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percurso histórico1
Deise Mancebo*
RESUMO
ABSTRACT
A reforma protestante, liderada por Lutero, no século XVI, é outro movimento que
merece destaque na análise da subjetividade moderna. Essa reforma colocou o
indivíduo no mundo, pois se a vocação luterana permanecia uma tarefa
estabelecida por Deus; a maneira aceitável de viver encontrava-se na possibilidade
do homem superar-se pela ascese e, principalmente, no desafio de cumprir as
tarefas do século, através de suas ações terrenas. A restrição da mediação da
Igreja para a salvação humana, apregoada pelos protestantes, implicava o
intercâmbio do indivíduo com Deus, em linha direta, e em completo isolamento
espiritual. A abolição dos rituais, o repúdio ao sensualismo e à emoção, a
desmagicização do mundo e a decorrente apreensão impessoal, racional e
instrumental do homem e das suas relações, praticadas pelo mundo protestante,
constroem a solidão interna do indivíduo e contribuem para a própria possibilidade
da intensificação da experiência individualizada (Weber, 1996).
A organização dos Estados Nacionais, diversificada, por certo, nas diversas regiões
da Europa, constituiu-se em mais um processo a contribuir para a consolidação da
nova ordem econômica e social que se construía na Europa Ocidental e para a
intensificação de um modo de subjetivação individualizado, típico da modernidade.
Os governos desses Estados tomam a forma da monarquia nacional e representam
a exigência de uma regulamentação jurídica para os conflitos políticos e sociais que
se desenvolviam. Tais conflitos culminam no Estado Absolutista, uma continuidade
da expressão da hegemonia da nobreza que, através da reorganização estatal,
reforça sua dominação sobre a massa camponesa e mantém a burguesia, em
formação, ainda numa posição de não-centralidade. Esse complexo processo
também comportou mudanças de ordem sócio-psicológicas, materializadas, no caso
das cortes, no que poderíamos chamar de uma subjetividade aristocrática.
Norbert Elias (1993, 1995, 1998) é uma referência central para esta discussão e
tem caracterizado o comportamento das cortes européias de então em termos de
um incremento na capacidade de contenção dos impulsos, modelação de condutas,
autodomínio, auto-observação e observação dos demais. A etiqueta comportava
modos de se apresentar e interagir altamente codificados, meticulosos e
desempenhava um papel central nessa racionalidade cortesã.
A partir do século XVIII, pode-se afirmar que tem início verdadeiramente o teste
do cumprimento histórico do projeto da modernidade, do qual a idéia do indivíduo
como centro microcósmico do mundo é parte orgânica.
No entanto, no século XIX o liberalismo passa por revisões, tanto no plano teórico,
como no plano da organização do Estado. É o momento da transição do capitalismo
concorrencial ao monopolista, é o século no qual ocorrem a ampliação de alguns
direitos políticos aos não-proprietários, a conseqüente incorporação do tema da
democracia; assiste-se à redefinição do Estado e suas relações com a sociedade
civil e reordenamentos de parâmetros teóricos, dentre outras mudanças de
importância. Nesse século, ainda, dois movimentos contribuem para a
complexificação da subjetividade moderna: primeiro, a constituição do chamado
intimismo e o decorrente embaralhamento das esferas pública e privada, no bojo
da discussão do coletivismo romântico; depois, a consolidação do individualismo
administrativo, tecnocrático e disciplinar.
A etapa áurea desse desenvolvimento ocorreu após o final das duas guerras
mundiais e teve por base a adoção de diversos preceitos postulados pelo
economista inglês John Maynard Keynes, para quem a saída das crises do
capitalismo comportava uma intervenção direta do Estado no sistema econômico,
garantindo a regularização do ciclo e evitando assim flutuações dramáticas no
processo de acumulação de capital.
Além das razões que o capital apresentava para expandir os direitos sociais e
econômicos, assistiu-se, ao longo desta segunda metade do século, inclusive em
sociedades onde a população encontrava-se, historicamente, em contingências de
exclusão e de marginalidade, a um aumento considerável de lutas populares,
responsáveis, em grande parte, pela ampliação dos direitos próprios à cidadania.
Hoje é evidente que (essa) Era de Ouro pertenceu essencialmente aos países
capitalistas desenvolvidos (Hobsbawm, 1995, p. 255), pois, nas nações periféricas,
esses compromissos traduziram-se num processo bem distinto, na medida em que
a perspectiva otimista da cidadania social sempre entrou em choque com a
exclusão e a miséria da grande maioria da população não- cidadã. De qualquer
forma, a despeito do seu irregular impacto, ocorreram significativas conquistas de
direitos sociais por parte das classes trabalhadoras das sociedades centrais e, de
um modo muito menos característico e intenso, por parte de alguns setores das
classes trabalhadoras em alguns países periféricos e semiperiféricos (Gentili,1998-
b, p. 113).
A par das funções paradoxais que o Estado neoliberal vem desempenhando, quando
se trata de analisar as transformações culturais e ideológicas, é preciso afirmar
clara e objetivamente a necessidade de esse ideário contar com um novo homem.
Primeiramente, com indivíduos que introjetem o valor mercantil e as relações
mercantis como padrão dominante de interpretação do mundo, reconhecendo no
mercado o âmbito em que, naturalmente, podem - e devem - desenvolver-se
como pessoas humanas (Mancebo, 1996, p.19). A lógica do mercado apresenta-se,
então, como a função estruturadora das relações sociais e políticas, comportando
um viés de interpretação dos homens marcadamente utilitarista; segundo a qual a
motivação dos comportamentos humanos pauta-se por um utilitarismo individual.
Hayek (1990), por exemplo, pioneiro das idéias neoliberais, defende um modelo de
individualismo, partindo do pressuposto incontestável de que os limites dos nossos
poderes de imaginação nos impedem de incluir em nossa escala de valores mais
que uma parcela das necessidades da sociedade inteira (Hayek, 1990, p. 76), na
medida em que o ganho estritamente pessoal é o que nos motiva e orienta.
Enfatiza o comportamento humano como orientado pelo auto-interesse e
argumenta que o indivíduo deve seguir seus próprios valores e preferências em
vez dos de outrem... o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não
estando sujeito aos ditames alheios (p. 76).
Considerações Finais
Ao longo deste trabalho, uma certa ênfase foi dada aos modos de sujeição na
constituição dos sujeitos. Isto se traduziu num certo pessimismo quanto às relações
que os homens vêm estabelecendo entre si e na ênfase dada às relações de
dominação como um fator instituinte da interação entre os homens. No entanto, é
preciso destacar que não se creditou o homem disciplinado ou o mínimo-eu
(Lasch, 1983) como o último e derradeiro esforço de constituição das
subjetividades, nem o único presente em nosso horizonte de possibilidades.
Na realidade, percorreu-se um terreno que aponta para uma das posições éticas
mais caras a Foucault e com o qual se mantém estreita concordância: uma postura
de hiper-militantismo pessimista (Foucault, 1994, p. 386). De todo modo, faz-se
necessário tecer algumas considerações quanto a uma acusação bastante plausível
em relação a este texto: a de tratar-se de uma análise pessimista e paralisante.
Acredita-se ainda ser possível buscar e desenvolver outros modos de vida, distintos
dos existentes no mundo relacional atual. A sociedade atual e as instituições que
constituem sua ossatura, por certo, limitaram a possibilidade de relações e
rebaixaram o eu a um mínimo, na ânsia de construir um mundo mais fácil de ser
gerido e administrado. No entanto, com Foucault (1994), defende-se a
possibilidade de bater-nos contra este empobrecimento do tecido relacional
(contra...) um mundo legal, social, institucional, onde as únicas relações possíveis
são extremamente pouco numerosas, extremamente esquematizadas,
extremamente pobres (p. 309).
Referências bibliográficas
Elias, N. (1993). O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
Huyssen, A. (1986). After the great divide. Bloomington: Indiana University Press.
Sennett, R. (1988). O declínio do homem público. São Paulo: Cia das Letras.