Nos Estados Unidos, essa discussão está fortemen- econômica bastante amplo até meados dos anos de
te assentada sobre o termo underclass, cujo primeiro 1970. Com a intensificação do desemprego e de for-
emprego no início dos anos de 1960 tinha por obje- mas precárias de trabalho, aumentou a convicção de
tivo designar a marginalização de uma mão de obra que parcela significativa da população não tem mais
pouco qualificada no mercado de trabalho formal (p. lugar em relações sociais estáveis, determinantes para
31). Naquela década, a convicção progressista de que moldar um conjunto de expectativas em relação ao
a afluência da sociedade norte-americana também fo- porvir. Entram em cena os “sem futuro”, destinados
mentava a existência de uma underclass impulsionou aos programas públicos de ajuda aos desempregados
uma série de políticas de “combate à pobreza”. Con- ou às formas instáveis e precárias de trabalho. Enfim,
tudo, logo em seguida, também apareceram estudos são os “desenraizados”, para os quais a vulnerabilidade
em que a caracterização do que se chamou de “cultura econômica se associa à perda ou à diminuição de espa-
da pobreza” serviu de alavanca para que o conserva- ços e relações de convivência familiar e social. Como
dorismo norte-americano retomasse os velhos termos indicadores extremados dessas profundas modifica-
estruturadores da visão sobre o pauperismo do início ções invocam-se frequentemente as explosivas mani-
do século XIX. Tratava-se então de “culpar a vítima”, festações de jovens nos bairros periféricos das grandes
de responsabilizá-la pela sua situação, uma vez que a cidades, como nas banlieues de Paris ou de Lyon.
pobreza passou a indicar não a falta de oportunida- Dada a abrangência da experiência da sociedade
de, mas a falta de vontade e de energia moral para o salarial e também do ativo papel do Estado na susten-
trabalho. Estas, uma vez ausentes, geram o indivíduo tação daquela configuração, Kowarick sublinha que a
desocupado, vagabundo e cheio de vícios (pp. 30ss.). discussão e a geração de alternativas para fazer frente
A retomada dessa visão conservadora, especialmente à questão social francesa continuam marcadas pela
a partir dos anos de 1980, impulsionou o ataque às centralidade da ação estatal e não por culpar ou não
políticas públicas de combate à pobreza, uma vez as vítimas, perspectiva adotada pelo conservadorismo
que estas passaram a ser tomadas como incentivos norte-americano.
para que os indivíduos evitassem o trabalho árduo
em troca da dependência dos benefícios assistenciais Vulnerabilidade no Brasil urbano
(welfare dependency).
No caso da França, por outro lado, a questão Na sociedade brasileira, como também de formas
social é predominantemente compreendida a partir variadas em outras sociedades latino-americanas,
de pressupostos do “republicanismo francês”, para a ênfase em conceitos como capitalismo excludente
o qual a ação do Estado tem papel fundamental na e suas aplicações para “dinâmica produtiva, indus-
mediação de conflitos ao criar “os aparatos que lhe trialização, urbanização ou para alianças e sistema
conferem a responsabilidade de agir contra a margina- político” (p. 68) atestam a vitalidade e a tradição do
lização” (p. 64). Conformado por essa visão, o debate debate sobre a não incorporação de parcelas signi-
francês acerca da pobreza é pautado pela afirmação ficativas da população aos benefícios trazidos pelo
de que vulnerabilidade não é exclusão, mas, antes, desenvolvimento econômico em países periféricos e
consequência da diminuição da sociedade salarial, ou subdesenvolvidos do continente. O autor recorda, por
seja, daquela configuração específica das relações entre exemplo, o peso político e ideológico dos extensos
Estado, empregadores e trabalhadores que tomou debates em torno da marginalidade, da dependência,
corpo na França no pós-guerra (1945) e que garantiu do subdesenvolvimento econômico e social, que con-
a manutenção de um padrão de integração social e formaram diferentes possibilidades interpretativas
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da conjuntura histórica brasileira e latino-americana preciso superar a imprecisão conceitual que caracteri-
entre meados da década de 1950 até o início dos anos za utilizações variadas e incorretas do termo exclusão
de 1980, aproximadamente. social. De fato, exclusão quer dizer banimento e/ou
Ao final desse período, a gravidade da crise econô- isolamento, e não é disso que se trata quando falamos
mica e o retorno ao regime democrático configuram dos vínculos sociais e econômicos precários daqueles
de modo singular a sociedade brasileira, dando ensejo que estão em situação de vulnerabilidade. Embora o
a uma série de movimentos sociais reivindicativos que princípio de exclusão identificado pelo autor na socie-
passaram a pautar a agenda dos momentos iniciais da dade brasileira também ative o sentido de banimento,
Nova República. Contudo, em uma sociedade salarial ele se atrela antes à negação dos direitos civis das
“raquítica” como a nossa, não se pode imaginar que as populações em situação de vulnerabilidade do que à
conquistas desses movimentos pudessem sedimentar exclusão dessas populações dos circuitos de produção
processos de negociação de direitos e arbitragem de e consumo da sociedade capitalista. Pode-se afirmar
conflitos mediados pelo Estado1. Assim, a partir que o princípio de exclusão que governa as represen-
dos anos de 1980, o que se aprofundou foram as tações das classes urbanas é muito bem sintetizado
relações de trabalho precário, flexível e instável de em sentenças como “bandido bom é bandido morto”
vastas parcelas da população brasileira, atingindo e “direitos humanos são para humanos direitos”. Tais
inclusive aqueles que aparentemente exibiam con- afirmações constituem verdadeira convicção de que
dições ideais de proteção social e econômica, posto não se devem assegurar direitos civis fundamentais
que possuidores de vínculos de trabalho protegidos como liberdade, livre circulação e direito de defesa
pela lei. Identificam-se em tais situações verdadeiros para todos. Nos anos de 1990, esse discurso do exter-
processos de desfiliação, isto é, processos de perda e mínio também associou pobreza à delinquência (p.
de fragilidade de experiências em relação ao mundo 91), dando ensejo a uma série de práticas destinadas
urbano e do trabalho que até então eram comuns a enquadrar as classes populares e a segregá-las no
para uma parte significativa dos trabalhadores de espaço urbano.
nossas cidades. Em nossa realidade, não é comum que a questão
É verdade, como diz o autor, que até a década de social seja lida pelo ângulo da culpabilização dos
1980 as grandes cidades do país ofereciam oportu- pobres indispostos ao trabalho2, pois se sabe o quan-
nidades reais de trabalho, além de representarem a to o trabalho árduo, realizado nas bordas de nossa
possibilidade de maior acesso a serviços de saúde e sociedade, não representa mobilidade social alguma
educação para uma massa de brasileiros que deixavam e muito menos uma vida segura e estável. Tampouco
o mundo rural em direção às capitais dos estados, es- se acentua a responsabilidade do Estado na criação
pecialmente às regiões metropolitanas. Porém, a partir de respostas e soluções a essa questão, já que cada vez
daquela década o que temos é a não reiteração dessa mais imperam as práticas e os discursos do volunta-
experiência, com o crescente aumento do desempre- riado, do “onguismo” e da filantropia como soluções
go, deterioração dos espaços urbanos e precarização “mais eficazes” na atenuação dos efeitos “indesejados”
dos parcos serviços públicos aí disponíveis. de uma estrutura social calcada na produção e na
Nesse cenário, com o crescente aumento da vio- reprodução das desigualdades.
lência, é possível também sublinhar a existência de um Por outro lado, processos de naturalização dos
princípio de exclusão que governa as representações e acontecimentos e de neutralização prevalecem como
as práticas de parcelas significativas de classes sociais mecanismos de acomodação de interesses diversos
mais favorecidas das grandes cidades. Antes de tudo é e atenuação dos possíveis conflitos reveladores da
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dinâmica social de nossa subcidadania. No caso da mínima. Contudo, esse tipo de moradia representa a
naturalização, trata-se de destituir a pobreza de seu libertação do aluguel, um dinheiro “perdido”. Além
significado político e de seu caráter estrutural, ponde- disso, em situação de instabilidade e na velhice, a casa
rando-se sobre a inevitabilidade do curso das coisas e própria representa a única poupança feita, inclusive
dos acontecimentos no sistema capitalista. Não exis- para os filhos.
tem culpados, mas também não há responsáveis, pois O terceiro e último tipo de moradia analisado
os processos econômicos e sociais em curso seguem são as favelas, forma precaríssima de habitação, tam-
inexoráveis seu caminho. No caso da neutralização, bém sedimentada em ocupações irregulares e com
trata-se de ativar velhos recursos de sufocamento de infraestrutura mínima ou inexistente. Trata-se de
qualquer tentativa de desestabilização da ordem atual espaço estigmatizante por excelência, marcando seus
das coisas por meio de mecanismos de evitação do ou- habitantes de forma preconceituosa e desvantajosa.
tro, ou seja, por meio da construção da invisibilidade Contudo, também ali é possível fugir do aluguel, de
daqueles que são subalternizados. taxas e outros impostos.
Os exercícios etnográficos que dão o tom da É preciso ressaltar que esse quadro é muito dinâ-
segunda metade do livro foram realizados com o mico, pois com os crescentes processos de regulari-
auxílio de uma equipe de alunos do curso de Ciências zação fundiária e urbana, favelas e casas de periferia
Sociais da Universidade de São Paulo (USP). Aliados vão assumindo contornos muito semelhantes, seja
ao poder do caderno desses pesquisadores sem “porte pela garantia de propriedade do imóvel, seja pelo
de caderno”3 estão os dados da Pesquisa de Condições acesso que os moradores passam a ter aos serviços
de Vida (PCV) da Fundação Seade, dos Censos do de abastecimento regular e contínuo de água e luz,
IBGE, da prefeitura, de urbanistas, de jornais e re- à coleta de lixo e do esgoto e às unidades básicas de
vistas. Todos ajudam a construir o impressionante e saúde, creches e escolas.
variado quadro de precariedade das formas de habitar Em comum com todos os moradores da cidade,
na metrópole. mas atingindo de forma aguda os que vivem nesses
Nos olhares múltiplos que se cruzam nesses exer- espaços precários, está a violência. Em meio às dificul-
cícios, descobrimos as vantagens e as desvantagens dades de arranjar emprego e de manter a dignidade em
que cada conjunto de moradores foi capaz de elaborar situações tantas vezes aviltantes da condição humana,
sobre sua situação. Embora a vida nos cortiços (“casas é preciso ainda fugir ou proteger-se do poder arbitrário
de cômodo”) traga as vantagens da moradia no centro de traficantes de drogas e de policiais que agem de for-
da cidade ou em suas proximidades, com acesso a ma ilegal. Mata-se por pouco ou por nada. Na maior
mais oportunidades de trabalho e economia com o parte das vezes as leis do silêncio e do retraimento
transporte, ocorre o desembolso de parcela maior dos representam a única salvaguarda da própria vida.
rendimentos com o aluguel e é necessária a adequação Ao finalizar esta resenha é preciso reconhecer
à falta de privacidade e salubridade, causadas pela com o autor que “as afirmações contidas neste ensaio
superlotação desses espaços. [Capítulo 2] não ignoram que os grupos, as categorias
No caso da autoconstrução, forma de habitar e as classes sociais se movimentam na acepção de se
nos arrabaldes da cidade desde a década de 1940, mobilizarem e lutarem pela conquista de seus direitos.
os moradores sofrem com a irregularidade na pro- Elas simplesmente enfatizam que, no cenário atual
priedade legal dos imóveis, com o sofrimento das de nossas cidades, estão em curso massivos processos
horas perdidas no transporte coletivo até o local de de vulnerabilidade socioeconômica e civil” (p. 102).
trabalho e com a inexistência de infraestrutura urbana
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