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BASES EPISTEMOLÓGICAS DA PSICOLOGIA

JOCIANE DA SILVA BEZERRA

O PAPEL DO PSICÓLOGO

Há, entre os psicólogos latino-americanos no momento de definição de sua identidade


profissional, um crescente pensamento que julga muito mais importante analisar o contexto
histórico dos seus povos e suas necessidades do que estabelecer o âmbito específico da
psicologia como ciência ou como atividade. É notável que definições advindas de outros lugares
apresentam uma compreensão do “eu”distorcida diante da realidade. Nesse sentido, os
psicólogos no contexto atual da América Central devem voltar sua atenção para tal contexto,
antes de se questionar sobre a função do psicólogo. Fazendo uma caracterização superficial,
pode-se estabelecer três aspectos que parecem caracterizar a atualidade dos povos
centro-americanos: a situação estrutural de injustiça, os processos de confrontação revolucionária
e a acelerada conversão das nações em satélites dos Estados Unidos. Primeiramente, é preciso
analisar que os problemas fundamentais da área centro-americana são devidos a uma estrutura
injusta de seus sistemas sociais, em que, nas sociedades subdesenvolvidas vigoram regimes que
distribuem que submetem a maioria dos povos a condições miseráveis, permitindo as minorias
oligárquicas disfrutar de todo tipo de luxo. A perpetuação de tal estrutura desigual é possível
graças a mecanismos de controle e repressão social, que impedem todo esforço histórico para
mudar estruturas sociais mais opressivas. Em segundo lugar, é preciso analisar a situação de
guerra ou quase-guerra em que vivem todos os países da América Central. As consequências de
tal situação só podem ser adequadamente avaliadas quando se somam à situação de miséria
estrutural, por si só catastrófica, o que leva a uma estagnação ou retrocesso econômico e social
na região. Em terceiro lugar,uma característica da situação atual da América Central é a sua
acelerada satelitização nacional, que se trata de uma consequência da “segurança nacional”
norte-americana, segundo a qual toda a existência dos países deve submeter-se à lógica da
confrontação total frente ao comunismo. Nesse sentido, os países centro-americanos vêm abrindo
mão de sua própria identidade e autonomia achando que os países mais desenvolvidos (USA) os
ajudarão a resolver seus problemas econômicos e sociais, o que de fato não acontece. A injustiça
estrutural, as guerras revolucionárias e a satelitização nacional permitem caracterizar a situação
atual da América Central e oferecem esse contexto histórico frente ao qual e no qual deve-se
definir o papel que cabe ao psicólogo desempenhar. Para Didier Deleule, acerca dos
questionamentos que rodeavam as questões da psicologia, o crescimento da psicologia se devia à
função que estava assumindo na sociedade contemporânea, haja vista que esta apresentava uma
solução alternativa para os conflitos sociais: tratava-se de mudar o indivíduo preservando a ordem
social ou, no melhor dos casos, gerando a ilusão de que talvez, ao mudar o indivíduo, também
mudaria a ordem social. Dessa forma, não se trata de se perguntar o que pretende cada um fazer
com a psicologia, mas fundamentalmente, para onde vai, que efeito objetivo a atividade
psicológica produz em uma determinada sociedade. Nesse sentido, os psicólogos são criticados
porque a maioria dedica sua atenção predominante aos setores sociais mais ricos, o que faz com
que sua atividade se esqueça dos fatores sociais. O contexto social converte-se assim em um
pressuposto inquestionado, frente a cujas exigências “objetivas” o indivíduo deve buscar a solução
para seus problemas de modo individual e “subjetivo”. Nessa perspectiva, é de se notar que a
psicologia esteja servindo aos interesses da ordem social estabelecida, servindo de instrumento
para a reprodução do sistema. Ao voltar às raízes da psicologia, pode-se examinar criticamente o
papel do psicólogo, em que pode ser necessário reverter o movimento que levou a limitar a
análise psicológica ao comportamento enquanto observável, e dirigir de novo o olhar e a
preocupação à consciência humana. A consciência não pode ser definida como âmbito privado do
saber e sentir subjetivo dos indivíduos, mas aquele âmbito onde cada pessoa assume e elabora
um saber sobre si mesmo e sobre a realidade que lhe permite ter uma identidade pessoal e social,
sendo assim entendida como uma realidade psicossocial. Na medida em que a psicologia tome
como seu objetivo específico os processos da consciência humana, deverá atender ao saber das
pessoas sobre si enquanto indivíduos e enquanto membros de uma coletividade. É importante
enfatizar que esta visão da psicologia não descarta a análise do comportamento, sendo este
observado à luz de seu significado pessoal e social. A conscientização aqui em questão é um
termo definido por Paulo Freire para caracterizar o processo de transformação pessoal e social
que experimentam os oprimidos latino-americanos quando são alfabetizados em dialética com o
seu mundo, sendo essa alfabetização o processo de aprender a ler a realidade em que estão
inseridos e a escrever sua própria história. Tal processo de alfabetização supõe três aspectos: (a)
o ser humano transforma-se ao modificar sua realidade; (b) com a gradual decodificação do seu
mundo, o indivíduo, ao captar os mecanismos que a oprimem e desumanizam e desconstruir a
naturalização acerca dessas ferramentas de dominação, têm seus horizontes ampliados para
novas possibilidades de ação; (c) esse novo saber acerca da sua realidade leva a pessoa a
conhecer um novo saber sobre si sobre sua identidade social. Sendo assim, ao afirmar que o
horizonte primordial da psicologia deve ser a conscientização, é necessário que o fazer psicólogo
busque a desalienação das pessoas e grupos, que as ajude a chegar a um saber crítico sobre si
próprias e sobre sua realidade, a fim de suprimir ou mudar aqueles mecanismos que bloqueiam a
consciência da identidade social e levam a pessoa a comportar-se como um dominador ou um
dominado. Nesse sentido, no fazer psicológico dos países centro-americanos, a conscientização
obriga à psicologia a dar respostas aos grandes problemas de injustiça estrutural, de guerra e de
alienação nacional que afligem esses povos. Primeiramente, a conscientização responde à
situação de injustiça, promovendo uma consciência crítica sobre as raízes, objetivas e subjetivas,
da alienação social, onde esta facilita o desencadeamento de mudanças, o rompimento com os
esquemas que sustentam ideologicamente a alienação das maiorias populares. Em segundo
lugar, o processo mesmo de conscientização supõe abandonar a mecânica reprodutora das
relações de dominação-submissão, visto que só pode ser realizado através do diálogo. Por fim, a
tomada de consciência leva as pessoas a recuperarem sua memória histórica e compreenderem e
assumirem sua identidade tanto pessoal como grupal e nacional. Entretanto, a maioria dos
psicólogos se defrontam com a dificuldade de visualizar o fazer psicológico em termos práticos.
Um dos problemas mais graves atualmente na América Central é o das vítimas de guerra, em que
essa população não só tem necessidades materiais sérias mas também tem outras necessidades
desenvolvimento pessoal e relações humanizadoras, o que faz com que um objetivo primordial da
psicologia centro-americana deve ser prestar atenção especial às vítimas da guerra, sejam elas
quais forem. A atenção clínica às vítimas das guerras centro-americanas deve constituir-se em um
processo conscientizador, um processo que devolva a palavra às pessoas, não somente como
indivíduos, mas como parte de um povo. Sendo assim, a psicoterapia deve apontar diretamente
para o desaparecimento de uma identidade social cultivada sobre os modelos de opressor e
oprimido, e a configurar uma nova identidade das pessoas enquanto membros de uma
comunidade humana. Essa psicoterapia conscientizadora deve constituir-se em um processo que
permita ao indivíduo afirmar sua identidade pessoal e social como parte de um movimento de
afirmação coletiva e nacional. Muitos psicólogos usam a atividade escolar como ferramenta para
a psicoterapia, em que esta baseia-se na visão em que a sociedade existente constitui o âmbito
em cujo interior cada qual deve encontrar formas mais produtivas de acordo com suas
características e ideais pessoais. O horizonte conscientizador tanto no trabalho clínico como no
trabalho de orientação escolar não se trata de abdicar do papel técnico que, em ambos os casos,
corresponde ao psicólogo, trata-se de despojar esse papel de seus pressupostos teóricos
adaptacionistas e de suas formas de intervenção a partir de posições de poder. Dessa forma, as
perguntas críticas que os psicólogos devem se formular a respeito da sua atividade e a respeito
do papel que está desempenhando na sociedade, não devem centrar-se tanto no onde, nas no a
partir de quem; não tanto em como se está realizando algo, quanto em benefício de quem; e,
assim, não tanto sobre o tipo de atividade que se pratica, mas sobre quais são as conseqüências
históricas concretas que essa atividade está produzindo.Há uma tarefa importante que o psicólogo
deve cumprir e que requer tanto o reconhecimento objetivo dos principais problemas que afligem
os povos centro-americanos como a definição da contribuição específica do psicólogo em sua
resolução.O psicólogo, por um lado, não é chamado a intervir nos mecanismos sócio-econômicos
que articulam as estruturas de injustiça, por outro é chamado a intervir nos processos subjetivos
que sustentam e viabilizam essas estruturas injustas; não lhe cabe conciliar as forças e interesses
sociais em luta, compete a ele ajudar a encontrar caminhos para substituir hábitos violentos por
hábitos mais racionais. Portanto, o psicólogo centro-americano deve repensar a imagem de si
mesmo como profissional; assumir a perspectiva das maiorias populares, haja vista que até agora
o saber psicológico centro-americano alimentou-se fundamentalmente de uma análise dos
problemas realizada a partir da perspectiva dos setores dominantes da sociedade e buscar
confrontar frente a esse sistema oligárquico centro-americano em vigor. Não se trata, portanto, de
abandonar a psicologia; trata-se de colocar o saber psicológico a serviço da construção de uma
sociedade em que o bem estar das minorias dominantes não se faça sobre o mal estar das
maiorias desfavorecidas.

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