Há, entre os psicólogos latino-americanos no momento de definição de sua identidade
profissional, um crescente pensamento que julga muito mais importante analisar o contexto histórico dos seus povos e suas necessidades do que estabelecer o âmbito específico da psicologia como ciência ou como atividade. É notável que definições advindas de outros lugares apresentam uma compreensão do “eu”distorcida diante da realidade. Nesse sentido, os psicólogos no contexto atual da América Central devem voltar sua atenção para tal contexto, antes de se questionar sobre a função do psicólogo. Fazendo uma caracterização superficial, pode-se estabelecer três aspectos que parecem caracterizar a atualidade dos povos centro-americanos: a situação estrutural de injustiça, os processos de confrontação revolucionária e a acelerada conversão das nações em satélites dos Estados Unidos. Primeiramente, é preciso analisar que os problemas fundamentais da área centro-americana são devidos a uma estrutura injusta de seus sistemas sociais, em que, nas sociedades subdesenvolvidas vigoram regimes que distribuem que submetem a maioria dos povos a condições miseráveis, permitindo as minorias oligárquicas disfrutar de todo tipo de luxo. A perpetuação de tal estrutura desigual é possível graças a mecanismos de controle e repressão social, que impedem todo esforço histórico para mudar estruturas sociais mais opressivas. Em segundo lugar, é preciso analisar a situação de guerra ou quase-guerra em que vivem todos os países da América Central. As consequências de tal situação só podem ser adequadamente avaliadas quando se somam à situação de miséria estrutural, por si só catastrófica, o que leva a uma estagnação ou retrocesso econômico e social na região. Em terceiro lugar,uma característica da situação atual da América Central é a sua acelerada satelitização nacional, que se trata de uma consequência da “segurança nacional” norte-americana, segundo a qual toda a existência dos países deve submeter-se à lógica da confrontação total frente ao comunismo. Nesse sentido, os países centro-americanos vêm abrindo mão de sua própria identidade e autonomia achando que os países mais desenvolvidos (USA) os ajudarão a resolver seus problemas econômicos e sociais, o que de fato não acontece. A injustiça estrutural, as guerras revolucionárias e a satelitização nacional permitem caracterizar a situação atual da América Central e oferecem esse contexto histórico frente ao qual e no qual deve-se definir o papel que cabe ao psicólogo desempenhar. Para Didier Deleule, acerca dos questionamentos que rodeavam as questões da psicologia, o crescimento da psicologia se devia à função que estava assumindo na sociedade contemporânea, haja vista que esta apresentava uma solução alternativa para os conflitos sociais: tratava-se de mudar o indivíduo preservando a ordem social ou, no melhor dos casos, gerando a ilusão de que talvez, ao mudar o indivíduo, também mudaria a ordem social. Dessa forma, não se trata de se perguntar o que pretende cada um fazer com a psicologia, mas fundamentalmente, para onde vai, que efeito objetivo a atividade psicológica produz em uma determinada sociedade. Nesse sentido, os psicólogos são criticados porque a maioria dedica sua atenção predominante aos setores sociais mais ricos, o que faz com que sua atividade se esqueça dos fatores sociais. O contexto social converte-se assim em um pressuposto inquestionado, frente a cujas exigências “objetivas” o indivíduo deve buscar a solução para seus problemas de modo individual e “subjetivo”. Nessa perspectiva, é de se notar que a psicologia esteja servindo aos interesses da ordem social estabelecida, servindo de instrumento para a reprodução do sistema. Ao voltar às raízes da psicologia, pode-se examinar criticamente o papel do psicólogo, em que pode ser necessário reverter o movimento que levou a limitar a análise psicológica ao comportamento enquanto observável, e dirigir de novo o olhar e a preocupação à consciência humana. A consciência não pode ser definida como âmbito privado do saber e sentir subjetivo dos indivíduos, mas aquele âmbito onde cada pessoa assume e elabora um saber sobre si mesmo e sobre a realidade que lhe permite ter uma identidade pessoal e social, sendo assim entendida como uma realidade psicossocial. Na medida em que a psicologia tome como seu objetivo específico os processos da consciência humana, deverá atender ao saber das pessoas sobre si enquanto indivíduos e enquanto membros de uma coletividade. É importante enfatizar que esta visão da psicologia não descarta a análise do comportamento, sendo este observado à luz de seu significado pessoal e social. A conscientização aqui em questão é um termo definido por Paulo Freire para caracterizar o processo de transformação pessoal e social que experimentam os oprimidos latino-americanos quando são alfabetizados em dialética com o seu mundo, sendo essa alfabetização o processo de aprender a ler a realidade em que estão inseridos e a escrever sua própria história. Tal processo de alfabetização supõe três aspectos: (a) o ser humano transforma-se ao modificar sua realidade; (b) com a gradual decodificação do seu mundo, o indivíduo, ao captar os mecanismos que a oprimem e desumanizam e desconstruir a naturalização acerca dessas ferramentas de dominação, têm seus horizontes ampliados para novas possibilidades de ação; (c) esse novo saber acerca da sua realidade leva a pessoa a conhecer um novo saber sobre si sobre sua identidade social. Sendo assim, ao afirmar que o horizonte primordial da psicologia deve ser a conscientização, é necessário que o fazer psicólogo busque a desalienação das pessoas e grupos, que as ajude a chegar a um saber crítico sobre si próprias e sobre sua realidade, a fim de suprimir ou mudar aqueles mecanismos que bloqueiam a consciência da identidade social e levam a pessoa a comportar-se como um dominador ou um dominado. Nesse sentido, no fazer psicológico dos países centro-americanos, a conscientização obriga à psicologia a dar respostas aos grandes problemas de injustiça estrutural, de guerra e de alienação nacional que afligem esses povos. Primeiramente, a conscientização responde à situação de injustiça, promovendo uma consciência crítica sobre as raízes, objetivas e subjetivas, da alienação social, onde esta facilita o desencadeamento de mudanças, o rompimento com os esquemas que sustentam ideologicamente a alienação das maiorias populares. Em segundo lugar, o processo mesmo de conscientização supõe abandonar a mecânica reprodutora das relações de dominação-submissão, visto que só pode ser realizado através do diálogo. Por fim, a tomada de consciência leva as pessoas a recuperarem sua memória histórica e compreenderem e assumirem sua identidade tanto pessoal como grupal e nacional. Entretanto, a maioria dos psicólogos se defrontam com a dificuldade de visualizar o fazer psicológico em termos práticos. Um dos problemas mais graves atualmente na América Central é o das vítimas de guerra, em que essa população não só tem necessidades materiais sérias mas também tem outras necessidades desenvolvimento pessoal e relações humanizadoras, o que faz com que um objetivo primordial da psicologia centro-americana deve ser prestar atenção especial às vítimas da guerra, sejam elas quais forem. A atenção clínica às vítimas das guerras centro-americanas deve constituir-se em um processo conscientizador, um processo que devolva a palavra às pessoas, não somente como indivíduos, mas como parte de um povo. Sendo assim, a psicoterapia deve apontar diretamente para o desaparecimento de uma identidade social cultivada sobre os modelos de opressor e oprimido, e a configurar uma nova identidade das pessoas enquanto membros de uma comunidade humana. Essa psicoterapia conscientizadora deve constituir-se em um processo que permita ao indivíduo afirmar sua identidade pessoal e social como parte de um movimento de afirmação coletiva e nacional. Muitos psicólogos usam a atividade escolar como ferramenta para a psicoterapia, em que esta baseia-se na visão em que a sociedade existente constitui o âmbito em cujo interior cada qual deve encontrar formas mais produtivas de acordo com suas características e ideais pessoais. O horizonte conscientizador tanto no trabalho clínico como no trabalho de orientação escolar não se trata de abdicar do papel técnico que, em ambos os casos, corresponde ao psicólogo, trata-se de despojar esse papel de seus pressupostos teóricos adaptacionistas e de suas formas de intervenção a partir de posições de poder. Dessa forma, as perguntas críticas que os psicólogos devem se formular a respeito da sua atividade e a respeito do papel que está desempenhando na sociedade, não devem centrar-se tanto no onde, nas no a partir de quem; não tanto em como se está realizando algo, quanto em benefício de quem; e, assim, não tanto sobre o tipo de atividade que se pratica, mas sobre quais são as conseqüências históricas concretas que essa atividade está produzindo.Há uma tarefa importante que o psicólogo deve cumprir e que requer tanto o reconhecimento objetivo dos principais problemas que afligem os povos centro-americanos como a definição da contribuição específica do psicólogo em sua resolução.O psicólogo, por um lado, não é chamado a intervir nos mecanismos sócio-econômicos que articulam as estruturas de injustiça, por outro é chamado a intervir nos processos subjetivos que sustentam e viabilizam essas estruturas injustas; não lhe cabe conciliar as forças e interesses sociais em luta, compete a ele ajudar a encontrar caminhos para substituir hábitos violentos por hábitos mais racionais. Portanto, o psicólogo centro-americano deve repensar a imagem de si mesmo como profissional; assumir a perspectiva das maiorias populares, haja vista que até agora o saber psicológico centro-americano alimentou-se fundamentalmente de uma análise dos problemas realizada a partir da perspectiva dos setores dominantes da sociedade e buscar confrontar frente a esse sistema oligárquico centro-americano em vigor. Não se trata, portanto, de abandonar a psicologia; trata-se de colocar o saber psicológico a serviço da construção de uma sociedade em que o bem estar das minorias dominantes não se faça sobre o mal estar das maiorias desfavorecidas.
Martín-Baró, Ignacio. (2013) - Psicologia Política Latino-Americana Ignacio Martín-Baró Tradução: Fernando Lacerda - Universidade Federal de Goiás - Brasil