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BASES EPISTEMOLÓGICAS DA PSICOLOGIA

JOCIANE DA SILVA BEZERRA

CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DECOLONIAL À PSICOLOGIA POLÍTICA

Os termos identidade e subjetividade tornaram-se frequentes na Psicologia, tendo sido


iniciados estudos acerca dos mesmo concomitantemente com o início do que definimos como
Ciências Humanas. Historicamente, podemos analisar que a ênfase na razão e o desenvolvimento
do pensamento humano pôs o homem como centro do viés científico, um objeto de estudo
recente, que pode-se dizer que moldou a humanidade como hoje a entende a perspectiva
ocidental e colonial, afastando paradigmas cosmológicos e teológicos. Dessa forma, pode-se
adotar a Modernidade como o complexo de vivências que levou o homem europeu a uma nova
perspectiva da própria identidade. Tal concepção dissemina que a subjetividade moderna e as
ciências centradas no homem são frutos do desenvolvimento cultural, econômico e intelectual
trazido pelo Renascimento e influenciado pelo Iluminismo. Entretanto, tal visão de mundo,
histórica e de ser humano é pautada sob o eurocentrismo que vela determinações de cunho
político-econômico. Tal perspectiva vem sendo desconstruída por meio de estudos decoloniais,
que se destacam por falar sobre e a partir da margem, a partir do lugar do “outro”, do sujeito
oposto ao sujeito hegemônico. Dessa forma, o psicólogo carrega em si uma potente estratégia de
análise política, haja vista a influência do pensamento pós colonial e decolonial na construção da
psicologia política, buscando enfatizar outras vivências, visões da história e outras formas de
organização da vida e dos saberes, bem como a constituição de novas subjetividades
desvinculadas de padrões da herança colonial que ainda moldam a sociedade. Os estudos que
consideramos pós-colonial não são apenas tiveram origem única, sendo realizados em diferentes
nacionalidades, culturas e apresentando perspectivas diferentes. Acerca desses estudos pode-se
destacar autores de grande importância, como Spivak e Bhabha, para a constituição da teoria
pós-colonial no contexto mundial. A partir das perspectivas de suas linhas de pensamento, faz-se
necessário buscar uma reinterpretação da subjetivação política considerando a vivência social e
histórica do colonialismo e suas contribuições para a Psicologia Política. Na perspectiva de
Spivak, aqueles considerados subalternos socialmente não têm lugar de fala dentro da sociedade,
haja vista a sua representação sob a perspectiva da hegemonia capitalista, que em nada
representa esses grupos marginalizados. Tais representantes, os intelectuais, não apresentam, de
fato, a realidade, perpetuando discursos hegemônicos e que legitimam as desigualdades sociais.
Enveredando-se pelo viés da psicanálise, Bhabha analisa uma produção intelectual que entremeia
o discurso hegemônico, verificando a fábula freudiana do fetichismo na representação social, onde
o fetiche e o estereótipo, ou o estereótipo como fetiche permitem, por meio da fantasia da
negação, a obtenção de uma ‘identidade’ social, uma autorreferência de sujeito baseada no
domínio, constituída sob a óptica eurocêntrica, em que aquele divergente, seja em cultura, etnia
ou origem, é enunciado como “problemático”. Nesse sentido, Bhabha enxerga a cultura como uma
estrutura de representação simbólica, que permite a criação de um espaço onde os indivíduos
vistos como divergentes podem construir lugares de enunciação e de participação política que
permitem escapar das representações sociais pré-estabelecidas. Para Bhabha, a identidade,
assim como a subjetividade não deve ser pensada como algo individualizante, mas como um
processo com base em construções discursivas e materiais. Ao analisar a história da humanidade,
pode-se verificar que o que chamamos de sujeito moderno foi constituído em um cenário
historicamente eurocêntrico, um paradigma naturalizado e que é pautado na dominação da vida
humana nas mais diversas esferas. Entretanto, analisando a modernidade a partir de um
referencial intraeuropeu, há que diga que tal modernidade foi moldada de modo positivo, que teve
seu início na Reforma, no Renascimento e atingiu seu ápice com o Iluminismo e com a aposta na
razão humana como caminho para o progresso. No entanto, a modernidade não seria possível
sem sua outra face, uma face obscura e omitida pelo relato tradicionalmente eurocêntrico da
história: a colonialidade. O mito da modernidade é baseado, segundo Mignolo, na suposta
superioridade europeia, que busca impor seu desenvolvimento ao atrasado e inferior. O início da
modernidade na Europa foi marcado por um esforço de racionalização que trouxe o europeu para
o centro do universo e o colocou em um lugar de poderio sobre a natureza. Passou-se a defender
que esse homem deveria usar a razão para dominar e controlar as forças naturais, usando-as a
seu favor. Tal modernidade não deve ser compreendida separadamente do colonialismo, haja
vista que possibilitou o estabelecimento de diferenças. Nesse cenário, as Ciências Humanas
serviu como aparato ideológico justificador da exclusão e disciplinarização daqueles tidos como
diferentes dos processos de representação da identidade hegemônica. Tal postura eurocêntrica
também é imposta sobre a subjetivação daqueles que passam a compor a exterioridade do sujeito
moderno. Essa introjeção passa a constituí-los num processo psíquico designado por Mignolo de
“dupla consciência”, em que o indivíduo passa a forjar a si mesmo com base em um processo de
subjetivação hegemônico. Dessa forma, construindo uma perspectiva decolonial em Psicologia
Política, nota-se que os/as pensadores/as latinoamericanos/as e também os indianos/as,
diferentemente dos/as pensadores/as europeus/ias se viam sempre confrontados/as com a não
universalidade e com a não representação de suas identidades no registro simbólico do
colonialismo. Sendo assim, percebe-se que a própria Psicologia teve sua origem constituída sob a
óptica de que há um modelo de ser humano que é o ideal (hétero, branco, cristão, homem,
europeu), detentor da razão. A partir das análises feitas sob as perspectivas pós-coloniais e
decoloniais, é notável que a constituição do próprio sujeito contemporâneo e a sua subjetivação
se deu conforme a racionalidade da ideologia colonial dominante. Conforme Bauman, a identidade
só se transformou em objeto de estudo das ciências humanas quando passou a se mostrar
problemática para aqueles sujeitos negados de sua autorrepresentação, tornando-se um desafio
para a emancipação social. Mesmo em uma época em que muito se fala sobre a fragmentação do
sujeito diante das possibilidades identitárias, inúmeras pessoas e comunidades ainda continuam
em uma situação onde lhes é negada a voz sobre si mesmas, sendo submetidas a condições de
vulnerabilidade, sendo impedidos de se constituírem como sujeitos políticos e resistirem ao
sistema colonial. O não reconhecimento e a consequente não representação de determinados
sujeitos no registro da ciência psicológica conduz a um enquadramento seletivo de opressão e
subalternidade, segundo as normas conduzidas pela colonialidade do poder. A desconstrução da
matriz colonial no debate psicopolítico traz um entendimento diferenciado sobre como nossas
subjetivações podem ser concebidas por operações estratégicas entre as formas mútuas de
regulação do poder e do psiquismo. Essa regulação pode ser constituída como uma subjetivação
política em que é possível resistir às demarcações coloniais, que ditam as normas como cada
sujeito é ou como deveria viver. Podemos notar, atualmente, que a psicologia contemporânea tem
se mostrado, em diversos momentos, como uma psicologia jornalística, meramente descritiva, em
que o/a pesquisador/a busca se eximir de sua influência sobre a pesquisa ou da discussão política
e histórica de seu contexto de atuação. Pouco é observado tentativas de fazer da crítica o cerne
de sua pesquisa e da constituição de seu objeto. Além disso, sofremos historicamente de uma
situação de colonialismo cultural que tem fortes consequências sobre a atividade profissional e
acadêmica do/a psicólogo/a devido ao imaginário construído pelos discursos oficiais. O que vem
de fora é aceito como completo e acabado, pronto para ser aplicado no Brasil, desconsiderando
as diferenças culturais. Subverter estruturas de significação opressoras faz parte da atividade de
um/a intelectual verdadeiramente crítico/a e o/a psicólogo/a não pode se furtar a tal tarefa.

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