoridades competentes. Po r isso, a regra é que tóxico presente nos tecidos e nos líquidos, não se pode ter se-
se guarde parte d o material para o caso de ser necessária uma gurança na afirmação de que a morte se deveu à ação quími-
nova per ícia. ca. Existem tabelas e bancos de dados em que a concentração
das drogas no sangue e nos tecidos é relacionada em colunas
Metodologia referentes a efeito inicial, ação tóxica e dosagem letal. Tais
tabelas representam m édias obtidas de n úmero variável de
Cada tipo de material é tratado diferentem ente conforme
registros, conforme os autores. Admite-se que haja variações
sua natureza. Os segmentos de vísceras maciças são inicial-
individuais significativas.
mente triturados em separado, de modo a fo rmarem uma
pasta antes de começar o processo de extração dos tóxicos.
Conclusão da Perícia
As am ostras de sangue po dem ser trabalhadas como estão ou
depo is de se fazer a centrifugação para separação do plasma Nos casos em que há uma história de intoxicação exó-
e dos glóbulos. Conforme o tipo de d roga a ser pesquisada, gena, um quadro clínico compatível e alterações m orfoló-
o plasma precisa sofrer um tratam ento químico para preci- gicas condizentes com ela, o exame toxicológico positivo
pitar as proteínas. vem ra tificar o que já se havia diagnosticado. Mesmo assim,
A extração é feita, a princípio, com solventes que são é necessário que a dosagem indique concentração letal da
misturados com os líquidos, naturais o u obtidos pela filtra- d roga envolvida, a menos que a vítima tenha sido socorrida
ção dos macerados de vísceras. O produto obtido pela ação e sobrevivido por tempo suficiente para eliminá-la total ou
dos solventes deve ser purificad o por extração mais seletiva parcialmente. Na hipótese de suicídio com recolhimento do
através de soluções ácidas, ou alcalinas. Os extratos obtidos frasco que continha o veneno no próprio ambiente onde o
serão analisados por vários métodos, a fim de se começar a corpo fo i encontrado, obviamente não há história clínica, e
identificação das substâncias presentes. sim info rmações colhidas no local pela perícia e pelos inves-
Na fase de identificação, alguns m étodos permitem o re- tigadores. Ger almente, contam acerca de tentativas anterio-
conhecimento da presença de um determinado grupo quí- res malsucedidas, de estados depressivos ou de grave crise
mico ou de um certo radical na mo lécula do tóxico. O utros pessoal. Assim, uma dosagem letal da droga nas víscer as exa-
métodos, mais específicos, costumam ser em pregad os depois minadas encerra o caso. A simples presença da droga, sem a
de feita essa triagem inicial. dosagem, indica que deve ter havido o suicídio pela ação quí-
O rastreamento inicial pode ser feito com os métodos mica, mas não dá a certeza. É oportuno lembrar, aqui, que
imunológicos: enzim ático, fluorescente e radioativo. O m ais uma dosagem letal em alguma víscera pode ser o resultad o
sensível e específico é o ra dioimune. Existem kits comerciais de contaminação post mortem por difusão do tóxico de um
para os grupos de drogas mais frequentemente encontrados. sítio de grande concentração para aquela víscera.
São muito úteis para usar na urina e na bile, onde as drogas Há casos de suspeita de intoxicação exógena em que o
eliminadas estão concentradas. As vantagens dos métod os toxicologista identifica uma substância potencialmente letal,
imunológicos são a rapidez, a pequena quantidade de amos- mas não consegue estabelecer a dosagem. Se a vítima usava
tra gasta e a razoável especificidade. Por outro lado, só é pos- algum m edicamento de fo rma rotineira, ou se chegou a ser
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socorrida e medicada, é imperioso que tal informação seja REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


confrontada com o resultado do exame toxicológico para se
saber se se trata da mesma substância. Caso haja a coincidên-
!. Toscano Jr. A. Um breve histórico sobre o uso de drogas. In: De-
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Em outras ocasiões, o indivíduo foi intoxicado e socorri- 2. Passagli M. Princípios e áreas da Toxicologia. Capítulo I, pp 3-19,
do, sobrevivendo por tempo suficiente para a eliminação da em Toxicologia Forense - Teoria e Prática, 3• edição, Editora Mil-
lenium, na série Tratado de Perícias Criminalísticas, organizada por
substância, mas morrendo por complicação superveniente.
Domingos Tochetto, Campinas, SP; 2011.
Aqui, é preciso, a princípio, separar a possibilidade de se tra- 3. Loomis TA. Essentials of Toxicology. Philadelphia: Lea & Febiger;
tar de uma concausa superveniente independente (art. 13, 1968.
§ lº· do CP ), quer dizer, um evento médico não correlaciona- 4. Winek CL. Injury by chemical agents. In: Forensic Medicine. Tedes-
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morte tem que ser atribuída à ação química. Em 1965, exa- 8. Olson KR, Becker CE. Poisoning. In: Current Emergency Diagnosis
minamos o corpo de um indivíduo que havia feito um pacto & Treatment. 4•h ed. Charles E. Saunders & Mary T. Ho, eds. Lon-
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768.
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à época o monóxido de carbono. Um deles morreu no local Inorgânica e Físico-Química. São Paulo: Cia Editora Nacional;
antes que se arrombasse a porta do apartamento. O outro, em 1968.
coma profundo, foi encaminhado ao Hospital Sou za Aguiar, 10. Am shel CE, Fealk MH, Phillips BJ, Caruso DM. Anhydrous am -
onde veio a falecer quase 1 semana d epois. Foi o corpo que monia bu rns case report a nd review of literature. Burns; 2000.
26(5 ):493-497.
examinamos. Apresentava focos de hemorragia e de necrose
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d o tecido nervoso dispostos simetricamente nos núcleos da 2"d ed. Bernard Knight, ed. Londres: Arnold; 1996. Capítulo 33, p.
base cerebral, principalmente o globus pallidus, cápsula in- 575-58 1.
terna, corpo caloso e substâ ncia branca dos hemisférios cere- 12. Carrara M, Roma nese R, Canuto G, Tovo C. Medicina Legale. To-
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exame toxicológico foi n egativo para m on óxido de carbono. Press Inc.; 1993. Capítulo 2 1, p. 439-487.
As lesões cerebrais eram características de intoxicação pelo 14. Ali SA. Dermatoses relacionadas com o trabalho. Capítulo 35, pp
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dica. Assim, embora com um resultado negativo dado pelo tor René Mendes, 2• edição. Rio de Janeiro: Editora Atheneu; 2005.
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e n o aspecto anatomopatológico, concluímos que a mo rte ed. Lond res: Methuen & Company Ltd.; 1966.
ocorrera por intoxicação pelo monóxido de carbono. 16. Hercules H de C. Intoxicação pelo form o!. Rev IMLGb; 1970. 1(2):
Na hipó tese mais comum, em que as lesões n ão são pa- 17-28.
tognomônicas, o perito-legista pode aceitar a possibilidade 17. Irizarry L. White phosphorus exposure. Captado em 01/05/13 do
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Nereu Gilberto de Moraes Guerra Neto

• INTRODUÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA m idas, para tornar pacífico e harmonioso o convívio social.
As normas jurídicas, as leis e suas dem ais espécies, foram
DO TEMA
criadas e desenvolvidas para, entre outras finalidades, coor-
Todo ordenamento jurídico moderno, no Brasil e no denarem essas relações interpessoais em que ocorriam lesões
mundo, com a possível exceção dos regimes políticos d ita- corporais.
toriais que utilizam a violência e a opressão, protege a vida, Perdem -se nas brumas do passad o as primeiras regras
a dignidade, a integridade e a saúde do homem em primei- que governaram os homens organizados em sociedade, mas
ro lugar, devendo todas as suas outras regras respeitar estes alguns exemplos, que chegaram até nós, podem ser citad os à
bens maiores. guisa de ilustração.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 A Legislação m osaica, com forte conteúdo religioso, dis-
assegura, já em seu Título I, "Dos princípios fundam entais", ciplinava penas para vários delitos, inclusive o de lesões cor-
a dignidade da pessoa humana e a promoção do bem de to- porais, utilizando a regra m ais antiga que se conhece, a "lei
dos, sem d iscriminações, e garante o d ireito à vida e à inte- de talião': ou "tal qual': que buscava identificar o dano com a
gridade pessoal no seu artigo 5-º, caput e vários dos incisos, pena infligida: "O teu o lho não poupará: vida por vida, olho
como, por exemplo, o inciso XLIX o nde: "é assegurado aos por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé" (19, v.21).
presos o respeito à integridade física e m oral''. Protege ainda, No Código de Hamurábi, o mais importante rei babiló-
a nossa Lei Maior, a saúde, no artigo 196: "A saúde é direito nico, que remonta ao século XVIII a.C., encontramos, dis-
de todos e dever do Estado...". ciplinadas, em seu capítulo XI, as penas impostas a quem
Mas este estágio de desenvolvimento das regr as jurídicas causasse lesões corporais em outrem, e também seguiam o
não é tão antigo. Ao longo da História, desde o surgimen- talionato, m as é interessante notar que alguns delitos já eram
to d os primeiros povoados, o poder estabelecido sempre se repar ados por penas pecuniárias, como, por exemplo:
valeu de regras cogentes para controlar, prevenir e, quando
já transgredidas, punir as condutas humanas agressivas e Art. 200. "Se um homem arrancou um den te de outro
antissociais. homem livre igual a ele, arrancarão o seu den te''.
Para a criação da civilização com o a conhecemos, o Art. 206. "Se um homem livre agrediu, em uma bri-
ho mem, que é um animal social por excelência, precisou ga, um outro homem livre e lhe infligiu um ferimento, esse
abrandar seus instintos violentos de posse e domínio a fim homem livre deverá jurar: 'Não o agredi deliberadamente'.
de estabelecer as relações sociais intersubjetivas necessárias Além disso deverá pagar o médico''.
ao convívio organizado em sociedade. Art. 209. "Se um homem livre agrediu a filha de um
As atitudes humanas vio lentas causadoras de algum tipo outro homem livre e a fez expelir o fruto de seu seio, pesará
de dano físico a outrem precisavam ser evitadas e/ou repri- 1 Osidos de prata pelo fruto de seu seio''.

429
430 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

Ainda na An tiguidade, a lei romana, compilada na Lei Já na esfe ra civil, interessa ao ofendido uma reparação
das XII Tábuas, que data do século III d. C., tratava na tábua pelo seu dano, inclusive, e principalmente, se há perda da
sétima, "Dos Delitos'; em seu artigo 11: capacidade laborativa ou mesmo prejuízo da sua imagem
pessoal. A repar ação civil passou a ser feita com finalidade
"Se alguém fere a outrem, que sofra a pena do talião, com pensatória, com o na antiga lei ro mana, devendo o agres-
salvo se houver acordo''. sor não só sofrer as penas criminais, já referidas, como arcar
com uma reparação pecuniária, conforme estabelecido no
Ampliando a conquista de direitos humanos, a Carta Mag- Código Civil.
na inglesa, consagrada em 1267, foi um importante m arco Vimos que o desenvolvimento da sociedade humana foi
histórico, mas ainda havia muita crueldade nas penas e o em- acompanhado de mudanças nos critérios de valor, que se
prego da tortura, que perdurou em todo o direito medieval. refletiram nas leis escritas (regras jurídicas do Direito Po-
Somente com o advento da Revolução Francesa e da In- sitivo), a fim de melhor adequar a realidade social ao orde-
dependência dos Estados Unidos da América é que uma nova nam ento jurídico vigente. Hoje em dia, em todo o mundo
era no Direito começa e as declarações de direitos do homem civilizado, há regras jurídicas, alocadas no direito penal, que
e do cidadão ( 1789) vão se espalhando pelos diversos países. disciplinam e graduam as lesões corporais sofridas pela víti-
Tanto o direito penal, quanto o civil e o internacional evo- ma de uma ação humana indesejada e antissocial, e que os
luem na direção do aumento da proteção individual e ga- legisladores decidiram punir o agresso r de fo rma mais ou
rantia de dignidade da pessoa humana, podendo-se citar os menos severa, conforme as consequências do dano causado à
Códigos de Na poleão (18 10) e de Bustamante (1928), e cul- vítima e seu prejuízo objetivo, e no direito civil onde se busca
mina com a Declaração Universal d os Direitos do Homem, reparar e/ou com pensar o dano sofrido pela vítima.
de 1948, exatamente após o mundo ter sofrido as barbarida- A própria evolução d o Direito contemporâneo tornou
des e os abusos aos direitos humanos decorrentes da Política mais complexa, e completa, a avaliação do dano pessoal nas
Nazista na 2ª Grande Guerra Mundial. lesões corpo rais quando erigiu também regras par a as lesões
Entre nós, o Código Criminal d o Império, influenciado produzidas nas atividades laborativas (Direito do Trabalho e
pelo Código Francês de 1810, previa o então cham ado "crime Direito Previdenciário ) e nas atividades espo rtivas (Direito
de ferimentos e ofensas fisicas". O termo "lesões corporais" foi do Esporte).
usad o no Código Republicano, de 1890, em seu artigo 303.
O "Código Penal Brasileiro" do início da República, de
11 de outubro de 1890, sofreu muitas críticas e mudanças, • O CONCEITO DE LESÃO CORPORAL NO
mas somente em 1940, ao instaurar-se um novo regime no DIREITO PENAL
Brasil, intitulado de Estado Novo, sob o governo de Getúlio
Vargas, surge um novo Código Penal que, embora tenha sido Nosso Código Penal, de 1940, em sua Parte Especial, Tí-
elaborad o durante um regime ditato rial, incorpora, no geral, tulo I, "Dos crimes contra a pessoa", capítulo II, "Das lesões
as bases de um direito criminal democrático e liberal. Este corporais'; no caput do artigo 129 é lacónico: "Ofender a in-
Código é o que vigora até o presente. tegridade corporal ou a saúde de outrem''.
Observam os, neste breve passeio histórico, que a ação O novo Código Civil Brasileiro, de janeiro de 2002, se-
humana causadora de dano físico a um semelhante sempre guindo o já estatuído no Código anterior, de 1916, determina
foi alvo de regras jurídicas tendentes a preveni-la, ou senão no seu artigo 186: ''Aquele que, por ação ou omissão voluntá-
puni-la, confo rme critérios estabelecidos em lei. ria, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano
Com o a lei do talião resultava apenas em uma cruel vin- a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito''.
gança pessoal e não em uma reparação real do dano sofrido E nos rem ete ao artigo 927: "Aquele que, por ato ilícito (art.
ou alguma vantagem ao ofendido, à guisa de lenitivo para 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo''.
seu sofrimento ou sua lesão orgânica, os legislado res pos- Devem os, então, co nceituar lesão corporal par a compre-
teriores passaram a compor a relação jurídica com dano ender seus limites e bem caracterizar seus desdobramentos
corporal também através de uma compensação pecuniária, além de tecer algumas considerações e críticas ao conceito.
como tentativa de, senão reparar ad integrum a perda, ao me- Entendemos por lesão corporal qualquer espécie de dano
nos minimiza r o prejuízo do ofendido. ou prejuízo à integridade corporal o u à saúde, física ou men-
Assim, atualmente, podem os separar em duas esfer as ju- tal, de alguém causada por outrem, por uma ação violenta,
rídicas a questão do dano à integridade pessoal do indivíduo. de forma proposital ou não, direta o u indiretamente.
Na esfer a penal, ou criminal, o agressor terá praticado um A noção m édica de "lesão" compreende qualquer altera-
ato, ação ou o missão, antijurídico, indesejado pela socieda- ção o u modificação mor fológica do organism o, que, associa-
de e, portanto, punível com as penas que a lei penal comina da habitualmente a alterações funcionais, provoque algum
para o tipo e a gravidade do caso. As penas no Código Penal grau de prejuízo ao seu desempenho. Tanto em Medicina
representam uma punição pessoal que pode assumir uma Interna e Patologia Médica (cujo objetivo básico é o diag-
das seguintes for mas previstas em lei: privação da liberdade, nóstico e o tratamento das doenças humanas), quanto em
restrição de direitos ou multa. Medicina Legal (onde a finalidade é auxiliar as decisões to-
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 431

madas no mundo jurídico que dizem respeito às questões O dano ou prejuízo à integridade ou à saúde deve ser
biomédicas) as lesões decorrem da ação de agentes agresso- entendido como alteração objetiva, mensurável, observável,
res (internos ou externos) que podem ser de natureza física, ainda que fugaz, estática ou dinâmica, da estrutura orgânica
química ou biológica. ou psíquica do indivíduo, vinculada à ação causadora. A in-
A distinção entre "lesões patológicas" (de interesse mé- tegridade corporal é o equilibrado funcionamento do orga-
dico-terapêutico) e "lesões corporais" (de interesse médico- nismo do indivíduo, e depende da manutenção de sua estru-
legal e jurídico) reside menos em sua origem ou aspecto tura tanto anatómica, quanto fisiológica e mental. E a saúde,
morfológico do que na intenção do agente e no mecanismo nesse contexto, é o estado de contínuo bem-estar biológico,
de sua produção. Assim, as lesões de natureza violenta, in- psíquico e social, com equilíbrio dinâmico do organismo,
tencionais (dolosas ) ou não (culposas), são puníveis pelo interno e com o meio ambiente, de que goza o indivíduo an-
Direito Penal e Civil, quando não protegidas por alguma ex- teriormente à agressão ou ofensa.
cludente de ilicitude prevista em lei (estado de necessidade, A saúde, como bem esclarece o texto da Exposição de
legítima defesa, dever legal ou exercício regular de direito). Motivos da Parte Especial do Código Penal, inclui não ape-
Tendo em vista a abrangência da proteção da lei à víti- nas a saúde física, estrutural e funcional, mas também a saú-
ma, alguns autores advogam ser preferível o termo "lesões de mental em seus aspectos intelectivo, cognitivo, de relação
pessoais'; do que discordamos, data venia, devido à perda da intersubjetiva, comportamental ou afetivo.
especificidade da expressão e, ainda, que assim não dispôs o O texto legal utiliza o verbo "ofender" que significa ma-
legislador, nem o afirma a prática médico-legal. Por exem- chucar, ferir, agredir, prejudicar, magoar, causar dano ou fe-
plo: "Caluniar alguém .. .'; crime previsto no artigo 138 do rimento em alguém. A ofensa é, a priori, intencional, dolosa,
Código Penal, sem dúvida, lesa a pessoa do caluniado, não havendo, como veremos depois, também a forma culposa do
caracterizando, contudo, lesão corporal. crime. Assim, a finalidade do agente é provocar um dano em
A vítima do crime, "outrem", é sempre a pessoa humana outrem.
viva. Não se cogita o crime sobre pessoas jurídicas, coisas ou Diante destas considerações, é de se pensar se a ação cura-
semoventes. Nem sobre o ser humano já cadáver, havendo, tiva do profissional médico-cirurgião configuraria uma lesão
no Capítulo dos "crimes contra o respeito aos mortos'; cri- corporal. Ao utilizar um bisturi seccionando a pele e os teci-
mes específicos previstos neste caso (destruição ou vilipên- dos mais profundos para ter acesso aos órgãos internos do do-
dio ao cadáver, artigos 2 11e212 do Código Penal). ente, o m édico-cirurgião visa salvar a vida, curar ou aliviar o
Uma questão onde restam dúvidas é: quando começa a sofrimento do seu paciente, nunca agredi-lo ou prejudicá-lo.
proteção legal do artigo 129? Em outras palavras, quando co- Embora a ação do cirurgião, classicamente, seja considera-
meça a "vida" da pessoa humana para a aplicação do artigo da um exemplo de excludente de ilicitude, pois é o exercício
em estudo. A Lei Penal é omissa, mas a Medicina Legal define regular de um direito, podemos observar que esta ação nem
como vivo o concepto que, seguindo-se ao parto, respirou. sequer configuraria o tipo penal, é atípica, pois não há a inten-
Já o Código Civil Brasileiro estabelece no seu Art. 2Q: "A per- ção precípua de prejudicar, embora a incisão seja intencional!
sonalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; A ofensa pode ser realizada por qualquer meio (crime de
mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nasci- ação livre), gerando alterações físicas (hemorragias, feridas,
turo". O texto deixa clara a pro teção ao concepto, quanto aos queimaduras etc.), alterações funcionais (choque, insuficiên-
seus direitos civis, mas nada esclarece quanto à sua situação cias orgânicas etc.), alterações mentais (estresse, incons-
penal. A análise do texto permite, obviamente, duas interpre- ciência, fobias etc.) ou ao estado de saúde como um todo
tações no nosso contexto: o concepto, já com direito amplo (uma enfermidade permanente, como uma demência ou
à proteção legal, inclusive penal, pode ser vítima do crime, uma insuficiência orgânica, por exemplo).
ou, a "pessoa humana de direitos" surgiria com o nascimento Evidente é que a ação <lanosa que encontrar um orga-
com vida, como definido na Medicina Legal, assim a lei em nismo já de alguma forma debilitado ou alterado, determi-
tela só se aplicaria a partir do recém-nato vivo. nando uma piora do quadro geral, será também considera-
Muitos autores defendem a primeira tese protecionista da lesão corporal, ainda que não tenha causado o problema
dos direitos humanos. Contudo, a Lei Penal codificada elen- ah initio, pois que a higidez completa prévia não é um requi-
cou crimes especiais referentes ao concepto, a saber, infan- sito do conceito.
ticídio e aborto, como também normatizou consequências A ideia de prejuízo deve sempre estar presente, pois não
para o concepto quando da agressão à gestante (aceleração tem cabimento a possibilidade de punir alguém que melho-
de parto e aborto), nada citando sobre lesões corporais nesta rou o estado de outrem.
fase da vida biológica (vida intrauterina). Outrossim, o feto Da mesma forma, o vínculo ou nexo causal entre a ação
situando-se protegido no álveo materno, e dele dependendo praticada pelo indivíduo agressor e a lesão produzida na ví-
para sua proteção, nutrição e oxigenação, portanto depen- tima é condição necessária para caracterizar o crime de le-
dente do corpo materno, dificilmente será alvo específico são corporal. A ausência de nexo causal descaracteriza o fato
e direto da ofensa à integridade corporal, senão através da como criminoso.
gestante. Pelos motivos expostos, entendemos mais correta É importante ressaltar que a autolesão não caracteriza o
a segunda tese. delito, por não haver relevância jurídica no ato (ver sujeito
432 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

ativo, em aspectos jurídicos, a seguir) nem sentido em punir, Substituição da pena


quando agente e vítima se identificam na mesma pessoa. § ~O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda subs-
Igualmente, lesões produzidas em animais podem ense- tituir a pena de detenção pela de multa, de duzentos mil
jar responsabilidade civil e penal nos donos ou agressores, réis a dois contos de réis:
mas não caracterizam o crime, cuja vítima é sempre o ser I -se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo anterior;
humano. Já lesões produzidas pelos animais no homem con- II - se as lesões são recíprocas.
figuram o delito, quando u sados aqueles como meio de pro- Lesão corporal culposa
dução das lesões, sendo, evidentemente, considerado agres- § 6._ Se a lesão é culposa: ( Ver Lei nº 4.611, de 1965)
sor o dono ou detentor do animal. Pena: detenção de dois meses a um ano.
Aumento de pena
§ ~Aumenta-se a pena de um terço, se ocorrer qual-
• O ARTIGO 129 DO CÓDIGO PENAL quer das hipóteses do Art. 121, § 4º (Redação dada pela Lei
BRASILEIRO - ASPECTOS JURÍDICOS nQ 8.069, de 1990)
§ f3'! Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5Q do Art.
Antes da análise detalhada do artigo legal, devemos co- 12 1 (Redação dada pela Lei nQ 8.069, de 1990)
nhecê-lo na íntegra para termos uma ideia de conjunto. O Violência Doméstica (Incluído pela Lei nQ 10.886, de
texto legal descreve, literalmente: 2004)
§ 9" Se a lesão for praticada contra ascendente, des-
CÓDIGO PENAL- DECRETO-LEI No. 2.848, DE 7 DE cendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem
DEZEMBRO DE 1940 conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o
PARTE ESPECIAL agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospi-
TÍTULOI talidade: (Redação dada pela Lei nQ 11. 340, de 2006)
DOS CRIMES CONTRA A PESSOA Pena: detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Reda-
CAPÍTULO II ção dada pela Lei nQ 11. 340, de 2006)
DAS LESÕES CORPORAIS § 10º Nos casos previstos nos §§ l Qa 3º deste artigo, se
Lesão corporal as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, au -
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de m enta-se a pena em 113 (um terço). (Incluído pela Lei nQ
outrem: 10.886, de 2004)
Pena: detenção de três meses a um ano. § 1l QNa hipótese do § 9" deste artigo, a pena será au -
Lesão corporal de natureza grave m entada de um terço se o crime for cometido contra pessoa
§ 1"· Se resulta: portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nQ 11.340, de
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais 2006)
de trinta dias;
II - perigo de vida; O Código Penal de 1940 tutela, no Título 1 da Parte Espe-
III - debilidade permanente de membro, sentido ou cial, "Dos crimes contra a Pessoa", em seu Capítulo II, "Das
função; Lesões Corporais': a integridade corporal e a saúde do ser
N - aceleração de parto: humano. O seu objeto jurídico é salvaguardar a incolumida-
Pena: reclusão de um a cinco anos. de física e a saúde, tanto física quanto psíquica, do homem,
§ 20. Se resulta: como já discutimos.
I - Incapacidade permanente para o trabalho; O caputdo artigo 129 define: "Ofender a integridade cor-
II - enfermidade incurável; poral ou saúde de outrem''. E comina a pena: "Pena: detenção
III - perda ou inutilização do membro, sentido ou de 3 (três) meses a 1 (um) ano''.
função; Em seguida, o Código elenca, nos seu s atuais 11 parágra-
N - deformidade permanente; fos, as modalidades que admite do crime, bem como gradua
V - aborto: o delito em intensidade, cominando penas mais severas para
Pena: reclusão de dois a oito anos. lesões que determinam alterações mais intensas no organis-
Lesão corporal seguida de morte mo ou na saúde física e/ou mental da vítima. As modalidades
§ 30. Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam são, como veremos: simples, qualificadas pelo resultado, cul-
que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de posa, privilegiada e vinculada à violência doméstica, confor-
produzi-lo: me definida na Lei nQ 10.886, de 17 de junho de 2004.
Pena: reclusão de quatro a doze anos. Assim, analisando, em detalhes, o texto legal, temos:
Diminuição de pena
§ 40. Se o agente comete o crime impelido por motivo de § 1º "Se resulta:
relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta I - incapacidade para as ocupações habituais, por mais
emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o de 30 (trinta) dias:
juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. II - perigo de vida;
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 433

III - debilidade permanente de membro, sentido ou São as chamadas "lesões corporais privilegiadas'; onde
função; ocorrem certas circunstâncias legais específicas, ditas causas
IV - aceleração de parto. de diminuição de pena, como também previsto para o cri-
Pena: reclusão de 1(um)a5 (cinco) anos''. me do artigo 121 do Código Penal (homicídio). Os motivos
de relevante valor social e moral, que são fatores atenuan-
Quando, em decorrência da lesão corporal sofrida, ob- tes genéricos previstos no artigo 65, I, a, do Código Penal,
servamos na vítima alguma das consequências descritas nos não estão detalhados na lei, mas dizem respeito ao interesse
quatro incisos deste primeiro parágrafo, doutrinariamente coletivo e à moral pessoal, como, por exemplo, uma lesão
consideramos "lesão corporal grave", sendo a pena comina- produzida em defesa da própria honra. Já a violenta emoção
da mais severa, na modalidade (reclusão) e no tempo de deve ser de tal monta que comanda o indivíduo, que reage
cumprimento. imediatamente, após conduta provocativa não motivada.

§ 2º "Se resulta: § 5º "O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda
I - incapacidade permanente para o trabalho; substituir a pena de detenção pela de multa:
II - enfermidade incurável; I - se ocorrer qualquer das hipóteses do parágrafo
III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função; anterior;
IV - deformidade permanente; II - se as lesões são recíprocas''.
V-aborto.
Pena: reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos''. Neste parágrafo encontramos, nas lesões leves dolosas
privilegiadas, uma forma de substituição de pena, de privati-
Neste parágrafo, defrontamo-nos com lesões que geram va de liberdade por multa pecuniária que também é aplicada
consequências mais graves ainda para a vítima e, embora o na situação de reciprocidade de lesões. Tanto neste quanto
Código as situe, juntamente com as anteriores, em "lesões de no parágrafo anterior, a doutrina penal entende que o juiz
natureza grave", a doutrina médico-legal utiliza a denomi- deve, obrigatoriamente, proceder à minimização da pena,
nação "lesões gravíssimas': com pena ainda mais severa. Estes embora o Código use o termo "pode".
dois primeiros parágrafos preveem as mo dalidades qualifica-
das pelo resultado. § 6º- "Se a lesão é culposa.
Por exclusão, quando da lesão corporal não resultar qual- Pena: detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano''.
quer das consequências dos §§ P e 22 do artigo 129 do Có-
digo Penal, limitando-se o delito previsto apenas ao descrito Neste caso, deparamo-nos com a "lesão corporal culposa",
no caput, usamos o termo "lesão corporal leve'; que assim diferentemente do que até aqui vimos, que são as lesões cor-
se caracteriza por dois elementos, um positivo, presença de porais dolosas e sua classificação, onde há o elemento subje-
uma lesão corporal, e outro negativo, a ausência das conse- tivo "intenção" ou "vontade" no ato delituoso: o dolo. Nota-
quências previstas nos parágrafos (é a modalidade dita sim- mos que a pena é bem menor que nas modalidades dolosas
ples do crime). do crime, como não poderia deixar de ser, pois a lesão foi
fruto da negligência, da imprudência ou da imperícia, mas
§ 3º "Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam não da vontade de lesar.
que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de
produzi-lo. § 7º "Aumenta-se a pena de um terço, se ocorrer qual-
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos''. quer das hipóteses do artigo 121, § 4º''.
§ 8º ''Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5º do ar-
Trata-se aqui da "lesão corporal seguida de morte'; ou o tigo 121''.
dito homicídio preterdoloso, o nde há, por parte do agente,
o dolo, a intenção no antecedente (quando gerou a lesão Nestes dois parágrafos encontramos os casos de aumento
corporal) e a culpa, o nexo, não intencional, no consequen- de pena (artigo 121, § 4Qdo mesmo código ) e o caso do agen-
te (havia a previsibilidade da mo rte, embora não o desejo, te punido pela própria consequência do seu ato (artigo 121,
nem a assunção do risco de provocá-la). Fica clara assim a § 511 do mesmo código).
distin ção deste crime do homicídio culposo, no qual não há Vale a pena citar os casos de aumento de pena do § 42
o dolo no antecedente (lesão corporal que gerou a morte). do artigo 121 citado anteriormente: inobservância de regra
Não cabe, também, aqui, a figura do crime tentado, o qual se técnica de profissão, arte ou ofício, não prestar imediato so-
constituiria em tentativa de homicídio. corro à vítima, não procurar diminuir as consequências do
ato e fugir para evitar prisão em flagrante.
§ 4º "Se o agente comete o crim e impelido por motivo de
relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta Violência Doméstica (Incluído pela lei rf!.10.886, de2004)
emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o § 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, des-
juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço''. cendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem
434 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o indisponível. O Estado, que deve zelar pela integridade fí -
agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospi- sica e pela saúde dos indivíduos, autoriza certas atividades
talidade. (Redação dada pela Lei nQ11. 340, de 2006.) sempre, ou potencialmente, lesivas, como a prática de lutas e
Pena: detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Reda- esportes violentos ou arriscados, de certa forma abrandando
ção dada pela Lei nQ11.340, de 2006.) esta indisponibilidade. A lei 9.099/95, que trata dos Juizados
§ 10" Nos casos previstos nos§§ l Qa~ deste artigo, se Especiais Cíveis e Criminais, também modificou o conceito
as circunstâncias são as indicadas no § 9" deste artigo, au- de total indisponibilidade da integridade física, quando, nos
menta-se a pena em 113 (um terço). (Incluído pela Lei nQ casos de lesões leves o u culposas, a vítima é que decide se o
10.886, de 2004.) Estado irá ou não processar o agente que provocou a lesão.
Isto porque os Juizados Especiais Criminais têm compe-
A Lei nº 10.886 de 2004 acrescentou os§§ 9º e 10º ao ar- tência para a conciliação, o julgamento e a execução das in-
tigo 129 qualificando, assim, a violência doméstica no crime frações penais de menor potencial ofensivo, definidas no Art.
de lesões corporais, embora as situações descritas já fossem 61 da referida lei: consideram-se infrações penais de m enor
contempladas, em parte, como agravantes no artigo 61, II, do potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções
mesmo Código. penais e os crimes a que a lei comine pena m áxima não supe-
Não há que se confundir, aqui, a violência doméstica com rior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. (Redação
a violência contra a mulher, detalhada e especificamente coi- dada pela Lei nº 11.313, de 2006.)
bida pela Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida A lesão à integridade físico -psíquica, ainda que autoriza-
como Lei Maria da Penha. Aqui se pune a violência domésti- da pela vítima, não exclui o crime. Contudo, a evolução dos
ca e familiar, independentemente do sexo da vítima. Contu- costumes e as necessidades pessoais e sociais têm permitido a
do, quando a vítima for mulher, o tratamento será o previsto disposição voluntária do corpo, desde que a prática não seja
proibida por lei, esteja dentro do campo da moral social e não
no estatuto específico, com punição mais severa.
comprometa a segurança da comunidade. Citamos, como
exemplos, competições esportivas (futebol, basquete, boxe,
§ 1lQ Na hipótese do § 9" deste artigo, a pena será au-
lutas marciais etc.), onde as lesões corporais, obrigató rias ou
mentada de um terço se o crime for cometido con tra pessoa
eventuais, são toleradas (desde que dentro das regras pre-
portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nQ11.340, de
vistas), a colocação de adereços no corpo (brincos, piercing,
2006)
tatuagens) e a doação voluntária e gratuita de sangue e de
órgãos para transplantes, esta última, a expressão máxima de
Trata-se de uma nova situação de aumento de pena espe-
amor e doação ao sem elhante.
cífico, quando a vítima é portadora de deficiência em qual-
Podemos afirmar, então, que a integridade física é, hoje,
quer de suas modalidades. A deficiência a que alude o pará- considerada relativam ente disponível.
grafo está definida no Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro O sujeito ativo do crime, quem pratica o ato, pode ser
de 1999, que regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de o utubro de qualquer pessoa, sendo dito crime comum quanto a este (di-
1989, em seu artigo 3º: considera-se deficiência to da perda ferente do crime dito próprio, onde só certas pessoas, com
ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fi- características específicas, podem ser os agentes).
siológica ou anatômica que gere incapacidade para o desem - Como já afirmado, a autolesão não caracteriza o tipo pe-
penho de atividade, dentro do padrão considerado normal nal. Porém se o autoagressor causou-se o dano com finalida-
para o ser humano. Categorizando-a, no artigo seguinte, em: de escusa, poderá estar incurso em outros crimes previstos,
física, auditiva, visual, mental ou múltipla. Em qualquer des- como, por exemplo, o estelionato (artigo 171 do Código Pe-
sas hipóteses de deficiência, o parágrafo deverá ser aplicado. nal) no caso de fraude a seguro ou na legislação penal mili-
tar (artigol84 do Código Penal Militar), no caso de fraude à
incorporação militar.
• LESÕES CORPORAIS NA DOUTRINA DO Qualquer pessoa viva, diversa do agente, pode ser sujeito
DIREITO PENAL passivo, ou vítima, do crime, lembrando que vivo está quem
nasceu com vida até o momento da morte (ver capítulo de
Descrito, acima, o crime de lesões corpor ais conforme a Tanatologia). Lesão em cadáver caracteriza outro crime,
nossa legislação penal, faremos uma breve análise dos ele- com o já descrito anteriormente.
m entos jurídicos do crime de lesão corpor al em abstrato, A lesão ao feto com morte caracteriza o crime de aborto
com o, aliás, analisam-se na Ciência Jurídica os demais de- (artigos 124 a 127 do Código Penal) e sem a morte do con-
litos, a saber: bem jurídico tutelado, sujeitos ativo e passivo, cepto, poderá se enquadrar em aceleração de parto, se este
tipos objetivo e subjetivo, excludentes do crime e caracterís- ocorrer ou, considerando ser ele ainda parte do organismo
ticas da ação penal. materno, deverá ser considerada lesão corporal na gestante e
O bem jurídico tutelado pelo legislador, como já citado, é assim graduado, conforme a consequência existente. Na rara
a integridade e a saúde física e psíquica do ser humano vivo, hipótese de o concepto nascer com sequelas permanentes
enquanto bem individual e social, sendo um bem, a priori, da agressão à mãe, caberá ainda reparação civil, pois, como
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 435

já visto, a lei civil protege o nascituro (artigo 2rr de Código Como já observado, configura o crime tanto iniciar uma
Civil Brasileiro). Havendo a mo rte do concepto, após o seu alteração como agr avar ou fazer persistir outra já existente.
nascimento com vida, em decorrência da agressão, haverá o Quanto à violência empregada, pode ser física (socos,
concurso do crime de homicídio. golpes com armas o u objetos etc. ) o u moral (ameaça, terror
Como já discutido, hoje, muitos autores entendem po- etc.), gerando lesões físicas e/ou psíquicas. O crime po de
der ser o concepto, em qualquer fase do seu desenvolvimen- se dar por ação direta ou indireta, quando o agente leva a
to, vítima do crime de lesões corporais. Embor a discorde- vítima à situação qu e causa a lesão. Responde também pelo
mos desta interpretação, caberá demo nstrar, para os que crime o agente que instiga alguém irrespo nsável (meno r,
entendem desta fo rma, além da intenção do agente de lesar d oente mental etc. ) ou drogad o para provocar lesão em si
diretamente o feto e d o uso de m eio eficaz, as lesões no cor- m esmo.
po ou na saúde do produto da concepção para a aplicação Também os meios de execução são os mais variados
do artigo 129. possíveis, sendo um crime de forma livre. Tod o o espec-
Nos casos específicos do inciso IV, do§ lrr e do inciso V, tro de agentes e ações vulnerantes estudados no capítulo
do§ 22 , evidentem ente a vítima deverá ser mulher grávida. de Traum atologia Fo rense pode aparecer na produção de
Vale, ainda, lembrar que nos casos de lesão corporal do- uma lesão corpo ral.
losa onde a vítima é menor de 14 anos de idade, há aumento O crime pode ainda ser consumado, quando o objetivo
de pena de um terço, confo rme o Estatuto da Criança e do de causar a lesão é atingido, ou apenas tentado, neste caso
Adolescente, no seu artigo 263. quando o agente falha em causar o dano desejado, por moti-
A Lei nrr 9.503/97, que institui o Código de Trân sito Bra- vo alheio à sua vontade. A tentativa é admitida nos casos de
sileiro, prevê no artigo 303 a lesão corporal culposa praticada lesões corporais leves ou nas qualificadas, quando o delito
na direção de veículo automotor, com pena pró pria (deten- não é preterdoloso. Assim, não cabe a tentativa, por exemplo,
ção de 6 meses a 2 an os), e ainda outros crimes relacionados. nas lesões gravíssimas seguidas de aborto. A pluralidade de
Um crime é conceituado com o uma conduta antissocial pre- lesões corporais na vítima (ou vítimas ), sendo una a agres-
vista em lei como um fato típico e antijurídico. Os diversos são, não acarreta a somação de crimes (situação chamada de
crimes que existem estão elencados no Código Penal e em concurso formal). Entende-se haver crime único.
várias outras leis penais, ditas extravagantes. Tipo penal é a O tipo subjetivo do crime é, na m aioria dos casos, o dolo
descrição concreta da conduta proibida, que define o crime, o u vontade de produzir o dano. São os chamados: animus
onde buscam os enquadrar a ação do agente. A ação do agen- nocendi, animus laedendi ou animus vulnerandi. Não pode
te agressor que se enquadra na descrição legal é dita "típica", haver é o desejo de provocar a morte, o animus necandi, que
e "atípica" quando não caracteriza a espécie penal. caracteriza o crime de ho micídio. Mas o crim e do artigo
O núcleo do tipo objetivo no crime de lesão corpor al é 129, em seu § 6Q, admite, também, a modalidade culposa,
ofender a integridade corporal ou a saúde, quer física (anatô- quando o agente produz o resultado por culpa sem ter a in-
mica ou fisiológica), quer psíquica, independente da exten- tenção de fazê-lo. Há culpa quando o agente, sem a inten-
são o u d o meio utilizado para produzi-la. Ofender é agredir, ção, dá causa ao resultado por negligência, imprudência ou
prejudicar, provocar uma alteração desagra dável o u lesão imperícia.
física. Assim, qualquer dano a tecidos ou órgãos, interno ou Valem , para o crime de lesão corporal, as excludentes de
externo, com o u sem hemo rragias, bem como distúrbios fi- an tijurídicidade previstas no artigo 23 do Código Penal, que
siológicos ou psíquicos, caracterizam o delito. são as situações em que o ato, em tese, ilícito, não se confi-
Como dito anteriormente, algumas lesões são autoriza- gura com o crime:
das pelo Estado (lutas, esportes etc.) e não são produzidas
com o animus nocendi. Uma ento rse no tornozelo de um jo- Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
gad or de futebo l após uma entrada mais dura do zagueiro, I - em estado de necessidade;
não foi produzida com a finalidade de lesar, mas de impedir II - em legítim a defesa;
o gol. Nesses casos, a conduta do agente é completamente III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exer-
atípica, não se configurando o crime. Claro está que há casos cício regular de direito.
em que pode haver o dolo de ofender a integridade corporal
e devem ser analisados pela Justiça. E o Código continua, estabelecendo estes conceitos:
Quando o dano da lesão produzida é insignificante, tem
sido aplicado, na prá tica jurídica, o princípio da insignificân- Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem
cia, pois o prejuízo é considerad o ínfimo. São exemplos a pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou
dor e o rubor passageiros de um tapa ou um beliscão. Há por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito
inclusive acórdão do Supremo Tribunal Federal utilizando próprio ou alheio, cujo sacriftcio nas circunstâncias, não era
tal princípio. Contudo, não é de consenso absoluto no mun- razoável exigir-se.
do jurídico. Muitos casos configuram outros delitos, como a Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem , usando
injúria real (artigo 140, § 2rr, do Código Penal) ou as vias de moderadamente dos meios necessários, repele injusta agres-
fato (uma contravenção penal, infração menor). são, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
436 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

As situações do inciso III não fo ram discriminadas no Lesões Corporais e o Crime de Tortura
texto legal, devendo ser interpretadas caso a caso.
Estrito cumprimento d o dever legal é o caso típico do A Lei nº 9.455/97 define, qualifica e determina as sanções
policial que, agindo dentro das regras, lesiona alguém ao referentes ao crime de tortura. Seu artigo 1n conceitua o cri-
prendê-lo. Há exercício regular d o direito quando, por exem - me de tortura como:
plo, os pais usam medidas corretivas nos filhos, sem excessos
ou abusos. Mas a interpretação do caso específico fica a cargo I - constranger alguém com emprego de violência ou
d o magistrado. grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
É interessante lembrar que as lesões corporais são absor- a) com o fim de obter informação, declaração ou confis-
vidas por tod os aqueles outros crimes em que há o emprego são da vítima ou de terceira pessoa;
da violência como meio de execução, como por exemplo: b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
roubo (artigo 157) e estupro (artigo 2 13). É a aplicação do c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
princípio da subsidiariedade implícita. II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autori-
dade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo
pessoal ou medida de caráter preventivo.
• A AÇÃO PENAL NAS LESÕES
Pena: reclusão de dois a oito anos.
CORPORAIS
No § 3Q determina que: "Se resulta lesão corpor al de na-
Sendo o crim e um fato que lesa direitos do indivíduo
tureza grave o u gravíssima, a pena é de reclusão de quatro
e agride a Sociedade, cabe ao Estado reprimi-lo, perse-
a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis
guindo e punindo o agente da ação criminosa, através do
anos''.
processo penal que culminará com uma pena ou sanção ao
Observa mos que, presente os requisitos da definição de
crimin oso.
tortura, há um aumento na pena nos casos de lesões cor-
A ação penal é a atuação correspondente ao direito de porais, pela natureza hedionda do crime. O crime é ainda
punir do Estad o, que leva ao conhecimento do juiz um fa to
inafiançável e insuscetível de graça o u anistia, confo rme o
revestido da apa rência de infração penal, ind icando seu pro-
§ 6º da lei.
vável autor e pedindo-lhe a aplicação do direito penal objeti-
vo, através do devido processo legal.
A ação penal pode ser pública ou privada. É pública Lesões Corporais e a Prática da Medicina
quando o Estad o, através do Ministério Público, é o sujeito
No exercício da profissão, o m édico, frequentemente, ne-
d o exercício do direito à jurisdição. É privada quando cabe
cessita realizar procedimentos no paciente, sejam diagnósti-
ao ofendido mover a ação para defender direito seu e ocorre
cos ou terapêuticos, que provocam alterações estruturais e/ou
quando seu interesse se sobrepõe ao menos relevante interes- funcionais, físicas ou psíquicas, com a nobre finalidade de
se público, e a lei expressamente o permite e prevê. tratar, curando o mal, quando possível, mas sempre paliando
o sofrimento do indivíduo. A prática médica é atividade so-
O caput do artigo 100 do nosso Código Penal dispõe: cial fundamental e necessária, desejada e protegida na legisla-
Art. 100. A ação penal é pública, salvo quando a lei ex- ção positiva, desde que exercida dentro dos limites legais, por
pressamente a declara privativa do ofendido. profissionais habilitados técnica, ética e legalmente para tal.
Desta fo rma, os atos médicos, corretamente indicados e
No crime de lesão corporal o bem protegido, a saúde e adequadamente executados, praticados com o consentimen-
a integridade corporal, é de relevante valor social e, portan- to do paciente, ou mesmo sem ele, nos casos de estado de
to, merece a defesa imperiosa do Estado, com as ressalvas já necessidade em favor de terceiros (como, por exemplo, cirur-
descritas. Assim, o crime de lesão corporal grave, gravíssima gias de urgência em pacientes que dão entrada no pronto-
e seguida de morte será de ação penal pública incondiciona- socorro inconscientes e sem responsáveis), não configuram
da, po dendo o Ministério Público movê-la independente de o crime de lesão corporal. Nem poderia ser diferente, po is
provocação do ofendido. o Estado não pode auto rizar uma prática e considerar sua
Já os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culpo- execução um delito!
sa serão de ação penal pública condicionada à representação Além do mais, o tipo penal fala em "ofender a integri-
do ofendido, confo rme o artigo 88 da Lei nº 9.099/95. Houve dade corpor al ou a saúde'; que é exatamente o contrário da
um abr andamento da lei nesses casos, utilizando o Princípio missão do médico, que procura sempre restabelecer a saúde
da Insignificância e o conceito de infrações penais de menor e manter a vida e a integridade física e psíquica do indiví-
potencial ofensivo, mas protegendo, ainda, o direito do ofen- duo. Assim, a prática médica lícita é ação totalmente atípica,
dido. Em parte esta medida de política criminal em nosso com a raríssima e única exceção de um m édico realizar um
país funcionou, também, para melhorar e agilizar o fluxo procedimento com a intenção de provocar dano no paciente,
processual penal e civil. talvez por vingança pessoal ou outro interesse escuso.
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 437

Tradicio nalmente, no direito penal, os atos médicos, que d os. Cirurgias plásticas estéticas, com modificações notáveis
podem gerar alterações no o rganism o (como uma cicatriz do aspecto físico (alterações na face, mudanças no volume
cirúrgica qualquer) não são punidos com o lesão corporal, das mamas etc. ) são perfeitamente aceitas pelos órgãos de
po is se considera que o médico age no exercício regular de classe e pela justiça, desde que lícitas. Doação e transplante
direito, que é uma excludente de ilicitude prevista no artigo de órgãos são regulad os pela Lei Federal 9.434/97 e Portaria
23, inciso III, do Código Penal. Não resta dúvida de que a 3.407/98, que estabelece condições e limites de sua prática.
exclusão é correta, mas ela não se dá pelo artigo citado, e sim A cirurgia de adequação de genitália (mais conhecida como
pela própria atipicidade da conduta (ato médico), como dito cirurgia de mudança de sexo ) é reconhecida e normatiza-
antes. Senão estaríamos admitindo que os médicos ofendem da pelo Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução
a integridade de seus pacientes! Apenas não seria crime, por- 1.652/2002, com o procedimento médico lícito e ético, obe-
que a lei permite essa ofensa ... decidos todos os seus requisitos, e inclui a transgenitalização
Na prática jurídica, pode ser imputado o crime ao mé- e procedimentos complementares (nas gónadas e o utros ca-
dico por cometer lesão cor poral na sua modalidade culpo- racteres sexuais secundários). Também a esterilização cirúr-
sa, devido à negligência, imprudência o u imperícia (os três gica é ato lícito se respeitados os preceitos exarados na Lei
possíveis elem entos da culpa, segundo o artigo 18, inciso II, 9.263/96, que regulam enta o planejamento fa miliar, e inclu-
do Código Penal). Porém, mesmo nestes casos, observamos sive prevê as sanções ao seu descumprimento.
que o médico age sem animus vulnerandi e, pelo contrário,
busca não ofender, mas preservar a saúde do indivíduo. Sua
atividade é exatamente o inverso do previsto no tipo penal. • CONCAUSAS E LESÕES CORPORAIS
Difere, ainda, de muitas o utras atividades, habituais ou pro-
fi ssionais, que não têm esta finalidade e gua rdam um risco No estudo das lesões corporais é muito importante oco-
inerente, previsível, na sua execução, com o dirigir um au- nhecimento das concausas. Concausa(s) é( são ) o( s) fato r( es)
tomóvel, por exemplo. Quem dirige um carro sabe que po- capaz(es) de m odificar o curso natural do resultad o da ação
derá atropelar e lesio nar alguém mesmo que não o deseje, lesiva, desconhecido, ou não evitável, pelo agente. Podem
mas por circunstân cias alheias à sua vontade. O médico, ao ser preexistentes, quando precedem a ação lesiva, por exem-
faze r um diagnóstico o u decidir uma terapêutica, não pode plo, uma vítima com doença cró nica o u com apenas um
sequer pensar em risco o u possibilidade do erro, excetuando dos órgãos duplos funcionando, ou supervenien tes, quando
as complicações conhecidas inerentes à prática médica (por complicam a lesão corporal sem culpa direta do agente, sen-
alguns, cham adas de "risco"). do exemplo a infecção bacteriana o u o tétano consequente
A Medicina não é ciência exata e sua pr ática está, necessá- a um ferimento.
ria e indissoluvelmente, relacionada a alterações no organis- As concausas preexistentes podem decorrer de condi-
mo do paciente. Seu exercício é necessário, desejado e pro- ções patológicas (doenças pr évias ou fraqueza ano rmal de
tegido pela lei, e fundamental à sociedade. O Direito Penal órgão ou tecido ) o u de variações orgânicas da no rmalidade
visa coibir e punir condutas indesejáveis, desnecessárias e (anomalias topográficas de órgãos, distribuição incomum de
antissociais. Como poderá o médico, então, estar cometendo vasos etc. ).
um "crime" ao agir?! Poderá, sim, responder civilmente, na No caso das concausas preexistentes, há controvérsias
forma de reparação pecuniária, ou outra cabível, na esfer a quanto ao modo de aplicação da sanção penal. Há juristas
civil, pelo dano causado ao paciente pela atitude comprova- que admitem responsabilizar o agente por toda a extensão d o
dam ente culposa, onde age com negligência (não faz o que dano, nos casos, por exemplo, em que num local de menor
deve), imprudência (faz o que não deve) ou imperícia (co- resistência da vítima, desconhecido pelo agressor, aumente a
mete um erro técnico grosseiro ). extensão da lesão corporal. Outros discordam e acham q ue o
Acreditam os, pelo exposto, que so mente algum desvio agente não deva responder por dano que não poderia prever.
muito grotesco de conduta profissional, a ser cuidadosa e Po r exemplo, se o agressor desconhece o estado de gravidez
cientificam ente analisado e comprovado na perícia m édico- da vítima e, em consequência do ato lesivo provoca o aborto,
legal, e diga-se, bastante raro, deve ter a fo rça de expor este não se poderia enquadrar o crime no inciso V, do § 2" do
profissional ao processo criminal por lesões corporais. Mas a artigo 129, respo ndendo por lesão corporal leve. Há decisões
questão é po lêmica. nos tribunais em ambos os sentidos, prevalecendo a segunda
Na esfera civil, o dano provocado pela atuação do médi- posição.
co, o u outro profissional da saúde (artigo 95 1 do Código Ci- Entendemos que o agressor não deve se beneficiar se há
vil), deverá ser analisado com o os demais danos (ver adian- apenas variação da normalidade, m as no restante concorda-
te), mas com o enorme cuidado de bem determinar o nexo m os com a segunda posição, a m enos que a lesão causasse o
de causalidade entre a prática profissional e o dano presente, resultad o mais grave mesmo em uma pessoa normal.
tema mais bem explorado nos textos específicos sobre erro Já as concausas supervenientes, se vinculadas ao evento
médico (ver Bibliogr afia Consultada) . lesão diretam ente, importam , sem sombra de dúvida, na
Alguns procedimentos cirúrgicos já causaram muita po- qualificadora, pois não ocorreriam se não ocorresse primei-
lêmica no passado, estando hoje adequadamente normatiza- ramente a lesão.
438 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

• O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E AS Pode parecer que a atividade médica se enquadra nas ati-
vidad es que implicam risco por sua natureza, e, neste caso,
LESÕES CORPORAIS num possível caso de "erro médico': não seria necessário ve-
rificar qualquer culpa do profissio nal, bastando haver o dano
A finalidade da lei penal é defender os bens jurídicos
e o nexo causal! Isto apavoro u, na época da entrada em vigor
relevantes ao hom em e à sociedad e. A evolução da doutri-
do Código, toda a classe médica e, de certa fo rma, estimulou
na jurídico-penal, motivada pelos princípios da justiça, da
a entrada do famigerad o seguro profi ssional do médico em
proporcionalidade e da relevância do bem tutelado, criou o
nosso país, que tem se mostrado, nos países onde é, há muito,
chamado princípio da insignificância ou da bagatela, que per-
adotado (p. ex., nos Estados Unidos da América), mais preju-
mite excluir, em princípio, os danos de po uca importância
dicial que benéfico aos profissionais, à justiça e à sociedad e.
em alguns tipos penais, inclusive o de lesão corporal. A insig-
nificância da lesão afastaria a sua tipicidade. Contudo, a boa doutrina ensina que o Código se refere
àquelas atividades que geram riscos po r serem perigosas ou
Confo rme já acim a discutido, em nossos tribunais ainda
insalubres, como tratar com explosivos, atividades de trans-
é controvertida sua aceitação, mas há inúmeras decisões ju-
porte coletivo etc., e não à atividade médica, ou outra de
diciais que nele se fundamentam (nesse sentido JUTACRIM
saúde, pois, m ais uma vez ressaltam os que a missão desses
SP, 75:307, JC 65:375 etc.), sendo cabível sua aplicação no
profi ssionais é a própria manutenção da saúde, e se existem
crime d o artigo 129 d o Código Penal.
riscos - e, de certa forma, eles sempre existem - são inerentes
O Direito Civil vem aplicando também este princípio em
e secundários ao objetivo maio r da atividad e, descabendo a
algumas situações, em particular às causas cujo valor pecu-
teoria da responsabilidade objetiva ou do risco.
niário dado à indenização é considerado muito baixo. A ação
Tanto assim que, mais adiante, no artigo 95 1, determina
civil ocorre nos Juizados Especiais Cíveis, conhecid os com o
o código: "O disposto nos artigos 948, 949 e 950 aplica-se
Juizad os de Pequenas Causas.
ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exer-
cício de atividade profissio nal, por negligência, imprudência
• LESÕES CORPORAIS NO DIREITO CIVIL ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal,
causar-lhe lesão o u inabilitá-lo para o trabalho", fazendo
Com o já m encio nado alhures, na esfera do Direito Civil, nítida referência à atividade dos profissionais da saúde a ao
as lesões corporais importam na reparação pecuniária do elemento culpa . Este artigo substituiu o art. 1.545 do Código
dano causado (artigos 186 e 927 caput do Código Civil) . Civil de 1916, e afirma, como também o faz o mais pretérito
Dano, aqui, significa algum tipo de lesão a um bem jurídico. Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) em seu ar-
As lesões que determinam prejuízo funcional ou estético tigo 14, § 4º, a necessidade de apuração da culpa na respon-
ao ofendido, devem ser compensadas o u reparadas através sabilidade civil do profissional da saúde.
de uma indenização, que levará em conta as perdas pessoais Deve ser dito, ainda, que, com o determina o artigo 935
decorrentes da lesão (artigo 949 e 950), po dendo o prejuízo do Código Civil, a responsabilidade civil é independente da
ser patrimonial ou extra patrimonial. Os danos patrimoniais penal, m as q uando esta estiver decidida no crime, não há que
são classificados em: dano emergente (custo de tratamen- se discutir o fa to ou seu autor no âmbito civil, apenas a inde-
tos, internação etc.), o lucro cessante (valor que se deixa de nização em todos os seus aspectos.
ganhar em decorrência da lesão, e que pode ser temporário
ou permanente) e outras perdas patrimoniais possíveis. Já o
dano extra patrimonial ou moral inclui o dano estético com • ASPECTOS MÉDICO-LEGAIS DAS LESÕES
prejuízo na autoestima e na vida de relação social, o dano CORPORAIS
psíquico e outros prejuízos ligados aos direitos da personali-
dade (ver, mais abaixo, a perícia na esfera civil). As lesões cor porais são classificadas, no Direito Penal,
Determina, ainda, o Código Civil de 2002, que a indeni- em lesões leves, graves e gravíssimas, tendo como critério
zação deverá ser mensurada conforme a extensão do dano não o tipo específico de lesão o u agente lesivo, m as sim, as
(artigo 944). E mais, havendo concorrido a vítima para o consequências que geram , sob o prism a anatómico e fun-
evento culposo, haverá redução da responsab ilidade do au- cional, no organismo da vítima. Corresponde ao tipo mais
to r (artigo 945) . realizado de exame de corpo de delito no exercício da Clínica
Sobre a questão da responsabilidade nos casos de indeni- Médico-legal.
zação por lesões, o artigo 927, em seu parágrafo único, assim A lei especifica as lesões tanto sob o aspecto quantitativo
se pro nuncia: "Haverá obrigação de reparar o dano, inde- quanto qualitativo. Assim, lesões extensas de natureza fugaz
pendentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou não se compar am a uma lesão única e pequena, m as que leve
quando a atividade no rmalmente desenvolvida pelo autor à perda ou inutilização de um órgão o u função importante
do dano implicar, por sua natureza, risco par a os direitos de para a saúde, quanto à quantidade do dano causado.
outrem". Esta obrigação, independentemente da culpa, é dita As lesões corporais em Medicina Legal devem ser anali-
"responsabilidade objetiva" e sua incidência se dá na cham a- sadas, não tanto quanto à natureza da alteração mo rfofun -
da "teoria do risco". cional e sua tratabilidade, como na traumatologia clínico-
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 439

cirúrgica, mas quanto aos elementos que interessam ao es- de 11.495 em 1996, o que indicaria um aumento inicial com
clarecimento da Justiça. Estes elementos importantes, que posterior redução da violência. Mas a diminuição verificada
devemos analisar, são: no último intervalo não significa redução dos índices de
os agentes vulnerantes; violência, e sim o resultado de uma norma da Secretaria
a sede e a extensão das lesões; de Polícia Civil, que determinou que fossem regionalizados
o nexo de causalidade entre ação e lesão; os exames de lesão corporal em algumas delegacias policiais
as consequências orgânicas e psíquicas das lesões; para onde deslocaram alguns peritos.
a perenidade e gravidade das alterações funcionais Para melhor analisar a realidade, basta que se comparem
geradas pela lesão; e os números de perícias de lesão corporal com os laudos ca-
as repercussões da mesma na saúde e vida do indiví- davéricos realizados na mesma época, para que se confirme
duo, objetiva e subjetivamente. o fato. O total de exames cadavéricos, em sua imensa maioria
Agentes de lesão são todos os instrumentos ou meios que, por mortes violentas, foi de 2.644 no ano de 1955, de 8.571
atuando no organismo determinam lesões, e podem ser de em 1973 e de 10.474 em 1996, pois não houve descentraliza-
natureza física (mecânica, térmica, elétrica etc.), química ção das atribuições do necrotério do IML Afrânio Peixoto.
(tóxicos, venenos, cáusticos etc.), biológica (agentes infec- Conclusão: a violência nas grandes cidades, infelizmente,
ciosos, alterações da nutrição etc.) ou mista (que associam vem crescendo.
naturezas diversas) e são estudados detalhadamente no capí-
tulo da Traumatologia Forense.
Lesões Corporais Leves
O termo lesão, que amiúde é utilizado de forma vaga, im-
precisa e mesmo errônea, tanto por juristas quanto por pro- As lesões corporais leves são definidas como aquelas que
fi ssionais da sa úde, deve ser, para evitarmos confusões descri- atendem ao enunciado do caputdo artigo 129 do Código Pe-
tivas e interpretações dúbias, bem definido e caracterizado. nal Brasileiro, mas não geram nenhuma das consequências
Em Traumatologia, lesão é uma modificação estrutural descritas nos incisos dos§§ lº, 2º e 3º deste artigo.
(e consequentemente funcional) do organismo, provocada Correspondem a cerca de 80% dos exames periciais
pela ação de uma energia externa (uma agressão). Altera- realizados em vítimas de crimes na prática da Clínica
ções funcionais (incluindo as psíquicas) que não apresentem Médico-legal.
correspondên cia estrutural, não deveriam ser deno minadas Quanto à sua natureza, podem ser de qualquer das mo-
lesões, sob esta visão estritamente técnica. Entretanto, na le- dalidades estudadas na Traumatologia forense, sendo mais
gislação v igente, e também na prática médica, o termo "lesão" frequentes, na prática, as causadas por ação contundente,
abrange estas alterações, como apreciamos no artigo 129, tais como: edema traumático, escoriações, equimoses, he-
"lesões corporais", que inclui alterações físicas, psíquicas e da matomas, feridas contusas superficiais, entorses, luxações e
saúde como um todo. fraturas.
As lesões poder ter variados aspectos, conforme o tipo de Atingem, geralmente, a pele e o tecido celular subcutâneo
agente vulnerante, a forma, duração e intensidade de ação e po dem lesar pequenos vasos sanguíneos, com consequen-
deste agente e as características do organismo agredido (lo- te hemorragia, sendo d e repercussão orgânica discreta, fácil
cais e gerais) e são estudadas, em detalhes, em outros ca pí- tratamento e rápido restabelecimento ao normal. Porém,
tulos desta obra. mesmo lesões a órgãos internos importantes, quando fuga-
A localização e a extensão das lesões no corpo da vítima zes e não prejudiciais ao seu funcionamento normal futuro,
são fundamentais na caracterização da gravidade do delito são assim classificadas.
e no estabelecimento do nexo de causalidade, devendo ser Aquelas agressões que causam mínimas alterações, como
cuidadosamente descritas. as rubefações, po dem ensejar o princípio da insignificância
O nexo da causalidade é relevante elemento a ser carac- (ver Aspectos Jurídicos) ou ainda caracterizam outro delito
terizado pela perícia para instruir a ação criminal, sendo mais leve, o de "vias de fato" (artigo 21 da Lei das Contraven-
muitas vezes d e extrema complexidade para o perito a sua ções Penais - Decreto-lei 3.688, de 3 de o utubro de 1941 ),
caracterização. Sem a presença do nexo causal, não há como descaracterizando o crime de lesões corporais (neste sentido
v incular a ação cometida com o dano observado, muitas ve- RT 670/328). Há quem discorde desta posição.
zes descaracterizando o próprio crime. A dor é sintoma, portanto elemento totalmente subjetivo,
As consequências, gravidade, perenidade e repercussões das não bastante em si para caracterizar lesão corporal, embora
lesões embasam, por fim, sua classificação legal, devendo ser existam diversas manobras clínicas para tentar evidenciá-la
detalhadamente especificadas pelo perito e serão estudadas a mas que são, no mínimo, questionáveis. No fenômeno clí-
seguir. É interessante comentar que as estatísticas referentes nico "dor': interagem diversos aspectos físicos, emocionais,
aos exames de corpo de delito de lesões corporais são úteis culturais e sociais variando de indivíduo para indivíduo em
para se avaliar os índices de violência urbana e suas modali- função da idade, inteligência, nervosismo etc., impossibili-
dades, mas devem ser analisadas com cuidado. Por exemplo, tando sua análise num prisma totalmente objetivo e técnico
o número de exames de lesão corporal feitos do IML do Rio (nesse sentido: RT 555:375, 558:341 e 559:341). Co mo este
de Janeiro foi de 16.422 no ano de 1955, de 29.856 em 1973 e sintoma não se diagnostica, apenas se presume, não cabe fa-
440 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

lar em lesão corporal nos casos em que ela é o único elemen- dan os de modo rápido e eficiente. O exame de corpo de
to de análise pericial existente, e a d outrina penal, assim, não delito pode ser dispensado no procedimento sumaríssimo,
a consider a, podendo configurar vias de fato (neste sentido sendo substituído pelo Boletim Médico de atendimento ou
RJDTACRIM 10/182, RT 558/341, RT 555/375, RT 433/4 18). prova equivalente, que ateste a materialidade do fato crimi-
Alguns autores entendem que a dor, quando bem anali- noso (artigo 77, § 1º-).
sada e estudada num exame pericial minucioso, ainda que o
único elemento resultante da ofensa sofrida, pode ser consi-
Lesões Graves
derada suficiente para definir a existência de lesão corporal.
Com a devida venia, discordamos desta posição, po is a her- São aquelas caracterizadas pela ocorrência de pelo menos
menêutica do Direito Penal, objetiva e restritiva, como deve uma das consequências listadas no § l o. do artigo 129 do
ser, a bem da sociedade, não deve se valer exclusivamente de nosso Código e pela ausência das presentes nos §§ 2.0. e 3.0.
elem entos subjetivos, não avaliáveis objetivam ente. do m esm o artigo.
Lembramos que o estudo da do r é relevante na Info rtu- Assim, estaremos diante de uma lesão grave se da ofensa
nística, devendo lá ser mais bem estudada. resulta:
Da mesma fo rma que a d or, as alter ações subjetivas atri-
buídas pela vítima à agressão sofrida não caracteriza m o de- I - incapacidade para as ocupações habituais por mais
lito, tais como to nteiras, mal-estar e fraqueza que, ao exame de 30 dias;
pericial, não possam ser objetivamente comprovadas. Tam- li - perigo de v ida;
bém a crise nervosa, com choro e soluços, ou o simples des- Ili - debilidade permanente de membro, sentido ou
maio, de natureza histérica, não constituem lesão corporal função;
(jurisprudência: RT 394:262, 483:346). I V - aceleração de parto.
Já o choque neurogênico, que pode ser de origem em o-
cional, a crise convulsiva, em seus diversos tipos, e a síncope, Analisaremos detalhadamente os incisos para bem carac-
caracterizada por altera ção objetiva dos parâm etros cardio- terizá-los.
vasculares e respiratórios consequentes à disfunção do sis-
tem a nervoso autô nom o, podem caracterizar lesão leve, se Incapacidade para Ocupações Habituais por Mais
devidamente comprovados e quando não geram consequên- de 30 Dias
cias mais graves.
A rubefação ou hiperemia (vermelhidão da pele), que são Incapacidade é impossibilidade de execução, inaptidão
alterações funcionais transitórias da microcirculação su per- para realizar, podendo ser total o u m esm o apenas parcial,
ficial, embora possam ser consequência, ainda que fugaz, de não exigindo a lei a incapacidade absoluta.
agressão mecânica (tapa, bofetada), não tem sido considera- Po r ocupações habituais entende-se, não apenas as de na-
da incluída no tipo penal por nossos tribunais (RT 576:3 76, tureza labora tiva ou lucrativa, mas toda e qualquer atividade
649:293 ), em parte pelo princípio da insignificância, em par- da vida do indivíduo, incluindo o lazer, as atividades domés-
te pela impossibilidade de precisa filiação à agressão alegada. ticas, o trabalho, o estudo etc., sejam portanto de natureza
O corte forçado dos cabelos e pelos corporais (bigode, física o u mental. São as atividades comuns do nosso dia a dia.
barba etc.) tem sido motivo de diferentes decisões nos Tribu- A lei não exige a natureza econômica da atividade, até
nais. Se há perda de quantidade insignificante, aplicar-se-ia o porque não se puniriam tais lesões em desempregados,
princípio da insignificância. Do contrário, há quem o enten- crianças ou aposentados, o que seria um absurdo; exige, po-
da incluído na ofensa à integridade física, há quem entenda rém, a licitude da atividade, pois que não é coerente a lei pro-
que não, talvez se caracterizando outro delito (injúria real, teger o ilícito o u a sua prática, por exemplo, o ladrão que fica
quando a ação visa humilhar a vítima). O tema é discutível, impossibilitado de ro ubar por mais de 30 dias! Vale lembrar
mas entendemos que os fâ neros (cabelos, pelos, unhas ) fa- que a prática da prostituição não configura ilícito penal, se-
zem parte da integridade corporal do indivíduo e sua dis- não moral, estando englobada a sua prática pelo inciso.
ponibilidade a ele pertence (por higiene pessoal ou critério A não realização das atividades por questões emocionais,
estético ), devendo o enquadramento legal ser analisado caso como a vergonha, a autoimagem física ou mesmo simples
a caso, não se afastando, a priori, a lesão corporal leve. indisposição, não caracterizam a qualificadora.
A realização de tatuagens em menores, mesmo com seu O pr azo de 30 dias é de curso temporal contínuo, con-
consentimento, m as à revelia dos pais ou responsáveis, é con- tado do dia do fato delituoso inclusive, como determina o
siderada lesão corporal. nosso Código de Processo Penal em seu artigo 168, § 22 e
Devemos recordar que a política criminal vigente deslo- o Código Penal no artigo 10. O tempo de duração deve ser
cou a análise e o julga mento das lesões corporais leves para pericialmente comprovado através de exame complementar,
os Juizados Especiais Criminais (chamados Juizados de Pe- previsto no caput do m esmo artigo (ver aspectos periciais),
quenas Causas), conforme a lei nº- 9.099, de 26 de setembro não valendo a simples opinião do perito quanto ao prognós-
de 1995. Estes Juizados operam com um rito processual mais tico. Alguns tribunais vêm aceitando a simples prova teste-
célere, podendo haver a transação penal e composição dos munhal (RT 576:4 14, 383:214).
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 441

A realização d o exame complementar poucos dias d e- H á certa discussão quanto à caracterização d o perigo de
pois dos 30 dias não inva lida o laudo, pois este prazo não é vida nas lesões penetrantes das cavidad es serosas, mas que
per emptório, confo rm e d ecisão do STF (DJU, 11- 10-1996, não determinam lesões viscerais; com o também nos casos
p. 38499). das lesões que exigem cirurgias nas cavidades, onde se cons-
O término d a incapacidade tem sido m otivo de discussão, tatam ausência de lesões internas, ou ainda na simples ne-
se seria a cura completa, sob o ponto de vista funcional e ana- cessidade da anestesia geral na vítima. Entendemos que,
tômico, o u bastaria a cura parcial anatômica, mas com cura cumpr idas as técnicas médicas para a prática da anestesia e
funcional suficiente para a prática das atividades sem maior da cirurgia, não havendo lesões que justifiquem a evolução
dano ou risco par a a vítima. Esta última corrente tem se m os- provável para o êxito letal, não se configura a qualificad ora,
trad o m ajoritária entre nós. Assim, não se confunde tempo não sendo a atividad e médico-terapêutica em si causad ora
de incapacidade e duração da lesão, que são coisas diferentes. d o perigo de vida. O mesm o se diga de lesão d as serosas sem
co mplicações graves. Somente pela localização ou pelo ta-
Perigo de Vida m anho d a lesão, não se pod e inferir o perigo d e vida ou sua
ausência. Há que se analisar a evolução das consequências.
É, certamente, o inciso mais com plexo a ser analisad o sob
Nossa lei não leva em consider ação a presença de concau-
o prisma técnico. sas preexistentes para afastar o perigo de vida no caso con-
Perigo d e vida é, para a Medicina Legal, uma situação creto (ver Aspectos Jurídicos); com o certamente não exige a
atual, real, tecnicamente comprovada, consequente à lesão intenção d o agente em provocá-lo, o que pod eria configurar
sofrida, que levará com grande probabilidad e à m orte a víti- figura penal diversa (tentativa de homicídio ). As concausas
ma, se não socorrida em tempo hábil. supervenientes po dem configurar a qualificador a.
É, portanto, situação diagnosticad a e real, não m era pos- Finalmente, a lei não elenca as situações que considera
sibilidade nem mero prognóstico desfavorável. Dessa fo rma, como perigo d e vida, cabendo ao perito-legista instruir a
o perito deverá, em seu laudo, caracterizar tecnicamente, e Justiça quanto à sua ocorrência, d e fo rma técnica, precisa e
de fo rma especificada, as alterações presentes na vítima, que especificad a no laudo.
com quase certeza a levariam ao êxito letal.
Distingue-se, deste mod o, perigo de vida e risco d e vida. Debilidade Permanente de Membro, Sentido ou Função
No primeiro, há probabilidade real e objetiva do evento
Debilidad e significa redução parcial da fo rça, fraq ueza,
morte; no segundo, mera possibilidade de lesão mortal em
enfraquecimento, diminuição da capacid ade funcional. Deve
determinada situação. É clássico o exemplo do indivíduo
ser diferenciada da perd a ou inutilização, que tem caráter de
amarrado aos trilho s d o trem que se aproxima, mas que con-
redução total, ausência e que não pertence a essa classe de
segue frenar a tempo de evitar o desastre. Não houve perigo
lesões, mas, como verem os adiante, de lesões d e natureza
de vida, senão mero risco de vida. O êxito letal deve ser pro-
gravíssima.
vável, não meramente possível (jurisprudência RT 556:346).
A debilidad e pode ser anatômica ou fu ncional, conforme
A situação fática do perigo de vida pode ser imediata
seja, a alteração para meno r, de natureza pred ominantemen-
ou surgir horas e até dias após o evento d as lesões, deven- te morfológica ou fisiológica, respectivamente. De fato, no
do, contudo, ser possível estabelecer-se o nexo causal entre fim das contas, o que a lei deseja caracterizar é a d ebilidade
a lesão, fr uto da agressão, e o transtorno caracterizado como funcional d o organismo, pois esta será a consequência da le-
perigo de vida. são morfológica.
São inúmeras as situações médicas que co nfiguram caso s Embor a a lei não especifique o grau de redução, há de ser
de perigo de vida: evidente e d etectável, gerando prejuízo efetivo na vítima. A
lesões penetrantes o u transfixantes de víscer as toráci- redução ínfima, imperceptível, não caracteriza a d ebilidade.
cas ou abdominais, levando a hemorragias ou infec- A avaliação é, em parte, subjetiva.
ções graves (peritonite bacteriana); Pod e ter caráter estático ou dinâmico. Será dinâmica a
ruptura de grandes vasos sa nguíneos com hemorra- d ebilidade que surgir na execução d e algum tipo d e movi-
gia grave e estado d e choque hipovolêmico; m ento, não sendo percebida no repouso. Exemplo s são as
estad os d e choque não hipovolêrnicos (anafilático, alterações da marcha, como a marcha claudicante, somente
neurogênico, cardiogênico, séptico); percebida durante a deambulação, ou d a fala. A primeira, se
colapso pulmonar com insuficiência respirató ria muito intensa, poderá, ainda, co nstituir lesão gravíssima por
grave; d eformidad e permanente.
septicemias ou infecções graves (tétano, meningites); A debilidad e deve ser permanente. Isto afasta as lesões
t raumatismo s cranioencefálicos graves; t ransitó rias, co mo as contusões ou hematomas, que pod em
estad o de com a gr ave; ger ar redução funcional pela dor que acarretam, m as não
traumatismo s raquimedulares com alterações car- constituem debilidade permanente. Porém , a permanência
dio rrespiratórias; não significa caráter perpétuo, bastando que seja duradou-
arritmias ou insuficiência cardíaca aguda, graves; ra, muito longa ou de difícil resolução (nesse sentido RT
grandes queimados; etc. 562:304), embor a haja opiniões em contrário (RT 72:25).
442 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

A caracterização da debilidade permanente independe da A perda de elementos dentários ou de ded os de mãos ou


m odalidade de tratam ento a que se deve submeter a vítima. pés, embora gerem ausência de elementos anatómicos, po-
Não está obrigad o o paciente a realizar m étodos complexos dem configurar apenas debilidade e não perda ou inutiliza-
e/ou o nerosos de tratamento clínico ou cirúrgico para, só ção, desde que a gravidade da lesão não prejudique de fo rma
então, determinar se há debilidade ou se é permanente, bas- severa as fun ções deles dependentes. Assim, perda do dedo
tando o tratam ento habitual. mínimo da mão o u d o pé configuraria debilidade, enquanto
Membros são os apêndices do tronco: os membros su pe- a do polegar - dedo de oposição - caracterizaria lesão gra-
riores e os inferio res. Os membros superiores são fo rmados víssima. Da m esma forma, a perda de um único elem ento
pelos braços, antebraços e mãos; os inferiores, pelas coxas, dentário posterior (por exemplo, o segundo molar) caracte-
pernas e pés. A debilidade permanente de membros não exi- riza a penas debilidade. Há que ser analisada a função no caso
ge que seja de todo o m embro, po dendo ela atingir apenas concreto, através da perícia, para se determinar se há apenas
um dos segm entos do mesmo. Muito comuns na prática são debilidade o u já inutilização.
as lesões de feixes nervosos causando fraqueza nos movi- Há tabelas e fórmulas que estabelecem o percentual de
m entos dos m embros ou em parte deles. debilidade da perda de elementos dentários, levando em conta
O órgão genital masculino, o pênis, não deve ser conside- seus valores na mastigação, fo nética e estética, mais bem es-
rado membro, embora se use na linguagem popular o termo tudadas na Odontologia Legal (ver Bibliografia Consultada ).
"membro viril''. Na verdade, ele pertence ao aparelho repro-
dutor e sua lesão pode causar debilidade de função (sexual, Aceleração de Parto
reproduto ra).
Esta modalidade de agravamento da lesão corporal exige
Os sentidos referidos na lei são os cinco mecanism os sen-
que seja sujeito passivo do crime a mulher grávida de feto
soriais especiais que possuímos para interagir e conhecer o
vivo.
mundo exterior: visão, audição, o lfato, paladar e tato. Trau-
Quis o legislado r proteger a evolução temporal normal
m atismos que levam a surdez parcial, dificuldades visuais
da gravidez e por aceleração do parto deve-se entender a sua
ou ainda alterações da sensibilidade tátil da pele, são alguns
antecipação, provocada diretamente pela lesão corporal, físi -
exemplos encontrad os na perícia médico-legal, sendo mais
ca ou psíquica. A terminologia aceleração de parto não está
r aras as perturbações do paladar ou olfato.
tecnicamente errad a, embora possa sugerir um parto de evo-
Função é a atividade de um ó rgão o u aparelho. Assim te-
lução mais rápida, o que não é o caso, mas sim aquele traba-
mos a função respiratória, a função do fígado, do coração,
das gónadas etc. Ela pode manifestar-se através de m ovimen- lho de parto que se iniciou antes da data esperada e calculada
para iniciar pelos m étodos tradicionais da Obstetrícia.
tos, como a marcha, a fala, a m astigação e os m ovimentos
Deve ser comprovado o nexo de causalidade entre a lesão
oculares, ou através da homeostase do meio intern o, como o
m etabolismo controlado pelo fígado, as funções endócrinas corporal - for te emoção, traumatismo sobre o abdómen ou
pelas glândulas de secreção interna, a função de defesa imu- pelve etc. - e o evento parto antecipado, o que pode ser bas-
tante difícil tecnicamente.
nológica dos linfo nod os, timo e baço etc.
Na lesão que atinge ór gão duplo (pulmões, rins, olhos, O feto deve nascer vivo, caso contrário haverá aborto (le-
orelhas, testículos, ovários etc.), sendo unilateral o compro- são gravíssima) . A gravidez molar ou ter atológica (monstro
m etimento, e estando normal o órgão contralateral, carac- malformado) antecipada não configura a qualificadora, por
teriza-se, a priori, debilidade permanente de fun ção. Mas, se impossibilidade do objeto. Quanto à viabilidade fetal, de-
há previamente lesão de um e o outro é agredido, configurar- pender á da maturidade do concepto e do tempo de gestação,
se-á lesão gravíssima, equivalente à perda o u inutilização, configurando-se o aborto quando inviável.
com o será estudado. Em nossos tribunais, o melhor entendimento é que o
Nos casos de órgão único, em que sua função pode ser agente tenha conhecimento prévio do estado de gravidez da
assumida, ainda que parcialmente, por outro - exemplo tí- vítima para se configurar a qualificadora, o que nos parece
pico do baço - terem os apenas debilidade e não perda da acertado, pois, caso contrá rio, não poderia assumir o risco
função. Há quem desconsidere a perda do baço até como de- do resultad o. Há, contudo, discordância (RT 578:331). Na
bilidade de função, indicando sua não imprescindibilidade futura reforma do código penal pretende-se retira r esta figu-
para a vida. Esquecem, contudo, que a esplenectomia predis- ra penal, por entendimento de que não há dano maior à mãe
põe o paciente (em particular idosos) a infecções por certos nem ao concepto, descabendo a agravante.
agentes bacterianos encapsulados (como os pneumococos e
m eningococos), pela perda da função imune exercida pelo Lesões Corporais Gravíssimas
órgão. Insistimos, então, que a perda deste ó rgão caracteriza,
sim, uma debilidade de função. Estão elencadas nos incisos do § 2Q do artigo 129 do nos-
A possibilidade de reparação ou atenuação das conse- so diplom a legal, configurando consequências mais deleté-
quências <lanosas da lesão, através de tratamentos cirúr- rias à integridade corporal, saúde ou vida de relação da ví-
gicos ou uso de ó rteses o u pr ótese, não exclui a natureza tima que as anteriormente estudadas. São aquelas lesões das
grave da lesão. quais resultam:
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 443

I - incapacidade permanente para o trabalho; Devemos, ainda, lembrar que a condenação ou não na
II - enfermidade incurável; esfera penal não exclui a posterior reparação do dano na es-
III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função; fera civil pelo autor.
N - deformidade permanente;
V- aborto. Enfermidade Incurável
Enfermidade é qualquer forma de alteração de determi-
Incapacidade Permanente para o Trabalho
nadas funções orgânicas ou psíquicas, processos patológicos,
Incapacidade permanente é a perda da possibilidade de de natureza congênita ou adquirida, que reduzem a poten-
execução de uma tarefa por tem po indeterminado, ainda que cialidade do indivíduo, comprom etendo a saúde, mas não
não perpétuo. am eaçando diretamente a vida. Neste inciso estão incluídas
Trabalho é qualquer atividade profissional para ob- as enfermidades que resultaram de uma agressão. São exem-
tenção dos meios de subsistência do indivíduo. É ativida- plos habituais: a cegueira, a surdez, as paralisias, o mutismo,
de com finalidade econô mica, independente, portanto, da a epilepsia, a demência, as pseudoartroses, as luxações reci-
idade e sexo de quem a pratique. Segundo alguns auto res, divantes, a osteomielite crônica.
o trabalho deve ser lícito, legal. Mas há quem reco nheça a A enfermidade pressupõe desvio definitivo da normali-
agravante em contraventores, já que o que está em causa dade, alteração permanente da saúde. Contudo, o legislad or
é a aptidão pa ra o trabalho em geral e não a licitude do reforçou tal caráter com a exigência de incurabilidade.
m esmo. Entendem os que a ilicitude não pode ser protegida Aqui, novamente, não se exige da vítima a realização
pelo Direito, devendo o trabalho ser não proibido pelo Di- de intervenções cirúrgicas complexas e/o u arriscadas, nem
reito Positivo vigente. tratam entos incomuns ou dispendiosos, para caracterizar
Trata a lei do trabalho genérico e não do específico, da a agravante, bastando tão só a existência com provada da
profissão/atividade em particular do ofendido. O cirurgião enfermidade.
que sofre lesão nas mãos e não pode mais operar, mas pode A incurabilidade também não precisa ser perpétua nem
executar inúmeras outras tarefas, não caracteriza o inciso. se exige ser absoluta, mas de muito difícil ou arrastada cura,
Não se especifica aqui, igualmente, a intensidade, o tipo, a quando possível.
natureza do dano, mas apenas sua consequência. Com os enormes avanços da Medicina nas últimas dé-
Muitos autores citam o trabalho genérico sem qualificá- cadas, no tratam ento, controle e cura das doenças, o leque
lo, deixando entender que a possibilidade de execução de de situações contempladas pela qualificadora se reduziu.
qualquer trabalho descar acterizaria a incidência da agravan- Po rém, encontramos, como citado no início, algumas enfer-
te. Entendem os que o trabalho genérico se refere ao grupo midades de arrastado tratamento com prejuízo da higidez,
de atividades previam ente realizadas pela vítima, tais como pertencendo ao conceito legal.
atividades intelectuais ou braçais, por exemplo. Alguma confusão ocorre na distinção entre enfermida-
Mas, claro está que a troca de atividades não pode ser de incurável e perda o u inutilização de membro, sentido ou
totalmente desproporcional, em qualidade, espécie o u renta- função, o próximo inciso a ser estudado. Embora algumas si-
bilidade, ao que era antes, o que seria beneficiar o infrator e tuações sejam, de fa to, limítrofes, o conceito de enfermidade
punir a vítima. Se defendermos uma interpretação dem asia- é dinâmico, ela é um processo em andam ento, são alterações
do complacente para a definição do trabalho genérico, sem- que evoluem no tempo e geram respostas orgânicas diversas.
pre existirá alguma atividade a ser realizada e a qualificadora Já a perda ou inutilização são resultados finais, são sequelas
perderia o sentido. Os doutrinadores do Direito discutem a de uma alteração pretérita que, em tese, não mais evoluem
aplicabilidade deste inciso, pois o texto legal foi econômico, ou se modificam.
deixando ampla gama de interpretação. A síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA/ AIDS),
Assim, a possibilidade de realização de tarefas menores, doença virai crônica que destrói o sistema imune do pacien-
como vender balas numa esquina ou esmolar, não excluem te, evoluindo para a m orte, é uma enfermidade incurável na
a agravante. Como também a possibilidade de tratamentos atualidade, embora controlável por m edicamentos durante
onerosos e/ou extravagantes para reduzir o dano, que não muitos anos. Há, contudo, quem a entenda, no caso de ter
podem ser exigidos da vítima. sido adquirida de modo agressivo, como crime de homicídio
São exemplos habituais: perda funcional de ambos os (artigo 121 do CP) e não lesão corporal gravíssima. É uma
membros superiores, de um braço e uma perna, a cegueira questão polêmica.
e a demência. É interessante a distinção entre enfermidade, já concei-
A duração da incapacidade deve ser longa, duradoura e tuad a, moléstia, afecção e doença, hoje um pouco demode,
de término imprevisível, mesmo q ue não perpétua. e de utilidade questio nável. Segundo o mestre Mário Egídio
A criança e o adulto já aposentad o, ambos não desen- de Souza Aranha: moléstia é um conjunto de fenô menos
volvendo atividades lucrativas, não figurariam com o sujeitos de reação que se prod uzem no o rganismo, provocados pela
passivos neste inciso, segundo muitos autores. Contudo, há ação de uma m esm a causa; afecção é o conjunto de fenô-
críticas a esta posição. menos dependentes da mesma lesão, mas independentes da
444 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

causa original; doença é um termo genérico indicando qual- desvios da normalidade anatômica - e também os subjetivos
quer desvio da normalidade, o u ainda, mais tecnicamente, - sexo, idade, cor da pele, atividades laborativas.
uma entidade mó rbida definida por suas causas, m ecanis- Na esfera penal, a avaliação do dano estético é objetiva
mos e alterações patológicas típicas. Exemplificando: a sífilis apenas, tendo relevância os elementos objetivos citad os, le-
é a uma moléstia ou doença, que pode cursar com uma arte- vando-se em conta os subjetivos somente quando reduzem
rite sifilítica, qu e é afecção, a qual pode ter por consequência o prejuízo estético ao exam e visual, sem lhes atribuir valor
uma hemorragia cerebral gerando paralisia, que será uma pecuniário no prejuízo.
enfermidade. Já a deformidade permanente na esfera civil agrega ele-
mentos tanto objetivos quanto subjetivos, pois o prejuízo es-
Perda ou Inutilização de Membro, Sentido ou Função tético pode afetar em maior ou menor monta um indivíduo,
Correspo nde ao grau máximo da debilidade permanente em seu ganho patrimonial, na sua autoimagem e na sua vida
de relação social.
consequente ao dano causado.
Do is elementos da deformidade devem ser discutidos
Perda correspo nde à ausência anatômica; inutilização, à
nesta qualificadora: a aparência e sua permanência. A defor-
presença anatômica, porém d estituída total ou quase total-
midade deve ser aparente, visível, hoje se considerando que
m ente de capacidade funcional.
qualquer parte do cor po pode ser observada, ainda que na
Assim, exemplificando: amputação ao nível do braço ou
vida íntima do paciente. Assim, mesmo as partes pudendas
da coxa é perda de membro; a cegueira to tal é perda do sen-
são passíveis de determinar a agravante, pois que podem ge-
tido da visão; o arrancam ento de numerosos dentes é perda
rar gr andes traumas ou reais dificuldades de relacionam ento
da fun ção mastigató ria; secção completa da inervação de
íntimo ao portad or.
uma mão com abolição sensitivo-motora é inutilização de
O dano à estética geralmente é estático, mas pode tam-
m embro.
bém ser dinâmico, só perceptível com o movimento, sendo o
Não há necessidade de ser a lesão to tal, mas de tal ordem
principal exemplo os distúrbios grosseiros da marcha, da mí-
(70% ou mais) que a fun ção restante não tem va lor funcio-
mica facial ou da mastigação. Obviamente, a lesão que altera
nal para a vítima, com o também não há necessidade da au-
a estética par a melhor, ou que é m otivo de orgulho ou osten-
sência de toda a dentição par a caracterizar a perda de função,
tação, não pode se enquadrar no inciso. Um a cicatr iz que o
bastando que a restante seja praticamente inútil à finalidade
portador mostra com orgulho, por exemplo. Da mesma for-
da mastigação.
ma, pequenas lesões, com o cicatrizes, mesmo no rosto, se em
Vale relembrar que, no caso de órgãos duplos, a lesão
nada afetam a estética pessoal, não constituem deformidade.
a um deles gerando sua perda ou inutilização será apenas
A presença de rugas, da idade ou do local anatômico, que se
debilidade permanente para a lei, se o outro funcionar nor-
confundem com a lesão, tornando-a, por vezes, imperceptí-
m almente. Entretanto, se o outro fo r já ausente ou fo r pre-
vel, também descaracteriza a deformidade.
viamente inútil por alguma doença, responderá o agente por
O mesmo se pode dizer no caso de lesão sofrida sobre
lesão gr avíssima: perda ou inutilização, confo rme o caso.
outra já existente e deformante. Não havendo "nova" lesão
O arrancamento do pênis car acteriza perda da função co-
deformante, o u havendo piora importante da deformidade
pulatória, de indiscutível importância ao indivíduo, não de
preexistente, não subsiste a agravante.
m embro, com o já com entad o, sendo lesão gravíssima. Já a le-
A permanência é o outro elemento fundam ental do con-
são do hímen (traumática, de natureza não sexual), que não
ceito legal, entendendo-se que a lesão deformante já atingiu
é membro, sentido e nem função apresenta, não caracteriza a
sua evolução natural final no momento da caracterização.
agravante, sendo apenas lesão leve. Lesões fugazes como equimoses e hematom as não a inte-
gram, bem como as cicatrizes ainda em fase de repar ação,
Deformidade Permanente
inchadas e avermelhadas não a caracterizam. O caráter da
A deformidade de caráter permanente caracteriza lesão permanência se confunde com o de irreparabilidade. E fa -
corporal gravíssima, mas a lei não a define, nem lhe atribui lam os em evolução natural, pois que o tratamento cirúrgico
graduação, deixando para a doutrina e a jurisprudência sua corretivo não pode ser exigido para, aí, defini r-se o dano à
conceituação e análise. beleza. Naturalmente que se o ofendido se submete a corre-
Deformidade é o dano estético de certo vulto aparente, ção plástica, por vontade pró pria, e faz desaparecer a defor-
que gera afetação ou repulsa em quem observa, e atinge a au- midade, também afasta a qualificadora.
toestima da vítima, causando-lhe vergonha ou prejudicando A ocultação da deformidade pelos cabelos, ou por uso de
sua so ciabilidade, sem necessariam ente atingir os limites da próteses - olho de vidro, orelha de borracha, perna mecâni-
monstruosidade. Dano estético é o prejuízo à beleza corporal ca etc. - não apaga a figura penal. São exemplos comuns de
que é de valor subjetivo, mas integra nossa saúde mental e deformidade permanente na prática pericial: paralisia facial
física, sendo elem ento fundam ental da nossa autoestima e traumática, mutilação da orelha externa, do apêndice nasal,
nosso relacionam ento interpessoal. Na análise jurídica glo- dos membros, das m amas, as queimaduras extensas por ação
bal da deformidade, há que se avaliarem os aspectos obje- térmica ou química (vitriolagem ), cicatrizes extensas visíveis
tivos da lesão - localização, extensão, aspecto, co r, relação e e deformantes, incrustação na pele de partículas pigmenta-
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 445

das (como exemplo as zonas de tatuagem causadas por dis- cedente - a lesão corporal - e neste apenas o fato no máximo
paros de armas de fogo a curta distância). contravencional ou indiferente ao Direito (p. ex., atrope-
lar alguém). Igualmente, não cabe sua tentativa, por haver
Aborto preterdolo.
A Medicina Legal, diferentemente da Obstetrícia, concei- São exemplos: o soco com queda da vítima e fratura de
tua aborto como a interrupção da gravidez, em qualquer pe- crânio; a facada ou tiro em localização não mortal, com lesão
ríodo da gestação, desde que haja a morte do feto, havendo ou de vaso calibroso; a paulada na cabeça ou tronco com he-
não expulsão do mesmo. Aqui é sinónimo de abortamento, morragia interna fatal etc. Ao perito-legista cumpre analisar
sendo, a rigor, este o processo, aquele o produto do processo. toda a evolução do processo patológico entre a lesão corpo-
Temos aqui mais um exemplo do chamado preterdolo, ral e o êxito letal para bem instruir a Justiça, indicando o
pois no antecedente há a lesão corporal dolosa, intencional, nexo da ca usalidade, se presente. A tipificação cabe à Justiça.
e no consequente o aborto, que decorre por culpa. Se ha-
via intenção do agente de causar o aborto originariamente, Lesão Corporal Culposa
o crime é outro, o dos artigos 125 e 126 (aborto provocado
a terceiro) com pena superior, porque é crime contra a vida. Como já analisamos, na lesão corporal de natureza cul-
Não importa fosse ou não desejada a gravidez pela vítima. posa, não cabe quantificar o dano, do ponto de vista penal,
O nexo causal fica a cargo dos peritos e deve haver eviden- pois o artigo 129, § 6º- não exibe qualificadoras, como no caso
te relação entre a lesão corporal produzida e o evento abor- da lesão dolosa.
to. Vale ressaltar que tanto as lesões físicas - traumatismos O § 7º- cita as hipóteses de aumento de pena (do artigo
no abdómen, na pelve ou genitália - como lesões psíquicas 121 , § 4º-, ver anteriormente), que valem para o crime dele-
( estresse, medo) podem provocá-lo. Na prática obstétrica e sões corporais. Destas hipóteses, apenas a referente à inobser-
médico-legal, contudo, é difícil o encontro desta figura penal vância de regra técnica de profissão parece ser relevante na
ou a determinação precisa do nexo de causalidade em alguns perícia, em particular quando se trata de ato médico.
casos. Na gestação normal, a proteção ao concepto pelo or- Não havendo qualificadoras a analisar, os objetivos da
ganismo materno é de fato muito eficaz. perícia na lesão culposa devem ser a:
Quanto ao conhecimento prévio da gravidez pelo autor completa descrição do dano sofrido, em seus aspectos
da lesão que provoca o abortamento, não resta dúvida, dian- anatómico e funcional;
te do artigo 19 e 20 caput, do Código Penal vigente, que é in- determinação do nexo causal, relação estreita entre a
dispensável seu conhecimento da gravidez da vítima ou que ação violenta e o dano sofrido ;
seu desconhecimento tenha sido inescusável, ou seja, a gra - caracterização, quando possível, da culpa (negligência,
videz era claramente manifesta (nesse sentido RT 556:317). imprudência, imperícia) e previsibilidade do dano.
A diferença desta agravante para a de aceleração de parto Nas respostas aos quesitos, habitualmente os peritos
é óbvia: a morte do concepto, seja intrauterina, durante, ou "prejudicam" do 3º- ao 7º- quesito, por não interessar a qua-
logo após o parto, por sua inviabilidade. De forma idêntica, lidade do dano culposo no direito penal.
se não há concepto, mas uma neoplasia (mola hidatiforme), Contudo, como a quantificação da pena é realizada, em
um monstro ou um litopédio, o u trata-se de uma pseudocie- parte, com base na intensidade da culpa, e a caracterização
se, não incide a qualificadora. A lei pro tege a vida da futura final do crime como culposo são, ambas, atributos do juiz,
pessoa humana. entendem alguns doutrinado res que deva o perito responder
normalmente a todos os quesitos.
Lesão Corporal Seguida de Morte
É tratada no § 3º- do artigo 129 a mais grave consequência • A PRÁTICA PERICIAL NAS LESÕES
possível da lesão corporal: a morte da vítima. É novamente a CORPORAIS
figura do crime preterdoloso - dolo na lesão corporal, culpa
no resultado morte, como já discutido. O Capítulo 3 desta obra tratou da perícia, dos peritos e
Mas exige-se, no mínimo, a previsibilidade da conse- dos documentos médico-legais e aqui serão apenas analisa-
quência morte (artigo 19 do código Penal). O resultado da dos os aspectos que importam ao tema das lesões corporais.
qualificadora só tem sentido se, ao menos, previsível pelo A perícia das lesões corporais é privativa do perito mé-
agente. A previsibilidade é a da pessoa comum, leiga. Po r dico-legista, especialista na difícil área da Medicina Legal,
exemplo, quem atira no peito de outrem deseja sua morte, que pode se valer do auxílio de outros profissionais corre-
há homicídio. Quem atira na perna, pretende causar apenas latos, como o odonto-legista, quando houver interesse ou
lesão, mas se ocorre sangramento abundante levando à mor- necessidade.
te, configura-se agravante. A legislação do exame de corpo de delito em geral está
Deve-se provar a causalidade e sua previsibilidade, e di- detalhada no Título VII (Da prova), Capítulo II (Do exame
fere do homicídio culposo, pois naquele houve dolo no ante- de corpo de delito, e das perícias em geral) do Código de
446 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

Processo Penal, nos artigos de 158 a 184. A seguir, destaca- II - indicar assistentes técnicos que poderão apresen-
mos os principais artigos de interesse do título IV do CPP na tar pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inqui-
atividade pericial do exame de lesões corporais, com grifo ridos em audiência. (Incluído pela Lei nQ 11.690, de 2008. )
nosso nos temas mais relevantes de cada norma, para facilitar § ~Havendo requerimento das partes, o material pro-
a consulta: batório que serviu de base à perícia será disponibilizado no
ambiente do órgão oficial, que manterá sempre sua guarda,
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (DECRETO-LEI e na presença de perito oficial, para exame pelos assisten-
NQ3.689,DE3 DE OUTUBRO DE 1941) tes, salvo se for impossível a sua conservação. (Incluído pela
TÍTULO VII Lei nQ 11.690, de 2008. )
DA PROVA § 7Q Tratando-se de perícia complexa que abranja mais
CAPÍTULO! de uma área de conhecimento especializado, poder-se-á
DISPOSIÇÕES GERAIS designar a atuação de mais de um perito oficial, e a parte
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre indicar mais de um assistente técnico. (Incluído pela Lei nQ
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, 11.690, de 2008. )
não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos Art. 160. Os peritos elaborarão o laudo pericial,
elementos informativos colhidos na investigação, ressalva- onde descreverão minuciosamente o que examinarem,
das as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (Re- e responderão aos quesitos formulados. (Redação dada
dação dada pela Lei nQ11.690, de 2008.) pela Lei nQ 8.862, de 28.3.1994. )
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranha- Parágrafo único. O laudo pericial será elaborado no
das do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as ob- prazo máximo de 10 dias, podendo este prazo ser pror-
tidas em violação a normas constitucionais ou legais. (Re- rogado, em casos excepcionais, a requerimento dos peri-
dação dada pela Lei nQ11.690, de 2008.) tos. (Redação dada pela Lei nQ8.862, de 28.3.1994.)
CAPÍTULO II Art. 161. O exame de corpo de delito poderá ser feito
DO EXAME DO CORPO DE DELITO, E DAS em qualquer dia e a qualquer hora.
PERÍCIAS EM GERAL Art. 168. Em caso de lesões corporais, se o primeiro exa-
Art.158. Quando a infração deixar vestígios, será in- me pericial tiver sido incompleto, proceder-se-á a exame
dispensável o exame de corpo de delito, direto ou indire- complementar por determinação da autoridade policial
to, não podendo supri-lo a confissão do acusado. ou judiciária, de ofício, ou a requerimento do Ministério
Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias Público, do ofendido ou do acusado, ou de seu defensor.
serão realizados por perito oficial, portador de diploma de § l QNo exame complementar, os peritos terão pre-
curso superior. (Redação dada pela Lei nQ11. 690, de 2008. ) sente o auto de corpo de delito, a fim de suprir-lhe a de-
§ l QNa falta de perito oficial, o exame será realiza- ficiência ou retificá-lo.
do por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de § 2" Se o exame tiver por fim precisar a classificação do
curso superior preferencialmente na área específica, dentre delito no art. 129, § lQ, I, do Código Penal, deverá ser feito
as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natu- logo que decorra o prazo de 30 dias, contado da data do
reza do exame. (Redação dada pela Lei nQ11.690, de 2008.) crime.
§ 2Q Os peritos não oficiais prestarão o compromisso de § Y A falta de exame complementar poderá ser supri-
bem e fielmente desempenhar o encargo. (Redação dada da pela prova testemunhal.
pela Lei nQ 11.690, de 2008. ) Art. 170. Nas perícias de laboratório, os peritos guarda-
§ 3QSerão facultadas ao Ministério Público, ao assis- rão material suficiente para a eventualidade de nova perí-
tente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado cia. Sempre que conveniente, os laudos serão ilustrados
a formulação de quesitos e indicação de assistente técni- com provas fotográficas, ou microfotográficas, desenhos
co. (Incluído pela Lei nQ11. 690, de 2008.) ou esquemas.
§ 40 O assistente técnico atuará a partir de sua ad- Art. 176. A autoridade e as partes poderão formular
missão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elabo- quesitos até o ato da diligência.
ração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes inti- Art. 178. No caso do art.159, o exame será requisitado
madas desta decisão. (Incluído pela Lei nQ 11.690, de 2008.) pela autoridade ao diretor da repartição, juntando-se
§ ~ Durante o curso do processo judicial, é permitido ao processo o laudo assinado pelos peritos.
às partes, quanto à perícia: (Incluído pela Lei nQ11.690, Art. 180. Se houver divergência entre os peritos, serão
de 2008.) consignadas no auto do exame as declarações e respostas de
I - requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a um e de outro, ou cada um redigirá separadamente o seu
prova ou para responderem a quesitos, desde que o man- laudo, e a autoridade nomeará um terceiro; se este divergir
dado de intimação e os quesitos ou questões a serem escla- de ambos, a autoridade poderá mandar proceder a novo
recidas sejam encaminhados com antecedência mínima de exame por outros peritos.
10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo Art. 182. O juiz não ficará adstrito ao laudo, poden-
complementar; (Incluído pela Lei nQ11.690, de 2008.) do aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte.
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 447

Art. 184. Salvo o caso de exame de corpo de delito, o Não há necessidade dos detalhes, decorrentes da pro-
juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida lixidade ou do exagero, frutos do estado emocional da ví-
pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento tima, procurando ser, o perito, conciso e completo, sem
da verdade. faltas ou excessos. Nem se trata a perícia de escrever um
romance policial!
Atualmente, após a Lei 9.099/95, que criou os Juizados São informações fundamentais a serem colhidas na his-
Especiais Cíveis e Criminais (Juizados de Pequenas Causas), tória, que não devem ser esquecidas: as ações praticadas
existe a possibilidade da utilização de informações hospita- (soco, tapa, empurrão, unhada etc.) e o fato ocorrido (atro-
lares (Boletim de Emergência ou equivalente) em casos de pelamento, agressão, contenção da vítima etc.); o instrumen-
menor gravidade, sem realização de laudos periciais, o que to ou meio que gerou a ofensa (faca, pau, fogo, furador de
é preocupante, pois os médicos assistenciais, sejam clínicos gelo, arma de fogo etc.); o número de golpes desferidos e seus
ou cirurgiões, independentemente de sua sapiência ou com- tipos; se houve mais de um agente agressor; se foi o ataque
petência profissional, não estão afeitos à prática pericial e de surpresa ou não; o local do evento; a data e horário do
suas vicissitudes. fato; se houve socorro médico, quando e de que tipo; que
Muitas vezes, essa falta de conhecimento técnico na espe- tratamentos foram realizados e onde, e qual a queixa atual da
cialidade Medicina Legal - um campo de conhecimento ex- vítima quanto às consequências das lesões sofridas.
tremamente vasto, complexo e que se vale de todos os outros Tudo reduzido a termo, passa o perito ao exame direto,
ramos da Medicina - pode levar a erros diagnósticos e/ou cuja execução dependerá da natureza das lesões apresenta-
conceituais referentes às lesões de interesse criminal, geran- das pela vítima. Como à vítima interessa mostrar todas as
do distorções na interpretação legal. lesões existentes, e o exame pericial é objetivo, ele pode ser
O delito de lesões corporais enseja a perícia obrigatória direcionado para as regiões onde há lesões ou, ainda, para o
prevista no artigo 158 do Código de Processo Penal como corpo inteiro, devendo o perito avaliar caso a caso. Exempli-
vimos antes. ficamos: se a vítima levou do agressor apenas um soco no
O médico-legista exerce uma nobre e difícil missão, de- olho esquerdo, basta a simples inspeção da face; já se vem a
vendo ter vastos conhecimentos da ciência m édica, e em par- exame um indivíduo detido pela polícia alegando sevícias, há
ticular da Medicina Legal, como também da ciência jurídica, de ser completo e minucioso, com a vítima totalmente despi-
como esse capítulo bem demonstra, além de viver a relação da, inclusive pela possibilidade de lesões nas regiões puden-
"médico-paciente" com a vítima de um crime, lesionada físi- das, procurando todas as lesões possíveis ou a sua ausência,
ca e psíquicamente, ma goada e assustada. à guisa de detetive.
Ele deve proceder ao exame de forma técnica, comple- É atualmente rotina obrigatória o exame de lesões cor-
ta, cuidadosa, com atenção, imparcialidade e ética, evitando porais em todo indivíduo detido pela força policial, antes de
mo lestar a vítima, sem ser indiferente ao seu sofrimento, mas seu envio para o cárcere, exatamente para resguardar sua in-
nun ca negligente na busca da materialidade dos fatos. tegridade física, devendo ser completo e cuidadoso.
O laudo pericial de lesões corporais apresenta todas as Deve-se evitar constrangimento à vítima. Inclusive se
partes dos relatórios médico -legais já estudadas que o com- esta se recusar ao exame, não podemos obrigá-la, o que po-
põem, iniciando o perito pelo preâmbulo, onde aposta sua deria até constituir crime de constrangimento ilegal, deven-
identificação e a da autoridade que determinou a perícia, do sua recusa ser transcrita no laudo e encerrado este, com
anotando em seguida o local, data e hora do exame. prejuízo dos quesitos.
Vem, então, a identificação e qualificação da vítima, con- Todas as lesões devem ser descritas em linguagem téc-
ferindo-se to da a sua documentação, a fim de evitar possíveis nica, mas compreensível em seus elementos fundamentais:
trocas, fraudulentas ou acidentais, de pessoas.A possibilidade tipo, natureza, forma, cor, dimensões, localização, profun-
de fraude existe, inclusive portando a vítima documentos didade, estruturas atingidas, presença de complicações (in-
falsos de identidade, pelos mais diversos interesses escusos. fecção, por exemplo). Nas equimoses, além da forma e do
Persistindo dúvidas quanto à identidade do periciado, o pe- tamanho, é importante a cor para o cálculo da idade da lesão
rito deverá mandar proceder a identificação judiciária (exa- (espectro equimótico de Legrand du Saulle ).
me papiloscópico). Nas escoriações, sua forma pode indicar determinados
O perito, em local reservado, ouvirá a história detalha- instrumentos utilizados (unhas, garfo etc.), bem como sua
da, no que interessar à perícia, narrada, de preferência, pelo localização, o tipo de ação agressiva (no pescoço, tentativa
pró prio paciente ou seu representante, em caso de incapaci- de esganadura, nas mamas ou genitália, crime de natureza
dade. A presença ou não de acompanhantes com o paciente sexual etc.).
deve ser julgada pelo expert, sendo necessária, e obrigatória Cicatrizes rosadas indicam lesão recente; a presença de
por lei, no caso de menores, deficientes (físicos ou mentais) e crosta idem. Há de se avaliar o dano estético e a provável evo-
idosos, podendo ser prejudicial ao bom andamento do exa- lução temporal das lesões. Se necessário, um exame comple-
me quando o acompanhante é verborrágico ou constrange mentar deverá ser agendado para reexame em data posterior
de algum modo o paciente. e análise do aspecto final da evolução lesionai.
448 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

No exame, o perito deve utilizar uma lupa para ver deta- participam da elaboração do laudo pericial final são respo n-
lhes mínimos, e uma régua ou paquímetro para a medição sáveis por este e subscrevem -no.
d as lesões, geralmente feita em milímetros ou centímetros. Terminada a fase de descrição, segue-se a discussão, quan-
Se julgar necessário, for possível, e sempre que a nature- do pertinente, para explicar e correlacionar tod os os dados
za da situação indicar, confeccionará esquemas em modelo do exame, e a conclusão, que apresentará, quando possível,
próprio (ver esquemas a seguir ) e obterá fotog rafias das lesões a causa, o nexo causal, a consequência e gravidade do delito.
para melhor esclarecer o que observa e auxiliar as autoridades. Em seguida, respo nderá aos quesitos oficiais de lesões
Lesões fugazes devem logo ser periciadas, po dendo não corporais, conforme documento próprio de cada Instituto
estar mais presentes. Se nada encontrar ao exam e, o perito Médico-legal, e m ais quaisquer o utros quesitos formulados
consignará isto no laudo, jamais imaginando ou presumindo pela autoridade que solicitou a perícia.
o que deveria haver pelo relato da vítima. São sete os quesitos oficiais utilizados nos laudos de exa-
Quando a vítima apresenta ataduras, talas, aparelhos me de corpo de delito de lesões corpo rais, a saber:
gessados o u curativos, que não devem ser removidos por primeiro - se há ofensa à integridade corporal ou à
questões médicas, ou ainda se encontra em estado grave, in- saúde do paciente;
ternada, o perito deve assentar no laudo estas circunstâncias, segundo - qual o instrumento o u meio que pro duziu
indicando o u realizando, quando necessário e conforme o a ofensa;
caso, novo exame direto em data posterior. terceiro - se foi produzida por meio de veneno, fogo,
Poder á o perito se valer de info rmações hospitalares explosivo, asfixia o u tortura, ou por outro meio insi-
referentes às lesões sofridas e seu tratamento para instruir dioso o u cruel (resposta especificada);
sua perícia e o laudo, o que é bastante frequente. Para tal, quarto - se resultou incapacidade para as ocupações
deverá solicitar, oficialmente, à instituição hospitalar, toda a habituais por mais de 30 dias;
documentação médica que julgar necessária para a conclu- quinto - se resulto u perigo de vida;
são do laudo. Havendo discordância entre o observado no sexto - se resultou debilidade permanente ou perda
exame pericial e a info rmação médica enviada, deve-se ana- ou inutilização de membro, sentido ou função (res-
lisar se há erro apenas terminológico o u conceituai sobre as posta especificada);
lesões, o que não é tão raro e deve ser esclarecido pelo perito, sétim o - se resultou incapacidade permanente par a o
ou algum outro erro, e, se necessário, até reavaliar o paciente trabalho, ou enfermidade incurável, ou deformidade
em nova perícia a ser solicitada à autoridade competente. permanente (resposta especificada).
São desejáveis, preferencialmente, as informações en- Os dois primeiros quesitos determinam a realidade do
viadas por via oficial diretamente do nosocômio do aten- delito e a natureza da agressão. O primeiro quesito é res-
dimento, mas nada obsta que a vítima traga já d ocumento pondido como "sim" ou "não" apenas ou citando as lesões
idô neo do seu médico, o qual, depois de analisad o, deve ser encontradas. O segundo esclarece qual agente (ação, instru-
anexado ao laudo (original ou có pia) para com provação e mento o u meio) foi o provocado r da lesão: "ação contunden-
consulta posterior. te", "ação perfu rocortante" etc. Os demais qualificam a lesão
A realização de exames complementares pode ser neces- corporal dolosa sofrida com finalidades legais, devendo ser
sária, principalmente na avaliação das lesões graves e gravís- sempre fundamentados e não laco nicamente respondidos
simas. A radiografia evidencia fraturas e presença de corpos com "sim" ou "não''.
estranhos (p. ex., projéteis de arma de fogo). Outros exames Nos casos de aceler ação de parto ou aborto, um oitavo
de imagem hoje disponíveis (ultrassom, tomografia com- quesito, referente a estas consequências, "Se resultou acele-
putad orizada etc. ) podem também ser solicitados, embora ração de parto ou aborto." será respondido co m resposta
sejam mais onerosos, devendo ser financiados pelo Governo especificada.
do Estad o. Geralmente, tais exames são realizados em uni- Pode também o perito, caso não caiba resposta objetiva,
dades de saúde assistencial do pró prio Governo que os pos- prejudicar o quesito, explicando em seguida os motivos do
suem . Exam es laboratoriais de Patologia Clínica o u Anato- prejuízo. Aqui, o termo "prejudicado" não significa apenas
mia Pato lógica, que podem ser realizados no IML do Rio de da nificado, transtornado, anulado, mas também "prejulga-
Janeiro, podem auxiliar em muitos casos como na presen- do'; "ajuizado previamente'; "já respondido". Poderá, tam-
ça de uma gr avidez recém -terminada (aceleração de parto, bém nesses casos, o perito escrever: "Não se aplica o quesito''.
aborto ), ou detecção de uma d oença por exame sorológico Quando a resposta ao primeiro quesito é "não", necessaria-
(sífilis, por exem plo). mente os dem ais estarão "prejudicados", pois não se qualifica
Além de solicitar exames complem entares, poderá o o que não existe.
legista pedir pareceres especializados complementares na A dúvida do perito, sobre algum aspecto do caso, é per-
instrução da perícia, que deverão ser anexad os ao laudo. O feitamente normal e não significa incompetência, m uitas ve-
estudo das debilidades neurológicas, lesões cerebrais, lesões zes indicando, ao contrário, verdadeira seriedade profissio-
o culares, auditivas, ginecológicas, ortopédicas, alterações nal. Q uando surgir a dúvida, deve o legista solicitar a opinião
m entais etc. normalmente exige especialistas nas respectivas de o utros colegas, estudar o caso na literatura médica, buscar
áreas. Entendemos que todos os profissionais peritos que outros dados referentes ao caso, para com tudo raciocinar
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 449

e poder respo nder acertadamente. Se nem assim atinge sua Nunca deverá agir com má-fé, dolo, negligência, impru-
convicção técnica, isto consignará no laudo de forma deta- dência ou imperícia, neste caso sofrendo as sanções legais
lhada e fundamentada, pois de nenhum profissional é exigi- cabíveis e, lamentavelmente, denegrindo tão elevada missão.
do o acerto eterno e absoluto, matéria da Teologia. A falsa perícia é crime previsto no Código Penal (artigo 342),
As respostas não devem permitir dupla interpretação, infração ética prevista no Código de Ética Médica, Resolução
po dendo ser do tipo "Sem elementos de convicção para afir- CFM nº 1.931/2009, em seu artigo 98, além de ensejar res-
mar ou negar o quesitado", ou "Os peritos não têm elemen- ponsabilidade civil pelos danos provocados (artigo 927 do
tos suficientes para responder''. Código Civil).

fs4tema das lesões localizadas na face Mtelior Esquema das lesões k:lc.alizactas na face posterior
00 corpo da _ _ _ _ _ _ __ do corpo da _ _ _ _ _ _ __

f'l!riQaoo em _ /_ /_ Periciaoo em _J_J_


Pelos peritos [)'s. Pelos pefitos {)'s.

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Modelos de esquemas que podem ser utilizados na prática pericial. Fonte: IMLAP.
450 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

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Modelos de esquemas que podem ser utilizados na prática pericial. Fonte: IMLAP.
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 451

Após essas noções gerais sobre a perícia de lesões corpo-


rais na clínica médico-legal, passaremos a analisar com de-
talhe os elementos mais importantes a serem observados nas
diversas espécies de lesões e suas agravantes .

• LESÃO CORPORAL LEVE - PERÍCIA


São muito comuns na prática pericial. Do resultado da
ofensa, pode resultar uma única lesão ou múltiplas lesões,
que deverão ser todas descritas e bem caracterizadas, de-
vendo-se utilizar a nomenclatura técnica padrão, conhecida
também no mundo jurídico. Relembramos que o número
de lesões ou seu tamanho não importa na agravação do cri-
me, mas sim as suas consequências para o organismo e a Figura 20.1 . Escoriação recente. Lesão corporal leve. Caso do Dr.
Nereu G.M. Guerra Neto, do IMLAP.
saúde da vítima.
As lesões, mesmo que sejam diminutas, discretas ou fu-
gazes, devem ser analisadas e descritas atendendo a tudo que
já foi dito, inclusive para descaracterizar futuras lesões mais
graves porventura sofridas após o exame pericial, ou apre-
ciar sua gravidade, só aparentemente ausente. A localização
exata das lesões é, também, importante precisar, pois lesões
fugazes desaparecem e outras novas lesões podem ser produ-
zidas, na mesma região corporal.
Em nada importa ao perito o princípio da bagatela ou in-
significância na execução da perícia, o qual é de uso exclusivo
do mundo jurídico.
A existência de lesões antigas, não vinculadas ao evento
alegado (motivo do exame), como, por exemplo, uma ci-
catriz deformante antiga preexistente, deve ser descrita no
laudo, exatamente para descaracterizá-la como vinculada à
presente agressão, e se evitar possíveis confusões o u mesmo Figura 20.2. Marcas de mordedura. Habitualmente não deixam se-
futuras fraudes. quelas. Lesão corporal leve. Caso do Dr. Nereu G.M. Guerra Neto, do
A ausência de outras lesões deve ser também assentada IMLAP.
no laudo, para bem caracterizar o resultado real da agressão
sofrida, como também o cuidado do examinador no exame
pericial realizado. Exemplo importante é o exame de pessoas litando totalmente sua análise objetiva pelo perito e, portan-
detidas pela polícia, como já referimos. to, não tendo o significado legal de lesão corporal, como já
Evidentemente, nas lesões leves, apenas os dois primeiros supraexplicado.
quesitos são respondidos afirmativamente, sendo os demais
negativos. Caso não haja mais vestígios visíveis, pode o pe-
rito solicitar informações médicas, quando disponíveis, para • LESÃO CORPORAL GRAVE - PERÍCIA
futura rea lização do chamado Laudo Indireto (previsto no
artigo 158 do Código de Processo Penal). Incapacidade para as Ocupações Habituais por Mais
Pode, ainda, explicar no laudo o possível motivo da au- de 30 Dias
sência de certas lesões alegadas, no momento do exame,
tendo em vista a fuga cidade de sua própria natureza (p. ex., O perito deve avaliar o grau rea l da incapacidade, confor-
uma rubefação ou um edema traumático), jamais devendo me a lesão e a vítima. A mesma lesão num jovem normal e
inferi-la. Claro que nestes casos a resposta ao primeiro que- forte não repercute como num octogenário. Não há um grau
sito permanece sendo "não''. ideal ou uma média na população.
A dor era considerada lesão no Código Republicano de A incapacidade é para atividades genéricas da vida, mas
1890, mas hoje a perícia da dor tem menor importância, a habituais. Não caberá uma atividade excepcional, nem se re-
despeito dos diversos m étodos clínicos d escritos na literatura fere apenas ao trabalho remunerado.
especializada (que se valem das reações do sistema nervoso O perito deve informar ao paciente sobre o exame com-
autónomo provocadas pela do r, sinais de Mankof, de Imbert plementar aos 30 dias, o qual deverá ser solicitado oficial-
e de Levi), pois é fenómeno subjetivo (sintom a), impossibi- mente pela autoridade, como previsto no artigo 168 do CPP.
452 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

Figura 20.5. Cicatriz recente circular na face lateral do braço es-


querdo. Não determina deformidade. Lesão corporal leve. Caso do Dr.
Nereu G.M. Guerra Neto, do IMLAP.

Figura 20.3. Equimoses recentes e escoriações. Lesões corporais


leves. Caso do Dr. Nereu G.M. Guerra Neto, do IMLAP.

Figura 20.6. Cicatriz semelhante à anterior, mais antiga e sem defor-


midade. Lesão corporal leve. Caso do Dr. Nereu G.M. Guerra Neto, do
IMLAP.

Não pode ser inferido previamente o tempo da incapa-


cidade, embora, na prática, certas lesões que normalmente
evoluem de forma lenta levem o perito a não solicitar a rea -
Figura 20.4. Equimose antiga. Lesão corporal leve. Caso do Dr. Nereu valiação com bastante acerto. Assim são as fraturas completas
G.M. Guerra Neto, do IMLAP. ou complicadas de ossos longos, muito frequentes na prática,
e que, salvo exceções, merecem repouso superior ao trintídio.
Lembrar que não se exige a completa restituição da inte-
O lapso temporal com eça a correr no dia do evento in- gridade anatómica do local ou órgão lesionado, mas seu res-
clusive, devendo o paciente ser examinado no trigésimo tabelecimento funcional suficiente para permitir o retorno
primeiro dia (RT 613/318) para realização de laudo comple- às atividades do dia a dia.
m entar. Se o exame ocorrer poucos dias depois não invalida Na prática pericial, as lesões que determinam essa agra-
a perícia. O exame complementar em data anterior aos 30 va nte são as fraturas de ossos, curtos ou longos, que geram
dias não permite caracterizar a agravante. Evidente que se prejuízo da mobilização, e têm tempo de consolidação va-
passado o prazo, mas presente a incapacidade, pode ser res- riando em torno de 30 a 60 dias, e cujo tempo de incapacida-
pondido positivamente. A lei ainda admite a comprovação de, habitualmente, excede 2 meses.
da incapacidade através de prova testemunhal, quando a pe- O processo de cicatrização de feridas, tanto por primeira
rícia complementar não foi realizada. quanto por segunda intenção, dificilmente excede os 30 dias,
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 453

contudo nos casos de lesões múltiplas, graves e/ou situadas Exames especializados são, muitas vezes, necessários -
em locais de m obilização, podem configurar o inciso. eletromiografia, audiom etria, campimetria etc. - para ins-
Lesões internas com alterações orgânicas graves, impor- truir o laudo.
tam , norm almente, em outras qualificadoras, como perigo Há que se caracterizar bem o nexo de causalidade com
de vida ou debilidade permanente, que se somam à incapa- a lesão sofrida. Por exemplo, um indivíduo de 60 anos leva
cidade aqui discutida, devendo o perito responder a todas um soco no o uvido e alega redução de audição. Se o exame
normalmente. especializado comprovar que há de fato redução, mas é devi-
da à otosclerose (d oença degenerativa, pela idade, d o ouvido
Perigo de Vida m édio), há debilidade, m as não há vínculo com o alegado,
descaracterizando a agravante.
Difere de risco de vida como já discutido antes, podendo Quanto à permanência, com o já dito, basta que dure
estar presente imediatamente após o evento lesivo ou tem- muito, não se exigindo que seja eterna. Pode o legista soli-
pos depois, até 30 dias, caso da incidência da qualificadora citar novo exame direto após longo lapso de tempo, como
anterior. 6 m eses ou 1 ano, para bem caracterizar a permanência, de-
A lei não o especifica e sua presença é determinada pelo vendo efetuar a solicitação à autoridade, na resposta ao que-
perito após análise das informações médicas da vítima. sito, que ficará pendente até o novo exame. A consulta ao
Deve ser diagnosticado, não prognosticado ou suposto, especialista é sempre útil.
e no laudo pericial deve estar sua fundam entação detalhada,
po dendo o perito referendá-lo ou reafirmá-lo na resposta ao
Aceleração de Parto
quesito, resumindo-se o que estiver consignado na descrição
do laudo, parte mais importante d este, evitando responder A vítima só pode ser mulher, sendo necessária a compro-
apenas "sim''. Não basta, portanto, a m era possibilidade de vação médica da gravidez prévia. Aceleração é a antecipação
perigo, como, por exemplo, uma possível infecção em ferida (e o termo está corretamente aplicado) e não a rapidez d o
penetrante. trabalho de parto.
É comum sua caracterização som ente depois do trata- Tanto a realidade do estado gravídico quanto a data
mento da vítima, realizada em laudo pericial complementar, e exata do parto antecipado, bem como a data provável par a o
após profundo estudo médico do caso ou consulta a especia- término normal da gr avidez devem ser determinados, pelos
listas (p. ex., neurocirurgião, anestesista). Porém, sua caracte- métodos da Obstetrícia (regra de Nãgele etc. ). Informações
rização não exige, necessariamente, exam es complementares. d o m édico obstetra e/ou da instituição que acompanhavam
Entendemos que os procedimentos médico-cirúrgicos a ofendida, e o relato do parto, são fundam entais.
que atendem às técnicas consagradas de rotina, por si só, não Na determinação do estado de puerpério o perito pode
caracterizam perigo de vida. Anestesia geral inalatória, lapa- lançar m ão do exam e clínico direito, com as técnicas pró-
rotomia explor adora, craniotomia etc., se conduzidas com os prias da Obstetrícia, ou de exames labor atoriais complemen-
cuidad os habituais, não bastam, isoladamente, para afirmar tares, como dosagens hormonais, pesquisa de células trofo-
a agravante. blásticas nos lóquios, quando presentes, ultrassonografia d o
Lembrar que as concausas preexistentes (doenças como abdómen e pelve etc.
diabetes, anemias, hem ofilia, imunodeficiências etc.), que A lesão corporal deve estar presente e ser comprovada -
por si só debilitam o paciente, não afastam o perigo de vida, por exemplo, traumatism os no abd ômen ou na pelve - com o
quando este se concretiza após uma agressão. também o nexo de causalidade entre lesão e parto, como já
dito, de muito difícil avaliação. A lesão psíquica (um susto,
Debilidade Permanente de Membro, Sentido ou por exem plo) como desencadeadora do parto é possível, mas
Função de dificílima car acterização.
O recém-nascido pode ser examinado, se necessário, lem-
Existem vários graus de debilidade e lesões de avalia- brando que a viabilidade é requisito necessário, descaracteri-
ção complexa, sendo frequente o perito se valer do exam e zando-se o aborto, que corresponderia à lesão gravíssima. Se a
complementar realizado por outro perito especialista - por vítima parir um tumor (mola etc.) ou um monstro malfo rma-
exemplo, neurologista, otorrinolaringologista, oftalmologis- do inviável, que deverão ser alvo de exame anatomopatológico
ta, psiquiatra, od onto logista - para concluir a perícia e res- para exato diagnóstico, não se consolida a aceleração de parto.
po nder aos quesitos.
Precisa o perito diferenciá-la da perda o u inutilização,
que é lesão gr avíssima, sendo que a avaliação da debilidade • LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA - PERÍCIA
deve se repo rtar à capacidade prévia do indivíduo, por com-
par ação com o m embro ou sentido contralater al, por exem - Incapacidade Permanente para o Trabalho
plo, ou por o utros meios de análise disponíveis. É muito di-
fícil e, até certo po nto, injusto se comparar com um "valo r É considerado, como su praestudado, o trabalho genéri-
médio normal''. co, mas com os cuidados de se considerar as habilitações e
454 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

atividades prévias. Na prática, nos casos da incidência desta O perito deve estar sempre atento para a simulação ou a
agravante haverá sempre a presença de outras, pois a inca- fraude. Na dúvida, uma segunda opinião é útil. Não deve ter
pacidade capitulada só se configura em decorrência de uma pressa em concluir, podendo pedir exame posterior.
lesão corporal muito grave que gera perda de função, defor- O laudo pode ser acrescido de esquemas ou fotografias,
midades ou uma enfermidade incurável. quando necessário e possível, a critério de seu subscritor, o
São lesões normalmente extensas ou mutilantes, de re- que ajuda muito o julgador.
percussão fisiológica evidente e séria, mas que podem reque-
rer exames complementares e consulta a especialistas, para Deformidade Permanente
sua determinação. Não se exige perpetuidade, apenas per-
manência, nem se cogita do grau de intensidade do dano, Na qualificação penal do dano estético devem prevalecer
mas sim da consequência objetiva. O laudo deve ser, como, os aspectos objetivos da lesão, como alhures discutimos, não
aliás, sempre, muito bem fundamentado. devendo o perito levar em conta elementos como sexo, ida-
Exige bom-senso e conhecimento amplos do legista, em- de, cor, profissão e os aspectos psicossociais da vítima.
bora o juiz não tenha que ficar adstrito à conclusão do peri- Além da descrição detalhada das lesões (com todos os
to, pelo princípio do livre convencimento do juízo. E, de fato, seus elementos) e da deformidade (modificação estética ad-
é este que determina ou não a qualificadora na sua sentença. quirida ) que provoca, é sempre útil a documentação fotográ-
fica aposta ao laudo, quando exequível.
A realização de fotografias, atualmente muito simplifica-
Enfermidade Incurável
da e difundida pelo uso de máquinas digitais com baixo cus-
Muito já foi dito antes, mas podemos acrescentar que só to, veio ajudar muito a perícia médico-legal e deve ser utili-
deverá ser caracterizada depois de exames clínicos especiali- zada amplamente na perícia, em particular na comprovação
zados e exames complementares, quase sempre necessários. deste inciso. Havendo deformidade dinâmica - por exemplo,
Informações da evolução clínica e da internação da vítima
são sempre obrigatórias.
Lembramos que devemos observar um processo em cur-
so para indicar uma enfermidade. Caso haja apenas sequelas,
estaremos diante de uma perda ou inutilização de m embro,
sentido ou função.
Como dissemos, ocorre a associação desta agravante,
com a estudada anteriormente e a seguinte, mas o perito
deverá especificá-las e qualificá-las em separado no laudo
pericial, não poupando a consulta à literatura técnica, aos
especialistas e aos colegas mais experientes.

Perda ou Inutilização de Membro, Sentido ou


Função
Vale rever o que foi estudado antes sobre a debilidade
permanente.
Aqui, deve haver a ausência ou redução substancial (mais
de 70%) da capacidade funcional de membro, sentido ou
função. A ausência de um m embro é evidente ao simples
exame direto, mas alterações de fun ção e sentidos precisam
ser avaliadas e quantificadas, muitas vezes, em exame médico
complementar e/ou com auxílio do especialista na área.
Informações hospitalares são sempre necessárias para a
análise do nexo causal e da perda anatómica ou funcional.
Entendem alguns doutrinadores que a perda do baço,
que é órgão único, não é contemplada pelo inciso, o que
concordamos, pois suas principais funções são assumidas
por outros órgãos. Discordamos, contudo, que sua perda não
caracterize debilidade de função, pois ele não é um órgão
inútil ou vestigial e, sabidamente, sua ausência predispõe o Figura 20.7. Cicatriz hipertrófica extensa na face anterior do abdômen
paciente a certas infecções bacterianas, pela redução da fun- após agressão e cirurgia. Lesão corporal gravíssima com deformidade
ção imunológica que desempenha. permanente. Caso do Dr. Nereu G.M. Guerra Neto, do IMLAP.
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 455

o caso de uma bela mulher, modelo fo tográfico, contratada


por uma em presa, que perde o trabalho pela perda da beleza .
Com o já comentado, a avaliação do dano extrapatrimonial
ou moral inclui: o prejuízo à autoimagem, a do r sofrida (o
quantum doloris), o intenso m al-estar provocado pelos danos
sofridos, o dano à vida de relação do indivíduo, a frustração
pela cessação das atividad es habituais e de trabalho, vários
outros prejuízos aos direitos da personalidade e também o
dano estético.
O dano estético é lesão à harmonia de fo rmas externas de
alguém, lesão à sua beleza. O conceito de belo é sabidam ente
relativo, mas o perito pode se valer da observação da modifi-
cação da estética corporal prévia, através de fotos da pessoa,
para a atual visível, após a lesão sofrida.
Caberá ao juiz determinar o quantum da indenização no
Figura 20.8. Cicatriz recente irregular com retração no flanco direito.
final das contas, mas pode o perito caracterizar as repercus-
Lesão corporal com deformidade. Caso do Dr. Nereu G.M. Guerra Neto,
sões objetivas da lesão estética na vida do indivíduo e tentar
do IMLAP.
quantificar a gravidade da lesão. Pode a lesão ser quantifica-
da em graus (leve, moderada ou severa) ou em escala numé-
rica, como prefere o professor Fran ça em seu livro de Medi-
alteração da marcha - a documentação através de filme digi-
cina Legal, numa escala de 1 a 7, a saber: 1) insignificante, 2)
tal é muito elucidativa para a Justiça.
leve, 3) moderado, 4) médio, 5) suficientemente importante,
A perícia não deve ater-se apenas à deformidade logo
6) importante e 7) muito importante.
visível, com o uso das roupas durante o exame, mas àquela
Para esta avaliação do dano extrapatrimonial estético, o
que, mesmo só na intimidade do indivíduo, poderá causa r
perito deve levar em consideração os seguintes elementos:
prejuízo releva nte, como já afirmamos. O exame corporal
o grau da deformidade - localização e intensidade - ,
deve, preferentem ente, ser completo, m as a vergonha ou o
que envolve critérios objetivos (mudança física), ba-
pudor podem prejudicar a análise. Relembramos que o m é-
seados no padrão estético anterior, e subjetivos (im-
dico não pode constranger o paciente, mas deve explicar a
pressão que causa ao olhar), podendo-se utilizar as
importância do exame, para obter o consentimento de sua
escalas descritas anteriormente;
realização.
o sexo e o estado civil do indivíduo, que hoje não fa-
Diante de uma lesão com alteração estética, cuja impres-
zem m ais tanta diferença, pelas mudanças na socieda-
são é, no mais das vezes, subjetiva, os peritos podem e de-
de e na legislação, antes se considera ndo que a mulher
vem pedir a o pinião de outros, o que permite reforçar uma
sofria maior prejuízo que o homem pela perda da be-
convicção.
leza física, principalmente na chance para se casar ou
Nada impede que a deformidade desapareça após cirur-
na possibilidade de uma separação. Em que pese a vi-
gia plástica realizada pela vítima, desaparecendo igualmente
são atual ser menos discriminató ria, na prática, ainda
a qualificad ora. Porém , permanece, quando apenas dissimu-
influencia subjetivam ente o avaliad or;
lada por pró teses.
a idade do indivíduo, especialmente pelas consequên-
Deve ter cuidad o, o perito, para determin ar a deformi-
cias psíquicas que o dano pode causar, sobretudo ao
dade da lesão já estável após sua evolução temporal, embora,
jovem, e pela possibilidade de as mudanças no rmais
em termos patológicos, mesm o as cicatrizes continuem evo-
dos tecidos com o envelhecimento mascararem uma
luindo por toda a vida. Basta, apenas, q ue a per ícia não seja
maior deformidad e;
feita em fase muito inicial e que a lesão já tenha assumido o
o mesmo se diga da cor e do estado da pele da pessoa,
seu aspecto mais duradouro.
que pode disfarçar ou realçar uma lesão, criando me-
nor ou maior impacto, respectivamente, ao olhar;
A Deformidade na Perícia Civil - a Perícia do Dano a vida de relação do indivíduo no seu m eio social, ou
Estético
status, como também no ambiente de trabalho, pode
O dano estético pode ter reflexo no patrimônio, quando ser afetada pela mudança na beleza, com sérios pre-
a beleza é elemento importante no trabalho e ganho salarial juízos à auto imagem, autoconfiança e autoestima.
da pessoa (uma modelo, um apresentador de televisão, um Nas profissões em que se lida com o público isto fica
artista de cinema etc.) e reflexo na vida extrapatrimonial, bem evidente.
sendo aí considerado dano m oral. Deve-se evitar uma análise preconceituosa da situação d o
O prejuízo patrimonial do dano estético é mais facilmen- periciado. Não é requisito do dano estético a existência de
te avaliado pela perda de um vínculo empregatício ou a perda beleza anterior, segundo os critérios de certa cultura. Nem
de novas oportunidades de ganho em trabalhos futuros. É a beleza é apanágio da mulher, do jovem ou de determinada
456 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

raça, embora na realidade social sejamos influenciados por Habitualmente, é uma perícia realizada pelo especialista
fortes pressões culturais. Todo indivíduo forma sua autoi- em psiquiatria, mas nada obsta que o legista não psiquiatra
magem e sua estética pública conhecida e aceita em seu meio realize o exame. Nos grandes Institutos Médico-legais en-
social. É a modificação com prejuízo desta, auto e hétero, contramos perito-legistas psiquiatras com experiência neste
imagem que deve ser avaliada e quantificada do modo mais tipo de perícia.
isento possível. Tratando-se de uma área da Medicina muito vasta e com-
plexa, seara própria do psiquiatra, entendemos que este deve
ficar encarregado de tão difícil tarefa, no mínimo auxiliando
Aborto
o perito-legista.
Reveja-se o que foi dito na aceleração de parto, com a O dano psíquico deve ser diferenciado da doença mental.
diferença da morte do concepto. A distinção do crime de O primeiro pode ser conceituado como prejuízo das funções
aborto está na intenção e nas circunstâncias do fato, cabendo psíquicas, seja modificação ou redução de uma ou mais fun-
à Justiça realizá-la. ções mentais, de início súbito e não previsto, em decorrência
A realidade da gravidez, comprovada através de exames de fato juridicamente relevante, ato doloso ou culposo, ge-
clínicos e laboratoriais, é imperiosa, como também do pro- rando responsabilidade e havendo nexo causal entre o ato e
duto da concepção (feto morto), que deverá ser enviado para o dano, e que causa prejuízo na vida do indivíduo.
necropsia oficial ou, no mínimo, exame anatomopatológico Já doença mental é um termo geral para distúrbios da
em instituição idônea. O laudo desses exames será anexado mente, incluindo afetividade, percepção e comportamento,
ao de lesão corporal. normalmente incapacitantes, de origem em causas naturais,
Tratando-se de neoplasia trofoblástica, litopédio ou mal- não havendo responsabilidade jurídica na sua produção.
formado inviável, comprovados por exame anatomopatoló- Como ela gera, muitas vezes, incapacidade grave no indiví-
gico, a agravante é impossível, por erro do objeto. O estabe- duo na sua relação com a sociedade, pode a doença mental
lecimento do nexo de causalidade é elemento imperioso da alterar a imputabilidade penal e a autonomia para atos da
qualificadora, devendo o perito ser cuidadoso para analisá-lo, vida civil, mas não configura lesão corporal nem enseja inde-
configurando-se, frequentemente, tarefa muito difícil. nização. No presente, a Psiquiatria consegue tratar a conten-
to muitas formas de doença mental, permitindo ao doente
uma vida produtiva e relativamente normal, embora cura
ainda não exista.
• LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE -
Na perícia do dano psíquico, devem ser observados os
PERÍCIA seguintes elementos:
Por haver mo rte de natureza violenta, o CPP, em seu ar- existência real do dano, sua caracterização e quantifi-
tigo 158, determina que a vítima seja alvo de exame de ne- cação, se possível;
cropsia médico-legal e o laudo pericial irá detalhar as lesões estabelecimento do nexo causal entre o ato imputado
corporais encontradas e relacionar estas lesões com o evento como gerador do dano e o dano real observado;
morte (estabelecimento do nexo causal). relação entre o dano psíquico existente e a conse-
Caso a vítima tenha sido internada em instituição hospi- quência jurídica que se deseja avaliar.
talar, informações médicas sobre o estado inicial de entrada, Como nas lesões orgânicas, já vistas, tanto o surgimento
as lesões, o atendimento, a terapêutica e a evolução, com suas da nova lesão quanto o agravamento de lesão preexistente
complicações, serão sempre solicitadas. caracterizam o dano.
O Juiz não fica, como já visto, adstrito ao laudo pericial. A existência do dano psíquico é determinada pelos méto-
dos da psiquiatria, que incluem entrevistas com o pacien-
te e com pessoas rela cionadas (parentes, amigos, colegas de
• LESÃO CORPORAL CULPOSA - PERÍCIA trabalho, médicos do paciente etc.), testes objetivos, obser-
vações diretas da vida diária da vítima e exames comple-
Neste item remetemos o leitor ao que já foi discutido nos mentares para detectar problemas orgânicos potencialmente
aspectos médico-legais teóricos sobre lesão corporal culposa relacionados com o transtorno psíquico.
e aos aspectos periciais gerais, nada mais havendo a expor. Normalmente, são necessários vários exames e entrevis-
tas, em diferentes momentos, para melhor se avaliar o qua-
dro como um todo, devendo-se evitar diagnóstico precipi-
• ASPECTOS MÉDICO-LEGAIS DO DANO tado ou baseado apenas em uma impressão momentânea.
PSÍQUICO É fundamental a caracterização da mudança de hábitos e
condutas, através da análise da vida pregressa do indivíduo e
Como já vimos, na caracterização de lesão corporal, o seus afazeres anteriores ao fato gerador do dano. Não haven-
prejuízo causado à esfera mental do indivíduo é também rele- do qualquer problema mental anterior ao fato, sua análise
vante e passível de avaliação para a Justiça, seja no direito pe- fica limitada ao exame atual do dano observado. Havendo
nal, no civil, no militar, no do trabalho ou no administrativo. história patológica mental pregressa, a perícia torna-se m ais
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 457

difícil e buscará caracterizar uma piora ou agravamento do de uma neurose fóbica, hipocondria, delírio de reivindicação
quadro mórbido anterior, ou mesmo a superimposição de ou ainda uma supervalorização do seu sofrimento. Este qua-
novo transtorno ao já existente. dro faz diagnóstico diferencial com a simulação, da qual dife-
O examinador deverá estar atento para as simulações e re pela falta da consciência de fingir da vítima e a ausência da
as metassimulações. O simulador, indivíduo que não tem o busca de uma vantagem pessoal do tipo indenização, interes-
dano, mas finge apresentá-lo, geralmente imita ou repete as se pessoal ou fuga de uma responsabilidade. A quantificação
características que sabe fazerem parte do quadro que deseja do dano psíquico é habitualmente difícil, sendo a descrição do
simular. Este, muitas vezes, conhece alguém com o quadro, e prejuízo mais relevante que sua avaliação numérica.
treina a sua imitação. Outros apelam para simulações mais O estabelecimento do nexo causal é, igualmente, tarefa
grosseiras, através da recusa ou não cooperação com o exa- árdua, exclusiva do perito-legista. Quando se trata de lesão
me, ou alegando sintomas incoerentes, absurdos ou exagera- orgânica, evidente aos exames clínicos e complementares, a
dos, ou simulando ainda uma mistura de alterações mentais relação causal pode ser diretamente analisada, devendo-se
que, tecnicamente analisadas, não correspondem a um qua- ter o cuidado de excluir alterações psíquicas anteriores por-
dro de doença mental possível. ventura existentes e bem caracterizar as sequências temporal
Na metassimulação, o indivíduo apresenta um dano, mas e anatomoclínica dos eventos.
tenta exagerá-lo no exame, muitas vezes para obter maior Quando não há substrato morfológico para o dano, o
indenização. A perícia é, evidentemente, mais difícil, deve ser estabelecimento do nexo depende de todos os elementos
cuidadosa e tentar se valer de informações anteriores sobre anteriormente citados e da forma de início e evolução da al-
o paciente, comparando-se com o estado atual. A análise de teração psíquica observada, tendo em vista o evento supos-
seus reais interesses atuais pode ser útil. tamente causador.
A qualificação do dano psíquico é complexa e baseia-se Remetemos o leitor à bibliografia especializada, listada
nos quadros psiquiátricos e neuropsíquicos conhecidos. Ha- no final do capítulo, em particular o DSM-IV e o tratado de
vendo lesão orgânica conhecida do sistema nervoso central, Medicina Legal e Toxicologia do professor Calabuig (capí-
por exemplo, um traumatismo craniano com destruição de tulo 92).
zonas do cérebro, a sintomatologia guardará relação com a Quanto à relação entre o dano psíquico existente e a con-
função perdida. Exames complementares (p. ex., ressonân- sequência jurídica que se deseja avaliar, devemos considerar
cia magnética nuclear do crânio, eletroencefalograma) e o qual a finalidade da avaliação do dano. Na esfera penal a pe-
bom conhecimento de psiconeurofisiologia são importantes rícia do dano psíquico importa em graduar a lesão psíquica
no diagnóstico. Não havendo, contudo, lesão orgânica de-
sofrida, conforme o artigo 129 do Código Penal, e se esta in-
tectável, mas apenas presença de sintomato logia psíquica, de
cide em alguma das qualificadoras dos parágrafos já discu-
natureza afetiva, neurótica ou psicótica, o quadro deverá ser
tidos (uma enfermidade incurável, por exemplo ). Na esfera
diagnosticado dentro dos transtornos psíquicos reconheci-
civil, deve-se determinar o prejuízo patrimonial e extrapatri-
dos pela Ciência Médica.
monial (moral) provocado pelo dano psíquico conforme seu
Na avaliação dos transtornos orgânicos pós-traumáticos,
reflexo na vida do indivíduo. Na área trabalhista, a avaliação
exatamente devido à ameaça à vida sofrida pela vítima, como
busca determinar o prejuízo para a atividade laborativa e
também à lesão da integridade física e às possíveis alterações
suas consequências (ver adiante). Nos seto res administrati-
na sua vida de relação, os aspectos emocionais ganham mui-
to interesse na análise pericial. vo e militar cabe à perícia, no mais das vezes, caracterizar a
capacidade do indivíduo para o exercício de atividades ad-
Encontramos no DSM-IV várias síndromes ou transtor-
nos de natureza orgânica pós-traumáticos, tais como: trans- ministrativas e/ou técnicas próprias de sua função ou cargo,
torno pós-concussão, transtorno amnésico, demência, alte- conforme a legislação em vigor.
rações da personalidade, da consciência, da afetividade, da
atenção, da atividade motora, todos após trauma do sistema
nervoso central. No âmbito do dano unicamente psíquico, • ASPECTOS MÉDICO-LEGAIS DA PERÍCIA NAS
vários fatores estão envolvidos e devem ser avaliados: tipo de LESÕES RELACIONADAS AO TRABALHO
personalidade, constituição emocional, percepção da lesão,
convivência com o dano e com a agressão sofrida e autovisão Com a evolução tecnológica e científica, as atividades la-
sobre a inca pacidade. borativas se diversificaram e tornaram-se mais complexas e,
Aqui, a classificação de distúrbios mentais descreve, en- em decorrência, surgiram também novos agravos à saúde e
tre outros: transtorno psicótico desencadeado por trauma, à integridade física e psíquica dos trabalhadores. Inicialmen-
estresse pós-traumático, transtornos somatoformes (somati- te o Direito do Trabalho e, posteriormente, a Medicina do
zação, transtorno por dor), de personalidade, de ansiedade, Trabalho, surgiram e muito se desenvolveram na atualidade.
do ânimo e transtorno neurocognitivo leve. A realização das atividades do trabalho e as condições
Dentre os transtornos devidos ao trauma, destaca-se a dessa realização expõem os trabalhado res a riscos, que po-
neurose traumática, em que a vítima apresenta um quadro dem se materializar em acidentes de trabalho, doenças pro-
onde ela deseja estar doente, o qual pode se expressar através fissionais e doenças relacionadas ao trabalho.
458 • CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano

Conforme a Lei nº 8.213/91: "acidente de traballio é o vos à saúde provocados pelo traballio e à literatura especiali-
que ocorre pelo exercício do traballio a serviço da empresa zada, relacionada ao fim deste capítulo.
ou pelo exercício do traballio dos segurados referidos (no
inciso VII do art. 11 desta lei), provocando lesão corporal
ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou • LESÕES DECORRENTES DE ATIVIDADES
redução, permanente ou temporária, da capacidade para o ESPORTIVAS
traballio''. São equiparados legalmente a ele: "o acidente li-
gado ao traballio que, embora não tenha sido a causa úni- O Estado disciplina regras para a prática desportiva, di-
ca, haja contribuído diretamente para a morte do segurado, vulga, estimula e financia sua prática, pelas grandes vantagens
para dedução ou perda de sua capacidade para o traballio, que trazem à saúde física e mental. Naturalmente que o exer-
ou produzido lesão que exija atenção médica para a sua re- cício da atividade esportiva não pode ser considerado simul-
cuperação" e o "acidente de trajeto': que é o que ocorre no taneamente um crime. E em alguns esportes, há certo grau de
percurso de casa para o traballio e vice-versa. violência, por vezes, extremo, como nas lutas livres, hoje tão
A Lei define doença profissional como "aquela produzi- apreciadas.
da ou desencadeada pelo exercício peculiar a determinada Sendo a violência inerente a estas práticas esportivas, a
atividade e constante da relação..." e elenca as consideradas ação violenta não configura delito, pois será atípica. Não so-
doenças profissionais. São exemplos: as pneumoconioses mente as lesões corporais são aí toleradas, como a própria
(dos trabalhadores da mineração e outras atividades que possibilidade do evento morte é legalmente aceita. Claro está
envolvem poeiras ambientais) e algumas intoxicações na que a violência natural de determinado esporte objetiva não
indústria química. prejudicar a pessoa do oponente, mas obter uma vantagem
Já doença relacionada ao traballio é aquela "adquirida para vencer a partida, mesmo nas lutas pessoais. Todos os
ou desencadeada em função de condições especiais em que jogadores ou lutadores consentem naquela prática.
o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamen- Assim, devemos considerar os seguintes elementos, na
te, constante da rela ção mencionada ...". São exemplos os análise das lesões corporais desportivas:
muito comuns distúrbios osteomusculares relacionadas ao atividade espo rtiva regulamentada ou, ao menos,
traballio (DORT), antes denominados lesões por esforço aceita pelos princípios morais vigentes na sociedade;
repetitivo (LER). consentimento dos participantes, com pleno conhe-
A perícia nas lesões ligadas ao traballio deve caracterizar cimento esclarecido dos riscos existentes e
o dano, físico ou psíquico, o rgânico ou funcional, estabelecer ação produzida dentro dos limites estabelecidos pelas
o nexo causal com o traballio desenvolvido e determinar o regras do esporte, ou que não configure desígnio di -
grau de incapacidade, temporária o u definitiva, para o tra- verso do objetivo da prática esportiva.
ballio futuro.
A caracterização do dano é o diagnóstico da lesão produ-
zida no acidente, o u da doen ça produzida pelo traballio, po-
dendo ainda tratar-se não propriamente de doença do traba-
llio, mas de outra doença agravada pela execução do mesmo.
A dor, na Medicina do Traballio, diferente do Direito Penal,
configura-se um sério problema por ser sinto ma incapaci-
tante para a execução da atividade laborativa, devendo ser
cuidadosamente analisada.
O estabelecimento do nexo causal deve levar em conta
a natureza da atividade, as ações realizadas na execução da
atividade, o ambiente do traballio, os riscos inerentes à ativi-
dade, a obediência às regras de segurança, o uso de equipa-
mentos de proteção individual etc.
Conforme a legislação traballiista, a inca pacidade pode
ser: temporária, devendo o perito determinar o término da
incapacidade, como já discutido; permanente, parcial ou
total, para o trabalho específico ou para o trabalho genéri-
co, devendo o perito especificar a relação entre a lesão e a
atividade específica e sua permanência; inva lidez grave, que
é a incapacidade permanente não só para o traballio como
para as atividades da vida comum; e a morte em decorrên-
cia do traballio.
Remetemos o leitor ao capítulo de Infortunística, que é a Figura 20.9. o boxeador Evander Holyfield após sofrer agressão pelo
parte da Medicina Legal que estuda especificamente os agra- adversário Mike Tyson.
CAPITULO 20 Lesões Corporais. Perícia e Quantificação do Dano • 459

14. Decreto n2 3.298, de 20 de dezembro de 1999.


15. Decreto-lei n" 2848 de 07/12/1940/PE - Poder Executivo Federal
(D.O.U. 8/12/1 940). Exposição de m otivos da parte especial do có-
digo penal.
16. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva; 2009.
17. Diniz MH. O Estado Atual do Biodireito. 8ª ed. São Paulo: Editora
Saraiva; 2012.
18. Fávero F. Medicina Legal. 11• ed. São Paulo: Livraria Martins Edi-
tora; 1980.
19. França GV. Medicina Legal. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Guana-
bara Koogan S.A.; 2011.
20. França GV, Drumond JGF, Gomes JCM. Erro Médico. 4• ed. Rio de
Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A.; 2002.
21. Gomes H. Medicina Legal. Revista e ampliada pelo Prof. Hygino de
Figura 20.10. Lutadores do UFC após luta. Lesões esportivas não C. Hércules. 33ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos Editora;
configurando lesões corporais sob o aspecto penal. 2003 .
22 . Greco R. Código Penal Comentado. 6ª ed. Niterói: Editora Impetus;
201 2.
23 . Greco R. Curso de Direito Penal. 9"2 ed. Niterói: Editora Impetus;
Pelo exposto, fica evidente que durante a prática espor-
201 2.
tiva poderá ocorrer o crime de lesões corporais, bastando o 24. Jesus DE. Lei das Contravenções Penais Anotada. 12• ed. São Paulo:
não atendimento aos elementos acima. Por exemplo, quando Ed. Saraiva; 2010.
um jogador de futebol ou basquete agride deliberadamente 25. Jesus DE. Código Penal Anotado. 21• ed. São Paulo: Ed. Saraiva;
outro fora de um lance de disputa de bola, gerando lesões. 2012.
26. Jesus DE. Direito Penal. 32• ed. São Paulo: Ed. Saraiva; 2012.
Outro exemplo, famoso, ocorrido há alguns anos em luta de 27. Kfouri Neto M. Responsabilidade Civil do Médico. 7•ed. São Paulo:
boxe, foi a lesão produzida na orelha (arra ncamento parcial) Editora Revista dos Tribunais; 20 10.
do lutador Evander Holyfield pelo adversário Mike Tyson. 28. Kun1ar V,Abbas A, Fausto N .As Bases Patológicas das Doenças. 8ª ed.
P Robbins & Cotran, eds. Philadelphia: Sau nders/Elsevier; 2010.
29. Lei n" 10.886, de 17 de junho de 2004.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 30. Lei n" 11.340, de 7 de agosto de 2006.
3 1. Lei n" 7.853, de 24 de outubro de 1989.
32. Lei n" 9.099, de 26 de setemb ro de 1995 .
!. Altavila J. Origem dos Direitos dos Povos. 9' ed.São Paulo: kone 33. Lei n" 9.455, de 7 de abril de 1997.
Editora; 2001. 34. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-DSM-IV.
2. Arbenz GO. Medicina Legal e Antropologia Forense. Rio de Janeiro: 4' ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995
Livraria Ath eneu; 1988. 35. Mendes R. Patologia do trabalho. 2• ed. São Paulo: Editora Ath eneu;
3. Bitencourt CR. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 12• ed. São Paulo: 2003 .
Ed. Saraiva; 201 2. 36. Mirabete JF. Código Penal Interpretado. 7• ed. São Paulo: Editora
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10. Código de Processo Penal. 52ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva; 2012. Janeiro: Forense; 1983.
11. Código de Trân sito Brasileiro - Lei 9.503/97. 42. Tourinho Filho FC. Processo Penal. 34ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva;
12. Código Penal. 50ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva; 2012. 201 2.
13. Croce D, Croce Jr. D. Manual de Medicina Legal. 8ª ed. São Paulo: 43. Urban CA. Bioética Clínica. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Re-
Ed. Saraiva; 2012. vinter; 2003.
Hygino de C. Hercules

To dos os seres humanos estão sujeitos a eventos capazes Imaginemos uma pessoa que ganhe a vida como marce-
de Lhes causar dano durante toda a sua vida. Desde que nas- neiro e que tenha de trabalhar a madeira nas tupias e serras
cem os, a possibilidade de infortúnios ro nda-nos, mudando circulares. A probabilidade de ter um dedo lesado pela m á-
apenas a natureza do agente causador de acordo com o esti- quina sempre está presente nessa atividade, mas totalmente
lo de vida adotado, seja em função da idade, seja por causa ausente para quem não lida com tal aparelhagem. É esse um
das atividades a que nos dedicam os. Nos primeiros passos, risco específico.
o risco de queda faz parte da aprendizagem. E parece que a
natureza, sempre sábia, amenizou a probabilidade de graves
lesões fazendo-nos mais flexíveis e dotados de uma caixa cra- • RISCO PROFISSIONAL
niana mais elástica e capaz de m elhor amortecer impactos.
A probabilidade de sermos lesados em acidentes é ine- O fato de haver um risco, po rém, não quer dizer que, ne-
rente a qualquer atividade, mesm o aquelas desenvolvidas no cessariamente, tenha que ocorrer o evento danoso. Existe a
lar. É o que se chama de risco genérico. Qualquer pessoa está possibilidade, com probabilidade maior ou menor de acordo
permanentemente exposta a eventos desastrosos, quaisquer com as circunstâncias. Quanto maior a cautela ao se realizar
que sejam o lugar e a atividade desenvolvida. Mas há situa- uma tarefa e mais abrangente o leque de medidas preventi-
ções em que a exposição ao agente danoso é mais intensa. vas, m enor se torna a probabilidade de sua ocorrência. Ao
Assim, o indivíduo que caminha à margem de uma estrada longo da histó ria da atividade laborativa humana, a adoção
corre o risco de ser atropelado por um veículo desgoverna- de medidas de prevenção tem diminuído substancialmente
do. Mas o risco aumenta se ele tem a obrigação de limpar a incidência de acidentes. Na verdade, chegou-se à suposi-
o acostamento diariamente. Da mesma fo rma, a possibili- ção de que se poderia atingir a incidência zero se todas as
dade de ser atingido por um raio durante uma tempestade medidas necessárias à prevenção fossem adotadas. Veiga de
de verão é igual para todos que sejam obrigados a passar Carvalho 1, no entanto, relata que não é assim. Mesmo afas-
pela mesma estrada. No entanto, se ele tem o dever de fazer tando todas as causas conhecidas de acidentes do trabalho,
reparos nos postes da rede elétrica durante a to rmenta, a como as derivadas de falta do patrão, de erro do empregado,
probabilidade de ser atingido aumenta. A participação em de falha dos equipamentos, continua a haver eventos <lano-
uma "pelada" traz a possibilidade de se sofrer uma torção de sos ao trabalhador. Na verdade, a maioria dos acidentes do
tornozelo ou de joelho, que passa a ser muito maior para o trabalho resulta de situações peculiares ao trabalho. É o risco
jogad or profissio nal de futebol. Mais ainda. Qualquer mo- profissional. Po r mais que se exerça uma vigilância sobre os
rador de área endêmica de malária corre o risco de contrair fatores de risco nas diversas atividades laborativas, sempre há
a doença. Mas o risco é maior se for um seringueiro. Em acidentes. É um risco imanente, específico do trabalho.
todas essas situações especiais, o risco aumenta em função O trabalhador fica mais exposto a acidentes pela inter-
da maior exposição ao agente lesivo. Por isso, diz-se que há ferência de fatores inerentes à própria atividade laborativa.
um risco genérico agravado. Avulta como dos mais importantes a fadiga. À medida que

461
462 • CAPITULO 21 lnfortunística

se passam as horas, o controle psicomotor atinge um clímax poderia superar a imensa gama de desafios a enfrentar para
e, depois, começa a declinar. Chega um m omento em que é continuar vivendo. Aprendeu a lidar com o fogo, inventou a
necessário par ar e descansar para que o desempenho conti- ro da e passou a cultivar o solo e a d omesticar o utros animais,
nue satisfatório. A persistência na execução das tarefas além numa epopeia de milhares de anos. Ao longo do tempo, a
d o limite tolerável de fadiga faz com que haja compro meti- organização social passou por grandes m odificações, sem-
m ento da atenção e do controle psicomotor. A partir daí, a pre ditadas pelas necessidades de produção e de consumo.
probabilidade de acidentes só tende a aumentar. A diferenciação das tarefas, inicialmente extrativas e de caça,
Outro fato r é a imprudência do trabalhador. A não ado- trouxe a necessidade de uma especialização dos trabalhado-
ção de medidas de proteção, tidas como su pérfluas pelos res. A invenção de utensílios e de máquinas cada vez m ais ela-
m ais afoitos, expõe-os a um risco que seria minorado se fos- boradas para a obtenção dos meios de subsistência e de vida
sem observadas as normas de segurança. Por exemplo, não mais segura e confortável levou ao aparecimento das diversas
usar capacete, não colocar pro teção lateral em andaimes nas profissões. Paralelamente, a organização econômica das so-
atividades da construção civil. ciedad es acabou po r estratificá-las de acordo com a capaci-
A repetição muito frequente dos m esm os atos durante as dade de gerar a riqueza de cada um dos seus segmentos. Além
tarefas acaba por diminuir a atenção em função do au toma- disso, as guerras trouxeram como consequência a d ominação
tismo. O nível de vigilância da consciência sobre as operações de alguns povos sobre outros menos preparados para o con-
realizadas vai diminuindo também pelo excesso de confiança. fronto. Surge a escravidão. Na Antiguidade, havia desprezo
O oper ador de guilhotina em estamparias, a pr incípio, teme pelo trabalho braçal, em geral atribuído aos escravos, o que
sofrer uma amputação. Mas, à medida que perde o medo da persistiu ao longo da Idade Média de maneira um pouco
m áquina, passa a ser mais descuidado. mais sutil. A nobreza exaltava as conquistas e também o ócio,
De suma impo rtân cia, ainda, é a ap tidão do indivíduo ao considerando de menor valor as tarefas ligadas à pro dução
tipo de trabalho. Sabemos que há indivíduos cuja atenção se de bens. É claro que a ocorrência de acidentes na realização
dispersa de tempos em tempos e outros que são capazes de desse trabalho deixava o indivíduo lesado sem qualquer tipo
permanecer concentrados na tarefa por muito mais tem po. de assistência. Mas os indivíduos encarregados da produção
Numa linha de produção, o distraído não pode exercer con- de bens mais elaborados passar am a constituir a classe dos
trole da qualidade nem trabalhar em setores que exijam con- artesãos, que ensinavam seu ofício de geração em geração aos
tínua observação da maquinaria. Pessoas que ado rmecem seus descendentes, passando a constituir um segm ento indis-
com facilidade não devem exercer a função de vigia no turno. pensável à sociedade. Com o lucro da venda de seus produ-
O ideal é que se analise o conjunto de qualidades fisiopsíqui- tos, for am adquirindo algum poder. Culminaria tal situação
cas do indivíduo e se lhe atribua tarefa compatível com a sua na Revolução Francesa do fim do século XVIII, quando já
per so nalidade.
havia uma burguesia bem estabelecida. Com a invenção da
Além do m ais, a aptidão natural tem que ser desenvol-
máquina a vapor, veio a Revolução Industrial, acelerada bem
vida pelo adestramento. Muitos acidentes são causados pela
mais tarde pelo aproveitamento da energia elétrica'.
improvisação de auxiliares em tarefas da competência de
Ao lo ngo dessa evolução econômico-social, pequenas
técnicos. Em nosso ram o de atividade como patologistas fo-
fo ram as melhoras conseguidas pelos trabalhadores. Conti-
renses, é relativam ente comum que serventes sejam alçados à
nuavam pouco amparados quando da incidência de aciden-
condição de técnicos de necro psia pela falta de trabalhadores
tes. É bem recente o reconhecimento do risco profissional e
qualificados e pela necessidade de serviço. São funcionários
da necessidade de amparo ao acidentado do trabalho. Em
que continuam a receber remuneração de servente e exercem
nosso país, até o início do século XX, o trabalhador aciden-
a fun ção de técnico. Os riscos decorrentes dessa improvisa-
tado que pleiteasse uma indenização teria que provar a culpa
ção, entre outros, são o prejuízo para as perícias, o maior
do patrão na eclosão do sinistro. Não havia uma legislação
risco de lesão pelo instrumental cirúrgico e a contaminação
específica q ue regesse a m atéria. Assim, o pedido de inde-
do ambiente e do próprio funcionário por vírus e bactérias.
nização teria que ser feito com base na lei civil ordinária. E
esta só reconhecia a obrigação de repa rar o dano daq uele que
o ho uvesse causad o por dolo o u por culpa, de acordo com o
• CONCEITO DE ACIDENTE DO TRABALHO Código Civil de 1916. É a teoria da responsabilidade extracon -
tratual, também chamada de aquiliana - responsabilidade
Aspectos Doutrinários
civil subjetiva. A obrigação de reparar adviria da ação ou da
O reconhecim ento de que o trabalho, por si só, é capaz omissão, do losa ou culposa, do agente, que teria que ser de-
de gerar situações de acidente e dano ao trabalhador fo i con- monstrada pelo reclamante2•
quistado com sofrimento. Sem querer fazer um histórico d o Não é difícil imaginar quem saía vencedor na maioria das
trabalho e das relações entre o empregador e o empregado, vezes. Em primeiro lugar, porque o empregado r não costu-
devem os narrar os principais m arcos dessa evolução. ma ter culpa no acidente. Em segundo, porque a capacidade
No início, era a necessidade de sobrevivência da espécie. de se defender do empregador, que pode contratar bons
Fisicamente frágil, o homem logo aprendeu que só em grupos advogados, é muito maio r que a do empregado acidentad o.
CAPITULO 21 lnfortunística • 463

Um passo adiante foi dado quando se propôs a substi- trabalho como causa única dos males verificados''. Como é
tuição da teoria da culpa delituosa do patrão pela da culpa fácil perceber, as contestações das ações de indenização fo-
contratual. No contrato de prestação de serviço ao patrão, a ram inúmeras e voltadas para a impossibilidade de compro-
obrigação do empregado é produzir, mas aquele tem o dever var que o trabalho tivesse sido a causa única do dano. Como
de lhe propiciar um ambiente seguro para o exercício do tra- se sabe, a ação maléfica do trabalho sobre o trabalhador pode
balho. Quem usufrui dos lucros gerados pelos equipamen - ser exercida de modo agudo e concentrado no tempo, ou ao
tos da linha de produção tem que responder por eventuais longo de um período prolongado, como nas doenças pro-
prejuízos causados por esses elementos. Havendo o acidente, fissionais. Estas, de acordo com essa lei, dificilmente seriam
caberia ao patrão o ônus de provar que propiciara um am- reconhecidas, pois que fatores constitucionais poderiam ser
biente seguro para o exercício do trabalho. Isso trouxe um alegados como concausa da doença. Essa lei trouxe a obriga-
ganho para o trabalhador porque tirou de seus ombros a toriedade de o empregador fazer seguro contra acidentes do
obrigação de provar a culpa do patrão. Bastava ao emprega- trabalho em certas atividades.
do comprovar a relação de causa e efeito entre o trabalho e a Mais tarde, veio a Lei 24.637 de 10/07/1934, que aboliu
incapacidade resultante do acidente. Mesmo assim, não era aquela expressão tão repudiada pelos comentaristas, de ser
tão pacífico o ganho de causa. A parte mais forte, o patrão, o trabalho a ca usa única do mal. Essa lei referia que o aci-
acabava por convencer os juízes de que não havia falhado na dente do trabalho seria "toda lesão corporal, perturbação
obrigação de prover segurança ao trabalhador. Na prática, o funcional ou doen ça produzida pelo exercício do trabalho
trabalhador continuava desamparado pela falta de uma le- ou como consequência dele"' . Mas, por outro lado, requeria
gislação específica 1• que as doenças adquiridas pelo exercício do trabalho fossem
Foi só a partir do momento em que se passou a admitir a causadas exclusivamente por ele. Isso deixava fora de amparo
existência do risco profissional que se adotou a teoria da res- os trabalhadores portadores de doenças, como veremos mais
ponsabilidade objetiva nos acidentes do trabalho. Na respon- adiante, causadas pelas condições especiais ou excepcionais
sabilidade objetiva, o agente causador do risco fica obrigado em que ele é exercido. Além disso, ainda não havia a lei se
a reparar o dano, independentemente de ter sido culpado, ocupado dos aspectos de prevenção dos acidentes e de rea-
ou não, pelo acidente 2• Mesmo atuando conforme mandam daptação do trabalhador acidentado.
as normas de segurança, o empregador, dono das instalações Com a promulgação do Decreto -lei 7.036 de 10/11/44,
e maquinaria onde se desenvolve o trabalho, e que geram o houve uma modificação da postura legal com relação aos
risco de dano, fica obrigado a indenizar quando do surgi- acidentes do trabalho, com eçando-se a cuidar da prevenção
mento de incapacidades geradas pelos acidentes do trabalho. e da recuperação e readaptação. Esse diploma legal cuidava
Atualmente, é ponto pacífico que o trabalho gera um dos quatro aspectos envolvidos nos acidentes d o trabalho:
risco próprio e que, por conseguinte, há obrigação de repa- assistência, indenização, reabilitação e prevenção 3 • O artigo
ração, bastando, para isso, que se demonstre haver um vín- 94 desse decreto estipulava a obrigatoriedade de o empre-
culo de ca usalidade entre o trabalho e a lesão, disfunção ou gador fazer um seguro dos seus empregados contra os aci-
doença do trabalhador. Para Almeida Júnior>, só se configura dentes do trabalho, qualquer que fosse o ramo de atividade
o acidente do trabalho quando existe uma lesão pessoal inca- da empresa. Tal contrato de seguro poderia ser feito com en-
pacitante, causada pelo trabalho, de modo direto ou indireto. tidade pública de previdência social ou com companhia de
Contudo, o empregador não indeniza diretamente o empre- seguros privada. Cumpre lembrar que a Previdência Social
gado acidentado. É obrigado a contratar um seguro contra os só foi unifi cada pelo Decreto-lei 72 de 21/11/1966, que criou
riscos de acidente gerados pelo trabalho. o INPS - Instituto Nacional de Previdência Social. Até então
havia vários IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensões de
Aspectos Legais diversas classes de trabalhadores, como IAPI, IAPB, IAPC,
IAPETEC etc. - dos industriários, bancários, comerciários,
O conceito legal de acidente do trabalho, naturalmente, transporte e cargas e estiva, respectivamente). Nessa época,
evoluiu acompanhando a ideologia prevalente em cada épo- tivemos a oportunidade de examinar, nas Varas de Aciden-
ca. No início do século XX, como vimos, as lides eram julga- tes do Trabalho, trabalhadores acidentados que tinham sido
das com base no direito civil comum. A legislação acidentá- atendidos tanto por esses institutos como por companhias
ria teve a preocupação inicial de amparar o trabalhador de privadas de seguro (Piratininga, Minas-Brasil, Guarani-Ita-
modo que todos os acidentados fossem cuidados e indeni- tiaia, Sul América e outras).
zados. Mas, para isso, era necessário que se estabelecesse um Depois da unificação da Previdência Social, foi promul-
compro misso entre as partes, no qual, para que todos fossem gada a Lei 5.316 de 14/09/1967, que integrou o seguro de
amparados, a quantia a ser despendida pelo empregador te- acidentes do trabalho na Previdência Social. Isso correspon-
ria que ser menor do que seria se a indenização fosse paga de deu a um monopólio desse ramo de seguros por parte do
acordo com o direito civil comum. INPS. Nessa lei, o artigo segundo estabeleceu que "acidente
A primeira lei acidentária foi a 3.724, de 15/01/1919, que, do trabalho será aquele que ocorre pelo exercício do traba-
de acordo com Veiga de Carvalho', "determinava que as le- lho, a serviço da empresa, provocando lesão corporal, per-
sões corporais ou perturbações funcionais deveriam ter o turbação funcional ou doença que cause morte, perda ou
464 • CAPITULO 21 lnfortunística

redução, permanente ou temporária, da capacidade para o dência e Assistência Social deverá considerá-la como aci-
trabalho''. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto 61.784 de dente do trabalho.
28/11/19674 • § 4QNão poderão ser consideradas, para os fins do dis-
Uma nova lei sobre a matéria, Lei 6.367 de 19/10/1976, posto no § 3-", a doença degenerativa, a inerente a grupo
regulamentada pelo Decreto 79.03 7 de 24/12/1976, ficou co- etário e a que não acarreta incapacidade para o trabalho.
nhecida por algum tempo como Lei de Acidentes do Traba- § 5" Considera-se como dia do acidente, no caso de
lho, pois revogou o Decreto-lei 7.036/44 e a Lei 5.316/67. A doença profissional ou do trabalho, a data da comunicação
Lei 6.367/76 considerava acidente do trabalho 5: desta à empresa ou, na sua falta, a da entrada do pedido
de benefício do INPS, a partir de quando serão devidas as
Art. 2Q. Acidente do trabalho é aquele que ocorrer pelo prestações cabíveis.
exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando le-
são corporal ou perturbação funcional que cause a morte, Desde essa época até o presente, houve outros textos le-
ou perda, ou redução, permanente ou temporária, da capa- gais que modificaram os diversos aspectos da Previdência
cidade para o trabalho. Social, mas o conceito geral de acidente do trabalho foi man-
§ ]Q Equiparam-se ao acidente do trabalho, para os fins tido em sua essência, conforme o texto legal citado. Assim, a
desta lei: Lei 8.213, de 24/07/1991, que dispôs sobre os benefícios da
I - a doença profissional ou do trabalho, assim entendi- Previdência Social, e continua vigendo, introduziu pequenas
da a inerente ou peculiar a determinado ramo de atividade modificações. A parte referente aos acidentes do trabalho,
e constante de relação organizada pelo Ministério da Previ- que se segue, é quase idêntica à da Lei 6.367/766 :
dência e Assistência Social (MPAS);
II - o acidente que, ligado ao trabalho, embora não Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exer-
tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente cício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do
para a morte, ou a perda, ou redução da capacidade para trabalho dos segurados referidos no inc. VII do art. 11 desta
o trabalho; Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional
III - o acidente sofrido pelo empregado no local e no que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou
horário do trabalho, em consequência de: temporária, da capacidade para o trabalho.
a) ato de sabotagem ou de terrorismo praticado por ter- §§ lQ ao 4Q[sem interesse conceituai].
ceiros, inclusive companheiro de trabalho; Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos ter-
b) ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por mos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
motivo de disputa relacionada com o trabalho; I - doença profissional, assim entendida a produzida
c) ato de imprudência, de negligência ou de imperícia ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a
de terceiro inclusive companheiro de trabalho; determinada atividade e constante da respectiva relação
d) ato de pessoa privada do uso da razão; elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência
e) desabamento, inundação ou incêndio; Social;
f ) outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior. II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida
N - a doença proveniente de contaminação acidental ou desencadeada em função de condições especiais em que
de pessoal de área médica, no exercício de sua atividade; o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente,
V - o acidente sofrido pelo empregado ainda que fora constante da relação mencionada no inc. I.
do local e horário de trabalho: § l QNão são consideradas como doença do trabalho:
a) na execução de ordem ou na realização de serviço sob a) a doença degenerativa;
a autoridade da empresa; b) a inerente a grupo etário;
b) na prestação espontânea de qualquer serviço à em- c) a que não produza incapacidade laborativa;
presa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito; d) a doença endémica adquirida por segurado habitan-
c) em viagem a serviço da empresa, seja qual for o meio te de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de
de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do que é resultante de exposição ou contato direto determina-
empregado; do pela natureza do trabalho.
d) no percurso da residência para o trabalho ou deste § 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença
para aquela. não incluída na relação prevista nos incs. I e II deste artigo
§ ~ Nos períodos destinados a refeição ou descanso, ou resultou das condições especiais em que o trabalho é exe-
por ocasião da satisfação de outras necessidades fisiológicas, cutado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência
no local do trabalho ou durante este, o empregado será con- Social deve considerá-la acidente do trabalho.
siderado a serviço da empresa. Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do traba-
§ 3-" Em casos excepcionais, constatando que doença lho, para efeitos desta Lei:
não incluída na relação prevista no item Ido § lQ resultou I - o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha
de condições especiais em que o trabalho é executado e sido a causa única, haja contribuído diretamente para a
com ele se relaciona diretamente, o Ministério da Previ- morte do segurado, para redução ou perda da sua capaci-
CAPITULO 21 lnfortunística • 465

dade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção desde que gerem incapacidade ou, pelo menos, obriguem o
médica para a sua recuperação; acidentado a procurar tratamento médico. Mesmo que tais
II - o acidente sofrido pelo segurado no local e no horá- ações sejam atos de sabotagem ou de terrorismo e não guar-
rio do trabalho, em consequência de: dem relação com o trabalho em si. Protege o trabalhador e
a) ato de agressão, sabotagem ou terrorismo praticado o ampara quando o acidente for fruto de fenômenos natu-
por terceiro ou companheiro de trabalho; rais, como inundações ou outras calamidades, que possam
b) ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por ser consideradas força maior, e os decorrentes de casos for-
motivo de disputa relacionada com o trabalho; tuitos, como incêndios e desabamentos. O inciso III acolhe
c) ato de imprudência, de negligência ou de imperícia como acidente do trabalho a doença resultante de infecção
de terceiro ou de companheiro de trabalho; por agente biológico por causa de manipulação de material
d) ato de pessoa privada do uso da razão; contaminado, ou dispersão do agente no ambiente de traba-
e) desabamento, inundação, incêndio e outros casos for- lho. Na lei anterior, havia referência, hoje retirada do texto
tuitos ou decorrentes de força maior; legal, exclusivamente aos profissionais da área de saúde. O
III - a doença proveniente de contaminação acidental inciso IV refere-se a situações e ocorrências fora do local e
do empregado no exercício de sua atividade; do horário de trabalho, mas que atingem o empregado em
IV - o acidente sofrido pelo segurado, ainda que fora do função do trabalho. São exemplos: 1) a realização de tarefas
local e horário de trabalho: a mando da empresa; 2) a prestação de serviços necessários
a) na execução de ordem ou na realização de serviço sob para evitar prejuízo ou aumentar o lucro da empresa; 3) os
a autoridade da empresa; que ocorrem quando o funcionário viaja a mando da empre-
b) na prestação espontânea de qualquer serviço à em- sa para realizar missões em outras praças, ou para se aprimo-
presa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito; rar, desde que mandado pela sua chefia; 4) aqueles ocorridos
c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estu- no trajeto de casa para o trabalho e deste para aquela. Esse
do quando financiada por esta dentro de seus planos para último caso tem que ser analisado com cautela, pois o con-
melhor capacitação da mão de obra, independentemente do ceito de trajeto não é absoluto. Pequenas variações no trajeto
meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de proprie- habitual, como, por exemplo, comprar pão para levar para
casa, não descaracterizam o vínculo com o trabalho. Mas o
dade do segurado;
grande afastamento da rota costumeira com a finalidade de
d) no percurso da residência para o local de trabalho ou
resolver assuntos pessoais rompe o vínculo 7 .
deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção,
Estão cobertos, inclusive, os que ocorram nos períodos
inclusive veículo de propriedade do segurado.
de descanso, das refeições, ou quando da satisfação d e ou-
§ l QNos períodos destinados a refeição ou descanso, ou
tras necessidades fisiológicas. O trabalhador, não sendo má-
por ocasião da satisfação de outras necessidades fisiológicas,
quina, precisa parar periodicamente a fim de equilibrar suas
no local do trabalho ou durante este, o empregado é consi-
funções e de readquirir forças para executar as suas tarefas
derado no exercício do trabalho.
(§ l Qdo art. 21).
§ 2Q Não é considerada agravação ou complicação de
A nova lei modificou alguns pontos. Para ela, fazem jus
acidente do trabalho a lesão que, resultante de acidente de
aos benefícios por acidentes do trabalho os segurados em-
outra origem, se associe ou se superponha às consequências
pregados em geral, os trabalhadores avulsos e os segurados
do anterior. especiais. Em caso de morte, seus dependentes estão habi-
litados a receber uma pensão paga pela Previdência Social.
O conceito de acidente do trabalho, como vemos no arti- Não estavam cobertos os empregados domésticos, os contri-
go 19, não foi alterado. Continua a ser aquele que ocorre em buintes individuais e os facultativos. No entanto, com a Pro-
função do exercício profissional, acarretando lesão, pertur- posta de Emenda Constitucional 478/10 aprovada pelo Con-
bação funcional ou doença que traga como consequência, gresso Brasileiro, suprimiu-se o parágrafo único do artigo
direta ou indireta, a incapacitação para o trabalho, qualquer 7Q da Constituição Federal, que impedia que os empregados
que seja ela, temporária ou permanente, parcial ou total. O domésticos disfrutassem de todas as conquistas dos demais
que continua importando mais é o nexo entre o trabalho e a trabalhadores. Desse modo, entre outros direitos, os empre-
incapacidade. gados domésticos passaram a fazer jus a todos os benefícios
São equiparadas aos acidentes do trabalho, d e acordo previdenciários por acidentes do trabalho8•
com o artigo 21, algumas outras situações referidas nos inci- O conceito de segurado especial está expresso no inciso
sos 1, II e III e no seu § 1Q. O inciso 1 assegura a proteção legal VII do seu artigo 11 e inclui o produtor, o parceiro, o meeiro
ao trabalhador mesmo que o trabalho não tenha sido a causa e o arrendatário rurais, os pescadores artesanais e assemelha-
única da incapacidade. O inciso II inclui algumas situações dos que exerçam essas atividades individualmente ou em re-
havidas durante a jornada e no local de trabalho. Assim, as gime de economia familiar de subsistência ainda que com o
lesões causadas por terceiros, dolosas o u culposas, inclusive auxílio não remunerado de terceiros. Também o são os filhos
as causadas por pessoas inimputáveis, sejam companheiros maiores de 16 anos e o cônjuge, desde que trabalhem com o
de trabalho ou não, são consideradas acidentes do trabalho respectivo grupo familiar.
466 • CAPITULO 21 lnfortunística

Em 06/05/1999, foi baixado o Decreto 3.048, que revogou dos em conjunto, dão a dimensão do prejuízo social que cau-
os decretos anteriores relativos aos acidentes do trabalho. sam em função de perda de produtividade e de sobrecarga ao
Esse decreto caracterizou o trabalhador avulso como sendo sistema previdenciário. Sua incidência pode ser medida em
o que, sindicalizado ou não, presta a diversas empresas, sem termos absolutos, ou sob a forma de taxas de incidência re-
vínculo empregatício, serviços de natureza urbana ou rural, lativas ao número de trabalhadores segurados. Essas últimas
geralmente em portos (estivador, carregador, ensacador, em- permitem comparar os dados levantados em cada estado da
pacotador, guindasteiro, capataz, vigilante), mas também em União e a magnitude do problema nos diversos setores de
salinas e plantações de café, cacau e similares. Dependem de atividade econômica (SAE). Tal avaliação serve de base para
indicação do órgão gestor de mão de obra ou do sindicato o estabelecimento de alíquotas de contribuição das empresas
para trabalharem6• para o seguro obrigatório de acidentes do trabalho, propor-
São contribuintes individuais, de acordo com a Lei 9.876 cionais ao risco gerado por sua atividade. Além disso, torna
de 26/11/1999, os segurados empresários, os trabalhadores possível a comparação dos dados nacionais com os de países
autônomos e os equiparados (o eclesiástico, o brasileiro civil industrializados mais desenvolvidos a fim de se poder avaliar
que trabalha no exterior, o prestador eventual de serviços a a eficiência de nossa política de prevenção.
empresas sem relação de emprego, e outros referidos no De- Os dados do Anuário 4 mostram que, nos últimos anos,
creto 3.265 de 29/11/1999) 6 • os acidentes típicos representaram mais de 80% do total de
CATs, de modo regular, constante. Mas, ao longo desse perío-
do, houve um aumento na proporção dos acidentes de trajeto
• TIPOS DE ACIDENTES DO TRABALHO e uma redução na das doenças relacionadas ao trabalho. A Ta-
bela 21.1 resume os dados referentes a esse período no Brasil.
A energia vulnerante que atua nos acidentes do trabalho Fizemos pequeno levantamento dos dados relativos aos
pode ser qualquer uma das que analisamos nos capítulos acidentes do trabalho, via internet, em três países desenvol-
precedentes. Segundo Borri, pode manifestar-se de modo vidos, EUA, Canadá e Espanha, a fim de ter uma ideia quanto
repentino e concentrado ou de forma prolongada, diluída à eficiência de nossas medidas de prevenção.
no tempo. No primeiro caso, estamos diante do chamado Nos EUA, a maior economia do planeta, a força de traba-
acidente típico, exemplificado por uma queda, uma explo- lho registrada (economia formal) era de 109.422.571 empre-
são, uma queimadura, um choque elétrico etc. No segundo gados em 1993 e de 128.233.919 em 2002, incluindo tanto o
caso, estão as doenças provenientes do exercício profissio- setor privado quanto o público. Na composição desse mer-
nal. Aqui, o agente nocivo relacionado com o trabalho atua cado de trabalho, o setor privado corresponde a 84% do total.
continuamente, dia após dia, minando a saúde do traba- O restante, aos governos federal, estaduais e municipais9 . As
lhador. Veremos, mais adiante, que algumas dessas doenças estatísticas colhidas no site do Bureau of Labor Statistics re-
estão relacionadas diretamente com determinado tipo de ferem, para o setor privado, no ano de 2001, uma taxa anual
trabalho, enquanto outras dependem das condições em que de acidentes e doenças do trabalho de 169,1/10.000 trabalha-
o trabalho é realizado 3• dores em tempo integral. A taxa era de 212,3 em 1997 e veio
Para fins estatísticos, o acidente de eclosão súbita é sub- caindo ano após ano. O critério para inclusão é o de casos
dividido em acidente típico propriamente dito e acidente de com afastamento do trabalho para tratamento, incluindo os
trajeto, ou de percurso. Nos EUA, os acidentes do trajeto não dias em que o trabalhador teve que diminuir sua atividade
são considerados acidentes do trabalho 9• As nossas tabelas sem, necessariamente, faltar ao trabalho. Nesse número não
do Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho dividem os estão incluídos os casos de morte nem aqueles em que houve
acidentes registrados em acidentes típicos, acidentes de trajeto apenas um atendimento de urgência sem prejuízo da pro-
e doenças do trabalho, de acordo com o que consta na CAT dução diária (o que o nosso Anuário refere como assistência
(guia de Comunicação de Acidente de Trabalho). Computa- médica e é computado como acidente). Tampouco foram in-

Tabela 21.1. Acidentes do trabalho por tipo (motivo) no Brasil4•1º


Ano Tolll Acidente• Típicos Acidenta de TrlJato Doanp1 do lnb1lbo TID Glollll*
1998 414.341 347.738 (84%) 36.114 (9%) 30.489 (7%) 2.209
2000 363.868 304.963 (84%) 39.300 (11 %) 19.605 (5%) 2.052
2002 387.905 320.398 (83%) 46.621 (12%) 20.886 (5%) 1.785
2007** 518.415 417.036 (80%) 79.005 (15%) 22.374 (5%) 1.812
2008** 551 .023 441.925 (80%) 88.742 (16%) 20.356 (4%) 1.909
2009** 528.279 421.141 (80%) 89.445 (17%) 17.693 (3%) 1.764
'Número de acidentes por 100.000 segurados.
" Apenas os acidentes com CAT entregue.
CAPITULO 21 lnfortunística • 467

cluídas as vítimas dos atentados do dia 11 de setembro. As sa ativa (Tabelas SEI-01 e SEI-28) 12 • O censo demográfico
taxas representam os acidentes típicos mais as doenças pro- brasileiro de 2010 apontou uma população de 190.755.799,
fissionais, uma vez que não consideram os acidentes de traje- na qual 139.324.471 estavam na faixa etária considerada
to. Se os norte-americanos incluíssem os casos de assistência ativa. Mas, em 2009, apenas 40.987.526 eram contribuintes
médica, suas taxas seriam bem maiores do que as referidas do INSS' 3 •14 , ou seja, aproximadamente 29% da população
pela nossa Previdência Social na Tabela 21.l. economicamente ativa, se desprezarmos a diferença entre os
No Canadá, em 1996, havia cerca de 12.164.000 traba- dois anos. A maioria da população ativa estava desempre-
lhadores segurados, com uma taxa de acidentes de 6,4 por gada ou na economia informal. Porém isso não explica as
100 trabalhadores (aproximadamente 6.400 por 100.000), taxas de registro de acidentes, já que são referidas com rela-
de acordo com o Ministere du Developpement de Resources ção a 100.000 trabalhadores cobertos pelo seguro. Cremos
Humaines 11 • A mesma fonte indica que essa taxa era de 11,3 que as diferenças se devem à grande sonegação de informa-
em 1970, 10,5 em 1980 e 8,6 em 1990, o que mostra franca ções por parte dos empregadores, de modo a não incidirem
tendência de queda. Os dados globais do Canadá são esti- em alíquotas elevadas para o cálculo do preço do seguro.
mados, pois as províncias não têm obrigação de fornecer
os relatórios e têm liberdade de criar rubricas que não são
Acidentes Típicos
iguais para todas.
Na Espanha, os dados foram buscados no Instituto Nacio- Já se discutiu se se deveria chamar de acidente o fato cau-
nal de Seguridad y Higiene en el Trabajo, do Ministerio de Tra- sal ou a lesão por esse produzida. Por exemplo, o que seria
bajo y Asuntos Sociales, via internet 12 • No ano de 200 l , havia o acidente: a queda do trabalhador por ter escorregado em
12.865.408 e no de 2002, eram 13.215.700 trabalhadores co- um piso molhado ou as lesões decorrentes dessa queda? Na
bertos pelo seguro contra acidentes. Nesse último ano, houve verdade, o que se deve chamar de acidente do trabalho inclui
registro de 1.846.197 acidentes, o que dá uma taxa global de uma coisa e outra. Ou seja, o acidente do trabalho é o con-
13.970 por 100.000 segurados (Tabela ATE-01) 12• A notifica- junto: a queda e as lesões por ela causadas. Se dois operários
ção dos acidentes também inclui patologias não traumáticas caem de um andaime situado a pequena altura e apenas um
quando manifestadas no ambiente de trabalho, mas que re- sofre lesões, somente esse foi vítima de acidente do trabalho.
presentam apenas 0,2% do total das comunicações. As tabelas É desse modo que a Previdência Social o define ao estabe-
espanholas, em geral muito detalhadas, dividem os acidentes lecer que "acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício
de modo semelhante ao nosso: típicos, in itinere e doenças pro- do trabalho a serviço da empresa, com o segurado empregado,
fissionais. A distribuição dos três tipos de acidentes em 2002, trabalhador avulso, bem como com o segurado especial, no
quando comparada com a nossa, mostra uma maior concen- exercício de suas atividades, provocando lesão corporal ou per-
tração de comunicações por acidentes típicos. Pelas suas ta- turbação funcional que cause a morte, a perda ou a redução,
belas, houve 94, 18% de acidentes típicos, 4,46% de trajeto e temporária ou permanente, da capacidade para o trabalho" 4 •
1,36% de doenças profissionais (Tabela ATE-O1) 12 . O trabalhador que não foi lesado continuou sua jornada en-
À primeira vista, a comparação dos dados brasileiros com quanto o outro, temporariamente incapacitado, teve que ser
os estrangeiros traz, aparentemente, uma grata surpresa - os encaminhado ao ambulatório da empresa para ser subme-
acidentes de trabalho são menos frequentes no Brasil. A taxa tido a tratamento de emergência. Havendo a incapacidade,
de incidência por 100.000 segurados foi de 1.691/ 100.000 mesmo que apenas pelo tempo necessário à cicatrização de
nos EUA, em 2001 (não incluindo os casos de simples assis- uma lesão leve, caracteriza-se o acidente do trabalho.
tência médica); de 6.400 no Canadá, em 1996; e de 13.970 Mas os números diferem um pouco quando compara-
na Espanha, em 2002, enquanto, entre nós, foi de 1.764 em mos o total de acidentes registrados nas CATs com o de aci-
2009. Obviamente, não podemos admitir que a incidência dentes liquidados num mesmo período, pois a base de dados
real de acidentes do trabalho em nosso país seja essa. Deve não é a mesma. No caso dos acidentes liquidados, a fonte dos
ser muito maior. Americanos, canadenses e espanhóis não dados é o Sistema Único de Beneficias - SUB, em que estão
teriam qualquer motivo para exagerar seus números. Nem incluídos os ocorridos no ano anterior e que só foram liqui-
podemos supor que nossa prevenção seja tão superior à de- dados no ano avaliado. Por exemplo, as tabelas da Previdên-
les. Na verdade, temos que buscar explicações para a discre- cia Social referentes ao ano de 2009 registram a ocorrência
pância. Uma das causas poderia ser a grande participação da de 723.452 acidentes e a liquidação de 740.657 casos. Uma
economia informal, que não gera seguro contra acidentes, diferença a mais de 2,38%'º. A tabulação dos acidentes do
renda para a Previdência Social, nem permite uma mensura- trabalho a partir do ano de 2007 passou a incorporar aqueles
ção das suas dimensões. A Espanha tem cerca de 39.279.000 não comunicados pelo empregador através do preenchimen-
habitantes e uma população ativa (definida como o número to da CAT. Foram incluídos também todos os casos em que
de pessoas com idade de mais de 15 e até 74 anos, de acordo se pagou benefício acidentário a trabalhadores com base na
com a XIII Conferência da Organização Internacional do nova metodologia de inclusão baseada no estabelecimento,
Trabalho, 1982) de aproximadamente 18.267.000, ou seja, pelos peritos do INSS, dos nexos Técnico ProfissionaI/Tra-
46,5 1% do total. Desses, 13.2 15.700 estão registrados eco- balho (NTPT), ou Técnico Epidemiológico Previdenciário
bertos pelo seguro contra acidentes, ou seja, 72,35% da mas- (NTEP), ou Técnico por Doença Equiparada a Acidente do
468 • CAPITULO 21 lnfortunística

Trabalho (NTDEAT) 15 • A partir desse ano, as tabelas têm sido e 84.508 (20%) respectivamente. Nos EUA, a divisão por fai-
elaboradas considerando o total de acidentes como a soma xas etárias é um tanto diferente da nossa, mas a maior inci-
dos comunicados por CAT e dos identificados pelo sistema dência fica entre 35 e 44 anos, com 29%, seguida daqueles
único de benefícios (SUB). Por isso, o número de acidentes dos 25 aos 34 anos, com 25% (Tabela 1 da publicação News
registrados no ano de 2007 foi 28,75% superior ao de 2006'º· de 27 de março de 2003 do Bureau of Labor Statistics) 9 . Na
Mas os casos sem preenchimento da CAT não fornecem in- Espanha, a distribuição é semelhante à nossa, predominan-
formações quanto ao tipo (motivo) do acidente, se típico, de do a faixa de 24 a 29 anos com 18% e a de 20 a 24 com 16%
trajeto ou doença relacionada ao trabalho. (Tabela A.IV.16, obtida em 11/02/2004) 12 •
Os acidentes típicos costumam ocorrer com maior fre- As lesões encontradas nos acidentes típicos são, na
quência no primeiro dia útil da semana. Com relação à jor- maioria das vezes, visíveis externamente, em geral causadas
nada de trabalho, tendem a incidir no fim do turno de ser- por ação contundente. Mas podem não ser percebidas pela
viço de acordo com os estudiosos'. Para nossa surpresa, os simples inspeção externa. Em alguns casos, só é possível
dados do Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales 12 espanhol percebê-la através da alteração funcional, como no caso de
mostram exatamente o contrário. A hora em que mais se re- estiramentos musculares ou ligamentares. Em outros, por
gistram acidentes são as duas primeiras da jornada, enquan- exemplo, após um ato de sabotagem que tenha causado for-
to a de menor incidência é a última, geralmente a oitava, te explosão, o que incapacita o trabalhador é uma alteração
mesmo para os acidentes fatais. Infelizmente, não encontra- psíquica decorrente da situação de pânico vivida (distúrbio
mos tabelas com esses dados no nosso Anuário da Previdên- de estresse pós-traumático). Todos cabem na definição legal.
cia Social. É tema que merece mais estudo. De acordo com a Tabela 30.11 do Anuário Estatístico de
Tanto no Brasil quanto em outros países, há grande pre- Acidentes do Trabalho de 2009 14, as partes do corpo mais
dominância do sexo masculino entre os acidentados do tra- atingidas nos acidentes típicos foram dedos (30,5% ), mão,
balho. Dos 421.141 acidentes típicos registrados no ano de exceto dedos e punho (8,7%), e pé, exceto artelhos (7,4%).
2009, os homens foram a vítima em 324.726 (77%) 10• Nos Nas tabelas norte-americanas, que englobam os acidentes
EUA, em 2001, houve 1.53 7.500 acidentes com baixa para tra- típicos e as doenças relacionadas ao trabalho, a parte mais
tamento, dos quais 1.009.500 (65,65%) foram com homens9• comprometida é o tronco, com 36,5% do total, seguido pe-
Na Espanha, nesse mesmo ano, considerando-se apenas os las extremidades superio res, com 23, l o/o (Tabela 5 da publi-
acidentes típicos que causaram afastamento do trabalho para cação News)9.
tratamento, e excluindo-se os de trajeto, houve 938.188 casos. Considerando -se os 50 códigos da CID -10 mais relacio-
Desse total, 764.901 foram com homens (82%) 12• nados nas CATs (Tabela 30.9 do Anuário de 2009 14 ), os cinco
Os acidentes do trabalho atingem preferencialmente os mais frequentes foram, por ordem de frequência, ferimentos
adultos jovens. Tomando como referência o ano de 2009, po- do punho e da mão (S6 1), fratura no nível do punho e da
demos construir o gráfico da Figura 21.l. mão (S62), traumatismo superficial no nível do punho e
Como se pode notar, as faixas com maior incidência de da mão (S60 ), luxação, entorse e distensão das articulações do
acidentes são as de 20 a 24 e 25 a 29 anos, com 77.307 (1 8%) tornozelo e do pé (S93) e fratura do pé, exceto do tornozelo

450.000

400.000

350.000

300.000

250.000

200.000

150.000

100.000

50.000

o
~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~
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Figura 21 .1. Distribuição dos acidentes do trabalho típicos por faixa etária do trabalhador (ano de 2009) 1º.
CAPITULO 21 lnfortunística • 469

Tabela 21.2. Lesões mais comuns nos acidentes do trabalho em 20099


C6dlgo CID-10 Tolll* Acidentei Típlcoa (%) Alldllllll de "hJeto (%) Doe119a Rll1clonllla 10 Trlltllho
S61 71.822 70.366 (97,9) 1.397 (1,9) 59 (0,2)
S62 36.116 30.576 (84,7) 5.442 (15,0) 98 (0,3)
S60 33.149 30.044 (90,6) 3.040 (9,2) 65 (0,2)
S93 23.852 16.824 (70,5) 6.971 (29,2) 57 (0,3)
S92 14.472 10.470 (72,3) 3.959 (27,3) 43 (0,4)
*Apenas os acidentes com CAT preenchida. Tabela 30.9 do AEAT 2009.

(592). A Tabela 21.2 mostra os dados relativos a esses códi- tes típicos são a maioria em todos os setores de atividade,
gos. Não há referência quanto ao agente vulnerante, presu- com maior proporção na agropecuária. Por outro lado, os
mindo-se que o mais comum seja a ação contundente. acidentes de trajeto são mais comuns no setor de serviços.
Algumas formas de atividade, como já referimos, geram Em comparação com os demais setores, são de frequência
um risco maior para o trabalhador. Para fins estatísticos, as duas vezes maior que na indústria e três vezes com relação
áreas de atividade econômica são divididas em três grandes à agropecuária (Tabela 21.3). Levantamos os dados setoriais
setores: agricultura, indústria e serviços, que são subdividi- dos acidentes norte-americanos para comparação. Eles divi-
dos em subsetores. A Classificação Nacional de Atividades dem a atividade econômica privada em três grandes setores:
Econômicas (CNAE), que engloba todos os subsetores, pode agricultura, produção de bens, e serviços. Em 2001, a parti-
ser organizada de acordo com um índice de risco que leva cipação desses setores nos acidentes foi de 2,61 %, 33,40% e
em consideração a frequência, a gravidade e o custo dos 63,98%, na mesma ordem. O setor de serviços predomina,
acidentes para os cofres da Previdência Social. A cada uma com quase dois terços do total9•
dessas três variáveis é atribuído um índice e um peso. São Nosso sistema divide o setor industrial em subsetores
somados para gerar o índice único, que serve para indicar a de indústria extrativa, de construção, de utilidade pública e de
periculosidade da atividade daquele subsetor. O Anuário de transformação. Este último é o mais importante na geração
Acidentes do Trabalho 2009 tem uma tabela (30.7) que dá a de acidentes, com 75,8% dos ocorridos no setor industrial.
incidência de acidentes e de doenças relacio nadas ao traba- A gravidade dos acidentes pode ser avaliada indireta-
lho de acordo com o setor de atividade econômica (SAE) do mente pelo tempo de afastamento do trabalhador das suas
trabalhador. Com base nos dados dessa tabela podemos fazer atividades, pela incapacidade permanente resultante e pela
a Figura 2 1.2. taxa de mortalidade. O importante, aqui, é mais a percep-
Considerando apenas os casos informados por uma CAT, ção global do prejuízo à produção e a adoção de medidas
é possível discriminar em cada setor de atividade a propor- preventivas do que o estudo de cada caso isoladamente. Os
ção de acidentes típicos, acidentes de trajeto e doenças rela- norte-americanos usam mais o tempo de afastamento do
cio nadas ao trabalho. trabalho como critério de avaliação. Eles anotam o número
Os setores de indústria e de serviços produzem, juntos, de dias de trabalho perdidos em função dos acidentes, calcu-
mais de 90% do total de acidentes registrados no ano de lam a mediana da distribuição conforme algumas variáveis
2009, sem grande diferença entre si (Fig. 21.2). Os aciden- como tipo de lesão, tipo de atividade econômica etc. A me-

Acidentes com CAT - ano de 2009

• Agropecuária: 22.835

• Indústria: 251.558

Serviços: 249.536
• Ignorado: 4.350

Total de acidentes: 528.279

Figura 21.2. Proporção de acidentes informados no ano de 2009, por setor de atividade econômica.
470 • CAPITULO 21 lnfortunística

Tabela 21. 3. Distribuição dos acidentes do trabalho comunicados em 2009 pelos setores de atividade econômica 10
Atividada Tlllll Tfplco Acldanta1 da TrlJato Doanpa Rll•lonadl1 ao "hll1lbo
Agropecuária 22.835 (100%) 20.854 (91,3%) 1.666 (7,3%) 315 (1 ,4%)
Indústria 251.558 (100%) 214.380 (85,2%) 28.092 (11,2%) 9.086 (3,6%)
Transformação 190.692 162.480 20.642 7.570
Construção 40.697 34.663 4.970 1.064
Utilidade pública 14.900 12.560 2.028 312
Extrativa 5.269 4.677 452 140
Serviços 249.536 (100%) 181.945 (72,9%) 59.358 (23,8) 8.233 (3,3%)
Ignorado 4.350 (100%) 3.962 329 59

diana indica o número de dias parados em que metade dos grupos com nomes, no mínimo, muito parecidos. Afinal,
casos registrados tem tempo de afastamento maior e a outra todas são do trabalho.
metade, tempo menor. Quanto maior a mediana, mais gra- Conforme já comentamos, o trabalho pode afetar a saúde
ves são a lesão, a doen ça, o tipo de atividade, de ocupação etc. do trabalhador de modo abrupto ou insidiosamente. A ação
A mediana geral para o ano de 2001 foi de 6 dias. As lesões prolongada no tempo causa as doenças relacionadas com o
que causaram baixas mais longas foram síndrome do túnel trabalho (DRT ), que podem ser as chamadas doenças profis-
carpiano, fraturas e amputações, com medianas de 25, 21 e sionais e as doenças causadas pelas condições especiais em que
18 dias, respectivamente. Entre os tipos de atividade com o trabalho é desenvolvido. Alguns autores as consideram, res -
maior tempo de baixa ficaram as que obrigam o trabalhador pectivamente, doenças profissionais típicas e atípicas; outros,
a esforço muscular repetitivo como manusea r ferramentas tecnopatias e mesopatias 1• Independentemente do nome que
(exercido por montadores), escanear preços (exercido por se dê, as doenças profissionais típicas são as que estão inti-
caixas de supermercados) e digitar números (exercido por di- mamente relacionadas por um elo direto de causa e efeito
gitadores e caixas de bancos). Nesses grupos, a mediana ficou com o elemento essencial do trabalho. Servem d e exemplo as
em torno de 18 dias (publicação News) 9• intoxicações por poluentes químicos do ambiente d e traba-
Os espanhóis costumam usar, com a mesma finalidade, lho e as pneumoconioses (p. ex., a silicose dos trabalhadores
um índice de gravidade. É um indicador que relaciona o nú- em pedreiras). O diagn óstico da doença feito em trabalhador
m ero de dias parados por causa de acidentes do trabalho com exposto ao risco de adquiri-la, em função da atividade exer-
1.000 horas trabalhadas pelos empregados sujeitos ao risco 12• cida, dispen sa discussão quanto ao nexo causal. As atípicas
Nossas estatísticas informam sobre a gravidade quando não são próprias de determinado tipo de atividade, podendo
enumeram os casos liquidados em cada ano. A liquidação ocorrer mesmo em pessoas não expostas à ação do trabalho.
dos casos de acidente pode ser por simples assistência mé- Mas incidem com maior frequência em certos grupos de tra-
dica, incapacidade tempo rária, incapacidade permanente balhadores por causa da diminuição da sua resistência ou do
ou óbito . Voltaremos ao tema quando abordarmos as conse- excesso de esforço que o trabalho exige dele. São suscetíveis
quências dos acidentes. de discussão quanto ao nexo d e causa e efeito em cada caso
particular. Podem ser exemplificadas pela hérnia inguinal em
Doenças Profissionais trabalhador braçal. Nossa legislação permite, inclusive, que
sejam assim consideradas, excepcionalmente, doenças que
O Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho, versão não constam do Anexo II, mas que têm clara correlação com
2002, editado pela Previdência Social\ com base n o artigo a atividade laborativa (§ 2n do art. 20 da Lei 8.213/91 )6 • De
20 da Lei 8 .213/9 1, refere: "doença profissional ou do trabalho acordo com René Mendes, o tema é muito complexo, como
- entende-se por doença profissional aquela produzida ou prova a legislação internacional a ele relativa, que difere
desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determi- conforme o país. Um grupo estabelece uma lista fechada de
nado ramo d e atividade constante do Anexo II do Regula- doenças comprovadamente causadas pelo trabalho, como a
mento da Previdência Social - RPS, aprovado pelo Decreto França; outro, admite, além das listadas oficialmente, algu-
3 .048, de 06/05/1999, e por doença do trabalho aquela ad- mas que podem ser admitidas em casos particulares, como
quirida ou desencadeada em função de condições especiais no Brasil; por fim, um grupo aberto adota uma definição ge-
em que o trabalho é realizado e com ele se relacione direta- nérica em que os peritos têm liberdade de interpretação de
m ente, d esde que constante do Anexo citado anteriormen- cada caso particular, como nos Estados Unidos 16 .
te" (o grifo é nosso) . O Anexo II do Decreto 3.048/99 segu e As doenças relacionadas com o trabalho (DRT) são mui-
anexado no fim deste capítulo. Cabe realçar, aqui, que a ter- to menos frequentes do que os acidentes típicos. De 1998
minologia adotada não foi a mais feliz. Separ a dois grandes para 2009, sua proporção no to tal de acidentes registrados
CAPITULO 21 lnfortunística • 471

Tabela 21.4. Evolução das taxas de DRT nos últimos anos Tabela 21. 5. Doenças relacionadas ao trabalho mais
lhlb1lbadore1 Tia por frequentes em 2009
Ano Regl*8dol* • com DRT 1.0•** Dl1gn611co (CID-10) flldl CllOI Propo'110*
1998 18.756.685 30.489 1,23 Lesões do ombro (M75) 3.489 19,7%
2000 17.952.630 19.605 0,70 Sinovite e tenossinovite (M65) 3.047 17,2%
2002 21.749.038 20.886 0,68 Dorsalgia (M54) 1.347 7,6%
2007 36.428.203 22.374 0,61 Mononeuropatias (G56) 1.016 5,7%
2008 39.605.695 20.356 0,51 Perda de audição (H90) 952 5,4%
2009 40.987.526 17.693 0,43 Outras entesopatias (M77)** 881 5,0%
'Fonte: CIPA Estatísticas. Fonte: Tabela 57.3 do Anuário de Acidentes do Trabalho, 2009. Disponível em:
"De acordo com norma do MPS em www.previdenciasocial.gov.br/cooteudoDinamico. www.previdenciasocial.gov.br. Acessado em: 1o nov. 2011.
php?id=1039 'Relativa ao total de DRTs do ano de 2009.
"Lesões rotuladas genericamente como bursites, capsulites e tendinites, que acometem
ligamentos periféricos e inserções musculares.

pela Previdência Social de 7% para 3% (Tabela 21.1 ). A


taxa de incidência tem acompanhado essa tendência (Ta- casos são mais frequentes entre professores do ensino funda-
bela 21.4) 10 •15• mental e em profissionais de saúde, por exemplo, médicos,
Como se vê, é grande a diminuição das taxas de incidên- enfermeiros e assistentes sociais. Acomete profissionais que
cia ao longo do período mostrado, da ordem de 35% se com- têm metas elevadas, grande dedicação ao serviço e, no afã
pararmos o ano de 2009 com o de 1998. de alcançar seus objetivos, exageram no esforço despendido
Quando se faz a computação de acordo com os setores e se esquecem de tirar férias e de recarregar sua próprias ba-
de atividade econômica (agricultura, indústria e serviços), terias. Influem de modo negativo a falta de reconhecimento
nota-se que as doenças relacionadas ao trabalho predomi- dos seus esforços pelas chefias imediatas e os baixos salários
navam no setor de serviços, onde representavam 6,37% do que lhes são atribuídos. O indivíduo acometido desse mal,
total de acidentes do setor no ano de 2002. Mas, em 2009, o antes tão dedicado, passa a se desinteressar pelo trabalho,
setor com maior proporção de doenças relacionadas ao tra- com grande redução da autoestima. Os sintomas mais co-
balho foi o industrial, com 3,6% contra 3,3% do setor de muns são perda do autocontrole emocional, irritabilidade,
serviços (Ta bela 21.3 ). Analisando o setor da indústria de agressividade, perturbações do sono e depressão 16• Mas essa
acordo com suas subdivisões em subsetores, verificamos que síndrome pode acometer também trabalhadores menos dife-
o da transformação é o maio r causador de doenças e, dentro renciados, que realizam tarefas manuais, quando submetidos
dele, a divisão de eletrônica e de óptica a mais importante a jornadas extenuantes sem intervalos para recuperação, dia
neste contexto, com proporção de 17,5% de doenças rela- após dia. Nesse contexto, citamos caso relatado pessoalmen-
cionadas ao trabalho no total de acidentes comunicados por te ao autor pelo Dr. Miguel Rubinstein 18 .
essa área (384 em 2.197). Caso de síndrome de esgotamento profissional - Homem
O setor de serviços é subdividido em mais de 12 sub- de 33 anos, admitido como mecânico supervisor de garagem
setores, dos quais o que tem maior incidência de doença de ô nibus em abril de 2007. Durante os primeiros 2 meses,
relacionada ao trabalho é o de atividades financeiras, com trabalhou com jornada de 8 horas diárias. A partir daí, pas-
30,6% dos acidentes comunicados, possivelmente em função sou a trabalhar por horas extras, cumprindo jo rnada de até
das doen ças por esforço repetitivo de digitadores e caixas de 20 horas por dia (das 8 às 4 horas), com uma folga sema-
banco 10 • É interessante o fato de não haver grande propor- nal. Tal situação perdurou por 7 meses, tempo no qual, além
ção de doenças relacionadas ao trabalho no nosso grupo dos de executar trabalhos de mecânica, orientava os auxiliares e
transportes, pois nos EUA a ocupação com maior incidência controlava o recebimento de materiais de manutenção para
de distúrbios musculoesqueléticos é o de motoristas de ca- os veículos. Em junho do mesmo ano, apresentou quadro
minhões e de ônibus (publicação News) 9• suspeito de pneumonia, tendo recebido licença por 7 dias,
Entre as doenças relacionadas ao trabalho, as mais fre- mas retornou ao trabalho em 3 dias. Em janeiro de 2008,
quentes no ano de 2009 foram, pela ordem, as lesões do om- apresentou quadro clínico de dormência no braço esquerdo
bro, sinovites e tenossinovites, dorsalgia, mononeuropatias, com palpitações e dor precordial intensa, tendo perdido a
perda de audição e outras entesopatias. A Tabela 21.5 mostra consciência. Foi atendido em um pronto-socorro com sus-
os números. peita de infarto miocárdico. Os exames complementares,
Devemos referir, à guisa de complementação, que distúr- porém, não confirmaram esse diagnóstico. Permaneceu em
bios psiquiátricos também podem ser caracterizados como observação por 5 horas e teve alta. A partir daí apresentou
doença relacionada ao trabalho. Assim, desde a década dos desmaios, tornou-se agressivo e com humor depressivo.
anos 1980 tem sido aceita a inclusão da síndrome de burnout, Como passou a faltar ao trabalho, seu contrato foi rescindido
traduzida como síndro me de esgotamento profissional. Os pela empregadora.
472 • CAPITULO 21 lnfortunística

Outra situação das relações de trabalho que pode gerar artigo 21 da Lei 8213 de 24/7/199 1, que se refere a o utros
distúrbios psíquicos é o assédio moral. Trata-se, aqui, de uma agravos equiparados aos acidentes do trabalho, o assédio
atitude hostil, deliberada, reiterada, geralmente protagoni- moral' 9 •
zada por um su perior hierárquico da vítima, com a finalidade
de excluí-lo d o ambiente de trabalho, de modo intencional, Art. 1º. O art. 21 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991,
em que o empregado é humilhado de modo repetitivo e cruel, passa a vigorar com a seguinte redação:
por longo tempo, diante dos colegas e de si mesmo, por meio '~rt. 2 1. .................................................. .
de ações e omissões que o tornam inferio rizado em relação II - .................................................. .
aos dem ais. Tal conduta por parte do assediador faz-se de vá- b) ofensa física ou moral intencional, inclusive de
rias maneiras, como: criticar sua capacidade em público, dar terceiro;
ordens impossíveis de serem cumpridas, sonegar informa- ..................................................." (NR )
ções necessárias à execução das suas funções, exigir cumpri- Art. 2Q. Esta Lei entra em vigor na data de sua pu-
m entos de tarefas acima da capacidade da vítima, desmerecer blicação.
o produto de seu trabalho, rebaixá-lo de posto, transferi-lo
quando com eça a se adaptar a uma nova função, ameaçar De acordo com o§ l " do artigo 20 da Lei 8.213/199 1, não
demissão por incompetência, exigir pressa na produção sem são consideradas como equiparadas aos acidentes do trabalho
necessidade, escarnecer de suas crenças e orientações pessoais as doenças que não causem incapacidade, as próprias de
etc. A vítima desse tipo de perseguição é, em geral, honesta, determinadas faixas etárias, as degenerativas e as endêmicas.
tem grande senso de autocrítica e sentimento de culpa, é ca- No caso dessas últimas, serão cobertas pela lei acidentária se
prichosa e perfeccionista na execução das tarefas, não se inco- o trabalhado r ficar exposto a contágio direto ou a maior grau
modando em dar horas extras e, entre outras características, de exposição ao agente causal em fun ção do seu trabalho. É
costuma ser mais competente do que o agressor' 9 • o caso dos seringueiros da Amazônia, local sabidamente en-
Apesar de não ser novidade esse tipo de relacionamento dêmico para a malária. O serin gueiro tem, com relação a essa
no trabalho, só na última década se tem voltado a atenção endemia, um risco genérico agravado.
de gestores de mão de obra e legisladores para o problema.
Ainda não existe uma lei federal que defina e regularize o
tem a, mas vários municípios brasileiros já promulgaram leis
• BENEFÍCIOS POR ACIDENTES
definindo o assédio moral e impondo penas aos agressores.
O primeiro a legislar sobre o tem a foi Iracemápolis-SP, em DO TRABALHO
2000. No âmbito estadual, a primeira lei foi promulgada
no Rio de Janeiro (Lei 3.921 de 23/08/2002 )20• Nessa lei, o O Regime Geral da Previdência Social brasileira compre-
assédio moral está conceituado no artigo 2": "Considera-se ende as seguintes prestações, expressas em benefícios e servi-
assédio m oral no trabalho, para os fins de que trata a presen- ços aos seus segurados. São distribuídos como aposentado-
te Lei, a exposição do funcionário, servidor ou empregado a rias, auxílios, pensões, salário-família, salário-maternidade
situação humilhante ou constrangedora, ou qualquer ação, e assistência social. Há quatro tipos de aposentadorias: por
palavra ou gesto, praticada de m odo repetitivo e prolongado, invalidez, por idade, por tempo de contribuição e a especial.
durante o expediente do órgão ou entidade, e, por agente, Entre os auxílios, contamos com o auxílio-acidente, o au-
delegad o, chefe o u superior hierárquico, o u qualquer repre- xílio-doença e o auxílio- reclusão. As pensões são prestações
sentante que, no exercício de suas funções, abusando da au- pagas aos dependentes e devidas po r motivo de morte do
to ridade que lhe foi conferida, tenha por objetivo o u efeito segurado, ou aos segurados que tenham sofrido a Síndrome
atingir a autoestima e a autodeterminação do subordinado, da Talidomida. A última é proporcional à gravidade das de-
com danos ao ambiente de trabalho, aos serviços prestados formações do portad or4.
ao público e ao pr óprio usuário, bem como obstaculizar a De acordo com o Decreto 3.048/99 21, em se tratando de
evolução da carreira ou a estabilidade funcio nal do servidor acidentes do trabalho, os benefícios previstos são os seguin-
constrangido." tes: 1) Q uanto ao segurado - a) aposentadoria po r invali-
As penas vão desde advertência até a demissão do fun- dez, b ) auxílio-doença acidentário e c) auxílio-acidente. 2 )
cionário opressor. Quanto aos dependentes, pensão por m orte. Tanto o segu-
As consequências do assédio moral para a vítima são de rado quanto seus dependentes podem receber serviços de
natureza psíquica, como diminuição da autoestima, da li- reabilitação profissio nal.
bido, depressão, distúrbios do sono, crises de choro e ideias A aposentadoria por invalidez corresponde à incapacida-
de suicídio que podem chegar à consumação do ato, e al- de total e permanente para todo e qualquer tipo de trabalho,
terações somáticas como palpitações, hipertensão arterial, que seja insuscetível de reabilitação profissional (art. 43 do
distúrbios digestivos e o utros m enos frequentes. Por causa referido decreto ). Tal constatação depende de exame peri -
dessas repercussões, e por não haver ainda um enquadra- cial por médicos da Previdência Social. É devida desde o dia
mento textual legal, alguns deputados federais propuseram , em que se encerre o gozo do auxílio-doença e seu valo r é de
através de projeto de lei, incluir no inciso II, alínea b do 100% do salário de benefício. Este salário é o valor básico
CAPITULO 21 lnfortunística • 473

para o cálculo da renda mensal dos benefícios de prestação • CONSEQUÊNCIAS DOS ACIDENTES DO
continuada ( p. ex., auxílio-doença), calculado pela média
aritmética dos maiores salários de contribuição durante
TRABALHO
80% de todo o tempo em que o trabalhador descontou para
Conforme a gravidade dos acidentes, o trabalhador pode
a Previdência Social.
ser apenas socorrido em um serviço de emergência, sem
O auxílio-doença consiste no pagamento de prestações
maiores consequências em termos de prejuízo da produção,
mensais durante o período em que o trabalhador acidentado
ou ter que ser afastado por um ou mais dias para tratamento
estiver em tratamento médico para recuperação das lesões
médico. Já vimos que um dos critérios de avaliação da gra-
sofridas ou da doença adquirida em função do trabalho, sem
vidade é o tempo de afastamento do empregado da linha de
períodos de carência. Também é devido ao segurado que fi-
produção. Por exemplo, as estatísticas espanholas dividem os
que doente sem relação com o trabalho, mas com período
acidentes do trabalho em con baja e sin baja. Os acidentes
de carência. Seu valor é de 91 o/o do salário de benefício ( art.
com baixa são aqueles que obrigam a um afastamento do
39 do decreto). O auxílio-doença é interrompido quando o
trabalhador para tratamento. Considerando-se apenas os
acidentado tiver alta, ou quando for aposentado6 .
acidentes típicos, nos últimos anos na Espanha, houve um
O auxílio-acidente é uma prestação mensal, no va lor de
50% do salário de benefício, paga a quem sofre acidente de pequeno aumento da proporção de acidentes com baixa,
qualquer natureza, a título de indenização, desde que fique atualmente com cerca de 53% do total 12 • É o que os canaden-
com sequelas após a consolidação das lesões, ou cura da do- ses referem como acidentes com perda de tempo. Em geral,
ença relacionada com o trabalho (arts. 39 e 104 do decreto). seu número equivale, aproximadamente, aos que resultaram
em simples tratamento emergencial. De 1970 a 1997, no Ca-
Art. 104. O auxílio-acidente será concedido, como in- nadá, a proporção dos acidentes com perda de tempo, que
denização, ao segurado empregado, exceto o doméstico, ao era de apenas 38%, passou a ser de 50%". Os norte-america-
trabalhador avulso e ao segurado especial quando, após a nos colocam em suas tabelas a rubrica days away from work
consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer para denotar tais casos. Mas o número de dias que o aciden-
natureza, resultar sequela definitiva, conforme as situações tado fica afastado do trabalho inclui também aqueles em que
discriminadas no Anexo III, que implique: (Redação dada ele já voltou, mas tem sua atividade restringida. Nos EUA, a
pelo Decreto nQ 4. 729, de 2003). proporção de acidentes com baixa em relação aos de simples
assistência médica é de 1,5:1 (publicação News )9.
As sequelas que dão direito a esse recebimento estão lis- Os acidentes que requerem afastamento para tratamento
tadas no Anexo III do Decreto 3.048/99 (ver no fim deste m édico podem evoluir para a cura completa em poucos dias,
capítulo). Devem causar redução da capacidade ou impossi- para a cura com sequela inca pacitante ou para a morte. Entre
bilidade de exercer seu trabalho habitual, mas sem impedir nós, os números referentes a essa evolução são compilados
o exercício de o utra função após o processo de reabilitação em tabelas com dados dos acidentes liquidados, extraídos a
profissional. O fato de o trabalhador passar a exercer outra partir das comunicações de altas e da concessão de benefí-
função ou auferir algum outro tipo de rendimento não o cios. A liquidação dos acidentes é feita pelo encerramento
desabilita ao auxílio-acidente. Tratando-se de hipoacusia, é dos processos administrativos depois de completado o tra-
preciso que ela realmente prejudique o exercício profissio- tamento e indenizadas as sequelas. O número de acidentes
nal. Começa a ser pago no dia seguinte ao da alta e é inter- liquidados não é igual ao de acidentes registrados no mesmo
rompido se o beneficiado se aposentar ou se vier a falecer. ano porque há aqueles que ocorrem em 1 ano e só são liqui-
Não serve para aumentar a pensão dos seus beneficiários. dados no ano seguinte. A Tabela 21.6 mostra os dados de
Não faziam jus a esse benefício os empregados domésticos. 2002 a 2009.
Mas, com a aprovação da PEC 478, eles passaram a gozar Como se pode notar, mais de 4/5 dos acidentes são liqui-
também deste benefício. dados após a incapacitação temporária do trabalhador, em

Tabela 21.6. Acidentes do trabalho liquidados no Brasil *


Ano Total (1.,,.) All. Mtdla (%) lnap. Temp. (%) lncap. Perm. (%) Óbitos(%)
2002 421.600 62.153 (14,8) 341.220 (80,9) 15.259 (3,6) 2.968 (0,7)
2004 503.920 70.412 (14,0) 417.756 (82,9) 12.913 (2,5) 2.839 (0,6)
2006 559.109 87.483 (15,6) 459.625 (82,2) 9.203 (1,7) 2.798 (0,5)
2008** 774.473 105.249 (13,6) 653.311 (84,3) 13.096 (1,7) 2.817 (0,4)
2009 740.657 102.088 (13,8) 623.026 (84,1) 13.047 (1 ,8) 2.496 (0,3)
'Fonte: site www3.dataprev.gov.br/scripts9/
"O aumento deve-se à nova orientação de contabilizar os casos sem CAT.
474 • CAPITULO 21 lnfortunística

desacordo com a tendência encontrada nos outros países em Tabela 21. 7. Número de óbitos por milhão de trabalhadores
que buscamos esses dados. É possível que a diferença se deva contribuintes nos estados brasileiros. Ano 20099
a uma atitude paternalista de retirar o empregado da linha Regllo Regllo Regllo Regllo Regllo
de produção quando da ocorrência de lesões muito leves. Noita Nordelll Sudalll 811 Cenlro-oata
Alguns acidentes que geram incapacidade permanente
RO -107 MA-106 ES- 98 PR- 80 MT- 203
habilitam o trabalhador a receber o auxílio-acidente, que PA-105 AL-90 MG-63 SC-54 MS-89
é, como vimos, uma espécie de complementação salarial. TO- 77 PE - 81 SP- 49 RS-46 GO- 87
Depende do grau de dificuldade que a sequela crie para a AC-65 PI- 66 RJ - 39 DF -25
execução das tarefas que lhe eram atribuídas habitualmente. AM-61 BA-64
A Tabela 21.6 mostra que sua proporção caiu de 3,6%, dos RR- 59 SE- 62
acidentes liquidados em 2002, para 1,8%, em 2009, o que AP-45 PB- 55
é uma boa notícia. Na primeira edição desta obra, comen- RN- 47
távamos sobre o aumento das incapacidades permanentes CE-44
em 25% entre 2001 e 2002 10 • Na Espanha, em 2002, apenas
1,85% dos casos se encerrara com incapacidade permanente
(Tabela A.IV.16) 12 • Não encontramos tabelas que referissem A faixa etária com maior mortalidade por acidentes do
o grau de incapacidade permanente tanto nas fontes nacio- trabalho no Brasil é dos a 35 aos 49 anos, embora a diferença
nais quanto nas estrangeiras consultadas. com outras faixas vizinhas seja pouco acentuada, a julgar pe-
Quando comparados com os de países desenvolvidos, los dados de 2009 22 . Nos EUA, a faixa com maior taxa é a dos
nossos números indicavam uma proporção muito elevada 35 aos 44 anos 9 • Na Espanha, é a dos 45 aos 49 anos 12 •
de óbitos no total de acidentes liquidados. À guisa de ilustra-
ção, informamos que a proporção de óbitos foi, no Canadá,
em 1997, de 0,10% 11 ; na Espanha, em 2002, de 0,12% 12 e, nos
• PERÍCIA NOS ACIDENTES DO TRABALHO
EUA, em 2000, de 0,32%9 . Nesse último, só foram computa-
dos os acidentes com baixa para o cálculo. Se incluirmos os
O corpo de peritos do INSS examina os trabalhadores
casos sem baixa, a percentagem reduz-se muito, pois, como
acidentados, inicialmente, para verificar se há, ou não, ne-
vimos, o montante de acidentes aumentaria na proporção de
cessidade de afastamento para tratamento m édico e conces-
1,5:2,5. Mas a Tabela 21.6 d emonstra uma queda da propor-
são do auxílio -doença. Durante esse período, o segurado fica
ção do número de óbitos de mais de 50% entre os anos de
obrigado a se submeter ao tratamento gratuito recomenda -
2002 e 2009 (de 0,7 para 0,3).
do pelos peritos, a não ser transfusão de sangue ou cirur-
O u so de indicadores como a taxa d e mortalidade por
gia (art. 77 do Decreto 3.048/99) 6 • Mais tarde, o exame visa
1.000.000 trabalhadores segurados dá uma dimensão mais
a constatar a necessidade de reabilitação profissional, que
correta do problema e permite uma comparação mais ade-
também tem que ser cumprida pelo segurado sob pena de
quada. A Tabela 21. 7 mostra os números de acidentes fatais
perder o benefício se recusar. Por fim, para dar alta e encer-
no Brasil, de 2000 a 2009, com as respectivas taxas de morta-
rar o processo. Como já referido, a liquidação do acidente é
lidade.Nota-se clara tendência de queda ao longo da década
(de 112 para 60) 10 • Dados dos EUA informam que a taxa de ato administrativo que só se cumpre após o encerramento
mortalidade por acidentes do trabalho, quando referidas na de todo o tratamento m édico e reabilitação profissional, se
mesma proporção vem caindo nos últimos anos. Em 1997, houver necessidade.
era de 65, mas caiu para 58 em 2001. As mortes d ecorrentes No caso de o trabalhador ficar com sequelas, cabe aos pe-
dos atentados terroristas foram expurga das dos cálculos se- ritos avaliar o grau da incapacidade permanente para enqua-
gundo o Bureau of Labor Statistics9• No Canadá, as taxas es- drá-lo, ou não, nos casos previstos no Anexo III do Decreto
tavam acima de 140 na década de 1970, tendo chegado a 176 3.048/99 para receber o auxílio -acidente. Ficando constata-
em 1974. Mas houve intensa queda até o fim da década de do que o acidentado apresenta incapacidade total para o tra-
1990. Em 1996, foi de 65 11 • Na Espanha, ao longo da década balho, sem possibilidades de reabilitação profissional, e que
que vai de 1993 a 2002, a média das taxas anuais de mortali- não tem mais condições de prover a sua subsistência, ele será
dade foi de 96. O menor valor foi no ano de 2001, com 80 12 • aposentado por invalidez (art. 43 do decreto). Estão ampara-
Os diversos estados brasileiros apresentam grande dife- dos, aqui, os empregados domésticos, os contribuintes indi-
rença quando se compara o número de óbitos por acidentes viduais, os trabalhadores avulsos e os segurados especiais, ou
do trabalho com o número de trabalhadores contribuintes facultativos da Previdência Social. Se o inválido n ecessitar da
em cada um. Tal discrepância ocorre inclusive dentro de uma assistência permanente de uma outra pessoa para ajudá-lo
mesma grande região. Na região Centro-oeste, por exemplo, na realização das atividades pessoais diárias, o valor da apo -
situam-se o estado com pior índice e o de m elhor desempe- sentadoria é aumentado em 25%. Mas é preciso que a con -
nho no ano d e 2009; respectivamente, Mato Grosso e Distri- dição conste da lista do Anexo 1 ( art. 45 do decreto). De 2
to Federal. A média brasileira é de 60. A Tabela 21.7 mostra em 2 anos, deve ser feita nova perícia para a manutenção do
os números dos diversos estados brasileiros. benefício de aposentadoria.
CAPITULO 21 lnfortunística • 475

Nexo de Causalidade nos Acidentes do Trabalho Simulação

Entre as funções do corpo de peritos do INSS está o es- De acordo com Veiga d e Carvalho', simulação "é o ato ou
tabelecim en to do nexo de causalidad e entre o trabalho e o atitude pelo qual se busca disfarçar o intento de induzir outros
agravo, entendido este como a lesão, a doença o u a morte em erro''. É preciso esclarecer que nem todo simulador age de
do acidentado (art. 33 7 d o Decreto 3.048/99) 21 • São situa- m á-fé. Há casos em que o acidentado, de tendência histérica,
ções distintas que requerem o mesmo empenho no sentido realmente se sente incapacitado sem que haja uma lesão ou
de afirmar que o trabalho gerou a lesão, a d oença ou a m or- perturbação funcional suficiente para explicar os sintomas
te do segurado. A partir de abril de 2007, o INSS instituiu alegados. Mas, na maioria das vezes, o simulador tem a in-
uma nova sistem ática d e concessão de benefícios acidentá- tenção de obter o proveito fraudulento e de enganar o perito.
Almeida Júnior 3 classifica os casos de simulação em: le-
rios com o fim de diminuir a subnotificação po r sonegação
sões inexistentes, lesões existentes m as independentes d o
de empresas interessadas em reduzir o valo r pago pelo se-
trabalho e lesões parcialmente dependentes d o trabalho. As
guro obrigatório contra esses eventos. A base técnica par a
lesões independentes d o trabalho são, po r sua vez, divididas
a mudança d o métod o foi o cruzamento de informações
em pretextadas e provocad as. No primeiro caso, estão lesões
estabelecidas na CID-10 com as armazenadas com base na
d e outra natureza atribuídas ao trabalho; no último, lesões
Classificação Nacional de Atividades Económicas, que per-
causadas intencionalmente pelo segurado. As lesões parcial-
mitiu identificar associações estatisticamente válidas entre o
mente dependentes do trabalho são classificadas por esse au-
trabalho exercido e certos tipos d e agravo. Assim, foi criado
to r em agravadas e prolongadas 3 •
o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário - NTEP. A
A simulação pode ser tentada d e duas m aneiras. O ra
partir da implementação deste nexo, a perícia médica passou
existe uma lesão que é falsamente atribuída ao trabalho, o ra
a adotar três etapas sequenciais e hierarquizadas para a iden-
houve um acidente que não causou lesão, mas que é usado
tificação e a caracterização d a natureza d a incapacidade, se
como desculpa para o afastamento do trabalho. No primeiro
acidentária ou previdenciária (sem relação com o trabalho).
caso, pod e o segurado ter sofrido a lesão em acidente pessoal
Essas etapas são: em nada relacionado com o trabalho, com o, por exemplo, a
1) Identificação d e ocorrência de Nexo Técnico Pro-
entorse do joelho adquir ida em jogo de futebol com os ami-
fissional o u d o Trabalho (NTP/T ) - relação entre
gos. No segundo caso, ho uve o fato do acidente, mas a alega-
o agravo e a exposição, confo rme listas A, B do d a lesão inexiste. Não pode ser constatada d e modo objetivo.
D ecreto 6.042 d e 2007 (que atu alizou o Decreto É alegada principalmente através do sintoma do r. Em outros
3.048/96); casos, sequer houve o acidente.
2) Identificação de ocorrência do Nexo Técnico Epide- Na época em que trabalhávamos nas Varas de Acidentes
miológico Previdenciário, confo rme a lista C intro - do Trabalho, o tipo mais comum de simulação era a dor aos
duzida pelo Decreto 6.957 de 2009; m ovimentos da coluna lombar. Havia um grupo d e operários
3) Identificação de ocorrência de Nexo Técnico po r d a construção civil que já vinha com uma história decor ada de
D oença Equiparada a Acidente do Trabalho - análise do r súbita ao erguer um peso, a qual, desde então, incapaci-
caso a caso pelo perito d o INSS a partir de todas as tava o pretenso acidentado com redução dos movimentos da
info rmações a cerca da doença e do trabalho 15• coluna lombar. Para d escartar a falsa alegação, era costume,
Do ponto de vista pericial, por ém, surgem questões de após a realização do exame físico, que se pedisse exame radio-
ordem prática. A atitude do trabalhador com relação aos aci- lógico da coluna lombar e exam e neurológico para afastar a
dentes e ao afastam ento d o trabalho depende muito da sua possibilidade de uma radiculite t raumática dos nervos lo m-
personalidade e do m odo como é remunerado. Indivíduos bares. Em discussão, nesses casos, está a existência de uma
indolentes, pouco produtivos, que consideram o trabalho concausa preexistente. Como não são acidentes do trabalho,
um d ever penoso e não um m odo de afirmação pessoal ten- as doenças degenerativas (art. 20, § l2 da Lei 8.213/91 )6, a
dem a exagerar seus males e a fazer o possível par a alongar lombalgia por espondiloartrose (d egeneração d as articula-
o benefício d o auxílio -doença. No outro extremo, estão os ções intervertebrais) não d eve ser acolhida como manifes-
que consideram o trabalho indispensável à sua felicidade, tação de patologia relacionada ao trabalho. Mas os casos de
tanto por prazer intelectual quanto por consequência dos do r que surja após um esforço de erguer um peso, ou após
proveitos q ue pro porcio na por meio d a remuneração. Nesse um movimento brusco da coluna, podem ser relacionados ao
último caso, aqueles que têm vantagens e comissões a cad a trabalho mesmo que o trabalhad or já tivesse a referida d oen-
tarefa concluída, o u gorjetas dadas pela clientela, consideram ça degenerativa. É o trabalho agindo como d esencad eado r da
gr ande prejuízo o afastam ento do trabalho. Dentro dessa lesão em pessoa já fragilizad a pela doença. É o que diz a lei ao
perspectiva, é natural que uns queiram exagerar seus padeci- referir que é acidente do trabalho aquele em que este não seja
mentos e outros procurem minorá-los de m odo a voltarem a única causa (art. 21, inciso Ida Lei 8.213/9 1)6 .
mais rapidamente ao exercício profissional. Os peritos têm A dor, fenómeno subjetivo, é d e constatação objetiva im-
que estar atentos para ambas as atitudes, que geram as simu- provável. Algumas alterações da atitude do paciente pod em
lações e as dissimulações, respectivamente. denotar que seja real. As reações de defesa ao toque ou à m o-
476 • CAPITULO 21 lnfortunística

vimentação da região afetada, quando bem avaliadas, são es- § 2q Nas mesmas penas incorre quem:
clarecedoras. Reações muito exageradas devem ser falsas. Há
sinais clínicos que podem ser pesquisados para tentar a cons- V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa pró-
tatação objetiva da dor. França23 refere três sinais. O sinal de pria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as con-
Müller preconiza que se faça um círculo ao redor da região sequências de lesão ou doença, com o intuito de haver inde-
onde a dor é alegada, passando-se a comprimir pontos den- nização ou valor de seguro.
tro dessa área estando o paciente de olhos vendados. Pela
combinação de compressão de pontos diferentes, é possível
perceber, pela reação do paciente, se se trata de simulação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O sinal de Levi baseia-se em alterações pupilares desperta-
das pela manipulação da região em que se alega a dor. O de 1. Veiga de Carvalho H. Acidentes do Trabalho. 4• ed. São Paulo: Edi-
Imbert é pesquisado pela palpação do pulso quando se alega tora Saraiva; 1963.
2. Rodrigues S. Direito Civil. Vol. 4. Responsabilidade Civil. 19" ed.
dor em um membro e manda-se que o segurado faça um São Paulo: Editora Saraiva; 2002.
esforço com o mesmo segmento 23 • 3. Almeida Jr. A, Costa Jr. JBO. Conceito de acidente de trabalho. Pri-
meiro elemento: a lesão. em Lições de Medicina Legal. 18' ed. São
Metassimulação Paulo: Companhia Editora Nacional; 1985. Capítulo 26, p. 269-273.
4. Ministério da Previdência Social. Disponível em: www.previden-
São as lesões agravadas de Almeida Júnior3 . Consiste em ciasocial.gov.br Acessado em: 11 nov. 2011.
aumentar os efeitos da lesão de modo a conseguir aumento 5. Carneiro ADC, Prestes LFM. Acidentes do Trabalho. São Paulo:
dos benefícios. Por exemplo, era muito comum que o aci- Editora Saraiva; 1983.
6. Sabatovski E, Fontoura IP. Legislação Previdenciária. 16" ed. Curi-
dentado viesse a exame nas Varas de Acidente do Trabalho,
tiba: Juruá Editora; 2002.
onde trabalhamos por algum tempo, exagerando as reduções 7. Nascimento TMC. Comentários à Lei de Acidentes do Trabalho. 5•
de movimentos de segmentos dos membros após a cura de ed. Rio de Janeiro: AIDE Editora e Comércio de Livros Ltda.; 1984.
fraturas. Sabemos que, após período de imobilização para a 8. Proposta de Emenda Constitucional n~ 478/10 (PEC das domés-
cura de fraturas, ocorrem atrofia por desuso da musculatura ticas).
9. Bureau of Labor Statistics. Lost-worktime injuries and illnesses:
do segmento imobilizado e redução dos movimentos arti-
characteristics and resulting days away from work, 2001. News,
culares. Estes estão bem mais comprometidos nos casos em 27/03/2003. Disponível em: http://www.bls.gov./iif/. Acessado em:
que a lesão inicial foi entorse ou luxação, ou quando a fra- 05 mar. 2004.
tura interessou a cavidade articular. Po r isso, é preciso que 10. CIPA Estatísticas. Indices de acidentes do trabalho nos óltimos 25
se faça tratamento fisioterápico para a total recuperação da anos.
11. Ministere da Développement des Resources Humaines -Securité et
amplitude dos movimentos. Àquela época, as seguradoras santé au travai!. Disponível em: http://www.hrdc-drhc.gc.ca/ . Aces-
privadas antecipavam a alta dos acidentados a fim de reduzir sado em: 15 fev. 2004.
as despesas com diárias e com a fisioterapia. Por isso, mui- 12. Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales. Anuario 2002. Disponível
tos acidentados buscavam a Justiça para receber indeniza- em: www.mtas.es/estadisticas/. Acessado em: 27 fev. 2004.
ção. Instruídos por seus advogados, costumavam exagerar a 13. IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em: http://www.cen-
so2010.ibge.gov.br/sinopse/webservice/. Acessado em: 05 nov. 20 11.
redução de movimentos de dedos, punho, tornozelo etc. As 14. Ministério da Previdência Social. Anuário Estatístico da Previdên-
tabelas de indenização referentes às reduções de movimen- cia Social, Seção IV -Acidentes do Trabalho, 2009. Disponível em:
tação das articulações classificavam -nas em graus mínimo, www.previdenciasocial.gov.br/conteudoDinamico.php?id= 989.
m édio e máximo. Era preciso cautela na avaliação pericial Acessado em: 07 nov. 2011.
para atribuir o grau correto de incapacidade. Atualmente, 15. Ministério da Previdência Social. Anuário Estatístico da Previdên-
cia Social, Seção IV - Acidentes do Trabalho, 2009. Disponível na
não existe mais a indenização paga em dinheiro ao aciden-
internet em www.previdenciasociaLgov.br/co nteudoDinamico.
tado. O que existe é o auxílio-acidente, do qual já falamos. php?id= 989, em 07/11/2011.
16. Mendes R. Conceito de Patologia do Trabalho. ln: Patologia do Tra-
Dissimulação balho. Atualizada e Ampliada, 2• ed. René Mendes, ed. São Paulo:
Editora Atheneu; 2005. Capítulo 2, p. 47- 92.
Existe quando o acidentado, querendo voltar logo ao tra- 17. Seligmann-Silva E. Psicopatologia e Saóde Mental no Trabalho. ln:
balho, esconde as lesões ou minimiza seus efeitos. Po de de- Patologia do Trabalho. 2• ed. René Mendes, ed. São Paulo: Editora
correr também da necessidade de obter um cargo ou empre- Atheneu; 2005. Capítulo 25, p. 1141 -82.
go para o qual não tem aptidão em função de doença prévia 1 • 18. Rubinstein, M. Comunicação pessoal; 2011.
19. Cunha S. Assédio moral no trabalho -Acidente invisível. CIPA; 2011 .
Para finalizar, devemos informar que a simulação consti- (380):56-7 1.
tui infração penal tipificada no artigo 171 do Código Penal. 20. Lei 3.921, de 23 de agosto de 2002 do Estado do Rio de Janeiro.
A maioria dos casos pode ser enquadrada no caput do artigo: 21. Brasil. Decreto 3048/ 99, atualizado até 2009. Disponível em: www2.
"Obter, para si ou para o utrem, vantagem ilícita, em prejuízo cam ara.gov.br. Acessado em: 12 nov. 2011 .
22. Datasus. Tabelas sobre m orbidade e mortalidade. Disponível em:
alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/. Acessado em: 15 nov. 2011.
artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento''. Caso 23. França GV. Infortunística. em Medicina Legal. 5• ed. Genival Veloso
se trate de autolesão, o simulador é enquadrado no inciso V de França, ed. Rio de Janeiro: Editora Guanaba ra Koogan SA; 1998.
do § 2": Capítulo 6, p. 150- 169.
CAPITULO 21 lnfortunística • 477

REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL


ANEXO 1
RELAÇÃO DAS SITUAÇÕES EM QUE O APOSENTADO POR INVALIDEZ TERÁ DIREITO À MAJORAÇÃO
DE VINTE E CINCO POR CENTO PREVISTA NO ART. 45 DESTE REGULAMENTO
1- Cegueira total.
2- Perda de nove d edos das m ãos ou superior a esta.
3- Paralisia dos dois m embros superiores ou inferiores.
4- Perda dos membros inferiores, acima dos pés, quando a prótese for impossível.
5- Perda de uma das m ãos e de dois pés, ainda que a prótese sej a possível.
6- Perda de um membro superior e outro inferior, quando a prótese for impossível.
7- Alteração das faculdades mentais com grave perturbação da vida orgânica e social.
8- Doença que exija permanência contínua no leito.
9- Incapacidade permanente para as atividades da vida diária.

REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL


ANEXO li
AGENTES PATOGÊNICOS CAUSADORES DE DOENÇAS PROFISSIONAIS OU DO TRABALHO,
CONFORME PREVISTO NO ART. 20 DA LEI N~ 8.213, DE 1991
AGENTES PATOGrNICOS TRABALHOS QUE CONl"rM ORISCO
QUÍMICOS
1- Arsênio e seus compostos arsenicais 1. metalurgia de minérios arsenicais e indústria eletrônica;
2. extração do arsênio e preparação de seus compostos;
3. fabricação, preparação e emprego de tintas, lacas (gás arsina), inseticidas,
parasiticidas e raticidas;
4. processos industriais em que haja desprendimento de hidrogênio arseniado;
5. preparação e conservação de peles e plumas (empalhamento de animais) e
conservação da madeira;
6. agentes na produção de vidro, ligas de chumbo, medicamentos e
semicondutores.
li - Asbesto ou amianto 1. extração de rochas amiantíferas, furação, corte, desmonte, trituração,
peneiramento e manipulação;
2. despejos do material proveniente da extração, trituração;
3. mistura, cardagem, fiação e tecelagam de amianto;
4. fabricação de guarnições para freios, materiais isolantes e produtos de
fibrocimento;
5. qualquer colocação ou demolição de produtos de amianto que produzam
partículas atmosféricas de amianto.
Ili - Benzeno ou seus homólogos tóxicos Fabricação e emprego do benzeno, seus homólogos ou seus derivados aminados e
nitrosos:
1. instalações petroquímicas onde se produz benzeno;
2. indústria química ou de laboratório;
3. produção de cola sintética;
4. usuários de cola sintética na fabricação de calçados, artigos de couro ou
borracha e móveis;
5. produção de tintas;
6. impressores (especialmente na fotogravura);
7. pintura a pistola;
8. soldagem.
IV - Berílio e seus compostos tóxicos 1. extração, trituração e tratamento de berílio;
2. fabricação e fundição de ligas e compostos;
3. utilização na indústria aeroespacial e manufatura de instrumentos de precisão e
ordenadores; ferramentas cortantes que não produzam faíscas para a indústria
petrolífera;
4. fabricação de tubos fluorescentes, de ampolas de raios X, de eletrodos de
aspiradores, cátodos de queimadores e moderadores de reatores nucleares;
5. fabricação de cadinhos, vidros especiais e de porcelana para isolantes térmicos.
478 • CAPITULO 21 lnfortunística

AGENTES PATOG~NICOS TRABALHOS QUE corntM oRISCO


V - Bromo Fabricação e emprego do bromo e do ácido brómico.
VI - Cádmio ou seus compostos 1. extração, tratamento, preparação e fundição de ligas metálicas;
2. fabricação de compostos de cádmio para soldagem;
3. soldagem;
4. utilização em revestimentos metálicos (galvanização), como pigmentos e
estabilizadores em plásticos, nos acumuladores de níquel-cádmio e soldagem de
prata.
VII - Carbonetos metálicos de tungstênio sinterizados Produção de carbonetos sinterizados (mistura, pulverização, modelado, aquecimento
em forno, ajuste, pulverização de precisão), na fabricação de ferramentas e de
componentes para máquinas e no afiamento das ferramentas. Trabalhadores situados
nas proximidades e dentro da mesma oficina.
VIII - Chumbo ou seus compostos tóxicos 1. extração de minérios, metalurgia e refinação do chumbo;
2. fabricação de acumuladores e baterias (placas);
3. fabricação e emprego de chumbo-tetraetila e chumbo-tetrametila;
4. fabricação e aplicação de tintas, esmaltes e vernizes à base de compostos de
chumbo;
5. fundição e laminação de chumbo, bronze etc.;
6. fabricação ou manipulação de ligas e compostos de chumbo;
7. fabricação de objetos e artefatos de chumbo, inclusive munições;
8. vulcanização da borracha pelo litargírio ou outros compostos de chumbo;
9. soldagem;
1O. indústria de impressão;
11. fabricação de vidro, cristal e esmalte vitrificado;
12. sucata, ferro-velho;
13. fabricação de pérolas artificiais;
14. olaria;
15. fabricação de fósforos.
IX - Cloro Fabricação e emprego de cloro e ácido clorídrico.
X - Cromo ou seus compostos tóxicos 1. fabricação de ácido crómico, de cromatos e bicromatos e ligas de
ferro-cromo;
2. cromagem eletrolítica de metais (galvanoplastia);
3. curtição e outros trabalhos com o couro;
4. pintura a pistola com pigmentos de compostos de cromo, polimento
de móveis;
5. manipulação de ácido crómico, de cromatos e bicromatos;
6. soldagem de aço inoxidável;
7. fabricação de cimento e trabalhos da construção civil;
8. impressão e técnica fotográfica.
XI - Flúor ou seus compostos tóxicos 1. fabricação e emprego de flúor e de ácido fluorídrico;
2. siderurgia (como fundentes);
3. fabricação de ladrilhos, telhas, cerâmica, cimento, vidro, esmalte, fibra de vidro,
fertilizantes fosfatados;
4. produção de gasolina (como catalisador alquilante);
5. soldagem elétrica;
6. galvanoplastia;
7. calefação de superfícies;
8. sistema de combustível para foguetes.
XII - Fósforo ou seus compostos tóxicos 1. extração e preparação do fósforo branco e de seus compostos;
2. fabricação e aplicação de produtos fosforados e organofosforados (sínteses
orgânicas, fertilizantes, praguicidas);
3. fabricação de projéteis incendiários, explosivos e gases asfixiantes à base de
fósforo branco;
4. fabricação de ligas de bronze;
5. borrifadores, trabalhadores agrícolas e responsáveis pelo armazenamento,
transporte e distribuição dos praguicidas organofosforados.
CAPITULO 21 lnfortunística • 479

AGENlES PATOGfNICOS TRABALHOS QIE CON'ltM ORISCO


XIII - Hidrocarbonetos alifáticos ou aromáticos (seus Síntese química (metilação), refrigerante, agente especial para extrações.
derivados halogenados tóxicos) Solvente (azeites, graxas, ceras, acetato de celulose), desengordurante, removedor de
• Cloreto de metila pinturas.
• Cloreto de metileno Solvente (lacas), agente de extração.
• Clorofórmio Síntese química, extintores de incêndio.
• Tetracloreto de carbono Síntese química, anestésico local (refrigeração).
• Cloreto de etila Síntese química, solvente (resinas, borracha, asfalto, pinturas), desengraxante.
1.1. Dicloroetano Agente desengraxante para limpeza de metais e limpeza a seco.
1.1.1. Tricloroetano Solvente.
1.1.2. Tricloroetano Solvente.
• Tetracloroetano Desengraxante, agente de limpeza a seco e de extração, sínteses químicas.
• Tricloroetileno Desengraxante, agente de limpeza a seco e de extração, sínteses químicas.
• Tetracloroetileno Intermediário na fabricação de cloreto de polivinila.
• Cloreto de vinila Inseticida em fumigação (cereais), sínteses químicas.
• Brometo de metila Sínteses químicas, agente especial de extração.
• Brometo de etila Inseticida em fumigação (solos), extintor de incêndios, solvente (celuloide, graxas,
1.2. Dibromoetano azeite, ceras).
• Clorobenzeno Sínteses químicas, solvente.
• Diclorobenzeno Sínteses químicas, solvente.
XIV - lodo Fabricação e emprego do iodo.
XV - Manganês e seus compostos tóxicos 1. extração, tratamento e trituração de pirolusita (dióxido de manganês);
2. fabricação de ligas e compostos do manganês;
3. siderurgia;
4. fabricação de pilhas secas e acumuladores;
5. preparação de permanganato de potássio e fabricação de corantes;
6. fabricação de vidros especiais e cerâmica;
7. soldagem com eletrodos contendo manganês;
8. fabricação de tintas e fertilizantes;
9. curtimento de couro.
XVI - Mercúrio e seus compostos tóxicos 1. extração e fabricação do mineral de mercúrio e de seus compostos;
2. fabricação de espoletas com fulminato de mercúrio;
3. fabricação de tintas;
4. fabricação de solda;
5. fabricação de aparelhos: barômetros, manômetros, termômetros, interruptores,
lâmpadas, válvulas eletrônicas, ampolas de raios X, retificadores;
6. amalgamação de zinco para a fabricação de eletrodos, pilhas e
acumuladores;
7. douração e estanhagem de espelhos;
8. empalhamento de animais com sais de mercúrio;
9. recuperação de mercúrio por destilação de resíduos industriais;
1O. tratamento a quente de amálgamas de ouro e prata para a recuperação desses
metais;
11. secretagem de pelos, crinas e plumas, e feltragem à base de compostos de
mercúrio;
12. fungicida no tratamento de sementes e brilhos vegetais e na proteção da
madeira.
XVII - Substâncias asfixiantes
1. Monóxido de carbono Produção e distribuição de gás obtido de combustíveis sólidos (gaseificação do
carvão); mecânica de motores, principalmente movidos a gasolina, em recintos
semifechados; soldagem acetilênica e a arco; caldeiras, indústria química; siderurgia,
fundição, mineração de subsolo; uso de explosivos; controle de incêndios; controle
de tráfego; construção de túneis; cervejarias.
2. Cianeto de hidrogênio ou seus derivados tóxicos Operações de fumigação de inseticidas, síntese de produtos químicos
orgânicos; eletrogalvanoplastia; extração de ouro e prata; produção de aço
e de plásticos (especialmente o acrilonitrilo-estireno); siderurgia (fornos
de coque).
480 • CAPITULO 21 lnfortunística

AGENTES PATOG~NICOS TRABALHOS QUE corntM oRISCO


3. Sulfeto de hidrogênio (ácido sulfídrico) Estações de tratamento de águas residuais; mineração; metalurgia; trabalhos em
silos; processamento de açúcar da beterraba; curtumes e matadouros; produção de
viscose e celofane; indústria química (produção de ácido sulfúrico, sais de bário);
construção de túneis; perfuração de poços petrolíferos e gás; carbonização do carvão
a baixa temperatura; litografia e fotogravura.
XVIII - Sílica livre (óxido de silício - Si02) 1. extração de minérios (trabalhos no subsolo e a céu aberto);
2. decapagem, limpeza de metais, foscamento de vidros com jatos de areia, e
outras atividades em que se usa areia como abrasivo;
3. fabricação de material refratário para fomos, chaminés e cadinhos, recuperação
de resíduos;
4. fabricação de mós, reboios, saponáceos, pós e pastas para polimento de metais;
5. moagem e manipulação de sílica na indústria de vidros e porcelanas;
6. trabalho em pedreiras;
7. trabalho em construção de túneis;
8. desbastes e polimento de pedras.
XIX - Sulfeto de carbono ou dissulfeto de carbono 1. fabricação de sulfeto de carbono;
2. indústria da viscose, raiom (seda artificial);
3. fabricação e emprego de solventes, inseticidas, parasiticidas e herbicidas;
4. fabricação de vernizes, resinas, sais de amoníaco, tetracloreto de carbono,
têxteis, tubos eletrônicos a vácuo, gorduras;
5. limpeza a seco; galvanização; fumigação de grãos;
6. processamento de azeite, enxofre, bromo, cera, graxas e iodo.
XX -Alcatrão, breu, betume, hulha mineral, parafina e Processos e operações industriais ou não, em que sejam utilizados alcatrão, breu,
produtos ou resíduos dessas substâncias, causadores betume, hulha mineral, parafina e produtos ou resíduos dessas substâncias.
de epiteliomas primitivos da pele
FÍSICOS
XXI - Ruído e afecção auditiva Mineração, construção de túneis, exploração de pedreiras (detonação, perfuração);
engenharia pesada (fundição de ferro, prensa de forja); trabalho com máquinas que
funcionam com potentes motores a combustão; utilização de máquinas têxteis; testes
de reatores de aviões.
XXII - Vibrações (afecções dos músculos, tendões, Indústria metalúrgica, construção naval e automobilística; mineração; agricultura
ossos, articulações, vasos sanguíneos periféricos ou (motosserras); instrumentos pneumáticos; ferramentas vibratórias, elétricas e
dos nervos periféricos) manuais; condução de caminhões e ônibus.
XXIII - Ar comprimido 1. trabalhos em caixões ou câmaras pneumáticas e em tubulões pneumáticos;
2. operações com uso de escafandro;
3. operações de mergulho;
4. trabalho com ar comprimido em túneis pressurizados.
XXIV - Radiações ionizantes 1. extração de minerais radioativos (tratamento, purificação, isolamento e preparo
para a distribuição), como o urânio;
2. operação com reatores nucleares ou com fontes de nêutrons ou de outras
radiações corpusculares;
3. trabalhos executados com exposições a raios X, rádio e substâncias radioativas
para fins industriais, terapêuticos e diagnósticos;
4. fabricação e manipulação de produtos químicos e farmacêuticos radioativos
(urânio, radônio, mesotório, tório X, césio 137 e outros);
5. fabricação e aplicação de produtos luminescentes radíferos;
6. pesquisas e estudos dos raios X e substâncias radioativas em laboratórios.
1BIOLÓGICOS
XXV - Microrganismos e parasitas infecciosos vivos e Agricultura; pecuária; silvicultura; caça (inclusive a caça com armadilhas); veterinária;
seus produtos tóxicos curtume.
1. Mycobacterium; vírus hospedados por artrópodes; Construção; escavação de terra; esgoto; canal de irrigação; mineração.
Coccidioides; fungos; Histop/asma; Leptospira; Manipulação e embalagem de carne e pescado.
Rickettsia; bacilo (carbúnculo, tétano); ancilóstomo; Manipulação de aves confinadas e pássaros.
tripanossoma; Pasteurella. Trabalho com pelo, pele ou lã.
CAPITULO 21 lnfortunística • 481

AGENlES PATOGfNICOS TRABALHOS QIE CON'ltM ORISCO


2. Ancilóstomo; Histop/asma; Coccidioides, Leptospira; Veterinária.
bacilo; sepse. Hospital; laboratórios e outros ambientes envolvidos no tratamento de doenças
3. Mycobacterium; Bruce/las, estreptococo (erisipela); transmissíveis.
fungo; Rickettsia; Pasteurella. Trabalhos em condições de temperatura elevada e umidade (cozinhas; ginásios;
4. Fungos; bactérias; mixovírus (doença de piscinas etc.).
Newcastle).
5. Bacilo (carbúnculo) e Pasteurella.
6. Bactérias; Mycobacteria; Bruce/la; fungos;
Leptospira; vírus; mixovírus; Rickettsia; Pasteurella.
7. Mycobacteria, vírus; outros organismos
responsáveis por doenças transmissíveis.
8. Fungos (micose cutânea).
POEIRAS ORGÃNICAS
XXVI - Algodão, linho, cânhamo, sisai Trabalhadores nas diversas operações com poeiras provenientes desses produtos.
XXVII - Agentes físicos, químicos ou biológicos, que Trabalhadores mais expostos: agrícolas; da construção civil em geral; da indústria
afetam a pele, não considerados em outras rubricas química; de eletrogalvanoplastia; de tinturaria; da indústria de plásticos reforçados
com fibra de vidro; da pintura; dos serviços de engenharia (óleo de corte ou
lubrificante); dos serviços de saúde (medicamentos, anestésicos locais,
desinfetantes); do tratamento de gado; dos açougues.

LISTA A
AGENTES OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL RELACIONADOS COM A ETIOLOGIA
DE DOENÇAS PROFISSIONAIS E DE OUTRAS DOENÇAS RELACIONADAS COM O TRABALHO
AGENlES ETIOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DOENc;AS CAUSAUIENlE RELACIONADAS COM OS RESPECTIVOS AGENlES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FATORES DE RISCO (DENOMINADAS ECODIRCADAS SEGUNDO ACID-1D)
1- Arsênio e seus compostos asrsenicais 1. Angiossarcoma do fígado (C22.3)
2. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
3. Outras neoplasias malignas da pele (C44.-)
4. Polineuropatia devida a outras agentes tóxicos (G52.2)
5. Encefalopatia tóxica aguda (G92.1)
6. Blefarite (H01.0)
7. Conjuntivite (H10)
8. Queratite e queratoconjuntivite (H 16)
9. Arritmias cardíacas (149.-)
1O. Rinite crônica (J31.0)
11. Ulceração ou necrose do septo nasal (J34.0)
12. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
13. Estomatite ulcerativa crônica (K12.1)
14. Gastroenterite e colites tóxicas (K52.-)
15. Hipertensão portal (K76.6)
16. Dermatite de contato por irritantes (L24.-)
17. Outras formas de hiperpigmentação pela melanina: "melanodermia" (L81.4)
18. Leucodermia, não classificada em outra parte (inclui "vitiligo ocupacional") (L81.5)
19. Ceratose palmar e plantar adquirida (L85.1)
20. Efeitos tóxicos agudos (T57 .O)
li - Asbesto ou amianto 1. Neoplasia maligna do estômago (C16.-)
2. Neoplasia maligna da laringe (C32.-)
3. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
4. Mesotelioma da pleura (C45.0)
5. Mesotelioma do peritônio (C45.1)
6. Mesotelioma do pericárdio (C45.2)
7. Placas epicárdicas ou pericárdicas (134.8)
8. Asbestose (J60.-)
9. Derrame pleural (J90.-)
10. Placas pleurais (J92.-)
482 • CAPITULO 21 lnfortunística

AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DOENCAS CAUSALMENTE RELACIONADAS COM OS RESPECTIVOS AGENTES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FAtORES DE RISCO (DENOMINADAS ECODIFICADAS SEGUNDO ACID-10)
Ili - Benzeno e seus homólogos tóxicos 1. Leucemias (C91-C95.-)
2. Síndromes mielodisplásicas (046.-)
3. Anemia aplástica devida a outros agentes externos (061.2)
4. Hipoplasia medular (061.9)
5. Púrpura e outras manifestações hemorrágicas (069.-)
6. Agranulocitose (neutropenia tóxica) (070)
7. Outros transtornos especificados dos glóbulos brancos: leucocitose, reação
leucemoide (072.8)
8. Outros transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção cerebrais e de
doença física (F06.-) (tolueno e outros solventes aromáticos neurotóxicos)
9. Transtornos de personalidade e de comportamento decorrentes de doença, lesão e
de disfunção de personalidade (F07.-) (tolueno e outros solventes aromáticos
neurotóxicos)
10. Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado (F09.-) (tolueno e
outros solventes aromáticos neurotóxicos)
11. Episódios depressivos (F32.-) (tolueno e outros solventes aromáticos
neurotóxicos)
12. Neurastenia (inclui "síndrome de fadiga") (F48.0) (tolueno e outros solventes
aromáticos neurotóxicos)
13. Encefalopatia tóxica crônica (G92.2)
14. Hipoacusia ototóxica (H91.0) (tolueno e xileno)
15. Oermatite de contato por irritantes (L24. -)
16. Efeitos tóxicos agudos (T52.1 e T52.2)
IV - Berílio e seus compostos tóxicos 1. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
2. Conjuntivite (H1 O)
3. Beriliose (J63.2)
4. Bronquite e pneumonite devida a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (J68.0)
5. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1)
6. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
7. Oermatite de contato por irritantes (L24. -)
8. Efeitos tóxicos agudos (T56.7)
V - Bromo 1. Faringite aguda ("angina aguda", "dor de garganta") (J02.9)
2. Laringotraqueíte aguda (J04.2)
3. Faringite crônica (J31.2)
4. Sinusite crônica (J32.-)
5. Laringotraqueíte crônica (J37 .1)
6. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (J68.0)
7. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1)
8. Síndrome de disfunção reativa das vias aéreas (SOVA/RAOS) (J68.3)
9. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
10. Estomatite ulcerativa crônica (K12.1)
11. Oermatite de contato por irritantes (L24. -)
12. Efeitos tóxicos agudos (T57 .8.)
VI - Cádmio ou seus compostos 1. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
2. Transtornos do nervo olfatório (inclui "anosmia") (G52.0)
3. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (J68.0)
4. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1)
5. Síndrome de disfunção reativa das vias aéreas (SOVA/RAOS) (J68.3)
CAPITULO 21 lnfortunística • 483

AGENlES ETIOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DOENCAS CAUSALMENlE RELACIONADAS COMOS RESPECTIVOS AGENlES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FAtORES DE RISCO (DENOMllADAS ECODIRCADAS SEGUNDO ACID-1D)
V1 - Cádmio ou seus compostos (cont.) 6. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
7. Enfisema intersticial (J98.2)
8. Alterações pós-eruptivas da cor dos tecidos duros dos dentes (K03. 7)
9. Gastroenterite e colites tóxicas (K52.-)
1O. Osteomalacia do adulto induzida por drogas (M83.5)
11. Nefropatia túbulo-intersticial induzida por metais pesados (N14.3)
12. Efeitos tóxicos agudos (T56.3)
Vll - Carbonetos metálicos de tungstênio sinterizados 1. Outras rinites alérgicas (J30.3)
2. Asma (J45.-)
3. Pneumoconiose devida a outras poeiras inorgânicas especificadas (J63.8)
VIII - Chumbo ou seus compostos tóxicos 1. Outras anemias devidas a transtornos enzimáticos (D55.8)
2. Anemia sideroblástica secundária a toxinas (D64.2)
3. Hipotireoidismo devido a substâncias exógenas (E03.-)
4. Outros transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção cerebrais e de
doença física (F06.-)
5. Polineuropatia devida a outros agentes tóxicos (G52.2)
6. Encefalopatia tóxica aguda (G92.1)
7. Encefalopatia tóxica crônica (G92.2)
8. Hipertensão arterial (110.-)
9. Arritmias cardíacas (149.-)
1O. "Cólica da chumbo" (K59.8)
11. Gota induzida pelo chumbo (M 10.1)
12. Nefropatia túbulo-intersticial induzida por metais pesados (N14.3)
13. Insuficiência renal crônica (N17)
14. Infertilidade masculina (N46)
15. Efeitos tóxicos agudos (T56.0)
IX- Cloro 1. Rinite crônica (J31.0)
2. Outras doenças pulmonares obstrutivas crônicas (inclui "asma obstrutiva",
"bronquite crônica", "bronquite obstrutiva crônica") (J44.-)
3. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (J68.0)
4. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1)
5. Síndrome de disfunção reativa das vias aéreas (SDVA/RADS) (J68.3)
6. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
7. Efeitos tóxicos agudos (T59.4)
X - Cromo ou seus compostos tóxicos 1. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
2. Outras rinites alérgicas (J30.3)
3. Rinite crônica (J31.0)
4. Ulceração ou necrose do septo nasal (J34.0)
5. Asma (J45.-)
6. "Dermatoses pápulo-pustulosas e suas complicações infecciosas" (L08.9)
7. Dermatite alérgica de contato (L23.-)
8. Dermatite de contato por irritantes (L24. -)
9. Úlcera crônica da pele, não classificada em outra parte (L98.4)
1O. Efeitos tóxicos agudos (T56.2)
XI - Flúor ou seus compostos tóxicos 1. Conjuntivite (H 1O)
2. Rinite crônica (J31.0)
3. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (J68.0)
4. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1)
5. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
484 • CAPITULO 21 lnfortunística

AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DOENCAS CAUSALMENTE RELACIONADAS COM OS RESPECTIVOS AGENTES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FAtORES DE RISCO (DENOMINADAS ECODIFICADAS SEGUNDO ACID-10)
XI - Flúor ou seus compostos tóxicos (cont.) 6. Erosão dentária (K03.2)
7. Dermatite de contato por irritantes (L24. -)
8. Fluorose do esqueleto (M85.1)
9. Intoxicação aguda (T59.5)
XII - Fósforo ou seus compostos tóxicos 1. Polineuropatia devida a outros agentes tóxicos (G52.2)
2. Arritmias cardíacas (149.-) (agrotóxicos organofosforados e carbamatos)
3. Dermatite alérgica de contato (l23.-)
4. Dermatite de contato por irritantes (l24. -)
5. Osteomalacia do adulto induzida por drogas (M83.5)
6. Osteonecrose (M87.-): osteonecrose devida a drogas (M87.1); outras
osteonecroses secundárias (M87.3)
7. Intoxicação aguda (T57 .1) (intoxicação aguda por agrotóxicos organofosforados:
T60.0)
XIII - Hidrocarbonetos alifáticos ou aromáticos (seus 1. Angiossarcoma do fígado (C22.3)
derivados halogenados tóxicos) 2. Neoplasia maligna do pâncreas (C25.-)
3. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
4. Púrpura e outras manifestações hemorrágicas (D69.-)
5. Hipotireoidismo devido a substâncias exógenas (E03.-)
6. Outras porfirias (E80.2)
7. Delirium, não sobreposto à demência, como descrita (F05.0) (brometo de metila)
8. Outros transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção cerebrais e de
doença física (F06.-)
9. Transtornos de personalidade e de comportamento decorrentes de doença, lesão e
disfunção de personalidade (F07. -)
10. Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado (F09.-)
11. Episódios depressivos (F32.-)
12. Neurastenia (inclui "síndrome de fadiga") (F48.0)
13. Outras formas especificadas de tremor (G25.2)
14. Transtorno extrapiramidal do movimento não especificado (G25.9)
15. Transtornos do nervo trigêmeo (G50. -)
16. Polineuropatia devida a outros agentes tóxicos (G52.2) (n-hexano)
17. Encefalopatia tóxica aguda (G92. 1)
18. Encefalopatia tóxica crônica (G92.2)
19. Conjuntivite (H10)
20. Neurite óptica (H46)
21. Distúrbios visuais subjetivos (H53.-)
22. Outras vertigens periféricas (H81.3)
23. Labirintite (H83.0)
24. Hipoacusia ototóxica (H91.0)
25. Parada cardíaca (146.-)
26. Arritmias cardíacas (149.-)
27. Síndrome de Raynaud (173.0) (cloreto de vinila)
28. Acrocianose e acroparestesia (173.8) (cloreto de vinila)
29. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (J68.0)
30. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1)
31. Síndrome de disfunção reativa das vias aéreas (SDVA/RADS) (J68.3)
32. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
33. Doença tóxica do fígado (K71.-): doença tóxica do fígado, com necrose hepática
(K71.1 ); doença tóxica do fígado, com hepatite aguda (k71.2); doença tóxica do
fígado com hepatite crônica persistente (K71.3); doença tóxica do fígado com
outros transtornos hepáticos (K71.8)
34. Hipertensão portal (K76.6) (cloreto de vinila)
35. "Dermatoses pápulo-pustulosas e suas complicações infecciosas" (L08.9)
36. Dermatite de contato por irritantes (L24. -)
CAPITULO 21 lnfortunística • 485

AGENlES ETIOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DOENCAS CAUSALMENlE RELACIONADAS COMOS RESPECTIVOS AGENlES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FAtORES DE RISCO (DENOMllADAS ECODIRCADAS SEGUNDO ACID-1D)
XIII - Hidrocarbonetos alifáticos ou aromáticos (seus 37. "Cloracne" (L70.8)
derivados halogenados tóxicos) (cont.) 38. Outras formas de hiperpigmentação pela melanina: "melanodermia" (L81.4)
39. Outros transtornos especificados de pigmentação: "porfiria cutânea tardia" (L81.8)
40. Geladura (frostbite) superficial: eritema pérnio (T33) (anestésicos cloradas locais)
41. Geladura (frostbite) com necrose de tecidos (T34) (anestésicos cloradas locais)
42. Osteólise (M89.5) (de falanges distais de quirodáctilos) (cloreto de vinila)
43. Síndrome nefrítica aguda (NOO.-)
44. Insuficiência renal aguda (N17)
45. Efeitos tóxicos agudos (T53. -)
XIV - lodo 1. Conjuntivite (H10)
2. Faringite aguda ("angina aguda", "dor de garganta") (J02.9)
3. Laringotraqueíte aguda (J04.2)
4. Sinusite crônica (J32.-)
5. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda")
6. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1)
7. Síndrome de disfunção reativa das vias aéreas (SDVA/RADS) (J68.3)
8. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
9. Dermatite alérgica de contato (L23.-)
10. Efeitos tóxicos agudos (T57.8)
XV - Manganês e seus compostos tóxicos 1. Demência em outras doenças específicas classificadas em outros locais (F02.8)
2. Outros transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção cerebrais e de
doença física (F06. -)
3. Transtornos de personalidade e de comportamento decorrentes de doença, lesão e
de disfunção de personalidade (F07.-)
4. Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado (F09.-)
5. Episódios depressivos (F32.-)
6. Neurastenia (inclui "síndrome de fadiga") (F48.0)
7. Parkisonismo secundário (G21.2)
8. Inflamação coriorretiniana (H30)
9. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (J68.0)
1O. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4)
11. Efeitos tóxicos agudos (T57 .2)
XVI - Mercúrio e seus compostos tóxicos 1. Outros transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção cerebrais e de
doença física (F06.-)
2. Transtornos de personalidade e de comportamento decorrentes de doença, lesão e
de disfunção de personalidade (F07.-)
3. Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado (F09.-)
4. Episódios depressivos (F32.-)
5. Neurastenia (inclui "síndrome de fadiga") (F48.0)
6. Ataxia cerebelosa (G11.1)
7. Outras formas especificadas de tremor (G25.2)
8. Transtorno extrapiramidal do movimento não especificado (G25.9)
9. Encefalopatia tóxica aguda (G92.1)
1O. Encefalopatia tóxica crônica (G92.2)
11. Arritmias cardíacas) (149.-)
12. Gengivite crônica (K05.1)
13. Estomatite ulcerativa crônica (K12.1)
14. Dermatite alérgica de contato (L23.-)
15. Doença glomerular crônica (N03. -)
16. Nefropatia túbulo-intersticial induzida por metais pesados (N14.3)
17. Efeitos tóxicos agudos (T57 .1)
486 • CAPITULO 21 lnfortunística

AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DOENCAS CAUSALMENTE RELACIONADAS COM OS RESPECTIVOS AGENTES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FAtORES DE RISCO (DENOMINADAS ECODIFICADAS SEGUNDO ACID-10)
XVII - Substâncias asfixiantes: monóxido de carbono, 1. Demência em outras doenças específicas classificadas em outros locais (F02.8)
cianeto de hidrogênio ou seus derivados tóxicos, 2. Transtornos do nervo olfatório (inclui "anosmia") (G52.0) (H2S)
sulfeto de hidrogênio (ácido sulfídrico) 3. Encefalopatia tóxica crônica (G92.2) (sequela)
4. Conjuntivite (H10) (H2S)
5. Queratite e queratoconjuntivite (H16)
6. Angina pectoris (120.-) (CO)
7. lnfarto agudo do miocárdio (121.-) (CO)
8. Parada cardíaca (146.-) (CO)
9. Arritmias cardíacas (149.-) (CO)
1O. Bronquite e pneumonite devidas a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("bronquite química aguda") (HCN)
11. Edema pulmonar agudo devido a produtos químicos, gases, fumaças e vapores
("edema pulmonar químico") (J68.1) (HCN)
12. Síndrome de disfunção reativa das vias aéreas (SDVA/RADS) (J68.3) (HCN)
13. Bronquiolite obliterante crônica, enfisema crônico difuso ou fibrose pulmonar
crônica (J68.4) (HCN; H2S)
14. Efeitos tóxicos agudos (T57.3; T58; T59.6)
XVIII - Sílica livre 1. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
2. Cor pulmonale (127.9)
3. Outras doenças pulmonares obstrutivas crônicas (inclui "asma obstrutiva",
"bronquite crônica", "bronquite obstrutiva crônica") (J44.-)
4. Silicose (J62.8)
5. Pneumoconiose associada a tuberculose ("sílica-tuberculose") (J63.8)
6. Síndrome de Caplan (J99.1; M05.3)
XIX - Sulfeto de carbono ou dissulfeto de carbono 1. Demência em outras doenças específicas classificadas em outros locais (F02.8)
2. Outros transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção cerebrais e de
doença física (F06.-)
3. Transtornos de personalidade e de comportamento decorrentes de doença, lesão e
de disfunção de personalidade (F07.-)
4. Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado (F09.-)
5. Episódios depressivos (F32.-)
6. Neurastenia (inclui "síndrome de fadiga") (F48.0)
7. Polineuropatia devida a outros agentes tóxicos (G52.2)
8. Encefalopatia tóxica crônica (G92.2)
9. Neurite óptica (H46)
10. Angina pectoris (120.-)
11. lnfarto agudo do miocárdio (121.-)
12. Aterosclerose (170.-) e doença aterosclerótica do coração (125.1)
13. Efeitos tóxicos agudos (T52.8)
XX -Alcatrão, breu, betume, hulha mineral, parafina e 1. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
produtos ou resíduos dessas substâncias, causadores 2. Outras neoplasias malignas da pele (C44.-)
de epiteliomas primitivos da pele 3. Neoplasia maligna da bexiga (C67.-)
4. Dermatite alérgica de contato (l23. -)
5. Outras formas de hiperpigmentação pela melanina: "melanodermia" (l81.4)
XXI - Ruído e afecção auditiva 1. Perda da audição provocada pelo ruído (H83.3)
2. Outras percepções auditivas anormais: alteração temporária do limiar auditivo,
comprometimento da discriminação auditiva e hiperacusia (H93.2)
3. Hipertensão arterial (110.-)
4. Ruptura traumática do tímpano (pelo ruído) (S09.2)
XXII - Vibrações (afecções dos músculos, tendões, 1. Síndrome de Raynaud (173.0)
ossos, articulações, vasos sanguíneos periféricos ou 2. Acrocianose e acroparestesia (173.8)
dos nervos periféricos) 3. Outros transtornos articulares não classificados em outra parte: dor articular
(M25.5)
4. Síndrome cervicobraquial (M53.1)
5. Fibromatose da fáscia palmar: "contratura ou moléstia de Dupuytren" (M72.0)
CAPITULO 21 lnfortunística • 487

AGENlES ETIOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DOENCAS CAUSALMENlE RELACIONADAS COMOS RESPECTIVOS AGENlES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FAtORES DE RISCO (DENOMllADAS ECODIRCADAS SEGUNDO ACID-1D)
XXII - Vibrações (afecções dos músculos, tendões, 6. Lesões do ombro (M75.-): capsulite adesiva do ombro (ombro congelado,
ossos, articulações, vasos sanguíneos periféricos ou periartrite do ombro) (M75.0); síndrome do manguito rotatório ou síndrome do
dos nervos periféricos) (cont.) supraespinhoso (M75.1); tendinite bicipital (M75.2); tendinite calcificante do
ombro (M75.3); bursite do ombro (M75.5); outras lesões do ombro (M75.8); lesões
do ombro não especificadas (M75.9)
7. Outras entesopatias (M77.-): epicondilite medial (M77.0); epicondilite lateral
("cotovelo de tenista"); mialgia (M79.1)
8. Outros transtornos especificados dos tecidos moles (M79.8)
9. Osteonecrose (M87.-): osteonecrose devida a drogas (M87.1); outras
osteonecroses secundárias (M87.3)
1O. Doença de Kienbõck do adulto (osteocondrose do adulto do semilunar do carpo)
(M93.1) e outras osteocondropatias especificadas (M93.8)
XXIII - AI comprimido 1. Otite média não supurativa (H65.9)
2. Perfuração da membrana do tímpano (H72 ou S09.2)
3. Labirintite (H83.0)
4. Otalgia e secreção auditiva (H92.-)
5. Outros transtornos especificados do ouvido (H93.8)
6. Osteonecrose no "mal dos caixões" (M90.3)
7. Otite barotraumática (T70.0)
8. Sinusite barotraumática (T70.1)
9. "Mal dos caixões" (doença da descompressão) (T70.4)
1O. Síndrome devida ao deslocamento de ar de uma explosão (T70.8)
XXIV - Radiações ionizantes 1. Neoplasia maligna da cavidade nasal e dos seios paranasais (C30-C31.-)
2. Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)
3. Neoplasia maligna dos ossos e cartilagens articulares dos membros (inclui
"sarcoma ósseo")
4. Outras neoplasias malignas da pele (C44.-)
5. Leucemias (C91 -C95. -)
6. Síndromes mielodisplásicas (D46.-)
7. Anemia aplástica devida a outros agentes externos (D61.2)
8. Hipoplasia medular (D61.9)
9. Púrpura e outras manifestações hemorrágicas (D69.-)
1O. Agranulocitose (neutropenia tóxica) (D70)
11. Outros transtornos especificados dos glóbulos brancos: leucocitose, reação
leucemoide (D72.8)
12. Polineuropatia induzida pela radiação (G62.8)
13. Blefarite (H01.0)
14. Conjuntivite (H10)
15. Queratite e queratoconjuntivite (H 16)
16. Catarata (H28)
17. Pneumonite por radiação (J70.0 e J70.1)
18. Gastroenterite e colites tóxicas (K52.-)
19. Radiodermatite (L58.-): radiodermatite aguda (L58.0); radiodermatite crônica
(L58.1 ); radiodermatite não especificada (L58.9); afecções da pele e do tecido
conjuntivo relacionadas com a radiação não especificadas (L59.9)
20. Osteonecrose (M87.-): osteonecrose devida a drogas (M87.1); outras
osteonecroses secundárias (M87.3)
21. Infertilidade masculina (N46)
22. Efeitos agudos (não especificados) da radiação (T66)
XXV - Microrganismos e parasitas infecciosos vivos e 1. Tuberculose (A15-A19.-)
seus produtos tóxicos (exposição ocupacional ao 2. Carbúnculo (A22.-)
agente e/ou transmissor da doença, em profissões 3. Brucelose (A23.-)
e/ou condições de trabalho especificadas) 4. Leptospirose (A27.-)
5. Tétano (A35.-)
6. Psitacose, omitose, doença dos tratadores de aves (A70.-)
7. Dengue (A90.-)
488 • CAPITULO 21 lnfortunística

AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DOENCAS CAUSALMENTE RELACIONADAS COM OS RESPECTIVOS AGENTES
DE NATUREZA OCUPACIONAL OU FAtORES DE RISCO (DENOMINADAS ECODIFICADAS SEGUNDO ACID-10)
'XX'J - Microrganismos e parasitas infecciosos vivos e 8. Febre amarela (A95.-)
seus produtos tóxicos (exposição ocupacional ao 9. Hepatites virais (815-819.-)
agente e/ou transmissor da doença, em profissões 10. Doença pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) (820-824.-)
e/ou condições de trabalho especificadas) (cont.) 11. Dermatofitose (835.-) e outras micoses superficiais (836.-)
12. Paracoccidioidomicose (blastomicose sul-americana, blastomicose brasileira,
doença de Lutz) (841. -)
13. Malária (850-854.-)
14. Leishmaniose cutânea (855.1) ou leishmaniose cutaneomucosa (855.2)
15. Pneumonite por hipersensibilidade a poeira orgânica (J67.-): pulmão do granjeiro
(ou pulmão do fazendeiro) (J67.0); bagaçose (J67.1); pulmão dos criadores de
pássaros (J67.2); suberose (J67.3); pulmão dos trabalhadores de malte (J67.4);
pulmão dos que trabalham com cogumelos (J67.5); doença pulmonar devida a
sistemas de ar condicionado e de umidificação do ar (J67.7); pneumonites de
hipersensibilidade devidas a outras poeiras orgânicas (J67.8); pneumonite de
hipersensibilidade devida a poeira orgânica não especificada (alveolite alérgica
extrínseca SOE; pneumonite de hipersensibilidade SOE) (J67.0)
16. "Dermatoses pápulo-pustulosas e suas complicações infecciosas" (L08.9)
Wl - Algodão, linho, cânhamo, sisai 1. Outras rinites alérgicas (J30.3)
2. Outras doenças pulmonares obstrutivas crónicas (inclui "asma obstrutiv",
"bronquite crónica", "bronquite obstrutiva crónica") (J44.-)
3. Asma (J45.-)
4. 8issinose (J66.0)
Wll - Agentes físicos, químicos ou biológicos, que 1. "Dermatoses pápulo-pustulosas e suas complicações infecciosas" (L08.9)
afetam a pele, não considerados em outras rubricas 2. Dermatite alérgica de contato (L23. -)
3. Dermatite de contato por irritantes (L24. -)
4. Urticária alérgica (L50.0)
5. "Urticária física" (devida ao calor e ao frio) (L50.2)
6. Urticária de contato (L50.6)
7. Queimadura solar (L55)
8. Outras alterações agudas da pele devidas a radiação ultravioleta (L56.-): dermatite
por fotocontato (dermatite de 8erloque) (L56.2); urticária solar (L56.3); outras
alterações agudas especificadas da pele devidas a radiação ultravioleta (L56.8);
outras alterações agudas da pele devidas a radiação ultravioleta, sem outra
especificação (L56.9)
9. Alterações da pele devidas a exposição crónica a radiação não ionizante (L57.-):
ceratose actínica (L57 .O); outras alterações: dermatite solar, "pele de fazendeiro" ,
"pele de marinheiro" (L57.8)
1O. "Cloracne" (L70.8)
11. "Elaioconiose" ou "dermatite folicular" (L72.8)
12. Outras formas de hiperpigmentação pela melanina: "melanodermia" (L81.4)
13. Leucodermia, não classificada em outra parte (inclui "vitiligo ocupacional") (L81.5)
14. Úlcera crónica da pele, não classificada em outra parte (L98.4)
15. Geladura (frostbite) superficial: eritema pémio (T33) (frio)
16. Geladura (frostbite) com necrose de tecidos (T34) (frio)

LISTA B (Redação dada pelo Decreto n~ 6.957, de 2009)


DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS RELACIONADAS COM O TRABALHO (Grupo 1 da CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
! - Tuberculose (A15-A19.-) Exposição ocupacional ao Mycobacterium tubercu/osis (bacilo de Koch) ou
Mycobacterium bovis, em atividades em laboratórios de biologia, e atividades
realizadas por pessoal de saúde, que propiciam contato direto com produtos
contaminados ou com doentes cujos exames bacteriológicos são positivos (Z57.8)
(Quadro XXV)
Hipersuscetibilidade do trabalhador exposto a poeiras de sílica (sílico-tuberculose)
(J65.-)
CAPITULO 21 lnfortunística • 489

DOENÇAS AGENTES ETIOLóGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL


li - Carbúnculo (A22.-) Zoonose causada pela exposição ocupacional ao Bacil/us anthracis, em atividades
suscetíveis de colocar os trabalhadores em contato direto com animais infectados
ou com cadáveres desses animais; trabalhos artesanais ou industriais com pelos,
pele, couro ou lã (Z57.8) (Quadro XXV)
Ili - Brucelose (A23.-) Zoonose causada pela exposição ocupacional a Bruce/la me/itensis, B. abortus,
B. suis, B. canis etc., em atividades em abatedouros, frigoríficos, manipulação de
produtos de carne; ordenha e fabricação de laticínios e atividades assemelhadas
(Z57.8) (Quadro XXV)
IV - Leptospirose (A27. -) Exposição ocupacional a Leptospira icterohaemorrhagiae (e outras espécies), em
trabalhos expondo ao contato direto com águas sujas, ou efetuado em locais
suscetíveis de serem sujos por dejetos de animais portadores de germes; trabalhos
efetuados dentro de minas, túneis, galerias, esgotos em locais subterrâneos; trabalhos
em cursos d'água; trabalhos de drenagem; contato com roedores; trabalhos com
animais domésticos, e com gado; preparação de alimentos de origem animal, de
peixes, de laticínios etc. (Z57 .8) (Quadro XXV)
V - Tétano (A35.-) Exposição ao Clostridium tetani, em circunstâncias de acidentes do trabalho na
agricultura, na construção civil, na indústria, ou em acidentes de trajeto (Z57.8)
(Quadro XXV)
V1 - Psitacose, ornitose, doença dos tratadores de Zoonoses causadas pela exposição ocupacional a Chlamydia psittaci ou
aves (A70.-) Chlamydia pneumoniae, em trabalhos em criadouros de aves ou pássaros,
atividades de veterinária, em zoológicos, e em laboratórios biológicos etc. (Z57.8)
(Quadro XXV)
Vll - Dengue [dengue clássico] (A90.-) Exposição ocupacional ao mosquito (Aedes aegypt~, transmissor do arbovírus da
dengue, principalmente em atividades em zonas endêmicas, em trabalhos de
saúde pública, e em trabalhos de laboratórios de pesquisa, entre outros (Z57.8)
(Quadro XXV)
VIII - Febre amarela (A95.-) Exposição ocupacional ao mosquito (Aedes aegyptt), transmissor do arbovírus da
febre amarela, principalmente em atividades em zonas endêmicas, em trabalhos de
saúde pública, e em trabalhos de laboratórios de pesquisa, entre outros (Z57.8)
(Quadro XXV)
IX - Hepatites virais (B15-B19.-) Exposição ocupacional ao vírus da hepatite A (HAV); vírus da hepatite B (HBV); vírus
da hepatite e (HCV); vírus da hepatite D (HDV); vírus da hepatite E (HEV), em
trabalhos envolvendo manipulação, acondicionamento ou emprego de sangue
humano ou de seus derivados; trabalho com "águas usadas" e esgotos; trabalhos
em contato com materiais provenientes de doentes ou objetos contaminados por
eles (Z57.8) (Quadro XXV)
X - Doença pelo vírus da imunodeficiência humana Exposição ocupacional ao vírus da imunodeficiência humana (HIV), principalmente em
(HIV) (B20-B24.-) trabalhadores da saúde, em decorrência de acidentes perfurocortantes com
agulhas ou material cirúrgico contaminado, e na manipulação, no
acondicionamento ou emprego de sangue ou de seus derivados, e contato com
materiais provenientes de pacientes infectados (Z57.8) (Quadro XXV)
XI - Dermatofitose (835.-) e outras micoses Exposição ocupacional a fungos do gênero Epidermophyton, Microsporum e
superficiais (836.-) Trichophyton, em trabalhos em condições de temperatura elevada e umidade
(cozinhas, ginásios, piscinas) e outras situações específicas de exposição
ocupacional (Z57.8) (Quadro XXV)
XII - Candidíase (837.-) Exposição ocupacional a Candida albicans, Candida glabrata etc., em trabalhos que
requerem longas imersões das mãos em água e irritação mecânica das mãos, tais
como trabalhadores de limpeza, lavadeiras, cozinheiras, entre outros (Z57.8)
(Quadro XXV)
XIII - Paracoccidioidomicose (blastomicose Exposição ocupacional ao Paracoccidioides brasiliensis, principalmente em trabalhos
sul-americana, blastomicose brasileira, doença de Lutz) agrícolas ou florestais e em zonas endêmicas (Z57.8) (Quadro XXV)
(841.-)
490 • CAPITULO 21 lnfortunística

DOENÇAS AGENTES mOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL


XIV - Malária (B50-B54.-) Exposição ocupacional ao Plasmodium malariae; Plasmodium vivax;
Plasmodium falciparum ou outros protozoários, principalmente em atividades de
mineração, construção de barragens ou rodovias, em extração de petróleo e outras
atividades que obrigam a entrada dos trabalhadores em zonas endêmicas (Z57.8)
(Quadro XXV)
XV - Leishmaniose cutânea (855.1) ou leishmaniose Exposição ocupacional à Leishmania braziliensis, principalmente em trabalhos
cutaneomucosa (855.2) agrícolas ou florestais e em zonas endêmicas, e outras situações específicas de
exposição ocupacional (Z57.8) (Quadro XXV)
Nota:
1. As doenças e os respectivos agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional listados são exemplificativos e complementares.

NEOPLASIAS (TUMORES) RELACIONADOS COM O TRABALHO


(GRUPO li DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES mOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Neoplasia maligna do estômago (C16.-) Asbesto ou amianto (X49.-; Z57.2) (Quadro li)
li -Angiossarcoma do fígado (C22.3) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X48.-; X49.-; Z57.5) (Quadro 1)
2. Cloreto de vinila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
Ili - Neoplasia maligna do pâncreas (C25.-) 1. Cloreto de vinila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
2. Epicloridrina (X49.-; Z57.5)
3. Hidrocarbonetos alifáticos e aromáticos na indústria do petróleo (X46.-; Z57.5)
IV - Neoplasia maligna da cavidade nasal e dos seios 1. Radiações ionizantes (W88. -; Z57 .1) (Quadro XXIV)
paranasais (C30-C31.-) 2. Níquel e seus compostos (X49.-; Z57.5)
3. Poeiras de madeira e outras poeiras orgânicas da indústria do mobiliário
(X49.-; Z57.2)
4. Poeiras da indústria do couro (X49.-; Z57.2)
5. Poeiras orgânicas (na indústria têxtil e em padarias) (X49.-; Z57.2)
6. Indústria do petróleo (X46.-; Z57.5)
V - Neoplasia maligna da laringe (C32.-) Asbesto ou amianto (Z57.2) (Quadro li)
VI - Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X48.-; X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
(C34.-) 2. Asbesto ou amianto (X49.-; Z57.2) (Quadro li)
3. Berílio (X49.-; Z57.5) (Quadro IV)
4. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
5. Cromo e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro X)
6. Cloreto de vinila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
7. Clorometil éteres (X49.-; Z57.5) (Quadro XIII)
8. Sílica-livre (Z57.2) (Quadro XVIII)
9. Alcatrão, breu, betume, hulha mineral, parafina e produtos de resíduos dessas
substâncias (X49.-; Z57.5) (Quadro XX)
10. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
11. Emissões de fornos de coque (X49.-; Z57.5)
12. Níquel e seus compostos (X49.-; Z57.5)
13. Acrilonitrila (X49.-; Z57.5)
14. Indústria do alumínio (fundições) (X49.-; Z57.5)
15. Neblinas de óleos minerais (óleo de corte) (X49.-; Z57.5)
16. Fundições de metais (X49.-; Z57.5)
VII - Neoplasia maligna dos ossos e cartilagens Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
articulares dos membros (inclui "sarcoma ósseo")
(C40.-)
VIII - Outras neoplasias malignas da pele (C44.-) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Alcatrão, breu, betume, hulha mineral, parafina e produtos de resíduos dessas
substâncias causadores de epiteliomas da pele (X49.-; Z57.5) (Quadro XX)
3. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
4. Radiações ultravioletas (W89; Z57 .1)
CAPITULO 21 lnfortunística • 491

DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL


IX - Mesotelioma (C45.-): mesotelioma da pleura Asbesto ou amianto (X49.-; Z57.2) (Quadro li)
(C45.0), mesotelioma do peritônio (C45.1) e
mesotelioma do pericárdio (C45.2)
X - Neoplasia maligna da bexiga (C67.-) 1. Alcatrão, breu, betume, hulha mineral, parafina e produtos de resíduos dessas
substâncias (X49.-; Z57.5) (Quadro XX)
2. Aminas aromáticas e seus derivados (beta-naftilamina, 2-cloroanilina, benzidina,
o-toluidina, 4-cloro-orto-toluidina (X49.-; Z57.5)
3. Emissões de fomos de coque (X49.-; Z57.5)
XI - Leucemias (C91-C95. -) 1. Benzeno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
2. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
3. Óxido de etileno (X49.-; Z57.5)
4. Agentes antineoplásicos (X49.-; Z57.5)
5. Campos eletromagnéticos (W90.-; Z57.5)
6. Agrotóxicos clorados (clordane e heptaclor) (X48.-; Z57.4)

DOENÇAS DO SANGUE E DOS ÓRGÃOS HEMATOPOIÉTICOS RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO Ili DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ErlOLóGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Síndromes mielodisplásicas (D46.-) 1. Benzeno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
2. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
li - Outras anemias devidas a transtornos enzimáticos Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
(D55.8)
Ili - Anemia hemolítica adquirida (D59.2) Derivados nitrados e aminados do benzeno (X46.-; Z57.5)
IV - Aplástica devida a outros agentes externos (D61.2) 1. Benzeno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
2. Radiações ionizantes (W88.-) (Quadro XXIV)
V - Anemia aplástica não especificada, anemia 1. Benzeno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
hipoplástica SOE, hipoplasia medular (D61.9) 2. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
VI - Anemia sideroblástica secundária a toxinas (inclui Chumbo ou seus compostos tóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro VIII)
"anemia hipocrômica, microcítica, com reticulocitose")
(D64.2)
VII - Púrpura e outras manifestações hemorrágicas 1. Benzeno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
(D69.-) 2. Cloreto de vinila (X46.-) (Quadro XIII)
3. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
VIII -Agranulocitose (neutropenia tóxica) (D70) 1. Benzeno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
2. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
3. Derivados do fenol, pentaclorofenol, hidroxibenzonitrilo (X49.-; XZ57.5)
IX - Outros transtornos especificados dos glóbulos 1. Benzeno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
brancos: leucocitose, reação leucemoide (D72.8) 2. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
X - Metemoglobinemia (D74.-) Aminas aromáticas e seus derivados (X49.-; Z57.5)

DOENÇAS ENDÓCRINAS, NUTRICIONAIS E METABÓLICAS RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO IV DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Hipotireoidismo devido a substâncias exógenas 1. Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
(E03.-) 2. Hidrocarbonetos halogenados (clorobenzeno e seus derivados) (X46.-; Z57.5)
(Quadro XIII)
3. nouracil (X49.-; Z57.5)
4. Tiocinatos (X49.-; Z57.5)
5. noureia (X49.-; Z57.5)
li - Outras porfirias (E.80.2) Clorobenzeno e seus derivados (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
492 • CAPITULO 21 lnfortunística

TRANSTORNOS MENTAIS E 00 COMPORTAMENTO RELACIONADOS COM O TRABALHO


(GRUPO V DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Demência em outras doenças específicas 1. Manganês X49.-; Z57.5) (Quadro YYJ
classificadas em outros locais (F02.8) 2. Substâncias asfixiantes: CO, H2S etc. (sequela) (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
3. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
li - Delirium, não sobreposto a demência, como descrita 1. Brometo de metila (X46. -; Z57 .4 e Z57 .5) (Quadro XIII)
(F05.0) 2. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
Ili - Outros transtornos mentais decorrentes de lesão e 1. Tolueno e outros solventes aromáticos neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
disfunção cerebrais e de doença física (F06.-): transtorno 2. Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
cognitivo leve (F06. 7) 3. Tricloroetileno, tetracloroetileno, tricloroetano e outros solventes orgânicos
halogenados neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
4. Brometo de metila (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
5. Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro YYJ
6. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
7. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
8. Outros solventes orgânicos neurotóxicos (X46.-; X49.-; Z57.5)
IV - Transtornos de personalidade e de comportamento 1. Tolueno e outros solventes aromáticos neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
decorrentes de doença, lesão e de disfunção de 2. Tricloroetileno, tetracloroetileno, tricloroetano e outros solventes orgânicos
personalidade (F07.-): transtorno orgânico de halogenados neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
personalidade (F07.0); outros transtornos de 3. Brometo de metila (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
personalidade e de comportamento decorrentes de 4. Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro YYJ
doença, lesão ou disfunção cerebral (F07.8) 5. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
6. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
7. Outros solventes orgânicos neurotóxicos (X46.-; X49.-; Z57.5)
V - Transtorno mental orgânico ou sintomático não 1. Tolueno e outros solventes aromáticos neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
especificado (F09.-) 2. Tricloroetileno, tetracloroetileno, tricloroetano e outros solventes orgânicos
halogenados neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
3. Brometo de metila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
4. Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro YYJ
5. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
6. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
7. Outros solventes orgânicos neurotóxicos (X46.-; X49.-; Z57.5)
VI - Transtornos mentais e comportamentais devidos 1. Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego: condições difíceis
ao uso do álcool: alcoolismo crônico (relacionado com de trabalho (Z56.5)
o trabalho) (F10.2) 2. Circunstância relativa às condições de trabalho (Y96)
VII - Episódios depressivos (F32.-) 1. Tolueno e outros solventes aromáticos neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
2. Tricloroetileno, tetracloroetileno, tricloroetano e outros solventes orgânicos
halogenados neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
3. Brometo de metila (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
4. Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro YYJ
5. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
6. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
7. Outros solventes orgânicos neurotóxicos (X46.-; X49.-; Z57.5)
VIII - Reações ao estresse grave e transtornos de 1. Outras dificuldades físicas e mentais relacionadas com o trabalho: reação
adaptação (F43. -): estado de estresse pós-traumático após acidente do trabalho grave ou catastrófico, ou após assalto no trabalho
(F43.1) (Z56.6)
2. Circunstância relativa às condições de trabalho (Y96)
IX - Neurastenia (inclui "síndrome de fadiga") (F48.0) 1. Tolueno e outros solventes aromáticos neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
2. Tricloroetileno, tetracloroetileno, tricloroetano e outros solventes orgânicos
halogenados (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
3. Brometo de metila (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
4. Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro YYJ
5. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
6. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
7. Outros solventes orgânicos neurotóxicos (X46.-; X49.-; Z57.5)
CAPITULO 21 lnfortunística • 493

DOENÇAS AGENlES ETIOl.ÓGICOS OU FATOIES DE RISCO IE NATUREZA OCUPACIONAL


X - Outros transtornos neuróticos especificados (inclui Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego (Z56.-): desemprego
"neurose profissional") (F48.8) (Z56.0); mudança de emprego (Z56.1); ameaça de perda de emprego (Z56.2); ritmo
de trabalho penoso (Z56.3); desacordo com patrão e colegas de trabalho (condições
difíceis de trabalho) (Z56.5); outras dificuldades físicas e mentais relacionadas com o
trabalho (Z56.6)
XI - Transtorno do ciclo vigília-sono devido a fatores 1. Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego: má adaptação à
não orgânicos (F51.2) organização do horário de trabalho (trabalho em turnos ou trabalho noturno) (Z56.6)
2. Circunstância relativa às condições de trabalho (Y96)
XII - Sensação de estar acabado (síndrome de 1. Ritmo de trabalho penoso (Z56.3)
bum-out, síndrome do esgotamento profissional) 2. Outras dificuldades físicas e mentais relacionadas com o trabalho (Z56.6)
(Z73.0)

DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO VI DA CID-10)
DOENÇAS AGENlES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Ataxia cerebelosa (G11.1) Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
li - Parkisonismo secundário devido a outros agentes Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XV)
externos (G21.2)
Ili - Outras formas especificadas de tremor (G25.2) 1. Brometo de metila (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
2. Tetracloroetano (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
3. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
4. Outros solventes orgânicos neurotóxicos (X46. -; X49. -; Z57 .5)
IV - Transtorno extrapiramidal do movimento não 1. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
especificado (G25.9) 2. Cloreto de metileno (diclorometano) e outros solventes halogenados neurotóxicos
(X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
V - Distúrbios do ciclo vigília-sono (G47.2) Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego: má adaptação
à organização do horário de trabalho (trabalho em turnos ou trabalho noturno)
(Z56.6)
VI - Transtornos do nervo trigêmeo (G50.-) Tricloroetileno e outros solventes halogenados neurotóxicos (X46.-; Z57.5)
(Quadro XIII)
VII - Transtornos do nervo olfatório (G52.0) (inclui 1. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
"anosmia") 2. Sulfeto de hidrogênio (X49.-; Z57.5) (Quadro XVII)
VIII -Transtornos do plexo braquial (síndrome da saída Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57.8)
do tórax, síndrome do desfiladeiro torácico) (G54.0)
IX - Mononeuropatias dos membros superiores (G56.-): Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57.8)
síndrome do túnel do carpo (G56.0); outras lesões do
nervo mediano: síndrome do pronador redondo (G56.1);
síndrome do canal de Guyon (G56.2); lesão do nervo
cubital (ulnar): síndrome do túnel cubital (G56.2); lesão
do nervo radial (G56.3); outras mononeuropatias dos
membros superiores: compressão do nervo
supraescapular (G56.8)
X - Mononeuropatias do membro inferior (G57.-): Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57.8)
lesão do nervo poplíteo lateral (G57.3)
XI - Polineuropatia devida a outros agentes tóxicos 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
(G62.2) 2. Chumbo e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
3. Fósforo (X48.-; X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XII)
4. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
5. n-Hexano (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
6. Metil-n-butil cetona (MBK) (X46.-; Z57.5)
XII - Polineuropatia induzida pela radiação (G62.8) Radiações ionizantes (X88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
494 • CAPITULO 21 lnfortunística

DOENÇAS AGENTES ETIOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUIEZA OCll'ACIONAL


XIII - Encefalopatia tóxica aguda (G92.1) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Chumbo e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
3. Hidrocarbonetos alifáticos ou aromáticos (seus derivados halogenados
neurotóxicos) (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
4. Mercúrio e seus derivados tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
XIV - Encefalopatia tóxica crônica (G92.2) 1. Tolueno e xileno (X46.-; Z57.5) (Quadro Ili)
2. Chumbo e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
3. Solventes orgânicos halogenados neurotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
4. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XVI)
5. Substâncias asfixiantes: CO, H2S etc. (sequela) (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
6. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)

DOENÇAS DO OLHO E ANEXOS RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO VII DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Blefarite (H01.0) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
3. Cimento (X49.-; Z57.2)
li - Conjuntivite (H1 O) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Berílio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro IV)
3. Flúor e seus compostos tóxicos (X49.-) (Quadro XI)
4. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
5. Cloreto de etila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
6. Tetracloreto de carbono (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
7. Outros solventes halogenados tóxicos (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
8. Ácido sulfídrico (sulfeto de hidrogênio) (X49.-; Z57.5) (Quadro XVII)
9. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
1O. Radiações ultravioletas (W89; Z57 .1
11. Acrilatos (X49.-; Z57.5)
12. Cimento (X49.-; Z57.2)
13. Enzimas de origem animal, vegetal ou bacteriana (X44.-; Z57.2)
14. Furfural e álcool furfurílico (X45.-; Z57.5)
15. lsocianatos orgânicos (X49.-; Z57.5)
16. Selênio e seus compostos (X49.-; Z57.5)
Ili - Queratite e queratoconjuntivite (H 16) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Ácido sulfídrico (sulfeto de hidrogênio) (X49.-; Z57.5) (Quadro XVII)
3. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
4. Radiações infravermelhas (W90.-; Z57.1)
5. Radiações ultravioletas (W89.-; Z57.1)
IV - Catarata (H28) 1. Radiações ionizantes (W88. -; Z57 .1) (Quadro XXIV)
2. Radiações infravermelhas (W90.-; Z57.1)
V - Inflamação coriorretiniana (H30) Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XV)
VI - Neurite óptica (H46) 1. Brometo de metila (X46. -; Z57 .4 e Z57 .5) (Quadro XIII)
2. Cloreto de metileno (diclorometano) e outros solventes clorados neurotóxicos
(X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
3. Tetracloreto de carbono (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
4. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
5. Metanol (X45.-; Z57.5)
VII - Distúrbios visuais subjetivos (H53.-) 1. Brometo de metila (X46. -; Z57.4 e Z57 .5) (Quadro XIII)
2. Cloreto de metileno e outros solventes clorados neurotóxicos (X46.-; Z57.5)
(Quadro XIII)
CAPITULO 21 lnfortunística • 495

DOENÇAS DO OUVIDO RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO VIII DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Otite média não supurativa (H65.9) 1. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
2. Pressão atmosférica inferior à pressão-padrão (W94. -; Z57 .8)
li - Perfuração da membrana do tímpano 3. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
(H72 ou S09.2) 4. Pressão atmosférica inferior à pressão-padrão (W94.-; Z57.8)
Ili - Outras vertigens periféricas (H81.3) Cloreto de metileno e outros solventes halogenados tóxicos (X46.-; Z57.5)
(Quadro XIII)
IV - Labirintite (H83.0) 1. Brometo de metila (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
2. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
V - Efeitos do ruído sobre o ouvido interno/perda da Exposição ocupacional ao ruído (Z57.0; W42.-) (Quadro XXI)
audição provocada pelo ruído e trauma acústico
(H83.3)
VI - Hipoacusia ototóxica (H91.0) 1. Homólogos do benzeno otoneurotóxicos (tolueno e xileno) (X46.-; Z57.5)
(Quadro Ili)
2. Solventes orgânicos otoneurotóxicos (X46.-; Z57.8) (Quadro XIII)
VII - Otalgia e secreção auditiva (H92.-): otalgia "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
(H92.0), otorreia (H92.1) ou otorragia (H92.2)
VIII - Outras percepções auditivas anormais: alteração Exposição ocupacional ao ruído (Z57.0; X42.-) (Quadro XXI)
temporária do limiar auditivo, comprometimento da
discriminação auditiva e hiperacusia (H93.2)
IX - Outros transtornos especificados do ouvido (H93.8) 1. Brometo de metila (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
2. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
X - Otite barotraumática (T?O.O) 1. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
2. Alterações na pressão atmosférica ou na pressão da água no ambiente
(W94.-; Z57.8)
XI - Sinusite barotraumática (T70.1) 1. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
2. Alterações na pressão atmosférica ou na pressão da água no ambiente (W94.-)
XII - "Mal dos caixões" (doença de descompressão) 1. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
(T70.4) 2. Alterações na pressão atmosférica ou na pressão da água no ambiente
(W94.-; Z57.8)
XIII - Síndrome devida ao deslocamento de ar de uma 1. "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
explosão (T70.8) 2. Alterações na pressão atmosférica ou na pressão da água no ambiente
(W94.-; Z57.8)

DOENÇAS DO SISTEMA CIRCULATÓRIO RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO IX DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOLOOICOS OU FATOIES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Hipertensão arterial (110.-) 1. Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
2. Exposição ocupacional ao ruído (Z57.0; X42.-) (Quadro XXI)
3. Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego (Z56.-)
li -Angina pectoris (120.-) 1. Monóxido de carbono (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
2. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
3. Nitroglicerina e outros ésteres do ácido nítrico (X49.-; Z57.5)
4. Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego (Z56.-)
Ili - lnfarto agudo do miocárdio (121.-) 1. Monóxido de carbono (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
2. Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
3. Nitroglicerina e outros ésteres do ácido nítrico (X49.-; Z57.5)
4. Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego (Z56.-)
IV - Cor pulmonale, SOE ou doença cardiopulmonar Complicação evolutiva das pneumoconioses graves, principalmente silicose (Z57.2)
crónica (127.9) (Quadro XVIII)
496 • CAPITULO 21 lnfortunística

DOENÇAS AGENlES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RBCO DE NATUREZA OCUPACIONAL


V - Placas epicárdicas ou pericárdicas (134.8) Asbesto ou amianto (W83.-; Z57.2) (Quadro li)
VI - Parada cardíaca (146.-) 1. Derivados halogenados dos hidrocarbonetos alifáticos (X46.-) (Quadro XIII)
2. Monóxido de carbono (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
3. Outros agentes potencialmente causadores de arritmia cardíaca (Z57.5)
VII -Arritmias cardíacas (149.-) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.5) (Quadro 1)
2. Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
3. Derivados halogenados dos hidrocarbonetos alifáticos (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
4. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XVI)
5. Monóxido de carbono (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
6. Agrotóxicos organofosforados e carbamatos (X48; Z57.4) (Quadros XII e XXVII)
7. Exposição ocupacional a cobalto (X49.-; Z57.5)
8. Nitroglicerina e outros ésteres do ácido nítrico (X49.-; Z57.5)
9. Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego (Z56.-)
VIII - Aterosderose Q70. -) e doença aterosclerótica do Sulfeto de carbono (X49.-; Z57.5) (Quadro XIX)
coração (125.1)
IX - Síndrome de Raynaud (173.0) 1. Cloreto de vinila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
3. Trabalho em baixas temperaturas (frio) (W93.-; Z57.6)
X - Acrocianose e acroparestesia (173.8) 1. Cloreto de vinila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
3. Trabalho em baixas temperaturas (frio) (W93.-; Z57.6)

DOENÇAS DO SISTEMA RESPIRATÓRIO RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO X DA CID-10)
DOENÇAS AGENlES ETIOLOOICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Faringite aguda não especificada ("angina aguda", 1. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
"dor de garganta") (J02.9) 2. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
li - Laringotraqueíte aguda (J04.2) 1. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
2. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
Ili - Outras rinites alérgicas (J30.3) 1. Carbonetos metálicos de tungstênio sinterizados (X49. -; Z57 .2 e Z57 .5)
(Quadro VII)
2. Cromo e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro X)
3. Poeiras de algodão, linho, cânhamo ou sisai (Z57.2) (Quadro XXVI)
4. Acrilatos (X49.-; Z57.5)
5. Aldeído fórmico e seus polímeros (X49.-; Z57.5)
6. Aminas aromáticas e seus derivados (X49.-; Z57.5)
7. Anidrido ftálico (X49.-; Z57.5)
8. Azodicarbonamida (X49.-; Z57.5)
9. Carbetos de metais duros: cobalto e titânio (Z57.2)
10. Enzimas de origem animal, vegetal ou bacteriano (X44.-; Z57.3)
11. Furfural e álcool furfurílico (X45.-; Z57.5)
12. lsocianatos orgânicos (X49.-; Z57.5)
13. Níquel e seus compostos (X49.-; Z57.5)
14. Pentóxido de vanádio (X49.-; Z57.5)
15. Produtos da pirólise de plásticos, cloreto de vinila, teflon (X49.-; Z57.5)
16. Sulfitos, bissulfitos e persulfatos (X49.-; Z57.5)
17. Medicamentos: macrolídeos; ranitidina; penicilina e seus sais; cefalosporinas
(X44.-; Z57.3)
18. Proteínas animais em aerossóis (Z57.3)
19. Outras substâncias de origem vegetal (cereais, farinhas, serragem etc.) (Z57 .2)
20. Outras substâncias químicas sensibilizantes da pele e das vias respiratórias
(X49.-; Z57.2) (Quadro XXVII)
IV - Rinite crônica (J31.0) 1. Arsênico e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Cloro gasoso (X47.-; Z57.5) (Quadro IX)
CAPITULO 21 lnfortunística • 497

DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL


IV - Rinite crônica (J31.0) (cont.) 3. Cromo e seus compostos tóxicos (X49.-) (Quadro X)
4. Gás de flúor e fluoreto de hidrogênio (X47.-; Z57.5) (Quadro XI)
5. Amônia (X47.-; Z57.5)
6. Anidrido sulfuroso (X49.-; Z57.5)
7. Cimento (Z57.2)
8. Fenol e homólogos (X46.-; Z57.5)
9. Névoas de ácidos minerais (X47.-; Z57.5)
10. Níquel e seus compostos (X49.-; Z57.5)
11. Selênio e seus compostos (X49.-; Z57.5)
V - Faringite crônica (J31.2) Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
V1 - Sinusite crônica (J32. -) 1. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
2. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
Vll - Ulceração ou necrose do septo nasal (J34.0) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
3. Cromo e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro X)
4. Soluções e aeroessóis de ácido cianídrico e seus derivados (X47.-; Z57.5)
(Quadro XVII)
VIII - Perfuração do septo nasal (J34.8) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Cromo e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro X)
IX - Laringotraqueíte crônica (J37 .1) Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
X- Outras doenças pulmonares obstrutivas crônicas 1. Cloro gasoso (X47.-; Z57.5) (Quadro IX)
(inclui: "asma obstrutiva", "bronquite crônica", 2. Exposição ocupacional à poeira de sílica livre (Z57.2-) (Quadro XVIII)
"bronquite asmática", "bronquite obstrutiva crônica") 3. Exposição ocupacional a poeiras de algodão, linho, cânhamo ou sisai (Z57.2)
(J44.-) (Quadro XXVI)
4. Amônia (X49.-; Z57.5)
5. Anidrido sulfuroso (X49.-; Z57.5)
6. Névoas e aerossóis de ácidos minerais (X47.-; Z57.5)
7. Exposição ocupacional a poeiras de carvão mineral (Z57.2)
XI -Asma (J45.-) Mesma lista das substâncias sensibilizantes produtoras de rinite alérgica
(X49.-; Z57.2, Z57.4 e Z57.5)
XII - Pneumoconiose dos trabalhadores do carvão 1. Exposição ocupacional a poeiras de carvão mineral (Z57.2)
(J60.-) 2. Exposição ocupacional a poeiras de sílica-livre (Z57.2) (Quadro XVIII)
XIII - Pneumoconiose devida ao asbesto (asbestose) Exposição ocupacional a poeiras de asbesto ou amianto (Z57.2) (Quadro li)
e a outras fibras minerais (J61. -)
XIV - Pneumoconiose devida à poeira de sílica Exposição ocupacional a poeiras de sílica-livre (Z57.2) (Quadro XVIII)
(silicose) (J62.8)
XV - Beriliose (J63.2) Exposição ocupacional a poeiras de berílio e seus compostos tóxicos (Z57.2)
Quadro IV)
XVI - Siderose (J63.4) Exposição ocupacional a poeiras de ferro (Z57.2)
XVII - Estanhose (J63.5) Exposição ocupacional a poeiras de estanho (Z57.2)
XVIII - Pneumoconiose devida a outras poeiras 1. Exposição ocupacional a poeiras de carboneto de tungstênio (Z57.2)
inorgânicas especificadas (J63.8) (Quadro Vll)
2. Exposição ocupacional a poeiras de carbetos de metais duros (cobalto, titânio etc.)
(Z57.2)
3. Exposição ocupacional a rocha fosfática (Z57.2)
4. Exposição ocupacional a poeiras de alumina (A1p3) ("doença de Shaver")
(Z57.2)
XIX - Pneumoconiose associada a tuberculose Exposição ocupacional a poeiras de sílica-livre (Z57.2) (Quadro XVIII)
("sílico-tuberculose") (J65. -)
XX - Doenças das vias aéreas devidas a poeiras Exposição ocupacional a poeiras de algodão, linho, cânhamo, sisai (Z57.2)
orgânicas (J66.-): bissinose (J66.0), devida a outras (Quadro XXVI)
poeiras orgânicas especificadas (J66.8)
498 • CAPITULO 21 lnfortunística

DOENÇAS AGENlES mOLOOICOS OU FBORES OE RISCO OE NBUREZA OCUPACIONAL


XXI - Pneumonite por hipersensibilidade a poeira 1. Exposição ocupacional a poeiras contendo microrganismos e parasitas infecciosos
orgânica (J67.-): pulmão do granjeiro (ou pulmão do vivos e seus produtos tóxicos (Z57.2) (Quadro XXV)
fazendeiro) (J67.0); bagaçose (J67.1); pulmão dos 2. Exposição ocupacional a outras poeiras orgânicas (Z57.2)
criadores de pássaros (J67.2); suberose (J67.3);
pulmão dos trabalhadores de malte (J67.4); pulmão
dos que trabalham com cogumelos (J67.5); doença
pulmonar devida a sistemas de ar condicionado e de
umidificação do ar (J67.7); pneumonites de
hipersensibilidade devidas a outras poeiras orgânicas
(J67.8); pneumonite de hipersensibilidade devida a
poeira orgânica não especificada (alveolite alérgica
extrínseca SOE; pneumonite de hipersensibilidade
SOE (J67.0)
XXII - Bronquite e pneumonite devida a produtos 1. Berílio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro IV)
químicos, gases, fumaças e vapores ("bronquite 2. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
química aguda") (J68.0) 3. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
4. Gás cloro (X47.-; Z57.5) (Quadro IX)
5. Flúor ou seus compostos tóxicos (X47.-; Z57.5) (Quadro XI)
6. Solventes halogenados irritantes respiratórios (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
7. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
8. Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XV)
9. Cianeto de hidrogênio (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
XXIII - Edema pulmonar agudo devido a produtos 1. Berílio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro IV)
químicos, gases, fumaças e vapores (edema pulmonar 2. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
químico) (J68.1) 3. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
4. Gás cloro (X47.-; Z57.5) (Quadro IX)
5. Flúor e seus compostos (X47.-; Z57.5) (Quadro XI)
6. Solventes halogenados irritantes respiratórios (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
7. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
8. Cianeto de hidrogênio (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
XXIV - Síndrome de disfunção reativa das vias aéreas 1. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
(SDVA/RADS) (J68.3) 2. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
3. Gás cloro (X47.-; Z57.5) (Quadro IX)
4. Solventes halogenados irritantes respiratórios (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
5. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
6. Cianeto de hidrogênio (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
7. Amônia (X49.-; Z57.5)
XXV - Afecções respiratórias crônicas devidas à 1. Arsênico e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
inalação de gases, fumos, vapores e substâncias 2. Berílio e seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro IV)
químicas: bronquiolite obliterante crônica, enfisema 3. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro V)
crônico difuso, fibrose pulmonar crônica (J68.4) 4. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
5. Gás cloro (X47.-; Z57.5) (Quadro IX)
6. Flúor e seus compostos (X47.-; Z57.5) (Quadro XI)
7. Solventes halogenados irritantes respiratórios (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
8. lodo (X49.-; Z57.5) (Quadro XIV)
9. Manganês e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XV)
10. Cianeto de hidrogênio (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
11. Ácido sulfídrico (sulfeto de hidrogênio) (X47.-; Z57.5) (Quadro XVII)
12. Carbetos de metais duros (X49.-; Z57.5)
13. Amônia (X49.-; Z57.5)
14. Anidrido sulfuroso (X49.-; Z57.5)
15. Névoas e aerossóis de ácidos minerais (X47.-; Z57.5)
16. Acrilatos (X49.-; Z57.5)
17. Selênio e seus compostos (X49.-; Z57.5)
XXVI - Pneumonite por radiação (manifestação aguda) 18. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
(J70.0) e fibrose pulmonar consequente a radiação
(manifestação crônica) (J70.1)
CAPITULO 21 lnfortunística • 499

DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL


XXVII - Derrame pleural (J90.-) Exposição ocupacional a poeiras de asbesto ou amianto (Z57.2)
(Quadro li)
XXVIII - Placas pleurais (J92.-) Exposição ocupacional a poeiras de asbesto ou amianto (Z57.2)
(Quadro li)
XXIX - Enfisema intersticial (J98.2) Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
XXX - Transtornos respiratórios em outras doenças 1. Exposição ocupacional a poeiras de carvão mineral (Z57.2)
sistêmicas do tecido conjuntivo classificadas em outra 2. Exposição ocupacional a poeiras de sílica livre (Z57.2) (Quadro XVIII)
parte (M05.3): "síndrome de Caplan" (J99.1)

DOENÇAS DO SISTEMA DIGESTIVO RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO XI DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ErlOLóGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1- Erosão dentária (K03.2) 1. Névoas de fluoretos ou seus compostos tóxicos (X47.-; Z57.5) (Quadro XI)
2. Exposição ocupacional a outras névoas ácidas (X47.-; Z57.5)
li - Alterações pós-eruptivas da cor dos tecidos duros 1. Névoas de cádmio ou seus compostos (X47.-; Z57.5) (Quadro VI)
dos dentes (K03.7) 2. Exposição ocupacional a metais: cobre, níquel, prata (X47.-; Z57.5)
Ili - Gengivite crónica (K05.1) Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XVI)
rJ - Estomatite ulcerativa crónica (K12.1) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.5) (Quadro 1)
2. Bromo (X49.-; Z57.5) (Quadro XII)
3. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XVI)
V - Gastroenterite e colite tóxicas (K52.-) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.5) (Quadro 1)
2. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
3. Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
VI - Outros transtornos funcionais do intestino Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
("síndrome dolorosa abdominal paroxística apirética,
com estado suboclusivo ("cólica do chumbo") (K59.8)
VII - Doença tóxica do fígado (K71.-): doença tóxica 1. Cloreto de vinila, clorobenzeno, tetracloreto de carbono, clorofórmio, e outros
do fígado, com necrose hepática (K71.1 ); doença solventes halogenados hepatotóxicos (X46.-; X48.-; Z57.4; Z57.5)
tóxica do fígado, com hepatite aguda (K71.2); (Quadro XIII)
doença tóxica do fígado com hepatite crónica 2. Hexaclorobenzeno (HCB) (X48.-; Z57.4 e Z57.5)
persistente (K71.3); doença tóxica do fígado com 3. Bifenilas policloradas (PCBs) (X49.-; Z57.4 e Z57.5)
outros transtornos hepáticos (K71.8) 4. Tetraclorodibenzodioxina (TCDD) (X49.-)
VIII - Hipertensão portal (K76.6) 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
2. Cloreto de vinila (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
3. Tório (X49.-; Z57.5)

DOENÇAS DA PELE E DO TECIDO SUBCUTÂNEO RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO XII DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
1 - Outras infecções locais da pele e do tecido 1. Cromo e seus compostos tóxicos (Z57.5) (Quadro X)
subcutâneo: "dermatoses pápulo-pustulosas e suas 2. Hidrocarbonetos alifáticos ou aromáticos (seus derivados tóxicos) (Z57.5)
complicações infecciosas" (L08.9) (Quadro XIII)
3. Microrganismos e parasitas infecciosos vivos e seus produtos tóxicos (Z57.5)
(Quadro XXV)
4. Outros agentes químicos ou biológicos que afetem a pele, não considerados em
outras rubricas (Z57 .5) (Quadro XXVII)
li - Dermatite alérgica de contato devida a metais 1. Cromo e seus compostos tóxicos (Z57.5) (Quadro X)
(L23.0) 2. Mercúrio e seus compostos tóxicos (Z57.5) (Quadro XVI)
Ili - Dermatite alérgica de contato devida a adesivos Adesivos, em exposição ocupacional (Z57.5) (Quadro XXVII)
(L23.1)
500 • CAPITULO 21 lnfortunística

DOENÇAS AGENIES ETIOLOOICOS OU Fll'ORES DE RISCO DE NmJREZA OCUPACIONAL


IV - Dermatite alérgica de cantata devida a Fabricação/manipulação de cosméticos (Z57.5) (Quadro XXVII)
cosméticos (fabricação/manipulação) (L23.2)
V - Dermatite alérgica de cantata devida a drogas em Drogas, em exposição ocupacional (Z57.5) (Quadro XXVII)
cantata com a pele (L23.3)
VI - Dermatite alérgica de cantata devida a corantes Corantes, em exposição ocupacional (Z57.5) (Quadro XXVII)
(L23.4)
VII - Dermatite alérgica de cantata devida a outros 1. Cromo e seus compostos tóxicos (Z57 .5) (Quadro X)
produtos químicos (L23.5) 2. Fósforo ou seus produtos tóxicos (Z57.5) (Quadro XII)
3. lodo (Z57.5) (Quadro XIV)
4. Alcatrão, breu, betume, hulha mineral, parafina ou resíduos dessas substâncias
(Z57.8) (Quadro XX)
5. Borracha (Z57.8) (Quadro XXVII)
6. Inseticidas (Z57.5) (Quadro XXVII)
7. Plásticos (Z57.8) (Quadro XXVII)
VIII - Dermatite alérgica de cantata devida a alimentos Fabricação/manipulação de alimentos (Z57.5) (Quadro XXVII)
em cantata com a pele (fabricação/manipulação)
(L23.6)
IX - Dermatite alérgica de cantata devida a plantas Manipulação de plantas, em exposição ocupacional (Z57.8) (Quadro XXVII)
(não inclui plantas usadas como alimentos) (L23.7)
X - Dermatite alérgica de cantata devida a outros Agentes químicos, não especificados anteriormente, em exposição ocupacional (Z57.5)
agentes (causa externa especificada) (L23.8) (Quadro XXVII)
XI - Dermatite de cantata por irritantes devida a Detergentes, em exposição ocupacional (Z57.5) (Quadro XXVII)
detergentes (L24.0)
XII - Dermatite de cantata por irritantes devida a óleos Óleos e gorduras, em exposição ocupacional (Z57.5) (Quadro XXVII)
e gorduras (L24.1)
XIII - Dermatite de cantata por irritantes devida a 1. Benzeno (X46. -; Z57 .5) (Quadro Ili)
solventes: cetonas, ciclo-hexano, compostos do cloro, 2. Hidrocarbonetos aromáticos ou alifáticos ou seus derivados halogenados tóxicos
ésteres, glicol, hidrocarbonetos (L24.2) (Z57.5) (Quadro XIII)
XIV - Dermatite de cantata por irritantes devida a 3. Cosméticos, em exposição ocupacional (Z57.5) (Quadro XXVII)
cosméticos (L24.3)
XV - Dermatite de cantata por irritantes devida a Drogas, em exposição ocupacional (Z57.5) (Quadro XXVII)
drogas em cantata com a pele (L24.4)
XVI - Dermatite de cantata por irritantes devida a 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (Z57 .5) (Quadro 1)
outros produtos químicos: arsênio, berílio, bromo, 2. Berílio e seus compostos tóxicos (Z57.5) (Quadro IV)
cromo, cimento, flúor, fósforo, inseticidas (L24.5) 3. Bromo (Z57.5) (Quadro V)
4. Cromo e seus compostos tóxicos (Z57.5) (Quadro X)
5. Flúor ou seus compostos tóxicos (Z57.5) (Quadro XI)
6. Fósforo (Z57.5) (Quadro XII)
XVII - Dermatite de cantata por irritantes devida a Alimentos, em exposição ocupacional (Z57.8) (Quadro XXVII)
alimentos em cantata com a pele (L24.6)
XVIII - Dermatite de cantata por irritantes devida a Plantas, em exposição ocupacional (Z57.8) (Quadro XXVII)
plantas, exceto alimentos (L24.7)
XIX - Dermatite de cantata por irritantes devida a Agentes químicos, não especificados anteriormente, em exposição ocupacional (Z57.5)
outros agentes: corantes (L24.8) (Quadro XXVII)
XX - Urticária alérgica (L50.0) Agrotóxicos e outros produtos químicos (X48.-; Z57.4 e Z57.5)
(Quadro XXVII)
XXI - Urticária devida ao calor e ao frio (L50.2) Exposição ocupacional a calor e frio (W92,-; W93.-; Z57.6)
(Quadro XXVII)
XXII - Urticária de cantata (L50.6) Exposição ocupacional a agentes químicos, físicos e biológicos que afetam a pele
(X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XXVII)
XXIII - Queimadura solar (L55) Exposição ocupacional a radiações actínicas (X32.-; Z57.1) (Quadro XXVII)
CAPITULO 21 lnfortunística • 501

DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL


XXIV - Outras alterações agudas da pele devidas a Radiação ultravioleta (W89.-; Z57.1) (Quadro XXVII)
radiação ultravioleta (L56.-): dermatite por fotocontato
(dermatite de Berloque) (L56.2); urticária solar (L56.3);
outras alterações agudas especificadas da pele
devidas a radiação ultravioleta (L56.8); outras
alterações agudas da pele devidas a radiação
ultravioleta, sem outra especificação (L56.9);
XXV - Alterações da pele devidas a exposição crônica Radiações não ionizantes (W89. -; X32. -; Z57 .1) (Quadro XXVII)
a radiação não ionizante (L57.-): ceratose actínica
(L57.0); outras alterações: dermatite solar, "pele de
fazendeiro", "pele de marinheiro" (L57.8)
XXVI - Radiodermatite (L58.-): radiodermatite aguda Radiações ionizantes (W88.-; Z57.1) (Quadro XXIV)
(L58.0); radiodermatite crônica (L58.1 ); radiodermatite
não especificada (L58.9); afecções da pele e do tecido
conjuntivo relacionadas com a radiação não
especificadas (L59.9)
XXVII - Outras formas de acne: "cloracne" (L70.8) 1. Derivados halogenados dos hidrocarbonetos aromáticos, monoclorobenzeno,
monobromobenzeno, hexaclorobenzeno (X46.; Z57.5) (Quadro XIII)
2. Derivados do fenol, pentaclorofenol e do hidrobenzonitrilo (X49.-; Z57.4 e Z57.5)
(Quadro XXVII)
3. Policloretos de bifenila (PCBs) (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XXVII)
XXVIII - Outras formas de cistos foliculares da pele e Óleos e gorduras de origem mineral ou sintéticos (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
do tecido subcutâneo: "elaioconiose" ou "dermatite
folicular" (L72.8)
XXIX - Outras formas de hiperpigmentação pela 1. Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
melanina: "melanodermia" (L81.4) 2. Clorobenzeno e diclorobenzeno (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XIII)
3. Alcatrão, breu, betume, hulha mineral, parafina, creosoto, piche, coaltar ou
resíduos dessas substâncias (Z57.8) (Quadro XX)
4. Antraceno e dibenzoantraceno (Z57.5) (Quadro XX)
5. Bismuto (X44.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
6. Citostáticos (X44.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
7. Compostos nitrogenados: ácido nítrico, dinitrofenol (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
8. Naftóis adicionados a corantes (X49,-; Z57.5) (Quadro XXVII)
9. Óleos de corte (Z57.5) (Quadro XXVII)
10. Parafenilenodiamina e seus derivados (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
11. Poeira de determinadas madeiras (Z57.3) (Quadro XXVII)
12. Quinino e seus derivados (Z57 .5) (Quadro XXVII)
13. Sais de ouro (X44.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
14. Sais de prata (sequelas de dermatite crônica de contato) (X44.-; Z57.5)
(Quadro XXVII)
XXX - Leucodermia, não classificada em outra parte 1. Arsênio e seus compostos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
(inclui "vitiligo ocupacional") (L81.5) 2. Hidroquinona e ésteres derivados (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
3. Monometil éter de hidroquinona (MBEH) (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
4. Para-aminofenol (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
5. Para-butilfenol (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
6. Para-cresol (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
7. Catecol e pirocatecol (X49.-; Z57.5) (Quadro XXVII)
8. Clorofenol (X46.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XXVII)
XXXI - Outros transtornos especificados da Derivados halogenados dos hidrocarbonetos aromáticos: minocloro-benzeno,
pigmentação: "porfiria cutânea tardia" (L81.8) monobromo-benzeno, hexaclorobenzeno (X46.-; Z57.4 e Z57.5)
(Quadro XIII)
XXXII - Ceratose palmar e plantar adquirida (L85.1 ) Arsênio e seus compostos arsenicais (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro 1)
XXXIII - Úlcera crônica da pele, não classificada em 1. Cromo e seus compostos tóxicos (Z57.5) (Quadro X)
outra parte (L98 .4) 2. Enzimas de origem animal, vegetal ou bacteriana (Z57.8)
(Quadro XXVII)
502 • CAPITULO 21 lnfortunística

DOENÇAS AGENlES mOLOOICOS OU FBORES OE RISCO OE NBUREZA OCUPACIONAL


XXXIV - Geladura (frostbite) superficial (T33): eritema 1. Cloreto de etila (anestésico local) (W93.-; Z57.6) (Quadro XIII)
pémio 2. Frio (X31.-; W93.-; Z57.6) (Quadro XXVII)
XXXV - Geladura (frostbite) com necrose de tecidos 1. Cloreto de etila (anestésico local) (W93.-; Z57.6) (Quadro XIII)
(T34) 2. Frio (X31.-; W93.-; Z57.6) (Quadro XXVII)

DOENÇAS DO SISTEMA OSTEOMUSCULAR E DO TECIDO CONJUNTIVO, RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO XIII DA CID-10)
DOENÇAS AGENlES mOLOOICOS OU FATORES OE RISCO OE NBUREZA OCUPACIONAL
1 -Artrite reumatoide associada a pneumoconiose dos 1. Exposição ocupacional a poeiras de carvão mineral (Z57 .2)
trabalhadores do carvão (J60.-): "síndrome de Caplan" 2. Exposição ocupacional a poeiras de sílica livre (Z57.2) (Quadro XVIII)
(M05.3)
li - Gota induzida pelo chumbo (M 10.1) Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
Ili - Outras artroses (M19.-) Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
IV - Outros transtornos articulares não classificados 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
em outra parte: dor articular (M25.5) 2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
V - Síndrome cervicobraquial (M53.1) 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
VI - Dorsalgia (M54.-): cervicalgia (M54.2); ciática 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
(M54.3); lumbago com ciática (M54.4) 2. Ritmo de trabalho penoso (Z56.3)
3. Condições difíceis de trabalho (Z56.5)
VII - Sinovites e tenossinovites (M65.-): dedo em gatilho 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57.8)
(M65.3); tenossinovite do estiloide radial (De Quervain) 2. Ritmo de trabalho penoso (Z56.3)
(M65.4); outras sinovites e tenossinovites (M65.8); 3. Condições difíceis de trabalho (Z56.5)
sinovites e tenossinovites não especificadas (M65.9)
VIII - Transtornos dos tecidos moles relacionados com 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
o uso, o uso excessivo e a pressão, de origem 2. Ritmo de trabalho penoso (Z56.3)
ocupacional (M70.-): sinovite crepitante crônica da 3. Condições difíceis de trabalho (Z56.5)
mão e do punho (M70.0); bursite da mão (M70.1 );
bursite do olécrano (M70.2); outras bursites do
cotovelo (M70.3); outras bursites pré-rotulianas
(M70.4); Outras bursites do joelho (M70.5); outros
transtornos dos tecidos moles relacionados com o uso,
o uso excessivo e a pressão (M70.8); transtorno não
especificado dos tecidos moles, relacionados com o
uso, o uso excessivo e a pressão (M70.9)
IX - Fibromatose da fáscia palmar: "contratura ou 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
moléstia de Dupuytren" (M72.0) 2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
X - Lesões do ombro (M75.-): capsulite adesiva do 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
ombro (ombro congelado, periartrite do ombro) 2. Ritmo de trabalho penoso (Z56)
(M75.0); síndrome do manguito rotatório ou síndrome 3. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
do supraespinhoso (M75.1); tendinite bicipital (M75.2);
tendinite calcificante do ombro (M75.3); bursite do
ombro (M75.5); outras lesões do ombro (M75.8);
lesões do ombro não especificadas (M75.9)
XI - Outras entesopatias (M77.-): epicondilite medial 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
(M77.0); epicondilite lateral ("cotovelo de tenista"); 2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
mialgia (M79.1)
XII - Outros transtornos especificados dos tecidos 1. Posições forçadas e gestos repetitivos (Z57 .8)
moles (M79.8) 2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
XIII - Osteomalacia do adulto induzida por drogas 1. Cádmio ou seus compostos (X49.-) (Quadro VI)
(M83.5) 2. Fósforo e seus compostos (sesquissulfeto de fósforo) (X49.-; Z57.5)
(Quadro XII)
CAPITULO 21 lnfortunística • 503

DOENÇAS AGElflES E1101.ÓGICOS OU FATOIES DE RISCO IE twUREZA OCUPACIONAL


XIV - Fluorose do esqueleto (M85.1) Flúor e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XI)
XV - Osteonecrose (M87.-): osteonecrose devida a 1. Fósforo e seus compostos (sesquissulfeto de fósforo) (X49.-; Z57.5) (Quadro XII)
drogas (M87.1); outras osteonecroses secundárias 2. Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
(M87.3) 3. Radiações ionizantes (Z57.1) (Quadro XXIV)
XVI - Osteólise (M89.5) (de falanges distais de Cloreto de vinila (X49.-; Z57.5) (Quadro XIII)
quirodáctilos)
XVII - Osteonecrose no "mal dos caixões" (M90.3) "Ar comprimido" (W94.-; Z57.8) (Quadro XXIII)
XVIII - Doença de Kienbõck do adulto (osteocondrose Vibrações localizadas (W43.-; Z57.7) (Quadro XXII)
do adulto do semilunar do carpo) (M93.1) e outras
osteocondropatias especificadas (M93.8)

DOENÇAS DO SISTEMA GENITOURINÁRIO RELACIONADAS COM O TRABALHO


(GRUPO XIV DA CID-10)
DOENÇAS AGENTES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NAlUREZA OCUPACIONAL
1- Síndrome nefrítica aguda (NOO.-) Hidrocarbonetos alifáticos halogenados nefrotóxicos (X46.-; Z57.5) (Quadro XIII)
li - Doença glomerular crônica (N03.-) Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro XVI)
Ili - Nefropatia túbulo-intersticial induzida por metais 1. Cádmio ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VI)
pesados (N14.3) 2. Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
3. Mercúrio e seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.4 e Z57.5) (Quadro XVI)
IV - Insuficiência renal aguda (N17) Hidrocarbonetos alifáticos halogenados nefrotóxicos (X46.-; Z57.5)
(Quadro XIII)
V- Insuficiência renal crônica (N18) Chumbo ou seus compostos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
VI - Cistite aguda (N30.0) Aminas aromáticas e seus derivados (X49.-; Z57.5)
VII - Infertilidade masculina (N46) 1. Chumbo ou seus compostos tóxicos (X49.-; Z57.5) (Quadro VIII)
2. Radiações ionizantes (W88.-: Z57.1) (Quadro XXIV)
3. Chlordecone (X48.-; Z57.4)
4. Dibromocloropropano (DBCP) (X48.-; Z57.4 e Z57.5)
5. Calor (trabalho em temperaturas elevadas) (Z57.6)

TRAUMATISMOS, ENVENENAMENTOS E ALGUMAS OUTRAS CONSEQUÊNCIAS


DE CAUSAS EXTERNAS, RELACIONADOS COM O TRABALHO
(GRUPO XIX DA CID-10)
AGENTES E1101.ÓGICOS OU Ml'ORES DE RISCO DE twUREZA
DOENÇAS OCUPACIONAL
1- Efeitos tóxicos de solventes orgânicos (T52.-): álcoois (T51.8) e Exposição ocupacional a agentes tóxicos em outras indústrias (Z57.5)
cetonas (T52.4); benzeno, tolueno e xileno (T52.1 e T52.2); derivados
halogenados dos hidrocarbonetos alifáticos e aromáticos (f53):
tetracloreto de carbono (f53.0); clorofórmio (f53.1 ); tricloroetileno
(T53.2); tetracloroetileno (T53.3); dicloroetano (T53.4);
clorofluor-carbonos (T53.5); outros derivados halogenados de
hidrocarbonetos alifáticos (f53.6); outros derivados halogenados
de hidrocarbonetos aromáticos (f53. 7); derivados halogenados de
hidrocarbonetos alifáticos e aromáticos não especificados (f53.9);
sulfeto de carbono (T65.4)
li - Efeito tóxico de substâncias corrosivas (T54): fenol e homólogos Exposição ocupacional a agentes tóxicos em outras indústrias (Z57.5)
do fenol (T54.0); flúor e seus compostos (T65.8); selênio e seus
compostos (T56.8); outros compostos orgânicos corrosivos (T54.1);
ácidos corrosivos e substâncias ácidas similares (T54.2); álcalis
cáusticos e substâncias alcalinas similares (T54.3); efeito tóxico de
substância corrosiva não especificada (f54.9).
504 • CAPITULO 21 lnfortunística

AGENlES ETIOl.ÓGICOS OU FATORES DE RISCO DE NATUIEZA


IDOENljAS OCIFACIOllAL
Ili - Efeito tóxico de metais (T56): arsênico e seus compostos (T57.0); Exposição ocupacional a agentes tóxicos em outras indústrias (Z57.5)
cádmio e seus compostos (T56.3); chumbo e seus compostos (T56.0);
cromo e seus compostos (T56.2); manganês e seus compostos
(T57.2); mercúrio e seus compostos (T56.1); outros metais (T56.8);
metal não especificado (T56.9).
IV - ~fixiantes químicos (T57-59): monóxido de carbono (T58); ácido Exposição ocupacional a agentes tóxicos em outras indústrias (Z57.5)
cianídrico e cianetos (T57.3); sulfeto de hidrogênio (T59.6); aminas
aromáticas e seus derivados (T65.3)
V - Praguicidas (pesticidas, "agrotóxicos") (T60): organofosforados e Exposição ocupacional a agentes tóxicos na agricultura (Z57.4)
carbamatos (T60.0); halogenados (T60.1 ); outros praguicidas (T60.2)
VI - Efeitos da pressão do ar e da pressão da água (T70): Exposição ocupacional a pressões atmosféricas anormais
barotrauma otítico (T70.0); barotrauma sinusal (T70.1); (T70.3); (W94.-; Z57.8)
doença descompressiva ("mal dos caixões") outros efeitos da
pressão do ar e da água (T70.8).

LISTA C
(Incluído pelo Decreto n• 6.957, de 2009)
INTERVALO CID-10 CNAE
A15-A19 081 o1091 1411 1412 1533 1540 2330 3011 3701 3702 3811 3812 3821 3822 3839 3900 4120 4211 4213
4222 4223 429142994312 4321 439143994687 471147134721 474147424743 4744 4789 4921 4923
4924 4929 5611 7810 7820 7830 8121 8122 8129 8610 9420 9601
E10-E14 1091 3600 3701 3702 3811 3812 3821 3822 3839 3900 4120 4211 4213 4222 4223 4291 4292 4299 4313
4319 4329 4399 4721 4921 4922 4923 4924 4929 4930 5030 5231 5239 8011 8012 8020 8030 8121 8122
8129 8411 9420
F10-F19 071 o 0990 1011 1012 1013 1220 1532 1622 1732 1733 2211 2330 2342 2451 2511 2512 2531 2539 2542
2543 2593 2814 2822 2840 2861 2866 2869 2920 2930 3101 3102 3329 3600 3701 3702 3811 3812 3821
3822 3839 3900 4120 4211 4213 4221 4292 4299 4313 4319 4321 4329 4399 4520 4912 4921 5030 5212
5221 5222 5223 5229 5231 5232 5239 5250 5310 6423 7810 7820 7830 8121 8122 8129 8411 8423 8424
9420
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S50-S59 0210 0220 0810 101110121013 10311033104110511061 10641071109110921093 109610991122
1311 1321 1354 1411 1412 1510 1531 1532 1533 1540 1610 1621 1622 1623 1629 1722 1732 1733 2211
2221 2222 2223 2229 2330 2341 2342 2391 251125122539 2542 2543 2592 2593 2710 2759 2813 2822
2823 2832 2833 2861 2866 2869 2930 2944 2945 2950 3011 3101 3102 3329 3701 3702 3811 3812 3821
3822 3839 3900 4120 4211 4213 4221 4222 4223 4291 4292 4299 4312 4313 4319 4321 4322 4329 4391
4399 4520 462146224623 4635 466146854686 4687 4689 4711 47214722474147424743 4744 4784
4789 4921 4923 4924 4929 4930 5212 5221 5222 5223 5229 531o5320 7719 7732 781 o 7820 7830 8011
8012 8020 8030 8121 8122 8129 9420
S60-S69 0113 0210 0220 050008101011 10121013103110331041 10421051105210611062 106310641071
1072 1091 1092 1093 1094 1096 1099 1122 1311 1312 1321 1323 1340 1351 1353 1354 1359 1411 1412
1510 1529 15311532 1533 1540 1610 16211622 1623 1629 1710 17211722 17311732 1733 17411742
1749 1813 1931 2012 2019 2029 2061 2063 2091 2092 2123 2211 2212 2219 2221 2222 2223 2229 2311
2312 2319 2330 234123422349 239123922399 2431 2439 244124432449 2451 2452 251125122513
2521 2522 2531 2532 2539 2541 2542 2543 2550 2591 2592 2593 2599 2632 2651 2710 2721 2722 2732
2733 2740 275127592790 2811 2812 2813 2814 2815 2821 2822 2823 2824 2825 2829 283128322833
2840 2852 2853 2854 2861 2862 2864 2865 2866 2869 2920 2930 2941 2942 2943 2944 2945 2949 2950
3011 3012 3032 3091 3092 3099 3101 3102 3103 3104 3220 3230 3240 3250 3291 3299 3319 3329 3701
3702 3811 3812 3821 3822 3832 3839 3900 4120 4211 4213 4221 4222 4223 4291 4292 4299 4312 4313
4319 4321 4322 4329 4391 4399 4520 4621 4622 4623 4632 4634 4661 4671 4672 4673 4674 4679 4681
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7719 7732 7810 7820 7830 8121 8122 8129 8423 9420 9529
S70-S79 0210 0220 1011 1012 1013 1033 1122 1610 1621 1622 2330 2391 2511 2512 2539 3101 3329 3701 3702
3811 3812 3821 3822 3839 3900 4120 4211 4213 4221 4222 4223 4291 4299 4312 4321 4391 4399 4520
4530 4541 4542 4618 4687 4731 4732 474147424743 4744 4784 4789 4921 4930 5212 5221 5222 5223
5229 5232 5250 5320 7810 7820 7830 8011 8012 8020 8030 8121 8122 8129 9420
S80-S89 0210 0220 0230 0500 0710 0810 0990 1011 1012 1013 1031 1033 1041 1051 1061 1062 1064 1071 1072
1092 10961099112213211351 13541411141215101531 153215401610 16211622 162316291710
1721 1722 1732 1733 1931 2012 2019 2029 2073 2091 2211 2219 2222 2312 2320 2330 2341 2342 2391
2439 2443 2449 2451 2511 2512 252125222539 2542 2543 2550 2592 2593 2651 2710 2812 2813 2815
2821 2822 2823 2831 2832 2833 2840 2852 2854 2861 2862 2864 2865 2866 2869 2930 2943 2944 2945
2950 3011 3101 3102 3329 3600 3701 3702 3811 3812 3821 3822 3839 3900 4120 4211 4213 4221 4222
4223 4291 4292 4299 4312 4313 4319 4321 4322 4329 4391 4399 4520 4530 4541 4542 4618 4621 4622
4623 4632 4635 4636 4637 4639 4661 4671 4672 4673 4674 4679 4681 4682 4685 4686 4687 4689 4711
4722 4723 47314732474147424743 4744 4784 4789 4912 492149224923 4924 4929 4930 5211 5212
5221 5222 5223 5229 5232 5250 531o5320 7719 7732 781 o 7820 7830 8011 8012 8020 8030 8121 8122
8129 8423 8424 9420
CAPITULO 21 lnfortunística • 507

INIERVALO CID-18 CNAE


S90-S99 0210 0220 0500 0810 1011 1012 1013 1031 1033 1041 1051 1061 1062 1064 1071 1072 1092 1093 1122
1311132113511354 141114121510 15321610 16211622162316291710 17211722173217331931
2029 20912219222122222312 2330 234123422391 24312439244124432449 2451 251125122513
2521 2522 2531 2539 2542 2543 2592 2593 2710 2722 2815 2822 2831 2832 2833 2840 2852 2853 2854
2861 2862 2865 2866 2869 2920 2930 2943 2944 2945 2950 3011 3101 3102 3329 3600 3701 3702 3811
3812 3821 3822 3839 3900 4120 4211 4213 4221 4222 4223 4291 4292 4299 4312 4313 4319 4321 4322
4329 4391 4399 4621 4622 4623 4661 4681 4682 4685 4686 4687 4689 4711 4784 4912 4921 4922 4930
511151205212 522152225223 5229 5232 5250 5310 5320 6423 6431 6550 7719 7732 7810 7820 7830
8011 8012 8020 8030 8121 8122 8129 8423 8424 861 o9420
T90-T98 021 o0220 071 o081 o 0892 091 o 1011 1013 1020 1031 1033 1041 1042 1061 1062 1071 1072 1091 1092
109311221220 1311 1312132113511352135314111412151015311532 15331540161016211622
162917331932 2014 2019 2029 2032 2091 2211 222122232229 2312 2320 2330 234123422391 2451
251125122521 2522 2539 2542 2592 2593 2640 2740 275127902813 2814 2822 2862 2864 2866 2869
2920 2930 2944 2945 2950 3091 3092 3101 3102 3600 3701 3702 3811 3812 3821 3822 3839 3900 4120
4211 4213 4221 4291 4292 4299 4312 4313 4319 4321 4322 4391 4399 4635 4661 4681 4682 4687 4721
4741 4743 4744 4784 4922 4923 4924 4929 4930 5012 5021 5030 5212 5221 5222 5223 5229 5231 5232
5239 5250 5310 5320 7719 7732 8011 8012 8020 8030 8121 8122 9420
Nota:
1. São indicados intervalos de CID-1Oem que se reconhece Nexo Técnico Epidemiológico, na forma do § 3' do art. 337, entre a entidade mórbida e as classes de CNAE indicadas, nelas
incluídas todas as subclasses cujos quatro dígitos iniciais sejam comuns.
Hygino de C. Hercules

• INTRODUÇÃO periores ao aporte de oxigênio, as células sofrerão alteração


de seu metabolismo na tentativa de compensar a carência.
Quase todos os seres vivos obtêm energia para os proces- Ultrapassado o limiar de tolerância, instalam-se fenómenos
sos bioquímicos que constituem a base da vida na queima irreversíveis, que levam à degeneração e à morte celular. Por-
de substâncias nutritivas provenientes da digestão dos ali- tanto, as células mais sensíveis à hipoxia são as que apresen-
mentos. Alguns podem queimar essas substâncias mesmo tam maio r atividade metabó lica, por exemplo, os neuró nios.
na ausência de oxigênio, enquanto outros só o conseguem Antes de conceituar e de analisar os fenómenos asfíxi-
em presença de quantidades variáveis desse gás. Diz-se que cos, recordaremos os aspectos mais importantes da fisiologia
os primeiros apresentam respiração anaeróbia e os últimos, respiratória.
aeróbia. A maio ria das espécies conhecidas, tanto animais
quanto vegetais, pertence ao segundo grupo.
O sistema de captação e distribuição do oxigênio nas di- • FISIOLOGIA RESPIRATÓRIA
versas espécies animais apresenta complexidade crescente,
na razão direta do seu aperfeiçoamento na escala filogené- A função r espiratória abrange uma série de fenómenos
tica. Assim, temos que, em animais inferiores, a oxigenação físicos, químicos e bioquímicos que se destinam a fazer
faz-se por simples difusão do oxigênio dissolvido na água, chegar às células concentrações de oxigênio compatíveis
como ocorre nos cnidários. Nos vermes intestinais, animais com a vida.
adaptados à vida parasitária, não há aparelho respiratório, e O ar atmosférico é uma mistura de gases que exerce pres-
sua oxigenação também se faz por simples difusão através da são de 760 mmHg ao nível do mar, formada principalmente
superfície externa. Já nos vertebrados, há um aparelho desti- por nitrogênio e oxigênio. Sua composição aproximada está
nado à captação do oxigênio e outro à sua distribuição: são expressa na Tabela 22.1.
os aparelhos respiratório e circulatório, respectivamente. Em É essa a mistura que inspiramos para oxigenar o sangue.
alguns, o oxigênio é retirado da água e, em outros, como nos Cada gás exerce uma pressão parcial proporcional à sua per-
mamíferos, em geral, é retirado do ar atmosférico. Perturba- centagem na mistura (ver Capítulo 16).
ções que surjam na captação, na distribuição ou na utilização Antes de alcançar os alvéolos, o ar se dilui na mistura
do oxigênio podem transtornar o metabolismo de tal modo gasosa proveniente da última expiração. Portanto, o ar que
que impeçam as reações vitais e provoquem a morte. chega aos alvéolos é uma mistura de composição percentual
Normalmente, as funções respiratória e circulatória diferente da do ar atmosférico. Com as trocas que se efetuam
guardam uma reserva funcional que capacita o organismo a nos alvéolos, novamente se modifica essa composição e o ar
enfrentar situações de perigo decorrentes quer do aumento alveolar passa a ter um teor bem maior de gás carbónico e de
das necessidades quer da redução da oferta de oxigênio às vapor d'água. Assim, a percentagem de oxigênio diminui e
células. Em ambas as hipóteses, se as necessidades forem su- sua pressão parcial cai de 159 para 104 mmHg1 (Tabela 22.1 ).

511
512 • CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias

Tabela 22.1. Composição do ar atmosférico ao nível do mar1


Praalo Plrcl1I (11111tg) Propol'llo (%)
661 AllllOlfel'I Alvlol• AllnOlfel'I Alveolar
Nitrogênio 597 569 78,62 74,88
Oxigênio 159 104 20,84 13,68
Gás carbônico 0,3 40 0,04 5,26
Vapor d'água 3,7* 47 0,50* 6,18
Total 760 760 100 100
'Variável conforme as condições atmosféricas.

A pressão do vapor d'água no ar inspirado varia com a O tempo necessário para que se processem as trocas ga-
temperatura e o grau de umidade presente na atmosfera. Já sosas é meno r que o tempo gasto pelo sangue para ir da ex-
no ar alveolar, é igual à tensão de saturação à temperatura de tremidade arterial para a venosa do capilar alveolar (0,75 s).
37°C, ou seja, 47 mmHg. O ar alveolar é, po rtanto, mais úmi- Existe uma sobra de tempo. Por isso é que o aumento da ve-
d o e mais quente que o ar atmosférico. A redução da tensão do locidade circulatória que ocorre, por exemplo, nas anemias
nitrogênio no ar alveolar é secundária às m odificações da e nos exercícios, consegue aumentar a captação de oxigênio
tensão do vapor d'água e ao fato de haver, normalmente, para manter o aporte aos tecid os periféricos. Se assim não
m aio r absorção do oxigênio que produção de gás carbônico. fosse, a velocidade circulatória aumentada tiraria do san gue
sua chance de se oxigenar melhor (Fig. 22. l ).
Mas o poder do sangue de se oxigenar não é ilimitado. O
Troca de Gases nos Pulmões sangue arterial, em condições normais, está 95% saturado de
A passagem dos gases respiratórios através da parede al- oxigênio e, mesmo após hiperventilação, a concentração só é
veolar obedece às leis físicas da difusão. Para que um gás se aumentada para 97%. Isso significa q ue a hiperventilação de
difunda através de uma superfície permeável, é necessário cada alvéolo não consegue aumentar a oxigenação do sangue
que haja uma diferença de pressão entre as duas faces da su- o suficiente para su prir eventual bloqueio de outros alvéo-
perfície a ser atravessada. No caso do alvéolo, a barreira é los. Nessas condições, se o alvéolo for hiper-ventilado, haverá
fo rmada pelo epitélio alveolar, o tecido de sustentação e a desperdício do trabalho dos músculos respirató rios. Por o u-
parede dos capilares. É a unidade alveolocapilar. As diferenças tro lado, sempre que houver má ventilação alveolar, haverá
de tensão resultam da pressão parcial de cada gás no ar alveo- desperdício de parte do trabalho circulatório. A unidade al-
lar e de sua concentração no sangue. Pode-se afirmar que veolocapilar deve sempre estar, portanto, ajustada às neces-
há um gradiente de concentração para cada gás. A passagem sidades momentâneas do organismo. Como, normalmente,
sempre tende a se fazer da face de maior para a face de menor em repouso, grande n úm ero de alvéolos não é ventilado, os
concentração na membrana. Além disso, a velocidade de di- pulmões apresentam muita reserva funcional.
fusão de cada um dos gases é diretamente pro porcional à sua
solubilidade e inversamente proporcional à raiz quadrada de Transporte do 02 e do C0 2
seu peso m olecular. Mas, apesar de ter maior peso molecular,
o gás carbó nico (CO ) difunde-se mais rapidamente que o Pode-se dizer que o sangue venoso difere do arterial ape-
oxigênio (0 2) porque é cerca de 20 vezes mais solúveF. Por nas na concentração dos gases respiratórios. Em média, te-
isso, as diferenças de pressão parcial necessárias para que o mos os dados da Tabela 22.2.
co2difunda são bem meno res q ue par a a difusão do º 2·
Assim que o 0 2 chega aos alvéolos, precisa difundir-se
através das paredes alveolares para equilibrar sua tensão no ar Tabela 22.2. Diferenças entre o sangue arterial e o venoso2
alveolar com a vigente no sangue. Tanto o 0 2 quanto o C0 2, PlrllMlro S1n111 VllOIO ....... Arterlll
quando combinados com o utra substância do sangue, não Pressão do 02 40 mmHg 95 mmHg
participam diretamente das trocas por difusão, mas servem 45 mmHg 40 mmHg
Pressão do C02
de reservatórios para manter a tensão do gás no plasma (par-
te líquida do sangue), à m edida que vão sendo consumido e 02 livre em solução 0,1 vol% 0,3 vol%
eliminado, respectivamente. É o que ocorre à medida que o co2livre em solução 2,7 vol% 2,4 vol%
co2é eliminado nos pulmões e o 0 2é liberad o para os teci- 02 total 15,2 vol% 19,8 vol%
dos. Os outros gases, como o nitrogênio, que não participam co2total 52 vol% 48 vol%
d as trocas respiratórias, tendem a estabilizar sua concentra-
Saturação de 02 da Hb 75% 97%
ção no sangue, confo rme a sua pressão parcial no ar alveolar.
CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias • 513

Alvéolo
P02 = 104 mmHg

Arteríola pulmonar (sangue Vênula pulmonar (sangue arterial


venoso com P02 de 40 mmHg) com P02 de 104 mmHg)

11 o
ê)
:::e:
E 100
E
E
~ 90
Q)
::::J
O>
e 80
"'"'o
e 70
ON
o
"O 60
o
'"'"'
"'~
a..
50

40
,25 0,50 0,75
Tempo em segundos

Figura 22.1. Na parte superior, vemos o esquema de uma cavidade alveolar cuja parede é percorrida por um capilar que vai da arteríola para a
vênula pulmonar. Ao longo do percurso, o sangue vai sendo oxigenado por difusão do gás através da membrana alveolocapilar. Osangue da arteríola
é o sangue que vem do lado direito do coração, ou seja, sangue venoso. O da vênula é o que vai ser distribuído pelo lado esquerdo do coração para
as artérias da grande circulação, ou seja, sangue arterial. Na parte inferior, o gráfico sincronizado com o percurso do sangue (na direção das setas)
mostra que o máximo de captação de 02 é atingido já no primeiro terço do trajeto.

Esses valores demonstram que o 0 2 é menos solúvel que o Essa reação é pouco estável, e, de acordo com a lei de
co2e a quantidade de gás extraída do sangue é bem mais ele- ação das massas, o ponto de equilíbrio irá deslocar-se para
vada do que a apenas dissolvida. Isso se deve ao fato de que o a direita em presença de um excesso de 0 2 e para a esquer-
transporte dos gases respiratórios não se faz apenas no estado da quando diminuir a tensão parcial desse gás no meio em
físico de solução simples, mas, principalmente, por reações que se acham as hemácias. Portanto, a dissociação da Hb0 2
químicas. Se esses gases fossem transportados simplesmente faz-se a velocidades diferentes e proporcionais à tensão par-
em solução, a quantidade veiculada seria insuficiente para as cial do 0 2 no ambiente das hemácias. Nos tecidos em que a
necessidades dos tecidos. Só seria possível extrair 0,3 vol% de tensão é baixa (40 mmHg), a Hb0 2 se decompõe. Nos pul-
oxigênio e 2,4 vol% de gás carbônico do sangue arterial. mões, ela é restaurada em virtude do maior teor de 0 2 no ar
Para que o transporte de 0 2 seja eficiente, os glóbulos alveolar. À medida que o 0 2 dissolvido no plasma vai sendo
vermelhos do sangue são dotados de um pigmento de na - consumido pelo metabolismo celular, sua tensão cai e pro-
tureza proteica, a hemoglobina (Hb). É uma proteína com move a dissociação progressiva da Hb0 2• A liberação do 0 2
peso molecular de cerca de 64.000, formada por quatro ca- da hemoglobina visa a manter uma tensão eficaz no plasma
deias compostas cada uma por uma parte proteica - globina suficiente para permitir sua difusão através da parede capilar
- e um núcleo prostético - heme. O grupo heme é a proto- e do líquido intersticial.
porfirina IX associada a um átomo de ferro divalente. Cada Para cada tensão de 0 2 no ar a lveolar, estabelece-se um
molécula de Hb tem, portanto, quatro átomos de ferro 3 . O ponto de equilíbrio em que certa percentagem d e hemo-
oxigênio combina-se ao ferro do grupo heme e forma a oxie- globina está oxigenada. Se registrarmos essas variações em
moglobina (Hb02) por meio da seguinte reação reversível: um sistema de coordenadas sob temperatura e pH constan-
tes, teremos traçado a curva de dissociação da Hb02 (Fig.
22.2) . Essa curva reforça a noção de que, sob tensões baixas
514 • CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias

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Pressão do 02 no sangue (P02)

FIGURA 22.2. Curva de dissociação da Hb02• O sangue dos capilares vai ganhando oxigênio nos alvéolos até se transformar em sangue arterial.
Nos tecidos, em geral, ocorre o contrário: há liberação gradual do oxigênio e este passa a sangue venoso.

de oxigênio, a combinação da hemoglobina com esse gás é metemoglobina e t em a cor muito escura. Isso explica por
menos est ável. que os livores d e pessoas intoxicadas por essas substâncias
Os mecanismos químicos de transporte do C0 2 são di- apresentam cor tão escura, achocolatada. Entre as outras
ferentes do descrito anteriormente. Cerca de 70% são trans- substâncias que podem alterar a m olécula da Hb, de mo do a
portados sob a forma de b icarbonato, d e acordo com as rea- impedir o transporte do 0 2, devemos destacar ainda o mo-
ções químicas a seguir: nóxido de carbono (CO) . A Hb reage com o monóxido de
1) co2 + Hp !:; H2C03; carbo no e forma a carboxiemoglobina (HbCO), que é 250
2) H 2C0 3 !:+ H+ + H C03-. vezes mais estável que a oxiemoglobina (Hb0 2). Por isso,
Outra fração de cerca de 23% é t ransport ada como um mesmo em concentrações inferiores, ele vai ocupando a Hb
composto resultante da combinação com a Hb d e modo a dispo nível e impedindo o transporte do 0 2. Causa hipoxia
formar a carbaminoemoglobina: tissular, não asfixia.

H b -N H2 + co2 H Hb-NH -Coo- + H + Controle da Respiração


Desse modo, apenas 7% do total do C02 são transporta- Como a respiração depende da contração dos chamados
dos sob a forma de gás livre dissolvido n o plasma 2. Essas rea- músculos inspiratórios, torna-se n ecessário um controle do
ções do co2 tendem a se fazer da direita para a esquerda nos sistema nervoso central sobre o ritmo e a amplitude de con -
pulmões e da esquerda para a direita nos tecidos. Na verdade, tração desses músculos. Tal controle é exercido pelos cen-
nos tecidos, o co2 entra nas hemácias, reage com a água do tros respiratórios. A estruturação desses centros é complexa,
seu citoplasma e produz ácido carbónico, sob a influência mas pode ser resumida para fins didáticos. H á três grupos de
da en zima anidrase carbónica, que torna a reação 1 cerca de neurónios (Fig. 22.3): 1) dorsal (inspiratórios) - localizado
5.000 vezes mais rápida. Assim que o ácido carbónico se io- na porção dorsal do bulbo, no nível do núcleo do feixe soli-
niza, os íons bicarbonato (H C03-) e hidrogênio (H+) saem tário; 2) ventral (inspirató rio e expiratório) - localizado um
rapidamente dos glóbulos vermelhos 2. pou co mais para a frente e para o lado, relacionado com o
Certa s drogas, como os nitritos, cloratos, sulfas e azul de núcleo ambígu o; 3) pneumotáxico - situado no terço su pe-
metileno, podem oxidar o ferro da Hb de modo a torná-lo rior da protuberância, dorsalmente4 •
trivalente e a impossibilitar o transporte fisiológico do 0 2. A O centro dorsal, inspiratório, é excitado pelo a umento
Hb assim transformada é chamada de ferriemoglobina ou da concentração do co2 no líquido intercelular onde estão
CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias • 515

os seus neurónios. O centro pneumotáxico atua sobre o ins- !idade, porém, o co2 que atravessa a barreira vascular cere-
piratório, inibindo sua atividade, de modo a interro mper a bral chega ao líquido intersticial que banha esses neuró nios,
inspiração. Assim, quanto m ais forte a sua descarga, m ais reage com a água e forma ácido carbónico, que se dissocia
curta é a inspiração. Como a expiração, por motivos ainda e produz íons H +, os verdadeiros estimuladores dessa área
não esclarecidos, é também encurtada, aumenta a frequên- quimicamente sensível4 •
cia respirató ria, podendo passar de 15 para até 40 incursões Além dos centros respiratórios, há um mecanismo para-
po r minuto. Quando a atividade do centro pneumotáxico lelo de controle da respiração constituído por corpúsculos
diminui, a inspiração e a expiração ficam mais longas, redu- localizados na bifurcação de cada artéria caró tida primitiva e
zindo-se a frequência. É impo rtante não esquecer que a ex- na croça da aorta. Esses corpúsculos são formados por células
piração é, em condições normais, puramente passiva, como sensíveis às qued as de concentração do 0 2 no sangue arterial.
resultado da elasticidade do pulmão e da caixa torácica4 • Po r isso, constituem quimiorreceptores. Quando a tensão do
Os neurónios do centro ventral, relacio nado com o nú- 0 2cai, essas células ger am estímulos que chegam aos centros
cleo ambíguo, não entram em ação em condições habituais. respiratórios por meio dos nervos vago (para os corpúsculos
Só passam a ser excitados quando o estímulo sobre o cen- aó rticos) e glossofaríngeo (para os caro tídeos) . Mas o efeito
tro dorsal é muito intenso e transborda para eles. Atuam dura po uco porque o aumento da ventilação elimina o c o 2
aumentando a ventilação porque a inspiração e a expiração e diminui sua ação sobre os centros respiratórios, contraba-
ficam m ais vigorosas4 • lançando, assim, o estímulo à respiração gerado pela queda
Embora haja um aumento dos íons H +e HC0 3- no san- do 0 2. O efeito da hipoxia só é mais duradouro e intenso se
gue sempre que o teor de C0 2 cresce, é o C0 2livre em dis- a concentração do co2se mantiver normal ou mesmo eleva-
solução que consegue atravessar a barreira da circulação d a, como nas asfixias4 •
cerebral e chegar a um grupo de neurónios localizados na Os quimiorreceptores também podem ser excitad os pelo
face ventral do bulbo (Fig. 22.3, n2 4) . Esses neurónios é que acúmulo de gás carbónico. É o que ocorre no início d os exer-
enviam sinais para estimular o centro inspiratório. Na rea- cícios físicos porque eles reagem mais rapidamente à eleva-
ção do C0 2 do que os centros respiratórios. Mas a resposta
desses é de intensidade cerca de sete vezes maior. Em condi-
ções normais, de repouso, a respiração é regulada pelo teor
de co2 no sangue, e não pela tensão de 0 24 •
A distensão dos pulmões pela contração dos músculos
inspiratórios não pode ultrapassar certos limites. Normal-
mente, é limitada pela ação do centro pneumotáxico, cuja
descarga inibe o centro inspiratório. Mas há um o utro
m ecanism o que atua de m odo sem elhante por via reflexa.
Existem, no meio da musculatura lisa das paredes brón-
quicas, sensores nervosos que são excitados pela distensão
que ocorre a cada inspiração. As fibras originad as nesses
sensores seguem pelo nervo vago (ou pneumogástrico) e
termin am nos neurónios inspirató rios, onde exercem ação
inibidora. No ho mem , esse mecanismo entra em ação após
p a inspiração de 1,5 L. Esse mecanismo é conhecido como
reflexo de Hering-Breuer 4 •

• CONCEITUAÇÃO DE ASFIXIA
4 A palavra asfixia vem d o grego que significava "sem pul-
so"5·6. Knight6, atualmente, identifica asfixia com hipoxia,
m as ressalta que nem sempre ocorre hipoxia nas fo rmas
de asfixia estudadas em Medicina Legal; por exemplo, em
alguns casos de enfo rcamento e de afogamento. Mas os au-
tores clássicos têm estudado sob o título de asfixias os esta-
d os desencadeados por diminuição da ventilação pulmonar
causada por meios mecânicos. Tardieu 7 repelia a tendência
Figura 22.3. Esquema dos centros respiratórios: 1) núcleo dorsal; de os peritos contemporân eos englobarem sob a rubrica de
2) núcleo ventral; 3) núcleo pneumotáxico; 4) neurônios estimuladores asfixia os diversos casos de sufocação, estrangulamento, en-
da inspiração. A: aqueduto; T: troncocerebral; P: ponte; C: cerebelo; fo rcamento ou afogamento, sem referir a causa do distúrbio
B: bulbo. em cada um. Achava, com razão, que tais conclusões não
516 • CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias

ajudavam a Justiça. Mas ele próprio não estabeleceu um con- Por essa razão, os autores têm encontrado dificuldade na sis-
ceito do que seria a asfixia em si mesma. Contentava-se em tematização correta das asfixias.
estabelecer o diagnóstico diferencial entre as modalidades A maioria dos autores tem estudado apenas as formas
de asfixia. Por outro lado, Brouardel8 reconhecia que as causadas por agentes mecânicos, esquecendo-se de incluir
mortes produzidas pela exposição a gases, como o monó- em suas classificações outros agentes que também levam a
xido de carbo no, eram, na verdade, intoxicações, e não as- um estado violento de asfixia.
fixias. Mas continuava a estudá-las no ca pítulo das asfixias Thoinot 10 preferiu classificar as asfixias mecânicas se-
porque, conforme ele próprio reconhecia, os magistrados e gundo a sede de atuação do agente etiológico no aparelho
os jurados, ao ouvirem o termo intoxicação, o entenderiam respiratório. Dividiu-as em do is grupos: 1) com obstáculo
como administração de veneno. situado externamente às vias respiratórias - a) constrição do
Hofmann9 conceituava asfixia como "a morte produzida pescoço po r laço ou com as m ãos; b) oclusão dos orifícios
por impedimento mecânico à penetração do ar atmosférico respiratórios externos; c) impedimento aos movimentos do
na árvore respiratória''. Para Flamínio Fávero 5, tal definição tórax; 2) com obstáculo situado dentro das próprias vias res-
adequava-se aos casos mais comuns estudados em Medicina piratórias - a) modificação do meio ambiente (afogamento
Legal, embora ele mesmo reconhecesse que havia outras for- e soterramento); b) obstrução por corpo estranho. Achamos
mas de asfixia. Estamos de acordo. Na maioria das doenças que sua classificação é um tanto artificial, uma vez que, no
respiratórias e cardíacas, a descompensação torna-se mani- afogamento e no soterramento, o agente, na realidade, é ex-
festa por oxigenação defi ciente e retenção de co2no sangue terno. Além disso, não faz menção ao confinamento.
arterial. Além disso, outras formas de traumatismo provo- Oscar Freire, segundo Fávero5, dividiu-as em três grupos:
cam tal dificuldade à ventilação pulmonar que acarretam a 1) causadas por modificações do meio ambiente, subdividi-
morte por hipoxia e hipercapnia. Portanto, deve-se concei- das em quantitativa (confinamento) e qualitativas (afoga-
tuar asfixia como um estado de hipoxia e hipercapnia no san- mento e soterramento); 2) causadas por obstáculos mecâ-
gue arterial. Além disso, em algumas das formas tradicionais nicos no aparelho respiratório (sufocação, estrangulamento,
de asfixias mecânicas, tem sido demonstrado que o fator me- enforcamento e esganadura); 3) causadas por supressão da
cânico pode ser sobrepujado no mecanismo da morte por função da caixa torácica (compressão do tórax) .
outros distúrbios, de m odo a não haver, realmente, uma as- Os autores de língua inglesa têm uma série de termos para
fixia (hipoxia mais hipercapnia). Por exemplo, o afogamento as diversas formas de asfixia mecânica, o que tem causado
pode ocorrer de modo tão rápido que a morte sobrevenha confusão, como reconhece Knight6 , quando se estuda o tema
por inibição e não por asfixia. Como veremos, isso se dá com ou se tentam comparar dados de prevalência. É preciso cau-
maior frequência em águas muito frias. tela ao consultar textos anglo-saxões a fim de não se traduzir
De acordo com esse conceito fi siopatológico, as asfixias literalmente, por exemplo, o termo sufocação. Di Maio 11 in-
podem ser classificadas em naturais e violentas. As asfixias clui sob a rubrica de sufocação, inclusive, o confinamento.
naturais são aquelas causadas por doenças que reduzam a A nosso ver, devemos incluir entre as asfixias violentas
ventilação ou a circulação pulmonar ou que, assestadas em certas formas de traumatismo que, por via indireta, po dem
outros setores do organismo, provoquem dificuldade seme- causar parada respiratória. Referimo-nos a traumatismos
lhante. Por exemplo, as afecções do sistema nervoso central cranioencefálicos, eletroplessão e inúmeras intoxicações.
podem causar paralisia dos centros respiratórios tanto por Nas formas graves de traumatismos cranianos, a morte é
lesão direta de seus neurônios quanto por aumentarem a imediata, sem tempo para que se estabeleça um quadro asfí-
pressão intracraniana e forçarem o engasgamento das amíg- xico. Mas, na maioria dos casos, a m orte segue-se à síndro-
dalas cerebelares no buraco occipital, comprimindo o bulbo. me de hipertensão intracraniana causada tanto por edema
São exemplos a polio mielite ascendente e o edema cerebral, cerebral quanto por hemorragia nos espaços m eníngeos. É,
respectivam ente. A rigor, to das as formas de doenças em que portanto, uma forma de asfixia causada, indiretamente, por
a parada respiratória preceda a cardíaca podem ser conside- ação contundente. Conforme já estudamos no Capítulo 18,
radas formas de asfixia natural. na maioria dos casos de eletroplessão, a m orte pode ocor-
As asfixias violentas devem-se sempre a um traumatismo, rer por espasmo da musculatura respiratória o u por parada
entendido o termo num sentido amplo. Agentes mecânicos, respiratória central. Além disso, a maio ria das substâncias
elétricos ou m esmo químicos podem causar asfixia por me- tóxicas mata por depressão dos centros respiratórios. Outras
canism os simples e fáceis de compreender, ou por outros matam por ação sobre a musculatura, ora por paralisia, ora
mais complexos em que se associam fenômenos de natureza por espasmo.
variada. Assim, a oclusão da laringe por um corpo estranho Tendo em vista todas essas ponderações, devemos con-
não apresenta dificuldade em sua compreensão, mas a mo rte ceituar as asfixias em geral como estados pato lógicos de hi-
produzida por soterramento, por exemplo, pode ser causada poxia associada à hipercapnia, causadas tanto por doenças
por uma série de mecanismos, com predominância ora de quanto por modalidades diversas de traumatismo. Com base
um, o ra de o utro. Da mesma forma, o enforcamento oferece nesse conceito, podemos propor uma nova classificação etio-
problemas na determinação exata do mecanismo de morte. patogênica para as asfixias em geral:
CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias • 517

1. Asfixias naturais - todas as formas causadas por carbono compete com o 0 2 na combinação com a Hb, tendo
doenças. afinidade cerca de 250 vezes maior. Por isso, ele desloca o 0 2
2. Asfixias violentas - todas as resultantes da atuação de da molécula da Hb0 2 , de modo a formar um composto mais
energias externas. estável, a carboxiemoglobina (HbCO), impedindo o trans-
2.1. Obstrução das vias respiratórias porte do 0 2 aos tecidos.
2.1.1. Constrição cervical A elevação de um indivíduo através das camadas atmos-
2.1.1.1. Enforcamento féricas o expõe à redução progressiva e proporcional da pres-
2.1.1.2. Estrangulamento são ambiente. É o que ocorre com aviadores que ascendem
2.1.1.3. Esganadura em aparelho sem cabine pressurizada. À medida que o avião
2.1.2. Sufocação direta sobe, o piloto sofre os efeitos da pressão atmosférica mais bai-
2.2. Restrição aos movimentos do tórax xa. Entre esses efeitos, interessa-nos particularmente a redu-
2.2.1. Sufocação indireta (compressão torácica ) ção da pressão parcial do 0 2• Como já referida, a proporção
2.2.2. Fraturas costais múltiplas (respiração de 0 2 no ar atmosférico é de 20,84% e se mantém constante
paradoxal) nas diversas altitudes. Assim, é possível calcular a pressão par-
2.2.3. Paralisia da musculatura respiratória cial do 0 2 desde que se saiba a pressão atmosférica na altitude
2.2.3.1. Em espasmo - eletroplessão e drogas considerada. A 6.000 m de altitude, onde a pressão atmos-
contraturantes férica é de 380 mmHg (metade do valor ao nível do mar), a
2.2.3.2. Em flacidez - drogas curarizantes pressão parcial do 0 2 passa a ser de 79 mmHg. Mas a pressão
2.2.3.3. Em fadiga - crucificação no ar alveolar é ainda menor, já que a tensão do vapor d'água
2.3. Modificação do meio ambiente continua a mesma (47 mmHg), pois a temperatura corporal
2.3.1. Confinamento não se reduz. Assim, descontando essa tensão e a do C0 2, que
2.3.2. Soterramento também não se altera com a altitude, calcula-se que a tensão
2.3.3. Afogamento do 0 2 fique menor que a metade de seu valor ao nível do mar.
2.4. Parada respiratória central Havendo redução acentuada do teor de 0 2 no ar inspira-
2.4.1. Traumatismo cranioencefálico do, a concentração no sangue diminui na mesma proporção,
2.4.2. Eletroplessão e fulguração desencadeando resposta por via dos quimiorreceptores. Eles
2.4.3. Intoxicação por drogas depressoras aumentam a amplitude e a frequência respiratórias, a pres-
são arterial e a frequência dos batimentos cardíacos. A hi-
poxia causa aumento da pressão na pequena circulação por
• FISIOPATOLOGIA DAS ASFIXIAS constrição das arteríolas pulmonares (ver Capítulo 16).
A princípio, o indivíduo sente-se bem e alegre, mas, com
A evolução de cada forma de asfixia, de acordo com o que o agravamento do quadro, aparecem sintomas neurológi-
temos conceituado, varia com a causa em questão. As natu- cos como sonolência, obnubilação, entorpecimento mental
rais, causadas por doenças, representam o clímax de diversas e sensorial, incapacidade motora para movimentos finos,
manifestações patológicas próprias da entidade nosológica fraq ueza muscular, dispneia, cefaleia, cianose, náuseas e vó-
primária. As asfixias violentas têm duas formas principais de mitos. Mais tarde, surgem abalos musculares, convulsões e
comportamento, conforme possa haver, ou não, movimen- coma. Se a redução do 0 2 no ar inspirado for muito intensa
tação respiratória. Se a caixa torácica puder ser expandida e e brusca, o indivíduo perde a consciência rapidamente, sofre
os pulmões distendidos, haverá excitação vagai, de modo que convulsões e morre 12•
os efeitos da hipercapnia e da hipoxia serão modificados pelo
reflexo de Hering-Breuer. Quando não houver distensão do Efeitos do Aumento do Teor de C02 no Sangue
parênquima pulmonar, os sintomas dependerão apenas da Arterial
diminuição do teor de oxigênio e do aumento da concen-
tração do gás carbónico. Se observarmos a classificação das Normalmente, a concentração do C02 no ar atmosférico,
asfixias proposta anteriormente, veremos que os movimen- ao nível do mar, é de 0,04%. Há, porém, certas condições em
tos respiratórios só estão preservados nas formas que depen- que sua proporção no ar inspirado aumenta. Mas os efei-
dem de modificações do meio ambiente. Nas outras, a para- tos genuínos desse aumento só podem ser analisados se não
da respiratória é completa ou apenas são realizados esforços houver, simultaneamente, redução do 0 2 • Isso pode ocorrer
inúteis na tentativa de ventilar os pulmões. Estudaremos se- em atividades de mergulho em que o indivíduo receba ar por
paradamente os efeitos da hipoxia e os da hipercapnia. um sistema fechado no qual o co2seja absorvido quimica-
mente. Se houver falha do sistema de remoção desse gás, a
Efeitos da Redução do Teor de 02 no Sangue Arterial mistura passará a ter quantidade satisfatória de 0 2 e excesso
de C02• Nesses casos, é possível observar a sintomatologia
Os efeitos puros da hipoxia podem ser estudados tanto típica da hipercapnia.
na intoxicação pelo monóxido de carbono (CO) como na A resposta a diferentes concentrações de C0 2 no ar alveo-
elevação do indivíduo a grandes altitudes. O monóxido de lar varia de um indivíduo para outro. Observam-se altera-
518 • CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias

ções neurológicas, respiratórias e circulatórias semelhantes dividir o tempo de evolução das asfixias em tempo de esgo-
ao que ocorre na hipoxia. Com tensões de 60 a 75 mmHg, o tamento das reservas e tempo de morte neuronal. O de esgo-
indivíduo tem consciência da necessidade de aumentar seu tamento varia com o mecanismo causador da asfixia e com
esforço respiratório (dispneia). Entre 80 e 100 mmHg, perde a resistência individual. As obstruções bruscas e completas
a consciência, e entre 120 e 150 mmHg ocorrem espasmos das vias respiratórias produzem asfixia de evolução rápida
musculares, rigidez e morte 13 . Quando em mergulho, a mor- em que o tempo de esgotamento depende apenas do meta-
te ocorre em cerca de metade dos casos. bolismo básico do indivíduo e da reserva de 0 2 existente no
o aumento do co2estimula o centro vasomotor, de mo- momento da obstrução. Se o indivíduo já apresentar alguma
do a elevar muito a pressão arterial e aumentar a frequência deficiência ventilatória (asma, enfisema crónico etc.), doen-
cardíaca. Tal resposta efetua-se por meio do setor simpáti- ça cardíaca, ou se for surpreendido pelo agente asfixiante
co do sistema nervoso autónomo. Embora haja aumento da após exercícios físicos exaustivos, o tempo de esgotamento
produção de adrenalina, o mecanismo nervoso vasomotor é das reservas de 0 2 estará consideravelmente diminuído. O
o mais importante na elevação da pressão arterial. Em con- tempo de morte neuronal pode ser calculado pelo tempo
centrações elevadas, o co2provoca dilatação vascular local, necessário para que ocorram lesões irreversíveis no sistema
inclusive no cérebro, mas, na circulação pulmonar, tem ação nervoso central, após parada cardíaca. Como a morte por as-
vasoconstritora. Sob tensões muito elevadas, o C0 2 passa a fixia, em última análise, resulta da lesão cerebral causada pela
inibir, e não excitar, os centros respiratórios, agravando o hipoxia, as observações concernentes à sobrevivência após
processo pela formação de um ciclo vicioso. o co2 muito parada cardíaca devem ser pesquisadas. Os autores, em geral,
alto deprime os centros, com diminuição da respiração e admitem que os centros nervosos corticais suportam apenas
maior retenção do gás 13 . 3 a 5 minutos de privação de oxigênio nessas circunstâncias .

• EVOLUÇÃO CLÍNICA DAS ASFIXIAS • LESÕES GERAIS DAS ASFIXIAS


Resulta da combinação dos efeitos da hipoxia com os da
Os autores antigos descreviam uma série de lesões e sinais
hipercapnia. Camps 14 admite a existência de quatro fases na
que julgavam ser característicos dos quadros asfíxicos. Eram
evolução das asfixias por obstrução respiratória. Descreve
sinais externos e internos, assim como modificações na insta-
uma fase inicial de dispneia inspiratória, com respiração for-
lação e na evolução dos fenómenos cadavéricos. Atualmente,
çada e profunda, e cianose. Na segunda fase, a dispneia torna-
vários dos sinais considerados comuns ou mesmo próprios
se expiratória e é acompanhada de esforços extremos para
das asfixias não o são mais. Podem ser encontrados em ou -
eliminar o ar dos pulmões. A vítima perde a consciência, sua
tras formas de morte, violenta ou natural. Descreveremos os
pressão arterial sobe e o pulso torna-se lento. A terceira fase
chamados sinais gerais de asfixia, salientando as modificações
demonstra queda da pressão arterial, pulso rápido, elimina-
conceituais advindas com o progresso das ciências médicas.
ção espontânea de fezes, urina e esperma. Na quarta fase, os
movimentos respiratórios cessam, mas o coração ainda con- Dos sinais encontrados nas asfixias, alguns são externos e
observados pela simples inspeção do cadáver, enquanto ou-
tinua a bater por mais 10 a 15 minutos. Salienta que tal forma
de evolução é encontrada nos casos de obstrução mecânica tros necessitam d e inspeção interna das grandes cavidades e
das vias respirató rias e pode apresentar amplas variações com de suas vísceras.
o mecanismo etiológico e com os fatores individuais. Afirma,
ainda, que a descrição clássica dos fenómenos da asfixia pode Cianose
ser uma compilação dos sintomas gerados por obstrução das
vias respirató rias, compressão dos vasos do pescoço, excitação É caracterizada pela cor violácea escura dos livores, cor
direta dos pressorreceptores carotídeos e dos fenómenos bio- azulada dos lábios, leitos ungueais e polpas digitais e tona-
químicos provocados pela penetração da água nos pulmões lidade azul-púrpura muito escura do sangue da s cavidades
nos casos de afogamento. Concordamos e, por isso, achamos cardíacas 13 (Fig. 22.4).
desnecessário dividir a evolução das asfixias em fases. Cada Aparece quando o t eor de Hb não oxigenada no sangue
modalidade de asfixia evolui, de acordo com o agente etio- atinge 5 go/o. Se a pessoa tiver estado anêmico com 10 go/o de
lógico, em tempo maior ou m enor. Nas formas mais graves, Hb, terá que ter 50% dela não oxigenada para que a cianose
os fenómenos sucedem-se de modo muito rápido para que se torne aparente. Se a concentração da Hb estiver muito
possam ser grupados em fases distintas. diminuída, não haverá possibilidade de se atingir a taxa re-
ferida. Devemos lembrar que a cianose depende apenas da
Duração das Asfixias presença de grande concentração de hemoglobina reduzida,
sem relação com a concentração de C02 no sangue. Se as-
Assim como a evolução clínica varia com a forma de asfi- sim não fosse, seria difícil explicar a cianose dos indivíduos
xia, também a duração será diferente nas diversas modalida- não adaptados a atmosferas pobres em 0 2, como ocorre nas
des e, mesmo, dentro de cada uma delas. Em geral, pode-se grandes altitudes.
CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias • 519

Figura 22.4. Cianose intensa na face de homem morto por edema


pulmonar agudo. Verificação de óbito. IMLAP, 05/03171.

Se a cianose do cadáver custar a aparecer, não poderá ser


tomada como um sinal de morte asfíxica, já que as células
que ainda não morreram, principalmente os glóbulos bran-
cos, continuam a consumir o 0 2 do sangue. Desse modo,
somente se a cianose for intensa e observada precocemente, Figura 22 .5. Nítida petéquia na conjuntiva ocular de um homem morto
logo após ou apenas algumas horas depois da morte, é que por estrangulamento. Guia 15 da 18ª DP, de 26/04/74.
poderá ser considerada um sinal de asfixia. Autores ingleses
admitem que, após 24 horas, seja regra geral o aparecimento
de cianose mesmo em corpos de indivíduos que não morre- no gradil costal para visualizar a pleura visceral. Isso feito,
ram asfixiados 14 • Por outro lado, a cianose pode desaparecer asfixiava-os por sufocação ou por estrangulamento. Veri-
rapidamente se o corpo for colocado em ambiente muito fico u que as petéquias apareciam imediatamente antes da
frio, circunstância em que os livores assumirão tonalidade morte, no período das tentativas de expelir o ar dos pulmões.
avermelhada clara. É possível que isso se deva a uma con- E com maior frequência quando a morte era precedida de
centração maio r de 0 2 no ar atmosférico pela contração esforços respiratórios extremos e nos casos de compressão
volumétrica (lei de Charles e Gay-Lussac). Como vimos, a torácica ou de constrição do pescoço. Knight6 afirma que
solubilidade de um gás em um líquido varia na razão direta elas se devem à ro tura de vênulas por aumento brusco da
de sua concentração e na razão inversa da raiz quadrada de pressão venosa. Prova disso seria o surgimento de petéquias
seu peso molecular. Aumentando a concentração de 0 2, ele conjuntivais durante acessos de tosse ou de vómitos, sem
poderá difundir-se através da pele e reagir com a Hb dos tempo hábil para que houvesse hipoxia grave. Além disso,
capilares cutâneos. nos estrangulamentos em que o laço comprime as veias ju-
gulares, mas não costuma bloquear as artérias profundas,
Petéquias as petéquias são mais numerosas na face e nas conjuntivas
oculares. O mesmo aumento da pressão venosa pode levar
São focos puntiformes de hemorragia com diâmetro de a focos de hemorragia no espaço subaracnóideo por rotura
1 a 3 mm, encontrados tanto na pele e conjuntivas ocula- de pequenas veias. É possível encontrar pequenos focos de
res quanto nas serosas que revestem as vísceras e as grandes hemorragia perivascular no tecido nervoso encefálico, geral-
cavidades do corpo (Fig. 22.5). São vistas com maior fre- mente associado a edema em casos de morte por asfixia, seja
quência na pleura visceral, principalmente na face cisural, e violenta ou natural (Fig. 22.6). Os esforços intensos de ins-
no epicárdio. piração executados pela vítima nos casos de obstrução à en-
Tardieu 7 estudou-as em animais de porte médio e as con- trada do ar fazem aumentar muito a negatividade da pressão
siderava sinal típico de sufocação. Mas Thoinot 10, no início intrapleural, o que favorece bastante a dilatação das vênulas
do século XX, já lhes negava valor diagnóstico na sufocação, pleurais e sua possível rotura.
afirmando que estavam presentes nas outras formas de as- As petéquias podem ser encontradas em casos de hipoxia
fixia e mesmo em mortes não violentas. Apesar disso, são sem hipercapnia, em intoxicações exógenas, nos processos
conhecidas até hoje como manchas de Tardieu. Bro uardel8 sépticos e em casos de púrpura. Manobras de ressuscitação
realizou experiências com cães, nos quais abriu uma janela com massagem cardíaca podem fazer com que apa reçam na
520 • CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias

Fluidez do Sangue
A presença de sangue fluido nas cavidades cardíacas tem
sido considerada um sinal de morte por asfixia. Mas se tem
verificado também que pode ocorrer em outras formas de
morte rápida sem asfixia. Em 1948, Mole realizou estudos
sobre a coagulabilidade do sangue após a morte. Verificou
que, seja qual for a sua causa, o sangue coagula. Mas, nos
casos de morte rápida, notou que os coágulos desapareciam
após algum tempo. Concluiu que eram dissolvidos pela libe-
ração de um sistema fibrinolítico que entrava em atividade
nos casos de morte rápida e não apenas nos de asfixia 6 • 14 •16 •17 •
É aventada a hipótese, por alguns autores, de a fibrinólise
estar relacionada com o elevado teor de catecolaminas no
Figura 22.6. Corte de tecido nervoso subependimário que apresenta sangue do indivíduo pouco antes da morte rápida" .
pequeno afrouxamento da trama fibrilar. Ao centro e no canto superior
direito, os vasos venosos estão congestos e revelam hemorragia para o Espuma (Edema Pulmonar)
espaço de Virchow (perivascular). Caso de insuficiência cardíaca con-
gestiva. A-73-03 do Serviço de Patologia do HESFA. É um achado frequente em várias formas de asfixia. Pode
ser abundante, como nos casos de afogamento, em que chega
a constituir uma massa branca por fora das narinas e boca,
face e nas conjuntivas oculares, qualquer que tenha sido a ou ser tão escassa que so mente apareça por expressão da su-
causa da parada 15• Devem ser diferenciadas das petéquias perfície de corte dos pulmões. Depende do grau do edema
post mortem que aparecem nas áreas de m aior intensidade pulmonar (Fig. 22.7). Discute-se se o edema pulmonar das
dos livores cadavéricos. Essas aparecem apenas quando o asfixias resulta de ação direta da hipoxia sobre o leito vascular
corpo permanece por muito tempo em uma mesma posi- das paredes alveolares ou d e insuficiência aguda do coração.
ção, enquanto as fo rmadas em vida po dem ser encontradas A intensidade do edema pulmo nar e, como consequência,
inclusive na face do corpo oposta aos livores. Também não a quantidade de espuma dependem do tempo transcorrido
devem ser confundidas com pequenos pontos de sangra- entre o início dos fenô menos asfíxicos e a morte. Nas formas
m ento que surgem ao se descolar o couro cabeludo para lentas de asfixia, em que a vítima luta e consegue interrom-
exame da calo ta craniana. A distinção é feita facilmente ao per por momentos a ação do agente, acha-se, quase sempre,
se lhes jogar um jato d 'água. Mas isso não signifi ca que não maior quantidade de espuma. É o que ocorre nas formas de
possa haver petéquias verdadeiras aí localizadas; apenas de- estrangulamento com a m ão. No afogamento em água salga-
ve-se ter o cuidado de afastar a possibilidade de se tratar de da, o líquido hipertônico aspirado causa migração de líquido
um artefato de técnica. intersticial para a luz alveolar, como que com a finalidade de
O valor das petéquias no diagnóstico da asfixia fica ainda diluí-lo. Por isso, nesse tipo de afogamento, a água aspirada
mais abalado quando vemos casos genuínos sem que se as e o líquido de edema misturam-se com o ar alveolar para
encontre.

Congestão Polivisceral
A congestão generalizada das vísceras e das serosas tem
sido descrita como sinal importante de asfixia. Porém, a ex-
periência acumulada pela realização sistemática de necrop-
sias em hospitais-escola e em institutos de Medicina Legal
tem-se demonstrado de pouco valor. Existem casos descritos
de intensa congestão polivisceral não relacionados à obstru-
ção respiratória, bem como casos de obstrução sem conges-
tão significativa. Mas é possível que nos primeiros se trate
de asfixia natural, não violenta, e que, nos outros, a mo rte
tenha ocorrido por inibição, sem fenôm enos asfíxicos. Cabe
salientar que, em casos de intoxicação exógena, há congestão
polivisceral associada à fluidez do sangue, inclusive nas ca-
vidades cardíacas. Na realidade, a congestão deve-se a uma Figura 22. 7. Corte de pulmão no qual se observa preenchimento dos
falência cardíaca que antecede a morte, o que po de ocorrer alvéolos por material róseo homogêneo que representa o líquido de
tanto em mortes por asfixia quanto nas de outra causa. edema. HE, Objetiva 10x. Caso 5.556 do Serviço de Patologia do IMLAP.
CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias • 521

formar a espuma. Nos afogamentos de água doce, a espuma ção sanguinolenta por alguns dias. Nas constrições cervicais,
resulta, quase que exclusivamente, da mistura da água aspi- pode resultar disfonia por tempo indeterminado por lesão
rada com o ar alveolar. das cordas vocais.

• FENÔMENOS CADAVÉRICOS • CONCLUSÃO


A congestão e a fluidez do sangue proporcionam condi- Diante de um cadáver cianótico, com livores violáceos es-
ções ótimas para a formação dos livores de hipóstase que, curos e intensos, sangue líquido e escuro nas cavidades car-
por isso, instalam-se mais precocemente. Sua cor é violácea díacas, petéquias na pleura visceral e no epicárdio e conges-
escura em função da cianose que acompanha os quadros as- tão polivisceral, o perito tem a obrigação de procurar uma
fíxicos e da quantidade maior de sangue por cm 2 de pele. causa de m orte por asfixia, embora não possa, só por esses
A hipoxia intensa produz um desvio do metabo lismo no dados, afirmar que houve uma asfixia violenta. Na ausência
sentido de uma anaerobiose. A queima da glicose em vez de de outros achados que possam explicar a morte, deve, inclu-
chegar a CO2 e água só atinge a etapa de lacta to, de m odo que sive, solicitar exame toxicológico. Convém lembrar que, na
produz um a acidificação dos tecidos pela presença de íons H + maio ria das intoxicações exógenas, os achados de necropsia
do ácido láctico. Por isso, a quantidade de energia que deve- podem ser semelhantes aos das asfixias, principalmente se o
ria ser fornecida pela queima da glicose diminui e não é sufi- tóxico matar po r depressão dos centros respiratórios.
ciente para a restauração adequada do ATP, acumulando-se Por fim, nun ca é demais lembrar que, nos casos de asfixia
ADP e AMP. Estudos feitos em tecido nervoso do cérebro violenta de causa criminosa, os peritos tem que responder ao
de r atos anestesiados mostraram que, após 3 minutos de quarto quesito do exame cadavérico, que indaga, entre ou-
asfixia, o teor de AMP sobe para dez vezes o valor normal,
tras causas de qualificação dos homicídios, "se a morte foi
o pH diminui e há um aumento da concentração de lactato,
produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou
comprovando o desvio metabólico' 8• O ra, conforme vimos to rtura, ou outro meio insidioso ou cruel' 9 .
ao estudar a rigidez muscular, ela instala-se justamente por
causa da não reconstituição do ATP após a morte. Por isso,
com o a asfixia leva à redução das reservas de 0 2 e de ATP, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
as fibras musculares entram em rigidez mais rapidamente e
quase ao mesmo tempo nos diversos segm entos do corpo. 1. Guyton AC, Hall JE. Physical Principies of Gas Exchange, Diffusion
A rigidez é precoce e fu gaz nos casos de mo rte por asfixia. of Oxygen and Carbon Dioxide Through the Respiratory Mem-
Nas mortes não asfíxicas, ela demora um pouco m ais por- brane. ln: Textbook of Medical Physiology. 9'h ed. Philadelphia:
que ainda há, no sangue, um pouco de 0 2 , que pode ser W. B. Saunders Company; 1996. Capítu lo 39, p. 50 1-5 12.
2. Guyton AC, Hall JE. Transport of Oxygen and Carbon Dioxide in
utilizad o durante algum tempo na ressíntese do ATP após
the Blood and Body Fluids. ln: Textbook ofM edica l Physiology. 9'h
a morte. ed. Philadelphia: W. B. Saunders Company; 1996. Capítulo 40, p.
5 13-523.
3. Guyton AC, Hall JE. Red Blood Cells, Anemia and Polycyth emia .
• COMPLICAÇÕES DAS ASFIXIAS ln: Textbook ofMedical Physiology. 9• ed. Philadelphia: W. B. Saun-
ders Co mpany; 1996. Capítulo 32, p. 425-433.
Caso a asfixia não seja fatal, a pessoa pode recuperar-se 4. Guyton AC, Hall JE. Regulation of Respiration. ln: Textbook of
Medical Physiology. 9'h ed. Philadelphia: W. B. Saunders Company;
completamente, ou apresentar sequelas neurológicas ou de-
1996. Capítulo 41, p. 525-535.
correntes do próprio mecanismo que ca usou a asfixia. Os ór- 5. Fávero F. Energias de ordem físico-química. ln: Medicina Lega l. 1~
gãos mais afetados pela hipoxia são o cérebro, os pulmões e o vol. 8' ed. São Paulo: Livraria Martins Editora; 1966. Capítulo 14,
coração. O cérebro pode apresentar focos de amolecimento p. 346-383.
ou de hemorragia, muito pequenos nos indivíduos com boa 6. Knight B. Suffocation and 'asphyxa'. ln: Forensic Pathology. 2nd ed.
vascularização, ou maiores nos que já apresentam certa defi- Londres: Arnold; 1996. Capítulo 14, p. 345 -360.
7. Tardieu A. Étude Médico-Légale sur la Pendaison, la Strangulation
ciência circulató ria, em geral os mais idosos e portadores de
et la Suffocation. 2• ed. Paris: Librairie JB. Bailliere et Fils; 1879.
aterosclerose. Tais lesões causam sintomas focais, como afa- 8. Brouardel P. La pendaison, la stra ngu lation, la suffocation, la sub-
sia, paresias, parestesias, ou gerais, como tonteiras, cefaleia, m ersion. Paris: Librairie JB. Bailliere et Fils; 1897.
irritabilidade, sonolência, amnésia, passíveis de persistirem 9. Hofmann E. Nouveaux Eléments de Médecine Légale. Tradução
por tempo variado, difícil de serem prognosticados. para o francês por Emmanuel Levy. Paris: Librarie JB. Bailliere et
Os pulmões tornam-se presa fácil das invasões bacteria- Fils; 1981.
10. Thoinot L. Asphyxies Méchaniques. ln: 2• parte do livro Précis de
nas em geral pelo edema acumulado, pelo sofrimento das
Médecine Légale. Octave L. Thoinot, ed. Paris: Doin et Fils Éditeurs;
paredes alveolares, além dos focos de hemorragia do parên- 1913. Capítulo V, p. 586-802.
quima observad os em algumas formas de asfixia. Mesmo 11. Di Maio DJ, Di Maio VJ. Asphyxia. ln: Forensis Pathology. Boca
não havendo pneumonia, podem persistir tosse e expectora- Ratón: CRC Press; 1993. Capítulo 8, p. 207-5 1.
522 • CAPITULO 22 Conceito e Classificação das Asfixias

12. Guyton AC, Hall JE. Aviation, High Altitude, and Space Physio- 16. Mole R. Fibrolysin and the fluidity of blood postmortem. J Path
logy. In: Textbook of Medical Physiology. 9•h ed. Philadelphia: W. B. Bacteriol; 1948. 60:13-417, citado por Rezek e Millard.
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13. Guyton AC, Hall JE. Respiratory Insufficiency - Pathophysiology, Phillip R. Rezek e Max Millard, eds. Springfield: Charles C. Thomas
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537-545.
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14. Camps FE. Unnatural death due to asphyxia. In: Gradwohl's Le-
gal Medicine. 2• ed. Baltimore: The Williams & Wilkins Company; cisterna! CSF, and upon the tissue concentrations of phospho cre-
1968. Capítulo 18. atine and adenine nucleotides in anesthetized rats.Acta Physiol Scan;
15. Spitz WU. Asphyxia. In: Medicolegal Investigation of Death. 3'd 1970. 78:433-447.
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1993. Capítu lo XI, p. 444-497 . vraria e Editora Renovar Ltda.; 1988.
Hygino de C. Hercules

O termo sufocação tem sido empregado de modo diver- ção indispensável que a vítima esteja impossibilitada de re-
so pelas diferentes escolas doutrinárias. Os autores clássicos mover o obstáculo. Admite-se o suicídio quando o obstáculo
franceses como Balthazard 1, Brouardel2 e Thoino t3 conside- for um saco plástico envolvendo a cabeça.
ravam sufocação as asfixias causadas por obstrução das vias
aéreas superiores e as provocadas por compressão torácica. Os Forma Acidental
de língua inglesa, como Camps4, Di Maio5 e Knight6, adotam
O tipo de acidente mais comum é aquele em que a pessoa
postura diferente. Chamam a compressão torácica de asfixia
perde a consciência, ou está de algum modo impedida de se
traumática e estendem o termo sufocação às diversas moda-
mover livremente, e cai com o rosto voltado para baixo, de
lidades em que o prejuízo à respiração inclua desde a baixa
modo que os pesos da cabeça e do pescoço façam a compres-
concentração de oxigênio no ar inspirado até aquelas cau-
são contra a superfície de apoio e, com isso, o fechamento
sadas por obstrução dos orifícios naturais. Di Maio 5 inclui,
da boca e das narinas. Entre adultos, é o que ocorre em in-
assim, o confinamento. Knight6 reconhece certa confusão no
toxicações, como estados de profunda embriaguez, ou após
emprego dos termos ingleses que especificam as modalida-
mal súbito acompanhado de perda da consciência, como em
des. Por exemplo, a palavra choking é usada tanto para refe-
crises epilépticas tipo grande mal.
rir a obstrução das vias superiores por corpo estranho como
Em crianças pequenas, geralmente abaixo de 1 ano de
para os casos de estrangulamento com a mão. Assim, o estudo
idade, há a possibilidade de serem assim sufocadas ao dor-
em livros de língua inglesa requer cautela com a semântica.
mirem no mesmo leito que os pais, embora esse tipo de
Em face dessas controvérsias, preferimos dividir as sufo-
ocorrência seja motivo de controvérsias. Já foi adm itido
cações em do is grupos: sufocação direta, causada pela obstru-
de modo muito mais taxativo ao longo da história da
ção das vias aéreas superiores, inclusive os orifícios naturais,
Medicina Legal. O membro superior, ou mesmo o tronco
e sufocação indireta, pela compressão do tórax.
do adu lto, poderia pressionar a face da criança, o cluindo
seus orifícios naturais. Na Escócia, no fim do século XIX,
• SUFOCAÇÃO DIRETA Templeman propôs que fosse proibido às crianças peque-
ninas dormirem com adultos na mesma cama e que os que
É a modalidade em que o obstáculo à penetração do ar dormissem entorpecidos por algum tóxico, nessas condi-
nas vias respiratórias está situado em algum local desde os ções, fossem processados. Na Inglaterra, até 1985, se essa
orifícios naturais até a traqueia. proximidade resultasse na mo rte da crian ça, seria consi-
derado crime 7 . Atualmente, sabe-se qu e grande parte dos
casos atribuídos a essa forma de sufocação, na realidade,
Oclusão dos Orifícios Naturais são ocorrências da chamada síndro me da morte súbita in-
Não é muito frequente e pode ser causada por acidente fantil. Mas é difícil afastar a possibilidade de sufocação em
ou por ação criminosa. De uma forma ou de outra, é condi- casos concretos6 •7•

523
524 • CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação

Quando a superfície contra a qual a face pressionada é de


consistência mole, macia, como travesseiros ou colchões de
espuma, a pessoa tem os orifícios naturais obstruídos de mo-
do mais suave. Nesse caso, pode ser que consiga realizar os
movimentos respiratórios parcialmente, com dificuldade.
Assim, podem ocorrer duas situações diferentes no meca-
nismo, mas, com frequência, associadas. Em primeiro lugar,
os movimentos respiratórios incompletos não são suficien-
tes para a renovação do ar dos pulmões. Balthazard 1, no iní-
cio do século XX, já afirmava que a obstrução não precisava
ser total para ocorrer a morte. Em segundo lugar, o ar res-
pirado fica saturado de co2e pobre em 0 2 porque penetra
na porosidade do material da superfície durante a expiração
e é novamente inspirado sem renovação, nos movimentos
seguintes8 • Figura 23.1. Corpo de um homem que apresenta a cabeça envolvida
por sacos plásticos amarrados, inclusive no pescoço. fts mãos estão
Vários autores6.8 ·9 admitem uma variante desse tipo de
amarradas por trás do tronco. Note-se que os livores ocupam a metade
sufocação que ocorre com crianças pequenas, nas quais a direita do corpo. Guia 89 da 40ª DP, de 30/03/99.
cabeça do menor fica presa entre duas partes fixas à seme-
lhança de uma cunha (wedging). Geralmente, essas partes
são o colchão e a parede, ou um móvel quando a criança é
colocada no chão. No leito, pode realizar-se entre o colchão
e a barra lateral do berço, ou da cama. Em todas essas situa-
ções, a criança encaixa-se na brecha e não mais consegue
desprender-se, ficando com a face fortemente comprimida
pela superfície dura.
Outra forma acidental de sufocação é a que ocorre com
crianças que brincam de colocar sacos plásticos envolvendo
a cabeça. O mecanismo de morte não é fácil de explicar, já
que não há necessidade de que o saco esteja fechado na parte
inferior para que ela ocorra. Knight6 admite que haja uma
parada cardíaca reflexa por descarga do nervo vago, uma vez
que não são vistos sinais de asfixia.

Forma Criminosa
Requer grande superioridade de forças do agressor ou
impossibilidade de reação por parte da vítima. A diferença
de forças pode ocorrer por ser a vítima criança ou pessoa
idosa. A impossibilidade pode resultar de invalidez, po r pa-
ralisias ou imobilizações, ou de inconsciência ocasional. O
estado de inconsciência pode ser por abuso de drogas, doen-
ças e até mesmo anestesia (Figs. 23.1e23.2).
É difícil admitir quando se trata de um adulto normal
contra outro, mas, em casos de violência sexual, o agressor
pode sufocar a vítima com as mãos ao tentar impedir seus
gritos desde que ela seja mais fraca ou esteja dominada pelo
pavor. Do contrário, é preciso que seja impedida de reagir
por algum o utro traumatismo que a torne inconsciente, por
exemplo, contusão craniana; o u sem capacidade de lutar,
como fratura de membro superior. Não sendo assim, é pre-
ciso que haja mais de um agressor, de modo a contê-la. Por
vezes, ela é amarrada antes de ser sufocada.
Quando a vítima é uma criança, a diferença de porte físi- Figura 23.2. Mesmo caso da figura anterior. Após a remoção dos
co cria condições para que se realize. É uma das formas pelas sacos, é possível ver o amassamento do nariz e dos lábios, bem como
quais se consuma o infanticídio. Se for usado um material a imagem em baixo-relevo das dobras do plástico impressas sobre a
macio, não haverá marcas denunciadoras do ato. pele.
CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação • 525

A obstrução pode ser feita com as mãos do agressor, com de tamanhos variados. Mas podem faltar. Não é raro que se
sacos plásticos envolvendo a cabeça e o pescoço, com o auxí- note deformidade do nariz e da boca. Dependendo do tempo
lio de objetos macios, como travesseiros ou almofadas, mor- transcorrido entre a morte e o achado do corpo, podem-se
daças e, até mesmo, o solo, quando o agressor forçar o rosto notar livores de hipóstase intensos, menos naqueles pontos
da vítima contra a superfície sobre a qual ambos se apoiam. de compressão.
A obstrução feita com as m ãos costuma deixar estigmas Em se tratando de adultos, a posição em decúbito ventral
ungueais na pele ao redor das narinas e da boca e, às vezes, faz com que o aspecto seja semelhante, mas com livores mais
equimoses na face vestibular dos lábios. Nos casos em que intensos, por vezes com petéquias post mortem nessas áreas.
a vítima consegue algum grau de reação, podem ser obser- Mas a deformidade do nariz e da boca pela compressão não
vadas lesões por ação contundente em outros segmentos do é sufi ciente para atestar a sufocação, pois pode ser artefato
corpo como nas m ãos, nos antebraços e em outras regiões causado pelo peso da própria pessoa. Como regra, não há
do rosto. Por vezes, notam-se pequenas lacerações na face lesões sugestivas de luta ou de outras formas de violência.
vestibular dos lábios. Quando são usados objetos macios em Tampouco são encontradas petéquias conjuntivais na maio-
pessoas sem grande capacidade de reação, não ficam sinais ria dos casos.
da violência. É o que pode ocorrer com doentes comatosos O exame de local nos casos decorrentes de crime evi-
há longo tempo quando se esgota a paciência daqueles que dencia sinais de luta sempre que a vítima puder oferecer
deles cuidam6 . resistência. Para detalhes, ver o Capítulo 7. As sufocações
O uso de sacos plásticos para fins homicidas é menos co- criminosas por obstrução dos orifícios respiratórios deixam
mum que nos casos de acidente ou de suicídio. sinais quando realizadas com as mãos do agressor, ou quan-
Uma forma de sufocação criminosa m enos comum é o do este força o rosto da vítima sobre o chão ou outra su-
amordaçamento. De um modo geral, a mordaça é usada para perfície de apoio. Além disso, a presença de lesões de defesa
impedir que a vítima grite por socorro. Mas a asfixia pode nos membros superiores e de lesões pela associação de ou-
resultar seja do modo como o material é enrolado no rosto tras formas de violência ajuda na caracterização da origem
da vítima, seja de modificações subsequentes. Geralmente, o criminosa. Os estigmas ungueais e equimoses ao redor dos
material usado é formado por faixas de pano ou de plástico. orifícios naturais certificam a modalidade de asfixia. Na
Se as faixas forem enroladas de modo a cobrirem as narinas e face vestibular dos lábios, é possível encontrar lacerações ou
a boca, a sufocação pode vir a ser imediata se estiverem muito áreas de infiltração equimótica. Notam-se petéquias nas
apertadas. Se não for esse o caso, a pessoa continua a respirar conjuntivas oculares, como consequência do esforço feito
através d o pano durante algum tempo, mas a própria saliva para respirar. Nos casos de amordaçamento, além da pre-
e as secreções nasais podem tornar o material impermeável sença da mordaça, é comum que a vítima esteja manietada.
e dificultar progressivamente a respiração. Quando apenas a Por vezes, notam -se lesões po r ação contundente que deno-
boca é obstruída, em geral não ocorre sufocação. Mas, se a tam tortura prévia. O material usado no amordaçamento
boca estiver hermeticamente fechada e sobrevier obstrução pode estar sujo por secreções da vítima. Após sua remoção,
nasal por secreções ou edema, a situação pode-se compli- notam-se as marcas deixadas na pele, geralmente sulcos e
car6. Às vezes, o material da m ordaça é introduzido dentro cristas que correspo ndem a suas dobras.
da boca, podendo obstruir a o rofaringe e causar sufocação. O exame interno nada tem de específico, apenas sinais
gerais de asfixia, que também podem faltar. Balthazard' des-
Forma Suicida creveu uma distensão acentuada dos pulmões, principal-
mente dos lobos inferiores, próximo aos seios costofrênicos.
Knight6 refere que, na Inglaterra, têm ocorrido casos de Quando a sufocação faz parte de uma agressão sexual,
suicídio por meio de sacos plásticos ao redor da cabeça e que é comum que as roupas estejam rasgadas ou arrancadas e
sua frequência tem aumentado. Admite que é difícil afirmar que haja sinais decorrentes do ato libidinoso praticad o (ver
que o saco tenha sido colocado em vida. A presença de vapor Capítulo 27) .
d'água condensado em seu interior não é suficiente para o
diagnóstico, uma vez que pode surgir também quando o saco
é colocado em cadáveres de pessoas mortas há pouco tempo. Obstrução das Vias Respiratórias Superiores
O obstáculo à penetração do ar está situado na faringe,
Perícia
na laringe o u na traqueia. O povo costuma chamar essa
O diagnóstico de acidente na sufocação por obstrução forma de sufocação de engasgamento. É mais frequente em
dos orifícios naturais tem que começar por um bom exame crianças e em doentes mentais, mas pode ocorrer com qual-
de local, principalmente quando se tratar de crianças peque- quer pessoa. Idosos que usam próteses dentárias têm maior
nas com menos de 1 ano de idade. Não é raro que elas fiquem probabilidade porque as dentaduras prejudicam muito a
presas pela cabeça entre o colchão e uma trave lateral do ber- sensibilidade da mucosa bucal.
ço ou a uma parede quando estiverem no chão. Após a reti- Os tipos de objetos aspirados por crianças variam mui-
rada do corpo, podem ser observadas marcas nos pontos de to. Geralmente são pequenos, esféricos como bolas de gude,
apoio e compressão, representadas por placas de escoriação contas de colar, confeitos em forma de balas (balas soft),
526 • CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação

goma de mascar ou qualquer outro que seja pequeno o sufi- Entre adultos, geralmente débeis mentais, o mais comum
ciente para ser colocado na boca e, inadvertidamente, aspi- é que se engasguem com bolos de comida, principalmente
rado, como moedas e tampinhas de plástico. Há, inclusive, de alimentos mais consistentes, como pedaços de carne, fru-
determinação regulamentar para que brinquedos com pe- tas ou pão mal mastigados Esses deficientes, com frequência,
ças pequenas tenham, na embalagem, uma advertência para engolem a comida sem a devida mastigação. Mas esses aci-
que não sejam dados a crianças na fase oral do desenvolvi- dentes podem ocorrer com pessoas normais, principalmente
mento psicomotor. se estiverem embriagadas (Figs. 23.5 a 23.9).
Alguns tipos de alimentos têm o potencial de causar sufo- Já foi descrita uma síndrome, chamada de cafe coronary,
cação quando consumidos sem a devida cautela. O Dr. Carlos em que o indivíduo está comendo e, de repente, sente falta
Henrique Durão nos cedeu, para ilustração, fotos tiradas da de ar, tenta respirar e perde a consciência. Como as vítimas
necropsia de um menino de 2 anos e meio sufocado por um eram pessoas de idade madura, a morte era atribuída a infar-
pedaço de salsicha, que foi aspirado e se alojou no espaço gló- to do miocárdio. As autopsias mostraram que se tratava de
tico. Os pais do garotinho estavam em um restaurante a con- sufocação por bolo alimentar6·10 •
sumir um prato de "pica-pau", típico do norte de Portugal e
feito com pedaços de salsicha e de carne, servido como entrada
do jantar, quando o menino pegou um bocado com a mão e o
pôs na boca, seguindo-se a aspiração (Figs. 23.3 e 23.4).

Figura 23.3. Pedaço de salsicha impactado no espaço glótico de um


menino de 2 anos e meio. Cedido gentilmente pelo Dr. Carlos Henrique
Durão, do Instituto Nacional de Medicina Legal de Portugal. Figura 23.5. Obstrução da hipofaringe e laringe por bolo alimentar
formado por carne cozida, alojado um pouco acima das cordas vocais.
Coleção de ensino da Faculdade de Medicina da UFRJ.

Figura 23.4. Prato de "pica-pau" , que é feito com pedaços de carne Figura 23.6. Moeda alojada em um dos brônquios. Guia 61 da 10ª DP,
e de salsicha em meio ao molho. Mesmo caso da Figura 23.3. de 30/05/84.
CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação • 527

A obstrução da laringe também pode ocorrer duran-


te ou após cirurgia bucal, como extrações dentárias, ou de
otorrinolaringologia por aspiração de coágulos sanguíneos6 .
O próprio material ressecado pode, por acidente cirúrgico,
d eslocar-se e obstruir o espaço glótico.
Há, na literatura médico-legal, referência a suicídio com
corpos estranhos, como o descrito por Knight6, no qual um
indivíduo introduziu na faringe um vidro de comprimidos
fechado.
O mecanismo de morte nem sempre é claro. Em várias
ocasiões, faltam os sinais de asfixia. Ou a evolução é rápida
demais para que tenha havido asfixia. Alguns autores admi-
tem que possa ocorrer morte reflexa por excitação da mu-
cosa da faringe, ou laringe, pelo corpo estranho e resposta
Figura 23. 7. Bloco com os órgãos do pescoço e da boca. Da direita pelo nervo vago, levando a uma parada cardíaca imediata 4•6 .
para a esquerda, vemos a língua, a faringe e um bolo de alimentos
Como sempre, tais paradas não podem ser comprovadas,
sólidos que impede a visão da laringe. As paredes do esôfago estão
rebatidas e presas. Cedido gentilmente pelo Dr. Carlos Henrique Durão. apenas são presumidas em face de escassez ou ausência dos
sinais de asfixia.

Perícia
Geralmente, a história é bastante sugestiva do fato. Em
1970, Figueiredo 11 publicou o caso de um jovem que estava
m ascando chiclete e jogando futebol. De repente, ao dispu-
tar uma jogada, caiu como se tivesse sido atingido violenta-
mente e m orreu logo depois sem que houvesse tempo para
ser socorrido. O corpo foi removido para o IML do Rio de
Janeiro e a necropsia revelou a causa da morte - havia uma
massa de goma de mascar alojada no espaço gló tico e presa
às cordas vocais.
Na m aioria das vezes, o exame externo é negativo, poden-
do haver, ou não, cianose. Só a d issecção dos órgãos da boca
e d o pescoço permite a visualização da obstrução. O corpo
estranho costuma alojar-se no espaço glótico, logo acima das
Figura 23.8. Visão da epiglote, no centro da figura, comprimida por cordas vocais. A mucosa pode apresentar edem a na epiglote e
volumoso bolo de alimentos, que ocupa toda a metade direita da foto. nas cordas vocais e, por vezes, focos de hem orragia.
Mesmo caso da Figura 23.7. Quando se trata de bolo alimentar, é preciso fazer o d iag-
nóstico diferencial com aspiração de material mal digerido e
regurgitado. Na maioria das vezes, não é difícil porque o bolo
alimentar aspirado não costuma estar triturado ou acompa-
nhado por outros fragmentos. Em casos de persistir a dú-
vida, deve-se usar um papel indicador de pH. A acidez do
material aspirado indicará sua procedência gástrica6 •
A aspiração de vómito tem sido referida como causa da
morte em ocasiões distintas. Mas tem havido um certo exa-
gero. A aspiração em vida só é possível em estados de incons-
ciência ou de intoxicação que alterem os reflexos de defesa
do o rganismo, como na embriaguez alcoólica intensa. Nesses
casos, o ébrio tem as roupas sujas pelo vómito e a quantidade
de material aspirada é relativamente abundante6•
Pode haver penetração post mortem de pa rte do conteú-
do gástrico na traqueia, pela manipulação do cadáver, com o
foi demonstrado por Gardner. Ele introduziu pasta de bário
Figura 23.9. Acima da régua, vê-se o mesmo bloco da Figura 23.7 no estômago de pessoas recém-falecidas, ainda no hospital,
sem o bolo alimentar, que é visto abaixo da régua, cuja escala dá ideia e conseguiu encontrar o mesmo material na árvore tra-
do seu volume. queobrônquica, por exame radiológico feito no necrotério6 •
528 • CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação

Knight6 encontrou material gástrico na árvore respiratória do pelos famosos hooligans durante a partida entre o Liver-
em um quarto dos casos, em 100 necropsias consecutivas pool e o Juventus pela decisão da Copa Europeia de Futebol,
de adultos e crianças. Diz esse autor que, para que se afirme resultando em vários mortos.
que a aspiração ocorreu em vida, é preciso que se encon- As sufocações indiretas que ocorrem nos soterramentos
trem focos de necrose da mucosa respiratória ou de septos serão estudadas no Capítulo 25.
alveolares com reação inflamatória ao redor. Mas convém
lembrar que a aspiração de vómito causa broncoespasmo
e insuficiência respiratória, que pode evoluir rapidamente
Lesões Externas
para a morte, sem tempo para que tal resposta do organis- A compressão do tórax, além de impedir a inspiração,
mo seja nítida 12 • Na verdade, a melhor prova de que houve faz aumentar a pressão intratorácica, de modo que dificulta
aspiração em vida pode ser o depoimento de testemunhas, muito o retorno do sangue venoso pelas veias cavas superior
como no caso de aspiração durante anestesia ou na sala de e inferior e o enchimento do coração. Mas o ventrículo es-
recuperação anestésica. Um falso diagnóstico de morte por querdo continua a lançar sangue para o sistema arterial, de
aspiração de vómito pode esconder a real causa, além de tra- modo que continua o débito cardíaco, embora prejudicado.
zer sofrimento moral para aqueles que eram responsáveis Desse modo, o sangue que vai para a periferia tem gran-
pelos cuidados com o enfermo. de dificuldade de retorno e se acumula no sistema venoso,
com grande aumento da pressão na extremidade venosa dos
capilares e nas vênulas. Tal distúrbio é mais sentido no ter-
• SUFOCAÇÃO INDIRETA ritório da veia cava superior, principalmente na área dre-
nada pelas veias jugulares, que são desprovidas de válvulas
É a asfixia violenta causada por compressão do tórax. Os
antirrefluxo. Por isso, há pequenas roturas das vênulas e for-
autores ingleses referem-se a ela como asfixia traumática.
mação de minúsculos pontos equimóticos, vistos principal-
Ocorre sempre que uma pressão muito forte impede a ex-
mente na cabeça e no pescoço. Além disso, pelo aumento de
pansão torácica na inspiração. Mas é preciso não esquecer
pressão venosa, forma-se edema, principalmente nas partes
que a compressão tem que impedir também a movimenta-
em que o tecido conjuntivo de sustentação é mais frouxo,
ção abdominal. Pode ser causada por acidentes de trânsito,
como nas pálpebras, nas conjuntivas oculares, nos lábios e
desmoronamento de construções, deslizamento de encostas,
nas mucosas em geral.
ava lanches, estouro de multidões e ação criminosa. Com
Disso resulta que as pessoas vítimas de compressão to-
crianças pequenas, pode ocorrer quando dormem no mes-
rácica apresentam a pele da face semeada por milhares de
mo leito que os pais. A probabilidade de compressão torácica
é a mesma da sufocação direta. Na maioria das vezes, portan- pequeninas equimoses petequiais, tão próximas entre si que
to, a sufocação indireta é acidental. lhe conferem uma cor arroxeada muito escura, caracterís-
O tipo mais frequente é o que se dá em acidentes de trân- tica, conhecida como máscara equimótica de Morestin (Fig.
sito. Ora a vítima fica presa nas ferragens, ou entre o banco e 23.10). Thoinot8 refere que já foi chamada de infiltração
o volante; ora é jogada para fora de um veículo que capota e eq uimótica difusa da face por Lejars, de cianose cervicofa-
tomba sobre o seu corpo. Às vezes, fica imprensada contra um cial por Le Dentu e por máscara equimótica também por
anteparo, ou tem o tronco comprimido pela roda do veículo. Mauclaire e por Burnier, além de Morestin. As conjuntivas
As grandes aglomerações humanas por ocasião de re- oculares apresentam numerosas petéquias e edema, mas as
citais, eventos esportivos, festas e comemorações, quando hemorragias podem ser tão intensas a ponto de formarem
muito concentradas com relação às possibilidades de eva- coleções sanguíneas que cobrem toda a parte branca do olho
cuação, guardam um potencial de dano que se torna incon- e se projetam para fora entre as pálpebras. Estas, por sua vez,
trolável quando deflagrado. Balthazard' relata o estouro da estão tumefeitas por edema intenso e, por vezes, ajudam a es-
multidão que se aglomerava nas ruas e praças de Moscou em conder os globos oculares. Os lábios estão tumefeitos, assim
1896, quando da coroação de Nicolau II. Houve pânico por como a língua. Apresentam petéquias vistas pela face vesti-
algum motivo, e os milhares de pessoas aglomeradas come- bular. As gengivas podem revelar hemorragia confluente a
çaram a correr irracionalmente, de modo que grande núme- ponto de formarem um lençol hemorrágico. Por vezes, há
ro caiu e foi pisoteado, ou tinha que suportar sobre si o peso hemorragia externa por sangramento da mucosa nasal e até
das demais. Morreram mais de 3.000 pessoas, a maioria por otorragia6 (Figs. 23.11 e 23.12).
compressão do tórax. Knight6 menciona um empilhamen- As petéquias cutâneas podem estender-se até o tórax,
to humano que ocorreu em 1943, em Londres, durante um com intensidade variada. É comum que se tornem confluen-
bombardeio alemão na Segunda Guerra Mundial. As pessoas tes nos locais de maior intensidade dos livores de hipóstase.
correram para um abrigo na estação Bethnal Green do me- Aqui, a mancha hemorrágica pode ser extensa e interrom-
tró e, ao descerem os degraus da escadaria, algumas caíram pida apenas nas áreas submetidas à compressão externa nos
e tentaram segurar-se nas outras. O resultado foi que 173 pontos de apoio ou de dobras e espessamentos da roupa.
morreram, principalmente por compressão do tórax. Em Nos casos de soterramento, somam-se os efeitos do meio
1986, no estádio belga de Heis!, houve um tumulto provoca- soterrante.
CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação • 529

Figura 23.1 O. Máscara equimótica. Notam-se centenas de petéquias


em toda a pele da face, edema palpebral e dos lábios. Essa criança
teve seu barraco soterrado por deslizamento de terra na encosta de um
morro. Guia 18 da 24ª DP, de 26/02/71.
Figura 23.12. Máscara equimótica. Além da cor roxa escura devida
à confluência de centenas de petéquias, há edema palpebral e labial,
sangramento nasal e placa de escoriação na região masseterina direita.
Guia 72 da 7ª DP de 28/03/69.

Lesões Internas
Observam-se congestão pulmonar e manchas de Tardieu
na pleura e no epicárdio. Conforme o agente que produz a
compressão d o tórax, é possível encontrar fraturas costais,
com ou sem ro tura pulmonar adjacente, focos de infiltra-
ção equimótica no gradil costal e, às vezes, rotura de vísceras
abdominais. O exame da cavidade craniana pode mostrar
focos hemorrágicos na face profunda do couro cabeludo,
fratura de calota e focos de hemorragia subaracnó idea, de-
pendendo do agente causal.

Perícia
A maior dificuldade pode vir a ser determinar até que
ponto a morte foi causada pela compressão do tórax, uma
vez que a associação do histó rico com o exame externo per-
mite fazer o diagnóstico com facilidade. A coexistência de le-
sões po r ação contundente pode trazer dúvidas quanto à real
causa da m orte, desde que sejam idóneas para matar. Mas a
inexistência de coleções hemorrágicas de vulto nas grandes
Figura 23.11. A abertura da boca desta criança mostra hemorragia cavidades ou nos espaços meníngeos afasta a possibilidade
gengival difusa, edema labial e da língua, que está presa entre as ar- de ação contundente. Nos casos de soterramento, é preciso
cadas dentárias. Guia 19 da 24ª DP, de 26/02/71. examinar as vias respiratórias em toda a sua extensão.
530 • CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação

• SÍNDROME DA MORTE SÚBITA INFANTIL Importância Médico-legal


Do ponto de vista médico-legal, a importância de conhe-
A morte de crianças pequeninas sem uma explicação
cer os aspectos particulares dessa síndrome é não ser afoito
plausível tem causado problemas para os seus responsáveis
em diagnosticar morte por sufocação em crianças pequenas
desde a Antiguidade. Na maio ria das vezes, eram acusados
só porque elas apresentam sinais de asfixia, como congestão
de negligência e de terem sufocado a criança com o peso do
polivisceral, petéquias nas serosas e edema pulmonar. Antes
próprio corpo. A crença nessa possibilidade já foi tão ar-
de firmar o diagnóstico de sufocação, é preciso que se encon-
raigada que ensejou vários tipos de pena para aqueles
trem sinais sugestivos do tipo de violência sofrida pela crian-
acusados. A sucessão dos casos levados aos tribunais, po-
ça. Mas, por outro lado, na ausência desses sinais, é melhor
rém, acabou por fazer crer que a maioria não correspondia
considerar o caso como de morte de causa indeterminada
àquela acusação. Com o tempo, os patologistas começaram
quando não for possível obter um relato fidedigno e minu-
a aceitar a possibilidade de se tratar de uma forma de morte
cioso dos antecedentes e do local da morte antes de admitir a
súbita não violenta, com características de morte asfíxica.
síndrome da morte súbita infantil.
Atualmente, h á um consenso de que constitui uma síndro-
Todo cuidado é pouco antes de se firmar um diagnósti-
me particular. Foi definida pelo United States National In s-
co nesses casos. Mas algumas considerações se impõem. Em
titute of Child Health and Human Development como: "A
primeiro lugar, é preciso fazer um levantamento dos antece-
morte súbita de uma criança abaixo de 1 ano de idade que dentes familiares para saber se é o primeiro caso de morte
permanece inexplicada após uma investigação minuciosa, súbita de infante naquela família, ou se a pessoa que cuidava
incluindo autopsia completa, exame do local onde estava
da criança já esteve envolvida em algum caso semelhante.
o corpo e revisão da história clínica"7 • A partir de 1979, Di Maio 5 afirma que se deve admitir a ocorrência de um ou
passou a constar entre as causas de morte admitidas pela outro caso da síndrome, mas que dois casos na m esma famí-
Organização Mundial da Saúde. lia são bem pouco prováveis; três, impossível.
É um diagnóstico feito mais por exclusão do que pelas Realmente, a história traz exemplos de mulheres que,
alterações morfológicas encontradas. Para que se atribua a seguidamente, foram envolvidas em ocorrências dessa natu-
morte a essa síndrome, é preciso que a história clínica, os reza. No início do século XX, ficou famoso o caso da Sra.
dados m orfológicos macro e microscópicos e os exames mi- Jeanne Weber, que chegou a matar nove crianças, uma de 7
crobiológico e toxicológico não consigam estabelecer uma anos de idade. Os seus crimes foram cometidos ao longo de
causa conhecida. Sua incidência varia entre m enos de um a 4 anos, tempo durante o qual foi aos tribunais por três vezes
seis casos por 1.000 nascidos vivos, anualmente, nos países acusada de homicídio por sufocação e escapou duas vezes
que a admitem como causa de morte7 • O total anual nos EUA porque a prova pericial foi considerada fraca e repelida por
é de sete a oito mil 13 • pareceres dados por Thoinot. No último crime, foi surpreen-
O perfil epidemiológico da criança mo rta inclui idade dida em fla grante, asfixiando a vítima, e os peritos tiveram
entre 2 e 4 meses, sexo masculino, prematuro, baixo peso o cuidado de documentar bem as lesões para que seu laudo
ao nascer, com vários irmãos mais velhos, alimentado por não fosse refutado como os precedentes. Detalhes do caso
mamadeira, com hábito de dormir de bruços, de pais jo- podem ser lidos em Thornwald 14 •
vens e pobres, sendo a m ãe fumante ou usuária de drogas, Embora seja repugnante a ideia, já foram relatados vários
tendo sofrido infecção durante a gestação. Mas há desvios casos de mães que matam seus filhos seguidamente, confor-
desse padrão 7 • me noticiado por Toufexis 13 em artigo publicado na revista
A macrosco pia costuma revelar criança normal; bem- Time de 11/04/ 1994. Um dos casos foi o de Waneta Hoyt,
nutrida; com secreção mucosa ou serosa, por vezes espu- que chegou a matar seus cinco filhos, conforme ela mesma
m osa, nas narinas; ânus sujo de fezes; m ãos crispadas; acabou confessando cerca de 20 anos mais tarde. Só se es-
petéquias no timo, na pleura e no epicárdio; edema dos clareceram as mortes porque os dois últimos filhos fora m
pulmões; sangue líquido no coração; bexiga vazia e edema acompanhados por um médico interessado na síndrome da
cerebraF. Não há petéquias na face nem nas conjuntivas morte súbita infantil, que propunha que havia um defeito ge-
o culares. A microscopia confirma os achados macroscópi- nético capaz de fazer com que tais crianças tivessem parada
cos e pode revelar discreta esteatose hepática microvesicu- respiratória durante o sono. O levantamento minucioso das
lar e pequenos focos de infiltrado mo no nuclear na mucosa cinco mortes foi cair nas m ãos de uma legista, que cedeu
das vias aéreas 7 • uma cópia da tese daquele médico a um pro motor, que pas-
Apesar de haver milhares de trabalhos científicos tentan- sou a investigar mais a fundo o lado sombrio dos casos com
do descobrir uma causa para a síndrome, ainda não se tem olhos de policial. Acabou identificando a inicial H da família
nada de concreto. Todos os aparelhos e sistemas do organis- como sendo de Hoyt nos registros hospitalares e de assenta-
mo já foram incriminados, desde o sistema nervoso autó- mentos de óbitos. Na verdade, a Sra. Hoyt sufocou os seus
nomo até alterações imunológicas. Byard 7 acredita que haja cinco filhos. Três foram sufocados com um travesseiro, um
vários caminhos para se chegar a essa síndrome fatal, razão com uma toalha de banho e o outro teve a face comprimida
pela qual há tantos trabalhos contraditórios. contra o ombro da mãe. No mesmo artigo, são citados mais
CAPITULO 23 Asfixias por Sufocação • 531

três casos semelhantes em que a própria mãe matou os fi - 4. Camps FE. Unnatural death due to asphyxia. In: Gradwohl's Legal
lhos. Uma delas assassinou nove crianças. Medicine. 2"d ed. Londres: Williams & Wilkins; 1968. Capítulo 18,
p. 335-44.
A investigação desses casos tem que incluir os anteceden- 5. Di Maio JD, Di Maio VJ. Asphyxia. In: Forensic Pathology. Boca
tes familiares porque, nos casos d e ho micídio, há a história de Ratón: CRC Press; 1983. Capítulo 8, p. 207-51.
uma criança ter sido já atendida, por outras vezes, em emer- 6. Knight B. Suffocation a nd "asphyxia". In: Forensic Pathology.
gências hospitalares po r crises de insuficiência respiratória, Bernard Knight, ed. 2nd ed. Londres: Arnold; 1996. Capítulo 14, p.
sempre levada por outros familiares que não a mãe, o u po r 345-360.
amigos íntimos. Os que convivem com essas assassinas não 7. Byard RW. Sudden infa nt death syndrome. In: Sudden Death in
Infa ncy, Childhood and Adolescence. Roger W. Byard e Stephen D.
admitem a realidade po r causa do envolvimento emocional, Cohle, eds. Cambridge: Cambridge University Press; 1994. Capí-
até que a repetição dos casos torna impossível não se des- tulo 13, p. 41 7-497.
confiar de crime. Os psiquiatras propõem que se trata de dis- 8. Cohle SD. Accidental death. In: Sudden Death in Infancy, Child-
túrbio afetivo em que existe uma síndrom e de Munchausen hood and Ado lescence. Roger W. Byard e Stephen D. Cohle, eds.
por procuração. Na ânsia de receber atenção, em vez d e si- Cambridge: Cambridge University Press; 1994. Capítulo 2, p.
6-46.
mularem doença própria, agridem os filhos para receberem 9. Collins KA. Death by overlaying a nd wedging. A 15-year retrospec-
a ternura e a piedade dos m ais próximos. H á uma carência tive study. Amer J Forensic Med Path; 2001 . 22: 155- 159.
afetiva extremamente perigosa 13• 10. Spitz WU. Asphyxia. In: Medicolegal Investigation of Death. 3'd
ed. Werner U. Spitz, ed. Springfield: Charles C. Thomas Publisher;
1993. Capítulo XI, p. 444-497.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 11. Figueiredo JG. Oclusão da laringe por goma de mascar. Rev IM L
Gb; 1970. 1: (2) :29-31.
!. Balthazard V Suffocation. In: Précis de Médecine Légale. 2ª ed. A. 12. Stauffer JL. Lung. In: Current Medical Diagnosis and Treatment.
Gilbert & L. Fournier, eds. Paris: Librairie JB. Bailliere et Fils; 1911. 36'h ed. Lawrence M. T ierney Jr., Stephen J. McPhee e Maxine A. Pa-
Capítulo V, p. 181-185. padakis, eds. Londres: Prentice-Hall International; 1997. Capítulo
2. Brouardel P. La suffocation. Terceira parte, De La Pendaison, la 9, p. 236-319.
strangu lation, la suffocation, la submersion. P. Brouardel, ed. Paris: 13. Toufexis A. When is crib death a cover for murder? Time. p. 36-37,
Librairie JB. Bailliere et Fils; 1897. p. 381-418. 11 de abril de 1994.
3. Thoinot L. Asphyxies mécaniques. In: Précis de Médecine Léga le. L. 14. Thom wald J. Os mortos contam sua história. Tradução para o por-
T hoinot, ed. Paris: Octave Doin et Fils Éditeurs: 191 3. Capítulo V, tuguês por Leó nidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro: Editora
p. 586-802. Civilização Brasileira SA.; 1968.
Hygino de C. Hercules

Podem ser estudadas em conjunto, pois o mecanismo de • ENFORCAMENTO


m orte, qualquer que seja o tipo, resulta da inter ação de fa-
tores respirató rios, vasculares e nervosos, diferindo apenas É uma for ma de asfixia mecânica produzida por constri-
no que diz respeito à predominância de cada um deles. Os ção do pescoço por meio de um laço acionado pelo peso da
autores, em geral, distinguem duas modalidades, que são própria vítima. O corpo pode estar totalmente suspenso, ou
o enfo rcamento e o estrangulamento. No enfo rcamento, o apoiado parcialmente sobre o solo. No primeiro caso, diz-se
laço é acionado pelo próprio peso da vítima; no estrangu- que o enfo rcamento é completo; no segundo, incompleto. Às
lamento, por fo rça diversa do seu peso. Po r sua vez, o es- vezes, a suspensão é completa, mas a poucos centímetros d o
trangulam ento é dividido em dois tipos principais: com laço solo. Assim, se o material da corda ceder e esticar um po uco
e com as mãos. O estrangulamento com as mãos também com o tempo, um enfo rcamento completo pode to rnar-se
recebe a deno minação de esganadura'. Alguns autores de incompleto 2• Como verem os no estudo dos mecanism os de
língua inglesa admitem usar o termo throttling no m esmo morte dos enforcados, não há necessidade da fo rça de to do
sentido 2•3 • Mas há formas de estrangulamento que são di- o peso do indivíduo para que ela ocorra. Nos enfo rcamentos
fíceis de se classificar, por não serem feitas com o laço nem incompletos, o ponto de suspensão não está muito distan-
com as mãos. Um tipo é a constrição do pescoço feita com te do solo, de modo que os membros inferiores, e às vezes
os membros superiores, em que um deles faz uma pinça ten- m esmo os quadris, tocam a sua superfície. Nesses casos, se
a suspensão durar pouco tem po, o sulco pode ser mais raso
do o cotovelo com o po nto fixo, enquanto o outro a aperta
e se confundir com estrangulamento, principalmente se
puxando o punho para fechar o ângulo, a po pular "gravata".
tiver direção horizontal, com o ocorre nos casos em que o
Outra forma é a constrição com as coxas aplicadas na face
indivíduo se apoia nos joelhos e joga o corpo para diante.
lateral d o pescoço, como ocorre em golpes de luta livre. Al-
Knight 2 refere que isso aconteceu com o nazista RudolfHess,
meida Júnior 4 os inclui nas esganaduras. Também é difícil em 1987, na prisão de Spandau.
de classificar o estrangulam ento praticado pelos lutadores de Em certos casos de execuções judiciais, som a-se ao peso
jiu-jitsu e de judô, no qual parte da pressão é exercida pela da vítima o do carrasco, que se pendura no corpo do con-
gola do quimono e o resto do laço completado pela for ça denado pouco antes de se abrir o alçapão. Seja completo ou
das mãos e antebraços do lutador agressor ao tracio nar a incompleto, o mecanismo de morte nos enfo rcamentos de-
referida gola. pende tanto da tensão su portada pela corda quanto da posi-
Em face dessas dificuldades, ach amos m elhor usar ape- ção relativa do nó e da alça.
nas três termos: enforcamento, estrangulamen to e esgana- Estudarem os as alterações externas e internas encontra-
dura. Suas características e abr angência ser ão expostas a d as nas vítimas de enforca mento comum, não judicial, antes
seguir. de nos determos na apreciação dos mecanism os de m orte.

533
534 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

Alterações Externas
Seu estudo inclui as características do dispositivo de sus-
pensão, formado pelo laço, o nó e o ponto de suspensão, as
lesões presentes no corpo e as peculiaridades dos fenómenos
cadavéricos.

Dispositivo de Suspensão
O Laço
Em geral, é formado por apenas uma volta e dotado de
um nó, que pode ser fixo ou deslizante. Ao nó, opõe-se a alça
do laço. Se o nó estiver para trás, na nuca, e a alça para diante,
o enforcamento será chamado de típico. Fora dessa posição,
será atípico. Nesse caso, o nó pode estar colocado lateral ou
anteriormente. Em nosso meio, temos observado que o mais
comum é o nó estar situado entre a orelha e a protuberância
occipital. Os menos frequentes são os enforcamentos com o
nó situado anteriormente.
O laço pode ser confeccionado com cordas de náilon, fibra
ou cânhamo, cordões, fios, arames e outros materiais disponí-
veis, como toalhas, tiras de lençol, cintos, suspensórios, cadar-
ços, gravatas, cachecol, lenços ou qualquer outro improvisado
para esse fim. Em 1979, na Barra da Tijuca, um servente, acusa-
do de violar a própria filha adolescente, foi achado enforcado
no interior de uma cela da 1 6~ DP. O laço era formado por sua
calça comprida, que tinha sido colocada com a cintura a cava-
leiro por fora de uma das barras de ferro da janela e as pernas
caídas para o interior do cómodo, amarradas pela extremidade,
de modo a formar uma alça que passava por diante e lateral-
mente ao pescoço da vítima. O caso suscitou dúvidas quanto à Figura 24.1. Aspecto do laço formado pela calça, visto pelo lado de
causa jurídica da morte por parte da magistratura e teve gran- dentro da cela. Caso Aézio, 1fY DP.
de repercussão na imprensa nacional5 (Figs. 24.1 a 24.3).

O Nó
Como já referimos, pode ser fixo ou deslizante, simples ou
múltiplo. Certos tipos de nós são característicos de determina-
das atividades laborativas ou esportivas. Escoteiros, vaqueiros,
bombeiros e marinheiros conhecem tipos especiais de nós. Se
uma pessoa leiga nessas atividades aparece enforcada com um
laço cujo nó tem tais peculiaridades, é provável que se trate
de simulação de suicídio. Os peritos, nesses casos, devem es-
tar ainda mais atentos para os detalhes d o local onde o corpo
estiver. Entre os nós corrediços, o mais comum é constituído
por uma extremidade amarrada em forma de alça fechada,
por dentro da qual se passa e corre a outra ponta (Fig. 24.4).

O Ponto de Suspensão
Para que se processe o enforcamento, é necessário que
haja um ponto fixo mais elevado que ofereça resistência ao
peso do corpo. Quando o ato é consumado dentro de casa,
são usados elementos como portas, maçanetas, janelas de
grades, ganchos para redes, chapeleiros, haste da cabeceira Figura 24.2. A vítima ainda no local do enforcamento, vendo-se pro-
da cama e outros. Se ao ar livre, são mais comuns galhos de trusão e cianose da língua e o laço passando por diante da orelha
árvores ou postes. Knight 2 refere um caso em que o indiví- esquerda. Mesmo caso da figura anterior.
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 535

ções presentes no pescoço e nos outros segmentos do corpo


como, por exemplo, lesões por ação contundente decorren-
tes das convulsões que costumam anteceder a morte.

Sulco
É a alteração mais característica encontrada nos enfor-
cados. Tem grande importância médico-legal, tanto por ser
constante como por ser, via de regra, patognomônico. Em
raras ocasiões, pode ser tão superficial que passe despercebi-
do a um exame pouco minucioso, o que ocorre nos casos de
enforcamento incompleto com laço feito de material mole,
ou quando houver interposição de roupa ou outros mate-
riais entre ele e a pele. Em condições habituais, é oblíquo
com relação ao eixo do pescoço e ascende desde a posição da
alça até o local do nó. Quando esse é fixo, o sulco costuma ser
incompleto, porque se torna superficial à medida que dele se
Figura 24.3. Vista lateral direita da face e do pescoço, onde se nota aproxima, podendo interromper-se 2 (Figs. 24.5 e 24.6). Por
o sulco largo e marcado por depressões que correspondem às dobras outro lado, se o nó for de correr, quando o corpo fizer tra-
do pano. Há protrusão da língua e edema e cianose dos lábios. ção sobre a corda, o laço apertar-se-á de modo a comprimir
toda a circunferência do pescoço. Tanto com nó fixo como
no corrediço, o sulco sempre é mais profundo na área pres-
duo se valeu de uma corda estendida entre dois postes de um sionada pela alça (Figs. 24.7 a 24.9). O aspecto geral do sulco
jardim. No caso de serem usados galhos, a subida da vítima depende de vários fatores ligados à natureza do laço e ao tipo
pode deixar marcas na árvore e escoriações no seu corpo. de enforcamento, conforme veremos a seguir.

Lesões Externas Natureza do Laço


O corpo dos enforcados não costuma apresentar outros Se o laço for constituído por material áspero, o sulco
sinais de violência que não os causados pelo laço. A lesão apresentará largas áreas de escoriação, que terão cor pardo-
mais importante é o sulco produzido pelo laço ao redor do avermelhada. Se for feito de material mais mole, ou liso, o
pescoço. Além do sulco, devem ser estudadas outras altera- arrancamento da epiderme será muito menor ou nulo.

Nó em oito Nó comum Nó quadrado ou de marinheiro Variante do nó de marinheiro (nó torto)

Volta pelo seio

Nó deslizante Bowline

Sheepshank

Laço comum

Figura 24.4. Tipos especiais de nós. Adaptado de Encarta Encyclopedia, 1996.


536 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

Figura 24.5. Sulco bem demarcado pelo lado esquerdo do pescoço,


que ascende para trás em direção à nuca e se superficializa, desapare-
cento no couro cabeludo. Guia 167 da 3sa DP, de 23/04/98.

Figura 24.7. Sulco de enforcamento bastante profundo, oblíquo, as-


cendente em direção à nuca, completo. Olaço era deslizante e aparece
desfeito. Guia 43 da 21 ~ DP, de 26/02/69.

Figura 24.6. Lado direito do sulco, que termina no couro cabeludo, à


semelhança da metade esquerda. Mesmo caso da figura anterior.

Número de Voltas
O enforcamento com laço múltiplo não constitui rarida-
de, embora não seja frequente. Mas nem sempre o número de
sulcos corresponde ao número de voltas do laço ao redor do
pescoço. Quando há vá rias vo ltas, algumas se superpõem e
deixam impressão única. É possível que a pele entre uma
volta e outra fique pinçada, formando uma crista ao longo
d o sulco. Nesse local, podem -se formar pequenas vesículas
de conteúdo seroso6 . Além do mais, a ocorrência de mais de
uma volta dilui a força exercida pelo laço, de modo que os
sulcos fi cam menos profundos. Por vezes, nos laços com
mais de uma volta, um dos compo nentes pode apresentar
direção horizontal, geralmente a primeira laçada 6 •

Largura do Laço
O sulco deixado por laços largos é menos profundo do
que o causado por laços mais estreitos. Isso ocorre po rque
a pressão exercida em cada centímetro quadrado da pele é Figura 24.8. Visão da face direita do mesmo sulco, provando que não
inversamente proporcional à largura do laço, já que o peso é interrompido. Mesmo caso da figura anterior.
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 537

Figura 24.9. Pregueamento transversal ao sulco na pele adjacente à Figura 24.10. Sulco largo, pouco profundo, em que o fundo apresenta
sua borda superior. Os nós corrediços costumam se apertar mais con- faixas pálidas alternadas com outras mais cianóticas. O material usado
forme passa o tempo. Mesmo caso das Figuras 24.7 e 24.8. foi uma colcha de cama. Notam-se duas pequenas vesículas de conteú-
do serossanguinolento no seu terço médio em área onde a pele ficou
comprimida entre duas dobras do pano. Guia 69 da 9ª DP, de 19/08/71.
do corpo é uma constante. O aspecto do fundo do sulco de-
pende dessa relação. Em geral, é de aspecto apergaminhado,
consistência firme e cor pardo-amarelada quando o laço é
duro e de pouca largura. Sua superfície apresenta depressões
e saliências que correspondem às irregularidades do laço
(Figs. 24.10 e 24.11).

Peso do Corpo, Tempo eGrau de Suspensão


Interferem no aspecto do sulco porque são condições que
modificam a intensidade da força exercida pelo laço. Os indi-
víduos gordos sofrem trações muito intensas, de modo que o
sulco formado é bem mais profundo. No caso de se tratar de
enforcamento incompleto, até mesmo indivíduos obesos po-
dem apresentar sulco pouco intenso. Os sulcos menos níti-
dos são encontrados em pessoas magras submetidas a enfor-
camento incompleto durante curto tempo. Quanto maior o Figura 24.11 . Face esquerda do mesmo sulco da figura anterior. O
tempo entre a suspensão e a remoção do corpo, mais profun- nó estava situado sobre a área mais escoriada. A malha do tecido ficou
do será o sulco. As partes moles do pescoço vão cedendo gra- impressa em baixo-relevo na pele. Há uma prega de pele, situada trans-
dualmente à pressão, a ponto de o sulco ter aspecto aperga- versalmente ao sulco, na metade posterior, o que pode ocorrer em
minhado e maior transparência, em função da expulsão dos pessoas idosas e quando o nó é corrediço.
líquidos da pele por expressão. Olhando-se essa área de pele
pela face profunda, contra a luz, vê-se uma linha mais trans-
parente e clara, brilhante, que se chama linha argentina6 • Por isso, quando o nó está situado por trás - enforcamento
típico - , o sulco é mais profundo do que seria se o nó esti-
Extensão da Alça vesse por diante - enforcamento atípico anterior. Na nuca, o
Em alguns casos, o nó é fixo e o laço, muito longo, de sulco tende a ser pouco profundo e menos nítido, qualquer
modo que a alça entra em contato com o pescoço em meno r que seja o tipo de enforcamento.
extensão. Assim, a profundidade atingida pelo sulco é maior
do que seria se o laço fosse meno r e permitisse haver área Topografia e Deslizamento do Laço após a Suspensão
mais extensa de contato com a pele. Nesses casos, o sulco O sulco dos enforcamentos típicos costuma situar-se en-
costuma interromper-se antes de atingir o nó, sendo mais tre a borda superior da laringe e a topografia do osso hioide.
brusca a superficialização (Figs. 24.5 e 24.6). Em geral, desloca-se um pouco para cima do ponto inicial
de contato, em virtude da força constante exercida pelo peso
Posição do Nó da vítima6 . Esse deslizamento ocorre mais na zona do sulco
As partes moles da metade posterior do pescoço são relacionada com o nó. Na alça, o deslizamento é mínimo, se
mais resistentes à compressão do que as da metade anterior. houver. Pode ocorrer que se formem dois sulcos nas imedia-
538 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

ções do nó, um deles mais baixo e de menor intensidade e o petéquias na pele e nas mucosas, principalmente nas con-
outro mais acima e de maior profundidade. Por vezes, é pos- juntivas oculares. A língua, de tonalidade violácea, aumenta
sível encontrar estrias de arrancamento da epiderme unindo de volume e pode projetar-se para fora, de modo a ficar pre-
os dois sulcos. Isso tem levado à suspeita de tentativa prévia sa entre as arcadas dentárias (Figs. 24.12 e 24.13). Por vezes,
de estrangulamento. surge líquido sanguinolento das narinas e da boca.
Em alguns casos, existem pequenas escoriações compa-
Face tíveis com estigmas ungueais um pouco acima ou abaixo do
sulco. Indicam possível arrependimento tardio do indiví-
O aspecto geral da face varia muito. Pode estar cianótica,
ou não. Depende de ter havido constrição capaz de bloquear duo, que tenta afrouxar o laço com as próprias mãos. Não
devem ser interpretadas como sinais de esganadura, a não
o retorno venoso sem comprometer significativamente o
ser que haja outras marcas evidentes de violência, incom-
fluxo de sangue pelas artérias carótidas. Com base nesse as-
patíveis com a hipótese de suicídio. Nesse caso, estariam le-
pecto, os enforcados foram classificados em brancos e azuis.
sões incapacitantes, que tornariam impossíveis as manobras
Hofmann 7 afirmava que os enforcamentos típicos produ-
necessárias ao enforcamento, e outras que, pela localização
ziam enforcados azuis, o que não era observado nos atípicos.
Mas a experiência posterior veio demonstrar que tal regra e extensão, não poderiam ter sido produzidas pela própria
não correspondia à realidade. A maioria dos enforcados tem pessoa. Por exemplo, lesões típicas de defesa nos antebraços
a face pálida. James e Silcocks8 revisaram os casos de enforca- e nas mãos, e fraturas de ossos longos, ou mesmo do crânio.
mento examinados durante 15 anos, em Cardiff, e só encon-
Membros
traram 27% de enforcados azuis. Na verdade, a cianose da
face não depende de ter sido a morte causada predominante- No enforcamento completo, os membros costumam ficar
mente por asfixia e, sim, do bloqueio do retorno venoso. Essa estendidos ao longo do corpo. É possível encontrar pequenas
compressão venosa provoca edema das partes moles e forma escoriações ou equimoses discretas caso o corpo esteja pró-

Figura 24.13. Visão lateral direita do mesmo sulco, que tem direção
Figura 24.12. Enforcado azul. Notam-se coloração azulada da face e oblíqua ascendente e cor pardo-avermelhada. A face tem pele de cor
procidência da língua, que tem cor escura por intensa congestão e cia- mais escura pela presença de numerosas petéquias nas regiões mas-
nose. Guia 138 da 2P DP, de 04/09/70. seterina, parotídea e malar. Há projeção anterior dos lábios.
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 539

ximo de anteparos capazes de causá-las de modo passivo no delgada, a pele desliza com facilidade sobre o plano muscu-
momento das convulsões que antecedem a morte. lar. Este consta de músculos que formam, grosso modo, dois
níveis principais. O mais superficial é representado pelos
músculos esternocleidomastóideos nas faces laterais, e o tra-
Alterações Internas pézio posteriormente. O outro nível que nos interessa está
O exame interno dos enforcados costuma ser pobre. representado pelos músculos que unem o assoalho da boca,
Com exceção das alterações presentes no pescoço, não se o osso hioide, a laringe e o esterno. Existe, ainda, um grupo
observam lesões importantes. Na maioria das vezes, faltam muscular que tem menor interesse para o nosso estudo, os
até os sinais gerais de asfixia. No pescoço, os achados variam músculos pré-vertebrais (Fig. 24.14).
conforme a posição do nó e da alça, e com o mecanismo de O plano visceral contém os órgãos que estabelecem a
relação entre as vias aéreas superiores e a traqueia: faringe
suspensão do corpo. Para maior clareza, faremos pequena
e laringe. E entre a boca e o estômago: faringe e esófago
descrição da anatomia do pescoço.
(Fig. 24.15).
Esboço da Anatomia Cervical O plano esquelético é formado pelo setor cervical da co-
luna vertebral. Mas é preciso lembrar que o osso hioide tem
A anatomia topográfica do pescoço inclui, da superfície posição estratégica no plano visceral. Além desses elementos,
para o interior do corpo, os planos cutâneo, muscular, vis- no plano muscular, logo abaixo do músculo esternocleido-
ceral e esquelético. A pele é mais fina nas faces anterior e mastóideo, está o feixe vasculonervoso representado pelas
laterais, sendo mais espessa na face posterior, que é um pro- artérias carótidas primitivas, as veias jugulares profundas e o
longamento do couro cabeludo. Nas faces em que é mais nervo vago (ou pneumogástrico) (Fig. 24.14).

Figura 24.14. Desenho esquemático do pescoço, no qual sobressaem os músculos, o osso hioide, a laringe e os vasos profundos (artéria carótida
primitiva e veia jugular profunda).
540 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

Em se tratando de execução judicial, em que o corpo do


condenado cai de uma altura aproximada de 2 m , dentro
de um alçapão, como na Inglaterra, ocorrem graves lesões
na coluna cervical. O laço é colocado de modo atípico, com
o nó na direção de uma das orelhas. Há luxação e/ou fratura
no nível das vértebras C2-C3, ou C3-C4, e consequente ro -
tura da m edula cervical ou do bulbo9 . Ocorre parada res-
piratória imediata, à qual se segue a parada cardíaca após
tempo variado, que pode chegar a 20 minutos2• A violenta
distensão das partes moles do pescoço causa estiramento dos
vasos profundos, com lesão das artérias carótidas primitivas,
que podem sofrer rotura transversal completa9• Conforme o
peso da vítima, pode haver até decapitação 2•
Nos enforcamentos comuns, em que não ocorre a queda
do corpo num espaço vazio, podem ocorrer lesões nas partes
moles do pescoço, lesões vasculares e fraturas tanto da carti-
lagem tireoide da laringe como do osso hioide. É raro encon-
trarem-se focos de hemorragia ou roturas musculares, que
são mais comuns em outras formas de constrição. Quando
presentes, situam-se mais sobre os músculos digástrico, esti-
lo-hióideo e esternocleidomastóideo (Fig. 24.14). Hofmann7
nunca as encontrou em casos de suicídio. Principalmente no
enforcamento típico, ocorre grande pressão da base da lín-
gua e da laringe sobre a parede posterior da faringe, onde se
encontra, por vezes, uma infiltração hemorrágica que costu-
ma ser referida como equimose retrofaríngea de Brouardel1°.
A língua pode apresentar edema e coloração cianótica nos
enforcados azuis. Em alguns casos, acha-se uma zona de con-
tusão na sua borda lateral, com infiltração equimótica e, às
vezes, pequena rotura da mucosa, relacionada com as arca-
das dentárias. É causada por mordedura no momento das
convulsões e serve como bom indicador de reação vital.
Figura 24.15. Corte sagital da cabeça e do pescoço. Destacamos: A força exercida pelo laço sobre o feixe vasculonervoso
1) fossas nasais; 2) faringe; 3) laringe; 4) osso hioide; 5) membrana
do pescoço pode causar algumas lesões. De acordo com
tíreo-hióidea; 6) esôfago; 7) traqueia; 8) coluna vertebral; 9) língua.
Hofmann 7 e Thoinot6, Amussat descreveu uma rotura trans-
versal da túnica interna da artéria carótida primitiva, situada
logo abaixo da sua bifurcação, onde o sangue faz pequena
Lesões Cervicais Internas
dissecção na túnica média, que abrange extensão variada da
O exame interno dos enforcad os tem por finalidade circunferência d o vaso. Se se estender por toda a circunfe-
achar lesões que confirmem a causa da morte e que atestem rência, a íntima enrola-se sobre si m esma 7• É lesão pouco
a reação vital. Os aspectos mais impo rtantes são encontrados frequente e requer busca cuidadosa para não ser confundi-
no pescoço. Conforme a posição do nó e da alça, bem com o da com lesões acidentais feitas com a ponta da tesoura no
o mecanismo de suspensão do corpo, as lesões observadas mom ento da abertura do vaso. Balthazard'º cita Pehan, que
são diferentes. a encontrou em 8% dos casos de execução judicial que exa-
Convém examinar em primeiro lugar a cavidade crania- mino u. Alguns autores mencionam a presença de foco de
na. A remoção d o encéfalo, além de possibilitar a detecção hemorragia na túnica adventícia da carótida, referida como
de lesões de o utra natureza, é muito importante porque faz sinal de Friedberg' .
uma drena gem do sangue do sistema venoso da cabeça e do O plano visceral apresenta um esqueleto formado pelas
pescoço. Com isso, ao se dissecar o pescoço, as veias já esta- cartilagens da laringe e pelo osso hio ide (Fig. 24.16). Nos jo-
rão vazias e, quando seccionadas, não haver á sangramento. vens, apenas o osso hioide está calcificado; as peças cartilagi-
O sangue que flui das veias seccionadas durante a necropsia nosas ainda estão bastante flexíveis. O osso hioide é formado
costuma sujar a área examinada e mascarar os possíveis a partir de seis pontos de ossificação. Dois deles formam o
focos de infiltração equimótica dos planos profundos, com corpo central, ao qual se unem dois prolongamentos a cada
evidente prejuízo para a perícia. A maioria dos patologistas lado, um pequeno e outro longo, formados pelos outros pon-
fore nses conhece as dificuldades diagnósticas causadas por tos. São os cornos meno r e maior. A fusão dos cornos maio -
esse tipo de artefato. res com o corpo do osso faz-se ao longo da vida. Pode ser uni
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 541

5 5 vados nos diversos serviços. Por isso, não há uniformidade


na metodologia, pois o denodo com que tais lesões são pro-
curadas depende da boa vontade de cada patologista. De um
modo geral, há concordância de que as fraturas situam-se
nos cornos maiores do osso hioide e nos cornos superiores
da cartilagem tireoide. Numa revisão recente da literatura,
em média, houve fratura em 8% dos hioides e 15% das car-
tilagens tireoides". Knight2 refere um estudo prospectivo de
61 casos, feito por Luke, em 1985, que revelou fratura do
hioide em 23% e da tireoide em 13% dos casos. Acreditamos
que esses últimos resultados sejam mais fiéis à realidade por
estarem baseados em casos estudados de modo sem elhante
em função de um protocolo de pesquisa. Quanto ao local
da fratura, alguns afirmam serem mais frequentes próximo
à origem dos cornos, tanto no hioide quanto na laringe9, en-
quanto outros referem maior incidência no seu terço distal2.
Quando a fratura ocorre no indivíduo vivo, o sangue do
osso e das áreas calcificadas da cartilagem infiltra os tecidos
vizinhos. É bom sinal de reação vital. Mas é preciso cautela
na interpretação das fraturas sem hemorragia. Elas podem
ter ocorrido depois da morte e antes de se retirar o corpo
da forca. É preciso não esquecer que a força do peso da ví-
tima continua a atuar enquanto durar a suspensão. E que a
resistência dos cornos pode ser vencida somente depois de o
indivíduo estar morto.
Figura 24.16. Esquema do esqueleto do plano visceral do pescoço:
1) osso hioide; 2) cartilagem tireoide; 3) cartilagem cricoide; 4) corno su-
perior da cartilagem tireoide; 5) corno maior do osso hioide; 6) epiglote; Fenômenos Cadavéricos
7) seio carotideo; 8) artéria carótida primitiva; 9) membrana tireo-hióidea,
que é reforçada nas bordas e no centro por ligamentos fibrosos.
Se o corpo permanecer suspenso por tempo prolonga-
do, os sinais cadavéricos tardios instalar-se-ão de mod o pe-
culiar. Os livores hipostáticos tendem a se formar primeiro
nos m embros inferiores e nas extremidades dos superiores.
ou bilateral. Estudo feito com 300 hioides demo nstro u que
Quanto mais baixo estiver o segmento, mais intensos eles se-
havia algum grau de fusão em 31% dos indivíduos entre 20
rão e mais duradoura a suspensão. Com o correr do tempo,
e 29 anos e em 86% daqueles entre 60 e 69 anos 11 • Assim, em
surgem numerosas petéquias nos pés e nas pernas, seguindo
algumas pessoas, permanece um tipo de articulação entre o
para as m ãos e os antebraços (Figs. 24. 17 e 24. 18).
corno maior e o corpo do osso durante toda a vida. É impor-
tante saber dessa particularidade para não confundir uma
articulação persistente com foco de fratura do osso.
As cartilagens da laringe aumentam de consistência ao
lo ngo da vida, por calcificação, começando por volta dos 30
anos 3• Podem sofrer até ossificação parcial nas pessoas ido-
sas. Tal fato faz com que fiquem mais vulneráveis a fraturas,
principalmente os cornos superiores da cartilagem tireoide
pelo fato de estarem presos ao osso hioide pela membrana e
pelos ligamentos tíreo-hióideos (Fig. 24.16 ).
A dissecção do pescoço dos enforcados permite localizar
os pontos de fratura tanto da cartilagem tireoide como do
osso hioide. Knight2 aconselha que se remova o bloco dos
órgãos do pescoço para exame radiológico antes de se fazer a
dissecção, pois facilita a busca das fraturas. Mas há discordân-
cia quanto à incidência e à localização dessas fraturas. Prova-
velmente, as diferenças encontradas entre os diversos autores Figura 24.17. Pé de pessoa morta por enforcamento incompleto. Há
resultem do tipo de enforcamento, da acuidade da pesquisa e numerosas petéquias na porção côncava da região plantar. Ao lado
da média de idade da amostragem. A maioria dos trabalhos dessa área, a pele é pálida por compressão dos seus vasos nos pontos
é retrospectiva, o que significa que depende de laudos arqui- de contato com o solo. Guia 54 da 16ª DP, de 24/09/98.
542 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

Quando o laço é completo, os livores fo rmam-se na pele do mento, é difícil aceitar que haja impedimento à entrada
das regiões do pescoço situadas logo acima, que contrastam de ar nas vias respiratórias.
com a palidez d as situadas inferiormente. Sendo incompleto,
tal efeito só é observado na região da alça. Fator Circulatório
O acúmulo de líquidos na metade inferior do corpo re- Experiências feitas por Hofm ann em cadáveres, nos quais
tarda o aparecimento da rigidez muscular nesses segmentos, ele fazia suspensão do corpo por um laço ao redor d o pes-
principalmente nos membros inferiores. A putrefação ten-
coço e inj etava líquido nos grandes vasos, mostraram que as
de a ser coliquativa nessas áreas e mumificativa na m etade veias jugulares internas são fechadas com fo rça de 2 kg, as
su perior do corpo, m enos hidratad a. Tratando-se de enfo r- car ótidas primitivas com 5 kg, e as vertebr ais com 25 kg. O
camento incompleto, a distribuição desses fenómenos varia nível de obstrução situava-se um pouco abaixo da sua bifur-
com a posição d o corpo. cação, local onde são encontradas as roturas da íntima des-
critas por Amussat1°. Atualmente, sabe-se que o fluxo pelas
Mecanismos de Morte artérias vertebrais é insuficiente para manter a oxigenação do
cérebro. Por essa razão, o enfo rcado típico perde a consciên-
O mecanismo de morte nos enfo rcamentos, excluídos os cia logo em seguida à suspensão, em menos de 1 minuto 2 • A
judiciais, é complexo e depende de três tipos de fatores: res- isquemia cerebral consequente ao fechamento das carótidas
piratório, circulatório e nervoso. Passaremos a estudá-los de é suficiente para matar, independentemente de outros fato-
modo mais detalhad o. res. Por isso, os enforcamentos típicos incompletos po dem
ser bem -sucedidos.
Fator Respiratório Nos enfo rcamentos com o nó lateral, há compressão ape-
Depende de uma elevação e d o d eslocamento da base da nas da carótida do lado correspo ndente à alça. A do outro
língua para trás e para cima de modo a fechar a passagem do ar lado sofre um estiramento, mas não é comprimida. Por isso,
na faringe (Fig. 24.14). Ocorre de modo mais intenso nos en- não há grande prejuízo da irrigação cerebr al, inclusive no he-
fo rcamentos típicos, em que a alça pressio na fo rtemente o es- misfério correspo ndente à alça, pois há passagem de sangue
paço correspondente à membrana tíreo-hióidea (Fig. 24. 15) . da artéria não obstruída para o hemisfério oposto através de
Mas não é o responsável pela m orte. Se assim fosse, a maioria anasto moses no círculo arterial cerebral1 2 (Fig. 24. 19). Essa
d os enforcados típicos seria azul. Além disso, indivíduos tra-
queostomizados antes do enforca mento não morreriam 6 • A
laringe não costuma ser obliterada porque o laço se situa em
nível mais alto e o esqueleto cartilaginoso do órgão resiste
bastante à compressão 2'.
Nos enforca mentos com o nó situado lateralmente, a for-
ça exercida pela vertente anterior da alça é capaz de elevar a
base da língua o suficiente para obstruir a passagem do ar na
faringe. Contudo, se o nó situar-se anteriormente, na direção 4

Figura 24.18. Membro inferior de indivíduo encontrado em terreno Figura 24.19. Esquema do círculo arterial cerebral: 1) a. carótidas
baldio, pendurado em uma árvore, em estado de enfisema putrefativo. internas; 2) a. cerebrais anteriores; 3) a. comunicante anterior; 4) a.
Notam-se numerosas petéquias post mortem. Guia 19 da 1ll DP, de cerebrais médias; 5) a. comunicantes posteriores; 6) a. cerebrais pos-
16/05/69. teriores; 7) a. basilar; 8) a. vertebrais.
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 543

transferência do sangu e, porém, não ocorre de modo satisfa- mais comum em crianças pequenas e resulta de queda do
tório se as artérias estiverem estreitadas por processo de ate- menor para fora do berço, ficando com o corpo preso pelo
rosclerose. Sendo o enforcamento feito com o nó em posição pescoço entre as barras verticais laterais e pendurado para
anterior, o fator vascular é desprezível. fora. Por vezes, é um adulto embriagado que tenta entrar em
casa por uma janela de deslocamento vertical, escorrega, fica
Fator Nervoso preso pelo pescoço e perde a consciência rapidamente 17 •
A outra forma está associada a práticas masturbatórias e
Os autores antigos achavam que a compressão do nervo
é muito mais comum em homens. Deve-se à crença de que
vago era responsável pelas alterações dos batimentos cardía -
a asfixia aumenta o orgasmo, ou que cause alucinações de
cos que ocorriam nos enforcados6 •7 • Mas estudos posteriores
conteúdo erótico. Não é comum em nosso meio, mas rece-
mostraram a importância dos presso rreceptores localizados
be consideração especial de autores estrangeiros. A morte
nos seios carotídeos. A compressão desses elementos gera
resulta de perda súbita da consciência ou de falha dos me-
impulsos nervosos que são conduzidos pelo nervo glosso-
canismos que deveriam afrouxar o laço. É mais comum no
faríngeo e terminam no núcleo do nervo vago. Resulta em
estrangulamento, para o qual voltaremos ao assunto.
uma descarga de impulsos parassimpáticos que causam pa-
Entre as questões mais importantes na elucidação da
rada cardíaca. Alguns acreditam que o medo e a embriaguez
causa jurídica, a primeira é determinar se a suspensão ocor-
alcoólica favoreçam o mecanismo nervoso por causa do au-
reu em vida. Alguns sinais são categóricos quando presen-
mento de atividade do sistema simpático, mas isso não tem
tes. A existência de um quadro típico de cianose e petéquias
comprovação experimental2. Também não se sabe se a para-
acima do laço, com aumento de volume da língua e edema
da cardíaca é precedida por algum tipo de arritmia, nem se
inclusive palpebral, caracteriza a reação vital. Do mesmo
ela pode reverter espontaneamente 2.A compressão de um ou
modo, o achado de nítida hemorragia ao redor de focos de
de ambos os seios carotídeos sempre ocorre, qualquer que
fratura do osso hioide, ou dos cornos da cartilagem tireoi-
seja o tipo de enforcamento.
de, e da equimose retrofaríngea de Brouardel (Fig. 24.20).
Do que foi exposto anteriormente, percebe-se que ora
Em alguns casos, é possível ver foco de laceração e equimo-
um, ora outro mecanismo predomina, conforme o tipo de
se da borda da língua com relação com as arcadas dentá-
enforcamento. Mas, como a maioria dos enforcados não
ria s. Tratando-se de laço duplo, ou múltiplo, a presen ça de
apresenta cianose, o fator respirató rio n ão parece ser o mais
impo rtante.
Nos casos em que a pessoa é retirada do laço ainda com
vida, mas em coma por lesão irreversível d o cérebro, o d ano
ao tecido nervoso tanto pode ter sido causado por parada
cardíaca quanto por isquemia cerebral decorrente da obstru-
ção das artérias carótidas primitivas.

Causa Jurídica da Morte


A maioria dos enforcamentos deve-se a suicídio. A inci-
dência era tão gr ande que Simo nin referia chega r à metade
do to tal anual d e suicídios na França, n o início do século XX.
Trabalho mais recente indica que 95% dos enforcamentos
em Londres são por suicídios, e que esse é o segundo maio r
método usado no autoexterrnínio, perdendo apenas para os
enven enamentos 11 • Os 5% restantes devem-se a acidentes.
Em n osso meio, o enforcamento foi a causa mais comum
de suicídio em levantamentos feitos na década de 1990, no
Distrito Federal13, Porto Alegre 14 e Londrina 15 • No Rio de Ja-
n eiro, a análise amostral dos casos autopsiados entre 1966 e
1993 constatou ser o enforcamento o terceiro m étodo mais
frequente de suicídio, com 16% do total d e casos, perden-
do para os envenenamentos (3 1%) e para as defenestrações
(2 1%) 16 • Em to dos os trabalhos antes citados, houve predo-
minância do sexo masculino .
Considerando -se a extrema raridade de h omicídios por Figura 24.20. Fratura bilateral do corno maior do osso hioide, tendo
enforcamento, podemos afirmar que o restante dos casos a epiglote entre ambas. Há hemorragia representada pela coloração
de enforcamento deve-se a acidentes. Basicamente, há duas mais escura das partes moles adjacentes. Peça já em putrefação e
mo dalidades de acidentes de enforcamento. Uma delas é fixada em formol. Mesmo caso da Figura 24.18.
544 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

edema e bo lhas serosas na pele espremida entre duas voltas em uma cadeira, colocada de tal modo que as costas do su-
mostra que havia circulação. pliciado ficavam em contato com um poste situado por trás.
A suspensão e o enforcamento por ho micídio requer que Passava-se uma alça de aço ao redor do pescoço e do poste
o agressor incapacite a vítima de algum modo antes de sus- em forma de braçadeira, que era apertada progressivamen-
pendê-la, o u que o ato seja efetuado por mais de uma pessoa. te por meio de parafusos 1M . O diagnóstico diferencial entre
De qualquer modo, as lesões incapacitantes e as de conten- estrangulamento homicida e suicida será feito na seção refe-
ção servem para o diagnóstico diferencial. Além do mais, é rente à causa jurídica.
hipótese muito rara.
No caso de se suspender um cadáver para simular um Alterações Externas
suicídio e ocultar um homicídio, os sinais referidos faltam.
Além disso, as lesões relacionadas com a verdadeira causa O exame externo evidencia, além dos sinais gerais de asfi-
da morte costumam estar presentes. Ora são causadas por xia, outras formas de violência e, principalmente, alterações
ação contundente, como contusão ou fratura do crânio, ora relacio nadas com o tipo de constrição cervical.
são devidas a o utra modalidade de asfixia, como o estran-
gulamento. Algumas tornam impossível a execução dos atos Aspecto Geral
necessários ao suicídio por enforcamento. A presença de le-
Entre as formas de constrição do pescoço, o estrangula-
sões de defesa e de contenção atesta a agressão. Em situa-
mento é a que apresenta sinais de asfixia com maior constân-
ções especiais, o exame do ponto de suspensão pode ajudar
se feito antes de se cortar a corda. Tratando-se de corda de cia. Os livores são de cor violácea escura. Nota-se cianose das
extremidades, principalmente na face. Há congestão e peté-
cânhamo ou de outro material felpudo que passe por cima
quias, por vezes numerosas, na pele e nas conjuntivas ocula-
de uma trave horizontal, a orientação dos fiapos no ponto de
res. Nessas, podem confluir e formar áreas mais extensas de
contato indica a direção do movimento - se foi o corpo que
puxou a corda para baixo ou se foi uma força estranha que hemorragia (Fig. 24.21). As pálpebras podem estar tumefei-
suspendeu o cadáver. Conforme já referimos, nós peculiares tas, o m esmo ocorrendo com os lábios. Das narinas e da boca
a certas atividades profissionais em enforcados leigos no as- surde líquido serossanguinolento arejado em quantidade va-
sunto sugerem fortemente suspensão de cadáver. riada de um para o utro caso. Não é raro que se encontrem
A distribuição dos livores hipostáticos pode revelar adis- lesões de defesa, sinais de contenção e alterações da roupa
simulação de um crime. Basta que o corpo tenha sido mu- que indiquem luta.
dado de posição depois que eles já se tenham fixado. A nova
posição, em suspensão, fica em contradição com a distribui- Pescoço
ção prévia, mesmo que se for mem novos livores nos mem- É o segmento mais importante em função do laço e do
bros inferiores. Mas é um sinal que só tem valor se percebi- sulco. Mas, em casos de suicídio, o laço pode envolver outros
do no local em que se achar o corpo, pois pode haver nova segmentos corporais.
distribuição de livores durante o tempo transcorrido entre
a retirada do corpo do ponto de suspensão, o transporte e a Laço
realização da necropsia.
Pode ser constituído por qualquer tipo de material em
O diagnóstico diferencial com o estrangulamento está ba-
forma de tiras, cordões o u faixas. Cordas, fios elétricos, ara-
seado no aspecto do sulco e será abordado na seção seguinte.
mes, gravatas, cintos, lenços, meias, cachecol e lençóis têm
sido empregados (Figs. 24.22 e 24.23) .
• ESTRANGULAMENTO
É a forma de asfixia em que a constrição do pescoço é feita
por meio de um laço acionado por força diversa do peso da
vítima. Conforme observamos na introdução deste capítulo,
esse laço é formado simplesmente por qualquer material em
forma de tira, fio ou faixa. Mas pode, eventualmente, ser repre-
sentado por meios mais complexos que empregam segmentos
dos membros, com ou sem o auxílio da roupa da vítima.
A maioria dos estrangulamentos tem causa homicida.
Mas uma pequena proporção deve-se a suicídios, sendo raros
os estrangulamentos acidentais. O suplício por estrangula-
m ento foi usado no Império Romano como uma forma de
execução dos patrícios 18 e persistiu na Espanha contempo-
rânea, sendo abolido com a queda do ditador Franco. Era Figura 24.21. Área de hemorragia da conjuntiva bulbar do olho direito
conhecido então como garrote vil. O condenado era sentado em caso de estrangulamento. Guia 44 da 28ª DP, de 09/04/99.
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 545

Quando premeditado, o material escolhido costuma


ser leve e de uso fácil para surpreender a vítima, como
acontecia com frequência, em meados do século XIX, na
Inglaterra 6 • Os agressores eram ladrões que atacavam a
vítima por trás e lhes apertavam o pescoço até que per-
dessem a consciência para poderem despojá-las de seus
pertences. Embora o objetivo não fosse matar, várias pes-
soas morriam.
O laço costuma dar apenas uma volta ao redor do pes-
coço. Mas há laços múltiplos, tanto em homicídios quanto
em casos de suicídio (Figs. 24.22 e 24.23). Nos casos de ho-
micídio, é possível que o estrangulamento seja praticado
após agressão por outros meios que tornem a vítima in-
consciente. Nesses casos, é comum que o laço seja muito
apertado e mantido por um ou vários nós. Já vimos vários
casos de pessoas baleadas mortalmente que apresentavam
uma corda amarrada fortemente ao redor do pescoço (Figs.
24.22 e 7.11).
Os laços feitos por suicidas apresentam dispositivos va-
riados que visam a impedir que se afrouxem após a perda
da consciência. Para isso, o indivíduo pode dar nós ou, com
maior frequência, valer-se de torniquetes, ou ainda usar
materiais que, uma vez apertados, não afrouxem, como toa-
lhas molhadas. Thoinot6 refere o caso de um soldado que
se suicidou com um laço apertado no pescoço por meio
de um torniquete feito com o sabre embainhado. Tivemos
oportunidade de autopsiar um senhor idoso que se estran-
gulou com cordas de persiana passadas ao redor do pescoço
e das axilas de modo a serem apertadas por movimentos dos
ombros para trás (Figs. 24.24 e 24.25). Deitado em decúbito
dorsal, o laço não se afrouxou após a perda da consciência. A
constrição foi intensa o suficiente para interromper o retor-
Figura 24.22. Estrangulamento feito com laço duplo de corda fina no venoso, mas não o fluxo arterial para os membros supe-
amarrada com dois nós simples. Notam-se duas entradas de projéteis riores, o que produziu numerosas petéquias nas mãos e nos
de arma de fogo no pescoço. Guia 67 da 19ª DP, de 20/05/71. antebraços (Fig. 24.26).

Figura 24.24. Suicídio por estrangulamento feito com corda de per-


Figura 24.23. Estrangulamento com laço triplo de corda de náilon siana presa ao redor do pescoço e das axilas. Notar que os botões de
preto. Há extensas escoriações tanto acima como abaixo do laço. Guia puxar a corda servem para impedir o afrouxamento do laço, que está
155 da 6ª DP de 12/11 /98. Perícia feita pela Ora. Virgínia Rosa R. Dias. muito apertado. Guia 15 da 18ª DP, de 26/04/74.
546 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

Figura 24.25. Visão posterior do corpo do mesmo indivíduo da Figura


24.24, mostrando como a corda circundava o pescoço e as axilas. O Figura 24.27. Sulco horizontal, de profundidade regular, com o fundo
dispositivo deve ter sido colocado com os ombros dirigidos para a escoriado, em indivíduo estrangulado e baleado. Ocorpo foi encontrado
frente, de modo que, ao se pôr em decúbito dorsal, ficasse muito em uma estrada pouco movimentada, com características de execução.
apertado pelo relaxamento dos músculos e consequente deslocamento Exame de local e necropsia feitos pelo autor em 27/09/68.
daqueles segmentos.

Figura 24.26. Mesmo caso. Numerosas petéquias na mão e no punho.

Sulco
Tem aspecto variado porque depende da dinâmica do es-
tran gulamento, que é, n a maioria d as vezes, h omicid a. Mas Figura 24.28. Sulco de estrangulamento interrompido na face direita
apresenta algum as características constantes para essa form a do pescoço. A vítima levara dois tiros de raspão no crânio, com trauma-
d e con strição e servem para se fazer o diagnóstico diferencial tismo cranioencefálico. Guia 137 da 19ª DP, mostrado em aula do Curso
co m o enforca mento. Situa-se na topografi a da la ringe ou de Medicina da Universidade Gama Filho, em 27/11/2002 pela Ora.
entre ela e o osso hioide. Logo, é m ais b aixo qu e o do en for- Virgínia Dias.
cam ento. Sua direção é horizon tal, mesm o qu e tenha mais
d e uma volta. A profundidade é regular e unifo rme, em geral
pouco acentuad a (Fig. 24.27) . ria! m ole e elástico, fica pregu eado longitudinalmente e m ais
Na maioria d as vezes é completo. Se fo r feito com apenas fino, pen etrando m ais fundo na pele. Por isso, o sulco é bem
uma volta d o laço, costuma haver trespassamento de um a mais estreito do que o pan o desdobrado (Fig. 24.29).
extremidade sobre a outra antes d e desaparecer (Fig. 24.28). O fundo é, em geral, escoriado e de cor pa rdo-averme-
Sua largura é sem elhante à do mat erial do laço, mas pode lhada quando o laço fo r áspero co m o uma corda de sisai,
ser ma ior se ho uver deslizamento durante a luta (Fig. 24.22). por exem plo, e se trat ar d e ho micídio. A luta da vítima para
O u menor. Qu ando o laço é feito de pano o u qualquer m ate- se livrar do laço faz com que esse d eslize sobre a pele, ar-
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 547

imagem da textura do material do laço em baixo relevo. Se


houver torniquete ou nós, esses deixarão sua imagem na pele
subjacente em baixo relevo (Fig. 24.30).
A permanência do laço após a morte faz com que o sulco
se torne mais profundo com o passar do tempo. A pele ad-
jacente pode apresentar uma falsa hiperemia decorrente da
migração do sangue pela expressão dos tecidos do fundo do
sulco 2• Sobrevindo a putrefação, a profundidade do sulco fica
muito maior, por vezes chegando a esconder o laço.
A região próxima das margens do sulco pode apresentar
equimoses e escoriações (Fig. 24.31 ).
Figura 24.29. Echarpe de náilon usada para cometer suicídio com o A presença de escoriações em forma de estigmas un-
auxílio de uma máquina manual de moer carne. A Figura 24.42 é do gueais ou de pequenas faixas paralelas e no sentido longitu-
mesmo caso. Guia 69 da 28ª DP, de 27/06/84. dinal ao pescoço pode indicar tentativa da vítima de puxar e
se livrar do laço.
Nos laços múltiplos que ficam amarrados no pesco-
rancando a epiderme (Fig. 24.22). Mas pode apresentar-se ço após a morte, é possível ver a pele insinuada entre duas
apergaminhado quando o laço for mantido muito aperta- voltas vizinhas, formando uma crista que pode apresentar
do ao redor do pescoço após a morte. Nesse caso, o aspecto edema, infiltração equimótica e bolhas de conteúdo seroso
fica parecido com o do sulco do enforcamento e apresenta (Fig. 24.32).

Figura 24.31 . Estrangulamento por meio de fio elétrico apertado por


Figura 24.30. Sulco de estrangulamento com laço duplo e provido de torniquete que foi removido. A pele adjacente ao sulco inferior e a da
nós na face direita do pescoço (Fig. 24.22). Seu aspecto apergaminhado região parotídea evidenciam petéquias confluentes. A pele entre os
e direção oblíqua são sugestivos de enforcamento, que não foi o caso. sulcos apresenta pequenas bolhas decorrentes da compressão da pele
A pele entre as duas voltas está edemaciada e com alargamento dos entre as duas voltas do laço. Guia 63 da 24ª DP, de 24/06/2002. Caso
poros. da Dra. Zuleika K. Sauaia do IMLAP.
548 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

Figura 24.32. Detalhe da Figura 24.31 para mostrar o edema da pele Figura 24.33. Interrupção brusca de um sulco de estrangulamento
insinuada entre as voltas do laço, caracterizado pelo alargamento dos na topografia do músculo esternocleidomastóideo. Essas descontinui-
poros e pequenas bolhas de conteúdo serossanguinolento. dades do sulco podem ser causadas pela interposição de algum objeto
entre o laço e a pele. O fundo do sulco tem aspecto apergaminhado e
pequenos pontos esbranquiçados por destacamento da epiderme após
Nos casos em que o agressor fica por trás e em plano su- a morte. A vítima levou dois tiros de raspão no crânio, que provocaram
perior ao pescoço da vítima, o sulco pode ser oblíquo e in- pequena fratura e hemorragia subdural discreta. Mesmo caso da Rgura
terrompido porque o laço tem forma de "U", o que dificulta 24.28.
muito o diagnóstico diferencial com o do enforcamento.
O sulco pode faltar em alguns casos. Em primeiro lugar,
quando o material que constituir o laço for largo e liso, e a
duração e a intensidade da constrição forem pequenas, como
nos casos de infanticídio. Mas é mais comum que falte nos
estrangulamentos feitos com técnicas de luta livre. O braço e
o antebraço do agressor são muito largos e moles, costumam
atuar por po uco tempo, e, em geral, a finalidade é apenas
conter a vítima, como ocorre pela ação de policiais durante
tumultos e de enfermeiros contendo pacientes em agitação
psicomotora. No caso de haver interposição da roupa, da
barba ou da m ão da vítima, o sulco não desa parece, fica ape-
nas interro mpido (Fig. 24.33).
Antes de se interpretar uma lesão circular no pescoço
como sulco de estrangulamento, é preciso afastar a possi-
bilidade de se tratarem de falsos sulcos. Algumas pessoas, Figura 24.34. Pregas naturais na face posterior do pescoço de um
principalmente as idosas e alguns indivíduos obesos, apre- homem idoso. Guia 24 da 13ª DP, de 23/04/71.
sentam pregas naturais, únicas ou múltiplas, paralelas entre
si, ger almente pouco profundas, situadas horizontalmente
no pescoço (Fig. 24.34). Seu fundo corresponde ao vértice cardíacas e nas grandes veias. As serosas apresentam núme-
d o "V" formado pelas duas vertentes e não tem escoriação. ro variado de manchas de Tardieu. Os pulmões evidenciam
Alguns lactentes também as a presentam. No período enfise- grau variado de edema, que faz com que a árvore brô nquica
matoso da putrefação, podem-se formar pregas sem elhantes contenha líquido espumoso serossanguinolento em quan-
pelo aumento de volume das partes moles. tidade variada de um para o utro caso. Nos casos menos co-
muns em que a morte seja por mecanismo não asfíxico, tais
Alterações Internas alterações faltam.

Devem ser procuradas as relacionadas com o processo de Pescoço


asfixia e as relacio nadas com o laço.
Nos estrangulamentos puros, não associados à esgana-
dura, o exame dos planos profundos do pescoço é pobre na
Sinais Gerais de Asfixia
maioria das vezes. Contudo, quando o estrangulamento é
Em geral estão presentes. Há congestão polivisceral gene- feito com o auxílio de um torniquete, a pressão desenvolvida
ralizada, o sangue costuma ser líquido e escuro nas cavidades é muito maior do que a gerada pela força de um agressor.
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 549

Assim, é possível visualizar focos de hemorragia por d ebaixo equimoses e início d e formação de crostas se tiver hav ido
do sulco, no tecido subcutâneo e na musculatura adj acente escoriação pelo laço. Tivemos a oportunidade de examinar,
(Fig. 24.35 ). A laringe pode apresentar focos d e hemorragia no Instituto de Pediatria e Puericultura Ma rtagão Gesteira,
na mucosa, na musculatura intrínseca e fratura do escudo ou um menino que fora encontrado chorando no meio de uma
dos cornos da cartilagem tireoide. área erma da Ilha do Fundão, depois de ter sido espancado
e estrangulado por uma mulher que saía com seu pai. Havia
discretas marcas d e sulcos no pescoço e uma ferida contusa
Alterações em Sobreviventes
no setor parietal direito do couro cabeludo. No dia seguinte,
Nem sempre o estrangulamento termina com a morte d a nós o encontramos na enfermaria do Instituto e pudemos
vítima. Algumas pessoas mais afortunadas conseguem esca- documentar vários sulcos avermelhados, nítidos, ao redor
par. Nessas, observam-se alterações decorrentes das lesões de to da a circunferência do pescoço, alguns interrompidos.
cervicais e distúrbios neurológicos relacionados com o sofri- Sua face apresentava petéquias minúsculas e numerosas
mento do cérebro durante o período de asfixia. (Figs. 24.36 e 24.37).

Distúrbios Locais
O sulco costuma fi ca r muito mais nítido no dia seguinte.
H á hiperemia, que pode revelar ter havido várias constrições
pela multiplicidade de sulcos revelados e que não eram visí-
veis por ocasião do primeiro exame. Podem aparecer novas

Figura 24.36. Vários sulcos horizontais, alguns interrompidos, com o


fundo escoriado e de cor pardo-avermelhada. Há equimose violácea e
tumefação na região malar. Caso E95-18576 do Instituto de Puericultura
e Pediatria Martagão Gesteira da UFRJ.

Figura 24.35. Infiltração hemorrágica no músculo esterno-hioideo Figura 24.37. Presença da vários sulcos horizontais na face esquerda,
direito em caso de estrangulamento homicida por meio de fio elétrico e em continuidade com os da face direita mostrados na figura anterior. A
garrote. Guia 64 da 2~ DP, de 24/06/2002. Caso da Dra. Zuleika K. pele entre um e outro apresenta infiltração equimótica violácea pouco
Sauaia do IMLAP. intensa.
550 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

A forte constrição sobre a laringe faz com que haja edema ocorrer sequelas gravíssimas o u apenas sinais de sofrimento
da mucosa e, por conseguinte, das cordas vocais. Tal edem a cerebral. Assim, o indivíduo pode ter convulsões e ficar em
pode ca usar dificuldade respiratória por estreitamento da coma profundo po r tempo indeterminado ou, se recuperar
passagem do ar. A respiração fi ca ruidosa, e é possível no tar logo a consciência, apresentar sintom as leves, pr incipalmen-
depressão das fossas supraclaviculares e dos espaços inter- te amnésia com relação ao fato, confusão mental ou crises de
costais na inspiração (sinal de tiragem ). O indivíduo pode agitação e de pânico.
apresentar tosse com eliminação de secreção serossanguino-
lenta. Em casos extremos, pode haver complicação pneumó-
nica. Há disfonia de grau va riado, podendo chegar à afonia.
Mecanismos de Morte
A compressão das partes moles e da musculatura do pescoço, Teo ricamente, são possíveis os três mecanismos já refe-
da faringe e do esófago faz com que o indivíduo apresente ridos para o enforcamento. Mas as condições do estrangu-
dor à m anipulação e m ovimentação do pescoço. A d egluti- lamento variam muito em r azão do tipo de laço, do uso de
ção costuma ser muito dolorosa (odinofagia). O edema das dispositivos capazes de ampliar a força constritora e da luta
partes m oles do pescoço e da face torna-se mais nítido. As da vítima par a escapar.
conjuntivas oculares evidenciam congestão, edem a e grande Os estrangulamentos feitos com laço acionado pela for-
alargamento d os focos hemorrágicos. Em 1995, foi exami- ça simples do agressor causam, inicialmente, bloqueio do
nado no Serviço de Clínica do IMLAP um hom em que fo ra retorno venoso. Isso explica por que a maio ria d os casos
assaltado e estrangulado pelos ladrões, que o abando naram apresenta congestão intensa e petéquias na face e nas conjun-
no local, pensando que estivesse morto. No dia seguinte, tivas oculares. Aumentando a fo rça, há redução do fluxo de
apresentava edem a m oderado e petéquias na face, infiltração
sangue pelas artérias carótidas, podendo chegar à obstrução
equimótica e tumefação palpebral, e extensas hemorragias
completa. Nos casos em que se usa torniquete, é o que ocorre
conjuntiva is que cobriam toda a parte branca de ambos os depois da obstrução venosa. Knight 2 admite que haja perda
olhos (Fig. 24.38).
da consciência mesmo sem obstrução total das carótidas. A
pressão exercida distribui-se igualmente pela circunferência
Distúrbios Neurológicos
do pescoço, de modo que a compressão em cada setor não é
A perda da consciência pode durar ho ras. Dependendo tão intensa quanto a que ocorre na região da alça nos casos de
do tempo de isquemia cerebral e do grau da asfixia, podem enfo rcam ento. Mas o componente de pressão sobre a laringe,
deslocando-a de diante para trás, leva à obstrução da faringe
acima da glote. O fechamento da laringe, nesses casos, é me-
nos provável. Além do mais, não há necessidade de obstrução
completa do fluxo aéreo para que o indivíduo morra 18•
O mesmo, no entanto, não se pode dizer quando a cons-
trição é feita com o braço e o antebraço do agressor ("grava-
ta"). Nesses casos, se o antebraço se situar transversalmente
na face anterior d o pescoço, pode haver bloqueio da glote
sem que haja impedimento ao fluxo de sangue pelas artérias
carótidas3 . Contudo, se a posição for lateral, com o cotovelo
do agressor na direção da linha mediana da vítima, dar-se-á o
contrário. Haverá fechamento dos vasos e pouca obstrução da
passagem do ar 3• É o que ocorre nos estrangulamentos aplica-
dos por lutadores de jiu-jitsu e de judó. Várias são as pegad as,
mas o objetivo é cortar o fluxo de sangue para o cérebro, de
modo a fazer o contendor"apagar''. Uma das técnicas consiste
em cruzar os antebraços por diante do pescoço do oponente
e segurar a gola do seu quimono na parte da nuca. Isso feito,
os antebr aços dispostos em "X" comprimem a face lateral do
pescoço quando se afastam os cotovelos (Fig. 24.39).
O ra, tendo em mente que as ações são muito dinâmicas,
I com mudança de posição durante a luta, torna-se difícil afir-
mar qual m ecanismo foi m ais importante na causa da m orte
Figura 24.38. Aspecto da face de um homem que sofreu tentativa de em cada caso concreto. Como a maioria apresenta sinais ge-
estrangulamento durante um assalto no dia anterior ao exame. Há rais de asfixia, devemos admitir que haja uma associação dos
edema e infiltração equimótica palpebral, extensa hemorragia na con- fatores respiratório e vascular na maioria dos casos.
juntiva bulbar de ambos os olhos e tumefação labial. Exame de lesão Embora não se possa afastar a participação do fato r ner-
corporal 112 15604/95 do IMLAP. voso, já que sempre há compressão dos seios carotídeos,
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 551

1
3

Figura 24.39. Desenho esquemático que procura explicar o mecanismo de compressão das artérias carótidas e veias jugulares por uma das
técnicas usadas em jiu-jitsu. As duas barras cruzadas em "X" representam os antebraços do estrangulador e as setas, o seu deslocamento. 1) artéria
carótida primitiva; 2) músculo esternocleidomastóideo; 3) esôfago; 4) traqueia; 5) gola do quimono; 6) vértebra cervical.

parece que ele não é tão importante nos casos de estrangu- !ada enquanto ele se masturba. O local onde se acha o corpo
lamento, com o o é no enforcamento e na esganadura. Mas m ostra sinais claros do caráter sexual do ato. Há material
pode explicar os casos de estrangulados pálidos. pornográfico, como revistas de mulheres nuas, escritos obs-
cenos, e até peças de roupa íntima feminina espalhados ao
Causa Jurídica redor. Ocasionalmente, a vítima está travestida com roupas
de mulher. Com frequência, há pro teção da pele do pescoço
Conforme já mencionamos, poucos são os estrangula- por m eio de panos e acolchoamentos por debaixo da corda2 •
mentos que não são por homicídio. Por isso, o diagnóstico A preocupação em não ficar com o pescoço marcado, a falta
da causa jurídica é fácil na maioria dos casos. Vários aspec- de um bilhete de despedida e de registro de o utras tentativas
tos confirmam a hipótese. Entre o utros, a ausência do laço, prévias afastam a hipótese de suicídio.
a presença de outras lesões violentas que não poderiam ter São mais raros os casos de acidente sem conotação sexual.
sido autoinfligidas, os sinais de luta no ambiente onde está o É clássico o da famosa dançarina americana lsadora Duncan,
corpo e a presença de lesões típicas de defesa o u de conten- que morreu na cidade francesa de Nice, estrangulada por uma
ção, todos falam em favor de homicídio. echarpe comprida que trazia ao redor do pescoço quando
Alguns autores admitem que, nos estrangulamentos, os viajava em um automóvel de capota arriada. O lenço foi leva-
suicídios são mais frequentes que os acidentes 2•9, enquanto do pelo vento para as rodas e, tracionado, matou a estrela. Ela
outros afirmam o contrário3 . Na verdade, a divergência de- revolucionara a dança no início do século XX, abrindo cami-
pende da dificuldade encontrada na determinação da causa nho para a forma moderna de expressão 19• As circunstâncias
jurídica de certos estrangulamentos feitos com laços muito do acidente e, com frequência, o testemunho de outras pes-
elaborados. Havendo sinais de prática masturbatória, devem soas facilitam o esclarecimento da causa jurídica. Uma forma
ser considerados acidentais. De um m odo geral, o indivíduo de acidente em que há, quase sempre, testemunhas é a que
arma dispositivos com cordas que passam ao redor do pes- ocorre em academias de artes marciais. Nesses casos, pode es-
coço e o utros segmentos do corpo, por vezes os membros tar envolvido o mecanismo de morte por inibição.
inferiores. A contração desses segm entos aperta o u afrouxa Os suicídios seguem uma história de vida que, com fre-
a corda no pescoço, de modo a provocar uma asfixia contro- quência, vem marcada por outras tentativas. Os sinais des-
552 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

sas tentativas podem estar presentes no corpo, conforme • ESGANADURA


já vimos no Capítulo 7. Além disso, faltam outros sinais de
violência, e o ambiente não revela sinais de luta. O laço está É a forma menos comum de constrição cervical, mas
presente sempre, a menos que alguém o tenha removido an- pode vir associada aos estrangulamentos. Para que se rea-
tes do exame pelos peritos. Como regra, há um dispositivo lize, é preciso que haja grande superioridade de forças do
qualquer que impede seu afrouxamento, como torniquete, agressor com relação à vítima. Assim, pode ocorrer quando a
nós, várias voltas etc. Mas a simples presença desses disposi- vítima for uma criança, uma pessoa idosa, ou quando for um
tivos não garante que se trate de suicídio, pois já os vimos em indivíduo franzino diante de um homem forte. Também é
casos de homicídio (Figs. 24.40 e 24.41). possível se a vítima estiver entorpecida por alguma substân-
O fato de o laço estar muito apertado não afasta a hi- cia depressora, ou impedida de reagir por algum outro moti-
pótese de suicídio, pois, como vimos, ele pode continuar vo, por exemplo em coma. Se houver mais de um agressor, a
a se aprofundar no período post mortem. Os muito com- vítima pode ser subjugada mais rapidamente.
plicados, com várias voltas e de características inusitadas, Não é possível haver esganadura suicida nem acidental.
fogem ao padrão esperado nos homicídios. Já referimos o Mesmo que alguém tente apertar o próprio pescoço com as
uso de cordas de persiana em volta do pescoço e das axilas mãos e o faça, no momento em que houver asfixia suficiente
por um homem idoso (Figs. 24.24 e 24.25). Em um outro para causar perda da consciência, a constrição cessará.
caso, uma mulher suicidou-se com uma echarpe de náilon O local onde ocorre a esganadura apresenta, em geral,
estampada, que ela prendeu ao redor do pescoço e no sul- móveis em desalinho, e outros elementos, conforme já abor-
co helicoidal de uma máquina manual de moer carne. Em damos no Capítulo 7.
seguida, acionou a manivela com uma das mãos de modo
a tracionar o pano e apertar o laço. Seu corpo foi achado
debruçado sobre a borda de uma caixa d'água (Figs. 24.29
e 24.42).

Figura 24.41 . Visão anterior do mesmo homem da figura anterior


depois de removido o saco plástico. O fio faz duas voltas completas e
Figura 24.40. Estrangulamento com fio de telefone e auxílio de tor- uma delas mantém a boca aberta. É possível que a vítima tenha tentado
niquete colocado na altura da nuca. A cabeça está envolvida por um impedir a constrição cervical protegendo o pescoço com o queixo no
plástico branco. Guia 44 da 28ª DP, de 09/04/99. momento da execução.
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 553

canhoto por meio dessa distribuição é temerário, conforme


já assinalava Vibert 20 no fim do século XIX. Em casos de in-
fanticídio, é possível encontrar tais escoriações na nuca por
causa da d esproporção entre a mão do agressor e o pescoço
do recém -nato6 •
A forma dessas escoriações varia. Tanto podemos en-
contrar os estigmas típicos, que imitam a forma d as unhas,
côncavo-convexas, como escoriações lineares ou em forma de
faixa, pelo deslizamento dos dedos do agressor na dinâmica
da agressão. Na verdade, as escoriações de forma irregular são
mais frequentes do que os estigmas típicos. A orientação da
concavidade indica a posição da palma da mão do agressor,
mas é possível que seja o contrário. Knight 2 refere que, even-
tualmente, a concavidade pode estar voltada para o dorso da
Figura 24.42. Vê-se sulco largo, que se interrompe bruscamente, na mão. Explica que, havendo deslizamento da pele sobre o te-
face anterior do pescoço. Nesse ponto, há uma prega de pele larga e cido subcutâneo no mom ento de sua formação, a epiderme
oblíqua na projeção do músculo esternocleidomastóideo. Da borda pos- em contato com a porção central da unha é presa e puxada,
terior dessa prega, surge a outra parte do sulco, que se dirige horizon- enquanto a que é pressionada pelas porções later ais da unha
talmente para a nuca. Acreditamos que a interrupção corresponda ao tende a ficar no mesmo local e ser escoriada logo após.
ponto em que o laço saía do pescoço para o eixo da máquina de moer Os estigmas podem faltar se a vítima estiver vestida com
carne referida no texto. Guia 69 da 2sa DP, de 27/06/84. roupa de gola muito alta, mas isso não impede a formação
de equimoses.
Às vezes, o agressor está com as mãos sujas de terra,
Alterações Externas carvão, tinta, gesso, e deixa m arcas desses materiais no pes-
coço e na ro upa da vítima. Isso pode sugerir a profissão do
Gerais assassino.
Como se trata de um tipo de constrição essencialmente
ho micida, haverá reação da vítima e luta, desde que ela esteja Alterações Internas
consciente. Mesmo os indivíduos muito fracos acabam lu-
tando pela sobrevivência. Dessa luta, resultam o utras lesões Gerais
além d as características da esganadura. Q ualquer tipo de le-
Com frequência, estão presentes os sinais gerais de asfi-
são po r ação contundente pode ser encontrad a, inclusive as xia. Também é possível encontrar equimoses profundas em
causad as por instrumentos como pedaços de pau, pedras etc. várias partes do corpo, assim como lesões viscerais decorren-
São menos frequentes aquelas causadas por outros tipos de tes da luta. O rebatimento do couro cabeludo evidencia focos
agentes vulnerantes. Às vezes, as lesões decorrentes da luta de hemorragia na face profunda em vários casos.
são graves o suficiente para impedir o prosseguimento da O exame da língua pode mostrar focos de infiltração
reação. A face costuma apresentar cianose e petéquias, que equimótica na base2 ou na sua bo rda, esses relacionados com
estão presentes também nas conjuntivas oculares7 • as arcadas dentárias (Fig. 24.43) . A face vestibular dos lábios
pode m ostrar focos equimó ticos e tumefação.
Locais
O pescoço apresenta as marcas deixadas pelas mãos do Locais
agressor, traduzidas por equimoses, escoriações e eventuais As alterações m ais frequentes são os focos de infiltração
manchas. As equimoses costumam ser pequenas, pouco nu- equimótica no plano subcutâneo e na bainha d os músculos,
merosas e distribuídas principalmente na face anterio r e nas com ou sem relação com os estigm as ungueais (Fig. 24.44) .
faces laterais. São mais concentrad as na topografia da larin- Em alguns casos, no tam -se focos de hem orragia na cá p-
ge, mas também podem ser observadas nas regiões supr a- sula da glândula tireoide2•6• Mas as lesões mais importantes
hióideas, carotídeas e até nas fossas supraclaviculares2 • Mas são as da laringe e do osso hioide. A esganadura é a fo rma de
as lesões m ais frequentes e importantes são as escoriações constrição cervical que mais apresenta fratura dos elemen-
deixad as pelas unhas do agressor: os estigmas ungueais. Seu tos do plano visceral do pescoço. Revendo a literatura, Ube-
número depende, em parte, do tam anho das unhas do agres- laker 11 achou, nas esganaduras, uma incidência de fraturas
sor. Localizam-se preferencialmente na projeção da laringe, nas cartilagens da laringe que variou de 50 a 71o/o dos casos
po dendo predominar em um dos lados, direito ou esquerdo. e de 17 a 71o/o no osso hioide. Atribuiu as diferenças na in-
Porém , podem ser encontradas junto à borda m andibular, cidência à faixa etária da amostragem de cada autor, pois os
nas regiões carotídeas, nas fossas supr aclaviculares e, inclusi- jovens apresentam cartilagens muito m ais flexíveis do que os
ve, nos lábios6 •19. Afirmar porém que o agressor era destro ou idosos. Tais fraturas são ra ras em crianças. Há quem dê uma
554 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

Figura 24.44. Dois focos de hemorragia no terço inferior do músculo


esternocleidomastóideo esquerdo em caso de esganadura. A pele re-
batida do mesmo lado apresenta escoriação compatível com estigma
Figura 24.43. Presença de foco de hemorragia na borda direita do ungueal. Mesmo caso da Figura 23.43.
terço posterior da língua em um caso de esganadura. Guia 367 da 27ª
DP, de 06/05/71.
dir a fratura 2• O diagnóstico de reação vital nas fraturas desses
elementos está baseado na presença de hemorragia perifocal.
predominância muito maio r ainda das fraturas da laringe, As artérias carótidas não costumam apresentar altera-
como Simpson2 1, que encontrou 22 fraturas na laringe e ape- ções, uma vez que a pressão é exercida preferencialmente na
nas uma no osso hioide, em 25 casos de esganadura. parte central do pescoço. Mas alguns autores referem peque-
A laringe é o órgão mais atingido na esganadura. As fra- nas roturas da íntima, raramente2•6•
turas situam-se com maior frequência nos cornos superiores
da cartila gem tireoide. São incomuns as fraturas da cartila- Alterações em Sobreviventes
gem cricoide e do escudo da cartilagem tireoide porque re-
querem uma força direta muito intensa. Ocorrem mais fa- As pessoas que sofrem esganadura e conseguem escapar
cilmente nos traumas diretos por ação contundente2• As da do agressor costumam apresentar sintomas gerais e os rela-
cricoide, nas séries revistas por Ubelaker 11 , tinham incidên- cionados com as lesões produzidas no pescoço. Os sintomas
cia de O a 6% dos casos, conforme o autor. As cordas vocais gerais são semelhantes aos referidos no estrangulamento. Os
apresentam, frequentemente, focos de hemo rragia. locais dependem da intensidade e da duração da manipula-
As fraturas do osso hioide, nos casos de esganadura, ocor- ção das estruturas cervicais. Alguns resultam da compressão
rem m ais por pressão lateral sobre os cornos maiores, de modo das veias jugulares: tumefação da face e petéquias nas con-
que o segmento fraturado fica deslocado na direção da linha juntivas do globo ocular. A pele apresenta aumento da visua-
m édia. Se houver articulação entre o corno maior e o corpo lização das equimoses e escoriações, que se tornam recober-
do osso hioide, a m obilidade pode proteger o osso e impe- tas por crostas pardo-avermelhadas. O trauma no pescoço
CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical • 555

causa tumefação das partes moles e dor tanto pela contusão for um enforcamento incompleto e o corpo for encontrado
dos músculos quanto pelas fraturas e contusões da laringe e pouco tempo depois da morte, antes da formação dos livores
do osso hioide. O paciente refere dor à deglutição e apresenta hipostáticos.
disfonia intensa. Há dificuldade mais intensa para respirar A disposição do laço e a morfologia do sulco são carac-
do que a observada nos estrangulados. Fato relevante é que terísticas e dificilmente se prestam a confusão. Mas há casos
alguns indivíduos podem vir a morrer por edema das cordas em que houve estrangulamento seguido de suspensão do
vocais algumas horas depois ou no dia seguinte6 . cadáver para simular enforcamento. O exame do ponto de
suspensão e da orientação dos fiapos da corda pode dizer se
Mecanismos de Morte houve suspensão de cadáver ou se o indivíduo se pendurou.
Além do mais, a existência de dois tipos distintos de sulco é
Dos três fatores invocados para esclarecer a morte nas esclarecedora. A dificuldade é maior quando o estrangula-
constrições cervicais, o vascular é o menos importante. A mento for feito por trás da vítima por um agressor situado
obstrução respiratória é significativa e resulta seja da com- em plano superior. Nesses casos, o sulco fica oblíquo e in-
pressão diretamente exercida sobre a laringe, fechando a glo- terrompido como se fosse um enforcamento típico. Mas os
te, seja do seu deslocamento para cima e para trás de modo a sinais de luta no corpo e o desalinho dos elementos do local
fechar a passagem do ar na faringe6-7•2º. De modo semelhante podem esclarecer.
ao que ocorre no estrangulamento, e com mais razão, essa
obstrução costuma ser intermitente por causa da luta.Assim, Reação Vital
há prolongamento da asfixia por um tempo maior que o que
O seu diagnóstico está baseado no achado de sinais de
se observa nas outras formas de constrição cervical porque a
que havia circulação sanguínea no momento da constrição.
vítima consegue fazer algumas inspirações.
Assim, devem ser pesquisados os relacionados com o laço e
O mecanismo nervoso é mais importante na esganadura
a constrição e os que demonstrem estase venosa na cabeça.
do que no enforcamento 2• Já era reconhecido pelos antigos
O exame externo do sulco pode mostrar, caso haja mais de
patologistas forenses como o responsável pelas mortes por
uma volta, a insinuação da pele entre elas, com edema, que
esganadura nos casos em que não achavam sinais gerais de
chega a formar bolhas em alguns casos, e infiltração equimó-
asfixia. Mas o atribuíam a uma excitação do nervo laríngeo
tica na pele adjacente. É preciso cuidado para não interpretar
superior6· 7•20 • Hoje, sabemos que o fator nervoso de mo rte é
como hiperemia a cor avermelhada da pele adjacente a sul-
a excitação dos seios carotídeos, que produz resposta reflexa
cos muito profundos e apergaminhados. Ela pode resultar
através do nervo vago 2•5 • Há relatos muito marcantes de pes-
da expressão e d o deslocamento do sangue dos capilares do
soas que sofreram compressão fugaz na região da bifurcação
da carótida primitiva e morreram por parada cardíaca 2• Mas fundo do sulco2 •
a morte por inibição pode ocorrer por contusão da face an- O exame interno do pescoço deve ser precedido da aber-
terior do pescoço com lesão da laringe, sem que haja esgana- tura da cavidade craniana para retirada e exame do encéfalo
dura, como em certos golpes de luta marcial2·2º. e drenagem do sangue do sistema venoso. Isso impede o san-
gramento quando da dissecção do pescoço. Todo patologista
forense sabe que o sangue extravasado pode simular focos de
• PERÍCIA NAS CONSTRIÇÕES CERVICAIS equimose profunda se não observar o trabalho do técnico na
abertura dos planos anatómicos desde o início. Isso é mais
O objetivo da perícia é esclarecer primeiramente qual o provável quando a necropsia é feita nos primeiros instantes
tipo de constrição. Em segundo lugar, verificar se foi feita em após a morte. É aconselhável, quando possível fazê-lo, o exa-
vida. Po r fim, determinar qual a causa jurídica. A sequência m e radiológico da laringe e do osso hioide antes da dissecção
do exame é a mesma das o utras formas de morte violenta, para a localização de fraturas. Serve, inclusive, para caracte-
com ênfase à dissecção do pescoço só depois do exame da rizar fraturas feitas durante a necropsia que, por certo, não
cavidade craniana, que deve ser a primeira a ser aberta. O aparecem nas radiografias feitas antes da dissecção2•
exame dos sobreviventes e do agressor, se houver suspeito, A presença de fraturas sem hemorragia nos tecidos ao re-
também se impõe. dor não significa que houve a suspensão de um cadáver. Ela
pode ter ocorrido durante o período de suspensão após a mor-
Exame Necroscópico te e antes do resgate do corpo. Mas a presença de hemorragia
em torno do foco de fratura serve para atestar a reação vital.
Diagnóstico do Tipo de Constrição
Há quem não valorize a hemorragia se for muito discreta 2•
O diagnóstico do tipo de constrição já é mais de meio Os sinais de compressão venosa servem para afirmar a
caminho andado para o diagnóstico da causa jurídica, uma reação vital. A presença de tumefação da língua e dos lábios,
vez que o enforcamento é basicamente suicida e o estrangu- de edema e petéquias, conjuntivais e na pele, atesta que havia
lamento, homicida. A esganadura é sempre homicida. circulação.
O diagnóstico de enforcamento começa no local onde é Outros sinais importantes de reação vital são a equimose
encontrado o corpo. É muito importante, principalmente se retrofaríngea de Brouardel nos enforcamentos e a presença
556 • CAPITULO 24 Asfixias por Constrição Cervical

de contusão e hemorragia da bo rda da língua. A primeira ungueais na face, nas mãos, nos antebraços e no pescoço
resulta da compressão da parede posterior da faringe contra demonstra que a pessoa examinada participou de uma luta
a coluna vertebral; a segunda, da ocorrência de m ordedura cor poral. Alguns autores aconselham pesquisar material dos
da língua durante convulsões ou luta com o agressor. sulcos ungueais se o acusado for detido logo após o crime.
Havendo restos de epiderme, como pode acontecer nos casos
Causa Jurídica de esganadura, a pesquisa de D NA pode ligá-lo tecnicam ente
Na m aio ria dos casos está muito clara. Feito o diagnósti- à vítima.
co de esganadura, nada mais resta de dúvida. Mas, nas cons-
trições feitas por laço, é preciso associar os dados do exame BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
de local com os da necropsia. Uma vez feito o diagnóstico
d o tipo de constrição, a causa jurídica está praticamente
1. Fávero F. Energias de ordem fís ico -quím ica. In: Medicina Legal.
esclarecida. São Paulo: Livraria Martins Editora; 1966. Capítulo 14, p. 346-
O exam e do local é fundam ental para distinguir um 383.
enfo rcamento suicida de um acidental. Nos acidentes rela- 2. Knight B. Suffocations and "asphyxia". In: Forensic Pathology. 2• ed.
cionados com práticas masturbatórias, os detalhes fo ram já Bernard Knight, ed. Lo ndres: Arnold; 1996. Capítulo 14, p. 345-
360.
d escritos. Nas o utras fo rmas de enfo rcamento acidental, a
3. Spitz WU. Asphyxia. In: Medicolegal Investigation of Death . 3• ed.
posição do corpo também é esclarecedora, por exemplo, de Werner U. Spitz, ed. Charles C. Thomas Pub lisher, Springfields;
crianças pequenas em ber ços. 1993. Capítulo XI, p. 444-497.
Nos casos de estrangulamento, é necessário, em alguns 4. Alm eida Jr A, Costa Jr JBO. As asfixias mecânicas. In: Lições de Me-
casos, determinar se fo i homicídio ou suicídio. Aqui, o tipo d icina Legal. 18• ed. São Paulo: Com panhia Editora Naciona l; 1985.
de laço usado pode ser esclarecedor. Confo rme já vimos an- Capítulo 18, p. 186-202.
5. O Globo, p. 13, 3 de julho de 1979.
teriormente, os laços muito complicad os são m ais dos suici- 6. Thoinot L. Asphixies mécaniques par constriction du cou. Précis
das. É interessante que os peritos examinem o laço, que não de Médecine Légale. L. Thoinot, ed. Paris: Octave Doin et Fils Édi-
deve ser removido antes da perícia médico-legal. Havendo teurs; 1913. Artigo 1 ~ da 2• seção, Capítulo V, p. 622-710.
necessidade de remover o laço, recomenda-se cortá-lo lon- 7. Hofmann E. Nouveaux Éléments de Médecine Légale. Traduzido
ge do nó e enviá-lo aos legistas dentro de um saco lacr ado7 • ao francês por Emm anuel Lévy e co mentado por P. Brouardel.
Paris: Editora Librairie JB. Bailliere et Fils; 1881.
Laços com nós peculiares a determinadas profissões também
8. James R, Silcocks P. Suicidai hanging in Cardiff - a 15-year retro-
podem ajudar muito quando se conhece a da vítima. spective study. Forensic Sciences Int; 1992. 56: 167- 175.
O exame dos outros segm entos do corpo costuma reve- 9. Camps FE. Unnatural death d ue to asphyxia. In: Gradwohl's Legal
lar sinais de luta ou de contenção nos casos de homicídio, e Medicine. 200 ed. Francis E. Camps, ed. Londres: The Williams &
pode mostra r lesões, consolidadas ou não, de o utras tenta- Wilki ns Company; 1968. Capítulo 18, p. 335-344.
10. Balthazard V Pendaison. In: Médecine Légale. 2• ed. Librairie JB.
tivas anteriores de suicídio. Po r isso, deve ser detalhado. A
Paris: Bailliére et Fils; 19 11. Capítulo VI, p. 158-7 1.
colheita de material dos sulcos ungueais da vítima para pes- 11. Ubelaker DH . Hyoid fractu re and strangulation. J Forensic Scien-
quisa de restos de epiderme do agressor pode fornecer um ces; 1992. 37:5: 12 16- 1222.
padrão de DNA compatível. 12. Machado A. Vascularização do sistema nervoso central e barreiras
encefálicas. In: Neuroanatomia Funcional, Ângelo Machado, ed.
São Paulo: Livra ria Atheneu; 1988. Capítu lo IX, p. 67-79.
Exame dos Sobreviventes 13. Kuhn MLS, Costa CA, Cherulli AS, Cavalcanti AM, Reis JES. Hang-
ing suicide in Distrito Federal in 1995. Forense 96 Abstract Book;
Nos casos de esganadura, o exame comprova a constrição 1996. p. 11.
do pescoço com as mãos pela presença dos estigmas ungueais. 14. Benfica FS, Vaz M. Suicídio: aspectos epidemiológicos na Grande
Nas constrições por laço, o sulco fica mais nítido e, pelas suas Porto Alegre/ RS. Resumos do XV Congresso Brasileiro de Medicina
Legal, Salvador; 1998. p. 11.
características, indica se foi enforca mento ou estrangulamen-
15. Eisele RL, Godoi FP, Mocelin LC. Estudo dos casos de suicídio em
to. É preciso observar os outros segm entos do corpo à pro- Londrina ( 1994- 1997). Resumos do XV Congresso Brasileiro de
cura de lesões que indiquem agressão ou tentativas prévias de Medicina Legal, Salvador; 1998. p. 12.
suicídio. O exam e deve incluir a pesquisa de sinais de crime 16. Guerra-Neto NGM, Esperança JCP, Panesset AG, Jáuregui GF,
sexual. É preciso fazer uma avaliação neurológica e psiquiá- Caracas JAF, Vilela LL et ai. Statistical a nalysis of the suicides in
trica, tanto para constatar sequelas pela asfixia prolongada IM LAP-RJ. São Pau lo: Forense 96 Abstracts Book; 1996. p. 30.
17. Chen CY, Acquesta SB, Farignoli MC, Pinto MC, Leyton V, Muííoz
como para evidenciar possíveis distúrbios mentais que pu- DR. Inhibitory death by neck trau ma: report of a case. Forense 96
dessem levar ao suicídio. Algumas vezes, é preciso faze r uma Abstracts Book; p. 17, 1996.
laringoscopia para a avaliação do dano às cordas vocais. 18. Brouardel P. La Pendaison, la strangulation, la suffocation, la sub-
mersion. Paris: Librairíe JB. Bailliere et Fils; 1897.
19. Moore L. Duncan, Isadora. vol. 7. W illiam Benton, ed. Chicago: En-
Exame do Suspeito de Agressão cyclopaedia Britannica; 1964. p. 757.
20. Vibert C. Précis de Médecine Légale. 5• ed. Paris: Librairie JB. Bail-
Serve para complementar as infor mações nos casos de liere et Fils, 1900.
agressão confirmada ou suspeita. A presença de estigmas 21. Simpson, citado por Knight B.
Hygino de C. Hercules

O ser humano, como animal mamífero, só é capaz de de do is trabalhadores em uma cisterna subterrân ea em que o
sobreviver se o meio em que estiver fo r aéreo e com uma teor do ar em oxigênio era de apenas 9,6%.
composição gasosa tal que as suas necessidades respirató rias Os confinamentos são basicamente acidentais. As situa-
possam ser satisfeitas. Assim lhe é impossível permanecer ções em que o confinam ento ocorre são: 1) desabam ento de
vivo por tempo prolo ngado, envolvido por um meio líquido galerias em escavações de túneis e em minas de prospecção
ou sólido. O u gasoso de composição muito diferente daquela de jazidas, deixando bloqueados os operários; 2) desabamen-
a que está adaptad o. Nessas circunstân cias, embora não haja tos de construções, formando bolsões de ar; 3) acidentes com
bloqueio dos movimentos respiratórios, ocorre asfixia por crianças que fiquem presas em automóveis fechados, malas
mecanismos que exporemos mais adiante. ou armários, e; 4) raramente, acidentes em submarinos. Em
Quando o ar atmosférico é substituído por um líquido, 12 de agosto de 2000, o submarino russo Kursk afundou
há o afogamento . Se o fo r por um sólido suficientemente frag- quando participava de manobras navais ao norte de Mur-
mentado de modo que possa envolver o corpo humano, ha- mansk, no mar de Barents. Duas explosões na parte dianteira
verá o soterramen to. Mas, se a pessoa permanecer num am - romperam o casco e permitiram a entrada da água. Os tripu-
biente de ar não renovado cuja composição o torne incapaz lantes do setor atingido morreram afogados ou pela ação das
de atender às necessidades do seu organismo, estará sofrendo explosões, mas os que estavam em setores afastados e isolados
confinamento. m orreram confinados porque as m áquinas par aram de fun-
Partindo do menos diferente, estudaremos primeira - cionar e o ar dos compartimentos não pôde ser renovad o2•
mente o confinamento. Em seguida, abordaremos os aspec- Os crimes em que a morte ocorre por confinamento são
tos m édico-legais do soterram ento e do afogam ento. or a com anim o necandi, o ra com intenção de ocultar uma
pessoa sequestrada o u presa por outro motivo, em cubícu-
los com renovação de ar escassa. Entre os primeiros, o que é
• CONFINAMENTO m ais relatado na literatura é o infanticídio, em que a mãe co-
loca o recém -nascido dentro de caixas ou malas, ou mesmo
É uma modalidade de asfixia em que um ou mais indi- o enterra dentro dessas embalagens. Nos casos de sequestro,
víduos ficam presos em um ambiente sem adequada reno- a vítima pode vir a morrer confinada se os seus algozes não
vação de ar. Não há necessidade de vedação hermética do calcularem bem as suas necessidades de ar e a colocarem em
ambiente. Basta que as necessidades de oxigênio e de remo- locais muito pequenos e hermeticamente fechad os. Há pou-
ção da umidade e d o gás carbónico não sejam feitas de mod o co tempo, o empresário Abílio Diniz, que fo ra sequestrad o
adequado. Uma variante d o confinamento ocorre quando a em dezembro de 1989, deu uma entrevista em que mostrou
pessoa entra em uma área cuja atmosfera é muito pobre em o local onde fo ra obrigado a permanecer e falou do med o
oxigênio, com o o interio r de grutas. Di Maio 1 relatou a morte que teve de m orrer confinado.

557
558 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

• MECANISMOS DE MORTE víduo fique coberto completamente por escombros de um


desmoronamento, ou pode ter seu uso restrito aos casos de
As alterações do ar no recinto evoluem de acordo com o cobertura do corpo por sólidos pulverulentos, como num
volume disponível para cada pessoa. Nos acidentes indivi- sepultamento. Com esse último significado, os franceses o
duais em que o espaço é muito pequeno, os distúrbios são denominam enfouissement. O material pode ser areia, sai-
de instalação rápida. É o que ocorre com crianças que ficam bro, farinha, cereais, cinza etc4 • O uso do termo com signi-
presas em baús. Mas pode ocorrer com adultos, como no caso ficado amplo é mais popular e faz parte da linguagem cor-
descrito por Jong3, em que um homem entrou num refrige- rente, não técnica.
rador em desuso e não pôde sair depois que a porta bateu Do ponto de vista prático, raros são os casos de morte
e fechou-se. Sendo maior o volume de ar disponível, o indi- causada exclusivamente pela penetração de corpos sólidos
víduo confinado sofre lenta e progressivamente os efeitos da pulverulentos nas vias respiratórias. Mesmo nos de sepulta-
mento acidental, entram em jogo outros mecanismos como,
diminuição do oxigênio e do aumento da umidade e da tem-
por exemplo, a compressão torácica. Por isso, estudaremos
peratura ambientes. A princípio, sente dispneia, com a sensa-
sob a denominação de soterramento todos os tipos de morte
ção de ter que aumentar o esforço inspiratório, a par de uma
violenta decorrentes de acidentes de desabamentos, desmo-
sensação desagradável de calor em que sua, mas não obtém
ronamentos, deslizamentos de encostas e os crimes em que a
alívio, pois o suor não evapora devido à saturação do ar pelo
vítima é enterrada ainda com vida.
vapor d'água proveniente da sudorese e da própria respiração.
Em janeiro de 1966, o Rio de Janeiro foi assolado por
À medida que o tempo passa, a situação vai-se agravando
chuvas intensas e prolongadas, que encharcaram as encostas
e duas síndromes vão-se instalando simultaneamente: hipo-
desmatadas dos morros e promoveram grandes deslizamen-
xia e exaustão térmica. Ambas levam a uma fase de reação
tos de terra. Foram afetadas principalmente áreas ocupadas
com hiperpneia, taquicardia, elevação da pressão arterial e
por favelas, mas bairros mais nobres como Santa Teresa tam-
pânico. Há quem defenda que os esfo rços feitos no sentido bém sofreram com a fúria das águas. Em um período de 4
de encontrar uma saída, a par da dificuldade de dissipar o
dias, ruíram prédios e barracos, numa distribuição demo-
calor, causam quadro de insolação 3• crática da desgraça. Houve 1.170 desabamentos naquela se-
Quando se trata de um grupo de pessoas, como nos aci- mana. Os cadáveres retirados da lama eram empilhados em
dentes envolvendo mineiros, o tempo de sobrevivência de- caminhões e transportados para o necrotério. Aqueles que,
pende em parte de uma liderança firme no seio do grupo como nós, presenciaram o macabro acúmulo de corpos no
para impedir pânico precoce e antecipação do esgotamento IML, jamais hão de esquecê-lo. Nos 2 dias iniciais da catás-
das reservas de oxigênio. Pessoas em pânico têm o metabo- trofe, chegaram cerca de 200. Como a maioria das vítimas
lismo acelerado e, por isso, consomem mais oxigênio. foi soterrada pela lama dos deslizamentos de terra, as causas
mais comuns de morte foram aspiração de lama (soterra-
mento no sentido estrito) e compressão do tórax pelo peso
• DIAGNÓSTICO da terra. Em alguns casos, porém, a morte foi causada por
traumatismo cranioencefálico4 ª.
No exame de indivíduos confinados, há que se distinguir Desastre de proporções incomparáveis ocorreu nas mon-
os que sobrevivem e os que morrem. Caso haja sobrevivên- tanhas que cercam Caracas, em dezembro de 1999. Chuvas
cia, a situação da pessoa depende do tempo pelo qual ficou incessantes encharcaram as encostas desmatadas dos morros
confinada, do grau de confinamento e do tipo de acidente do ao redor da capital e suas vilas satélites, provocando desli-
qual foi vítima. O exame externo mostra sujidades na rou- zamentos de terra que mataram cerca de 30 mil venezuela-
pa e no corpo condizentes com o ambiente, podendo haver nos5. Entre os maiores cataclismos estão os terremotos e as
lesões por ação contundente nos desabamentos de constru- erupções vulcânicas. Um dos mais recentes e devastadores
ções ou de galerias. ocorreu na Turquia, em 1999, causando mais de 40.000 mor-
Nos casos de morte, além do exame externo, deve-se fazer tes6. Os três terremotos mais violentos do século XX ocorre-
o exame interno. Os achados costumam ser inespecíficos e li- ram na China. O pior, em 1976, causou a morte de mais de
mitados aos sinais gerais de asfixia, a menos que haja lesões 240.000 pessoas 7 • Na Colômbia, em 1985, a erupção do vul-
por ação contundente. Se o corpo for removido do local e os cão Nevado dei Ruiz derreteu a neve, que se misturou com a
peritos não forem informados das circunstâncias que cerca- lava e as cinzas, formou um mar de lama e desceu a encosta,
ram a morte, o diagnóstico será difícil, ou mesmo impossí- soterrando a cidade de Armero e vilarejos vizinhos. Morre-
vel, pois não há lesões patognomônicas do confinamento 1• ram mais de 20.000 pessoas8 .

Mecanismos de Morte
• SOTERRAMENTO
Nos desmoronamentos e deslizamentos de encostas, vá-
O termo soterramento pode ser entendido em sentido rios são os mecanismos que concorrem para a morte do
amplo, incluindo todas as formas de morte em que o indi- indivíduo, podendo coexistir, ou não, num mesmo caso. Os
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 559

principais são asfixia, decorrente de compressão torácica, su- Ação Contundente


focação direta; confinamento, ou soterramento em sentido
O impacto dos corpos desabados sobre a vítima pode
estrito; e ação contundente.
causar toda a sorte de lesões da série contundente. Em alguns
Compressão Torácica casos, as lesões são de tal gravidade que por si sós respondem
pela morte. A atuação dos agentes contundentes é comum
Já foi estudada no Capítulo 23 com o nome de sufocação nos soterramentos e confere ao corpo das vítimas suas mar-
indireta. Nos soterramentos, é talvez o mecanismo letal mais cas características em maior ou menor extensão (Fig. 25.2).
importante, decorrente da pressão exercida sobre a vítima
pelo peso dos materiais do desabamento. Confere ao corpo Soterramento Estrito
do soterrado características importantes, tais como intensa
É como se a vítima fosse afogada em meio sólido4 • Seu
cianose de cabeça, pescoço e metade superior do tórax, com
corpo é envolvido pelo material, que penetra na boca, nas
a formação da chamada máscara equimótica. As dobras da
narinas e nas vias aéreas. Conforme o tamanho das partícu-
roupa podem pressionar intensamente o corpo de modo a
las do material, a penetração será mais ou menos profunda.
impedir a formação de equimoses e de cianose nos pontos
Os formados por partículas menores tendem a penetrar mais
de maior pressão sobre a pele. Do mesmo modo atuam as
longe na árvore respiratória e a causar obstrução mais efi-
irregularidades do material desmoronado. A força sobre o
ciente. Sua participação na causa da morte depende da coe-
tórax aumenta a pressão interior e impede a sua expansão.
xistência, ou não, de lesões graves por ação contundente. Em
Dessa forma, aumenta a pressão nas veias cavas, prejudican-
meios como areia, não costuma haver corpos sólidos com
do o retorno do sangue para o coração, o que causa retenção
massa suficiente para matar por ação contundente. Mas o
nas veias menores e no leito capilar. O acúmulo de sangue é
peso do material pode ser tão ou mais importante que o so-
mais importante no território de drenagem da cava superior
terramento propriamente dito (Fig. 25.3).
porque as jugulares não possuem válvulas de retenção de re-
Como referimos no início, qualquer desses mecanismos
fluxo. Por isso, forma-se a máscara equimótica (Fig. 25.1).
pode levar à morte, mas a regra é que estejam associados de
forma variada conforme o tipo de soterramento. A densidade
Sufocação Direta
do material desabado, o tamanho das partículas e a poro-
Pode ocorrer quando a vítima é soterrada por material sidade do meio sob o qual a vítima se encontra são fatores
granular, com elementos de tamanho variado, e algum deles determinantes. O tempo necessário para que o indivíduo
encaixa-se na glote. Pode suceder que os orifícios nasais e a morra varia com o mecanismo preponderante. Em geral, os
boca fiquem da mesma forma obstruídos. Não é frequente. traumas mais violentos decorrentes de ação contundente são
os que têm maior probabilidade de matar rapidamente. Já o
Confinamento confinamento permite uma sobrevida mais prolongada. Isso
A morte decorre do aprisionamento em espaços forma - é de importân cia médico-legal para a solução de problemas
dos ao acaso, sem renovação do ar. de premoriência.

Alterações Externas
O aspecto externo dos cadáveres soterrados varia bastante
de um caso para o outro, principalmente em função do meio

Figura 25.1. Máscara equimótica em vítima de desabamento de


edifício ocorrido no bairro de Laranjeitas, Rio de Janeiro. A face tem cor Figura 25.2. Criança vítima de soterramento por deslizamento de
arroxeada intensa, as conjuntivas oculares mostram hemorragia difusa, encosta devido a fortes chuvas no Rio de Janeiro. Apresenta fratura
surde líquido sanguinolento das narinas e da boca e o corpo evidencia exposta de crânio e rotura abdominal com evisceração. Guia 35 da 29ª
placas pergaminhadas de arrancamento da epiderme. DP, de 26/02/71.
560 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

Figura 25.4. Vítima de deslizamento de encosta de morro no Rio de


Janeiro. Ocorpo e a roupa, que está rasgada, estão sujos de lama. Guia
34 da 29ª DP, 26/02/71.

Figura 25.3. Aspecto da faringe e da laringe parcialmente obstruídas


por lama decorrente de soterramento por deslizamento de encosta de
morro no Rio de Janeiro. Guia 15 da 25ª DP, de 26/02/71.

Figura 25.5. Vítima do mesmo acidente da Figura 25.1. Notam-se


de soterramento. A cor imita a do ambiente de soterramento máscara equimótica, hemorragia gengival, livores intensos na face ante-
por causa da aderência das partículas sólidas à pele e à rou- rior do tórax, com áreas hemorrágicas, e destacamento parcial da epi-
pa. Assim, nos deslizamentos de terra provocados por chuvas derme no braço esquerdo.
incessantes e fortes, os indivíduos soterrados têm o corpo re-
coberto por lama da cor do local do deslizamento (Fig. 25.4).
Os orifícios naturais, em geral, guardam parte desse ma- Após a lavagem do corpo e a remoção dos detritos da
terial, também observado nos leitos ungueais e nas pregas pele, surgem escoriações e equimoses de extensão e tama-
cutâneas. É comum encontrar sinais de compressão to rácica, nho variados, atribuídas à ação contundente dos elementos
como máscara equimótica e hemo rragias das mucosas con- maiores do material de soterramento. A distribuição dessas
juntivais, labiais e gengivais (Figs. 25. 1 e 25.5). lesões não guarda qualquer padrão especial mais frequente.
Nos desabam entos de construções de alvenaria, o corpo É obra do acaso. Tanto podem ser mais extensas e numerosas
está recoberto por pó de cimento; em olarias, recoberto por na face ventral quanto na face dor sal do corpo. Por vezes, não
barro; em desertos, por areia de cor semelhante à do local. é possível discernir senão placas apergaminhadas sem reação
Com o o encontro de corpos soterrados só é possível após vital (Fig. 25.1). Quando o meio de soterramento é úmido e
buscas exaustivas, em alguns casos com o auxílio de ins- o corpo permanece mais de 1 dia soterrado, a pele apresenta,
trumentos altamente contundentes, como picaretas, pás e com frequência, maceração da epiderme, que se destaca fa-
mesmo escavadeiras e tratores para remover os escombros, é cilmente à manipulação.
possível que tais manobras, com o é natural, produzam mu- Os livores de hipóstase distribuem-se de modo variável,
tilações e feridas contusas de extensão variável, mas sem rea- de acordo com as pressões exercidas sobre a superfície do
ção vital. É importante atentar para esse fato po rque, do con- corpo, revelando desenhos irregulares pelas diferenças de
trário, essas lesões serão atribuídas tanto ao acidente quanto compressão dentro de uma mesma região. Em geral, sua dis-
a ação criminosa anterior ao acidente. tribuição faz-se de acordo com a posição do cadáver e m ais
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 561

intensamente nas áreas menos comprimidas. Se o corpo for Problemas Médico-legais


removido antes de sua fixação, localizar-se-ão no dorso, du-
rante o transporte e a permanência no necrotério. Diagnóstico do Soterramento
Como regra, é facil. A história do acidente e o exame do
Alterações Internas cadáver não deixam margem a dúvidas. O depósito de ma-
terial do soterramento sobre o corpo da vítima estabelece a
Além dos sinais de asfixia, nos casos de soterramento es- ligação dessa com a ocorrência. Resta aos peritos buscar os
trito encontra-se parte do m aterial soterrante no interior da sinais de asfixia e demonstrar a reação vital a fim de se afastar
boca, nas vias respiratórias e no tubo digestivo. Em alguns a possibilidade de o indivíduo já estar morto no momento
casos, as partículas podem ser encontradas em grande quan- do fato. Havendo lesões por ação contundente infiltradas por
tidade na traqueia e nos brônquios, causando obstrução in- sangue, tais como equimoses, escoriações o u fraturas, o diag-
tensa (Fig. 25.6). É comum que o indivíduo, antes de morrer, nóstico fica confirmado. O mesmo se diga de hemoperitônio
engula parte desse material, que pode ser visto no esófago e e de hemotórax em face de rotura de vísceras abdominais
no estômago. Isso é m ais comum nos acidentes de desliza- e to rácicas, respectivamente. A penetração de parte do ma-
mento de encostas. terial soterrante nas vias respiratórias deve ser pesquisada.
Quando o soterramento ocorre po r desabamento de Nesse contexto, a presença nas narinas e na boca não deve
construções, as vítimas sofrem várias lesões por ação con- ser valorizada. Só é indicativo de reação vital se ele estiver no
tundente. É o mecanismo de morte predominante nos ter- espaço glótico ou em nível mais profundo das vias aéreas. O
remotos. Assim, é comum encontrarem-se roturas viscerais mesmo valor deve ser atribuído à presença desse material no
e diversos tipos de fratura, inclusive de crânio. Mas isso tam- esófago, indicativo de m ovimento de deglutição.
bém é observado em casos de deslizamento de encostas pela
ação de tron cos de árvores, pedras etc. (Fig. 25.2 ). Diagnóstico da Causa Jurídica
A quase totalidade dos soterramentos é de origem aci-
dental, e os diversos tipos de acidentes já foram menciona-
dos anteriormente. Raras vezes, surge a possibilidade de que
o indivíduo já estivesse morto no momento do acidente.
Aqui, a disparidade entre os fenómenos cadavéricos já ins-
talados e o tempo transcorrido entre o acidente e a hora d o
exame pode fazer suspeitar ou dar a certeza de que a mo rte
não se relaciona com o evento. Nesses casos, faltam os si-
nais de reação vital do soterramento, e, na maioria das ve-
zes, encontra-se a verdadeira causa da morte. O que pode
trazer dificuldades dessa o rdem é o excesso de casos a serem
necro psiados quando se trata de calamidades. A necessidade
de examinar rapidamente corpos sujos de lama pode fazer
com que passem despercebidas lesões por outros tipos de
agente vulnerante. Em 1966, por ocasião das grandes chuvas
do verão, deparamo-nos com um corpo sujo de lama, que
apresentava um orifício de entrada de projétil de arma de
fogo no abdómen. Havia sido baleado por estar saq ueando
bens dos flagelados.
Há, na literatura médico-legal, referência a soterramen-
tos criminosos, principalmente de recém -nascidos em casos
de infanticídio. O ra são enterrados vivos, ora são colocados
dentro de uma caixa contendo material pulverulento 4•

Identificação dos Corpos


É relativamente fácil nos casos de pequena monta, mas
assume caráter de verdadeiro desafio aos peritos quando da
ocorrência de acidentes de m assa ou de cataclismos. Nos
acidentes de massa, os corpos resgatados do local devem ser
numerados, com a colocação de uma etiqueta num dos pés,
Figura 25. 6. Obstrução das vias aéreas por carvão granulado. Nota-se antes de serem enviados ao necrotério par a exame, tendo-se
coloração enegrecida da mucosa da faringe e da laringe. Coleção didá- o cuidado de anotar com rigor o exato trecho de onde foram
tica da Faculdade de Medicina da UFRJ. retirados. Isso ajuda no reconhecimento por parte de fami-
562 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

liares sobreviventes. Os laudos de cada corpo devem acom- avaliar a incidência total, pois a maioria consta de casos leves
panhar a mesma numeração. Se as condições locais forem que não chegam a ameaçar a vida e não são registrados, a não
muito adversas, alguns corpos só serão encaminhados já em ser que ocorram onde haja um bom serviço de salvamento,
putrefação, o que vai dificultar o reconhecimento pelos fa- por exemplo, no município do Rio de Janeiro. O Grupamen-
miliares. Nesses casos, devem ser usados os métodos que já to Marítimo do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do
foram abordados no Capítulo 4. Rio de Janeiro (CBMERJ) resgatou cerca de 171.000 pessoas
Nos acidentes naturais que envolvem milhares de pes- em vias de se afogar nos 96 km de praias da cidade do Rio
soas, como terremotos e, principalmente, erupções vulcâni- de Janeiro, nas três últimas décadas. Do total, apenas 5,5%
cas, é impossível resgatar e identificar todas as pessoas so- necessitaram de cuidados médicos e somente 0,3% morre-
terradas. Diante disso, a opção legal é a presunção da morte. ram. Entre os que foram hospitalizados, cerca de 10% falece-
Embora tais tragédias, felizmente, não ocorram em nosso ram. Dados dos EUA referem registro de um óbito para cada
país, nosso Código Civil aceita a morte presumida: oito atendidos 11 •12 • Fora da área de atendimento dos guarda-
vidas, os casos leves não são computados nas estatísticas. As-
Art. 7Q. Pode ser declarada a morte presumida, sem de- sim, a incidência de afogamentos, tanto no Brasil quanto no
cretação de ausência: estrangeiro, passa a ser balizada pelos casos fatais, que são
I - se for extremamente provável a morte de quem esta- registrados nos obituários.
va em perigo de vida; Dados da OMS referem a ocorrência de 450.000 afoga-
II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito mentos no mundo, no ano 2000, no total de cinco milhões de
prisioneiro, não for encontrado até 2 anos após o término mortes violentas (9%) 13 • Na faixa de 1 a 4 anos, é a segunda
da guerra. causa de morte violenta no Brasil, nos EUA e na África do
Parágrafo único. A declaração da morte presumida, Sul, e a primeira na Austrália. Considerando-se todas as fai-
nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgo- xas etárias, é a terceira causa de morte violenta no Brasil12•
tadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a Se escolhermos a faixa que abrange os menores entre 1 e 19
data provável do falecimento. anos, veremos que é a terceira causa de morte em geral, natu-
ral e violenta, tanto no Brasil quanto nos EUA1 2 •
Na declaração de óbito, o perito deve evitar o termo so- Mas a taxa de mortalidade tem diminuído nos últimos
terramento, procurando substituí-lo, quando possível, por anos. Cummings 14 relata essa tendência nos EUA e, em parti-
uma causa mais precisa como, por exemplo, esmagamento cular, no Condado de King, Washington. Atribui o fato prin-
do crânio, sufocação indireta, confinamento, de modo a fa- cipalmente à redução do consumo de álcool nas imediações
vorecer estudos estatísticos posteriores. dos balneários. O mesmo declínio tem sido observado no
Brasil como um todo e, em especial, para o Estado do Rio de
Janeiro (Tabelas 25.1 e 25.2) 15• Mas, aqui, a causa pode estar
• AFOGAMENTO relacionada com a melhora do atendimento médico e com a
adoção de medidas preventivas. Modell 1º recomenda como
É a forma de asfixia causada por penetração de grande medidas eficazes de prevenção: evitar que pessoas sujeitas a
quantidade de líquido nos pulmões, através das vias respira- mal súbito nadem sós, controlar a lotação de barcos, evitar o
tórias. Embora a quase totalidade dos afogamentos se faça na consumo de álcool e vigiar as crianças pequenas.
água, em raríssimos casos ocorrem em outros líquidos. Por Entre os o utros estados do Brasil, em 1997, as maiores
exemplo, trabalhadores em vinícolas podem cair nos tachos taxas de mortalidade foram para Roraima (9,8), Acre (8,6),
de fermentação e vir a falecer por aspiração do mosto. Mato Grosso do Sul (6,8), Amapá ( 6,7) e Espírito Santo (6,7) 12 .
Para que se fale em afogamento, é preciso que a quan- Nota-se que os três primeiros não têm costa marítima e que
tidade de líquido a penetrar nos pulmões seja grande, já que os dois primeiros ficam na Amazónia. A falta de controle
a introdução de pequenos volumes não é suficiente para da lotação dos barcos deve ser responsável por essa triste li-
causar asfixia. Inclusive, pode ser feita como medida semió- derança. São frequentes as notícias de naufrágios de barcos
tica para recolhimento de células pulmonares para exame superlotados na região Amazónica, onde é esse o principal
(lavado broncoalveolar). Além disso, é importante frisar que meio de transporte.
a inundação alveo lar tem que vir de fora, através das vias res- No Estado do Rio de Janeiro, os municípios com maior
piratórias. Do contrário, teríamos que considerar o edema taxa de mortalidade são Paraíba do Sul e Nova Friburgo, que
pulmonar agudo, no qual o líquido surge das paredes alveo- não têm acesso ao mar. Mas, numa avaliação geral, o número
lares, como um tipo especial de afogamento. de afogados em água doce e em água salgada equivalem-se no
Brasil, embora haja predominância de afogamentos em água
Incidência e Taxa de Mortalidade doce entre crianças, principalmente abaixo dos 10 anos 12• Nas
áreas quentes dos EUA, da Austrália e da África do Sul, 70 a
O crescimento geral das atividades aquáticas, incluindo 90% dos afogamentos ocorrem em piscinas residenciais 12•
as profissionais, as esportivas e as de lazer, tem aumentado o A morte por afogamento é um evento mais comum no
risco de afogamento para a população9•10• Mas é muito difícil sexo masculino. No Brasil, a proporção é de 5: 1. No Estado
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 563

do Rio de Janeiro, essa proporção é maior e tem crescido nos frequência de afogamentos que variou de um mínimo de
últimos anos (Tabelas 25.3 e 25.4) 16 •17 • 2,9% a um máximo de 8,9%, nitidamente influenciada pela
Tipicamente, a morte por afogamento é acidental. Pe- disponibilidade de águas naturais no local da amostragem.
quena proporção de casos deve-se a suicídios, e um núme- No trabalho cuja taxa foi maior, feito em Newfoundland, no
ro ainda menor é causado por homicídios. No Brasil, em Canadá, a incidência no grupo de mulheres acima de 50 anos
1992, houve 6.963 mortes por afogamento para um total chegou a 45% dos suicídios20 . Outra causa de erro na avalia-
de 82.808 mortes violentas (8,41 %) 18• Dessas, 6.712 fo ram ção da proporção de afogamentos suicidas é a dificuldade
por acidente (96,40%), 66 por suicídio (0,94%), 32 por ho- de se firmar um diagnóstico de suicídio em grande número de
micídio (0,46%) e 153 de causa jurídica ignorada (2,20%) afogamentos. Vários casos tomados como acidentais podem,
(Tabela 25.3) 16 • Pelos números, pode-se dizer que há um na verdade, ser de suicídios 19• Entre nós, no Estado do Rio de
suicídio em cada 100 e um homicídio em cada 200 afoga- Janeiro, os dados do obituário fornecem incidência muito
mentos, aproximadamente. baixa (Tabela 25.4) 17 •
Os registros dos obituários não costumam fornecer dados Os casos registrados como de origem criminosa, envol-
mais detalhados quanto aos tipos mais comuns de acidentes vendo homicídios dolosos e culposos, são raros. Como re-
de afogamento. Contudo, os números relativos ao Estado do querem grande superioridade de força por parte do agressor,
Rio de Janeiro estão disponíveis no site do governo estadual, na maioria das vezes são praticados contra crianças peque-
na Secretaria Estadual de Saúde, que adotou o sistema de três nas. Analisando os arquivos do Condado de King, Estado de
dígitos da CID-1 O em seus registros. Embora a rubrica pre- Washington, entre 1987 e 1991, Gillenwater e cols. 21 acharam
dominante ainda seja "W74 - Afogamento e submersão não 205 casos de afogamento, dos quais 16 foram considerados
especificados", que abrangeu 55% em 1999 e 42% em 2002, a criminosos (8%). A idade média das vítimas foi de 2,1 anos,
forma mais comum são os acidentes em águas naturais, que correspondendo aos caçulas de três ou mais irmãos. No Es-
representam cerca da metade do total de acidentes 17 • tado do Rio de Janeiro, entre 1999 e 2002, a percentagem dos
O afogamento não é uma forma comum de suicídio. casos registrados como crime nos obituários oscilou entre
Byard 19, revendo a literatura sobre suicídios, encontrou uma 0,22 e 1,58% (Tabela 25.4) 17 •

Tabela 25.1. Mortalidade por afogamento no Brasil (apenas acidentais)


1 Ano 1• 1997 1B 1& 211111
Total 7.111 7.128 6.546 6.042 6.1 55
Tm* 4,7 4,5 4,0 3,7 3,6
*Tm - número de mortes por 100.000 habitantes.
Fonte: Datasus".

Tabela 25.2. Mortalidade por afogamento no estado do Rio de Janeiro (todos os tipos)
Ano 1& 211111 211111 21112
Total 457 463 379 411
Tm* 3,31 3,22 2,60 2,79
*Tm - número de mortes por 100.000 habitantes.
Fonte: Datasus".

Tabela 25.3. Causa jurídica de morte por afogamento no Brasil em 1992, por sexo
8810
Cla1 Tlllal (%) Ml•llno Feminino Ignorado
Acidente 6.712 (96,40) 5.611 1.082 19
Suicídio 66 (0,94) 36 30 o
Homicídio 32 (0,46) 25 7 o
Indeterminada 153 (2,20) 134 19 o
Total 6.963 (100,00) 5.806 1.138 19
Fonte: Funasa, MS, 1996
16
.
564 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

Tabela 25. 4. Causa jurídica de mortes por afogamento no Rio de Janeiro por ano e por sexo
Ano
Clm 1 Sexo 1999 2• 0 2001 2012
Acidentes 359 (78,56%) 339 (73,23%) 339 (89,46%) 382 (92,95%)
Masc. 307 297 297 345
Fem. 52 42 42 37
Suicídio 7 (1 ,53%) 8 (1 ,72%) 6 (1,58%) 5 (1,22%)
Masc. 4 6 4 4
Fem. 3 2 2
Crime 1 (0,22%) 6 (1 ,29%) 6 (1 ,58%) 4 (0,97%)
Masc. o 4 5 3
Fem. 2
Ignorado 90 (19,69%)* 11 o(23, 76%)* 28 (7,38%) 20 (4,86%)
Masc. 77 94 25 17
Fem. 12 15 3 3
Total 457 (100%) 463 (100%) 379 (100%) 411 (100%)
' Um caso sem especificação do sexo.
Fonte: SES do Estado do Rio de Janeiro, via internei" .

Formas de Afogamento e Nomenclatura O afogam ento é cham ado de verdadeiro, úmido, az ul o u


real quando a vítima aspira o líquido e de seco, por inibição
O afoga mento não requer que o corpo do indivíduo es- ou branco quando a m orte se dá sem que tenha havido a
teja totalmente submerso. É possível ocorrer afogamento em aspiração 1•4•23•25 •26 •27• A expressão afogamen to branco traduz
ba nheiras, e mesmo em valas rasas, desde que haja algum ou- um quadro anatomopatológico em que não se acha qual-
tro fa tor que impeça a vítima de retirar os orifícios naturais quer sinal capaz de comprovar que ho uve a aspiração do
de dentro do líquido. É o cham ado afogamento incompleto. líquido, em analogia ao que se chama autopsia branca, o u
Isso pode ocorrer até por ação criminosa em seções de tor- seja, casos em qu e não se acham lesões que justifiquem a
t ura em que os algozes fo rcem a cabeça da vítima dentro de morte. A proporção de afogados brancos no total é de 10 a
um balde ou de um tanque cheio d'água.
20% dos casos 1•23 •25 •26•
Os trabalhos de ordem clínica sobre afoga mento são
realizados com pessoas resgatadas vivas e que podem vir a
falecer no transcurso do tratam ento. Quando sobrevivem Fisiopatologia dos Afogamentos
por mais de 24 horas, os autores falam em semiafogamento,
Os autores do início do século XX costumavam dividi-la
ou quase-afogamento 12•22•23•24 • Os semiafogados constituem a
m aio ria das vítimas recuperadas com vida. Em trabalho feito em fases com base no comportamento de animais, geralmente
no município do Rio de Janeiro, Szpilman reviu 41.279 ca- cães, afogados em condições experimentais. Assim, Thoinot4
sos socorridos pelos salva-vidas entre 1972 e 1991, dos quais refere os trabalhos de Brouardel e Loye, que dividiram a evo-
apenas 2.304 foram encaminhados para o centro de recupe- lução em cinco fases, Hofmann em três fases e Margulies em
ração. Entre esses, a mortalidade foi de 12,3% para os de duas fases. Mas os procedimentos desses autores não eram
água salgada e 16,7% para os de água doce 12 • unifo rmes. Os primeiros fazia m traqueostomia antes de afo-
Na evolução, podem ocorrer complicações de o rdem pul- gar os animais; o segundo usava um laço de constrição cervi-
monar, como a síndrome da angústia respirató ria do adulto cal, e o terceiro repetiu o método de Hofmann e achou dados
(SARA), que modificam o curso clínico de casos de aparente sem elhantes aos de Brouardel.
bom prognóstico. Alguns autores referiam -se a esses eventos Mas o afogam ento humano faz-se em condições muito
como sendo afogamento secundário 22• Atualmente, conside- diversas e sem controle das variáveis. Por isso, não corres-
ra-se afogamento secundário os casos em que a vítima está ponde às fases dos afogamentos experimentais. Enquanto os
na água e se afoga por outras causas. Correspondem a 13% animais submetidos a afogamento são contidos dentro de
d os casos socorridos no Centro de Recuperação de Afogados tanques e, apesar dos seus esfo rços, sofrem um processo con-
do Rio de Janeiro, onde a causa mais comum é o uso de dro- tínuo, as pessoas que se afogam têm a possibilidade de inter-
gas, principalmente o álcool, seguida de convulsões, trauma- romper a marcha da asfixia várias vezes antes de afundarem
tismos e doenças cardiopulmonares 12 • definitivamente.
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 565

Modell1º, anestesiologista estudioso do afogamento, refe- respiração por menos tempo depois de afundar. O indivíduo
re que a própria fase de luta não é o que se observa na maio- resiste até um ponto em que o excesso de co2estimula tanto
ria dos acidentes. Segundo suas palavras: "Por muitos anos, os centros respiratórios que ele não consegue mais impedir
o afogamento foi considerado 'uma luta pela sobrevivência': a aspiração da água. Ao aspirar, sobrevém o reflexo de tosse,
uma pessoa que não conseguia nadar, com os braços agita- seguido de novos movimentos respiratórios e de mais aspi-
dos e gritando por socorro, esforçava-se por permanecer na ração. Durante esses movimentos, costuma vomitar e aspirar
superfície e atingir lugar seguro. Essa situação raramente é parte do conteúdo gástrico 28• Segue-se perda da consciência
relatada por pessoas no local de emergências aquáticas. Mais e convulsões. Porém, há casos em que a pessoa faz hiperven-
comumente, em minha experiência, testemunhas relatam tilação antes de mergulhar, e diminui tanto o teor de co2
que a vítima estava flutuando na superfície e, de repente, fi- que o estímulo aos centros respiratórios é retardado, fazendo
cou imóvel, estava nadando sob a água e parou, estava brin- com que haja queda tão intensa do 0 2 no sangue arterial que
cando ou passeando sob a água e pareceu fingir de morto, o indivíduo perde a consciência antes de aspirar a água'·28•
mergulhou numa piscina e não mais subiu, ou desapareceu Em estudos experimentais feitos em cães afogados em
calmamente". Por essas razões, abdicamos de descrever as fa- água doce ou em água do mar, Modell29 •30 verificou que a taxa
ses do afogamento. de sobrevivência era inversamente proporcional ao volume
de água aspirado, que variou entre 1 a 30 mL por libra de peso
Afogamento Branco dos animais. Quando o volume era grande, as alterações me-
No afogamento branco, no qual não há aspiração, a histó- tabólicas eram mais intensas. No ser humano, a aspiração de
ria relatada pelos circunstantes, geralmente, é a de uma pes- pequenas quantidades produz a maioria dos semiafogados.
soa que cai na água e não retorna à superfície. Ou que cai na Os distúrbios causados pelo afogamento verdadeiro de-
água, é resgatada em poucos minutos, mas já está morta, sem pendem de dois fatores, dos quais o mais importante é a asfi-
ter havido qualquer esforço para se salvar. O tempo transcor- xia. O outro é o tipo de água em que a pessoa se afoga.
rido é tão curto que não daria para matar por asfixia 24•
Alguns fatores parecem favorecer a sua ocorrência. Em Fator Asfíxico
primeiro lugar, ocorre em pessoas que sofrem uma queda. A asfixia dos afogados é causada basicamente pela obs-
Por isso, o indivíduo não espera o contato com a água, como trução das vias respiratórias pela água. Mas nos indivíduos
ocorre nos mergulhos voluntários. Com frequência , a vítima que são retirados com vida e internados em hospitais pode
está alcoolizada ou sob o efeito de algum outro depressor surgir um fator a mais, que é o colapso de parte dos alvéo-
do sistema nervoso central. Além disso, é mais comum em los por causa da perda de surfactante, principalmente se for
locais onde a água está muito fria. É possível que a vasodila- água doce'·'°. Acredita-se que a água doce altere a estrutura
tação cutânea promovida pelo álcool amplifique o estímulo do surfactante e que a salgada apenas o dilua ou remova e
pelo frio 24 • Atualmente, admite-se a existência da chamada que esse efeito perdure por várias horas após a eliminação
síndrome de imersão, ou hidrocussão, que é uma parada car- da água de afogamento'· 12• Seja como for, o colapso alveolar
díaca que ocorre quando uma pessoa mergulha em água a pode ser intenso a ponto de reduzir muito a complacência
temperatura SºC abaixo da corporal. Esse choq ue térmico é pulmonar e causar perda considerável do trabalho cardíaco,
tão mais frequente quanto menor for a temperatura da água. já que o sangue passa por septos de alvéolos não arejados
Não se conhece o seu mecanismo' 2• (shunts arteriovenosos). É isso que explica os casos de pes-
Na impossibilidade de esclarecer experimentalmente os soas que passam bem nas primeiras horas, mas em 12 a 24
distúrbios que levam à morte, os autores elaboram teorias horas descompensam e evoluem para um quadro clínico de
diversas para explicá-la. Alguns admitem uma parada cardía - síndrome da angústia respiratória do adulto (SARA) 22·23 .
ca por descarga vagai, em que o estímulo seria o contato da A hipoxia dos tecidos provoca um desvio do metabolis-
água fria com a mucosa da faringe e da laringe, com o u sem mo com predominância da via anaeróbica, no qual são pro-
participação das terminações sensitivas cutâneas24•27• Outros duzidos radicais ácidos que causam uma acidose metabólica.
atribuem a morte a espasmo prolongado da musculatura in- O grau de asfixia é máximo nos indivíduos que não são res-
trínseca da laringe assim que a água entra em contato com gatados, pois continuam a aspirar o líquido até a parada dos
as cordas vocais'· 23•25•28 • Contra essa hipótese está o fato de movimentos respiratórios. Nos resgatados, depende tanto da
não se acharem sinais de asfixia. Na realidade, esse espasmo presença do líquido nos alvéolos quanto das complicações
existe em qualquer forma de afogamento, mas se desfaz ra pi- pulmonares subsequentes. As consequências do processo
damente nos indivíduos que aspiram o líquido24 .
asfíxico dependem de vários fatores relativos ao próprio in-
divíduo e ao meio do afogamento. Quanto melhor o estado
Afogamento Verdadeiro de saúde da vítima, maior sua resistência. Pessoas idosas, car-
De um modo geral, a aspiração é precedida de uma fase diopatas ou pneumopatas são mais vulneráveis.
de apneia voluntária, de duração variável, na dependência do A temperatura da água tem grande influência no tempo
teor de co2e de 02no sangue. Quando existe a fase de luta, o de sobrevivência. Há relatos de adultos que se afogaram em
consequente acúmulo de co2faz com que a pessoa prenda a lagos gelados e que se recuperaram depois de permanecerem
566 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

submersos por mais de 40 minutos 24 e de crianças que sobre- sentassem a fibrilação porque não sofriam hemólise. Suas
viveram sem sequelas após mais de 60 minutos', provavel- hemácias, em vez de ficarem tumefeitas até se romperem,
mente porque a aspiração de água gelada reduz rapidamente ficavam menores e rugosas.
a temperatura corporal e causa hipotermia suficiente para A transposição dessas conclusões para os casos huma-
proteger o tecido nervoso de dano pela hipoxia 10 . No caso nos, contudo, foi muito contestada por outros autores que
de crianças, o resfriamento é ainda mais rápido por causa de não conseguiram demonstrar as mesmas alterações em
sua relação superfície/massa corporal elevada. Águas muito pessoas semiafogadas e atendidas nos hospitais de pronto-
poluídas costumam trazer um risco maior de complicações socorro9·24. Além do mais, o principal eletrólito intracelular
infecciosas se a pessoa for resgatada com vida'º. nos cães é o sódio, não o potássio24 . A discussão persistiu
até que novos trabalhos vieram demonstrar o motivo da
Fator Osmótico diferença. Trabalhando com cães, Modell33 verificou que a
A concentração de sais do meio de afogamento já foi hemodiluição da água doce, a hemoconcentração da água
considerada fator fundamental no mecanismo de morte salgada e os desvios na concentração dos eletrólitos no san-
dos afogados. Como o plasma tem concentração salina gue dos animais desapareciam em 10 a 60 minutos após a
aproximada de 0,9%, a água do mar é hipertônica com re- interrupção do processo de afogamento. Assim, como as do-
lação a ele, pois tem salinidade média de 3% 28 . Trabalhos sagens de eletrólitos no sangue de humanos semiafogados
experimentais, feitos no início do século XX por Carrara 31, só são feitas depois dos primeiros socorros e da internação
já referiam a existência de uma hemodiluição nos afogados hospitalar, não é de causar espanto o fato de fornecerem
de água doce e uma hemoconcentração nos afogados de resultados diferentes daqueles obtidos em condições expe-
água salgada. Sendo a água doce hipotônica com relação rimentais. É bem provável que essas dosagens dêem resul-
ao plasma, quando ela entra em contato com os alvéolos, tados concordantes se realizadas com material colhido no
atravessa a membrana alveolocapilar e penetra na corren- próprio local do acidente. Além disso, as pessoas que mor-
te sanguínea em grande quantidade, causando diluição e rem na água aspiram volumes bem maiores que as resgata-
hipervolemia intensa 28 . Ao contrário, a água salgada, por das com vida. O volume crítico para haver a hemólise e a
ser mais concentrada do que o plasma, leva à hemoconcen- fibrilação ventricular é de 44 mL/kg de peso' 2.
tração, pois atrai líquido do sangue para dentro do espaço Resumindo, podemos afirmar que qualquer pessoa afo-
alveolar (Fig. 25.7). gada morre asfixiada, com exceção dos casos de afogamento
Anos mais tarde, em 1951, Swann e Spafford 32 realizaram branco, que sofrem parada cardíaca antes de se instalar a as-
novas experiências de afogamento de cães em água doce e em fixia. Nos afogados de água doce, a hemodiluição associada
água salgada que confirmaram as alterações da concentração à asfixia causa hemólise, liberação do potássio intracelular e
do sangue. Concluíram que o mecanismo final de morte era parada cardíaca em fibrilação ventricular. É preciso que haja
fibrilação ventricular nos de água doce e edema pulmonar asfixia para que se dê a hemólise; a simples hemodiluição em
e asfixia nos de água salgada. Atribuíram aquela fibrilação vida não é suficiente para causá-la34 . Nos de água do mar, a
ventricular à hiperpotassemia causada pela hemólise, ob- inundação alveolar é ampliada pelo líquido "puxado" para
servada nos animais afogados em água doce. Além disso, a dentro do álveolo, o que causa hemoconcentração. Aqui, a
hemodiluição aumentava o volume sanguíneo em cerca de parada cardíaca resulta basicamente da hipoxia e demora
70%, com grande sobrecarga ao trabalho cardíaco. Acharam bem mais para ocorrer, 8 a 12 minutos contra 4 a 5 minutos
natural que os animais afogados em água do mar não apre- na água doce 24 .

ep

MB

Ar end

Figura 25. 7. À esquerda, esquema de um septo alveolar com quatro capilares sanguíneos. À direita, detalhe da área assinalada por um retângulo.
Entre o ar e o sangue, há uma célula epitelial (ep), as duas membranas basais (MB) fundidas e o endotélio (end). No afogamento, a água
substitui o ar.
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 567

Alterações Externas pela elevação diafragmática devida aos gases formados no


intestino grosso, que espreme as bases pulmonares. Se a ne-
O corpo das pessoas afogadas pode apresentar modifica- cropsia custar a ser feita, é possível que o patologista não en-
ções decorrentes do mecanismo de morte, da permanência contre mais o cogumelo de espuma24. Por isso, seu valor para
no meio aquoso e de outros agentes que atuam ocasional- o diagnóstico fica limitado.
mente. Algumas dessas alterações têm uma causa facilmente
identificável, enquanto outras são de origem ainda contro- Escoriações e Pequenas Feridas nas Polpas Digitais
versa. Procuraremos agrupá-las de acordo com a sua etiolo-
gia sempre que possível. Enquanto ainda está vivo e consciente, o afogado tenta
agarrar-se em qualquer coisa que flutue ou que lhe permita
Causadas pelo Processo de Afogamento voltar à superfície. Assim, pode sofrer pequenas escoriações
pelo atrito com pedras e outros materiais do meio. Havendo
Cogumelo de Espuma rochas com mariscos incrustados, pode haver pequenas fe-
O líquido aspirado mistura-se com o ar alveolar e com ridas incisas superficiais. Embora feitas em vida, tais lesões
as secreções presentes ao longo das vias respiratórias, bem não costumam apresentar infiltração por sangue, pois são
como com o surfactante, uma substância especial que re- lavadas pela água assim que são produzidas 1.z4. Servem para
cobre o epitélio alveolar. Dessa mistura resulta uma espu- atestar que houve luta por não afundar, mas não comprovam
ma consistente que distende o pulmão e preenche a árvore a aspiração do líquido.
traqueobrônquica. Há quem afirme que participe, em sua
formação, um exsudato rico em proteínas originado nas pa- Corpos Estranhos nos Sulcos Ungueais
redes alveolares 24. Quando o indivíduo é resgatado com vida É possível, em algumas pessoas, encontrar material como
e submetido à respiração artificial, a espuma é eliminada lodo, areia fina, lama sob as unhas dos afogados. Tanto po-
juntamente com o líquido em excesso. Mas, quando se dá a dem ser o resultado do atrito do corpo com o fundo da co-
morte, e o corpo é retirado para a terra pouco tempo depois, leção líquida quanto da movimentação da fase de luta. Seu
costuma eliminar a espuma pelas narinas e pela boca, de valor para diagnóstico do afogamento é pequeno\ mas serve
modo que ela constitui uma massa branca arredondada que para informar sobre as características do local do acidente.
lembra um chapéu de cogumelo. Por isso se lhe dá o nome
de cogumelo de espuma (Fig. 25.8). Pessoas que morrem por Folhagens e Outros Resíduos Presos pela Mão
edema pulmonar agudo, ou por outra forma de asfixia, po-
dem eliminar espuma parecida com essa, mas, como regra, Alguns corpos retirados da água apresentam as mãos fe-
não chega a ser tão exuberante como nos casos de afogamen- chadas forte mente, prendendo folhas, pequenos ramos de
to4·24. A expulsão da espuma das vias respiratórias começa plantas ou outros materiais do local do afogamento. É pos-
logo após a morte, por causa da redução do volume do tórax sível que tenham sido segurados pela vítima durante a fase
pelo relaxamento dos músculos torácicos. E continua depois de luta ou de convulsões dentro do meio líquido. Seriam, na
verdade, o resultado de um espasmo cadavérico 1 •

Causadas pela Permanência na Água


"Mãos de Lavadeira"
O contato prolongado com a água faz com que haja
uma hiper-hidratação da camada córnea da epiderme, que
aumenta de volume e fica ondulada ou pregueada para se
acomodar no mesmo espaço. Começa a se formar nas polpas
digitais em 20 a 30 minutos se a temperatura da água estiver
entre 10 e 18ºC e se espalha por todo o dedo em cerca de
uma hora 1•28 • É uma experiência do quotidiano das pessoas
que, por necessidade de trabalho, como as lavadeiras, ou por
diversão, ficam muito tempo dentro d'água (Fig. 25.9).

Destacamento da Epiderme
Conforme se prolonga a imersão, vai havendo uma ma-
ceração da epiderme. Ao se iniciar a putrefação, esse processo
já está tão ava nçado que a epiderme se destaca facilmente
Figura 25.8. Corpo de afogado do mar que apresenta volumoso co- pelo simples contato físico e mesmo espontaneamente. O
gumelo de espuma sobre os orifícios naturais. Caso do IMLAP, ano de tempo necessário para que ocorra depende basicamente da
1968, examinado pelo autor. temperatura da água4·24·28. Durante o nosso verão, bastam ai-
568 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

Figura 25.9. Grande enrugamento da pele da mão, conhecido como


"mão de lavadeira". Guia 33 da 29ª DP, de 26/02/71.

Figura 25.1 O. Afogado retirado do mar em estado de putrefação


guns dias de permanência na água. Mas não há como fazer inicial. Há áreas de remoção da pele e do tecido subcutâneo nas pálpe-
uma estimativa precisa. Assim, pode haver um destacamento bras e adjacências, nariz, lábios e orelha pela ação de crustáceos. As
total nas mãos, incluindo as unhas. Essa espécie de luva epi- lesões apresentam bordas em saca-bocado e não têm sinais de reação
dérmica pode ser aproveitada para a identificação do corpo vital. Guia 51 da 16ª DP, de 25/04/69.
desde que se preencha o espaço antes ocupado pelos dedos
por algum material mais consistente 24 •28 •
lábios, nariz e orelhas. A genitália é atacada quando ausente
Lesões por Arrastamento uma sunga ou um biquíni. As lesões têm bordas crenadas,
em saca-bocado, sem infiltração hemorrágica visível em suas
O corpo dos afogados costuma ir para o fundo das co- bordas, mesmo após dissecção das suas margens (Fig. 25.10 ).
leções líquidas po rque sua densidade aumenta em função O consumo das partes moles faciais pode ser tão importante
da substituição do ar alveolar pela água. Mas isso só tem a ponto de impedir o reconhecimento da fi sionomia do ca-
importância quando a profundidade do local não é mui- dáver. Se o afogamento se der em valas ou mangues, pode-
to grande. Nas maiores profundezas, o corpo não chega ao mos encontrar lesões produzidas por ratos. Convém lembrar
fundo sem um lastro de contrapeso. Na maioria das vezes, que é muito difícil fazer o diagnóstico diferencial entre lesão
porém, o afogamento se dá em águas não muito profundas, em vida e após a morte quando o ataque se faz dentro d'água
de sorte que o corpo vai ao fundo e, ao sabor das correntezas (ver Capítulo 7).
marinhas o u fluviais, é deslocado e sofre atrito. Resultam
lesões post mortem que se localizam preferencialmente na Mutilações por Hélices de Embarcações
testa, no dorso das mãos, nos joelhos e na face superior d os
A permanência do corpo na água o expõe a outros ti-
pés, por causa da postura do corpo no fundo 1.24 _ Essa posi-
pos de lesões. Iniciada a produção de gases pela putrefação,
ção deve-se à presença dos gases intestinais, que tornam o
o corpo vem à superfície e começa a boiar. Nessa ocasião, é
abdômen o segmento menos denso e sujeito ao maior em-
possível que pequenos barcos providos de moto r de popa o
puxo de baixo para cima pelo princípio de Arquimedes. Mas
atropelem. Dependendo do tamanho, podem causar lesões
a distribuição das lesões de arrastamento pode ser alterada
mutilantes, extensas e profundas, que tendem a apresentar
se as correntezas forem muito fo rtes.
um certo paralelismo, tendo um afastamento regular entre
si24• Não respeitam o plano ósseo, já que as hélices dos moto-
Ação da Fauna Aquática
res comportam-se como instrumentos cortocontundentes.
Animais tanto de água doce quanto de água salgada costu- Distribuem-se ao acaso, dependendo da posição em que o
mam atacar o indivíduo antes ou depois da morte por afoga- corpo estiver ao ser atropelado (Fig. 25.11 ). Os peritos, con-
m ento. Recentem ente, temos tido notícias de ataques de tuba- tudo, devem estar atentos e buscar sinais de reação vital, po is
rões a banhistas nas praias de Recife, PE. Em um lapso de 21 nada impede que o indivíduo tenha sido atropelado com
anos, ocorreram 59 ataques, com 24 vítimas fatais. O último vida. A dificuldade diagnóstica é grande porque a água tende
ocorreu com uma jovem, em julho de 201334• É mais comum a remover o sangue das margens das lesões 1.z4 • Em setembro
nas praias de mar aberto. As lesões incluem graves mutilações, de 1998, o velejador brasileiro Lars Grael, campeão olímpico,
e a vítima tem muita sorte se conseguir sair da água com vida. teve seu barco abalroado por uma lancha de cerca de 15 m
Após a morte, os animais que mais atacam o cadáver são quando treinava para uma competição a se realizar em Vi-
os crustáceos, principalmente os siris. Eles têm preferência tória, ES, na praia de Camburi. Foi lançad o ao mar e atro-
pelas partes mais moles da pele, principalmente pálpebras, pelado pela lancha. Resultou a amputação de seu membro
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 569

Figura 25.11. Corpo retirado do mar em putrefação avançada, no


qual houve amputação do membro inferior direito na articulação com a
bacia, por hélice de embarcação. Nota-se, ainda, fratura exposta do
fêmur esquerdo no terço superior. Coleção de ensino da UFRJ. Figura 25.12. Presença de corpos estranhos na luz dos brônquios,
constituídos por fragmentos de conchas e um pouco de areia, em
afogado resgatado do mar. Caso do IMLAP do RJ, ano de 1970, exami-
nado pelo autor.
inferior direito, fato que consternou o mundo dos esportes
pelo que ele representa.
Aspiração de Corpos Estranhos
Lesões pelas Manobras de Resgate do Corpo
A penetração do líquido de afogamento nos pulmões
Na verdade, não dependem do tempo de permanência na leva consigo quaisquer partículas que estejam em suspensão
água. Mas, por vezes, o corpo é achado em locais de acesso nele. Assim, é comum observar grãos de areia, fragmentos de
difícil e tem que ser içado por meio de cordas ou mesmo conchas, de algas ou lama no interior da luz brônquica (Fig.
ganchos. Como é de se esperar, tais manobras podem causar 25.12). No caso de grãos de areia, eles podem não ser visíveis
lesões de extensão variável e proporcionais às dificuldades em meio à espuma presente na árvore traqueobrônquica,
encontradas na operação de resgate. Em geral, os peritos mas podem ser sentidos pelo tato usando-se as lâminas de
devem ser cautelosos na apreciação dessas lesões, principal- uma tesoura de autopsia, que rangem quando movimen-
mente se não tiverem informações quanto ao modo de resga- tadas dentro da secreção e da espuma. O valor do achado
te e encontrarem marcas de corda no pescoço. desses corpos estranhos é muito controvertido pelos diversos
autores. Alguns afirmam que a presença desses elementos em
Pele Anserina porções periféricas da árvore respiratória, como brônquios
É a contração dos músculos piloeretores promovendo segmentares, atesta aspiração ativa'º·26• Outros exigem que
um arrepiamento geral do corpo, principalmente nos mem- haja penetração em grande volume4 •9 ou que se distribuam
bros superiores e tronco. Independe de ter a morte ocorrido por vários lobos9 • Mas admitem que, em pequena proporção,
por afogamento ou por outra causa. Há quem diga que se pode ser por penetração post mortem, principalmente se o
trata de um espasmo cadavérico relacionado com a rigidez corpo estiver em águas revoltas4•9 • Mas há os que não atri-
muscular'. Mas como a rigidez muscular não causa encur- buem qualquer significado a esse achado para o diagnóstico
tamento de fibras, outros admitem que seja uma contração de afogamento 24' 2s. 35 •
agônica 24• O leitor deve voltar à discussão sobre espasmo ca- Um achado relativamente comum é a presença de ali-
davérico no Capítulo 9. É possível que a retração da bolsa es- mentos parcialmente digeridos na luz dos brônquios. Isso se
crotal e das papilas mamárias descritas pelos autores antigos4 deve ao fato de a vítima vomitar durante a fase de luta, ou
seja causada pelo mesmo mecanismo. logo após, e aspirar o conteúdo. É um bom indício de reação
vital. Fuller9, revendo laudos do Instituto de Patologia das
Alterações Internas Forças Armadas dos EUA, achou aspiração de vômito em
24% dos casos.
Além dos sinais de asfixia, a aspiração e a deglutição do
líquido de afogamento produzem diversas modificações no Enfisema Aquoso
aspecto habitual das vísceras à necropsia. As mais importan- Os pulmões dos afogados geralmente estão aumentados
tes situam-se nos aparelhos respiratório e circulatório.
de volume e de peso. Sua coloração é cinza-avermelhada,
mais escura no caso do afogamento no mar do que no afoga-
Alterações do Aparelho Respiratório
mento em água doce, em face da hemoconcentração do pri-
As principais são a penetração de corpos estranhos nas meiro. Quando se remove o plastrão condroesternal, nota-se
vias respiratórias, o enfisema aquoso e as manchas de Paltauf. que oculta grande parte do pericárdio' ou ocupa todo o me-
570 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

diastino anterior24 . Essa distensão deve-se a um alargamento histológicos comprovam a distensão dos sacos alveolares e
dos espaços aéreos de modo exagerado, o que se chama de evidenciam rotura de septos alveolares, em geral relaciona-
enfisema aquoso, e pode ser visualizado sob a pleura, com o dos com os focos de hemorragia. A compressão dos pulmões
auxílio de uma lupa, como minúsculas vesículas aéreas que pelos gases de putrefação o elimina4.
correspondem aos sacos alveolares (conjunto de alvéolos
arejados por um bronquíolo terminal) (Fig. 25.13). A causa Manchas de Paltauf
dessa distensão, para nós, não é muito clara. Alguns autores
São áreas de cor avermelhada mais ou menos escura, vis-
acham que a espuma formada pode agir como elemento obs-
tas por transparência da pleura. Correspondem às hemor-
trutivo intermitente de modo semelhante ao que ocorre nos
ragias visualizadas na superfície de corte e, com a hemólise
casos de asma brônquica 24 . Os pulmões assim distendidos
que ocorre no afogamento de água doce e na putrefação ini-
apresentam consistência esponjosa mais firme e se mostram
cial, tornam-se bem mais nítidas, mas de contorno esmae-
armados quando colocados sobre a mesa de necropsias (Fig.
cido4·24.28 (Fig. 25.15). Não devem ser confundidas com as
25.14). O enfisema aquoso parece ser mais intenso nos casos
de afogamento em água doce28.A superfície de corte drena lí- manchas de Tardieu, comuns a qualquer forma de asfixia e
quido arejado abundante espontaneamente e pela expressão, que se situam no tecido conjuntivo subpleural, não no pa-
principalmente da luz dos brônquios. É possível observar, rênquima pulmonar como essas. Podem ser imitadas no caso
também, alguns focos de hemorragia dispersos. Os cortes de o afogado ter sofrido alguma outra lesão capaz de fazê-lo
aspirar sangue, antes de cair na água, ou mesmo estando no
meio líquido. Mas o encontro da fonte do sangue aspirado e
o exame histológico evidenciando septos alveolares íntegros
estabelecem o diagnóstico correto. As manchas de Paltauf
são valiosas para o diagnóstico do afogamento, pois não são
observadas em outras formas de asfixia. Provavelmente,
resultam da hiperdistensão do parênquima pulmonar e da
consequente rotura das paredes alveolares.

Alterações do Aparelho Digestivo


Durante a fase de luta, a vítima de afogamento ingere
quantidade variada de água, que vai colecionar-se no estô-
mago e, por vezes, chega a alcançar as primeiras alças do in-
testino delgado. A presença do líquido no estômago, contudo,
não é sinal patognomônico de morte por afogamento. Os
autores, mais uma vez, discordam na sua valorização. Alguns
Figura 25.13. Detalhe da superfície do pulmão de vítima da afoga- acham que possa haver penetração após a morte, na depen-
mento para mostrar o aspecto microvesicular por transparência da dência do tônus do esófago e do esfíncter esofagogástrico24 ·28.
pleura. Caso do IMLAP do RJ, ano de 1968, examinado pelo autor. Mas o achado de grande volume de líquido no estômago e

Figura 25.14. Pulmões de criança afogada em água doce, distendidos


por enfisema aquoso. Ambos apresentam-se mais firmes e não se Figura 25.15. Presença de manchas de Paltauf em pulmão de afo-
amoldam à superfície da mesa. Caso do IMLAP do RJ, ano de 1971, gado do mar. São confluentes em algumas áreas e de cor escura. Mesmo
examinado pelo autor. caso da Figura 25.12.
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 571

nas alças intestinais iniciais é dado muito importante para Fenômenos Cadavéricos nos Afogados
o diagnóstico de morte por afogamento4 • Mas não devemos
esquecer-nos de que o indivíduo afogado poderia ter bebido As alterações metabólicas da asfixia, os distúrbios eletro-
água antes de sofrer o acidente. Assim, o bom senso recomen- líticos do próprio afogam ento e a permanência na água alte-
da cautela na valo rização desse dado, que, não obstante, deve ram o ritmo de aparecimento e de evolução dos fenómenos
ser sempre pesquisado. Em casos de afogam ento em pântanos cadavéricos. A rigidez muscular costuma estar antecipada
ou cursos d'água muito po luídos, a presença de lama simul- em função da asfixia, conforme já estudamos no Capítulo 9.
taneamente no estômago e na árvore respiratória é indicação O resfriamento do corpo, por sua vez, é muito mais rápido
segura de morte por afogam ento (Figs. 25.16 e 25.17). do que na terra, e depende diretamente da temperatura da
água (ver Capítulo 17). Os livores de hipóstase aparecem
Hemorragia no Ouvido Médio e na Mastoide mais cedo por causa da fluidez do sangue. Como vimos, os
coágulos post mortem são dissolvidos nas mo rtes rápidas. A
Alguns auto res referem a presença de hemorragia no
cor dos livores é mais para o vermelho do que nas o utras
ouvido médio, visível por transparência da face superio r
formas de asfixia, em função da temperatura baixa da água
do rochedo como uma zona avermelhada. Mas essa altera-
e da m aio r facilidade do oxigênio da água de penetrar nos
ção também é observada em outros tipos de morte, como
vasos superficiais24 •
overdose e mesmo insuficiência cardíaca 1.24 •28• Admite-se que
Como o corpo dos afogados permanece em decúbito
sejam causadas post mortem pela ação dos livores quando há
ventral, com a cabeça e os membros pendendo para o fundo,
congestão intensa no local28•
os livores aparecem inicialmente na cabeça e na face anterior
do tórax. A cor da cabeça fica, po r vezes, muito escurecida,
principalmente se o corpo chegar à putrefação. Esta, por sua
vez, pode com eçar no tórax devido à penetração de bacté-
rias com o líquido de afogamento. Isso é muito m ais nítido
quando o afogamento ocorre em águas poluídas po r dejetos
humanos. Outro fato interessante é que um corpo que per-
maneça em águas frias custa a apodrecer, mas logo se decom-
põe ao ser removido para a terra28 •36 •
As cavidades pleurais podem conter líquido serossangui-
nolento, principalmente se o corpo ficar mais de um dia na
água. Com a putrefação, os pulmões são espremidos de baixo
para cima pelo diafragma, tornam-se colapsados, e a quan-
tidade de líquido no espaço pleural aumenta muito. Tanto os
pulmões como o líquido pleural ficam de cor pardo-averme-
lhada muito escura.

Figura 25.16. Estômago de vítima de afogamento no Canal do Man-


gue, Rio de Janeiro. Nota-se muita lama recobrindo o pregueamento da Problemas Médico-legais dos Afogamentos
mucosa. Guia 176 da 37~ DP, de 19/08/99.
O primeiro e mais importante é saber se uma pessoa
cujo corpo foi retirado da água realmente se afogou. Uma
vez feito o diagnóstico, saber se o afogamento foi acidental
ou suicida, já que o homicídio por esse meio é excepcional.
Também tem importância saber há quanto tempo e onde
se deu o afogamento, dados necessários para resolver outro
problema que pode surgir, que é o estabelecimento da iden-
tidade da vítima. Além do mais, nos casos em que a vítima
não morre, importa saber a gravidade do quase-afogamento
para fins penais e civis.

Diagnóstico do Afogamento
O fato de se encontrar um corpo boiando na água não
significa que seja de pessoa que morreu afogada. O achado
de um corpo submerso, to tal ou parcialmente, é compatível
com diferentes hipóteses quanto ao ocorrido. É possível que
Figura 25.17. Material lamacento escuro sobre a mucosa da traqueia, tenha havido: 1) mal súbito seguido de queda na água; 2) mal
que está muito congesta. Mesmo caso da figura anterior. súbito quando dentro d'água; 3) morte dentro d'água por
572 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

outras formas de violência, inclusive hipotermia; 4) lesão comportamento. Daí, anota-se se vai para o fundo ou se volta
por outras causas violentas, tendo o corpo caído ou sido lan- para a superfície depois de afundarem um pouco. No primei-
çado na água; 5) afogamento, real ou branco 24 .28. ro caso, o sangue está concentrado; no segundo, diluído.
Mesmo que tenha havido outra forma de violência, até Pelo que explicamos no mecanismo de morte, sabemos
mesmo uma tentativa de homicídio por outro meio, só se que no afogamento em água doce ocorre diluição do sangue e
pode firmar o diagnóstico de morte por afogamento após a que essa diluição tem que ser mais intensa no átrio esquerdo
associação dos dados do histó rico com os do exame de local do que no direito, já que o esquerdo recebe o sangue recém -
e os achados de necropsia. Quando falamos em diagnóstico diluído que vem dos pulmões. O sangue do átrio direito
de afogamento, deve-se entender que nos referimos ao afo- já se misturou com o sangue periférico ainda não diluído
gamento verdadeiro, com aspiração do líquido. O afogamen- e voltou ao coração. Logo, está menos diluído. Pois bem, a
to branco não deixa vestígios e, por isso, torna a tarefa do gota proveniente do átrio esquerdo, mais diluída, vai afundar
patologista forense bem mais árdua. menos e voltar logo para a superfície, enquanto a do átrio
A maioria dos patologistas forenses concorda em afirmar direito deverá afundar um pouco mais e voltar mais devagar
que o diagnóstico de afogamento é muito difícil'.4·24·28 • Há, para a superfície, já que está menos diluída (Fig. 25.18). No
inclusive, os que afirmam que é um diagnóstico de exclusão, afogamento em água do mar, também existe diferença das
ou seja, para ser admitido é preciso que se afastem outras densidades, mas quanto ao grau de hemoconcentração, que
causas de morte natural ou violenta, inclusive intoxicações 1. é maior do lado esquerdo (Fig. 25.19).
Por outro lado, não é raro que o patologista encontre lesões Essa prova tem sido desacreditada por diversos auto-
violentas capazes de causar a morte em um corpo retirado res1·24·28 com base em trabalhos que não têm conseguido de-
da água, por exemplo, o achado de fratura de crânio com monstrar concentração ou diluição no sangue de indivíduos
lesão das meninges e do encéfalo. Nesses casos, só é possível resgatados com vida 37 . Conforme já discutimos a respeito da
afirmar que a morte foi por ação contundente se for excluí- fisiopatologia, as modificações na concentração do sangue
do o afogamento. Veremos os aspectos mais importantes em são revertidas prontamente enquanto a vítima está a cami-
corpos ainda conservados e nos já em putrefa ção. nho do hospital'º·29 •30·33 . Os que morrem na água não têm
chance de corrigir os desvios na concentração do sangue.
Em Corpos Não Putrefeitos O utra objeção a essa prova tem sido feita por alguns au-
tores na base de que os fenóm enos cadavéricos alteram ra -
Nos corpos ainda conservados, a possibilidade de firmar
pidamente a osm olaridade do sangue em função da demo-
esse diagnóstico é maior. Os sinais mais importantes são: pre-
lição das moléculas orgânicas e das trocas de íons que se
sença de cogumelo de espuma, enfisema aquoso, manchas de
Paltauf, corpos estranhos além dos brônquios segm entares, processam após a morte por causa da perda de seletividade
líquido abundante no interior do estômago o u, melhor ain- das membranas celulares 24 . Embora reconheçamos que es-
sas alterações podem modificar um pouco a composição
da, nas alças iniciais do intestino delgado. Estando presentes
e sendo o caso de suspeita de afoga mento, o perito poderá do sangue, elas atuam em ambos os lados do coração, o que
não anularia a diferença das densidades, que é o dado a ser
atestar com tranquilidade a causa da morte. Qualquer um
apurado. Além do mais, enquanto não vem a putrefação, as
desses sinais, isoladamente, é passível de contestação, como
alterações não são tão intensas a esse ponto.
já vimos. O conjunto é que tem o maior peso diagnóstico.
Por causa das controvérsias e das dificuldades encontra-
Determinação da Constante Crioscópica do Sangue
das em certos casos, os autores desde longa data têm pro-
curado prover a Medicina Legal com testes laboratoriais es- Foi idealizada igualmente por Carrara31. Está baseada no
pecíficos para o diagnóstico do afogamento. Mais uma vez, princípio da crioscopia, que é o abaixamento do ponto de
como é comum no estudo do afogamento, são grandes as congelação de uma solução à medida que aumenta a concen-
controvérsias. tração do soluto. Como o sangue pode ser considerado uma
solução salina complexa, seu ponto de congelação pode ser
Prova das Densidades Comparadas medido para ver se está acima ou abaixo do normal, que é
de - 0,64°C. Se houver hemodiluição, o ponto de congelação
Foi proposta por Carrara31 no início do século XX. Está
vai aproximar-se mais de OºC. Se houver hemoconcentração,
baseada na diluição ou na concentração do sangue, quer se
afastar-se-á. O mesmo tipo de objeções e a mesma argumen-
trate de afogamento em água doce, quer em água salgada. Seu
tação favorável relativos à prova das densidades aplicam-se
fundamento é medir a densidade do sangue do átrio direito
e do átrio esquerdo e verificar se estão diferentes. Um modo aqui. A Tabela 25.5 resume os dados esperados, partindo de
exemplos concretos.
fácil de verificá-lo é preparar uma solução de um sal neutro
qualquer, po r exemplo sulfato de sódio, com tal concentração
Dosagem dos Cloretos no Sangue dos Dois Átrios
que sua densidade iguale a densidade do sangue normal. Com
tal solução, enchem-se do is tubos de ensaio até cerca de 1 cm Em 1921, Gettler 38 propôs a dosagem com base na he-
abaixo da boca. Toma-se uma gota de sangue de cada átrio modiluição e na hemoconcentração dos afogados. Assim,
e se coloca uma em cada tubo de ensaio, observando o seu como a água do mar tem teo r mais elevado do que o plasma,
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 573

.. VPE

t VCI

Figura 25.18. Esquema do coração e das veias cavas e pulmonares. Para maior clareza, não foram representadas as artérias pulmonar e aorta.
As setas indicam o sentido do fluxo sanguíneo. As linhas que saem dos átrios representam o comportamento da gota de sangue retirada de cadáver
de afogado em água doce e colocada em tubos de ensaio com solução de mesma densidade de amostra de sangue normal. A gota do átrio esquerdo
afunda menos e sobe mais rapidamente. VCS - veia cava superior; VCI - veia cava inferior; VPD - veia pulmonar direita; VPE - veia pulmonar
esquerda; AD - átrio direito; AE - átrio esquerdo; VD - ventrículo direito; VE - ventrículo esquerdo.

vcs

VPD •

t. VCI

Figura 25.19. Mesmo esquema. Aqui, porém, trata-se de caso de afogamento em água do mar. A gota do átrio esquerdo vai para o fundo mais
depressa que a do direito. VCS - veia cava superior; VCI - veia cava inferior; VPD - veia pulmonar direita; VPE - veia pulmonar esquerda; AD - átrio
direito; AE - átrio esquerdo; VD - ventrículo direito; VE - ventrículo esquerdo.
574 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

Tabela 25. 5. Variação do ponto de congelação do sangue em em função da hiperdistensão pulmonar e que sejam, assim,
afogados26 distribuídas pelas vísceras e tecidos. Por isso, sua pesquisa
Ponto de Congellflo do Sana• foi proposta como método de diagnóstico do afogamento
Tipo de inicialmente por Revensto rf, em 190424• No entanto, não de -
Afop•nto AD AE vem ser pesquisadas no próprio pulmão por causa da possi-
Água salgada -1,04°C -1,18°C bilidade de contaminação post mortem. O mais indicado é a
Branco ou por -0,64°C -0,64°C sua pesquisa no sangue do coração, em triturados de vísceras
inibição maciças ou na medula óssea. Como a carapaça das diatomá-
Água doce -0,56°C -0,47°C ceas é muito resistente, o material biológico recolhido das
vísceras ou do sangue deve ser destruído por ação de áci-
dos fortes, o que deixa um resíduo no fundo do frasco. Após
etapas técnicas apuradas, o depósito deve ser examinado ao
os afogados em água salgada teriam maior concentração de microscópio na busca das imagens típicas das carapaças sili-
cloretos no átrio esquerdo que no direito. Uma diferença de
cosas. Admite-se que haja mais de 10.000 espécies24 • Mas vá-
25 mg/100 mL seria suficiente para estabelecer o diagnóstico. rios autores demo nstraram-nas em cadáveres de pessoas que
Mas trabalhos ulterio res mostraram resultados contraditó- morreram na terra, admitindo que possam atingir a corrente
rios, inclusive diferenças superiores aos 25 mgo/o em casos de circulatória através da parede intestinal24•28• Qualquer revisão
pessoas não afogadas24 •28• da literatura sobre o tema encontra numerosos artigos a fa-
vor e outros tantos contra esse teste diagnóstico.
Dosagem do Magnésio e do Estrôncio no Sangue dos Dois Átrios Num estudo retrospectivo de 771 casos de afogamento
A do magnésio foi proposta por Moritz39 em 1954, com em água doce de Ontário, Canadá, Pollanen42•43 achou dia-
base na concentração muito maior desse eletrólito na água tomáceas em 90% da medula óssea das vítimas. Analisando
do mar. Tem o mesmo fundamento e recebeu as mesmas as espécies de algas encontradas, pôde compará-las com as
críticas que a dosagem dos cloretos. Mas é possível que as presentes no local do afogamento, tendo encontrado grande
divergências entre os autores se deva ao momento da colhei- coincidência. Por outro lado, não as encontrou em 85% dos
ta das amostras. Com o vimos, em sobreviventes, os desvios casos em que a água do local também fo rneceu resultados
eletrolíticos dos semiafogados rapidamente voltam ao no r- nega tivos. Verificou, ainda, que a positividade d os testes era
mal após o resgate. Recentemente, foi proposta a dosagem maior nos m eses em que as algas estavam em intensa proli-
do estrôncio por espectrometria, no sangue dos dois lados do feração no ambiente.
coração. Os auto res encontraram uma diferença acima de Atualmente, a pesquisa de algas diatomáceas é conside-
75 µ g/L nos afogados típicos em água do mar e m enor que rada mais um teste a ser feito para o dia gnóstico do afoga-
20 µ g/L nos afogados brancos40 • mento, mas que não tem peso maior que os outros. Quando
a quantidade achada é grande e as espécies coincidem com
Pesquisa de Elementos do Plâncton (Diatomáceas) as encontradas no local de afogamento, aumenta o seu valor,
principalmente se o utros dados convergem para o mesmo
O plâncton é o conjunto dos seres animais e vegetais que diagnóstico 24•
não têm movimento próprio e que ficam à deriva numa cole-
ção líquida natural. Entre esses elementos, interessam-nos as Em Corpos em Decomposição
algas diatomáceas. São clorofíceas que apresentam uma cara-
paça silicosa muito resistente, que persiste mesmo após a de- Os dados de necropsia que poderiam ajudar no diag-
composição da matéria viva. São divididas em duas ordens, nóstico estão muito alterados o u m esmo suprimidos. Tanto
Centrales e Pennales, de acordo com o desenho e a forma da o conteúdo da árvore traqueobrô nquica quanto o do estô-
carapaça4 1 • Resistem mesm o à incineração 28 • Representam o mago são expulsos pela grande pressão dos gases abdomi-
primeiro elo da cadeia alimentar da m aioria das águas natu- nais. O aspecto dos pulmões está muito m odificado pela
rais. Sua capacidade de reprodução é enorme e varia com as hemólise e impregnação hemoglobínica da putrefação, bem
estações do ano, sendo mais abundantes nos climas tempe- como pela expressão. Os exames laboratoriais não merecem
rados. Ao longo dos séculos, foram-se depositando no fun- confiança em face da grande m odificação da composição
do de mares e lagos, de modo que formam camadas sólidas dos líquidos or gânicos. O recurso que resta é a pesquisa de
(diato mita), por vezes tão espessas que passam de 1 km4 1• Sua elementos do plâncton, que resiste à decomposição da ma-
resistência ao desgaste faz com que massas retiradas dessas téria orgânica. Nesses casos, deve ser feito na medula óssea
camadas sejam usadas com o material abrasivo em pastas de aspirada por trepana ção da diáfise de um dos ossos longos,
polimento, inclusive dentifrícios. Também são utilizadas em de preferência o fêmur.
filtros industriais e como isolantes térmicos. Por isso, sua pre-
Diagnóstico da Gravidade
sença no meio ambiente é universal, inclusive no ar28•
Admitem vários autores que essas algas penetrem na É um problema que surge quando a vítima sobrevive. Na
corrente sanguínea através dos vasos rompidos nos alvéolos maioria das vezes, a sobrevivência está associada aos casos
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 575

mais leves, que são encaminhados aos centros de recupera- centagem de óbitos na revisão de 1.83 1 casos do município
ção a penas por precaução. M as o prognóstico quanto à vida d o Rio de Jan eiro feita por Szpilman 11 foi: grau 1 - O; grau
depende principalmente das condições clínicas em que o 2 - 0,6; grau 3 - 5,2; gr au 4 - 19,4; gr au 5 - 44 e gr au 6 - 93.
indivíduo é resgatado. Szpilman 11 estab eleceu uma classifi-
cação d a gravidade d o quadro clínico dos resgatad os vivos Diagnóstico da Causa Jurídica
em 6 gr aus, segundo um algoritmo de avaliação. A primeira Estab elecido o diagn óstico de a fogam ento, cabe aos pe-
etapa d o exame é verificar se a vítima está ou não respirando. ritos fo rnecer da dos subsidiários à determinação da cau sa
No caso afirmativo, fazer a ausculta pulmon ar para ver se h á jurídica d a mo rte. Contudo, as info rmações m ais impo rtan -
ruídos an ormais ( estertores ) e se são difusos ou localizados. tes nesse contexto são as obtidas no próprio local, a partir
Em seguida, verificar se h á hipotensão arterial. No caso de d o relato de testemunhas. Na maioria das vezes, trata-se de
n ão h aver respiração espontân ea, procurar o pulso arterial acidente.
par a ver se h á parada cardíaca associada à respiratória. É o Os acidentes d e afogam ento são o ra individuais, princi-
sistema RPAP (Respiração, l?.ulso, Ausculta, E.ressão). O en- palmente com pessoas que sabem nadar, ora coletivos e de-
quadram ento nos 6 grau s est á delineado na Figura 25.20. correntes de naufrágios, na maioria d as vezes em água doce.
A avaliação da gravidade pode v ir a ter interesse m édico- Na entrada do an o d e 1989, n o Rio de Jan eiro, um barco de
legal em casos de acidentes d o trabalho ou pessoais para fins m édio po rte, o Bateau Mouche, naufragou quando estava ao
de seguro e em casos d e quase-afogamento de evolução d es- largo da costa, superlotado de turistas que se dirigiam d o Iate
favorável em que se a legu e imperícia m édica, já que o prog- Clube para a Praia d e Copacab an a a fim de observarem a
nóstico est á diretamente liga do à gravidad e do caso. A per- queima de fogos a partir do mar aberto. Os donos do barco

Gravidade do afogamento

Apneia?

s;: /
5 ou 6 1, 2, 3 ou 4
Pulso arterial? Ausculta pulmonar

s;: /
5 6 / \
Normal com tosse
Com estertores
1

Em alguns campos
/ Edema pulmonar agudo
2 3 ou 4

Sem hipotensão
/ \ Com hipotensão
3 4

Figura 25.20. Algoritmo de classificação da gravidade do quadro clínico dos afogados, segundo Szpilman11•
576 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

foram condenados por homicídio culposo por imprudência um pouco de gás para a subida44 • Ainda no mergulho, pode
e um proprietário de outro barco que se recusou a sair do dar-se afogamento quando o barotrauma causar rotura do
Iate Clube para prestar socorro foi condenado por omissão tímpano e o m ergulhado r ficar desorientado, sem saber a di-
de socorro. Nesses acidentes coletivos, não há dificuldade na reção da superfície (ver Capítulo 16).
caracterização da causa jurídica. Embor a seja pouco comum, é possível que se tente dis-
Outro tipo de acidente, menos frequente, é a queda de simular homicídio atirando o cadáver ao mar. A necropsia
veículos em cursos d'água, ao passarem sobre po ntes. Mas completa permite encontrar a real causa da morte na maioria
o que é mais comum em nosso verão são os acidentes pes- dos casos. Além disso, faltam os dados m ais relevantes que
soais, em que as pessoas que sabem nadar se afastam das caracterizam a aspiração líquida. Maior dificuldade surge
proximidades da praia e, quando tentam voltar, são puxadas quando se trata de afogamento branco, em que a vítima tenha
pela correnteza. Cerca de 85% dos acidentes no mar ocor- caído com sua ro upa comum na coleção líquida e não haja
rem em valas, locais de correnteza de retorno das ondas. Fe- testemunhas da queda. A ausência de sinais de luta, como
lizm ente, a m aioria dessas pessoas é resgatada e salva pelos rasgões nas vestes, escoriações e outros, sugere tratar-se de
guarda-vidas 12• acidente, principalmente se o exame toxicológico indicar que
Algu ns acidentes costumam suscitar dúvidas quanto à estava alcoolizada. Embor a alguns autores associem o uso de
possibilidade de suicídio, principalmente se a pessoa estava álcool e outras drogas depressoras ao suicídio por afogamen-
só e não havia alguém nas imediações qu e pudesse testemu- to, o utros não o têm confirmado em suas revisões 19•20•
nhar a ocorrência. Nesses casos, alguns elementos da histó- Conform e já vimos, são r aros os casos de afoga mento por
ria pessoal recente, como crises existenciais o u problemas homicídio. Em geral, são cometidos por m ais de um agres-
financeiros, podem fazer pensar em suicídio. É comum que sor, ou a desproporção de forças é muito flagrante, como
o suicida tire a ro upa e a deixe na praia ou nas margens de nos infanticídios. Os autores antigos referem vários casos de
um rio, em local isolad o, longe do público. É importante morte do recém -nascido por afogá-lo na latrina. O exame
procurar lesões recentes o u antigas relacionadas com ten- das vias respirató rias pode revelar, nesses casos, a presença
tativas prévias. Em uma revisão dos arquivos do Forensic de matéria fecal aspirada4 •36 .
Science Centre, em Adelaide, Austrália, abrangendo período
de 20 anos, Byard 19 encontrou 123 casos de suicídio por afo- Diagnóstico do Local de Afogamento
gamento, nos qu ais havia feridas incisas nos pulsos em seis,
Em alguns casos, o corpo do afogado é arrastado pelas
na garganta em dois, lesão po r arma de fogo em dois e uso
correntezas m arítimas ou fluviais par a longe do local em que
de pesos amarrados à cabeça em nove casos. Achou associa-
se deu o acidente, não sendo encontrado pelas buscas reali-
ção de d oença mental em 53 casos.
zadas logo após. Depois de alguns dias, dependendo da ins-
Nos casos em que o suicida pula de uma ponte, ou de
talação da putrefação, o corpo vem à tona e aparece em o u-
qualquer outra elevação na água, pode sofrer lesões por ação
tro local, por vezes a muitos quilômetros de distância. Nesses
contundente ao entrar no corpo-d'água, se houver rochas no
casos, há a possibilidade de se determinar os elementos do
local. Essas lesões, por si sós, podem ser fatais. Mas a m orte,
plân cton presentes em suas víscer as e compará-los com as
assim mesmo, costuma ser por afogamento, pois em geral a
espécies catalogadas do local onde se suspeita tenha ocorrido
morte por ação contundente não é imediata.
o afogamento. Alguns autores acham pouco provável que se
Certas mortes que ocorrem no lar, em banheiras, podem
tenha sucesso nessa tarefa. Convém pedir auxílio a um bió-
estar relacionadas a mal súbito com perda da consciência
logo especializado para o exame do plâncton.
seguida de afogam ento. No histórico, é possível achar da-
dos como crises epilépticas, alcoolismo o u abuso de drogas
Diagnóstico de Tempo de Submersão
(afogam ento secundário). A necropsia, às vezes, revela a real
causa do acidente: rotura de aneurisma cerebral, infarto do O que se aborda aqui é o tempo de permanência dentro
miocárdio ou outras causas. Em alguns casos, o encontro de d'água e não o tempo post mortem. É da experiência comum
seringas ou quaisquer outros apetrechos usados por viciados saber que qualq uer pessoa que fique por muito tempo num
para se drogarem pode ajudar a esclarecer o acidente. banho de mar ou de rio sofre essa alteração. Assim, o en-
O afogamento acidental pode estar relacionado com ati- rugamento da epiderme descrito como "mão de lavadeira"
vidades profissionais o u esportivas de mergulho. Um risco pode ajudar nos casos em que houve pouco tempo entre o
que o praticante de pesca submarina corre no mergulho livre afogamento e o encontro ou resgate do corpo, desde que se
é o chamado apagamen to. Tivemos ocasião de necropsiar um entenda que a pessoa podia já estar na água por longo tempo
atleta que participava de uma eliminatória para seleção da antes de se afogar. Como já vimos, em água fria (10 a 18ºC),
equipe brasileira que iria ao campeonato mundial de caça o enrugamento dos dedos e das regiões palmares e plantares
submarina, em 1965, no Taiti, e morreu afogado po r ter per- estabelece-se após 30 minutos a 1 hora 1•28• Com o passar do
dido a consciência submerso. A perda da consciência resulta tempo, a hiper-hidratação da pele continua e acaba por levar
da hiperventilação, que reduz muito a concentração do co2 ao destacamento da epiderme. Mas a temper atura da água
e permite que se instale hipoxia se o mergulhador ultrapassar é fundamental nesse processo. Spitz28 cita um caso em que
seu tempo de auto nomia na busca da presa e não guardar uma senhora estava tomando banho morno e morreu fulmi -
CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente • 577

nada por um infarto miocárdico, sendo encontrada cerca de 7. Magnuson E. A noise like thunder. Ti me. 30/09/ 1985. 126( 13):7- 13.
8 horas depois. Suas mãos e pés tinham a epiderme solta em 8. Russell G. Colombia's mortal agony. Time. 25/11/1985. 126(2 1):
6-11 .
luva junto com as unhas. A temperatura da água fora m anti-
9. Fu ller RH. The clinical pathology of human near-drowning. Proc
da por um pingamento de água quente da torneira. Royal Soe Med; 1963. 56:33-38.
Os sinais cadavéricos e a putrefação dão uma ideia apro- 10. Modell JH. Drowning. New England J Med; 1993. 328(4):253-256.
ximada do tempo que se passou depois da morte. O leito r 11. Szpilman D. Near-drowning and drowning classification. A pro-
deve voltar ao Capítulo 9 para mais detalhes sobre a crono- posai to stratify mortality based on the analysis of 183 1 cases. Chest;
1997. 112(3):660-5.
logia da morte. 12. Szpilman D, Tomaz N, Cabral PMS. Afogamento. ln: Trauma -A
Doença dos Séculos. Evand ro Freire, ed. São Paulo: Editora Athe-
Determinação da Identidade da Vítima neu; 2001. Capítulo 163, p. 2247-2266.
13. Folha de São Pau lo, 13 de maio de 2003.
Na m aioria dos casos de afogamento, por ser o corpo res- 14. Cummings P e Quan L. Trends in unintentional drowning. The role
gatado logo a seguir, na presença de conhecidos e de o utras of alcohol and medical care. JAMA; 1999. 281 (23) :2198-2202 .
testemunhas, não há dificuldade na identificação. Mas sur- 15. DATASUS/MS. óbitos por ocorrência, por Unidade da Federação,
gem problemas quando o resgate não tem sucesso e o corpo segundo causa-CID-BR-1O. Captado em 03/09/2003 do sítio http://
tabnet.datasus.gov.br/cgi.exe?sim/cnv/obtuf.def.
se perde, vindo a aparecer em local distante e já em estado de 16. MS/Funasa/Cenepi - Sistema de Informações sobre Mortalidade
putrefação. Mas é possível que jamais apareça. Alguns cor- (SIM) . ó bitos por afogamento e submersão no Brasil, por causa
pos ficam retidos no fundo, presos em rochas o u na vegeta- jurídica e por sexo, ano de 1992.
ção local28• O utros têm as partes moles destruídas pela ação 17. Governo do Estado do Rio de Janeiro. óbitos por afogamento e
por submersão no Estado do Rio de Janeiro. Captado do sítio www.
da fauna, de modo que o esqueleto jaz no fundo. É possível
governo.rj.gov.br/saude.asp em 25/ 12/2002.
que algo parecido tenha ocorrido com o corpo do deputado 18. IBGE. óbitos ocorridos e registrados no a no por lugar de residência
Ulisses Guimarães, que morreu em um acidente de queda de do fa lecido, natureza do óbito e sexo. Captado do sítio www.sidra.
helicóptero no lito ral do Estado de São Paulo, em 12/ l O/ 1992. ibge.gov.br/bda/tabela/protabl. asp?z= t&o= 1 em 03/09/2003.
Dos quatro ocupantes do aparelho, seu corpo foi o único que 19. Byard RW, Houldsworth G, James RA, Gilbert JD. Characteristic
features of suicidai drownings. Amer J Forensic Med Path; 2001.
não apareceu. Nesses casos, a morte é presumida, de acordo 22: 134-138.
com o artigo sétimo do Código Civil. 20. Avis SP. Suicidai d rowning. J Forensic Sei; 1993. 38(6): 1422- 1426.
Nos naufrágios com numerosas vítimas, em que há a 21. Gillenwater JM, Quan L, Feldman KW. Inflicted submersion in
possibilidade de não serem resgatados vários corpos, estes child-hood. Arch Pediatr Adolesc Med; 1996. 150:298-303.
22. Bevilácqua CC, Fernandes MF. Acidentes por submersão. ln:
poderão não aparecer o u só surgir dias depois, em decom-
Emergências Pediátr icas. Bevilácqua CC et ai., eds. São Paulo: Edi-
posição avançada. tora Atheneu; 2000. Capítulo 6.
Tratando-se de corpos ainda conservados, o levanta- 23 . Cohen R, Moelleken BRW. Disorders due to physical agents. ln:
mento da individual dactiloscópica permite a identificação. Current Medical Diagnosis & Treatment, eds. Tierney Jr. LM, Me
Nos que já entraram em putrefação, se a epiderme destacada Phee SJ, Papadakis MA, 36'h ed. Lond res: Appleton & Lange; 1997.
Capítu lo 38, p. 1432- 1434.
das mãos ainda vier pendurada, é possível colocar algodão
24. Knight B. Immersion deaths. ln: Forensic Pathology. Bernard
preenchendo os espaços digitais para fazer a ficha. Mas, não Knight, ed. 2nd ed. Londres: Arnold; 1996. Capítu lo 16, p. 391 -406.
havendo um primeiro registro, por se tratar de m enor ou de 25. Piantadosi CA. Physical, chemical and aspiration injuries of the
estrangeiro sem documentação, devem ser adotados outros Jung. ln: Ceei! Textbook of Medicine, 20'h ed. Benett JC, Plum F,
métodos, conforme o que se prescreve para os corpos em pu- eds. Philadelphia: W. B. Saunders Company; 1996. Capítulo 54.2 , p.
403-10.
trefação avançada (ver Capítulo 4). Desta camos a fórmula 26. Simonin C. Sun1ersión. Medicina Legal Traumatológica . ln: Me-
dentária, a presença de tatuagens, de sinais particulares, de dicina Legal Judicial, traduzido para o espanhol, da 3ª edição fran -
mutilações, de calos de fraturas antigas etc. cesa por Sánchez-Maldonado et ai. Barcelona: Editorial JIMS; 1966.
Capítulo II, p. 225-242.
27. Vibert C. Submersion. Précis de Médicine Légale. Charles Vibert, ed.
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gale. Paris: Doin et Fils, Éditeurs; 1913. 2• Seção do Capítulo IV do 32. Swann HG, Spafford NR. Body and salt water changes during fres h
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578 • CAPITULO 25 Asfixias por Modificações do Meio Ambiente

34. O Globo. Morre turista atacada por tubarão em praia de Recife. 40. Azparren J, de la Rosa I, Sancho M. Biventricular m easurement of
23/07/2013. blood strontium in real cases of drowni ng. Forensic Sciences Int;
35. Camps FE. Drowning: Immersion. Capem Gradwohl's Legal Medi- 1994. 69(2):1 39-48.
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drowni ng. Physiol Rev; 1944. 24:7-88. 2( 4):31-42.
Nilo Jorge Rodrigues Gonçalves

Talvez seja importante uma nota prévia. Em textos so- logia Forense, de que foram corifeus nomes como Henry
bre Sexologia Forense não é incomum aparecerem termos Havelock Ellis, Sigmund Freud, Richard von Krafft-Ebing e
e expressões po uco polidas, deselegantes, desagradáveis ao Magnus Hirschfeld, o "Einstein do Sexo", apenas para citar
leito r apreciador da língua culta. Isso não significa o gosto alguns. Embora tenham vivido em tempos distantes, até hoje
por vulgarismos, por parte de quem os redige, nem a ten- não é possível tratar do tema sem aludir às suas obras.
dência do autor para algum estilo literário pornográfico, de- Da Sexologia Forense são abordados neste capítulo os
saconselhável à boa leitura. É apenas uma tentativa de levar atos libidinosos e os transtornos da sexualidade. Fica no
ao iniciante na matéria, especialmente ao futuro operador capítulo seguinte o estudo dos crimes sexuais, do ponto de
da perícia médico-legal, a informação real sobre o linguajar vista médico-jurídico, e da perícia médico -legal desses tipos
que poderá ouvir do periciando, não raro pessoa simples, delituosos.
carente de recursos linguísticos para expressar com fineza Duas forças biológicas são fundamentais para sustentar a
os verdadeiros sentimentos que o afligem. Não é possível existência do ser humano: a de perpetuação e a de nutrição.
ao perito-legista ignorar a existência desse dialeto, tampou- Esta promove a conservação do indivíduo, e é manifestada
co procurar m anter-se dele alienado; deve acostumar-se a pela fome; aquela propicia a continuação da espécie, e é ex-
traduzi-lo, já que conviverá profissionalmente com ele. Por teriorizada através da libido. Sabe-se, todavia, que o ato de
isso, em que pese o rigoroso crivo a que submeti a termino- comer nem sempre é expressão de uma necessidade nutri-
logia exposta no presente capítulo e no próximo, vetando cional; não obrigatoriamente deriva de uma fo rça famélica.
por completo o tabuísmo puro, não me pareceu apropriado Com er pode ter o fim precípuo, ou mesmo exclusivo, de des-
excluir de todo - embora evitando ao máximo - o emprego frutar o agradável sabor conferido por certo alimento apeti-
dos chamados ditos inconvenientes. Ao fim, nunca é demais toso. Mutatis mutandis, o m esmo pode ser dito em relação
lembrar que por mais que se desaprove o uso das expressões aos atos de libidinagem. Não necessariamente constituem
de calão, não se deve, por princípios éticos, criticar, escar- eles um atendimento ao instinto de repro dução, mas podem
necer ou menosprezar o periciado em razão do vocabulário representar tão somente um m eio de alcançar o prazer ve-
rústico que porventura faça uso. néreo. Essa, talvez, a razão de os mais conhecidos tratadistas
especializados no assunto adotarem entendimento tão lato
sobre atos libidinosos - todos aqueles praticados com o intui-
• ATOS LIBIDINOSOS to de desafogar, completa ou parcialmente, a libido, o desejo
erótico, o apetite sexual.
A Medicina Legal possui um r amo que estuda as questões Desse modo, as modalidades com que os atos libidinosos
relacionadas ao sexo, ao comportamento sexual, seus funda - se apresentam variam extremamente na forma e na intensi-
mentos m édicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais, dade, podendo ir desde o concreto ajuntamento sexual até a
no que tange às implicações jurídicas. Esse ramo é a Sexo- mais distante contemplação lasciva. Como se segue.

581
582 • CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade

Cópula tópica - É a união sexual normal, natural, envo lven- Beijo erótico - Em si, o beijo não é necessariamente um ato
do os órgãos copuladores de indivíduos de sexos opostos, libidinoso. O animus com que se apresente é que pode
isto é, o pênis e a vagina. É a cópula vaginal, o coitus per fazê-lo ser. O beijo afetuoso de um pai na face da filha,
vaginam, a conjunção carnal, como trata a lei. É o ample- ao deixá-la na porta do colégio, nada tem de luxúria. O
xo carnal, em tom romântico. Biologicamente, constitui beijo reverencial de um fiel dado à mão do sacerdote não
o ato libidinoso mais pleno. Em sua concretização não se pode imaginar concupiscente. Mas o beijo molhado,
está presente, necessariamente, o orgasmo nem a ejacula- ardente e prolongado entre dois enamorados, inegavel-
ção, bastando a contactação física entre as duas estrutu- m ente só o é.
ras naturais d o coito. Entre pessoas normais, a conjuga- Contemplação da nudez -A visão da nudez ou d o desnuda-
ção sexual costuma ser revestida de sentimento afetivo, m ento também não é intrinsecamente lasciva. Para sê-lo
de m anifes tação amorosa, de carícias mútuas, mas histo- depende d as circunstâncias. Bem nos lembra Hélio Go-
ricamente, ao que se sabe, não foi sempre assim. A pro- m es2 de que o nu visto por um médico durante o exame
pósito, frisa Orlando Soares 1 que em épocas primitivas a clínico nada traduz de lubricidade. Não é possível negar,
cópula vagínica entre homem e mulher era praticada por porém, que a apreciação de um stripper em espetáculo
trás - coitus a tergo - , alheios ambos a qualquer comu- pornô seja altamente revestida de sentimento erógeno.
nhão espiritual.
Cópulas ectópicas - Litera lmente, são as realizadas fora do
lugar, fora do lugar natural. De modo amplo, podem ser • TRANSTORNOS DA SEXUALIDADE
entendidos como tais tod os os contatos lúbricos que en-
volvam o ó rgão sexual de um indivíduo com uma parte Tra nstornos da sexualidade são distúrbios qualitativos
corporal que não o órgão copulador natural do parceiro. ou quantitativos do instinto sexual. São também denomi-
São, assim, ectópicas a cópula ante portam, ou vulvar, ou nad os transtornos psicossexuais. A expressão transtorno da
vestibular, ou preambular; a có pula anal, ou sod omíti- sexualidade veio substituir a antiga perversão sexual, tornada
ca, se praticada com mulher, e pederástica, se praticada estigmatizante. Outror a o termo perversão tra duzia a ideia
entre ho mens; a có pula interglútea; a cópula intercrural, radical e severa de comportamento humano contrário às
ou interfêm ora; a có pula intermam ária; a irrumatio, ou normas sociais existentes.
cópula bucal, ou coitus per os; a fella tio, ou contactação Na patologia do instinto sexual existem posicionam entos
labial e/ou lingual com o pênis; a cópula orovulvar, ou acadêmicos assaz conflitantes em relação a muitos aspectos,
cun nilingus; a cópula auricular; a cópula axilar; a cópula desde o diagnóstico até o tratamento. Quanto à etiologia,
umbilical; a cópula em colostomia; e tantas outras que a muitos transtornos da sexualidade têm causa em alterações
pródiga inventividade humana sói ser capaz de conceber. orgânicas concretas, em desequilíbrios glandulares; outros,
Anilingus - É a prática libidinosa caracterizada pelo contato na realidade, não são mais que epifenô menos de determi -
oroanal. Para alguns indivíduos, constitui for te compo- nadas perturbações psíquicas. Mas há quem sustente que
nente dos jogos sexuais preliminares. Pesa contra essa alguns, tidos como transtornos, são produtos exclusivos da
prática a alta possibilidade de contágio por d oenças de deliberada preferência individual.
transmissão orofecal. Os transtornos da sexualidade, em si, não constituem,
Masturbação - Consiste na estimulação manual dos órgãos logicam ente, infrações penais, mas podem representar fa -
genitais para provocar o orgasmo. Se realizada por um tores criminógenos, contribuindo par a escândalos, chanta-
indivíduo em si próprio é denominada auto masturba- gens, ameaças, corrupções, violências. Na esfera cível, podem
ção; quando realizada por uma pessoa em outra, uni ou ainda ensejar separ ação judicial, divórcio, anulação do casa-
bilateralmente, é a heteromasturbação. Para a m astur- mento, perda do poder fa miliar etc. Daí a razão de seu estudo
bação, podem ser utilizados objetos acessórios adrede em Medicina Legal.
fabricados, com o, por exemplo, vaginas e pênis artifi- O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders3,
ciais, chulamente conhecidos como consolos. O termo em sua quarta edição - DSM-IV - , de 1994, utilizad o em
pseudom asturbação é empregad o à prática de buscar o quase todo o mundo, adota uma classificação metódica dos
prazer sexual com a manipulação de áreas erógenas pa- transtornos da sexualidade, dividindo-os em disfunções se-
ragenitais o u m esmo extragenitais. É considerada área xuais, tra nstornos de identidade de gênero e parafilias.
genital a que inclui a genitália externa e as regiões anal
e perineal. Área par agenital - vizinha à genital - é a q ue Disfunções Sexuais
engloba a face interna das coxas, as regiões glúteas e os
quadrantes inferiores do abdô men. Extragenitais são as De acordo com o manual, as disfunções sexuais caracte-
demais áreas corpóreas. rizam-se po r uma perturbação no desejo sexual e alterações
Contatos voluptuosos - São os tateios impudicos, as pal- psicofisiológicas que compõem o ciclo de resposta sexual,
padelas sutis, as bolinagens, as esfregações, os sarros, na causando sofrimento acentuado e dificuldade interpessoal.
expressão do leigo. Nele, as disfunções sexuais são subclassificadas em transtor-
CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade • 583

no de desejo sexual hipoativo, transtorno de aversão sexual, aluna que lhe fizera pergunta sobre o tema a hilária - sem
transtorno de excitação sexual, transtorno erétil masculino, calemburgo - resposta de que "é muito difícil encontrar
transtorno orgástico, ejaculação precoce, dispareunia, vagi- uma jovem realmente frígida; o que é mais fácil é encon-
nismo e coitofobia. trar quem não saiba afinar e dedilhar o violão!''.
Transtorno de desejo sexual hipoativo - Tem como carac- Ejaculação precoce - Fundamentalmente, tem como carac-
terística essencial a deficiência ou ausência de fantasias terística o desencadeamento, persistente ou recorrente,
sexuais e do desejo de ter atividade sexual, com acentua- do orgasmo e da ejaculação mediante estimulação mí-
do sofrimento ou dificuldade interpessoal. É o entorpe- nima, antes, durante ou logo após a penetração, se for o
cimento do instinto do sexo, a ausência do apetite sexual, caso, e sem que o indivíduo deseje, com acentuado sofri-
que pode afetar tanto a mulher quanto o homem. Ana- mento ou dificuldade interpessoal.
frodisia, anerotismo e anerosia são seus sinônimos. Dispareunia - O transtorno caracteriza-se principalmente
Transtorno de aversão sexual - A característica básica é a por dor genital associada ao intercurso sexual, com acen-
aversão e esquiva ativa do contato genital com o parceiro, tuado sofrimento ou dificuldade interpessoal. Embora a
com acentuado sofrimento ou dificuldade interpessoal. dor seja mais frequentemente referida durante o coito,
Em alguns casos severos da perturbação, a repulsa chega também pode ocorrer antes ou depois dele. A dispareu-
a ser generalizada, englobando quaisquer estímulos se- nia não é exclusividade das mulheres; pode ser classifica-
xuais, até os mais mínimos, como beijos e toques. O ter- da no sexo masculino, caracterizada pela ereção dolorosa .
mo misoginia traduz a aversão ao contato sexual especi- Contrapõe-se à eupareunia, ao coito vaginal fisiológico,
ficamente com mulheres. em que homem e mulher sintam-se gratificados.
Transtorno de excitação sexual - Traz como característica Vaginismo - Caracteriza-se basicamente pela contração in-
fundamental a incapacidade persistente ou recorrente de voluntária, recorrente ou persistente, dos músculos do
adquirir ou manter uma resposta de excitação adequada, períneo, adjacentes ao terço inferior da vagina, quando
de lubrificação e turgência genital, até a conclusão da ati- é tentada a cópula, gerando acentuado sofrimento ou di-
vidade sexual, com acentuado sofrimento ou dificuldade ficuldade interpessoal. O quadro pode ser desencadeado
interpessoal. É classificado somente no sexo feminino. com a tentativa de penetração não exclusivamente do
Transtorno erétil masculino - A principal característica é pênis, mas apenas de um dedo, ou ainda de algum ob-
uma incapacidade persistente ou recorrente de obter ou jeto como espéculo ginecológico ou tampão vaginal. Na
manter uma ereção adequada até a conclusão da atividade forma mais grave, a contração chega mesmo a impossibi-
sexual, com acentuado sofrimento ou dificuldade inter- litar o coito vagínico, o que pode configurar uma forma
pessoal. É a impotência erigendi, variedade mais comum de impotência coeundi feminina. Em algumas mulheres,
da impotência coeundi masculina, quase sempre negada até a simples previsão do enlace carnal pode antecipar
pelo portador, mas não tão pouco frequente assim. Vanrel4 o fenômeno. Emilio Bonnet7 explica como a contratura
afirma ser fato incontroverso que cerca de 50% dos ho- do vaginismo pode ocorrer também após a penetração
mens têm ou já tiveram impotência coeundi em algum do pênis, impedindo a sua retirada e dando lugar ao
momento da vida. Nos etilistas crônicos, a inapetência e penis captivus, situação excepcional no ser humano, po-
a impotência sexuais, consequentes da toxicose, podem rém corriqueira nos canídeos.
levar a um quadro de ciúme mórbido, conhecido como Coitofobia - Também denominada erotofobia e androfobia,
delírio de ciúme, em que o indivíduo, movido por idea- é a repugnância ou o medo mórbido do coito, o horror
ção convicta, de falso conteúdo, atribui ao cônjuge ou ao sexual, particularmente por parte da mulher. Pode ter
parceiro traição afetiva por práticas sexuais com terceiro. como componente básico um elemento materialmente
Isso pode levar o delirante a ações delituosas. Ensina Afrã- perceptível, tal a dispareunia ou o vaginismo, mas tam-
nio Peixoto 5 que o mesmo delírio pode também acometer bém fatores psicológicos de grande complexidade diag-
os morfinômanos e cocainômanos. A impotência coeundi nóstica. A coitofobia pode apresentar-se de forma gené-
não deve ser confundida com esterilidade ou infertilidade, rica ou seletiva, conforme implique, respectivamente, na
que, no homem, ganha o nome de impotência generandi, aversão feminina a qualquer parceiro ou a um específico.
e, na mulher, de impotência concipiendi ou aciesia.
Transtorno orgástico - Caracteriza-se essencialmente por Transtornos de Identidade de Gênero
um atraso ou ausência, persistente o u recorrente, do or-
gasmo, após uma fase normal de excitação sexual, com Identidade de gênero é a convicção íntima de que se é
acentuado sofrimento ou dificuldade interpessoal. A per- do gên ero masculino ou feminino. Sexólogos afirmam que
turbação é classificada em ambos os sexos. No homem, essa convicção começa a ser forjada por volta dos 3 anos de
é a anorgasmia, termo que embora possa ser aceito para idade. De acordo com o DSM-IV, o transtorno de identidade
ambos os sexos, costuma ser aplicado restritivamente ao de gênero ca racteriza-se por uma forte identificação sexual
sexo masculino. Na mulher, é a frigidez sexual ou ane- do indivíduo com o gênero oposto ao seu, acompanhada por
donia à cópula, entidade que, de tão rara, certa vez levou desco nforto persistente com o próprio sexo, que lhe é natu-
Hilário de Carvalho6 , com muita sutileza, a dar a uma ralmente atribuído.
584 • CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade

Parafilias Algolagnia ativa - O mesmo que algofilia ativa, sadismo e


tiranismo.
Consoante o manual, as parafilias são caracterizadas Algolagnia passiva - O mesmo que algofilia passiva, maso-
por anseios, fantasias ou comportamentos sexuais, mani- quismo e nicolaísmo.
festados de modo intenso e recorrente, que envolvem obje- Ancianofilia - Atração sexual sistemática de indivíduos jo-
tos, atividades ou situações incomuns, e causam sofrimento vens, de qualquer sexo, por outros do sexo oposto, po-
clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento rém provectos, de idade excessivamente avançada. É a
social ou ocupacional, ou em outras áreas importantes da inversão de tempo ou idade, envolvendo pessoas de sexos
vida do indivíduo. Eduardo Alvarado8 ressalta que, segun- diferentes mas idades díspares, desconformes. É a cro-
do Arthur Noyes, uma característica comum a todas as pa- noinversão, de Afrânio Peixoto5, também sinonimizada
rafilias é a sua natureza repetitiva, compulsiva e de padrão de gerontofilia e presbiofilia. A psicanálise vê em muitos
constante. gerontófilos imaturidade emocional e personalidade in-
Convém antecipar que algumas práticas referidas como fantil que, por carência de pais afetuosos, buscam, nessa
parafilias, quando se apresentam de modo esporádico, quan- preferência, mais um pai ou uma mãe, conforme o caso,
do não constituem o único meio ou, pelo menos, o meio do que um verdadeiro parceiro sexual.
predominante de satisfação sexual, quando realizadas de Andromania - O mesmo que citeromania, estromania, his-
comum acordo entre os parceiros e quando não ferem os teromania, furor feminil, furor uterino, metromania,
costumes nem outras pessoas, chegam a ser aceitas como ninfomania e uteromania.
normais, especialmente em sociedades de hábitos culturais Andromimetofilia - Excitação e satisfação heterossexual
modernos, mais liberais. Outras delas, entretanto, são unâni- preferencialmente com parceira que, sendo em realidade
me e irrecorrivelmente consideradas anómalas. A interpre- feminina, represente e se relacione eroticamente como
tação do cunho anormal dessas práticas sofre influência de um homem.
fatores sociais e culturais, que modificam o seu significado Antissexualismo - Atração sexual voltada indistintamente
e importância conforme a época e o lugar. De modo que o para parceiros de qualquer sexo. É o mesmo que bisse-
que hoje, em determinada localidade, seja considerado um xualismo. Do ponto de vista da saúde conjugal, é prática
transtorno sexual, pode não ter sido no passado e pode dei- bastante preocupante porque tem sido apontada como
xar de sê-lo no futuro. A propósito, lembra Cláudio Duque9 grande propiciadora da disseminação de infecções se-
o acontecido em relação à pedofilia e ao homossexualismo. xualmente transmissíveis.
Em razão disso, a postura mais recomendável na avaliação Apotemofilia - O mesmo que acrotomofilia.
das parafilias é a do comedimento. Asfixiofilia - Excitação e satisfação erótica através de mano-
Não é atribuição do presente capítulo o estudo pormeno- bras asfíxicas, como constrições do pescoço e sufocação
rizado desses transtornos, ainda menos o de suas minúcias direta. A anomalia é sempre rondada de extremo perigo,
psiquiátricas. Em ligeira sinopse, aq ui serão apenas apresen- especialmente quando o indivíduo se encontra só. Em
tados os mais conhecidos deles, com algumas considerações busca do prazer, o incauto praticante pode encontrar a
essenciais acerca de cada um que as mereça. própria morte. Os necrotérios têm casos registrados. Hi-
Algumas espécies aqui elencadas não chegam a ser con- poxifilia e erotismo hipóxico são termos equivalentes de
templadas pelo DSM-IV, mas são muito consideradas por asfixiofilia.
importantes correntes doutrinárias. Na apresentação, são Autismo sexual - O mesmo que autoerotismo, autoerastia,
aproveitados, sempre que possível, os conceitos do manual, erotomania e psicolagnia.
na íntegra o u com adaptação. Po r vezes, espécies apresenta- Autoagonistofilia - Excitação e satisfação sexual dependente
das separadamente traduzem ideia muito semelhante e até do fato de ser observado, de estar em cena, de ser filmado
repetida. E o mesmo indivíduo pode reunir simultaneamen- ou fotografado.
te duas o u mais espécies diferentes. Autoerastia - O m esmo que autoerotismo, erotomania, psi-
Muitos tratadistas elaboram classificações detalhadas das colagnia e autismo sexual.
parafilias, cada um ao jeito próprio, para facilitar sua expo- Autoerotismo - Prazer erótico sem a participação física de
sição. Optei por apresentá-las em ordem alfabética, visando parceiro. Algumas vezes o prazer é propiciado pela ima-
facilitar a consulta. Na descrição correspondente, quando ginação do indivíduo, associada a certas práticas eróticas
existirem termos sinónimos é quase sempre preferido aquele por ele efetuadas, como o ciclismo, a cavalgada, a dança.
de uso mais consagrado. O utras, está atrelado à contemplação de retratos ou fil-
Acrotomofilia - Preferência por parceiros sexuais portado- mes, ou à mera visualização, mesmo que à distância, da
res de grandes amputações. É também conhecida como pessoa desejada, como ocorre com frenéticos fãs diante
apotemofilia. de seus ídolos sexuais. Noutras, ainda, a simples evocação
Algofilia ativa - O mesmo que algolagnia ativa, sadismo e mental do desejado já é suficiente para propiciar o prazer,
tiranismo. do que resultou a expressão coito psíquico, de Hammond.
Algofilia passiva - O mesmo que algolagnia passiva, maso- É também denominada psicolagnia, autoerastia, eroto-
quismo e nicolaísmo. mania e autismo sexual.
CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade • 585

Auto-homossexualismo - O mesmo que autofilia e narci- inocultável dos homens europeus pelas mulatas brasilei-
sismo. ras tem sido citada com o exemplo.
Autofilia - O mesmo que auto-homossexualismo e narci- Cronoinversão - O m esmo que ancianofilia, gerontofilia e
sismo. presbiofilia.
Azolagnia - O mesmo que misofilia e riparofilia. O vocábulo Dendrofilia - Transtorno caracterizado pela atração sexual
parece derivar de azoto, marcante componente das escó- po r árvores. É também denominado fitofilia.
rias nitrogenad as eliminadas pelo organismo. Devoteísmo - Neologismo oriundo de devotee, é a atração
Bestialidade - Va riedade de zoofilismo erótico, também de- sexual seletiva por pessoas portadoras de defi ciência.
nominada bestialismo, em que ocorre o coito, de modo D evotees pretenders são cham adas as pessoas que se sen-
ativo o u passivo, com o animal-parceiro. Ainda é prática tem sexualmente estimuladas quando fingem ser defi-
ocorrente em regiões rurais, o nde o isolamento social, a cientes, utilizando recursos como cadeira de roda, mu-
falta de esclarecimentos higiênicos e o contato diuturno leta, bengala, aparelho ortopédico. Devotees wannabes
do campo nês com os animais tudo facilita. A esse respei- são as que desejam tornar-se, de fato, pessoas deficientes.
to, Afrânio Peixoto'º fala do ciúme que a mulher andina Existem, na grande rede mundial, sites muito bem elabo-
tem das lhamas, queridas por seus pastores. Para o pro- rados, especialmente voltados para devo tees.
fesso r, "a docilidade delas, seu belo olhar e a necessidade Disfarcismo - O m esm o que eonismo, fetichismo travéstico,
ou a perversão ajudam o pecado"... Dizem - mas não se inversão sexoestética e travestismo.
encontra comprovação - que era dos chineses antigos o Dollismo - Atração sexual por bonecas ou manequins de
costume de copularem com gansos, afundando na água, confo rmação humana. Alguns sex shops oferecem mode-
mom entos antes de ejacularem, a cabeça das aves, que, los para todos os gostos de d ollistas, dos simplesm ente
com os espasmos esfincterianos produzidos no início infláveis aos m ais sofisticados, verdadeiros robôs. A pai-
da asfixia, proporcionavam ao depravado uma sensação xão que certos transtornados devotam a esses artefatos
assume às vezes dimensões inimagináveis. Recentem ente
toda especial. É possível que daí se tenha originado a ex-
a imprensa nacional no ticiou que um dollista de 43 anos
pressão "afogar o ganso", com o significado atualmente
assassinara os próprios pais porque se opunham termi-
modificado pela gíria popular.
nantemente ao seu relacionamento com a "parceira" de
Bestialismo - O m esm o que bestialidade.
borracha. O termo dollismo resulta do inglês doll, bone-
Bissexualismo - O m esm o que anfissexualismo.
ca. Guarda semelhanças com o pigmalionismo.
Bondagismo - Prazer sexual dependente de contato físico
Donjuanismo - O termo é inspirado no personagem Don
com pessoas am arradas. O termo é neologia originada do Juan Tenório, o conquistador de Sevilha, e se aplica ao
inglês bondage, escravidão, servidão, cativeiro.
transtorno masculino caracterizado pela compulsão a
Castrofilia - O m esmo que transgenitalismo e transexua- conquistas amorosas ruidosas e exibicionistas, cujo obje-
lism o. tivo não raro é contradizer sentimentos de inferioridade
Citeromania - O mesmo que androm ania, estromania, através da demo nstração de sucessos eróticos. Desse
histeromania, furor feminil, furo r uterino, m etromania, modo, o donjuanismo é mais propriamente uma falsa
ninfo mania e uteromania. hipersexualidade, já q ue o do njuanista m ostra pouco
Cleptolagnia - excitação sexual especialmente provocada interesse pela parceira que conquistou. Tão logo tenha
pelo ato de fu rtar ou de roubar. conseguido provar que pode excitá-la sexualmente, vê
Clism afilia - Atração e dependência do uso de clisma, de aliviad as as dúvidas acerca de sua capacidade m asculina
enema, de clister, par a a excitação sexual. e então se sente impelido a realizar novas conquistas.
Coprofilia - Prazer sexual relacionado à presença de fezes, Ecdiseísmo - Tendência mó rbida para despir-se a fim de
seja pelo contato direto, seja por sentir seu odor, seja tão provocar estimulação erótica em indivíduos do sexo
só por contemplar o ato de defecação. Também conhe- oposto. Nesse sentido, em muito se assemelha ao exibi-
cida como coprolagnia, escatofilia e escatolagnia, é uma cio nismo. O termo é derivado de ecdise, a perda do reves-
variedade de excrem entofilia. timento externo, com um em alguns artrópodes e ofídios.
Coprolagnia - O m esmo que coprofilia, escatofilia e esca- Ecouterismo - Prazer obtido através da escuta dos sons origi-
tolagnia. nad os nas atividades sexuais ou na higiene íntima de ou-
Coprolalia - Excitação e prazer sexual dependente de pro- trem. A origem do termo está no francês écouter, escutar.
ferir ou ouvir de alguém turpilóquios, palavras vulgares, Edipismo - Inusitada atração incestuosa do filho homem
obscenas, chulas, inconvenientes. Escatolalia tem o mes- pela própria mãe. Incesto - definem os dicionaristas -
mo significado. é o relacionam ento sexual entre parentes, nos graus em
Crem atofilia - Excitação e satisfação erótica dependente do que a lei, a moral o u a religião proíbe o u condena o ca-
fato de ser obrigado a pagar pelos serviços sexuais presta- samento. O parentesco - estabelece o Código Civil, no
dos pelo parceiro, ou de ser roubado por ele. artigo 1.593 - é natural ou civil, confo rme resulte de
Cromoinversão - Preferência erótica concentrada por par- consanguinidade o u outra origem. Mas vale lembrar que
ceiro com pele de cor d iversa da do indivíduo. A atração incesto não é palavra presente no Código Civil nem no
586 • CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade

Código Penal. Por extensão, tem sido também entendida Estigmatofilia - Atração erótica por parceiros que apresen-
como edipismo a atração sexual do homem por parentas tem marcas, cicatrizes, tatuagens etc., especialmente lo-
próximas. Ainda que futilidade, não custa imaginar que, calizadas nas regiões genitais. Em perícias médico-legais,
por conseguinte, não escaparia do contexto de edipismo tive a oportunidade de observar algumas tatuagens e
nem mesmo o interesse libidinoso do filho pela mãe sub- marcações em áreas pudendas que dificilmente justifica-
rogada, até que por cessão do útero, pois que do ponto riam atender finalidade diferente.
de vista médico-legal, não há como não considerar mãe a Estromania - O mesmo que andromania, citeromania, his-
mulher que, por transferência de embrião, gestou e deu à teromania, furor feminil, furor uterino, metromania,
luz concepto de outrem, em que pese não ter este com ela ninfomania e uteromania.
qualquer vinculação genética". O termo edipismo pro- Etnoinversão - Predileção sexual por parceiro de determi-
vém de analogia com o drama vivido por Édipo e sua nada etnia diversa da do indivíduo. Etnoinversão e cro-
mãe, Jocasta, na tragédia sofocliana. moinversão não são necessariamente sinónimos. O ethnos
Efebofilia - O mesmo que nepiofilia e pedofilia. abrange características que vão muito além da mera pig-
Electrismo - Desviação caracterizada pelo desejo incestuoso mentação cutânea.
da filha pelo próprio pai. Com exagero artístico, o termo Excrementofilia - Excitação sexual vinculada à observação
deriva, como conta a história, do amor nutrido por Electra ou ao contato com excrementos. Quando fezes, recebe a
em relação a seu pai, Agamenon, rei de Micenas. denominação de coprofilia, coprolagnia, escatofilia, esca-
Enclitofilia - Atração sexual por indivíduos marginais, por tolagnia; se é a urina, urofilia, urolagnia, undinismo.
delinquentes. Analiticamente, três fatores parecem con- Exibicionismo - Incoercível prazer em mostrar a outrem,
tribuir de modo preponderante para essa filia: a busca de quase sempre em público, os próprios órgãos genitais,
notoriedade e fama; um altruísmo patológico; uma atra- sem maiores violências e sem desejo de consumação se-
ção mórbida pelo que é perigoso e exótico. xual. O orgasmo é alcançado por masturbação, durante
Eonismo - O mesmo que disfarcismo, fetichismo travéstico, ou após a exposição. Prevalece nos homens, mas não é
inversão sexoestética e travestismo. raridade nas mulheres. Quando o ostentado é o pênis,
Erotismo hipóxico - Com essa expressão, Bonnet7 refere-se recebe a denominação especial de peodeictofilia. É mister
a práticas de asfixia erótica associadas frequentemente a diferenciar o exibicionismo stricto sensu - coisa do doen-
masoquismo, fetichismo o u travestismo, capazes, não te mental ou, no mínimo, do portador de outro transtor-
raro, de levar o portado r do transtorno ao autoexter- no da saúde mental - da exposição genital realizada vo-
mínio. Em sua obra clássica, o autor apresenta casos, luntária e conscientemente com o propósito de ultrajar o
fartamente documentados, inclusive de sua observação pudor de alguém.
pessoal. Tomio Watanabe 12 também publica, com do- Feiticismo - O mesmo que fetichismo e simbolismo erótico.
cumentação fotográfica, um caso de morte por estran- Fetichismo - Também conhecido como feiticismo ou sim-
gulamento acidental, decorrente de situação idêntica. bolismo erótico, é desvio caracterizado pela fixação da
Erotismo hipóxico pode ser sinónimo de asfixiofilia e libido em algo que simboliza a pessoa amada ou desejada
de hipoxifilia. - o fetiche -, representado por objetos relacionados com
Erotofonia - Prazer anómalo em ouvir obscenidades. Quan- ela, como sutiãs, calcinhas, cuecas, meias, lenços, cami-
do buscada através do telefone, a aberração é também solas, luvas, sapatos; por certas partes do corpo, como
conhecida como escatofonia telefónica. Anúncios co- mãos, pés, mamas, cabelos; ou por determinadas caracte-
merciais de prestadores desse serviço - os "disque-sexo" rísticas individuais, como ademans, tiques, atitudes, de-
- inundam jornais e revistas em muitas partes do mundo. feitos físicos. A propósito de determinadas característi-
Erotografia - Satisfação erótica em fazer escritos obscenos, cas individuais como fetiche, José Alves Garcia 13 fala que
com apologia ao sexo. Banheiros públicos são locais René Descartes, "por se ter enamorado de uma rapariga
muito utilizados para esse fim. Pornografia é sinónimo. estrábica, sempre teve decidida inclinação pelas mulheres
Quando a preferência se concentra em fazer desenhos zarolhas''. São bem explorados pela comicidade erótica os
obscenos, o transtorno recebe ainda o utra denominação apelos sexuais envolvendo os trajes que simulam unifor-
- picnofilia. m es de estudante, de enfermeira, de marinheiro e outros
Erotomania - O mesmo que autoerotismo, autoerastia, psi- mais. No fetichismo genuíno, a simples contemplação ou
colagnia e autismo sexual. o contato corporal com o fetiche é suficiente para provo-
Escatofilia - O mesmo que coprofilia, coprolagnia e esca- car a excitação ou mesmo o orgasmo venéreo. Contribui
tolagnia. para a excitação o odor exalado pelo fetiche, daí a prefe-
Escatolagnia - O mesmo que coprofilia, coprolagnia e es- rência por peças usadas, que, para obter, o transtornado
catofilia. não reconhece limites. No afã de satisfazer sua parafilia,
Escatolalia - O mesmo que coprolalia. o fetichista inveterado pode mesmo ser arrastado a prá-
Escopofilia - O mesmo que tealagnia, vedorismo, visionis- tica de infrações penais, notadamente o furto ou o roubo
mo e voyeurismo. de objetos revestidos de algum simbolismo sexual para
Estatuofilia - O mesmo que iconolagnia e pigmalionismo. ele. Alguns indivíduos, num verdadeiro colecionismo fe-
CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade • 587

tichista, conservam com zelo grande estoque desses ob- autoridades constituídas a ter como discriminatória sua
jetos. Na afirmação de Hélio Gomes 2, graus menores de manutenção como transtorno mental e do comporta-
fetichismo podem ser encontrados em qualquer homem. mento, ao que se renderam as classificações. O mesmo
Fetichismo travéstico - O mesmo que disfarcismo, eonis- autor sustenta que: "Os que defendem a exclusão do
mo, inversão sexoestética e travestismo. homossexualismo da lista das parafilias argumentam di-
Fitofilia - O mesmo que dendrofilia. zendo que gosto sexual é uma escolha livre do indivíduo,
Formicofilia - Excitação erótica e/ou alcance do orgasmo o que é inaceitável, uma vez que sadismo, masoquismo,
dependente da ação de formigas ou outros minúsculos coprofilia etc., que constam como parafilias sexuais nes-
animais que mordisquem as partes genitais do próprio ses mesmos sistemas de classificação, também são con-
indivíduo. dutas escolhidas de livre e espontânea vontade, segundo
Frotteurismo - Termo oriundo do francês frotter, esfregar, os seus praticantes." E vai além: "... se o correto ou o não
friccionar, refere-se à prática homossexual feminina de patológico fosse o homossexualismo, em menos de 100
mútua atrição genital. É a "briga de aranhas': no dizer anos os seres mais evoluídos da face da terra seriam os
popular. Tribadismo, tribadia e tribofilia são termos usa- macacos, por falta de herdeiros humanos". Afirmação
dos como sinônimos de frotteurismo. demais contundente, em minha modesta opinião. Leo-
Furor feminil - O mesmo que andromania, citeromania, es- nídio Ribeiro 16 , que estudou biotipologicamente nada
tromania, histeromania, furor uterino, metromania, nin- menos de 195 pederastas passivos detidos pela polícia
fomania e uteromania. do Rio de Janeiro, era favorável à teoria que explica o
Furor uterino - O mesmo que andromania, citeromania, es- homossexualismo como um fenômeno resultante de
tromania, histeromania, furor feminil, metromania, nin- predisposição congénita, de natureza somática, ligada a
fomania e uteromania. disfunções endócrinas. A distin ção entre formas ativa e
Gerontofilia - O mesmo que ancianofilia, cronoinversão e passiva de homossexualismo recebe restrições por parte
presbiofilia. de muitos estudiosos do tema, já que não é incomum os
Ginecomania - O mesmo que satiríase e satiromania. parceiros homossexuais alternarem-se no papel de íncu-
Ginomimetofilia - Excitação e satisfação heterossexual pre- bo e de súcubo. Na literatura especializada, os indivíduos
ferencialmente com um parceiro que, sendo em realidade ho mossexuais têm sido denominados homófilos quando
masculino, represente e se relacione eroticamente como se sentem atraídos exclusivamente por outros homos-
uma mulher. sexuais; alófilos, quando manifestam atração indistinta
Hipererotismo - Exacerbação mórbida, incontrolável e in- tanto por ho mo quanto por heterossexuais; e anfífilos,
saciável do instinto sexual, reconhecida em indivíduos de ou anfóteros, quando a atração que apresentam se orien-
qualquer sexo. É uma permanente glutoneria sexual, em ta para bissexuais. Entre indivíduos do sexo masculino, a
que o padecente exaure-se mas não se dá por satisfeito. A homossexualidade pode manifestar-se sob duas formas
forma masculina é conhecida como satiríase; a feminina, principais, conhecidas como uranismo ou urningismo e
como ninfomania e sua vasta sinonímia. pederastia ou pedicação. A homossexualidade feminina -
Hipoxifilia - O mesmo que asfixiofilia e erotismo hipóxico. o lesbismo ou lesbianismo - pode, conforme suas carac-
Histeromania - O mesmo que andromania, citeromania, es- terísticas predominantes, assumir também duas formas
tromania, furor feminil, furor uterino, metromania, nin- mais conhecidas, denominadas safism o e frotteurism o
fomania e uteromania. ou tribadismo ou tribofilia ou tribadia.
Homoerotismo - Objetivação de interesses eróticos em um Iconolagnia - O m esmo que estatuofilia e pigmalionismo.
indivíduo do m esmo sexo. Não é absolutamente idêntico Inversão sexoestética - O m esmo que disfarcismo, eonismo,
ao homossexualismo. fetichismo travéstico e travestismo.
Homossexualismo - Atração sexual, exclusiva ou predomi- Ipsação - O mesmo que onanismo, quiromania e quiroerastia.
nante, por pessoas do mesmo sexo, com ou sem relaciona- Lesbianismo - O m esm o que lesbismo.
mento físico. Sua inclusão no rol das inclinações sexuais Lesbismo - Inclinação erótica de uma mulher para indiví-
anormais não é pacífica. O Manual de Diagnóstico e Es- duos do seu sexo, com repugnância mais o u menos deci-
tatística de Desordens Mentais e a Classificação Estatística dida aos do sexo oposto. O nome do desvio, que também
de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde' 4 excluíram pode ser lesbianismo, o rigina-se toponímicamente de Les-
o homossexualismo de suas últimas edições - DSM-IV bos, uma ilha grega, no mar Egeu, historicamente famosa
e CID-10, respectivamente. Entretanto, "pelo fato de não pelos tempos em que lá teria sido largamente cultivada
contar nessas classificações não é dito que não exista ou a prática desse amor ho mossexual. Pares lésbicos são em
que não seja uma manifestação anormal do instinto ge- geral m enos ostensivos, mais recatados em público que os
nésico", enfatiza Guido Palomba'5, renomado psiquiatra pederásticos, sendo a manifestação favorecida e mais ob-
forense, para quem a desindexação do desvio se deu em servável em ambientes restritos a mulheres, como pensio-
consequência de manifestações e fortes pressões de gru- natos, internatos, conventos, presídios, escolas correcio-
pos homossexuais em diversos pontos do mundo - legí- nais. As exceções ficam por conta das duplas em que uma
timas, sem dúvida, a meu ver -, sensibilizando políticos e das parceiras se destaca por um comportamento agressi-
588 • CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade

vo, dominador, ciumento, tal verdadeiro cônjuge varão, - Misofilia - O mesmo que azolagnia e riparofilia.
a chamada "sapatão" -, e a outra - a dita lady - mostra-se Mixoscopia - Desvio parafílico caracterizado pela necessi-
dócil, meiga, submissa às imposições da consorte. São dade de observar a união íntima de outras pessoas - ao
práticas usuais no lesbismo a cunnilingus e o frotteurismo vivo ou não, como, por exemplo, em gravações -, para
ou tribadismo ou tribadia ou tribofilia. O coito clitoridia- alcançar a excitação ou a satisfação erótica.
no é uma lenda, na asseveração de Afrânio Peixoto 10• Mas Nanofilia - Atração sexual fortemente voltada para pessoas
existem pênis artificiais bem adaptáveis à parceira virago, portadoras de nanismo.
que se prestam para fins mais ousados e com os quais pro- Narcisismo - Excitação sexual provocada pela contempla-
cura simular a conexão carnal, num pseudocoito. Outrora ção do próprio corpo, com indiferença para o outro
tabu, o lesbianismo vem ganhando progressiva aceitação sexo. Pode manifestar-se de modo isolado ou associado
social e legal na modernidade. Muito recentemente, uma ao exibicionismo, ao travestismo, ao fetichismo e a ou-
novela televisiva, em cuja trama se destacava o forte en- tros desvios. Há quem o denomine também de autofilia
volvimento amoroso entre duas mulheres, mexeu com e auto-homossexualismo. O nome do transtorno deriva
conceitos e sacudiu paradigmas levando ao ar, no horário do lendário Narcisus, personagem dotado de extraordi-
nobre, após intenso debate prévio e prolongada polêmica, nária beleza, que, indiferente aos encantos das ninfas que
um ardente beijo entre as protagonistas. o assediavam, extasiou-se com a própria imagem refle-
Lubricidade senil - Manifestação exagerada do instinto se- tida em uma fonte, enamorou-se dela e, não podendo
xual em idade muito avançada. Em alguns casos, pode captá-la, definhou até a morte. Os narcisos de hoje talvez
representar a primeira manifestação de estados demen- não disponham de uma fonte límpida como a da história
ciais da senilidade. para lhes refletir a beleza, mas sem dificuldade encon-
Maieusofilia - Excitação sexual masculina centrada em mu- trarão um espelho que funcione como ferramenta de
lheres grávidas ou na visualização de partos. primeira necessidade, indispensável às suas satisfações.
Masoquismo - Parafilia cujo foco envolve a excitação sexual Expert, Krafft-Ebing alerta que nas formas mitigadas,
através de sofrimento físico ou moral recebido. O sofri- que não impedem as relações com o sexo oposto, um leve
mento pode ser administrado pelo parceiro ou pelo pró- sinal denunciador desse desvio é a indisfarçável preferên-
prio padecente. Quando pelo próprio, pode ser executado cia do indivíduo por amante o u cônjuge feio, com o pro-
em presença do parceiro ou mesmo a sós. Manifesta-se pósito de, assim, sentir realçada sua própria beleza. É de
em graus: pequeno ou simbólico, e grande. No pequeno pequeno interesse médico-legal.
masoquismo é usual o emprego de imobilizações com Necrofilia - Obsessão po r práticas libidinosas, hétero ou ho-
algemas ou amarras e o compo rtamento imitativo de mossexuais, com objeto de prazer que simbolize a morte,
animais. Assaz bizarro é o equus eroticus, comportamen- inclusive o cadáver. Sexopatia incontestável, a necrofilia
to em que o masoquista se põe de quatro e, improvisa- ou tanatofilia é, sem exagero, uma das mais horrendas e
damente embridado, deixa-se cavalgar pelo parceiro de repugnantes aberrações sexuais. Incide quase que exclusi-
prazer, que o açoita até o êxtase. No grande masoquismo vamente em homens. No dizer ro manticamente atenuado
é comum a associação com a asfixiofilia ou hipoxifilia. É de Camile Simonin 17, o necrófilo é o amante dos mo r-
tara mais comum nas mulheres e não costuma ser mó- tos. Para satisfazer seu anômalo instinto, para alcançar o
vel de crimes. O nome da entidade faz alusão a Leopold prazer macabro, o condutopata não mede esforços, não
Ritter von Sacher-Masoch, escritor austríaco que, em respeita costumes, não se intimida com qualquer sanção;
A Vênus de peliças romanceou sua sexopatia, relatando é capaz de tudo. Na forma mais severa, conhecida como
como a esposa, coberta de finas peles, o flagelava e humilha- necrossadismo, o cadáver de que o necrófilo algoz se serve
va para excitá-lo. A própria esposa, Wanda von Dunajew é o da vítima fatal de seus preliminares impulsos sádicos,
Sacher-Masoch, em Confissões de minha vida, também que, após extensas e profundas mutilações, é explorado
minucia as extravagâncias do marido, que se envilecia para o arroubo sexual. Ilustra-a a história de Periandro,
fazendo-se bater pelos criados e até pelos comborços. rei tirano de Corinto, no século VI a.C., que, após assas-
Foi, porém, o psiquiatra e sexólogo alemão Richard von sinar a esposa Melissa, teria tido relações sexuais com o
Kafft-Ebing quem cunhou, latinizando, o termo maso- cadáver. Noutra forma, menos grave, o agente não sacrifi-
quismo. Algofilia passiva, algolagnia passiva e nicolaísmo ca a vítima com propósito de possuir-lhe o corpo e vazar
são outros nomes com os quais também é conhecido o sua paixão, mas o procura já inanimado, álgido e rígido,
transtorno. Nicolaísmo é vocábulo derivado de Monsieur por vezes até em pleno curso da metamorfose tanática,
Nicolas, personagem que, na obra de Rétif de la Bretonne, para sobre ele, sedento de sexo, satisfazer-se em profundo
é inclinado às práticas masoquistas. prazer. Para tanto busca-o sem qualquer escrúpulo onde
Menofilia - Variedade de riparofilia marcada pela atração quer que esteja. Torna-se, se necessário, habitué de anatô-
sexual masculina por mulheres m enstruadas. micos, exéquias, morgues e necrópoles. É bastante divul-
Metromania - O m esmo que andromania, citeromania, gado o caso descrito por Legrand du Saulle, de um certo
estromania, histero mania, furor feminil, furor uterino, militar que, portador da incurável compulsão, a desoras
ninfomania e utero mania. invadia o cemitério de Montparnasse para violar túmulos
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e, sequioso, possuir sexualmente os corpos sepultos. Do prática da cópula anal restritamente com mulher. A
mesmo Legrand du Saulle é a referência ao caso de um transliteração do termo - amor apaixonado por meni-
padre que violou o cadáver ainda quente de uma mulher nos, crianças - traz o significado que possuía em outros
a ele confiado para celebrar a unção dos mortos. Afrânio tempos. Atualmente, o termo é aplicado indistintamente
Peixoto'° conta que no necrotério do Hospital Nacional para essa prática em qualquer faixa etária. A diferenciação
dos Alienados, do Rio de Janeiro - de que foi diretor -, um entre pederasta ativo e passivo não é bem aceita, de vez
doente mental, cujo nome cita, foi surpreendido quando que na prática, íncubo e súcubo costumam alternar-se
abusava sexualmente de cadáveres. Na pseudonecrofilia, em suas participações. A história os cita em todas as ca-
compraz-se o degenerado em relacionar-se sexualmente madas sociais. Muitos, famosos. Deles, talvez o mais te-
com mulher trajando mortalha, jazendo inerte e indife- nha sido Cayo Julio Cesar, o grande imperador romano,
rente à fornicatio como se sem vida estivesse. Chega ao guerreiro implacável, exímio orador, político astuto, com
requinte de transformar a alcova em ambiente sombrio, família constituída, amantes inúmeras, porém, a par,
tristemente decorado para o luto, qual autêntica câmara bissexual popularíssimo, delicado, submisso, de gestual
ardente, com esquife - que serve de cama - sobre essa, adamado, a ponto de receber de Curio Senior, em pleno
círios a queimar, cravos-de-defunto a exalar olor típico, Senado, a referência de "homem de todas as mulheres e
e tudo mais que lhe possa lembrar a aprazível, para ele, mulher de todos os homens''. De sua grande incidência
presença da morte. Do ponto de vista médico-jurídico, na Antiguidade clássica, a pederastia veio a ser conhecida
certas formas de necrofilia despertam especial interesse, como amor grego, amor dório, amor trácio. Pedicação é
já que podem levar o indivíduo à prática de crimes con- sinónimo às vezes utilizado.
tra o respeito aos mortos, como a violação de sepultura e Pedicação - O mesmo que pederastia.
o vilipêndio a cadáver, e até mesmo crime contra a vida, Pedofilia - Anomalia de conduta caracterizada pela atração
como o homicídio. libidinosa compulsiva de adulto por criança ou adoles-
Nepiofilia - O mesmo que efebofilia e pedofilia. cente, de qualquer sexo. Nepiofilia e efebofilia são outros
Nicolaísmo - O mesmo que algofilia passiva, algolagnia pas- nomes aplicados ao desvio. Diferentemente da pederastia,
siva e masoquismo. a pedofilia não inclui necessariamente o conjugamento
Ninfomania - Também conhecida como andromania, cite- carnal. Para alcançar seu desiderato, o pedófilo presta-se
romania, estromania, furor feminil, furor uterino, histe- a tudo: faz promessas, oferece presentes para atrair as
romania, metromania e utero mania, é a expressão femi- pequenas vítimas e cativar a confiança de seus pais; des-
nina do hipererotismo. Consiste na exaltação mórbida pista-se como educador, recreado r etc. Ultimamente têm
da sexualidade feminina; num estado de cio permanente. sido denunciados inúmeros sites na Grande Rede espe-
Messalina, mulher do imperador Claudio, e a imperatriz cialmente voltados a essa perversão sexual deveras ignó-
Catarina II da Rússia são muito citadas como exemplos bil. Atos de pedofilia sempre tipificam figura criminosa
históricos de ninfómanas. O termo ninfomania alude a prevista na norma penal vigente.
Ninfa, figura da mitologia grega dotada de intenso ardor Peodeictofilia - Forma de exibicionism o especificamente
sexual. Citeromania é termo alusivo a Citera, epónimo relacionado ao pênis.
de Afrodite, deusa do amor, da sensualidade e da beleza. Periculofilia - Atração por práticas eróticas que envolvem
Olisbismo - O m esmo que pseudopeolagnia. situações tensas, gr andes riscos, perigo mesm o. Há pes-
Onanismo - Em sentido estrito, é a prática compulsiva da soas dadas a transas sexuais em lugares sabidamente pe-
automasturbação manual masculina, também denomi- rigosos. Só assim se satisfazem a contento.
nada de quiromania, quiroerastia e ipsação. O no me de- Picnofilia - Va riedade de erotografia centrada no ímpeto de
riva de Onan, personagem bíblico do Gênesis, que, tendo fazer desenhos obscenos para a satisfação erótica.
desposado Tamar, viúva de seu irmão Her, para não dar Pigmalionismo - Patológico impulso libidinoso por está-
a este descendência - pelo costume de então - , praticava tuas. O termo deriva da angústia de Pigmalião, escultor
com ela o coitus interruptus o u a abruptio copulae, verten- cipriota que se apaixonou perdidamente pela estátua de
do na terra o sêmen sonegado, coisa bastante diferente do Galateia, por ele próprio esculpida, a quem lendaria-
significado vulgar que o termo adquiriu, hoje estendido mente desposou depois de ela obter vida insuflada por
também ao sexo feminino. Vênus. A presença desse transtorno pode explicar a prá-
Parcialismo - Preferência erótica por uma parte extragenital tica de atos obscenos pelo portador. Existem relatos de
do corpo do parceiro. Para alguns sexólogos, não é mais manifestações pigmalionistas em museus e em jardins
que uma variação do fetichismo, o parafetichismo. públicos, onde ficam expostas peças que tanto atraem
Partenofilia - Atração lúbrica seletivamente voltada para esses parafílicos, verdadeiros "estupradores de estátua". O
mulheres virgens. Partenofilia não se confunde com hi- pigmalionismo também é conhecido como icono lagnia
meno latria, que não é transto rno da sexualidade, mas e estatuofilia.
costume social. Pirolagnia - Excitação libidinosa e/ou alcance do orgasmo
Pederastia - Prática viciosa do coitus per anum entre ho- condicionado à presença de fogo. É a piromania eróti-
mens. Não é, po rtanto, sinónimo perfeito de sodomia, ca. Não é o mesmo que erostratismo, ação piromaníaca
590 • CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade

pura, alusiva à do miserando Eróstrato, sem conotação Retifismo - Atração erótica pelo pé, ou pelo sapato, ou po r
lasciva per se. ambos, como se possuíssem o valo r da estrutu ra genital.
Piromania erótica - O mesmo que pirolagnia. Corresponde ao fetichismo especial do pé e do sa pato. O
Pluralismo - Pa rafilia em que o prazer depende de práticas nome origina-se do educador francês Rétif de la Bretonne.
hétero o u homossexuais simultâneas ou alternativas en- O autêntico retifista faz do sapato de alguém desejado o
tre mais d e três pessoas. É o sexo grupal, o amor coletivo, seu objeto de máximo prazer, que chega a ocu pá-lo como
a orgia sexual, a esbórnia. Os autores d e língua inglesa agência da intromissio penis.
denominam swinging, de onde os modernos "clubes de Riparofilia - Excitação erótica mascul ina provocada prefe-
swinging''. Bacanal - ritual festivo e eivado de d es regra- rencialmente pelo contato co m mulheres imundas, de-
mentos d e todo jaez, dedicado a Baco - é nome mais po- sasseadas, fétidas. Também faze m parte da predileção dos
pular; suruba, mais grosseiro. riparofilicos as parceiras que se apresen tem m enstrua-
Pornografia - O m esm o qu e erotografia. das - nesse caso, menofilia - ou co m infecções vaginais.
Pornolagnia - Atração lasciva preferencial por prostitutas, Misofilia e azolagnia são outras denominações para o
ou por prostitutos. transtorno.
Presbiofilia - O mesmo que ancianofilia, cronoinversão e Sadismo - Excitação sexual através do sofrin1ento físico ou
gero nto filia. moral do parceiro. O termo advém de Donatien Alphonse
Pseudocolpolagnia - Excitação sexual atingida a partir de François, o Marquês de Sade, d iplomata e escritor fra n-
um arremedo vaginal, empregado em práticas mastur- cês, que descreveu com pormeno res esse mó rbido p razer
bató rias mascul inas. Flamínio Fávero 18 reproduz a foto em vá rios de seus romances, como os m uito conhecidos
d e um antigo aparelho desse tipo, feito artesa nalmente Les crimes de l'amour, La nouvelle fustine e H istoire de
d e bo rracha e com câmara para encher de água mo rna, fuliette. O sofrimento físico infligido pelo sádico a sua ví-
o ferecido pelo Dr. Domingos Machado ao Museu do Ins- tima pode variar em vasto espectro, desde leves palmadas,
tituto Oscar Freire. beliscões, espetadelas, sucções, mordeduras, chicotadas,
Pseudopeolagnia - Prazer sexual alcançado com o uso d e espancamentos, queimaduras, eletrochoques, incisões,
pênis artificial, significado que o próprio termo traduz. mutilações e asfixias, até mes mo a morte. O sofrimento
Dildo, godemiche e olisbo são alguns nomes pelos quais moral em regra é aplicad o na fo rma de humilhações, de
são conhecidos os pênis artificiais. Os olisbos foram in- ultrajes, insultos e o utros impropérios dirigidos ao par-
ventados na Grécia antiga - onde eram feitos de madeira, ceiro. Conforme a gravidad e de apresentação, o desvio é
d e cou ro ou de pedra-, para "acalmar" as mulheres cujos dividido em pequeno e gra nde sad ismo. A história é rica
maridos, guerreiros, passavam longo tempo longe de casa. em famosos exemplos de grande sadismo: os imperado-
Vem daí o sinônimo olisbismo, para a pseudopeolagnia. res Tibério, Nero e Calígula, o Marechal Gilles, francês,
Na atualidade, utensílios para esse fim não são mais rari- Jack, o estripador. O conhecido maníaco do parque, de
dade. Existem à venda desde os mais primitivos, grosseira- São Paulo, pode ser uma recente versão brasileira. A per-
mente elaborados, até sofisticados modelos high-tech. Há versão prevalece nos homens, mas não é exclusividade
pouco tempo os jornais noticiava m o constrangimento d eles. Catarina de Médicis e Isabel da Rússia são aponta-
passado por uma elegante senhora, quando, em triagem d as na literatura como célebres exemplos femininos. Al-
durante desembarque no aeroporto internacional, foi co n- gofilia ativa, algolagnia ativa e tiranismo são sinônimos
vidada a abrir pequeno estojo que trazia consigo e que não para o sadismo. De acordo com Jua n Antonio Gisbert
cessava de emitir estranho ruído. No interior d a embala- Calabuig 19, 10% dos estupradores são sádicos sexuais.
gem hav ia um desses objetos, de última geração, dotado Sadomasoquismo - Associam -se aqui características sádi -
até d e movimentos vibratórios, a que o vulgo, em sua sa- cas e masoquistas. É mais propriamente observado em
bedoria, chama consolo de viúva. É que o artefato, decerto duplas sexuais, em que um d os pa rceiros desem penha
de má procedência e baixa qualidade, disparou sem que o papel de m ártir - o masoquista - e o outro o de mar-
tivesse sido acionado, para desapontamento da discreta tirizador - o sádico. Há quem defenda que estabelecido
proprietária. Bonnet7 relata que, durante a necropsia de o binô mio sadismo- masoquismo, com mút ua sa tisfação
um homem vítin1a de disparo de arma de fogo na região dos participantes, deixa de existir o desvio. Co ncordar -
precordial, encontrou, alojado na alça sigmoide, a 15 cm penso - seria um despautério, do mesmo modo que en-
do esfíncter anal, um objeto com 17 cm de comprimento tender também como normal e perfeito o dueto sexual
e diâmetro va riável entre 40 a 50 mm, em forma de pênis, composto po r um parceiro im potente e outro coitofó-
construído a partir de um segmento de tubo de borracha. bico, apenas porque d e nenhum deles se espera queixa
Psicolagnia - O mesmo que autoerotismo, autoerast ia, ero- do outro...
tomania e autismo sexual. Safismo - Forma d e homossexualismo feminino que tem
Quiroerastia - O mesmo que onanismo, quiromania e como hábito m arcante o contato b ucogenital entre as
ipsação. duas parceiras, uni ou bilateralmente. O termo vem de
Quiromania - O mesmo que onanismo, quiroerast ia e associação - não pacífica - com Sappho, poetisa que vi-
ipsação. veu na ilha de Lesbos durante o século VI a.C., e q ue,
CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade • 591

com sua música e sua poesia, teria sido, segundo alguns, Transgenitalismo - O mesmo que castrofilia e transexua-
panegirista das práticas lesbiânicas. Para alguns, as sáficas lismo.
ou safistas, não são lésbicas estritas, porquanto podem Transexualismo - Incontido desejo de viver e ser aceito
relacionar-se com homens, chegando mesmo a ter filhos como pessoa do sexo oposto, acompanhado de um sen-
com eles. timento esmagador de mal-estar e inadaptação ao pró-
Saliromania - Prazer erótico proporcionado pelo ato de su- prio sexo somático e do convencimento de estar no corpo
jar intencionalmente o corpo ou as vestes do parceiro. O errado. Na tentativa de reparar o "erro da natureza"
termo é derivado do francês salir, sujar, manchar, empor- e alcançar o desejo de apresentar-se como do sexo opos-
calhar. Para alguns, é desvio exclusivo do homem. to, e real para elas, algumas pessoas recorrem sem limi-
Satiríase - É o hipererotismo, em sua versão masculina; a tes a artifícios e tratamentos químicos e cirúrgicos, a fim
exaltação mórbida da sexualidade no homem; um estado de tornar seu corpo tão semelhante quanto possível ao do
de erotismo masculino permanente. Satiromania e gine- sexo contrário. São inúmeros os casos publicados na lite-
comania são sinónimos. O professor Hermes Rodrigues ratura médica. Ficou bastante conhecido à época o caso
de Alcântara 20 conta que conheceu "um satiriásico cin- examinado e publicado por Ivan Nogueira Bastos 2 1, de
quentão que nos seus 25 anos de casado nunca respeitara um homem com 38 anos de idade, submetido em Ca-
menstruação nem puerpério e, como operário, sempre sablanca a cirurgia de penectomia, orquiectomia e neo-
trabalhou perto da residência para poder dar vários puli- colpovulvoplastia. Não raro o alcançado não passa de um
nhos ... durante o dia, a sua casa''. Satiríase, ou satiroma- resultado grotesco, um simulacro de genitália externa
nia, não se confunde com priapismo - de Príapo, mito feminina, representado por pregas rudes ladeando uma
grego da virilidade e da fecundação, imaginado com um fenda longitudinal que se continua com um canal, tudo
grande falo ereto -, que consiste na ereção peniana pro- construído com retalhos cutâneos do pênis e da bolsa
longada e dolorosa, de fundo orgânico, persistente, às ve- testicular. Nada que o mais novel dos iniciantes não con-
zes, por muitos dias. siga perceber sem a menor dificuldade. Complementos
Satiromania - O mesmo que satiríase e ginecomania. ginomórficos são alcançados à custa do uso intensivo
Simbolismo erótico - O mesmo que fetichismo e feiticismo. de estrogênios. Por vezes, a despeito de todos os artifí-
Sodomia - Satisfação sexual centrada na cópula anal com cios cosméticos utilizados e de todos os trejeitos femini-
mulher. O nome é alusivo a Sodoma, cidade bíblica da nos adotados, os próprios atributos físicos do indivíduo
antiga Palestina, celebrizada pela devassidão de sua gen- denunciam a absoluta incompatibilidade com o novo
te. Também é denominada sodomitismo. Não engloba a aparelho sexual que passa a ostentar, transformando-o,
cópula anal entre homens, denominada pederastia. como dizia Nilson Sant'Anna, em verdadeiro estivador
Sodomitismo - O mesmo que sodomia. com genitália falsa. Muito usual também são as injeções
Swapping - Prática heterossexual simultânea entre dois ca- de produtos à base de silicone para feminizar as formas
sais, em que se alternam os parceiros. É a troca de casais, denunciado ras da masculinidade. Praticadas por mãos
a permuta conjugal. nem sempre tecnicamente habilitadas, essas injeções
Swinging- O mesmo que pluralismo. podem levar a péssimas consequências. Tive a oportu-
Tanatofilia - O m esmo que necrofilia. nidade de periciar alguns casos assim, em que a mo rte
Tealagnia - O m esmo que escopofilia, vedorismo, visionis- foi o ponto final. O transexualismo é também conhecido
mo e voyeurismo. como transgenitalismo e castrofilia, termos, para alguns,
Tiranismo - O m esmo que algofilia ativa, algolagnia ativa e menos impróprios. Bem menos comuns mas também re-
sadismo. gistrados são os casos de transgenitalismo feminino. Em
Topoinversão - Termo genérico que se refere a qualquer resolução recentemente publicada, a de número 1.955, de
prática, entre pessoas de sexo diferente, de atos libidino- 3 de dezembro de 20 10, o Conselho Federal de Medicina
sos que envolvem o contato do órgão genital de uma de- atualiza a no rmatização da cirurgia de transgenitalização
las com parte paragenital ou extragenital da outra, capaz e/ou procedimentos complementares sobre gónadas e
de proporcionar prazer a ambas. No rol de tais práticas caracteres sexuais secundários, como tratamento dos ca-
estão a sodomia, as demais cópulas ectópicas, a felação, a sos de transexualismo, e estabelece outras providências
cunnilingus. A pederastia, que conceitualmente só envolve relativas ao tema. Entre essas, está a de que a definição de
pessoas do sexo masculino, não deve ser considerada, em transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios de:
rigor, uma topoinver são. Quando a topoinversão não é 1) desconforto com o sexo anató mico natural; 2) desejo
um fim em si, mas representa apenas um aperitivo sexual expresso de eliminar os genitais, perder as características
dos praeludia coiti, um aquecimento preliminar para o primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do
derradeiro concúbito natural, não costuma receber a pe- sexo oposto; 3) permanência desses distúrbios de forma
cha de recreação mundana, sendo admitida como com - contínua e consistente por, no mínimo, 2 anos; e 4) au-
portamento normal até por tratadistas ortodoxos. Como sência de o utros transtornos mentais.
integrante dos pro legómenos copulativos, a topo inversão Travestismo - Compulsão parafílica em usar vestimenta,
pode ser observada até mesmo entre animais. completa ou parcial, própria do sexo oposto, de modo a
592 • CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade

tentar atingir a fantasia de pertencer ao outro sexo, po- bre o parceiro ou que este o faça sobre o parafílico, em
rém sem o desejo de se trangenitalizar. Em alguns casos ato eufemisticamente conhecido como golden shower. É o
o traje é complementado com maquiagem, postura cor- erotism o urinário. Chama-se também urolagnia e undi-
poral e maneirismos do sexo d esejado. O travestismo é nism o - de unda, onda, líquido em movimento.
também conhecido como fetichismo travéstico, disfar- Urolagnia - O mesmo que urofilia e undinismo.
cismo, inversão sexoestética e eonismo. O último termo Uteromania - O mesmo que androm ania, citerom ania, es-
deriva eponimicamente de Chevalier d'Éon , nobre fran- tromania, histerom ania, furor feminil, furor uterino, me-
cês notabilizad o pelos trajes femininos que usava, inclu- tromania e ninfo mania.
sive em missões diplo máticas. Pr aticado espor adicamen- Vampirismo - Monstruosidade essencialmente masculina,
te, em ocasiões festivas, como no carnaval, costuma ser consiste na satisfação orgástica focada em sorver o san-
aceito socialmente. Que o diga o animado, jocoso e irre- gue de sua parceira-vítima. Existem autores especializa-
verente "bloco das piranhas"... Aurora Dupin, escrito ra dos que entendem o vampirismo apenas como uma mo-
francesa, é citada com o conhecid o exemplo de mulher dalidade de sadismo, ou de necrossadismo, e não como
travestista. Apresentava-se com tudo o que pudesse de uma parafilia propriam ente dita, autónoma. Tenha-se
ho mem: indumentária, atitudes e maneiras, charuto à em conta que esse va mpirismo, transtorno sexual, não é
boca e até um nome másculo que ado tou - Geo rge Sand. o mesmo vampirismo d o imaginário popular.
A Portaria nu 574, de 8 de fevereiro de 2012, da Chefia de Vedorismo - O mesmo que escopofilia, tealagnia, visionis-
Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, dispõe sobre o m o e voyeurism o.
direito ao uso d o nome social po r travestis e transexuais Visionismo - O mesmo que escopofilia, tealagnia, vedoris-
nos Ó rgãos da Po lícia Civil do Estado. Entre o utras me- mo, e voyeurismo.
didas que estabelece, o referido ato normativo conside- Voyeurismo - Excitação eró tica propo rcionada pelo ver ano-
ra no me social aquele adotado pelas pessoas travestis e nimamente o desnudamento de terceiro ou então o que é
transexuais, e pelo qual são reconhecidas, identificad as e tradicionalmente defeso, com o as suas partes íntimas. É,
denominadas na sua comunidade e no seu meio social; e sinteticamente, a volúpia de ver. A literatura especializada
estabelece que todos os servido res lotados nos Ó rgãos da costuma dar como tríade essencial do voyeurismo o ano-
Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro deverão tratar nimato d o observador, a presença de observado único e
as pessoas transexuais e travestis capazes pelo nome so- a inexigência de práticas sexuais. O autêntico voyeur, ou
cial, se requerido pelo interessad o. voyeurista, nada po upa para satisfazer sua pretensão. Se
não dispõe de um buraco de fechadura satisfatório, tra-
Tribadia - O mesmo que frotteurismo, tribadismo e tribo-
ta de adquirir potentes binóculos, lunetas profissionais,
filia.
engenhosos periscópios ou minúsculos e sofisticados
Tribadismo - O mesmo que frotteurismo, tribadia e tri-
equipamentos para captura eletrónica de imagem, que o
bofilia.
pervertido instala em locais privilegiados, até m esm o em
Tribofilia -0 mesmo que frotteurismo, tribadia e tribadismo.
toalete feminino, como em caso recentemente noticiado
Triolismo - O mesmo que troilismo.
pela imprensa carioca, ocorrido em renom ada instituição
Troilismo - Erotopatia caracterizada pela prática sexual,
pública. Q uando não profana a intimidade de ninguém
conjunta ou separadamente, entre três pessoas, duas de-
e é praticada com aquiescência do observado, e se mani-
las de um sexo e uma de outro. O triângulo é bastante festa com o mera prepar ação para o ato sexual normal,
conhecido com a expressão ménage à trais, de onde pro- não representando a única fo rma de alcançar o prazer, a
veio o nome do transtorno. A literatura registra também prática não costuma ser interpretada como sexopatia e,
o termo triolismo com o sinónimo. Nesse caso, a origem para alguns sexólogos, pode até mesmo representar um
do vocábulo é atribuída a Trio!, pseudónimo adotado por elem ento enriquecedor para a relação. O desejo irrefreá-
um fam oso m ixoscopista em anúncios impressos que fa- vel de ver a intimidade convencionalmente proibida não
zia para divulgar sua tara e atrair novos adeptos. é, porém, apanágio d o homem. A voyeuse, ainda que rara,
Undinismo - O m esm o que urofilia e urolagnia. também existe. Nos espetáculos artísticos com nu mas-
Uranismo - Variação de homossexualidade masculina em culino não será difícil encontrá-las, ainda que dissimula-
que a atração se dá apenas num plano afetivo ou senti- damente. Ultimamente, importantes emissoras de televi-
mental, sem o intuito preponderante de junção carnal. É são conseguem atingir altos índices de público assistente
também denominado urningismo. Uranistas típicos em com a transmissão ao vivo de programas que mostram a
geral não demonstram atração por mulheres, preferem intimidade de pessoas confinadas temporariamente em
vida solitária ou então em companhia de seu único par- uma casa - os reality shows. Em rede fechada, tais pro-
ceiro de afeto. gramações chegam a ser veiculadas 24 ho ras por dia. Não
Urningismo - O mesmo que uranismo. deixa de ser uma for ma de atender aos mitigados instin-
Urofilia - Prazer erótico patologicamente associado à urina, tos voyeuristas dos telespectado res, embora em d osagem
seja o sentir seu odor ou sabor, seja o ver alguém urinar, Iight. Escopofilia, tealagnia, vedo rism o, e visionismo são
seja o o uvir o ruído da micção ou até o verter urina so- alguns sinónimos para voyeurismo.
CAPITULO 26 Atos Libidinosos - Transtornos da Sexualidade • 593

Zooerastia - Sinô nimo de zoolagnia, é a variedade de zoo- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


filism o erótico em que o indivíduo humano pratica com
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2 1. Bastos IN. Auto de determinação de sexo. Rev Inst Méd-Legal GB;
1969. 1( 1):25-8.
22 . Pellegrini R. Sexuo logía. Madrid: Ediciones Morata; 1955.
Nilo Jorge Rodrigues Gonçalves

• VIOLÊNCIA SEXUAL qualquer pessoa de senso normal, ainda existe quem a aceite
e até a justifique. É de um conhecido político a famigera-
De todas as m odalidades de violência que vitimam o da frase sobre o tema, proferida por ele em plena campanha
ser h umano, uma das m ais abjetas é, sem dúvida, a vio- eleitoral que fazia em 1989: "Se está com desejo sexual, tudo
lência sexual. Isso porque o dano que pode causa r não se bem, estupra, mas não mata." Que vitupério...
restringe à integridade fís ica da pessoa. Ultrapassa-a em Em Medicina Legal, o estudo da violência sexual costu-
m uito, chegando bem além. Atinge a essência m oral da ma ser feito na parte dedicada aos crimes sexuais, embora
vítima. Lesa-lhe na dignidade sexual. Fere sua integridade se saiba que alguns d os crimes assim denominados possam
m oral sexual, que não se beneficia dos processos bio lógi- ser cometidos por meio de grave ameaça ou de fraude, e não
cos de reparação. propriamente mediante violência física.
Práticas sexuais ilícitas são cometidas po r pessoas de to-
das as camad as socioculturais. Enga nam-se os que precon-
ceituosam ente pensam ser essas pr áticas comportam ento • CRIMES SEXUAIS
priva tivo da plebe. Não são poucas as acusações que têm
recaído sobre personagens notabilizadas, dignas de todo Crimes sexuais são aqueles que, na definição de Emí-
o crédito, tidas até então com o acima de qualquer suspei- lio Bonnet ', lesam d olosamente a integridade sexual física
ta. São fartos os registros jornalísticos envolvendo estilistas, ou m oral da pessoa. Logo, som ente a pessoa pode ser su-
educadores, desportistas, recread ores, médicos, orientadores jeito passivo dos crimes sexuais. A execrável violação, para
religiosos. Pesa-me sobremaneira ver incluídos nesse rol ta- fins sexuais, do corpo sem vida, do cadáver - portanto, não
lentosos facultativos, laureadas fi guras da Medicina, especia- mais pessoa -, pode tipificar infrações penais contra o res-
listas fa mosos, de renome internacional, que um dia juraram peito aos mortos, não crimes sexuais, de que se trata aqui.
com ufanismo render absoluto respeito a todos os que fra- Nosso Código Penal, apresentado pelo Decreto-lei nº 2.848,
gilizados pela doença lhes procurassem profissionalmente; de 7 de dezembro de 1940, e vigendo desde l º de janeiro de
ídolos de tantos discípulos que, de repente, em inexplicável 1942, contempla os crimes sexuais no Título VI da Parte Es-
desvario, disfarçados dentro de um jaleco br anco, símbolo pecial, sob a epígrafe Dos crimes contra a dignidade sexual.
da mais augusta pureza, escondidos sob uma falsa m áscar a Esse título sofreu profundas reformas, promovidas pela Lei
de Hipócrates, já agor a fantasiados de médico, mendacio- nº 11.106, de 28 de m arço de 2005, e, principalmente, pela
sos, passaram a abusar sexualmente de seu crédulo consu- Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, visando deixá-lo mais
lente, aproveitando-se da justificável confiança que neles consonante com o pensamento e o m odo de agir da socie-
deposito u. dade contemporân ea, em matéria sexual, e afiná-lo com os
Mas para maior espanto, em que pese a extrema repug- direitos fundamentais, garantidos pelo m oderno Ordena-
nância que a violência sexual desperta ordinariamente em m ento Jurídico.

595
596 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

Para o professor Genival de França2, andou certo o le- da vítima. O agente que, infectado, pratica sexo com a vítima
gislador nas reformas, especialmente ao trocar a nominação mas não lhe transmite a doença, responderá pelo delito se-
do título, pois "o que se deve proteger ( ... ) é a dignidade da xual cometido, em concurso com crime de outra natureza, o
pessoa humana e não as preferências aceitas ou inaceitas pela de Perigo de contágio venéreo, definido no artigo 130, ou o de
sociedade''. Perigo de contágio de moléstia grave, definido no artigo 131,
O título Dos crimes contra a dignidade sexual - ou sim- abrangidos no Capítulo Da periclitação da vida e da saúde.
plesmente crimes sexuais -, tem suas figuras penais distri- Por questão de lógica médico-jurídica, também não cabe o
buídas em quatro de seus capítulos: o Dos crimes contra a aumento de punição se a vítima já era portadora da doença,
liberdade sexual; o Dos crimes sexuais contra vulnerável; o Do que não seja sequer agravada pela ilicitude sexual sofrida.
lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou ou- Providenciais as inovações inseridas pelo artigo 234-A.
tra forma de exploração sexual; e o Do ultraje público ao pu- Indubitavelmente, entre as piores consequências que o estu-
dor. Como nem todos os crimes elencados nesses capítulos pro pode acarretar para a vítima está o contágio de infecção
carecem de maior apreciação médico-legal, são destacados sexualmente transmissível, que, a depender da entidade no-
aqui, na sequência que o código os apresenta, apenas os que sológica, pode ser incurável e até mesmo mortal. Existe ainda
interessam mais de perto ao perito-legista, e deles é feito um a possibilidade de a vítima, se mulher, contrair gravidez, fato
estudo sucinto. considerado tão grave pela lei penal a ponto de não punir a
interrupção do processo gestacional resultante do crime de
estupro, nas condições que estabelece. Justifica-se a norma
Crimes contra a Liberdade Sexual permissiva com o argumento de que nenhuma mulher deve
Pertencem ao Capítulo Dos crimes contra a liberdade se- ser obrigada a manter a prenhez decorrente de um coito vio-
xual o estupro, a violação sexual mediante fraude e o assédio lento, não desejado por ela. Nesse sentido, no Estado do Rio
sexual. de Janeiro, a Lei nll 2.802, de lll de outubro de 1997, obriga os
servidores das Delegacias Policiais a informarem às vítimas
Estupro de estupro que a gravidez resultante desse fato poderá ser
interrompida de acordo com a legislação em vigor.
Estupro deriva do latim stuprum, desonra, vergonha, Como crime hediondo, assim considerado pela Lei nº
opróbio. O crime de estupro está definido no artigo 213 do 8.072, d e 25 d e julho de 1990, o estupro, em qualquer de suas
Código Penal como Constranger alguém, mediante violên- formas, é insuscetível de anistia, graça, indulto e fiança.
cia ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou O bem jurídico penalmente tutelado pelo artigo 213 é não
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Para a apenas a integridade física, mas também a liberdade sexual
forma simples, a pena cominada é a de reclusão, d e 6 a 10 da pessoa, ingrediente imprescindível da dignidade sexual; a
anos. Para as formas qualificadas, previstas nos §§ 1º e 2º do liberdade de disposição do próprio corpo no tocante aos fins
mesmo artigo, a pena é agravada, respectivamente, para re- sexuais; a faculdade de livre escolha ou livre consentimento
clusão de 8 a 12 anos, se da conduta resulta lesão corporal de nas relações sexuais; a inviolabilidade carnal.
natureza grave ou se a vítima é m enor de 18 e maior de 14 O dispositivo do atual artigo 213 incorpora o conteúdo
anos; e para reclusão de 12 a 30 anos, se da conduta resulta do antigo artigo 214, que tratava do Atentado violento ao
a morte. Lesão corporal de natureza grave é qualquer uma pudor, revogado pela Lei nº 12.015, de 2009.
das listadas nos §§ P e 2º do artigo 129 do mesmo diploma Qualquer pessoa pode ser sujeito passivo do crime de
legal. As lesões corporais não consideradas graves, portanto estupro, independentemente de qualificativos individuais,
leves, e resultantes do estupro ficam subsumidas no próprio como o sexo, a idade, o estado civil, a profissão, a condição
crime sexual. mental e outros mais. Ninguém, nem os que mercadejam o
Além dessas agravantes, o estupro tem a pena aumentada, próprio corpo para a saciedade sexual de terceiros, nem o
pelo artigo 226, I, de quarta parte, se o crime é cometido com mais inveterado pederasta passivo ou a mais despudorada
o concurso de duas ou mais pessoas; pelo artigo 226, II, de meretriz, está à margem da proteção penal. Todas as pessoas,
metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, sem exceção, são titulares desse direito pro tetivo. Sendo a ví-
irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou tima do sexo feminino, nada importa, po rtanto, se "virgem"
empregador da vítima ou por qualquer outro título tem au- ou se "honesta': nas arcaicas e machistas acepções, nas adje-
toridade sobre ela; pelo artigo 234-A, III, de metade, se do cri- tivações indisfa rçavelmente preconceituosas e discriminató-
me resultar gravidez; e pelo artigo 234-A, IV, d e um sexto até rias, banidas já não sem tempo do Estatuto Penal. Nenhuma
a metade, se o agente transmite à vitima doença sexualmente mulher - porque antes pessoa - , jovem ou idosa, virgem ou
transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador. deflorada, casada ou barregã, solteira, viúva, separada ou di-
Doenças sexualmente transmissíveis são consideradas vorciada, honrada ou depravada, honesta ou devassa, recata-
não apenas as antigamente denominadas doenças venéreas da ou libertina, inocente ou iniciada, ingênua ou experiente,
- como a sífilis, a blenorragia etc.-, mas qualquer outra pas- difícil ou fácil, de um homem só ou de vários leitos, monja
sível de transmissão pelo contato sexual - como as hepatites ou prostituta - expressões o utrora tão enfatizadas por im-
B e C, a AIDS etc. A letra da lei exige a efetiva contaminação portantes doutrinadores - pode ficar fora da tutela penal.
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 597

Nem mesmo, para ser repet1ttvo, a mais profissional Quanto aos outros atos libidinosos, diversos da conjun-
m arafona perde o direito à liberdade sexual. Noutras letras, ção carnal, são aqueles de cunho lascivo, voluptuoso, desti-
se, embasada em seu código de conduta, ela não quiser, nados ao desafogo da concupiscência, já estudados em suas
nenhum cliente pode forçá-la a lhe servir. Não cabe mais nuanças no capítulo anterior. Para a confi guração do crime
qualquer juízo moral sobre a sexualidade de alguém para de estupro, não requer a lei que seja a vítima compelida a
reconhecê-lo com o titular do direito à dignidade que a lei praticar os atos, bastando permitir que com ela se pratique.
outorga a to dos nós, indiferentemente. Somente fazem ex- Noutras palavras, o paciente do crime pode ser coagido a de-
ceção as pessoas menores de 14 an os e as que po r outras sempenhar um papel tanto ativo quanto passivo, praticando
causas legais que não essa idade, também são consider adas ou tolerando o ato, respectivamente. Também pouco impor-
vulner áveis, porque contra elas qualquer ação sexual já fica ta sua maior ou m enor m alícia, o grau de pudor pessoal que
incursa em outro tipo penal, o estupro de vuln erável, estu- ostente, ou o nível de compreensão que possa ter sobre a libi-
dado mais à frente. dinosidade do ato, sendo suficiente que este seja ofensivo ao
Apenas para trazer à lembrança, a violência sexual per- pudo r do homo medius. Não fosse assim, a criança e a pessoa
petrada contra a mulher no âmbito do méstico e fa miliar inconsciente ficariam ao desamparo da lei.
configura infração que determina também a aplicação da Lei A violência compreendida no dispositivo é sempre a
nº 11.340, de 7 de agosto de 2003, popularmente conhecida real ou efetiva; não a presumida ou ficta ou indutiva - fictio
como lei Maria da Penha. juris -, retirada do código porque despicienda frente às no-
Quanto ao sujeito ativo do crime de estupro, igualmente, vas definições dos crimes sexuais. Car acteriza-se pelo mo do
qualquer pessoa pode sê-lo. A assertiva de ser o constrangi- bárbaro de ação empregado para vencer a oposição ou a re-
mento à conjunção carnal somente concretizável pelo ho- sistência da vítima. Apenas para fins didáticos, a violência real
mem, por implicar a necessária penetração viril, não é cor- ou efetiva pode ser classificada em violência corporal ou or-
reta em face da nova norma. A mulher que força o homem à gânica ou m aterial e violência psíquica ou moral. A violência
conjunção carnal ou a ato libidinoso diverso desta também corporal ou orgânica ou material pode ser dividida em vio-
comete o crime de estupro. lência física e violência química. E a violência física, por sua
Divergiam diametralmente as opiniões sobre a possibi- parte, pode ser subdividida em violência de ordem mecânica,
lidade de o marido ser considerad o réu de estupro, quando, térmica e elétrica. Como toda classificação, fruto de um toque
mediante vio lência ou grave ameaça, constrange a esposa à arbitrário de quem a faz, com os pés no m undo da teoria, esta
prestação sexual. O insigne mestre Nelson Hungria3 susten- não fica isenta de críticas. É só ver que na prática alguns de
tava a negativa, sob a argumentação de que o estupro pressu- seus aspectos por vezes se mesclam e se confundem. Válido,
põe cópula ilícita e a cópula intra m atrimonium é recíproco também aqui, o aforismo de que, na prática, a teoria é outra.
dever d os cônjuges, dever esse que, se negado, justificaria a Na violência física, de longe a mais empregada, o agen-
violência necessária para o exercício regular de direito. Com te subjuga a vítima valendo-se da fo rça ou da agressão de
a devida vênia, nunca pude concordar. O exercício regular de natureza variada, de que pode resultar toda a gama de le-
direito reconhecido pelo direito positivo, in casu, é o referen- sões corporais inerentes à ação vulnerante utilizada, tais
te ao relacionamento sexual natural e voluntário do cônjuge, como equimoses, escoriações, feridas contusas, feridas inci-
e não àquele sob constrangimento. E o estupro nada mais é sas, queimaduras, eletroplessões etc. Na violência química,
do que um crime de constrangimento ilegal, visando espe- o agente reduz a capacidade de resistência da vítima, valen-
cialmente o ato sexual, que, por si só, não constitui delito. d o-se quase sempre da ação de soníferos, hipnóticos, anes-
Sempre acompanhei, nesse particular, o entendimento de tésicos, inebriantes. Relativamente ao estupro mediante
Celso Delm anto 4 • Atualmente, po rém, ante as modificações violência química, continua bastante interessante o estudo
legais vigentes, não remanesce qualquer incerteza sobre a apresentado por Nuno Lisboa5 •
questão. Basta ver, inclusive, que entre as hipóteses aumen- Convém alertar, contudo, que a violência sexual nem
tativas de pena - e de metade -, previstas no inciso II do sempre deixa evidência ostensiva; e que pode estar escam o-
artigo 226 do diploma penal, está a de ser o agente cônjuge teada até m esm o por o utras fo rmas de violência, o que lhe
da vítima. Controvérsia sepultada. facilita passar d espercebida à primeira vista (Fig. 27.1 ). Certa
De modo resumido, são elementos constitutivos do cri- vez coube a mim necropsiar o corpo de uma mulher, rem o-
me de estupro a ação de constranger, a conjunção carnal ou vido de uma via expressa do Rio de Janeiro, com inúmeras
outro ato libidinoso, a violência ou a grave ameaça, e o dolo. lesões de causa contundente, dentre elas as conhecidas mar-
A ação de constra nger tra duz impor, forçar, obrigar, coa- cas pneumáticas de Simo nin, conotativas de atro pelamento.
gir, compelir, subjugar, sujeitar, d ominar - em excessiva tau- Tudo o m ais, inclusive o registro policial de ocorrência, apon-
tologia - , empregando, logicam ente, m eios idóneos para tal. tava para um mero caso de morte por acidente viário, até que
Por conjunção carnal entende-se a có pula vagínica, e exclu- a perícia médico-legal fez mudar completamente o rumo das
sivamente essa. É indiferente que o agente atinj a o o rgasmo investigações, a partir da minuciosa pesquisa e demonstração
ou que se dê a immissio sem inis. A inser ção de dedo, falo ar- pericial de irrefutáveis vestígios de violência sexual presentes
tificial ou o utros objetos na vagina não caracteriza, como se no cadáver. Em resumo da história, a mulher fo ra estupra-
sabe, a conjunção carnal. da por três homens, que, na tentativa de ocultar a barbárie
598 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

No que concerne à ação penal, enuncia o artigo 225 do


Estatuto Criminal, em seu caput e parágrafo único, que no
estupro e em to dos os outros crimes contra a liberdade se-
xual procede-se mediante ação penal pública co ndicionada à
representação; e que procede-se, entretanto, mediante ação
penal pública incondicionada se a vítima é menor d e 18 anos
ou pessoa vulnerável. Esse conhecimento é importante para
o m édico nortear corretamente sua conduta profissional to-
cante ao dever legal de notificar à autoridade competente
os crimes de ação pública incondicionada de que teve co-
nhecimento no exercício da medicina, postulado no inciso
II do artigo 66 do Decreto-lei nº- 3.688, de 3 de o utubro de
194 1 - a Lei das Contravenções Penais. Mas o conteúdo, po u-
co elucidativo, do artigo 225 do Código Penal, cap ut e pa-
rágrafo único, tem sido m otivo d e rumorosas controvérsias
e até alegações d e inconstitucionalidade, que não cabe aqui
detalhar. Basta, apenas para meditação, tentar respo nder, à
luz do aludido dispositivo, que ação penal deve caber, por
exemplo, no estupro do qual resulta morte ou lesão corpor al
Figura 27.1. Corpo de uma mulher estuprada momentos antes de de natureza grave.
morrer atropelada. /!is lesões do atropelamento escamoteavam os ves- O utra questão polêmica que não se pode olvidar é a que
tígios do estupro. Notar as marcas pneumáticas no abdome e na coxa envolve a exigência d e apresentação d o respectivo boletim
direita. de ocorrência policial por parte da mulher que b usque o
aborto no caso de gravidez resultante de estupro. Embora
defendida veementemente por alguns, tal exigência não en -
sexual, jogar am-na, viva, na rodovia, onde eles próprios a contra mais sustentação, até porque não há lei que mande.
atropelaram e mataram , para simular m orte por acidente de O próprio Ministério da Saúde, que chegou a recomendar
t rânsito. Como se vê, não foi demais procurar vestígios de cri- a exigência do documento, reviu sua posição e, através da
m e sexual em vítima de aparente at ropelam ento acidental... Portaria GM-MS nn 1.506, d e lº- d e setembro d e 2006, reco-
Quanto à grave am eaça, consiste em uma intimidação, na nhece q ue as vítimas de estupro não estão obrigadas à apre-
provocação psicológica de um enfraquecimento da vontade. sentação do Boletim d e Ocorrência para se sub meterem ao
É a violência psíquica ou m oral, a vis compulsiva, reconhe- legítimo procedimento d e interrupção d a gravidez no âm-
cida pelo nosso direito. Pode ser representad a pela pro mes- bito d o Sistema Ú nico d e Saúde.
sa, por parte d o agente, de u m mal concretizável, d e suma É de lembrar também que os casos de violência contra
importância para a vítima e capaz de vencer sua resistência. a mulher, constatados durante atendimento em serviços de
Entende a doutrina predominante que o mal ameaçado pre- saúde públicos ou priva dos, constituem objeto d e notificação
cisa ser maior que o representado pelo próprio ato sexual compulsória à autoridad e sanitária, através dos serviços de
não desejado pela vítima, de mo do a suprimir o u inibir a sua referência sentinela, conforme estabelece a Lei nº- 10.778,
faculdade psíquica de volição, a livre atuação d a sua vontade, de 24 de novemb ro de 2003, regulamentada pelo Decreto nn
não sendo assim albergad os o simples medo su persticioso 5.099, de 3 de junho de 2004.
nem o tem or reverencial dela pelo agente. Vale salientar q ue Preceitua o Código Penal, em seu artigo 234-B, que os
essa am eaça pod e recair nem sem pre diretam ente sobre a processos em que se apuram crimes contra a dignidade se-
pessoa da vítima, mas, às vezes, sobre terceiro, a quem ela xual correrão em segredo de justiça. A finalidade desse coman-
esteja ligada por laços de grande ou especial afeto - um fi- do é prevenir o escân dalo d o processo d evido à publicid ade;
lho, por exemplo. Acrescenta Chrysolito de Gusm ão 6 nada é implementar a profilaxia do strepitus judicii; é proteger a
importar que o dano ameaçado seja justo ou injusto. Para o vítima - já tão sofrida pelo d ano decorrente d a própria in-
d outo penólogo, justa seria, por exemplo, a ameaça de quem fração que suporto u - de um verdadeiro m alefício iat rogêni-
possui as patentes provas de um crime, mas ilide mostrando co, superveniente ao tr atamento judicial apropriado, que lhe
que seu uso co m tal d esiderato não seria menos injusto o u, deixaria exposta a intimidade, a imagem, a honra, a vida pri-
antes, antijurídico, por se aproveitar dele para colimar um vada. Embora se saiba que a publicidad e d os atos processuais
resultad o não menos criminoso. seja a regra mater, existe previsão constitucional, gr avada no
Resta, como último elemento constitutivo do crime, o artigo 5n, LX, para a exceção, quando a defesa d a intimidade
d olo, a vontade livre e consciente de praticar o fato punível. ou o interesse social o exigem. Obedecendo ao m esm o prin-
É o elemento subjetivo d o crime. A lei não admite a forma cípio, o Código de Processo Penal regulamenta, no artigo
culposa no crime d e estupro, requerendo do agente sempre 201 , § 6º, o modus para as providências necessárias a essa
o animus abutendi. proteção conferida à vítima. A despeito de a lei fazer menção
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 599

Sexo feminino violentos, possibilitando dano m enor, talvez disso se tenha


4.993 casos (82,8%) originado a apen ação mais branda que a d o estupro. Mas
t ambém aqui a pena pode ser aumentada se presentes as si-
tuações previstas no artigo 226, I e II, e no artigo 234-A, III e
IV, já vistas no estudo d o crime de estupro.
A violação sexual m ediante fra ude representa, pode-se
dizer, um verdadeiro est elionat o sexual, um stuprum per
fraudem . Em matéria de violação carnal, não seria razoável a
norma penal se ocupar apenas da violência, se a fraude - t ão
reprovável quanto a violência - é idôn ea o equivalente para
pro duzir mal semelhante. Seria como prover proteção ape-
nas contra o leão, porque mais aterrorizador, e descuidar-se
d a matreira raposa.
Sexo não informado
163 casos (2,7%) O objeto jurídico tutelado é também a liberdade sexual
da pessoa, aqui vulnerada através da fraude o u o utro meio
Total: 6.030 casos perícias impediente da livre manifestação de sua vontade.
Figura 27.2. Casos de estupro registrados no Estado do Rio deJaneiro Igualmente ao que ocorre no estupro, qualquer pessoa,
durante o ano de 2012, em valores absolutos e percentuais, segundo o h omem ou mulher, pode figurar no crime em tela com o su -
sexo das vítimas. Fonte: Instituto de Segurança Pública. jeito ativo ou com o sujeito passivo. Atente-se apenas para a
exceção feita às pessoas m enores d e 14 anos e as que por ou -
tras cau sas legais que não a idade também são con sider adas
vulneráveis, porque, contra elas, como já se sabe, qualquer
a pen as ao processo, tratadist as entendem que o sigilo d eve
ação sexual, ainda que sem o emprego d e fraude, violência
abarcar t ambém o inquérito policial, em to das as su as peças,
ou gr ave ameaça, d eságua em outra figura criminal, o estu-
já que é ele o esqueleto preparatório d o processo. Então, a
pro de vulnerável, estudado mais adiante.
divulgação de laudo de perícia médico-legal - ín sito do in-
A vetusta figura criminal d a Posse sexual m ediante frau-
quérito policial, que é - pode configurar o crime d e violação
de, admitindo como sujeito passivo apenas a mulher honesta
de sigilo funcional, previst o no artigo 325 do Código Penal.
- que Nelso n Hungria3 entendia "não so m ente aquela cuja
De todos os crimes sexuais, o estupro é destacad amente
conduta, sob o ponto d e vista da m oral sexual, é irrepreen -
o de m aior incid ên cia em n osso m eio . Som ente no Estado
sível, sen ão também aquela que ainda não rompeu com o
do Rio de Jan eiro foi com putado um tot al de 6.030 casos du-
minimum de decência exigido pelos bons costumes" - , n ão
rante o an o de 2012, correspondendo a uma taxa a nual de
existe mais; foi extirpada d o Código Pen al.
37 por 100 mil habitantes, de acordo com dados divulgad os
Na com posição d o tipo, estão como elementos a conjun-
pelo Instituto de Segurança Pública 7, levantad os a partir d os
ção carnal ou outros atos libidinosos, a fraude ou outro meio
registros de ocorrên cia policial. Em m édia, for am 502 casos
que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da ví-
por mês ou 17 casos por dia. Das vítimas envolvidas no t otal
tima, e o dolo .
de casos, 4.993 eram do sexo feminino, 874 do sexo masculi-
Em destaque, aqui, os meios de consecu ção do crime.
n o e 163 de sexo não info rmado. Convertidos em percentual,
Em lugar do atroz ataque, d a brutalidade selvagem e ina ta
esses números absolutos correspo ndem a 82,8% do sexo fe-
d o ente primitivo, da força qu e arbitra ria mente reduz a re-
minino, 14,5% d o sexo masculino e 2,7% d e sexo não info r-
sistên cia e a vontade contrária d a vítima, a fraude a ilude,
mado (Fig. 27 .2).
previne ou contorna o seu dissen so, vicia su a vontade, in-
Boa parte do que foi ab ordado no estudo d o crime de
duzindo-a em erro, fazendo-a supo r uma situação que, se de
estupro aplica-se ta mbém aos outros crimes sexuais, e não
fat o existisse, não su scitaria a sua repulsa. Da fraude pod e ser
será n ecessário repetir-se, até para que não fique enfadonho
dito que é um engodo, um artifício, um ardil, um emb uste,
o estudo desses outros crimes.
um estratagema que leva a pessoa enganada à falsa percepção
d a realidade. Con siste em maliciosa provocação ou aprovei-
Violação Sexual Mediante Fraude
t amento do erro ou engano de outrem, para a busca de um
O crime está definido no artigo 215 do Código Pen al fim ilícito. É a ilusão d a vontad e do sujeito passivo, através
como Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso d e um jogo d e inteligência e astúcia do agente. l n casu, é o
com alguém, m ediante fraude ou outro meio que impeça ou erro induzid o que faz algu ém enganar-se sobre a identidade
dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. A pen a co- pessoal do agente ou supor legítimo o papel sexual a qu e se
minada é a d e reclusão de 2 a 6 anos. Se o crime é cometido prest a. A fraude existe mesm o que o erro não tenha sido pro-
com o fim de obter vantagem econ ômica, aplica-se t ambém vocad o pelo agente, mas apen as se aproveite ele da situação
multa, conforme estabelecido no parágrafo único. favorecedora em que se encontra a vítima.
Como de um m odo geral o emprego de m eios fraudu- Exem plos clássicos de vio lação sexu al m ediante fraude são
lentos faz su por menos gravidade qu e o em prego de meios os casos de celebração simulada de casam ento, conven cendo-
600 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

se a vítima de sua validade; do indivíduo que, na escuridão da gitar no delito do artigo 216-A. É, portanto, crime bipróprio,
alcova, insinua-se no leito e se faz passar pelo legítimo parcei- isto é, exige uma condição especial tanto do sujeito ativo
ro sexual da vítima, que, semissonolenta, a ele se entrega de como do sujeito passivo. Assediar é sitiar, cercar, molestar,
boa-fé; e do médico que, abusando da ingenuidade de cliente, importunar, perseguir com propostas, sugerir com insistên-
pratica ato libidinoso a pretexto de exame clínico. cia, abordar súbita ou inesperadamente.
À guisa também de exemplo, menos convincente, existe Não importa, pela definição da figura penal, o sexo da
o caso do curandeiro que persuadia suas ingênuas consulen- vítima, tampouco o do agente, podendo se dar igualmente
tes a experimentarem o seu "infalível meio de cura''. Contam em relacionamento homo ou heterossexual.
como verdadeira uma história pitoresca sobre queixa presta- Adverte Luiz Flávio Gomes9 que "é preciso bom senso
da certa vez à polícia contra um tal de Pai Jojô, velhaco que para distinguir o constrangimento criminoso do simples
se dizia babalorixá na Baixada Fluminense. Aproveitando-se flerte, do gracejo, da paquera. Nem toda 'abordagem' é assé-
da credulidade fanática de certas mulheres aflitas, o meliante dio. O assédio implica uma imputação séria, ofensiva, insis-
prometia -lhes cura infalível para males de todo o tipo, em tente, embaraçosa, chantagiosa''. Valiosa a advertência.
apenas três sessões de fornicação, desde que a ele se entre- Trata-se de crime sempre doloso. Não existe assédio se-
gassem de livre e espontânea vontade, com demonstração xual culposo.
de ardorosa fé. Não cobrava qualquer valor pelos serviços
prestados e atendia sua vasta clientela com hora marcada, de Crimes Sexuais contra Vulnerável
segunda a sexta-feira. Nos fins de semana recusava atendi-
mentos; alegava dedicar-se ao retiro espiritual e ao repouso Vulnerável, no sentido conferido pelo Código Penal, é a
necessário ao revigoramento das forças perdidas no exausti- pessoa menor de 18 anos; ou que, por enfermidade ou defi-
vo trabalho. Hoje Pai Jojô é foragido, não apenas da justiça, ciência mental, não tem o necessário discernimento para a
mas principalmente de alguns maridos inconformados. prática do ato; ou que, por qualquer outra causa, não pode
Além da fraude, admite o artigo, a prática do crime tam- oferecer resistência. Essas condições assemelham-se - mas
bém mediante outro meio que impeça ou dificulte a livre ma- não são iguais - àquelas que, como fictio juris, representa-
nifestação de vontade da vítima. Mirabete e Fabbrini8 dão vam a presunção de violência, de que tratava o revogado
como exemplo a conduta do agente que faz a vítima ingerir, artigo 224 do mesmo código. Sobre a pessoa vulnerável não
sem perceber, doses significativas de bebida alcoólica ou ou- incide o direito de consentir, ao menos em certos atos e nos
tra droga que comprometa a livre manifestação de vonta- limites que a lei estabelece. Em matéria de crime sexual en-
de, viciando o seu consentimento na prática do ato sexual. volvendo vulnerável, o consentimento da vítima não pode
Alertam, entretanto, que haverá estupro de vulnerável, se a legitimar o delito.
substân cia utilizada com essa finalidade colocar a vítima em Menor de 18 anos é a pessoa que ainda não completou
situação que não possa oferecer resistência. essa quantia de anos de vida. Infere-se, pela lei, pela doutrina
Último elemento, o do lo, é o componente subjetivo do e pela jurisprudência, que a pessoa deixa de ser m enor de 18
crime de vio lação sexual mediante fraude. A lei não prevê anos já a partir do primeiro instante do dia de seu 182 aniver-
forma culposa para essa infração penal. sário, pouco importando a hora exata em que tenha nascido.
No que tange a enfermidade ou deficiência mental, con-
Assédio Sexual vém atentar que isso por si não basta, conforme a lei, para
classificar a pessoa como vulnerável. É indispensável que,
Dispositivo inserto no Código Penal pela Lei nrr 10.224, em razão da enfermidade ou deficiência mental não tenha
de 15 de maio de 2001, o crime de assédio sexual está tipifi- ela o necessário discernimento para a prática do ato libidi-
cado no artigo 216-A como: Constranger alguém com o intui- noso.Trata-se, portanto, de condição que precisa ser aferida
to de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se concretamente, caso a caso. Diferentemente do finado artigo
o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendên- 224, que exigia que fosse essa condição mental circunstância
cia inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. A pena conhecida do agente, ou seja, quando não espetacular, pelo
imposta ao infrator é a de detenção de 1 a 2 anos, aumentada menos aparente, reconhecível por qualquer pessoa comum,
em até um terço se a vítima é m enor de 18 anos. a no rma em voga não faz referência a isso.
Do que se depreende do tipo, a inovação com ele trazida ln fine, está a pessoa que, por qualquer outra causa - dis-
é a apenação por um constrangimento específico, voltado tinta da menoridade e da decorrente de transtorno mental
contra a liberdade sexual de alguém, somente possível numa -, não pode oferecer resistência. A incapacidade de oferecer
relação de poder, quando diante de uma superioridade ad- resistência, que deve estar presente no momento do crime,
ministrativa ou trabalhista entre agente e vítima, resultante pode ser permanente ou transitó ria, mas precisa ser abso-
de emprego - atividade privada - ou então de cargo ou fun- luta, pois que se relativa, permitindo à vítima alguma pos-
ção - atividade pública. sibilidade de resistir, não se ajusta à condicional "não pode
Assédio sexual só pode ser praticado, então, de cima para oferecer resistência': redigida na lei. Ensinam Mirabete e
baixo, nunca de baixo para cima. Se a vítima ocupa posição Fabbrini8 que a lei não exige que seja a incapacidade pree-
hierárquica igual o u superior à do agente, não há que se co- xistente à conduta do agente, podendo ser também por ele
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 601

ardilosamente produzida adrede para impedir que a vítima


ofereça resistência. Exemplos corriqueiros de incapacidade
absoluta para oferecer resistência são os casos que envolvem
a supressão da consciência ou da vontade da vítima, como a
lipotimia, o com a, a narcose, a embriaguez completa etc., e as
situações que tolhem seus movimentos voluntários, como a
tetraplegia, a imobilização por algemas o u amarras etc.
Compõem o capítulo Dos crimes sexuais contra vulnerá-
vel o estupro de vulnerável, a corrupção de menores, a satisfa-
ção de lascívia mediante presença de criança ou adolescente e
o favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração
sexual de vulnerável.

Estupro de Vulnerável
O nomen juris é novidade no Código Penal. O estupro de
vulnerável encontra-se definido no artigo 217-A como Ter
conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor
de 14 anos. Figura 27 .3. Estupro de vulnerável, com a presença de sêmen con-
Como sanção, a lei prevê reclusão de 8 a 15 anos. In- firmada por exames laboratoriais subsidiários. Notar a lesão localizada
corre na mesma pena, como reza o § l", quem pratica as junto à fúrcula vulvar, resultante de possível tentativa de penetração.
ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade
ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
14, desde que não mediante violência, grave ameaça, fraude
para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não
ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação
pode oferecer resistência. Mas a pena é majorada para 10 a
da sua vo ntade, e que não encerre qua lquer forma de explo-
20 anos, pelo § 3Q, se da conduta resulta lesão corporal de
natureza grave, e para 12 a 30 anos, pelo§ 4Q, se da conduta ração sexual, passou a ser fato atípico, isento de reprovação
criminal. Embora os menores de 18 anos - vulneráveis, por
resulta morte.
definição - tenham recebido da nova lei especial proteção
Identicamente ao crime de estupro, o estupro de vulne-
rável, em qualquer de suas formas, simples o u qualificadas, contra abusos e explo ração para o sexo, reconheceu, o le-
é considerado crime hediondo pela Lei n" 8.072, de 25 de gislador, alguma liberdade sexual em relação às pessoas que
se encontram na faixa etária compreendida entre os 14 e 18
julho de 1990, e, como tal, insuscetível de anistia, graça, in-
anos, permitindo que, diante isso, se possa falar em vulnera-
dulto e fian ça.
bilidade absoluta e relativa.
Com esse dispositivo, tutelam-se, no bojo da dignidade
sexual, o sadio desenvolvimento sexual e a liberdade sexual
Corrupção de Menores
das pessoas mais vulneráveis a abusos libidinosos. Particular-
mente em relação à pessoa meno r de 14 anos, presume a lei, O artigo 218 define corrupção de menores como Induzir
de forma absoluta, que ainda não tem maturidade orgânica alguém menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem. O
nem maturidade psíquica necessárias para manter relações nomen criminis já é antigo, mas, a definição ganhou roupa-
sexuais com liberdade, e ainda menos para pagar o ónus por gem nova com a reforma do código. O rem édio penal tam-
elas, não raro cobrado pela ação de sorrateiros pedófilos, bém foi alterado para reclusão de 2 a 5 anos, mas é aumenta-
presentes em quase todo tipo de ambiente (Fig. 27.3 ). A pro- d o se presentes no crime as condicionais previstas no artigo
pósito, convém frisar que pedofilia, termo demais usado pelo 226, I e II, já descritas no estudo do estupro.
leigo e pela imprensa para fazer referência a qualquer abuso Uma vez mais, o objeto jurídico protegido é a dignidade
sexual praticado contra criança ou adolescente, não é nome sexual da pessoa, menor de 14 anos, neste caso, contra ações
de qualquer delito, e sequer aparece nos textos d o Código que possam corrompê-la ou prejudicar o seu sadio desenvol-
Penal nem d o Estatuto da Criança e do Adolescente. vimento sexual.
A norma penal não exige, para a caracterização do estu- Corrupção é o ato, o processo ou o efeito de corromper,
pro de vulnerável, que o agente empregue violência, grave que, aqui, corresponde a perverter, viciar, depravar, desna-
ameaça ou fraude na consumação do delito, bastando que turar, deteriorar, contaminar a moral. Induzir, na definição
pratique, ativa ou passivamente, qualquer ato libidinoso doutrinária, é aconselhar, convencer, encorajar, impulsionar,
com a pessoa vulnerável especificada no tipo. incitar, incutir, inspirar, instigar, levar a, persuadir. Lascívia é
Estupro de vulnerável é delito necessariamente doloso. a sensualidade, a luxúria, a concupiscência, a lubricidade, a
Com as reformas implantadas em 2005 e 2009 na legis- libidinagem, a impudicícia.
lação dos crimes sexuais, a prática de conjunção carnal ou Qualquer um, homem ou mulher, pode ser sujeito ativo
outros atos libidinosos com menores de 18 anos e maiores de deste crime. Como o dispositivo se refere a outrem como des-
602 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

tinatário da lascívia a que o menor é induzid o a satisfazer, não fo rte em nosso país. Para preservar a virgindade feminina,
há que se considerá-lo autor do crime de corrupção de meno- alguns povos já lançaram mão do cinto de castidade e até
res. Entrementes, estará cometendo, conforme o caso, o crime da infibulação. O valor dado à virgindade sexual feminina
de estupro de vulnerável, já estudado, ou então o crime de sa- é extrem am ente variável de acordo com os padrões cul-
tisfação de lascívia mediante presença de criança ou adoles- turais que distinguem um grupo social. Existem culturas
cente, definido no artigo 218-A, visto em seguida, en passant. declaradam ente misimenistas, que desprezam de todo a
Vale dizer, ainda que óbvio, que somente o m enor de 14 virgindade em suas mulheres, e outras em que ainda hoje é
anos pode figurar com o sujeito passivo do crime em apreço, marcante a himenolatr ia. Em algumas civilizações - dizem
e mesmo que já possua experiência sexual, que já tenha se com sarcasmo - o hom em casa-se com o hím en para ficar
prostituído, que já se encontre corrom pido. É ultrapassa da com a mulher depois.
a ideia de que para que se corrompa ou facilite a corrupção O significado da integridade do hímen como testemu-
de alguém é necessário que não se trate de pessoa já intei- nha de virgindade da mulher está de tal modo arraigad o em
r amente corrompida, porquanto não pode haver corrupção alguns povos que não são poucos os casos relatad os de pro-
onde já não há o que corrom per. Sempre com intervenção cedimentos até mesm o cirúrgicos para simular a castidade
luminar, Nelson Hungria3 aduz que "como a corrupção tem feminina. Gisbert Calabuig'º m enciona a prática da sutura
graus, não se poderá deixar de reconhecer o crime na sucessi- dos retalhos himenais - himenorrafia - e a reconstru ção hi-
va desintegração moral do sujeito passivo''. menal - himeno plastia ou parteno plastia ou virgino plastia
Inexiste, na corrupção de menores, forma culposa. - usa ndo fragmentos da mucosa dos lábios menores, com a
Anteriormente às reformas que atingiram o Título VI d o pretensão de reconstituir a virgindade perdida. Em O Clone,
Código Penal, o crime de corrupção de menores, com reda- novela de Glória Perez, produ zida pela Rede Globo de Te-
ção diferente, dividia um capítulo com o crime de sedução, levisão, Said e Jade, imediatamente após a cerimô nia de seu
outro amputado da lei, com merecido aplauso. No crime casamento, recolhem -se ao quarto de núpcias, enquanto
de sedução, somente a mulher virgem e com idade entre 14 parentes e amigos aguardam ansiosos na antessala a osten -
e 18 anos poderia ser vítima. A deflor ada, a não mais virgo tação, pelo noivo, da toalha íntima tinta de sangue, símbo-
intacta, perdia essa proteção. Sedução é persuasão, atração, lo d o desvirginam ento da mulher desposada, ao que to dos
conquista, envolvimento, ca ptação do consentimento, alicia- festejam ruidosa mente com cantos e danças. Não sabiam
m ento da frágil vontade; é, na síntese de Hungria, a arte de eles que se tratava de uma fa rsa, arquitetada pelo noivo que
Do n Juan; m as não com o emprego de fraude. Mulher vir- corta o próprio ded o e com seu sangue mancha a toalha,
gem é a que nunca teve conjunção carnal - definem os dicio- para livrar a amada da lapidação pública imposta às mu-
nários, os tratados, a jurisprudência. Extrai-se daí, por con- lheres que se atrevessem a chegar ao casamento já desvir-
seguinte, que as práticas libidinosas diferentes da conjunção ginadas. Himenolatria é fe nô meno distinto de partenofilia,
carnal não tiram da mulher o status virginal. A virgindade como já se sabe. Said, embor a com ideias progressistas e
a que o dispositivo revogado se referia era, logicamente, a bem liberais para o seu meio, era um himenólatra por força
virgindade física, a virgindade anatômica, cuja existência, ou da cultura, tanto que repete o ritual - agora sem arlequi-
não, precisava ser constatada pericialmente. É possível per- nada - quando se casa com Ranya, sua "segunda esposa".
ceber a importância que já foi dada à demonstração pericial Partenofílico nunca foi, a julga r pelas m ulheres que visava
da virgindade. em suas investidas extraco njugais e pela paixão doentia que
O único sinal somático de virgindade é a integridade continuou nutrindo por Jade.
himenal, ou melho r, a integridade de um hímen não com- Com a sabedoria invejável que possuía e com a visão fu -
placente. Assim, o elemento fundamental naquelas perícias turista que não podia esconder, há quase um século Afranio
era, de fato, o hímen, que, se roto, desautorizava a afirmação Peixoto'' já vaticinava que: "O tabu do hímen passará: a ho n-
pericial da virgindade. ra já não estará nessa membrana."
Também o Código Civil já se ateve a coisa tão semelhan-
tem ente imprópria; já admitiu o defloramento da mulher, Satisfação de Lascívia Mediante Presença de Criança ou
Adolescente
ignorad o pelo marido, com o erro essencial quanto à pessoa,
passível de tornar anulável o casamento. Hoje é letra morta, No artigo 218-A, o Código Penal define esse crime como
m as em passado recente já foi objeto de muitos procedimen- Praticar, na presença de alguém m enor de 14 anos, ou induzi-lo
tos periciais. Lembro-me de ter auxiliado o saudoso professor a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de
Nilso n Sant'Anna em uma perícia m édico-legal para averi- satisfazer lascívia própria ou de outrem.
guar fato dessa natureza, em uma ação judicial para anulação Por não encerrar elem entos novos q ue careçam de es-
de casamento. tudo m édico-legal para sua m elhor compreensão, fica esse
Costume social em decadência no mundo civilizad o, a dispositivo pou pado de outros com entários. Leve-se em
himenolatria, fincada no culto da virgindade da mulher, conta apenas que criança e adolescen te têm significados de-
representada pelo hímen íntegro, como condição essen- finidos pela Lei n<l 8.069, de 13 de julho de 1990, que dis-
cial de honorabilidade para o casamento, já foi bem mais põe sobre o Es tatuto da Criança e do Ado lescente. Celebra
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 603

o referido instrumento legal, logo em seu a rtigo 2º, que: mens e, pior, com crianças e adolescentes, que agora feliz-
Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até mente a lei penal passa a proteger de modo mais consistente,
12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e nesse aspecto, com o advento do artigo 218-B.
18 anos de idade.
Pelo que se vê, no que pertine às faixas etárias conside-
Ultraje Público ao Pudor
radas pela lei criminal para atribuir os tratamentos diferen-
ciados que estabelece, afastou-se o Código Penal da discipli- As profundas reformas implementadas no Título VI do
na contida no Estatuto da Cria nça e do Adolescente. Código Penal deixaram imune apenas o seu último capítulo,
o Do ultraje público ao pudor. Alguns críticos mais radicais
Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de não poupam ataques ferrenhos ao descuido legislativo de
Exploração Sexual de Vulnerável deixar permanecer no Título VI - que elogiadamente passou
O delito está previsto no artigo 218-B como Submeter, a tutelar a dignidade sexual da pessoa - o capítulo dos ilíci-
induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração tos que ofendem o pudor público, naquilo que diz respeito à
sexual alguém menor de 18 anos ou que, por enfermidade ou moralidade social e bons costumes.
deficiência mental, não tem o necessário discernimento para Pudor - abonam os lexicógrafos - é um sentimento de
a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a aban- vergonha, de timidez, de mal-estar, causado pelo que pode
done. A pena prescrita é a de reclusão de 4 a 10 anos. O § 2º ferir a decência, o recato, a inocência, a pudicícia. Toda pes-
estabelece que incorre nas m esmas penas quem pratica con - soa normal experimenta esse sentimento, mas o pudor cujo
junção carnal ou outro ato libidinoso com alguém m enor de ultraje a lei aqui reprime é o pudor coletivo, o que está em
18 e maior de 14 anos na situação descrita no caput. conformidade com os costumes, com a afirmação da cultu-
A leitura do artigo 2 18-B e a sua inserção no capítulo ra; enfim, o pudor público. Este que não é estático, mas ex-
dos crimes sexuais contra vulnerável san am qualquer dúvida traordinariamente variável com o lugar e a época em que é
quanto à vulnerabilidade do m enor de 18 anos, pondo fim à apreciado, constituindo, justo por isso, noção jurídica e de
ideia equivocada de que vulnerável, por idade, seria apenas o extrema relatividade.
menor de 14 anos. Formam o capítulo Do ultraje público ao pudor os crimes
d e Ato obsceno e de Escrito ou objeto obsceno. Deles, merece
Lenocínio e Tráfico de Pessoa para Fim de Prostituição ou estudo médico-legal apenas o primeiro.
Outra Forma de Exploração Sexual
Ato Obsceno
Integram o capítulo Do lenocínio e do tráfico de pessoa
para fim de prosti tuição ou outra forma de exploração sexual Ato obsceno é a rubrica do artigo 233 do Código Penal,
os crimes de Mediação para servir a lascívia de outrem, de cuja redação é Praticar ato obsceno em lugar público, ou aber-
Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração to ou exposto ao público. A pena que a lei comina é a detenção
sexual, de Casa de prostituição, de Rufianismo, de Tráfico d e 3 m eses a 1 ano, o u multa.
internacional de pessoa para fim de exploração sexual e d e O crime tem com o objeto jurídico o pudor público, a
Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual. Esses moralidade média do coletivo, e, em segundo lugar, o pudor
crimes não envolvem características médico-legais novas ou individual de quem eventualmente presencia o ato obsceno,
relevantes, por isso seus pormenores escapam aos propósitos a incolumidade moral da pessoa.
do presente livro. O sujeito ativo do crime é qualquer pessoa que pratiq ue
Incide nas definições desses crimes a ação torpe, sórdida a conduta típica, que não raro é inimputável ou semi-im-
e perniciosa do cáften o u da caftina - cafetão ou cafetina, putável, em consequência de transtorno m ental de que seja
em suas respectivas corruptelas -, ele que na gíria regional portadora, envolvendo alguma parafilia, como, por exem plo,
recebe também os tratamentos de cafifa, cafiola, pincho, ca - o exibicionismo. E o sujeito passivo é, essencialmente, a cole-
raxué, rúfio, pau-de-cabeleira e tantos o utros. Com sua vasta tividade, o Estado, mas também pod e sê-lo qualquer pessoa
nomenclatura, conhecido ainda como proxeneta, rufião, gi- que presenciar o ato legalmente censurado .
golô, alcoviteiro etc., atua qual autêntico corretor de pessoas; Trata-se de crime de perigo, bastando, para a su a tipifica-
mercadeja a carne humana para a saciedade dos apetites con- ção, a possibilidade de ofensa ao pudor público. Não é neces-
cupiscentes; encaminha suas vítimas para os antros do m e- sário, portanto, que o fato seja efetivamente presenciado por
retrício; agencia a vinculação das perdidas à casa de tolerân - qualquer pessoa ou que ocasione escândalo. Se é potencial-
cia; intermedeia o negócio da s mariposas com os clientes do mente escandaloso já basta.
prostíbulo . É, enfim, o em presário do sexo pago; o caçador Resumidamente, os elementos do crime são a prática do
de talentos do lupanar; o atravessador do conventilho; o ato obsceno, o lugar público, ou aberto ao público ou exposto ao
zangão d o bordel; o extorsionário d o covil; o chanceler do público, em que seja praticado, e o dolo.
rendez-vous; o manda-chuva da zona. Tudo por dinheiro. Ato, aqui, quer dizer manifestação corpórea voluntária.
Primitivamente, o empresário da luxúria lidava somente Não o constituem, portanto, a simples palavra ou dito obsce-
com mulheres, mas n a modernidad e lida também com ho - no, nem o escrito ou objeto obsceno, elementos de outro cri-
604 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

me. Obsceno é aquilo que atrita, aberta e grosseiramente, atualmente quase na banalidade, somente recebendo a re-
com o sentimento de pudor do homem comum ou com os provação do puritano mais severo ou démodé. A mesma
bons costumes ou hábitos de decência social. Assim, ato obs- prática realizada no Largo da Carioca, porém, ainda hoje,
ceno é o ato impudico; o que tenha qualquer característica decerto culminará em prisão por flagrante ação criminosa.
sexual em sentido amplo - real ou simulado; o que, embora Se minhas avós, em seu tempo de juventude, expusessem os
não se referindo à atividade sexual, envolva os órgãos a ela seios na praia, sem dúvida seriam repreendidas por todos. É
vinculados. Em síntese, é a manifestação corpórea voluntária o comportamento variando conforme o lugar e o momento
que escandalize a assistência, que ofenda o pudor público, a histórico. Durante o reinado de Morno, em especial nas me-
moral coletiva, bem jurídico que o legislador visou proteger trópoles, é comum a prática da impudicícia em público, com
com esse dispositivo. a tolerância tácita do costume popular; chegadas as cinzas,
Criminalmente, ato obsceno não se confunde, de neces- porém, fica automaticamente suspensa essa permissividade.
sário, com prática libidinosa, embora esta possa estar con- A sabedoria popular já diz em provérbio que o que é moda
tida naquele. Na prática libidinosa, o agente visa desafogar não incomoda...
sua volúpia, servindo-se de outra pessoa. No ato obsceno, ele Por fim, é interessante conhecer alguns posicionamentos
fere o sentimento médio de pudor, em prática eventualmen- da jurisprudência, calcados na inteligência do artigo 233 do
te libidinosa. Código Penal: "A escuridão não afasta o delito" (TACrSP); "A
Mas a criminalidade desses atos só se configura legal- micção em público, sem exibição do pênis e de costas para a
mente com a sua prática em lugar público, ou aberto ou rua não configura o delito" (TACrSP ); "A prática do 'streaking'
exposto ao público. Certos atos, lícitos e naturais em si mes- ou 'chispada' [andar ou correr nu em público como mani-
mos, como a comunhão sexual, o desnudamento para o ba- festação de protesto J atrita aberta e grosseiramente com o
nho, a exposição do pênis para a micção etc. só adquirem o sentimento médio de pudor e com os bons costumes, confi-
cunho de obscenidade em razão das características do lugar gurando o delito de ato obsceno" (TACrSP); "A masturbação
em que sejam praticados. Para a tipificação do ilícito penal, visível é crime" (TACrSP); "A bolinação em público integra
então, é necessário seja o ato obsceno praticado nos lugares o tipo" (RT 420:248); "Unir os dedos polegar e indicador,
que o artigo especifica, público, aberto ao público ou exposto formando um círculo, não configura o crime" (TACrSP);
ao público. "A dejeção em público considerou-se impunível" (TACrSP);
Público é o lugar, por natureza, acessível a qualquer pes- A extensão do dedo m édio com o punho cerrado tipifica o
soa, a qualquer momento e sem condicionais, como, por crime" (TACrSP ); "Não é lugar exposto ao público o inte-
exemplo, a rua, a praça. Aberto ao público é o lugar, por desti- rior de veículo estacionado em lugar ermo" (TACrSP); "Não
no, onde toda a gente pode entrar, em número indetermina- configura, o ato praticado no interior de automóvel, à noi-
do, ainda que mediante determinadas condições, como pa- te e em lugar ermo" (TACrSP); "Urinar é ato natural, mas
gamento de ingresso, convite transferível etc., tal o cinema, quando a micção é praticada em via pública, com exibição,
o templo religioso, ou então temporariamente franqueado ofende o pudor público e configura o delito de ato obsceno"
ao público, como, em exemplo, a casa particular cedida para (TACrSP); "Urinar de costas para a rua, sem exibir o pênis,
uma reunião eleitoral. Exposto ao público é o lugar que, sem é grosseria mas não tipifica o art. 233" (TACrSP ); "Perante o
ser público ou aberto ao público, pode ser visto, sem artifício nosso Código Penal, o ultraje ao pudor deixa de ser público
ótico, por quem quer que seja, porque devassado; é o lugar quando o lugar privado, onde ele é praticado, seja visível de
privado que, em virtude de sua situação ou de determinadas outro local privado e não de lugar público" (TACrSP); "Em
circunstâncias, permite ver o que nele se passa, sendo exem- princípio, o meretrício e o trottoir não são puníveis, se não há
plo o quintal de uma casa, a cobertura de um apartamento, o importunação, nem ultraje público ao pudor" (STF).
interior de um automóvel particular.
O crime de ato obsceno somente se configura com o
dolo, que, no caso, compreende a vontade livre de praticar • DEMONSTRAÇÃO PERICIAL
o ato, que se sabe obsceno, consciente da publicidade do lo-
cal em que o fato ocorre e de estar ofendendo o pudor. Não Uma das finalidades da perícia médico-legal é levantar a
há punição a título de culpa. materialidade de fatos jurídicos cuja demonstração dependa
Não havendo dolo, restará insubsistente o crime, por de conhecimentos médicos ou relacionados com a medicina.
exemplo, por parte de alguém que, para salvar-se de um in- Na esfera criminal, esse levantamento passa essencialmente
cêndio ou escapar de uma agressão, sai à rua em completa por coleta e análise de vestígios, visando a elucidação do fato
nudez. O mesmo se diga de um prostático, que, na falta de que esteja sendo apurado.
um mictório, alivia-se junto à primeira árvore que encontra Na apuração dos crimes contra a dignidade sexual, o
na via pública. Aliás, agiram, ambos - pode-se dizer -, em exame de corpo de delito e as outras perícias entram fun -
estado de necessidade. damentalmente com a demonstração pericial da conjunção
Tempo e lugar são fatores que não devem ser desconsi- carnal e dos outros atos libidinosos, mas também são indis-
derados na exegese desse dispositivo penal. O topless, pra- pensáveis na demonstração pericial de lesões corporais, de
ticado com frequência nas areias de Ipanema, encontra-se doenças sexualmente transmissíveis, da gravidez, da idade,
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 605

da condição m ental, do perfil genético, da cau sa da m orte Outra recomendação nã o menos importante é que as
etc. Os exa mes de corpo de delito e as o utras perícias que vi- vítimas sejam examinadas preferen cialmente sem que se te-
sam essas demo nstrações envolvem não apenas as vítimas e nham higienizado após o fato. A higien e e a troca da s vestes
possíveis vítimas d os crimes, mas também , co nforme as cir- são extremamente prejudicia is aos propósitos periciais, por-
cunstâ ncias do fato, os supostos auto res. A requisição d esses que favorecem o desaparecimento de vestígios importantes
procedimentos médico-legais - po r quem detém a d evida n a elucidação desses crimes.
competência - po de ser feita de forma con jugada ou separa - O exame deve ser amplo e minucioso. Para ta nto, n ão
da mente para det erminados procedimentos. No Estad o do é bastante a capacitação t écnica d o perito-legista; são igual-
Rio d e Jan eiro, esses procedimentos periciais pod em ser rea- m ente necessá rios um ambiente apropriado e recursos ma-
lizados n a sede d o Instituto Médico-legal Afranio Peixot o, teriais minimamente adequados.
situada na capital, e nos 20 post os médico-legais distribuí- Idealmente, os recursos mat eriais devem ser representa-
dos entre os municípios esta dua is. d os po r: m esa do tipo ginecológico; escada para subir e des-
Após a conclusão da perícia m édico-legal requisitada, o cer da m esa; moch o; m esa para instrumental, com rodízios
perito-legista responde aos quesitos oficia is a ela correspon - giratórios traváveis; biombo; foco de luz com b oa capacidade
dentes e aos quesitos suplementares, se houverem. Os quesi- d e iluminação; lençóis descartáveis; aventais desca rtáveis;
tos oficiais ainda em u so fo ram aprovados pela comissão que pentes descartáveis, pa ra a retirada de material por penteado;
elab orou o Código de Processo Penal vigente e fo rmulad os folhas de papel pardo com cerca de 1 metro d e lado, para re-
po r comissão compost a pelo Dr. Miguel Sales, diretor do colhimento do mater ial retirado por penteado; luvas de lá tex
Instituto Médico-legal d o Rio de Janeiro; pelo Dr. Antenor para procedimentos; lupa d e 10 dioptrias; colposcópio; mi-
Costa, professor catedrático de Medicina Legal da Faculdade croscó pio ótico; lâminas e lamínulas par a microsco pia; es-
de Direito de Niterói e livre-d ocente d e Medicina Legal da pátulas de Ayre ou d e Aylesbury descartáveis, para coleta de
Faculdad e de Medicina da Universidad e do Brasil; e pelo Dr. material e montagem d e esfregaços; escovas de Campos da
Rob erto Lyra, professor de Direito Penal da Faculdade Na - Paz, para coleta de material e montagem de esfregaços; hastes
cio nal d e Direito da Universidade d o Brasil. Com as refor- flexíveis com extremidade coton ada, para colet a e conserva
mas legislativas que sofrer am os crimes sexuais, as b aterias d e m aterial; sondas d e Levin, para coleta m aior de mat erial
de quesitos oficiais a eles relacionadas tornaram -se muito fluido; seringas descartáveis, para aspiração d e m aterial atra-
defasad as, carecendo urgentem ente de ad equad a revisão. vés das so ndas de Levin; frascos com solução fixad ora para
No caso d o exame de corpo de d elito de conjunção carnal e esfregaços; solução fisiológica em frasco gotejad or; papel de
outros atos libidinosos, os quesitos oficiais, em fo rma conju- filtro, para d eposição e conservação a seco d e amostras; es-
gad a, ficariam , s.m .j., m ais apropriados assim: 12 ) se há ves- pátulas descartáveis para colet a de amostras da mucosa bu-
tígio de conjunção carnal recente; 2Q) se há vestígio d e ou - cal; frascos com t am pa, para armazenam ento e transporte de
tro ato libidinoso recente e, n o caso afirmativo, qu al; 32 ) se m aterial colet ado; envelopes de papel, para embalar mat erial
há vestígio de violência e, no caso afirmativo, qual o m eio seco colet ado; fo nte d e luz ultravioleta filtrada - lâmpad a de
em pregado; 4-2) se da violência resultou para a vítima inca- Wood ; equipamento para registro de imagens; e o que mais
pacidad e para as ocupações habituais por m ais de 30 dias, convier. Atualmente são comercializados est ojos individuais
ou perigo de vida, ou d ebilidade permanente ou perda ou pré-montados, contendo o m aterial básico descartável para
inutilização de memb ro, sentido ou função, o u incapacidad e at ender a essa necessidade pericial.
permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou Em alguns institu tos médico-legais os procedimentos
deformidade perman ente, ou aceleração d e parto, ou ab orto para demon strar pericialmente a conjunção carnal e outros
( respost a especificada); 52 ) se a vítima, por enfermidade ou at os libidinosos são realizados em serviço de sexologia fo-
deficiên cia m ental, não tem o n ecessário discernimento par a rense, por peritos legistas especializados em exam es dessa
a prática do ato; 6º) se houve outra cau sa, diversa da idad e n atureza. No Esta do do Rio de Jan eiro, a Lei n 2 1.766, de 12
n ão m aior de 14 an os e da enfermidade ou d eficiên cia men - d e dezembro de 1990 assegura à população do sexo feminino
tal, que a impedisse d e oferecer resistência. Fica a propost a o atendimento por legistas do seu m esm o sexo, durante exa-
exp osta à crítica pa ra n ecessários m elhoramentos. m es periciais destinados à averiguação de violências físicas.
Cab e en fatizar que n ão é do perito-legista a atribuição d e
concluir se houve estupro ou outro crime sexual.
O exam e d e corpo de delito de conjunção carnal e outros • DEMONSTRAÇÃO PERICIAL DA CONJUNÇÃO
atos libidinosos deve ser realizado o m ais ced o possível após CARNAL
o fato que o mo tivou, para que não se percam os vestígios
eventualmente resulta ntes, às vezes fugazes. Se n ão existe A conjunção carna l po de ser demonstrad a pericia lmen-
justifi cativa técnica para a realização rotineira de necropsias te através de vestígios que variam conforme seja ela recen-
médico-legais à no ite, o m esmo n ão ocorre para os exam es te o u antiga. Os vestígios mais fortes de conjunção carnal
de corpo d e delito em pessoas vítimas de crimes sexuais. Es- recente são a rotura n ão cicatrizada d o hímen e a presen ça
tes, com o a perícia da embriaguez, fazem parte daquilo que d e sêmen n a vagina. Para a co njunção carnal antiga, assim
se pode chama r urgência em Medicina Legal. d en ominada - n ão muito propriam ente - por n ão ser recen -
606 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

te, são apontados como vestígios a rotura cicatrizada do hí-


men, a gravidez e a contaminação por determinadas doenças
sexualmente transmissíveis.
A demonstração pericial da conjunção carnal será estu-
dada aqui essencialmente no que diz respeito aos procedi-
mentos de clínica médico-legal empregados e aos métodos
de coleta de vestígios para exames laboratoriais subsidiários.
Detalhes sobre as técnicas laboratoriais utilizadas na análise
dos vestígios coletados fogem à temática deste capítulo.
Embora, como se sabe, o Código Civil tenha apagado de
seu texto o vocábulo defloramento, e o Código Penal não mais
se refira à expressão mulher virgem em nenhum de seus dispo-
sitivos, o estudo do hímen - a himenologia - continua mere-
cendo destaque em Medicina Legal porque as características
himenais podem contribuir decisivamente para certas con-
clusões em perícias médico-legais relacionadas à conjunção
carnal, elemento constitutivo de diversas figuras criminais.
O hímen é um pequeno diafragma localizado na extre-
midade inferior da vagina, servindo de limite anatômico en-
tre esta e o vestíbulo vaginal, que é componente da genitália Figura 27 .4. Representação esquemática de um hímen.
externa feminina - a vulva, o pudendum. Até o final do de-
senvolvimento fetal, a luz da vagina é isolada por completo
do meio exterior pelo hímen, que geralmente só se fenes-
da orla em pontos distintos, assumindo o aspecto de
tra durante o período perinatal, passando a constituir um
crescente mais ou menos regular.
parcial fechamento ao redor do introito vaginal. No geral o
Hímen denticulado - Caracteriza-se pela borda livre
hímen tem abertura única - o óstio himenal - , de localização
recortada em múltiplos d entículos ou lóbulos. É
central, que, no entanto, pode existir em número maior ou
também deno minado hímen lobulado e corolifor-
até mesmo não existir, no caso de não acontecer a natural
me (Fig. 27.6 ).
fenestração. O hímen é variável no tamanho e na forma, sen-
Hímen fimbriado - Deixa ver diminuta franja na bor-
do mais frequentemente anelar ou em crescente. A ausência
da livre. Por isso é também conhecido como franjado
congênita do hímen é raridade, duvidada po r alguns.
ou rendilhado.
Estruturalmente, o hímen não é mais que uma plicatura
Hímen cordiforme - Lembra, o óstio, a forma de um
mucosa. É um folheto mucoso duplo, entremeado por estro-
coração estilizado, que, em realidade resulta da ocor-
ma conjuntivo contendo delicadas fibras elásticas e coláge-
rência de duas chanfraduras simétricas, uma em cada
nas, em maior ou menor quantidade, e inervação e vasculari-
quadrante anterior.
zação mais ou menos ricas, o que responderá pela variada in-
Hímen helicoide - Descreve a orla, uma espira, o que
tensidade de dor e de sangramento por ocasião de sua rotura.
Tem o hímen uma face vaginal ou interna, côncava, e faz não coincidirem os seus extremos.
uma face vulvar ou externa, convexa. Hímen apendicular - Provido de minúsculo apêndice
Na anatomia do hímen reconhecem-se a borda de inser- que se projeta da borda livre.
ção, que se relaciona com as paredes vaginais, a borda livre, Hímen labiado - Consiste numa orla provida de dois
que delimita o óstio, a orla, situada entre as bordas livre e de entalhes que aparentemente a dividem em dois lábios
inserção, e o óstio (Fig. 27.4). laterais ou um anterior e outro posterior.
Na literatura especializada existem inúmeras classifica- Hímen septado - Possui dois óstios, simétricos ou
ções para os hímens, mas de pouca utilidade prática. É inte- não, separados um do outro por um delgado sep-
ressante, pela objetividade e riqueza de detalhes, a classifica- to - mais propriamente uma ponte ou trabécula - ,
ção apresentada por Afranio Peixoto 12 • de disposição longitudinal, transver sa ou oblíqua. É
De acordo com a forma da orla ou do óstio - ou óstios -, também d enominado hímen trabeculado ou nastri-
os hímens recebem denominações especiais (Fig. 27.5). Re- forme (Fig. 27.7) .
lacionam-se a seguir as formas mais conhecidas, com suas Hímen triperfurado - Exibe três óstios diminutos.
respectivas características. Hímen cribriforme - Ostenta múltiplos ostíolos, à se-
Hímen anelar - Mostra óstio único, central ou para- melhança de crivo ou peneira.
central, e a orla em forma de anel, com largura mais Hímen imperfurado- Desprovido de óstio. A orla, que
ou menos homogênea. não se fenestrou naturalmente, tampona por com-
Hímen semilunar ou falciforme - Tem óstio único e pleto o meato vaginal, resultando na atresia da vagi-
excêntrico, o que faz variar acentuadamente a largura na. O hímen imperfurado tem pequena ocorrência.
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 607

a b c d

e g h

Figura 27 .5. Tipos de hímen mais conhecidos: a) anelar; b) semilunar; c) denticulado; d) fimbriado, e) cordiforme; f) helicóide; g) apendicular;
h) labiado; i) septado; j) triperfurado; k) cribriforme; 1) imperfurado.

Tive a oportunidade de ver apenas dois (Fig. 27.8). Para alcançar a vagina, o pénis precisa transpor o hímen,
Se não for diagnosticado logo após o nascimento, ge- que, com essa transposição, em geral, rompe-se. A rotura do
r almente passa despercebido até a menarca, quando, hímen é habitualmente uma solução de continuidade radial, a
constituindo obstáculo à eliminação das primeiras partir da borda livre. Pode ser única, dupla ou, menos comum,
perdas menstruais, gera o hematocolpo, simples ou múltipla. Quando se estende por toda a orla e atinge a borda
associado ao hematom étrio e até ao hematossalpinge. de inserção, a rotura é dita completa; quando não alcança a
Para resolvê-lo é indicada a himenotomia, uma inter- borda de inserção, é denominada incompleta (Fig. 27.9).
venção cirúrgica de pequeno porte, para viabilizar o Para a realização do exam e, a pericianda deve ser colo-
necessário escoamento do fluxo catamenial. cada em posição ginecológica - que expõe de forma mais
608 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

Figura 27 .6. Hímen denticulado, também denominado lobulado e Figura 27 .8. Hímen imperfurado, em adolescente menstruada. Imagem
coroliforme. Notar o aspecto lobulado da borda livre. cedida gentilmente ao autor pela Dra. Ana Maria Rodrigues.

Rotura
completa

Figura 27. 9. Representação esquemática de roturas em um hímen.


Figura 27. 7. Hímen septado ou trabeculado ou nastriforme, em mane-
quim pertencente ao Centro de Estudos do Instituto Médico-Legal Afranio
Peixoto. Notar a delicada trabécula que une pontos opostos da borda livre.
flexio nado. Em crian ças, é preferível a posição genupeitoral
ou de quatro apoios.
ampla a genitália externa - , deitada em decúbito dorsal, Com os dedos polegar e médio, preferencialmente, de
com as regiões glúteas colocadas sobre a borda anterior da ambas as mãos, são pinçadas as porções médias dos lábios
mesa de exame. Apoiam-se os pés em estribos o u então as genitais, fazendo-se leve tração nos sentidos distal e lateral da
pregas poplíteas em coxins fixados a perneiras reguláveis, vagina. Em geral, com essa manobra, o hímen apresenta-se
fazendo com que as pernas fiquem fletidas sobre as coxas bem distendido e é satisfatoriamente examinável em suas ca-
e estas, em abdução, sobre o abdómen. Na impossibilidade racterísticas morfológicas e possíveis lesões traumáticas. Os
de ser conseguida essa posição, o exame pode ser realizado, dedos indicadores do examinador, que ficaram livres, servem
com mais dificuldade, estando a mulher em decúbito lateral de afastador para pelos ou eventuais excessos labiais. A con-
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 609

tração voluntária e momentânea da prensa abdominal por todas as investigações, porquanto nem todas as perícias de
parte da pericianda pode facilitar o exame do hímen. conjunção carnal se reportam ao primeiro episódio deste
Uma fina haste flexível com extremidade cotonada é acontecimento. Estupro não é crime que vitima exclusiva-
bastante útil para a exploração da margem e da borda livre mente mulher com hímen íntegro e rompível.
do hímen e das roturas que ele apresente, desfazendo do- A principal causa de rotura do hímen é, sem dúvida,
bras, distendendo retalhos, propiciando vislumbrar outras a cópula vaginal. Mas é mister não esquecer que, ainda
peculiaridades. que rarissimamente, pode a rotura da membrana resultar
Boa iluminação é fundamental neste exame. Há quem de causas outras, como, por exemplo, traumas acidentais,
preconize mesmo a luz do dia. Não é absolutamente necessá- agressões físicas, práticas masturbatórias, procedimentos
rio o emprego do colposcópio, mas a sua utilização é imensa- médicos. Acrescenta Carlos Lopes 15 que a lesão himenal
mente vantajosa sobre o exame à vista desarmada. Uma boa pode até ser devida a processos ulcerosos ou gangrenosos,
lupa pode suprir as necessidades. É também de grande valia sobretudo em criança.
uma fonte de luz ultravioleta, para a observação de determi- Toda cautela precisa ter o perito-legista para não con-
nadas minúcias. fundir roturas com entalhes. Aquelas, consideradas de causa
Em hipótese alguma deve ser realizado o toque vaginal traumática; estes, de origem congênita. Os entalhes, também
durante o exame pericial, conforme adverte Hermes de Al- denominados chanfraduras e comissuras, são irregularida-
cântara 13, tampouco ser inserido espéculo ou qualquer outro des estruturais, naturais, por vezes muito semelhantes às ro-
instrumento volumoso na cavidade vaginal, para que não re- turas. Eles aparecem como pequenas reentrâncias ou fendas
caia sobre o examinador a suspeita de ter ele próprio, com seu na borda livre da orla, e resultam não de ação traumática,
exame, produzido as lesões que descreve como encontradas. mas de atípico resultado da fenestração natural do hímen.
Da rotura podem resultar dor e sangramento, em geral Algumas características assumem importância valiosa no
mínimos, mas que, às vezes, assumem proporções maiores, diagnóstico diferencial entre rotura, traumática, e entalhe,
chegando a requerer cuidados médicos. congênito. De modo resumido, pode-se dizer que as roturas
Se recentes, as roturas podem apresentar retalhos san- se localizam preferencialmente nas partes mais delgadas do
grantes, com hiperemia, edema, equimose e exsudato fibri- hímen, enquanto os entalhes se localizam indiferentemen-
noso o u fibrinopurulento, no caso de infecção local. Rotura te em partes delgadas ou espessas; que as roturas costumam
recente é, portanto, aquela em que ainda não se concluiu o ser profundas e geralmente atingem a borda de inserção, en-
processo reparativo. quanto os entalhes não costumam ser profundos e não atin-
Concluído o processo natural de reparação por cicatri- gem, geralmente, a borda de inserção; que as roturas costu-
zação, as bordas da rotura mostram-se reepitelizadas e com mam ter as bordas irregulares, mais espessas e recobertas por
tonalidade rósea, inicialmente, e esbranquiçada, mais tardia- tecido cicatricial esbranquiçado, enquanto os entalhes têm
mente, sem os sinais de recentidade. É esse o aspecto geral as bordas regulares, sem espessam ento e revestidas por epi-
da rotura cicatrizada ou consolidada, em contrapartida ao da télio igual ao que reveste o restante do hímen ; que as roturas
rotura não cicatrizada ou não consolidada ou rotura recente. tendem a apresentar ângulos agudos, enquanto os entalhes,
Não é bem aceita a expressão rotura antiga, porquanto tem- ân gulos rombos; que as roturas se dispõem ao acaso, sem
poralmente imprecisa. simetria, enquanto os entalhes se dispõem muito frequen-
É conveniente lembrar que no processo natural de repa - temente de modo simétrico; que as roturas permitem, quase
ração do hímen o que verdadeiramente se dá não é a restitu- sempre, a coaptação forçada das suas bordas, enquanto os
tio ad in tegrum da membrana. Não ocorre a confrontação ou entalhes dificilmente.
a soldadura dos retalhos himenais, mas tão só a cicatrização Nem sempre, porém, o diagnóstico diferen cial entre ro-
de suas bordas ementas. tura e entalhe é tarefa tão fácil, e esses critérios clássicos e
O tempo necessário para a cicatrização da rotura é muito teóricos apresentados podem não ser suficientes para des-
variável. Encontram-se na literatura relatos de observações fazer as dúvidas. Surge aí uma boa indicação para a col-
que variam de 3 a 30 dias. Afranio Peixoto 12 refere um caso posco pia, que poderá, com seus recursos de ampliação e de
de cicatrização completada em 21 dias, observado no Ser- filtros luminosos, evidenciar minúcias que o olho nu não
viço Médico-legal do Rio de Janeiro. Se boas as condições consegue ver.
subsequentes de higiene, é razoável dizer que a cicatrização A luz ultravioleta filtrada - lâmpada de Wood - também
das roturas do hímen se completa em 1 a 2 semanas, após o pode ajudar na difícil diferenciação. Sob essa luz, as rotu-
que não é mais possível reconhecer, a olho desarmado, os si- ras cicatrizadas de pouco tempo, ainda bem vascularizadas,
nais indicativos de recentidade. Processos infecciosos podem apresentam uma to nalidade arroxeada, idêntica à que apre-
dilatar esse tempo. Como fala Vanrell14, cicatrizada, a ro tura sentam as roturas em fase de cicatrização, em razão do edema
não é m ais recente. E, nesses casos, é impossível para o perito e da congestão e da maior vascularização, enquanto as rotu-
precisar o tempo do rompimento. ras cicatrizadas de mais tempo, com vascularização reduzida
Apesar de a rotura não cicatrizada do hímen ser consi- e mais fibrosas, mostram uma tonalidade amarelo-nacarada.
derada, de fato, um dos vestígios mais fortes de conjunção Já os entalhes não apresentam essas modificações, conser-
carnal, não é possível contar com esse dado promissor em vando sempre o mesmo aspecto do restante da membrana.
610 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

Parece haver uma maior incidência de roturas nos qua- os atributos do membro viril, já que o mesmo hímen pode
drantes posteriores do hímen, com explicações as mais varia- ser complacente para um pênis e incomplacente para outro.
das. Diversos são os métodos empregados para referir a loca- Não é simplório, então, ainda que possa parecer, o reco-
lização das roturas na orla. Entre eles, os mais conhecidos são nhecimento da complacência ou da incomplacência de um
o método cronométrico de Lacassagne e o método gonio- hímen. Surgida a dúvida, não deve o perito-legista hesitar
métrico de Oscar Freire. O primeiro adota como referência em declarar a impossibilidade de conclusão diagnóstica. Na
os marcos horários de um mostrador de relógio analógico, análise de 1.106 laudos de exame de corpo de delito de con-
representado sobre a figura do hímen; o segundo, partindo junção carnal realizados no Instituto Médico-legal do Rio de
do centro do hímen, divide-o em graus angulares. Nenhum Janeiro, Messias, Lopes, Torres Filho et ai. 16 encontraram a
desses métodos representa efetivamente uma utilidade prá- descrição de complacência himenal em 30,83% deles.
tica em perícias médico-legais. Modernamente, existe uma Com a habitualidade da conjunção carnal e, principal-
tendência a preferir o critério que se refere apenas ao qua- mente, com o parto transvaginal - que promove o esgarça-
drante em que está situada a rotura, por ser menos prolixo, mento do hímen -, os retalhos remanescentes sofrem signi-
mas o suficientemente preciso. Nele, considerado o hímen fica tiva retração, ficando reduzidos a pequenas cristas ou tu-
em posição anatómica, próxima à horizontalidade, são reco- bérculos distribuídos ao longo da linha de inserção himenal,
nhecidos quatro quadrantes: anteriores, direito e esquerdo, e conhecidos como carúnculas mirtiformes, a que consagrado
posteriores, direito e esquerdo (Fig. 27.10). professor, em momento pouco feliz, batizou de "calos do ofí-
Para sanar possíveis dúvidas futuras, as lesões e outras ca- cio''. A expressão carúnculas mirtiformes deve-se ao aspecto
racterísticas do hímen examinado devem ser representadas arredondado e à dimensão de tais tubérculos, que os tornam
em esquemas ou, sempre que possível, fotografadas. semelhantes, na observação de alguns, à baga da mirta, plan-
Nem sempre, porém, o hímen se rompe com a conjuga- ta do gênero Myrtus.
ção carnal. Em razão de características peculiares, é possível Além das lesões do hímen, eventualmente presentes em
que o hímen tolere a penetração do pênis sem se romper. casos de conjunção carnal, é possível observar outras lesões
Quando isso ocorre, o hímen é denominado complacente ou que falam em favor de sua ocorrência, mormente se pratica-
tolerante ou transigente e, para fins periciais, não fornece da com violência. Essas outras lesões podem estar localizadas
subsídios ao diagnóstico da conjunção carnal. em áreas genitais, paragenitais e extragenitais. Equimoses e
Vários são os fatores que concorrem para a complacên- escoriações são algumas delas. Lesões de natureza traumática
cia do hímen. A exiguidade da orla, a amplitude do óstio, a nos lábios maiores e menores, nas comissuras labiais ante-
grande elasticidade da membrana e a boa lubrificação geni- rior e posterior, no clitó ris, no prepúcio do clitó ris e na fossa
tal, natural o u artificial, podem ser apontados como alguns. vestibular falam ainda mais alto.
Mas como o concúbito é um ato a dois, uma interação física A presença de sêm en na vagina pode ser demo nstrada
entre continente e conteúdo, não devem ser deixados de lado através da detecção de diversos componentes seminais ou
marcadores espermáticos, dos quais os mais comumente
buscados são o espermatozoide, a fosfatase ácida prostática,
e o antígeno prostático-específico.
De todos os marcadores conhecidos do esperma, o de
mais simples detecção é o espermatozoide, elemento figu-
rado de fácil reconhecimento por microscopia óptica. Sua
observação pode ser realizada a fresco, em gota de líquido
vaginal montada entre lâmina e lamínula, o u em esfregaço
obtido de material vaginal, fixado em lâmina e corado por
técnicas várias. Na cavidade vaginal, a sobrevida dos esper-
matozoides é de poucas horas, variando em função das hos-
tilidades químicas e biológicas ambientais. Colhidos a tem-
po, ainda podem ser vistos, a fresco, com movimentos. Mas
mortos e corados podem ser identificados, ainda que sem a
cauda, até alguns dias após a deposição. Anne Davies e Eli-
zabeth Wilson 17 os encontraram em esfregaços colhidos até
6 dias após o último coito. De acordo com Rolim e Sawaya 18,
no Instituto Médico-legal de Curitiba, onde são realizadas
em média 500 análises em casos de estupro po r ano, a posi-
tivação para espermatozoides acontece em sua maioria nos
casos em que a coleta é efetuada em períodos inferiores a
48 horas após o crime. Starostin e Aizberg 19 conseguiram re-
Figura 27.10. Hímen com um entalhe em cada quadrante anterior e conhecer espermatozoides na vagina de cadáver até 77 dias
uma rotura cicatrizada no quadrante posterior direito. após a mo rte. Não é necessário visualizar uma miríade de
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 611

espermatozoides para ter convencimento conclusivo de sua se ácida prostática -, e a secreção que produz, constituin-
presença. O achado de uma única célula sexual masculina já do aproximadamente 60% em volume do plasma seminal,
consolida prova irrefutável. A coleta de material pelo modo leva consigo teores tão altos da enzima que podem atingir
de lavado vaginal não é aconselhada por implicar em resul- as 8.000 unidades King-Armstrong/mL. Com isso, a elevada
tados bem menos promissores. atividade da fosfatase ácida no material coletado da vagina
Na dependência do estado de preservação citológica, os passou a ser interpretada como um indicativo inilidível da
espermatozoides colhidos podem ser submetidos a tipagem presença de sêmen. A atividade da enzima em material cole-
sorológica, útil para o confronto com o grupo sanguíneo do tado da vagina é mais bem percebida até 1 dia após a cópula,
indivíduo que supostamente os originou. É um bom método mas Davies e Wilson 17 dizem que pode ser detectada até 3
pericial de exclusão. dias após o coito vaginal.
Modernamente, porém, nenhum desses métodos isola- O antígeno prostático específico (PSA) é uma glicoprote-
damente tem recebido valor suficiente para sustentar a con- ína do grupo das calicreínas, com peso molecular próximo de
denação de um homem indiciado por estupro, se não acom- 30.000 - daí ser também conhecido como p30 -, identificado
panhado de análise do DNA que permita relacionar o sêmen primeiramente no plasma seminal humano e de início deno-
encontrado com o perfil genético do indigitado agente do minado seminoproteína, passando então a ser usado como
crime. Por isso, nos dias de hoje não se concebe que a perícia marcador de sêmen em vítimas de estupro. O PSA é pro-
médico-legal possa produzir uma prova robusta de conjun- duzido quase que exclusivamente pelo epitélio glandular da
ção carnal, com vista à apuração do crime de estupro, que próstata, de onde é excretado no lúmen dos <lutos prostáticos
não contemple a análise do DNA eventualmente encontrado para misturar-se ao plasma seminal, mas, ensinam Giuseppe
no material recolhido da cavidade vaginal da periciada. O Figliuolo e Valdemar Ortiz20, também é produzido por focos
material genético masculino pode ser extraído não a penas de metastáticos de câncer da próstata. A presença do PSA no
espermatozoides, mas também de outras células masculinas.
plasma seminal é 10 bilhões de vezes maior que no soro do
Células epiteliais em que sejam identificados cromossomos Y
mesmo indivíduo, mas a mulher também pode apresentá-lo
ou até suas regiões geneticamente específicas - SRY (sex
em casos de câncer do endométrio, do pâncreas e dos <lu-
determining region ofY) ou TDF (testis determining factor) -
tos mamários, nas áreas restritas ao tumor, em quantidades
constituem excelente fonte desse material genético.
bem inferiores, como informa Rita de Carvalho 21• Para efei-
No Estado do Rio de Janeiro, durante o ano de 2002, a
tos práticos, a detecção do PSA em altos teores no material
Academia Estadual de Polícia Sílvio Terra formou um con-
coletado da vagina representa indicativo da presença de sê-
tingente de peritos - que tive a oportunidade de integrar -
men, com significado pericial idêntico ao da atividade da
no Curso de Especialização em Pesquisa e Análise Forense do
fosfatase ácida.
DNA; e desde 2005, com a inauguração do Laboratório de
No exame de 28 1 amostras de material coletado para pes-
Ensino, Pesquisa e Perícias em Genética Forense, vinculado
quisa de sêmen em supostas vítimas de crimes sexuais, He-
ao Departamento Geral de Polícia Técnico-científica, já é
liana Moradillo, Katia Ramos e Luís Carlos Galvão 22 encon-
possível se contar com a análise do DNA para provas em pe-
traram 14,6% delas positivas para espermatozoide e 34,9%
rícia médico-legal.
Como prova pericial, os marcadores químicos do sêmen positivas para PSA, o que os levaram a recomendar a inclu-
têm recebido o mesmo crédito que a presença física do es- são do método de pesquisa de sêmen através da presença do
permatozoide. São vantajosos porque permitem evidenciar PSA na rotina dos laboratórios forenses.
a presença de sêmen mesmo no caso de práticas sexuais com Tão valorizadas em outros tempos e ainda mencionadas
indivíduos azoospérmicos em razão de processo patológico na literatura médico-legal clássica, as reações microcristalo-
ou de esterilização cirúrgica, e ainda nas situações em que fa- gráficas encontram-se em franco desuso. Ficaram bastante
lhe a identificação de espermatozoides, por erro de observa- conhecidas a reação de Florence, a reação de Baecchi e a rea-
ção, por autólise ou por contaminação bacteriana. Mas essas ção de Barbério. Mas existem outras, como a de Bokarius, a
provas apresentam desvantagens em relação a especificidade, de Dominicis, a de Lecha Marzo, a de Niederland. Para a rea-
estabilidade e sensibilidade. Os principais marcadores quí- ção de Florence, coloca-se, entre lâmina e lamínula, uma gota
micos do sêmen - fosfatase ácida prostática, e antígeno pros- do material suspeito com uma gota do reativo de Florence,
tático-específico - são assim considerados por estarem pre- que consiste em uma solução aquosa de iodo metálico e iode-
sentes no plasma seminal em níveis significativamente mais to de potássio. O objetivo da reação é demonstrar a presença,
altos que em outros fluidos orgânicos ou fontes naturais. na amostra testada, da colina livre, que surge no plasma se-
Fosfatase ácida é o nome dado a qualquer enzima capaz minal, logo depois da ejaculação, como resultado da hidrólise
de hidrolisar fosfatos orgânicos em meio ácido. É encontrada enzimática da fosforilcolina, secretada nas vesículas seminais,
em diversos tecidos humanos, como fígado, baço, rins, in- pela ação da fosfatase ácida prostática. O resultado é positivo
testinos, medula óssea etc. e, por consequência, em secre- com o surgimento de microcristais de peri-iodato de colina,
ções, mas em teores muito baixos, que habitualmente não romboédricos, de tonalidade castanho-avermelhada. Deixada
ultrapassam as 20 unidades King-Armstrong/mL. A próstata, a lâmina em repouso, é possível perceber, em alguns casos, a
porém, é extremamente rica em fosfatase ácida - a fosfata- reação de Baecchi, caracterizada pelo surgimento, da periferia
612 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

para o centro da lâmina, de raros microcristais arredondados Há quem considere, com afinco, a contaminação por de-
ou hexagonais, de tonalidade mais escura. terminadas doenças sexualmente transmissíveis como um
Na reação de Barbério, o reagente é uma solução, aquosa vestígio de conjunção carnal, apontando como exemplo a sí-
ou em glicerina, saturada de ácido pícrico. Positiva o teste filis, quando tem sua lesão inicial - o cancro de inoculação ou
o aparecimento de microcristais espiculados de picrato de cancro duro o u protossifiloma - localizada no colo do útero
espermina, de colorido amarelado. ou na vagina. Essa lesão tem início cerca de 2 a 3 semanas
A reação de Bokarius utiliza solução de ácido fosfotúngs- após a contaminação, no ponto de penetração do Treponema
tico e positiva-se com o surgimento de microcristais com pallidum. É geralmente única, discreta, papulosa e indolor;
forma semilunar. A reação de Dominicis emprega solução em poucos dias torna-se exulcerada, sem coleção purulenta,
aquosa saturada de tribrometo de ouro e positiva-se com endurecida, com a base lisa e fortemente avermelhada, e as
a formação de microcristais vermelho-granada, quadrados bordas discretamente elevadas; desaparece espontaneamente
o u cruciformes. A reação de Lecha Marzo lança mão de so- ao fim de 1 a 2 meses, sem reliquat, na maioria dos casos. Na
lução de ácido fosfomolíbdico e é positivada com o apare- prática, entretanto, é elemento de diagnóstico extremamente
cimento de microcristais laminares losângicos, hexagonais difícil, senão impossível, a levar em conta os limites operacio-
o u ovoides, de to nalidade amarelada clara. A reação de Nie- nais da perícia médico-legal ainda reinantes entre nós. Ade-
derland usa solução de ácido sulfúrico a 3% e positiva-se mais, é opo rtuno conhecer o que pontifica sobre o assunto
com a visualização de microcristais típicos de sulfato ácido Mauro Passos 23, com sua vastíssima experiência: "Posso con-
de cálcio. tar nos dedos as vezes que consegui determinar com clareza
Nenhuma dessas provas microcristalográficas, porém, é a lesão inicial de cancro duro em paciente mulher. Em mais
específica para sêmen, mas apenas de probabilidade; podem de 2.000 casos de sífilis já acompanhados, em apenas quatro
ocorrer também com pus, saliva, leite, muco uterino, outros teria confiança para afirmar que era cancro duro''.
fluidos orgânicos e até com certos sucos vegetais. A bem da verdade, cumpre dizer que nenhum dos sinais
Quando a conjunção carnal é praticada com o uso de considerados como vestígio de conjunção carnal, nem mes-
condom, o que não é comum em casos de estupro, muito cer- mo o mais forte deles, confere absoluta certeza de que ocor-
tamente serão infrutíferas as pesquisas dos elementos indi- reu a cópula vaginal. No máximo, o que esses vestígios per-
cativos da presença de sêm en na vagina. Ainda assim, é pos- mitem é sugerir, com maior ou menor força, a possibilidade
sível encontrar, na cavidade vaginal, vestígios indiretos que de ela ter ocorrido; autorizam, portanto, tão somente uma
podem ser valiosos para a demonstração pericial do coito, presunção, se não juris et de jure nem juris tantum - por-
como, por exemplo, fragmentos do preservativo eventual- que não estabelecida pela lei-, uma presunção comum, uma
mente rompido durante a cópula e partículas de lubrifican- praesumptio hominis.
tes que tenham sido nele aplicados, como talco, silicone e Eduardo Alvarado 24 enfatiza a importância do exame pe-
outros produtos. Em brilhante aula de sexologia forense, a ricial do autor, em casos de crime sexual, apresentando uma
que tive a felicidade de assistir, Jorge Vanrell, expert na ma- rotina a ser seguida durante o procedimento. Em nosso meio,
téria, apresentou um caso, d ocumentado fo tograficamente, embora não seja comum, algumas vezes são conduzidos para
em que a demonstração técnica da conjunção carnal fora fei- perícia médico-legal, não somente em caso de estupro, mas
ta com base em vestígio indireto, representado por um pelo também de outros crimes sexuais, os supostos agentes. Nes-
íntimo do homem, encontrado no fundo de saco vaginal da sas situações, deve o perito-legista atuar sempre se atendo ao
mulher examinada. princípio de que nemo tenetur se detegere, para não incorrer
A demonstração pericial da conjunção carnal antiga fica na transposição de direitos e garantias fundamentais cristali-
restrita ao diagnóstico da rotura cicatrizada do hímen, da zados em nosso o rdenamento jurídico.
gravidez e da contaminação por determinadas doenças se-
xualmente transmissíveis, consider ados seus vestígios.
Quanto à presença da gravidez como vestígio de con- • DEMONSTRAÇÃO PERICIAL DE OUTROS
junção carnal antiga - porque logicamente não pode ser ATOS LIBIDINOSO$
recente - , valem algumas ponderações. Vejo com reserva
sua admissibilidade. A gravidez per se não pode constituir Aqui, a perícia médico-legal visa dem onstrar essencial-
vestígio de conjunção carnal quando, por exemplo, o hímen mente os vestígios de atos libidinosos diversos da conjunção
íntegro e incomplacente gara nte a absoluta impossibilidade carnal, tanto no vivo quanto no cadáver. Desses vestígios, o
de ter havido coito vaginal. Do contrário, apenas para ilus- mais valioso é, sem dúvida, a presença de sêmen - quando
trar a incongruência, uma mulher que tivesse interrompida a for o caso - em partes corpo rais da vítima que não a cavida-
gravidez, porém preservada a integridade do hímen incom- de vaginal, o u ainda nas vestes que usava por ocasião do fato
placente, retornaria, em possível outro exame médico-legal, que suscitou a investigação.
a ensejar a conclusão pericial de nun ca ter tido conjunção A demonstração da presença de sêm en é feita, em linhas
carnal, com base nos postulad os doutrinários. E de nada gerais, pelas mesmas técnicas empregadas para demo nstrá-la
mais prestaria esse tipo de perícia, porque contaminada de em caso de conjunção carnal, diferindo, obviamente, quanto
irreparável descrédito. ao local da coleta.
CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial • 613

O ato libidinoso diverso da conjunção carnal para cuja


dem onstração a perícia médico-legal costuma ser mais re-
quisitada é a cópula anal, não só por ser o m ais frequente-
mente alegad o pelas vítimas desse tipo de atentad o sexual,
mas também por ser o de dem onstração m ais viável, ante
as características dos vestígios que pode deixar. Os vestígios
mais fo rtes de coito anal são a presença de sêmen no canal
anal o u no reto e as lesões do ânus ou da região anal.
Para o exame anal adequado, a posição ideal do perician-
do é a genupeitoral ou de quatro apoios, também denomi-
nada - não muito convenientemente - de posição de prece
maometana. Na impossibilidade desse posicionamento, o
decúbito lateral flexionado pode ser uma boa alternativa.
As condições ambientais e os recursos materiais emprega-
dos devem ser idênticos, no que couber, aos indicados par a
o exame vaginal. O afastamento das nádegas do periciando,
realizado pelo auxiliar d o exame, facilita a inspeção anal,
estática e dinâmica, e a coleta, com haste flexível cotonada,
do material necessário para as pesquisas subsidiárias. Há
quem recomende a aplicação de proctoscópio, a realização Figura 27 .11. Estupro qualificado por morte. Às múltiplas fissuras
de toque retal para avaliar a tonicidade esfincteriana e até anais, somavam-se lesões do reto que determinaram copiosa hemorra-
a tono metria instrumental do esfíncter anal. São recursos gia causadora da morte.
inegavelmente promissores no diagnóstico clínico, mas não
encontram aceitação pacífica em perícia médico-legal, prin-
cipalmente pela do r que ocasionam e pelo desconfo rto que Merecem comentário especial as fissuras ou rágades
geralmente pro duzem, e por serem consider ados procedi- anais, soluções de continuidade da cobertura epitelial do
mentos invasivos, ainda que minimamente, com suas con- ânus e do canal anal, que deixam expostos os planos tissu-
traindicações e decorrentes inconveniências periciais. lares subjacentes. Q uando decorrentes de trauma por coito
Em condições no rmais e de repouso o ânus fica reduzido anal recente soem ter a fo rma linear, a orientação radial,
a um ponto ou uma pequena linha antero posterio r, em ra- as bordas bem definidas, o número variável e a localização
zão do estado de variável contração tô nica do esfíncter anal incerta, em qualquer quad rante. Essas características são
durante as ho ras de vigília. Esse tônus esfincteriano torna-se significativas na diferenciação - que nem sempre encontrei
mínimo durante o sono e os estados narcóticos, aumenta facilidade de fazer ao exame pericial - com lesões anais crô-
com a elevação da pressão intra-abdominal, diminui duran- nicas, resultantes de outras causas, como doenças prurigi-
te o esforço par a defecar e pode ser controlado voluntaria- nosas, trauma por colisão de fezes endurecidas e calibrosas,
mente. Do centro para a margem do ânus partem pregas ra- disfunções do complexo esfincteriano, doenças anorretais
diais, em número variável, que facilitam a distensão necessá- inflamatórias e outros processos patológicos. Nesses casos, a
ria para a defecação. A m argem do ânus é revestida por pele lesão, crônica, costuma ser única, ulcerad a, mais larga, com
delgada, lisa, de tonalidade vermelho-violácea, úmida e des- bordas endurecidas, situada comumente no canal anal, em
provida de pelos. Ela se continua, para dentro, com a mucosa geral na linha média, mais frequentemente anterior, muito
do canal anal, da qual é limitada pela junção cutaneomucosa. dolorosa, incidente mais em adultos jovens e igualmente em
Por fora, a margem anal se continua com a pele do restante qualquer sexo, confo rme ensina Julio Cesar Santos Jr. 25• Mas
da região anal, que dela se distingue fundamentalmente po r não se pode afastar a hipótese da existência de lesão causada
apresentar pelos, notadamente no homem . pelo coito anal em pessoa com lesão prévia do ânus devida a
Em casos de coito anal, é possível notar equimose e es- fator etiológico diverso, o que decerto será uma dificuldade
coriação, às vezes sutis, na região anal. No ânus, é possível a mais no diagnóstico.
observar, além de edem a e congestão, equimose, escoriação, Existem posicionam entos conflitantes em to rno da con-
hipo tonia, dilatação, e fissuras ou rágades, tudo na depen- ceituação e da causa das rágades ou fissuras. Alguns autores
dência do tempo decorrido entre o fato que motivou a perí- dizem que são lesões distintas; outros contra dizem. Con-
cia e o exame de corpo de delito. Não freq uentemente, pode sultado a respeito, o professor doutor Julio Cesar Santos Jr.,
existir lesão mais grave, com o comprometimento de planos livre-docente em proctologia e reno mado especialista em
anatômicos mais profundos, chegando até à laceração da coloproctologia, explicou com meridiana clareza que a dife-
musculatura esfincteriana e à rotura completa do reto, com rença entre os termos fissura e rágade é exclusivamente eti-
subsequente hemo rragia abdo minal profusa, como em um m ológica, não de significado, a ponto de criar diferenciação
caso que pude ver recentemente em necropsia médico-legal médica, podendo ambos ser indifere ntemente empregados.
(Fig. 27. 11 ). Disse que o termo fissura ficou m ais consagrado pelo uso,
614 • CAPITULO 27 Violência Sexual - Crimes Sexuais - Demonstração Pericial

ectópica - nem outro ato libidinoso capaz de deixa r vestígio


específico, caracteristicamente seu, dem onstrável através de
perícia m édico-legal, fica, infelizmente, a sexologia fo rense a
dever melhor contribuição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

!. Bonnet EFP. Medicina Legal. 2• ed. Buenos Aires: Lopez; 1967.


2. França GV. Medicina Legal. 9' ed. Rio de Janeiro: Guanab ara
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8. M irab ete JF, Fabbrini RN. Manual de Direito Penal. 28• ed. São
Figura 27.12. Aspecto do ânus em cadáver. Notar a ampla abertura Paulo: Atlas; 2011 .
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1957.
11. Peixoto A. Sexologia fo rense. Rio de Janeiro: Editora Guanabara;
tanto nas línguas anglo-saxónicas como nas de origem lati- 1933.
na, por ser de pro núncia mais fácil. Advertiu que, do ponto 12. Peixoto A. Medicina Legal. 8• ed. Vol. I. Rio de Jane iro: Francisco
d e vista m édico-legal, o importante não é diferenciar os dois Alves; 1938.
termos, m as a etiologia do processo, de que nenhum deles é 13. Alcântara HR. Perícia Médica Judicial. Rio de Janeiro: Guanabara
d efinidor. E acrescentou que se há alguma polêmica quanto Dois; 1982.
14. Va nrell JP. Sexologia Forense. Montes Claros: Unimontes; 2001 .
a isso nos textos da m edicina fo rense, pod e ser d e origem 15. Lopes CRS. Guia de Perícias Médico-legais. 7• ed. Porto: Ed. Autor;
autora!, por uma questão de erudição pernóstica, nunca re- 1982.
visada. Palavras do especialista. 16. Messias NT, Lopes AS, Torres Filho ES et ai. Complacência himenal.
Desse m odo, é fo rçoso concluir não som ente que fissura e Rev IML GB; 1969. 1: 11-4.
17. Davies A, Wilson E. The persistence o f seminal constituents in the
rágade são denominações diferentes para a mesma lesão, mas
hum an vagina. Forensic Science; 1974. 3:45-55.
também que não há razão para considerar rágade ou fissura 18. Rolim MRS, Sawaya MCT. Análises químicas e imunológicas apli-
anal como lesão característica ou patognom ônica do coito cadas à Medicina Legal. Curitiba: ed. Autoras; 1997.
per anum. Por outro lado, as fiss uras ou rágad es também não 19. Starostin NN, Aizberg IL. Sperm atozoa preservation in the mouth
são lesões obrigatoriamente presentes em casos de coito anal. ad vagina of corpses. Sud Med Ekspert; 1978. 21 :48.
Em favor desse entendimento, Bonnet ' relata que em sua 20. Figliuolo G, O rtiz V O toque retal altera o PSA? Sinopse de Urolo-
gia; 2004. 8(1 ):7- 10.
prática médico-legal encontrou pederastas passivos de lon ga 21. Carvalho RCM. Métodos Diagnósticos Auxiliares em Sexologia Fo-
d ata que tinham o orifício anal absolutamente normal. rense. In: Galvão LCC. Medicina Legal. 2•ed. São Paulo: Santos; 2013.
À necropsia, é necessário m uita cautela para não inter- 22. Moradillo HC, Ramos KP, Galvão LCC. A importância do PSA
pretar equivocad amente como oriundo de violação sexual o (hK3) na Sexologia Forense. Prova Material; 2003 . 1:22-6.
aspecto d e aparente dilatação anal d ecorrente d a atonia post 23. Passos MRL, Almeida Filho GL. Atlas de DST & Diagnóstico Dife-
rencial. Rio de Janeiro: Revinter; 2002.
m ortem dos esfincteres (Fig. 27 .12).
24. Alvarado EV Medicina Legal. 3• ed. San José: Lehmann; 1983.
Por derrad eiro, urge reconhecer que para a apuração 25. Santos Jr JCM. Fissura Anal. Rev bras Coloproct; 2001. 21(2):
d os crimes sexuais que não envolvem có pula - tópica ou 99- 108.
Hygino de C. Hercules

O estudo m édico-legal do casam ento deve começar pela petência para discutir as normas que regerão suas relações,
sua base jurídica. Em primeiro lugar, não há acordo entre os direitos e obrigações daí po r diante2•
juristas quanto ao fato de ser o casamento um contrato ou Na verdade, tanto uma quanto outra corrente admitem a
uma instituição. Os que consideram o casamento um contra- dificuldade de estabelecer a natureza jurídica do casamento.
to o fazem com a ressalva de que se trata de um tipo especial Há, inclusive, aqueles que adotam postura eclética, conside-
de contrato, visto que tem características que o diferenciam rando o casamento um ato complexo no qual a formação
dos demais negócios jurídicos. Segundo Sílvio Rodrigues', tem características contratuais (livre escolha e adesão) e o
o casamento é um tipo de contrato diferente dos outros, conteúdo, forma institucional (conjunto de regras impostas
principalmente por seu interesse social, que faz com que os pelo poder público). Essa complexidade já era apontada por
cônjuges fiquem submetidos a obrigações que não podem diversos autores no início do século XX. Entre nós, Clóvis
renunciar nem de comum acordo. O mesmo autor considera Beviláqua o definia como: "Um contrato bilateral e solene,
o casamento: "Um contrato de Direito de Família que visa a pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvel-
promover a união do ho mem e da mulher, de confo rmidade mente, legitimando suas relações sexuais; estabelecendo a
com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem mais estreita comunhão de vida e de interesses e compro me-
da prole comum e se prestarem mútua assistência". tendo-se a criar e educar a prole que de ambos nascer". Hoje,
Entre as consequências de se considerar o casamento um em nosso país, o casamento pode ser dissolvido pelo divór-
mero contrato está a possibilidade de se fazer o distrato a cio, que não era admitido à época desse grande jurista. Mas
qualquer m omento sem necessidade de qualquer outra fo r- sua conceituação realça o caráter institucional do casamento,
malidade que não o seu registro. Mas, na verdade, ele é tão im- embora com ece dizendo que é um contrato.
portante para a manutenção da paz social que o poder públi- Dados colhidos no site do IBGE3 referentes às décadas
co impõe regras para a sua celebração e para a sua dissolução. de 1993 a 2002 mostram que, no Brasil, o número de casa-
Não sendo cumpridas as exigências legais para a sua realiza- m entos teve peq uena diminuição ao longo do período. Foi
ção, fica ameaçado com a possibilidade de anulação, ou mes- de 747. 151 em1993 e de 710.950 em 2002. Considerando-se
mo fulminado por total nulidade. Veremos, mais adiante, que que houve expansão dem ográfica no m esm o período, tem-se
é nulo se fo r celebr ado contrariando certos impedimentos. que admitir que a redução foi proporcionalmente maior. Pa-
Por causa dessa e de outras consequências, outra corren- rece que os casais estão optando mais pelas uniões livres d o
te de juristas consider a o casamento uma instituição social, vínculo jurídico. É interessante salientar que as mulheres se
por ser um conjunto de regras impostas pelo Estado a que têm casado um pouco mais tarde. Ao se faze r a distribuição
os nubentes aderem por livre vontade, ficando impotentes d os casamentos conforme as faixas etárias das mulheres, no-
para modifi cá-las uma vez completado o ato e feito o registro ta-se que, ao longo da década, houve um aumento da idade
nupcial. As partes são livres para escolher o parceiro e decidir média das noivas. A faixa dos 20 aos 24 anos foi a de maior
se se casam ou não. Mas, tomada a decisão, não têm com- percentual ao longo de toda a década, mas caiu de 36,20% do

615
616 • CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento

to tal em 1993 para 33,41o/o em 2002. Além disso, a segunda lógicos masculinos (túbulos serniníferos) e femininos (folí -
mais frequente era a dos 15 aos 19 anos com 30,89% do total culos de Graaf) . Será unilateral se tiver essa gô nada apenas
em 1993, mas caiu para terceiro lugar em 2002, com 19,52%. de um lado e bilateral, se em ambos. O unilateral tem sem -
Já a faixa dos 25 aos 29 anos passou de 18,86% em 1993 para pre, do outro lado, uma glândula normal. No caso do lateral,
22,28% em 2002, ocupando agora o segundo lugar. Os dados ou alterno, a pessoa tem um ovário e um testículo, um de
revelam, ainda, que os casam entos de mulheres com menos cada lado d o corpo, sendo a fo rma menos comum.
de 15 anos diminuíram de 0,5 1% para 0,16% do total. Bem m ais frequente é o chamado pseudo-hermafroditismo.
À Medicina Legal interessam, basicam ente, as condições Aqui, o indivíduo apresenta gônadas de apenas um dos se-
de natureza médica que podem impedir a realização do ca- xos, com aspecto histológico que pode até ser normal. Nesses
samento ou que possam levar à sua dissolução, anulação ou casos, o que to rna diferente a pessoa é o fato de ser a geni-
nulidade. tália, interna o u externa, de aspecto semelhante à do sexo
Os impedimentos matrimoniais, na vigência do código oposto ao da gônada. Assim, o pseudo-hermafroditismo
de 1916, costumavam ser classificados em dirimentes abso- tem sido classificado com o interno, o u externo; masculino,
lutos, relativos e proibitivos. Os absolutos eram aqueles rela- ou feminino. O sexo gonádico diz se o tipo é feminino ou
cionados nos incisos de I a VI II do artigo 183, que to rnava m masculino; e a genitália anômala, se é interno ou externo.
nulo o casamento. Os relativos, que permitiam a anulação, Se o pseudo-hermafrodita tem gônada masculina e genitá-
estavam elencados nos incisos de IX a XII. Não eram tão im- lia externa feminina, é um do tipo masculino externo. Desse
portantes a ponto de tornar o casamento nulo, uma vez que mod o, podemos encontrar quatro tipos: masculino interno
versavam sobre aspectos particulares que só interessavam aos e externo, e feminino interno e externo. A causa dessas ano-
cônjuges, sem maior repercussão social. Na ausência de ma- malias pode ser genética, ou hormonal. De um modo geral,
nifestação de vontade da parte interessada, o casamento se tais pessoas, ao nascer, recebem um diagnóstico de sexo tro-
convalidava após o prazo indicado para proposição da ação cado e são educadas como se fossem do sexo contrário ao da
de anulação. Os proibitivos, que constavam dos incisos XIII genitália que realmente possuem. Por exemplo, há testículos
a XVI, apenas traziam sanções de ordem patrimonial, com o escondidos (criptorquidia) e genitália externa que tem as-
a separação compulsória dos bens. O novo código 4 passou a pecto semelhante ao feminino.
consider ar impedimentos apenas os absolutos, que aparecem Contudo, o maior problem a vem a ser desencadeado
nos incisos I a VII do artigo 1.521. Os dirimentes relativos fo- por ocasião da puberdade, quando as tendências hormonais
r am colo cad os, juntamente com outras causas de anulação, proporcionam um desenvolvimento som ático contrário ao
no Capítulo VIII, referente à invalidade do casamento. Os esperado. É nessa ocasião que pode haver grande conflito ín-
pro ibitivos, por sua vez, passaram a ser considerados ca usas timo, por exemplo, se a pessoa estiver convivendo em regime
suspensivas e incluídos no Capítulo IV. Procuraremos seguir de internato em colégios, seminários etc. Mas pode aconte-
a nova orientação na discussão desses impedimentos. cer que predo mine o sexo psicológico e ela procure um com-
panheiro do mesmo sexo gonádico para namorar e se casar.
Embora raro, tal fato pode levar à necessidade de perícia de
• IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS determinação de sexo, seja durante o processo de habilitação
(ABSOLUTOS) ao casamento, seja após as núpcias.
O exame de determin ação de sexo deve incluir a ins-
O primeiro que abordaremos, na verdade, não consta do peção geral, em que os peritos vão observa r a presença de
artigo 1.521. Faz parte da própria essência d o conceito de caracteres sexuais secundários masculinos e femininos. En-
casamento aceito por nosso diplo ma legal. Mas precisa ser tre os masculinos, a presença de barba e muitos pelos pelo
exposto aqui em função dos casos que podem ocorrer, a corpo, sinal de Stein (avanço da testa para as partes laterais
bem da verdade raros, mas com efeitos enormes para as do seto r frontal do couro cabeludo ), implantação losangu-
pessoas afetadas direta, ou indiretamente. Trata-se da iden- lar dos pelos pubianos, laringe avantajada ( pomo-de-adão ),
tidade de sexos. desenvolvimento muscular intenso, pred omínio da cintura
Os animais superio res apresentam nítido dimorfismo escapular sobre a pélvica; entre os femininos, fo rmas arre-
sexual, neles incluídos os m amíferos. O que é comum em dondadas do corpo, desenvolvimento das m amas, laringe
certos moluscos, o hermafroditismo, só é encontrado r ara- pequena e voz fina, implantação baixa dos pelos pubianos e
m ente entre aqueles, inclusive no homem . Na espécie huma- dos cabelos, m usculatura m ais delicada. O exame da genitá-
na, são raríssimos os casos de hermafroditismo verdadeiro, ou lia po de mostrar aspecto bem diferenciado num ou noutro
seja, a presença, no m esm o indivíduo, de gônadas masculi- sentido, mas é possível encontrar anom alias como epi o u hi-
nas e femininas. pospádia, criptorquidia no homem, hipertrofi a do clitóris,
O hermafroditismo humano pode ser classificado em atrofia ou atresia vaginal nas mulheres etc. Entre os exames
unilateral, bilateral ou lateral, também chamado de alterno. complementares, ressaltamos a impo rtância da pesquisa da
No unilateral e no bilateral, o indivíduo apresenta gônada cromatin a sexual e o mapeamento dos cromossomas. Pode
mista - o ovotéstis - , na qual encontramos elementos histo- ser necessária a biópsia das gô nadas.
CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento • 617

Os outros impedimentos estão previstos no novo código


1. Ancestral comum
no artigo 1.521:

Art. 1.521. Não podem casar:


I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentes-
[
co natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
lII - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o 2. Irmão 3. Irmão
adotado com quem o foi do adotante;
N - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais cola-
terais, até o terceiro grau;
V - o adotado com o filho do adotante;
r
4. Filho de 2
r
5. Filho de 3
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por ho- Figura 28.1. Esquema dos graus de parentesco. 2 é tio de 5 e é seu
micídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. parente em terceiro grau porque se conta um grau de 2 para 1, e dois
graus de 1 para 5; 4 e 5 são parentes em quarto grau porque se contam
duas gerações de 4 até 1 e mais duas de 1 até 5.
Parentesco
O novo código, como o antigo, manteve a proibição do
casamento de parentes próximos por ter a sociedade moder- nho, conta-se um grau até ao pai do tio, outro até ao irmão
na verdadeiro horror ao incesto. Assim, estão impedidas de do tio e mais um até ao sobrinho que está no ramo colateral
se casar as pessoas que descendem uma das outras, tais como da descendência. A Figura 28.1 esclarece o esquema adotado
pais e filhos, avós e netos. Na medida em que o parentesco no artigo 1.594 do Código Civil.
civil, criado pela adoção, tende a criar vínculos de parentesco É o horror ao incesto a razão da proibição, pois as relações
imitando a natureza, a proibição estende-se ao adotante, que sexuais entre irmãos não são admitidas pelos nossos costu-
fica impedido de desposar o adotado. A convivência sob o mes. Por extensão, há o mesmo sentimento com relação aos
mesmo teto, na condição de dependente da autoridade do irmãos relacionados pelo vínculo civil da adoção, o que está
adotante, estabelece laços de afeto e de intimidade semelhan- previsto no inciso V. O filho do adotante passa a ocupar, na
tes aos resultantes do parentesco natural entre pais e filhos. célula familiar, a posição de irmão do adotado'. A convivência
O enlace entre essas pessoas tem o mesmo caráter incestuo- sob o mesmo teto, por anos a fio, cria laços de amor fraterno
so da relação entre ascendentes e descendentes naturais. Por semelhantes aos que existem entre irmãos verdadeiros.
extensão, o inciso III reza que o cônjuge do adotado fica No que diz respeito aos tios e sobrinhos, a proibição já
impedido com relação ao adotante pelos laços de afinida- existia no código de 1916. Mas, em 194 1, o Decreto 3.200
de criados pelo casamento. É como se fossem sogro e nora, modificou a extensão do impedimento. Passou a permitir
ou sogra e genro, que são impedidos no inciso II. As razões tal união desde que, durante o processo de habilitação, dois
são as mesmas. O casamento cria um vínculo de parentesco médicos, em exame pré-nupcial, atestassem a sanidade física
chamado de afinidade entre os parentes dos dois cônjuges, e mental de ambos e a não existência de defeitos hereditá-
conforme estabelece o artigo 1.595 do novo código: rios capazes de gerar patologias graves na descendência. Sem
o laudo médico, o casamento não tem validade jurídica. O
Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos artigo 2.045 do novo Código não revogou esse decreto. Na
parentes do outro pelo vínculo da afinidade. verdade, a união consanguínea não gera necessariamente in-
§ F O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, divíduos doentes ou malformados. A possibilidade de apa-
aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro. recimento de defeitos genéticos recessivos, porém, torna -se
§ 2º Na linha reta, a afinidade não se extingue com a maior quanto mais próximo for o parentesco. Tal fato se deve
dissolução do casamento ou da união estável. à recessividade do padrão de transmissão hereditária de cer-
tas doenças.
Pela linha colateral, estão impedidos de se casar os paren-
tes até o terceiro grau, ou seja, irmãos entre si e tios com so- Bigamia (Impedimento de Vínculo)
brinhos. Quando o código se refere a irmãos unilaterais, quer
indicar aqueles que se originam apenas do mesmo pai ou da A monogamia é considerada a forma mais avançada de
mesma mãe. Os bilaterais provêm de pai e mãe comuns. relacionamento sexual na espécie humana 2• A legislação bra-
Os graus de parentesco são contados por gerações desde sileira, em consonância com o pensamento ocidental, ado-
um dos parentes até o ascendente comum e deste até o pa- ta a monogamia e proíbe que qualquer pessoa tenha mais
rente que se tem em vista. Assim, se um indivíduo tem dois de um cônjuge. O repúdio à bigamia é tão grande em nossa
filhos, estes são parentes em segundo grau, pois se conta uma sociedade que é considerada crime, previsto no artigo 235
geração até o pai e outra até o irmão. No caso de tio e sobri- do Código Penal. Para que alguém que já se casou o faça de
618 • CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento

novo, é preciso que se tenha tornado viúvo, divorciado, ou Atualmente, confo rme se aborda no Capítulo 29, com a
que o primeiro casamento tenha sido nulo, ou anulado. A disponibilidade dos exames de ultrassonografia, o diagnós-
separ ação judicial, que põe fim aos deveres recíprocos dos tico de gravidez está muito facilitado, e de m odo absoluta-
cônjuges, não dissolve o vínculo do pr imeiro matrimônio e, mente confiável. É possível diagnosticar, através da visuali-
por isso, não permite que os separados se casem enquanto zação do saco gestacional, gravidez de menos de 1 mês de
não fo r declarado o divórcio por sentença judicial. duração. Desse m odo, a viúva desejosa de contrair novas
núpcias pode requerer, de acordo com o parágrafo único,
a perícia para comprovação da inexistência de gravidez. Os
Crime
métodos antigos de diagnóstico, que necessitavam de maior
É um impedimento que reflete a impossibilidade moral tempo de evolução da gestação, não são mais necessários.
de se aceitar que alguém seja capaz de se unir po r novo matri- A razão de ser desse impedimento é a possibilidade remo-
mônio àquela pessoa que matou ou tentou matar o seu com- ta de não se saber a paternidade de um filho gerado no início,
panheiro. O fato de ter perdoado o ofensor po de demonstrar ou pouco antes do início do prazo, a turbatio sanguinis. Talin-
nobreza de sentimentos, mas o estabelecimento de uma re- certeza cria embaraços na transferência dos bens por heran -
lação íntima vai além do que se pode esperar de uma pessoa ça, uma vez que, havendo herdeiro d o falecido, a distribuição
privada do convívio de seu parceiro conjugal. No entender tem que ser feita levando em conta os interesses do nascituro.
de Clóvis Beviláqua, o ato criminoso deve gerar no cônjuge A sanção aos infratores fica restrita à obrigatoriedade do regi-
sobrevivente um sentimento de aversão tão profundo ao me de separação total dos bens do casal. O casamento é válido
agressor que d estruiu seu lar, que uma união íntima com ele e não pode vir a ser anulado por esse motivo.
gera, com razão, a suspeita de cumplicidade. Mesmo não ten-
d o havido cumplicidade, é indicativo de aprovação do crime,
• CAUSAS DE ANULAÇÃO DO CASAMENTO
o que é igualmente inaceitável do ponto de vista moraF.
(IMPEDIMENTOS DIRIMENTES RELATIVOS)
São, confo rme já comentamos, situações em que o casa-
• CAUSAS SUSPENSIVAS (IMPEDIMENTOS mento realizado é válido, m as padece de defeito capaz de pre-
PROIBITIVOS) judicar um dos cônjuges. O prejudicado, por essa razão, tem
o direito de requerer, dentro dos prazos estabelecidos pela
Estão listadas no artigo 1.523 do novo código4 • lei, a sua anulação. Ultrapassado o prazo legal, o casam ento
convalesce e não mais pode vir a ser anulado. O novo código
Art. 1.523. Não devem casar: não estabeleceu um capítulo especial para o tema e agrupou a
I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, maioria dos casos no Capítulo VIII, referente à invalidade do
enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der par- casamento, nos artigos 1.550, 1.556, 1.557 e 1.558.
tilha aos herdeiros;
II - a viúva ou a m ulher cujo casamento se desfez por Art. 1.550. É anulável o casam ento:
ser nulo ou ter sido anulado, até 1Om eses depois do começo I - de quem não completou a idade mínima para casar;
da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjuga~ II - do menor em idade núbil, quando não autorizado
III - o divorciado, enquanto não houver sido homologa- por seu represen tan te legal;
da ou decidida a partilha dos bens do casal; III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a
N - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascen- 1.558;
dentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tute- I V - do incapaz de consen tir ou manifestar, de modo
lada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curate- inequívoco, o consentimento;
la, e não estiverem saldadas as respectivas con tas. V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro
Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar contraen te soubesse da revogação do m andato, e não sobre-
ao juiz que não lhe sejam aplicadas as causas suspensivas vindo coabitação entre os cônjuges;
previstas nos incisos I, III, e N deste artigo, provando-se a V I - por incompetência da autoridade celebrante.
inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, Parágrafo único. Equipara-se à revogação a invalidade
para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; do mandato judicialmente decretada.
no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da
de fi lho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo. vontade, se houve por parte de um dos nuben tes, ao consen -
tir, erro essencial quanto à pessoa do outro.
O inciso que interessa diretamente à Medicina Legal é o Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do
II, no qual há necessidade de intervenção do perito médico outro cônjuge:
para info rmar ao juízo sobre a existência, ou não, da gravidez I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa
ou do parto. Não se cogita, aqui, de aborto, de mo do seme- fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimen to ulterior
lhante ao que preconizava o código de 1916. torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento • 619

II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, videz e parto em mulheres com menos de 12 anos, o organis-
por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal; mo feminino só está apto para as necessidades do trabalho de
III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito fí- parto após a adolescência. Antes disso, o risco de complicações
sico irremediável, ou de moléstia grave e transmissível, pelo aumenta progressivamente quanto mais jovem for a mulher.
contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do ou- O legislador estabeleceu o limite referido de 16 anos para
tro cônjuge ou de sua descendência; que se possa realizar o casamento, mas exigiu o consenti-
N - a ignorância, anterior ao casamento, de doença mento dos responsáveis legais pelos menores, visto serem
mental grave que, por sua natureza, torne insuportável a eles relativamente incapazes de exercerem pessoalmente os
vida em comum ao cônjuge enganado. atos da vida civil.
Art. 1.558. É anulável o casamento em virtude de coa- Contudo, no interesse social, estabeleceu uma exceção à
ção, quando o consentimento de um ou de ambos os côn- regra, no artigo 1.520. Embora não sendo obrigado a seca-
juges houver sido captado mediante fundado temor de mal sar, o homem que tenha seduzido uma mulher com menos
considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua de 16 anos poderá escapar da cadeia por meio do casamento
ou de seus familiares. com a jovem seduzida. O legislador achou mais útil à socie-
dade a constituição de um novo lar sob tais circunstâncias do
Outra causa, a insuficiência de idade, está nos artigos que prender o autor do crime de sedução (art. 217 do CP) .
1.517, 1.520, incisos I e II dos artigos 1.550 e 1.551. No entanto, a experiência tem demonstrado que o casamen-
to tem sido usado como verdadeira porta de emergência
A rt. 1.517. O homem e a mulher com 16 anos podem para o delinquente escapar da punição, visto que a maioria
casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus desses casamentos tem vida muito curta. Mas, por outro
representantes legais, enquanto não atingida a maioridade lado, aplaca a ira de uma família ofendida, evitando vingan-
civil. ça de consequências mais graves, principalmente em cidades
A rt. 1. 520. Excepcionalmente, será permitido o casa- pequenas do interior, onde vige a mesma lei das zonas me-
mento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. tropolitanas, embora os costumes sejam diversos.
1.517), para evitar a imposição ou cumprimento de pena Na parte final do artigo 1.520, a exceção justifica-se pela
criminal ou em caso de gravidez. existência de gravidez, que ratifica a maturidade física d o
Art. 1.551. Não se anulará, por motivo de idade, o casa- casal. Além do mais, com isso se impede que o nascituro ve-
mento de que resultou gravidez. nha ao mundo sem o apoio de uma família tradicionalmente
constituída. Apesar da imaturidade psicológica, a presença
Insuficiência de Idade de um filho tem o poder de catalisar o am adurecimento dos
cônjuges pelas novas responsabilidades que passam a ter. Em
Até a proclamação da República, a legislação imperial
consonância com tal fato, o novo código impede a anulação,
permitia o casamento de pessoas do sexo feminino desde os
por defeito de idade, do casamento de que resultou gravidez
12 e do sexo masculino desde os 14 anos de idade. Com o
(art. 1.55 1).
Decreto 181/1890, aumentou para 14 e 16 anos. O código de
1916 elevou para 16 e 18 anos para os sexos feminino e m as-
culino, respectivamente, a idade mínima para o casamento'. Erro Essencial
O novo código estendeu o limite de 16 anos ao sexo mascu-
lino, por coerência com a igualdade de direitos e deveres de Segundo Sílvio Rodrigues', erro essencial é aquele engano
ambos os cônjuges. As diferenças de 2 anos das legislações de tal modo relevante que, se fosse conhecida a realidade, o
anteriores tinham por fundamento a precocidade da puber- consentimento não se externaria pela forma que se deu. Mas
dade no sexo feminino. é necessário que tal erro seja substancial, ou melhor, que seja
O casamento traz para os nubentes deveres que só podem de tal natureza que altere profundamente a imagem da outra
ser cumpridos de modo satisfatório por pessoas suficiente- pessoa sobre quem se manifestou a vontade. O próprio códi-
mente amadurecidas. A responsabilidade pela administração go esclarece, no artigo 139, que o erro é substancial quando
económica e social da nova família requer capacidade de "II - concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa
trabalho e certa d ose de experiência de vida dos cônjuges, a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha
de m odo a poderem superar as dificuldades geradas pela ne- influído nesta de modo relevante". Para que seja aceito como
cessidade de manutenção do lar e da prole. Além do mais, a causa de anulação do casamento, exige-se que o fato seja an-
existência a dois exige capacidade de aceitação madura das terior ao casamento, ignor ado pelo outro cônjuge e que o seu
diferenças pessoais e de tolerância dos defeitos de cada um. conhecimento ulterior ao casamento torne insuportável a
E isso só é alcançado por pessoas que tenham grau adequado vida em comum. Se o defeito já era manifesto e não poderia
de maturidade. deixar de ser percebido antes do casamento, não cabe a alega-
Sendo muito acentuada a imaturidade fisica do casal, ou ção. Do mesmo modo se o defeito apareceu depois do enlace.
de apenas um deles, a própria coabitação conjugal torna -se O artigo 1.557 lista as situações em que se admite sua
difícil, ou mesmo impossível. Embora haja casos raros de gra- ocorrência.
620 • CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento

Identidade, Honra e Boa Fama sociedade. Contudo, se o cônjuge sabia dos antecedentes do
outro, ou se, sabendo depois do casamento, perdoou ou se
A identidade das pessoas naturais, com o entendida aqui,
com portou com o se o tivesse feito, não procede a alegação de
tem uma conotação que vai além da simples identidade fí-
erro essencial. Também não pode alegar o engano aquele cujo
sica, que estudamos no Ca pítulo 4. No caso em tela, a iden-
procedimento é semelhante ao contestado no outro cônjuge.
tidade física dificilmente será invocada como causa de erro
Presume-se que não tenha razão para se sentir ofendido.
essencial. Poderíamos formular a hipótese de A e B se co-
nhecerem através de contatos via internet, apresentando-se
Ignorância de Crime que, por sua Natureza,
com falsa imagem física, de aspecto bem mais atraente do Torne Insuportável a Vida em Comum
que o real. No dia do casamento, A o u B faz-se representar
por procuração, de modo que o engano não seja percebido O código de 1916 exigia que o crime cometido pelo cônju-
pelo outro. A partir da convivência, o erro seria evidenciado ge acusado fosse inafiançável e que a sentença de condenação
e daria ensejo à ação de anulação. Mas é muito improvável do réu tivesse tran sitado em julgado. Trocando em miúdos,
que isso ocorra na vida real. era preciso que o crime estivesse enquadra do na definição de
A noção de identidade envolve também seu aspecto so- inafiançável dada pelo artigo 323 do Código de Processo Pe-
cial. É o que os jur istas chamam de identidade civil. Certas nal e pela legislação com plem entar, e que já se tivessem esgo-
características da pessoa, como seu estad o civil, seu credo tado todos os recursos possíveis contra a condenação do réu.
político ou religioso, faze m parte da sua identidade social. Por exemplo, vadiagem, mendicância, reincidência criminal,
Assim, já se tem anulad o casamento em que a pessoa era viú- crime de preconceito, crime contra a fa una etc.
va, ou divorciada, e ocultou o fato antes de se casar; ou se Fugindo às especificações, o novo código estabeleceu
viveu em concubinato e d este teve filhos2 • Em outro caso, um apenas que o crime seja de tal natureza que torne insu portá-
aventureiro apossou-se da identidade de outra pessoa por vel a manutenção da vida em comum por parte do cônjuge
meio de falsificação documentat2. enganado. Cada caso tem que ser apreciado pelo julgador
Certas características da personalidade podem m anifes- sem as limitações impostas pelo antigo texto. Na verdade, ao
tar-se somente durante a convivência, após o casam ento. A retirar as especificações, o novo diploma legal, a nosso ver,
percepção de que o cônjuge é sádico e que só se satisfaz após restringiu a amplitude do dispositivo, já que a tendência dos
maltratar o outro tem sido aceita como motivo de anulação julga mentos é pela manutenção do vínculo. Cremos que de-
com base no erro quanto à identidade por ser um aspec- litos com o o estupro, o roubo, o homicídio doloso certam en-
to próprio da per so nalidade, sem chegar a constituir uma te serão considerados idôneos para a anulação. Além disso,
doença m ental'. é preciso realçar que não há mais a necessidade de sentença
As pessoas vivem em sociedade, e suas relações recíprocas condenatória, bastando a comprovação da prática do delito.
dependem de sua história de vida. O conceito que cada um
fo rma em torno de sua pessoa resulta do seu comportamento Defeito Físico Irremediável
e do respeito às regras da convivência social. A imagem que Essa expressão usada pelo legislador, que já constava do
se tem de um parente, de um amigo ou de um desconhecido código de 1916, significa incapacidade de cumprir com o
depende dos fatos pregressos de sua trajetória de vida que débito conjugal, o u seja, propiciar ao cônjuge sua satisfação
conhecemos. Desse modo, o erro pode basear-se no aspecto sexual. É a impotência sexual.
m oral da história individual, na sua honra e boa fama. Basta A impotência costuma ser dividida em generandi, con -
que fa tos relevantes e desabonadores do passado de um dos cipiendi e coeundi. As duas primeiras formas são relativas à
nubentes tenha sido ocultado até a realização do enlace. A infertilidade, respectivam ente, masculina e feminina; quer
descoberta ulterior ao casamento ensejaria a anulação por dizer, a incapacidade de o hom em fecundar a mulher e a in-
tornar insuportável a vida em comum. capacidade de a mulher conceber, ser fecundada. Mas a que
Mas o conceito de honra é um tanto subjetivo e vago. interessa para a anulação do casam ento é a coeundi, aquela
A própria definição "dignidade da pessoa que vive hones- que impede a realização da conjunção carnal. Pode ela ser
tamente, que pauta seu proceder pelos ditames da moral", masculina o u feminina, sendo muito mais comum a mascu-
atribuída a Clóvis Beviláqua, é vaga'. Na verdade, para ser lina, por motivos óbvios.
invocada com o causa de anulação do casamento, a conduta Ao estudar a im potência coeundi, ou instrumental, é in-
desonrosa tem que ser gritante, uma vez que a tendência dos teressante recordar a fisiologia da ereção. Tudo começa pela
julgadores é pela manutenção do vínculo. Desse modo, não excitação sexual, que é feita de modo complexo. Tanto há o
há necessidade de uma conceituação estrita do que se deva estímulo dos receptores nas áreas erógenas, pelo co nta to físi-
entender como conduta honrada ou desonrada. Descobrir co, como existe a estimulação desencadeada a partir dos cen-
que o cônjuge era estelionatário, rufião, ladrão, homossexual tros nervosos cerebrais. As terminações sensitivas localizadas
ou dado à prostituição somente após o casamento pode jus- no pênis, principalmente na glande, no períneo, na bolsa
tificar a anulação do vínculo por serem, incontestavelmente, escrotal e região anal, geram impulsos nervosos que, atra-
condutas desonrosas. A boa fama resulta de uma vida iliba- vés dos nervos pudendos, vão aos centros parassimpáticos
da, pautada por conduta aprovada pelos padrões morais da dos segmentos sacros da medula. Daí partem impulsos ner-
CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento • 621

vosos pelos nervos erigentes, que vão terminar nos corpos tra enzima que produz a proteína G, que é responsável por
cavernosos e esponjoso. Por essa razão, pessoas com secção bloqueio da entrada de íons de cálcio ( Ca++) no líquido do
traumática da medula acima do segmento sacro podem ter citoplasma e pela remoção do que já lá estava para dentro das
ereção puramente reflexa e realizar a cópula até à ejaculação. cisternas do retículo endoplasmático. É a redução da con-
Assim como podem ajudar no mecanismo de ereção, os centração dos íons de cálcio no citosol das fibras musculares
impulsos originados nos centros cerebrais também podem lisas que as relaxa7 .
inibi-lo. São, na realidade, reflexos condicionados que po- De acordo com a causa, a impotência pode ser classifi-
dem ser potencializadores ou inibidores. Tudo depende da cada em fisiológica, física e psíquica. A impotência fisiológica
história sexual do indivíduo. Se o homem teve uma iniciação ocorre nos extremos de idade. São incapazes de manter con-
sexual sadia, sem noção de culpa, identificando a experiência junção carnal os menores impúberes e os anciãos. Os meno-
sexual como algo prazeroso, há um reforço cerebral sobre o res, por não terem ainda capacidade de penetração em face
mecanismo reflexo da ereção. É tão importante essa influên- das dimensões e da falta de rigidez do órgão. Os idosos, por
cia que basta a lembrança de uma experiência sexual agradá- lhes faltar ímpeto e por diminuição do fluxo sanguíneo pe-
vel para que se dê a ereção, sem qualquer estimulação local. las artérias penianas comprometidas tanto por processo de
Por outro lado, se o sexo é ligado a sentimento de culpa, a arteriosclerose como por outras patologias. Mas, como toda
algo sujo e a experiências traumatizantes, a inibição torna-se regra, comporta exceções. Tanto há indivíduos precocemen-
maior que a excitação reflexa5• te amadurecidos para o sexo como anciãos que ainda são ca-
O pênis, assim como o clitóris, é um órgão formado, em pazes de manter relações sexuais.
sua maior parte, por um tipo especial de tecido chamado de A impotência física resulta de anormalidades da forma
erétil. É constituído por numerosos espaços vasculares, cujo dos órgãos copuladores, tanto do homem como da mulher.
tamanho é máximo nas porções centrais e diminui gradual- Anomalias congênitas, como hipoplasias do pênis, associa-
mente para a periferia. Tais espaços têm um revestimento das, ou não, a hipo ou epispádia; atresia vaginal, imperfura-
endotelial e são delimitados por paredes formadas por tecido ção do hímen, podem causá-la. Lesões adquiridas como neo-
conjuntivo rico em fibras colágenas e elásticas, no qual há fi- plasias situadas no pênis, no introito vaginal, na vulva, na
bras musculares lisas. Recebem sangue das artérias penianas parede vaginal; prolapso uterino intenso; processos de fibro-
dorsal, bulbar e profunda. se da fáscia que envolve os corpos cavernosos, como a doença
O tecido erétil constitui os corpos cavernosos e o cor- de Peyronie, e o utras podem impedir a conjunção carnal. Na
po esponjoso. Os cavernosos são dois, situam-se longitudi- última, ocorre a ereção, mas o pênis assume posição viciosa
nalmente ao pênis, estão revestidos por uma túnica espessa dependente de uma maior resistência da fáscia em um dos
de tecido fibroso e se unem na linha mediana por um septo setores da circunferência do órgão. Assim que se dá o enchi-
conjuntivo resultante da fusão das suas túnicas. Entre eles, mento dos corpos cavernosos, há um desvio da direção do
pela face inferior, há um sulco largo no qual se aloja o corpo pênis no sentido da área mais resistente e fibrosa. Em con-
esponjoso, que é único e se alarga na extremidade do pênis junto, os casos de impotência física não são frequentes.
para formar a glande. A túnica do corpo esponjoso é mais A impotência masculina tem sido referida ultimamente
delgada e mais elástica que a dos corpos cavernosos. Por isso, como disfunção erétil, uma expressão menos pejorativa. Essa
quando ocorre a ereção, a rigidez do pênis depende dos cor- disfunção pode ser graduada uma vez que o indivíduo pode
pos cavernosos. As artérias penianas, ao entrarem no tecido ser incapaz de manter conjunção carnal, iniciá-la e perder
erétil, dão origem a arteríolas que apresentam parede espessa a ereção durante o ato ou os prolegômenos, interrompê-la
com muito tecido muscular liso. A drenagem venosa é feita por ejaculação precoce, ou mesmo ter ereção e não executar
por plexos de veias que se situam na periferia dos corpos ca- a penetração. Além disso, a impotência pode ser seletiva, de
vernosos e esponjoso, logo abaixo de suas túnicas. A ereção modo que o homem seja potente para outras mulheres, mas
ocorre porque, aumentando o fluxo de sangue arterial para não para a sua companheira.
dentro dos espaços vasculares, eles dilatam-se e comprimem A impotência seletiva para com a esposa pode resultar
os plexos venosos de encontro à sua túnica fibrosa. Ora, che- de uma associação entre sexo e pecado. Importante, aqui, a
gando mais sangue e diminuindo a drenagem, a tendência forma como se deu a iniciação sexual do homem na adoles-
é de um considerável aumento de pressão, o que torna os cência. Se as primeiras relações forem provocadas por pa-
corpos cavernosos rígidos6 • rentes mais velhos que o levam a prostíbulos, pode criar-se
Conclui-se do exposto que o ponto-chave da ereção é o um reflexo condicionado inibitório diante da mulher amada.
relaxamento da musculatura lisa das arteríolas e das trabécu- Nilson Sant'Anna e Ivan Bastos8 contavam sobre o caso de
las dos corpos cavernosos e esponjoso. O mecanismo desse ex-seminarista que se casara por ter grande amor à esposa,
relaxamento depende de reações químicas iniciadas pela li- mas que a identificava como símbolo de pureza e de santi-
beração de óxido nítrico a partir das terminações dos nervos dade, que não poderia ser conspurcada pelo sexo. Por isso,
parassimpáticos no tecido erétil. O óxido nítrico, ao entrar era impotente para com a esposa, mas viril com amantes e
nas células musculares lisas, ativa uma enzima que conver- prostitutas. Quando do julgamento, a anulação foi consegui-
te a guanosina-trifosfato em guanosina-monofosfato cíclica da pela esposa, visto que era a ela que ele devia satisfazer e
(GMPc). Esse mediador químico, por sua vez, ativa uma ou- não às o utras mulheres.
622 • CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento

Outra fo rma de disfunção erétil é quantitativa, quer di- nografia com Doppler para flu xometria, cavernosom etria,
zer, o homem só é capaz de realizar a cópula com frequência arteriografia com auxílio de to mografia computadorizada
muito abaixo da desejada pela companheira. Dados no rte- (CT) e de ressonância m agnética 7 • Pode-se faze r também,
americanos recentes mostram que há nos EUA cerca de 10 se o paciente concordar, avaliação de tumescência peniana
a 20 milhões de ho mens acima de 18 anos com disfunção noturna associada ao sono, que costuma ocorrer na fase de
erétil9 . Em o utro trabalho, feito com questionários em Mas- REM (rapid eyes movement). Mas a presença de teste positi-
sachusetts, chegou-se à conclusão de que 52% dos homens vo não garante que ele tenha ereção suficiente para manter
acima de 40 anos tinham algum grau de disfunção erétiF. a có pula9 •
A atenção de leigos e de m édicos voltou-se mais para a dis- Pode a impotência m asculina ser comprovada, indireta-
função erétil depois da chegada ao mercado farmacológico mente, pela virgindade da mulher casada. Sendo esse o caso,
da droga sildenafil (Viagra). Ela age inibindo a enzima que a perícia deve comprovar a presença de hímen rompível ín-
inativa a GMPc, a fosfodiesterase 5 (PDES). Desse m odo, tegro. A presença de qualquer rotura, recente o u antiga, pode
potencializa o m ecanismo fisiológico e corrige a disfunção atestar que houve conjunção carnal, mas não é suficiente
erétil desde que haja o início da ereção no jogo do amor7 • para afastar a impotência do marido, uma vez que a mulher
Para fins de anulação de casamento, a forma mais fre- não se casa para ser deflorada e, sim, para ter uma vida sexual
quente é a impotência psíquica. A genitália tem aspecto nor- normal e regular.
mal, sua inervação está preservada e não são encontradas A impotência psíquica feminina está representada pela
causas orgânicas para a disfunção. Geralmente, resultam de coitofobia, pelo vaginismo e pela dispareunia. A primeira é a
experiências prévias de frustração sexual, ou de distúrbios aversão invencível ao sexo. Ocorre como resultado de reflexos
da forma ção da identidade sexual na fase de am adurecimen- condicio nados negativos que geram a repulsa ao ato sexual.
to da personalidade. Por vezes, refletem tendências homos- Ivan Bastos'º contava que o Prof. Nilton Salles examinara
sexuais reprimidas. Em outras ocasiões, aparecem como sin- uma mulher italiana com coitofobia. Ela vivera na Itália du -
to ma de doenças mentais mais graves, com o, por exem plo, a rante a Segunda Guerra Mundial e teria presenciado, quando
esquizofrenia e a depressão. criança ainda, sua m ãe ser estuprada por soldados nazistas.
A comprovação da impotência deve ser feita po r perí- Terminado o conflito, veio para o Brasil e tornou-se adulta.
cia médica. O exame do paciente deve incluir anamnese, Tinha atração heterossexual e veio a namorar e noivar com
exam e clínico-neurológico, exam e psiq uiátrico e os exam es um brasileiro. Mas, após o casamento, não admitia a conjun-
complem entares qu e o caso exigir. A abordagem d o pacien- ção carnal, embo ra aceitasse seus prolegômenos. Depois de
te tem que ser feita de modo diferente do que o urologista várias tentativas fr ustradas, o marido entro u com uma ação
e o andrologista fazem com fins ter apêuticos. Em primeiro de anulação do casamento. Durante o exam e efetuado pelos
lugar, o grau de cooperação do paciente costuma ser bem peritos, sua recusa em abrir as pernas para a visualização do
m enor durante a perícia. A tendência é que não admita ser hímen foi de tal ordem que impediu a sua realização, por
impotente, uma vez que a sua confissão equivale à perda maior que fosse o tempo gasto tentando convencê-la. Os pe-
da ação cível movida pela mulher. Mesm o assim, é preciso ritos concluíram pela existência da coitofobia.
verificar, na anamnese, se estão presentes fa tores de risco Vaginism o é uma condição em que a musculatura pe-
com o cardiopatias, diabetes, hipertensão arterial, crises de rineal entra em espasm o intenso e impede a penetração
depressão, uso de drogas, alcoolismo, hipogonadismo ou do pênis. Q uando aco mpanhado de dor intensa, constitui
ciru rgia pélvica. a dispareunia. É produto, igualmente, de um condiciona-
O exam e físico deve procurar sinais dessas condições pre- mento negativo. Nos casos mais graves, leva a mulher a se
disponentes, verificar a integridade e a normalidade da geni-
recusar a pagar o débito conjugal, frustrando a realização
tália, inclusive pela avaliação grosseira da circulação através
de um dos principais objetivos do casamento. Sua compro -
da palpação da artéria dorsal do pênis, e pelo estudo da inte-
vação pericial é difícil. Em casos raros, pode ser associada à
gridade das vias nervosas por meio da pesquisa dos reflexos
hipoplasia vaginal, o que explica a dor. Convém consider ar,
cremasteriano e bulbocavern oso de Onano ff. O cremasteria-
aqui, outro fator ca usad or que seria a macrossomia do pê-
no é feito roçando-se a ponta de um lápis vivam ente na face
nis do parceiro. Para mulheres com discreta hipoplasia, as
interna do terço superio r da coxa e observando-se uma ele-
relações sexuais podem ser to leradas com indivíduos dentro
vação do testículo homolateral dentro da bo lsa escrotal. O de
da m édia, mas se to rnam por demais d olorosas diante de
O nanoff é pesquisado segurando-se a glande entre o polegar
parceiros muito avantajados.
e o indicador de uma das mãos e palpando-se a região bulbar
d o períneo com o dedo m édio da outra. Ao se soltar a glande,
Moléstia Grave e Transmissível
percebe-se uma contração da musculatura perin eal.
Os exam es complementares devem incluir dosagem da Não entraremos na polêmica da distinção entre moléstia,
glicose livre e ligada à hem oglobina, dos hormônios m as- enfermidade o u doença, confo rme já exposto ao tratarmos
culinos, da prolactina, do horm ônio luteiniza nte (LH), do dos aspectos m édico-legais das lesões co rpo rais. A moléstia
hormônio tireoestimulante (TSH ) e do antígeno prostático a que se refere o legislador tem que alterar profundamente
específico (PSA). O utros mais especializados são a ultrasso- a saúde, mas não há necessidade de que ca use perigo para a
CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento • 623

vida do outro cônjuge ou de seus descendentes. Sua gravi- azar (corridas de cavalo, por exemplo) e que passa a gastar
dade pode-se expressar pelo comprometimento importante a maior parte do orçamento nas patas dos cavalos; ou que
de uma das grandes funções do organismo. Doenças que ele não gosta de trabalhar e não pára em emprego algum;
causem insuficiência respiratória, cardíaca, renal etc. podem ou que tem certos transtornos do comportamento sexual
servir de exemplo, se passíveis de transmissão por contágio como transvestismo, bestialismo etc. Embora não sejam dis-
ou herança. Mas é preciso que não fosse possível ao cônjuge túrbios tão graves do ponto de vista da saúde mental, sem
enganado percebê-la antes do casamento. Assim, se a pes- dúvida acarretam impossibilidade da vida em comum ao
soa costuma apresentar falta de ar aos menores esforços já cônjuge enganado. A jurisprudência tem firmado posição
durante a fase de namoro, não se pode admitir que o outro enquadrando-os tanto no inciso que ora estudamos como
desconhecesse tal condição física do futuro companheiro. no referente a erro quanto à identidadeI.2.
A doença tem que ser de tal ordem que possa ser ocultada
pelo indivíduo e por sua família, de modo que o outro côn-
Coação
juge só possa descobri-la após o casamento. Servem como
exemplo de doenças transmissíveis por contágio o fato de A ameaça representada pela força coatora tem que ser ca-
ser o indivíduo portador do vírus da AIDS, ou algum outro paz de gerar na mente da pessoa coata o temor de um mal
potencialmente muito danoso, como os da hepatite B ou C, maior do que o casamento não desejado. O mal temido pode
capazes, inclusive, de levar ao surgimento de câncer de fíga - ser de natureza física ou moral. O medo de que o coator cau-
do. Também o fato de ser tuberculoso, leproso ou sifilítico. se uma lesão grave, ou a morte, sua ou de algum ente muito
Por herança, podemos citar a epilepsia essencial, a hemofilia querido; ou de que a revelação de algum fato, a cobrança de
ou graves distúrbios do metabolismo, como a oligofrenia uma dívida, possam arruinar, financeira ou moralmente, a
fenilpirúvica. si ou aos seus parentes mais próximos pode ser aceito como
Não servem para justificar a anulação do casamento causa idônea de coação. Em casos de anulação de casamento,
doenças de hipersensibilidade comuns, por exemplo asma e a coação não precisa ser tão intensa quanto a necessária para
urticária; e outras de pouca gravidade como o diabetes tipo anular os outros negócios jurídicos. Basta que um ou ambos
2, to das passíveis de transmissão hereditária. A aceitação des- os nubentes não pudessem manifestar sua vontade de modo
sas doenças e de outras de m enor gravidade levaria a própria livre e espontâneo. Sendo um ato que tem que ser praticad o
instituição do casam ento a uma situação de instabilidade. em público justamente para restringir ao mínimo as possi-
Não citamos as doenças mentais porque o novo Código bilidades de coação, em que as consequências de uma união
Civil criou um inciso apenas para esse grupo, no qual figu- não desejada afete muito mais pessoas do que apenas os nu-
ram algumas sabidamente hereditárias. bentes, justifica-se o abrandamento quanto à força coatora
capaz de invalidar o casamento 1•
Doença Mental Grave O simples temo r reverencial não é suficiente para levar
Em primeiro lugar, cumpre analisar a extensão da expres- à anulação 2• A pressão exercida pelos pais de uma jovem a
são doença mental. Sua abrangência, aqui, é maior do que que se case com determinado cavalheiro pode influenciar
a aceita pela jurisprudência referente ao artigo 26 do Códi- sua decisão, mas é insuficiente para caracterizar uma coação.
go Penal. Entram nas listagens de distúrbios psiquiátricos Rodrigues1 faz uma resenha da jurisprudência sobre o tema,
aceitos como relevantes a ponto de causar anulação do ca- analisando casos em que os tribunais recusaram a anulação e
samento alguns que, a rigor, não to rnam o seu portador um outros em que ela foi concedida. Conclui que o tema perdeu
inimputável nem o fazem incapaz de administrar seus bens importância depo is da vigência da lei do divórcio. Mas en-
e sua vida. Certamente, estão incluídas as psicoses, que são tende que, para uma moça tímida, menor de idade e incapaz
distúrbios capazes de desconectar o indivíduo da vida real de se sustentar condignamente, a ameaça de ser expulsa de
por meio de alucinações, ideias delirantes e graves alterações casa se não desposar o noivo escolhido por seus pais pode
do humor. Por exemplo, as esquizofrenias, as parafrenias, os configurar a coação a que se refere o código.
transtornos bipolares graves, a epilepsia psicomotora etc.
Mas têm sido aceitos distúrbios menos graves como certas Incapacidade de Consentir
psicopatias (personalidades psicopáticas), com o sadism o,
transtorno obsessivo-compulsivo, hipobulia etc. Também a Os surdos-mudos que não foram educad os em institui-
dependência de drogas como álcool, cocaína e outras capazes ções especializadas, incapazes de comunicar aos outros seus
de gerar esse estado. desejos, não devem casar-se. Mesmo que representados por
É preciso que, além de grave, a doença seja capaz de tor- tutor ou curador no momento de se casarem, o vínculo pode
nar intolerável a vida em comum. Para isso, não há necessi- ser anulado. Como o casamento é um ato pessoal e íntimo,
dade de que o indivíduo seja psicótico. Ele pode ter perfeito os juristas entendem que ninguém pode representá- los, nem
entendimento d o mundo, mas apresentar graves distúrbios mesmo seu tutor ou curado r 2• Como a capacidade de cada
do compo rtamento. Se uma mulher se casa e, após o casa- surdo -mudo depende de como foi educado, é preciso que
mento, descobre que o seu marido é viciado em jogos de se faça uma perícia para evidenciar até que ponto são ca-
624 • CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento

pazes de se comunicar. Assim como nas oligofrenias, o grau • DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL
de comprometimento do intelecto admite uma gradação que
tem que ser avaliada por médico especializado. Para que se Antes do advento do divórcio, a única maneira de estabe-
venha a anular o casamento contraído por um surdo-mudo, lecer legalmente o fim da sociedade conjugal era o desquite,
é preciso que se faça a perícia psiquiátrica para constatar se que não punha fim ao vínculo matrimonial. Este só poderia
aquele indivíduo poderia, ou não, ter manifestado claramen- ser dissolvido pela morte de um dos cônjuges ou pela inva-
te sua vontade no sentido de aceitar o casamento. Quando lidade do casamento (nulidade ou anulação). A sociedade
o código estabelece que a manifestação da vontade tem que conjugal, embora contida no matrimónio, é um instituto me-
ser feita "de modo inequívoco" não deixa margem a dúvidas nor do que o casamento, tendo por objeto apenas os aspectos
quanto à necessidade de constatação da real capacidade de patrimoniais2• Com a aprovação da Emenda Constitucional
comunicação do surdo-mudo. 9 de 28/06/1977, que foi regulamentada pela Lei 6.515 de
26/12/1977, foi introduzido o divórcio no BrasiF. Com a pro-
Incompetência da Autoridade Celebrante e mulgação da Constituição de 1988 e a entrada em vigor do
Revogação de Mandado novo Código Civil, houve uma consolidação dos princípios
relativos ao fim do casamento. O novo Código estabelece:
São razões essencialmente de ordem jurídica que não re-
querem a intervenção pericial. Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
I - pela morte de um dos cônjuges;
Prazos II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
O cônjuge que se sentir prejudicado e vítima de alguma IV - pelo divórcio.
dessas situações antes referidas como idóneas para promover § 1!!. O casamento válido só se dissolve pela morte de
a ação de anulação do casamento tem um prazo estabeleci- um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção
do na lei, além do qual caduca o seu direito de reclamação. estabelecida neste Código quanto ao ausente.
Diz-se que, após o transcurso desse prazo, o casamento con- § 2il ...................................................
valesce e não mais pode vir a ser anulado. O artigo 1.560 do Art. 1.572. Qualquer um dos cônjuges poderá propor a
atual Código determina esses prazos: ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer
ato que importe grave violação dos deveres do casamento e
Art. 1.560. O prazo para ser intentada a ação de anu- torne insuportável a vida em comum.
lação de casamento, a contar da data da celebração, é de: § l !l A separação judicial pode também ser pedida se um
I - 180 dias, no caso do inciso N do art. 1.550; dos cônjuges provar ruptura da vida em comum há mais de
II - 2 anos, se incompetente a autoridade; 1 ano e a impossibilidade de sua reconstituição.
III - 3 anos, nos casos dos incisos Ia N do art. 1.557; § 22- O cônjuge pode, ainda, pedir a separação judicial
N - 4 anos, se houver coação. quando o outro estiver acometido de doença mental grave,
§ l !l Extingue-se, em 180 dias, o direito de anular oca- manifestada após o casamento, que torne impossível a con -
samento dos menores de 16 anos, contado o prazo para o tinuação da vida em comum, desde que, após uma duração
menor do dia em que perfez essa idade; e da data do casa- de 2 anos, a enfermidade tenha sido reconhecida como de
mento, para seus representantes legais ou ascendentes. cura improvável.
§ 2Q Na hipótese do inciso V do art. 1.550, o prazo para § J!l No caso do § 2!l, reverterão ao cônjuge enfermo, que
anulação do casamento é de 180 dias, a partir da data em não houver p edido a separação judicial, os remanescentes
que o mandante tiver conhecimento da celebração. dos bens que levou para o casamento, e se o regime dos bens
adotado o permitir, a meação dos adquiridos na constância
Os prazos estipulados anteriormente são de decadência, da sociedade conjugal.
não de prescrição. Por isso, correm inexoravelmente, sem Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da
qualquer interrupção 1• O inciso 1 refere-se aos casos de casa- comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes
mento de pessoas incapazes de consentir. O inciso II é perfei- motivos:
tamente claro por si só. O código anterior dava um prazo de I - adultério;
2 anos para a propositura da ação nos casos de erro essencial, II - tentativa de morte;
o que foi ampliado para 3 anos pelo novo diploma legal no III - sevícia ou injúria grave;
inciso III. Quando se tratar de casamento de menor de 16 IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um
anos, têm eles o direito de propor a anulação assim que com- ano contínuo;
pletarem essa idade, contando o prazo de 180 dias a partir V - condenação por crime infamante;
desse aniversário. Mas, se forem seus responsáveis legais os VI - conduta desonrosa.
proponentes da ação, o prazo conta a partir da data da cele- Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos
bração do casamento. que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.
CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento • 625

Art. 1.574. Dar-se-á a separação judicial por mútuo II - vida em comum, no domicílio conjugal;
consentimento dos cônjuges se forem casados por mais de 1 III - mútua assistência;
ano e o manifestarem perante o juiz, sendo por ele devida- N - sustento, guarda e educação dos filhos;
mente homologada a convenção. V - respeito e consideração mútuos.

Nesta parte, veremos os aspectos legais em que pode ser A violação desses deveres tem que ser grave e perturbar
necessária a intervenção pericial no sentido de caracterizar de tal modo a vida conjugal que ela se torne insuportável.
as situações previstas pelo código com relação à separação Não é suficiente um pequeno deslize. A caracterização das
judicial e ao divórcio. Os relacionados com a nulidade e a violações capazes de ensejar a separação litigiosa vem no
anulação do casamento já foram abordados. texto do artigo 1.573, que enumera situações que podem le-
var à impossibilidade da vida em comum. Assim, o adultério
constitui grave violação dos deveres de fidelidade. Não basta
Separação Judicial
a manifestação de uma atração por outra pessoa, ou mes-
Equipara-se ao que os textos legais anteriores à lei do di- mo o início de uma aproximação que não chegue às últimas
vórcio chamavam de desquite, que era uma forma de fim da consequências.
sociedade conjugal, mas com a manutenção do vínculo jurí- A tentativa de morte e a sevícia violam o dever de mú-
dico entre marido e mulher. Por isso, continuavam casados tua assistência de um para com o outro cônjuge. A tentativa
e não podiam ingressar em novo matrimónio. A separação a de morte fica demonstrada quando os atos preparatórios de
que o artigo 1.572 faz referência é a chamada de litigiosa ou um homicídio são realizados, mas o crime não se consuma
contenciosa, em que um dos cônjuges acusa o outro de não por motivos alheios à vontade do agente. Nesse caso, para a
cumprir com os deveres impostos pelo casamento. Pode ela decretação da separação judicial, não é necessária a conde-
ser admitida também quando há acordo entre os cônjuges nação do cônjuge acusado 1.z. Não é prudente a manutenção
quanto à impossibilidade de continuarem a vida em comum. da convivência sob o mesmo teto de duas pessoas que já se
odeiam o bastante para que uma delas tente pôr fim à vida
Nesse caso é chamada de consensual (art. 1.574).
Ao longo da década que vai de 1993 a 2002, houve, no da outra. O exame da vítima pode caracterizar a tentativa.
Brasil, um aumento do número de separações judiciais em Desse modo, a presença de estigmas ungueais ou de sulcos
12,45% (de 86.495 para 97.260) 3 • O número das separações
no pescoço pode caracterizar tentativa de estrangulamento
manual ou com laço; feridas contusas no couro cabeludo po-
consensuais é bem maior do que o das litigiosas. Em 1993, a
dem demonstrar o uso de instrumentos contundentes para o
proporção era de 5,37 consensuais para uma litigiosa. Mas,
fim de homicídio; a presença de feridas incisas em regiões de
com o passar dos anos, cedeu espaço para as litigiosas. E a
defesa como as m ãos e os antebraços deno ta o uso de instru-
proporção passou a ser de 3,81 consensuais para uma litigio-
mento cortante ou perfurocortante na tentativa; queimadu-
sa em 2002. As estatísticas mostram que a maioria das sepa-
ras extensas podem revelar o uso de água fervente ou de fogo
rações judiciais ocorre durante o segundo, terceiro e quarto
na tentativa, dependendo da distribuição e forma das lesões.
anos do casamento. Somando-se, representam pouco mais
Entende-se por sevícia agressões físicas, maus-tratos (so-
de 20% do total. Analisando as litigiosas, é possível notar que
negação de alimentos, cárcere privado, contenção física).
os motivos mais invocados para a ação são a conduta de-
Difere da injúria por se situar no campo físico, material, en-
sonrosa, a grave violação dos deveres do casamento, seguida
quanto essa pertence ao campo moral'. Dependendo do agen-
pela separação de fato e, com frequência muito menor, pela
te empregado, o exame pode confirmar, o u não, a alegação.
ocorrência de doença mental. Os dados do IBGE3 juntam as
De qualquer m odo, é imperioso que a vítima vá a uma dele-
devidas a conduta desonrosa com as por grave violação dos
gacia policial a fim de obter uma guia para exame médico-
deveres do casamento. Desse modo, o grupo assim forma-
legal e uma certidão da ocorrência policial para fazer pro-
do representa, aproximadamente, o dobro de casos de todas
va em juízo de suas alegações. O exame m édico-legal pode
as outras causas. A alegação de doença m ental representava
constatar lesões por ação contundente, queimaduras, marcas
apenas 0,31 % dos casos em 1993 e 0,16% em 2002. A mulher
de contenção etc. A existência de lesões em fases distintas de
requereu a separação litigiosa três vezes mais frequentemen -
evolução caracteriza uma reiteração dos maus-tratos.
te do que o homem ao longo de toda essa década3 •
A injúria grave e a conduta desonrosa exemplificam a
violação do dever de respeito e consideração mútuos. São
Grave Violação dos Deveres do Casamento
duas expressões de significado muito amplo. A injúria grave
O artigo 1.572, que permite que um dos cônjuges requei- é, no dizer de Clóvis Beviláqua: "Toda ofensa à honra, à
ra a separação judicial contra a vontade do outro, usa a ex- respeitabilidade, à dignidade do cônjuge"'. É a causa mais
pressão "grave violação dos deveres do casamento''. O novo invocada para a separação litigiosa, justamente por sua am-
código estabelece quais são tais deveres. plitude2. Na impossibilidade de comprovação de outros m o-
tivos, por exemplo o adultério, os indícios desse podem ser
Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: enquadrados como injúria grave'. Há quem considere injú-
I - fidelidade recíproca; ria grave toda e qualquer vio lação dos deveres conjugais".
626 • CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento

Pode ser real ou verbal. A injúria real deriva de gesto ultra- Doença Mental Grave e de Cura Improvável
jante, que diminui a honra e a dignidade do outro, ou põe
Em primeiro lugar, a doença mental aqui referida tem
seu patrimônio em perigo 2• São exemplos: expulsão do leito
que ser diagnosticada depois do casamento, ao contrário
conjugal, transmissão de doença venérea, recusa em pagar
da que enseja a anulação, que precisa ser preexistente. Con-
o débito conjugal, práticas homossexuais, atentados ao pu-
tudo, a abrangência da expressão, quer dizer, os tipos de
dor, proibição de cultivar relações com seus familiares, tra-
distúrbios aceitos, é semelhante, pois também requer que a
tamento grosseiro em público, crueldade, impedir o outro
doença seja grave e torne insuportável a vida em comum.
de ingressar em casa etc. 2• A injúria verbal caracteriza-se por
Mas não basta fazer o diagnóstico do distúrbio perturbador
xingamentos, comparações desairosas, acusações e suspei-
da relação do casal. É preciso que tenha uma duração mí-
tas infundadas, difamação etc. Os peritos médicos podem
nima de 2 anos e que seja considerada de cura improvável
ser chamados para a comprovação de doença venérea, de
pelos psiquiatras.
atentado ao pudor ou de atos homossexuais. Pode-se incluir
O mesmo motivo era previsto na lei do divórcio para se
aqui, inclusive, a condenação por crime infamante, pois é a
obter a separação judicial, mas o prazo de duração do distúr-
demonstração inequívoca de um comportamento desres-
bio era de 5 anos, maior que o atual. O dispositivo do novo
peitoso para com o companheiro. Considera-se infamante o
código exige que a doença mental seja considerada de cura
crime que causa clamor público, revolta da sociedade contra
improvável, expressão melhor do que incurável.
o criminoso. Servem de exemplo a pedofilia, o latrocínio, o
O próprio conceito de cura em medicina é relativo. Pode-
fratricídio etc. A conduta desonrosa é expressão muito abran-
se fa lar em cura completa, cura clínica, cura com sequela,
gente na qual podem ser incluídos alguns dos fatos aceitos
remissão, que são conceitos cuja extensão difere, inclusive
como injúria grave, a condenação por crime infamante, o
de um para outro clínico. Diz-se que houve cura completa
alcoolismo, as toxicomanias etc.
quando a doença foi completamente debelada, sem ter dei-
O abandono voluntário do lar conjugal descumpre o dever
xado lesões residuais nem o paciente como portador do
de vida em comum, no domicilio conjugal, e o de sustento,
agente patogénico. Alguns indivíduos que tiveram hepatite
guarda e educação dos filhos, se houver. Para ser aceito como
pelo vírus B, por exemplo, permanecem como portadores
causa de separação litigiosa deve durar mais de 1 ano conse-
desse vírus, porém sem qualquer lesão do fígado. Houve, no
cutivo. A volta ao lar durante esse período, m esmo que ape-
caso, apenas cura clínica. Doenças como a tuberculose pul-
nas por alguns dias, interro mpe a contagem2• Não é válido se
monar podem ser curadas através da quimioterapia, com eli-
o cônjuge postulante houver aceito a saída do outro. Motivos
minação do bacilo de Koch, mas ficam com lesões residuais
justos para a ausência invalidam a pretensão do que perma-
fibrosas no pulmão.
nece em casa. Por exemplo, se o marido é um desempregado
Como se sabe, em psiquiatria, há distúrbios que po dem
e consegue emprego em o utro estado, longe do lar; se a mu-
tornar a vida em comum insuportável, mas que, em alguns
lher sai da casa dos sogros, o nde vive e é maltratada; se o
casos, são passíveis de remissão, ou mesmo cura, em longo
marido, podendo fazê-lo, recusa-se a dar-lhe o sustento etc. 1•
prazo. Certas formas de esquizofrenia podem evoluir para a
Da mesma forma, se deixa os filhos passarem necessidades
cura clínica, embora com algum tipo de sequela referente ao
voluntariamente, tendo condições econômicas de assisti-los,
psiquismo, mas de modo a permitir a convivência conjugal.
há descumprimento dos deveres do casamento.
Além disso, com a fase atual de pesquisa dos mecanismos
bioquímicos cerebrais e o aparecimento de novos fármacos,
Ruptura da Vida em Comum Há mais de 1 Ano
algumas doenças mentais podem vir a ser controladas de
É uma causa que justifica a separação judicial litigiosa in- modo a suprimir os sintomas capazes de prejudicar a vida
dependentemente de culpa do outro cônjuge. Pode ser reque- em comum. Por isso, falar-se em incurabilidade é arriscado.
rida, inclusive, pelo cônjuge que houver causado a separação. O m áximo que se pode afirmar é que, diante dos conheci-
A separação de fato, quando comprovada sua duração por mentos atuais, a doença ainda não tem cura, ou seja, sua cura
mais de 1 ano, caracteriza a impossibilidade de reconstituição é improvável. Mas, se pode ser tratada e compensada, supri-
da vida em comum. Na lei do divórcio, esse tempo era bem mindo os sintomas mais graves, há possibilidade de recom-
maior, de 5 anos. Mas, com a constituição de 1988, que per- posição do relacio namento conjugal.
mitiu o divórcio direto quando durasse a separação de fato Embora o casamento obrigue a mútua assistência e seja
mais de 2 anos(§ 6º do art. 226), o prazo foi encurtado. Mais para os bons e maus momentos, não se pode exigir o sacri-
tarde, a Lei 8.408, de 13/02/1992, reduziu-o ainda mais, para fício de um dos cônjuges de modo a torná-lo um mártir.
1 ano, conforme foi adotado pelo novo código. A referida Não é justo obrigá-lo a esperar por uma cura improvável.
ruptura pode ser aceita mesmo que os cônjuges ainda morem Por outro lado, o cônjuge doente não pode ficar abandona-
sob o m esmo teto. Basta que o autor da ação comprove, pelos do. Seria cruel deixá-lo ao desamparo no exato momento em
meios permitidos em lei, que a vida conjugal já não perdu- que mais precisa de ajuda. Por isso, o§ 3º exige que revertam
rava. Por exemplo, provar que habitavam a mesma moradia, ao enfermo todos os bens remanescentes que trouxe para o
mas em quartos diferentes, ou que cada um tinha sua vida casamento e, dependendo da convenção pré-nupcial, metade
afetiva independente, inclusive com outros parceiros. dos bens adquiridos na vigência desse.
CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento • 627

A lei do divórcio permitia que o juiz negasse o pedido Apenas os cônjuges podem pedir o divó rcio: um deles ou
de separação se essa fosse causa de agravamento do estado de ambos, a menos que um deles seja incapaz (parágrafo único
saúde do doente ou de consequências graves para a prole do art. 1582) . Nessa hipótese, o direito d e pedir, ou de se de-
(art. 62 da Lei 6.51 5/1977). O novo código não acolheu essa fender, tem que ser exercido por seu representante legal, que
postura. pode ser o curador, um ascendente ou um irmão. Aqui, entra
a perícia psiquiátrica para caracterizar a incapacidade, desde
que não tenha sido causa da separação uma doença mental.
Divórcio
Sendo esse o caso, o exame já terá sido feito durante o trans-
O novo código admite tanto a conversão da separação correr do processo de separação judicial.
judicial em divórcio como o divórcio direto. O chamado divórcio direto é o que decorre da separação
de fato por mais de 2 anos, conforme ficou estabelecido pela
Art. 1.580. Decorrido 1 ano do trânsito em julgado da Constituição de 1988 ( § 62 do art. 226) e consta do novo có-
sentença que houver decretado a separação judicial, ou digo no § 2º do artigo 1.580. Nesse caso, não há necessidade
da decisão concessiva da medida cautelar de separação dos de se pedir a separação judicial. Os registros brasileiros re-
corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão velam que cerca de dois terços dos divórcios d ecretados são
em divórcio. diretos. Sua proporção era de 2,11/1 em 1993 e de 2,37/1 em
§ l QA conversão em divórcio da separação judicial dos 2002, quando comparado com o indireto3 • É possível que in-
cônjuges será decretada por sentença, da qual não constará terfira n essa proporção o fator económico, uma vez que sai
referência à causa que a determinou. mais barato ficar separado de fato pelo tempo exigido pela
§ 2Q O divórcio poderá ser requerido, por um ou por lei e depois pedir o divórcio direto.
ambos os cônjuges no caso de comprovada separação de fato
por mais de dois anos.
Art. 1.581. .................................................. . • DOS CRIMES CONTRA O CASAMENTO
Art. 1.582. O pedido de divórcio somente competirá aos
cônjuges. O Código Penal1 2, visando a tutelar a instituição da famí-
Parágrafo único. Se o cônjuge for incapaz para propor a lia, no Título VII, tipifica várias condutas que atentam contra
ação ou defender-se, poderá fazê-lo o curador, o ascendente ela. No Capítulo I desse título, caracteriza os crimes contra o
ou o irmão. casam ento, que vão d o artigo 235 ao 240.

Segundo dados do IBGE, o número de divórcios decreta - Art. 235. Contrair alguém, sendo casado, novo casam en to:
dos no Brasil durante a década d e 1993 a 2002 aumentou d e Pena: reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
94.896 para 129.520, ou seja, mais 36%. Tal crescimento foi § l QAquele que, não sendo casado, contrai casamento
bem superior ao do número de separações judiciais. A expli- com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é puni-
cação para o fato é que tem predominado a forma direta do do com reclusão ou detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.
divórcio sobre a indireta. § 2Q Anulado por qualquer motivo o primeiro casamen-
A conversão da separação judicial em divórcio é o que to, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera -se
se chama de divórcio indireto. Para a decretação do divórcio inexistente o crime.
ind ireto, é necessário que tenha transcorrido 1 ano d esd e o Art. 236. Contrair casamento, induzindo em erro essen-
trâ nsito em julgado da sentença de separação, ou da medida cial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que
cautelar que tenha decretado a separação d os corpos duran- não seja casamento anterior:
te a tramitação do processo de separação 1• O divó rcio indi- Pena: detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
reto correspondeu a cerca de um terço dos casos no curso Parágrafo único. A ação penal depende de queixa do
da década de 1993 a 2002 3• Feito o pedido de conversão, o contraente enganado e não pode ser intentada senão depois
outro cônjuge tem que ser cientificado para se pronunciar de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro
se concorda, ou não. No caso de n ão haver concordância, o ou impedimento, anule o casamento.
divórcio passa a ser litigioso, independentemente de ter a se- Art. 237. Contrair casamento conhecendo a existência
paração sido litigiosa o u con sensu al. O divórcio consensual é de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta.
bem mais freq uente, seja ele direto ou indireto. A proporção Pena: detenção de 3 (três) m eses a 1 (um ) ano.
na d écada pesquisada foi cerca de duas vezes e meia maior do Art. 238. Atribuir-se, falsamente, autoridade para cele-
que o litigioso. Estando presentes as condições n ecessárias, bração de casamento:
por exemplo a partilha dos bens do casal, o juiz decretará o Pena: detenção de 1 (u m) a 3 (três) anos, se o fato não
divórcio, apesar do dissenso. O prazo de 1 ano após a sepa- constitui crime mais grave.
ração para a decretação do divórcio indireto tem a finalidade Art. 239. Simular casamento mediante engano de outra
de dar um tempo para que o casal tenha a possibilidade d e pessoa.
refletir mais sobre a separação, que pode ser desfeita se os Pena: detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, se o fato não
cônjuges quiserem reconciliar-se. constitui elemento de crime mais grave.
628 • CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento

Art. 240. Cometer adultério: basta que um dos cônjuges tenha casado sabendo do impe-
Pena: detenção de 15 dias a 6 (seis) meses. dimento ignorado pelo outro. É preciso que tenha usado de
§ ] QNa mesma pena incorre o corréu. ardis, manobras, enfim, algum meio para esconder a existên-
§ 2QA ação penal só pode ser intentada pelo cônjuge cia do impedimento matrimonial. Não basta a sua simples
ofendido, e dentro de um mês após o conhecimento do fato. omissão. Na vigência do antigo código, quando o deflora-
§ 3-" A ação penal não pode ser intentada: mento anterior ao casamento, ignorado pelo marido, possi-
I - pelo cônjuge separado; bilitava a anulação do vínculo, o fato de a mulher submeter-
II - pelo cônjuge que consentiu no adultério ou o per- se a uma himenoplastia para reconstituir a integridade do
doou, expressa ou tacitamente. hímen poderia dar margem à ação penal. A ocultação de pa-
§ 4º O juiz pode deixar de aplicar a pena se havia cessa- rentesco de primeiro ou segundo graus pode também servir
do a vida em comum dos cônjuges. de exemplo, desde que o cônjuge que sabe estar-se casando
com um seu irmão apresente, no processo de habilitação ao
casamento, um documento de identidade que não permita
Bigamia
ao outro saber de tal circunstância. O cônjuge enganado só
O crime de bigamia fica consumado quando alguém, na pode intentar a ação penal depois de transitar em julgado a
constância de um casamento, se casa de novo. Isso quer dizer sentença que declarou nulo ou anulado o casamento. E só ele
que a pessoa, na vigência de um primeiro casamento, assu- tem competência para prestar a queixa na delegacia policial.
me novo compromisso, segue toda a tramitação processual, Nesses casos, não pode ser feita por seu representante legal13 •
comparece à cerimônia e responde "sim" quando inquirida
pelo juiz de paz. É um crime que só se consuma depois que o Conhecimento Prévio de Impedimento
agente responde que quer casar-se e o juiz os declara casados.
Mesmo que alguém denuncie o agente e impeça o registro do Esse crime pode vir a ser praticado por um ou por ambos
novo casamento, o crime foi consumado. Se a denúncia vier os cônjuges, bastando que se casem sabendo da existência de
durante a cerimônia, antes da resposta ao juiz de paz, há a impedimento que não seja o fato de um ou ambos serem já
tentativa do crime, que só não foi ao fim por motivos alheios casados, o que seria bigamia. O impedimento a que se refere
à vontade do agente 13 . Existe o crime mesmo que o primeiro o artigo é um dos que causam nulidade absoluta do casa-
casamento tenha sido realizado havendo impedimento que mento, ou seja, todos os impedimentos previstos no artigo
o torne nulo, ou anulável. Enquanto não houver sentença 1.521 do novo Código, menos o fato de já ser casado. Não
transitada em julgado que decrete sua nulidade ou o anule, há necessidade de ocultação, como no crime do artigo 236;
ele vige. E, por isso, o agente não pode contrair novas núp- é suficiente para a incriminação o conhecimento da circuns-
cias. Se o fizer, incorre no crime de bigamia. tância impediente. O crime é de ação pública, o u seja, não há
necessidade de queixa de um dos cônjuges para que se inicie
Induzimento a Erro Essencial e Ocultação de a ação penal. Por exemplo, se um dos cônjuges é viúvo em
Impedimento função de homicídio de seu companheiro e sabe que o ou-
tro tomou parte no crime e, mesmo assim, casa-se com ele,
São duas condições distintas. Na primeira parte do arti- incorre no crime ora estudado. A condenação no foro penal,
go 236 do Código Penal, a ação criminosa praticada por um nesse caso, serve de prova no processo civil de declaração da
dos cônjuges contra o outro é impedir que esse venha a ter nulidade do casamento.
conhecimento de alguma circunstância sua capaz de causar
a anulação do casamento por erro essencial. Não basta, para Simulação de Autoridade para Celebração de
a tipificação do delito, que o cônjuge culpado omita alguma Casamento
informação capaz de levar à anulação do casamento. É pre-
ciso que ele aja no sentido de induzir o outro em erro. É um As autoridades que precisam estar presentes para a cele-
crime comissivo. Por exemplo, se o cônjuge culpado oculta bração do casamento são o juiz de paz e o oficial do registro
do outro que seja tuberculoso, não se configura o elemento do civil. Qualquer pessoa pode vir a praticar esse crime desde
crime. Só estaria caracterizado o induzimento em erro se ele que se atribua a competência para exercer as funções dessas
mostrasse um falso exame de sanidade física. Além do mais, autoridades, inclusive um juiz de paz que venha a atuar fora
é preciso, para que o cônjuge enganado entre com a queixa- da sua jurisdição. Para a consumação do delito, é bastante
crime, já que é um crime de ação privada, que a sentença de que o indivíduo se faça passar por autoridade, mesmo que o
anulação do casamento já tenha transitado em julgado. En- casamento não se realize.
quanto não houver a anulação do casamento pelo imputado Mas o crime pode ser subsidiário de um delito maior,
erro essencial, o cônjuge enganado não poderá dar início à constituindo um dos seus elementos. Bastos10 referia um
ação penal. caso em que um porteiro de um edifício de Copacabana es-
A parte final do artigo diz respeito à ocultação de algum tava noivo de uma moça que trabalhava como doméstica e
tipo de impedimento legal ao matrimônio. Novamente, não que só admitia ter conjunção carnal com ele depois do casa-
CAPITULO 28 Aspectos Médico-legais do Casamento • 629

mento, embora ambos fossem maiores de idade. Para conse- requer o registro visual do ato libidinoso em si. O fato de
guir possuí-la sexualmente, ele simulou uma cerimônia de ser a pessoa casada encontrada trancada em um quarto com
casamento, na qual um colega seu de profissão compareceu outra que não o cônjuge, sem roupas, indica a realização de
como sendo o juiz de paz, portando um livro pesado de re- algum ato sexual inequívoco. A jurisprudência tem aceito
gistros de ocorrências de outro condomínio como se fosse todos os tipos de provas no crime de adultério, desde a teste-
um livro de registro civil. Terminada a "cerimônia'; o casal munhal até à pericial. No caso da conjunção carnal, a pesqui-
foi para um hotel próximo onde consumaram o casamento. sa de esperma na cavidade vaginal, ou a rotura himenal se for
Na manhã seguinte, arrependido de tê-la iludido, o homem adultério do marido com uma moça virgem. Eventualmente,
confessou que tudo não passara de uma farsa. Revoltada, ela a presença de gravidez na concubina pode servir de prova
foi à delegacia da jurisdição e fez uma notitia criminis (vulgo desde que se estabeleça pericialmente a filiação, por exemplo,
"queixa" ) do fato, que foi caracterizado como posse sexual por um exame do DNA.
mediante fraude. No caso, a pessoa que celebrou o casamento A ação penal só pode ser iniciada por queixa do cônjuge
atribuiu-se falsamente a qualidade de juiz de paz, mas, na enganado, não se admitindo que seja representado por outra
verdade, foi coautor de um crime maior. pessoa. E estipula o prazo de 1 mês a partir do conhecimento
do fato para fazê-lo. Passado esse prazo, decai o direito do
cônjuge enganado de processar o adúltero(§ 2-º-). Da mesma
Simulação de casamento
forma, se o enganado, expressa ou tacitamente, perdoa o ou-
O sujeito ativo desse crime, segundo alguns autores, pode tro, perde o direito à ação penal (§ 3-º-). A comprovação mais
ser qualquer pessoa 14 • Mas há quem defenda que apenas um frequentemente aceita de perdão tácito é a coabitação, a volta
ou ambos os cônjuges podem cometê-lo. Lacerda' 3 afirma à vida em comum depois de saber do adultério' 3 •14 • O juiz
que a falsa cerimônia pode ser arquitetada por um dos côn- pode deixar de aplicar a pena se já havia cessado a vida em
juges, sem ou com o conhecimento do outro. O crime em comum entre os cônjuges ou se o enganado havia praticado
tela é simular o casamento mediante engano de outra pes- qualquer dos fatos que permitem ajuizamento do pedido de
soa, que pode não ser o outro cônjuge. No caso de um dos separação litigiosa.
cônjuges ser pessoa de idade entre 16 e 18 anos, o casamento
depende da autorização do seu responsável. Se esse menor
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
souber da farsa, o engano será relativo ao responsável pelo
menor, cuja autorização é obtida mediante fraude. Ambos os
1. Bastos IN. Comunicações pessoais.
nubentes terão praticado o crime mediante engano do res- 2. Brasil, Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
ponsável pelo meno r. Mas o menor é inimputável. A simu- 3. Brasil, Código Penal, Decreto-lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940.
lação de casamento no caso narrado por Bastos foi cometida 4. Broderick GA. Oral pharmacotherapy a nd the contemporary eval-
pelo no ivo, enquanto o que se fingiu de juiz teria praticado uation and management of erectile dysfunction. Rev Urol; 2003.
o crime do artigo 238. Mas ambos, na verdade, praticaram 5(suppl. 7):s9-s20.
5. Delmanto C. Código Penal Comentado. 2• ed . Rio de Janeiro: Li-
um crime maior, ou seja, posse sexual mediante fraude, um vraria e Editora Renovar Ltda.; 1988.
como autor e o outro como coautor. 6. Diniz MH. Direito Civil Brasileiro. 52 vol. 17• ed. Direito de Família.
São Paulo: Editora Saraiva; 2002 .
7. Gonçalves C. Citado por Sílvio Rodrigues.
Adultério 8. Guyton AC, Hall JE. Reproductive and hormonal functions of the
male (and the pineal gland). In: Textbook of Medical Physiology.
O adultério é um crime que exige, por definição, dupla 9•h ed. Philadelphia: W. B. Saunders Company; 1996. Capítulo 80, p.
autoria. Não existe adultério sem um coautor do crime. Por 1003-1016.
isso, o § 1-º- do artigo 240 impõe ao corréu a mesma pena 9. Ham AW, Cormack DH. O sistema reprodutor masculino. In: His-
aplicada ao autor, ou seja, o cônjuge adúltero. Não consti- tologia. Tradução para o português por Antônio Baptista Oliveira
Filho et ai. 8• ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan SA;
tui adultério o fato de a pessoa casada ter sido forçada ao 1983. Capítulo 2 7, p. 821-846.
ato sexual, como no estupro o u na posse sexual mediante 10. Hungria N, Lacerda RC. Comentários ao Código Penal. 4' ed. Rio de
fraude. Janeiro: Companhia Editora Forense; 1959. vol. VIII, arts. 197 a 249.
Há alguma controvérsia quanto à ação exercida por um 11. IBGE. Disponível em: http://www.sidra.ibge.gov.br/. Acessado em:
dos cônjuges que constitui o adultério, quer dizer, quanto 25 abr. 2004.
12. Kaiser FE. Erectile dysfunction. de Merck Manual ofDiagnosis and
ao ato libidinoso que o pode caracterizar. Delmanto 14 afirma Treatment. Disponível em: //h ttp://www.merck.com/mrshared/
que a jurisprudência tem consagrado que só constitui adul- mmanual. Acessado em: 21 abr. 2004. Capítulo 220, Seção 17.
tério a prática da conjunção carnal de um dos cônjuges com 13. Lacerda RC. Dos crimes contra a família. In: Comentários ao Código
uma pessoa fora do casamento. Mas Hungria' 5 admite que Penal. Nelson Hungria, Romão Cortes de Lacerda, eds. Rio de Ja-
o crime pode ser caracterizado pela realização de qualquer neiro: Companhia Editora Forense; 1959. Vol. VIII, arts. 197 a 249.
14. Rodrigues S. Comentários ao Código Civil. Parte Especial do Di-
ato sexual inequívoco, não apenas um afago ou um beijo. reito de Família. São Paulo: Editora Saraiva; 2003. Vol. 17. arts. 1511
Subentendem-se, no caso, as cópulas ectópicas, por exemplo a 1590.
o coito anal. Além do mais, a comprovação do adultério não 15. Sant'Anna N, Bastos IN. Comunicação pessoal.
Hygino de C. Hercules

A formação de um novo ser humano, produto da união de mulheres solteiras e de adúlteras. Por causa da liberação
entre homem e mulher, nem sempre desperta reações de ale- dos costumes, tem sido usado para impedir que adolescentes
gria. O fruto do amor, em geral esperado com carinho por cheguem à mesa de parto. O aborto é, por assim dizer, pro-
representar a perpetuação da espécie e a continuação do pro- curado como solução para tais problemas pessoais.
cesso vital, pode causar sentimentos de rejeição quando con- Pode-se afirmar que a prática do aborto origina-se na
siderado inoportuno ou não desejado. Tal aversão ao novo falha da anticoncepção e que a gravidez não desejada é o co-
ser, quando levado às últimas consequências, culmina com a rolário do desconhecimento, do uso inadequado ou da falha
ocisão do concepto - o aborto criminoso. dos processos anticoncepcionais. Estima-se que ocorrem,
Os obstetras chamam de aborto o produto eliminado anualmente, 80 milhões de gestações não desejadas no mun-
pelo trabalho de abortamento. Para eles, há aborto quando do e que mais da metade são interrompidas pela provocação
a interrupção da gravidez ocorre antes da 20ª semana 1•2• De do aborto. É correto afirmar que, dentre todas as gravide-
acordo com a OMS e a FIGO, é a eliminação de um pro duto zes, 62% geram produtos vivos, 20% são interrompidas por
com menos de 500 g, o que equivale mais o u menos a 20 a aborto provocado e 18% sofrem aborto espontâneo ou dão
22 semanas, contando-se a partir da data de início da últi- origem a natimo rtos5 •
ma menstruação 3• Mas, atualmente, há grande variação com Há uma relação direta entre a prática do aborto e o pla-
relação à capacidade de sobrevivência de recém-nascidos nejamento familiar, direito universal de todos os casais, re-
de peso extremamente baixo (menos de 1.000 g, segundo a conhecido pela Organização das Nações Unidas em reuniões
CID-10), havendo registro de vários casos entre 500 e 600 g4. de 1974 e 19846 e ratificado pelo Programa de Ação da Con-
Perante a lei, aborto é a in terrupção dolosa da gravidez, à qual ferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
se segue a morte do concepto, independentemente da dura- realizadas no Cairo em 19947 . O Estado brasileiro garante
ção da gestação. A obstetrícia preocupa-se com a capacidade aos cidadãos o acesso gratuito ao planejamento familiar no
de sobrevivência d o novo ser fora do útero, enquanto a le- § 7ll. do artigo 226 da Constituição 8•
gislação volta-se para a proteção jurídica, não importando
a época em que se realize a interrupção. O que preocupa o Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial pro-
legislador é a agressão à vida perpetrada pelo aborto provo- teção do Estado.
cado. Enfim, o seu animo necandi. Já o obstetra tem o interes-
se voltado para o aborto espontâneo, no sentido de estudar § 1~ Fundado nos princípios da dignidade da pessoa
suas causas para poder evitá-lo. humana e da paternidade responsável, o planejamento fa-
A prática do aborto remonta aos primórdios da civiliza- miliar é livre decisão do casal, competindo ao Estado pro-
ção. Entre os mo tivos que levam a mulher a procurá-lo estão piciar recursos educacionais e científicos para o exercício
os de o rdem econômica, social, eugênica, sentimental e tera- desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte
pêutica. Tem sido buscado para esconder gravidez ilegítima de instituições oficiais ou privadas.

631
632 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

A regulamentação desse princípio veio com a promul- Tabela 29.1. Taxas de crescimento da população mundial de
gação da Lei do Planejamento Familiar (Lei 9.263 de 12 de 1750 a 1980*
janeiro de 1996) . Ano Habltlntea (Bllhllel) e..... Anal (%)
Nas sociedades em que não há um planejamento fami-
1750 1,0 0,06
liar adequado, muitas gestações não desejadas acontecem e
culminam no aborto provocado, ou no parto. Isso se traduz, 1850 1,3 0,44
finalmente, por demasiada expansão demográfica ou por au- 1900 1,7 0,54
mento da incidência do crime de aborto. 1950 2,5 0,77
1970 3,8 1,71
• ASPECTOS DEMOGRÁFICOS E INCIDÊNCIA 1980 4,1 1,71
DO CRIME DE ABORTO *Jessé Montello"-

O desconhecimento de m étodos anticoncepcionais efi-


cientes levou ao aumento progressivo da população mun- futuro alertaram os governos, e as previsões catastróficas
dial, a despeito da ocorrência de pandemias e de grandes malthusianas acabaram por não se concretizar. A partir da
conflitos armados. Menezes9 refere que à época de Cristo a década iniciada em 1970, alguns países superpovoados como
população mundial era de 250 milhões de habitantes, que a China reduziram o ritmo de crescimento. Mas, apesar dis-
levou 1.650 anos para dobrar, tornou a duplicar-se após 200 so, hoje, 97% do crescimento da população mundial vêm dos
anos e o repetiu em apenas 75 anos. Em mais 45 anos tornou países em desenvolvimento " .
a dobrar, chegando a 4 bilhões de pessoas em 1970. Seus da- No Brasil, houve uma redução do ritmo de expansão
dos são próximos dos números citados por Montello'º e pela populacional nas últimas décadas em função da adoção de
ONU" (Tabela 29.1eFig.29.1). políticas de maior assistência à população de baixa renda,
Na Figura 29.l, nota-se que o crescimento demográ- embora se reconheça que ainda estamos longe do ideal.
fico, a partir da segunda metade do século XX, diminuiu, Nosso primeiro recenseamento, feito em 1872, revelou uma
estabilizou-se e passou a encolher nos países desenvolvidos, população de 9.930.000 habitantes 13 • De lá para os dias
enquanto continuou a expansão nos países menos desenvol- atuais, houve um crescimento que se acelerou até o início
vidos da África, Ásia e América Latina. Essa expansão decor- da década de 1960 e foi gradualmente diminuindo (Tabela
reu do contínuo aumento da natalidade e da redução dos 29.2). Entre os anos de 2001 e 20 10, ficou em 1,23% uma
índices de mo rtalidade em função do aprimoramento da taxa que pode ser considerada adequada para um país com
medicina. As projeções nada animadoras quanto às possibi- baixa densidade demográfica como o nosso (22,40 habitan-
lidades de alimentar e de oferecer trabalho à população no tes/km2em 2010)' 2.

População em bilhões

2003: 6,3 bilhões


6 ~~~~~~~~~~~~~~~~

Países menos desenvolvidos

Palses mais desenvolvldos


o ~~~~~~-+-~~~~~~1--~~~~~-+-~~~~~~1--~~~~~-

1950 1970 1990 2010 2030 2050

Figura 29 .1 . População mundial, 1950 a 2050: projeção média. Adaptado de 2003 World Population Data Sheet, Divisão de População das Nações
Unidas.
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 633

Tabela 29.2. Evolução da população brasileira12•13


Pop1l1910 10 R11I do Craclllllllllo IMdlo Dlnlldlde DemogrMla
Perfodo PerfOdo X 1.0• Anllll (%) (hlllltlnlllJlonl)
1872 a 1890 14.334 2,01 1,68
1890 a 1900 17.438 1,98 2,05
1900 a 1920 30.636 2,88 3,60
1920 a 1940 41.165 1,49 4,83
1940 a 1950 51.942 2,39 6,10
1950 a 1960 70.070 2,99 8,23
1960 a 1970 93.139 2,89 10,94
1970 a 1980 119.071 2,49 13,99
1980 a 1991 141.715* 1,93 16,65
1991 a 2000 169.799 1,64 19,95
2000 a 2010 190.733 1,23 22,40
*Ano de 1989.

Tabela 29.3. Taxas de fecundidade total no Brasil* eia diferente. Do mais eficiente para o menos importante, te-
mos: 1) esterilização; 2) dispositivo intrauterino (DIU), pílu-
Ano TUI
las e anticoncepcionais injetáveis; 3) camisinhas, diafragmas
1950 6,21 e espermicidas; 4) os tradicionais como coito interrompido,
1960 6,28 abstinência seguindo tabela etc.
1970 5,65 No Brasil, o uso de contracepção tem aumentado a partir
da década de 1960. Trabalho de Mumford e Kessel 18 atribuiu
1980 4,19
ao Brasil uma prevalência de uso de algum método anticon-
1990 ? cepcional entre as mulheres com vida sexual ativa em torno
2000 2,32 de 40 a 59%, o que os autores consideraram uma taxa alta.
2010 1,86 O relatório do Population Reference Bureau para 2003 refere
uma prevalência de 76% para as mulheres casadas brasilei-
*Fontes: Montello"·" , Datasus" e Wikipedia" .
ras. Dados do ano de 2006 podem ser vistos na Tabela 29.5.
A Tabela 29.5 mostra que cerca de 2/3 das mulheres usam
Entre as variáveis a serem analisadas quando se quer algum m étodo anticoncepcional e que um pouco mais de
um quinto estão esterilizadas. Mas, considerando-se as não
acompanhar as tendências de modificação da população ao
esterilizadas, a possibilidade de gravidez indesejada perma-
longo dos anos, está a taxa de fecundidade total das mulheres.
Significa o número médio de filhos por mulher ao longo de nece, principalmente se se levar em consideração o frequente
sua vida reprodutiva (15 a 49 anos), se mantida a distribuição mau uso dos outros métodos.
nas faixas etárias do ano considerado 16 • No Brasil, tem havido Outro fato r que tende a aumentar o número de abortos
em nossa sociedade é a precocidade da atividade sexual em
uma queda consistente desde a década de 1960 (Tabela 29.3)
adolescentes e a proporção crescente de mulheres indepen-
graças ao trabalho de difusão de conhecimentos sobre méto-
dentes, isto é, que não têm um parceiro fixo embora mante-
dos anticoncepcionais, à atuação de ONGs com o, por exem -
nham atividade sexual frequente. Admite-se, inclusive, que
plo, a Bemfam e ao aumento das taxas de aborto ilegal14 •17 •
haja um padrão de relação entre o aborto e o uso de con-
É interessante comparar a taxa brasileira atual com a dos
tracepção na América Latina. O aborto precedeu o advento
países mais populosos do mundo, tanto desenvolvidos quan-
to em desenvolvimento (Tabela 29.4). da pílula anticoncepcional, aumentou sua escala no início da
era da pílula por causa da liberação sexual da mulher, mas
Observando a Tabela 29 .4, vemos que, entre os países em
tende a diminuir em longo prazo, à medida que a prevalência
desenvolvimento mais populosos (China, Índia, Indo nésia,
de bons métodos de contracepção aumentar 17 •
Brasil e Paquistão), o Brasil e a China são os que têm a menor
taxa de fecundidade total. A explicação pode ser procurada
Incidência
na análise das duas causas principais de redução da natalida-
de - a contracepção e o aborto. Com base em dados recentes5.i0 , calcula-se que, no mun-
Os métodos de contracepção podem ser divididos, de do inteiro, anualmente, são feitos cerca de 22 milhões de
acordo com Singh e Sedgh 17 , em quatro grupos com eficiên- abortos legais e 20 milhões ilegais. Houve uma redução do
634 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

Tabela 29. 4. Taxas de fecundidade total no Brasil e outros países 11


Para 'Dln de fl•dldade PoPlllflo Alual x 1• PapulallO Elll•da x 1• em 21125
Paquistão 3,6 177 230
Índia 2,6 1.241 1.459
Indonésia 2,3 238 273
EUA 2,0 312 351
Brasil 1,9 191 216
Rússia 1,6 143 139
China 1,5 1.346 1.404
Japão 1,4 128 119

Tabela 29.5. Percentual de mulheres em uso de métodos contraceptivos por faixa etária , no Brasil , em 2006*
Idade A111m Mttodo E*lllZlllO Feminina POula Clmlllnlla Demais Mttodoa**
Total 67,8 21 ,8 22,1 12,9 11,0
15 a 19 36,7 0,0 18,0 13,9 4,7
20 a 24 66,1 2,3 36,7 17,5 9,7
25 a 29 71,8 12,4 34,2 13,3 11 ,8
30 a 34 78,5 26,7 22,8 13,2 15,8
35 a 39 79,4 37,8 16,7 10,4 14,5
40 a 44 80,1 41,3 12,7 12,5 13,5
45 a 49 67,1 45,7 6,4 7,1 7,8
'Fonte: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2008/f14.htm" .
"Inclui esterilização do parceiro.

número de abortos legais quando comparamos com os da- contra quem pratica o aborto, mesmo nos países de legisla-
d os referidos na primeira edição deste livro 21 , em que regis- ção mais liberal2°.
tramos 26 milhões. A taxa global anual de abortos em 1.000 Na avaliação do número de abortos em países de legislação
mulheres na idade reprodutiva (dos 15 aos 44 anos), que era restritiva como o Brasil, nos quais mais de 95% são feitos de
d e 357 caiu para 26 nos países desenvolvidos e para 29 nos mod o inseguro, é preciso usar métod os indiretos, principal-
países em desenvolvimento 5• Estes números mostram que a mente a contagem das internações hospitalares por compli-
queda ocorreu nos países liberais e que a restrição legal vi- cações do aborto. Sabendo-se a incidência geral das com -
gente na maioria d os não d esenvolvidos não consegue dimi- plicações esperadas pela prática de abortos clandestinos, é
nuir a prática. Na verdade, as menores taxas são encontradas possível calcular o seu número total na sociedade a partir da
em países mais liberais, como a Bélgica e a Holanda, com ta- listagem de atendimentos registrados na rede hospitalar 7• 17 •
xas de 7/ 1.000 7 • Quando o aborto é permitido, os dados re- Segundo a OMS, aborto inseguro é aquele feito por pessoal
ferentes à sua prática podem ser obtidos das estatísticas ofi- mal treinado e/ou em ambiente sem o mínimo necessário de
ciais. Contudo, mesmo entre esses, pode haver dificuldade se condições técnicas conforme os padrões médicos 20•
a sua notificação não for compulsória. Em 1999, H enshaw e De acordo com a sexta edição do Relatório Mundial da
cols.7 fizeram uma revisão da prática do aborto em esca- OMS sobre aborto inseguro no mundo 20 , as taxas de aborto
la mundial e encontraram dificuldades no cômputo total, inseguro são muito maio res nos países em desenvolvimento
m esmo em países com legislação mais liberal, com o a Fran- (16 por 1.000 mulheres) do que nos d esenvolvidos (1 por
ça e a Itália. Para a avaliação, basearam -se tanto nas tabelas 1.000 mulheres) . Neste documento, há uma comparação en-
e estatísticas oficiais quanto nas informações prestadas por tre os dados de 1990 com os de 2008, que mostra redução
especialistas locais. As dificuldades iam d esde a subnotifica- global dessas taxas, principalmente na América do Sul (atual-
ção até à duplicidade de listagens oficiais. No total registra- mente 32/1.000), onde a queda foi superior a 30%. Mas, na
do pelos autores no primeiro mundo, 79% vieram das lista- África Central, elas mais do que dobraram.
gens oficiais e 21%, de estimativas feitas pelos especialistas No Brasil, que tem legislação restritiva, vários autores
locais. Entre as dificuldades na obtenção de números mais têm procurado dimensionar o problema da prática de abor-
fidedignos estão certo grau de preconceito moral e religioso tos inseguros. Fo nseca22 , considerando que as mulheres que
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 635

Tabela 29.6. Incidência de abortos na clientela do Serviço de Ginecologia da UFRJ - Dados de 500 fichas em cada ano
li da Galtlfl• li da Allortal
Ano Tolll 1Mdl1 Tolll (%)* ProvoCld• (P) Elponll•• (E) PJE
1958 2.475 4,95 615 (24,85) 341 274 1,24
1968 2.633 5,22 889 (33,76) 522 367 1,42
1979 1.801 3,60 578 (32,09) 339•• 239 1,42
'Porcentagem de gestações interrompidas por aborto.
"Presumimos que a proporção de abortos provocados e espootâneos nâo se alterou, apesar dos avanços da medicina. É provável que o número tenha sido maior.

buscam tratamento ginecológico não costumam esconder estimaram tanto as taxas de aborto por 1.000 mulheres em
do médico assistente se fizeram aborto ou não, analisou idade fértil ( 15 a 49 anos) quanto a percentagem de gestações
1.000 fi chas retiradas aleatoriamente do ambulatório do normais interrompidas pelo aborto. A taxa m ede a prevalên-
Serviço de Ginecologia da UFRJ, sendo 500 do ano de 1958 cia do aborto na sociedade e a percentagem , a tendência das
e o utras 500 do ano de 1968 . Verificou que os d ois grupos mulheres em terminar as gestações indesejadas pelo aborto.
eram semelhantes quanto à idade e ao número de vezes em A dife rença das duas medidas pode ser percebida num cená-
que engravidaram. Mas as do grupo de 1968 relatavam práti- rio em que a fecundidade diminua po r ação de contracepção.
ca significativamente mais alta de abortos. Seus dados fo ram Aqui, para manter a m esm a taxa de abortos por 1.000 mu-
atualizados po r nós para o ano de 1979, no mesmo ambula- lheres, necessariamente, cada uma tem que aumentar o per-
tório, onde revimos outras 500 fichas 23 • O conjunto desses centual de abortos realizados, uma vez que o grupo passou a
dad os está na Tabela 29.6, que evidencia redução significati- engravidar menos.
va da fertilidade das mulheres no ano final da amostragem. A fim de evitar distorções causadas pelo baixo risco pro-
Mas a percentagem de gestações interrompidas po r abortos veniente de abortos seguros, que levam a um menor número
não se reduziu na mesma propor ção. Admitindo -se que o de complicações e de internações hospitalares, e pelo risco
número de abortos espo ntâneos tenha regredido, em fun ção maior decorrente dos feitos de modo rude e precário, aquelas
dos avanços da medicina, conclui-se que deve ter havido au- autoras atribuíram um peso maior ao número de internações
mento do n úmero de abortos provocados. por complicações de aborto registradas nos centros m ais pro-
Dados publicad os por Singh e Sed gh ' 7 dão conta de uma vidos de recursos de assistência m édica. No Nordeste, o peso
diminuição da fecundidade d as brasileiras causada em parte tem que ser menor que o usado para o Sudeste. Por exemplo,
pelo aumento d o número médio de abortos feitos por cada peso 3 significaria que, para cada três abortos, apenas uma
mulher nos anos de 1980, 1986 e 199 1. Seus dados podem mulher buscaria tratamento hospitalar por complicações.
ser observados na Tabela 29.7, que correlaciona o número de Logo, havendo dez internações, teria havido 30 abortos na
gestações, de nascimentos e de abortos nos 3 anos. comunidade atendida pelo hospital (10 x 3). Desse modo,
Enquanto a média anual de abortos por mulher teve um calcularam que o peso a ser usado para o Brasil em 1980 teria
aumento de 75%, o de gestações caiu apenas 17%. Assim, a que ser 3,50, em 1986 seria de 5,00 e em 199 1, de 5,25. O au-
redução da taxa de fecundidade total deu-se muito mais por m ento d os pesos foi necessário por causa do aprimoramento
influência da prática do aborto do que pela contracepção. da nossa medicina nas últimas décadas. Os números estima-
As Tabelas 29.6 e 29.7 demonstram, respectivamente, o au- dos por Singh e Sedgh 17 aparecem na Tabela 29.8.
mento da prática de abortos no Rio de Janeiro e no Brasil ao Alguns comentários merecem ser feitos. Em primeiro lu-
lo ngo do perío do mencionad o em cada trabalho. gar, a taxa brasileira de abortos de 39,3 para o ano de 1991
Analisando o número de internações por complicações pode ser consider ada alta se comparada com as atribuídas
de aborto provocado nos registros do Datasus, dad os cen- por Henshaw7 para o mundo inteiro (35/ 1.000) e par a os EUA
sitários fornecidos pelo IBGE e outros colhidos em teses (22/ 1.000), o nde é permitido sem restrições no primeiro
académicas brasileiras sobre o mesmo tema, Singh e Sedgh ' 7 trimestre. Em segundo lugar, nota-se que a proporção de
gestações interro mpidas por abortos aumento u em todas as
regiões. Em terceiro lugar, os rumos distintos tomad os pelas
Tabela 29. 7. Número médio de gestações, partos e abortos taxas e proporções do Nordeste e da Região Sul podem ser
por mulher, no Brasil* explicados pelo d esnível cultural, que interfere na eficácia e
Ano Plrtal no uso dos métodos anticoncepcionais17 •
1980 5,3 4,5 0,8 Todos os trabalhos e dados citados até aqui convergem
para um fato: aumento acentuado da prática do aborto em
1986 4,7 3,8 0,9
nosso país até os primeiros anos da década de 1990. Entre as
1991 4,4 3,0 1,4 explicações propostas, estão o mau uso dos métodos anti-
' Dados de Singh e Sedgh"- concepcionais, o aumento da proporção de jovens solteiras
636 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

Tabela 29. 8. Taxas de aborto e proporção de gestações normais terminadas por aborto no Brasil e algumas de suas regiões17
Tm de AllCHIGI* Propcqlo de Alloltol**
111110 1•a 1m 1•1 1w 1• 1•1
Brasil 22,4 28,0 39,3 14,8 19,3 31,2
1

Rio de Janeiro 20,8 24,4 43,7 18,1 23,8 38,5


São Paulo 38,1 40,1 37,5 26,2 30,5 32,5
Nordeste 14, 1 22,6 59,1 8,1 14, 1 37,9
Sul 22,8 18,8 16,3 17,3 16,7 16,5
'Número anual de abortos por 1.000 mulheres de 15 a 49 anos.
"Percentagem de gestações normais interrompidas por aborto.

com vida sexual ativa e d e mulheres independentes sem um pesquisa, os epidemiologistas daquele instituto constatar am
parceiro fixo e, fundamentalmente, o aparecimento de uma que ho uve redução das taxas d e gravidez e de abortos em
droga abortiva de baixo custo, alta eficiência e baixa incidên- adolescentes entre 1994 e 2000, principalmente entre as de
cia de complicações - o misoprostol. melhor poder aquisitivo e maior escolaridad e. Atribuíram o
É uma prostaglandina El sintética que foi introduzida declínio tanto ao implemento do uso de anticoncepcionais
no Brasil em 1986 como adjuvante no tratam ento d a úlcera quanto a uma diminuição d a atividade sexual das jovens. As
péptica com o nome comercial de Cytotec24·25. Assim que sua de m enor padrão econô mico, porém, apresentaram aumen-
ação abortiva veio a público, suas vendas explo diram, e, no to das taxas de aborto ao longo do períod o, caracterizando
início de 199 1, já atingiam 50.000 por m ês26. No mesmo ano, a maior influência do fator econômico 32. Considerando-se
o Ministério da Saúde regulam en tou sua venda e passou a que, no Brasil, há grande concentração de renda e que a
exigir receita médica em duas vias. A Portaria 344 da Secreta- maior parte da população é de pessoas carentes, podemos
ria de Vigilân cia Sanitária, d e 12/05/98, inclui o misoprostol admitir que as adolescen tes brasileiras continuam a engravi-
na listagem Cl de "outras substâncias sujeitas a controle es- dar m uito e a parir m enos em função d a prática d o aborto.
pecial"27. Naquele tempo, o Cytotec já respo ndia por metade
d os abortos ilegais no Brasil26.
Em relato feito em 2006, Monteiro e Adesse28 referem • ASPECTOS LEGAIS MUNDIAIS
que, a partir de 1992, o número de abortos provocad os no
Brasil veio diminuindo até o fim da década e se estabili- As normas penais, reflexo direto d a m oralidade vigente
zou pouco acim a de um milhão até o ano de 2005. As taxas no seio d as socied ades, têm mudado, confo rme a época e
anuais de aborto por 1.000 mulheres entre 15 e 49 anos caí- os povos, no que se refere ao direito de abortar. Em geral,
r am de 37 em 1992 par a 21 em 2005. A queda mais significa- os fatores sociais que tendem a d esencadear um controle da
tiva ocorreu na região Nordeste, de 54 para 27. natalidade também atuam no abr andamento das penas co-
Outro elemento importante na gênese do aborto provo- minad as ao aborto, podendo, mesmo, levar à sua liberação.
cado é a proporção de gr avidez em adolescen tes. Dados dos Um dos m ais antigos códigos d e que se tem registro na
anos 1990 revelam que 15 milhões de adolescentes entre 15 e história d a Humanidade - o de Ham urábi, Babilônia, século
19 anos dão à luz a cada ano no mundo, o que corresponde a XVIII a.C. 33 - punia o aborto quando causado por terceiros
m ais de 10% do total de nascimentos. A mesm a fonte refere em decorrência de lesões cor porais. As penas, contudo, va-
que cerca d e 10% de tod os os abortos mundiais são feitos em riavam com o nível social da vítima e não com a intenção do
mulheres nessa faixa etária 29• No Brasil, considerando até a agente. O autoaborto não era punido. Po rém, pouco tempo
idad e d e 19 anos inclusive, houve um aumento de 63% dos depois, os assírios condenavam à morte por empalam ento
partos em adolescentes entre 1970 e 1980 (d e 426.008 para a mulher que abortasse. Entre os hebreus, a interrupção da
695.319) 29'. Contudo, houve u ma redução da proporção dos gravidez só se tornou ilícita muito depois da Lei Mosaica34 .
partos em ad olescentes quando com param os com os dados Na Grécia Antiga, era comum a provocação d o aborto.
atuais. Em 1980, a proporção de nascidos vivos de m ulhe- Aristóteles o preconizava, inclusive por motivos econômicos,
res nessa faixa etária foi d e 26,66% do total, mas caiu para quando o feto ainda não tivesse recebido o sopro vital, a alma.
22,63% no ano 2000 12·30. Calcula-se que, 3 1% d as mulheres Seria um meio de m anter o equilíbrio entre a população e os
br asileiras que estão na faixa de 20 a 24 anos tiveram filho meios de subsistência. De certo mod o, foi um precursor das
antes d e completar os 20 anos 29. Fenômeno semelhante ocor- ideias de Malthus. Platão o aconselhava em gestantes com
reu nos EUA, onde a legislação, ao contrário da nossa, é per- mais de 40 anos34 • Mas Hipócrates, o pai d a Medicina, em
missiva. Estudo do Alan Guttmacher Institute encontrou uma parte do jur amento imposto aos m édicos como dever de
incidência média d e 44% de abortos nas gestações de ado les- ofício, determinava "... a nenhuma mulher darei substância
centes no rte-americanas nos anos 198031. Mas, repetindo a abortiva .. .''.
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 637

No direito romano, houve uma fase de completa liberda- mortes maternas (MM) subiu de 64 em 1965 para atingir
de à prática do aborto, à qual se seguiu, no tempo de Cícero, 364 em 197137, pois os abortos continuaram a ser feitos, mas
a aplicação de penas severas, inclusive a morte, se o abortei- na clandestinidade, de modo inseguro. Avaliando como per-
ro recebesse pagamento. O advento do Cristianismo trouxe centual de todas as mortes relacionadas à gravidez, subiu
maior respeito à vida e a abolição da pena capital por crime de 20% para 90%, cerca de dez vezes mais alto do que o de
de aborto34 . qualquer país europeu41. Com a Revolução Romena d e 1989,
Entre os povos bárbaros da Gália e da Germânia, o aborto houve nova liberação, que reverteu esse quadro trágico41·44 .
era punido apenas por compensação pecuniária. A quantia Embora as taxas de aborto tenham alcançado níveis altíssi-
era maior entre os francos se a m ãe morresse; entre os visigo- mos (200/ 1.000 mulheres de 15 a 44 anos, anualmente) 44 ,
dos, variava conforme o feto estivesse, ou não, conformado 35 . a MM caiu para cerca da metade logo no ano seguinte 41.
Ainda na Idade Média, por falta de bons métodos anticon- Comparando os 3 anos antes e os 3 anos depois da nova li-
cepcionais, continuava presente o espectro da gravidez não beração por meio de questionário distribuído e respondido
desejada. Os teólogos passaram a discutir sobre a validade da por 4.861 mulheres, Serbanescu e cols.44 encontraram du-
proibição do aborto. Santo Agostinho, revivendo a doutrina plicação da taxa de abortos por mulher de 1,7 para 3,4, au-
aristotélica, propôs que o aborto fosse permitido antes de 40 mento do número de gestações em 30% e redução da taxa
dias se masculino, ou de 80 dias se feminino o concepto. O li- total de fertilidade de 2,3 para 1,5. Mas relataram persis-
mite coincidia com a época da incorporação da alma ao cor- t ência de alta proporção d e gravidez indesejada por causa
po fetal.A tutela penal fazia-se sobre a alma, que seria privada de divulgação insufi ciente dos métodos contraceptivos e da
do batismo por causa do aborto. Contudo, não havia acordo carência de recursos para distribuição e venda dos materiais
quanto à época em que a alma passaria a habitar o corpo. necessá rios à população.
Por persistir o impasse, a Igreja proibiu o aborto em qualquer Com o passar do tempo, a tendência foi de um abranda-
fase da gestação, por ordem do Papa Inocêncio Xl 36 • mento das penas e de progressiva liberalização do aborto em
A Lei Carolina (Carlos V, 1553) cominava a pena de mor- todo o mundo. Hoje, mais d e 100 países permitem o aborto
te pela espada a quem fizesse uma mulher abortar, e por afo- de algum modo45 e mais de 50, onde vivem cerca de 40%
gamento para a mulher que provocasse o autoaborto, desd e da população do planeta, o admitem por qualquer motivo,
que o feto fosse animado. Na França, em 1556, Henrique II desde que realizado no primeiro trimestre5·17·46•47. Mas há
baixou um édito em que os culpados por aborto eram con- exceções representadas por legislações atuais em que não é
denados à mo rte, fosse ou n ão animado o concepto . Com permitido nem para salvar a vida da gestante, como no Chi-
a Revolução Francesa, a lei passou a isentar a mãe de pena, le e em El Salvado r41. Essa restrição absurda afetava 8% das
sendo punidos apenas os seus cúmplices 35 . mulheres do planeta nos anos 1970 37 , mas caiu para 4% n o
No início do século XX, a liberação do aborto passou ano 200045 .
a ser proposta por algumas escolas penais, com restrições O que norteou as mudanças foi a percepção de que a
maiores ou menores, conforme a época e a região. Faremos pro ibição não evitava o aborto. Apenas o tornava clandes-
alguns relatos que achamos ilustrativos a fim de que o leitor tino e inseguro, constituindo-se num problema de saúde
tenha elementos para avaliar os problemas relativos à legisla- pública. Po r isso, o foco da legislação deslocou-se da esfera
ção permissiva e à repressora. Dados mais completos e espe- punitiva para a social, com ênfase nos direitos humanos da
cíficos podem ser buscados em: 1) Zimmerman M (1976) 37; mulher. Reb ecca Cook41 enumera os direitos à vida, à saúde,
2) Cook RJ (1978) 38 ; 3) Fragoso H C (1981) 39; 4) Cook RJ à liberdade, à informação e outros reconhecidos na Confe-
( 1988)40; 5) Cook RJ (1999)41, 6) Sedgh G e cols. (2012)42 lis- rên cia Internacion al sobre População e Desenvolvimento de
tados nas Referências Bibliográficas. 1994 (Cairo) e na Plataforma de Ação da Quarta Conferência
Assim, a Revolução Socialista soviética liberou o aborto Mundial sobre a Mulher de 1995 (Beijing) . O direito à infor-
em 1926, desde que praticado por pessoa habilitada, com o mação, por exemplo, foi desconsiderado por lo ngo tempo na
consentimento da gestante, e em condições de boa higien e. O Irlanda. Lá , era proibido veicular cartazes e propaganda sobre
bem tutelado pela lei penal passou a ser a saúde da gestante, a possibilidade de fazer aborto legal na Inglaterra. Depois que
pois que seria punido o agente se a prática não obedecesse às a Corte Europeia de Direitos Humanos reconheceu o direito
n ormas de higiene e acarretasse prejuízo à saúde da m ãe. O das irlandesas, seguiu-se, em 1992, uma decisão da Suprema
motivo básico da liberação era, com o de hábito, económico. Corte irlandesa permitindo que uma menina de 14 anos, que
Não havia como uma família russa mediana alimentar muitas fora estuprada, pudesse viajar para a Inglaterra para fazer o
bocas àquela época. O resultado da aplicação dessa lei foi que, aborto. No mesmo ano, sob pressão da opinião pública, fo-
só n o ano de 1934, houve mais de 90.000 abortos em Mos- ram aprovadas por plebiscito nacional duas emendas à Cons-
cou43. A resposta ao exagero foi a revogação da lei do aborto tituição, uma permitindo a viagem e outra, o aborto no outro
em 1936. A proibição só seria su spensa de novo em 1955. país. Em 1998, o governo constituiu um grupo de trabalho
Na Ro ménia, até 1966, o aborto podia ser feito sem para fazer um anteprojeto de lei mais branda41.
restrições, bastando a solicitação da gestante37 . Nesse ano, Os diversos estatutos reguladores através do mundo,
ho uve uma radical mudança na legislação, que se tornou como vemos, vão desde a total proibição até à maior libera-
extremamente repressora 41. Como resultado, o número de ção. Mas existe to da uma gama de matizes entre um e outro
638 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

extremo. Os motivos capazes de descriminar o aborto po- pelo governo, têm que ser obtidos na rede privada. O mes-
dem ser, confo rme a legislação: 1) salvar a vida da gestante; mo acontece nos EUA. O governo norte-americano só paga
2) risco para a saúde física e/ou mental da m ãe; 3) gravidez pelos abortos terapêuticos4 1 .
resultante de estupro, incesto ou outro crime sexual; 4) ris- Às vezes, a legislação liberal vem acompanhada de exi-
co para a saúde ou anomalia fetal; 5) dificuldades de ordem gências que acabam po r dificultar o acesso das interessadas
econô mica ou social causando estresse intenso par a a gestan- ao aborto legal. Uma delas é a necessidade da obtenção de
te; 6) idade materna muito jovem; 7) falha na contracepção. consentimento de uma pessoa responsável ou de um comitê
Nas diversas situações, costumam ser impostos prazos limi- oficial. Na Turquia, a mulher tem que obter consentimento
tes além dos quais a permissão não é mais válida4 1• do marido ou companheiro, mas a regra geral em o utros paí-
A gravidez decorrente de estupro é encarada de modo ses é de que não precise. Tra tando-se de menor de idade, há a
diferente nas leis d os diversos países. A Venezuela, o Peru e necessidade de sua autorização pelo seu responsável legal em
Luxemburgo não o permitem. O prazo em que é permiti- vá rios países, inclusive os EUA. Mas, na Califó rnia, uma nova
d o vai desde gestações de 10 semanas apenas (República de lei considero u essa exigência contrária à constituição esta-
Burkina) até as de 4 meses (Guiana). O u a qualquer época dual po r ferir o direito de privacidade da meno r. Na Guiana,
da gravidez (Canadá, Romênia, África do Sul, Vietnã). Du- os médicos não precisam de auto rização dos pais nem mes-
rante a guerra da Bósnia, havia estupro sistem ático das mu- mo têm a obrigação de lhes comunicar. Em casos de estupro,
lheres pelas forças de ocupação, e a elas era negado o direito na Hungria e na Polônia, há necessidade de autorização do
de abortar. Tanto o estupro quanto a negativa fora m consi- médico-legista e/ou do promotor de justiça. Se fo r aborto no
der ados, m ais tarde, crimes de guerra4 1 . segundo trimestre, na Bélgica, é preciso ouvir o utro médico
O aborto eugênico, realizado para impedir o nascimen- em conferência4 1 .
to de fetos m alfo rmad os ou d oentes, é admitido de m aneira O utra dificuldade é a exigência de aconselhamento e de
variada. Os textos legais vão desde "ano malia fetal" à "defo r- um prazo para a reflexão depois dos conselhos. O aconselha-
m ação fetal incurável''. Há países que não o incluem no rol mento é feito por centros autorizados, oficiais ou não, que
d as permissões (Alemanha, Irlanda, Malásia, Mongólia) e informam a gestante quanto aos riscos, ao desenvolvimento
outros, como o Japão, que suprimiram a permissão legal que fetal e o seu direito à vida, e a outras opções para resolver seus
havia. Mas a m aioria permite. O tempo de gestação em geral problemas, por exemplo a adoção (Albânia, Bélgica, Cambo-
não é especificado, presumindo-se que possa ser feito a qual- ja, Guiana, Alemanha, Hungria, Polônia e outros). O tempo
quer tempo. Mas, quando expresso, vai de 40 dias (Arábia exigido para reflexão varia entre 24 horas (EUA) e 3 a 7 dias
Saudita) a 5 meses (Hungria, África d o Sul)4 1• (Bélgica, Alem anha, Hungria, Polô nia) . Alguns argumentam
A m aioria dos auto res que defendem a permissão do que esse tempo aumenta o estresse da mulher, os custos e
aborto por mo tivos socioeconômicos está de acordo que o n úm ero de visitas ao médico. Na realidade, achamos que
é um m al necessário. Que nenhum aborto é inócuo. Que é pertinente, pois permite que a mulher to me uma decisão
sempre gera sofrimento, no mínimo de o rdem mo ral. Por mais am adurecida depois de esclarecida. Além d o m ais, os
isso, propugnam pela implementação de políticas agressi- riscos não aumentam em tão pouco tempo de espera. Depo is
vas de planejamento familiar, de modo a reduzir a práti- que a Suprem a Corte dos EUA rejeitou a alegação de que esse
ca d o aborto às falhas da anticoncepção. Se a liberação do tempo de reflexão era inconstitucional, número crescente de
aborto não é seguida de investimentos em ambulató rios de estados o está exigindo 4 1•
aconselhamen to e educação sexual dos casais, a sua práti- O outro lado da legalidade da interrupção da gravidez é o
ca não declina. Prova disso, são as taxas de aborto entre as direito de a equipe médica recusar-se a fazê-lo por questões
mulheres da Bélgica e da Holanda, as menores de toda a de foro moral e/ou religioso quando não se tratar de abo rto
Europa7 • para salva r a vida da gestante. Por exemplo, a lei dinamar-
Outro aspecto a ser considerado na avaliação das con- quesa foi emendada em 1989 para se inserir dispositivo nesse
sequências da legislação sobre a prática do aborto é a via- sentido. No Sul da Itália, a recusa é tão ferrenha que o gover-
bilidade de sua obtenção pela população em geral e, em no ainda não conseguiu tornar efetivo o direito de escolha
especial, a de baixa renda. Em vários países a liberação não das mulheres41 •
foi seguida de redução das práticas clandestinas e inseguras.
Na Índia, o aborto é livre desde 1971. Mas o acesso é difícil
por falta de recursos nos serviços de saúde e por exigências • ASPECTOS LEGAIS BRASILEIROS
dos profissionais encarregados de executá-los. As mulheres
se queixam de q ue, em vá rios locais, só conseguem o abor to se Analisaremos os códigos penais republicanos, deixando
aceitarem ser esterilizadas 41 • Na África do Sul, o aborto foi de lado o código do Império.
liberad o em 1996, mas a realidade continua a ser de mu-
lheres recorrendo a métodos cruentos e inseguros po r falta Código Penal de 1890
de leitos para atender à demanda4 1• As mulheres de baixa
renda da Turquia não têm como realizar o aborto, apesar de Enquad rava o aborto como um crime contra a segurança
permitido desde 1983, porque os serviços não são custeados da pessoa e contra a vida. Estava assim redigido:
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 639

Art. 300. Provocar aborto, haja ou não a expulsão do Código Penal de 1940
fruto da concepção:
No primeiro caso: pena de prisão celular por 2 (dois) a Caracteriza três possibilidades: o autoaborto, o aborto
6 (seis) anos. consentido e o aborto não consentido. Além disso, prevê a
No segundo caso: pena de prisão celular por 6 (seis) me- forma qualificada e estabelece os casos excepcionais em que
ses a 1 (um) ano. o médico pode praticá-lo sem ser punido.
§ 1rr Se, em consequência do aborto ou dos meios empre-
gados para provocá-lo, seguir-se a morte da mulher: Art. 124. Provocar o aborto em si mesma ou consentir
Pena: prisão celular de 6 (seis) a 24 anos. que outrem lho provoque:
§ ;2Q Se o aborto for praticado por médico, ou parteira Pena: detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.
habilitada legalmente para o exercício da medicina: Art. 125. Provocar aborto sem o consentimento da ges-
Pena: a mesma precedentemente estabelecida, e a pri- tante:
vação do exercício da profissão por tempo igual ao da con- Pena: reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos.
denação. Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da
Art. 301. Provocar aborto com anuência e acordo da gestante:
gestante: Pena: reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Pena: prisão celular por 1 (um) a 5 (cinco) anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se
Parágrafo único. Em igual pena incorrerá a gestante a gestante não é maior de 14 anos, ou é alienada ou débil
que conseguir abortar voluntariamente empregando para mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude,
esse fim os meios, e com redução da terça parte, se o crime grave ameaça ou violência.
for cometido para ocultar desonra própria. Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores
Art. 302. Se o médico ou parteira, praticando o aborto são aumentadas de um terço se, em consequência do aborto
legal ou necessário, para salvar a gestante de morte inevi- ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre
tável, ocasionar-lhe a morte por imperícia ou negligência: lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas se, por
Pena: prisão celular de 2 (dois) meses a 2 (dois) anos qualquer dessas causas, sobrevém-lhe a morte.
e privação do exercício da profissão por tempo igual ao da Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
condenação. 1 - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
li - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é prece-
Entre as virtudes desse texto, encontramos a previsão do dido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de
aborto legal em função de risco de vida da mãe, no artigo seu representante legal.
302. Contudo, o médico não teria o direito de falhar. Se a
mulher morresse, apesar do aborto terapêutico, o médico Hungria 34, analisando o crime de aborto conforme os ar-
poderia ser punido por imperícia ou negligência. Isso, de tigos anteriormente transcritos, reconhece quatro elementos
certo modo, levava à omissão de socorro, também prevista no tipo: dolo, gravidez, uso dos meios necessários e morte
no código. Não se cogitava da ocorrência de lesão corporal do concepto.
grave decorrente do aborto nesse artigo nem no § 12 do ar-
tigo 300, que previa a forma qualificada pelo evento morte. Dolo
Outra aquisição, nesse Código, era a atenuação da pena para O crime tem que ser do loso, pois não existe previsão da
a gestante que cometesse o crime para ocultar sua desonra,
forma culposa de aborto no Código Penal. A ação tem que
na segunda parte do parágrafo único do artigo 301. Era o estar guiada pelo animo necandi, já que se trata de um cri-
caso de moças seduzidas e de mulheres estupradas. Se não me contra a vida. Assim, nos casos de lesão corporal de que
quisesse ser punida, a mulher teria que levar a gravidez con- resulte um aborto, o agente deve ser enquadrado no § 2rr do
sequente a um estupro até o fim 23•
artigo 129 por não ter agido com a intenção de eliminar o
Havia, ainda, falhas importantes na redação do texto
concepto. Seria um aborto preterdoloso, não doloso. Aqui,
legal. Em primeiro lugar, a expressão "fruto da concepção"
a intenção do agente é causar uma lesão corporal, o aborto
do artigo 300 é ambígua, por poder incluir a gravidez molar
não entra em suas cogitações. Caso se possa demonstrar que
com embrião atrófico e mesmo o feto já sem vida. A aplica-
o agente previra a possibilidade do aborto, mas não teria se
ção de penas diferentes, conforme o concepto fosse expulso,
importado, assumindo o risco de que ocorresse, estaria con-
ou não, era uma incongruência, pois que o bem tutelado era
figurado o concurso de crimes: lesão corporal por dolo dire-
a vida do feto. Talvez, ao admitir a não expulsão do concepto,
to e aborto por dolo eventual34 •
o legislador quisesse referir-se à tentativa do crime, em que
a gestação não interrompida seguisse seu curso. Mas cabe a
Gravidez
interpretação de o texto referir-se a um aborto incompleto,
com retenção de feto morto. Por fim, no aborto consensual, A ausência de gravidez torna impossível o crime por ine-
não se previa o agravamento da pena na hipótese de a mulher xistência do elemento passivo. Assim, uma mulher que pro-
vir a falecer em decorrência da interrupção da gravidez23 • cure uma clínica de abortos pensando estar grávida e que
640 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

seja submetida a uma curetagem, não terá cometido o crime pítulo 1 "Dos crimes contra a vida': do Título I "Dos crimes
se o material obtido pela intervenção não evidenciar a pre- contra a pessoa" do Código Penal, achamos que, para efeitos
sença do embrião. Não terá havido sequer a tentativa 48 • Isso penais, tem-se que estender a abrangência do que Hungria
pode ocorrer em casos de amenorreia causada por distúrbio refere como gravidez àquele período entre a fecundação e
hormonal em mulher de vida sexual ativa. A ausência de um a implantação do ovo no endométrio 39 • Não o fazendo, das
ser humano em desenvolvimento no útero explica por que duas uma: a) temos que admitir que o crime de aborto não
a interrupção de uma gravidez molar não constitui crime é um crime contra a vida e sim um crime contra a gravidez;
(Figs. 29.2 e 29.3). b) a vida só teria valor e seria tutelada pelo direito após a im-
O diagnóstico de gravidez presente e o de gravidez in- plantação do ovo. Ora, o agente do crime de aborto é punido
terrompida serão apreciados de maneira mais detalhada nos por impedir que a nova vida humana possa desenvolver-se.
aspectos periciais. Contudo, cabem aqui algumas conside- E, para nós, não faz diferença que essa vida seja abortada
rações de ordem doutrinária. Os estudiosos da Obstetrícia antes ou depois da nidação. Ela é ceifada do mesmo jeito.
costumam afirmar que uma mulher está grávida desde que É mais simples admitir que a mulher esteja grávida desde
tenha havido a implantação do ovo na cavidade uterina. O o momento da concepção. Essa discussão será lembrada ao
ovo, por sua vez, é o resultado da fecundação, ou seja, a fusão estudarmos os métodos abortivos.
dos gametas masculino e feminino, respectivamente, esper-
matozoide e óvulo. Como a fecundação ocorre nas trompas Uso dos Meios Necessários
e o ovo leva alguns poucos dias para migrar até à cavidade
O emprego dos meios necessários à interrupção da gra-
uterina, durante esse tempo já existe um embrião não im-
videz tem que ficar demonstrado para a tipificação do deli-
plantado (Figs. 29.4 e 29.5). Assim, a mulher teria um em-
to. Havendo o aborto, mas não tendo havido a interferência
brião em evolução no seu aparelho genital, mas ainda não
externa sobre a gravidez, ou não se podendo demonstrar a
estaria grávida. Soa um pouco estranho, mas é assim que os
sua atuação, não há como caracterizar o crime. A conclusão
obstetras conceituam a gravidez.
terá que ser por aborto espontâneo. O uso de meios inócuos,
Mas a nova vida já existe desde a fecundação. E esse fato como rezas, não enseja punição nem a título de tentativa, por
prescinde de considerações filosóficas ou religiosas. Conside-
absoluta impropriedade do meio utilizado (art. 17 do CP).
rando-se que o crime de aborto está incluído dentro do Ca-
Diz-se que o crime foi tentado quando deixou de se consu-
mar por m otivos alheios à vontade do agente (inciso II, do
art. 14 do CP) 48•

Morte do Concepto
É o fim a que se propõe o agente. Para causá-la é que
usa dos meios julgados idóneos. Caso o feto sobreviva à ma-
nobra por ter já viabilidade extrauterina, o crime não terá
se consumado, mas terá sido tentado. Nos casos em que a
manobra seja tentada em uma mulher cujo embrião já esteja

'- ~ ..n··
6 7 8 9 l'O Jl J? Figura 29.3. Corte histológico da peça da figura anterior. Há grande
Figura 29.2. Mola hidatiforme. Onome deve-se aformações em cachos alargamento das vilosidades cariais por acúmulo de líquido no seu tecido
constituídos por numerosas vesículas. Caso nº 4.791 do Laboratório de conjuntivo (parte mais clara) e hiperplasia das células trofoblásticas de
Patologia do Hospital Escola São Francisco de Assis da UFRJ. revestimento.
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 641

morto, como já vimos, tratar-se-á de crime impossível. Mais Aborto Legal


adiante, ao tocarmos no aborto legal, analisaremos a questão
A leitura do enunciado do artigo 128 registra "não se pune
do aborto de feto inviável.
o aborto praticado por médico ...". A expressão sublinhada
garante que o aborto, nas condições do artigo em referência,
Outras Considerações
não será punido. Ao pé da letra, pode-se admitir que teria
Autoaborto e Aborto Consentido havido o crime, mas que não haveria a punição. Os incisos I
Tanto a gestante que interrompe a própria gravidez (au- e II do artigo 128 impediriam a aplicação da pena, mas teria
toaborto) como a que procura alguém que lho faça e se sub- havido a conduta típica e antijurídica. Assim, teria havido o
mete à intervenção são apenadas de modo semelhante (art. crime, mas o agente não seria passível de pena. Como conse-
124 do CP ). Entretanto, o agente sofre pena mais grave do quência, mesmo nas circunstâncias do artigo 128, o aborto
que ela, porque pratica o crime do aborto consensual (art. seria ilegal49 • Mas, na verdade, os doutrinadores entendem as
126 do CP ). É oportuno enfatizar que a gestante e o agente circunstâncias descritas no artigo como ca usas de exclusão
por ela contratado, embora participem da mesma ação, co- da ilicitude, tornando a conduta lícita. Tanto é assim, que o
metem crimes distintos. Por isso, não se há de falar aqui em novo Anteprojeto do Código Penal publicado no DOU em
coautoria49• Por outro lado, se alguém participa por pagar as 25/03/1999, ao tratar do artigo 128, enuncia "não constitui
despesas, emprestar a condução para levar a gestante à casa crime o aborto praticado por médico se ..." 50 .
de saúde ou auxiliar de outro modo secundário, facilitando, O inciso Ido atual artigo 128 reza: se não há outro meio
mas não agindo na execução do crime, será punido de modo de salvar a vida da gestante. É chamado de aborto terapêuti-
mais brando do que a mulher (art. 29 do CP )48 . co ou aborto necessário. A designação de terapêutico a esse
tipo de aborto descreve o que realmente significa a interven-
Aborto Não Consentido ção. O médico assistente deve documentar bem a evolução
do caso por meio de registro periódico dos dados clínicos
Caso fique demonstrado que o consentimento da gestan- e dos exames complementares, de modo a poder caracteri-
te foi obtido mediante fraude, violência, ou grave ameaça (2~ zar a evolução desfavorável da paciente, apesar das tentati-
parte do parágrafo único do art. 126 do CP ), ou que ela é me- vas de tratamento. Se o estado gravídico continua a agravar
nor de 14 anos, alienada o u débil mental ( P parte do pará- doença preexistente da mãe ou patologia própria do ciclo
grafo único do art. 126 do CP), o crime que o agente com ete grávido -puerperal e põe em risco a sua vida, antes de rea-
é o do artigo 125. O fato de ser a mulher menor de 14 anos, lizar o aborto, é aconselhável que o m édico procure ouvir
ou alienada, ou débil mental, caracteriza a incapacidade de a o pinião de um obstetra mais experiente, uma vez que tal
consentir. Assim, o seu consentimento não tem valor legal decisão deve ser compartilhada, tão grave que é. Reforçada
e o agente tem que ser julgado por aborto não consentido, pelo colega sua convicção, deve expor à gestante os fatos e
mesmo que ela o tenha procurado para fazê-lo. Passa-se de os riscos que ela corre. Diante de concordância da grávida e
um crime agravado para a inexistência de crime se o agente comunicado o companheiro, interrompe a gravidez. Se não
for médico e obtiver o consentimento do responsável legal conseguir convencer a mulher, deve manter uma postura
pela incapaz, pois sua gravidez terá sido produto de um estu- conservadora até o limite possível de segurança. Contudo,
pro de vulnerável, conforme analisaremos adiante. se no tar o perigo iminente à vida, está autorizado a realizar
o aborto mesm o contra a vontade da paciente e de seu com -
Aborto Qualificado panheiro. Não se trata aqu i de valorizar a vida da m ãe sobre
Quando o agente provoca o aborto e, além da interrup- a do feto, pois se a gravidez evoluísse ambos morreriam34 •
ção da gravidez, sobrevêm à mulher lesões corporais de na- Segundo Briquet, "no aborto terapêutico, em verdade, não
tureza grave, tal como definidas nos§§ l º- e 2º- do artigo 129 se sacrifi ca um indivíduo a outro, senão que se salva uma
do CP, o u a gestante vem a falecer em consequência do abor- existência de duas irremediavelmente perdidas" 36 • O médico
to ou do meio utilizado para consumá-lo, está caracterizado está amparado pelo estado de necessidade. É por essa razão
o aborto qualificado. A pena é aumentada de um terço, ou que esse tipo de aborto também é conhecido como abor-
dobrada, respectivamente. Esse aumento de pena é aplicado to necessário. Não se trata de legítima defesa da mãe, uma
ao agente que fez a intervenção; a gestante, porém, sofre a vez que não se pode considerar o feto um injusto agressor34 .
pena do artigo 124 se tiver concordado com o aborto. Se a in- Nos casos de recusa da gestante, ele pode passar por cima de
tenção d o agente fosse apenas agredir a vítima, responderia sua autonomia baseado no inciso Ido§ 3º- do artigo 146 d o
por crime de lesão corporal gravíssima desde que soubesse Código Penal, que caracteriza uma exceção ao constrangi-
que ela estava grávida. Se não soubesse da gravidez, nem ha- mento ilegal.
veria o aborto preterdoloso (inciso V do § 2º- do art. 129 do É possível que surja uma situação em que uma gestante
CP) uma vez que teria incorrido em erro de tipo inevitável venha a correr perigo de vida por complicação da gravidez e
(art. 20 do CP)48 • Na hipótese de ocorrência de lesões graves que, no local, não se disponha de médico. Segundo Damásio
ou morte da mãe e sobrevivência do feto, o delito é de tenta- de Jesus, citado por Warley Belo 49, nessas circunstâncias o
tiva de aborto qualificado 34 • aborto feito por uma parteira o u uma enfermeira especiali-
642 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

zada em obstetrícia terá amparo legal desde que haja iminen- fazê-lo alegando razões de consciência, conforme lhe asse-
te perigo de vida para caracterizar o estado de necessidade. gura o inciso IX do Capítulo II do Código de Ética Médica
O inciso II do artigo 128 estabelece:" Se a gravidez resulta de 2009. Tratando-se de doente mental ou de oligofrênica, o
de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante aborto tem que ser precedido da autorização do seu respon-
ou, quando incapaz, de seu representante legal." Chama-se de sável legal, de quem o médico deve exigir um laudo médico
aborto sentimental, humanitário ou ético48 . A lei penal brasi- que ateste o distúrbio mental justificador da incapacidade de
leira assegura à mulher o direito de manter, ou não, a vida consentir da gestante.
resultante da agressão sofrida. Encontramos aqui aspectos Para que a permissão legal não fica sse restrita às mulhe-
que podemos considerar terapêuticos, já que a finalidade do res com poder aquisitivo suficiente para arcar com as des-
aborto é poupar a gestante da tortura que seria manter viva e pesas do ato, o prefeito Saturnino Braga, do Rio de Janeiro,
presente, por 9 meses seguidos, a marca da violência. Poucas sancionou a Lei Municipal 1.042 e o Decreto 6.849, ambos
mulheres têm condições emocionais de enfrentar esse proble- de 28/07 /1987, em que determinava que a rede hospitalar
ma sem abalo de sua saúde mental. Algumas podem mesmo municipal ficaria encarregada de prestar o serviço de abor-
desenvolver surtos psicóticos. Entretanto, enquanto no abor- to legal para as mulheres em risco de vida pela gestação. Os
to terapêutico o médico pode decidir até contra a vontade da casos de estupro seriam atendidos no Instituto Municipal da
mulher, sem que se caracterize o constrangimento ilegal, no Mulher Fernando Magalhães ou na Maternidade Municipal
aborto sentimental ele só pode atuar após tácito assentimento Herculano Pinheiro. O médico responsável pelo ato cirúr-
da gestante. Além do mais, é indispensável que tal declaração gico teria que fazer o relatório e, compulsoriamente, comu-
seja feita por escrito. Alguns autores consideram necessário nicar ao Conselho Regional de Medicina. Embora as insti-
que a gestante obtenha, inclusive, uma autorização judicial tuições citadas na lei ficassem obrigadas a realizar o aborto,
para interromper a gravidez. Mas tal exigência não existe no o médico de serviço teria o direito de se recusar a fazê-lo
texto legal e tem sido considerada dispensável pelos juristas48 • por questões de consciência (art. 5º do Decreto) 52 • No plano
Em realidade, tal exigência só serviria para retardar a inter- federal, 10 anos mais tarde, houve a iniciativa do Conselho
venção, aumentando os riscos para a gestante. Nacional de Saúde, através da Resolução 258 de 06/11/1997,
A autorização dada pela gestante, porém, não é prova de de solicitar ao Ministério da Saúde a regulamentação e a nor-
que houve o estupro. O m édico d eve ter sempre em men-
matização do atendimento aos casos de aborto legal através
te a possibilidade de estar sendo usado de maneira ardilosa. do Sistema Único de Saúde. Em 2005, o Ministério da Saúde
É conveniente que exija uma cópia do laudo médico-legal
publicou um manual de conduta dos profissionais de saúde
que confirmou a violação sexual ou, sendo esse laudo nega-
diante de mulheres violentadas. Neste documento, recomen-
tivo, pelo menos uma cópia do registro da ocorrência numa
da que se faça o aborto mesmo que a mulher não tenha pres-
delegacia policial. Dificilmente uma mulher faria o registro
tado queixa em uma delegacia policial e, portanto, não tenha
d e estupro visando a um aborto em gestação futura.A data do
um boletim de ocorrência.
registro da ocorrência tem que ser condizente com a idade
Atualmente, existem, no Brasil, 65 instituições hospitalares
da gravidez. Mas a mulher pod eria alegar que só foi à dele-
autorizadas a realizar o aborto sentimental. Segundo o minis-
gacia quando percebeu que estava grávida, 2 meses depois.
Nesse caso, não há mais como comprovar a alegação visto tro da saúde, o número passará de 90 ao fim do ano de 2012 53•
que os elementos periciais da violência sexual teriam de- Tanto no aborto terapêutico como no aborto sentimen-
saparecido, restando apenas a gravidez. A boa-fé do médi- tal, o médico tem que fazer um relatório do procedimento
co em tais situações pode causar-lhe problemas se arguida abortivo, clínico ou cirúrgico, de modo a ter como compro-
sua excessiva credulidade. Uma saída para essa mulher seria var, se questionado, a legalidade d e sua conduta. Assim, deve
conseguir a confirmação de que fora estuprada por meio da guardar toda a documentação do caso por, pelo menos, 5
declaração de duas testemunhas idô neas. anos. O relatório deve ser feito em quatro vias. Uma para o
Outra é a circunstância quando o estupro é realizado nas próprio médico, outra para seu assistente. Das duas restantes,
circunstâncias em que se caracterizava a chamada violência uma deve ficar arquivada no hospital onde foi feito o aborto
presumida do artigo 224 do Código Penal, que foi revogado e a outra deve ser encaminhada com toda a documentação
pela Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009. Tratando-se de mu- do caso ao Co nselho Regional de Medicina.
lher menor de 14 anos, logo vulnerável, a idade serve para
caracterizar o estupro e, por outro lado, exige do médico que Anteprojeto do Novo Código Penal
obtenha a autorização do responsável legal por ela - pai ou
tutor. Mas, se a moça quiser manter a gravidez, seu desejo O artigo 128, aprovado o texto ora em estudo, passará a
deve ser respeitado mesmo diante da atitude dos pais que ter a seguinte redação:
querem o aborto. O m édico está autorizado por lei a realizar
o aborto, mas não está obrigado a ir contra a vontade da pa- Art. 128. Não constitui crime o aborto praticado por
ciente. Pelo contrário, tem que respeitar a sua autonomia5 1• médico se:
Além do mais, quando o médico for contrário ao aborto, I - Não há outro meio de salvar a vida ou preservar a
seja qual for sua justificativa, tem o direito de se recusar a saúde da gestante;
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 643

II - A gravidez resulta de violação da liberdade sexual, a vontade das gestantes, como forma de aprimoramento da
ou do emprego não consentido de técnica de reprodução raça humana, pelos nazistas do III Reich. Eram obrigadas a
assistida; abortar as judias, as polacas e outras mulheres de raça não
III - Há fundada probabilidade, atestada por dois ou- ariana 54 •55• Mas, tradicionalmente, os comentaristas do Có-
tros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis digo Penal têm aplicado a expressão àqueles casos de aborto
anomalias fí.sicas ou mentais. em que o motivo para a interrupção da gravidez é a presença
§lQNos casos dos incisos II e III, e da segunda parte de graves malformações fetais 34•56 • É preciso não esquecer que
do inciso I, o aborto deve ser precedido do consentimento da o diagnóstico das fetopatias algumas décadas atrás era feito
gestante, ou quando menor, incapaz ou impossibilitada mais na base da probabilidade, por causa de infecções como
de consentir, de seu representante legal, do cônjuge, ou de a rubéola, a toxoplasmose, ou pelo uso de substâncias tera-
seu companheiro; togênicas como a talidomida, do que através de visualização
§2QNo caso do inciso III, o aborto depende, também, da das anomalias, como é possível hoje por meio da ultrassono-
não oposição justificada do cônjuge ou do companheiro50• grafia (US) 57 •
Por outro lado, a expressão "aborto seletivo" tem sido
A nova redação, como já havíamos referido anteriormen- usada entre nós por alguns autores para se referirem ora aos
te, corrige a impropriedade relativa à confusão entre impu- casos de absoluta inviabilidade fetal, comprovada por exames
nibilidade e exclusão da ilicitude ao expressar que "não cons- complementares durante o acompanhamento pré-natal5S,
titui crime" o que descreve nos incisos 1 a III. ora às "situações em que se interrompe a gestação pela cons-
No inciso I, estende a exclusão da ilicitude quando acres- tatação de lesões fetais, em geral incompatíveis com a vida
centa "ou preservar a saúde da gestante''. Dependendo do extrauterina"54 • Na literatura internacional, há referência ao
que se entenda como preservação da saúde, a ampliação da aborto seletivo pelo sexo em países de legislação muito libe-
abrangência pode ser bastante significativa. Evidentemente, ral. Feita uma ultrassonografia e constatada a presença de feto
deve estender-se também à saúde mental. Mas não sabemos de sexo contrário ao esperado, a gravidez seria interrompida.
até que ponto algum desvio mais leve da saúde poderia ser Mas isso foi proibido por leis recentes na China e na Índia4 1•
também enquadrado. Como vimos, a legislação estrangei- Usaremos a expressão "aborto eugênico" de acordo com
ra tem várias formas de expressar essa preocupação com a o conceito tradicional, incluindo tanto os casos de inviabili-
saúde da gestante: ameaça à saúde, risco para a saúde, grave dade fetal, cujo m aior exemplo é a anencefalia, quanto aqueles
risco para a saúde etc. A jurisprudência marcará os limites da compatíveis com a vida m as de qualidade bastante prejudicada
pelas anormalidades fetais físicas ou m entais.
expressão caso ela venha a ser adotada.
A redação do inciso II introduz no texto legal o que já era A separação feita por alguns autores entre, por um lado,
reclamado pelos comentaristas do Código Penal e reconhe- as anomalias incompatíveis com a vida e, por outro, aquelas
que acarretam apenas prejuízo importante da qualidade de
cido pela jurisprudência. Como a redação do art. 213 (crime
vida tem por fim a defesa de uma postura permissiva para
de estupro ) foi modificada para absorver o que era chamado
a interrupção da gravidez em certos casos. Os que usam a
de atentado violento ao pudo r, aquelas críticas não têm mais
expressão aborto seletivo restringem -na aos casos de invia-
razão de ser. Além disso, como o texto refere-se à violação da
bilidade, de modo a poderem defender a interrupção dessa
liberdade sexual, inclui também a violação sexual mediante
gestação com base no argumento de que o feto anencéfalo,
fraude conforme o atual art. 215 do CP. Na segunda parte
por exemplo, não preenche os requisitos para que se diga que
deste inciso, inova, aceitando como excludente da ilicitude
é um ser humano em formação. Como regra, os anencéfalos
o fato de ter a gravidez decorrido do uso de técnica de re-
vivem algumas horas fora do útero e logo morrem. Por isso,
produção assistida não autorizada pela mulher. Seria, po r
esses autores fazem analogia entre essa situação e o concei-
exemplo, o caso de ser feita a colocação de embriões fertili-
to de morte encefálica endossado pelo Conselho Federal de
zados in vitro (bebê de proveta) na cavidade uterina de uma
Medicina. Assim, o aborto não seria crime po rque não esta-
mulher que houvesse sido anestesiada para algum outro pro-
ria interrompendo a evolução de uma vida humana em to da
cedimento cirúrgico ginecológico, sem que ela tivesse sido
a sua plenitude biopsicossocial55• Em decisão tomada pela
consultada a respeito dos embriões. Cremos que essa parte
maio ria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em 12
dará motivo a grandes discussões antes de sua aceitação, pois
de abril de 20 12, a interrupção da gestação de fetos anencé-
a violência desse ato é muito mais sutil.
falos passou a ser considerada legal. Prevaleceu o argumento
O inciso III é o que introduz a maior modificação quan-
de que forçar a gestante a levar ao termo uma gravidez de
do comparado o anteprojeto com o atual código. Será apre-
feto anencéfalo corresponderia à tortura e poria em risco a
ciado a seguir, em Aborto Eugênico e Aborto Seletivo.
saúde mental da mulher. Mas os dois votos divergentes recu-
saram-se a admitir que o anencéfalo não teria condições de
Aborto Eugênico e Aborto Seletivo
ser equiparado a um ser humano pleno.
A expressão "aborto eugênico" suscita muitas contro- Os mais críticos da decisão do STF argumentam que,
vérsias e, conforme o autor, tem um significado diferente. após a decisão no caso dos anencéfalos, fica a possibilidade
Assim, alguns a associam às práticas abortivas feita s contra de decisão permissiva em casos de outras anom alias capazes
644 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

de levar o feto à morte nos primeiros dias de vida. Alguns da última menstruação (UM). Partindo-se do mais comum,
membros do Congresso Nacional criticaram a decisão ale- que é a ovulação no 14º dia de um ciclo m enstrual regular
gando que os ministros atuaram como legislado res e não de 28 dias, admite-se que o óvulo fique dispo nível para fer-
como julgadores, uma vez que tramitam nas duas casas do tilização por 24 59 a 48 horas60• Havendo a fertilização, que
legislativo projetos de emenda constitucional que criam nor- ocorre no segmento tubário m ais próximo d o ovário, o ovo
mas sobre a matéria 58 • leva mais cerca de 3 a 4 dias para cair na cavidade uterina,
onde se nutre da secreção endometrial. Permanece solto na
cavidade por mais algum tempo e, finalmente, implanta-se
• ASPECTOS PERICIAIS por volta do quinto ao sétimo dia após a ovulação. Durante
essa semana, o ovo sofre divisões celulares, de modo que tem
As dificuldades na caracterização da provocação do abor- a forma de minúscula vesícula com cerca de 100 células -
to são tantas que se refletem na propor ção mínima de conde- o blastocisto - no m omento da nidação 61 , medindo cerca de
nações de que se tem notícia. Só quando ocorrem complica- 0,3 mm de diâmetro60 • As células periféricas são chamadas
ções graves, o u mesmo a morte da gestante, é que aumenta a de trof oblasto, e dessas, as mais externas, de sinciciotrofoblasto,
probabilidade de condenação dos agentes. porque resultam da fusão da membrana das células mais in-
Segundo Almeida Jr. 43 , são vários os problemas que as au- ternas de modo a se tornarem multinucleadas. O trofoblasto
to ridades esperam sejam resolvidos pelos peritos nos casos tem a capacidade de dissolver o tecido do endométrio por
de aborto criminoso: se havia gravidez, se houve aborto, se meio de enzimas proteolíticas, permitindo o aninham ento
foi provocado, em que época se deu a interrupção e que le- do ovo. As células do sinciciotrofoblasto são as responsáveis
sões ocorreram além d o aborto. Devem os acrescentar outros pela produção da gonadotrofina coriônica humana (hCG)
aspectos a esse elenco, tais com o a pesquisa de doença men- (Figs. 29.4 e 29.5) .
tal da mulher para saber de sua capacidade de consentir e o
estudo do prontuário hospitalar, quando ho uver alegação de Sinais Mamárias
aborto terapêutico. Um dos mais precoces é a congestão e aumento de volu-
Além disso, o legista pode ser cham ado ao local do crime me das mam as, cuja rede venosa subcutânea torna-se m ais
para a coleta de evidências m ateriais, com o instrumentos ci- visível com cerca de 8 semanas após o primeiro dia da últi-
rúrgicos, equipamentos de esterilização, material para cura- ma menstruação (sinal de Haller). Essa tumefação deve-se
tivos, medicação ocitócica e, acima de tudo, restos ovulares a uma continuação e am pliação do aumento m amário que
porventura abandonados em baldes ou em sacos de lixo. ocorre no período pré-menstrual. Decorre da persistência de
Ma nchas de sangue devem ser recolhidas para a caracteriza- teores elevad os de progesterona e estrogênio secretados pelo
ção de sua o rigem humana e para a sua tipagem. corpo am arelo gravídico 63 • Por esse tempo, surgem os tubér-
culos de Montgo mery, que são pequenas projeções da pele
Diagnóstico de Gravidez Pregressa ao redor da papila mamária64 • A expressão das mamas dá saí-
da a pequena quantidade de líquido leitoso - o colostro, que é
A demonstração de que havia uma gravidez que foi in- mais abundante durante po ucos dias após o aborto. Mas não
terro mpida é o primeiro passo no sentido de esclarecer se dá o diagnóstico de gravidez pregressa porque pode aparecer
houve o crime de abo rto. Os elementos técnicos para esse sob a influência de tratam ento horm onal em mulheres não
diagnóstico serão estudados na mulher viva e no cadáver. grávidas (Fig. 29.6) .

Na Mulher Viva Sinais Genitais


Difere do diagnóstico obstétrico de gravidez, essencial- A genitália revela mucosa de tonalidade arroxeada na vul-
m ente, porque falta o concepto. E, se está presente, já não va (sinal de Jacquemier ou de Chadwick), na vagina (sinal de
vive. Assim, é impossível dispor de dados de certeza, com o Kluge) 64 e no colo uterino63 por causa do aumento da vascu-
movimentos intrauterinos e audição de batimentos cardio- larização. O útero tem consistência diminuída pelo aumento
fetais. As restrições à cara cterização da gravidez pregressa do líquido intersticial d os tecidos ( embebição gravídica), o
são tanto mais acentuadas quanto menor for o tempo de que pode ser percebido já ao fim do segundo m ês pelo toque
evolução da gestação, por serem mínimas as modificações do vaginal, que revela amolecim ento do colo65 . Costuma estar
or ganism o m aterno. A m aioria dos autores reconhece que é aumentado de tamanho po r causa da hipertrofia (a umento
muito difícil estabelecer o diagnóstico de gravidez pregressa do volume) e da hiperplasia (aumento do número) das suas
quando a interrupção ocorre antes de completad o o segundo fibr as musculares lisas. Mas há o utras causas de aumento de
m ês 35•43• Mas é possível encontrar, pelo exam e clínico gineco- volume uterino, tais como a presença de tumores, benignos
lógico e com o auxílio de exames complementares, sinais que ou m alignos, e alterações m ais difusas como a endometriose
devem ser valorizados com bom senso. (presença de glândulas endometriais no seio da musculatura
É oportuno lembrar que a contagem das semanas de da parede) . Em gestação de 12 semanas, antes de ser esvazia-
gestação é feita pelos ginecologistas a partir do primeiro dia do, o seu fundo já pode ser palpado na altura da sínfise pu-
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 645

Trompa

;:;~-----,1---- óvulo captado pela trompa

-11!~-----+---- Futuro corpo amarelo

Figura 29.4. Esquema sequencial de maturação do óvulo, ovulação e fecundação. Adaptado de David G e Haegel P62•

m>-~":-T.~-~r-:l-liprar=-r+----- Citotrofoblasto

~.,_,W-++t~+=t:~"-:.,...fl:I----- Sinciciotrofoblasto

-..ia~..,....;+;~--.r""""-~----- Glândula endometrial

-.4JIF---~.a....-+.,......,:,,,..;,;r.------ Reação decídua!

l..::'.;1\-- -- - - - Arteríola espiralada

Figura 29.5. Esquema da implantação do ovo humano no endométrio (6° ou 7Qdia pós-fecundação). Adaptado de David G e Haegel P62•
646 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

topatológico, na dependência do volume e da consistência.


Sendo realizada a perícia no mesmo dia ou nos 3 dias seguin-
tes ao aborto, no máximo, a possibilidade de detectar célu-
las trofoblásticas em esfregaço vaginal corado pelas técnicas
usuais persiste. Os esfregaços obtidos demonstram a presen-
ça de sangue, numerosos leucócitos e, raramente, células sin-
ciciais multinucleadas.
Raramente, em meio ao conteúdo vaginal podem ser en-
contrados fragmentos necróticos de placenta, mas, como re-
gra, são achados no interior da cavidade uterina. Serão des-
critos a propósito do exame interno.

Pesquisa e Dosagem da Gonadotrofina Coriônica Humana


(hCG)
Figura 29.6. Mama de mulher grávida de 7/8 meses, que sofreu
morte violenta. Há hiperpigmentação da papila mamária e drenagem de Para que o ovo se implante com sucesso na mucosa ute-
colostro após a expressão do mamilo. Guia 353 da 36ª DP, de 10/09/2002. rina, é preciso que os níveis de progesterona e de estrogênios
se mantenham elevados, o que só acontece se o corpo ama-
relo ovariano continuar a ser estimulado. Como a influência
biana. Depois de feito o aborto, retrai-se por causa da perda estimulatória da hipófise tende a ser inibida pelo aumento
do conteúdo e da contração da musculatura. Mas ainda daqueles hormónios, a manutenção do funcionamento do
é maior que o não grávido. Ver mais adiante o exame por corpo amarelo no início da gravidez carece de um novo hor-
ultrassonografia. mónio estimulante. É aí que entra a gonadotrofina coriónica
(hCG ). É uma glicoproteína em tudo semelhante ao hormó-
Alterações Cutâneas nio luteinizante da hipófise61 •
Por volta do fim da quarta semana de gravidez, contadas
Há uma tendência de hiperpigmentação que é mais co-
a partir da data do primeiro dia da última menstruação, o
mum na aréola mamária, mas que ocorre também no abdó-
ovo já está implantado há cerca de 1 semana e tem idade de
m en e na face. No abdómen forma-se uma linha escura ao
cerca de 2 semanas. Nessa época, não ocorre a menstruação
longo da linha mediana entre o umbigo e o púbis, a linha
esperada e a mulher pressente que está grávida. Com uso de
negra da gravidez; na face, uma mancha hiperpigmentada
técnicas imunológicas, já é possível detectar e dosar no san -
na testa e nas regiões malares, o cloasma gravídico, que pode
gue e na urina o hCG. Os anticorpos são preparados para se
aparecer também em 30 a 50% das mulheres que tomam
unirem à subunidade beta (~-hCG) 63 • As mais sensíveis são
anticoncepcionais orais66 • Algumas grávidas apresentam li-
as de radioimunoensaio, que já o detectam no soro cerca de
nhas largas e claras, em geral formando grupos paralelos a
8 a 9 dias após a ovulação61 • A partir daí, a sua produção e
cada lado do abdómen, semitransparentes, resultantes de um
concentração dobram a cada 2 a 3 dias durante os primeiros
enfraquecimento do tecido conjuntivo, as estrias gravídicas.
60 dias da gestação 1•60•63• Os valores máximos são atingidos
Embora sejam comuns na gravidez, podem ocorrer também
com 10 a 12 semanas de gravidez, caindo rapidamente a se-
em pessoas obesas e em quem está fazendo uso de corticos-
guir. Sua dosagem é expressa em milésimo de unidades in -
teroides. Como todas essas alterações podem persistir por
ternacionais por mililitro de soro ou de urina - mUI/mL. O
longo tempo, não atestam gravidez recente.
radioimunoensaio é capaz de medir 0,05 mUI/mL de soro.
Os melhores testes feitos com a urina já são positivos al-
Lóquios
guns dias antes da época da esperada menstruação quando
São líquidos drenados pelo orifício do colo uterino. Ini- sensíveis a 50 mUI/mL6 3• Como os padrões de laboratórios
cialmente sanguinolentos, ao fim de 3 dias tornam-se serosos diferentes não são idênticos, o aconselhável para ver se ain-
e amarelados. Havendo infecção, passam a piossanguinolen- da há embrião vivo é fazer duas dosagens a intervalos de 48
tos e exalam odor desagradável. Indicam que houve perda a 72 horas no mesmo laboratório e ver se houve duplicação
do revestimento interno da parede uterina, que se apresenta do valor 1•6 3• Com 5 semanas, as dosagens giram em torno de
ementa e sangrante. São vistos após o parto e após o abor- 1.000 mUI/mL60•
to. Mas surgem também se a mulher for curetada por outro Após um aborto, a concentração do hCG costuma cair
motivo; por exemplo, uma curetagem para diagnóstico de inicialmente de modo rápido e, depois, de modo regular e
possível hiperplasia endometrial. mais lento67•68 • O tempo para sua eliminação do plasma da
O encontro de partes fetais ou da placenta em meio ao mulher depende mais das concentrações à época do aborto
conteúdo vaginal garante que havia gravidez, mas tal ocor- que do método empregado 67•69• Em média, a literatura per-
rência é rara. Sempre que for possível, o perito deve colher tinente refere algo em torno de 1 mês após a interrupção,
material da cavidade vaginal para exame citológico ou his- podendo ser menor ou maior na dependência dos valores
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 647

iniciais. Thyssen68acompanhou 12 pacientes que estavam no Com o passar do tempo, o útero vai aumentando à custa da
primeiro trimestre desde o dia do aborto até que as dosagens hipertrofia e hiperplasia de sua musculatura, de modo que,
atingissem menos de 10 mUI/mL. O tempo variou entre 22 e mesmo esvaziado, suas dimensões excedem aquelas do ór-
40 dias. Usando um bom teste urinário, encontrou resultados gão não grávido. Um dos melhores dados para avaliar esse
positivos entre 13 e 31 dias após o aborto. Quando as con- crescimento é a medida da espessura máxima de sua parede.
centrações do hormônio não diminuem, deve tratar-se de Esses dados são úteis no diagnóstico ultrassonográfico. Mais
gravidez ectópica ou de tumores trofoblásticos. Estes costu- detalhes em Diagnóstico da Idade Gestacional.
mam produzir níveis muito altos (mais de 40.000 mUI/mL)
e crescentes de ~-hCG'. Conteúdo
A presença de restos de placenta e de partes do embrião
Ultrassonografia sela o diagnóstico de gravidez interrompida. É mais frequen-
É um exame não invasivo, indolor, que fornece da- te nos casos de aborto incompleto, seja pelo uso de drogas
dos importantes para o diagnóstico e a avaliação da evo- abortivas, seja pela colocação de corpos estranhos no canal
lução inicial da gravidez7º·71·72•73 , do desenvolvimento fe- cervical. São fáceis de reconhecer. Mas, com o passar dos dias,
tal6º·65·72·73·74·75·76, de gemelaridade 77 , para guiar procedimen- o material vai-se decompondo e perdendo as características
tos invasivos78 e para o diagnóstico precoce de localização morfológicas, principalmente se houver infecção associada.
anormal da nidação (gravidez ectópica)79•80.S 1. Mas seu va- Qualquer tecido n ão identificado deve ser colhido para exa-
lor na perícia de casos de aborto fica limitado porque, na me histopatológico.
maioria das vezes, o embrião foi eliminado. Resta, contudo, Os fragmentos de placenta, quando bem preservados, são
a possibilidade de avaliação da morfologia e da s dimensões reconhecidos por seu aspecto esponjoso. Se colocados den-
uterinas, que pode ajudar no diagnóstico de gravidez pre- tro d'água, é possível ver que são formados por numerosas
gressa. Nos casos de aborto com retenção do embrião, que projeções minúsculas, digitiformes, de cor esbranquiçada -
pode ocorrer quando são u sados métodos farmacológicos, vilosidades cariais (Figs. 29.7 e 29.8). Como são constituídos
cresce de importância não apenas pela sua visualização, mas por tecido de origem fetal, ao serem destacados do leito pla-
pela con statação de alterações sugestivas de anomalias do centário, sofrem processo de necrose por falta do oxigênio e
ovo e de ausência de batimentos cardiofetais. Caso venha dos nutrientes que absorvia do sangue dos lagos placentá-
a ser aprovado o projeto de reforma do Código Penal, com rios. As massas n ecróticas podem ser visualizadas no exame
descriminação do aborto eugênico, passará a ser ferramen- histopatológico como grupos de vilosidades em que a forma
ta obrigatória para a documentação das anomalias fetais e o contorno são diagnósticos, mas com trofoblasto corado
justificadoras da interrupção da gravidez. Alguns aspectos de modo uniforme sem as imagen s dos núcleos celulares.
da interpretação das imagens serão discutidos na seção de São as chamadas vilosidades-fantasma (Fig. 29.9).
Diagn óstico da Idade Gesta cio nal.

No Cadáver
Convém lembrar, inicialmente, que os dados do exame
externo também devem ser pesquisados no cadáver. Mas,
quando ocorre mo rte materna como complicação do aborto,
a perícia deve ser complementada pela necropsia. Os peritos
passam a ter acesso à genitália interna e às demais vísceras.
Mas a demonstração dos elementos ovulares continua a ser a
pedra angular da perícia nos casos de morte materna.

Útero
Devemos avaliar o tamanho, incluindo a espessura das
paredes, e o conteúdo, além de colher material para exame
histopatológico.

Tamanho
Uma vez implantado o ovo, o útero começa a sofrer uma
série de modificações de forma e volume que permitem esta-
belecer o diagnóstico de gravidez pregressa. O tamanho nor- Figura 29. 7. Embrião humano de pouco mais de um mês. Vê-se o
mal na nulípara é de 6 a 7 cm de altura por 4 cm de largura aspecto racemoso das vilosidades cariais na periferia das membranas.
e por 2,5 cm de espessura. Na multípara, em geral, os núme- Foto realizada com o material submerso em água. Gentileza do Prof. Kalil
ros excedem em 1 cm os da nulípara nas três dimensões82·83 . Madi do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da UFRJ.
648 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

Figura 29.8. Corte histológico de vilosidades cariais formadas por


duas camadas de trofoblasto, sendo a mais externa o sincício e a mais
interna o citotrofoblasto. Ointerior é formado por tecido conjuntivo frouxo
e alguns capilares sanguíneos. Certos trechos do sinciciotrofoblasto
fazem saliência e possuem núcleos hipercromáticos. Caso 6.299 do
Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. Coloração HE, aumento de 160x.

ovulação, por causa da persistência do corpo amarelo ova-


riano, que continua a produzir altos níveis de progesterona.
Essas transformações são essenciais para a manutenção do
ovo implantado. Costuma estar completa ao fim de 1 mês
de gravidez85 .
A reação decídua! caracteriza-se por um crescimento vo-
lumétrico das células do tecido conjuntivo endometrial, que
se tornam epitelioides, com limites bem definidos, citoplasma
rico em glicogênio e núcleo central. Tal fenómeno expande o
conjuntivo e comprime o terço superficial das glândulas en-
dometriais. Nos dois terços mais profundos, elas ficam ser-
rilhadas, continuam a secretar e suas células, por vezes, pro-
jetam-se para a luz glandular com núcleo hipercromático85 .
Embora com aspectos morfológicos tão bem definidos,
a reação decídua!, por si só, não é diagnóstica de gravidez.
Figura 29.9. Grupo de vilosidades cariais em necrose coagulativa, re- Pode ser desencadeada por qualquer condição que determi-
conhecidas apenas pela sua distribuição, forma e arquitetura. Caso 3.812 ne uma permanência prolongada de nível alto de progeste-
do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. Coloração HE, pequeno aumento. rona84.s5. Nesses casos, costuma ser chamada de reação pseu-
dodecidual. Essa reação, quando muito intensa, pode chegar
ao quadro descrito po r Arias-Stella no endométrio de mu-
lheres com gravidez ectópica. Ao encontrá-la, o patologista
Exame Histopatológico
deve recortar os blocos de parafina que contêm o material
Estudaremos, aqui, as alterações que ocorrem no endo- uterino até os esgotar, a fim de excluir a presença de vilosi-
m étrio, principalmente na área de implantação do ovo, no dades coriais, pois seu encontro afasta a hipótese de gravidez
mio métrio e nos vasos sanguíneos. Para entender os acha- ectópica84·85 . Mesmo a reação de Arias-Stella não é suficiente
dos, é necessário explicar as alterações que ocorrem na pa- para firmar o diagnóstico de gravidez pregressa, já que pode
rede uterina após a nidação. O endom étrio sofre alterações ocorrer em qualquer situação com excesso de produção de
difusas - reação decidual - e alterações específicas do local de progesterona84 (Fig. 29.10).
implantação do blastocisto - placentação. Conforme a sua localização no útero, a decídua é cha-
Reação decidual - O endométrio modificado pela rea- mada de basal, capsular ou reflexa, e parietal ou vera. A basal
ção deciduaI foi chamado de decídua pela primeira vez por corresponde ao local da futura placenta; a capsular recobre
Hunter, pelo fato de ser eliminado após o parto84 . A reação inicialmente o ovo implantado; e a parietal reveste o resto
decidual constitui uma acentuação da transformação secre- da cavidade uterina (Fig. 29.11 ). Com o passar dos meses,
to ra das glândulas, do edema e das m odificações das células a reflexa une-se à parietal da face uterina oposta à placen-
conjuntivas do estroma endo metrial que ocorrem depois da ta. Na decídua basal, as arteríolas espiraladas do endométrio
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 649

Cavidade uterina

Tampão de muco ----....,."""",.r..,"""'"~_,,


no canal cervical
Embrião

Figura 29.11. Desenho do útero grávido para mostrar as decíduas e suas relações com o embrião. Adaptado de David Ge Haegel P62•

tornam-se horizontalizadas à medida que o ovo cresce até fi - Continuando a invasão, o trofoblasto ultrapassa a túni-
carem paralelas à parede uterina, comprimidas que são entre ca externa dos vasos sanguíneos do endo métrio, substitui o
a placa corial e o miom étrio. seu endotélio e causa a deposição de fibrina, tornando arte-
Útil para o diagnóstico de gravidez pregressa é a persis- ríolas e vênulas indistinguíveis a um exame superficial. É o
tência de decídua hialinizada ao redor de arteríolas espira- que se chama de fetalização d os vasos sanguíneos. A seguir,
ladas da zona basal após o pa rto. As células deciduais apre- processa-se uma dilatação da luz dos vasos, cujos elementos
sentam, aí, núcleos esfa celados, borrados; os vasos sanguí- celulares, inclusive os musculares, ficam tumefeitos. Essas al-
neos estão tro mbosados e mais rígidos. O aspecto geral lem- terações são exclusivas da decídua basal e podem explicar a
bra o de folículos ovarianos atrésicos. É uma alteração que ocorrência dos focos de necrose observados com frequência
leva alguns anos para desaparecer. nessa área84•
Estudo da placen tação e do leito placentário - A placenta- O leito da placenta é o local mais importante para o exa-
ção resulta da invasão da parede uterina pelo trofoblasto e se m e histopatológico nos casos de abo rto. Mesmo que tenha
inicia pela nidação aos 7 dias depois da fecundação. Nessa havido curetagem e remoção de todas as vilosidades coriais,
fase, ainda não houve a transformação d ecidual e o trofo- podem ter restado elem entos trofoblásticos no miom étrio
blasto consegue dissolver parte do endom étrio par a nele se subjacente à decídua basal. Além do m ais, a ocorrência de
alojar. Conforme vai penetrando, o endométrio continua endometrite pós-aborto, fato comum nos casos de provo-
sua evolução sob influência da progesterona e se instala a cação, pode levar à destruição das estruturas vilositárias
reação decidual. Essa reação serve para barrar um pouco a remanescentes.
invasão do endométrio pelo trofoblasto, podendo-se dizer A presença de células trofoblásticas por entre as fibras
que a reação decidual é "inimiga" do trofoblasto84 • As célu- musculares lisas pode ser demonstrada já na décima semana.
las trofo blásticas rompem a parede dos capilares, das vênu- No local da invasão, há células com núcleos grandes e hiper-
las e, por fim, das arteríolas espiraladas do endométrio. Ao cromáticos, por vezes irregulares, e mesmo multinucleadas.
mesm o tempo, surgem vacúolos que coalescem para formar Tanto as mononucleares como as multinucleadas podem ser
fendas e lacunas no seio do sinciciotrofoblasto, que são in- de origem fetal ou m aterna, mas a maioria das multinuclea-
vadidas pelo sangue matern o. Formam-se brotamentos sin- das tem origem fetal (trofoblasto invasor) (Fig. 29.13). O
ciciais para dentro das lacunas, seguidos por elementos do uso de técnicas especiais de imuno-histoquímica determina
citotrofoblasto e do m esênquima extra embrionário, um tipo a sua exata origem 86• Em r aros casos, a invasão trofoblástica
de tecido conjuntivo. Constituem -se, assim, as primeiras vi- chega próximo da serosa uterina85•
losidades, que se alongam e se dividem continuamente até M iom étrio e vasos sanguíneos - O comprimento das fibras
próximo do final da gravidez (Figura 29 .12). musculares lisas, no rmalmente de 50 µ , pode chegar a 200 ou
650 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

Corte conforme
a seta dupla

Arteríolas espiraladas

J Vênulas

5
6
2

Corte conforme
a seta dupla

c!J Arteríolas espiraladas

J Vênulas

Figura 29.12. Esquemas da formação das vilosidades cariais. A figura A representa uma área da zona de implantação do ovo aos 15 dias pós-
fecundação; a figura B, aos 21 dias. A seta dupla horizontal em cada esquema é um plano de secção cuja imagem se representa ao lado. Na
Figura A, ainda não há vilosidades nem esboçadas, apenas os lagos sanguíneos em formação. Na figura B, já estão esboçadas as vilosidades e
há um sistema de vasos sanguíneos fetais que penetram nos brotamentos vilositários (artérias em cinza e veias em preto, unidas por capilares).
1) epitélio amniótico; 2) mesênquima; 3) veias; 4) artérias; 5) citotrofoblasto; 6) sinciciotrofoblasto; 7) lagos sanguíneos. Adaptado de David Ge
Haegel P (1968)62.
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 651

das paredes. Poucas semanas depois, essas alterações atingem


as artérias radiais do miométrio. O contínuo crescimento do
útero leva a uma dilatação progressiva desses vasos, o que
facilita o fluxo sanguíneo para a placenta em desenvolvimen-
to84. As veias ficam dilatadas, mas não são invadidas em tanta
extensão como as artérias.

Ovário
A presença de corpo amarelo maduro em um dos ovários
é um elemento apenas de probabilidade, não de certeza de
gravidez. Costuma dobrar de tamanho ao longo do primei-
ro trimestre, mas involui a partir da 13~ semana61 • Contudo,
seu tamanho carece de importância, pois o corpo amarelo
menstrual pode crescer o suficiente para ser confundido com
Figura 29.13. Corte histológico do miométrio subjacente à decídua
o gravídico.
basal. Há hipertrofia das fibras musculares lisas e a presença de uma
célula multinucleada na bainha conjuntiva dos pequenos vasos do centro
da figura. Caso 3.652 do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. Coloração Glândulas Mamárias
HE, aumento médio. Ao longo dos primeiros meses da gravidez, ocorre proli-
feração intensa dos <lutos mamários até a transição do quin-
to para o sexto mês. Em consequência desse crescimento, au-
menta o tamanho dos lóbulos mamários e diminui a quan-
tidade do tecido conjuntivo intralobular. A porção distal de
cada <luto transforma-se em alvéolos glandulares formados
por células cilíndricas, que passam a acumular secreção do
sexto mês em diante87 . Essa secreção é o colostro, não é leite
ainda. O leite só é produzido depois do parto. A utilização
dessas alterações morfológicas para o diagnóstico de gravi-
dez interrompida tem sido proposta, mas há reservas quanto
ao seu valor. Como as mamas sofrem muita influência de
vários hormô nios presentes durante a gravidez, alguns dos
quais também atuam fora do período gestacional, fica difícil
emprestar-lhe valor decisivo. É comum encontrar alterações
proliferativas benignas nas chamadas mastopatias funcio-
Figura 29.14. Corte de miométrio de útero grávido. Os vasos sanguí- nais, que podem imitar as alterações observadas durante a
neos têm forma de fenda e sua parede mistura-se com o conjuntivo (faixas gravidez. Mas o achado de alterações como as referidas em
mais claras verticais) que separa os feixes de músculo liso. Caso 5.236 cadáver de mulher que poderia estar grávida não deve ser
do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. Coloração HE, aumento pequeno. desprezado.

Embolia Pulmonar de Células Trofoblásticas (ECT)


600 µdurante a gravidez23 • Essas fibras têm calibre aumen- Há muito se sabe que, durante a gravidez, células do sin-
tado (hipertro fia ), aspecto em vidro fosco no citoplasma e ciciotrofoblasto desprendem-se das vilosidades coriais e pe-
núcleo grande com nucléolo muito evidente85. A quantidade netram nas veias uterinas levadas pelo sangue materno que
de tecido conjuntivo do miométrio também sofre aumento, circula nos espaços intervilositários. Essas células passam,
possivelmente por produção de fibra s colágenas pelas pró- su cessivamente, pela veia cava inferior, aurícula e ventrículo
prias fibras musculares85 (Fig. 29. 14). direitos, artéria pulmonar e suas ramificações. Ao chegarem
Em torno da décima semana após a fecundação, o tro- aos vasos menores, ficam encalhadas e são destruídas. Esse
foblasto avança na intimidade das paredes arteriais até en- fenômeno fisiológico, a ECT, pode ser muito útil nas perícias
contrar o miométrio. Há deposição de material fibrinoide de aborto qualificado pela morte da gestante, principalmen-
nessas áreas, o nde as células trofoblásticas são identificadas te quando tiver havido a remoção cirúrgica do útero ainda
por serem grandes e de núcleo nítido. As fibras musculares em vida. Sendo reconhecidas, essas células atestam a gravi-
lisas das paredes das pequenas artérias ficam afastadas entre dez pregressa da vítima. Podem ser identificadas porque são
si e hipertrofiadas, no tando-se que o limite da túnica adven- multinucleadas, têm citoplasma de reação acidófila, com nú-
tícia arterial confunde-se com o tecido conjuntivo do mio- cleos bem indiv idualizados e membrana celular de contor-
métrio84. As artérias dilatam-se por causa da perda de tô nus nos nítidos, por vezes um pouco mais refringentes do que o
652 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

resto da célula (Figs. 29.15 e 29.16). Devem ser distinguidas menta o tempo de sobrevida ao aborto; que em cerca de 45%
dos megacariócitos pulmonares, que parecem células mul- dos casos em que o diagnóstico de gravidez pregressa não
tinucleadas intravasculares, mas são, em verdade, providas pôde ser feito pelo exame do útero ele foi possível pela pre-
de núcleo único multilobulado e têm citoplasma de reação sença da ECT. Assim, é boa conduta pericial recolher sempre
neutra, que se cora pelo reativo de Schiff (PAS) (Fig. 29.17). fragmentos de pulmão para exame histopatológico nos casos
Em várias séries de necropsias de mulheres grávidas que de aborto seguido de morte da gestante23•
morreram por aborto ou quaisquer outras causas, a per-
centagem de casos em que foi possível encontrar as células
Diagnóstico da Idade Gestacional
trofoblásticas nos pulmões variou de 4223 a 52% 88 • Num es-
tudo retrospectivo que realizamos no IMLAP em 1986, veri- Esse diagnóstico pode ser um dado importante em casos
ficamos que não há diferença de incidência quer se trate de de adultério e de gravidez resultante de estupro. Quando a
aborto ou não; que o achado da ECT diminui conforme au- fecundação ocorreu por cópula única, a idade da gravidez
tem que coincidir com a época alegada pela mulher, mor-
mente quando se queixa de agressão sexual. A discrepância
entre a data da violação e a calculada pelos peritos indica
ter havido participação de outro homem, ou do mesmo em
época diferente.
O diagnóstico da idade da gravidez tem valor ainda quan-
do houver acusação de imperícia na indicação e execução da
manobra abortiva, nos casos de aborto legal. Sabe-se que as
diversas técnicas têm limitação na sua indicação conforme a
fase da gravidez.
De um modo geral, o aborto é provocado no primeiro
trimestre, por ser a fase em que a probabilidade de complica-
ções é menor. Em certos casos, porém, por motivos diversos,
a intervenção só é realizada em etapa mais avançada.

Na Mulher Viva
Figura 29.15. Corte histológico de pulmão em que se nota uma célula
do sinciciotrofoblasto encalhada na bifurcação de um capilar dilatado. Quando a mulher infor ma bem a data da última mens-
Alguns dos núcleos da célula são pálidos; outros, um pouco mais truação, não há problemas, mas o que ocorre, geralmente, é a
escuros, indicando processo degenerativo. Notam-se algumas hemácias sonegação de informações, ou a veiculação de dados falsos. A
soltas na luz vascular. Caso 7.349 do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. avaliação da idade gestacional não pode ser feita pelas regras
Coloração HE, grande aumento. aplicadas pelos obstetras por dois motivos principais. Em

Figura 29.16. Corte histológico de pulmão em que os alvéolos apre-


sentam paredes sinuosas e um capilar dilatado contendo uma célula Figura 29.17. Corte histológico de pulmão, notando-se uma arteríola
sincicial com numerosos núcleos bem corados e uniformes, cujo cito- que contém um megacariócito caracterizado por seu núcleo multilobu-
plasma é eosinófilo e tem um espessamento junto à membrana celular. lado e denso, no centro de citoplasma de reação neutra e limite preciso.
Caso n~ 6.299 do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. Coloração HE, Caso 6.502 do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. Coloração HE, grande
aumento médio. aumento.
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 653

primeiro lugar, o útero esvaziado contrai-se. Em segundo, Com 19 semanas, as vilosidades são mais numerosas e de
sua involução pode não seguir o ritmo esperado se ocorrer diâmetro menor. Há menor número de células no citotrofo-
infecção ou retenção de restos ovulares e coágulos, o que é blasto e o sincício começa a formar nós. Os nós são brota-
frequente em aborto feito por leigos. mentos que fazem saliência para os espaços intervilositários,
Assim, na mulher viva, a avaliação torna-se muito difí- constituídos por acúmulos de núcleos cobertos por escasso
cil, principalmente porque a maioria dos abortos é feita no citoplasma. Desprendem-se com frequência e têm acesso às
primeiro trimestre, quando os sinais de gravidez são escas- veias uterinas, conforme já descrevemos ao comentarmos
sos. Caso não se tenha dado a expulsão do feto, o que é raro, sobre a embolia de células trofoblásticas.
pode-se aplicar a regra de Fabre, que diz que o útero cresce Na passagem da 28ª semana, já houve ramificação mais
4 cm de altura a cada mês, mas que não serve para o primeiro intensa e as vilosidades mostram diâmetro ainda menor. Os
trimestre. A alternativa possível é o exame por ultrassono- nós sinciciais são mais frequentes e realçados pela presença
grafia. Tem boa margem de segurança se o embrião ainda de áreas mais claras, formadas apenas pelo citoplasma das
estiver presente, mas também pode ser utilizada para dimen- células sinciciais, nas zonas de permeio. O citotrofoblasto
sionamento do útero caso ele tenha sido expulso. torna-se imperceptível. Ao final da gestação, as vilosidades
atingem o seu máximo de ramificação, o mínimo de diâme-
Ultrassonografia tro, e albergam capilares dilatados, cujo conteúdo está muito
Nas últimas décadas, ganhou um espaço enorme na me- próximo do sangue materno dos espaços intervilositários
dicina, principalmente na Obstetrícia, conforme já assina- (Fig. 29.18) .
lamos no diagnóstico de gravidez pregressa. Seu potencial
para o diagnóstico da idade gestacional é grande, podendo- No Cadáver
se considerar ferramenta indispensável no caso de as infor- A avaliação da idade da gravidez pode ser feita pelo exa-
mações quanto à última menstruação serem duvidosas ou me anato mo patológico direto do útero. A espessura da pare-
quando a mulher engravidar no fim do puerpério de outra
de uterina ao nível do corpo é, normalmente, de 7 a 12 mm,
gravidez. Nos casos de aborto por meio químico com reten-
mas aumenta progressivamente para atingir o máximo de
ção do concepto, uma das poucas aferições de valor que po-
25 mm em torno do quarto/quinto mês (Fig. 29.19). A partir
dem ser feitas é a do comprimento do fêmur 73 • O diâmetro
daí vai-se adelgaçando por estiramento e, ao termo, tem 4 a
biparietal e a circunferência abdominal estão prejudicados
10 mm64 . Mas a massa muscular está bastante aumentada.
por ca usa das modificações provocadas pelas fortes contra-
O comprimento do útero, medido da serosa do fundo
ções uterinas. Na maioria das vezes, porém, o embrião foi
até ao orifício cervical externo, sofre as mesmas restrições
totalmente eliminado e a ultrassonografia tem pouco valor,
apresentadas em relação à altura do fundo palpada através
a não ser avaliar as três dimensões do útero e medir a espes-
da parede abdominal, ou seja, modificação por causa do
sura de suas paredes.
esvaziamento.
Exame dos Restos Ovulares O exame microscópico demonstra fibras musculares lisas
hipertrofiadas, mas não há, que conheçamos, tabelas para a
A eliminação do ovo completo é mais comum em aborto
espontâneo. Mas ocorre também nos abortos induzidos no
primeiro trimestre com mifepristona associada ao misopros-
tol, ou com esquema farmacológico similar.
Caso se tenha acesso à parte do material retirado do úte-
ro, como pode acontecer em flagrantes realizados em clíni-
cas de aborto clandestino, o exame histopatológico dos res-
tos ovulares permite avaliar a idade da gestação com base
no aspecto das vilosidades coriais. Segundo Robertson84, a
correlação entre a morfologia vilositária e a idade gestacional
é bem maior nos abortos provocados do que nos espontâ-
neos, porque aqueles não apresentam alterações patológicas.
Porém, o tempo transcorrido entre o aborto e a colheita do
material para exame pode prejudicar muito, por causa da au-
tólise das vilosidades, conforme já comentamos.
As vilosidades coriais iniciais são formadas pelo tecido
conjuntivo mesenquimal recoberto por duas camadas dis- Figura 29.18. Corte de placenta de gestação a termo, na qual se
tintas de trofoblasto, conforme já assinalamos. Por volta do notam muitas vilosidades de pequeno diâmetro com pequenos pontos
182 dia após a fecundação, começam a aparecer nesse con- mais escuros na superfície, os quais representam nós sinciciais. Caso
juntivo as ilhotas celulares que darão origem aos capilares e 7.962 do Laboratório de Patologia do Instituto Fernandes Figueira, cedido
outros vasos sanguíneos fetais62 (Fig. 29.12 ). gentilmente pela Dra. Heloísa Novaes.
654 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

Figura 29.19. útero aumentado de volume, notando-se grande es- Figura 29.20. Corte histológico de miométrio subjacente à decídua
pessamento do miométrio e dilatação do canal cervical. O endométrio basal, no qual os septos conjuntivos e respectivos vasos sanguíneos
tem aspecto hemorrágico. Oovário esquerdo (à direita da foto) apresenta estão infiltrados por células do sinciciotrofoblasto (pontos mais escuros).
um corpo amarelo. Guia 403 da 30' DP, de 14/11 /69. À direita, vê-se uma artéria dilatada. Caso 3.652 do Serviço de Patologia
do IMLAP-RJ. Coloração HE, aumento médio.

ava liação da fase da gravidez pelo seu diâmetro (Fig. 29.1 3). Métodos Precoces
O comprimento dessas fibras aumenta. O útero não gr ávi-
Atuam antes da implantação d o ovo o u zigoto. Mas há
do tem fibr as com cerca de 50 µm , que po dem atingir até
controvérsias com relação à possibilidade de alguns de-
600 µm na gravidez a term o23 •64 •
les atuarem também como genuínos anticoncepcionais. A
O grau de invasão dos vasos sanguíneos uterinos pelo
maior parte das info rmações a seguir consta da revisão de
trofoblasto pode auxiliar nesse diagnóstico. Os capilares e
Glasier59.
vênulas são permeados aos 20 dias, e as arteríolas espirala-
d as, aos 30. O trofoblasto ultrapassa a parede desses vasos e
Contracepção de Emergência
to rna arteríolas e vênulas indistinguíveis a um exame super-
ficial. Achando vasos com esse aspecto, o perito pode afirmar Q uando uma mulher tem conjunção carnal durante o pe-
que a gestação tem, no mínimo, 1 mês84• río do fértil sem proteção anticoncepcional, a probabilidade
Em torno da décima semana pós-fecundação, o trofo- de engravidar a leva a procurar algum modo de impedi-lo. A
blasto avança ao longo da intimidade das paredes arteriais, falta de proteção pode advir de falha do método que vinha
em direção retrógrada, até a junção decíduo-miometrial. Na utilizando ou de ter sido subm etida a violência sexual. Entre
1 6~ semana, a invasão trofoblástica atinge as artérias radiais as falhas dos m étodos, podem os citar rompimento da cami-
d o miométrio. Nas veias, as alterações não chegam ao mio- sinha, deslocam ento do diafragm a, esquecimento de to mar
m étrio (Fig. 29.20). O contínuo crescimento do útero leva a as pílulas, interrupção tardia do coito etc.
uma dilatação progressiva de todos os vasos alterad os84• Não se sabe ao certo como agem as substâncias usadas
com essa finalidade. Há quatro etapas em que podem agir
Métodos Abortivos e suas Complicações com sucesso: ovulação, fecundação, migração e nidação. É
possível que uma ou outra possa atuar em m ais de um a des-
Antes de descrever os métodos abortivos, devem os re- sas etapas. Se agirem após a fecundação, estarão dentro do
cordar nossa conceituação de aborto diante da atual legis- nosso conceito de abortivo. Mas, como veremos, algumas
lação pátria. Confo rme já com entamos na seção sobre a le- também po dem agir antes.
gislação brasileira, consideramos abo rtivo qualquer processo Em geral, é difícil avaliar a efi ciência das substâncias usa-
que impeça a implantação de um embrião na mucosa uteri- das, pois os autores referem a taxa de insucesso apenas em
na. Por isso, práticas como a chamada regulação menstrual, termos de ausência de gravidez, mas não dão o desconto da
a pílula do dia seguinte, anticoncepção de emergência e o proporção de mulheres que não teriam engravidado ainda
dispositivo intrauterino (DIU) serão estudadas aqui. Volta- que sem o tratamento emergencial. Mesmo nos trabalhos fei-
m os a esclarecer, para que não restem dúvidas, que, sendo o tos com mulheres que tiveram cópula única no período fértil,
aborto um crime contra a vida, qualquer m étodo que impe- essa margem de erro persiste em função de ciclos irregulares e
ça a nidação d o ovo deve ser considerado abortivo, a menos de imprecisão quanto ao início da última menstruação.
que a legislação especifique não haver crime enquanto o ovo Drogas que atuam sobre a ovulação - A associação de al-
não estiver implantado. Feitos esses esclarecimentos julgados tas doses de estrogênio (100 µg de etinilestradiol) e de pro-
necessários, podemos descrever os diversos processos, con- gestina (0,5 m g de levonorgestrel) tomad as duas vezes pode
fo rme a fase da gestação em que atuam. inibir a ovulação, m as sem garantia. É preciso que a primeira
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 655

dose seja dentro das primeiras 72 horas pós-coito. É o que há o risco de haver o uso após relação consentida despro-
se chama de regime de Yuspe, recomendado pela OMS. Há tegida. Esse abuso tem causado uma atitude cautelosa por
países em que os dois comprimidos já estão disponíveis no parte dos laboratórios que produzem essas substâncias
mercado (por exemplo, Reino Unido, Suíça); em outros, os por receio de serem alvo de campanhas de boicote por parte
hormônios são encontrados em doses menores nas cartelas de grupos antiaborto. Nos EUA, por exemplo, a FDA infor-
de anticoncepcionais orais e podem ser somados para atuar mou ao público que a associação estrogênio-progesterona
nas emergências, como, por exemplo, no Brasil. O inconve- de alguns anticoncepcionais do mercado pode ser usada em
niente desse esquema são náuseas e possíveis vômitos, que doses maiores como a pílula do dia seguinte (morning after
podem levar a mulher a não tomar a segunda dose em alguns pill), mas os laboratórios não passaram a exibir esse uso em
casos. Uma variante que tem eficácia semelhante ao esquema suas propagandas91.
Yuspe é o uso do levonorgestrel isoladamente, que provoca
menos náuseas do que a associação. Entre nós, é o que se Dispositivo Intrauterino (DIU)
chama de pílula do dia seguinte, comercializada sob o nome
São corpos estranhos especialmente desenvolvidos para
de Postinor-2 (0,75 mg). Quando tomada no primeiro dia
serem colocados na cavidade uterina com a finalidade de
após a conjunção carnal, tem 95% de eficiência88 • impedir a nidação. Os mais modernos são providos de subs-
A mifepristona, um antagonista da progesterona, com-
tâncias que passam a ser liberadas logo após a sua inserção.
provadamente inibe ou protela a ovulação, mesmo em
Entre os mais usados estão o T 380-A de cobre e um outro
doses pequenas, quando tomada na primeira fase do ciclo que libera progesterona. A eficiência do de cobre é compa-
menstrual.
rável à ligadura tubária, ou seja, a incidência acumulada
Drogas que impedem a fecundação - Não são conhe-
de gravidez após 10 anos de uso ininterrupto é de menos de
cidas. 2%90 . Sua inserção tem que ser feita por profissional espe-
Drogas que dificultam o transporte do ovo - Não são
cialmente treinado, pois podem ocorrer complicações como
conhecidas para a espécie humana, embora altas do-
eventual perfuração uterina. Mesmo que a perfuração seja
ses de estrogênios sejam capazes de aumentar o risco
discreta, as contrações uterinas subsequentes fazem com que
de gravidez tubária.
o dispositivo vá penetrando cada vez mais profundamente,
Drogas que atuam sobre o corpo amarelo - A mifepris-
podendo chegar ao ponto de penetrar na cavidade perito-
tona, quando dada durante a segunda fase do ciclo
neal. Algumas mulheres não conseguem manter o DIU por
menstrual, leva à regressão do corpo amarelo em me-
causa de cólicas ou do aumento do sangramento menstrual.
tade das mulheres.
Por isso, ele tem que ser retirado90•
Drogas que atuam na nidação - É a mifepristona a
principal. Foi desenvolvida nos EUA sob o nome de
Regulação Menstrual
RU-486. Tem afinidade cinco vezes maior pelos re-
ceptores de progesterona do endométrio, de modo É um processo em que a mulher percebe um atraso
que impede a ligação, e, assim, não ocorre a transfor- menstrual de 1 a 2 semanas e, mesmo não tendo feito um
mação decidual do endométrio, que é indispensável teste positivo de gravidez, faz aspiração do conteúdo uteri-
ao sucesso da implantação do ovo na parede uterina. no3·92 ou usa substâncias que tornam a nidação inviável ou
Os fenômenos da pré-decidualização não se proces- levam à eliminação de um ovo recém-implantado93 . Segun-
sam, e o ovo não consegue fixar-se. Quando a mife- do Rezende3, a aspiração do conteúdo é feita com cânulas
pristona é tomada dentro de 72 horas após a conjun- de 4 a 6 mm de diâmetro. A droga mais usada atualmente
ção carnal, sua eficiência em impedir a gravidez é de é a mifepristona, associada ao rnisoprostol. O rnisoprostol é
100%, pois tanto impede ou protela a ovulação como uma prostaglandina El sintética que tem ação de promover a
impede a nidação. Um estudo multicêntrico amplo contração do miométrio. Foi produzido, inicialmente, com o
(1.717 pacientes), feito por uma comissão europeia, fim de tratar gastrites causadas por anti-inflamatórios orais
usou doses de 600 mg, 50 mg e 10 mg e não achou não esteroides com o nome comercial de Cytotec, mas se
diferenças na taxa de prevenção de gravidez, mas com descobriu, pelo seu uso, que podia causar aborto. Um estudo
insucessos de 1,3% com a dose maior e 1,2% com a multicêntrico feito sob os auspícios da OMS, em 1995, en-
dose menor89. volveu 228 mulheres sexualmente ativas, com atraso mens-
Há referências a uma ação espermicida do DIU de cobre. trual de até 11 dias. Elas receberam 600 mg de mifepristona
A reação inflamatória causada pelo dispositivo atrai células seguidos, 48 horas depois, pela colocação de um comprimi-
de defesa como os neutrófilos, cujos produtos de desintegra- do vaginal de gemeprost (a nálogo ao misoprostol). Das 193
ção seriam tóxicos para os espermatozoides. Alguns autores que estavam grávidas, só uma teve prosseguimento da gesta-
acreditam que tenha, portanto, ação anticoncepcional90 • ção; as outras abortaram. As outras 35 não estavam grávidas.
Em países como o Brasil, em que o aborto é permitido em Nesse grupo, a menstruação atrasou um pouco e veio em
mulheres vítimas de violência sexual, deveria haver maior di- quantidade um pouco maior93 .
vulgação dos métodos emergenciais de prevenção de gravi- Experiência brasileira com o Cytotec (misoprostol) - O
dez para que não houvesse a necessidade de executá-lo. Mas Cytotec foi introduzido no mercado brasileiro como uma
656 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

droga para o tratamento da úlcera péptica em 1986 24. Quan- Aborto Clínico
do as mulheres descobriram sua capacidade de interromper
uma gestação em curso, as vendas do produto chegaram a É a designação que se dá à interrupção da gravidez por
atingir 50 mil unidades por mês em 1991 , quando o Ministé- meio não cirúrgico, geralmente nos dois primeiros meses.
rio da Saúde colocou a droga como de prescrição controlada, É a opção que a mulher encontra quando não tem acesso
exigindo arquivamento de uma via da receita26. Nessa época, ao aborto cirúrgico, seja por falta de dinheiro, seja por não
o uso do Cytotec respondia por mais da metade dos abortos haver serviços especializados no município em que mora.
clandestinos feitos no Brasil 25 em função do custo menor, da Nos EUA, 87% dos condados não dispõem de clínicas que
possibilidade de uso em privacidade, da menor incidência de ofereçam esse serviço 1º2• Mas cerca de 60% das clínicas espe-
complicações e da fácil obtenção 26,94 . A partir dai, as vendas cializadas em abortos já oferecem a opção do aborto clíni-
despencaram para 5.000 por mês, não apenas por causa da co102. Difere da regulagem menstrual apenas quanto à época
proibição, pois continuou a venda no mercado negro, mas em que são administradas as drogas, que podem ser dadas
também por retração da fabricação. O esquema mais usado com sucesso até cerca de 9 semanas de gestação. O aborto
em dois levantamentos feitos em Fortaleza foi o de ingestão clínico corresponde, atualmente, a uma proporção ainda pe-
de dois tabletes de 200 µg associados à colocação de dois ta- quena do total de abortos realizados no mundo, mas tende
bletes na vagina em cerca de 90% dos casos95·96. Em outro a aumentar. Por exemplo, os realizados na França represen-
trabalho, no Rio de Janeiro, cerca de 800 µg por via oral94. taram 15% dos abortos em 1994, 21 o/o em 1995 e 26% em
Como o aborto é acompanhado de fortes cólicas e de 1998, contando apenas os feitos com mifepristona. Progres-
sangramento, as mulheres procuram um hospital assim que sivamente, os países com legislação liberal vêm co ncedendo
co meçam a sangrar. Desse modo, foi possível fazer uma esti- licença para o aborto clínico. Atualmente, está liberado em
mativa da incidência desse tipo de aborto. No Rio de Janeiro, quase todos os países da Europa e em Israel 99 •
de 807 mulheres internadas por complicação de aborto, 57% As drogas utilizadas para induzir o aborto clínico atuam
tinham usado o Cytotec94; em Fortaleza, dois terços das mu- sobre a decídua e sobre a musculatura uterina. Na prática, são
lheres atendidas por complicação de aborto nas principais as mesmas referidas na regulação menstrual. Os esquemas
maternidades, entre Ol / l0/1 992 e 30/09/1993, tinham pro- preferidos atualmente envolvem o uso da mifepristona, ou
vocado o aborto co m o misoprostol apenas ou associado a do metotrexato, associados a uma prostaglandina El (miso-
algum outro método97. prostol ou gemeprost). O metotrexato é um agente citostático
A frequência de complicações com o uso do Cytotec é capaz de inibir o crescimento do trofoblasto 1º14• E as prosta-
menor do que a de ou tros métodos inseguros frequ ente- glandinas funcionam como droga complementar no esqu ema
mente usados pelas brasileiras. Estudo feito em Pernambuco promovendo a contração uterina após a ação das outras. O
mostrou incidência de infecções em 4,2% das que o usaram misoprostol tem sido usado por via oral ou vaginal, mas o ge-
contra 7,9% das que alegavam aborto espontâneo e 49,4% meprost é utilizado apenas sob a forma de pessários vaginais99.
das que se valeram de outros meios98• O esquema que tem sido mais utilizado envolve a admi -
O maior inconveniente do aborto feito com o Cytotec nistração d e mifepristona seguida da colocação dos compri-
é o risco eleva do de ocorrência de malformações fetais se a midos de misoprostol na vagina cerca d e 48 horas depois. A
gravidez prosseguir. E isso é importante porque o sucesso da proporção de abortos consumados após 4 horas varia de 44
interrupção da gravidez pelo uso apenas do misoprostol não a 70%, mas a taxa acumulada de expulsão do embrião até 6
é pacifico. Em revisão da literatura feita por Christin-Maitre horas após a colocação da prostaglandina chega a 94%. Con-
e cols. 99 , houve referência a 22, 47, 61 e 94% de sucesso na forme revisão extensa da literatura, sua eficiência (elimina-
prática abortiva, não sendo possível explicar a razão d a dis- ção completa do embrião sem necessidade de complemen-
crepância, pois não tinham rela ção com a dose nem com a tação cirúrgica) varia entre 92 a 98% dos casos. A compli-
idade gestacional. Os índices mais altos foram com o uso do cação mais co mum é a cólica abdom inal, cuja intensidade
gemeprost (97% ). Gonzalez e cols.100 a presentaram o resulta- requer medicação analgésica em 45% dos casos antes e 92%
do de suas observações no Instituto d e Criança da Universi- depois de usar o misoprostol' 03 • Outras complicações leves
dade de São Paulo. Estudaram 42 infantes cujas mães tinham são náuseas, vómitos, diarreia, cefaleia e, por vezes, feb re.
usado o misoprostol no primeiro trimestre da gravidez. As São tão mais intensas quanto mais avançada a gestação 104 • A
alterações mais frequentes foram deformidades articulares complicação mais grave é o sangramento intenso, mas ape-
e de forma nos membros e disfunção de nervos cranianos. nas 0,1o/o de quase 26 mil casos revistos por Christin-Maitre99
Como os defeitos situam-se em segmentos com circulação necessitou de transfusão. A média de perda sanguínea é um
do tipo terminal, sem nutrição por outras artérias colaterais, pouco superior à que se verifica nos abortos cirúrgicos - 84
admitem que as co ntrações uterinas fo rtes ca usadas pelo a 121 mL contra 53 m199 •
Cytotec rompem vasos nutrido res dos segmentos afetados,
o qu e é conhecido como síndrome de rotura vascular. Los1º1 Aborto Cirúrgico
propõe que as contrações fortes do útero aprisionam o san- Quando feito sob anestesia e com cuidados de antissepsia,
gue fetal na placenta de mod o que o fluxo se reduz e causa são raras as complicações graves, com incidência de 0,1 a 1o/o
isquemia nos tecidos fetais. dos casos. Quanto mais avançada a gr avidez, m aior o risco9º.
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 657

Até 2 semanas, basta a aspiração do conteúdo da cavidade ute- de mifepristona costuma ser de 200 mg seguida de 200 µg de
rina com cânulas de 0,4 a 0,6 cm de diâmetro. A taxa de insu- misoprostol após 36 a 48 horas, repetindo a prostaglandina de
cesso fica em cerca d e 0,5%3. Se tiver até 7 semanas, o ideal é a 3 em 3 horas, se necessário. A via vaginal para o misoprostol
aspiração do conteúdo uterino por meio de uma cànula com é superior à oral porque o aborto ocorre mais rapidamente
cureta na extremidade, inserida pelo canal cervical, ligada a e com dosagem menor 107 • Estudando 500 casos com gesta-
uma bomba de vácuo. Pode dispensar prévia dilatação do colo ção de 13 a 21 semanas, Ashok 106 usou um esquema pareci-
uterino, ou apenas dilatação discreta, se tiver quase 7 semanas. do, mas com dosagem mais alta da prostaglandina, e verificou
O operador realiza vários movimentos com a cànula no inte- que o tempo médio para que o aborto se completasse foi de
rior da cavidade uterina, de modo a poder esvaziá-la90 . 6,5 horas, com apenas 3% de insucessos. O grupo de menor
Entre 7 e 12 semanas, é indispensável uma prévia dilata - idade gestacional (13 a 16 semanas) completou o aborto mais
ção do colo uterino de modo a que se possa passar uma câ nu- rapidamente e com dosagem menor de misoprostol. Recen-
la mais calibrosa, de 8 a 14 mm de diâmetro, e o instrumental temente, Dickinson e Evans109 usaram apenas o misoprostol
necessário, como as curetas. A dilatação pode ser obtida por por via vaginal em doses de 400 µ g repetidas de 6 em 6 horas
meio de hastes metálicas de calibre progressivamente maior e conseguiram altos índices de aborto completo - 85,7% nas
(velas de Hegar) até se alcançar o calibre compatível com a primeiras 24 horas e 100% antes de chegar a 48 horas.
idade gestacionaP. Essas velas dilatam o colo com rapidez, Atualmente obsoletas, as soluções hipertônicas já foram
mas, por isso mesmo, são mais contundentes e podem causa r usadas para injeção na cavidade amniótica3·109·11 º·111 . Podem
laceração ou, em longo prazo, incompetência cervical3. ser feitas com cloreto de sódio, glicose ou ureia. A solução
Outra opção para a dilatação é a prévia colocação de la- de cloreto de sódio deve ser a 20%. Tem causado a morte de
minárias algumas horas antes. São filamentos de algas hidró- algumas gestantes por hemorragias cerebrais109, por hiper-
filas que devem ser introduzidos no canal cervical e que, ao natremia aguda 18 ou por coagulopatia90. Pode causar rotura
absorverem a umidade, aumentam de espessura. Quanto ao uterina no segmento inferior ou laceração cervicaJI 11 . A ins-
diâmetro, as laminárias podem ser pequenas (3 a 5 mm), mé- tilação de glicose hipertônica tem causado grande incidência
dias (6 a 8 mm) ou grandes (8 a 10 mm). Pode ser colocada de infecções 109.
uma, ou mais de uma, dependendo da dilatação pretendida3. Já se fez injeção intra-amniótica de prostaglandina F2a
A dilatação pode ser auxiliada pela ação de prostaglandinas 90 • que pode, ou não, ser seguida de infusão intravenosa de oci-
Em trabalho realizado com 106 mulheres, Maclsaac e cols. 105 tocina90. Quando utilizada, a ocitocina é dada entre 1,5 e 3
verificaram que a dilatação cervical era maior e acompanhada horas depois. A mo rbidade é elevada3, registrando -se alta
de menos dor se feita pela aplicação de comprimidos vaginais frequência de lacerações cervicais e de rotura uterina9º·112 •
de misoprostol quando comparada com o uso de laminárias. Comparando com a opção cirúrgica, Grimes e cols. 110 acha-
Após 12 semanas, o esvaziamento é mais difícil porque ram-na inferior por ter maior índice d e complicações e ne-
requer uma dilatação maior do colo, de até cerca de 4 cm, cessitar de tempo de internação maior. Mas, recentemente,
a fim de se passar o instrumental capaz de desmembrar o Perry e cols.113 relataram o uso intra -amniótico de (l 5S)- 15-
feto para permitir sua extração. Uma cânula de mais o u me- m etil-prostaglandina F2a com efeitos mais rápidos e seguros
nos 1,5 cm é usada para aspirar os fragmentos d e placenta e d o que o misoprostol vaginal.
do feto dilacerado. O risco d e perfuração uterina aumenta
com a idade gestacional. Em geral, quando feito o aborto por Aborto Inseguro (Feito por Leigos)
pessoal capacitado, a incidência fica em to rno de 0,1%. São É aquele em que o agente não tem boas noções de ana-
mais frequentes quando o útero é intensamente fletido e sua to mia da genitália interna da mulher nem conhecimentos
cavidade se desvia muito da direção do canal cervical3. As cirúrgicos ou farma cológicos para orientar a intervenção
perfurações ocorrem quando é feita a curetagem sem uma intrauterina e a administração d e substâncias abortifacien-
boa histerom etria. O de laceração cervical chega a 1% se tes, respectivamente. Conforme já referimos, calcula-se que,
computadas as mais superficiais90. anualmente, são feitos cerca d e 20 milhões de abortos insegu-
Após 20 semanas, a opção pelo aborto cirúrgico é mais ros no mundo 7 • A maioria dessas práticas é seguida d e cure-
arriscada e requer a internação da paciente para ser subme- tagem nos hospitais de pronto-socorro. No Brasil, o número
tida a uma histerotomia, também chamada de microcesárea. d e curetagens pós-aborto tem diminuído. Em 1991, foi de
É uma operação rara. Sua m ortalidade é cerca d e 44 vezes 288,7 miF; em 1995, de 274,7 mil e, em 2000, de 238,9 mil5.
maior do que a curetagem feita no primeiro trimestre90 • Po r A causa da busca pelos hospitais é a ocorrência de retenção
todas essas dificuldades, o aborto cirúrgico não deve ser usa- d e restos ovulares levando a hemorragia tardia e a infecções.
do no segundo trimestre. Os métodos leigos podem ser divididos, para fim de aná-
lise, em mecânicos e químicos.
Aborto no Segundo Trimestre
Métodos Mecânicos
A indicação, aqui, é a indução do aborto por meio de me-
dicamentos. O esquema mais moderno é a associação da mi- Podem ser de ação indireta ou direta. Os de ação indire-
fepristona com a prostaglandina E 1 (misoprostol) 106·107• A dose ta atuam a distância do útero, como os traumas abdominais
658 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

e as quedas provocadas. Socos e outras fo rmas de contusão cinchonismo, pode causar aborto, mas existe o risco de mor-
abdominal geralmente não conseguem provocar o aborto. te para a gestante porque a dose abortiva está muito próxima
De preferência, causam roturas de outras víscer as, por exem - da letal, fato que ocorre com várias outras substâncias uti-
plo, fígado ou baço, podendo levar a gestante não ao aborto, lizadas para esse fim 114 • Outras drogas, com o a ergonovina,
m as à morte 114 • Menos eficientes ainda são quedas, pulos e atuam sobre a musculatura uterina no pós-parto e no pós-
andar a cavalo, que a mulher tenta para d escolar o ovo. Even- aborto, mas, ao contrário do que os leigos pensam, não são
tualmente, em gestações que já não vinham bem, podem an- abortivas.
tecipar um aborto que seria espo ntâneo. Entre as substâncias de ação local, algumas são cáusticas e
Os traumas diretos são feitos pela introdução de corpos provocam queimadura química da mucosa cervical. É o caso
estranhos afilad os, como arames, agulhas de tricô ou sondas do permanganato de potássio. Colocado no fundo de saco va-
de borracha semirrígidas, no canal cervical, de modo a dila- ginal, reage com a umidade, produzindo hidróxido de potás-
tá-lo. Havendo a dilatação, o útero inicia contrações que aca- sio e óxido de manganês. Forma-se uma ulceração. O sangra -
bam por expulsar o concepto. A ignorância quanto à posição mento subsequente ilude a mulher, que pensa ter abortad o,
da cavidade uterina com relação ao canal cervical e à vagi- mas não há eliminação do concepto em 94% das tentativas 11 5 •
na faz com que, em várias oportunidades, haja perfuração Algumas vezes, faz-se injeção para dentro da cavidade am-
uterina no fundo, na parede anterior no útero retrofletido e niótica com cáusticos, principalmente os antissépticos, que
posterior no anterofletido. Pode haver também a transfixa- gozam da preferência dos agentes por impedirem infecção.
ção d o fundo de saco vaginal ou da parede cervical de modo
a atingir a cavidade peritoneaP· 114 • Mesm o nos casos em que Infecção Pós-aborto
a haste é introduzida com sucesso na cavidade uterina, isso
É uma complicação temível, principalmente po rque re-
pode ser conseguido após várias outras tentativas, com a sulta, em geral, de abortos inseguros, clandestinos, em que a
pro dução de feridas e lacerações no colo uterin o. Além disso,
mulher tem medo de ser processada e só pro cura assistência
a dilatação ementa do colo uterino sem anestesia pode cau- médica quando a infecção já está avançada. A incidência de
sar choque neurogênico e parada cardíaca po r via vagal 114 •
infecções no aborto clínico é mais baixa do que pelo uso
Outro m étodo físico consiste na introdução de líquido de outras técnicas, visto que não há manipulação intrauteri-
sob pressão positiva através do colo uterino a fim de descolar na. Em 2.01 5 casos, apenas 19 apresentaram endometrite nos
as membranas, inclusive a placenta. Pode ser feito com soro
EUA, em abortos feitos com mefepristona e misoprostol 116 •
fisiológico ou com substâncias antissépticas. Há referência ao
No Brasil, a incidência de infecção pelo uso do Cytotec entre
uso de soluções de detergentes e sabões 11 4 • À ação mecânica 1.840 casos estudados de Pernambuco foi de apenas 4,2%,
som a-se a irritante, desencadeando-se as contrações uterinas.
inferior à taxa de infecções entre os abortos ditos espontâ-
Por vezes, a substância penetra nas trompas e tem acesso à neos (7,9%) e os feitos por métodos cruentos (49,4%) 98 . Nos
cavidade peritoneal, causando uma pelviperitonite quími-
abortos feitos por leigos através de meios mecânicos intrau-
ca115. Algumas vezes, o ar contido na bomba e na tubulação
terinos, a taxa é elevada, visto faltarem os conhecimentos de
pode penetrar nos lagos sanguíneos placentários e ser drena- antissepsia e ser muito frequente a retenção de restos ovu-
do para a circulação venosa da m ãe, causando embolia pul- lares. Sua incidência real não pode ser descoberta de m odo
m onar. Dependendo da quantidade de ar que chegue ao lado
direto, mas a grande proporção de atendimentos por com-
direito do coração, pode haver um bloqueio da circulação, de
plicações de abo rto provocado sugere que seja elevada.
modo semelhante ao que ocorre nos sistemas de distribui-
As infecções podem restringir-se a uma endometrite ou
ção de água. O coração tem capacidade de bombear o sangue
propagar-se para a cavidade peritoneal. A contaminação da
porque ele é incompressível, mas o ar é muito elástico, e seu cavidade perito neal pode dar-se através de uma perfuração
volume se reduz a cada contração ventricular sem m over a
ou rotura uterina, ou por extensão direta através das trom-
coluna sanguínea para diante. A quantidade de ar necessária
pas"9º. De um modo geral, os microrganismos causado res
para causar esse bloqueio tem sido muito discutida, mas tem
são os que estão presentes normalmente na cavidade vaginal,
que ser superior a 100 mL, para encher o ventrículo direito 11 4 •
mas também aqueles levados do meio exterio r por meio de
corpos estranhos introduzidos sem regras de antissepsia. Os
Métodos Químicos
mais comuns são enterococos, Escherichia coli, Chlamydia
Podem ser mais ou menos requintados, de acordo com trachomatis e, menos comumente, anaeróbios como espécies
o nível técnico do agente. O ra as substâncias são aplicadas de Bacteroides, Clostridium perfringens, welchii ou tetani 116 •117 •
localmente, no colo uterino ou dentro da cavidade amnió- A existência de infecção deve ser cogitada se a mulher apre-
tica, ora são ingeridas ou injetadas para ação farmacológica sentar febre, mal-estar, útero doloroso e com volume uterino
sistêmica. Quando administradas por via oral ou parenteral, acima do esper ado, e lóquios piossanguinolentos e fétidos.
o que essas substâncias provocam é um estado de intoxica- Os exam es laboratoriais confirmam o quadro infeccioso e
ção exógena grave em que um dos efeitos colaterais pode ser podem indicar qual o germe envolvido. A disseminação da
o aborto, nem sempre conseguido. É o que ocorre com o uso infecção culmina por sepse. Nos casos de sepse por Clostri-
da quinina, em doses tóxicas. A intoxicação pela quinina, o dium perfringens, há hemólise seguida de insuficiência renal
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 659

por necrose tubular aguda e choque 116• O tétano pós-aborto


é uma complicação temível que não é rara.
O útero tomado pela infecção costuma ter material ne-
crótico em sua cavidade, paredes amolecidas por edema,
mucosa substituída por exsudato hemorrágico (Fig. 29.21 )
ou purulento, áreas de hemorragia e de necrose no miomé-
trio e, por vezes, perfuração cujas margens são formadas
por tecido necrótico (Figs. 29.22). À microscopia, notam-se
necrose e substituição da mucosa por fibrina, sangue e ex-
sudato rico em piócitos. O infiltrado inflamatório alcança
profundidade variada no miométrio, podendo chegar até o
peritônio (Figs. 29.23 e 29.24). Quando se trata de bactérias
anaeróbias, há infiltração de gás nas paredes do órgão, que
Figura 29.22. útero aumentado de volume, com ampla perfuração do
passam a oferecer sensação de crepitação pela palpação. Nos
fundo em que a parede é formada por tecido necrótico. Há áreas de
casos mais avançados, encontram-se abscessos intraparietais hemorragia na espessura das paredes do órgão. Guia 124 da 17ª DP, de
ou nos paramétrios, ou franca pelviperitonite purulenta. 21/06/72.

Morte Materna (MM)


É o pior desfecho de um aborto malfeito. Pode ocorrer
no momento da intervenção ou em médio prazo. A morte
por complicações imediatas, como sangramento abundante,
choque neurogênico, embolia gasosa e envenenamento, está
associada a falhas técnicas grosseiras e é mais comum nos

Figura 29.23. Corte histológico de decídua basal em que se notam,


da esquerda para a direita, material fibrinoleucocitário e glândulas e
vasos sanguíneos separados por tecido conjuntivo infiltrado por células
inflamatórias. Caso 5.236 do Serviço de Patologia do IMLAP-RJ. Colora-
ção HE, pequeno aumento.

Figura 29.21. útero aumentado de volume, com infiltração hemorrá- Figura 29.24. Corte histológico de miométrio com infiltração leuco-
gica da túnica interna. O colo está muito dilatado. Caso da coleção de citária por entre os feixes de músculo liso. Caso 3.812 do Serviço de
ensino da Faculdade de Medicina da UFRJ. Patologia do IMLAP-RJ. Coloração HE, grande aumento.
660 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

abortos clandestinos feitos por leigos. As de médio prazo re- Quesitos


sultam, em geral, de infecção disseminada ou de sequelas de
Diferem conforme se trate de mulher viva, muito mais
envenenamento, por exemplo, hepatite tóxica, insuficiência
frequente, ou de cadáver. A fim de evitar repetição desneces-
renal, coma prolongado etc.
sária, comentaremos alguns aspectos observáveis apenas em
Em termos absolutos, é possível saber o número apro-
necropsias quando for oportuno e conveniente, mesmo que
ximado de mortes decorrentes de aborto em nosso meio,
se refira o quesito à mulher viva. Na perícia de mulher viva,
pois se trata de morte violenta, e, por isso, a declaração de
os quesitos são:
óbito só pode ser dada por médico-legista. Em revisão dos
1) Se há vestígios de provocação de aborto - A caracte-
casos registrados no IMLAP de 1970 a 1979, encontramos
rização da provocação do aborto só pode ser feita
uma média de 26 MM anuais causadas por complicações de
diante de certas complicações o u quando se puder
aborto no município do Rio de Janeiro23 • A proporção de
encontrar algo do material utilizado na intervenção.
MM causadas por complicações de aborto varia de acordo
A simples presença de marcas de pinças no colo ute-
com a legislação do país considerado. Numa computação
rino, de lóquios e de sinais de interrupção recente
global, dados da OMS referem ser o aborto a quarta causa,
da gravidez não é suficiente para afirmar ter havido
com 13% do total de mortes maternas"ª· Considerando-se provocação (dolo). A mulher pode alegar que teve
regiões de legislação muito restritiva como a América Lati-
aborto espontâneo complicado por retenção deres-
na, o aborto inseguro causa cerca de um terço das MM 119 .
tos ovulares e que houve necessidade de uma cure-
Rezende3 cita trabalho de Laguardia feito no Hospital Mu-
ta gem terapêutica.
nicipal Miguel Couto, no Rio de Janeiro, com prontuários Como consideramos o DIU um método abortivo preco-
de 18.071 gestantes, em que 47% das MM foram devidas a ce, o achado de tal dispositivo na cavidade uterina ou, como
complicações de aborto. pode acontecer em raros casos, encravado na parede do úte-
Mas os índices podem ser mais bem estudados se algu- ro, ou mesmo na cavidade peritoneal, já é prova suficiente.
mas variáveis forem analisadas. Em primeiro lugar, a morta- Mas esses casos não chegam à avaliação pericial porque, por
lidade é bem maior se o aborto for feito durante o segundo questão de interpretação de quando começa a tutela penal
semestre 12º· 121 • Analisando os registros ingleses sobre abor- sobre a vida do concepto, não se aplica o dispositivo legal re-
tos legais feitos entre 1968 e 1978, Kestelman 121 achou taxa pressor a esses casos. Inclusive, há incentivo governamental
de m ortalidade de 4,5 e 18,6/100.000 procedimentos, para ao uso do DIU com fins de planejamento familiar, o que tem
o primeiro e o segundo semestres, respectivam ente. Outro grande importância social.
fator que aumenta a MM é a realização simultânea de esteri- Com o nossa legislação é muito restritiva, o uso da regu-
lização durante o procedimento abortivo 12º·12 1•122 • lação menstrual e a realização do aborto clínico precoce es-
tão fora da lei. Nos raros casos em que haja denúncia de sua
Diagnóstico da Provocação. Quesitos no Auto de prática, dificilmente os peritos poderão comprovar o fato.
Exame de Aborto Em primeiro lugar, por não haver manipulação uterina e fal-
tarem marcas no colo. Em segundo, porque as substâncias
O conhecimento das técnicas de interrupção da gravidez utilizadas mais frequentemente são eliminadas rapidamente.
utilizadas por médicos e dos processos executados por leigos A meia-vida da mifepristona no plasma é de 20 a 40 horas 123,
é fundamental para que se possa reconhecer o dolo. O dia g- tempo muito curto para que se possa pesquisá-la em exame
nóstico da provocação é a etapa mais importante da perícia pericial, geralmente feito mais de 48 horas após a denúncia.
nos casos de investigação de crime de aborto, po is, não sendo O misoprosto l (Cytotec) é metabolizado prontamente, pro-
possível afirmar categoricamente que a interrupção da gravi- duzindo vários metabólitos, dos quais o mais ativo é o ácido
dez foi dolosa, não há como tipificar a conduta do agente, o u de misoprostol, que tem meia-vida de menos de 30 minutos
seja, que foi cometido o delito. no plasma. O pico de concentração é atingido em cerca de
Antes de caracterizar que houve provocação de aborto, 15124 ou 20 minutos 125, mas é de eliminação rápida demais
como já referimos no início da seção sobre a perícia, é ne- para que tenha valor pericial. A única possibilidade de com -
cessário afirmar que havia gravidez. Os peritos farão o exame provação seria o achado do tablete de misoprostol na cavida-
clínico geral e ginecológico, conforme já detalhado anterior- de vaginal, o que também é pouco provável.
m ente, valendo-se de exames complementares de laborató- Nos casos de aborto por meio cirúrgico, o dolo pode ser
rio clínico e/ou toxicológico. Se o aborto foi complicado por caracterizado no caso de ocorrerem acidentes técnicos como
m orte da gestante, a competente necropsia forense fornecerá a perfuração uterina, a laceração do colo o u o achado de la-
os elementos para o diagnóstico retrospectivo da gravidez e minárias no canal cervical. Nos espontâneos, não há neces-
do seu tempo de evolução. O diagnóstico de provocação será sidade de se fazer a dilatação cervical, que ocorre natural-
feito com base no encontro de alterações características do mente pelo trabalho de aborto. Quando a manipulação é fei -
emprego de cada método abortivo e, principalmente, das ta por leigos, as lesões grosseiras de perfuração e laceração do
complicações que levaram ao óbito. O modo de se chegar a colo ou o achado de parte do material usado para dilatá-lo,
esse diagnóstico será apreciado nos comentários aos quesitos. assim com o perfuração ou rotura do corpo uterino, servem
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 661

para a testar a intenção d o agente. Além d o mais, esses ca- ou deformidade permanente (resposta especificada) -
sos costumam já est ar complicados po r infecção. Às vezes, a Este quesito tem a finalidade d e caracterizar a produ-
introdução d e h astes rígidas pela vagina cau sa perfurações ção de lesão corporal grave pela intervenção abortiva
do fundo de saco vaginal, da parede cervical e/ou do corpo para enquadramento do agente na fo rma qualificada
uterino. Por vezes, é possível surpreender parte d esse ma te- do crime (art. 127 d o CP). O mod o de determinar a
rial ainda en cr avada n o órgão ou dentro da cavidade uterina existência d essas lesões deve ser estudado n o Capítulo
em casos seguidos de autopsia. Tratando-se d e histerotomia 20 deste livro.
( microcesárea), a ferida abdominal e a uterina servem para 4) Se não havia outro meio de salvar a vida da gestante
dem onstrar o esvaziam ento d oloso. (no caso de aborto praticado por médico) - A respos-
O emprego de soluções hipertônicas e a injeção intra- ta negativa, aqui, caracteriza o aborto t erapêutico. O
arnniótica de prostaglandina ou substâncias cáu sticas dei- perito tem que se basear n o exame da paciente e n os
xam m arcas características, m esm o quando n ão ocorrem dados da evolução clínica que constam do prontuário
complicações. A ferida punctória na região hipogástrica, o hospita lar. Po r isso é que o m édico é obrigad o a man-
trajeto hem orrágico através da pared e anterior do corpo ute- ter o registro dos seus casos de aborto terapêutico.
rin o e as a lterações na sua cavidad e permitem fazer o diag- Se n ão os tiver quando solicitado, fi cará em situação
n óstico. É frequente que a solução seja misturada com algum difícil. Não é raro acontecer de algum m embro da fa-
corante para se sab er que a agulha permanece dentro da ca- mília, ou a pró pria gestante, n ão aceitar a interrupção
v idade amniótica durante a substituição d o líquido normal da gravidez po r motivos emocionais.
pela solução hipertô nica. Assim, o exame da cavidade revela- 5) Se a gestante é alienada ou débil mental - Sempre que
rá a mesma cor d o corante utilizado. A ocorrência de ro tura o perito su speitar de alguma dessas condições, deve
uterina e de lacerações cervicais, relativamente frequentes pedir o parecer de um psiquiatra. Caso seja confir-
n esses casos, junto com o trajet o da agulha, comprova o pro- mada a sua suspeita, respo nderá afirmativamente. O
cedimento ab ortivo. caso, então, tran sformar-se-á em abo rto legal (senti-
A injeção de soluções sob pressão para descolar as mem - mental) por ter h avido estupro. Mas o consentimento
b ranas d o saco gestacional pode ser d et ectada pela própria pa ra a intervenção tem que provir do respon sável le-
presença d a subst ância intro duzida e pela desinserção d os gal pela incapaz, n ão da gestante.
elem entos deciduais e d a placenta. Algumas são percebidas No caso d e se trat ar de cadáver, os qu esitos passam a ser:
por sua cor ou ch eiro característicos. Q uando cáu sticas, cau - 1) Se houve morte - Embora pareça redundância ter que
sam queimaduras químicas ao longo d o trajeto de injeção e dizer que houve m orte em exame cad avérico, t al fo r-
n a área de descolam ento . Po r vezes, alcançam a cavidade pe- malidade é necessária para a caracterização jurídica
ritoneal e cau sam perito nite química. Essas alterações co m - da qualificação do crime pela mort e da gest ante.
provam a ação dolosa. H avendo suspeita de embolia gasosa, 2) Se a morte foi precedida da provocação de aborto - É
a n ecropsia deve ser orientada para a d em on stração do a r óbvio que as possibilidad es diagnósticas são muito
n as veias uterinas, pélvicas e cava inferior, assim com o no maiores no cadáver que na mulher viva. A hipótese
la do direito do coração. Para t al, é preciso que a inspeção de m orte já é um elemento importante n o diagn ósti-
da cavidade abdomin al seja cuidad osa, com visualização d as co da provocação, uma vez que se constitui n a maior
veias pélvicas e d a cava inferior antes d a remoção dos blocos das com plicações do aborto provocado; e se sabe que
v iscerais. O lad o direito do coração deve ser puncionado ou a regra geral é de n ão haver com plicações em ab or-
aberto d entro d a cavidade pericá rdica cheia d e líq uido par a tos espontâneos. Além disso, a perícia pod e ser com -
que se possa verificar a presença das bolhas n a aurícula e no plem entad a pelo exame da genitália interna, n o qual
ventrículo direitos. pod em ser encontrados elem entos preciosos pa ra o
A presença de t abletes d e perma nganato de potássio no diagn óstico da provocação. Con fo rme vimos, tanto
fundo d e saco vaginal comprova a inten ção de interromper a os meios químicos quanto os m ecâ nicos d eixam , com
gestação. Embora não seja um métod o eficaz, po de acompa- frequên cia, m arcas características. O ach ado d e rotu-
nhar o utros procedimentos feitos com o mesmo fim. ra, perfu ração, queimadura por cáu sticos e outras le-
2) Qual o meio empregado - Na impossibilidade de res- sões uterinas, ou m anifestações sist êmicas, garantem
ponder afirmativamente ao primeiro, este quesito fica ter sido do losa a interrupção.
prejudicad o. Mas, se se puder dizer que foi provoca- 3) Qual o meio empregado para provocação do aborto -
d o, os mesmos fatos qu e caracterizar am o dolo darão A caracterização d o m eio deve ser inferida das lesões
o diagnóstico do métod o escolhido. en contradas.
3) Se, em consequência do aborto ou do meio empregado 4) Qual a causa da morte - O que se quer saber, aqui, é
para provocá-lo, sofreu a gestan te incapacidade para as a pat ologia que levou a gestante à m orte. Ao estudar-
ocupações habituais por mais de 30 dias, ou perigo de mos os métod os e as com plicações do aborto, fizem os
vida, ou debilidade permanente ou perda, ou inutili- com entários a respeito d as ca usas de m ort e materna.
zação de membro, sentido ou função, ou incapacidade 5) Se a morte da gestante sobreveio em consequência do
permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável, aborto ou de meio empregado para provocá-lo - A res-
662 • CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto

posta afirmativa a este quesito só pode ser dada se


tiver havido nexo de causalidade entre a morte e o
aborto ou o meio empregado para provocá-lo. O que
a Justiça deseja saber é se não houve alguma concau-
sa independente que tenha levado por si só à morte,
seja preexistente, seja superveniente. Se a causa da
morte for uma complicação infecciosa decorrente de
fraqueza orgânica, digamos por deficiência imunoló-
gica, o nexo causal existe. Não existirá, pelo contrá-
rio, se a morte tiver ocorrido por rotura de varizes
de esôfago decorrentes de cirrose hepática. Da mesma
forma, se a mulher fizer o aborto e morrer em um
acidente de trânsito ao se dirigir para casa, não haverá
nexo causal.
Às vezes, o aborto não chega a se consumar porque a mu-
lher morre antes de concluída a intervenção. O meio usado
causa a morte antes de se realizar o aborto. É o que ocorre
nos choques da indução anestésica em que a cirurgia nem
começou; nos choques neurogênicos por manipulação in-
tempestiva sem anestesia; e também nas intoxicações exóge-
nas dos métodos químicos.
Em 1971, tivemos a oportunidade de autopsiar uma mu-
lher no quinto mês de gestação que fora submetida a uma
tentativa de aborto pela injeção de tintura de iodo na cavida-
de amniótica, por via vaginal. O feto apresentava marcas de Figura 29.26. Detalhe do canal cervical do mesmo útero da figura
queimadura química na pele voltada para o local da injeção. anterior. O orifício cervical externo está muito dilatado e o interno,
Como a placenta tinha inserção mais baixa que o habitual, menos. A esse nível há trajeto hemorrágico de tonalidade acastanhada,
em vez de fazê-lo totalmente na cavidade amniótica, a enfer- por onde foi introduzida a agulha (ver texto).
meira injetou parte do iodo no seio marginal da placenta, o
que equivale a uma injeção endovenosa, matando a mulher
por intoxicação exógena pelo cáustico. O exame toxicológico
das vísceras foi positivo para iodo e confirmou o diagnósti-
co126 (Figs. 29.25 a 29.27).

Figura 29.25. útero grávido de cerca de 4 meses, aberto pela face


anterior, com o concepto em local normal. Oovário direito apresenta um
corpo amarelo maduro. Parte das membranas está descolada na metade Figura 29.27. Feto de cerca de 4 meses que estava envolvido pelas
esquerda do útero, onde a coloração é um pouco acastanhada por membranas na Figura 29.25. Apresenta a pele queimada por tintura de
injeção de tintura de iodo. Guia 160 da 23ª DP, de 29/7/71. iodo, exceto onde o cordão umbelical a protegeu.
CAPITULO 29 Estudo Médico-legal do Aborto • 663

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Hygino de C. Hercules

A proteção do Estado ao recém-nascido, ao longo d a altas temperaturas para ser cozida viva. Durante toda a Idade
Histó ria, tem sofrido importantes m odificações. O respeito à Média e início da Idade Moderna, foram m antidas as pen as
sua vida tem oscilado entre dois extremos: total indiferença cruéis. A Constitutio Criminalis Carolina, promulgada por
e extrema repressão aos atos perpetrados contra sua integri- Carlos V em 1532, condenava as mães infanticidas a serem
dade. D e acordo com Nilton Salles 1, Antenor Costa divide empatadas e enterradas vivas, sendo permitido que fossem
a postura das leis penais quanto ao infanticídio através do previamente afogadas para que sofressem menos se o crime
tempo em três períodos distintos: não fosse frequente no território de jurisdição em que hou -
1) Período greco-romano: a criança, propriedade dos vesse sido cometido 2•3•
pais, podia ser morta depois do nascimento se nas- A mudança de atitude do poder estatal com relação aos in-
cesse imperfeita, malformada e se causasse vergonha fanticidas com eçou sob a influência de Beccaria e Feuerbach,
o u desonra para a família. com o Código Austríaco de 1803. As penas a serem aplicadas
2) Período intermediário: oposto ao anterior, muito se- levariam em consideração o estado emocion al e o lado moral
vero, em que as mães, quaisquer que fossem os mo ti- da m otivação e seriam mais leves que as atribuídas aos h omi-
vos, eram punidas com penas extremamente severas. cidas comuns2 • Tal postura tem prevalecido na legislação dos
3) Período moderno: baseado em ideias mais humanitá- diversos países d esd e então.
rias, passou a con siderar o crime de m odo mais com -
placente, atribuindo penas mais brandas aos agentes.
Durante o período greco-ro mano, a princípio, até os • LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
recém -nascidos n ormais podiam ser sacrificados, principal-
mente se fossem gêm eos. Mais tarde, na fase do patriarcado, é Nossa legislação tem reconhecido o infanticídio como
que houve uma mudança de atitude, com a proteção da crian- um delito excepcional desde o Código Penal de 1830. Seu
ça n ormal1. O pai ainda tinha o direito de vida e d e morte artigo 198 estava assim redigido:
do filho . O recém -nascido era levado ao pai, que decidia sua
sorte: se o er guesse pelos braços, estaria reconhecendo-o; se Art. 198. Se a própria mãe matar o filho recém-nascido
o colocasse d eitado, estaria condenando-o. O s filhos rejeita- para ocultar sua desonra.
dos podiam ser expostos ao tempo, de mo do a morrerem de Pena de prisão com trabalho por 1 (um) a 3 (três) anos.
fome e de desidratação.
Ao final do apogeu ro man o, começa o período interme- Para fins d e compara ção e apreciação da b enevolência
diário. Sob influên cia do cristianismo, as penas impostas d o legislador, basta referir que o h omicídio tinha com o pena
aos infanticidas passaram a ser de extrema crueldade. A m ãe mínima a prisão com trabalhos por 20 anos; e a m áxima era
criminosa era executada de modo cruel, como no suplício a mo rte. A ocultação da desonra de ser mãe solteira tinha um
do culeus2. Era colocada em um saco de couro e exposta a peso exagerado n o abra nda mento da pena 1•2•

669
670 • CAPITULO 30 Infanticídio

O primeiro código penal da República, o Código Penal puerperal. Em segundo lugar, é um crime que pode ser co-
de 1890, tipificava o infanticídio no seu artigo 298: metido por ação ou por omissão, sempre doloso 4 •

Art. 298. Matar um recém-nascido, isto é, infante nos O Estado Puerperal


primeiros 7 dias do seu nascimento, quer empregando
Embora pareça simples, a conceituação obstétrica do
meios diretos e ativos, quer recusando à vítima os cuidados
puerpério não é fácil. Pode ser apresentada como o período
necessários à manutenção da vida e a impedir sua morte. que vai da eliminação da placenta até a volta do organismo
Pena: de 6 (seis) a 24 anos de prisão celular. materno às condições anteriores à gravidez. Contudo, tal de-
Parágrafo único. Se a própria mãe matar o filho recém- limitação tem falhas. Em primeiro lugar, o parto não termi-
nascido para ocultar sua desonra. na exatamente com a eliminação da placenta e, sim, com a
Pena: prisão com trabalhos de 3 (três) a 9 (n ove) anos.
contenção da hemorragia causada pelo seu desprendimento.
É o chamado quarto período do parto, que segue os períodos
O maior senão a esse artigo é a atribuição de pena igual prévios de dilatação cervical, expulsão fetal e eliminação pla-
à do homicídio simples para um crime tipificado de modo centária. Em segundo lugar, o término do puerpério tem um
distinto. Se a vida do recém-nascido era considerada menos retardo acentuado quando a mulher dá à luz e passa a ama-
valiosa do que a das outras pessoas, por que aplicar a mesma mentar. A amamentação protela muito o retorno da atividade
pena do homicídio comum? E, caso fosse de mesmo valor ju- cíclica dos ovários e a consequente sucessão das menstrua-
rídico, por que constituir um crime à parte se qualquer pessoa ções. Se ela amamentar por 12 meses, a primeira menstruação
poderia ser o agente? Havia uma incongruência nítida2• Além pós-parto virá aos 8,7 meses; se não amamentar, em 1,5 mês.
disso, o texto legal não dava qualquer elemento que o distin- Além disso, o organismo materno não mais será como antes,
guisse do homicídio, apenas o sujeito passivo, que teria que pois que restam alterações permanentes relacionadas ao pro-
ser um recém-nascido. O caput do artigo não considerava o cesso gestacional. Por exemplo, podem ficar estrias gravídicas,
motivo de honra, o grande elemento abrandador da pena do hiperpigmentação mamária e facial, modificação da forma do
Código de 1830 e da legislação de outros países àquela época. orifício visível do colo uterino e alterações vasculares que já
Mas o parágrafo único o reco nhecia - apenas para a mãe. descrevemos a propósito do diagnóstico de gravidez pregressa
Quando da discussão do anteprojeto do Código Penal de no Capítulo 29. Por isso, há quem proponha para início do
1940, várias posturas diferentes foram consideradas antes puerpério a perda da atividade hormonal placentária e, como
de ser proposta e aceita a atual fórmula do artigo 123. Houve fim, o retorno das regras. Os autores, em geral, dividem o
um grupo de juristas que defendia a adoção do motivo de puerpério em imediato, até os 10 dias subsequentes ao parto;
honra, quando se tratasse de gravidez ilegítima, clandestina. tardio, até 45 dias; e remoto, além desse prazo>.
Dentro do grupo, as posições também divergiam, já que ora Do ponto de vista legal, o critério cronológico vem deli-
apenas a mãe gozaria do benefício legal, ora ele se estenderia mitado na expressão durante o parto ou logo após, pelo logo
a outros membros da família ultrajada - ascendente, descen- após. A esse tema voltaremos mais adiante, pois depende
dente ou irmã. Havia ainda quem defendesse a introdução de muito dos achados periciais. O que importa, no momento,
um parágrafo no artigo referente ao homicídio para atenuar é a expressão influência do estado puerperal, trazida ao tex-
bastante a pena daquela que, para ocultar sua desonra, matas- to legal para justificar o abrandamento da pena e, de certo
se o próprio filho, durante o u logo após o parto. A favor dessa modo, explicar a conduta agressiva da mãe com relação ao
visão estava a afirmação de Brouardel de que, em dez casos, recém-nascido. Uma observação, porém, deve ser feita, ain-
nove teriam como móvel do crime a defesa da honra 1 • Contu- da, relativa à redação e descrição do tipo penal. Há inco n-
do, prevaleceu a orientação do Código Penal suíço do início do gruência quando o legislador admite que o crime possa ser
século XX, que descartava o motivo de honra e se apegava à feito durante o parto, quer dizer, antes do puerpério, mas sob
modificação da conduta pela influência do estado puerperal, a influência deste, que ainda não existe. Melhor seria sob a
constituindo um delito distinto do homicídio. Assim, o Códi- influência do parto e do puerpério.
go Penal atual define o infanticídio no seu artigo 123: Há duas maneiras de se entender a influência do estado
puerperal: uma puramente psicológica e outra considerada
Art. 123. Matar, sob a influência do estado puerperal, o fisiopsíquica. As correntes de pensamento penal que reco-
próprio filho, durante o parto ou logo após. nhecem como elemento indutor ao crime o medo de deson-
Pena: detenção de 2 (dois) a 6 (seis) anos. ra e repúdio social por ser a gravidez ilegítima concebem a
redução da pena com base na geração de um sentimento de
Elementos do Crime de Infanticídio aversão ao concepto ao longo da gestação. O pensamento
da grávida passaria a girar em torno do seu problema, que lhe
Em primeiro lugar, é interessante salientar que o infanti- ocuparia a vida m ental com intensidade crescente até um clí-
cídio é um crime próprio, quer dizer, só pode ser cometido max que ocorreria por ocasião do parto. Tal pressão psicoló-
pela própria mãe. Não cabe no fato típico qualquer outro gica seria amplificada pelas dores do parto e pelo estresse in-
agente. Só a mãe pode vir a estar sob a influência do estado tenso do período expulsivo, geralmente escondido e solitário.
CAPITULO 30 Infanticídio • 671

Os que adotam a influência fisiopsíquica admitem que ções uterinas. Estas são contrações que envolvem quase toda
as dores do trabalho de parto, o esforço para a expulsão do a musculatura do órgão, principalmente seus 2/3 superiores.
concepto e a perda sanguínea criam um estado de pertur- Com cerca de 30 semanas de gestação, ocorre uma por hora.
bação da afetividade de intensidade variável, capaz de, em Mas os especialistas concordam em que não é possível de-
alguns casos, transformar o sentimento normal de cuidados terminar o momento exato do início do trabalho de parto,
e proteção ao recém-nascido em sentimento de rejeição le- pois existe um período, chamado de pré-parto, geralmente
vado às últimas consequências. Principalmente se a gravidez nas quatro últimas semanas da gestação, em que as grandes
for ilegítima. A postura dessa corrente baseia-se na consta- contrações começam a ficar mais próximas entre si e mais
tação de que é comum haver uma modificação do humor fortes. A partir daí, vão-se tornando cada vez mais frequentes
da parturiente logo após o parto, tanto para uma sensação de e mais bem coordenadas, de modo que o trabalho de par-
alívio quanto para tristeza e depressão, cuja intensidade va- to surge imperceptivelmente ao longo dessa atividade cres-
ria de um para outro caso. A proposta do Código Penal de cente. Arbitrariamente, costuma-se dizer que o trabalho de
1940 foi de deixar a possibilidade de que o parto e o estado parto começa quando sua frequência atinge dois a três em
emocional do pós-parto imediato teriam o potencial de, em cada 10 minutos, tendo já causado dilatação de 2 cm no ori-
alguns casos, criar o animo necandi. fício externo do colo 7• Um sinal clínico do início do parto é a
A avaliação dessa influência, em cada caso, seria tarefa do perda do tampão de muco que fecha o canal cervical e que é
perito psiquiatra encarregado do exame da puérpera. Mas a eliminado quando o colo começa a se dilatar.
maior dificuldade reside exatamente na determinação desse Mas, para fins periciais, essas filigranas pouco ajudam.
grau de influência. Em primeiro lugar, o exame é feito vários Tanto por não haver precisão quanto por serem de constata-
dias depois do parto, em condições totalmente diversas daque- ção impossível nos casos de infanticídio, no qual o parto não é
las geradoras da perturbação do psiquismo. Em segundo lugar, assistido. Por isso, convencionou-se afirmar que o trabalho de
o infanticídio é crime perpetrado, geralmente, sem a partici- parto começa quando ocorre a rotura da bolsa amniótica, por
pação de outros agentes, em situação que não comporta teste- ser um fato que dificilmente passa despercebido pela mulher.
munhas. O psiquiatra responsável pelo exame não tem acesso Além disso, qualquer leigo sabe que a perda de água antecede
a informações sobre a atitude da parturiente durante ou logo o nascimento. Normalmente, a bolsa se rompe quando está
após o parto, de modo que não pode apreciar até que ponto quase completa a dilatação do colo. Mas é possível que ocorra
estaria o seu psiquismo abalado. Sua única fonte de elementos no início do parto e mesmo antes de ele ter começado8•
para o diagnóstico é o exame da paciente já fora da crise. O fim do parto e o consequente início do puerpério,
Outra dificuldade de difícil transposição é a delimitação como já assinalamos linhas atrás, também têm limite impre-
da fronteira entre a perturbação causada pelo estado puer- ciso, pois o quarto período, o de contenção da perda sanguí-
peral e uma autêntica patologia mental capaz de gerar uma nea, decorrente do descolamento da placenta e das membra-
incapacidade de entendimento da ilicitude do ato. Ficando nas, tem duração va riada. Para fins legais, não há necessidade
demonstrado que a puérpera estava em crise de surto psi- de grande precisão, uma vez que o crime pode ser praticado
durante ou logo após o parto. De qualquer maneira, tem-se
cótico, ou epiléptico, no momento da ação, configura-se a
aceito que o parto termina com a eliminação da placenta,
regra geral do artigo 26 do nosso código, o u seja, ela seria
que é um fato marcante e que não pode passar despercebido.
declarada inimputável, não sendo possível atribuir-lhe uma
A expressão logo após tem a finalidade de encurtar o tem-
pena, inclusive a do próprio infanticídio. O próprio crime de
po durante o qual a ocisão do concepto pode ser praticada
infanticídio não seria tipificado, uma vez que, entre os seus
sem que se descaracterize o infanticídio. Mas a aplicação da
elementos constituintes, está a influência do estado puerpe-
lei exige que se faça uma demarcação mais precisa. Do con-
ral, inexistente nesse caso. Ter-se-ia, sim, um homicídio qua-
trário, voltar-se-ia ao Código de 1890, que admitia o infanti-
lificado praticado por pessoa inimputáveF. A ocorrência de
cídio até 7 dias depois do parto. A intenção do legislador foi
surtos psicóticos no pós-parto imediato é fato raro. Quan-
reduzir ao máximo esse tempo, visto que o estado de per-
do surge, resulta de exacerbação de doença mental prévia já
turba ção mental causado pelo parto haveria de ter duração
diagnosticada, ou de eclosão de doença que já existia, mas
breve. Na Costa Rica, que atenua a pena do infanticídio pelo
era desconhecida até então. Não se admite que o parto, por si
motivo de honra, o prazo aceito é de 3 dias9 • A lei inglesa, por
só, seja agente capaz de gerar distúrbio mental da gravidade
meio do Infanticide Act, de 1938, dá um prazo de até 1 ano 1º!
de um surto psicótico6 .
O logo após não deve ser entendido como elemento iso-
lado do tipo, mas, sim, em consonância com a influência do
O Elemento Cronológico
estado puerperal. Por isso, não se pode considerar infanti-
O texto legal fala em durante o parto ou logo após para cídio a morte do recém-nascido pela própria mãe depois
estabelecer um critério para o tempo durante o qual o delito de cortado e amarrado o cordão umbilical e de limpo o seu
pode ser admitido. Desse modo, é preciso definir quando co- corpo dos líquidos presentes no canal do parto. Aqui, a de-
meça o parto e estabelecer os limites do logo após. Do ponto limitação legal deve ser feita por meio da constatação pelos
de vista obstétrico, o trabalho de parto começa quando se peritos de que se trata de recém-nascido ainda em estado
intensificam e se tornam mais frequentes as grandes contra- sanguinolento, como referiam os romanos.
672 • CAPITULO 30 Infanticídio

OSujeito Passivo do Crime concreto, aquela criatura po deria co ntinuar vivendo por
seus próprios m eios (Fig. 30.1 ).
Uma d as críticas que se fazia ao Código de 1890 era de
Tal preocupação é antiga. O exagero no sentido de pro-
que o crime teria que ser praticado após a expulsão d o con-
teger a vida e de rigo r na aplicação da pena não pode levar
cepto. Não previa a possibilidade, como faz o atual código, à condenação d a mãe que atue sobre um pro duto abortado
d e a ação criminosa ser exercida durante o parto, no exato de 4 m eses de gestação que, tendo movimentação ativa níti-
momento em que o feto começa a transpor o orifício vulvar. da, seja violentamente traumatizado e morto. É a posição de
Como tal circunstância não estava prevista na letra da lei, os autores com o Nelson Hungria, Sou za Lima, Nilto n Salles e
raros casos que pudessem aco ntecer não poderiam ser tipifi- Celso Delmanto, entre outros.
cados como infa nticídio. Para se evitar a impunidade, havia a As dificuldad es práticas geradas pelos casos fronteiri-
d escaracterização para crime de aborto, mas incorretam ente. ços tornam-se ainda m ais críticas quando o recém -nascido
Para ser aborto criminoso, o trabalho de expulsão teria que apresen ta an omalias congênitas ca pazes de impedir sua
ter sido induzido, não espo ntân eo. Em face dessa dificulda- sobrevivência por mais que po ucas horas. Não estabelece
d e, o legislad or d o código atual agiu certo em estender a ex- a lei diferenças d e proteção de acordo com o po tencial de
pressão com o durante o parto. sobrevida. Basta que o recém -nascido apresente sinais indis-
Desse modo, é preciso considerar que o suj eito passivo do cutíveis de v ida autóno ma, como movimentação ativa, res-
crime pode ser o feto nascente ou o recém-nascido. Enquanto piração e circulação, m esm o que deficitárias. No entender de
d entro do útero, durante a evolução da dilatação cervical, o Nelson Hungria2: "Tão intangível é o minuto de vida de um
feto fica ao abrigo de ações violentas po r parte da mãe, só se recém-nascido quanto o último minuto de vida de um mo-
to rnando vulnerável no mo mento em que aflo ra por entre ribundo." Mas, também aqui, po demos estar caminhando no
os grandes lábios vulvares. Nesse mom ento, o feto nascente fio da navalha. Po r analogia ao que foi comentado quanto à
pode vir a ser morto antes que se complete a sua expulsão. A inviabilidad e por imaturidad e, é preciso que se diga que há
vida está protegida antes mesmo que o feto comece a respi- casos em que a sobrevivência do recém-nascido é impossível
r ar. Nesse mo mento, o feto está prestes a ter vida extra uteri- com o consequência das malfo rmações que apresenta, como,
na e a deixar a intrauterina. H á quem fale em vida autónoma po r exemplo, a anen cefalia (Fig. 30.2). O anencéfalo é inca-
e vida puramente biológica, respectivamente. Qualquer que paz d e continuar vivo por m ais que algumas horas, embora
seja ela, porém, tem a tutela penal. haja relato de casos com sobrevida de alguns dias 15 , pois o
Outro problema é o da viabilidade do recém -nascido. H á seu defeito pode ser de gravidade variad a.
alguma co nfusão com relação à abrangência dos termos via- Po r outro lado, há anomalias que permitem sobrevida
bilidade e imaturidade. A viabilidade representa a capacid ade desde que implementadas m edidas de suporte extraord iná-
d e sobrevivência autó nom a do feto uma vez parido e desco- rias. É o caso d e certas anomalias renais co mo, por exemplo,
nectado da circulação placentária. O Dicionário H ouaiss da a agenesia renal e o rim multicístico bilaterais. Nesses indiví-
Língua Portuguesa registra duas entrad as para o termo, uma duo s, a instituição de hem odiálise pode permitir-lhes sobre-
referente à qualidade do que é percorrível, que não se aplica viver o suficiente para receberem transplante renal 16 •
ao nosso caso; outra derivada d o francês viabilité, aptidão Se levarmos ao pé da letra a citação do eminente jurista,
acima referido, teremo s que considerar o anencéfalo como
natural d e um feto ou d e um recém -nascido à vida; caráter
sujeito passivo idóneo para o crime de infa nticídio, o que
d o que pode viver, desenvolver-se, que está apto à vida 11 • A
viabilidade diz respeito, portanto, à capacidad e de sobrevi-
vência autónoma, que tanto pode estar prejudicad a por mal-
fo rmações incompatíveis com a sobrevida com o também
pela extrema imatur idade.
A viabilidade dos premat uro s tem relação direta com o
tempo de permanência no álveo materno, m as não é cons-
tante. Além d e haver uma variação individual, evolui com
o progresso da assistência neonatal, de mo do que, hoje em
dia, já é possível manter vivos recém -nascidos de peso ex-
t remamente baixo, definidos pela CID- 10 d a OMS co mo
abaixo d e 1.000 g 12, o que correspo nde à idade gestacio nal
aproximad a d e 27 13 a 28 semanas14 • Por isso, é preciso bom
senso no mom ento de avaliar se d eterminado recém -nas-
cido imaturo pod eria, ou não, ser sujeito passivo do crime
d e infa nticídio. Não se pod e ser muito dogm ático, com o
ver em os na parte referente à perícia, quanto à sua capaci- Figura 30.1. Recém-nascido prematuro de peso extremamente baixo,
d ade d e autonomia com base apenas no seu peso. O que com sinais de vitalidade. Comparar seu tamanho com o da mão do adulto
importa, na prática, é resolver se, em determinado caso que o segura.
CAPITULO 30 Infanticídio • 673

§ 2° Se resulta a morte:
Pena: detenção de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Em primeiro lugar, o bem aqui tutelado pelo código é a


segurança do indivíduo, incluindo sua saúde e sua vida. É
um crime de perigo, ao contrário do infanticídio, que é um
crime de dano, cujo objeto da tutela é a vida. Assim, para
que se concretize, basta a exposição ou o abandono, mesmo
que não sobrevenham lesões ou morte. Estas entram como
elementos qualificadores, de agravamento da pena a ser apli-
cada18. Os autores divergem quanto ao agente do crime. Uns,
como Delmanto4, admitem apenas a mãe como agente ativo
do crime, considerando-o um crime próprio. Outros aceitam
que o pai ou outros parentes próximos possam cometê-lo 4 •
Figura 30.2. Recém-nascido anencéfalo. A parte superior da cabeça De qualquer forma, o móvel subjetivo do crime tem que ser
está retraída, em plano abaixo das arcadas supra-orbitárias, de onde o sentimento de vergonha e desonra que precisa ser evitado.
desce para trás um plano ondulado. Há edema facial, principalmente No infanticídio, a intenção da mãe é matar. Mas, no abando-
das pálpebras, e coloração cianótica da face e das mãos. Coleção da no, se ficar demonstrado que era essa a intenção - a morte
Sociedade Brasileira de Pediatria. Cedido pela Dra. Cristina Marcondes do recém-nascido-, o crime passa a ser de infanticídio ou de
Hercules. homicídio qualificado, dependendo das circunstâncias.
Quanto ao momento do crime, o tempo é muito maior, pois
nos parece inaceitável. Contudo, no caso do insuficiente re- o recém-nascido não precisa ser o infante sanguinolento
nal, embora tenha tendência a não sobreviver, principalmen- próprio do infanticídio. O fato de já ter sido lavado e cuidado
te porque costuma apresentar outras anomalias congênitas não exclui a tipicidade. É interessante realçar que a pena para
associadas, o julgamento deve ser outro. Ele nasce, respira e a forma qualificada pela morte do recém-nascido é idêntica à
sobrevive por seus próprios meios, embora precariamente. do infanticídio, o que reabre a discussão sobre a possib ilidade
A agressão da mãe contra tal recém-nascido pode e deve ser de infanticídio por omissão. Diante de um recém-nascido
considerada punível. ainda san guinolento, abandonado pela mãe sem lesões re-
Do que expusemos, fica claro que cada caso merece refle- sultantes de agressão, que venha a morrer por desidratação,
xão conscienciosa, sem critérios absolutistas, principalmente teria havido infanticídio por omissão ou o seu abandono
se considerarmos o progresso das ciências m édicas e a ten - logo após o parto? A única diferen ça seria a intenção da mãe,
ciência atual a enfatizar a qualidade de vida como pressupos- o dolo específico da doutrina tradicional, elemento de difícil
to de dignidade da pessoa humana. A propósito, cabe citar o comprovação em um parto clandestino 18.
caso de duas meninas que vivem numa pequena cidade do
Meio-Oeste norte-americano, que nasceram unidas pelo tó- Mortalidade Perinatal
rax, tendo a coluna vertebral dividida da torácica para cima,
de modo a terem dois pescoços e duas cabeças para um só Para analisar a mortalidade perinatal, é indispensável
tronco, do is membros superiores e dois inferiores. Segundo conceituar o que significa o período perinatal. Segundo a
a reportagem, de 1996, as duas pessoas que habitam aquele CID-10 (OMS), período perinatal é o compreendido entre
corpo tinham 6 anos e conseguiam realizar as tarefas diárias 22 semanas completas de gravidez, quando o peso ao nascer
em harmonia 17. Levando a extremos o conceito de qualidade é de cerca de 500 g, e os 7 dias completos após o nascimento
de vida de cada um, elas teriam, o u não, justificativa para com vida. Na nona revisão era dada como limite antenatal a
serem mantidas vivas. É terreno tão movediço como o que 28-ª semana, que correspondia a feto com 1.000 g.
pavimenta as discussões sobre o fim da vida. Com o fim de se poder comparar o desempenho dos
sistemas de sa úde, foram criados indicadores relacionados
Diferença com a Exposição ou Abandono de ao período perinatal. O mais usado é o coeficiente de mor-
Recém-nascido talidade perinatal, que exprime a soma de mo rtes de fetos
acima de 22 semanas de gestação mais o número de mo rtes
Esse crime, diferente do infanticídio, está tipificado no até se completarem 7 dias de vida pós-natal, por 1.000 nasci-
artigo 134 do Código Penal: mentos (tanto vivos como natimortos). A OMS'9 recomenda
que seja u sado o marco de 28 semanas para comparações
Art. 134. Expor ou abandonar recém -nascido, para internacionais e de 22 semanas para ava liações dos serviços
ocultar desonra própria: de cada país. Esse coeficiente indica a probabilidade de um
Pena: detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. feto nascer morto ou, nascendo vivo, de morrer na primeira
§ 1º Se do fato resulta lesão de natureza grave: semana. Não deve ser confundido com o coeficiente de mor-
Pena: detenção de 1 (um) a 3 (três) anos. t alidade neo natal, que exprime o número de mortes ocorri-
674 • CAPITULO 30 Infanticídio

Tabela 30.1. Coeficientes de mortalidade perinatal em


maternidades brasileiras comparadas com fontes de outros
países*
Para Ano Coeftclente
Suécia 1980 8,7
Noruega 1979 11,9
Canadá 1979 11 ,9
Holanda 1979 12,0
Nova Zelândia 1979 12,1
Austrália 1979 14,3
Inglaterra e País de Gales 1979 14,3
Polônia 1979 17,2
Colômbia 1977 22,9
Cuba 1979 23,9
Chile 1978 24,3
Portugal 1979 25,9
Brasil
Mat. Escola da UFRJ 1985 a 1989 24,4
Hosp. Cruz Vermelha 1978 25,0
(Belo Horizonte)
lperba (Salvador) 1978 28,0 Figura 30.3. Volumosa hemorragia cerebelar, que se estende à ponte
Mat. Mário Tota (Porto Alegre) 1978 63,0 e invade o quarto ventrículo, causada por tocotraumatismo. Cedido gen-
tilmente pela Dra. Virgínia Borges Nassralla.
'Fonte: Rezende J, Montenegro CAB e Belfort P".

das durante a primeira semana de vida com relação a 1.000 lembrar que qualquer forma de distocia, se não for solucio-
nascidos vivos. A Tabela 30.l fornece números referentes à nada rapidamente, causa prolon gamento excessivo do traba-
mortalidade perinataI em vários países. lho de parto e con sequente anoxia.
A instalação do trabalho de parto antes do termo da gra-
Causas de Morte Perinatal videz condiciona o nascimento de infantes pou co preparados
para a vida autónoma - os prematuros. Quanto mais precoce
A morte durante o período perinatal pode ser natural ou
o fim da gestação, maiores os riscos para o recém-nascido.
violenta.
Seu grau de imaturidade pod e ser aferido pelo peso ao nascer,
embora a avaliação de seu desenvolvimento requeira a apre-
Mortes Naturais
ciação de outros parâmetros, que analisaremos no diagnósti-
Consideramos mortes naturais, para fins m édico-legais, co pericial da viabilidade. Nos EUA, cerca de 75% das mortes
as que ocorrem sem culpa da mãe n em de terceiros, inclusive perinatais são devidas a problemas causad os pela prematu-
as decorrentes de acidentes obstétricos como os tocotrauma- ridade22. Entre os prematuros, as causas mais frequentes de
tismos. As mais frequentes resultam de anoxia intrauterina, morte são de origem respiratória o u cerebral. A principal é
prematuridade, tocotraumatismos, anomalias congênitas, a síndro me de angústia respiratória (doença da m embrana
doença hemo lítica do recém-nascido, síndrome da angústia hialina), causada pela incapacidade d e as células alveolares
respiratória e pneumonia. A anoxia intrauterina e os proble- produzirem a substân cia chamada surfactante, cuja função
mas pulmonares, juntos, respondem por mais de 50% dos é manter um número suficiente d e alvéolos abertos. Q uanto
óbitos perinatais14. mais imaturo, maio r a deficiência de surfactante e maio r a
Entre as causas de anoxia intrauterina, podemos listar o gravidade do colapso pulmonar. Esses prematuros também
exagero na frequên cia e intensidade das contrações uterinas têm tendência a sofrer hemorragia cerebral n ão traumática.
(hipercinesia ), a hipoten são arterial da mãe, o descolamento Essas hemo rragias são de intensidade variada, agravando-se
prematuro da placenta, a circular e a procidência do cordão na vigência de sofrimento fetal. Quando mais intensas, rom-
umbilical, parto muito prolongado e as infecções, como, por pem o revestimento dos ventrículos laterais d o cérebro (re-
exemplo, as pneumonias intrauterinas20 • A incidência de vestimento ependimário) e causam hemorragia intraventri-
anoxia intrauterina é de 1,5/ 1.000 nascidos vivos 21 . Co nvém cular23·24 (Fig. 30.3).
CAPITULO 30 Infanticídio • 675

Figura 30.4. Caput succedaneum. Há um alongamento para trás e


para cima, tomando como referência a posição anatômica, dos setores
parietais e occipital por causa de edema do couro cabeludo. Guia 53 da
13ª DP, de 07/11/71.

Os tocotraumatismos podem ser conceituados como le-


sões que incidem sobre o feto durante o trabalho de parto e
em função desse. Sua incidência global é de 2 a 7% d os partos,
e ocorrem apesar de ter havido bom atendimento obstétrico
na condução do parto 23• Respondem por 8% d as m ortes pe-
rinatais em partos de gestação a termo, sendo anotadas 20 Figura 30.5. Rotura traumática do saco amniótico em consequência
graves para cada lesão mortal23. A incidência dos tocotrau- de suicídio da mãe por defenestração. Há descolamento parcial da
matismos aumenta com a ocorrência de distocias, com o des- placenta. Coleção de ensino da Faculdade de Medicina da UFRJ.
proporção cefalopélvica, apresentações anómalas (de face,
de nádegas), uso de fórceps, de vacuoextrator, manobras de
versão no parto pélvico, além dos resultantes de iatrogenias pneumonia pode resultar também de contaminação através
(métod os de diagnóstico invasivos, como a biópsia de vilo- da placenta por bactérias presentes no sangue da mãe 26 • Os
sidade corial, colocação de eletrodos para monitorar o feto, recém-nascidos a termo, quando submetidos à anoxia intrau-
cirurgia intrauterina etc.) 23 • Na maioria das vezes, são pou- terina, costumam eliminar m ecónio (conteúdo do intestino
co importantes e regridem espontaneamente, como o caput grosso) para o líquido amniótico. Como, durante o sofri-
succedaneum (Fig. 30.4) e o céfalo-hematoma, ou que regri- m ento fetal, aumentam os m ovimentos respiratórios intrau-
dem com tratam ento comum, como as fraturas de clavícula. terinos, o feto aspira esse m ecónio, que é irritante e causa
Mas as lesões podem ser graves a ponto de causarem a mo rte inflam ação pulmonar 20 .
e serem confundidas com as produzidas por ação criminosa.
O diagnóstico diferencial dos tocotraumatismos com as le- Mortes Violentas Acidentais
sões criminosas será feito na parte referente à perícia.
A d oença hemo lítica do recém-nascido (DHRN) resulta Podem ocorrer antes ou após o nascimento. Antes da ex-
da sensibilização da mãe por antígenos presentes na super- pulsão, e mesmo antes do início do parto, o feto po de mor-
fície dos glóbulos vermelhos do feto, geralmente do sistema rer em decorrência de traumatismos sofridos pela m ãe. Por
Rh, de modo que a mãe Rh-negativa passa a produzir anti- exemplo, podemos citar colisões de veículos, quedas, atro pe-
corpos que são capazes de atravessar a barreira placentária lamentos, em que a m ãe sofra grave traumatism o abd omi-
e, chegando à circulação fetal, destruir as hemácias Rh-po- nal, levando à contusão uterina e lesão do feto. Nas colisões,
sitivas do concepto. Atualmente, com modernos métodos de um dos riscos é a ação do cinto de segurança sobre o abd ó-
profilaxia da DHRN, os casos fatais são raros. Essa profilaxia m en da mãe (Fig. 30.5).
tem por base impedir que a mãe Rh-negativa pro duza an- Após a expulsão, podem ocorrer asfixia, hemo rragia in-
ticorpos contra as hemácias fetais, o que é conseguido po r tensa pelo cordão umbilical não ligado e o cham ado parto
injetar, na m ãe, anticor pos anti-Rh externos para evitar que de surpresa. A asfixia logo após o parto pode ser causada
ela os produza. Com essa postura pro filática, a incidência da por aspiração dos líquidos eliminados juntamente com o
DHRN na Inglaterra caiu de 17 para 1,5% 25• concepto. Dependendo do local, da posição em que se dê
Quando há rotura precoce da bolsa amniótica, a conta- a expulsão e da quantidade de líquido amniótico e sangue,
minação bacteriana do ambiente onde está o feto pode cau- bem como da falta de assistência ao parto, o feto pode ficar
sar aspiração de conteúdo séptico durante o parto e, con- com os orifícios respiratórios dentro de coleções desses lí-
sequentemente, pneumonia logo após o nascim ento. Mas a quidos e aspirá-los. A falta de iniciativa da mãe em retirá- lo
676 • CAPITULO 30 Infanticídio

dessa situação desfavorável, tanto por inexperiência quanto condições excepcio nalmente favo ráveis do canal do parto,
por ter desfalecido pelo esforço do período expulsivo, pode principalmente em multíparas. Mas pode ocorrer também
gerar tal acidente. com primíparas em partos não assistidos, em função do des-
É possível, raramente, que o parto chegue à expulsão sem conhecimento da mulher com relação às sensações do perío-
que se tenha rompido o saco amniótico. Aqui, o feto perma- do expulsivo. É fato comum a mulher primípara referir que
nece envolto pelas membranas e imer so no líquido amnióti- está com vontade de evacuar no m omento em que com eça
co. Havendo o descolamento da placenta, ele perde sua fonte a expulsão do feto. Desse mod o, ela pode ser iludida e ir ao
de oxigênio e entra num estado de asfixia se as m embranas sanitário para defecar, lá eliminando o concepto. Mas isso
que o envolvem não forem rompidas pela própria m ãe ou pode ocorrer também em outras situações, inclusive com a
por quem a esteja ajudando. Mais frequente, mais grave, po- mulher de pé27• Conforme a altura de que caia o feto, pode
rém m ais fácil de ser corrigido, é o estrangulamento do feto ocorrer rotura do cordão umbilical. As lesões fetais e mater-
pela circular de cordão umbilical ao redor do seu pescoço. nas e o diagnóstico do parto precipitado serão abordados na
Basta que alguém desenro le o cordão e o problema está re- seção referente à perícia.
solvido. Outra possibilidade é a presença de nós no cordão.
Mas é preciso que a mãe ou quem a auxilia estejam atentos Mortes Violentas de Origem Criminosa
para o fato e ajam sem demo ra (Fig. 30.6) .
A causa eficiente da mo rte nos infanticídios depende, em
A ligadura do cordão umbilical é m edida a ser tom ada
parte, d os m eios ao alcance da m ãe. Nilton Salles refere uma
imediatam ente após o nascimento. Deve ser feita de modo
predominância das asfixias por constrição cervical e por su-
firme, com fio de linha grossa, anéis de elástico, ou clampes focação direta. Na verdade, não tem os uma estatística con-
de plástico, o que é mais m oderno. Quando malfeita ou não
fiável, mas, em nossa experiência pessoal, temos observado
executada, pode causar sangramento a partir das artérias um- tanto essas forma s de asfixia quanto o uso de ação contun-
bilicais, que são ramos das artérias hipogástricas. A secção dente e de instrumentos perfurocortantes. Na Costa Rica, as
do cordão com instrumento cortante deixa as extremidades principais causas são as asfixias m ecânicas, lideradas pelas
d as artérias umbilicais muito regulares. Por isso, o despren- duas formas de sufocação, a ação contundente, o uso de ins-
dimento de ligadura malfeita tem mais chance de causar san- trumentos perfurocortantes e a omissão de cuidados neces-
gramento do que a rotura ou o esmagamento do cordão pelos sários à sobrevivência, como não agasalhar, não alimentar ou
dentes da m ãe, como fazem os índios, uma vez que a ação não ligar o cordão umbilical9 •
contundente desses produz extremidades irregulares mais
aptas a produzirem a coagulação do sangue e consequente
hem ostasia. É preciso não esquecer que o volume de sangue • PERÍCIA
de um recém -nascido é muito pequeno, e, por isso, perdas
discretas podem ser significativas do ponto de vista funcional. Os peritos podem ajudar a justiça nos casos de infa nti-
O parto de surpresa, ou precipitado, é o que ocorre ra- cídio esclarecendo aspectos elementares do crime e outros
pidamente, seja porque o período de dilatação foi muito acessórios como a viabilidade e o tipo de violência causa-
breve, seja porque a expulsão é intempestiva em função de dora da mo rte. Entre os elementos do crime que dependem
de comprovação pericial estão a existência de vida durante e
logo após o parto, a influência do estado puerperal e a rela-
ção de descendência direta entre mãe e filho.

Provas de Vida durante o Parto


É preciso lembrar que aq ui não se trata de car acterização
dos sinais obstétricos de vida, com o batimentos cardiofetais
e movimentos ativos. O trabalho de parto nos casos de infa n-
ticídio é, como regra, clandestino e não assistido. O que cabe
aos peritos buscar é a comprovação de que havia circulação
sanguínea durante os períodos de dilatação e expulsivo do
parto. As lesões mais importantes nesse sentido são o tumor
do parto, o céfalo-hem atom a e as lesões do crânio, das me-
ninges e do cérebro.

Tumor do Parto ou Caput Succedaneum


Figura 30.6. Presença de nós muito apertados no cordão umbilical É um dos sinais mais importantes. É uma tumefação
de um dos fetos de um par de gêmeos. Caso cedido gentilmente pela observada no seto r occipital e parte adjacente dos seto res
Dra. Virgínia Borges Nassralla. parietais do couro cabeludo que fo rma um prolongamento
CAPITULO 30 Infanticídio • 677

arredondad o, para trás e para cima, da silhueta da cabeça. Céfalo-hematoma


Ocorre nos partos com apresentação cefálica comum e re-
Distingue-se por ser bem delimitado, de localização pre-
sulta de um desequilíbrio circulatório regional causado pela
cisa com relação ao osso do crânio em que se assesta, pois
diferença entre a pressão sofrida pela parte já exteriorizada
consta de uma coleção de sangue extr avasado entre o periós-
através do orifício externo do colo uterino e a que é exercida
teo e a tábua óssea. Seus limites correspondem aos da peça
pelas paredes uterinas sobre a porção do couro cabeludo que
óssea, geralmente um dos parietais 15.
ainda está no canal do parto. Desse modo, o sangue arterial
atinge a porção exterio rizad a, mas o retorno venoso desse
Lesões do Crânio, das Meninges e do Cérebro
sangue fica muito diminuído por causa da compressão d as
veias pelo anel formado pelo colo. Por isso, formam-se um As pressões sobre o crânio, durante o parto, faze m com
edema e, por vezes, hemorragia difusa e discreta na área ex- que ele sofra uma modificação de sua forma, com aumento
posta. O acúmulo de líquidos nessa área confere-lhe consis- de um diâmetro e redução do diâmetro o posto. Por exem-
tência amolecida e um aspecto gelatinoso, brilhante e seros- plo, pressões laterais fazem com que aumente o diâmetro
sanguinolento aos cortes. Nos casos em que a apresentação antero posterior e diminua o transverso. Isso faz com que a
é de face, notam-se congestão, edem a e infiltração equimó- dura-máter seja estirada e submetida a tensões. Se o estira-
tica nas partes moles como lábios, nariz, pálpebras e regiões mento fo r lento, ela costuma suportar a pressão. Mas, se fo r
malares. O mesmo se diga com relação às nádegas no parto rápido, com o nos partos precipitados, por exemplo, a dura-
pélvico. Não devem ser confundidos com lesões causadas máter pode-se romper em certos locais menos resistentes.
dolosamente (Figs. 30.4 e 30.7). Aco metem também os recém-nascidos de parto pélvico em
que ho uve dificuldade para a liber ação da cabeça (cabeça
derra deira) 15·24• Tais ro turas são mais co muns na união da
tenda do cerebelo com a foice cerebra l. As roturas come-
çam na borda livre da tenda cer ebelar e se dirigem para
a sua inserção na foice, po dendo levar à abertura d o seio
reto da dura-máter. Nessa área, está localizada a principal
veia de drenagem d o sangue dos do is hemisférios cerebrais,
a veia de Galeno. Sua rotu ra ocorre quando o diâmetro
anteroposterior do crânio é exagerado por compressão la-
teral15 (Fig. 30.8). Tanto a rotura do seio reto com o a da
veia de Galeno causam hemorragia subdu ra l de intensidade
proporcional à extensão.

--- ..........
' ' \_,
\
\
\
1
1
1

J
1
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I
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../
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Figura 30. 7. Esquema da formação do caput succedaneum (bossa


serossanguínea). O sangue arterial (A) entra na área exposta do couro Figura 30.8. Alongamento do diâmetro anteroposterior do crânio por
cabeludo, mas não se dá o retorno venoso de modo satisfatório IY). OCC compressão lateral. Essa deformação produz estiramento da foice cere-
- occipital; PE - parietal esquerdo; U- parede uterina; seta maior - força bral e da tenda do cerebelo, com possível rotura do seio reto e da grande
expulsiva. veia cerebral (v. de Galeno).
678 • CAPITULO 30 Infanticídio

sumada após a expulsão do concepto. Assim, é com relação


a esse momento que a perícia tem que demonstrar de modo
inequívoco que o sujeito passivo do crime estava vivo. Do
ponto de vista pericial, a demonstração de vida extrauterina
pode ser feita pela comprovação de que o feto respirou ou,
pelo menos, de que o coração batia e havia circulação. Não
é matéria de apreciação pericial a análise de depoimentos de
pessoas que tenham, porventura, presenciado o parto e afir-
mado que o feto tinha movimentação ativa. Cabe aos jurados
aceitar, ou não, tais relatos. Apenas como contribuição ao
tema, devemos assinalar que mesmo fetos inviáveis podem
exibir ativa movimentação antes que sua vida se extinga por
total incompetência respiratória, como nos abortos tardios.

Figura 30.9. Focos de hemorragia perivascular no tecido nervoso Provas de Circulação Extrauterina
subependimário. Coloração por HE, pequeno aumento. Caso A-73-03 do Tal demonstra ção é análoga à referente às lesões intrau-
HESFA.
terinas. Desde o momento em que o recém-nascido receba
traumatismos já fora do útero, a presença de infiltração he-
Nos trabalhos de parto em que ocorre sofrimento fetal, morrágica atesta terem sido produzidos em um indivíduo
podem ser observadas hemorragias subaracnoideas de ex- vivo. As lesões, obviamente, não devem ser aquelas referi-
tensão variada, causadas por intensa congestão que culmina das na seção anterior, produzidas ainda dentro do útero. O
com a rotura de pequenos vasos'5 . que nos interessa, aqui, são as infligidas depois da expulsão,
As hemorragias no próprio tecido nervoso estão relacio- como feridas por instrumentos perfurocortantes, por ação
nadas com sofrimento fetal durante o trabalho de parto. Nos contundente etc. Serão abordadas a respeito da discussão
fetos a termo, costumam ser encontradas como pequenos quanto à causa da morte.
focos perivasculares distribuídos esparsamente, mais bem Alguns autores costumam referir, como prova circulató-
observados ao exame histopatológico 24 (Fig. 30.9). ria da vida extrauterina, a coagulação do sangue dentro das
As de maior vulto são quase que apanágio dos recém - artérias e da veia umbilical. Achamos que tal achado indica,
nascidos prematuros. Quanto mais imaturos, maior a proba- realmente, que havia vida após a expulsão. Mas sua ocorrên -
bilidade de ocorrerem. São observadas em 60% dos recém - cia é muito posterior à execução dos primeiros movimen-
nascidos de peso extremamente baixo (menos de 1.000 g) 24 • tos respiratórios, tirando-lhe importância na perícia. É bem
Costumam surgir na área germinal subependimária das pa- mais interessante provar que houve respiração.
redes dos ventrículos laterais, onde interessam o tálamo, o
núcleo caudado e parte da substância branca adjacente, onde Provas de Respiração Ativa
a parede dos capilares e vênulas é muito frágil. São muito Uma vez expulso da cavidade uterina, o feto entra em
mais frequentes quando há sofrimento fetal24. As mais inten- contato com um meio ambiente totalmente diferente. Sofre
sas rompem o revestimento ependimário e invadem as ca- o impacto de uma temperatura mais baixa, da luz ambiental
vidades ventriculares, constituindo hemorragias ao mesmo e do relaxamento das pressões exercidas pelo canal do par-
tempo para e intraventriculares (Fig. 30.3). to sobre seu corpo. O primeiro movimento respiratório no
A presença de fraturas de crânio com infiltração hemor- exterior é estimulado tanto pelo estado de relativa asfixia do
rágica também serve para caracterizar a reação vital duran- feto na fase expulsiva do parto, o que é uma constante, como
te o parto. Sua forma e interpretação serão descritas mais pelo estímulo de terminações nervosas cutâneas pela tem-
adiante, a respeito do diagnóstico da causa da morte. peratura ambiente 28 • Para a primeira expansão pulmonar,
O que impo rta assinalar, com relação ao diagnóstico de ele tem que vencer a resistência promovida pelos alvéolos
vida durante o parto, é que, quando comprovado que o feto ocupados por conteúdo líquido. Não se pode esquecer de
estava vivo durante o parto, nada assegura que tenha nascido que, durante a maior parte da gravidez, normalmente, o feto
vivo. É um bom indicador, mas seu valor tem que ser restrito realiza alguns movimentos respiratórios que levam o líquido
ao que pode, realmente, informar. amniótico para as vias respiratórias e os espaços alveolares.
Isso foi demonstrado por Potter em feto de 400 g retirado
Provas de Vida Extrauterina por aborto terapêutico 29 . Durante o parto, a atividade res-
piratória intrauterina aumenta, mas continua representada
É aqui que se encontra a maior contribuição da perícia por movimentos respiratórios superficiais. A amplitude des-
nos casos de infanticídio. São muito raros os casos em que sa movimentação aumenta de modo significativo em situa-
a ação violenta da mãe sobre o nascituro é exercida durante ções de sofrimento fetal. Mas, seja como for, o líquido que
o parto. Na esmagadora m aioria dos casos, a agressão é con- penetra nos pulmões é reabsorvido com rapidez 29• Assim,
CAPITULO 30 Infanticídio • 679

antes da primeira respiração extra uterina, o pulmão contém Como, simultanea mente com a respiração, o recém -nas-
líquido nos espaços d estinados a conter ar. Portanto, o mo- cido faz movimentos de deglutição, o ar vai também para
mento da primeira inspiração marca definitivamente a tran- o estômago e para o ouvido m édio, o que dá oportunidade
sição da vida fetal para a vida autónoma. A expansão pul- para que sejam feitas docimasias extrapulmonares.
mo nar faz com que a resistência à circulação nos capilares
e demais vasos pulmo nares diminua bastante, uma vez que Docimasias Pulmonares
eles perdem a tortuosidade do pulmão fetal, são esticados, e
Alguns d os aspectos morfológicos têm sido realçados por
suas paredes, dilatadas.
alguns autores em Medicina Legal, de m odo que é comum a
A respiração que a perícia tem que demonstrar que ocor-
epo nímia. Procuraremos dar um roteiro para o exame pul-
reu é a espontânea e ativa. Como sabemos, nos partos assis-
monar com o fim de comprovar, ou não, ter havido respi-
tidos, pode ser feita respiração artificial nos casos em que
ra ção ativa extrauterina, salientando apenas as docimasias
o recém-nascido não tenha competência respiratória. Geral-
mais conhecidas e bem fundamentadas.
mente, o ar é forçado sob pressão positiva pelas vias aéreas
A distensão d os pulmões com a respiração provoca um
par a distender os pulmões. Se estes forem muito imaturos,
abaixamento das cúpulas diafragmáticas. No fim d o século
a resistência oferecida pode ser muito gr ande e o ar injeta-
XVIII, Ploucquet chamava a atenção para a tendência d o
do artificialmente, capaz de romper os bronquíolos. Nessas
diafragma do feto que respirou a ser mais horizontal, em-
condições, o ar disseca os tecidos de sustentação do pulmão,
purrado pela distensão pulmonar, e preconizava a avaliação
causando um enfisema inter sticial que tende a se estender ao
da altura da por ção central de suas cúpulas pela relação com
mediastino e tecidos vizinhos29 (Fig. 30.10).
o gradil costal. Mais tarde, Casper determino u que a aeração
A respiração natural, que expande adequadamente os
<lutos alveolares e os alvéolos, faz com que o parênquima do pulmão as rebaixa do quarto para o sexto espaço intercos-
tal. Por isso, alguns chamam essa constatação de docimasia
pulmonar distendido passe a ter aspecto visual, consistência,
diafragmática de Ploucquet, ou de Casper9•
cor e densidade distintos. Essas modificações têm sido explo-
radas no sentido de serem realizados testes, provas laborato- A inspeção d os pulmões com eça já na abertura da cavi-
riais e exames capazes de demonstrá-las pericialmente. São dade torácica. Após a remoção do plastrão condroesternal,
as cham adas docimasias. O termo vem do grego dokimasía, nota-se que os pulmões que não respiraram ficam retraí-
que significa prova, experiência". dos e ocupam a goteira costovertebral. Os que respiraram,
ao contrário, estão expandidos e recobrem parcialmente o
saco pericárdico. As margens livres são aguçadas, e a cor é
pardo-avermelhada nos pulmões fetais. Os que respiraram
apresentam margens mais arredo ndadas, m enos agudas, e
têm cor róseo-acinzentada clar a (Figs. 30.11 e 30.12). A pal-
pação desses evidencia consistência mole, parecendo algo-
dão, e som e sensação tátil de crepitação, que faltam naque-
les que não respiraram . A superfície pulmonar difere entre
um e outro. O que respirou tem um aspecto poligonal em
m osaico, determinado pela lobulação pulmonar, enquanto
o fetal mostra uma superfície homogênea, semelhante à do
fíga do. Com o auxílio de uma lupa, é possível observar os de-
talhes dos sacos alveolares distendidos, o que não sucede no
pulmão fetal. Esse conjunto de car acterísticas é cham ado de
docimasia óptica de Bouchut por alguns autores modernos6•9 ,
mas Tho inot27 refere que a contribuição de Bouchut, anun-
ciada em 1862, fo i o uso da lupa para melhorar a visualização
da lobulação pulmonar e dos espaços alveolares distendidos,
que ele descrevia com o "vesículas arredo ndadas muito níti-
das, cada uma com sua luz, serreadas, muito próximas entre
si e de tamanhos desiguais. Sob pequeno aumento, parecem
ter 1 o u 2 milímetros".
Os pulmões que respirara m fi cam mais pesados que os
fetais em função do apor te bem maior de sangue causado
pela mudança do tipo de circulação fetal para a do recém -
Figura 30.10. Pulmão de feto imaturo que foi insuflado na tentativa nascid o. Ploucquet, segundo Thoinot 27 , chegou a estabelecer
de estabelecer a oxigenação do sangue. Notam-se bolhas de enfisema que o peso dos pulmões, comparado com o peso to tal do
subpleurais e aspecto colapsado do pulmão com bordas agudas e cor corpo, no caso do recém -nascido que respirou, seria o d obro
pardo-avermelhada. Guia 144 da 4ª DP, de 11 /10/68. daquele do feto natimorto. Basead o nesse fato, Polson, se-
680 • CAPITULO 30 Infanticídio

Figura 30.12. Bloco dos órgãos do tórax e do pescoço de feto que


nasceu com vida. Os pulmões estão expandidos, são mais claros e se
sobrepõem parcialmente ao esôfago. Suas margens são mais arredonda-
das e é possível notar seu aspecto lobulado. Foto da autopsia 3.756 do
Instituto Fernandes Figueira, cedida gentilmente pela Dr. Heloísa Novaes.
Figura 30.11. Bloco dos órgãos do tórax e do pescoço de feto nati-
morto, vendo-se que os pulmões apresentam-se colapsados, com
superfície lisa e homogênea, sem que se possa perceber a sua lobula- 1ª etapa - Após a remoção do bloco que contém as vís-
ção. Foto da autopsia n2 3709 do Instituto Fernandes Figueira, cedida ceras torácicas e os órgãos do pescoço e da boca, o
gentilmente pela Dra. Heloísa Novaes. conjunto é colocado em um frasco de boca larga, con-
tendo água. Anota-se o seu comportamento, se flu -
tua, afunda, ou fica a meio caminho entre a superfície
gundo Knight 10, propunha que se estabelecesse uma relação livre e o fundo (Fig. 30.13).
numérica entre o peso dos pulmões e o do corpo do feto, ou 2ª etapa - No caso de ir ao fundo, ou de ficar a meio ca-
recém -nascido. No que respirou, o quociente da divisão seria minho, com uma tesoura e pinça, os pulmões devem
maio r que no natimorto. No entanto, apesar de os pulmões ser separados pela secção do hilo ainda dentro d'água.
terem seu peso aumentado, a sua densidade diminui pela Caso os pulmões não venham a flutuar, passa-se à
penetração e expansão d os espaços aéreos. Essa redução da etapa seguinte.
densidade é a base da chamada docimasia pulmonar hidros- 3ª etapa - Os pulmões que não flutuaram devem ser sec-
tática de Galeno. cio nados em pequenos pedaços dentro d'água, obser-
Essa diferença de densidade já era fato conhecido dos vando-se se algum dos fragmentos vem à superfície.
antigos anatomistas como Galeno (século II d.C.) 3• Segundo No caso de haver flutuação de algum deles, executa-se
Myers3, o primeiro a propor seu uso para o diagnóstico de a etapa final.
vida extrauterina foi Sonnenkalb, em 1561, na Saxônia. De 4ª etapa - Os fragmentos que vieram a flutuar na etapa
acordo com Thoinot, porém, o pioneiro foi Rayger, em 1670, precedente devem ser espremidos contra as paredes
em Presbourg. Mas ambos referem que o primeiro a utilizá-la do frasco a fim de se observar se há desprendimento
para fim médico-legal foi Schreyer, em 168 1, em um caso de de bolhas e se, logo em seguida, eles vão ao fundo ou
infanticídio, na Silésia 3•27 . A execução da prova não requer continuam na superfície.
aparelhagem especial, pode ser feita em qualquer necrotério. A franca flutuação desde a primeira fase indica ter havi-
Consta de quatro etapas que devem ser executadas cuidado- do respiração ativa. Pelo contrário, se jamais flutua, mesmo
samente, de modo a se poder tirar conclusões válidas: que em pedaços, não houve respiração. Nos casos em que
CAPITULO 30 Infanticídio • 681

Figura 30.14. A. Pulmão de recém-nascido que viveu pouco tempo.


Os cortes revelam dutos alveolares revestidos parcialmente por depósito
Figura 30 .13. Docimasia pulmonar hidrostática de Galeno. Os pulmões, de material proteico eosinófilo (membrana hialina). A parede dos dutos
de cor rósea-clara, flutuam na água contida no frasco hamburguês. Guia
é larga em função da imaturidade. Coloração por HE, aumento médio.
03 da 2ª DP, de 23/01/74. Mesmo caso das Rguras 30.30 e 30.33.
Material da autopsia n2 3.854 do Instituto Fernandes Figueira, cedido
gentilmente pela Dra. Heloísa Novaes. B. Maior aumento do corte mos-
trado na figura A para destacar a membrana hialina, que aparece como
um dos lobos ou alguns fragmentos venham a flutuar e ou- uma faixa eosinófila aderida à parede do duto.
tros não, a interpretação depende das fases seguintes e re-
quer análise mais crítica, levando em consideração as causas
de erro mais comuns.

Causas de Falso-negativos (Houve Respiração, mas o Teste Indica


que Não)
Pode ter havido respiração, e, durante as horas seguintes,
uma reabsorção do ar contido nos alvéolos, conforme ocorre
na membrana hialina (síndrome da angústia respiratória do
recém-nascido, comum nos prematuros), faz com que o pul-
mão volte a ter o aspecto colapsado presente no feto (Figs.
30. 14A e B).
Outra possibilidade é a ocorrência de pneumonia de evo-
lução rápida logo após o nascimento, geralmente a partir
de uma infecção adquirida dentro do útero. Nesses casos, o
afluxo de células inflamatórias e líquido de edema para a luz
dos alvéolos substitui o ar e torna o pulmão mais denso (Fig. Figura 30.15. Corte histológico de pulmão de recém-nascido que so-
30.15). breviveu apenas 3 horas. Os alvéolos estão ocupados por exsudato
É oportuno, agora, discutir a possibilidade de respiração formado por numerosas células inflamatórias e material proteico. Caso
parcial. Seria uma forma de respiração muito fraca realizada de pneumonia intrauterina, n2 6.242 do Serviço de Patologia do IMLAP
pelo recém-nato, capaz de expandir apenas poucos lóbulos do Rio de Janeiro.
682 • CAPITULO 30 Infanticídio

pulmonares, ficando a maioria com o primitivo aspecto fetal. peito do problema. Alguns achavam que nunca se instalava
Em primeiro lugar, devemos nos lembrar de que a primei- enfisema putrefativo em pulmões fetais, baseados em expe-
ra incursão respiratória do recém -nascido normal tem que riências feitas com cadáveres de natimortos o u com os pul-
vencer uma resistência bem maior que as subsequentes 28, de mões desses isoladamente. Outros colocavam-se no outro
modo que, havendo força inspiratória suficiente, não have- extremo e admitiam que tal fato fosse comum. E havia aque-
ria razão para que apenas algumas unidades respiratórias se les que achavam que isso poderia ocorrer excepcionalmente.
expandissem. Em segundo lugar, já ficou demonstrado que Para quem quiser se informar melhor a respeito, indicamos
o feto respira dentro do útero e que tal atividade se torna a obra de Thoinot.
bem mais intensa durante o parto, principalmente se vigente Na verdade, a putrefação dos corpos de natimortos não
o estado de anoxia 29 . Assim, o pulmão do feto que vem ao segue os mesmos passos da que se instala em recém-nascidos
exterior já tem os alvéolos um pouco abertos pelo líquido que respiraram, pela simples razão de que a invasão do corpo
amniótico, sem que haja razão para que uma área seja aerada pelas bactérias saprófitas segue uma via diferente. Assim, os
preferencialmente a outras durante o início da respiração ex- pulmões dos fetos natimortos não apresentam contaminação
trauterina. Por isso, não aceitamos a existência da chamada difusa pelas bactérias do meio ambiente. Sua putrefação cau-
respiração parcial. O que julgamos que ocorre é que, em fe- sa um amolecimento e desintegração do parênquima pulmo-
tos imaturos, o pouco desenvolvimento da árvore brônquica, nar mais por autólise do que por putrefação. Mas é possível
incluindo os bronquíolos terminais e os <lutos alveolares, faz que, no curso da decomposição do corpo como um todo, haja
com que a resistência seja diferente de uma para outra área, invasão parcial dos pulmões pela flora putrefativa e se for-
conforme o grau de desenvolvimento atingido pelas vias res- mem algumas bolhas gasosas no seio dos tecidos pulmonares.
piratórias dentro delas. Assim, a chamada respiração parcial Como a distribuição e o número das bolhas são muito maio-
não poderia ocorrer em fetos a termo ou quase a termo. O res no pulmão dos que respiraram, a diferença pode ser feita,
fato de alguns fragmentos pulmonares flutuarem e outros inclusive na fase 4 da prova de Galeno, em que a expressão
não, tem explicação diversa, conforme aludiremos nos co- do tecido expulsa a maior parte das bolhas presentes nos pul-
mentários sobre os falso- positivos. mões fetais, mas não nos de recém-nascidos que respiraram.
Restando dúvida, o melhor é fazer o exame histológico.
Causas de Falso-positivos (Não Houve Respiração, mas o Teste Existem for mas de tornar mais sensível a docimasia de
Indica que Sim) Galeno. Duas devem -se a Icard. Uma delas é colocar o pul-
mão que foi ao fundo do frasco com água em vasilhame com
É o erro de consequências mais graves, pois pode levar
água quente. Se ho uver um pouco de ar, embora insuficiente
uma inocente para a cadeia. Aqui, podem surgir duas situa- para fazer o pulmão flutuar, seu aquecimento o fará expan-
ções, e apenas uma delas interessa aos casos de infanticídio. dir-se de modo a que venha à superfície. A o utra forma é
São a putrefação e a execução de manobras de ressuscitação. pelo uso do vácuo. Coloca-se o pulmão, ou os fragmentos,
Só a primeira vem ao caso. A insuflação de ar para assistir dentro de frasco com água e um pouco de ar, provido de uma
um recém-nascido deprimido e incapaz de, por si, iniciar a tampa de rolha ou de plástico na qual se adapta um tubo
respiração foge bastante ao que ocorre no infanticídio. Mas que comunique o ar de dentro com uma fonte de aspiração.
pode ser que se faça falsa acusação em casos nos quais ho uve Feita a aspiração, há redução acentuada da pressão dentro do
assistência perinatal. recipiente. Sob pressão meno r, o ar porventura existente nos
O ar injetado nos recém-nascidos em parada respiratória fragmentos pulmo nares expandir-se-á e os fará flutuar.
tem que entrar com pressão suficiente para fazer o trabalho Outra maneira de caracterizar a expansão e aeração pul-
de substituição do líquido intra-alveolar e vencer a resistên- monares é pela radiografia. É chamada docimasia radiológica
cia d os espaços aéreos à distensão. Na maio ria das vezes, a de Bordas, proposta por esse autor em 1896, trabalhando com
operação é coroada de êxito. Mas há casos em que a pres- pulmões de fetos de carneiros separados do corpo 27• Quando
são é exagerada, ou a resistência muito alta, e o ar injetado o pulmão é expandido pelas primeiras incursões respiratórias,
rompe as paredes dos espaços aéreos e causa um enfisema fica m enos denso do que as partes moles do mediastino. Isso
intersticial (Fig. 30.10). A resistência está aumentada nos se reflete no contraste acentuado entre os campos pleuropu1-
fetos prematuros e é diretamente proporcional ao seu grau monares, bastante permeáveis aos raios X, e os órgãos do me-
de imaturidade. Esse enfisema com eça no tecido conjuntivo diastino, que os absorvem mais intensamente, de modo a se
peribrônquico e perivascular, podendo-se expandir para o poder perceber a silhueta cardíaca tal com o em radiografias
mediastino e para localização subpleural29• Como é óbvio, de pessoas normais. Em se tratando de feto natimorto, não há
o pulmão assim infiltrado pelo ar tem densidade menor e pode contraste porque os pulmões têm densidade semelhante à das
flutuar na água durante a prova de Galeno. O melhor modo partes moles, não se no tando a imagem do coração.
de demonstrar o erro é pelo exame histológico dos pulmões. Hoje, há quem va lorize o exame visual e tátil dos pul-
Mas a m aio r dificuldade na avaliação dos falso-positivos mões do recém -nascido acima de qualquer teste conhecido.
é a formação dos gases da putrefação. A discussão a esse res- Knight'º chega ao extremo de afirmar que a prova de Galeno
peito vem de longe. Resumindo, os autores dos séculos XVIII não tem qualquer valor para esclarecer se houve respiração
e XIX distribuíam-se em três correntes de pensamento ares- extrauterina. Sua aversão aos testes é tão grande a ponto
CAPITULO 30 Infanticídio • 683

de comparar os tempos dessa prova a sortilégios de magia co nseguido nos berçários dotados de mo dernos equipamen-
n egra. Achamos sua postura muito radical. Mas tem os que tos e pessoal bem treinado. Com 28 semanas, o feto já pesa
reconhecer que o exam e macroscó pico feito por um patolo- cerca de 1.000 g e tem m aio res chances d e sobrevivência. À
gista experiente é suficiente, na maio ria das vezes, para fir- medida que se d á o amadurecimento pulmonar, o aspecto
mar o diagnóstico sem o auxílio de testes. A boa avaliação d a histológico vai-se aproximando daquele que é característi-
form a, d a topografia na caixa torácica, da cor e d a palpação co do feto a termo, com <lutos alveolares bem desenvolvidos
pulmonares, geralmente, resolve o problema. Os casos que e dilatados em suas extremidad es. Tanto nas paredes duc-
são duvidosos ao exame macroscópico costumam também tais quanto nas dilatações saculares notam -se as cavidades
apresentar dificuldades na interpretação dos testes. Nesse alveolares29 • A resistência oferecida pelo pulmão à primeira
contexto, devemos lemb rar que o exame dos pulmões d eve respiração vai diminuindo ao longo dessas fases. Pulmões de
incluir a abertura d a árvore brônquica, onde se pode analisar fetos natimortos a termo apresentam um aspecto monótono
o seu conteúdo. A presença de corpos estranhos no interior e regular, em que os sacos alveolares e os <lutos estão po uco
dos brônquios é mais um argumento a favo r de que tenha distendidos, tendo paredes como que pregueadas. No seu in-
havido respiração ativa, principalmente quando localizados terior, podem ser encontradas escamas epiteliais em número
nos ram os segm entares. variado. Q uando ocorre anoxia durante o parto, aumentam
Coube a Balthazard e Lebrun, em 1906, propo r o uso ro- a amplitude e a frequência dos movimentos respirató rios in-
tineiro de cortes histológicos de pulmão para o diagnóstico trauterinos, e, com a reabsorção do líquido aminiótico que
diferencial ent re o fetal e o que respiro u. Cham aram o exam e penetra, sua concentração torna-se maior, sendo comum
de docimasia histológica. Po r isso, o exame ficou conhecido se achar mecô nio d e permeio (Figs. 30.1 7 e 30.1 8). O feto
como docimasia histológica de Balthazard e Lebrun . Ao lo ngo que sofre anoxia durante o parto costuma eliminar m ecônio
das décadas, o aprimo ramento d a histologia o to rnou indis- d entro d o líquido amniótico. Os capilares das paredes duc-
pensável nos casos duvidosos 30 • tais e alveo lares evidenciam congestão intensa.
Os pulmões d esenvolvem -se a partir de brotamentos Quando o pulmão é arejad o pelas primeiras incursões
epiteliais endo dérmicos que se vão ramificando progressiva- respiratórias, o aspecto histológico muda bastante. Os <lu-
mente e se tornando tubulares à medida que se d á o cresci- tos alveolares e os alvéolos têm suas pared es distendidas, de
mento. Desse modo, o parênq uima pulmonar tem um aspec- m odo que perdem o aspecto enrugado e evidenciam um de-
to glandular no s primeiros m eses d e vida emb rionária. Mais senho de fo rmas m ais precisas e linhas mais finas. Os bron-
tard e, depo is da 20ª semana é que as ramificações começam a quíolos passam a ter luz circular ou oval, d ependendo da
ficar mais próximas entre si, com diminuição do tecido m e- incidência d o corte, e sua mucosa mostra um revestimento
senquimal de sustentação (Fig. 30.16 ). epitelial de superfície m ais regular (Fig. 30.19).
A partir d aí, os capilares passam a se acolar ao epitélio d e No caso d e se t ratar de pulmão imaturo, a distensão dos
revestimento b ronquiolar. A m aturação d os sacos alveolares espaços aéreos costuma ser irregular. Eles parecem insufla-
só atinge fase compatível com respiração extrauterina d epois d os sob pressão e estão separad os uns d os o utro s por quan ti-
da 25ª semana. Mesmo assim, é preciso um su porte terapêu- d ade variada de tecido conjuntivo, na dependência da idade
tico muito bom para que o feto possa sobreviver, o que é

Figura 30.17. Corte histológico de pulmão fetal a termo que não


Figura 30.16. Corte histológico de pulmão fetal com cerca de 20 respirou. Os dutos alveolares e os alvéolos têm parede sinuosa, distri -
semanas. Os espaços distendidos pelo ar são irregulares e correspon- buição regular e vasos congestos. Em seu interior, há material granular
dem a bronquíolos que vão originar os dutos alveolares. Caso 5.912 eosinófilo. Ao centro há um brônquio que dá origem a dois dutos alveo-
do Serviço de Patologia do IMLAP do Rio de Janeiro. Coloração HE, lares preenchido por material semelhante. Caso 5.580 do Serviço de
objetiva 1Ox. Patologia do IMLAP do Rio de Janeiro. Coloração HE. Objetiva 1Ox.
684 • CAPITULO 30 Infanticídio

Figura 30.18. Visão de maior aumento (objetiva 40 x) do pulmão da Figura 30.20. Corte histológico de pulmão de feto que não respirou
figura anterior. Notam-se melhor a tortuosidade septal, a congestão e o formado por dutos e alvéolos colapsados, de distribuição monótona
conteúdo, que é formado por material amorfo granular e células epite- deslocados e comprimidos por bolhas de putrefação volumosas (uma à
liais escamosas da epiderme que estão presentes no líquido amniótico esquerda e duas à direita). Não há relação dessas bolhas com os es-
(uma visível no centro do campo). paços que seriam arejados. Caso 6.097 do Serviço de Patologia do
IMLAP do Rio de Janeiro. Coloração HE. Objetiva 2,5x.

Figura 30.19. Corte histológico de pulmão de feto maduro que res-


pirou. Os dutos alveolares e os alvéolos estão distendidos e delimitados Figura 30.21 . Corte histológico de pulmão de feto que respirou, em
por paredes delgadas. À esquerda há um brônquio e uma artéria em putrefação. Os espaços aéreos são de tamanho variado, por vezes dis-
corte transversal. Caso 3.736 do Serviço de Patologia do IMLAP do Rio tendidos, como se tivessem sido insuflados. Caso n2 5.131 do Serviço
de Janeiro. Coloração HE. Objetiva 2,5x. de Patologia do IMLAP do Rio de Janeiro. Coloração HE. Objetiva 2,5x.

gestacional. Os mais imaturos, com menos de 16 semanas, modificações nos dois padrões anteriormente descritos.
assemelham-se a um corte de glândula mamária em repouso, Tratando-se de pulmão fetal, que não respiro u, a mono tonia
com nítida lobulação, e não costumam ser insuflados, pois do parênquima é interrompida de modo esparso por bolhas
não são reanimados por serem produto de aborto. Po r vezes, volumosas, bem demarcadas, que rechaçam os tecidos vizi-
tentam respirar espontaneamente, resultando distensão de nhos e não guardam relação com os espaços aéreos, também
alguns <lutos ao lado de o utros não distendidos, em flagran- comprimidos (Fig. 30.20). Mas, sendo de recém-nascido que
te contraste. Com 20 semanas, já é possível encontrar áreas respirou, as bolhas de gás são muito mais numerosas, pró-
insufladas ao lado de outras não expandidas, principalmente ximas entre si, e se localizam, quase totalmente, nos espaços
se tiver sido feita alguma manobra de respiração artificial sob aéreos, distendendo -os (Fig. 30.21 ).
pressão. Potter ilustro u tal fato com cortes do pulmão de um Po r fim, a histologia permite resolver os problemas de
recém -nato de 20 semanas e 400 g de peso que sobreviveu falso-negativos gerados po r pneumonia. O exame mostra
por 1 ho ra 29 • os espaços alveolares ocupados pelo edema e pelo exsudato
A ocorrência de putrefação, que não é rara nos casos de inflamató rio, em que são mais numerosos os polimorfonu-
infanticídio, pois a regra é a ocultação do cadáver, introduz deares neutrófilos (Figs. 30.15 e 30.22).
CAPITULO 30 Infanticídio • 685

proposição da chamada docimasia auricular por Wendt, em


1878, apoiado nos trabalhos de Wreden publicados 10 anos
antes 27 • Por isso, essa prova passou a ser conhecida como
docimasia otológica de Wreden- Wendt. É feita colocando-se
a cabeça do feto sob a água e, com o auxílio de instrumen-
tal adequado, que pode ser um otoscópio, faz-se punção do
tímpano. Se sair uma bolha de ar, a prova é positiva. Segun-
do Thoinot27 , ela foi aceita, inicialmente, como uma grande
contribuição à Medicina Legal. Porém, alguns anos mais tar-
de, trabalhos feitos no laboratório de Hofmann 31 negara m
seu valor, alegando que a penetração do ar poderia ser feita
passiva mente em cadáveres de natimortos. Embora sem ter-
mos experiência pessoal com o teste, achamos muito pouco
provável que tal penetração possa ocorrer post mortem, de
Figura 30.22. Corte histológico de pulmão de feto que respirou, mas modo semelhante ao que foi discutido a respeito da penetra-
sobreviveu por apenas 3 horas. Os alvéolos são ocupados por restos de ção de corpos estranhos nas vias respiratórias dos afogados.
células escamosas ao lado de neutrófilos e material granular amorfo.
Assim, admitimos que essa docimasia possui valor subsidiá-
Pneumonia intrauterina. Mesmo caso da Figura 30.15. Coloração HE.
Objetiva 40x. rio, mas não substitui as pulmonares nem a gastrointestinal.

Provas da Recentidade do Parto


Docimasias Extrapulmonares
Envolve o exame da mãe e o do cadáver do feto, ou re-
Já referimos que, ao m esmo tempo em que respira, o cém-nascido. O exame materno tem por finalidade constatar
recém-nascido executa movimentos de deglutição, o que faz as alterações próprias do puerpério imediato.
com que o estômago passe a conter, além da secreção, saliva
e quantidade variada de ar. A demo nstração de ar no tubo Pelo Exame da Mãe
digestivo, principalmente no estômago, permite afirmar que
ho uve respiração. É a chamada docimasia gastrointestinal de Assim que se dá a eliminação da placenta, há um sangra-
Breslau. Segundo Thoinot2 7, foi idealizada por um médico m ento a partir do seu local de inserção, que gradualmente
alemão chamado Breslau, em 1865. Sua execução é simples. cessa pela ação de pinça da musculatura uterina sobre os va-
Basta fazer uma ligadura do esôfago e do reto, retirar o tubo sos que estabeleciam a continuidade entre o sangue intervi-
digestivo como um bloco e colocá-lo dentro de um vasilha- lositário e a circulação materna. Em 1 hora, o útero já deve
me com água. Se flutuar, é porque contém ar. Nos casos em estar firmemente contraído e a hemorragia, controlada8• Se-
que a flutuação é duvidosa, podemos fazer cortes no estôma- gue-se a eliminação dos lóquios, que são constituídos nos 3
go ou segmentos do intestino delgado sob a água, a fim de a 4 dias pós-parto, por pequena quantidade de sangue, restos
verificar se saem bolhas de gás de seu interior. celulares e exsudação proteica. Nos dias seguintes, tornam-se
A docimasia gastrointestinal é um complemento da pro- serossanguinolentos, de cor acastanhada, e vão fi cando mais
va de Galeno. Na maioria das vezes, os resultados são concor- amarelados. O exame da puérpera, nessa fase, denuncia o
dantes. Mas sua interpretação pode levar a uma discrepância parto não só pela sua presença como também pelos sinais
com o resultado da pulmonar. Há ocasiões, mais comuns em clínicos. As mamas, túrgidas, deixam escapar o colostro, es-
prematuros, em que a docimasia hidrostática pulmonar in- pontaneamente ou pela expressão. O fundo do útero pode
dica não ter havido respiração, mas a gastrointestinal m ostra ser palpado e denuncia o dia do parto em função da sua des-
o estômago e parte do intestino delgado distendidos por gás. cida em direção à sínfise pubiana. Ao fim do parto, o corpo
Em tal situação, o que ocorre é o desenvolvimento da ate- uterino contrai-se, desce rapidamente, ficando o seu fundo
lectasia do recém -nascido que respirou (angústia respirató- abaixo do umbigo. Volta a subir pelo acúmulo de sangue em
ria do recém-nascido ou membrana hialina) decorrente da sua cavidade e torna a ficar acima da cicatriz umbilical. No
reabsorção do ar das primeiras incursões respiratórias. Ou- segundo dia, já está abaixo dela novamente e vai descendo
tra possibilidade é que a prova de Galeno demonstre ter ha- progressivamente, em média, 0,7 cm por dia. No décim o dia,
vido respiração e não haja ar no tubo digestivo. Mas, nesses já não é mais palpável no abdômen, pois que já se situa na
casos, prevalece o resultado da pulmonar, pois a deglutição cavidade pélvica 5 • O exame ginecológico demonstra a regres-
de ar não é obrigató ria. O recém-nascido pode ter m orrido são das modificações do colo uterino impostas pela parturi-
pouco depois dos primeiros movimentos respiratórios, sem ção. Com 12 horas, o colo, que se havia apagado no período
tempo para deglutir quantidade de ar detectável. de dilatação, já está novam ente distinto, embora amolecido,
Como, com a deglutição, a trompa de Eustáquio, que e mostra superfície mucosa edemaciada e eventuais erosões
comunica a faringe com o ouvido m édio, abre-se, o ar tem ou lacerações sangrantes ou ementas. O canal cervical dá
acesso à cavidade auditiva. Tal fa to serviu de base para a passagem facilmente a dois dedos. Com 3 dias, sua reconsti-
686 • CAPITULO 30 Infanticídio

Figura 30.23. Esfregaço vaginal atrófico de mulher em fase de puer-


pério. É importante notar a falta de células superficiais e a presença de
células parabasais, infiltrado inflamatório e sangue. Foto gentilmente
cedida pela Dra. Virgínia Borges Nassralla.

tuição anatômica está completa, e o seu ca nal ainda dá passa-


gem fácil a um dedo. A mucosa endocervical está exposta de
modo a substituir parcialmente a ectocervical. Com 5 dias,
só o orifício externo permite a introdução da polpa digital5•
As paredes vaginais, logo após o parto, estão muito con-
gestas e podem apresentar lacerações. A vulva apresenta ede-
ma, de modo que os pequenos lábios podem estar um tanto
apagados. O que restava do hímen é totalmente rompido e
esfacelado no mo mento da expulsão fetal. Essas lacerações
apresentam-se ementas e, com o tempo, vão transformar-se
nas carúnculas mirtiformes. Figura 30.24. Feto sanguinolento. As pregas cutâneas são marcadas
O exam e d e esfregaço vaginal (colpocitologia) revela pre- pela deposição de substância pastosa branca pegajosa (induto sebáceo
domínio de sangue e leucócitos nos primeiros dias. A partir ou vernix caseosa). As alças do intestino delgado contêm bastante ar.
do décimo dia, o esfregaço é francamente atrófico por causa Ocordão umbilical tem aspecto gelatinoso, brilhante, e ainda está preso
da perda da influência dos hormônios estrogênios e proges- à placenta, vista por baixo do joelho direito. Guia 03 da 2~ DP, de
tagênios que eram produzidos pela placenta5 (Fig. 30.23). 23/01 /74. Mesmo caso das Figuras 30.30 a 30.33.
Os chamados partos de surpresa, a que já aludimos, po-
d em deixar sinais na mulher. Com o são mais comuns em
mulheres multíparas, com conformação muito favorável do OFeto Sanguinolento
canal do parto, a insinuação e a descida muito rápidas da A avaliação tem que ser feita em consonância com a in-
apresentação podem chegar a ro mper as paredes vaginais, terpretação do texto legal, uma vez que a lei não se exprime
a vulva e o períneo que não tiveram tempo de se distender de modo preciso. O que os peritos devem demonstrar é que a
gradualmente. mãe teve, ou não, os cuidados habituais com o recém-nascido.
Assim, não se trata, na verdade, de certificar que o recém-nas-
Pelo Exame do Cadáver Recém-nascido
cido viveu alguns minutos ou algumas horas. Se o concepto
A necessidade, aqui, restringe-se a minutos ou, excepcio- ainda está unido à placenta, indiscutivelmente, ainda não re-
nalmente, a horas depois d o parto. Desse mo do, não há que cebeu a atenção de quem deseja seu bem-estar. Por isso, nessas
se demo nstrar a sobrevivência nem por 1 dia 1• Contudo, tal condições, se apresentar lesões que caracterizem uma agres-
d em onstração pode servir para informar que o crime foi co- são, pode o perito afirmar que foi durante ou logo após o par-
m etido fora do prazo legal (durante o parto o u logo após). to. Se o cordão umbilical foi rompido por ação contundente, e
Conforme já comentamos a respeito dos elementos do cri- não seccionado e ligado, a interpretação é idêntica. No mesmo
m e, o logo após, para nossa lei, tem duração muito restrita sentido, se está sujo de sangue, de induto sebáceo e de mecô-
e não pode ser admitido conforme a duração d o puerpério nio (Fig. 30.24). Tudo isso demonstra a perturbação de quem
imediato. Assim, veremos alguns elementos que caracterizam deveria cuidar da criança e não teve tal atitude protetora.
positivamente a recenticidade do parto exigida pela lei e ou- Convém não confundir o feto sanguinolen to com o feto
tros que afastam a possibilidade de se tratar de infanticídio. macerado (Fig. 30 .25). Esse pode estar, de modo semelhante,
CAPITULO 30 Infanticídio • 687

sistentes e aderentes à parede interna dos vasos, formando


uma trombose. A presença de vasos obliterados por coágulos
firmes indica sobrevida de 1 dia, pelo menos.
É importante lembrar que o cordão vai sofrendo desidra-
tação assim que se dá a expulsão do feto, esteja ele vivo ou
morto, pois que é um fenómeno físico que não depende de
circulação nem reação vital. Assim, um natimorto encontra-
do 2 dias depois do parto já tem o cordão umbilical murcho,
de consistência bem mais mole, com diâmetro reduzido, sem
que isso signifique que houve sobrevida. Mas só o que sobre-
Figura 30.25. Feto macerado. A pele tem cor rósea parda e epiderme vive apresenta uma hiperemia resultante de reação inflama-
parcialmente descolada. Os membros são muito flácidos e o crânio está tória na sua inserção abdominal. A mumificação do cordão
deformado por disjunção das peças ósseas. A placenta está impregnada umbilical antecede a sua queda. O cordão vai ficando escuro
por hemoglobina. Caso não identificado do IMLAP do Rio de Janeiro.
e seco com o passar dos dias. O tempo necessário à sua queda
varia muito conforme os autores consultados. Thoinot 27 faz
menção a autores que admitem desde 3 até mais de 10 dias.
sujo. A maceração ocorre quando o feto morre e não é ex- Mais recentemente, Orlandi33 refere 6 a 10 dias, e Behrman26,
pulso da cavidade uterina, ficando o cadáver em um meio até 2 semanas. Mas dificilmente virá para exame de infanti-
líquido asséptico à temperatura de 37ºC. Nessas condições, cídio um recém-nascido com o cordão umbilical em vias de
vão-se sucedendo alterações em seu corpo. As primeiras alte- queda ou já cicatrizado.
rações ocorrem na pele. Em apenas algumas horas, a epider- Outro sinal que deve ser pesquisado é a regressão do tu-
me perde aderência com a derme e, se atritada obliquamente mor do parto. A bossa serossanguínea tende a regredir e a
com o dedo, descola-se. Formam-se algumas bolhas de con- ser reabsorvida nos primeiros dias, notando-se uma colora-
teúdo líquido pardo claro que, quando rompidas, mostram ção amarelada, principalmente após o rebatimento do couro
derme de cor pardo-rosada, muito brilhante. Os ligamentos cabeludo, na periferia da área de infiltração hemorrágica. O
articulares ficam muito frouxos, o que permite movimenta- mesmo se diga com relação aos limites do céfalo-hematoma
ção passiva ampla e fácil (aspecto de polichinelo). As peças e de o utros focos de infiltração equimótica. Tal coloração é
ósseas do crânio ficam soltas entre si, podendo estar uma a causada pela digestão da hemoglobina das hemácias extra-
cavaleiro sobre a outra. A face fica deformada pela flacidez vasadas, que são fagocitadas e destruídas pelos macrófagos
das partes moles32• do tecido para onde se infiltraram. Com certeza, é necessário
Contudo, se o recém-nascido apresenta-se limpo, com o mais de um dia para começar a haver tal mudança de cor.
cordão umbilical seccionado e ligado, vestido ou não com Mas é preciso não confundir com a embebição hemoglobíni-
roupas adequadas, e evidencia sinais de agressão, não se pode ca causada pela putrefação, o que é fácil, porque a putrefação
admitir que a perturbação do estado puerperal tenha permi- torna a hemoglobina muito mais escura e de tom esverdeado.
tido à mãe cuidar dele e, depois, num acesso de fúria, matá-lo. A presença de alimentos na cavidade gástrica, como leite
Nesse caso, não se pode tratar de infanticídio. parcialmente digerido, indica que foi amamentado. Geral-
Há alguns sinais que, quando presentes, indicam ter ha- mente, os alimentos estão misturados com a secreção gás-
vido uma sobrevida longa demais para a exigência legal. Um trica e quantidade variada de gases. O fato de não mais se
deles é a descamação cutânea. A pele do feto fica em contato achar mecônio no intestino grosso é sinal seguro de sobre-
com o líquido amniótico durante toda a gestação. Assim que vida prolongada. É preciso, em geral, não se confundir sinais
é expelido, o excesso de líquido evapora-se e ela se desidrata. de sobrevivência com sinais de maturidade. Assim, alguns
Com isso, surgem pequenas pregas na epiderme, que começa autores querem dar como prova de sobrevivência o grau de
a se soltar já no primeiro o u segundo dia nos recém-nascidos mielinização do nervo óptico, o que representa apenas sinal
a termo. É um sinal precoce de sobrevivência. Nos natimor- de maturidade. No mesmo sentido, a presença de lanugo ou
tos não ocorre porque a epiderme não se renova. Nos recém - o tamanho das unhas.
nascidos prematuros, demora um pouco mais a ocorrer'.
Outro sinal é o aspecto do cordão umbilical. Logo após Provas da Viabilidade
o nascimento, tem coloração branco-acinzentada clara, con-
sistência túrgida, superfície brilhante, podendo ser, ou não, Ao comentarmos o problema da viabilidade no que se
espiralado. Ao corte, mostra superfície brilhante, gelatinosa, refere ao sujeito passivo do crime de infanticídio, mostramos
à custa de grande quantidade de matriz conjuntiva no seu a dificuldade dos juristas em considerar certos recém -nasci-
tecido embrionário - a geleia de Wharton. As artérias e a veia dos cobertos, ou não, pela tutela legal. Demos o exemplo dos
umbilical contêm sangue ainda líquido, mas que se vai coa- anencéfalos, dos portadores de anomalias congênitas letais,
gular com o passar dos minutos, uma vez que já não circula. mas passíveis de tratamento por m étodos extraordinários, e
A coagulação é mais rápida nas artérias que na veia 27• Os coá- dos prematuros inviáveis. No que diz respeito à perícia, o que
gulos, com o passar das horas, vão-se tornando mais con- compete ao examinador é diagnosticar as anomalias, avaliar
688 • CAPITULO 30 Infanticídio

o grau de imaturidade do concepto e informar ao juiz suas peso ao nascerem. Segundo a décima revisão da Classificação
possibilidades de sobrevivência. Não incorreremos no erro Internacional de Doenças (CID-10), os recém-nascidos com
de querer estabelecer uma rotina diagnóstica para as diver- menos de 2.500 g são ditos de baixo peso; os abaixo de 1.500 g,
sas anomalias congênitas graves, ou letais. Encontrando-as, o de peso muito baixo; os com menos de 1.000 g, de peso ex-
perito deve fazer o relato e dar o prognóstico daquele indiví- tremamente baixo. Não tendo havido fatores perturbadores
duo quanto à vida, ao nascer. da nutrição fetal, esses pesos refletem aproximadamente o
Quanto à imaturidade, devemos tecer alguns comentá- tempo de evolução da gestação. Por isso, a possibilidade de
rios. Em primeiro lugar, como, em casos de infanticídio, não sobrevida diminui na mesma proporção da baixa ponderai.
se sabe o tempo de gestação, é preciso que seja esse calculado Existem curvas padronizadas em que se colocam na abs-
com base nos elementos dos exames externo e interno do cissa do gráfico a idade gestacional em semanas a contar da
cadáver. data da última menstruação (UM ) e, nas ordenadas, o peso
O desenvolvimento ontogenético do ser humano cumpre médio da amostragem da população analisada. Como a pe-
uma sequência habitual ao longo dos 9 meses de gestação. sagem é feita em grande número de indivíduos em cada ida-
A parte inicial dessas etapas já foi estudada no Capítulo 29 de gestacional, ocorrem variações para cima e para baixo da
desta obra. Na parte final do segundo trimestre e durante o média. Os gráficos utilizados costumam mostrar uma faixa
terceiro trimestre, progressivamente, vai aumentando a pos- com uma linha cheia central, que representa a média. O li-
sibilidade de sobrevivência extrauterina, principalmente em mite superior da faixa é o percentil 90 e o inferior, o percentil
função do desenvolvimento pulmonar. Ao longo desse pe- 10. Quando o peso fica acima do limite superior da faixa,
ríodo, o feto ganha peso e aumenta sua estatura. Uma regra trata-se de recém-nascido grande para a idade gestacional
útil para o diagnóstico pela estatura fetal é a de Haase. Até o (GIG). Se abaixo do limite inferior, é o recém-nascido pe-
quinto mês, inclusive, a idade em meses é a raiz quadrada da queno para a idade gestacional (PIG). Por essa razão, o peso
estatura medida em centímetros. Por exemplo, 16 cm cor- não é um critério absoluto para se afirmar que determinado
respondem a 4 meses. A partir do sexto mês, a estatura em recém-nascido era viável ou não. Por exemplo, um feto de
centímetros dividida por cinco fornece o número de meses 800 g pode ser viável, ou não. Se for um PIG, é possível que
de gestação. Assim, um feto de 40 cm deve ter 8 meses'º· já tenha desenvolvimento pulmonar compatível com a vida
Mas o parâmetro mais usado nessa avaliação é o peso. extrauterina, desde que bem assistido. Mas se for um GIG,
Conforme já referimos em outra seção, os recém-nascidos seus pulmões podem ainda não ter atingido o grau de matu-
devem ser classificados em categorias de acordo com o seu ridade necessário a essa sobrevivência (Fig. 30.26).

24 30 35 38 40 42 44 46
5,00

4,50
Grande para a idade gestacional
4,00

3,50 ,,, ,, --
C)

, li'
Adequado à idade gestacional

-
.::.:. 3,00
E
"'
o
"'
"'
a..
2,50
)
, ~
Pequeno para a idade gestacional

2,00

~
__..,.V
li'"'

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1,50 ......
,_
_i...,...o
__.. V
~
1,00
~ lii"'
i -~
.....
0,50

Semanas de gestação
Prematuros 1 Termo Pós-termo 1

FIGURA 30.26. Gráfico para determinação da idade gestacional pelo peso do concepto. Adaptado da Figura 4.1 de Southgate34 •
CAPITULO 30 Infanticídio • 689

Se ho uver restrição de suprimentos nutritivos, por exem- pelo ponto de ossificação de Béclard, ponto de partida para a
plo, no terceiro trimestre da gestação, é possível que um formação da epífise inferior do fêmur. Sua presença é quase
recém -nascido a termo possa apresentar peso muito baixo e constante nos fetos a termo, nos quais mede 5 a 6 mm no
não se tratar de um prematuro. Geralmente, apresentam pele maior diâmetro. É um sinal de maturidade que resiste à pu-
facilmente pregueável e enrugada, pois seu panículo adiposo trefação. Em casos excepcionais, pode não ser encontrado.
é quase nulo24• Por outro lado, raras vezes pode já ser encontrado nos fetos
Para uma correta avaliação do grau de maturidade e con- de 32 semanas34 • O melhor modo de visualizá-lo à necropsia é
sequentemente da viabilidade, é preciso que outros elemen- dobrar o joelho e fazer cortes horizontais na extremidade in-
tos sejam considerados paralelamente. Os neonatologistas ferior do fêmur, através da cartilagem epifisária. É importante
adotam, para o diagnóstico clínico da idade gestacional dos que os cortes sejam feitos em planos cada vez mais altos em
recém -nascidos, tabelas de pontuação baseadas em elementos direção à diáfise, até que o ponto de ossificação desapareça.
tirados da inspeção e do exame neurológico, como os méto- Isso impede que se tome como ponto de Béclard a diáfise do
dos de Capurro, de Dubowitz e o mais recente de Ballard 12•21 •34 • osso 10• O exame radiológico de todo o corpo, feito por um ra-
O método de Ballard foi modificado por um grupo de diologista especializado, é aconselhável nos casos duvidosos.
pediatras de Liverpool usando apenas os sinais externos, Os maxilares e a mandíbula também fornecem dados
desprezando os testes neurológicos, para poder ser usado por importantes. A presença de cinco septos delimitando, a cada
enfermeiras, conseguindo-se boa correlação com a data da lado, quatro alvéolos é bastante sugestiva de se tratar de feto
UM 35 • Esses sinais são observados na pele, nas mamas, nos a termo (sinal de Billard)9 • Mas a presença de quatro de um
olhos, nas orelhas e na genitália. lado e apenas três do outro também é compatível com feto
A pele dos fetos de menos de 25 semanas costuma ser maduro 27•
muito fina, transparente ou translúcida, sem pregas visíveis. Todos os elementos referidos anteriormente dão uma boa
O lanugo, formado por pelos delicados e incolores, está au- ideia do tempo de gestação, mas a viabilidade depende prin-
sente ou é escasso, pois que só é abundante a partir de 27 a cipalmente da competência pulmonar. Por isso, os recém-
28 semanas, desaparecendo parcialmente ao se aproximar o nascidos de peso muito baixo, ou extremamente baixo, nem
termo da gravidez. O local mais fiel para sua observação é o sempre são inviáveis. Atualmente, a capacidade funcional de
dorso. As peles plantar e palmar costumam ser muito lisas e seus pulmões pode ser aumentada com recursos terapêuticos
delgadas nos mais imaturos. À medida que a gestação avan- recentes, como, po r exemplo, a administração de surfactante
ça, com o aumento da movimentação das mãos e dos pés, exógeno e novas técnicas de ventilação 36• Como as vítimas de
começam a aparecer pregas no terço anterio r da região plan- infanticídio não são tratadas com tais recursos, pelo contrá-
tar, depois nas partes média e posterior, de modo que o feto a rio, são desassistidas em função de ser o parto clandestino,
termo as apresente em toda a sua extensão. A papila mamária podemos dizer que os de peso muito baixo ou extremamente
não é perceptível nos imaturos de menos de 24 semanas, mas baixo passam a ser inviáveis nessas circunstâncias.
atinge 5 a 10 mm nos a termo 34 •
Para melhor informar à justiça, o patologista forense
Nessa mesma faixa de idade gestacional, a orelha trans- deve guiar seu diagnóstico quanto à viabilidade pelo exame
forma-se desde um apêndice cutâneo que permanece dobra- histológico dos pulmões, sempre que for possível. Os aspec-
do se for comprimido, passando por um que se desdobra ati- tos morfológicos para o diagnóstico foram descritos junta-
vam ente, porém ainda m ole, até a do recém-nascido a termo
mente com o estudo da docimasia histológica.
que já tem textura cartilaginosa. A fenda palpebral não pode
ser aberta por uma tração branda em 20% dos fetos com 26
semanas e em apenas 5% daqueles com 27 semanas. Antiga- Diagnóstico da Causa da Morte
mente, esse aspecto era considerado diagnóstico de inviabi-
O ro teiro para a determinação da causa da morte segue o
lidade. Hoje, com os recursos postos à disposição dos novos
mesmo caminho do que se deve fazer nas outras mortes vio-
berçários, o prognóstico melhorou 34 •
lentas. Fazem -se, primeiramente, a inspeção externa e, depois,
A genitália feminina evolui desde uma fase em que o cli-
a interna. As particularidades nos casos de infanticídio são as
tóris é a parte mais proeminente, passando por outra com
mesmas que tornam diferentes as necropsias de recém-nasci-
predominância dos pequenos lábios, e, finalmente, dos gran-
dos com relação às de adultos. A descrição a seguir orienta-se
des lábios, que cobrem tanto o clitóris como os pequenos
pelas causas de morte mais comuns nos casos de infanticídio.
lábios quando a termo. A masculina, nessa faixa do fim do
segundo trimestre em diante, primeiramente é plana na área
Asfixias
da bolsa escrotal. Em seguida, aparecem gradualmente algu-
mas rugas, ao tempo em que os testículos começam a descer Conforme já referimos, as asfixias, principalmente as su-
do canal inguinal para o seu interior. Ao termo, os testículos focações e o estrangulamento, são as causas mais frequentes
devem estar livres e facilmente movíveis dentro de uma bolsa de m orte por infanticídio. Seu diagnóstico no recém-nascido
normalmente pregueada 34• não oferece dificuldades maiores. A ausência de escoriações
A idade gestacional do feto também pode ser avaliada e de equimoses ao redor dos orifícios naturais não exclui
pelo esqueleto. Na mesa de necropsias, é possível procurar a possibilidade de ter havido sufocação, m as impede a sua
690 • CAPITULO 30 Infanticídio

constatação. Os sinais internos, na ausência de equimoses na aos seus esforços em ajudar com as mãos a saída do feto. Mas
face profunda dos lábios, indicam tratar-se de asfixia e não a distribuição e a localização dos estigmas a desmentem.
diferem daqueles achados na anoxia intrauterina, a não ser Alguns recém-nascidos são mortos por afogamento. Nes-
pelo fato de o recém-nascido ter respirado, o que modifica o ses casos, a mãe pode afogá-los em qualquer vaso ou bacia
aspecto dos pulmões. Mas o mais comum é que existam al- contendo água. O aspecto geral dos pulmões, hiperdisten-
guns estigmas ungueais e/ou a presença de pano ou papel no didos, a presença de espuma saindo pelas narinas e boca
interior da boca, de modo a obstruir a faringe. Por vezes, as e o conteúdo gástrico líquido abundante podem indicar a
extremidades do próprio material usado para constituir um causa da morte. Quando o parto ocorre no banheiro, pode
laço de estrangulamento também são aí encontradas. ser usado o bidê, a banheira ou a latrina. No último caso, a
Há casos relatados em que o próprio cordão umbilical comprovação do líquido de afogamento pode ser feita pelo
foi usado para executar estrangulamento. A dificuldade re- encontro de matéria fecal ou de urina no interior dos brôn-
side em se fazer o diagnóstico diferencial com os acidentes quios. Nesses casos, a realização da docimasia hidrostática
obstétricos de circular de cordão. Tratando-se de natimorto, fica prejudicada pela inundação alveolar pelo líquido de
não há problemas. Mas, se for crime, pode ser que haja um afogamento, embora ainda seja possível haver flutuação por
nó fixando o cordão ao redor do pescoço, o que excluiria o causa do enfisema aquoso (ver Capítulo 25).
acidente obstétrico. Não havendo nó, as dificuldades aumen- A maior dificuldade nos casos de afogamento é quando
tam. A criminosa poderia ter estrangulado o recém-nascido o recém-nascido não tem tempo de respirar fora do útero,
com o próprio cordão e, depois da morte, afrouxado o laço. caindo diretamente dentro da coleção líquida. Isso pode
Aqui, não havendo outros sinais de violência, a comprovação ocorrer nos chamados partos de surpresa. Mas é preciso que
fica bem mais difícil, pois é improvável que tal constrição a mãe esteja numa banheira, ou que a expulsão fetal seja feita
deixe um sulco nítido. diretamente para dentro da privada, caindo o feto com a ca-
É importante reconhecer que os recém-nascidos podem beça dentro da água da latrina.
apresentar pregas naturais na pele, principalmente se forem
de peso pequeno para a idade gestacional por motivo de Ação Contundente
desnutrição no último mês da gestação. No pescoço, essas
Os casos de infanticídio por ação contundente são repre-
pregas diferem dos sulcos porque têm corte transversal em sentados, quase que totalmente, por traumatismos cranioen-
V, com as vertentes convexas na direção do seu centro, não
cefálicos. Tanto pode haver uma ação direta por meio de gol-
apresentam escoriações no fundo e costumam conter induto
pes dados com algum instrumento contundente, como indi-
sebáceo. Quando se estende a pele, esticando o pescoço, o reta. Na ação indireta, a mãe joga o recém-nascido contra o
que se nota é uma linha da mesma cor da pele. No caso de
solo ou uma parede, ou o sustenta pelas pernas e, girando o
sulco de estrangulamento, os limites com a pele adjacente
corpo, faz com que a cabeça se choq ue vio lentamente com
são menos nítidos, o corte transversal tem forma de U, o fun-
um anteparo fixo. As lesões causadas costumam ser muito
do não costuma conter induto sebáceo, retirado que foi pelo
graves. Devem ser distinguidas das produzidas nos partos de
material do laço (Figs. 30.27 e 30.28) .
surpresa e das resultantes de um trabalho de parto prolo n-
Além do mais, é comum que se encontrem outras lesões
gado e difícil por semiobstrução. Iniciaremos sua discussão
e estigmas ungueais na pele adjacente e a distância. Por vezes,
pelas lesões cranianas causadas pelo parto.
a mãe se defende, alegando que as marcas de unha se devem

Figura 30.27. Corpo de feto estrangulado com um lenço preto, acom-


panhado pela placenta ainda presa ao cordão umbilical. Está em fase Figura 30.28. Mesmo caso da figura anterior. O sulco no pescoço é
inicial de decomposição, caracterizada por embebição por hemoglobina, largo, pouco profundo e muito pálido no fundo. As pregas cutâneas
inclusive na placenta e no cordão. A face está muito congesta e tem axilares estão sujas de induto sebáceo; a face e os cabelos, de material
coloração cianótica. Guia 94 da 19ª DP, de 25/10/69. sanguinolento.
CAPITULO 30 Infanticídio • 691

Lesões Cranioencefálicas por Tocotraumatismos d e goteira 27. Os afundamentos resultam da pressão da cabeça
co ntra o promo ntó rio o u a sínfise pub iana quando a passa-
Quando a cabeça do feto se insinua no canal d o par-
gem é muito estreita par a os diâm et ros cefálicos27 . Notam-se
to, vai sendo comprimida progressivamente pela força das
fissuras do osso nas margens da depressão e em direção ao
contrações uterinas e pela resistência d as paredes pélvicas.
seu centro. Quando o feto sobrevive, podem ser corrigidas
Havendo uma d esproporção co mpatível co m o parto por
por simples tração cirúrgica do seu centro 15.
v ia baixa, ocorre um aumento da pressão suportada pelo
Confo rme já expusemos a respeito do diagnóstico de
crânio, de m odo que os ossos que con stituem a calo ta - pa-
vida intrauterina, as deformações d o crânio levam à disten -
rietais, frontal e occipital - são forçad os a aumentar sua cur-
são das pregas da dura-máter, pod endo causar rotura dos
va tura e a tentar o cavalgamento de um sobre o outro. Isso
acaba ocorrendo porque, no recém-n ascido, esses ossos não seios ven osos ou da veia de Galen o, com h emorragias sub-
durais fatais.
estão unidos e apresentam pou ca calcificação, justamente
Uma fo rma pouco comum de fratura por tocotrauma-
pa ra se adaptarem ao parto 15·23 • São muito mais flexíveis do
que 1 mês após o nascimen to. Assim, o aumento da curva- tismo ocorre nos partos co m apresentação pélvica em que
h á dificuldade na liber ação d a cabeça (cabeça derradeira).
tura faz co m que oco rram fissuras que costuma m situar-se
O tracio nam ento do corpo pela coluna cervical, quando em
ao longo d os planos de acomo dação, saindo da bossa pa-
rietal em direção à sutura sagital3 7. Ra ram ente são bilate- hiperextensão, pod e fazer com que o occipital seja fratura-
rais27. São co mo que uma d ob ra no osso. O traço da fissura d o na união da pa rte basal co m a escamosa, que provêm de
n ão separa o osso em dois fragmentos. É raro que tais lesões d ois pontos d e ossificação distintos na vida embrio ná ria.
cheguem a constituir verdadeiras fra turas, com afastam ento H á ro tura d os seios d a dura-m áter e, por vezes, do tron co
ou cavalgamento dos fragmentos. Q uando isso oco rre, os cerebr al.
traços surgem perpendicularmente à borda livre do osso,
geralmente um d os parietais, e se dirigem para o seu cen- Lesões Cranioencefálicas no Parto de Surpresa
tro15 (Fig. 30.29 ). ou Precipitado
Tanto as fissuras quanto as fraturas são sempre acompa- Na seção sobre as causas de morte violenta acidental, vi-
nhadas por hemorragia subperióstica e extradural. Mas o te- m os que o parto pod e ser muito rápido em algumas mu-
cido nervoso subjacente costuma estar poupado. Não devem lheres multíparas. O período de dilatação muito curto im-
ser confundidas co m falhas da ossificação. Estas costumam pede que as peças ósseas do crânio se acomodem ao trajeto,
ser paralelas à sutura sagital, b ilaterais e simétricas, d e bordas fazendo com que os diâ metros cefálicos sejam modificados
lisas, tendo uma transição gradual com o osso normal3 1. Têm d e modo b rusco. Assim, h á tracionam ento dos desdobra-
forma de faixas estreitas ou de lacunas. A palpação do couro m entos da dura-m áter, com o a foice e a ten da do cerebelo.
cabeludo as denuncia pela dimin uição da consistência27,3 1. Tal distensão pode, com o vimos, levar a roturas d e exten são
Uma fo rma mais comum de lesão dos ossos d o crânio são variada, interessan do as veias de ligação entre o cérebro e a
os afun damentos. Costumam ocorrer na co nvexidade maior dura-máter, entre a dura-máter e o s ossos do crânio, os seios
dos parietais, mas também n o frontal men os frequentemen - venosos e a grande veia cerebral (veia de Galeno). Mas o que
te. Como regra, são unilaterais27. Sua aparência é de uma tem maior importân cia médico-legal são as frat uras porven -
depressão semelhante a um amassamento em uma bola d e tura en contradas n o crânio.
pingue-pongue. Os m ais superficiais pod em ter uma fo rma Desde o século XIX, e talvez a ntes, os autores divergem
quanto à admissão da ocorrência de fraturas de crânio no
parto d e surpresa. Segundo Thoinot27, Klein fez uma consul-
ta a numerosos médicos e parteiras de sua época e conseguiu
o relato de 183 pa rtos precipitados. Em nenhum deles houve
morte do recém-nascido nem fraturas de crânio. Para que o
feto sofra lesões cranioencefálicas, é preciso que caia de uma
altura superio r. Chaussier deixou o corpo d e natimortos cair
d e alturas diferentes contra um piso ladrilhado. De uma al-
tura de 0,50 m, obteve fissuras em um dos parietais; qu ando
d e 1 m, as fissuras eram mais nítidas. De alturas maiores,
co nseguiu encontrar frat uras verd adeiras do crânio, com ro-
t ura d a dura-máter27. Mas foi refutado sob a argumentação
d e que, n o parto d e surpresa, a altura é bem m enor, o cor-
d ão umb ilical, mesmo q ue se rompa, am para e atenua a que-
d a, assim como o atrito com os m embros inferiores da mãe
Figura 30.29. Fissuras do crânio com os traços originados na bossa torna o impacto contra o solo menos intenso. Atualmente,
parietal e irradiados para a periferia do osso, principalmente a sutura a tendência é d e se considerar o parto precipitado possível,
longitudinal. mas d e ocorrência excepcional. Dentro d essa raridade, admi-
692 • CAPITULO 30 Infanticídio

te-se a fo rmação de fissuras do crânio semelhantes às obser-


vadas por tocotraumatism os na despropo rção cefalopélvica,
m as não a pro dução de fraturas de intensidade semelhante às
observadas pelas ações criminosas 10•
Na perícia, o exam e do recém-nascid o deve incluir a ins-
peção atenta do cordão umbilical para ver se foi seccionado
ou rompido por ação contundente. Os cordões seccionados
apresentam superfície de corte lisa e regular, enquanto os
que foram rompidos por tração brusca revelam superfície
irregular, com o tecido esgarçado. Em caso de dificuldade,
pode ser colocado sob água para que os filamentos de tecido
rompido se tornem mais nítidos 27•

Lesões por Ação Contundente Criminosa


A energia cinética desenvolvida nas agressões por ação
contundente é muito maior do que nas situações descritas
anteriormente, o que faz com que as lesões sejam bem mais
graves. Q uanto ao mecanism o, podem ser por ação direta,
por meios de fo rtuna, como pedras, pedaços de pau, ou
por ação indireta, como projeção contra um anteparo. As por
ação direta podem encontrar a cabeça apo iad a, de modo que
o instrumento contundente atua de um lado e o apoio exerce
uma reação pelo lado oposto. É o que se dá quando a mãe
pisa a cabeça da criança, ou quando usa um instrumento
muito pesado para golpeá-la27 • Conforme a fo rça exercida,
pode haver fra tura apenas do lado golpeado, de ambos os Figura 30.30. Recém-nascido morto por ação contundente. Há ex-
lados, ou um achatam ento do crânio consequente a fratura tensa placa de escoriação na região zigomática direita e edema das
cominutiva. O couro cabeludo costuma apresentar escoria- partes moles da face. Guia 03 da 2ª DP, de 23/01 /74.
ções e feridas contusas. Sua face profunda evidencia grandes
áreas de infiltração hem orrágica (Figs. 30.30 e 30.31 ). As fra-
turas estão localizadas com maior freq uência nos parietais
por sua posição e extensão (Figs. 30.32 e 30.33). Seus traços
apresentam direção e extensão variadas confo rme o tipo de
ação contundente. Os ossos fraturados revelam, com fre-
quência, afundamento de fragmentos.
Costuma haver rotura dos seios da dura-máter e das veias
tributárias que se originam na leptom eninge, o que produz
hemorragia intensa para o espaço subdural. O encéfalo re-
vela focos de hemorragia de extensão e localização variadas,
recobertos por pia-ar acnoide hem orrágica. Às vezes, as fra-
turas irradiam-se para a base do crânio. Quando a fratura é
cominutiva, a palpação do couro cabeludo produz sensação
de se pegar um saco de nozes.

Lesões por Arma Branca


Quando se trata de lesões por arma branca, o diagnóstico
requer apenas a identificação do tipo de instrumento pelas
características lesionais, pois não há como as confundir com
as produzidas por tocotraumatism os. São mais comuns as
feridas por instrumentos perfurocortantes, com o facas e te-
souras. Também têm sido observados casos de esgorjamento.
As características lesionais não diferem das encontradas em
adultos (Figs. 30.34 e 30.35). Figura 30.31. Áreas de infiltração hemorrágica no couro cabeludo e
Outras fo rmas de agressão ao recém-nascido são muito no periósteo que, removido, deixa ver traço de fratura parietotemporal
m enos comuns. Po r vezes, há a tentativa de destruição do direita. Mesmo caso da figura anterior.
CAPITULO 30 Infanticídio • 693

Figura 30.34. Recém-nascido morto por instrumento perfurocortante.


Há uma ferida em forma de botoeira no terço médio da região carotídea
esquerda e escoriação extensa na região zigomática esquerda. Ocordão
umbilical tem extremidade livre irregular e aspecto ainda hidratado e
gelatinoso (parto recente). Cedido gentilmente pelo Prof. Ivan Nogueira
Bastos.

Figura 30.32. Nota-se fratura parietotemporal também do lado es-


querdo, vista após a remoção do periósteo, que está muito infiltrado por
sangue. Mesmo caso da figura anterior.

Figura 30.35. Recém-nascido em estado de putrefação caracterizado


por destacamento epidérmico, apresentando feridas incisas amplas no
pescoço (esgorjamento) e na face. Caso examinado pelo autor no IMLAP
do Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Naura Liane de Oliveira Aded

• CONCEITO Mulheres e crianças, como seres mais fracos, tornam-se


presas ideais para dar vazão a ímpetos violentos, gerados
Criado em 1971, o termo Síndrome da Criança Espanca- pelos mais diversos sentimentos, sem distin ção de classe ou
da (Battered Child Syndrome) define um quadro de abuso nível sociocultural e/ou económico.
e violência contra a criança que, diferentemente do que o Muito embora o assunto seja de grande interesse social,
nome sugere, não se limita ao espancamento propriamente incluindo-se aí também a Medicina Legal, neste capítulo tra-
dito. A negligência com as necessidades básicas da infância, taremos apenas da violência, sob as suas mais diversas for-
como alimentação, higiene, saúde e educação, assim como mas, contra a criança e o adolescente.
o abandono, as agressões (tanto físicas quanto morais ) e o
abuso sexual fazem parte dessa entidade.
A expressão criança maltratada parece-nos melhor para • HISTÓRICO
denominar tal quadro.
Há que se ressaltar que a síndrome faz parte de uma ou- A história da humanidade tem registros de maus-tratos à
tra "doença social", que, embora bastante antiga e conhe- infância desde épocas remotas.
cida de suas vítimas, só há pouco tempo passou a chamar O relato sobre antigas civilizações demonstra que crian-
a atenção de estudiosos das Ciências Sociais e Humanas: a ças e adolescentes eram oferecidos em sacrifícios aos deuses.
violência doméstica. Isso pode ser observado pela leitura de textos bíblicos e dos
Os maus-tratos de crianças frequentemente ocorrem em que se referem ao Império Greco-romano, que nos falam em
concomitância com a violência doméstica, que atualmente massacres infantis e na eliminação de crianças po rtadoras de
vem merecendo a atenção de profissionais de diferentes áreas defeitos físicos.
de conhecimento (médicos, professores, psicólogos, assisten- Na Idade Média, por constituírem "peso mo rto" e, por
tes sociais, Juizados de Infância e Juventude, associações de consequência, bocas a mais a serem alimentadas em perío dos
auxílio e assistência à infância e adolescência), preocupando de fome ou guerra, os recém-nascidos podiam ser abando-
autoridades e sociedade, como um todo. nados nas flo restas o u ter sua alimentação e cuidados colo-
A violência doméstica engloba situações de abuso físico, cados como última opção, pois todos os recursos dispo níveis
sexual, psicológico e negligência ou abandono nem sempre deveriam ser postos à disposição dos guerreiros. Mulheres e
dirigidos ao menor, que poderá sofrer suas consequências crianças eram consideradas "seres de segunda classe': passí-
mesmo sem agressão efetiva. Na prática, há uma delimita- veis de sofrer sanções, hoje inconcebíveis aos nossos olhos.
ção imprecisa dos tipos pelo fato da maioria dos maus-tratos Ao longo dos séculos, a aprendizagem e a educação des-
ser praticado por familiares ou pessoas próximas do menor; sas criaturas (as crianças), que por suas características espe-
daí uma dificuldade real em se classificar os casos, sendo fre- ciais nem sempre tornam o trato com elas uma tarefa das
quente a confusão no emprego dos termos. m ais fáceis, deu ensejo a uma série de abusos e m aus-tratos,

695
696 • CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada

perpetrados em no me da obediência desejada, tanto no lar No mesmo ano, Paul Bernard (1 828-1886), discípulo de
como nas instituições de ensino e nos locais de trabalho (fa- Lacassagne, escreveu e publicou um artigo sobre o atentado
zendas, fábricas, minas e outros). ao pudor contra meninas de po uca idade no qual ressalta a
Bater, castigar, privar de refeições, deixar ao relento, tudo ocorrência desses atos no interior dos lares, a "opção pelo si-
era permitido a fim de "domar" um temperamento rebelde. lêncio" po r parte dos pais ao to marem conhecimento de tais
Pais, patrões e professores se em penhavam na tarefa de pre- fatos, o caráter incestuoso de muitos desses atentados e a ine-
parar os pequenos para a vida, sem sentir culpa, ou remorso, xistência de um nível cultural que pudesse servir de barreira
pelos possíveis excessos, sem que as autoridades instituídas a eles. O auto r chegou a algumas conclusões sobre o assunto:
questionassem sobre esses atos, praticados em nom e da
m elhoria e do progresso dos infantes; havendo, não raro, a 'i'ltos libidinosos cometidos contra crianças são muito
anuência e a contribuição das diversas religiões nessa prática . f requentes, especialmente em áreas densamente povoadas e
O fenómeno da violência contra crianças e adolescentes centros industriais.
atraiu atenção de escritores como Charles Dickens e Vítor Os acusados desse tipo de crime são na maioria das vezes
Hugo que retratar am em obras universalmente conhecidas - homens de idade madura ou homens idosos, e pode-se dizer
O liver Twist (1838) e Os Miseráveis ( 1862), respectivamente que a idade do agressor está quase sempre na razão inversa
- mazelas sociais, como o trabalho infantil, a pobreza extre- da idade da sua vítima.
ma, o abandono de menores e os castigos físicos (infligidos A instrução não parece ser um fa tor inibidor na perpe-
pelas próprias famílias ou por responsáveis pela disciplina tração desse ato criminoso."
nos abrigos), além de outros problemas que afligem os jo-
vens e que continuam atuais. Paul Camille Hippolyte Brouardel (1837- 1906), sucessor
Os autores franceses fora m os primeiros a abordar o as- de Tardieu na cátedra de Medicina Legal na Universidade de
sunto. Data de 1860 e não de 1868, como descrito em alguns Paris, também escreveu sobre o abuso sexual contra crianças
livros sobre a matéria, o artigo intitulado Étude médico-lega/e e afirma que "os atentados ao pudor são crimes do lar''. Du-
sur les sévices et mauvais traitements exercés sur des enfan ts rante suas aulas no necrotério de Paris, chamava a atenção
(Estudo m édico-legal sobre as sevícias e m aus-tratos infli- pa ra as necropsias de casos de sevícias e maus-tratos contra
gidos a crianças) , de autoria de Ambroise Auguste Tardieu crianças, vítimas de seus pais, professores, ou seja, de pessoas
(1818-1879), eminente professor de Medicina Legal da que exerciam sobre elas autoridade m ais o u m enos direta.
Universidade de Paris, onde são relatados 32 casos estuda- Na América do Norte, há o registro sobre o primeiro
d os por determinação de um tribunal de justiça, sob a ótica caso de retirada do pátrio poder, ocorrido na cidade de Nova
m édico-legal. York, 1846, ".. . a favor de uma m enina cham ada Mary Ellen,
A análise desses casos revelou que os agressores eram, severamente espancada, dada a interferência da sociedade
em 21 deles, os próprios pais, sendo as vítimas, muitas vezes, protetora contra a violência em animais" (destaque nosso). A
crianças muito pequenas e que as sevícias podiam culminar alegação, à época, foi a de que a criança pertencia ao reino
com a morte. Entre os casos estudados, no artigo citado, so- animal, donde o ato estar sujeito às leis que protegiam os
mente um envolvia abuso sexual. animais contra crueldade.
O mesmo autor já havia publicado em 1857 o seu Étude Na mesma cidade de Nova York foi criada, em 1871, a pri-
médico-lega/e sur les attentats aux moeurs (Estudo médico- meira sociedade para prevenção da crueldade contra crianças.
legal sobre os atentados contra os costumes), o nde ele cha- Caffey, em 1946, publicou o primeiro relato, em língua
mou atenção para a frequência dos atentados ao pudor con- inglesa, sobre a ocorrência de múltiplas fra turas de ossos
tra crianças, especialmente meninas pequenas. Esse foi o pri- longos, associadas a hematomas subdurais crónicos em seis
meiro livro dessa espécie escrito na Europa e teve outras seis lactentes sem história de traumatismo importante ou evi-
edições posterio res, a última em 1878. dência clínica de doenças esqueléticas que justificasse a pre-
No espaço de aproximadam ente 11 anos (1858-1869), sença das lesões.
Tardieu relata 11.5 76 casos de pessoas acusadas de estupro Em 1960, Altman e Smith referendaram casos de trauma-
ou de tentativas, e 9.125 se referiam a atentados contra crian- tismos de origem não identificada, em lactentes e crianças;
ças, quase todas meninas, com idade abaixo de 16 anos; na mas somente dois anos depois Kemp et al., ao publicarem o
grande maioria, a idade das vítimas variava entre 4 e 12 anos. trabalho "A síndrom e da criança espancada", reconheceram,
Alexandre Lacassagne (1834-1924), catedrático de Medi- pela primeira vez, os maus-tratos infantis como entidade pa-
cina Legal da Universidade de Lyon, publicou, em 1886, um tológica. A partir de então, o conhecimento público sobre o
artigo: Attentats à la pudeur sur les petites filies (Atentados ao assunto veio aumentando, levando ao surgimento de leis que
pudo r contra meninas pequenas ), onde enfatizava, além da obrigar am os profissionais de saúde a comunicar os casos
baixa idade das crianças, o fato de que "atentados ao pudo r, suspeitos.
mesmo quando repetidos ao longo de um grande período Em 1974, o Congresso americano, com a Lei de Preven-
de tempo, e frequentemente cometidos, podem não deixar ção do Abuso da Criança, reconheceu a importância de se
abso lutamente nenhum vestígio". prevenir esse tipo de trauma não acidental.
CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada • 697

Os estudos realizados no século XX sobre o homem reve- Parágrafo único. A garantia de prioridade compreen-
laram a importância da infância na formação do individuo de: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
sadio, tanto no plano físico quanto no psíquico. Hoje já exis- circunstâncias; b) precedência no atendimento nos serviços
tem a consciência e a co mprovação, através de estudos co m- públicos e/ou de relevância pública; c) preferência na for-
parativos, de que vítimas de maus-tratos na infância poderão mulação e na execução das políticas sociais públicas; d)
transformar-se em algozes na idade adulta. destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas rela-
As crianças deixaram de ser vistas como "adultos em cionadas com a proteção à infância e à juventude.
miniatura'; passando a ser encaradas como seres sociais
ímpares, co m particularidades inerentes, que necessitam, Formas de maus-tratos, tais como negligência, violência
para seu inteiro desenvolvimento, d e cuidados e atenções e crueldade, são previstas no artigo quinto do ECA:
es pedfi cos.
A despeito de tais descobertas, ainda nos deparamos com Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qual-
práticas abusivas, por parte de pessoas adultas, contra crian- quer forma de negligência, discriminação, exploração,
ças, a fim de co nseguirem ser obedecid as e incutirem noções violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
d e compo rtamento, cabendo acrescentar a esses motivos qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
o abuso gerado pelo estresse, pelo uso d e drogas (entre elas o fundamentais.
álcool), pelos conflitos familiares e pelas crises econômicas
e/ou conjugais. A obrigatoriedade da comunicação de casos suspeitos
A partir da década de 70, as diversas formas de maus- ou confirmados de maus-tratos à infância e adolescência e
tratos infa ntis vêm sendo estudadas como integrantes da a quem cabe a obrigação legal dessa notifi cação consta dos
síndrome da criança espancada. artigos 13 e 245 da Lei 8.069/90, respectivamente:
O primeiro caso relatado no Brasil foi noticiado em 1974,
por Ca nger Rodrigues et ai., seguido por mais três observa- Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-
ções de Teixeira (1978/1980), que designou o qu adro como tratos con tra criança ou adolescente serão obrigatoriamen-
SIBE (síndrome do bebê espancado). te comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localida-
de, sem prejuízo de outras providências legais.

• LEGISLAÇÃO VIGENTE NO PAÍS Nos locais onde não haja Conselho Tutelar, suas atribui-
ções serão exercidas pela autor idade judiciária (art. 262, ECA) .
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu
Ca pítulo VII - Da Família, d a Criança, do Adolescente e do Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por
Idoso, artigo 227, reza: estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamen-
tal, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade com-
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar petente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo
à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o di- maus-tratos contra criança ou adolescente.
reito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, Pena: multa de três a vinte salários de referência, apli-
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à cando-se o dobro em caso de reincidência.
liberdade e à convivência familiar e com unitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discrimina- A notificação de casos suspeitos ou co nfirmados de
ção, exploração, violência, crueldade e opressão. maus-tratos contra crianças e adolescentes qu e venham a ser
atendidas em unidad es do SUS é compulsória, em todo o
A Lei 8.069, de 13/07 /90 - Estatuto da Criança e do Ado- Brasil, d e acordo com a Portaria do Ministério da Saúde, MS
lescente (ECA) -, regulamentou o contido no artigo 227 da - 1968, de 25/10/0 1, atendendo ao disposto no Estatuto da
Constituição, substituindo a Lei 6.697, de 10/ 10/79, denomi- Criança e do Adolescente.
nada Código de Menores. No Estado d o Rio de Janeiro, data d e 1999 (D.O. de
Para efeitos dessa lei (Lei 8.069/90), consid eram -se crian- 14/07/99) a Resolução 1.354, da Secretaria de Estado de Saú-
ças pessoas com idad e até 12 anos incompletos e adolescen- de, que to rna obrigatória a notificação de maus-tratos à pró-
tes aquelas entre 12 e 18 anos (ECA: art. 22 , caput). p ria SES.
O direito à vida é explicitado no artigo quarto: Em seu Título IV, Livro II , Pa rte Especial - Das Medidas
Pertinentes aos Pais ou Responsáveis, o Estatuto da Criança
É dever da família, da comunidade, da sociedade em e do Adolescente considera em seu artigo 130:
geral e do Poder Público assegurar, com absoluta priorida-
de, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à ali- "Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abu-
mentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionali- so sexual impostos pelos pais ou responsável, a autorida-
zação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência de judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o
fami liar e comunitária. afastamento do agressor da moradia comum."
698 • CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada

A parte especial (Livro II) do Estatuto, em seu Título VII tes, tanto nos países ditos desenvolvidos do ponto de vista
- Dos Crimes e das Infrações Administrativas, se refere, nos socioeconómico como naqueles em fase de desenvolvimen-
artigos 232 e 233, ao constrangimento ou vexame e à tortura to, como é o caso do Brasil. Cada vez mais os meios de co-
infligidos a crianças ou adolescentes: municação trazem à baila o tema, informando a sociedade
sobre fatos que, há pouco tempo, costumavam ficar ocul-
Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua auto- tos no recôndito dos lares ou dos consultórios médicos e
ridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento. hospitais. As classes de menor poder aquisitivo apresentam
Pena: detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. um maior número de ocorrências no género, pelo fato de
Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua auto- serem mais comuns, entre elas, as crises que desencadeiam
ridade, guarda ou vigilância à tortura. o fenómeno.
Pena: reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos. O responsável pela ofensa/agressão quase sempre é um
§l QSe resultar lesão corporal grave: adulto, parente ou não, encarregado de cuidar da criança. Ir-
Pena: reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos. mãos mais velhos podem, por vezes, estar aí incluídos.
§~ Se resultar lesão corporal gravíssima: As personalidades psicopáticas ou criminosas não for-
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 anos. mam a maioria desses agressores. O que tem sido observado
§3º Se resultar morte: é a existência de adultos desajustados precisando, eles mes-
Pena: reclusão de 15 a 30 anos. mos, muitas vezes também de orientação e socorro.
A Figura 31.1 exibe um modelo para auxiliar a com-
A administração de drogas a menores é abordada no ar- preensão dos maus-tratos à criança.
tigo 243: As principais formas são: o abuso físico, a privação de
alimentos e de cuidados de higiene, a administração inten-
Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar cional de drogas (lícitas e/ou ilícitas) e venenos, o abuso se-
ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, xual, a negligência de assistência médica, a negligência de
sem justa causa, produtos cujos componentes possam cau- segurança e o abuso emocional.
sar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização
indevida. Abuso Físico
Pena: detenção de 6 meses a 2 anos, e multa, se o fato
não constitui crime mais grave. Forma mais comum e de caracterização mais fácil.
Equimoses, escoriações, fraturas, queimaduras e o utras
O artigo 263 do ECA promoveu alterações no Decreto- lesões, de aparecimento nem sempre bem explicado pelos
lei 2.848, de 07/12/40, Código Penal, nos seguintes artigos: responsáveis e/ou acompanhantes do menor, levam à su -
121 (§ 4º-); 129 ( §§ 7Q e 8Q); 136 (§ 3º); 213 (parágrafo único); posição de que sejam devidas a esse tipo de abuso. Des-
214 (parágrafo único ). A Lei 9.281, de 04/06/96, revogou os culpas do tipo "ele vive caindo': "o bebê caiu da cama" o u
parágrafos únicos dos artigos 213 e 214, uma vez que com a "ele(a) não presta atenção onde anda e vive se machucan-
entrada em vigor da Lei 8.072, de 25/07/90 (Lei dos Crimes do" quase sempre servem de justificativa para tais lesões,
Hediondos), os referidos parágrafos ficaram como que ta- quando os adultos se vêem questionados por médicos, vi-
citamente revogados. As referidas mudanças se encontram zinhos, professores ou quaisquer pessoas que estranhem a
incorporadas ao Código Penal1 1 • sua presença.
A existência de traumatismos recentes associados a ves-
tígios o u sequelas de outros mais antigos, bem como a mul-
• ETIOLOGIA E PRINCIPAIS FORMAS tiplicidade deles, deve servir de alerta aos profissionais que
lidam mais amiúde com crianças e adolescentes.
Diferenças de raça, crença religiosa, culturais ou econó- A gravidade das lesões pode variar desde uma simples
micas não servem, não constituem parâmetros, quando o equimose a fraturas do crânio com hemorragias meníngeas
assunto é o abuso e a negligência das crianças. e do tecido nervoso, com morte subsequente.
As crianças maltratadas serão encontradas em quaisquer A linha divisória entre um simples castigo - método acei-
grupos. to pela nossa sociedade como uma forma de punir trans-
As que se situam na faixa etária de O a 4 anos são as ví- gressões infantis ou mesmo educar, não se estendendo, ne-
timas mais frequentes, por conta de sua maior dependência cessariamente, ao plano físico - e o abuso, fica, muitas vezes,
e menor capacidade de defesa, muito embora não haja uma difícil de precisar.
época específica para os maus-tratos. Os adolescentes tam- Essa forma de maus-tratos ocorre, em geral, em meio a
bém figuram como vítimas, nos casos de abusos ligados às crises socioambientais, e é desencadeada, frequentemente,
esferas emocional e sexual. por atitudes da própria criança, tais como choro persistente,
Os atos que caracterizam a síndro me não se restringem teimosia, malcriações, desobediência e micção ou evacuação
à pobreza e, atualmente, assumem propo rções preocupan- nas roupas.
CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada • 699

Modelo para Compreensão dos Fatores Capazes de Desencadear os Maus-tratos na lnfãncia

Fatores socioculturais

1) Valores e normas sobre violência e força; aceitação dos castigos corporais.


2) Hierarquia social desigual; relações de exploração interpessoal.
3) Competição x cooperação.
4) Sistema econômico injusto; aceitação permanente por parte da classe pobre.
5) Desvalorização de filhos e outros dependentes.
6) Manifestações institucionais dos valores acima: lei, assistência médica, educação,
sistema de benefícios sociais, esportes e diversão, outros.

Estresse familiar

Estresse gerado pelos


Estresse gerado pela criança Estresse sociocircunstancial
pais/responsáveis

1) Diferença física 1) Pobreza, desemprego, mudança ou 1) Baixa autoestima.


(p. ex.: deficiência; feiúra/beleza). isolamento, habitação precária. 2) Vítimas de abuso na infância.
2) Mentalmente diferente (p. ex.: retardo). 2) Relação com os genitores; 3) Depressão.
3) Diferença de temperamento discórdia-agressão; dominação-submissão. 4) Alteração de caráter;
(p. ex.: difícil). 3) Problemas de afeto, estresse perinatal, doença psiquiátrica.
4) Diferença de comportamento forma de criação, escolha como "bode 5) Abuso de substâncias químicas.
(p. ex.: hiperativo). expiatório", inversão de papéis, filhos em 6) Ignorância da educação;
5) Filho adotivo. excesso ou indesejados. expectativas irreais.

Situaç6es desencadeantes

Disciplina
Discussão/conflito familiar
Abuso de substâncias químicas
Problema ambiental agudo

Maus-tratos

Lesão
Incapacidade de prover cuidados
Intoxicação
Maus-tratos psicológicos

Figura 31.1 . Adaptação do modelo para compreensão do abuso da criança. (De Bittner S, Newberger EH: Pediatric understanding of child abuse
and neglect. Pediatric Rev; 1981. 2: 198. Copyri ght American Academy of Pediactrics, 1981.)
700 • CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada

Privação de Alimentos e de Cuidados de Higiene Essa modalidade de maus-tratos ocorre, na imensa maio-
ria dos casos, na intimidade dos lares, praticada por pais,
A subnutrição infantil decorre, comumente, da má ad- tios, padrastos, irmãos ou outras pessoas próximas à criança.
ministração dos alimentos, seja por carência de recursos A conivência é obtida mediante ameaças ou promessas de
para adquirir os alimentos, seja na forma deliberada ou recompensa, que tolhem, de maneira bastante eficaz, a capa-
negligente. cidade de reação do menor. A agressão quase sempre parte
É frequente em nosso meio, onde a incidência de famí- de alguém que inspira temor, respeito ou até mesmo amor,
lias de baixa renda é grande, a ocorrência de subnutrição, daí a dificuldade de detecção.
constatando-se, quando da anamnese, a tentativa da mãe, ou Os casos que chegam ao conhecimento das autoridades
do responsável, de "fazer o leite render e sobrar para os ou- se devem, em grande parte, a uma descoberta ocasional pela
tros irmãos''. mãe, avó ou outra pessoa da família (ou vizinhança), não
Mulheres alcoólatras ou dependentes de outros tipos de sendo incomum que a criança, ou adolescente, cansada da
drogas "economizam" o dinheiro que seria destinado à ali- repetição de experiência tão aviltante, escolha "um( a) confi-
mentação da prole para saciar seus vícios. dente" para desabafar. Casos que por sua gravidade e violên-
Nos casos de negligência, observa-se, com frequência, a cia necessitem de atendimento hospitalar também vêm a se
associação da falta de cuidados de higiene e doenças derma- tornar de conhecimento público.
tológicas ou infestações (impetigo, pediculose, fitiríase, esca- Raras são as crianças que têm a coragem de denunciar
biose, por exemplo) ao quadro de desnutrição. práticas sexuais por parte de familiares. Mães ou madras-
Frequentemente, mães que se sentem rejeitadas ou de- tas dificilmente costumam acreditar que seus maridos ou
samadas, diante de filhos não desejados, ou não planejados, companheiros possam molestar filha s(os) ou enteadas(os);
podem-se envolver em casos de negligência, por conta de cri- as ameaças de espancamento ou morte quase sempre são
ses geradas pela ausência física do companheiro. suficientes para fazê-las calar, no caso de darem crédito às
Crianças mantidas em instituições assistenciais, não raro, queixas infantis. Existe ainda o "fantasma" de ser abandona-
apresentam nível nutricional abaixo do normal. Tal fato da pelo marido ou companheiro, enfim, o "homem que sus-
pode ser devido a má distribuição, ou mesmo desvio, dos tenta a casa" ou o "grande amor, acima de qualquer suspeita''.
alimentos, ou à dieta inadequada. Meninos e meninas são objeto dessa prática, porém o
sexo feminino é o mais atingido.
Administração Intencional de Drogas e Venenos Escolas e instituições assistenciais, como orfanatos, cre-
ches e abrigos para a infância, também servem de palco a esse
Calmantes e soníferos podem ser administrados a crian- tipo de maus-tratos. Nesses estabelecimentos, a "lei do mais
ças "levadas" ou que "custam a dormir", atrapalhando ou forte" predomina, e a necessidade de afirmação pode ensejar
perturbando adultos, tanto nos lares quanto em hospitais e agressões perpetradas pelos mais velhos, a fim de submeter
instituições que as mantêm. crianças menores, estabelecendo-se verdadeiros "territórios''.
A prática nos tem mostrado que tais casos são mais co- Os desvios de personalidade, o homossexualismo latente
muns do que seria desejável. Os pais, bem como domésticas, (por vezes manifesto) e o fato de, em idade tenra, terem sido
enfermeiras( os), enfim, profissionais que têm como função também vítimas de abuso sexual podem servir para explicar
o zelo e a guarda de m enores nos estabelecim entos destina- a ação desses indivíduos.
dos ao seu tratamento e/ou abrigo, figuram como executores
dessa prática insana. Negligência de Assistência Médica
Adultos dependentes de substâncias tóxicas, aí incluídas
as lícitas e as ilícitas, não raro obrigam seus filhos, enteados Deixar de seguir, de maneira intencional ou negligente,
ou tutelados, o u seja, menores sob sua guarda, ao uso das tratamento médico recomendado para uma enfermidade ca-
m esmas, em suas "viagens". racteriza essa forma de maus-tratos.
Os casos de envenenamento, por parte de mães ou pais, A não administração de medicamentos prescritos, como
para agredir ou atrair a atenção dos cônjuges, são parte inte- por exemplo nos casos de crianças epilépticas que tenham
grante da crónica policial e da realidade dos prontos-socor- que fazer uso de medicação anticonvulsivante, ou a recusa
ros e institutos médico-legais. em aceitar tratamentos ou internações em casos específicos
A sensação de perda e abandono consecutivos a uma se- (por exemplo, cirurgia em caso de apendicite, transfusão de
paração transforma filhos ou enteados em alvo da frustração sangue), podem servir de modelo para o tipo.
de adultos desajustados o u de caráter duvidoso.
Negligência de Segurança
Abuso Sexual
Os acidentes são comuns em situações em que crianças
O abuso sexual constitui um problema para a práti- pequenas sejam deixadas sozinhas, sem nenhuma espécie de
ca médico-legal, po is em todas as suas formas é de difícil supervisão, crescendo essa possibilidade na razão inversa
diagnóstico. da idade das vítimas.
CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada • 701

Encontramos, com frequência, nas famílias de classes O terrorismo psicológico, por exemplo, trancar a criança
menos favorecidas, lactentes e crianças que apenas come- num quarto escuro para que ela perca o medo, se inclui nessa
çam a ensaiar os primeiros passos, sob a guarda de irmãos forma de maus-tratos.
muitas vezes em idade pré-escolar, incapazes, eles mesmos, A forma superprotetora de agir de determinados pais,
de prover qualquer assistência a si próprios, ou aos meno- não permitindo que seus filhos "cresçam': achando-os inca-
res, para que os pais (na grande maioria dos casos a mãe) pazes de fazer o que quer que seja sem supervisão (ou "pro-
possam sair para trabalhar. Os relatos de acidentes com fogo teção nos bastidores"), bem como a necessidade que alguns
(seja por brincadeiras, ou pela tentativa de aquecer algum sentem de "comandar" decisões, por acharem-se donos da
tipo de alimento) fazem parte dos boletins de ocorrência dos melhor e única visão do mundo, decretando, pois, a falência
hospitais e dos registros das delegacias de polícia, resultando, prematura de seus filhos como futuros adultos e cidadãos,
senão em morte, em graves queimaduras que deixam seque- impede o pleno desenvolvimento das aptidões e potenciali-
las permanentes. dades dessas crianças, gerando pessoas imaturas e inseguras
As classes mais abastadas, por sua vez, podem concorrer diante da vida, constituindo, portanto, numa visão mais am-
para essa modalidade de maus-tratos, pela necessidade de pla, uma variação do abuso emocional.
atender aos compromissos de ordem profissional e/ou social.
Os filhos deixados com babás ou empregadas, nem sempre
habilitadas ou dispostas ao trato com crianças, vêem-se na • REALIDADE MÉDICO-LEGAL E DIAGNÓSTICO
situação de vítimas de negligência de sua segurança, prota-
gonizando situações que vão desde o simples descaso (por Diante de um caso suspeito de síndrome da criança es-
exemplo, enquanto a "guardiã" conversa com uma colega so- pancada, o perito-legista deve se ater a alguns pontos que
bre os mais diversos assuntos, a criança cai do balanço) até as o ajudarão a estabelecer o diagnóstico, o qual não constitui
cenas de violência e agressão que ultimamente têm chegado tarefa fácil.
ao nosso conhecimento em notícias veiculadas pela mídia. A entrevista é parte fundamental do exame médico-
Crianças em apuros, por conta de babás negligentes, não são legal, e deverá, sempre que possível, ser realizada somente
apenas figuras de ficção. com a criança. Se não, o responsável e/ou acompanhante
A negligência de seguran ça, portanto, pode estar presente será o informante, devendo o perito ficar atento à coerência
em qualquer nível sociocultural e/ou económico. e plausibilidade do que for dito. Faz-se absolutamente ne-
Crianças "perdidas" nas praias, em aglomerações ou cessário que cada lesão detectada seja explicada de maneira
shopping centers, as que se "soltam da mão" e correm para o adequada.
meio dos carros, as que caem de janelas ou em piscinas sem O comportamento de pais ou responsáveis por crianças
que ninguém disso tome conhecimento, a não ser quando m altratadas, durante as entrevistas, tanto no hospital como
já é tarde demais, são um bom exemplo do que vem a ser no exame médico-pericial, tende, quase sempre às explica-
negligência de segurança. ções implausíveis, à indiferença ou, até m esmo, à negativa de
Ainda sob esse título, deve ser considerada a exposição de conhecer a origem das lesões, podendo-se mostrar agitados
crianças, pequenas ou não, a animais, mais comumente cães ou desconcertados ao serem inquiridos (Fig. 3 1.1 ).
ferozes, que pode resultar em acidentes de graves consequên- A criança, por sua vez, poderá demonstrar passividade,
cias, quando não em morte. medo ou agressividade. É comum se mostrarem amedron-
Acidentes fatais, ou não, com armas de fogo deixadas ao tadas, hesitantes, como que procurando certificar-se de estar
alcance de menores nas residências, sem quaisquer medidas "dando a resposta certa", quando em presença dos pais/res-
de proteção, também devem ser lembrados, quando o assun- ponsáveis causadores dos maus-tratos. Pode-se, ainda, veri-
to é segurança. ficar retardo no desenvo lvimento físico/emocional e mesmo
sequelas físicas nas situações em que a criança seja submeti-
Abuso Emocional da a maus-tratos de maneira contínua.
O perito-legista deverá observar e anotar a atitude do
Imponderável, o abuso emocional constitui, no nosso m enor no decorrer do exame de corpo de delito, solicitan-
entendimento, juntamente com o abuso sexual e o abuso fí- do (à criança ou ao seu acompanhante) a retirada das vestes
sico, a tríade de maus-tratos que mais repercussões negativas para melhor visualização das lesões porventura existentes.
pode trazer ao desenvolvimento de uma criança. Tal enfoque Nos casos de abuso físico, há que se verificar e relatar a
parece ser corroborado pelas conclusões a que os estudiosos presença de lesões, sendo a descrição das formas, medidas,
no assunto têm chegado: que uma criança m altratada será, localização e número das mesmas de suma importância para
potencialmente, no futuro, alguém que irá causar sofrimento a perícia. A presença de lesões de idades diversas interessan-
a outra criança. do os diversos segmentos do corpo constitui quase que um
Ofensas, ameaças, chantagens emocionais e ralhos, le- sinal patognomônico da síndrome (Figs. 31.2 e 31.8 ).
vados a extremos, podem levar ao aparecimento de distúr- As chamadas "lesões com assinatura" são frequentes nes-
bios de comportamento, ou mesmo a verdadeiras perturba- ses casos. Equimoses podem reproduzir o desenho de fivelas
ções da saúde mental. de cinto; saltos e/ou bicos de sapatos; laços; objetos alonga-
702 • CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada

Figura 31.2. Lesões em estágios diferentes de evolução, em criança Figura 31.4. Lesão com assinatura - queimaduras produzidas com
do sexo feminino necropsiada no IMLAP-RJ. Guia 239 da 32~ DP, de garfo aquecido em criança examinada no IMLAP-RJ. Memorando n~ 590
1999. de 10/10/99.

Figura 31 .3. Lesão com assinatura - equimose reproduzindo objeto


com forma vazada. Criança do sexo masculino necropsiada no IMLAP-
RJ. Guia 237 da 22• DP, de 1999.

dos, do tipo porretes; chicotes; varas ou cabos de vassoura


(Figs. 31.3, 31.4 e 31.5) . A palmatória, objeto em desuso
como método auxiliar de ensino em nossos dias, comumen-
te empregado em tempos antigos e de triste memória, mas
que eventualmente ressurge como instrumento de "castigo",
costuma deixar lesões bem características.
Queimaduras com corpos aquecidos (por exemplo, ferro
Figura 31.5. Lesão com assinatura - agressão com fio elétrico, em
de passar ro upa, garfos e outros - Fig. 31.6) podem ser fa- menino examinado no IMLAP-RJ. Memorando ~ 2514/1023/02).
cilmente reconhecidas, ao repetirem o formato dos mesmos
(Fig. 31.4).
Lesões de localização delimitada também servem de in- Queimaduras produzidas por cigarro são identificáveis,
dício ao legista quando se trata de abuso físico. Escoriações com facilidade, pela sua forma e aspecto. Quando em fase
e equimoses circunscritas ao dorso e às regiões glúteas ou de cicatrização, se assemelham a cicatrizes de impetigo o u
coxas resultam, muitas vezes, de punições infligidas aos me- a marcas de regeneração tecidual nos casos de dermatite
nores. A imersão em água fervendo pode ser detectada pela atópica, dermatite de contato, escabiose e outras afecções
presença de queimaduras restritas à área imersa. dermato lógicas, sendo conveniente que o perito-legista
CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada • 703

Figura 31.6. Ação térmica: queimadura de 2° grau produzida por


objeto aquecido em criança do sexo masculino examinada no IMLAP-RJ.
Memorando 590 de 10/10/99. Figura 31. 7. Equimose nas mucosas labial superior e inferior; mobi-
lidade anormal do dente incisivo central superior direito com infiltração
hemorrágica do alvéolo dentário, em criança do sexo masculino, com
história de queda, necropsiada no IMLAP-RJ. Guia 220 da 14ª DP, de
atente para os quadros que evoluem com prurido intenso 2002.
e generalizado, capaz de deixar marcas de escoriação dis-
tribuídas por todo o corpo, podendo fazer supor, aos mais
desavisados ou mal-intencionados, um quadro de maus- descolamentos de retina se incluem, também, entre as lesões
tratos. É imperioso que se estabeleça, sempre que possível, oculares oriundas de agressão física, boa parte delas resultan-
o diagnóstico diferen cial. d o em dano permanente à visão, em um ou ambos os olhos.
As queimaduras muito extensas e/ou profundas, não le- Hematomas subdurais, por sua gravidade, potencial-
vando à m orte, frequentemente darão origem a deformida- mente levam ao coma, o u à morte, podendo deixar graves
des permanentes. sequelas; comumente, fazem parte dos quadros de fraturas
Impõe-se a realização de um estudo radiológico apurado ou contusões do crânio, provenientes de pancadas na cabeça.
nos casos suspeitos de maus-tratos. Múltiplas fraturas, calci- O'Neill Jr., em 1973, verificou, na avaliação de 11 O casos
ficações ósseas em diferentes estágios, alargamentos epifisá- de crianças agredidas, que 32 delas apresentavam evidências
rios e deformidades ósseas, alterações que constituem acha- de lesões cerebrais, dentre as quais seis sobreviveram com
mada síndrome de Sylverman, são achados comuns diante sequelas neurológicas e seis morreram.
de agressões repetidas. O achado de hemorragias subdurais, em crianças, sem
Fraturas incomuns de costelas, porção externa da cla- quaisquer vestígios de lesões violentas no couro cabeludo
vícula, escápula e esterno podem indicar traumatismo não ou periósteo, levou à suposição, durante muitos anos, de
acidental. tratar-se de "hematomas espontân eos'; nome pelo qual eram
O diagnóstico diferencial com patologias ósseas mais ra - conhecidos. Caffey, em 1974, chamou a atenção para a rela-
ras, como osteogênese imperfeita, hiperostose cortical infan- ção direta entre sacudir violentamente uma criança e o apa-
til, sífilis, raquitismo, escorbuto e neoplasias, habitualmente recimento de hematoma subdural, resultando em sequelas
é fácil de ser estabelecido. neurológicas permanentes.
Faz-se necessário o concurso de especialistas, como Estudos recentes apontam para a rotura de vasos cere-
oftalmologista, otorrinolaringologista, neurologista e outros brais (veias da ponte), causada por movimentos abruptos,
mais, quando se visa ao estabelecimento de diagnóstico so- produzindo aceleração e desaceleração da cabeça devido a
bre a presença, ou não, de maus-tratos infantis. sacudidelas ou puxões violentos, levando ao sangramento
O exame de narinas, ouvido e cavidade oral pode evi- para o espaço subdural, bilateralmente, em geral. A presença
denciar a presença de lesões causadas pela introdução de de hemorragias de retina, quase sempre presentes, ajuda a
corpos estranhos em nariz e garganta, roturas de tímpano, definir o diagnóstico (síndrome do bebê sacudido - shaken
além de queimaduras produzidas por objetos aquecidos ou baby syndrome). Lactentes com sintomas neurológicos sem
líquidos e alimentos ferventes na boca dos meno res. Avulsão explicação plausível devem ser investigados atentamente,
traumática dos dentes e lesões e/ou destruição dos alvéolos pois poderemos estar diante de um quadro de abuso.
dentários necessitarão do parecer de odontólogos (Fig. 31.7). As vítimas fatais dessa forma de abuso físico podem m os-
Regiões atróficas no campo retiniano temporal podem trar, ao exame histopatológico, hemorragia intra-ocular, de
ser observadas, ao exame oftalmológico, como sequela de intensidade variada, que não guarda, obrigatoriamente, rela-
espancamentos. Hifemas, deslocamentos de cristalino ou ção com o achado de outras lesões gr aves, tais como hemor-
704 • CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada

ragia das meninges, fratura do crânio, fratura de costelas ou


hem orragia da por ção superio r do canal m edular. A presen-
ça de hemorragia retiniana ou da bainha do nervo óptico, em
crianças pequenas, associada à ausência de uma explicação
apropriada, deve levar à suspeita de maus-tratos infantis.
O edem a cerebral resultante de golpes sobre a cabeça
pode instalar-se de maneira insidiosa, culminando com um
quadro de crises convulsivas subentrantes e, finalmente, pa-
rada respiratória irreversível. A sucessão de convulsões é,
quase sempre, o que leva o adulto, responsável pela agressão,
a procurar atendimento médico-hospitalar para a sua vítima.
Nos lactentes, o alargamento das suturas cranianas, ob-
servado ao exame radiológico, indica a ocorrência de edema
cerebral.
As lesões viscerais, por outro lado, poderão vir a deter-
minar perigo de vida, debilidade permanente de função ou Figura 31.8. Equimoses e escoriações disseminadas em face, pesco-
enfermidade incurável, em suma, vindo a constituir lesões ço, tronco e membros superiores, em criança do sexo masculino necrop-
graves ou gravíssimas. siada no IMLAP-RJ. Guia 237 da 22ª DP, de 1999.
Ascite quilosa e pseudocisto de pâncreas também têm
sido descritos. Além disso, roturas do fígado e do baço, de-
pois das afecções encefálicas, são os achados mais comuns de
causa de morte.
Necro psia realizada no Instituto Médico-legal Afrânio
Peixoto, no Rio de Janeiro, em criança de 4 anos, morta em
consequência de m aus-tratos, revelou a presença de úlcera
gástrica, com base hiperemiada, provavelmente devida ao
estresse a que foi submetida.
Com o reforço para o diagnóstico de m aus-tratos, o pe-
rito po de lançar mão de exames laboratoriais. Contagem de
plaquetas, tempo de sangramento, atividade de pro trombina
e tromboplastina, prova do laço, todos normais servirão para
corroborar a origem traumática de equimoses e hematom as
observados no exame direto.
A perícia para averiguar a privação de alimentos deve
ser baseada na comparação de gráficos e mapas de desen-
volvimento estatopo nderal com as medidas (peso e estatura) Figura 31.9. Múltiplas escoriações de aspectos variados e recentes
verificadas. Escassez de tecido subcutâneo levando a ema- na região carotidiana direita, em criança do sexo feminino, subnutrida,
necropsiada no IMLAP-RJ. Guia 239 da 32ª DP, de 1999.
grecimento facial, costelas salientes, nádegas em agrecidas,
"pele sobr ando" e extremidades esguias ajudam a firmar o
diagnóstico. O desaparecimento da gordura subcutânea faz
com que sofram com o frio; há uma distermia, com perda da Hemograma completo, velocidade de hemossedimenta-
m ono termia fisiológica, há labilidade da capacidade termor- ção, exames de urina (EAS e/ou urinocultura), parasitoló-
reguladora e hipotermia basal constante, fazendo com que gico de fezes, pH das fezes, pesquisa de sangue o culto nas
procurem ficar cobertos e encolhidos. Por outro lado, existe fezes, coprocultura, teste tuberculínico e dosagem de eletró-
pouca tolerância às temperaturas elevadas. Edema, derma- litos são alguns dos recursos para se estabelecer o diagnósti-
toses e alterações dos cabelos, que se mostram descolo ridos co diferencial entre privação alimentar, infecção crônica ou
e quebradiços, também são achados nesses quadros. A baixa doença consuntiva.
vitalidade, que nos casos de desnutrição grave pode chegar à A presença de infestações de parasitas e/ou doenças der-
apatia m ental (a única reação costuma ser o choro, em caso matológicas, como já dissemos, reforça a hipótese de negli-
de d or), com desinteresse pelo ambiente, é outra das carac- gência, quando associadas à subnutrição.
terísticas das crianças privadas de alimentos (quantitativa Os casos de abuso sexual nem sempre chegam ao perito-
e/ou qualitativamente). Os peq uenos podem permanecer, legista logo após terem ocorrido. Po r vezes, são práticas já
por horas, no mesmo lugar ou na posição (fetal, frequente- de longa data, cujos vestígios podem não se apresentar de
m ente) em que fo rem deixados. Casos extrem os podem levar maneira precisa.
ao m arasmo, ao kwashiorkor (desnutrição pluricarencial gra- O exame (de conjunção carnal) para verificação da inte-
ve), o u mesmo à morte (Fig. 31.9). gridade himenal deverá sempre ser realizado. Roturas hime-
CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada • 705

nais, recentes ou antigas, serão descritas com detalhes. Nos fissio nais impressio náveis e/ou inexperientes, pela sua loca-
casos suspeitos de estupro, é importante a discussão das ca- lização, passar como decorrentes de atos libidinosos. Fezes
racterísticas e conformação anatómicas da pericianda, visan- endurecidas, em crianças que sofram de constipação intesti-
do a esclarecer à autoridade requisitante sobre a possibilidade, nal, podem determinar soluções de continuidade da mucosa
ou não, de consumação da conjunção carnal com indivíduo anal, as quais devem ser examinadas com muita atenção. Er-
adulto, uma vez que a rotura do hímen muitas vezes pode ser ros de diagnóstico devem ser evitados a to do custo, uma vez
devida à manipulação da genitália por parte do agressor. que poderão causar danos irrepa ráveis (Fig. 31.11 ).
A colheita de m aterial, em cavidade vaginal, para a pes- As vulvovaginites, relativamente comuns na infância,
quisa de espermatozoides e fosfatase ácida prostática deverá devem ser investigadas, a fim de afastar a possibilidade de
ser, sempre que possível, efetuada (obrigatória, se nas pri- serem d evidas a doenças sexualmente transmissíveis.
meiras 72 horas após o fato alegado). A possibilidade de gra- Nos casos em que houver a suspeita de administração de
videz será investigada em meninas púberes. drogas e/ou venenos, o exame toxicológico se impõe. O exa-
A presença de equimoses, escoriações ou feridas em ge- me necroscópico, além da macrosco pia e da pesquisa inde-
nitália, períneo ou zonas erógenas aponta na direção dos terminada de tóxicos (sempre que houver uma suspeita so-
atos libidinosos, diversos da conjunção carnal (Fig. 31.10) . A bre a substância utilizad a, há que ser mencionada quando da
identificação de tais atos, pelo simples exame médico-legal, solicitação do exame), deverá ser complementado pelo envio
constitui, por vezes, tarefa de difícil conclusão, principal- d e fragm entos de vísceras para exame anatomopatológico.
mente se a ocorrência não for recente, o que impossibilita
a verificação dos vestígios que tais práticas possam deixar
e impossibilita a colheita d e m aterial para pesquisa de es-
permatozoides e fosfatase ácida prostática. H á, ainda, que se
levar em consideração que grande parte dos chamados atos
libidinosos não deixam rastro.
A colheita de m aterial (pesquisa de espermatozoides e/ou
fosfatase ácida prostática) também deverá ser realizada nas
cavidades anal e oral, sempre que a situação exigir.
Detectada a presença de esperma, e nos centros onde
houver acesso a esse recurso, o exame de DNA pode auxiliar
no esclarecimento de casos suspeitos. Sua realização torna-se
obrigatória, na atualidade, para se imputar a prática do crime.
Outro fator que deve ser levado em consideração pelos
peritos-legistas e mesm o pelos pediatras que venham a aten-
der os meno res em hospitais, clínicas ou até em seus consul-
tórios particulares são as afecções que cursam com prurido
intenso, tais como vulvovaginites inespecíficas, verminoses, Figura 31.11 . Formação tumoral, com aspecto sanguinolento, locali-
escabiose e o utras, fazendo com que a própria criança deter- zada no introito vaginal, em criança examinada no IMLAP-RJ com sus-
mine o surgimento d e lesões que podem, aos olhos de pro- peita de abuso sexual. Hímen íntegro. RO n2 000837/009/99.

Figura 31.12. Empalamento em "vítima de queda" de laje. Não havia


quaisquer outras lesões de etiologia violenta nos demais segmentos
Figura 31.1 O. Equimose violácea localizada na metade direita da corpóreos. Necropsia realizada em menor do sexo masculino, no IMLAP-
região vulvar, em criança necropsiada no IML.AP-RJ. Guia 239 da 32ª DP, RJ. Guia 20 da 20ª DP, de 1998. A seta assinala ponta de pedaço de
de 1999. madeira de formato cilíndrico que penetrou até a cavidade torácica.
706 • CAPITULO 31 Síndrome da Criança Espancada

Diante de crianças sobre as quais se formule a hipótese 13. Ferreira AL. Acompanhamento de crianças vítimas de violência:
de abuso emocional, o encaminhamento para avaliação psi- desafios para o pediatra. Jornal de Pedia tr ia; 2005. 81(5)Supl.:Sl73-
Sl 80.
quiátrica é fundamental. Retraimento, agressividade, atitu-
14. Kempe CH. Pediatric Implications of the Battered Baby Syndrome.
d e dispersiva, rendimento escolar abaixo da média e baixa Arch Dis Child; 1971. 46:28.
autoestima são alguns dos tipos de alteração de comporta- 15. Krynsky S. Considerações gerais sobre a "Criança Ma ltratada". A
mento que podem chamar aten ção de que algo não vai bem Criança Maltratada. São Paulo: Almed; 1985.
com elas. 16. Lesnik-Oberstein: O Abuso Emocional da Criança. A Criança Mal-
tratada. São Paulo: Almed; 1985.
Nos casos de negligência de segurança ou de assistência 17. Levisky, David L. A Criança Espancada e a Criança Negligenciada.
m édica, quando se fizer necessário, a perícia m édico-legal Pediatria Básica (Alcântara P, Marcondes E.), 22 vol., 6ª ed. São Pau-
deverá atender à especificidade d e cada uma (Fig. 31.12). lo: Editora Sarvier; 1978.
18. Lippi JRS. Maltrato: Um Grave Problema Humano. A Criança Mal-
tratada. São Paulo: Almed; 1985.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 19. Marcovich J. A Criança Maltratada, Capítu lo 3. São Paulo: Almed;
1985.
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toria da Editora Saraiva, 29'' ed., São Paulo; 2002. more: The Williams & Wilkins Com pany; 1973.
11. Delmanto C. Código Penal Comentado - 3' edição atualizada e am- 31. Va nrell JP. Maus-Tratos na Infà ncia - Cérebro & Mente; n2 4, dez.
pliada por Roberto Dei manto. Rio de Janeiro: Editora Renovar; 1991. 1997/fev. 1998. Disponível na internet em: http://www.cerebro-
12. Delmanto C, Delmanto R, Delmanto Jr. Retal. Código Penal Co- mente.org.br/ hom e.htm. Acesso em agosto de 2013.
m entado, 6'1 ed. atualizada e a mpliada. Rio de Janeiro: Editora Re- 32. Zanga JR. Emergências Pediátricas, !' ed. em português. Rio de Ja-
novar; 2002 . neiro: Interlivros; 1988.
Hygino de C. Hercules

Poucos temas em Medicina Legal são tão permeados por conter os instintos no sentido de impedir que um indivíduo
noções de Direito quanto o estudo da imputabilidade penal e invada o espaço que abriga os direitos de seus semelhantes.
a consequente responsabilidade. Ao elaborar um laudo para As normas morais é que tornam possível a vida em socieda-
o esclarecimento da justiça criminal, o psiquiatra precisa, de. A violação dessas normas faz com que o grupo rejeite o
mais do que outros peritos, entender a que o legislador se rebelde. Para o indivíduo médio, isso já é suficiente para a
refere quando exige, para a aplicação da pena, que o acusado moderação da conduta. Contudo, não é possível deixar ao
possua condições de imputabilidade. Ou seja, é preciso que o arbítrio individual a obediência às normas morais. A simples
psiquiatra forense saiba exatamente a dimensão de sua tarefa rejeição social, para certas pessoas, é insuficiente para imple-
e que tenha o embasamento jurídico-penal necessário para mentar a aceitação e a prática dos princípios da moral. Por
atender àquilo que dele esperam os julgadores. Excelentes isso, há necessidade de uma força maior que garanta a con-
psiquiatras clínicos podem não atender a essa expectativa duta adequada das pessoas. Tal força provém de um poder
quando solicitados a colaborar com a Justiça justamente por cristalizado no Estado. Dele provêm normas de conteúdo se-
lhes faltar o pleno entendimento das informações necessá- melhante, mas que carecem de aceitação voluntária pelos ci-
rias à aplicação das normas penais. Por essa razão, e pelo fato dadãos. São as normas jurídicas. Estas constituem comandos
de ser este livro destinado a profissionais não especializados, imperativos, que devem ser obedecidos, sob pena de advir
iniciamos o presente capítulo pelo esclarecimento da exata ao infrator uma punição mais severa. No dizer de Garcia 1, "a
posição da perícia psiquiátrica no processo penal. moral postula a norma social, o direito a assegura".
Os atos humanos, em qualquer campo de atividade, são
praticados de acordo com a lei, ou contra o que ela determi-
• BASES JURÍDICAS na. Não há meio-termo possível. Ao julgar uma causa, um
juiz não pode concluir por sentença que afirme ser mais ou
Conforme esclarecemos no Capítulo l , a vida em socie- menos legal a pretensão de uma das partes. Daí surge a no-
dade obriga o homem a se submeter a normas de conduta de ção do lícito e do ilícito. O campo do lícito são as pretensões
modo a impedir que a convivência social se torne caótica. A garantidas pelo direito; o do ilícito, as responsabilidades por
desobediência às normas, se generalizada, tornaria impos- ele sancionadas2•
sível a coexistência das pessoas no seio da sociedade, pois, a Como as normas jurídicas regulam a maior parte das re-
cada momento, os conflitos de interesses levariam a disputas lações humanas, algumas abrangem comportamentos que
resolvidas somente por meios violentos. A educação é que interessam a todo o corpo social, por suas repercussões, e
incute na personalidade de cada cidadão, ao longo da vida, o outras dizem respeito principalmente a aspectos da vida pri-
que lhe é permitido fazer e o que não deve. A noção do certo vada de cada indivíduo. Desse modo, o Direito costuma ser
e do errado acaba permeando e balizando sua conduta. Os dividido em público e privado. Faz parte do direito público
comandos sociais são, portanto, de natureza ética e visam a o Direito Penal; do direito privado, o Direito Civil. A viola-

709
710 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

ção de uma norma penal constitui um ilícito penal; a de uma que a lei penal proíbe não quer dizer, necessariamente, que
norma civil, um ilícito civil. Qualquer que seja, porém , o tipo a pessoa vá ter que cumprir uma pena. Há ocasiões em que a
de norma violada, o Estado submete o infrator a uma sanção conduta típica, portanto prevista na lei penal, não constitui
pro porcional à transgressão da ordem jurídica, pela aplica- crime. É quando as circunstâncias em que se deu a prática do
ção de uma punição. Quando o ilícito é civil, a punição é fato típico são tais que o direito valida a conduta como legí-
mais branda e consiste em m edidas como a perda de direitos, tima. É quando estão presentes as chamadas descriminantes,
pagamento de indenizações, nulidade de contratos, repara- previstas no próprio Código Penal. Em tais situações, a con-
ção de danos etc. Mas se a norma violada é de direito penal, duta que era antijurídica passa a ser lícita. As circunstâncias
a infração é mais grave, pois ameaça a sociedade como um descriminantes, que tornam permitida pela lei a conduta tí-
todo, o que provoca uma reação mais enérgica do aparelho pica, são chamadas de causas de exclusão da ilicitude, ou da
represso r através das penas de reclusão, deten ção ou prisão antijurídicidade. São elas: estado de necessidade, legítima de-
simples do infrator. fesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular
As no rmas penais estão capituladas principalmente no de direito (art. 23 do CP) . Quando presentes, qualquer uma
Código Penal e na Lei das Contravenções Penais. Mas sua dessas condições valida a conduta, e, como descriminantes
abrangência aumenta na medida em que são promulgadas que são, fazem com que inexista crime por ocasião da prática
leis complementares. Por exemplo, a Lei dos Transplantes, do fato típico pelo agente.
de 1997, criou novas normas penais, considerando crime O próprio Código Penal esclarece o que constitui o estado
certas condutas como, por exemplo, a venda de órgãos para de necessidade e a legítima defesa 5:
transplantes.
Para que alguém seja privado da liberdade por ter co- Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem
metido um ilícito penal é preciso que se abra um processo pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou
em que serão esclarecidos vários aspectos, desde a autoria por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito
até à culpabilidade. Para entender o papel e a contribuição próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não
da psiquiatria forense no curso do processo penal, temos era razoável exigir-se.
que analisar, pelo m enos superficialmente, esses aspectos. § IQNão pode alegar estado de necessidade quem tinha
A descrição feita a seguir não tem a pretensão de esclarecer o dever legal de enfren tar o perigo.
conceitos debatidos pelas diversas correntes de pensamento § 2QEmbora seja razoável exigir-se o sacrifício do di-
jurídico penal. Visa apenas a ajudar leigos em direito penal a reito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois
entender o valor da perícia psiquiátrica. terços.
Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando
Tipicidade moderadamen te dos m eios necessários, repele injusta agres-
são, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
O primeiro elemento para que alguém venha a cumprir
uma pena é que a conduta incriminada esteja previamente O estado de necessidade pressupõe um conflito entre titu-
descrita na lei penal. É o princípio da anterioridade da lei, lares de interesses lícitos, legítimos, em que um interesse pode
expresso no artigo primeiro do Código Penal: não há crime perecer licitam ente para que outro sobreviva6 • São exemplos
sem lei prévia que o defina 3• A ação ou omissão do agente tem o furto de comida por quem está esfomeado e não tem como
que se ajustar ao que a lei descreve com o crime, do contrário obter alimento; a morte de um animal selvagem que ataca o
a conduta não é punível, é atípica4 • Por exemplo, como vimos matador; o aborto para salvar a vida da mãe; a morte de um
no Capítulo 27, a prática de atos libidinosos com pessoas me- outro náufrago para se apoderar da boia; ou a invasão de do-
nores de 14 anos configura o crime de estupro contra vulnerá- micílio para fugir de tempestade. Em geral, aceita-se o estado
vel, mas o delito não está caracterizado se a vítima tiver idade de necessidade quando o bem destruído era menos valioso
acima desse limite legal. A tipicidade implica estarem presen- que o defendido. Hungria 7 aponta como requisitos dessa des-
tes na conduta todos os elementos do crime como indicados criminante: 1) perigo atual não provocado pelo agente; 2) sal-
na norma penal. Só quem comete o fato típico - a conduta vamento de direito próprio do agente ou de outrem; 3) im-
prevista pela lei penal - tem a possibilidade de cumprir uma possibilidade de evitar o perigo po r outro meio; 4) razoável
pena. Fo ra daquela faixa etária da vítima, tal ação constituiria inexigibilidade de sacrifício do direito ameaçado.
um fato atípico por faltar um dos elementos previstos nades- A legítima defesa nasce da impossibilidade de o Estado
crição da conduta delituosa que consta das novas disposições proteger todos os bens tutelados, a toda hora e em todos os
relativas aos crimes contra a dignidade sexual. lugares 7• Desse modo, o ordenam ento jurídico permite que o
cidadão comum tome o lugar protetor exercido pelo Estado,
Antijuridicidade repelindo o agressor, quando algum direito seu, o u de tercei-
ro, é injustamente ameaçado. Na legítima defesa, o agressor
A prática d o fato típico contraria a lei, que proíbe o indi- é sempre um ser humano. O tipo de agressão geralmente é
víduo de praticá-lo. Assim, presume-se que a ação o u omis- de ordem física, visando à vida ou à integridade corporal do
são tenha sido antijurídica. Mas o fato de se agir do modo agredido. Mas também pode ser de outra natureza, como no
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 711

caso do furto. Por exemplo, a possível vítima de um pun- ação, um ato condenável, uma transgressão. A consequência
guista torce-lhe o braço para que devolva a carteira surru- desse fato, ou seja, a existência de um dano para alguém ou
piada. A reação que constitui a legítima defesa tem que ser para a sociedade como um todo, é que justifica a reprovação
exercida durante a agressão ou na iminência dela. Não é le- da conduta. Mas esse resultado lesivo só pode ser atribuído
gítima defesa o homicídio preventivo do inimigo que jurou a quem lhe deu causa se o agente pudesse ter agido de modo
nos matar. Só é aceita se ele estiver na iminência de desferir diverso, quer dizer, dentro da expectativa social.
o ataque fatal. Hungria7 indica como requisitos da legítima O ser humano tem a capacidade de perceber, ante um
defesa: 1) agressão atual iminente e injusta; 2) preservação fato concreto, intuitivamente, o modo correto de agir. Tal ca-
de um direito próprio ou de outrem; 3) emprego moderado pacidade desenvolve-se ao longo da vida sob a influência dos
dos meios necessários à defesa. Injusta é a agressão não au- costumes sociais. Torna-se uma espécie de sexto sentido, o
torizada pelo Direito6 • Desse modo, a reação à prisão por fla- senso moral'. O homem normal tem o senso moral. Presen-
grante delito não é considerada legítima. O mesmo se diga te esse senso moral, a censura à ação decorre justamente da
da resistência a um mandado de reintegração de posse por opção do agente pela conduta transgressora quando tinha
parte de invasores. a possibilidade de agir de acordo com as normas. A culpa-
O estrito cumprimento do dever legal abriga as ações, bilidade corresponde a essa reprovabilidade da conduta con-
principalmente, de funcionários públicos, como policiais, trária à norma. É ela que justifica a imposição da pena ao
oficiais de justiça ou fiscais sanitários na execução de suas criminoso. Mas é preciso não confundir culpabilidade com
funções. Pelo fato de a lei falar em dever legal, não estão co- o significado jurídico de culpa no direito penal. Essa existe
bertas as ações de cunho simplesmente moral ou religioso. O quando o agente produz o fato típico por agir com imperí-
guarda que tem que usar a força para prender e conduzir à cia, imprudência ou negligência, sem desejar a ocorrência do
delegacia policial um ladrão age dentro da lei. Mas o padre resultado descrito pela norma penal.
que invade um domicílio para prestar a extrema-unção a um Para alguns autores, a culpabilidade depende de três ele-
moribundo não goza dessa descriminante6 • O sentinela que mentos que são a imputabilidade, o liame psicológico (dolo
atira em um veículo estranho que força a entrada no quar- ou culpa) e a exigibilidade de conduta em conformidade com
tel cumpre seu dever legal, qualquer que seja o resultado do as normas8• Outros retiram o dolo e a culpa do âmbito da cul-
disparo. Do mesmo modo, a violação do segredo profissional pabilidade para integrá-los na conduta típica, argumentando
pelo médico ao comunicar ao posto de saúde uma doença de que a decisão de contrariar as normas e a ação de transgredi-
notificação compulsória. las fazem parte da estrutura do ato criminoso. Assim, para
O exercício regular de direito inclui tanto normas de direi- esses, a culpabilidade seria apenas a reprovabilidade da con-
to penal como extra penal. O direito a ser exercido pode estar duta típica e antijurídica. Desse modo, seus elementos consti-
descrito em normas penais ou civis. Mas é preciso que o seja tutivos seriam a imputabilidade, a possibilidade de conheci-
na forma da lei. Assim, os pais podem constranger seus fi- mento da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa6 •
lhos para educá-los, podendo até impedir que saiam de casa Acreditamos que discutir as teorias da culpabilidade em
por algum tempo. Mas não podem chegar às raias dos maus- um texto de Medicina Legal não é apropriado. Basta situá-la
tratos, o que constituiria abuso do pátrio poder. Entre as na sistematização do Direito Penal. Além do mais, seria mui-
normas penais que permitem a prática de condutas descritas ta pretensão para quem não é jurista aprofundar a discussão.
como típicas, podemos citar o aborto feito pela mulheres- O que importa, do exposto, é que, seja qual for a escola penal,
tuprada (inciso II do art. 128), a intervenção médica contra a imputabilidade é considerada um dos elementos da culpa-
a vontade do paciente em casos de iminente perigo de vida bilidade e, consequentemente, da punibilidade.
(inciso 1do §3!1. do art. 146) e a coação para impedir suicídio
(inciso II do § 3º do mesmo artigo). Fora da legislação pe-
nal, podemos citar a venda de bens penhorados para quitar • IMPUTABILIDADE PENAL
dívidas, a intervenção cirúrgica consentida pelo paciente e o
transporte de substâncias capazes de causar dependência por Como discutimos nas seções anteriores, para que al-
parte de m édicos, desde que na quantidade estabelecida guém seja condenado a cumprir uma pena após um pro-
por norma sanitária. cesso penal, é necessário que sua conduta tenha sido típica,
Presente qualquer das excludentes da antijuridicidade, a antijurídica, e que tenha sido possível caracterizar a sua cul-
prática do fato típico não constitui crime. pabilidade. Do ponto de vista médico -legal, a imputabilida-
de é o elemento mais importante da culpabilidade. Segundo
Culpabilidade Aníbal Bruno 8, a imputabilidade "é o conjunto de condições
pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridica-
Praticado o fato típico e ausentes as condições descrimi- mente imputada a prática de um fato punível". Na concep-
nantes antes descritas, houve o crime. Mas o agente só será ção mais antiga, a imputabilidade decorreria da liberdade de
forçado a cumprir uma pena se for demonstrada a sua culpa- o agente escolher entre a ação boa e a má. Sendo livre para
bilidade. De acordo com Mirabete6, as noções de culpa e de fazer a opção e escolhendo o mau caminho, justificar-se-ia
culpado indicam que uma pessoa é responsável por uma má a punição. O Direito não tem que se ocupar com as origens
712 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

da vontade, se ela é livre realmente ou se existe um deter- mesmo sentido. Dizer-se que um criminoso é inimputável
minismo na decisão que o indivíduo toma. O que interessa ou irresponsável acaba dando no mesmo: não irá cumprir
é a manifestação visível da vontade no agir do indivíduo, pena restritiva da liberdade. Mas não é o que pensa a maioria
qualquer que seja sua origem. dos autores. Em geral, admite-se que a imputabilidade é um
Modernamente, a imputabilidade está associada à capa- pré-requisito da responsabilidade penal. Para ser declarado
cidade de entender os fatos, as circunstâncias, e de direcionar responsável por um ato ilícito, é preciso que o agente seja im-
a ação de acordo com esse entendimento. Tanto a capacidade putável8. Assim, todo indivíduo responsável é imputável. Mas
de entendimento como a de autodeterminação integram a não se pode dizer que todo indivíduo imputável é responsá-
per sonalidade do indivíduo imputável. São atributos das vel, no sentido de ser culpado por um delito. Isso pela simples
pessoas maduras e mentalmente sadias. SegundoLutz9 , a im- razão de que não pode ser declarado responsável o indivíduo
putabilidade, de acordo com Von Liszt, vem a ser a capaci- imputável que ainda não delinquiu. Fávero 10 cita a analogia
dade de o sujeito mentalmente desenvolvido e m entalmente de Ortolan. A imputabilidade seria como o crédito nas tran-
são receber a imputação de um fato típico. Na verdade, o sações financeiras. Só pode contrair um empréstimo aquele
termo "imputabilidade': no seu sentido vernáculo, significa que dispõe de crédito. Mas, enquanto não assina o contrato
a qualidade daquilo que pode ser imputado, ou seja, aquilo no banco e recebe o empréstimo, não pode ser considerado
que é imputável. Mas o uso fez com que o sentido se deslo- devedor. Do m esmo modo, o indivíduo imputável só passa
casse daquilo que pode ser imputado para aquele capaz de a ser responsável criminalmente quando cometer um delito.
receber a imputação.
O indivíduo imputável é aquele que tem a capacidade de
entendimento preservada, quer dizer, que tem a possibilidade Critérios de Avaliação da Imputabilidade
de perceber, julgar os valores em jogo na situação com que Conceituações à parte, o que interessa aos julgadores é
se defronta, e de decidir por uma das alternativas que se lhe saber se o autor do ilícito penal sabia o que estava fazendo e
apresentam para agir ou deixar de agir. É o momento em
se tinha o autogoverno no momento da ação ou da omissão.
que atua a razão, o momento intelectual da ação. Distúrbios
Desse modo, cabe ao psiquiatra forense esclarecer à Justiça.
da consciência, do pensamento, da atenção, da memória, da
Mas, para isso, ele tem que saber como o sistema penal do
percepção e da inteligência podem, dependendo de sua na-
seu país admite a imputabilidade. Ao enunciar as no rmas
tureza e gravidade, fazer com que a decisão fuja ao que era
gerais, a legislação penal de cada Estado estabelece o crité-
de se esperar normal ao indivíduo. E quando se fala, aqui, em
rio no rteador da verificação da inimputabilidade. Conforme
normalidade se está referindo ao homem m édio. As normas
seja enfatizada a gravidade do distúrbio mental presente no
existem para regular o comportamento do homem comum.
agente ao cometer o delito, ou o grau da alteração cognitiva
Não seria razoável criar regras tão rigorosas de m odo a só
ou volitiva qualquer que fosse a sua causa, podemos reco -
poderem ser cumpridas por pessoas excepcionalmente dili-
nhecer três critérios para a avaliação da imputabilidade pe-
gentes o u de coragem que chegue às raias do heroísmo 7• A
nal: biológico, psicológico e biopsicológico ou misto.
diligência muito extremada está no limite d o comportam en-
to obsessivo. Normal, do ponto de vista biológico, é o mais
Critério Biológico
comum, mas também o mais apto a sobreviver. Em termos
sociais, normal é o indivíduo que vive em comunidade sem Para que o agente seja considerado inimputável, é sufi -
criar conflitos desnecessários, justamente por seguir as re- ciente que o psiquiatra, depois de examiná-lo, diagnostique
gras gerais de conduta. uma doença m ental grave ou grau acentuado de comprome-
Por outro lado, pessoas capazes de entender o certo e o timento intelectual. Estabelecido o diagnóstico, ele é consi-
errado e de avaliar os valores éticos e os aspectos jurídicos da derado, a priori, inca paz de responder por seus atos, de modo
ação podem não proceder de acordo com tal entendimento que não se lhe aplicará a sanção penal. Não sendo grave o
por causa de distúrbios na área da vontade. É o momento distúrbio mental, nem intenso o grau de oligofrenia, poderá
volitivo d o agir. A vontade manifesta-se somente após a es- ser julgado semi-imputável.
colha feita pela razão entre as possíveis opções7 • Tomada a Esse critério é muito radical, po is transfere para o psi-
decisão po r agir o u se omitir, o curso da ação pode ser mo- quiatra forense a tarefa de julgar, deixando pouca margem
dificado por distúrbios na afetividade, o u na capacidade de aos magistrados para uma avaliação ética e jurídica da con-
atuar ou de se conter. As compulsões podem vencer o dever duta. A abolição da responsabilidade penal fica condicio na-
de se omitir, como nos cleptomaníacos, e o estupor, o de da ao diagnóstico, independendo do tipo de delito praticado.
agir, com o na catatonia. Não se exige uma relação causal entre o distúrbio do agente
e sua conduta antijurídica. Além do mais, existem doenças
Imputabilidade x Responsabilidade mentais que evoluem por crises, tal com o é o caso da epi-
lepsia, ou por surtos, como na psicose maníaco-depressiva.
Hungria7 considera perda de tempo querer distinguir Fora dos períodos de atividade da doença, o indivíduo tem
o alcance jurídico desses dois termos. Acha que é uma dis- capacidade de entendimento da ilicitude e de autocontrole, o
cussão bizantina. Na verdade, usa-se um ou outro termo no que torna inadequado considerá-lo inimputável.
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 713

Critério Psicológico • LIMITES E MODIFICADORES DA


É wn critério que radicaliza em sentido contrário ao que IMPUTABILIDADE PENAL
faz o biológico. Aqui, o papel do psiquiatra fica restrito a escla-
recer se o agente, à época do delito, era capaz de ter o entend i- Há uma série de condições, relacionadas ao meio am-
mento da ilicitude ou de se determinar de acordo com esse en- biente ou ao próprio agente que são capazes de modificar o
tendimento, independentemente de ser, ou não, mentalmente seu grau de imputabilidade. Algumas a suprimem completa-
são e desenvolvido. O peso da decisão quanto à responsabili- mente, outras a diminuem. Serão analisadas apenas as mais
dade penal do agente recai sobre o julgador, o que dá margem importantes.
a exageros na valorização das circunstâncias do fato. Por esse
critério, fica aberto o caminho para se considerar irresponsá- Ambientais
vel o agente sob a influência de estados emocionais. Voltar-se-
ia à antiga "privação dos sentidos" do Código de 1890. Podemos estudar como condições ambientais capazes de
alterar a imputabilidade do agente tanto o meio em que o
Critério Biopsicológico ou Misto indivíduo se desenvolveu quanto as situações esporádicas de
É o fo rmulado no artigo 26 do atual Código Penal5. perturbação do ambiente em que se deu o fato.

Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença men-


Grau de Civilização
tal ou por desenvolvimento mental incompleto ou retar- Como já referido, a exposição do homem ao ambiente
dado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente cultural acaba por lhe incutir os valores consagrados pela
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determi- sociedade sob a forma de normas morais de conduta. No
nar-se de acordo com esse entendimento. caso dos silvícolas, os valores morais vigentes no se u mun-
Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois do selvagem d iferem profundamente daqueles do homem
terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde men- civilizado. Por essa razão, não se pode exigir do selvagem
tal ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que tenha uma conduta ajustada às normas da sociedade
não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do civilizada. Sua concepção do mundo alcança apenas o que
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. a sua cultura informa. Isso, porém, não significa que eles se-
jam intelectualmente inferiores. Apenas seu nível de infor-
Como é possível perceber da leitura desse artigo, estão mação é insuficiente para qu e ajam de modo semelhante ao
presentes elementos dos dois critérios já analisados. Ao se homem civilizado. Por isso, considera-se que os índios têm
referir à doença mental e a desenvolvimento incompleto o desenvolvimento mental incompleto. A nossa Constitu ição
ou retardado, o legislador reconhece a necessidade de um reconhece a organização social e os costumes dos índios (art.
diagnóstico psiqu iátrico para justificar a inimputabilidade, 23 1) 11 • E o Estatuto do Índio lhes garante a tutela do Estado
aceitando a base do critério biológico. Mas também acolhe (Lei 6.001/73) 12 •
o fundamento do critério psicológico ao estabelecer que, ao Ao cometer um ato previsto como ilícito pelo nosso sis-
tempo da ação ou da omissão, o agente teria que ser incapaz tema jurídico, o silvícola não pode ser penalizado justamente
de reconhecer a ilicitude da sua conduta. E, no caso de ter por não ter tido a oportunidade de conhecer as normas ci-
essa capacidade, ainda teria que ter autocontrole suficiente vilizadas. Mas, dentro de seu mundo cultural, o conceito de
para agir de acordo com aquele entendimento da ilicitude. imputabilidade de Von Liszt é válido também para o índio,
Não basta, para que seja imputável, que ele entenda; é preci- desde que consideremos seus valores morais e as penas que
so que tenha condições mentais de se determinar de acordo a sua comunidade impõe para os que violem as suas regras
com esse en tendimento. Mas o mais importante no en un- d e conduta. Contudo, de acordo com o nosso Código Penal,
ciado do artigo 26 é que se torna necessária uma relação de ele tem que ser considerado mentalmente não desenvolvido
causa e efeito entre o transtorno mental e a incapacidade de e enquadrado no artigo 26. Assim, quando se tratar de um
entendimento da ilicitude ou a falta de autocontrole. Assim, índio que teve pouco ou nenhum contato co m o homem
indivíduos com doenças manifestadas episodicamente só civilizado, terá que ser totalmente inimputável. À medida
seri am considerados inimputáveis se a co nduta antijurídica que for tomando conhecimento das normas de vida civili-
fosse praticada na vigência de uma crise. E essa crise teria zada, sua capacidade de entendimento quanto à ilicitude da
que ser de tal ordem que gerasse aquela conduta. Fora de um conduta irá aumentando. Daí concluir-se que pode chegar a
surto psicótico, o doente mental tem a possibilidade de en- ser semi-imputável, e mesmo totalmente imputável. Índios
tender o caráter ilícito do ato cometido. como o cacique caiapó Paulinho Paiacan, envolvido em um
A cor reta aplicação do critério biopsicológico requer que caso de estupro em 1992, que tem conhecimento suficiente
se avalie: 1) a existência de um transtorno mental; 2) a capa- das normas de nossa sociedade a ponto de liderar transa-
cidade de entendimento; 3) a capacidade de determinação; ções de venda de madeira da área de sua tribo, e enriquecer,
4 ) o nexo de causalidade. Voltaremos ao tema na seção refe - devem ser considerados mentalmente desenvolvidos e, por
rente à perícia. conseguinte, imputáveis' 3•
714 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

Multidões Biológicos
É um fato observado com frequência o chamado estou- Serão abordados fatores presentes em qualquer pessoa
ro da boiada. A manada vem calmamente em direção ao e, portanto, normais; alterações do estado mental habitual,
pasto, tangida pelo boiadeiro. De repente, um estampido, mas que não chegam a ser patológicos e fatores associados a
um trovão, a queda de um galho de árvore morta rompe transtornos mentais.
aquela rotina. Um animal se assusta e, bruscamente, põe-se
a correr. Ou está o gado confinado dentro do cercado quan- Idade
do uma rês força a porteira e consegue fugir. Em ambas as
situações, os outros animais da manada, contagiados pela Nosso Código Penal5 define, no artigo 27, como inimpu-
subitaneidade da ação, partem em pânico, em desabalada táveis os menores de 18 anos. O mesmo consta no artigo 228
carreira. É como se faltasse apenas uma centelha para a da Constituição 11 •
explosão.
Apesar de dotado de inteligência e discernimento, o ho- Art. 27. Os menores de 18 anos são pena/mente inim-
mem não está imune a esse fenômeno. Os psicólogos sabem putáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legis-
que as inibições individuais diminuem de intensidade quando lação especial.
o sujeito está em grupo. Num teatro, quando alguém se levan- Art. 228. São pena/mente inimputáveis os menores de
ta e aplaude, entusiasticamente, o artista, logo é seguido pelos 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial.
demais espectadores. O mesmo se diga das vaias. Em estádios
de futebol, onde as paixões clubísticas se manifestam vigo- A definição legal da incapacidade jurídica do menor de
rosamente, gestos e palavras obscenas são praticados de for- 18 anos na verdade caracteriza uma exceção ao modo biopsi-
ma abusiva, bastando haver discordância com relação a uma cológico de avaliação adotado pelo Código Penal. O critério,
jogada ou marcação do juiz. Quem está acostumado a dar aqui, é puramente biológico. O legislador declara a imaturi-
aulas para turmas de tamanho diverso sabe que a ousadia do dade mental do homem antes dos 18 anos mais por um cri-
aluno rebelde é maior nas turmas grandes do que nas peque- tério de política criminal do que por um rigor científico 7• É
nas. Tudo isso reflete a diluição da responsabilidade e explica uma tomada de posição do Estado que parece querer expiar
a prática de atos contrários às normas por parte de pessoas sua culpa por ter deixado que os menores delinquentes ficas-
pacatas e respeitadoras dos valores sociais. Ocorre nas mul- sem desamparados nas ruas, sujeitos a todo tipo de influên-
tidões enfurecidas tal qual no estouro da boiada. Os saques cias criminógenas. Desde a falta de comida para o corpo até
a estabelecimentos comerciais por ocasião de crises sociais, à escassez de afeto, o alimento da alma. Mesmo fugindo à
como em períodos de hiperinflação e de desemprego, são discussão sobre a preponderância dos fatores constitucionais
consumados por pessoas que, sozinhas, seriam incapazes de ou da amarga experiência de vida desses infelizes, tem-se
causar danos à propriedade alheia. Os linchamentos levam que admitir que, se houver educação e amparo à criança, a
indivíduos calmos e ordeiros a agredir a vítima de modo im- proporção delas que seguirá na contramão das normas será
piedoso. Sob a influência de multidões, a razão é subjugada significativamente menor.
pelas paixões irracionais. Discute-se, atualmente, em face do recrutamento cada vez
Nosso Código Penal5 aceita a redução da responsabilidade mais precoce dos menores abandonados para o exército do
das pessoas que agem em meio à multidão desvairada, mas tráfico, a redução da idade de 18 para 16 anos, já que, hoje, o
não trata do mesmo modo aquele que açulou a turba, o res- maior de 16 anos tem capacidade de votar e ajudar a escolher
ponsável pelo estouro da boiada. No artigo 65, que trata das os representantes do povo no Congresso e o Presidente da Re-
atenuantes genéricas, encontra-se: pública. Há argumentos que apoiam a medida e outros que
a tornam inadequada à solução da delinquência juvenil. A
Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena: favor do rebaixamento do limite pode-se citar a facilidade de
informação através dos canais de televisão e da internet, que
III - ter o agente: acelera o amadurecimento psicológico dos menores, a par
da liberdade sexual conseguida pelos jovens, que chega a li-
e) cometido o crime sob a influência de multidão em tu- mites jamais imaginados pelas gerações precedentes. Consi-
multo, se não o provocou. derar inocente um menor de 17 anos que já é pai, ou mãe,
que já produz o suficiente para o seu próprio sustento, ou
Aqueles que forem presos em flagrante serão processados que faz parte do crime organizado, por vezes como chefe de
individualmente pelo ilícito praticado, mas a pena será redu- facções, é, no mínimo, ingenuidade. Por outro lado, a impo-
zida. Mas não se deve colocar na mesma condição a ação de sição de pena aos menores entre 16 e 18 anos, com certeza,
vândalos que se valem de manifestações legítimas de protes- não resolveria o problema, pois que levaria ao recrutamen-
to popular para depredar o patrimônio alheio como ocorreu to daqueles adolescentes com idade inferior ao novo limite
em várias passeatas ao longo do mês de junho de 2013 pelo para realizar as mesmas tarefas na organização criminosa.
Brasil afora. Além disso, onde seriam colocados os novos contingentes de
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 715

condenados, se nosso sistema carcerário já está superlotado? Sono, Sonambulismo e Hipnotismo


Urge que sejam encontradas soluções para o problema, mes-
Como o sono é uma forma de abolição da consciência,
mo que sejam em caráter excepcional, pois a sociedade bra-
importa, inicialmente, conceituá-la. Segundo Garcia', é o
sileira vive um momento excepcionalmente grave de rotura
conjunto de fenômenos psíquicos, afetivos ou intelectivos,
do tecido social e de insegurança. São numerosas as áreas
que permite ao indivíduo, em um dado momento, dar-se
onde o poder do Estado foi substituído pelo poder paralelo
conta de si e do meio em que se encontra. Assim, durante
da marginalidade, que, por definição, cria suas próprias leis.
o sono, somos incapazes de perceber as alterações do meio
A ousadia do crime organizado chega ao ponto de invadir
em que estamos e de interagir com elas. O desligamento dos
quartéis das forças armadas e conseguir roubar armamentos
canais de comunicação com o meio exterior faz com que
até então usados em combates convencionais de guerra.
estímulos de intensidade baixa não sejam percebidos, em-
bora haja excitação dos órgãos dos sentidos. O que ocorre
Sexo
é um bloqueio dos sinais, de modo que não chegam a um
A parte especial do Código PenaP caracteriza crimes que nível consciente. Mas o limiar dos estímulos suficientes para
são próprios do sexo feminino. O crime de infanticídio (art. acordar o indivíduo varia de um para outro. Dizemos que
123 do CP) só pode ser cometido pela própria mãe do recém- algumas pessoas têm o sono leve e outras, o sono pesado. Da
nascido. O mesmo se diga do autoaborto (art. 124 do CP). mesma forma, há os que adormecem e acordam com facili-
Há distúrbios peculiares ao sexo feminino relacionados dade, enquanto outros custam a pegar no sono e custam a
com os ciclos menstruais e com o climatério. Algumas mu- acordar. O despertar desses indivíduos é lento, prolongando-
lheres apresentam um quadro clínico conhecido como sín- se aquela fase de confusão entre o sono e a vigília.
drome de tensão pré-menstrual, caracterizado por retenção Em meados do século XX, pesquisadores demonstraram
de líquidos no organismo, levando a edema dos tornozelos, que há dois tipos de sono ao longo da noite. Um deles é mais
dor nas mamas e, o que vem ao caso, alterações psíquicas superficial e acompanhado de movimentação rápida dos
como irritabilidade, agressividade, dificuldade de concentra- olhos (REM-rapid gye movement); o outro é mais profundo
ção e depressão 14 • Sua incidência é maior em mulheres com e calmo. Atualmente, sabe-se que, durante o sono REM, a
mais de 40 anos, geralmente pouco antes da menopausa. Os atividade cerebral é semelhante à da vigília. Mas não leva
sintomas psíquicos podem estar relacionados a edema cere- à movimentação ativa do corpo que acompanhe o conteúdo
bral discreto, mas não se sabe exatamente sua patogenia. A dos sonhos na maioria das pessoas porque há uma inibição
influência hormonal é indiscutível, pois costuma repetir-se da liberação de neurotransmissores como a noradrenalina, a
nos ciclos menstruais sempre na semana que antecede a serotonina e a histamina. Na fase de sono calmo, a atividade
menstruação. Assim que vem o fluxo menstrual, há alívio cerebral reduz-se muito e permite a restauração neuronal 15 •
dos sintomas. Em alguns casos, em função da extrema irrita- O sono é tão importante para os animais, principalmente
bilidade e da agressividade, é possível aceitar diminuição da os mamíferos, que ratos impedidos de dormir definham e
capacidade de autocontrole quando da avaliação da imputa- morrem em cerca de 10 a 20 dias como se lhes fosse negada
bilidade em casos de lesão corporal ou vias de fato. a alimentação, embora estando bem alimentados' 5• O que
Quando as pessoas chegam à idade de transição entre parece governar a necessidade de sono das várias espécies de
a maturidade e a velhice, o organismo e as funções orgâni- mamíferos é o seu porte físico. Os animais pequenos preci-
cas e psíquicas são influenciados pela involução hormonal, sam dormir mais que os grandes. Para um elefante, bastam
principalmente na mulher, que entra na menopausa e passa 3 a 4 horas de sono 15• O ser humano necessita de 6 a 8 horas,
a sofrer as consequências da carência dos hormô nios ovaria- em média, para que não tenha distúrbios do comportamen-
nos. A existência de uma síndrome semelhante no homem, to, como irritabilidade e dificuldade de concentração, em-
porém muito menos flagrante, é aceita pelos andrologistas. bora tal número de horas varie de um indivíduo para outro.
Tanto no homem como na mulher, a redução dos níveis hor- Quem trabalha como motorista, por exemplo, precisa dor-
monais sexuais condiciona alterações do humor, em que so- mir regularmente para poder manter a atenção no trânsito
bressaem a irritabilidade e a intolerância. Mas também ocor- e evitar acidentes. Se um motorista de ônibus for obrigado
rem episódios de depressão e melancolia. a dobrar seu turno de serviço para cobrir a falta do com-
Os transtornos da afetividade observados no climatério panheiro que o renderia no trabalho, é possível que cause
podem gerar conflitos familiares e, fora do lar, episódios de algum acidente por distração ao volante. O mesmo aconte-
disputas ácidas por motivos que não levariam à violação das ce com motoristas de caminhão que tentam vencer o sono
regras da boa convivência social em outras fases da vida. nas estradas para fazerem mais viagens. Chega um momento
Em casos extremos, ocorrem surtos psicóticos conhecidos em que todo o seu esforço para se manter acordado fracas-
como psicoses do climatério'. Naturalmente, a imputabili- sa, e o acidente é inevitável. Comparando-se os dois casos,
dade pode estar reduzida, ou mesmo abolida, dependendo podemos dizer que o do ônibus teria uma atenuante caso
da gravidade do transtorno. Em geral, tais pessoas entendem provocasse lesão corporal ou a morte de alguém, pois teria
a ilicitude, mas sua capacidade de autodeterminação está sido coagido a continuar na escala de trabalho sob ameaça
prejudicada. de perder o emprego. Mas o do caminhão se teria colocado
716 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

naquela situação por livre vontade. A responsabilidade desse fatos. Nobre de Melo 17 refere o caso de um rapaz que fala-
último é plena em função da teoria da actio libera in causa va muito logo após cair no sono, tudo indicando que estava
(ver seção sobre emoção e paixão). dialogando com algum personagem do sonho. Seu estado de
O hipnotismo é um estado parecido com o sono, em que inconsciência era tão intenso que não podia ser despertado.
a pessoa é levada a uma alteração da consciência na qual a A crise não ocorria quando tomava uma dose de barbitúrico
realidade e as sugestões do hipnotizador se misturam e são antes de se deitar. Em outro caso, descreveu uma mulher de
percebidas simultaneamente. A suscetibilidade das pessoas a 50 anos que costumava ter pesadelos e sair à rua. Suas crises
serem hipnotizadas varia muito. Seu grau pode ser aferido foram ficando cada vez mais frequentes, o que a levou a pro-
de modo objetivo pela escala de Stanford, que vai de O a 12. curar tratamento. Um EEG mostrou que tinha atividade cor-
As mais suscetíveis têm pontuação maior. Cerca de 95% das tical característica de epilepsia, com localização frontotem-
pessoas avaliadas têm, pelo menos, grau l 16. Tal suscetibilida- poral esquerda. As ações do sonâmbulo epiléptico costumam
de nada tem a ver com o fato de ser a pessoa provida de ima- ser estereotipadas, imotivadas, repetitivas e sem adequação
ginação pobre ou fértil; ser tranquila ou agitada; cooperativa ao meio circundante. Quaisquer atos ilícitos cometidos sob
ou rebelde. Parece favorecer a hipnose o fato de o indivíduo esse estado não são puníveis em função de sua total incons-
ser capaz de se concentrar na leitura ou ao ouvir música 16 . ciência, que torna o paciente totalmente inimputável.
Não é imprescindível estar o sujeito a ser hipnotizado em Uma forma mais grave do sonambulismo epiléptico é
lugar calmo e em repouso. Pessoas em atividade de ginástica o estado crepuscular. O indivíduo tem um estreitamento da
em bicicleta estática foram hipnotizadas 16. consciência com distorção da percepção. Pode ter ilusões,
As vivências experimentadas pela pessoa hipnotizada po- alucinações, vivências fantásticas associadas a agitação psi-
dem chegar a alucinações, por exemplo, ouvir zumbido de comotora e agressividade. Costumam durar algumas horas,
insetos, ou campainhas inexistentes. Estudos experimentais mas podem chegar a mais de 1 mês 1·17 . Nesse estado, o su-
feitos com tomografia de emissão de pósitrons mostraram jeito pode cometer crimes de grande brutalidade, em que
que as áreas cerebrais ativadas nas sensações reais e nessas o excesso de golpes é comum. Tais agentes são totalmente
alucinações são as mesmas, e diferentes das excitadas pela inimputáveis.
simples imaginação dos sons 16.
As pessoas hipnotizadas não se comportam como autó- Emoção e Paixão
matos. Sua personalidade interage com as ordens do hipno-
tizador. Elas percebem os atos feitos sob o comando externo A vertente afetiva da vida psíquica estende-se da esfe-
como se não fossem seus. Obedecem, mas interrompem-nos ra instintiva à sensibilidade corporal. Abrange, inclusive, a
assim que as ordens entram em choque com seus va lores mo- consciência do eu, em que são vivenciados os conteúdos afe-
rais16. Por essa razão, não se pode reduzir a imputabilidade tivos como realidades subjetivas imediatas 17. Segundo Alves
das pessoas que pratiquem atos ilícitos quando hipnotizadas. Garcia 1, todo ato psíquico decompõe-se em uma parte inte-
Em geral, o indivíduo hipnotizado lembra-se de modo mais lectiva e outra afetiva. Essa abrangência justifica que se diga
ou menos preciso das ordens que lhe foram dadas e das sen- que a vida psíquica tem seus diversos processos entrelaça-
sações experimentadas, não há amnésia verdadeira 16 . dos e passíveis de interferência de um nos demais. Por isso,
O sonambulismo é um estado patológico análogo ao sono a maioria dos distúrbios mentais começa por comprometi-
durante o qual o indivíduo fala, anda, escreve e pode até mento da vida afetiva.
agredir outras pessoas, se acompanhado de alucinações 1. Há Segundo Nobre de Melo 17, uma das dificuldades no es-
duas formas de sonambulismo. Uma é psicogênica e caracte- tudo dos conteúdos afetivos é de ordem semântica. O signifi-
rizada por execução de atos de complexidade variada, mas cado de termos como afeto, emoção, sentimento, inclinação
que têm conexão com as vivências do dia e com os objetos e paixão varia entre os diversos autores e, mais ainda, quan-
do meio circundante. As ações podem revelar tendências do são traduzidos de textos estrangeiros. O termo emoção,
subconscientes do sujeito, como no caso de Honório Delga- por exemplo, significa, para esse autor, "um complexo psico -
do, citado por Nobre de Melo 17, de um homem casado que fisiológico que se caracteriza por súbitas e insólitas rupturas
acordava, às vezes, com os gritos da sua mulher porque ele a do equilíbrio afetivo, com repercussões concomitantes ou
tentava estrangular com as mãos. O indivíduo em crise pode consecutivas, leves ou intensas, mas sempre de curta dura-
ser despertado por meio de chamamentos e de estímulos ção, sobre a integridade da consciência e sobre a atividade
fortes. Essa forma costuma estar associada a personalidades funcional dos diversos órgãos e sistemas da economia". O
histéricas. De modo semelhante ao hipnotismo, a consciên- mesmo autor reconhece a existência de emoções primárias,
cia não está abolida, sim perturbada. Os planos do real e do secundárias, derivadas e mistas. As primárias são instintivas e
onírico misturam-se. O sonâmbulo, aqui, é capaz de remover estão presentes em recém-nascidos (RN). Três são as emoções
objetos que fiquem em seu caminho de modo coordenado. primárias: a de choque, a de cólera e a de afeto. A de choque,
Não há verdadeira amnésia dos fatos, as vivências podem ser que não deve ser confundida com a emoção-choque referida
recordadas em outras crises1. por Hélio Gomes 18, é a que o RN experimenta se o tomarmos
A outra forma é o sonambulismo epiléptico. Nesses casos, nas mãos e o fizermos despencar rapidamente como numa
há um verdadeiro automatismo das ações e total amnésia dos queda. Ele estremece, fica pálido e sofre uma descarga adre-
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 717

nérgica. A de cólera pode ser desencadeada se o segurarmos ga da paixão. Além disso, a repercussão psíquica e orgâ nica
e o impedirm os de se movimentar po r alguns instantes a são diferentes. A emoção cria um estado agudo e intenso de
despeito de seus esfor ços. Ele mostra irritação, fica verme- alteração m ental e física, com sinais de descarga de adrena-
llio e começa a chorar com raiva. Já a de afeto resulta de o lina. A paixão cria um estad o afetivo continuado que traz
afagarmos lenta e suavemente com as mãos, de modo a que um potencial de eclosão de surtos emocionais, tornando o
se sinta acariciado. Ele acaba por ficar tranquilo e adorme- limiar de excitação m ais baixo para o rompimento das bar-
cer calmamente. As emoções secundárias são estados afetivos reiras da censura.
mais complexos e adquiridos a partir de sensações de dor e Contudo, o que interessa ao direito penal é a possibi-
de prazer. Da mesma natureza são os estados de bem -estar lidade de mo dificação da consciência da ilicitude e de des-
e de m al-estar que acompanham, respectivam ente, a higidez e controle da vontade sob a influência das emoções e das pai-
o desequilíbrio das funções orgânicas. As emoções derivadas xões. O Código Penal5, porém, de maneira severa, estabelece:
são modifi cações das primárias e das secundárias no sentido
de se aproximarem dos sentimentos 17 . Por exemplo, a emo- Art. 28. Não excluem a imputabilidade penal:
ção primária de choque gera as derivadas de espanto e de pa- 1 - a emoção ou a paixão;
vor; e os sentimentos de insegurança, medo e desconfiança.
A leitura de alguns autores dificulta a apreensão do sig-
nificado do nome dado a cada tipo de emoção e de paixão. Or a, não se pode admitir que o legislador ignorou toda a
Por exemplo, Hélio Gomes 18 refere o amo r ora com o emo- contribuição de filósofos, juristas e grandes mestres da litera-
ção, ora como paixão. Há outros que cham am de emoção tura à discussão do tema. Na verdade, todos reconhecem que
a vivência das reações corporais ao estímulo desencadeante. as paixões criam o caminho para o descaminho das emo-
Isto é, o estímulo desencadeia a reação psíquica e orgânica, ções. Aceitam que as emoções podem assumir intensidade
com taquicardia, palidez, respiração acelerada, tremo res etc. tal que o embotam ento da consciência chegue a obscurecer
Par a esses autores, a percepção dessas m odificações somáti- a razão e a liberar os instintos primitivos de cólera. Mas é
cas é que constitui a emoção. Chamam de emoção o efeito verdade, também, que, no hom em normal, o hom em m édio
causado pela emoção. Confundem causa com efeito. para quem são feitos os códigos, a evolução da crise emocio-
A maioria dos autores consultados cita Ribot, que afirma nal não é instantân ea. Começa por uma excitação da vida
que a paixão é o resultado de uma emoção que se tornou afetiva que vai crescendo ra pidamente até atingir o grau da
crónica e intelectualizada7•8 •18 • Nobre de Melo 17 distingue incontinência da vontade e da ação. Nesse momento do clí-
duas for mas de estados afetivos prolongados, as inclinações, m ax, já não há como conter a avalanche emocional e suas
que são instintivas, e as paixões. Para ele, "inclinações são consequências por vezes funestas. Mas, no início da reação
movimentos afetivos invo luntários, duráveis, contínuos, emocional, a consciência ainda governa a razão e a von tade.
persistentes, em direção a determinado objeto, movimentos Desse modo, o indivíduo normal tem ainda a possibilidade e o
que em ergem de disposições extraconscientes, isto é, das dever de frear o ímpeto no nascedouro. Se não o faz, se deixa a
tendências instintivo-afetivas latentes, que llies dão fo rça, em oção d ominá-lo, sabendo de antemão as possíveis conse-
sentido e unidade dinâmica, com o u sem repercussões sobre quências da explosão iminente, tem que assumir a responsa-
a mo tilidade e a conduta''. Afirma que as paixões são "um bilidade pelos seus atos. É o princípio da actio libera in causa.
estado afetivo absorvente e tiranizante, que polariza a vida Po r esse princípio, o sujeito que se coloca conscientemente
psíquica do indivíduo na direção de um objeto único, que em condições de não poder mais avaliar o valor de sua con-
passa a monopolizar seus pensamentos e suas ações, com ex- duta do ponto de vista ético e jurídico faz de si mesmo um
clusão ou detrimento de tudo o mais''. Ou seja, a paixão tem instrumento para a violação das normas. Sêneca dizia que
intensidade muito maior do que a simples inclinação. Chega não adianta se arrepender, durante a qued a, quem se jogou
a subjugar a razão. O m esm o autor não aceita a colocação de no abismo 7 • É o mesmo que ocorre quando alguém se em-
Ribot de ser a paixão uma cronificação da emoção. O inte- briaga propositalmente, ou por não se importar com a pos-
ressante é que tanto os que aceitam tal postura quanto os que sibilidade de se embriagar quando começa a beber. Sobre-
a repelem citam a mesm a colocação do filósofo Kant, par a vindo a embriaguez, e a prática de atos contrários às normas
o qual "a emoção é como a torrente que rompe o dique de por parte desse indivíduo, não pode o mesmo alegar que não
contenção, enquanto a paixão é a correnteza que vai lenta e podia avaliar as consequências desses atos, no momento que
continuamente cavando o seu próprio leito". os praticou, por causa dos transtornos causados pela bebi-
Cremos que podemos fazer uma analogia entre emoção da na capacidade de entendimento e de autogoverno. A base
e paixão de um lado e gr afite e diam ante de outro lado. Cada para a reprovabilidade da conduta rem onta ao mo mento em
dupla é for mada pela m esma m atéria: emoção e paixão, por que opto u por se embriagar, o u assumiu o risco de ficar em -
estad os afetivos; grafite e diamante, por átomos de carbono. briagado, quando se podia abster de fazê-lo.
Mas, assim como o grafite e o diamante são muito diferentes Além do mais, o receio da punição é mais um elemento
embora fo rmados pela mesm a m atéria-prima (fenóm eno inibidor da conduta violenta. É da observação comum que
da alotropia) 19, assim o são a emoção e a paixão. A difere nça a instalação da cólera e a tendência daí resultante para uma
fundamental entre essas é a duração fugaz da emoção e lon- agressão são inibidas quando o possível agressor encontra
718 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

uma resistência, uma possibilidade de revide por parte do o policial e lhe causa lesões corporais ao empreender a rea-
contendor. Desse modo, a possibilidade de poder vir a ser ção, a pena a ser aplicada pelo juiz pode ser reduzida em um
preso e processado é mais um aspecto a ser avaliado pelo sexto a um terço, conforme o entendimento do magistrado.
agente no início de seu ímpeto. O fato de o Código prescrever que o juiz pode reduzir a pena
Mas o Código Penal3.S admite a diminuição da responsa- tem gerado dúvidas se ele poderia deixar de reduzi-la. Del-
bilidade em condições especiais. Vejamos: manto4 refere opiniões de juristas e jurisprudência nos dois
sentidos. Além do mais, há necessidade de que o revide seja
Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena: logo após a provocação injusta. O logo após exclui aquelas
!- .................................................. . situações em que o agente provocado afasta-se do local para
!!- .................................................. . se armar e volta para onde está o provocador para se vingar.
III - ter o agente: Outro aspecto a se considerar é que basta a provocação, não
a) .................................................. . sendo necessário que haja uma agressão ao agente para que
b) .................................................. . ele goze do benefício legal.
c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou Até o momento, temos nos referido a emoções normais,
em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob isto é, aquelas desencadeadas por situações comuns da vida
a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto em indivíduos normais. Em se tratando de transtornos afe-
da vítima; tivos relacionados a patologias mentais, o local onde devem
ser discutidas é o caput do artigo 26 sob a rubrica "doença
Art. 121. Matar alguém: mental': ou o parágrafo único em "perturbação da saúde
Pena: reclusão de 6 (seis) a 20 anos. mental''.
§ J!! Se o agente comete o crime impelido por motivo de
relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violen- Surdo-mudez
ta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, Os surdos-mudos são pessoas que necessitam de cuida-
o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. dos especiais na educação para que possam superar sua defi-
ciência e ser alfabetizados. Sendo educados de modo satisfa-
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de tório, conseguem comunicar-se e, através do contato social,
outrem: adquirir os costumes da sociedade em que vivem. Não sendo
Pena: detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano. orientados em estabelecimentos especializados, não conse-
guem informar-se o suficiente para entenderem as regras de
§ 4° Se o agente comete o crime impelido por motivo de conduta emanadas da sociedade e as regras jurídicas impostas
relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violen- pelo Estado. Desse modo, podemos compará-los aos silvíco-
ta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, las no sentido de que têm desenvolvimento mental incompleto.
o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Sendo assim, podemos encontrar, nesses indivíduos, todos os
graus de aquisição das regras sociais. Eles não costumam ser
oligofrênicos. Mas nada impede que, além de surdo-mudo, o
Os destaques são nossos. sujeito tenha o QI baixo. Como é natural, o desenvolvimento
No artigo 65, a emoção é violenta, mas apenas influencia intelectual dessas pessoas será mais difícil do que o das outras.
o agente. E tem que ser desencadeada por ato injusto da víti- A maioria dos surdos-mudos não consegue atingir o discer-
ma. É preciso que o grau de alteração do psiquismo seja sufi- nimento do homem médio. Mas isso não impede que se tor-
ciente para modificar a capacidade de autocontrole, mas sem nem pessoas produtivas e criativas, como tem sido registrado
suprimi-lo. Além disso, a causa da excitação emotiva tem que ao longo dos tempos. A inglesa Helen Keller foi o paradigma
ser a prática, pela vítima, de um ato que possa ser conside- dessa exceção. Nasceu cega e, com pouco mais de 1 ano e
rado injusto para com o agente. Por exemplo, se um policial meio, ficou surda. Apesar disso, aprendeu a ler e a escrever,
tem um mandado para a prisão de João e prende José, que tendo produzido textos de real valor 17 •
é parecido com João, e usa de força física para subjugá-lo e No caso de cometerem algum ato ilícito penal, sua impu-
conduzi-lo à delegacia, se for agredido por José, este estará tabilidade terá que ser avaliada por psiquiatra forense, que ve-
dentro da condição atenuante se causar algum dano ao rea- rificará seu grau de ajustamento social e o grau de desenvolvi-
gir à prisão. No caso, a prisão era injusta. Trata-se de uma mento mental que conseguiram alcançar. Conforme o laudo,
circunstância atenuante da pena, mas que não expressa em poderão ser considerados inimputáveis, semi-imputáveis, ou
quanto ela deve ser reduzida. com a plena capacidade de responder pelo fato. O artigo 192
No que se refere aos artigos 121e129, porém, a pertur- do Código de Processo Penal20 estabelece regras para a o itiva
bação tem que ser mais intensa, pois o agente tem que ficar de pessoas surdas, mudas ou surdas-mudas. No caso do sur-
sob o domínio da violenta emoção. Significa dizer que há do-mudo, "as perguntas serão formuladas por escrito, e por
grande comprometimento da capacidade de autocontrole, escrito dará ele as respostas''. Se for analfabeto, terá que haver
quase a ponto de inibi-lo. No exemplo acima, se José agride a interveniência de um intérprete que possa entendê-lo.
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 719

Doença Mental história natural. Assim é que as agudas, em geral, são tran-
sitórias e costumam regredir uma vez cessada a causa. Por
Aí se acham os indivíduos que o leigo costuma chamar de
exemplo, passado o efeito do LSD, o indivíduo volta ao nor-
loucos ou alienados mentais. A expressão "doença mental"
mal, desaparecendo as alucinações presentes enquanto esta-
do código refere-se aos psicóticos em geral, aos dementes e
va intoxicado.
aos epilépticos. Mas é preciso que a doença esteja ativa e in-
As demências resultam do acometimento cerebral de pes-
capacitante no momento do crime.
soas que até então eram normais e que, por motivo da doen-
As psicoses em geral são transtornos mentais em que
ça, foram perdendo gradualmente os atributos cognitivos,
o doente perde o juízo de realidade, passando a perceber o basicamente da memória e da orientação, com repercussão
mundo por uma ótica distorcida, caracterizada por distúr- nos aspectos volitivos e afetivos. Entre os estados clemenciais,
bios graves da percepção, como alucinações; do pensamento, podemos destacar as formas pré-senis (por exemplo, doença
como ideias delirantes, desagregação e roubo do pensamen- de Alzheimer, doença de Pick) e as formas senis (por exem-
to; e da vida afetiva, como estados depressivos, paratimias, plo, por arteriosclerose).
neotimias e ambitimias. Não nos cabe, aqui, discorrer sobre A epilepsia é uma doença que podemos chamar de neu-
cada uma das diversas formas de psicoses. ropsiquiátrica, uma vez que tem formas de exteriorização
Mas é importante que se diga que podem ser agudas ou tipicamente neurológica, e outras que se manifestam por
crónicas. As psicoses agudas podem ser o resultado de uma meio de quadros psiquiátricos. No que diz respeito à impu-
situação de estresse muito intenso, por exemplo o ataque ao tabilidade, é claro que o indivíduo acometido por uma crise
World Trade Center de Nova York, chamada de psicose de convulsiva epiléptica não é capaz de cometer um delito co-
pavor; podem provir de estados de intoxicação aguda por missivo. Mas, se exerce uma profissão em que a sua perda
substâncias psicoativas (LSD, por exemplo); podem ser o de consciência pode pôr a integridade corporal ou a vida de
resultado de traumatismos cranioencefálicos, surgir em pe- outras pessoas em perigo, é possível a ocorrência de crime
ríodos fisiológicos como a psicose puerperal, ou em estados de dano, seja material apenas ou de lesão corporal. Mas o que
infecciosos agudos sob a forma de delírios. Entre as crônicas, importa mais no epiléptico, com relação à imputabilidade,
a mais comum é a esquizofrenia, com suas distintas formas, são os sintomas de ordem mental, como os estados crepus-
ao lado de o utras como a maníaco-depressiva, a alcoólica, a culares, os automatismos e a forma psicomotora, compo-
epiléptica etc. nente da psicose epiléptica.
As psicoses crônicas podem apresentar fases distintas de Os epilépticos podem cometer delitos antes, durante ou
atividade. Podem evoluir por surtos ou fases, ou sem remis- depois da crise. A discussão de importância m édico-legal,
sões e de modo inexorável e incurável, como as parafrenias. aqui, é demarcar o início e o fim da crise e estabelecer o grau
Lutz9 descreve, nas psicoses passíveis de melhora, as fases de responsabilidade do epiléptico nos intervalos entre uma
pré-psicótica, médico -legal, de estado, de remissão e de cura. crise e outra. Segundo Alves Garcia 1, a síndrome epiléptica é
A fase pré-psicótica é aquela em que a doença existe, mas o problema mais difícil da psicopatologia forense. Caracte-
ainda não pode ser detectada pelo exame clínico. Na fase riza-se basicamente pela perda da consciência, que acompa-
médico-legal, o doente já apresenta os sintomas da doença, nha uma série de fenómenos motores, sendo o mais flagran-
mas ainda não foi examinado; é aquela em que é cometido o te as convulsões. Os ataques costumam ser precedidos por
delito que o leva ao psiquiatra forense. Na fase ou período de sinais e sintomas prodrômicos constituídos por pequenas con-
estado, a doença já é bem nítida e pode, então, evoluir para trações musculares involuntárias nas mãos e nos músculos
melhora, piora ou estabilização. A fase de remissão caracte- faciais, principalmente nos lábios; sensações de desconforto;
riza-se por uma melhora intensa que pode simular a cura. A vertigens; parestesias e alterações mentais díspares como ir-
cura, em verdade, dificilmente é completa. Deve ser encara- ritabilidade ou apatia, mutismo ou tagarelice, modificações
da com reservas. Se se mantiver, deve-se considerá-la real; se do humor para cima ou para baixo etc.'. Predominam os dis-
houver novo surto, era uma cura aparente. Alguns doentes túrbios da afetividade, ora com euforia, ora com depressão,
estabilizam a doença em fase de grande regressão dos sinto- sendo mais frequentes as distimias coléricas, em que o doen-
mas, mas não se pode falar em cura completa porque restam te fica muito irritável e agressivo 17 • Esses pródromos podem
certos defeitos no feitio psíquico o u no intelecto do paciente. durar horas ou mesmo dias. Não devem ser confundidos
Quando o ato delituoso é cometido na fase pré-psicóti- com o conjunto de sintomas dos instantes que precedem a
ca, o indivíduo vem a ser processado e condenado, uma vez crise convulsiva, chamado de aura' 7 • Esses costumam ser os
que não é possível diagnosticar a doen ça. Por isso, durante mesmos para cada doente, podendo ser sensoriais, motores
o cumprimento da pena, quando a doença se manifesta, há e/ou psíquicos. Sua ocorrência é tão regular que o doente
necessidade de que ele seja removido para um hospital psi- sente que vai ter a crise 17 • Para a maioria dos autores, a aura
quiátrico (art. 41 do Código Penal5). já faz parte do ataque.
Todas essas doenças, quando em atividade no momen- Os aspectos mais importantes do ponto de vista médico-
to do ato delituoso, pelo fato de privarem o agente de sua legal dizem respeito aos automatismos e aos estados cre-
capacidade de entendimento, tornam-no inimputável. Mas pusculares. Os automatismos podem ser exteriorizados por
é preciso reconhecer que elas têm um curso habitual, uma impulsos, que podem chegar ao furor epiléptico, fuga s e o
720 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

sonambulismo epiléptico. Os impulsos são ações explosivas Machado de Assis, Dostoievski, Newton, Ivan o Terrível, Jú-
espo ntâneas, súbitas, irresistíveis, que se car acterizam por lio César e Napoleão'·' 7 •
grande agressividade e ferocidade. Durante a crise, o doente A avaliação da imputabilidade desses doentes no inter-
ataca quem estiver por perto, como se fosse o inimigo mais valo entre uma e outra crise é, segundo Alves Garcia', muito
o diado, não ra ro com grande repetição de golpes e marcado difícil porque não se pode exagerar na valorização da in-
por um colo rido bastante cruel (furor epiléptico ). Uma das fluência do caráter epiléptico na conduta para não se dar
características desses crimes é a má escolha da vítima, muitas um salvo-conduto à maio ria dos pacientes. É preciso que
vezes o cônjuge ou os filhos. Há amn ésia lacunar com relação se procure analisar a conduta em função das características
ao crime, e não são raros os casos em que o indivíduo dizima pessoais de cada um para estabelecer um nexo de causalida-
sua família e é encontrado afas tado do local do crime, sujo de. Do contrário, estar-se-á aplicando o critério biológico,
de sangue, sem saber explicar o que aconteceu. Chegam a não o biopsicológico. Na dependência da existência de maior
perguntar se a fa mília sabe de alguma coisa a respeito e se ou menor coerência entre os traços do caráter do agente e
está segura'·9 •17 • As fugas são caracterizadas por ações inde- o delito cometido, pode o epiléptico que comete o fato no
pendentes da vontade do paciente, coordenadas, ou não, que intervalo entre as crises ser considerado semi-imputável, ou
podem levar o sujeito a se deslocar de uma cidade para outra totalmente responsável.
e durar dias. Durante esse tempo, o paciente age autom ati-
camente, sem ter consciência do que faz. Pode delinquir, ou Perturbação da Saúde Mental
não. Em caso afirmativo, é to talmente inimputável, como em O grau de comprom etimento do entendimento e da au-
todos os casos de automatismos. todeterminação dos indivíduos enquadrados nessa rubrica é
Os cham ados estados crepusculares já foram m enciona-
insuficiente para considerá-los doentes mentais, mas capaz
dos ao comentarmos sobre o sonambulismo. Costumam de lhes turvar a consciência ou a vontade a ponto de enfra-
acontecer após os ataques, m as podem aparecer antes, na quecer suas barreiras éticas e permitir o ato delituoso. Entre
fase prodrômica, ou sem relação cro no lógica com a crise
os distúrbios que justificam a redução da imputabilidade so-
convulsiva. Nobre de Melo'7 a eles se refere com o se segue:
bressaem as psicopatias (personalidades psicopáticas), as vá-
"Consistem em episódios confu sio nais, de obnubilação da rias m anifestações neuróticas e as fases iniciais, de remissão e
consciência, de duração variável, os quais afetam, no mais
intercomiciais de algumas doenças mentais.
das vezes, ilusões e alucinações de todos os sentidos, m as so-
bretudo visuais, as quais têm quase sempre conteúdos terri- Psicopatias (Personalidades Psicopáticas ou Transtornos da
ficantes e são dominad as por vivas colorações, especialmen-
Personalidade)
te o vermelho. As ideias delirantes multifo rmes, incoerentes,
quase sempre do tadas de grande carga afetiva e angustiosa, A personalidade condiciona modos de pensar, sentir,
além da intensa agitação, podem conduzir a brutais ímpetos conduzir-se e reagir2 1• A dificuldade na conceituação das
de cólera e de violência." psicopatias começa no estabelecimento do próprio conceito
O problema da imputabilidade do epiléptico nos interva- de personalidade no rmal. Segundo Alves Garcia', filósofos,
los entre os ataques tem sido motivo de grande controvérsia antropólogos, psicólogos e psiquiatras ainda não chegaram
em função do que os psiquiatras cham am de caráter epilépti- a uma conclusão. Não se deve conceituar o normal como
co. São pessoas que têm raciocínio lento, dificuldade de fazer o mais comum, uma vez que a média muda com o tempo.
associações no plano intelectual, que se prendem a minúcias Para ele, normal é o indivíduo m ais tranquilo e o que m ais
d os fatos em detrimento do conjunto, sendo, po r isso, muito facilmente se adapta às circunstâncias da vida social, por mí-
pro lixas nas narrativas e pouco aptas a apreender o sentido nimas que sejam. Aquele que não é capaz de se ajustar às
global d o que ouvem . No plano afetivo-volitivo, costumam exigências sociais e tem dificuldades de relacionamento com
ser excessivamente solícitas e, em compensação, extrema- seus semelhantes não é normal'. Têm personalidade psico-
m ente exigentes de consider ação e afeto. Percebem ofensas pática certos indivíduos que, embora tenham inteligência
nas pequenas faltas das pessoas de suas relações como, por normal, ou m esm o elevada, apresentam alter ações da con-
exemplo, receberem um presente não tão bonito com o o duta ao longo da vida, de natureza antissocial, ou que coli-
recebido por um companheiro ou parente por ocasião de dem com as normas éticas, e que são pouco influenciáveis
comemorações. Fatos assim insignificantes podem levá-las a pelas medidas corretivas de ordem educacional ou médica' .
agressões. A alternância entre a viscosidade e a explosividade As psicopatias diferem das doenças m entais porque os
é a marca de sua personalidade17 • Com o passar dos anos, seus sintomas são mais leves, não levando o paciente à perda
a tendência é de agravam ento desses aspectos negativos da do juízo de realidade que estas produzem . Os psicopatas di-
personalidade, que levam o doente a um isolamento social'. ferem dos psicóticos porque estes apresentam sintom as gra-
Segundo Alves Garcia 1, 20 a 40% dos epilépticos tendem, ves, como delírios e alucinações, que nunca aparecem em
com o tempo, a sofrer um embotamento da capacidade in- uma pessoa sadia, enquanto aqueles mostram deformações
telectual, com deterioração da atenção, da compreensão e de aspectos presentes nas personalidades normais, principal-
da memória. Contudo, fo ram epilépticos vultos geniais das mente no caráter, temperamento, instintos e afetividade, em
artes, da filosofia e até da guerra: Gustave Flaubert, Moliere, função da desarmonia do seu desenvolvimento'.
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 721

As personalidades psicopáticas não formam uma enti- personalidade (F60-), os transtornos mistos e outros trans-
dade nosológica. Mas podem ser agrupadas pelas caracterís- tornos da personalidade (F6 1-), e as modificações dura-
ticas comuns que apresentam. Resultam de imaturidade ou douras da personalidade (F62-), representam modalidades
anomalia dos instintos e não são capazes de assimilar, pela de comportamento profundamente enraizadas e duradou-
experiência, as regras da convivência social. O manual da So- ras, que se manifestam sob a forma de reações inflexíveis
ciedade Americana de Psiquiatria (DSM-IV) chama as psi- a situações pessoais e sociais de natureza muito variada.
copatias de transtornos da personalidade e os conceitua como Eles representam desvios extremos ou significativos das
"um padrão duradouro de comportamento e experiência percepções, dos pensamentos, das sensações e, particular-
interior que difere bastante das expectativas do ambiente mente, das relações com os outros, em comparação com os
cultural do indivíduo, que é dominador e inflexível, que tem de um indivíduo médio de uma dada cultura. Tais tipos de
início na adolescência ou na juventude, que se mantém es- comportamento são geralmente estáveis e englobam múl-
tável ao longo do tempo e que causa sofrimento e dificul- tiplos domínios do comportamento e do funcionamento
dades''. A DSM-IV reconhece a existência de três grupos de psicológico. Frequentemente estão associados a sofrimento
transtornos da personalidade, cujos pacientes apresentam- subjetivo e a comprometimento de intensidade variável do
se: 1) estranhos e excêntricos; 2) dramáticos, emocionais e desempenho social.
imprevisíveis; 3) ansiosos e medrosos 22•23• Entre os transtornos específicos da personalidade (F60)
A Tabela 32.1 mostra os grupos e os tipos de personalida- da CID-10 estão as personalidades paranoica, esquizoide,
des anormais da DSM-IV e suas características básicas. dissocial, com instabilidade emocional, histriônica, anan-
A sistematização acima serve como guia para registro cástica, ansiosa (esquiva ), dependente e outras. Mas os tipos
e arquivamento do mesmo modo que ocorre com a da dessa última não se superpõem aos da DSM-IV.
CID-10. Nesta, os transtornos da personalidade e do com- Na verdade, não há um acordo quanto aos tipos de per-
portamento do adulto são alocados em F60-F69. O grupo sonalidades psicopáticas. Nem mesmo se as devemos clas-
compreende diversos estados e tipos de comportamento sificar, pois que a maioria dos casos clínicos apresenta as-
clinicamente significativos que tendem a persistir e que são pectos encontrados em mais de um dos tipos descritos. Se-
a expressão característica da maneira de viver do indivíduo gundo Nobre de Melo 17 , é muito difícil encontrar tipos puros.
e do seu modo de estabelecer relações consigo próprio e Mesmo que um caso tenha características suficientes para tal
com os outros. Alguns desses estados e tipos de comporta- classificação, a observação atenta vai mostrar que, ao longo
mento aparecem precocemente durante o desenvolvimen- da vida, o quadro clínico muda com o passar do tempo.
to individual sob a influência conjunta de fatores consti- Alguns autores, como Alves Garcia 1, incluem nas psi-
tucionais e sociais, enquanto outros são adquiridos mais copatias as aberrações do instinto sexual descritas no Ca-
tardiamente durante a vida. Os transto rnos específicos da pítulo 26.

Tabela 32.1. Principais transtornos da personalidade


Gr1po Tipo Prlnclp111 C111c1err111ca
A Paranoide Desconfiança, suspeitas, ciúmes, rancores, melindres, interpretação maldosa de ações amistosas
Esquizoide Poucas amizades, indiferença por relações sociais, individualismo, baixa emotividade, anedonia
Esquizotípica* Excentricidade, ideias de referência, circunspecção, fala estereotipada, pensamento mágico,
dificuldade de relacionamento, ilusões corporais
B Antissocial Falta de limites nas relações sociais, delinquência, mentiras, trapaças, agressividade, crueldade,
imprudência, irresponsabilidade, falta de remorso
Borderline (ou limítrofe) Relacionamento interpessoal intenso e instável, variações do humor, autoestima instável,
impulsividade, crises de raiva, tendência autodestrutiva
Histriônica Emotividade intensa e lábil, carência afetiva, teatralidade, sugestibilidade, autocomplacência,
tendência à sedução
Narcisista Gabolice, imodéstia, ostentação, presunção, inveja, incompreensão com os outros, exploração alheia
e Ansiosa (esquiva) Timidez, baixa autoestima, hipersensibilidade à rejeição, afastamento social mas com desejo de
aceitação
Dependente Insegurança, subserviência, medo de abandono, aversão à solidão, falta de iniciativa, indecisão,
dificuldade em discordar, carência afetiva
Obsessiva-compulsiva Disciplina, perfeccionismo, detalhismo, rigidez, inflexibilidade, obstinação, escrupulosidade, egoísmo
(anancástica)
'Na CID-1 O, entra como fronteiriça com a esquizofrenia, com o código F21 11 •
722 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

O diagnóstico de psicopatia tem importância médico- inferior à de seus semelhantes da mesma idade e vivendo no
legal na medida em que permite enquadrar o agente no pará- mesmo ambiente social, econômico e cultural' 7 • A DSM-IV
grafo único do artigo 26 sob a rubrica perturbação da saúde exige, para que se considere alguém retardado m entalmen-
mental. E não é só isso. O tipo de personalidade psicopática, te, que estejam presentes um quociente intelectual de 70 ou
por suas características, independentem ente d o no me que se menos, início antes dos 18 anos e deficiência acentuada da
dê, também tem importância médico-legal porque a avalia- capacidade de adaptação em , pelo menos, duas das seguintes
ção do nexo de causalidade exigida pelo critério biopsico- áreas: comunicação, cuidados pessoais, vida doméstica, habi-
lógico só vai ser possível a par tir da com paração entre essas lidade no relacionamento social, autodeterminação, aprendi-
características e o delito com etido. Po r exemplo, crimes de zagem, trabalho, lazer, saúde e segurança25.
estelionato dificilmente podem ser relacionados com per- As oligofrenias não são uma doença com sinais e sinto-
sonalidades anancásticas, mas podem decorrer do desvio de mas característicos. Formam um grupo heterogêneo no qual
conduta dos psicopatas antissociais. Crimes passionais po- se encontram pessoas acometidas por vários tipos de d oen-
dem resultar de ciúmes excessivos de psicopatas paranoides. ças de diversas etiologias cuja ação patogenética faz-se antes
Podem ser incluídos aqui os transtornos dos hábitos e do nascimento, durante o parto o u ao longo d os primeiros
d os impulsos. São atos repetidos, sem mo tivação racional, anos de vida. Seu traço comum é a dificuldade, que pode
incontroláveis, que, geralmente, vão contra os interesses do chegar à incapacidade, dos doentes de compreensão, criação
próprio ou de outras pessoas. São exemplos: jogo compulsi- e julgamento crítico, que os impede de resolver os aspectos
vo, piromania, cleptomania e outros. A dificuldade desses in- triviais do dia a dia'.
divíduos está no autogoverno. Antes do ato, ficam ansiosos, O grau de comprometimento intelectual desses indi-
nervosos, tensos; durante, e após, há sensação de satisfação e víduos tem sido avaliado por meio de escalas, das quais a
de alívio. Não raro, há remorso e prom essas a si próprio de mais referida é o quociente intelectual, que pode ser aferido
não repetir a conduta, que torna mais tarde a ser praticada. através de testes psicológicos. Alguns preferem comparar o
Os cleptomaníacos, em geral, não precisam do bem furtado grau de desenvolvimento mental do oligofrênico com o das
por motivos financeiros. Costumam se descartar dos objetos, crianças para estabelecer a gravidade do retardo mental que
d oando-os para terceiros. A anormalidade da conduta está apresentam . Mas é preciso levar também em consider ação o
na diferença entre os riscos e os benefícios, fra ncamente des- seu grau de ajustamento social. Alves Garcia' apresenta uma
favor ável para o agente. síntese dessa avaliação, que está na Tabela 32.2.
Neuroses - Os transtornos neuróticos têm natureza va- A Classificação Internacional de Doenças ( CID- 10) 24 re-
riad a, podendo ser divididos em um grupo fóbico-ansioso, conhece o retardo mental leve (F70), o mo derado (F7 1), o
outro obsessivo-compulsivo, além de distúrbios relaciona- grave (F72) e o profundo (F73). A Tabela 32.3 resume os cri-
dos com estresse intenso e neuroses de conversão. O trans- térios para a alocação no código.
to rno neurótico obsessivo-compulsivo difere do transtorno As oligofrenias leves costumam ser causadas por influên-
da personalidade de mesmo nome. Na neurose, ora são pen- cias desfavoráveis do meio em que a criança vive. Em geral,
samentos que invadem a mente sem que o sujeito possa evi- são crianças de pais problemáticos, por vezes com gr aves
distúrbios m entais, que negligenciam na orientação, nos
tar, ora é compulsão para realizar certos atos repetitivamen-
te. Há ansiedade, q ue se agrava se o paciente tenta resistir. cuidados, no carinho e na educação. Mas os casos graves
estão relacionados com um problema orgânico, cuja causa
Com frequência, há a ideia de realizar os atos a fim de evitar
pode ser diagnosticada em 70% dos casos25 • Entre os casos
um perigo imaginário atual ou futuro. Não se trata de carac-
em que se consegue estabelecer a causa, a m aioria é devida a
terísticas do modo de vida do sujeito, como é o que ocorre
distúrbio do desenvolvimento embrionário, seja por altera-
nos transtornos da personalidade. Confo rme o tipo de delito
ções crom ossômicas, seja por exposição a drogas ou toxinas.
praticado, podem ter, ou não, relação com o fa to.
Seguem -se, por ordem de frequência, problemas obstétricos,
doenças m etabólicas e doenças da infância.
Desenvolvimento Mental Retardado (Oligofrenias)
Entre as alterações cromossômicas, a m ais comum é a
O conceito de retardo mental deve incluir tanto o quocien- síndrome de Down, que ocorre em 1/ 1.000 nascidos vivos.
te intelectual quanto a capacidade d o indivíduo de resolver os É também chamada de trisso mia 21 porque, em 95% dos
problemas do dia a dia sem necessidade de auxílio de outrem. casos, o indivíduo tem três desses cromossom as em vez de
O cham ado quociente intelectual é obtido dividindo -se a ida- um par. A causa disso é a não disjunção desse cromossoma,
de mental do sujeito pela sua idade cronológica, ambas em que ocorre durante a divisão meiótica para a fo rmação de
meses, até o máximo de 16 anos. Nas pessoas normais, deve um dos ga metas (óvulo ou espermatozoide), que se vão unir
ser igual a 1. Se for maior, o indivíduo deve ser considera- para fo rmar o zigoto 25 . As células desses indivíduos têm 47
d o superdotado. Para os adultos, costuma-se dividir a idade cromossomas e não 46. Em casos mais raros (1 %), o fenô-
m ental pela idade em que, presumivelmente, cessa o desen- meno da não disjunção ocorre depois da fecundação, com
volvimento da inteligência 17 • Segundo Nobre de Melo, retar- alguma das primeiras células do novo ser. As células-filhas
dados são indivíduos cuja inteligência está, desde as primeiras dessa que está alterada fo rmam uma linhagem celular com
fases do desenvolvimento infa ntil, reduzida e manifestamente 47 cromossomas (fenômeno do mosaicismo ). Geralmente,
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 723

Tabela 32.2. Gradação das oligofrenias*


Grau QI EINglo Mental EvolUllO Soclll
Idiota < 25 < 3 anos Incapacidade de cuidar-se e de bastar-se a si mesmo
Imbecil Entre 25 e 50 3 a 7 anos Pode defender-se dos perigos comuns; incapaz de prover sua
subsistência em condições normais
Débil mental Entre 50 e 90 7 a 12 anos Incapaz de concorrer com outros em condições de igualdade; capaz
de manter-se em condições favoráveis
'Segundo Alves Garcia'.

Tabela 32.3. Classificação do retardo mental (CID-10)24


Cltegorll QI Idade Mental H1bllldlda
Leve 50 a 69 9 a< 12 Dificuldades na escola; consegue emprego para se manter
Moderado 35 a 49 6a<9 Alguma independência nos cuidados pessoais; comunicação
adequada; adultos necessitam de apoio para trabalhar e viver
Grave 20 a 34 3a<6 Precisam de assistência contínua
Profundo < 20 <3 Graves limitações nos cuidados pessoais, continência, comunicação
e mobilidade

esses casos são menos graves 26• A maioria dos fetos com tris-
somia 21 (80%) é abortada espontaneamente25•
Depois da síndrome de Down, a síndrome hereditá-
ria mais comum é a do cromossoma X fraco, que ocorre em
1/4.000 nascidos vivos e causa grau moderado de oligofre-
nia, principalmente no sexo masculino. Os meninos afeta-
dos têm orelha de abano, macrocefalia e testículos grandes,
principalmente após a puberdade. Metade deles apresenta
hiperatividade, e um quarto, depressão 25•
Entre as doenças hereditárias, que são raras, as mais co-
muns são a oligofrenia fenilpirúvica e a esclerose tuberosa.
A primeira ocorre na proporção de 1/10 .000 nascidos vivos.
Deve-se a uma mutação recessiva em que o defeito é a fal-
ta da enzima que faz a hidroxilação da fenilalanina. Atual-
mente, sua incidência caiu por causa da realização do teste
de Guthrie (teste do pezinho). A segunda tem incidência de
1/50.000 nascidos vivos, mas corresponde a 0,5% dos retar-
dados graves25 • Nessa doença, há retardo mental acentuado,
epilepsia e alterações cutâneas como a presença de adenoma
sebáceo na face. No cérebro, há áreas de espessamento dos
giros por proliferação hamartomatosa do tecido nervoso
(Fig. 32. l ).
Entre as causas obstétricas, sobressaem as infecções ma-
ternas pelo vírus da rubéola, pelo citomegalovírus, pelo H IV
(vírus da AIDS) e pelo Toxoplasma. Os três vírus levam à
encefalite fetal, com microcefalia do recém -nascido. Todos
causam retardo mental. O da rubéola afeta outras áreas além
do sistema nervoso central, com perturbações da visão e da
audição e cardiopatias. A toxoplasmose pode causar altera- Figura 32 .1. Córtex cerebral de indivíduo com esclerose tuberosa. À
ções da visão e da audição, hidrocefalia ou microcefalia25 . direita, vista por cima, nota-se tuberosidade de contorno arredondado
Entre as substâncias teratogênicas, a mais importante é projetando-se de um giro cerebral; à esquerda, outra lesão vista em
o álcool, pela frequência do seu consumo e das alterações corte perpendicular à superfície. O tecido que a constitui é mais firme
que produz no feto quando a m ãe é dada a libações exage- e mais claro que a substância cinzenta.
724 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

radas. Em 1973, Jones e Smith d escreveram a síndrome fe- Não conseguem captar o sentido de uma punição se esta não
tal alcoólica (SFA). Consta de retardo no crescimento intra for aplicada de imediato. São incapazes de entender o valor
e extrauterino, deficiência m ental e alterações faciais com o dos seus atos a qualquer m omento, tal como uma criança na
microcefalia e micro-oftalmia. As crianças afetadas apresen- primeira infância. São totalmente inimputáveis. Refratários
tam também retardo no desenvolvimento psicomotor, hipe- a medidas corretivas, têm que viver segregados para não en-
r atividade e déficit da atenção 2»27• Sua incidência é de cerca trarem em choque com as outras pessoas. Os apáticos têm
de 6/1 0.000 nascidos vivos nos EUA28• Parece que o álcool meno r chance de causar algum tipo de dano 1•
age nos receptores do ácido gama-aminobutírico A'l9 e que Os imbecis de primeiro grau assemelham-se aos idiotas
essa ação pro duz a m orte de neurô nios por apoptose durante menos gr aves, m as são passíveis de alguma educação. Sua
a embriogênese. Nos EUA, a SFA é a causa mais comum de convivência social é um po uco mais fácil em fun ção de sua
retardo mental, sendo a origem de 10% dos casos de pacien- maior capacidade de comunicação. Mas ainda são carentes
tes recolhidos a instituições especializadas (Cefalo RC, citad o de cuidados especiais pelos seus responsáveis. Os eréticos
por Rezende28 ) . podem -se to rnar agressivos quando contrariados em seus
Durante o parto, os episódios graves de anoxia podem desejos e chega r aos crimes de sangue. Quando presenciam
levar ao quadro da cham ada paralisia cerebral, principal- fatos ilícitos, seu testemunho costuma ser prejudicad o por
mente em fetos de baixo peso para a idade gestacional e em distorção dos fatos em razão de sua imaginação (mitoma-
prematuros. Recém -nascidos de peso extremamente baixo - nia) e seu anseio por no toriedade, pela vontade de aparecer
m enos de 1.000 g - têm grande probabilidade de apresentar com o elemento central nas investigações. Os imbecis incom-
retardo mental. O utra causa, a infecção pelo vírus do herpes, pletos, ou de segundo grau, podem chegar a ocupar algumas
contraída por contaminação do canal do parto, pode levar funções na sociedade, inclusive cargos públicos. No exercício
à infecção no recém -nascido com encefalite e consequente de suas atividades, são rígidos e incapazes de faze r face aos
retardo mental2 5. imprevistos. Principalmente os eréticos, são capazes de qual-
Do ponto de vista estatístico, são pouco impo rtantes as quer atividade antissocial, tais como crimes contra a pessoa,
causas que atuam após o primeiro mês de vida. Podemos ci- contra o património, a liberdade sexual, os costumes, e se
tar m eningites, encefalites, intoxicações (p. ex., pelo chum- entregarem à embriaguez habitual1. Na execução dos crimes
bo), traumatismos de crânio e acidentes asfíxicos como no contra o património, costumam ser canhestros e movidos
quase-afoga mento 25• por desejos m omentân eos, sendo incapazes de um bom pla-
A imputabilidade dos oligofrênicos depende do grau de nejamento. São muito sugestionáveis e podem ser levados a
comprometimento do intelecto e da sua capacidade de inte- se envolver em fraudes e extorsões quando na função públi-
ragir na sociedade. Nesse sentido, é importante acrescentar ca. Os apáticos podem ser intimidados por penas, desde que
que, mesmo dentro de uma categoria da classificação, há um imediatas ao delito. Mas os eréticos tornam -se mais perigo-
escalo nam ento da gravidade do processo. Assim, há indiví- sos quando am eaçados ou presos, liber ando grande agres-
duos que podem ser rotulados o ra como imbecis, ora como sividade. Por isso, o local mais indicado para sua correção
idiotas. Alves Garcia 1 emprega uma divisão em graus dentro quando com etem delitos são os reformatórios e asilos, o nde
dessas categorias, de modo que o imbecil de primeiro grau podem ser reorientados e vigiados. No caso de serem libera-
confronta com o idio ta e o de segundo grau, imbecil incom - dos após algum tempo e reincidirem no crime, têm que ser
pleto, com o débil mental. Po r isso, na avaliação da imputa- segregados indefinidamente1 • Confo rme o caso, serão consi-
bilidade, ora o imbecil é alocado ao caput, ora é alocado ao derados inimputáveis ou semi-imputáveis.
parágrafo único d o artigo 26 do Código Penal. Tanto o im- De acordo com Alves Garcia 1, os débeis men tais estão
becil quanto o idiota podem ter um comportamento erético sempre sujeitos a todo tipo de infrações por causa de sua
ou apático. Os eréticos são aqueles m ais ativos, que interagem dificuldade de entendimento das normas sociais e jurídicas,
mais com o meio social dentro das suas possibilidades. Os sua baixa capacidade de inibição e sugestionabilidade. Seu
apáticos, pelo contrário, são inibidos, pouco atuantes e, por senso de percepção dos valores éticos é disto rcido pela inca-
isso, menos propensos à delinquência. pacidade de um raciocínio abstrato normal. No trato social,
Os idiotas profundos são tão desprovidos de atributos in- chegam a passar como pessoas normais. Alguns são dados
telectuais que vivem vegetativamente à margem da socieda- a ostentar erudição, mas de cultura superficial. O utros têm
de e da família, esquecidos em um canto. Dificilmente come- grande capacidade em decorar números ou nomes. Nos anos
tem algum delito, dada a sua incapacidade de interagir. Os 1950, ficou fa moso, no Rio de Janeiro, um desses indivíduos,
idiotas incompletos eréticos são capazes de entrar em conflito chamado de "Romário, o homem dicionário': que compare-
com o m eio social em função de sua incapacidade de conter cia a program as de rádio para responder sobre o significado
os instintos e de absorver as normas sociais de convivência. de palavras incomuns na linguagem corrente. Dependendo
Seu compo rtamento pode chegar à prática de crimes sexuais, dos traços de sua personalidade, podem-se torn ar antisso-
homicídios bárbaros, inclusive contra os seus genitores, ciais e com eter delitos caracterizados por velhacaria, insensi-
vampirismo e antropofagia. Sua periculosidade é m aior no bilidade ou agressividade. Sua imputabilidade está diminuí-
meio do méstico e institucio nal, justamente para os que li- da em função de sua defi ciente valoração das normas éticas
dam diretamente com eles e têm a missão de o rientá-los. e jurídicas.
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 725

Medidas de Segurançaªº Art. 98. Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste


Código e necessitando o condenado de especial tratamento
A existência de pessoas que cometem crimes sem saber curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída
o que fazem traz um problema para a sociedade. A inca- pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo prazo
pacidade de entendimento que propicia o crime também mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos, nos termos do artigo
faz com que o agente, se punido, não compreenda o porquê anterior e respectivos §§ 1º a 4º.
da pena, o que tira da medida punitiva os seus objetivos de
intimidação e de correção. Como consequência, a socieda- A aplicação das medidas de segurança é executada diante
de torna-se vulnerável diante de indivíduos que, não sendo da periculosidade do agente. Se ele for absolvido pelo juiz da
a penados, podem voltar a delinquir, uma vez que suas con- vara criminal por ser inimputável, presume-se a sua pe-
dições mentais criminógenas permanecem. A solução en- riculosidade, de acordo com o caput do artigo 97 do CP. A
contrada para conciliar o interesse social de segurança com medida a ser implantada é a internação em hospital de cus-
o tratamento justo a ser dado ao delinquente inimputável tódia e de tratamento psiquiátrico (manicômio judiciário),
foi a adoção das chamadas medidas de segurança. O funda- podendo ser adotado apenas o tratamento ambulatorial no
mento da aplicação da pena é a culpabilidade, enquanto o caso de o crime praticado ser punido com pena de detenção.
da medida de segurança é a periculosidade. Esta é o poten- Uma vez transitada em julgado a sentença absolutória que
cial para a delinquência e a reincidência presente no agente reconheceu a necessidade da medida de segurança, manda
como uma característica sua duradoura. Na legislação penal a Lei de Execução Penal que seja expedida uma guia para a
anterior à reforma da parte geral do Código Penal, as me- execução da medida (art. 171 da LEP)31 • Ninguém pode ser
didas de segurança incluíam, além das terapêuticas, outras internado em hospital para custódia e tratamento psiquiá-
de caráter processual. Com a vigência da nova lei penal (Lei trico sem essa guia expedida pela autoridade judiciária (art.
7.209/84) 5, as medidas de segurança foram unificadas, pre- 172 da LEP ). Nos casos de simples tratamento ambulatorial,
valecendo apenas o seu sentido terapêutico e preventivo. O pode haver conversão para internação se o agente revelar-se
atual Código Penal estabelece: avesso ao esquema ambulatorial (art. 184 da LEP).
A duração da medida de segurança é indeterminada, com
Art. 96. As medidas de segurança são: um mínimo de 1 a 3 anos (§ l º do art. 97 do CP). Quem
I - internação em hospital de custódia e tratamento psi- determina o tempo é o juiz da vara criminal. Após o prazo
quiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; mínimo, o agente será examinado de ano em ano para se sa-
II - sujeição a tratamento ambulatorial. ber se cessou a sua periculosidade (§ 2-º- do art. 97 e art. 175
Parágrafo único. Extinta a punibilidade, não se im- da LEP). Esse exame pode ser autorizado pelo juiz da vara de
põe m edida de segurança nem subsiste a que tenha sido execuções penais antes do prazo mínimo, se requerido pelo
imposta. Ministério Público ou pelo interessado (art. 176 da LEP), nos
casos de doenças de curta evolução ou externada por meio
É necessário, para a aplicação das medidas de seguran- de surtos.
ça, que o agente tenha cometido um ilícito penal e que seja
reconhecida nele a pericul osidade. Assim determina o Có-
digo Penal: • PERÍCIA

Art. 97. Se o agente for inimputável, o juiz determinará A perícia psiquiátrica d e avaliação da imputabilidade
sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como é necessária, em geral, durante o inquérito policial e antes
crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a do julgamento. Mas também pode ser necessá ria durante
tratamento ambulatorial. o julgamento, e até durante a execução da pena. Uma vez
§ 1~ A internação, ou tratamento ambulatorial, será por aplicada a medida de segurança cabível, será preciso, mais
tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averi- tarde, verificar se ela ainda é necessária ou se deve ser inter-
guada, mediante perícia médica, a cessação da periculosi- rompida. Nesse momento, o psiquiatra forense é solicitado
dade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos. a informar se cessou a periculosidade. Assim, podemos dis-
§ 2º A perícia m édica realizar-se-á ao termo do prazo tinguir dois tipos de perícias: sanidade mental e cessação da
mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a periculosidade.
qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução.
§ 3º A desinternação, ou a liberação, será sempre con - Exame de Sanidade Mental
dicional, devendo ser restabelecida a situação anterior se o
agente, antes do decurso de 1 (um) ano, praticar fato indi- O exame de sanidade mental tem que ser realizado sem-
cativo de persistência de sua periculosidade. pre que se suspeitar que o acusado seja portador de algum
§ 4º Em qualquer fase do tratamento ambulatorial, transtorno mental. Se a suspeita for feita durante a fase de
poderá o juiz determinar a internação do agente, se essa inquérito policial, caberá ao delegado fazer uma representa-
providência for necessária para fins curativos. ção ao juiz competente para que este determine a realização
726 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

d o exame por perito oficial, conforme instruí o Código de Tipo de Transtorno Mental
Processo Penal ( CPP )2º. Nas outras fases do processo penal,
Já vimos que a expressão "doença mental" do CP quer
o exame pode ser solicitado pelo Ministério Público, pelo
dizer psicose, epilepsia ou demência. Quando o CP diz "de-
defensor, curad or, ascendente, descendente, irm ão ou côn-
senvolvimento m ental retardado", refere-se aos oligofrênicos,
juge do acusad o. Não havendo solicitação, pode o juiz por
isto é, os deficientes m entais. A expressão "perturbação da
sua própria iniciativa, de ofício, determinar a realização da
saúde mental" tem um espectro mais amplo, como já expli-
perícia. É o que consta nos artigos 149 e 150 do CPP.
camos linhas atrás. Engloba, principalmente, os psicopatas e
os neuróticos, mas também alberga os doentes mentais em
Art. 149. Quando houver dúvida sobre a integridade
fase inicial da doença, nos quais o comprom etimento mental
mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a reque-
ainda é incipiente.
rimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do
ascendente, descenden te, irmão ou cônjuge do acusado, seja Nexo de Causalidade entre o Ilícito Penal e o Transtorno
este submetido a exame médico-legal. Mental
§ 1º O exame poderá ser realizado ainda na fase de in-
quérito, mediante representação da autoridade policial ao O que precisa ser dem onstrado é que o delito surgiu
juiz competente. com o um efeito da patologia mental do acusado. O tipo de
§ 2º O juiz nomeará curador ao acusado, quando deter- ação criminosa tem que estar em consonância com os de-
minar o exame, ficando suspenso o processo, se já iniciada a mais sintom as do transtorno m ental que o indivíduo apre-
ação penal, salvo quanto às diligências que possam ser preju- senta. No caso dos psicóticos, pela própria disto rção da re-
dicadas pelo adiamento. alidade que esses doentes apresentam , fica extremamente
difícil estabelecer uma ligação de causa e efeito entre os seus
O perito incumbido de fazer o exame terá que determi- pensamentos e o fato delituoso9 • Se, após sucessivas sessões
nar, com relação ao réu: de conversa com o doente, ficar patenteado que a vítima foi
1) a existência de algum transtorno m ental; envolvida na trama delirante do acusado, não há como ne-
2) o tipo de transto rno; gar a relação. Ivan Bastos 32 contava o caso de um doente que
3) o nexo de causalidade entre o transto rno e o fato in- matara o padre de uma igreja da Zona Sul, Rio de Janeiro,
criminado; porque a imagem de uma santa, que ficava num dos altares,
4) a capacidade de entendimento; apontava para ele e o chamava de veado. Com o ele ajudava o
5) a capacidade de autodeterminação. padre durante as missas, passara a se sentir agredido toda vez
Par a se desincumbir da tarefa, o perito oficial pode solici- que havia a cerimônia religiosa. Para livrar-se da perseguição
tar ao juiz da var a criminal a internação do acusado por um da santa, ele acho u que eliminando o representante de Deus
na Terra, o padre, resolveria o problem a. Atraiu-o, em uma
perío do de até 45 dias, q ue podem ser pro rrogados se ho uver
noite, para um local onde alguém estaria precisando de uma
necessidade, confo rme estabelece o artigo 150 do CPP.
extrema- unção e o esfaqueou por diversas vezes. A autoria
Art. 150. Para o efeito do exam e, o acusado, se estiver
do crime só foi descoberta porque ele vivia sozinho com a
mãe e ela havia notado sua mudança de comportamento.
preso, será in ternado em m anicômio judiciário, onde hou-
Depois de saber da notícia da m orte violenta do padre, ao ar-
ver, ou, se estiver solto, e o requererem os peritos, em estabe-
rumar a cama do filho, achou a arma do crime ainda suja de
lecimento adequado que o juiz designar.
sangue embaixo d o colchão e procuro u a polícia. Notando
§ 1º O exame não durará m ais de 45 dias, salvo se os
que o preso apresentava sinais de insanidade m ental, o dele-
peri tos dem onstrarem a necessidade de maior prazo.
gado representou ao juiz e a perícia fo i feita.
§ 2º Se não houver prejuízo para a m archa do processo,
Contudo, nem sempre é possível penetrar no pensamento
o juiz poderá autorizar sejam os autos entregues aos peri-
delirante do doente de modo a poder estabelecer o nexo etio-
tos, para facilitar o exame.
lógico. Nos surtos psicóticos, o doente pode identificar algum
desconhecido com um inimigo, ou realizar atos criminosos
Existência de Transtorno Mental
obedecendo a vozes que só ele ouve e que o dominam. Passado
A expressão transtorno mental é usada pela 10" Revisão o surto, não se pode saber como a vítima poderia estar ligada
da Classificação Internacional de Doenças, e abrange to das ao assassino. Por isso, muitas vezes é difícil se chegar ao crimi-
as patologias mentais que podem ser enquadrad as nos ter- noso. Não sendo possível estabelecer o nexo entre o delito e o
mos e expressões usad as pelo CP no seu artigo 26. Mas o mundo virtual do psicótico, mas sabendo-se que o crime foi
CP ainda emprega a expressão "desenvolvimento m ental in- cometido durante fase ativa da doença, tem-se que admitir o
completo", que não corresponde a transtorno m ental algum. nexo. É quase a aplicação do critério biológico. Nos casos de
Refere-se aos silvícolas e aos surdos-mudos que não foram epilepsia, se o criminoso fo r preso pouco depois do crime, é
adequadamente instruídos. No critério biopsicológico, ado- possível verificar se estava em crise por causa da má escolha da
tado po r nosso código, o diagnóstico do transto rno mental é vítima, da amnésia completa com relação ao fato, da violência
a vertente bio lógica. inusitada da agressão e da história de outras crises epilépticas.
CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal • 727

Da mesma forma, não há como saber se a agressão entrava terminação decompõem-se ambas em um número tão gran-
num contexto lógico das vivências anormais. Novamente, o d e de faculdades, tanto intelectivas quanto volitivas, que seria
nexo é d ado pela concomitância entre o crime e a doença em artificial tentar estabelecer quais as pertencentes à intelecção
atividade. Gualter Lutz9 cita um caso de H eitor Carrilho, de e quais à conação. Na maioria das vezes, a incapacidad e de
um indivíduo que matou a mulher e o filho em uma estrad a autocontrole está associada a prejuízo do entendimento.
e foi para casa. Quando os corpo s foram encontrados, alguém Mesmo nos automatismos epilépticos, não se pod e falar em
foi à sua residência para lhe dar a amarga notícia. Lá chegan- prejuízo puramente da volição, pois que há inconsciência d o
do, foi atendido pelo dono da casa, que prontamente abriu a que se faz. Nos crimes relacionados com explosões emocio-
porta, e apareceu com as roupas ensanguentadas. Na verdade, nais, como vimos, é preciso recorrer à teoria da actio libera in
tal homem não sabia que a mulher e o filho estavam mortos. causa para justificar a punibilidade. Porém, em alguns casos,
Muito menos que ele próprio os matara. é possível estabelecer clar amente que o indivíduo tinha o en-
Em se tratando d e oligofrênicos, o nexo deve ser con- tendimento, mas não foi capaz d e se controlar. É o caso típico
dicio nad o ao grau do retardo mental. Tod os os idiotas e os d a cleptom ania. Também nos transtornos da personalidade
imbecis de primeiro grau são inimputáveis. Os demais, quer não há prejuízo do entendimento. Desse mod o, cada caso
dizer, imbecis d e segundo grau e d ébeis m entais, têm que ser d eve ser avaliado d e acordo com as características d o agente.
examinados d entro d o contexto d o ato cometido. Em geral, O exame de sanidade m ental po de ser necessário em
são co nsiderados semi-imputáveis. qualquer fase do processo penal, inclusive d epois d a senten-
Os casos em que o nexo causal é m ais difícil de estabelecer ça, quando o agente está cumprindo a pena que lhe foi im-
são os dos psicopatas 1•9 • Confo rme já vimos, a análise d as ten- posta. Nesse caso, cabe ao juiz da execução penal determinar
dências do tipo de psicopata em questão deve ser feita visando a sua realização. Os dispositivos legais que estabelecem as
à com paração com o delito praticado. Não podemos olvidar norm as a serem seguidas são:
que todos eles sabem o que estão fazendo. O problem a é que
alguns se deixam envolver por ideias falsas, por exemplo, de Código Penal
ciúme, enquanto outros são m ovidos por uma impulsividade
Art. 41. O condenado a quem sobrevém doença mental
anormal, tendo pouco controle de si (dificuldade na autode-
deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psi-
terminação), co mo na cleptomania e em algumas perversões quiátrico ou, à falta, a outro estabelecim ento adequado.
sexuais. Por fim, há os que pouco se importam de causar dano
Código de Processo Penal
ou m al a quem quer que seja, inclusive m ãe, pai, irmãos etc.
Art. 152. Se se verificar que a doença mental sobreveio à
O nexo se estabelece, como dissemos, na comparação do ato
infração, o processo continuará suspenso a té que o acusado
delituoso com o tipo de personalidade anormal.
se restabeleça, observado o § 2º do art. 149.
§ 1º O juiz poderá, nesse caso, ordenar a internação do
Capacidade de Entendimento
acusado em m anicômio judiciário ou em outro estabeleci-
A compreensão da ilicitude do fato requer que o agente mento adequado.
seja capaz de captar as info rmações exteriores, de integrá-las § 2º O processo retomará o seu curso, desde que se res-
pela percepção, de valorizá-las dentro de um sistema axiológi- tabeleça o acusado, ficando-lhe assegurada a faculdade de
co e de escolher a conduta condizente com as normas. Como reinquirir as testemunhas que houverem prestado depoi-
já ficou claro na discussão d as seções anteriores, os diversos mento sem a sua presença.
transtornos mentais pod em interferir em qualquer dessas fa- Art. 154. Se a insanidade mental sobrevier no curso da
ses do entendimento em grau maior ou menor. Cabe ao psi- execução da pena, observar-se-á o disposto no artigo 682.
quiatra forense pesquisar no agente os sinais e sintom as de- Art. 682. O sentenciado a quem sobrevier doença men-
nunciadores dos transtornos da consciência, da percepção, d a tal, verificada por perícia médica, será internado em m a-
ideação, da inteligência, da afetividade etc. A maneira de obter nicômio judiciário, ou, à falta, em outro estabelecimento
essas info rmações faz parte da técnica de exam e psiquiátrico e adequado, onde lhe seja assegurada a custódia.
foge ao propósito deste livro. É assunto por demais especiali- §§ 1º e 2º .................................................. .
zado para ser aqui aprofundado. O leitor interessad o d eve-se Lei de Execução Penal
reportar às referências bibliográficas ao final do capítulo. Art. 183. Quando, no curso da execução da pena priva-
tiva de liberdade, sobrevier doença men tal ou perturbação
Capacidade de Autodeterminação da saúde mental, o juiz, de oficio, a requerim ento do Minis-
O CP exige que, além d e entender a ilicitude, o agente tério Público ou da autoridade adm inistrativa, poderá de-
tem que pod er autodeterminar-se confo rme as normas. Isso terminar a substituição da pena por medida de segurança.
significa que, uma vez estabelecido que o agente era capaz de
saber que agia contrariam ente às normas jurídicas, era capaz Cessação da Periculosidade
de se refrear para não as violar. O limite em que deixa de atu-
ar a razão e começa a imperar a volição não é claro. Segundo Constatad o que o agente delinquiu em função do trans-
Miguel Chalub 33•34 , a capacidad e de entendimento e a de de- to rno mental, será declarad o inimputável e submetido à me-
728 • CAPITULO 32 Estudo Médico-legal da Imputabilidade e da Responsabilidade Penal

<lida de segurança adequada. Mas tal medida tem duração 2. Lima H . Introdução à Ciência do Direito. 23• ed. Rio de Janeiro:
mínima, como vimos, de 1 a 3 anos(§ 1º- do art. 97 do CP) . Livraria Freitas Bastos SA; 1973.
3. Brasil. Código Penal. Decreto-lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940.
Findo o prazo decretado pelo juiz, é obrigatório que seja fei- 4. Delmanto C. Código Penal Comentado. 2• ed. Rio de Janeiro:
to novo exame do paciente a fim de que se saiba se perduram Livraria e Editora Renovar Ltda; 1988.
as mesmas condições mentais que impuseram a adoção da 5. Brasil. Código Penal. Parte Geral. Lei 7.209 de 11 de julho de 1984.
medida de segurança. Em outras palavras, se o agente con- 6. Mirabete JF. Culpabilidade. In: Manual de Direito Penal. Vol. 1. 2•
tinua a ser um perigo para a sociedade. Nessas condições, ed. São Paulo: Editora Atlas SA; 1985. Capítulo 5, p. 193-22 1.
7. Hungria N . Comentários ao Código Penal. Vol. I, 4' ed. Rio de Ja-
o psiquiatra forense tem que fazer a perícia de cessação da
neiro: Companhia Editora Forense; 1958. Tomo II, artigos 11 a 27.
periculosidade. O Código de Processo PenaF0 e a Lei de Exe- 8. Bruno A. Imputabilidade. In: Direito Penal. 3• ed. Rio de Janeiro:
cução Penal3 1 estabelecem as normas a seguir: Companhia Editora Forense; 1967. Tomo 2Q, Capítulo XX, p. 39-55.
9. Lutz GA. A responsabilidade criminal no novo Código Penal. Rev
Código de Processo Penal Forense; 1941. 88:34. Capítulo 7, p. 83-97.
10. Fávero F. Medicina Legal. 8ª ed. São Paulo: Livraria Editora Mar-
Art. 775. A cessação ou não da periculosidade se veri-
tins; 1966.
ficará ao fim do prazo mínimo de duração da medida de 11. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
segurança pelo exame das condições da pessoa a que tiver 12. Brasil. Estatuto do 1nd io (Lei 6001 de 1973).
sido imposta, observando-se o seguinte: 13. Arquivo Veja. A explosão do instinto selvagem. Reportagem de capa
da revista Veja de 10 de junho de 1992. Captado do sítio www.veja.
................................................... [incisos de I a VIII, abril.com.br/arquivo_veja/ capa_ l 0061992.shtml, em 07/08/2013.
14. MacKay HT. Gynecology. In: Current Medical Diagnosis & Treat-
que não interessam à perícia] ment. 36'h ed. Tierney Jr. LM, McPhee SJ, Papadakis MA, eds. Lon-
Art. 777. Em qualquer tempo, ainda durante o prazo d res: Appleton & Lange; 1997. Capítu lo 17, p. 668-700.
mínimo de duração da medida de segurança, poderá o Tri- 15. Siegel JM. Why we sleep. Sei Amer; 2003. 289(5):72-77.
bunal, Câmara ou Turma, a requerimento do Ministério 16. Nash MR. The truth and the hype of hypnosis. Sei Amer. 2001;
Público ou do interessado, seu defensor ou curador, ordenar 285( 1):37-43.
17. Melo ALN. Da consciência e suas perturbações. In: Psiquiatria. Vol.
o exame, para a verificação da cessação da periculosidade.
I. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1979. Capítulo VIII,
§§ Jll e 2Q ................................................... [que não in- p. 321-351.
teressam ao nosso estudo]. 18. Gomes H. Psicologia Forense. Limites e modificações da respon-
sabilidade penal e da capacidade civil. ln: Medicina Legal. 31• ed.
Os artigos 175 e 176 da Lei de Execução Penal têm teor Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos; 1994. Capítulo 7, p. 83-103.
19. Saffioti W. Fundamentos de Química. lQ vol. São Paulo: Compa-
normativo semelhante, e a competência passa a ser do juiz
nhia Editora Nacional; 1968.
de execução criminal e não d e instâncias superiores, o que 20. Brasil. Código de Processo Penal (Decreto Lei 3689 de 03/ 10/41 ).
agiliza o processo e possibilita a liberação do agente antes do 21. Grant I. Personality Disorders. ln: Psychiatry and Medicine. Harri-
prazo mínimo. son's Principies ofl ntemal Medicine. l 2'h ed. Jean D. Wilson et ai., eds.
Uma vez feita a perícia, se as condições persistem, o agen- NewYork: McGraw-Hill, Inc.; 1991. Capítulo 368, p. 2.122-2.139.
22. Abreu AC, Filips JK. Personality disorders. Tabela 18.7. Disponível
te continua internado no manicômio judiciário, ou em tra-
em: http://www.vh.org/adult/ provider/familymedicine/ FPHand-
tamento ambulatorial, voltando a ser examinado a cada ano book/Chapterl8. Acessado em: 14 mai. 2004.
(§ 2" do art. 97 do CP) . Caso tenha havido melhora significa- 23. Bienenfeld D. Personality disorders. Disponível em: http://www.
tiva ou mesmo a cura, real ou aparente que seja, do quadro emedicine.com/med/ topic3472. Acessado em: 14 mai. 2004.
clínico, o psiquiatra informa ao juiz que cessou a periculosi- 24. CID- 10. Classificação Internacional de Doenças e Problemas Rela-
cionados à Saúde. 10' revisão. São Paulo: Editora da USP; 1995.
dade e o juiz suspende a medida de segurança, e o indivíduo
25. Sebastian CS. Mental Retardation. Disponível em: http://www.
é posto em liberdade. emedicine.com/med/ topic3095.htm. Acessado em: 16 mai. 2004.
Conforme já referimos, há transtornos mentais de curta 26. Lissauer T, Clayden G. Genetics. In: Illustrated Textbook of Pedia-
duração, mas de intensidade suficiente para tornar o indiví- trics. 200 ed. Londres: Mosby; 2001.
duo inimputável durante o surto. São assim as psicoses agu- 27. Chiriboga CA. Fetal alcohol and drug effects. Neurologist; 2003.
9(6) :267-279.
das, como as de pavor, os delírios febris, as turvações da cons-
28. Rezende J. Efeitos iatrogênicos de medicamentos. Farmacode-
ciência decorrentes de disfunções orgânicas, como o pré-coma pendência. Intoxicações. Acidentes. Infortunística. In: As doenças
hepático, os estados crepusculares dos epilépticos, a embria- intercorrentes no ciclo grávido-puerperal. Obstetrícia. 9• ed. Jorge
guez patológica, as psicoses tóxicas etc. Ora, se o motivo para a de Rezende, ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2002 . Capítulo
adoção da medida de segurança não persiste, torna-se injusto 19, p. 393-655.
manter segregado da sociedade o indivíduo que cometeu o 29. Davies M. The role of GABAA receptors in mediating the effects of
alcohol in the central nervous system. J Psychiatry Neurosci; 2003.
ilícito penal em função do transtorno mental. Por isso, há o 28(4):263-274.
dispositivo do artigo 777 do CPP 20 e do artigo 176 da LEP31 • 30. Mirabete JF. Medidas de Segurança. In: Manual de Direito Penal. Vol.
1. 2• ed. São Paulo: Editora Atlas SA; 1985. Capítu lo 10, p. 348-356.
31. Brasil. Lei de Execução Penal (7.21 0 de 11 de julho de 1984).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 32. Bastos IN. Comunicação pessoal.
33. Chalub M. Comunicação pessoal.
1. Garcia JA. Psicopatologia Forense. 2• ed. Rio de Janeiro: Irmãos 34. Taborda JGV, Chalub M, Abdalla Filho E. Psiquiatria Forense. Porto
Pongetti Eds.; 1958. Alegre: ArtMed; 2004.
Miguel Chalub

• CONCEITO em tóxicos e os que, por deficiência mental, tenham o dis-


cernimento reduzido", além dos "excepcionais, sem desen-
Todo cidadão maior de 18 anos, na atual legislação bra- volvimento mental completo': bem como os maiores de 16
sileira (arts. 1º e 2-º- do CC), é plenamente capaz de direitos anos e menores de 18 anos e os pródigos. Cumpre salien-
e deveres na ordem civil. Isso significa que toda pessoa tem tar que os incapazes continuam a ser titulares dos direitos
os direitos e deveres individuais, coletivos, sociais e políti- gara ntidos pela Constituição, apenas não podem exercê-los
cos que estão inscritos no Título II da Constituição Federal. pessoalmente. Têm que ser representados, no caso dos total-
Tal vem a ser a capacidade civil da pessoa. No quotidiano mente incapazes, o u assistidos pelo seu representante legal,
da vida de cada um, todo indivíduo na plenitude de sua no caso dos relativamente incapazes. No caso de serem de
ca pacidade civil pode comprar e alienar bens, casar-se, se- menor idade, será o tutor; quando maiores, será o curador o
parar-se e divorciar-se, escolher uma profissão, exercer uma seu representante legal.
ocupação, doar, testar, testemunhar, sair e voltar do país, É importante assinalar que o Código Civil cria uma espé-
mudar de residência, adotar filhos, perfilhar, escolher uma cie de critério biopsicológico para a incapacidade civil (ver,
religião, ter a guarda e tutela de filhos ou outros menores, a propósito do critério biopsicológico, o Capítulo 32), pois
votar, ser votado, participar de associações, sociedades e não basta que a pessoa tenha um transtorno mental, qual-
agremiações, sair delas, exercer mandatos de qualquer na- quer que seja ele, mas é preciso que esse transtorno m ental
tureza, conduzir veículos e, enfim, fazer ou deixar de fazer lhe tenha revogado o discernimento para a prática dos atos
tudo aquilo que a lei expressamente não proíbe o u impe- da vida civil. Por enfermidade mental, devemos entender
de. É claro que o exercício de certos direitos - como, por qualquer transtorno mental, e por deficiência mental, a oli-
exemplo, exercer uma profissão - pode eventualmente estar gofrenia ou retardo mental.
regulado por lei. De uma maneira geral, uma enfermidade mental que seja
No entanto, a lei também prevê certas condições e cir- capaz de abolir o discernimento para a prática dos atos da
cunstân cias em que essa capacidade civil será limitada ou até vida civil pertencerá ao grupo das psicoses ou das demências.
abolida. Trata-se da incapacidade civil, absoluta ou relativa. Dificilmente uma neurose ou um transtorno de personalida-
De acordo com o Código Civil (art. 3-º-), são absolutamente de poderá ter tal consequência. Mas, é importante assinalar
incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, além que cada caso deverá ser examinado minuciosamente para a
dos m enores de 16 anos, "os que, por enfermidade ou defi- avaliação da perda do discernimento em razão da enfermi-
ciência mental, não tiverem o necessário discernimento para dade mental. Pode-se lembrar uma grave neurose obsessivo-
a prática desses atos" e "os que, mesmo por motivo transi- compulsiva invalidante ou um importante transtorno de
tório, não puderem expressar sua vontade''. O artigo 4-º- do personalidade dependente.
código diz que "são incapazes, relativamente a certos atos, A lei prevê o discernimento reduzido para os casos de
ou à maneira de os exercer, os ébrios habituais, os viciados deficiência mental. Com efeito, sabemos que o retardo men-

729
730 • CAPITULO 33 Estudo Médico-legal da Capacidade Civil

tal admite graus de gravidade: leve, moderado, grave e pro- • INTERDIÇÃO E CURATELA
fundo, de acordo com a terminologia da CID-10. Assim, de
uma maneira preliminar, podemos dizer que a deficiência Verifi cada a existência de incapacidade civil, poder-se-ão
mental, se grave ou profunda, leva à inca pacidade absoluta, e promover a interdição e a curatela da pessoa acometida. O
a leve, à incapacidade relativa para certos atos ou à maneira Código Civil estabelece as regras pertinentes do artigo 1.767
de os exercer. Q uanto ao retardo mental moderado, a conclu- ao 1.783. A interdição retira do cidadão a capacidade civil, e
são dependerá de uma percuciente análise psicopatológica. é nomeado pela Justiça alguém que vai cuidar de seus inte-
A lei criou também uma condição que não existia na resses, o curad or. Estão suj eitos à interdição e à curatela os
antiga legislação civil brasileira: os qu e não puderem ex- que por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o
primir sua vontade ainda que seja po r m otivo transitório. necessário discernimento para os atos da vida civil, os que
Essa situação se aplica àquelas enfermidades que, apesar de por outra ca usa duradoura não puderem exprimir sua von -
não serem transto rnos mentais, comprom etem de tal forma tade, os deficientes mentais, os ébrios habituais, os viciados
a vida de relação que to rnam impossíveis a comunicação em tóxicos, os excepcionais sem completo desenvolvimento
interpessoal e a expressão da vontade de cada um. Estão aí mental e os pródigos.A interdição pode ser prom ovida pelos
incluídas algumas doenças nervosas (do sistema nervoso, pais o u tutores, pelo cônjuge, por qualquer parente e pelo
impropriamente chamadas de "neurológicas") e os estados Ministério Público. Na sentença de interdição, o juiz assina-
deficitários da consciência, desde a obnubilação o u turvação rá, segundo o estad o e o desenvolvimento mental do inter-
até o coma, de qualquer etiopatogenia, nervosa ou sistêmi- dito, os limites da curatela. Portanto, o laudo de exame de
ca. O caso se aplica, por exemplo, à esclerose lateral amio- sanidade m ental que servir de subsídio ao juiz deverá espe-
trófica, à esclerose múltipla em fase final, a graves atrofias e cificar os limites da incapacidade relativa, quando fo r o caso.
a ataxias incapacitantes e outras condições. Se a doença cur- No laudo também deverá constar se há meio de recuperar o
sar também com transtornos mentais, demência, por exem- interdito (art. 1.776) e se há necessidade de internação em
plo, recai-se no caso anterio r. É importante assinalar que, estabelecimento adequado (art. 1.777) . Ainda que não se
m esmo que o m otivo seja transitório - com a, sobre o qual trate propriamente de doença mental, é oportuno lembrar
se preveja plena recuperação (coma traumático, coma in- que o enfermo ou portador de deficiência física poderá ter
feccioso) - caracteriza-se a incapacidade absoluta enquanto também um curador para cuidar de todos ou alguns de seus
perdurar tal estado. negócios ou bens (art. 1.780 ).
Os ébrios habituais e os viciados em tóxicos são os depen- Os procedimentos para que se pro movam a interdição
dentes de substân cias psicoativas, mormente álcool. Como a e a curatela estão disciplinados em diversos artigos do Có-
lei prevê par a eles a incapacidade relativa, é importante que digo de Processo Civil. Solicitad as a interdição e a curatela
o exame pericial seja bem conduzido no sentido da verifica- pelas pessoas ou instituição legalmente habilitadas, o juiz
ção de quais atos ou de qual maneira os exercer deveriam ser nomeará um perito que o assistirá. O perito pode recusar-se
objeto do impedimento legal. O princípio de que os direitos ao encargo desde que alegue motivo legítimo e que a escusa
e as garantias individuais só deveriam ser restringidos em seja comunicada dentro de 5 dias contados da intimação ou
casos extremos aí se aplica. Um ébrio habitual ou um viciado do impedimento superveniente. O u seja, m esm o depois de
em tóxicos (para usar a terminologia do código) pode ser aceitar o encargo, pode alegar m otivo legítimo surgido após
impedido de vender ou comprar bens, mas não de atuar em o aceite. A legitimidade do motivo é de livre convencimento
uma profissão cujo exercício não ponha em risco outrem. do juiz. A falsa perícia torna o profissional inabilitado por 2
O termo "excepcional" é muitas vezes usado for a dos anos para funcionar em outra perícia além da responsabi-
m eios médicos par a designar os deficientes mentais. Como lidade civil perante a parte prejudicada, a respo nsabilidade
a lei já contempla o caso d os deficientes m entais, devem os penal e a responsabilidade ética (art. 118 do CEM).
entender essa expressão de outra maneira. Com o se fala Em um processo de interdição e curatela, habitualmente,
em "sem desenvolvimento mental completo", podem os são partes legítimas na ação aquele que requereu a interdi-
compreender qu e se trata de deficientes sensoriais (cegos, ção e a curatela e a pessoa a ser interditada, o interditando.
surdos) ou mesm o de deficientes m otores cuja deficiência, Incumbe às partes, dentro de 5 dias do d espacho da nomea-
ainda que não tenha causado um retardo m ental, tenha pre- ção do perito pelo juiz, indicar os assistentes técnicos e apre-
judicado grandem ente o desenvolvimento das funções psí- sentar os quesitos. Assim, a prova pericial dependerá de três
quicas, mormente emocionais ou afetivas. Trata-se do caso profissionais: o perito, livremente designado pelo juiz, e os
previsto na CID-10 como transtornos do desenvolvimento assistentes técnicos, em geral dois, que são indicados pelas
psicológico, transtornos mistos da co nduta e das emoções, partes e não estão sujeitos à suspeição ou ao impedimento
transtornos emocionais com início especificadamente na com o o está o perito. Ainda q ue a lei não use o termo "peri-
infância e transtorno d o funcionamento social com início to", é entendimento consensual que os assistentes técnicos es-
especificadamente na infâ ncia ou adolescência e condições tão sujeitos às mesmas regras legais, regulamentares e éticas
assemelhadas. A avaliação pericial deve ser muito criteriosa do perito. Os quesitos são de livre fo rmulação do juiz e das
nesses casos. partes e devem ser respondidos integralmente pelo peritos e
CAPITULO 33 Estudo Médico-legal da Capacidade Civil • 731

pelos assistentes técnicos. O Código de Processo Civil (§ 2º Anamnese


do art. 421) prevê o caso da simples inquirição do perito e
Na medida das possibilidades técnicas, devem ser colhi-
dos assistentes técnicos, ficando, nesse caso, em geral, dispen-
das a história da doença atual, a história patológica pregres-
sada a apresentação do laudo de exame de sanidade mental.
sa, a história familiar, a história fisiológica, a história sexual,
O laudo de exame de sanidade mental é de responsabilidade
a história social e a história pessoal. A história pessoal vem a
do perito designado pelo juiz, mas os assistentes técnicos de-
ser uma breve biografia do examinando, muito útil para se
vem, no prazo de 10 dias, apresentar seus pareceres.
entender a inserção da doença mental, se for o caso, em sua
existência .
• PERÍCIA EM MATÉRIA CIVIL E O RESPECTIVO
LAUDO Exame Físico
Exame somático de aparelhos, sistemas e segmentos cor-
Ainda que boa parte das perícias psiquiátricas civis seja porais, com particular atenção para o sistema nervoso ( exa-
relativa à interdição e à curatela, outras pendências judiciais me neurológico).
podem ser objeto de avaliação psiquiátrica da capacidade ci-
vil para o exercício de certos atos ou à maneira de os exercer.
Um ato da vida civil pode vir a ser anulado posteriormente Exames Complementares
se a perícia demonstrar que, ao praticar tal ato, a pessoa esta- Se necessário, podem ser pedidos: exame psicológico
va acometida de um transtorno mental que lhe retirou o dis- (testes de inteligência, personalidade, neuropsicológicos e
cernimento, total ou parcialmente, ou que lhe tenha causado outros), mapeamento cerebral por eletroencefalograma, to-
grave prejuízo na expressão da vontade. Tal pode-se dar com mografia computadorizada do encéfalo, ressonância magné-
a alienação de um bem, um negócio feito, o casamento, uma tica do encéfalo com ou sem espectroscopia e outros exames
doação, testamento e outros atos. Na posse e guarda de um funcionais, cintilografia cerebral, tomografia computadori-
menor, adoção de um filho e outras ações pertinentes ao Di- zada do encéfalo por emissão de fóton único (SPECT), exa-
reito de Família, também podem ser questionadas a sanidade me do liquor e outros julgados pertinentes.
mental de uma pessoa e sua capacidade para o pleno exercí-
cio do múnus. Evidentemente, as partes aí serão as pessoas
Exame Psiquiátrico
que estão em litígio.
O laudo de exame de sanidade mental para fins civis é Exame minucioso das funções psíquicas: apresentação, re-
o documento apresentado ao Juízo pelo perito no qual ele lacionamento e cooperação; postura e atitudes; consciência;
consubstancia a avaliação psiquiátrica que fez da capacidade atenção; orientação temporal, espacial e circunstancial; senso-
civil do periciando. Ainda que não existam regras consen - riopercepção; memória de fixação; memória de evocação; cur-
sualmente estabelecidas, o laudo deve guardar as seguintes so do pensamento; forma do pensamento; conteúdo do pensa-
linhas gerais: mento; consciência do eu; valores; inteligência; humor; nexos
afetivos e sentimentos anormais; vontade; vida instintiva (ali-
m entação, sono, sexualidade); linguagem e psicomotricidade.
Identificação
Nome, sexo, etnia, idade, data do nascimento, naciona- Conclusões
lidade, naturalidade, estado civil, profissão, ocupação atual,
grau de instrução, religião, nome do pai, nome da mãe,
Diagnose
residência. Explicitar a diagnose do caso ou a normalidade psíquica

Motivo do Exame Considerações Psiquiátrico-forenses


Dissertação na qual a diagnose deve ser fundamentada
Deve ser exposta, da maneira mais clara possível, a razão em suas bases psicopatológicas e na história clínica e na qual
de estar sendo procedida a avaliação psiquiátrica. o perito exporá claramente seu parecer a respeito da capa-
cidade civil do examinando. O parecer deve falar em inca-
Histórico do Caso pacidade absoluta ou relativa, as razões de tal parecer e as
limitações previstas e possíveis, quando for o caso.
Expor, de maneira sucinta mas que abranja as peculia-
ridades da situação, a causa inicial, o desenvolvimento da
pendência e seus desdobramentos e, de maneira geral, tudo
Quesitos
aquilo que possa vir a ser útil à conclusão pericial. Esses da- Respostas aos quesitos formulados pelas partes e pelo
dos podem ser colhidos nos autos do processo e na o itiva das juiz. As respostas devem ser breves e, quando pertinente, re-
partes interessadas. meter ao corpo do laudo.
732 • CAPITULO 33 Estudo Médico-legal da Capacidade Civil

• CLÍNICA PSIQUIÁTRICO-FORENSE CIVIL toso que comprometam gravemente a vida de relação e im-
peçam a comunicação oral, escrita ou gestual.
O que será exposto a seguir nada mais é que um sim-
ples guia para que o perito e os assistentes técnicos possam Ébrios Habituais
ter um roteiro para o exame médico-pericial do caso e suas A incapacidade relativa só caberá para os casos de síndro-
conclusões, pois aqui é onde se aplica a velha máxima de que me de dependência transtorno-psicótica, síndro me amnés-
"cada caso é um caso" em face da miríade de situações dife- tica e transtorno psicótico residual ou de instalação tardia.
rentes que podem apresentar-se quando se faz uma avaliação Não é pertinente para intoxicação aguda, uso nocivo para a
psiquiátrica para fins judiciais civis. saúde, síndrome de abstinência e síndrome de abstinência
com delírio. Para a conclusão pericial, a dependência deve
Entidades Médico-legais a que se Refere ficar firmemente caracterizada sob o ponto de vista clínico.
o Código Civil Evitar a incapacidade absoluta para os transtornos psicóticos
em face de sua habitual remissão.
Enfermidade Mental que Retira o Discernimento para a
Prática dos Atos da Vida Civil Viciados em Tóxicos
Entram nesse caso as psicoses e as demências. Psicoses Mesmas considerações que as para os ébrios habituais.
são enfermidades mentais que comprometem o juízo de rea- Para a síndrome de dependência, deve-se levar em conta a
lidade e se manifestam por sintomas cognitivos (alucinações, dependência física e não a dependência psíquica, ou seja,
ilusões, ideias delirantes, distúrbios lógico-formais do pensa- devem ficar bem caracterizadas a tolerância e a abstinência
mento, alterações qualitativas da memória, graves distorções (e não o simples retorno dos sintomas com a suspensão da
do curso do pensamento, desorientação temporoespaciais e substância psicoativa). Para uma primeira consideração, a
circunstanciais, perturbações da atenção, delírio e confusão incapacidade relativa caberia para os opiáceos, sedativos e
mental, alterações da consciência do eu, entre o utros), afe- hipnóticos e solventes voláteis e não se aplicaria aos canabi-
tivos graves (acentuado transtorno do humor e dos nexos noides, cocaína, alucinógenos e fumo. Os estimulantes mere-
afetivos, presença de sentimentos anormais e inusitados), cem um estudo para cada situação.
volitivos acentuados (abulia, apragmatismo, psicomotrici-
dade alterada). Demências são decaimentos, em geral lentos Deficientes Mentais que Tenham o Discernimento
e progressivos, das funções cognitivas, particularmente da Reduzido
memória e da orientação, mas com importante repercussão Trata-se do retardo mental leve e, em certos casos, do re-
nos aspectos afetivo-volitivos. Nas psicoses leves e de breve tardo mental moderado. Atenção especial merecem os "fron-
duração, bem como nos períodos iniciais das demências, teiriços" para os quais não cabe, em primeira consideração, a
deve haver uma ava liação criteriosa do discernimento. Não incapacidade, m esmo relativa.
confundir o transtorno cognitivo leve com as demências.
Excepcionais, sem Desenvolvimento Mental
Deficiência Mental que Retira o Discernimento para a Completo
Prática dos Atos da Vida Civil
Pelo fato de a Lei Civil Maior já contemplar a situação dos
Trata-se do retardo mental profundo e do retardo men- deficientes mentais, trata-se de pessoas com graves deficiên-
tal grave. Retardo mental é a fa lta do desenvolvimento das cias sensoriais (amaurose, cofose) o u motoras que não obti-
funções cognitivas, em particular da inteligência e dos valo- veram o pleno desenvolvimento psicológico sem serem sub -
res socialmente aceitos ou preconizados. Em muitos casos, normais mentais. São os casos de transtornos específicos do
pode-se evidenciar uma causalidade por lesão ou disfunção desenvolvimento da fala e da linguagem, do desenvolvimen-
do sistema nervoso, genética, congênita ou precocemente to das habilidades escolares, da função motora, invasivos do
adquirida. Quanto ao retardo mental moderado, cabe uma desenvolvimento e outros. Em situações especiais, após per-
cuidadosa avaliação do discernimento. Em muitos casos, cuciente estudo psiquiátrico, psicológico e psicopedagógico,
será mais adequado propor a incapacidade relativa. podemos incluir os transtornos hipercinéticos, da conduta,
mistos da conduta e emoções, emocionais com início es-
Motivo, Permanente ou Transitório, que Impeça a pecífico na infância, do funcionamento social com início
Expressão da Vontade específico na infância e adolescência, de tiques e outros. É
Caso se trate de enfermidade ou deficiência mental, caí- importante assinalar que tudo se aplica a adultos, pois são os
suscetíveis de ação judicial.
mos no caso anterior. Se o impedimento não for de causa
mental, mas sim por disfunção nervosa ou sistêmica, cabe
Prodigalidade
a incapacidade absoluta. Algumas condições: coma; estados
alterados de consciência, de causa metabólica e outras; doen- Se a prodigalidade for expressão sintomática de enfermi-
ças do sistema nervoso ou do sistema osteomusculoligamen- dade mental (mania) ou de deficiência mental, não haverá
CAPITULO 33 Estudo Médico-legal da Capacidade Civil • 733

dificuldades periciais. Caso espinhoso será a conclusão pe- Transtorno Afetivo Bipolar
ricial se se tratar de transtorno de personalidade (possivel-
Tanto a incapacidade absoluta quanto a relativa são pos-
mente do tipo emocionalmente instável) ou de transtorno
síveis, confo rme o caso.
de hábitos e impulsos. A não ser em casos extremamente
graves e que compro metam grandemente a vida familiar, Síndrome Maníaca
social e profissio nal, julgamos ser abusiva a incapacidade
civil em prodigalidade não psicótica. Parece-nos abuso do Incapacidade absoluta ou m otivo transitório.
poder médico-psiquiátrico e atentado aos direitos humanos.
A conclusão ficará entregue à prudente consciência do pe- Síndrome Depressiva com Sintomas Psicóticos
rito, embora na parte das vezes não seja pedida perícia psi- Incapacidade absoluta ou m otivo transitório.
quiátrica pelos juízes, que se norteiam por outros critérios,
testemunhos e provas. Síndrome Depressiva sem Sintomas Psicóticos,
Transtorno Depressivo Recorrente, Transtorno Persistente
Entidades Psiquiátricas do Humor
Não cabe incapacidade.
Demências e Síndrome Amnéstica Orgânica
Caberá a inca pacidade absoluta no período de estado e Transtornos Neuróticos, Relacionados com Estresse e
no período terminal. No período inicial, considerar a inca- Somatoformes. Síndromes Comportamentais Associadas
pacidade relativa. a Perturbações Fisiológicas e a Fatores Físicos
Não cabe incapacidade civil.
Delirium
Incapacidade por m otivo transitório. Transtornos de Personalidade e de Comportamento em
Adultos
Transtornos Mentais Decorrentes de Lesão ou Disfunção Não cabe incapacidade civil. Em casos excepcionais -
Cerebrais e de Doença Fisica como transtorno de personalidade em ocionalmente instável
Não é pertinente a incapacidade absoluta. Considerar a -, considerar a incapacidade relativa.
incapacidade relativa ou o motivo transitório.
Retardo Mental
Transtorno de Personalidade e de Comportamento Ver exposição anterior.
Decorrentes de Doença, Lesão ou Disfunção Cerebrais
Transtorno do Desenvolvimento Psicológico e Transtornos
Não se aplica à incapacidade absoluta. Considerar a in-
Emocionais com Início Usualmente Ocorrendo na Infância
capacidade relativa.
e na Adolescência
Transtornos Mentais e de Comportamento Decorrentes do Em geral, não é pertinente a incapacidade civil. Consi-
Uso de Substância Psicoativa derar, em casos especiais, a aplicação dos excepcionais sem
desenvolvimento mental completo.
Ver "ébrios habituais" e "viciados em tóxicos".

Esquizofrenia, Transtorno Delirante Persistente, BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


Transtorno Esquizoafetivo
Incapacidade absoluta. Em casos muito leves, pensar na 1. Garcia JA. Psicopatologia Forense. Rio de Jan eiro: Forense Editora;
1979.
incapacidade relativa. 2. Palomba GA. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Crim inal. São
Paulo: Editora Atheneu; 2003.
Transtorno Esquizotípico, Transtorno Psicótico Agudo e 3. Rigonatti SP. Tema de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica. São
Transitório, Transtorno Delirante Induzido Paulo: Vetor; 2003.
4. Ta borda JGV, Chalub M, Ab dalla Filho E. Psiquiatria Forense. Porto
Incapacidade relativa ou motivo transitório. Alegre: Artmed; 2004.
Miguel Chalub

• INTRODUÇÃO o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo


com esse entendimento (era inteiramente incapaz);
O estudo médico-legal dos problemas sociais e jurídicos 2) se a embriaguez for proveniente de caso fortuito ou
causados pelo uso de substâncias psicoativas abrange duas força maior e diminuir mas não abo lir, ao tempo da
grandes questões que têm que ser solucio nadas na avaliação ação ou da omissão, a capacidade de entender o cará-
da responsabilidade penal quando se alega tal uso: a subs- ter ilícito do fato o u de determinar-se de acordo com
tância em uso e o quadro clínico por ela causado. Para se- esse entendimento (não possuía a plena capacidade).
guirmos a CID-10, reconhecemos o uso de álcool, opioides, Na primeira hipótese (inteira incapacidade), haveria
canabinoides, sedativos ou hipnóticos, cocaína, outros esti- isenção de pena; na segunda, redução facultativa da pena.
mulantes, incluindo cafeína, alucinógenos, tabaco, solventes O exame de sanidade mental, em geral, é feito muito
voláteis e uso de múltiplas drogas ou de o utras substâncias tempo após a ação ou omissão (meses e até anos!), e, des-
psicoativas não listadas. Ainda de acordo com a CID-10, são tarte, a comprovação da embriaguez fica na dependência da
quadros clínicos provocados pelas substâncias psicoativas: existência de exame m édico-legal de embriaguez, o que não
intoxicação aguda (toxicose exógena), uso nocivo, síndrome é muito comum, da versão narrada aos peritos pelo próprio
de dependência, estado de abstinência, estado de abstinên- acusado ou de elementos colhidos nos autos. Se ho uver exa-
cia com delírio, transto rno psicótico, síndro me amnéstica, m e de embriaguez, o problema fica dirimido, inclusive se se
transtorno psicótico residual o u de instalação tardia. tratou de embriaguez completa o u não; na versão narrada
pelo periciado, devemos analisar bem a conduta antes d o
delito, durante o cometimento do delito e após sua prática .
• ALCOOLISMO Uma conduta ordenada, bem concatenada, coerente, ade-
quada, consistente e congruente fala contra a embriaguez
Embriaguez completa ou não. A amnésia lacunar, desde que afastada a
simulação, é também um bo m indicador. A declaração de
A legislação penal brasileira trata de modo diverso o uso testemunhas e informantes, desde que tenham assistido ao
de álcool e o de outras substâncias psicoativas. fato ou que tenham tomado contato com o agente pouco
A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análo- antes ou logo após a prática apontada, deve ser levada em
gos, seja voluntária ou culposa, não exclui a imputabilidade conta, caso não se vislumbre outro interesse se não a ver-
penal (item II do art. 28 do CP ). Os parágrafos desse artigo dade. É importante assinalar que muitas vezes tais pessoas
fazem duas exceções na respo nsabilidade: não reconhecem o estado de embriaguez por razões diver-
1) se a embriaguez for completa, proveniente de caso sas. O alcoolismo crónico é um dado releva nte, ainda que,
fortuito ou força maior e retirar inteiramente, ao como é óbvio, etilistas contumazes possam ter momentos
tempo da ação ou omissão, a capacidade de entender de inteira sobriedade.

735
736 • CAPITULO 34 Estudo Médico-legal do Alcoolismo e da Dependência Química

O caso fo rtuito - ingestão acidental - e a força maior - ou interesses alternativos ( C) e a fo rte persistência no uso
ingestão por coação-, ainda que previstos em lei, são hoje de da substân cia (D) não podem ser levados em consideração
r ara aplicação. Q uando for pertinente, o perito deverá fazer para a distinção entre as duas formas de dependência uma
referência a tal ocorrência, embora não se trate de parecer vez que: 1) são muito subjetivos e individuais - o forte de-
pericial. sejo o u senso de compulsão vão variar muito de uma pessoa
Há que se estabelecer nexo de causalidade entre a em - para outra; 2) como determinar o limite para cada compor-
briaguez e o delito, ou seja, se o delito foi o resultado da al- tamento se são tão diferentes as normas sociais e os valo res
teração de consciência - turvação ou obnubilação - e com culturais?; 3) se persistir o uso da substância, mas de uma
ela guarda íntima conexão. Ações ou omissões que para sua maneira m ais "social" e menos o u não lesiva, o critério D
prática exigem lucidez e vigilidade e que não podem ser ade- está preenchido?; 4) mudanças de prazeres e interesses para
quadamente executadas sob obnubilação de consciência ou outros constituem o critério C?
turvação sensorial não se prestam a essa relação. Tais apreciações acabam sendo preconceituosas e com
Da mesma forma, deve haver uma percuciente avaliação forte viés ideológico. Além do m ais, o exam e psicopatológico
da capacidade de entendimento e da capacidade de deter- de tais situações não pode ter o rigor científico que se requer
minação, pois será o estado dessas faculdades psíquicas que, de uma semiologia que pretenda ser conclusiva.
normais, diminuídas ou abolidas, decidirá sobre a imputabi- Já os critérios de evidente tolerância e estado de absti-
lidade. Ver, a propósito, o Capítulo 32. nência fisiológico (físico) são muito mais precisos e úteis.
A intoxicação aguda com delírio ou com distorções per- Seguindo a CID -10, adotamos como conceito de cada um:
ceptivas deve ser considerada doença mental e como tal tra- 1) tolerância é o estado no qual doses crescentes da
tada, de acordo com as normas do artigo 26 do Código Penal. substância psicoativa são requeridas para se alcan -
A intoxicação patológica (embriaguez patológica) exige çar efeitos originalmente produzidos po r doses mais
um tratamento psiquiátrico-forense especial. Não julgamos baixas;
importante a discussão sobre a quantidade de bebida inge- 2) o estado de abstinência fisio lógico (físico) dá-se
rida. É claro que uma relação desproporcional entre a reação quando o uso da substância cessou ou foi reduzido,
e ingestão da bebida fala a favo r de ocorrência do fenô meno. como evidenciado: a) pela síndrom e de abstinência
No entanto, mais impo rtante é a magnitude do comporta- característica para a substân cia; b) pelo uso da mes-
m ento advindo logo após o uso. Agitação psicomotor a inten- ma substância (ou de uma intimamente relacio na-
sa, grande excitabilidade psíquica e agressividade, frangofilia, da) com a intenção de aliviar ou evitar sintom as de
turvação do sensório e obnubilação da consciência, amnésia abstinência.
lacunar posterior, hostilidade contra os circunstantes, m esm o É importante assinalar que frequentemente se confunde
pessoas de bom relacionamento afetivo, são os aspectos psi- a síndrome de abstinência com o reaparecim ento dos sinais
copatológicos mais comuns. A mania a potu deve ser conside- e sintomas que haviam sido eliminados ou reduzidos com o
rada verdadeira psicose aguda transitória e assim enquadrada uso da substância psicoativa . É fundam ental para a diagnose
diferencial que ocorram sintomas físicos além d os sintomas
nos dispositivos d o artigo 26 ou de seu parágrafo.
psíquicos q ue - com a possível diferença de intensidade -
A embriaguez é tratada da mesma forma no Código Pe-
nal Militar (art. 49). serão, em ger al, os mesmos para alívio dos quais o paciente
usava a droga. Assim: sudorese intensa, náuseas e vômitos,
diarreia, taquicardia, taquipneia, miocimias e mioclonias,
Uso Nocivo do Álcool tremores intensos de extremidades, palidez cutaneomucosa
(ou eritrodermia), incontinência urinária ou fecal, hipoten-
O uso nocivo, for ma de alcoolismo definida pela CID-10, são arterial e outros deverão estar presentes em maior ou
não reduz nem elimina a responsabilidade penal. Evidente- meno r intensidade. De acordo com a substância psicoativa
m ente, se o delito fo r com etido na vigência de embriaguez, o cuja suspensão de uso gerou a abstinência, teremos um qua-
tem a deve ser visto como antes exposto. dro m ais ou m enos completo.
A responsabilidade penal nos casos de delitos cometidos
Síndrome de Dependência em razão de dependência de substância psicoativa só deve
ser investigada nos casos de dependência física. Temos que
Ainda que a CID- 10 tenha abandonado a antiga distin- reconhecer que a presença dos sintomas físicos de tal manei-
ção entre dependência física e dependência psíquica - talvez ra compromete a intelecção e a volição que as capacidades
por causa da sinonímia de vício e de hábito, tão preconcei- de entendimento e de compreensão podem estar abolidas
tuosa e tão "politicam ente incorreta" - , parece-nos que, para ou reduzidas. Isso não acontece com a ocorrência de apenas
fins médico-legais, essa distinção deve ser mantida por ra- sintomas psíquicos.
zões adiante aduzidas. Paradoxalmente, embora o álcool cause dependência fí-
Das diretrizes diagnósticas propostas pela CID-10, o for- sica, o seu abuso não é tratado na Lei 6.368 de 21/10/1976
te desejo o u senso de compulsão (A), as dificuldades em con- nem na Lei 10.409 de 11/0 1/2002 . Vem a pelo lembrar que
trolar o consumo (B), o aba ndono progressivo dos prazeres a lei mais recente m anteve o tratamento jurídico sobre os
CAPITULO 34 Estudo Médico-legal do Alcoolismo e da Dependência Química • 737

crimes e as penas, bem com o sobre a inimputabilidade con- patopsíquico era inteiramente inesperada pelo agente que,
templada na lei mais antiga, devido a um veto do presiden- então, não conhecia essa possibilidade. Conclusão simples
te da República. no primeiro evento, m as que exige percuciente análise nos
Assim, a solução psiquiátrico-forense para o caso de um demais.
delito com etido em razão da dependência de álcool, em nexo Na dependência alcoólica - e é sempre o portuno lembrar
causal com a dependência e onde se reconheça que houve que precisamos da tolerân cia e da abstinência para caracteri-
compro metimento, total ou parcial, das capacidades de en- zar a dependência física, única que dirime a responsabilidade
tendimento ou de determinação, é considerar que se trata de -, podemos questionar se o agente era "liv re" para a ingestão
"força maior" (art. 28), d esde que tenha havido ocorrência alcoólica e, portanto, se a teoria da actio libera seria aplicável.
de embriaguez, completa ou não. Caso não haja embriaguez, As mesmas considerações aplicam -se a o utras substân-
a dependência pode ser equiparada à perturbação da saúde cias psicoativas, em particular sobre a dependência, já que,
mental ou à doença mental, ficando ao prudente estudo psi- na prática clínica, não se vê embriaguez patológica causada
copatológico da situação a conclusão pericial. Tudo isso por- pelos demais agentes químicos. Na quase totalidade das si-
que a Lei de Tóxicos não inclui o álcool. tuações, ações violentas cometidas "sob ação de drogas", na
verdade, trata-se de embriaguez alcoólica, patológica ou não,
que se superpõe ao uso da droga.
Estado de Abstinência
Pelas razões já expostas, um delito cometido na vigência Embriaguez Pré-ordenada
de um estado de abstinência alcoólica deve ser examinado
sob tríplice aspecto: 1) se foi praticado em r azão da absti- Trata-se da situação de alguém se colocar deliberada-
nência; 2) se está em nexo de causalidade com ela; 3) se as mente em estad o de embriaguez para, então, cometer o de-
capacidades de entendimento ou de determinação fo ram lito. Ainda que prevista na alínea L do artigo 61 do Código
abolidas ou reduzidas. Penal e na alínea C do artigo 70 do Código Penal Militar,
De acordo com esses critérios, teremos ou uma perturba- trata-se de condição de difícil aplicação, e, caso ocorra, re-
ção da saúde mental o u uma doença m ental. solvível sem avaliação psiquiátrico-forense. Evidentemente,
O estado de abstinência com delírio, o transtorno psicó- deve ser levado em conta o que já foi exposto sobre embria-
tico, a síndrom e amnéstica e o transtorno psicótico residual guez e dependência.
ou de instalação tardia não ensejam dúvidas: trata-se de ver- Os demais diplomas legais que falam em emb riaguez e em
dadeira d oença mental. Não é preciso assinalar que perma- alcoolismo, como, por exemplo, a Consolidação da Leis do
necem os critérios de nexo de causalidade e de verificação do Trabalho (art. 482), a Lei de Contravenções Penais (art. 62),
comprometimento das capacidades intelectivas e volitivas. o Código Brasileiro de Trânsito (art. 306) e o Regime Jurídico
Em relação ao uso de substância alcoólica, há ainda o utras Único dos servidores federais e seus equivalentes estaduais e
questões psiquiátrico-forenses q ue devem ser contempladas. municipais, devem ser vistos da mesma maneira que antes
tratad a. Deve-se verificar, no exam e pericial, se a expressão
"embriaguez habitual': usada nessa legislação, corresponde à
Actio libera in causa dependência alcoólica.
Essa expressão latin a significa "ação livre em sua causa" e
se aplica aos casos em que, embora ao tempo do delito hou-
vesse algum tipo de exclusão ou de atenuação de culpabili- • OUTRAS SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
dade, o autor estava ciente de que, ao adotar determinada (DEPENDÊNCIA QUÍMICA, TOXICOFILIAS,
conduta, estava assumindo o risco de cometê-lo. Assim, no TOXICOMANIAS, ABUSO DE DROGAS, USO DE
caso do alcoolism o agudo, ainda que o agente, ao cometer o SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES)
delito, estivesse em estado de com pleta emb riaguez alcoólica
- ou por o utra substância psicoativa -, com obnubilação de Sob o ponto de vista psiquiátrico-fo rense, o tem a conti-
consciência e turvação sensorial, seria responsável, já que, nua disciplinado pelo artigo 19 do Capítulo III da Lei 6.368
ao se colocar naquele estado, ingerindo bebida alcoólica, ti- de 2 1/10/1976, uma vez que o Capítulo III (Dos crimes e das
nha ciência de q ue ocorreria embriaguez e que, nesse estado, penas - do art. 14 ao 26) da Lei 10.409 de 11 de janeiro de
poderia cometer um ato reprovável. É impo rtante comparar 2002 foi inteiram ente vetado pelo presidente da República.
essa situação com a obnubilação de consciência e a turvação A lei vigente prevê as seguintes situações: 1) delito come-
sensorial resultantes de delírio, de qualquer etiopatogenia, tido em razão da dependência; 2) delito cometido sob efeito
que levaria à inimputabilidade de uma ação ilícita praticada. de substância ento rpecente o u que determ ine dependên-
Devemos considerar du as exceções que, na maioria dos ca- cia física ou psíquica proveniente de caso fortuito ou fo rça
sos, conduziriam à inimputabilidade de delito cometido em maio r; 3) capacidades de entendimento do caráter ilícito do
estado de emb riaguez. Na embriaguez patológica, teremos fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento
que avaliar no exam e pericial se a ocorrência do fenôm eno reduzidas ou abolidas.
738 • CAPITULO 34 Estudo Médico-legal do Alcoolismo e da Dependência Química

Delito Cometido em Razão da Dependência compreendendo perturbações da consciência, das faculdad es


cognitivas, da percepção, do afeto ou do comportamento, ou
a) Delito previsto no artigo 16 da lei: adquirir, guardar de outras funções e respostas fisiológicas. As perturbações
ou trazer consigo, para uso próprio, substância en- estão na relação direta dos efeitos farmacológicos agudos
torpecente o u que determine dependência física ou da substância consumida e desaparecem com o tempo, com
psíquica, sem autorização ou em desacordo com de- cura completa, salvo nos casos em que surgirem lesões orgâ-
terminação legal o u regulamentar. nicas ou outras complicações". Ninguém duvida de que esta
A responsabilidade penal só deve ser questionada se se definição é perfeita para a embriaguez alcoólica. Em alguns
tratar de dependência física. Há, nesse caso, evidente nexo casos, que devem ser muito bem estudados sob o ponto de
de causalidade e diminuição ou abolição da capacidade de vista psicopatológico, poderemos ver embriaguez po r opiá-
determinação, ainda que, em geral, esteja preservada a capa- ceos (efeito idiossincrásico), sedativos e hipnóticos (efeito pa-
cidade de entendimento. radoxal), alguns estimulantes (excluída a cafeína), alucinóge-
b ) Q ualquer outra infração penal praticada (expressão nos e solventes voláteis. É de ocorrência rara -se existir - com
da lei). canabinoides e cocaína, inexistindo com a cafeína.
O nexo de causalidade é evidente se o delito foi com etido Ocorrendo a embriaguez ou estado análogo, devemos
para a obtenção da substância psicoativa, se se tratar de de- analisar as seguintes situações para verificar se se trata de em-
pendência física. Assim, a relação causal é facilmente perce- briaguez completa ou não: a) conduta ante delictum; b) coe-
bida em crimes contra o património, tais como furto, roubo, rência, coordenação, consistência, articulação e congruência
apropriação indébita, receptação. Em se tratando de crimes entre as várias ações que compõem o ato inquinado; c) estado
contra a vida o u de lesão corpo ral, a causalidade mórbida da memó ria de fixação com relação ao ato (atenção para a si-
deve ser muito bem analisada. Ainda que de ocorrência rara, mulação !); d ) compreensibilidade do ato com análise de sua
não se pode excluir a possibilidade de um dependente de motivação; e) conduta post delictum (evasão do local, ocul-
opiáceo cometer um homicídio contra alguém que o impeça tamento ou tentativa de ocultamento das consequências da
de obter a droga. Da mesma fo rma que no item anterior, em ação, narrativa do fato feita logo após a ocorrência).
ger al, a capacidade de entendimento estará preservada, não
o estando a de determinação, reduzida ou mesmo abolida.
Excetuadas as d uas situações antes expostas, a rigor não Capacidade de Entendimento e de Determinação
haverá outro delito cometido em razão da dependência. Essa
É importante assinalar que a Lei 6.368/76 mantém inte-
possibilidade só se aplicaria aos casos de delitos cometidos
gralmente o critério bio psicológico de apuração da respon-
em delírio, transtorno psicótico, síndrome amnéstica o u
sabilidade penal. Assim, averiguada a dependência ou a em -
transtorno psicótico residual ou de instalação tardia prove-
briaguez (caso for tuito ou fo rça maior), estabelecido o nexo
nientes do uso da substância psicoativa. O sim ples uso nocivo
de causalidade entre a ação ou a omissão e aquelas condições,
fica inteiramente excluído. As síndromes de dependência e de
é preciso avaliar o estado das capacidades de entendimento
abstinência já fo ram analisadas. É expletivo acentuar a ne-
e de determinação, se preservadas, reduzidas ou abolidas.
cessidade de avaliação das capacidades de entendimento e de
De uma maneira geral (cada caso é um caso ... ), a capacidade
determinação, m esm o nas condições clínicas antes listadas.
de entendimento poderá estar reduzida ou abolida q uando se
tratar de intoxicação aguda, delírio, síndrome amnéstica,
Delito Cometido sob Efeito de Substância transtorno psicótico ou transtorno psicótico residual o u de
Entorpecente ou que Determine Dependência instalação tardia. A capacidade de determinação poderá es-
Física ou Psíquica Proveniente de Caso Fortuito ou tar reduzida ou abolida na síndrome de dependência e na
Força Maior síndrome ou estado de abstinência. Como já foi amplamente
exposto, isso acontecerá, salvo rarísssimas exceções, na de-
De mo do análogo ao que foi estudado para o alcoolismo, pendência física. As exceções ficarão por conta de situações
a "força m aior" pode ser considerada a dependência - sem - especiais, tanto clínicas quanto psicopatológicas, de depen-
pre física! - o u a síndrome de abstinência. Q uanto ao caso dência psíquica, a prudente critério d o perito.
fortuito, embora frequente o noticiário policial (colocar am
a droga no meu copo de bebida sem que eu percebesse .... ), é,
na verdade, de ocorrência rara. A questão médico-legal mais BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
importante, no entanto, é saber se pode ocorrer emb riaguez
ou condição análoga por ação de opiáceos, canabino ides, !. Garcia JA. Psicopatologia Forense. Rio de Janeiro: Forense Editora;
sedativos e hipnóticos, cocaína, estimulantes, aí incluídos a 1979.
cafeína, alucinógenos e solventes voláteis. Torna-se, então, ne- 2. Palomba GA. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Crimi nal. São
cessário que se defina com a maior exatidão possível o que se Paulo: Editora Atheneu; 2003 .
3. Rigonatti SP. Tema de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica. São
entende por embriaguez ou intoxicação aguda. Para efeitos Paulo: Vetor; 2003.
legais, é melhor que se adote o conceito da CID-10, verbis: 4. Taborda JGV, Chalub M, Abdalla Filho E. Psiquiatria Forense. Porto
"Estado consequente ao uso de uma substância psicoativa e Alegre: Artmed; 2004.
Janyra Oliveira-Costa

" Quando o corpo já está em adian tada putrefação quentemente, esses hábitos possibilitam sua aplicação em
é indispensável ao médico-legista, em uma perícia, investigações de litígios. Essa aplicação busca solucionar
o auxílio de profissionais diversos e, pelo m enos, pleitos judiciais, através da identificação taxonómica dos
um entom ologista conhecedor dos insetos da região:' espécimes coletados, de suas interações ecológicas e de sua
Favero 1 (apud Carrera) . biologia, estando a sua maio r contribuição relacionada aos
exames periciais de locais de morte violenta4 •
As análises periciais relativas a cadáveres putrefeitos sem - Os insetos são rapidamente atraídos ao cadáver devido
pre fo ram complexas. Apesar d o ceticismo inicial com rela- aos od ores exalados, à umidade dos tecidos, à presença de
ção à Entom ologia, desde há muito tempo, alguns autores já componentes ricos em amónia, feromónios e estímulos tá-
reconheciam a preciosa contribuição trazida pelos insetos, teis. Os dípteros e coleópteros (moscas e besouros) são as
confo rme podemos perceber na afirmação acim a. O rdens de maior importância forense6.
No Brasil, o ceticismo to rna-se evidente ao perceber que, As moscas são mais atraídas no início da decomposição
ainda hoje, em pleno século XXI, os poucos livros de medici- cadavérica, quando a carn e ainda está presente e os odores
na legal que citam essa ciência, referem-se ao trabalho reali- resultantes da decomposição das proteínas são exalados.
zado po r Megnin ( 1894) 2 no livro denominado "A Fauna d os Q uando a decomposição avança e esses odo res tornam -se
Cadáveres" com suas legiões de trabalhadores da morte. In- mais discretos, a atração para as moscas diminui e temos
dubitavelmente, o autor apresentou uma gr ande contribui- a atração dos besouros 6 • As fêmeas não grávidas requerem
ção para o desenvolvimento da área. Po rém, obviamente, ao pro teína pa ra completar a vitelogênese. Depois do desenvol-
lo ngo de mais de um século, muitas outras pesquisas fo ram vimento d as gónadas, são fecundadas e estimuladas a realizar
realizadas e essa área de aplicação forense se desenvolveu a postura, colocando seus ovos ou larvas no cadáver6.
ponto de ser aceita como prova cabal nos tribunais de júri da Greenberg7 (1991) estimou em 40.000 ovos a ca pacidade
Europa e dos Estad os Unidos, especialmente, para as estima- de uma m osca. Normalmente, os ovos são colocad os em
tivas de intervalo pós-morte (IPM) 3 • "massas de ovos" (Fig. 35.1), em uma estratégia de defesa .
Depois da primeira postura, várias m oscas são atraídas ao
corpo para colocar ovos no mesmo local8. Os ovos eclodem
• A BASE BIOLÓGICA DA UTILIZAÇÃO DOS dando o rigem às larvas (Figs. 35.2 e 35.3) que constituem a
INSETOS fase alimentar, quando o inseto consome os tecidos cadavéri-
cos. As larvas sofrem "muda': ou seja, trocam o exoesqueleto
Os insetos estão entre os primeiros e mais importantes para permitir o crescim ento corporal. O perío do compreen-
invertebrados que colo nizam corpos em decomposição. Os dido entre uma muda e outra é denominado instar. O núme-
insetos necrófagos estão associados à matéria orgânica em ro de instares varia conforme o táxon (inseto) considerado.
decomposição, alimentando-se e reproduzindo-se. Conse- Após passar por todos os instares larvais e acumular reservas

741
742 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

energéticas, a larva abandona o corpo, sendo denominada


de larva errante, migrando à procura de um local protegido.
Nesse local, o inseto assume a forma de pupa (Figs. 35.4 e
35.5) , fechando -se no interior de um invólucro denominado
pupário, no interior d o qual sofrerá a m etamorfose, trans-
formando-se em um inseto adulto (Fig. 35.6). Tanto as mos-
cas como os besouros sofrem esse tipo de desenvolvimento3•

• OS INSETOS E AS INVESTIGAÇÕES DE
MORTE VIOLENTA
Evidências entomo lógicas encontradas em uma cena de
crime podem ter valor inestimável, especialmente quando o
estado de decomposição do corpo está adiantad o, impossibi-
Figura 35.1. A parte branca central constitui uma massa de ovos em litando que o patologista forense faça inferências para a con-
uma carcaça. fecção de seus laudos. Quando a vida cessa, os fenôm enos

Figura 35.2. Massas de larvas no cadáver (Foto cedida pelo Dr. Marco Figura 35.4. Pupas observadas no local. Notar a segmentação trans-
Villacorta. versal, mais bem vista na figura seguinte.

Figura 35.3. Larvas vistas através do microscópio. Figura 35.5. Pupa vista através do microscópio.
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 743

putrefativos provocam gradativas muda nças fís ico-químicas cas dispunham-se de fo rma radial em t orno das aberturas
n os corpos, que oferecem , cada uma de forma mais eficaz, o n aturais do corpo (Fig. 35.1 0), corroborando as conclusões
micro -habitat favorável à atração e proliferação de diferen- d o auto de exame cadavérico, que pontuou a falta de sinais
tes grupos de insetos5 • Assim, os variad os grupos se su cedem d e violência e concluiu por mo rte com cau sa indetermina da
n os cor pos, desd e o primeiro mo mento após a mo rte, at é d evido a o adiantado estado de decomposição. Os exam es de
o final da degra dação d a m atéria, "testemunhando" to do o perinecroscopia indicaram au sência de ferimentos externos
processo de d ecom posição. e m o rte natural como causa jurídica. Com base nas provas
Desta forma, os inset os podem contribuir n as respost as t écnicas, a investigação foi su spensa.
aos question amentos d as investigações de ho micídio, com e-
çando com a causa jurídica da mo rte, cuja diagnose diferen -
cial não é ta refa fácil, especialmente quando o exame do ca-
dáver é dificultad o pelo adiantad o esta do de d ecomposição,
pela falta de luminosidad e ou pela dificuldad e de acesso.
Os conhecimentos ento m ológicos não apontam o diag-
n óstico categoricamente. Porém , pod em auxiliar médicos
legistas e peritos criminais a deduzir o ca minho a seguir.
Campobasso & Introna 9 discutiram a utilização do padrão
de alimentação das larvas para indicar ferimentos em cor-
pos em adiantad o esta do de decom posição. Por exemplo, se
la rvas são en cont radas sempre ao lon go d e retas pod e ser in-
dício de uma ferida incisa ou outro tipo de ferimento com
características similares.
Os insetos necró fagos preferem realizar postura em luga-
res abrigad os como orifícios n aturais do corpo ou b ordas de
ferimentos 3•5• Portanto, se imaturos são encontrados somen -
te em t orno do s <lutos naturais, é bem provável que o cad áver
n ão tenha ferimentos externos4 •
Como exem plo dessa aplicação, podemos citar um caso
de exam e pericial de um corpo d e uma mulher em adian-
tad o estad o de deco mpo sição e sem ferimentos externos
aparentes. O local examinado era co nstituído pela edificação
de uma indústria d esa tivada, lad eada por áreas erm as e bal-
dias. O prédio tinha como acesso um la nce de escad as e uma
porta sem sistema s de tran camento (Fig. 35.7), que condu-
zia a uma plataform a, cujo interior possuía um pavimento
sub terrân eo onde fo i encontrad o o cor po (Figs. 35.8 e 35.9).
No exam e, foi possível n otar que pupá rio s vazios de mo s-

Figura 35.7. Visão externa do local suspeito.

Figura 35.6. Forma adulta vista através do microscópio. Figura 35.8. Visão interna do local suspeito.
744 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

sido utilizado pela larva como fonte de alimento, visto que


insetos necrófagos não se alimentam de tecido vivo.
Muitas vezes, as análises toxicológicas também são difi -
cultadas pelo estado de conservação do corpo, visto que os
fluidos e substâncias n ecessárias aos exames desaparecem
devido à voracidade das larvas. A solução está nas próprias
larvas, pois há estudos que comprovam que diversas substân -
cias tóxicas (cocaína, heroína, anfetamina, ópio e outras) po-
dem ser detectadas no corpo dos insetos que se alimentaram
desses cadáveres contaminados, indicando a possível causa
da morte por ingestão de dose letal dessas substâncias 16-30 •
Outras vezes, o corpo pode estar tão decomposto que
não conseguimos identificar o tipo de ferimento. Por exem-
Figura 35.9. Posição em que o corpo foi encontrado. plo, n ão há como distinguir uma ferida perfurocontusa, pro-
vocada por projétil de arma de fogo, de uma perfuroincisa
provocada por faca. Atualmente, é possível isolar elementos
con stituintes da munição, como chumbo, bário e antimónio
do trato digestório d e larvas n ecrófagas que se alimentaram
desses tecidos31.
O local onde a morte ocorreu pode ser verificado através
da distribuição geográfi ca, habitat natural e biologia das es-
pécies coletadas no corpo4. Por exemplo, certas espécies de
moscas varejeiras são típicas de zona rural. Carvalho & Li-
nhares32 caracterizaram a espécie Hemilucilia semidiaphana
Figura 35.10. Distribuição dos pupários ao redor do corpo. como típica de áreas florestadas. Portanto, a associação des-
sas espécies com corpos encontrados em meio urbano sugere
que a vítima tenha sido m orta em área florestada e levada
Outro ramo da ento mologia que pod e contribuir com para o ponto onde foi encontrada após a fêmea adulta ter
preciosas informações é a ento mogen ética, que resulta da feito postura.
associação dessa ciência com a gen ética. Essa aplicação pode Como vimos, os insetos podem ser utilizados para escla-
auxiliar na identificação m olecular de suspeitos e vítimas recer vários quesitos relacionados à investigação da morte.
n os exames de fingerprint de DNA. Um exemplo d esse tipo Porém, essa ciência tem sido mais frequentemente utiliza-
d e auxílio é dado por Repogle e cols. 10, que demonstraram a da na determinação da cronologia da morte (intervalo pós-
possibilidade de extrair material genético de origem humana morte - IPM). A entom ologia, utilizada com essa finalidade,
a partir de excretas de insetos hematófagos (piolho de corpo vem sendo valorizada d evido à sua exatidão. Normalmente,
- chato), indicando a possibilidade d e utilização em crimes nos métodos tradicionais de cron ologia, o IPM real é inver-
sexuais, no caso da vítima se infestar com o agressor. samente proporcional ao mom ento de sua estimativa, ou
Também para aplicação em crimes sexuais, Clery 11 indi- seja, quanto maior for o IPM, m enor é a possibilidade de
cou a possibilidade de extrair material gen ético d o agressor a acurada determinação. Contudo, n o métod o entomológico
partir do sêmen ejaculado n o ato sexual, que tenha sido in- quanto maior o intervalo, mais segura é a estimativa33 .
gerido pelas larvas que consumiram o tecido vaginal da víti-
ma durante o processo de decomposição. Chamoun e cols. 12
adaptaram essa técnica para pesquisa em uma mosca varejei- • MÉTODOS TRADICIONAIS DE ESTIMATIVA
ra muito comum no Brasil, a fim de possibilitar a utilização DE IPM
desse tipo de exame no país.
Outros pesquisadores sugeriram a extração de material Com o foi possível verificar no Capítulo 9, a cro nologia
genético humano do trato digestório de fêmeas de mosqui- da m orte em Medicina Legal é, usualmente, estimada atra-
tos, coletadas em locais de cativeiro, para relacionar um sus- vés da marcha evolutiva d os fenómenos cadavéricos. Essa
peito ao local do crime, envolvendo-o em sequestro 13·14. marcha é influenciada por diferentes circunstân cias, tipos
Campobasso & Introna9 discutiram a possibilidade de de morte e fatores extrínsecos, especialmente temperatura e
utilizar as larvas encontradas em locais de onde o cadáver umidade. Portanto, seu diagnóstico é duvidoso, mesmo por-
tenha sido removido (cena do crime), baseados nas indica- que a própria morte é um processo gradativo. Por exemplo,
ções de Dadour e cols. 15 sobre a possibilidade de isolar DNA os espermatozoides podem apresentar mobilidade até 36
da vítima no trato digestório dessas larvas. Nesse caso, seria horas após o óbito, fenómeno deno minado vida residual ou
possível inferir que o cadáver tivesse estado naquele local e período supravital34.
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 745

O estudo dos fen ómen os cadavéricos é complicado e não cação é feita como no presente livro. O períod o fresco é su -
temos a pretensão de tratar o assunto com a m esma pro- cedido pelos estágios d e coloração ou cromático, gasoso ou
prieda de com que fo i trata do no capítulo pró prio . Porém , enfisemat oso; coliquativo ou m assa; e, redutivo ou rest os41.
v isando ressaltar as vantagens da utilização da metodo logia Contudo, nos países de clima t emperado, como os da
entomológica na estimativa de IPM, fa remos uma breve ex- Euro pa e d os Est ados Unidos, essa classificação difere. Bor-
planação dos fato res d e influência a que estão sujeitos os pa- nemissza43 dividiu o processo de d ecomposição em cinco
râm etros médico-legais utilizad os com essa finalidade. estágios: a d eterioração inicial já citada, putrefação, putre-
Como vimos, para aplicação de grande parte d os m é- fação negra, fermentação butírica e seco. Reed 38 dividiu o
tod os d e crono tan atogn ose, precisaríamos conhecer alguns processo em a pen as quatro est ágios: fresco, já citad o, gasoso,
dad os da vítima antes da mo rte, o que é muito difícil. Po r d eterioração e restos. Payne39 fez a divisão em seis estágios:
exemplo, par a utiliza r os fen óm en os relacion ados à d esidra- fresco, já citad o, incha do, det erioração ativa, deterio ração
tação tegumentar, seria necessário saber o peso da vítima avançad a, seco e rest os. Nu orteva 40 concluiu que o estágio
quando em vida, além de considerar o tipo de mo rte e as fresco permanece at é o inchaço inicial d o corpo (gasoso),
condições ambientais que faze m variar a massa perdida. Para seguido de um murch amento na deflação, d esintegração e
utilizarmos a evolução da qued a da temperatura corporal d e esqueletização. Goff'l2 caract erizou os estágios co m o fres-
forma eficaz, teríam os que considerar o pla tó de tempera- co, ga soso, deterior ação, pós-deterior ação e esqu eletização.
tura35. Adicion almente, precisaríamos sab er a temper atura Desta fo rma, po demos verificar que, como Early & Goff44
exata da vítima no m omento da mo rte. Visto que, de acordo preconizaram , a quantidade de estágios de deco mposição,
com Bad en & Hennesse 36, apesar da ho m eotermia da espécie su a dura ção e su a n om encla tura podem diferir, mas sua or-
human a, há uma pequena variação no rmal de temperatu- d em d e ocorrência é co nstante.
ra; por exemplo, seu s valores podem aumentar durante um De acordo com Polson e cols.45 , a t emperatura ótima de
exercício físico ou quando as mulheres ovulam . Sem citar as putrefação está entre 2 1°C e 38°C, sendo muito difícil estabe-
alterações da temperatura devidas a condições clínicas va- lecer a duração dos seus estágios n os países de clima tropical.
riadas, circunstâncias da m orte, condições ambientais, ida de, Com o já visto em outros capítulos, n o Brasil, por exemplo,
compleição física, se a vítima foi drogada, se lutou antes de que apresenta variações d e temperatura muito significativas
mo rrer etc. Além disso, não podemos esquecer que a qued a d e uma região para outra e ao lon go do ano, é q uase impos-
de tem peratura é um fenó m eno fís ico de transferên cia de ca- sível estabelecer prazos para os sucessivos estágios da putre-
lo r entre d ois corpos, n o qual a passagem é feita de onde h á fação. No ver ão d o Rio de Janeiro, a putrefação inicia-se mais
mais calor par a onde há men os calor. Assim, o local da morte rapidamente que no inverno, que tem temperatura em torno
e/ou as vestes poderão alterar o ritmo da irradiação, condu- d e 18-24ºC e assem elha-se ao descrito nos t ratados america-
ção e convecção térmica (ver Capítulo 17). n os e europeus.
O va lor d a fixação dos livores na cronologia da morte A autora desse ca pítulo ministra aulas de Ento m ologia
também é rela tivo. Os autores divergem quanto ao tempo Foren se par a alunos d o curso de pós-graduação em Biolo-
n ecessário para a com pleta fixação. Da mesm a fo rma, já fo i gia e Gen ética Foren se d a Pontifícia Universidad e Cat ólica
discutido nesse livro que a intensidad e e a duração da rigidez (PUC), do Rio Grande do Sul. Nessa disciplina, os alunos
cadavérica podem ser influenciadas por uma série d e fato- t êm aula t eórica seguida por uma prática d e coleta e estima-
res como, por exemplo, a cau sa da m orte e as condições d e tiva d o intervalo pós-morte utilizando um m odelo animal
tem peratura do ar (ver Capítulo 9). D est a fo rma, a análise d a (porco do méstico). Durante a primeira edição do curso, em
evolução do rigor mortis também não é um méto do perfeito julho d e 2008, a coordenação questiono u a signatária sobre
de estimativa. Certa ocasião, ao examinar um local d e duplo quanto t empo, antes da aula, o porco d everia m orrer a fim de
ho micídio, foi verificad a flacidez tot al em uma das vítimas, que fosse infestado por insetos, possibilitan do a colet a. Foi
enquanto a o utra est ava totalmente rígida. As investigações, respondido que quatro dias seriam suficientes. Porém , por
através da prova t est emunhal, indicaram que as m ortes fo- precau ção, os coordenadores resolveram sacrificar o animal
ram perpetrad as em sequ ência. A primeira vítima estava 15 dias antes e, surpreendentemente, o animal continuava
com os punhos amarrados e voltad os para trás e ferimentos fresco, sem infest ação d e insetos e sem , sequer, mancha verde
qu e indicavam tortura. A segunda vítima, o filho de 13 anos abdominal n o dia m arcado par a a colet a. A tem peratura anal
de idad e da primeira vítima, teria assistido à tortura. Nós foi men surad a em -l ,7ºC. Um porco de mesmo t amanho,
concluímos que a t en são nervosa possa ter provocado rigidez sob as condições climáticas d o Rio d e Ja neiro, no segundo
precoce no corpo d o menino (espasmo cad avérico) 37. dia já estaria em estágio gasoso de decomposição 37.
A divisão d o processo d e d ecomposição em est ágios tam - Na verda de, as variações relacion adas aos estágios de
b ém é m er amente d escritiva e pode variar de acordo com d ecomposição podem ocorrer n a mesm a região geográ fica.
o número de fases e a no m enclatura cor respondente, con - A autora do capítulo t em treinado peritos criminais e legistas
forme o auto r4, especialmente n os artigos d e Entom ologia d o Rio de Jan eiro para a coleta d e evidências entomológicas.
Forense. O primeiro estágio foi den ominado fresco n a m aio - Nesse treinamento, um porco dom éstico também é sacrifi-
ria das classificações 38-42. Porém , Bornemissza43 o d eno minou cado para a coleta. Os porcos utilizados, no rmalmente, t êm
deterioração inicial. Nos países d a América Latina, a classifi- o m esmo peso, fica m expostos no mesmo local e durante o
746 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

m esmo intervalo tempo. Po rém , dentre esses mo delos já ti- Costumo dizer que não tenho pretensões de transformar
vemos porcos em estágio gasoso, coliquativo e de restos, ape- peritos em ento mologistas. Para que esse exame se torne ro-
sar dos cálculos de estimativa de IPM através dos méto dos tina, basta que os peritos conheçam as diferentes aplicações
entomológicos indicarem sempre o dia correto d a morte 37 • da técnica e como os entomo logistas realizam os cálculos, a
fim de que possam coletar e encaminhar, corretamente, to-
dos os dados necessários às an álises. Para identificação taxo-
Estimativa de Intervalo Pós-morte (IPM) pelo
nó mica e os cálculos é aconselhável realizar co nvênios com
Método Entomológico
especialist as d e instituições acad êmicas ou criar um lab ora -
Evidências ento m ológicas, associadas aos outros m éto- tório n o Instituto de Criminalística com um perito ento mo-
d os m encionados, pod em ser utilizadas para estimar o in- logista, como é o caso do Rio d e Jan eiro.
tervalo pós-m orte (IPM). Devemos preferir essa expressão
ao "tempo da m orte'; visto que o tempo exato d a m ort e é
difícil ou impossível de se aferir46 . Além disso, ao invés de • RECONHECENDO OS INSETOS DE INTERESSE
estimar tempo de morte, um entom ologista calcula a idade FORENSE
d os insetos coleta dos o u o períod o compatível com o grupo
d e insetos encontrado4 • Porém , geralmente, esse períod o cor- Em certa ocasião, um médico-legista me questio nou so-
respo nde ao IPM . bre a possibilidade de disponibilizar um tipo d e guia ilus-
H á d ois m étodos para estimativa de IPM por ento m o- trativo com as espécies d e interesse forense a fim d e que,
logia: o padrão de sucessão entom ológica previsível e os dados exposto no necro tério, possibilitasse ao legista realizar a es-
bionôm icos das espécies pion eiras na su cessão. timativa de IPM por entom ologia. Po rém , infelizm ente, isso
Pa ra a d eterminação do pa drão d e sucessão esperado, é não é possível, pois algumas espécies se diferenciam uma das
necessá rio cria r um banco d e dados da ento mo fauna asso- outras por apenas uma pequena cerda que não pod e ser vi-
ciada por meio da ob servação de ca rcaças e corpos d esde o sualizada sem o auxílio de um microscópio, como é o caso de
início até o fim do processo de decomposição, o que auxilia Chrsomya albicep s e Chrysomya putoria (Figs. 35.11 a35.1 3).
n a estimava d o limite m áximo d e IPM 3 • Esse limite é dad o Po rtanto, não é possível uma identificação taxonó mica em
pela compar ação entre a combinação d e espécies coletad as nível de espécie, apenas por ob servação macroscópica e/ou
associadas ao cadáver cujo IPM se pretende estima r com a sem um treinamento adequado. Porém , algumas caracterís-
distribuição de frequência d as espécies o bservad as naque- ticas d e fácil visu alização distinguem os principais grupos de
les experimentos, cuj as informações alimentaram o banco interesse foren se. Dentre as O rdens de insetos, Diptera, Co-
d e d ados47 • leo ptera e Hym eno ptera são as de maio r importân cia4•
Os d ados bio nô micos dos t áxo ns pioneiros no processo Os dípteros são caracterizados po r apresentarem ape-
nas um par d e asas funcion ais. As famílias m ais impo rtan -
d e decomposição po dem indicar o limite mínimo d e tempo
d ecorrido desde a morte at é o dia em qu e o cadáver foi en - tes são: Callipho ridae (m oscas varejeiras de cor metálica);
contrad o, pois o tem po de desenvolvimento do inset o ima- Sarcophagidae (m oscas, geralmente d e grande porte, com
três listras escuras no t órax e abdóm en qua driculado) (Fig.
turo m ais velho que for coletado corresponderá à primeira
35.14); Mu scidae (m oscas mais delicad as) (Fig. 35.1 5). D en -
postura ocorrida logo após a morte, já que insetos n ecr ófa-
tre os califorídeos, a lém d as duas espécies descritas anterio r-
gos não costumam pôr ovos em pessoa viva 5• Sob as n ossas
mente, pod emos citar: Chrysomya megacephala (Fig. 35.16),
condições de temperatura, esse m étodo de estimativa é vá-
lido apen as para os primeiros 30 dias, no máximo, uma vez
que apenas a primeira geração de insetos corresponderá ao
IPM. Portanto, essa metod ologia é utilizada para estimativa
d e IPM nos est ágios iniciais d e decomposição.
Higley & Hask ell48 consideraram que as aproximações
baseadas no limite mínimo e máximo d e IPM são comple-
m entares. Para Wells & Lam ote 49, o melhor mo delo de su ces-
são é aquele no qu al se estima a idade de uma larva associan -
d o essa estimativa ao tem po que aquela espécie d emorou a
chegar ao cor po, ou seja, seu padrão d e sucessão. Seja o limi-
te mínimo, seja o limite m áximo de IPM, é preciso aplicar
análises estatísticas que validem os resultados.
Na verdade, estimativas de IPM por entomologia não são
t ão simples co mo nos faz supor as legiões de Mégnin 2• Essa
estimativa, para que seja feita com a curácia, requer um trei-
namento específico em entomologia básica, biologia e taxo-
nomia das espécies. Figura 35.11. Mosca varejeira da espécie Chrysomya albiceps.
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 747

Figura 35.12. Mosca varejeira da espécie Chrysomya putoria. Figura 35.15. Muscídeo Ophyra aenescens.

Figura 35.16. Chrysomya megacephala.

Figura 35.13. Cerda da espécie Chrysomya putoria em visão au-


mentada.
Cochliomyia macellaria (Fig. 35.17), H emilucilia sp. (Fig.
35.1 8) e Lucilia eximia (Fig. 35.1 9).
Os coleópteros são caracterizados por apresentarem o
último par de asas de consistência rígida como um estojo de
proteção chamado élitro. As famílias d e importância forense
são: Dermestidae (besouros pilosos que comem o periósteo)
(Fig. 35.20), Cleridae (besourinhos verdes associados aos
d ermestídeos) (Fig. 35.21), Scarabaeidae (besouros similares
ao escaravelho) (Fig. 35.22), Trogidae (besouros com élitro
ornamentado) (Fig. 35.23); Staphylinidae (besouros com o
élitro curto) (Fig. 35.24), Histeridae (besouros pequenos)
(Fig. 35.25); Silphidae (besouros com uma mancha no pro-
noto) (Fig. 35.26).
Os himenópteros são caracterizados por apresentarem
d ois pares de asas finas d o tipo membranoso e, geralmen-
te, uma constrição entre o tór ax e o abdómen. As famílias
de maior importância são Formicidae (formigas), Vespidae
(vespas) e o utras famílias de micro-himenópteros parasitoi-
Figura 35.14. Mosca sarcofagídea. des (parasitam imaturos de o utros insetos) .
748 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

Figura 35.17. Cochliomyia macellaria. Figura 35.20. Dermestídeo Dermestes macu/atus.

Figura 35.18. Hemilucilia sp. Figura 35.21. Clerídeo Necrobia rufipes.

Figura 35.19. Lucilia eximia. Figura 35.22. Escarabeídeo Dichotomius sp.


CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 749

Figura 35.23. Trogídeo Omorgus sp. Figura 35.26. Silfídeo Oxelytrum sp.

• COMO COLETAR VESTÍGIOS


ENTOMOLÓGICOS
Como descrito antes, todo o sucesso dos laudos de apli-
cação entom ológica depende de uma coleta bem feita, sem
que nenhum dado seja desprezado. O objetivo principal deve
ser coletar os insetos mais velhos que se criaram junto ao
cadáver. Desta fo rma, a coleta deve começar no local suspei-
to de crime e terminar no necrotério. O material necessário
para coleta é simples e ser á descrito ao longo d o texto.
A temperatura é o fator abiótico capaz de exercer maior
influência no desenvolvimento dos insetos5. Portanto, a tem -
peratura à qual os insetos estão sujeitos deve ser, rigorosa-
m ente, m ensurada . O ideal é que a temperatura do local seja
monitorada através de um aparelho armazenador de dados
Figura 35.24. Estafilinídeo Phinophilus sp. (datalogger), que deve permanecer no local por alguns dias
depois da data em q ue o corpo foi encontrado, visando re-
tratar, fielmente, as condições de temperatura do local5º. Esse
aparelho vem com um programa de computador que faz
regressão linear que compara os dados climáticos d o local
com os dados de uma estação meteorológica, refletindo as
condições reais do local.
Para descrição do local, é necessário info rmar o acesso
dos insetos e q ualquer fa tor q ue possa influenciar a infesta-
ção do corpo o u o desenvolvimento dos animais. O perito
deve procurar por pu pários vazios (invólucro no interior
do qual o inseto sofre metam orfose, transformando-se em
um adulto) ou insetos adultos recém-em ergidos, pois es-
sas evidências indicam que, pelo menos, uma geração já se
crio u associada ao cadáver 3• Insetos recém-em ergidos apre-
sentam as asas encolhidas 5 . Caso esses estágios sejam en-
contrados, devem ser transportados subm ersos em álcool
a 70% dentro de po tes plásticos etiquetados, em gr afite,
com os dados.
No local suspeito de crime, os insetos imaturos devem
Figura 35.25. Histerídeo Saprinus sp. ser procurados desde a área em to rno (circunvizinhança) até
750 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

o ponto onde o cadáver se encontrar, pois as larvas errantes • ESTIMATIVA DO INTERVALO PÓS-MORTE
(aquelas que já pararam de comer) afastam-se do cadáver e
MÁXIMO
procuram um local abrigado para se transformar em pupa
(similar ao casulo de borboleta) 3 e essa dispersão pode che-
Ao longo dos anos, as pesquisas relacionadas ao padrão
gar a 9/10 metros de distâncias'. A temperatura do solo onde
de sucessão dos insetos nos corpos seguiram duas linhas
esses imaturos forem coletados deve ser anotada4 •
metodológicas: a) correlação dos insetos coletados aos está -
Uma amostragem dos insetos adultos associados ao
gios de decomposição cadavérica; b ) análise de associação
corpo deve ser coletada no local visando à análise do pa-
entre os táxon s coletados.
drão de sucessão. Os adultos de voo ativo podem ser cole- Para aplicar a técnica entomológica é imprescindível a
tados com redes entomológicas ou câmara letal e os menos formação de uma base de dados que contenha os táxons que
ágeis com pinçass. Tanto no local quanto no necrotério, as frequentam corpos em decomposição, bem como a maneira
larvas devem ser procuradas na s bordas de orifícios na- pela qual eles se sucedem durante esse processo. Portanto,
turais e ferimentos. Uma amostragem representativa dos a identificação da fauna cadavérica de uma região baseia-se
tipos diferentes de larvas deve ser coletada (morfótipos). A na coleta sistemática dos insetos e na aplicação dos seus
temperatura da massa de larvas deve ser mensurada e sua dados taxonômicos, biológicos e etológicos. Tanto a su ces-
localização no corpo deve ser indicada em um esquema são dos táxons nos corpos, quanto o seu processo biológico
ilustrativos2• de desenvolvimento são influenciados, especialmente, pela
A maior parte da s larvas coletadas deve ser transportada temperatura e umidade relativa do ars. Assim, as caracte-
viva, separadas por morfótipos, em recipientes plásticos que rísticas climáticas da região onde os exames são realizados
possuam um papel absorvente umedecido no fundo e uma acarretam um padrão de su cessão peculiars3. A su cessão das
tampa fechada por rosqueamento. Cada pote deve conter espécies, seu tempo de chegada e colonização dos restos pode
apenas uma quantidade de larvas que cubra o fundo, evi- variar de região para regiãos4• Isso ocorre tanto porque as
tando asfixia. Cerca de 10% das larvas coletadas devem ser espécies não são, necessariamente, as mesmas nas diferentes
colocados em microtubos plásticos tipo Eppendor~ com regiões, quanto porque, mesmo quando a espécie é cosmo -
álcool 70% . O microtubo Eppendor~ é um tubo provido de polita, podem existir diferenças entre populações provenien-
tampa de vedação, comumente utilizado para o armazena- tes de diferentes lugaresss.
m ento de amostras biológicas. O Eppendor~ d eve ser colo- Desta forma, a cada diferente região geográfica e circuns-
cado no interior d o pote, com larvas vivas correspondentes tância, teremos uma comunidade cadavérica específica e um
àquela amostragem. Deve ser confeccio nada uma etiqueta, diferente padrão de sucessão. Po rtanto, para uma aplicação
em grafite, com dados da ocorrência, local de coleta e tem- eficaz da entomologia forense m édico -legal em uma deter-
peratura. A etiqueta também deve ser colocada dentro do minada região é n ecessário ter o conhecimento prévio das
pote com as larvas v ivas. Esses recipientes devem ser acondi- particularidades de sua fauna cadavérica para, consequente-
cionados em bo lsa térmica com gelo em ge1s2• Os exemplares mente, utilizarmos esses conhecimentos como indicadores do
vivos devem chegar ao laborató rio de ento mologia em, no IPM. Wells & Lamotte49 aconselharam ter cuidado com varia-
máximo, 24 ho ras. ções geográficas do padrão de su cessão, pois h á pouca infor-
Ovos só devem ser coletados se não for constatada a pre- mação sobre a variação regional em entomologia fo rense.
sença de larvas. Nesse caso, devem ser transportados sobre Esse método de estimativa de IPM to rnou -se uma fer-
papel filtro umedecido e sob temperatura ambiente, em pote ramenta de aplicação criminalística, principalmente depo is
com tampa e etiquetado em grafitesº. da publicação do livro de Mégnin2 • Desde então, especialis-
Quando o corpo chegar ao n ecrot ério, os dados sobre o tas espalhados pelo mundo procuram relacionar os estágios
tempo transcorrido durante o transporte desde o local e as de d ecomposição aos inset os n ecrófagos que frequentam a
condições d e temperatura do veículo devem ser anotados. carcaça.
O saco de remoção e as roupas da vítima devem ser revista- Em 1908, Roquete-Pintos6 , professor do Museu Nacional
d os à procura d e pupas e larvas em disper são (larva errante). no Rio de Janeiro, calculou que, através da análise do padrão
Esses estágios, tanto no n ecrotério quanto n o local su speito de sucessão sugerido por Mégnin2 , o IPM de um cadáver en-
d e crime, devem ser transportados sob t emperatura ambien- contrado na Floresta da Tijuca d everia ser de vários m eses
te, em recipientes contendo areia no fundo e uma tampa de quando, na realidade, o intervalo era de apenas 20 dias. De-
rosqueamen tos2• vido à divergência de datas, esse autor refuto u essa técnica,
No necrotério, devem ser priorizados insetos escondidos afirmando que sua aplicação não poderia auxiliar os médi -
em cavidades e no interio r do corpo e, especialmente nes- cos legistas que trabalhavam em regiões tropicais. Porém, de-
ses casos, a temperatura do fígado ou anal deve ser coletada vido às extensas diferenças biogeoclimáticas existentes entre
e informada. Os insetos adultos devem ser igno rados, pois o Brasil e a Fran ça, o padrão d e su cessão d e Mégnin não se
podem se tratar de contaminação cruzada, exceto aqueles aplicaria e que seria necessário pesquisar as nossas particula-
adultos que forem encontrados associados ao corpo em ca- ridades. Apenas alguns anos depois, Freires7.ss começou a
vidades ou ossos, como é o caso de alguns besouros. perceber que o padrão de su cessão era regional, mesmo por-
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 751

que verificou que o processo de decomposição transcorria Sch oenly e cols.60 d esenvolveram um programa de com -
mais ra pidamente ou mais lentam ente, dependendo d as putad or para calcular o IPM através d a sucessão dos ar-
condições a que o cad áver estava sujeito. trópo des. Esse programa requer a identificação dos táxons
As alterações sofridas pelos corpos são influenciadas pelo d escobertos n o corpo, padrões de su cessão bem conhecidos
tempo e pelas diferentes condições biogeoclimáticas às quais (b anco de d ados) e dados de duração do desenvolvimento
ele está subm etido. Assim, dois cor pos em um mesmo est á- d os estágios imaturos. Esses auto res também introduziram
gio de d ecom posição, dependendo das condições a que es- o con ceito d e t áxon recorrente, que é aquele que pod e visitar
tão sujeitos, podem manter as caract erísticas mo rfológicas e deixar o corpo várias vezes, durante a su cessão. Alertaram
típicas desse estágio por períod os de tempo diferentes. En- que esses táxons n ão devem ser utilizados como indicadores
quanto um d eles ainda est á em determinado estágio, o outro d e IPM, pois um perío do de au sência em que o t áxo n ainda
já passou para o est ágio seguinte, acarretando uma fauna as- n ão atingiu a ca rcaça pode ser confundido com um perío do
sociada distinta. D est a fo rma, a utilização da relação entre d e au sência após ter permanecido associado à carcaça por
os insetos e os estágios de d ecomposição para estimativa de um tempo. Po r exemplo, uma determinada espécie alcança a
IPM su gerida em inúmeros artigos científicos não tem valo r carcaça no segundo dia de IPM, permanece até o quarto dia,
prático. De que adiantaria a um perito saber que as espécies abando na a carcaça e recorre do sétimo ao décimo dia. Desta
A, B e C ocorrem associadas ao períod o fresco da decompo- forma, se ela n ão est á presente n ão podemos sab er se o IPM é
sição, se ele não sabe se esse período teria um dia apenas de inferio r a dois dias o u está entre o quinto e sexto dia4 •
duração (co mo no rmalmente ocorre no Rio de Ja neiro) ou
15 dias, como para o m odelo animal exposto pela PUC-RS, Limite Mínimo de IPM
referido anteriormente.
Por isso, temos reservas quanto a essa correlação inseto/ O IPM mínimo é dado pela estimativa da idade d e um
estágio de decomposição, m ét odo de estimativa que já fo i inseto que se alimenta d o corpo em d ecomposição, desde
questio nado por Schoenly & Reid59, que não encontraram que seja relacio nado seu gra u de d esenvolvimento às co ndi-
diferenças est atísticas significativas n o que tan ge à fa una as- ções do local suspeito de crime. É conveniente lembrar que
sociada a cada estágio d e d ecomposição. Assim, esses autores o ento m ologista estima a ida de do inseto que, na maioria
admitiram que a divisão do processo de d ecomposição em d as vezes, corresponderá ao limite mínimo d e morte. Há di-
estágios possui valor meram ente didático, sendo inapropria- versos fatores que podem afetar a velocidade de desenvolvi-
da para caract erizar um padrão de sucessão. m ento desses o rganism os. Alguns são bióticos, co m o estad o
Devido às variações que ocorrem nos estágios de deco m - nutricion al e or gânico, outros abióticos, como tem peratura,
posição e na fauna associada, seu u so na estimativa de IPM fo toperíodo e umidad e61 - 64 • Em razão disso, para uma esti-
aumenta a incert eza na determin ação. Por essa razão, pre- m ativa de desenvolvimento acurada, as condições às quais
ferimos empregar a técnica de análise de associação, usad a esse imaturo esteve sujeito d evem ser considerad as.
anteriormente em estudos de sucessão vegetal. Esse método Os méto dos de estimativa de desenvolvimento dos inse-
é baseado em unidades d e tempo que relacio nam dados d e tos são baseados em três m odelos: o fisiológico, o curvilíneo e
frequên cia das espécies coletadas ao tem po real de intervalo o linear (m étodo do grau -hora o u grau -dia) 65•
pós- mort e. Para isso, as espécies coletadas associadas a cad á- No mo delo fisiológico, os indicado res intrínsecos de
veres human os ou m odelos animais, cujo IPM é conhecido d esenvolvimento são dosados como, por exem plo, a con cen-
a priori, são relacionad as aos dias de IPM, através de uma tração d os seu s hormônios e a atividad e enzimática envol-
matriz binária em qu e é ma rcad a a au sência o u a presen ça d e vida nesse processo de am adurecimento 61 • Desta fo rma, a
cada t áxon. O program a de análise de associação reduz a h e- t axa d essas substâ ncias estabelece o n ível de desenvolvimen -
terogeneidade dos grupos, fo rmando subgrupos de espécies, t o e, co nsequentem ente, a idad e estimada d o inseto. O fat o
den ominadas divisoras, que car acterizam um determinado d e ana lisar t odos os fato res envolvidos no processo t orna
período de tem po. esse m ét odo vantajoso, po is, as o utras técnicas con sideram
A t écnica baseia-se em um tipo de an álise combinató ria apenas a tem pera tura com o um fato r de influência quan-
das espécies d e maior importân cia fo ren se, indican do os in- d o, na verdad e, o processo é muito ma is complexo. Con -
tervalos. As espécies coletad as em experimentos devem ser tudo, o problema desse método é a fa lta de acuidade d os
catalogad as em um b an co de d ados d e acordo com a su a indicadores, que aponta m para um d eterminado estágio
frequên cia no processo de decom posição. Assim, hipotetica- (ovo, larva, pupa, a dulto) sem especificar o grau exat o de
mente, se associad o a um cad áver periciad o, fossem coleta- d esenvolvimento.
das as espécies A e C, n ão sen do en contradas as espécies B e O m odelo curvilíneo é b aseado em curvas de crescimento
D, o b anco de d ados seria con sultad o sendo verificado qu e, que podem ser construídas em laborat ório através do regis-
qu ando h á presença concomitante de A e C com au sência tro d as modificações do peso e do tam anho de larvas de inte-
das demais espécies, o cad áver teria um IPM máximo esti- resse fo rense criadas em condições experimentais. Essas cur-
ma do de cinco dias porqu e, após esse períod o, essas espécies vas de crescimento podem ser usadas par a estimar a idade
n ão apresentam mais frequência isolad a (sem as demais es- d e um inseto d a m esma espécie colet ado no local su speito de
pécies) e conjunta (ao mesmo tem po)4 • crime, com paran do os pesos e tam anhos49 • Por exemplo, se
752 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

18 35°

16

14 ............ .;. ••••••••••• ( •••• ••••• j ••••

12
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Chrysomya albíceps
i i i i
····················································-

o ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~-
2 4 5 9 10 11 12 13 14
º 3 6
Dias depois da postura
7 8

Figura 35.27. Diagrama isomorfeno de C. albíceps submetida a diferentes temperaturas de criação (20, 25, 30 e 35ºC). A linha- * corresponde
à medida de coleta (6,0 mm) e os respectivos dias depois da postura (adaptado de Grassberger et al.)66•

for coletada uma larva de Chrysomya albiceps com 6,0 mm Isso ocorre po rque o processo de desenvolvimento de um
(seis milímetros) de comprimento, procura-se na literatu- inseto é primariamente dependente da temperatura, visto
ra um artigo científico que tenha publicado um diagrama que esses animais são ectotérmicos, dependendo de fontes de
iso morfeno da espécie (Fig. 35.27) e compara-se a medida calor externas para viabilizar suas reações enzimáticas68 • As-
achada com aquela da curva em que a temperatura corres- sim, os insetos, bem como os outros animais, possuem uma
ponda à vigente no local d e coleta66 . A Figura 35.27 indica temperatura ideal de d esenvolvimento. Quando a tempera-
que, a 20°C de temperatura, a larva teria cinco dias de idade; tura diminui, o metabolismo também diminui e retarda o
a 25ºC, um pouco mais de dois dias; enquanto a 30 e 35ºC desenvolvimento, até atingir um limiar mínimo onde o cres-
teria entre um e dois dias. cimento pára. Se a temperatura diminuir além desse limiar
Um dos problemas práticos desse método de estimativa mínimo, eles começam a morrer. Por outro lado, se a tempe-
é que, geralmente, essas curvas são feitas em temperatura ratura aumentar, o metabolismo também aumenta e acelera
constante e o inseto, na cena do crime, está sujeito a variações o desenvolvimento até atingir o limiar máximo a partir do
da temperatura ambiente6 7 • Outro problema é que, constan- qual o ritmo será constante. Além desse limite, o aumento
temente, são usadas as médias de tamanho das larvas cria- da temperatura será letal para a espécie, fazendo com que o
das para construção das curvas de crescimento e, na prática, desenvolvimento diminua e pare. A mais baixa temperatura
verificamos que, mesmo sob condições similares, nem todas na qual o inseto pode se desenvolver é denominada limiar
as larvas atingem o mesmo tamanho. Além disso, o coletor mínimo de desenvolvimento, enquanto a mais alta é chama-
pode recolher as larvas de tamanhos extremos. Sendo assim, da limiar m áximo. Normalmente, o limiar letal está bem pró-
essa metodologia só deve ser utilizada em locais situados no ximo dos limiares mínimo e máximo de desenvolvimento.
interior de imóveis, onde a estabilidade da temperatura cria De acordo com Higley & Haskell48 , o método d e estima-
um ambiente similar ao do laboratório. tiva baseado no modelo curvilíneo apresenta um nível de
Para Higley & Peterson 65 , teoricamente, a relação entre complexidade elevado demais para seus resultados, que não
a temperatura e o desenvolvimento do inseto é descrita por têm se mostrado tão mais eficazes que os dos modelos linea-
uma "curva" que só se comporta como curvilínea em tempe- res. Por outro lado, o modelo linear jamais pode ser usado
raturas extremas (próximas aos limiares mínimo e máximo em temperaturas extremas (próximas aos limiares), po is
de desenvolvimento), comportando-se como linear nos va- como foi relatado antes, o ritmo de desenvolvimento assume
lores intermediários de temperatura (Fig. 35.28) . aí uma relação curvilínea69 •
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 753

Limiar máxima

Desenvolvimento curvilíneo

Desenvolvimento linear

Limiar mínimo
Desenvolvimento curvilíneo

15 20 25 30 35 40 45 50
Temperatura

Figura 35.28. Desenvolvimento curvilíneo próximo às temperaturas limiares e linear nas temperaturas intermediárias.

O m étodo baseado no modelo linear é cham ado de grau- Quando os valores não estão publicados na literatura,
dia ou grau-hora acumulado, por considerar o desenvolvi- Higley & Haskell48 aconselhara m usar um limiar mínimo de
mento com o o produto da multiplicação da temperatura à 6°C para as espécies de regiões temperadas e de 10°C para as
qual o indivíduo está submetido (entre os limiares mínimo e espécies de regiões tropicais. Porém, como o limiar inferior
máximo ) pelo tempo48• depende da fisiologia do o rganism o, varia de acordo com as
Cada espécie tem seu próprio requerimento total de ca - diferentes espécies. Portanto, na pr ática, essas aproximações
lor, que varia de acordo com os seus estágios de desenvolvi- podem estar muito aquém dos limiares reais, induzindo a
mento. Assim, cada espécie requer um definido número de erros graves na estimativa do IPM. Freitas70 , utilizando o
graus-dia para completar seu desenvolvimento e acredita-se limiar de 10°C para a mosca varejeira Chrysomya albiceps,
que esse valor seja constante par a a maioria dos táxons. Des- encontrou um IPM com 3 dias de atraso, ao passo que os
ta fo rma, é calculado o calor que uma determinada espécie m esm os cálculos, utilizando o limiar de 15°C sugerido por
necessita acumular para atingir os diferentes graus de desen- Grassberger e cols.66, produziram um valor coincidente com
volvimento pós-embrionário em um dado intervalo de tem- o IPM real.
po. Consequentem ente, as temperaturas às quais os imaturos
dos insetos estão sujeitos na cena da morte determinam o Cálculo do Grau-dia Acumulado Esperado
tempo necessário para completarem seu desenvolvimento 48 •
Quando um imaturo é coletado em uma cena de crime,
Assim, os dados de temperatura devem ser cuidad osamente
deve ser feita a sua identificação taxonômica e, de acordo
coletados a fim de possibilitar as estimativas de IPM4 •
com a espécie, uma compilação dos seus dados de desen-
volvimento publicados na literatura, preferencialmente em
Cálculo do Grau-dia Acumulado (Método Baseado temperatura similar àquela encontrada no local examinado7 1 .
no Modelo Linear) Deve ser utilizado o imaturo mais velho encontrad o, vis-
to que os insetos são atraídos aos corpos rapidamente para
Estimativa dos Limiares colocar seus ovos e larvas. Assim, as primeiras posturas cor-
A determinação d os limiares de desenvolvimento é fun- responderão ao tempo que o corpo encontra-se exposto à
damental para o cálculo do grau-dia. Esses limiares têm sido atividade de insetos3•
estabelecidos para alguns organismos através de experimen- Esses dados de desenvolvimento devem ser utilizados pa-
tos controlad os feitos no campo e no laboratório. Diferem de ra calcular o valor do grau-dia acumulado esperad o, ou seja,
um para outro organismo. Os valores do limiar de desenvol- a quantidade de calor que aquela espécie precisa acumular
vimento das espécies de interesse forense, já determinados e para atingir aquela fase de desenvolvimento. Se os valores da
descritos na literatura, fora m compilados em O liveira-Costa4 • literatura fo rem fornecidos em horas, calcula-se o grau -hora
754 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

acumulado (GHA) esperado e, em seguida, transforma -se tropicais, que é o caso do Brasil, não é possível negligenciá-
este valor para GDA, utilizando as equações abaixo65: lo, pois as temperaturas podem ser muito altas. Desta forma,
é preciso que outras pesquisas de base sejam feitas a fim de
GHA esperado = (temperatura de criação da literatura - estimar o limite máximo de desenvolvimento para as espé-
limiar mínimo ) x tempo de desenvolvimento da literatura cies de importância em locais de clima tropical 4 •
A acumulação diária do grau-dia dependerá das condições
_ GHA esperado de temperatura a que o inseto estava sujeito. Assim, deve ser
GDA esperad o -
24 considerada na fórmula. Quando a temperatura atmosférica
a que o inseto coletado estava sujeito se encontrava situada
Exemplo: entre os limiares de desenvolvimento, sua fórmula deve ser:
Uma pupa recente foi coletada em um local de crime
cuja temperatura média era de 25°C. Conduzida para o la- (temperatura máxima
boratório, dias depois, emergiu uma mosca varejeira (cali- GDA _ +temperatura mínima ) (limiar
forídeo) da espécie Cochliomy ia macellaria. Consultando o obtido - 2 mínimo)
trabalho de Byrd & Butler72 , que criaram essa espécie em la-
boratório, verificamos que o táxon demorou 124 horas para Porém, se a temperatura atmosférica mínima do dia con-
siderado for menor que o limiar inferior de desenvolvimento
pupar, sob uma temperatura de 25°C. Os autores não indi-
caram limiar mínimo de desenvolvimento. Assim, seguindo da espécie, Higley & Peterson65 aconselharam a substituir o
o proposto por Higley & Haskell48, consideramos lOºC como valor da temperatura mínima registrada pelo valor do limiar
limiar mínimo e calculamos o GHA e o GDA esperados de mínimo para aquela espécie.
acordo com a fórmula fornecida acima:
(temperatura máxima
GDA _ + limiar mínimo) (limiar
GHA esperado = (25°C - 10°C) x 124 h =
obtido - 2 mínimo)
GHA esperado = 15°C x 124 h = l.860°C/h
GDA esperado = 1.860 : 24 = 77,5ºC/dia Por exemplo, considerando 10°C e 30°C como limiares mí-
nimo e máximo, respectivamente, se a temperatura atmos-
Cálculo da Acumulação Diária de Grau-dia férica mínima do dia foi de 4,4°C e a máxima de 15,5ºC, con-
Depois de calculado o grau-dia acumulado esperado, de- sequentemente, a mínima é m enor que lOºC e a m áxima não
vem os relacioná-lo às condições ambientais a que os exem - é maior que 30°C, a fórmula acima deverá ser adaptada:
plares daquela espécie estiveram expostos no local suspeito
de crime, a fim de inferir sua taxa de desenvolvimento e, (l 5,5 + lO ) - 10 = 2 75ºC/dia
2 ,
consequentemente, possibilitar a estimativa de IPM4 • A limi-
tação principal desse tipo de cálculo está relacionada com as No caso de a temperatura atmosférica máxima ser maior
temperaturas constantes utilizadas em experimentos contro- que o limiar superior, esses autores aconselharam substituir
lados de laboratório, que não refletem as condições naturais o valor relativo à temperatura m áxima pelo valor d o limiar
d e campo, pois calcular o grau-dia acumulado considerando máximo de desenvolvimento para aquela espécie, adaptando
as flutuações de temperatura que ocorrem na natureza é a fórmula:
muito mais difícil61 •63•64 •73 •
H á inúmeros m éto dos de cálculo baseados no mod elo (limiar máximo
linear que diferem em complexidade matemática: retân gulo GDA + temperatura mínima) (limiar
(m áxima e mínima ), triângulo simples, triân gulo duplo, seno obtido = 2 mínimo )
simples, seno duplo e Huber. A escolha do método mais apro-
priado a ser utilizado varia de acordo com a área de estudo e Po r exemplo, se a temperatura atmosférica máxima for
a espécie considerada 74 • Apresentaremos aqui o método do de 32,2°C, o valo r estará acima de 30°C, que foi considerado
retân gulo descrito por Arnold69, que é a forma mais simples o limiar m áximo da atividade biológica. Sendo a temperatu-
d e cálculo. Nessa técnica, a área do retângulo é medida indi- ra atmosférica mínima de 22ºC, teremos:
retamente através da medida da temperatura a que a espécie
considerada estava sujeita no local. Graficamente, o grau -dia (3ü + 22 ) - 10 = 16°C/dia
2
é a área de um retângulo na extensão de um dia (24 horas) .
Apesar de ser menos acurado, o m éto do promove resultados
adequados, além de poder ser calculado sem o auxílio de um
Estimativa do IPM em Retrospectiva (Grau-dia Esperado -
Grau-dia Obtido)
computador, devido a sua simplicidade matemática.
Nessa fórmula, o limiar superio r é ignorado, sob a alega- Para calcular o IPM mínimo, é importante usar o cálculo
ção de que a temperatura mais alta raramente alcança níveis de forma retroativa, desde o último estágio de desenvolvim-
altos o bastante para produzir efeito letal. Porém, nos países ento coletado até o dia da postura48 • O grau -dia obtido pelo
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 755

exemplar imaturo mais velho coletado d eve ser calculado a No dia 4 de maio, as temperaturas m áxima e mínima
cada dia, com eçando pelo dia d a coleta. Depois de calcula- registradas fo ram de 26ºC e 12ºC, respectivamente. Assim, o
do, esse valo r deve ser deduzido d o valor tot al esperad o, d e grau -dia acumulado para o dia 4 foi:
forma a inferir o gra u -dia esperad o para o dia anterior. A
sub tração deve ser feita até que se alcance a data da postura, . ob t1'd o = (26ºC + 12ºC) - l OºC =
G rau -d ia
que será evidenciada quando o resultado do valor obtido fo r 2
igual ou m eno r que o valo r esperado 7 1•
Grau -dia obtido = l 9°C - 1OºC = 9°C/ dia 4
Exem plo:
Uma larva em segundo instar fo i coletada em um local
Quan tos graus-dia esse inseto tinha acumulado no dia 3 de
suspeito de crime, cuja temperatura m édia era de 25°C, no dia
m aio? Para deduzir esse valo r, subtraímos do valor do grau -
6 de maio . Conduzid a para o lab oratório, dias depois, em ergiu
dia esperado at é o dia 4 o grau -dia obtido para o dia 4:
uma m osca varejeira ( califorídeo) da espécie Cochliomyia m a-
cellaria. Con sultando o trab alho de Byrd & Butler 72 e o limiar
Grau -dia acumulado esper ado at é o dia 4 -
m ínimo pro posto por Higley & Haskell48, os cálculos fora m:
grau dia o btido para o dia 4
GHA esper ado = (25ºC - lOºC) x 42 h =
Grau dia acumulado espera do at é o dia 04 =
GHA esperado = 15°C x 42 h = 630°C/h
5,75ºC- 9ºC = - 3,25ºC
GDA esperado = 630: 24 = 26,25ºC/dia

No mom ento em que o resultado d a subtração fo r n e-


No dia 6 de m aio, as temper aturas máxima e mínima
gativo ou igual a zero, esse é o dia da postura. No exemplo
registra das foram de 27°C e 12°C, respectivam ente. Assim, o
acima, o dia 4 de m aio .
gr au-dia acumulad o par a o dia 6 fo i:
Para que o cálculo seja mais eficaz, devemos relacionar o
imaturo colet ado às tempera turas às quais ele estava sujeito
. . (27°C + 12ºC )
Grau -dia obtido = - lOºC = no local suspeito. Higley & Haskell48 aconselha ram utilizar a
2
temperatura de acordo com o estágio de desenvolvimento d o
Grau-d ia obtido = 19,5ºC - lOºC = 9,5ºC/dia 06 inset o coletad o.
Os valores das temperaturas atmosféricas diárias (mínima
Quantos graus-dia esse inseto tinha acumulado até o dia e m áxima), obtidos em uma estação meteorológica pr óxima,
5 de maio (dia an terior à coleta)? Para d eduzir esse valor, d evem ser utilizados para os primeiros instares que ainda não
sub traímos do valor d o gr au-dia esperado o grau -dia obtido formaram m assa de larvas, con fo rme verificado no exem plo
para o dia 6: anterior. Porém, com o nem sempre os dad os da est ação mete-
orológica refletem o microclima do local onde o corpo foi en -
Grau-dia acumulado esperado total - contrado, é ideal que possamos deixar um aparelho regist ra-
grau dia obtido para o dia d a coleta do r d e dad os d e tem peratura n o local (Tiny Tag Data Logger),
por alguns dias. D e posse d esses d ados, o software d o aparelho
Grau dia acumulado esperado at é o dia 5 = compara-os com aqueles obtidos na estação meteorológica,
26,25°C- 9,5ºC = 16,75°C por regressão linear, informando a tem per atura exata à qual
o inseto est ava exposto no local suspeito48 •
No dia 5 de m aio, as tem per aturas máxima e mínima
registradas for am de 28ºC e 14ºC, respectivam ente. Assim, o (tem peratura m áxima
grau -dia acumulad o para o dia 5 fo i: GDA _ +temperatura mínima ) _ (limiar
obtido - 2 mínimo)
. . (28ºC + 14°C)
Grau -dia obtido = - lOºC =
2 Exemplo de cálculo:
Tem peratura atmosférica: máxima - 26°C e mínima - l 7°C
Gr au-dia obtido = 2 1ºC - lOºC = l l°C/dia 5
Limiar mínimo = lOºC
Quantos graus-dia esse inseto tinha acumulado no dia 4 de
maio? Para deduzir esse valor, subtraímos do valor d o grau - GDA obtido = (26ºC + l 7°C) - l OºC =
2
dia espera do até o dia 5 o grau -dia obtido par a o dia 5:
GDA obtido = 2 l ,5ºC - lOºC = l l ,5ºC/dia
Grau -dia acumulad o esperad o até o dia 5 -
grau dia obtido par a o dia 5 Par a os últimos inst ares larvais, é importante con siderar
a temperatura da m assa de larvas, pois o agrupam ento dos
Grau dia acumulado esperado at é o dia 4 = inset os gera calor met abólico que, muitas vezes, atinge uma
16, 75ºC - 11 ºC = 5, 75ºC temperatura superior à do ambiente. Se n o dia da coleta o
756 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

imaturo estava em massa de larvas, essa temperatura deve


ser mensurada e utilizada nos cálculos. Porém, larvas em
terceiro instar se mantém em massa por alguns dias. Desta
forma, o coletor não pode medir a temperatura inerente
aos dias anteriores ao dia em que o cadáver foi encontrado.
Como alternativa, Higley & Haskell48 aconselharam usar um
valor constante de temperatura da massa de larvas em torno
de 32 a 35ºC, alegando que esse valor seria correspondente a
um crescimento mais rápido das larvas, evitando superesti-
mar o IPM.

GDA obtido = temperatura da massa - (limiar mínimo)

Exemplo de cálculo:
Temperatura da massa de larvas = 32ºC
Limiar mínimo = 10°C

GDA obtido = 32ºC - lOºC = 22ºC/dia

Quanto às larvas errantes e pupas, a temperatura do solo


deve ser utilizada, pois ambas as formas são coletadas nesse
substrato 71. Por esse motivo, basta trocar a média da tem-
peratura atmosférica pela temperatura do solo:

GDA obtido = temperatura do solo - (limiar mínimo)


Figura 35.29. Posição em que o corpo foi encontrado.
Exemplo de cálculo:
Temperatura do solo = 25°C
Limiar mínimo = lOºC Após a espécie ter sido identificada, seus dados bionô -
micos foram pesquisados na literatura especializada. Para o
GDA obtido = (25ºC - lOºC) = 15°C/dia cálculo do grau-dia acumulado esperado foram utilizados
os dados publicados por Marchenko 75 , pois esse trabalho
crio u essa espécie em regime de temperatura similar à média
Estudo de Caso de temperatura encontrada no local suspeito (25°C) durante
No dia 5 de julho de 2005, um corpo, já em decomposi- as coletas. O autor forneceu o limiar mínimo de desenvol-
ção, foi encontrado dentro de um imóvel abandonado na ci- vimento de 13°C, com tempo de desenvolvimento de ovo à
dade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. A vítima estava adulto de 12,5 dias.
enforcada (Fig. 35 .29). Seu corpo encontrava-se em uma fase Cálculo do grau-dia acumulado esperado:
de transição do estágio gasoso para o coliquativo da decom-
posição. De acordo com os fenóm enos cadavéricos destruti- GDA esperado = (temperatura de criação
vos, o IPM foi estimado pelos patologistas em uma semana e - limiar mínimo) x dias de desenvolvimento
pela prova testemunhal foi estimado em 15 dias.
Como em qualquer exame de local, os procedimentos de GDA esperado = (25ºC - 13ºC) x 12,5 dias = 150ºC/dias
praxe foram adotados, especialmente quanto à descrição do
ambiente e dos vestígios. Antes de iniciar as coletas, os dados Foi construída uma tabela (Tabela 35.1) com o valor do
de temperatura e umidade relativa do ar foram anotados. grau-dia acumulado esperado e os valores de temperatura
Não foram encontradas massas de larvas nem as larvas pude- aos quais os espécimes estavam sujeitos no local, tempera-
ram se enterrar, pois o piso era confeccionado em cerâmica. tura do ar (mínima e máxima), e temperatura da massa de
Os valores da temperatura do ar relativos aos dias anteriores larvas. Não foi utilizada a temperatura do solo porque os
foram obtidos em uma estação meteorológica próxima. pupários foram encontrados próximos ao rodapé. Com base
Foram coletadas larvas de moscas em terceiro instar nas nos dados de temperatura aos quais os insetos estavam sujei-
pernas da vítima e no piso, além de pupas escuras no ro- tos, o calor acumulado a cada dia (grau-dia acumulado/dia )
dapé. Moscas recém-emergidas ou pupários vazios ou não foi estimado. Para estimá-lo, solicitamos a uma estação me-
foram encontrados. Na m esma noite da data da coleta, espé- teorológica, próxima ao local, os valores das temperaturas
cimes da mosca varejeira Chysomya albiceps (Calliphoridae) máxima e mínima do dia da coleta (dia 5 = 25°C e 18°C,
emergiram. respectivamente) e os valores relativos aos 20 dias anteriores
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 757

ao dia em que o cadáver foi encontrado. Tod os esses valo- Os cálculos d evem ser repetidos a cada dia retroativo até
res, citados nos cálculos abaixo, estavam entre os limiares de que o valo r de grau-dia calculado para o dia (GD ) seja igual
desenvolvimento. De posse desses dad os, calculam os a m é- ou maior que o grau-acumulado esperad o até aquele dia
dia da temperatura de cada dia e diminuímos esse valor do (GDA), de fo rma que a subtração dê um valor nulo ou ne-
limiar mínimo de d esenvolvimento da espécie. gativo. Esse dia corresponderá ao dia que o inseto adulto fez
Nos dias 1 d e julho e 30 de junho utilizam os o valor d a postura no corpo. Nesse exem plo, no dia 21 de junho, com o
temperatura da massa de larvas, pois as la rvas em terceiro pode ser observado abaixo:
instar costumam se agrupar e o seu atrito gera calo r meta-
bólico. De acordo com a literatura, la rvas dessa espécie, sob Dia21
esse regime de temperatura, deveriam estar no terceiro ins- Dados:
tar de desenvolvimento nesse períod o. Como não estávamos Temperatura máxima = 25°C
no local suspeito nesses dias, para mensurar o valo r dessa Temperatura mínima = 18°C
temperatura, 34°C foi utilizado, confo rme recomendação d e Limiar de desenvolvimento para a espécie = 13ºC
Higley & H askell49 .
O valor d o grau-dia acumulad o esperado foi progressiva- . . (25ºC + 18ºC)
mente subtraído do calor acumulado a cada dia, resultando GD obtido para dia 21 = - 13ºC =
2
no grau-dia acumulad o até o dia anterior, de forma que os
valores se aproximassem e se tornassem equivalentes, cor- GD obtido para dia 21 = 21,5ºC- 13ºC = 8,5ºC/dia 21
respondendo ao dia d a postura, permitindo avaliar o tempo
que o corpo se encontrava exposto à atividad e dos insetos Gra u-dia acumulado até dia 20 = grau-dia acumulado
(intervalo pós- morte). até o dia 21 - grau dia obtido para o dia 21
Como os cálculos são feitos:
Qual o grau -dia obtido para o dia 5? GDA espera do para o dia 20 = 8,5°C/
Dados: acumulad o até dia 21 - 8,5°C/obtido para dia 21 = zero
Temperatura m áxima = 25ºC
Temperatura mínima = 18°C Se não há mais calor a ser acumulado, esse foi o dia em
Limiar d e desenvolvimento para a espécie = 13ºC que a mosca adulta fez a postura no cad áver (Tabela 35.1 ).
A idade das moscas coletad as foi de 15 dias, concordando
. . (25ºC + 18ºC) com o intervalo pós-morte relatado pela prova testemunhal
GD obtido para dia 5 = - 13ºC = e contrariando o resultado estimado pelas características
2
físicas do corpo.
GD obtido para dia 5 = 21,5ºC - 13ºC = 8,5ºC/dia 5
No estudo d o caso apresentado, verificam os a eficácia
d o méto do entomo lógico, pois através da análise dos fe nó-
Grau-dia acumulado até o dia 4 = grau-dia acumulado
menos destrutivos cadavéricos o intervalo pós-morte seria
esper ado to tal - gr au dia obtido para o dia da coleta
subestimado. Por que o corpo tinha aparência de estar ex-
posto apenas d uran te 1 semana? Geralmente, as larvas são
GDA esperado para o dia 4 = 150ºC/dia - 8,5ºC/dia 5
vorazes e aceleram a decomposição. Po rém, d evido ao fa to
d e o cadáver estar pendurado (enforca mento ), havia po ucos
GDA esperado para o dia 4 = 141,5°C/ até dia 4
imaturos sobre o corpo, consequen temente é muito provável
que a deterioração tenha se processado mais lentam en te,
Qual o grau -dia obtido par o dia 4?
fazendo com que os restos mortais tivessem aparência que
Dados:
indicasse um IPM m enor.
Temperatura máxima = 26°C
Temperatura mínima = 16ºC
Limiar d e desenvolvimento para a espécie = 13ºC
• CONSIDERAÇÕES FINAIS
. . (26ºC + 16ºC)
GD obtido para dia 4 = - 13°C = Os exames periciais relacionados a crimes passíveis de
2
apuração em ações públicas penais d ecorrentes dos atentados
GD obtido para dia 4 = 21°C - 13°C = 8°C/dia 4 contra a vida humana são rotineiros nos instituto s de crimi-
nalística d o país, compondo um dos mais importantes tipos
Gr au-dia acumulad o até dia 3 = grau-dia acumulado até o d e trabalho da Perícia O ficial. A d emanda crescente desse
dia 4 - grau-dia obtido para o dia 4 tipo de exame decorre do fato d e que, nos último s ano s, tem
aumentado a incidência de homicídios nas grandes cidades.
GDA esperad o par a o dia 3 = 141,5°C/até dia 4 - 8°C/dia 4 Uma pesquisa do Núcleo d e Estudo s da Cidad ania, Con-
flito e Violência Urbana, feita pela Universidad e Fed eral d o
GDA esperado para o dia 3 = 133,5°/até dia 3 Rio de Janeiro (UFRJ), denominada "O inquérito policial
758 • CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM)

Tabela 35.1. Cálculo do intervalo pós-morte através do grau-dia acumulado retroativo até a data da postura para
Chrysomya albiceps

Dl1
5/7
4/7
3/7
Temp.
111611•
25°C
26oC
25°C
Temp.
Mrn1111
18°C
16oC
18°C
·-
T111p.
GD
8,5
8
9
GDA
150
141 ,5
133,5
217 26oC 18oC 8,5 124,5
1/7 34°C 21 116
30/6 34°C 21 95
29/6 25°C 1B°C 11 ,5 74
28/6 25oC 17oC 8 62,5
27/6 25ºC 18ºC 8,5 54,5
26/6 24ºC 15ºC 6,5 46
25/6 24ºC 14ºC 6 39,5
24/6 25oC 16oC 8 33,5
23/6 25°C 18°C 8,5 25,5
22/6 26oC 17oC 8,5 17
21 /6 25°C 18°C 8,5 8,5
Temp = temperatura; GD = grau-dia obtido para o dia; GDA = grau-dia acumulado.

no Brasil: uma pesquisa empírica", mostra que a polícia so- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
luciona apenas 15% dos homicídios ocorridos na cidade76 •
Esse tipo de delito repercute na sociedade como um todo, !. Carrera M. Insetos de interesse m édico e veterinário. Editora da
seja na esfera política, seja na esfera social, e acarreta trans- Universidade Federal do Paraná; 1991. 228 pp.
to rnos para a segurança pública. De acordo com Obregon 2. Megnin JP. La fauna des cadavres: application de la entomologie a
Gonçalves 77 , os órgãos de polícia científica do país estão de- la medecin lega le, Encyclopedie Scientifique des Aide-Memories,
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fasados e ultrapassad os, daí as dificuldades para ajudar na
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material4 • Infelizmente, no Brasil, esses vestígios ainda são
11. Clery JM. Stability of prostate specific antigen (PSA), and subse-
ignorad os, de forma a contribuir para a baixa estatística de quent Y-STR typing, of Lucilia (Phaenicia) sericata (Meigen) (Dip-
homicídios solucionad os. Devemos reverter essa situação tera: Calliphoridae) maggots reared from a stimu lated postmo rtem
deixando que os insetos contem a estória do crime! sexual assau lt. F. Se. Intem ationa l; 2001. 120:72-76.
CAPITULO 35 Entomologia Forense para Estimativa do Intervalo Pós-morte (IPM) • 759

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A desoxirribonucleico, 89
fortes, 392
À queima-roupa, 265 nítrico, 392
Abóbada craniana, 88 oxálico, 392
Aborto, aspectos demográficos e incidência do crime sulfúrico, 392
de,632 Acromegalia, 56
Ação(ões) Acrotomofilia, 584
cá ustica Actina,171
ácidos fortes, 392 Adultério, 629
agente fixador, 393 Afogamento, 562
bases fortes, 392 Afterdrop, 356
fósforo branco, 394 Afundamento
lesões circular da calota craniana, 61
externas, 390 pequeno, da tábua externa do díploe, 205
internas, 390 Agressor, houve mais de um?, 129
problemas médicos-legais, 395 Albodatilograma, 41
contundente, 194 Álcool
lesões e morte por agentes mecânicos, 193 efeitos neuropsíquicos do, 409
cortucontudente, 188 etílico, 406
explosiva, 327 Alcoolismo, 736
humanas Algidez cadavérica, 167
ilícitas, 4 Algofilia passiva, 584
lícitas, 4 Algolagnia
perfurocontundente, 188, 327 ativa, 584
perfurocortante, 188, 448 passiva, 584
sistêmica Alotransplantes, 112
fisiopatologia, 398 Alteração( ões)
incidência e causa jurídica, 396 bioquímica, 104
intoxicações crônicas, 404 morfológicas, 104
perícia nos envenamentos e nas intoxicações, Alterações degenerativas, 80
419 Amolecimento cerebral, área extensa, 105
Accelerator, 297 Amônia,392
Acidente(s), 131 Anafilaxia, 160
de mergulho, aspectos periciais, 318 Ancianofilia, 584
de trânsito, motociclistas vitimados em, 136 Andromania, 584
de transportes, proporção de morte em, 136 Andromimetofilia, 584
do trabalho Aneurisma
benefícios, 472 cerebral, 152
conceito, 462 dissecante, 150
consequências, 473 Anfetaminas, 412
perícia, 474 Anfissexualismo, 584
tipos, 466 Angioma cavernoso, 230
elétricos, prevenção, 380 Anilingus, 582
morte por, 135 Antropologia forense
Acidificação dos líquidos tissulares, 112 aplicações da tafonomia na, 58
Ácido(s) conceito, 49
clorídrico,392 histórico, 50

761
762 • Índice Remissivo

identidade e processos de identificação, 35-47 Asma, 155


identificação de restos humanos, 49-99 asfíxica, 156
Antropometria, 39 Assédio sexual, 600
Apoptose, 104 Atestado médico, 24
Apotenofilia, 584 Atitude da vítima ao ser golpeada, 129
Aptidão, 462 Ato(s)
Ar atmosférico ao nível do mar, composição, 512 fisiológicos, quanto tempo antes de morrer a vítima fez
Arcadas dentárias, exame das, 43 certos, 130
Arco(s) libidinosos, 581
ventral, 64 obsceno, 603
voltaicos, lesões por, 3 74 ATP (Adenosin-triphosfate ), 171
Arma(s) Autismo sexual, 584
branca, lesões e morte por, 237-250 Autoagonistofilia, 584
do crime, 128 Autocrastia, 584
de fogo Autocrotismo, 584
classificação, 251 Autofilia, 585
estudos das, 251 Auto-homossexualismo, 585
Arquivos monodatilares, 41 Autólise, 170
Arrancamento, áreas de, 211 Automatismo, 462
Arrasto, 288 Autonomia, princípio bioético da, 114
Arritmias primárias, 151 Autotransplantes, 112
Arsênio, 418 Ayauasca, 418
Artéria coronária
aberta, 148
trombose da, 148 B
Articulação sacroilíaca, 66 Bacia
Artigo 129 do Código Penal Brasileiro, 432 do adolescente, 74
Artrites, 56
masculina, 65
Asfixia(s), 188
Bago, 258, 10
conceito e classificação, fisiologia respiratória, 511
Bala dundum, 256
duração, 518
Balins, 258, 10
evolução clínica, 518
Balística, 259
fenô menos cadavéricos, 521
elemetos de, 287
fisiopatologia da s, 517
Barbitúricos, 409
lesões das, 518
Baropatias
por constrição cervical
enforcamento, 533 decorrentes da
esganadura,552, 14 ação de pressões altas, 310
estrangulamento, 544 descompressão rápida, 313
por modificações do meio ambiente permanência sob pressões muito baixas, 306
afogamento, 562 estudo médico-legal da s( os)
confinamento, 557 aspectos periciais dos acidentes de mergulho, 318
diagnóstico, 558 noções básicas da cinética dos gases, 305
mecanismo de morte, 558 por explosões, 319
soterramento, 558 Barotrauma
por sufocação auditivo, 31 O
direta, 523 dental, 312
indireta, 528 digestivo, 312
síndrome da morte súbita infantil, 530 pulmonar, 315
Asfixiofilia, 584 sinusal, 312
Asfixiologia torácico, 312
asfixias por Bases fortes, 392
construção cervical, 533-556 Beijo erótico, 582
modificações do meio ambiente, 557-578 Benzodiazepínicos, 410
sufocação, 523-531 Bertilhonagem, 39
conceito e classificação das asfixias, 511-522 Bestialidade, 585
Índice Remissivo • 763

Bestialismo, 585 Campo elétrico, 368


Bigamia, 6 17 Canal de Havers, 53
Bilhete de despedida, 125 Carbonização, 60, 352
Binges, 414 Cardio miopatias, 150
Bioquímica Cardiopatia
do líquido cefalo rraquidiano, 181 aterosclerótica, 14 7, 148
do sangue, 181 hipertensiva, 148
Bissexualismo, 585 Car ga de pólvora, 258
Blast, 323 Carta d e despedida, 125
primário "Cartas patentes'; 8
lesões causadas pelo, 325 Cartuchos, 256
meca nismo de ação, 323 Casam ento
submarino, 324 aspectos médico-legais d o
quaternário, lesões pelo, 328 causas
secundário, lesões pelo, 32 7 d e anulação, 618
terciário, lesões pelo, 327 suspensivas, 618
Bolhas d e conteúdo pardo-avermelhad o escuro, 177 crimes contra o, 627
Bondagism o, 585 dissociação da sociedade co njugal, 624
Bonnet, sinal de, 270 impedimentos matrimoniais, 616
Bordas de uma ferida, retração d as, 141 Castrofilia, 585
Bossa Catalepsia, 111
occipital, 203 Cavidade tempo rária, 293
sanguínea, 195,202 Cavitação, fenómeno da, 294
serosa, 202 Célula(s)
Bronquíolo obstruído, 156 esquema de uma, 90
Bucha plástica, 260 ósseas, 53
Buraco occipital, determinação d o sexo a partir do, 69 Centrais de Notificação, Captação e Distribuiição d e
Órgãos, 117
e Centros respiratórios, esquema, 515
Cérebro, extensa hem orragia subaracnóidea na base
Cadáver do, 153
de um afogado em putrefação, 139 Choque
esquartejado, 139 anafilático, 160
exame d o, 126 estado de, 89
face de, encontrado em dia d e muita chuva no meio do pulmão de, 350
m ato, 138 Chrysomya megacephala, 745
Câimbr as, 338 "Chupão", 197
Cal Cianose, 518
virgem, 393 Cicatriz astrocítica, 235
viva, 393 Circulação, ausência de, 111
Calibre real de uma arma raiad a, determinação do, 253 Classificabilidad e, 37, 41
Caligrafia, 42 Classificação de Vucetich, 4 1
Calo ósseo, 206 Cleptolagnia, 585
Calor Clínica psiquiátrico-fo rense civil, 732
ação local do, 342 Clitero mania, 585
difuso, ação d o, 336 Coação, 623
doenças relacionadas ao, 336 Coagulação do sangue, 14 1
inibição da produção de, 335 Coágulos san guíneos, remoção d os, 153
intolerância ao, 336 Cocaína, 412
latente Cochliomyia m acellaria, 746
d e difusão, 332 Código(s)
d e evaporação, 332 de H amurábi, 7
d e fusão, 332 de Manu, 7
troca de, 332 Coeficiente balístico, 288
Calota craniana, afundamento circular da, 6 1 Coitofobia, 583
764 • Índice Remissivo

Coloração Crista, 66
azulada por transparência da dura-máter, 202 da nuca, 68
fase de, 175 Cromoinversão, 585
Com a depassé, 106 Cronotanatognose
Combustão, 258 exames laboratoriais, 181
Compactação, 56 fenómenos cadavéricos, 65
Com plexo actina-miosina, 171 de ordem física, 166
Compressão, 195, 197 de ordem química, 170
Concausas e lesões corporais, 437 Curatela, 730
Concavidade subpúbica, 66 Curva
Concussão, 220 de dissoaciação da Hb0 2, 514
Condroblastoma, 57 do resfriamento do corpo humano, 167
Condução de calor, 334
Confinam ento, 55 7
Congestão polivisceral, 520 D
Conjunção carnal, demonstração pericial da, 605
Decapitação, 249
Consolidação de fra turas, 190
Constrições cervicais, perícia nas, 555 Declaração de óbito, 25
Consulta m édico-legal, 23 Deflagração, 258
Contatos voluptuosos, 582 Deformação do encéfalo, 219
Contemplação da nudez, 582 Degola, 241
Contenção por fio e cinto de couro, 127 Demonstração pericial, 604
Contusão, 220 da conjunção carnal, 605
antiga, 222 de outros atos libidinosos, 612
Convexão, 334 Dente incluso, 88
Coprofilia, 585 Dentrofilia, 585
Coprolagnia, 585 Dermestídeo Dermestes maculatus, 746
Cópula Descompressão
ectópica, 582 doença da, 314
tópica, 582 rápida, baropatias decorrentes de, 313
Cor ação Desenvolvimento
aberto para mostrar fib rose, 151 dentário, 70
corte transversal do, 149 ósseo, 53
Córnea Desidratação, 166
depressão d a, 166 Deslizamento, 195
turva, 166 Desvio(s)
Corpo de delito, 18 de sexualidade, 46
Corrente elétrica, 370
do septo nasal, 88
Corrupção de menores, 601
Detonação, 258
Costelas, extremidades esternais das, 8 1
Devoteísmo, 585
Crack, 413
Diabetes, 161
Crânio, 78
dimo rfism o sexual d o, 67 Diagnóstico da espécie, 62
feminino, perfil, 68 Dimorfismo sexual do crânio, 67
Cremação, 60 Direito
Crematofofilia, 585 noções de, 3-5
Crescimento ósseo, 53 positivo, 4
Cribra orbita/ia, 55 Disco epifisário, 53
Crime(s) Discondro plasia, 57
contra a liberdade sexual, 596 Discrasia sanguínea, 229
contra o casamento, 62 7 Disfa rcismo, 585
de aborto, 632 Disfun ção(ões)
de infanticídio, elementos do, 670 neurológica grave, 235
de tortura, 436 sexuais, 582
sexuais, 595 Dispareunia, 583
contra vulnerável, 600 Displasias, 57
Índice Remissivo • 765

Dispositivos d e suspensão metabólicas, 56


laço, 534 nutricio nais, 56
nó,534 relacionad as ao trabalho, 471
Distensão da bolsa escrotal, grande, pelos gases da Dollismo, 585
putrefação, 177 Dolo, 191
Distúrbio(s) Donjuanismo, 585
circulatórios, 56 Dopping, 390
da hipófise, 56 Dosagem do po tássio no humor vít reo, 181
Divórcio, 627 Dupla hélice, 93
DNA
estrutura básica do, 91
E
perfil de, 95
replicação, 92 Eb urnação, 56, 81
esquema da, 93 Ecdiseísmo, 585
DNA (deoxyribonucleic acid), 89 Ecouterism o, 585
Doação( ões) Edem a, 337
de órgãos, 113 cerebral, 309
de partes de pessoa viva, 11 3 citotóxico, 232
de tecidos, 113 da mucosa d a laringe, intenso, 161
gratuidad e da, 117 encefálico difuso intenso, 233
intervivos, 11 3 pulmonar das grandes altitudes, 308
post mortem, 114 vasogênico, 232
presumida, 11 5 Edipismo, 585
Doador m orto, abandonando a regra do, 109 Efebolia, 586
Documentos médico-legais, 20 Efeito
Doença(s) bola de bilhar, 282
da descompressão, 314 Joule, 371
das m ontanhas, 307 Ejaculação precoce, 583
de Alzheimer, 235 Electrismo, 586
de Alpers-Schõnberg, 57 Eletricidade
de Creutzfeldt-Jakob, 235 industrial, 363
de Monge, 309 aspectos físicos, 364
de Parkinson, 235 natural, 38 1
de Pick, 235 sobre os seres vivos, ação, 368
de von Recklinghausen, 56 Eletroperfu ração, 369
degenerativas, 235 Elet roplessão, 363, 368
do aparelho mecanismo de morte por, 378
respiratório Emar anhado neurofibrilar, 236
asma, 155 Embalsamen to, 180
embolia, 157 Embolia, 157
infecções, 155 maciça, 157
circulatório traumática pelo ar, 315
aneurisma d issecante, 150 anatomia patológica, 316
arritmias primárias, 151 Embriaguez, 736
cardiomiopatias, 150 Embrião de aproximadamente 2 meses, peça cirúrgica, 160
cardiopatia aterosclerótica, 147 Eminência mentoniana, 68
cardiopatia hipertensiva, 148 Encéfalo
par ada cardíaca reflexa, 152 deformação do, 219
valvulopatias, 149 retirada do, 216
d igestivo, 157, 158 técnica, 217
nervoso central Encefalopatia, relacionada a prío n, 235
aneurisma cerebral, 152 Enclitofilia, 586
epilepsia, 154 Encravamento, 240
hemorragia cerebral, 154 Energia
endócrinas, 56 baromét rica, 188
766 • Índice Remissivo

cinética, 188 Estatura


dos projéteis de arm as cur tas comuns, 260 em esqueletos imaturos, reconstrução, 87
de ordem química, 188 estimativa
elétrica, 188 a partir d o comprimento dos ossos longos, 86
gasto durante dife rentes atividades, 332 em vida, equações para, 85
Enfisema, 176 méto do
subcutâneo, 207 anatómico, 83
Enfo rcamento, 533 métrico, 84
Entorse, 195, 203 Estatuto do D esarmamento, 254
Envenenamentos, perícia nas, 419 Esteato necrose, 159
Eonismo, 586 Estenose cicatricial, 39 1
Epilepsia, 154 Estigmas
pós- traumática, 235 pro fissionais, 37
precoce,235 ungueais, 21O
tardia, 235 Estigmato filia, 586
Equação(ões) Estimulação química d a íris, 182
de regressão para estimativa d o compr imento de Estojo, 258
Estrangulamento, 544
fetos, 87
Estro mania, 586
para a estimativa da estatura em vida, 85
Estruturas celulares, esquem a das, 90
Equimose(s), 195, 196,198, 199
Estudo médico-legal
em faixas transversais ao redo r do pescoço, 201
das baropatias, 305-330
espontâneas, 199
d a capacidade civil, 729-733
evolução cromática das, 200
d a imputabilidade e da responsabilidade penal, 709-728
post mortem, 200
d o alcoolismo e da dependência química, 735-738
traumáticas, diagnóstico diferencial, 199 Estupro, 596
valor m édico-legal das, 201
casos registrados no Estad o do Rio d e Janeiro, 599
Era d e ouro da m edicina legal, 9
d e vulnerável, 601
Ereção dos pelos, 335 Etanol, 406
Eritropoietina, 306 Etnoinversão, 586
Erotismo hipóxico, 586 Evaporação, 334
Erotofonia, 586 Evisceração por ferida, 240
Erotografia, 586 Exame(s)
Erotomania, 586 anal, 613
Erupção d entária, sequência e época, 71 d e corpo d e delito, 604
Escara beídeo, 746 laboratoriais
Escatofilia, 586 bioquímica
Escatolagnia, 586 atividad e enzimática dos tecidos, 182
Escatolalia, 586 do líquido cefalo rraquidiano, 181
Escoriação, 209 do sangue, 181
faixas de, 211 estimulação química d a íris, 182
valor m édico-legal das, 211 dosagem de potássio no humo r vítreo, 181
Esganadura, 552 excitação muscular, 181
Esgorjam ento suicida, 241 pré- nupcial, 617
Esmagamento, 195,2 13 vaginal, 613
Espasm o cadavérico, 174 Exaustão térmica, 339
Espectro esquimótico d e Le Gran du Saulle, 190 Excitação muscular
Espingarda, lesões por tiros de, 282 mecânica, 181
Espoleta, 259 por ação elétrica, 181
Espuma, 520 Excrementofilia, 586
Estad o Exibicionismo, 586
de nut rição, 167 Explosão( ões)
vegetativo, 235 aspectos periciais, 328
persistente, 106 baropatias po r, 319
Estafilinídeo, 747 d e obus, acidente de, 321
Estatuofilia, 586 Explosivos, tipos, 320
Índice Remissivo • 767

F Flebografia, 42
Fluxo de energia, 193
Falange distal, m ovimento brusco e for çado da, 194 Força
Fauna cadavérica, 178 de implosão, 326
Favorecim ento de prostituição, 603 impulsora, 195
Feixe de Kent, 151 Formação óssea anormal, 54
Fenômeno(s) Formão, 250
cadavéricos, 521 Formicofilia, 587
d e ordem física Formo!, 393
desidratação, 166 Fosfato branco, 320, 394
livores hipostáticos, 168 Fotografia sinalética, 39
resfriamento do corpo, 167 Fratura(s), 55, 195
d e ordem química cominutiva, 205
autólise, 170 difusa, 223
ma ceração, 179
completa, 205
mumificação, 180
consolidação de, 190
putrefação, 174
da tíbia, foco de, 206
rigidez muscular, 171
do crânio, 222
sa po nificação, 179
com afundamento da calota, 202
da cavitação, 294
do osso temporal, 223
da queda susequente, 356
em d obradiça, 222
de personificação, 35
exposta, 206
de transitismo, 35
linear, 62
oculares, 166
no tempo ral direito, 222
Fenótipo, 35
mecanism o de, 204
Ferida(s)
patológica, 204
biconvexa, 300
Frio
contusa, 211
difuso, ação do, 353
valor médico-legal d as, 213
local, ação d o, 358
de bord as irregulares, 212
de defesa, 127 aspectos médico-legais, 359
na m ão e antebraço, 242 gravidade, 359
em sedenho, 265 patogenia, 359
sintom as, 359
era mortal por si própria?, 129
estrelada irregular, 302 Frotteurismo, 587
mortal, 130 Fulguração, 381
penet rantes, 234 lesões e m orte por, 382
perfuro incisa perícia, 385
no pescoço, 128 Funções cereb rais, ausência de, 111
por instrumento de um gume, 244 Furor
por compressão, 212 feminil, 587
punctórias recobertas por crostas, 238 uterino, 587
transfixantes, 233, 275 Fuzil
Ferimento(s) AR- 15, 285
ca usados por projéteis de fuzil, 234 ferimentos causad os por projéteis d e, 234
da cabeça por PAF, representação, 233
Fetichismo, 586 G
travéstico, 587
Fibras musculares, 171 Gás(es)
Fibrila muscular, corte, 171 carbônico, toxidez d o, 313
Fígad o hiperbáricos, intoxicação pelos, 312
em caso d e hepatite aguda, corte histológico, 105 no pulmão, troca d e, 5 12
visto por baixo, 176 Geladuras, 358
Figura de Lichtenberg, 383 Genó tipo, 35
Fitofilia, 587 Gerontofilia, 587
Flacidez muscular difusa, 111 Gigantismo, 56
768 • Índice Remissivo

Gimonimetofilia, 587 Hom oero tismo, 587


Ginecomania, 587 Hom ossexualismo, 46, 587
Giro do cíngulo, 225 Humor vítreo, d osagem d o po tássio no, 181
Glabela, proeminência da, 67 Hydra-shock, 257
Glândulas suprarrenais
corte histológico, 160
infiltração hemorrágica nas, 159
Globo ocular, hipotensão d o, 166 Iconolagnia, 587
Goiva, 250 Idad e
d eterminação da, 70
Grandes queimados, mecanismo d e morte dos, 349
em jovens, 70
Gravidez tubária, 159
d o início da união em diversos ossos, 73
nos vivos, determinação da, 43
H Identidade, 35
H alo senil, 44 Identificação, 35
H em atom a, 195, 202 d eterminação
da idade nos vivos, 43
epidural volumoso, 202
do sexo nos vivos, 45
do crânio com subcapsular hepático, 203
importância da, 36
orbitá rio bilateral, 224
m étodos de
Hemilucilia sp., 746
antropometria, 39
H emorragia(s), 224
datiloscópico, 40
cerebr al, 154
fotografia sinalética, 39
extradural, 224
fundamentos dos, 36
patologia da, 226
mutilações, m arcas e tatuagens, 37
digestiva alta, 157
retrato falado, 38
intraparenquimatosa, 22 7
problem as especiais de, 43
intraventricular, 228
Ilíaco(s)
post mortem, 141
feminino, m ontagem d e, 65
subaracnóidea, 226 m asculino, 65
extensa, na base do cérebro, 153 IML, exames mais comuns nos, quesitos ofi ciais dos, 3 1
subdural, 225 Imobilidade, 111
H emotórax, volumoso, por contusão torácica, 140 Impacto direto, 219
H ermafroditism o verdadeiro, 46 Impedimentos m atrimo niais
H érnia traumática, 208 absolutos, 616
H ighlanders, 308 d e vínculo, 617
Higroma subdural, 229 dirimentes relativos, 618
Hímen, ro tura de, 190 pro ibitivos, 618
H inge fracture, 222 Imprudência, 462
Hipererotismo, 587 Impulso, 219
Hiperostose parótica, 55 Imputabilidade penal, 7 11
Hipotensão do globo ocular, 166 limites e modificadores d a, 713
Hipotermia, 353 Imutabilidade, 36, 40
aspectos periciais, 357 Incerteza d e Tourdes, lesões produzid as durante o período
causa jur ídica, 358 d e, 140
terapêutica, 357 Índice de Kimura, 67
Histerídeo, 747 Indivíduo atroplado por trem d o metrô, 248
Histologia óssea, 51 Indução enzimática, 407
Histopatologia, 142 Infanticídio
H omicídio, 132 legislação brasileira, 669
diagnóstico imposto pela localização e número de perícia, 676
entradas no do rso, 129 Infa rto hemorrágico, 228
multiplicidade de meios em, 128 Infecções, 55
por instrumento perfurocortante, 246 Infiltração
questões relativas aos, 128 equimótica, 196
vítima com numerosas lesões cortoco ntusas na violácea, 201
cabeça, 248 hemorrágica nas glândulas su pra rrenais, 159
Índice Remissivo • 769

Infortunística axonal difusa, 229


acidente de trabalho aspectos macroscópicos, 23 1
benefícios, 472 causadas pelo blast primário, 325
conceito, 462 com assinatura, 190
consequências, 13, 473 corporais
perícia, 13, 474 ação penal nas, 436
tipos, 13, 466 artigo 129 do Código Penal Brasileiro, 432
risco profissional, 461 aspectos m édico-legais, 438
Insensibilidade, 111 d o dano psíquico, 456
Inseto(s) concausas e, 437
de interesse forense, 744 conceito no direito penal, 430
investigações de morte violenta e, 740 crime de tortura e, 436
Insolação, 339 culposa, 445
Instrumento(s) perícia, 456
contundente, 194 decorrentes d e atividades esportivas, 458
cortantes, 240 graves, 440
cortocontundentes, 246 gravíssimas, 442
de calibre perícia, 453
m édio, 238 leve, 439
pequeno, 238 perícia, 45 1
mecânicos, problemas m édico-legais, na d outrina do direito penal, 434
242 no direito civ il, 438
perfurocortantes, 237 prática
lesões e morte por, 25 1-284 da medicina e, 436
Interdição, 730 pericial na, 445
Intervalo pós-morte princípio d a insignificância e, 438
cálculo, 756 relacionad as ao trabalho, aspectos médico-legais, 457
entom ologia forense para, 739-758 seguida de morte, 445
máximo, estimativa, 748 perícia, 13, 456
métod os tradicionais de estimativa, 742 de contragolpe, 154
Intoxicação(ões) de golpe, 154
crim inosas, 418 de hesitação, 24 1
cr ónicas, 404 de inalação, 348, 349
medicamentosas, 405 de raspão, 265
pelos gases hiperbáricos, 312 dos lutadores de boxe, 235
perícia nas, 419 e mo rte
profissionais, 405 por ação elétrica, 363-387
Ipsação, 587 por ação térmica, 331-362
Íris, estimulação química d a, 182 por armas brancas, 237-250
Irradiação, 334 por projéteis de alta energia
Isotransplantes, 11 2 arrasto, 288
coeficiente balístico, 288
L dad os históricos, 286
de entrad a, 291
Labiação, 56 elem entos d e balística, 287
Laceração, 220 estudo experimental, 29 1
Laço,534,535 fenó meno da cavitação, 294
Legalidad e, 4 ondas d e choque e d e pressão, 290
Lei saídas, 299
de Wolff, 5 1 encefálica hipóxica, 230
Maxiliano, 11 intencionais, 139
Lenocínio, 603 pela eletricidad e, complicações, 376
Lesão(ões) por ação contundente, causa jurídica das, 213
abertas, 209 por animais necrófagos, 138
acidentais, 139 por arcos voltaicos, 374
770 • Índice Remissivo

por força impulsora, mecanismo, 219 dos primórdios à idade moderna, 7


por tiros de espingarda, 282 era de ouro da, 9
post mortem, 138 história, conceituação e divisão, 7-15
produzidas introdução à
algum tempo antes da morte, 139 história, conceituação e divisão da, 7-15
durante o período de incerteza de Tourdes, 140 noções de direito, normas morais e normas
pelos projéteis de arma de fogo de uso civil, 260 jurídicas, 3-5
entradas, 261 perícia e peritos. Documentos médico-legais,
saídas, 273 17-30
trajeto, 272 no Brasil, 10
que podem dar ideia de quem as produziu, 130 nos séculos XVI, XVII e XVIII, 8
traumáticas, 188 para o advogado, valor do estudo da, 14
Lesbianismo, 587 para o médico, valor do estudo da, 14
Lesbismo, 587 subdivisões, 13
Lex alemanorum, 7 Meningite pós-traumática, 225
Linha de tra ção, 195 Merla, 413
Líquidos tissulares, acidificação dos, 112 Mescalina, 418
Livores Metabolismo, aumento do, 335
de tonalidade vermelho-carmim, 170 Metáfise, 53
hipostáticos, 168 Microestrutura dentária, 83
valor médico-legal dos, 170 Microscopia eletrônica de varredura, 277
LSD,417 Mielite, 55
Lubricidade senil, 588 Miliária, 337
Lucília eximia, 746 Miocárdio, corte histológico do, 150
Lugar em que se deu a agressão, 129 Miofilamentos, 171
Luminol, 125 Misofilia, 588
Luxação, 195,203 Mixoscopia, 588
completas, 204 Moralidade, 4
incompletas, 204 Mortalidade
regular, 204 por causas externas no ano de 2006, regiões
metropolitanas com maiores taxas, 133
M por homicídios de alguns países nos últimos anos, taxa
de, 133
Maceração, 179 Morte(s)
Maieusofilia, 588 aparente, 110
Malformações vasculares, 229 cardíaca, retornando à, 108
Mancha(s) causa jurídica da
de resíduos de disparo, 276 acidente, 131
deixadas por respingo de sangue, esquema para explica r diagnóstico da, 124
a forma das, 125 frequência das causas de morte violenta, 131
esverdeada, 176 impo rtância da determinação da, 124
negra da esderótica, 166 questões relativas aos homicídios, 128
Mandíbulas femininas, 69 reação vital, 137
Manobra de Toynbee, 312 suicídio, 131
Marca(s), 37 celular, 103
de escoriação, 210 cerebral, 106
de mordedura, 451 conceituação, 103
de mordida, 126 cortical, 106
elétrica, 372, 373 do corpo, 104
Máscara equimótica, 529 do tronco cerebral, 108
Masoquismo, 588 dos grandes queimados, mecanismos de, 349
Masturbação,582 encefálica, 107
Medicina termo de declaração de, 121
legal idade estimada à, 79
conceito, 13 intencionais no mundo em 2004, distribuição da s, 132
Índice Remissivo • 771

pela eletroplessão, mecanismo de, 378 Ondas


por acidentes, 135 de choque, 290
por causa externa segundo a causa jurídica, distribuição, de pressão, 290
132 Opiáceos, 410
por emoção violenta, 162 Ordem em que for am feitas as lesões, 129
por esforço físico exagerado, 162 Ó rgão(s)
por inibição, 152 de cadáver, tabela para aproveitamento, 113
prova incontestável da, 11 6 doação de, 113
real, 110 O rla
súbita, 145 de queimadura, 266
causas, 147 de tatuagem, 267
em adultos, 147 Ossificação
suspeita, 145 cartilaginosa, 53
violenta endocondral, 53
frequência das causas de, 131 intramembranosa, 53
o u suspeita, exame do local de, 124 Osso(s)
Mosca varejeira, 7 44 esponjoso, reabsorção de, 81
Mossa d eixada por um projétil, 126 fragmentados, reconstrução da estatura em, 87
Motociclitas vitimados em acidentes de trân sito, 136 frescos, 59
Motosserra, 249 ilíaco
Multiplicidade de meios em homicídio, 128 de indivíduo jovem, 75
Mumificação, 180 direito, superfície auricular de, 65
Munição, 255 inominado, 74
Mutação, 95 lo ngo carbonizado, fragmento, 61
no DNA,97 lo ngos, 69
Mutilações, 37 estimativa da estatura a partir do comprimento
d os, 86
N remodelação cortical, 82
marmóreos, 57
Nano filia, 588 raízes e plantas em contato com, 61
Narcisismo, 588 tipo de, 51
Necro filia , 588 Osteíte, 55
Necropsia forense, 8 Osteoblasto, 53
Necrose, 104 Osteócito, 53
de coagulação, 229 Osteoclasto, 53
Neoplasia, 57 Osteologia, 51
Nepiofilia, 589 Osteopetrose, 57
Neurônios, aspecto de "chama d e vela': 236 Osteossarcoma, 5 7
Neuropatologia forense, 2 16 O uvido reverso, 311
Nexo causal, estabelecimento d o, 457 Ovotestis, 46
Nicolaísmo, 589 Oxigênio, toxidez do, 313
Ninfom ania, 589
Nitrogênio, toxidez do, 312 p
Normas jurídicas, 4
Nutrição, estado de, 167 PAF, ver Projéteis de arma de fogo
Pancreatite aguda, 158
o Parada cardíaca reflexa, 152
Parafilias, 584
Óbito, declaração de, 25 Parcialismo, 589
Obstrução das vias respiratórias superiores, 525 Parecer médico-legal, 23
Oclusão dos orifícios naturais, 523 Parede bronquiolar, 157
Oftalmoscopia, 42 Partenofilia, 589
Oligofrenias, 722, 723 Partes de pessoa v iva, doação d e, 11 3
Olisbismo, 589 Parturição, 70
Onanismo, 589 Patologia óssea, 53
772 • Índice Remissivo

Pé-de-galinha, 44 distân cia dos tiros, 279


Peder astia, 589 identificação do atirador, 275
Pedicação, 589 número de projéteis que atingiram a vítima, 278
Ped ofilia, 589 ordem dos tiros, 279
Pelve, 74 reação v ital e tempo d e sobrevivência, 280
Peodeicto filia, 589 lesões produzidas por instrumentos mecânicos, 242
Perda óssea anormal, 54 soterramento, 56 1
Perícia, 4 Processo mastoide, 68
Periculofilia, 589 Proeminência ( s)
Periculosidad e, cessação da, 727 d a glabela, 67
Perinecroscopia, 124 ósseas, 88
Períod o gasoso da putrefação, 176 Projétil(eis), 256
Periostite, 55 d e fuzil, ferimentos causados por, 234
Perito(s), 4 por arma de fogo
divergência entre, 19 ferimento transfixante da cabeça por, 233
função d o, 19 traumatismo causado por, 233
Petéquia(s), 196, 519 Prolapso
na conjuntiva ocular, 198 da valva mitral, 149
v ioláceas, 141 uterino após a morte, 177
Picnofilia, 589 Protocolo d e Pitsburgh, 109
Pigm aniolism o, 589 Protrusão da língua, 177
Pirimidinas, 91 Prova incontestável d a morte, 116
Pirolagnia, 589 Pseudoartrose, 207
Piromania erótica, 590 Pseudocolpolagnia, 590
Pistola Taurus, PT 940, 252 Pseudo -hermafro ditismo, 46
Placa(s), 53 Pseudopeolagnia, 590
de aterom a, 147 Psicoanalépticos, 412
osteométrica adaptado, 84 Psicodislépticos, 4 16
pergaminhada, 210
Psicolagnia, 590
de arra ncamento d e epiderme causadas por
Psicolagnia, 590
fo rmigas, 138 Psicolépticos, 406
Plesbiofilia, 590
Psilocibina, 417
Pluralismo, 590
Psiquiatria fo rense
Poder de parada, 256
estom ologia forense para estimativa do intervalo
Po lígono de Willis, 153
pós-m orte, 739-758
Po limorfismo, 96
estudo médico-legal da( o)
Po rnografia, 590
alcoolismo e d a dependência química, 735-738
Po rno lagnia, 590
Po roscopia, 42 capacidade civil, 729-733
Posição relativa entre vítima e agressor, 129 imputabilidade e da responsabilidade penal, 709-728
Po tassa, 393 Púbis, face articular do, 66
Prancheta de Vucetich, 40 Pulmão
Praticabilidad e, 36, 40 corte histológico em pessoa asmática, 156
Pressão(ões) d e choque, 350
altas, baropatias decorrents da ação d e, 310 Purinas, 91
medidas de, unidad es d e, 325 Putrefação, 174
Previdência Social, regulamentos, 477 fase
Princípio d a insignificância e as lesões corporais, 438 coliquação, 178
Problemas médico-legais coloração, 175
afogamento, 571 enfisema, 176
dos instrumentos perfu rantes, 239 esqueletização, 178
lesões e morte por armas de fogo períod o gasoso da, 176
causa jurídica, 281
determinação de que a arma foi utilizada
recentemente, 278
a
direção dos tiros, 280 Qued a subsequente, fenómeno da, 356
Índice Remissivo • 773

Queimaduras, 342 Riparofilia, 590


aspectos periciais, 346 RNA, transpo rtad or, 95
ca usa jurídica das, dignóstico da, 350 Rotura(s), 195
classificação, 344 de aneurisma sacular, 229
gravidade, 347 de hímen, 190
parciais, 344 do lobo inferior d o pulmão, 206
química, 391 mesentéricas, 8, 208
reação geral às, 344 viscerais, 8, 207
superficiais, 344 Rubefação, 195, 196
totais, 344 Rugograma, 4 1
Quimiorreceptores, 515 Rugopalatoscopia, 41
Quiroerastia, 590
Quiro mania, 590 s
Sacro,66
R
feminino, 67
Sadismo, 590
Radiação calo rífica, 167
Sadomasoquismo, 590
Raízes e plantas em contato com ossos, 61
Safismo, 590
Ramo isquiático, 66
Saliromania, 591
Reação(ões)
Sanidade mental, exame de, 725
alérgica grave, 160
Saponificação, 179
anafilá ticas, 160
Sarcoma d e Ewing, 57
ao trauma
Sarcômero, 171
geral, 189 Satiríase, 591
sistêrnica, 189 Satiromania, 591
vital, 137
Satisfação lascívia mediante presença d e criança ou
Reaquecimento, métodos d e, 357 adolescente, 602
Receptor, escolha d o, 115 SCQ (superfície corporal queimada), regras para avaliar,
Regra de Nysten, 172 348
Relatório médico-legal, 21 SCUBA,3 13
Resfriamento do corpo, 167 Separação judicial, 625
Residuograma, 280 Septo nasal, desvio, 88
Resíduos Sequelas dos traumatismos caranioencefálicos
de disparo, m anchas de, 276 disfunção neurológica grave, 235
produzidos doenças degener ativas, 235
d e disparo epilepsia pós-traumática, 235
manchas d e, 276 estado vegetativo, 235
na mucosa da língua, 277 lesões d os lutado res d e boxe, 235
pela quema d e espoleta, 277 Serosa, 195
Resolução 1.480 do Conselho Federal de Medicina, Serra circular elétrica po rtátil, 249
120 Sexo, determinação
Respiração, ausência de, 112 adultos, 64
Respirator brain, 108 a partir d o buraco occipital, 69
Responsabilidade penal, 191 a partir d o diâmetro vertical da cabeça do fêmur e do
Restos humanos, identificação, 49 úmero, 69
Retifismo, 590 nos vivos, 45
Retrato falado, 38 subadultos, 63
Revólver Taurus, calibre 38, 25 1 Sexologia forense
Ribossomo, 94 aspectos médico-legais d o casamento, 615-629
Rigidez atos libidinosos, 581-593
intensidade da, 171 estudo m édico-legal do aborto, 63 1-665
muscular, 171 violência sexual, 595-6 14
cronologia, 174 Sexualidad e, desvios de, 46
evolução da, 173 Stopping power, 256
774 • Índice Remissivo

Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar d e Armas), 253 Suspensão


Silfídeo, 747 dispositivos de, 534
Simbolismo erótico, 591 ponto de, 534
Sinal(is) Sutura(s)
de Bo nnet, 270 cranianas
de Lázaro, 107 diferentes graus de, 79
de Sommer, 166 fechamento d as, 78
de Sommer-Larcher, 167 localização dos segmentos das, 78
particulares, 87 d o palato duro, sistema d as, 80
Síncope, 338 endocranianas, segmentos do sistema das, 79
Síndro me(s) palatinas, 80
da criança espancada Swapping, 591
conceito, 695 Swinging, 59 1
etiologia e principais fo rmas, 698
histórico, 695 T
legislação vigente no país, 697
realidade médico-legal e diagnóstico, 701 Tábuas corticais, 54
da morte súbita infantil, 530 Tafo no mia, 58
de d ependência, 736 aplicações na antropologia forense, 58
de Klinefelter, 46 tipos de alteração, 59
de Mallory-Weiss, 157 Tanato logia
de Stokes-Adams, 152 causa jurídica da m orte, 123-143
de Waterho use-Friderichsen, 159 conceito d e morte, 103-122
do cor po-embalagem , 415 cronotanatognose, 165-183
do estresse pós-traumático, 189 m orte súbita e m orte suspeita, 145-163
fetal alcoólica, 724 Tanofilia, 591
Sínfise púbica, 74 Tapete respingado de sangue d a cabeça de um indivíduo,
Sistem a(s) 125
da abóbad a, segmentos, 78 Tatuagens, 37, 38
de Suchey-Brooks para a sínfise pubiana, 76 Taxa(s)
Sítio(s) d e homicídio
de reconhecimento, 96 de jovens b rasileiros, 134
de restrição, 96 em homens jovens, evolução d a, 135
Sociedade conjugal, dissolução da, 624 municípios com, m ais de 50 mil habitantes que
Soda cáustica, 393 apresentam as m aio res, 134
Sodo mania, 591 d e homicídio e de suicídio, comparação, 137
Sodo mitismo, 591 d e mortalidad e
Soterramento, 558 por causas externas no ano d e 2006, regiões
Subfalcina, 225 metropolitanas com maiores, 133
Subluxação, 204 por homicídios d e alguns países nos últimos anos,
Substâncias psicoativas, 737 133
Sucção, 197 por suicídio, países co m maiores, 136
Sudamina, 337 Tecidos, atividade enzimática d os, 182
Sudorese, 334 Técnica de retirad a do encéfalo, etapas, 217
Sufocação Tela v iscosa, 166
direta, 523 Temperatura corporal, ajustes
ind ireta, 528 centros reguladores, 333
Sufusão, 196 controle local, 335
Sugilação, 196 controle voluntário, 336
Suicídio, 130 efetores, 333
cometido com faca, 127 m ecanismos d e
países com maiores taxas de mortalidade po r, 136 aumento da, 335
tendência nas pessoas mais velhas, curva, 137 de abaixamento da, 334
Sumetralhadora H KMP5, 253 sensores, 333
Superfície auricular do ílio, 76 Teor alcoólico d e algumas bebidas, 407
Índice Remissivo • 775

Termo de Declaração de Morte Encefálica, 12 1 lesões e morte por


Termologia, n oções básicas, 331 ação
Tetanização, 401 contundente, 193-214
Tiranismo, 59 1 elétrica, 363-387
Tiro encostado térmica, 331-362
em partes moles, 2 70 armas brancas, 237-250
no crânio, 269 instrumentos perfurocontundentes, 25 1-284
Topoinversão, 591 projéteis de alta energia, 285-303
Toro, 88 Travestismo, 591
Toxicologia forense, 389 Tremo res, 335
Toxicomanias, 405 Tribadia, 592
Toxidez Tribadism o, 592
do gás carbônico, 313 Tribo filia, 592
do nitrogênio, 312 Tr iolismo, 592
do oxigênio, 313 Tríplice reação d e Lewis, 196
Tração, 197 Trogídeo, 747
Tradução, 93 Troilismo, 592
Tráfico de pessoas, 603 Trombose da artéria coronária, 148
Trajetos de projéteis que pareceriam anômalos, esquema, 273 Tumefação, 195
Transtornos da sexualidade, 582 encefálica, 232
Transcrição, 93 Tumefação, 195, 196
Transgenitalismo, 591
Transexualismo, 591
Transplantes, estudo m édico-legal dos, aspectos u
bio lógicos, 11 2 Úlcer a péptica, 157
éticos, 113
Ultraje público ao pudor, 603
legais, 11 6
Undinismo, 592
Transtorno(s)
Unicidade, 36, 40
da sexualidade, 582
biopsicossocial, 105
de aversão sexu al, 583
Uranismo, 592
de desejo sexual hipoativo, 583
Urofilia, 592
de excitação sexu al, 583
Urolagnia, 592
de identidade de gênero, 583
Uterom ania, 592
de personalidade, 72 1
er étil m asculino, 583
orgástico, 583 V
Trauma(s), 187
médico-legais relativos aos Vaginismo, 583
causa jurídica, 189 Valor médico-legal
respo nsabilidade, 19 1 das escoriações, 211
Traumatism os cranioen cefálicos, estudo médico-legal das esquimoses, 201
aspectos ger ais d as lesões e m ecanismos d os, 219 das feridas contusas, 213
considerações gerais anatômicas e histológicas, 2 15 dos livores, 170
neuro patologia fo ren se, 216 Válvula
principais sequelas, 235 aórtica, 149
Traumato logia mitral
forense degen eração gelatinosa d a, 150
ação química, 389-427 prolapso d a, 149
estudo médico-legal d as baropatias, 305-330 Valvulopatias, 149
estudo médico-legal dos traumatism os Variação genética, 95
cranioen cefálicos, 215-236 Vasocon stricção, 335
geral, 187- 192 Vasodilatação, 334
problemas m édico-legais relativos aos traumas, Vedorismo, 592
189 Velocidad e do resfriamento do corpo, 167
infortunística, 461-507 Vertigem alternobá rica, 3 11
lesões cor porais, 429-459 Vestígios entomológicos, como coletar, 747
776 • fndice Remissivo

Violação sexual mediante fraude, 599 z


Violência
contra recém-natos e crianças Zona
infanticidio, 669-694 de esfumaçamento, 266
síndrome da criança espancad a, 695-706 d e queimadura, 266
sexual, 595 d e tatuagem, 267
Visionismo, 592 d e tisnado, 266
Voyerismo, 592 de transição entre o músculo cardíaco normal e uma
Voz, análise da, 43 área de infarto, corte histológico, 105
Vucetich Zooerastia, 593
class ificação d e, 41 Zoofilia, 593
prancheta de, 40 Zoofilismo erótico, 593
Zoolagnia, 593
X
Xenotransplantes, 112

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