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Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG)

Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes (COP Juv)

Psicologia e
Juventudes
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG)
Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes (COP Juv)

Psicologia e
Juventudes

Belo Horizonte

2024
© 2024, Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais

É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e


citada a fonte.

Ilustração capa: Lucas Alfa


Revisão ortográfica, gramatical, normatização: Debora Guiot - VISUAUDIO
Editoração: VISUAUDIO Produções em Áudio e Vídeo

Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais


Rua Timbiras, 1.532, 6o e 11o andar, Lourdes
CEP: 30.140-061 – Belo Horizonte/MG
Telefone: (31) 2138-6767
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Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG)
Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes (COP Juv)

Organizadoras/es:

Ana Flávia de Sales Costa


Psicóloga pela UFMG, doutora e mestre em Psicologia pela PUC Minas, especialista em
Psicologia Social, Gestão da Política Pública de Assistência Social e Psicologia Clínica.
Trabalhadora do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Membro da Comissão de
Orientação em Psicologia e Juventudes.

Bárbara de Faria Afonso


Psicóloga e especialista em Saúde Mental pela PUC Minas, mestre em Psicanálise pela
FAFICH/UFMG. Trabalha em consultório particular e no Projeto Desembola na Ideia da
Agência de Iniciativas Cidadãs (AIC). Participante da Comissão de Psicologia e Juven-
tudes no CRP-MG.

Ceres Soares Bifano


Psicóloga pela UNA, especialista em Psicanálise: Teoria, Clínica e Extensão (UNIFEMM).
Membro da Comissão de Psicologia e relações étnico raciais no CRP-MG.

Giovanni Alberto da Silva


Psicólogo pela Ciências Médicas - MG, Diretor de Atendimento Unidade Socioeduca-
tiva de Internação, coordenador Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes.

Michele Castro Caldeira


Psicóloga, doutora pela PUC Minas, mestre em psicanálise pela FAFICH - UFMG. Espe-
cializou-se em Psicanálise nas Instituições de Saúde na PUC-MG, obtendo o título de
Psicóloga Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia. Membro da Comissão de Psico-
logia e Juventudes. Atualmente exerce a função de Superintendente de Assistência
Social em Contagem e Vice-presidente do Conselho Municipal de Assistência Social.
Membro da Comissão Psicologia e Juventude no CRP-MG.

Suellen Ananda Fraga


Psicóloga pela PUC-Minas, atuante em consultório particular, conselheira no XVI Ple-
nário do Conselho Regional de Psicologia-Minas Gerais, coordenadora da Comissão de
Orientação em Psicologia e Juventudes; Conselheira referência da comissão de orien-
tação em Psicologia e relações étnico-raciais, membra do Fórum estadual de combate
ao trabalho infantil e proteção ao adolescente (FECTIPA-MG) pelo Centro de educação
para o trabalho Virgilio Resi (CEDUCVR).
XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia
Minas Gerais (Gestão 2019-2022)

DIRETORIA

Reinaldo da Silva Júnior


Conselheira Diretor Presidente

Jéssica Gabriela de Souza Isabel


Conselheira Diretora Vice-Presidenta

Paula Lins Khoury


Conselheira Diretora Tesoureira

Luiz Felipe Viana Cardoso


Conselheiro Diretor Secretário

CONSELHEIRAS(OS)

Anderson Nazareno Matos Luís Henrique de Souza Cunha


Bruna Rocha Diniz de Almeida Luiz Felipe Viana Cardoso
Camila Bahia Leite Marleide Marques de Castro
Cláudia Aline Carvalho Esposito Paula Khoury
Cristiane Santos de Souza Nogueira Reinaldo Júnior
Elza Maria Gonçalves Lobosque Renata Ferreira Jardim
Evely Najjar Capdeville Rita de Cássia de Araújo Almeida
Fabrício Júnio Rocha Ribeiro Rodrigo Padrini Monteiro
Jéssica Gabriela de Souza Isabel Suellen Ananda Fraga
João Henrique Borges Bento Ted Nobre Evangelista
Larissa Amorim Borges Thiago Ribeiro de Freitas
Liliane Cristina Martins Walter Melo Júnior
Lourdes Aparecida Machado Yghor Queiroz Gomes
XVII Plenário do Conselho Regional de Psicologia
Minas Gerais (Gestão 2022-2025)

DIRETORIA

Suellen Ananda Fraga


Conselheira Diretora Presidenta

Liliane Cristina Martins


Conselheira Diretora Vice-Presidenta

Elizabeth de Lacerda Barbosa


Conselheira Diretora Tesoureira

Paula Ângela de Figueiredo Paula


Conselheira Diretora Secretária

CONSELHEIRAS(OS)

Alessandra Kelly Belmonte Hudson Bruno Cares Carajá


Ana Maria Prates da Silva e Silva Isabella Cristina Barral Faria Lima
Anderson Nazareno Matos João Henrique Borges Bento
Caroline de Souza Júnia Maria Campos Lara
Celso Francisco Tondin Liliane Cristina Martins
Cláudia Aline Carvalho Esposito Lorena Rodrigues de Sousa
Cristiane Santos de Souza Nogueira Lourdes Aparecida Machado
Daniel Caldeira de Melo Luís Henrique de Souza Cunha
Danty Dias Marchezane Márcio Rocha Damasceno
Délcio Fernando Guimarães Pereira Marleide Marques de Castro
Elizabeth de Lacerda Barbosa Paula Ângela de Figueiredo Paula
Elza Maria Gonçalves Lobosque Renata Ferreira Jardim de Miranda
Gab Almeida Moreira Lamounier Suellen Ananda Fraga
Gabrielly Dolores Rios da Cunha Ted Nobre Evangelista
Henrique Galhano Balieiro Wellington Eustáquio Ribeiro
Apresentação
O Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais dentre as suas
principais atribuições, desempenha a responsabilidade da orientação
à categoria de psicólogas(os), visando o desenvolvimento da Psicologia
em constante atualização dos debates pertinentes à profissão. As
comissões temáticas do CRP-MG se apresentam como importante
veículo de diálogos e construção de ações, cada uma a partir de seu
tema, evidenciando e refletindo criticamente, assuntos emergentes e
competentes à profissão.
A Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes do Conselho
Regional de Psicologia de Minas Gerais - CRP/04 teve início em janeiro
de 2018 e busca promover um espaço de discussão com psicólogas(os),
estudantes, gestoras(es) e trabalhadoras(es) das políticas públicas de
juventudes, movimentos sociais atuantes nesta temática e demais
interessadas(os). Além disso, tem como objetivos: 1. fomentar a
discussão, a partir de uma perspectiva crítica, sobre as práticas
das(os) psicólogas(os) junto às juventudes; 2. promover discussões
sobre Psicologia e juventudes, pautadas em temas transversais como:
relações étnico-raciais, gênero e diversidade, trabalho e geração de
renda, criminalização e genocídio da juventude negra, participação
política, virtualidades, produção cultural dentre outras; 3. atuar
na inserção e ampliação da participação das(os) psicólogas(os) em
espaços de discussão sobre juventudes; 4. promover a discussão das
políticas públicas para as juventudes no cenário atual; e, 5. articular
pautas comuns com as demais comissões do CRP, estabelecendo
diálogos transversais.
O presente livro tem como objetivo elaborar uma produção coletiva
de profissionais da Psicologia que se interessam pelos temas que
envolvem as juventudes no Brasil. Os textos apresentados aqui são
inéditos e fomentam a produção intelectual e científica sobre as práticas
profissionais, intelectuais, culturais e outras sobre as juventudes.
Apresentação

Buscamos artigos que problematizam o conceito de juventudes, a


partir do levantamento de discussões críticas e articuladas aos demais
campos de saber que impliquem e atravessem essa discussão sem
perder de vista uma busca por demarcar, questionar e problematizar
as contribuições que a Psicologia enquanto campo de saber pode
acrescentar a esse debate.
A diversidade de temáticas, apresentadas aqui, revela as inúmeras
possibilidades de olhares, vieses, compreensões e práticas.
Nos encontros da comissão, geralmente em formato de rodas de
conversas, buscamos contribuir para a construção de saberes sobre
a Psicologia e suas conexões com as juventudes de modo a produzir
conhecimentos que revelem a potência desses encontros.
Um saber importante e amplamente discutido nos encontros da
comissão foi o conceito de juventudes, tratadas aqui no plural para
marcar a diversidade de expressões e modos de ser em um continuum
de trajetória de vida dos sujeitos. Trata-se de uma marcação política que
pretende ampliar os conceitos clássicos que vêm sendo trabalhados
pela Psicologia, frequentemente articulados às teorias tradicionais de
desenvolvimento. Trabalhamos com a dimensão de que as juventudes
não são um vir a ser, pelo contrário, produzem ativamente saberes
que se articulam às experiências individuais e grupais das(dos) jovens
em um cenário sócio-historicamente situado. Entendemos que as
juventudes brasileiras resistem diante de todos os desafios enquanto
singularidades, gerando potência de vida, e não podem ser tratadas
como um problema, uma questão ou algo negativo.
Neste sentido, a Psicologia tem compromisso ético-político no
enfrentamento das lógicas que reproduzem as juventudes nos lugares
de risco e violência, desmerecendo os potenciais de agência das
juventudes e que retiram o protagonismo dos sujeitos. A Psicologia já
produziu muitos saberes sobre as juventudes, as mudanças dos corpos
e os impactos nas subjetividades, a ampliação das relações para além
das famílias, os desafios da entrada no campo do trabalho, os afetos
e outros mais. Agora, somos convocadas(os) a produzir saberes e
práticas articulados com as juventudes de forma horizontalizada e
conectada com as lutas dos nossos tempos. Essas lutas indicam um
olhar crítico para que a escuta psicológica seja sensível às questões
Apresentação

raciais, de gênero e sexualidade que atravessam as subjetividades


das(dos) jovens.
Assim, a Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes
vem pautando, desde sua criação, temas transversais como: relações
étnico-raciais, gênero e diversidade, trabalho e geração de renda,
criminalização e genocídio da juventude negra, participação política,
virtualidades, produção cultural e outros; Importa que a comissão
visa, que tenhamos mais psicólogas(os) em espaços de diálogo sobre
juventudes e na promoção e discussão de políticas públicas para as
juventudes no cenário atual de austeridade.

Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Conselho Regional de Psicologia - Minas Gerais

INSPIRE-SE! SOMOS MAIS QUE CORPO...

''O quadril largo, gordurinha do lado


O braço forte "proporcional" do corpo
O sorriso cheio arredondando o rosto
Os seios grandes franzido, faz parte do corpo
A barriga com suas dobrinhas me torna mais bonita

Espessura linda, obra de arte impagável preço, valor é amor próprio


Eu me esculpir aceitando-se , como eu me gosto
Jovem Mulher perfeita para mim mesma, hoje eu te rego de amor
minha flor
Obra de arte mais linda Esculpida de amor.''

Poema de Naiane Estevam (Mina Nai MC), 21 anos


Instagram: @minanai.mc
SUMÁRIO
1. Para pensar as juventudes: uma introdução 12
Ana Flávia de Sales Costa e Michele Castro Caldeira

2. O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência 21


familiar
Mirtes Leite Pereira e Alaíde de Souza

3. Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes:


cenas de um estudo com jovens vivendo com HIV/AIDS 38
Lara Brum de Calais e Juliana Perucchi

4. O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia


56
Gabriela Luanda Oliveira Carneiro, Gabriela Antunes Ferreira,
Lívia Mara Campos Silva, Maíra Carolina Alves Santos e Cristiane de Freitas Cunha

5. A vida frente as telas: Configurações da adolescência e juventude


na virtualidade 74
Daniela Piroli Cabral

6. Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a


escuta com jovens em contextos de (pós) distanciamento social 93
Bruno Márcio de Castro Reis e Karina Pereira dos Santos

7. Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um


diálogo necessário para a visualização do sujeito e da sua subjetividade 113
Núbia Vieira de Souza

8. Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘


‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude e das experiências
de jovens pobres
131
Paulo Roberto da Silva Junior e Claudia Mayorga

9. Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios 150


Gabriel Rodrigues Ramos, Leandra Kelly de Carvalho e
Neyfsom Carlos Fernandes Matias

10. A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua"


no empoderamento e protagonismo juvenil 168
Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza,
Paulo Martim Santos, Adriana Woichinevski Viscardi e Ana Luísa Marlière Casela
11. Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos
socioculturais voltados à juventude 188
Violeta Vaz Penna e Marina Marcondes Machado

12. Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como


ferramenta de emancipação
206
Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte e Cristina Campolina Vilas Boas

13. Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia


no enfrentamento das desigualdades raciais e sociais
225
Marco Aurélio Saraiva Carvalho e Laura Cristina Eiras Coelho Soares

14. O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil:


perspectivas necropolíticas
244
Fídias Gomes Siqueira e Thales Augusto da Silva Ferreira

15. A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios 261


e das múltiplas realidades sociais de jovens da regional Barreiro
Cérise Alvarenga e Luiz Felipe Viana Cardoso

16. Juventudes do Campo: olhares a partir da Psicologia


278
Augusto César Cardoso Mendes e Luiz Paulo Ribeiro

17. Posso me tatuar ou devo ser pai e trabalhar? Os significados 299


das tatuagens de jovens moradores de periferias e bairros populares
Fernanda de Paula Carvalho e Adriano Roberto Afonso do Nascimento

18. Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma


construção social
312
Geisilane Nogueira da Silva

19. Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens:


qual a nomenclatura mais apropriada? 330
Evely Najjar Capdeville

20. O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?


348
Renata Fabiana Pegoraro e Bianca Rodrigues Freitas

21. Juventude, homossexualidade e família: uma experiência dentro e 366


fora do armário
Eduarda Rocha Ribeiro, Pablo Henrique Fagundes de Almeida e
Rafael Prosdocimi Bacelar
*Direito de imagem adquirido pelo CRP
1

Para pensar as
juventudes: uma
introdução

Ana Flávia de Sales Costa


Michele Castro Caldeira

12 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Para pensar as juventudes: uma introdução

A categoria “juventude” tem sido debatida por diferentes


perspectivas teóricas e disciplinares. A Psicologia, de forma hegemônica,
apropriou-se da categoria adolescência, direcionando seus estudos
para a análise dos sujeitos particulares e de seus processos de
transformação. São salientados aspectos psíquicos, sociais e culturais
na constituição de cada um, buscando-se o singular. O foco maior está
na compreensão da individualidade e do modo de ser adolescente. Já
as Ciências Sociais (Sociologia, a Antropologia Cultural e Social) e as
outras disciplinas das Ciências Humanas (História, Educação, Estudos
Culturais, Comunicação), por sua vez, debruçaram-se sobre o conceito
de juventude, enfatizando as relações estabelecidas entre os sujeitos,
nas formações sociais e no processo de traçar vínculos ou rupturas
entre eles. O objetivo é o estudo das relações estabelecidas entre os
indivíduos, conectando-os a uma coletividade. Porém, tal distinção
não é tão precisa assim como parece à primeira vista, já que as duas
expressões – adolescência e juventude, em especial no campo da
Psicologia, aparecem em alguns momentos como sinônimas e, em
outros, há uma superposição ou transferência de uma noção para a
outra. (LÉON, 2005, 2009).
No Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA (1990), o adolescente é o indivíduo entre 12 e 18 anos incompletos,
concebido como um sujeito de direitos e, nesse sentido as condições
necessárias para o seu desenvolvimento integral são responsabilidade
do Estado, da sociedade e da família (BRASIL, 2001). De modo geral,
a adolescência é considerada como um momento da vida em que
ocorrem várias transformações físicas, psicológicas, sexuais e sociais,
além de se caracterizar por um momento de incertezas e conflitos. Em
contrapartida, também é apontada como uma época de originalidade
e da exigência de uma norma justa e flexível. Uma fase da vida de
muitas experimentações e de descobertas. Seria essa então uma boa
descrição da adolescência?
Para muitas vertentes da Psicologia, a adolescência é uma fase
marcada por diversos estereótipos, dentre os quais se destacam a
rebeldia, a instabilidade afetiva, a crise de identidade, a tendência à
formação de grupos e as contradições. Segundo Ozella (2002), tais
concepções estereotipadas de adolescência têm caminhado para a

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 13


Ana Flávia de Sales Costa, Michele Castro Caldeira

construção de uma imagem universal, naturalizada e, principalmente,


patologizante desse sujeito, a qual ignora todo o contexto social e
cultural que o circunda. Cabe dizer que o principal problema dessa
perspectiva se refere à ideia de que a adolescência, enquanto uma
fase natural do desenvolvimento humano, seria vivenciada da
mesma maneira por todas as pessoas. Nesse sentido, estaríamos
tratando apenas de um período de transição da infância para a idade
adulta, marcado por mudanças físicas, sexuais e cognitivas. Somado
a isso, estaríamos também diante de um momento naturalmente
problemático, que justificaria os comportamentos considerados
inadequados e rebeldes dos adolescentes.
Todavia alguns autores, como exemplo Vigotski (2006), refutam a
ideia de adolescência como fase natural do desenvolvimento humano,
explicando-a como um momento em que os sujeitos experimentam,
em suas vivências concretas e cotidianas, um movimento dialético
de questionamentos, reflexões e novas construções, pautadas
tanto nas vivências quanto nas mudanças biológicas orgânicas.
Seguindo então com a concepção da adolescência como um período
relacionado às mudanças corporais e psíquicas, que estão diretamente
associados ao contexto sociocultural, econômico e política no qual
vivem suas relações. Ainda que Vigotski e os pesquisadores de seu
grupo tenham apontado a importância do contexto socio-histórico e
cultural na definição de adolescência, o conceito, de maneira geral,
foi compreendido como uma etapa natural do desenvolvimento, com
determinadas características biológicas, psicológicas e cognitivas
vivenciadas por todos, contribuindo para a construção de uma visão
normatizante e de um caráter semipatológico (COUTINHO, 2009).
Nessa perspectiva, de modo contra hegemônico, alguns grupos de
psicólogas/os e estudiosas/os da Psicologia tem se dedicado à reflexão
sobre a juventude, mais especificamente, as juventudes. Segundo
Stengel e Dayrell (2014), apesar da prevalência dos estudos sobre
a adolescência, o conceito de juventude vem ganhando espaço na
Psicologia, especialmente nos trabalhos e pesquisas de cunho social,
trazendo para a perspectiva de se pensar modos de vida juvenil. É
importante destacar que são vários os recortes possíveis e classificações
que delimitam as categorias de adolescência e juventude, cada qual

14 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Para pensar as juventudes: uma introdução

com um objetivo e perspectivas diferentes.


A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1985, definiu as idades
entre 15 e 24 anos como juventude (CAMARANO et al., 2004). Já o
Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013), fixa a faixa etária entre 15 a 29
anos para os jovens, abrangendo uma parcela do que o ECA concebe
como adolescência (BRASIL, 2001). Tais diferenças, estabelecidas nos
aparatos legais, demonstram certa arbitrariedade e a falta de um
consenso em torno de uma faixa etária definitiva que dê conta de
tal categoria, o que demonstra a dificuldade de se estabelecer um
parâmetro etário para delinear o conceito.
Camarano e outros (2004) afirmam ser a realidade juvenil
determinada por processos de transição desiguais, nos quais
trajetórias diversas exercem papéis diferenciados sobre as várias
maneiras de ser jovem. Abramo (2008) alerta para a existência de
grandes variações inerentes a tal categoria, de acordo com as situações
sociais e trajetórias pessoais dos indivíduos concretos. Por exemplo, o
amadurecimento psicossocial é influenciado pela classe social ao qual
a/o jovem pertence. Para os autores, as/os jovens pobres são alçados
precocemente à condição de adultos. Já aquelas/es pertencentes a
famílias com melhores condições econômicas têm um amadurecimento
tardio, em função da manutenção de uma posição de dependência
financeira e, muitas vezes, emocional em relação aos seus pais e/ou
cuidadores. Ou seja, o processo de transição para a vida adulta pode
se caracterizar por sua retração ou prolongamento, dependendo da
classe social considerada e do momento histórico vivido.
Ainda que ser jovem represente um desejo da maior parte das
pessoas e um ideal a ser buscado ao longo de toda a vida, na situação
concreta brasileira o alargamento da juventude é relativo à condição
de classe social. Neste sentido, a lógica do prolongamento de tal
fase da vida, tomada como de preparação e experimentação, é um
componente de classe. Nesse sentido, jovens pobres têm a realização
destas etapas encurtadas, por exemplo, pela exclusão da escola e
inclusão precoce no mundo do trabalho.
O ideal de juventude tem sua construção partindo do
comportamento das classes médias tomado como referência, seja
como modelo ou ponto de comparação que permita definir aquilo

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 15


Ana Flávia de Sales Costa, Michele Castro Caldeira

que desvia do esperado a partir de tal parâmetro. Podemos perceber,


predominantemente, duas maneiras de apropriação de tal categoria:
1) a classe média funcionando como padrão para a definição do que
seja o sujeito jovem, ou 2) a juventude tomada pela negatividade, ou
seja, pelos problemas comumente associados a tal período quando se
referem as/os jovens pobres e negros.
Podemos perceber concepções que oscilam e ora enfocam a
juventude, ora a partir de um ideal burguês e ora enquanto negativa e
associada à violência e criminalidade. Em um caso ou noutro, tais usos
estereotipados da categoria não são capazes de retratar a diversidade
contida dentro desse escopo mais amplo composto por sujeitos que
têm especificidades culturais, socioeconômicas, raciais, étnicas, de
gênero e outras.
É possível questionar tais normatizações e generalizações com
que o conceito foi apropriado, partindo-se do princípio de que são
construções históricas de uma sociedade individualista, capitalista
e ocidental. Pais (2009) e Coutinho (2009) nos fazem refletir sobre
sociedades nas quais a transição para a vida adulta dá-se através de
ritos de passagem ou de iniciações pontuais, não havendo um período
demarcado entre infância e vida adulta, mas sim um momento único,
ritualizado e capaz de transformar a criança em adulto, sem que haja
uma fase de transição.
Ainda que existam algumas especificidades que marcam a travessia
realizada pelos sujeitos em direção ao mundo dos adultos, a forma
como estes traços comuns são vividos está condicionada às pautas
culturais e aos contextos sócio-históricos, fazendo com que uma
complexa conexão de fatores seja responsável pela produção de
grande pluralidade de manifestações desse período da vida.
Assim, Léon (2009) propõe que devemos considerar as “juventudes”,
no plural. É interessante a concepção do autor que traz ao mesmo
tempo os elementos da homogeneidade e da heterogeneidade que
podem ser encontrados na categoria. Compreender que há uma
unidade entre os sujeitos num dado momento da vida que os aproxima
em função de determinadas características comuns a todos e que, por
outro lado, há uma diversidade que é preciso ser contextualizada e que
irá revelar a singularidade de grupos específicos, conectando o similar

16 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Para pensar as juventudes: uma introdução

e o diverso, torna possível uma aproximação de sujeitos concretos


capaz de fugir de estereotipias, estigmas e preconceitos.
A consideração das juventudes no plural permite a relativização
do ideal burguês, herdado da modernidade, o qual adota o modelo
das camadas dominantes – jovens brancos, heterossexuais, de classe
média, urbanos e exclui os sujeitos pobres, negros, homossexuais,
transexuais, rurais (e tantas outras características não hegemônicas)
ou os toma como “desviantes” e “marginais”.
Segundo Abramo (2005), entender as imagens produzidas nessa
fase da vida e o seu significado, para além dos estereótipos e estigmas,
pode contribuir na elaboração de políticas públicas mais adequadas
às necessidades desta parcela da população. Assim como Pais (2003),
Abramo (2008) defende a necessidade de romper com a compreensão
de juventude como unidade para entendê-la enquanto diversidade.
A posição social, a família, a origem, o sexo e a raça/etnia, entre
outros fatores, são responsáveis por garantir uma heterogeneidade de
jovens. Neste sentido, a escuta das/os próprias/os jovens torna-se a
possibilidade de conhecê-los e dizer de suas necessidades e desejos
de modo contextualizado e compatível com sua origem, raça/etnia,
condição socioeconômica, região do país em que vive, escolarização,
entre outros.
Nesse sentido, partimos da concepção de que ser jovem consiste em
uma experiência que, para além de transformações biológicas, implica
em mudanças de ordem sociocultural (VIGOTSKI, 2007). Isso significa
que consideramos esse período da vida constituído socialmente a
partir de necessidades sociais e econômicas e de características que
emergem no processo histórico. Compartilhamos das concepções
apresentadas por Ozella (2003) e Dayrell (2013) de que, para além dos
marcadores etários, as juventudes são tomadas como categoria social
transversalizada pelas categorias de gênero, de classe social, de raça-
etnia e de geração, dentre outras variáveis.
A proposta de pensarmos na pluralidade dos sujeitos jovens como
foco de pesquisas, políticas públicas e legislações é uma estratégia para
nos aproximar de modo mais adequado das múltiplas realidades que
envolvem tal público. Há a necessidade de produzirmos conhecimento,
ações e leis que estejam mais afinadas com essa parcela da população,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 17


Ana Flávia de Sales Costa, Michele Castro Caldeira

por vezes subestimada, recriminada e, ao mesmo tempo, tão potente.


Várias questões têm nos desafiado no que diz respeito à
compreensão e ao atendimento das necessidades das juventudes.
Novos e velhos temas, tais como o mundo virtual, a sexualidade,
as manifestações culturais, o protagonismo juvenil, o acolhimento
institucional e as medidas socioeducativas, o genocídio dos jovens
negros, as juventudes quilombolas, rurais, indígenas e ribeirinhas,
entre tantos outros, têm sido objeto de políticas públicas, de estudos
e de discussões no cotidiano das práticas profissionais da Psicologia.
O momento atual traz novos desafios a serem somados aos já
existentes de problematizar o “ser jovem” no contexto da pandemia
de COVID 19, em que o distanciamento social, o ensino remoto, a
exacerbação da convivência e da violência intrafamiliar para citar
alguns, se fazem presentes.
O presente livro traz o esforço da Comissão de Orientação em
Psicologia e Juventudes do Conselho Regional de Psicologia de Minas
Gerais - CRP/04 por contribuir para o debate sobre as diferentes
juventudes de nosso país de modo a possibilitar um debate e a
construção de conhecimentos críticos para a atuação da Psicologia
junto a tais públicos num compromisso ético-político com práticas
emancipatórias.

Referências

ABRAMO, Helena Wendel. O uso das noções de adolescência e


juventude no contexto brasileiro. In: FREITAS, Maria Virgínia (Org.).
Juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. São
Paulo: Ação Educativa, 2005.

ABRAMO, Helena Wendel. Condição juvenil no Brasil contemporâneo.


In: Abramo, Helena Wendel & Branco, Pedro Paulo Martoni. (orgs.).
Retratos da juventude brasileira: análise de uma pesquisa nacional.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008.

BRASIL. Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre


o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

18 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Para pensar as juventudes: uma introdução

AMENCAR. Belo Horizonte, 2001.

BRASIL. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto


da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e
diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de
Juventude - SINAJUVE. Diário Oficial da União, Brasília, 6 ago 2013.

CAMARANO, Ana Amélia et al. Caminhos para a vida adulta: as


múltiplas trajetórias dos jovens brasileiros. Última década. CIDPA
Valparaíso, n. 21, p.11-50, dez 2004.

COUTINHO, Luciana Gageiro. Adolescência e errância: destinos do laço


social no contemporâneo. Rio de Janeiro: FAPERJ, Nau Editora, 2009.

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de


educação. Belo Horizonte, n. 24, p. 40-52, 2013.

LÉON, Oscar Dávila. Adolescência e juventude: das noções às abordagens.


In: FREITAS, Maria Virgínia (Org.). Juventude e adolescência no Brasil:
referências conceituais. São Paulo: Ação Educativa, 2005.

LÉON, Oscar Dávila. Uma revisão das categorias de adolescência e


juventude. In: GUIMARÃES, Maria Tereza Canezin; SOUSA, Sônia
M. Gomes (org.). Juventude e contemporaneidade: desafios e
perspectivas. Goiânia: Cânone Editorial, Ed. UFG, 2009.

OZELLA, Sérgio. Adolescência: uma perspectiva crítica. In: M. L. J.,


Contini; S. H. Koller;M. N. S. Barros (orgs.). Adolescência e Psicologia:
concepções, práticas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Conselho
Federal de Psicologia, 2002.

OZELLA, Sérgio. A adolescência e os psicólogos: a concepção e a prática


dos profissionais. In: OZELLA, S., S. (org.). Adolescências construídas:
a visão da Psicologia sócio-histórica. São Paulo: Cortez. p.17-40. 2003.
PAIS, José Machado. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 2003.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 19


Ana Flávia de Sales Costa, Michele Castro Caldeira

PAIS, José Machado. A juventude como fase de vida: dos ritos de


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STENGEL, Márcia; DAYRELL, Juarez. Estado da Arte da Produção


Discente de Pós-graduação em Psicologia sobre Adolescência e
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Machado Libros S.A., 2006.

VIGOTSKI, Lev Semionovitch. A formação social da mente. 7°ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2007.

Sobre as autoras

Ana Flávia de Sales Costa


Psicóloga pela UFMG, doutora e mestre em Psicologia pela PUC Minas,
especialista em Psicologia Social, Gestão da Política Pública de Assistência
Social e Psicologia Clínica. Trabalhadora do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). Membro da Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes.

Michele Castro Caldeira


Psicóloga, doutora pela PUC Minas, mestre em psicanálise pela FAFICH -
UFMG. Especializou-se em Psicanálise nas Instituições de Saúde na PUC-MG,
obtendo o título de Psicóloga Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia.
Membro da Comissão de Psicologia e Juventudes. Atualmente exerce a função
de Superintendente de Assistência Social em Contagem e Vice-presidente do
Conselho Municipal de Assistência Social. Membro da Comissão Psicologia e
Juventude no CRP-MG.

20 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


2

O vazio existencial
entre os jovens:
um estudo sobre a
influência familiar
The existential void among young
people: a study on family influence

Mirtes Leite Pereira


Orientadora: Alaíde de Souza

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 21


Mirtes Leite Pereira

Resumo
A contemporaneidade aponta múltiplas mudanças de comportamentos
e valores, tais como relativismo moral e a vertiginosa velocidade
das mudanças sociais que direcionam a diferentes percepções e
compreensões quanto à constituição dos “sentidos da vida”. Neste
cenário é possível reconhecer uma parcela significativa da juventude
apresentando comportamentos de risco e nocivos para sua saúde e
para a sociedade, como: drogadição, criminalidade e violência, além
de outros envolvimentos sociais. Esse quadro é indicativo de que
muitos jovens vivenciam um vazio existencial, problema complexo e
multifatorial que sofre influência de aspectos individuais, familiares,
do grupo de pares e do contexto social e cultural. No âmbito da
literatura especializada, o grupo e a estrutura familiar dos jovens têm
sido considerados de destacada relevância, tanto pela importância
em oferecer condições para um desenvolvimento saudável para
os jovens quanto pela necessidade de participar de intervenções
visando à superação das dificuldades experimentadas por ele. O
presente trabalho apresenta uma revisão bibliográfica, abordando
especialmente Viktor Frankl e o sociólogo polonês Zygmunt Bauman
para a análise da realidade social contemporânea. Os estudos
selecionados objetivaram o entendimento das relações entre o vazio
existencial da juventude e a influência dos aspectos familiares e sociais
da atualidade, possibilitando compreender o papel da família, que deve
ser considerada como fator de risco ou de proteção e fornecer bases e
referências saudáveis. Este trabalho possibilitou também reconhecer,
além da família, a importância da participação da sociedade e da
Psicologia em intervenções de prevenção ou enfrentamento do vazio
existencial da juventude.

Palavras-chave: Juventude. Família. Modernidade líquida. Vazio


existencial.

22 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência familiar

Abstract
A significant portion of youth today has risky and harmful behaviors
for their health and for society, such as: drug addiction, involvement
with crime and violence. This picture is indicative that many young
people experience an existential void. It is a complex and multifactorial
problem that is influenced by individual, family, peer groups and the
social and cultural context. In the context of specialized literature, the
group and family structure of young people has been considered a
factor of outstanding relevance, both for the importance of offering
conditions for healthy development for young people and for the need
to participate in interventions aimed at overcoming the difficulties
experienced by them. The present work presents a bibliographic
review of works by authors who contributed to the understanding
of the so-called existential void, especially Viktor Flank. Sociologist
Zygmunt Bauman contributions to the understanding of contemporary
social reality were also raised. The studies selected for this research
aimed to investigate the relationship between the existential void of
youth and the family and social aspects of today. It was found that
several values and characteristics of the current times, such as moral
relativism and the dizzying speed at which social changes take place,
can negatively influence young people regarding their choices, which
may be a risk factor for the constitution of meaning for their lives.
To sum up, the importance of the participation of the family, society
and psychology in interventions to prevent or confront the existential
void of youth today is highlighted.

Keywords: Youth. Family. Liquid modernity. Existential void.

1. Introdução

As transformações ocorridas na sociedade ao longo da história


ocidental, principalmente a partir do século XX, geraram profundas
mudanças de valores. Dentre estes, percebe-se que na atualidade,
o consumismo, é uma das forças sociais mais atuantes. A busca pela

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 23


Mirtes Leite Pereira

posse de bens materiais parece ter como um dos efeitos negativos o


esvaziamento existencial. Possuir bens materiais, em muitos casos e
para muitas pessoas, é o valor mais importante da vida, em detrimento
do que é essencial na existência, que é a própria existência. Nesse
contexto, a juventude é a parcela da população que pode ser vista
como a mais afetada. O fenômeno de massa que caracteriza parcela
significativa da juventude nos dias atuais é o vazio existencial
ocasionado pela impossibilidade de atender à motivação primária do
ser humano: a vontade de sentido. Esse é um problema enfrentado
pela família na educação e transmissão de valores a seus filhos. Esse
mal-estar pode ser visto em nossa civilização manifestando-se através
do tédio e da sensação de que a vida não tem sentido. No âmbito
familiar e social, ele se apresenta, entre outros, através dos seguintes
sinais: drogadição, agressão e suicídio (AQUINO et al., 2011).
Abordar a temática da juventude, sobretudo no que hoje a ela se
apresenta como desafios, é de fundamental importância e relevância,
pois os jovens têm grande participação nos rumos que o país irá seguir
em termos sociais, políticos e econômicos. Campos e Goto (2017)
destacam que a juventude tem sido cada vez mais estudada e se tornado
cada vez mais foco de preocupação por parte do Estado. A importância
que tem sido dada a esse segmento da população justifica-se pelo fato
de que, no Brasil, existem mais de 52,2 milhões de jovens, com faixa
etária entre 15 e 29 anos, sendo que muitos deles vivem situações de
desigualdade e são vítimas de problemas socioeconômicos.
O Brasil experimenta transformações expressivas nas políticas
públicas para a juventude como a criação, no ano de 2004, da Política
Nacional de Juventude pela Secretaria Nacional de Juventude da
Secretária-geral da Presidência da República. Essas inovações têm
contribuído para o desenvolvimento de um novo paradigma em torno
das questões relacionadas aos jovens, especialmente no que diz
respeito aos seus comportamentos que indicam conflitos e dificuldades
para se orientarem pela vida (CAMPOS; GOTO, 2017).
A situação em que muitos jovens vivem na atualidade gera
preocupação em âmbito nacional e regional, como é o caso do estado
de Minas Gerais. Conforme pesquisa realizada no período de setembro
de 2017 a outubro de 2018 pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas

24 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência familiar

Gerais (TJMG) em parceria com a Pontifícia Universidade Católica


de Minas Gerais (PUC) parcela significativa da juventude mineira
apresenta envolvimento com práticas delituosas e uso abusivo de
drogas. De acordo com esse estudo, o envolvimento dos jovens com
comportamentos de risco, tais como criminalidade e drogadição,
deve ser entendido como consequência de diversos fatores sociais e
individuais, incluindo: ambientais, sociais, familiares, educacionais e
econômicos (SAPORI; CAETANO; SANTOS, 2018).
Considerando o núcleo familiar como um dos espaços mais
importantes na transmissão de valores para a juventude, este trabalho
tem o objetivo de discutir o vazio existencial que, possivelmente, atinge
essa parcela da sociedade, com as dinâmicas familiares que vem sendo
estabelecidas. Para direcionar as discussões serão abordados pontos
principais das teorias de Viktor Emil Frankl, fundador da logoterapia
e da análise existencial e Zygmunt Bauman, entre outros estudiosos.

2. A pós-modernidade: dinâmicas relevantes

Este trabalho assume o conceito de pós-modernidade proposto


e desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Nascido
no ano de 1925, na Polônia, e falecido em 2017 na Inglaterra, esse
estudioso fez em suas pesquisas um diagnóstico bastante respeitado
da realidade social atual. Mais especificamente, ele apresentou uma
análise do modo de ser dos indivíduos que vivem nos tempos atuais.
Bauman indica que a vida humana atualmente pode ser caracterizada
pela instabilidade, a qual pode ser observada a partir de cinco
características principais: crise das instituições, perda da concepção de
progresso, ascensão do comunitarismo, perda do sentido da história e
quebra do poder político como estrutura rígida e centralizada (SILVA,
2018).
Bauman utiliza a imagem da liquidez como uma forma de
representar, em termos sociológicos e psicológicos, o que estaria
acontecendo nos tempos atuais, que ele chama de pós-modernidade.
Assim, em seu pensamento, esse período pode ser visto como um
espaço e momento da história da humanidade em que as coisas estão
em mudança constante, tudo se transforma muito rapidamente, nada
é assumido como tendo duração indefinida, como no passado, por
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 25
Mirtes Leite Pereira

exemplo, onde havia figuras de autoridade que eram consideradas


inquestionáveis. Na pós-modernidade, a relatividade é uma categoria
que está muito presente no dia a dia das pessoas. Isso significa que
nada nem ninguém é considerado absoluto, ou que irá durar para
sempre. Nesse contexto, nada tem ou terá grande duração. O que mais
importa na pós-modernidade é a vontade individual. O que cada um
pensa e julga como correto assume maior vulto do que as vontades
coletivas ou da tradição (BAUMAN, 2004a).
A "vontade de liberdade", nos termos do pensamento de Bauman,
é o eixo que norteia as pessoas na modernidade líquida ou pós-
modernidade. Essa situação é oposta ao que a humanidade vivenciou
em épocas anteriores, onde a tradição, os costumes, a moral social e
o Estado eram entidades respeitadas e que apresentavam padrões e
referências sobre como agir, o que valorizar e a maneira de conduzir a
vida. Esse mundo em que as coisas tinham duração maior e onde havia
reverência a modelos tradicionais como a Igreja, a Justiça, a família, a
opinião dos vizinhos é chamado por Bauman de tempos sólidos. Havia
maior permanência das instituições e as fontes de referência para a
conduta social eram mais visíveis, como já as citadas (BASÍLIO, 2010).
Outra área analisada por Bauman e que é de interesse mais
específico desta pesquisa é a dos laços inter-humano. As relações
humanas em outras épocas poderiam ser consideradas mais estáveis,
mais duradouras. Onde imperava a tradição, os costumes e os valores
sociais, imperava também referências mais claras e até mesmo mais
rígidas para as relações sociais. Pode-se pensar, por exemplo, na
figura do pai em uma família considerada tradicional há alguns anos.
Nesse contexto, o pai exercia uma autoridade quase inquestionável,
os papéis no seio familiar eram determinados por um conjunto de
regras impositivas. Desse modo, pode-se afirmar que as relações
familiares obedeciam a um conjunto rigoroso de normas. Essa situação
se estendia para os demais campos de relações humanas. As regras
estavam estabelecidas previamente e deveriam ser seguidas (BASÍLIO,
2010).
Em tempos líquidos, as regras para se relacionar com o outro já
não vêm de fora, da tradição ou de alguma figura de autoridade.
Atualmente, cada vez mais, são os próprios indivíduos que são

26 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência familiar

encarregados de construir e estabelecer as regras que irão sustentar


e nortear suas relações. Assim, as relações são cada vez mais também
passageiras, muda-se de parceiro ou parceira sempre que não for mais
interessante manter o vínculo que estava estabelecido (BAUMAN,
2004a).
O contexto de rápidas transformações, grande valorização das
relações em rede de forma virtual, traz impactos sobre as relações
familiares concretas, as que se dão no dia a dia da vida das pessoas.
Bauman indica que a “liquidez” dos tempos atuais está afetando as
relações familiares no sentido de que cada vez mais as pessoas estão
se tornando inaptas para manterem laços afetivos a longo prazo
(BAUMAN, 2004a).

3. A atualidade dos jovens e seus aspectos relacionais

As relações humanas na atualidade têm sido tema de grandes


discussões científicas, pois este período de tempo caracteriza-se por
uma realidade social, cultural e econômica complexa, com valores
éticos e morais diversificados. Autores como Bauman, Lipovetsky,
Giddens trouxeram importantes contribuições para a compreensão
deste período histórico, uma vez que em seus trabalhos discutem a
fragilidade das relações humanas (LEITE et al., 2016).
O século XXI apresenta importantes transformações na vida social
na forma de diversidade de acontecimentos impactantes que envolvem
inúmeras áreas: financeira, produção, institucional e cultural. Esse
conjunto de modificações terão consequências significativas para
a vida de todas as pessoas. Trata-se do fenômeno denominado de
globalização, que, em sua essência, acarreta transformações das
relações, da organização social que impactam diretamente os seres
humanos, as empresas, os países e as instituições familiares (ALMEIDA
et al., 2012).
Para se compreender o modo como as relações familiares estão
se dando na contemporaneidade é fundamental que se leve em
consideração as novas formas de comunicação emergentes. A evolução
das novas tecnologias possibilitou, através da comunicação mediata,
o aumento da interação e da sociabilidade à distância, isso porque a

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 27


Mirtes Leite Pereira

tecnologia nos passou a possibilitar a conexão com grande número


de pessoas a qualquer hora e em qualquer lugar, nesse sentido, ela
abriu as portas do mundo fazendo com que as divisões geográficas
que separam as pessoas de diferentes culturas possam facilmente ser
ultrapassadas (BALDANZA, 2006).
Os efeitos benéficos da evolução tecnológica nos meios de
comunicação contemporânea são também acompanhados por efeitos
negativos, principalmente para as relações familiares. A facilidade de
acesso ao outro tem o potencial de fazer com que as relações entre
as pessoas se estabeleçam através de laços frágeis. Abordando essa
situação, Bauman (2004b) destaca que os modos de interação por
meios eletrônicos no mundo atual tendem a gerar a substituição de
contatos físicos. O que mais adquire importância é o que acontece
àqueles que estão conectados.
O principal resultado desse quadro é a fragilização das relações
entre as pessoas que estão próximas, principalmente as que vivem
num espaço familiar ou na mesma família. De maneira bastante
diferente dos antigos relacionamentos, os contatos virtuais que estão
em expansão na atualidade parecem ter sido feitos sob medida para o
cenário da vida contemporânea. Hoje em dia, espera-se que as relações
surjam e desapareçam com rapidez e capacidade cada vez maiores. A
crença que está em voga é a de que a fugacidade, volatilidade e rapidez
nos relacionamentos é a melhor e mais satisfatória escolha. Sair e
entrar de um relacionamento dado nos meios virtuais é relativamente
fácil, pois eles são de simples execução e entendimento, diferente do
“relacionamento real” que parece ser embaraçado, brando e árduo
(LEITE et al., 2016).
Outro fenômeno que deve ser destacado no mundo contemporâneo
para a compreensão das relações e valores familiares é o aumento do
narcisismo, do consumismo e individualismo. Casadore e Hashimoto
(2012) destacam que a importância exagerada a determinados padrões
de beleza, a influência dos meios de comunicação, a cultura da imagem
exercem forte influência sobre o imaginário das pessoas e atuam como
forças relevantes nas novas maneiras de subjetivações referidas como
pós-modernas. No que diz respeito aos relacionamentos interpessoais,
verificam-se transformações significativas dos últimos tempos. De

28 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência familiar

acordo com os autores referidos, nessa nova configuração social,


pode-se observar que os laços amorosos, por exemplo, passam a ser
contemplados em um segundo plano, uma vez que, o desejo pelo gozo,
e pelo prazer, assumem importância capital. Como o amor acarreta
entrega e perdas ele se torna um problema nesse contexto cultural
(BAUMAN, 2004b).
Diante do quadro social indicado acima em que as relações
interpessoais, principalmente as familiares, estão sendo fortemente
influenciadas por valores como rapidez e superficialidade nos
contatos, consumismo, narcisismo, fluidez exacerbada nos valores,
falta de compromisso com o outro, cultivo exagerado e distorcido
de certos padrões estéticos, é importante investigar como os jovens
estão sendo afetados por essa realidade. Vale destacar, conforme
apontam Trancoso e Correio (2014), que a juventude não deve ser
pensada como uma realidade puramente demográfica. Ela diz respeito
a um fenômeno social complexo, que influencia e é influenciada pelas
diferentes correntes e forças simbólicas existentes na sociedade. A
categoria conceitual denominada juventude também apresenta uma
condição dinâmica e mutável ao longo do tempo, a depender dos
valores e representações sociais dominantes. A compreensão dos
significados de juventude deve levar em consideração que ela recebe
influências do meio social em que está inserida. Isso irá repercutir nos
sentidos que ela irá atribuir à existência.
Campos e Goto (2017) destacam que a juventude consiste num
fenômeno atual e significativo para a sociedade, a qual está permeada
por valores e condutas diversas originadas das transformações
sofridas no cenário global nos últimos tempos. Os jovens recebem
influências de múltiplos valores e visões diversas de mundo que
lhes são apresentadas, as quais abarcam os sentidos da vida. Para se
compreender a juventude hoje é fundamental que se compreenda a
realidade social na qual ela se situa. No caso do Brasil, é necessário que
se leve em consideração as situações de violência, falta de emprego,
miséria, pobreza, escassez de oportunidades culturais e educacionais.
Esse cenário poderá ter implicações nas diversas manifestações que
evidenciam um vazio existencial experimentado por muitos jovens na
atualidade, tais como: drogadição, violência, uso inconsequente da

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 29


Mirtes Leite Pereira

sexualidade, depressão e outros sintomas.


Ao se verificar as diversas situações nocivas, nas quais parte da
juventude está envolvida na atualidade, pode-se supor que existe um
vazio existencial entre esses indivíduos e que precisam de orientação
e ajuda. Para compreender essa situação, a obra do psiquiatra alemão
Viktor Frankl é de grande contribuição. Seguem os principais aspectos
de sua teoria para conduzir às discussões propostas neste trabalho.

4. O sentido da vida em Viktor Frankl

Viktor Emil Frankl, psiquiatra e psicoterapeuta austríaco, nascido


em Viena, dia 26 de março de 1905 e falecido em 2 de setembro de
1997, destaca em seus trabalhos que a presença de sentido na vida é
a força maior que move o ser humano. Essa necessidade humana diz
respeito a presença de um sentido para cada situação que a existência
apresenta. Desse modo, o sentido pode mudar a cada momento e a
cada situação vivenciada. Todas as circunstâncias que uma pessoa
experimenta apresentam para ela algum sentido, mesmo nas situações
marcadas por sofrimento. Esse fenômeno se dá independentemente
de idade, sexo, escolaridade, profissão ou orientação religiosa. O
sentido na vida é a principal motivação do ser humano no seu processo
de amadurecimento e superação de dificuldades. A frustração dessa
necessidade e vontade de sentido pode ocasionar um vazio existencial,
ou seja, um sentimento de vazio e futilidade (PEREIRA, 2007).
Os valores e tradições construídos e sustentados pelo homem ao
longo de sua história podem ser entendidos como formas encontradas
de dar sentido às experiências existenciais. Em sua obra Um Sentido
para a Vida, Viktor Frankl apresenta a logoterapia, abordagem por
ele fundada, como sendo a terapia realizada com base e através do
sentido. Desse modo, ele afirma que a sobrevivência do ser humano
depende da sua capacidade de orientar a própria vida em direção a um
“para que coisa” ou um “para quem” (FRANKL, 1989).
Ao se falar em vazio existencial da juventude, a noção que está na
base dessa afirmação é a de que o encontro de um sentido para a vida
está diretamente relacionado à dedicação a uma causa externa, seja
ela qual for. Uma causa que seja adequada ao indivíduo e que lhe traga
a sensação de realização e felicidade. Portanto, o sentido da vida, nesse
30 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes
O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência familiar

modo de pensar, está ligado a movimentos externos de dedicação cujo


efeito maior é a realização. Contrariamente a essa realidade, tem-se
a frustração ou o vazio existencial, que consiste na situação na qual
ocorre estagnação da realização dos sentidos particulares da vida.
Quando isso acontece, o indivíduo pode ser levado a perseguir os
efeitos de prazer diretamente, como por exemplo, através do consumo
de drogas (PEREIRA, 2007).
Frankl aponta que o vazio existencial é o mal que atinge a sociedade
atual. De modo mais específico, esse vazio apresentar-se-ia de forma
mais agressiva entre os jovens e tem sido marcado por três tipos mais
evidentes de sintomas: depressão, agressividade e dependência de
drogas (FRANKL, 2003, 2008).

5. Juventude, família e sentido da vida na atualidade

Considerando os aspectos levantados nesta pesquisa, pretende-se


direcionar para a compreensão de possíveis influências familiares na
construção do sentido de vida, entre os jovens dos tempos atuais.
Bauman (2004a) aponta que, com o enfraquecimento das
instituições tradicionais nos tempos atuais, cabe aos indivíduos a
responsabilidade por suas ações e escolhas. Desse modo, as pessoas
passam a conviver com os sentimentos de insegurança e incerteza
que a modernidade líquida ocasiona. Sendo assim, as características
e valores sociais influenciam e, comumente, são sentidas e refletidas
também pelos jovens, que manifestam e sofrem, cada vez mais,
insegurança, instabilidade e confusão e desamparo por não saberem
o que devem fazer e como orientar suas escolhas mais importantes
do ponto de vista existencial, tais como: vida afetiva, casamento,
profissão.
Bauman (2011) aponta para as dificuldades relacionais, para a
desorientação existencial e para os diversos sofrimentos psicológicos,
como desamparo, ansiedade, solidão e insegurança, experimentados
pela juventude na modernidade líquida. De acordo com sua leitura e
propostas teóricas, merece atenção por ser preocupante a situação de
parcela significativa da juventude atual. Um dos principais sintomas que
ela apresenta é expresso e pode ser constado em sua alienação ante
o volume gigantesco de tecnologia que hoje ela tem à sua disposição.
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 31
Mirtes Leite Pereira

Assim, tem-se que, para muitos jovens

“Fazer contato com o olhar, reconhecendo a proximidade


física de outro ser humano, parece perda de tempo (...). Numa
vida de contínuas emergências, as relações virtuais derrotam
facilmente “a vida real”. Embora os principais estímulos para
que os jovens estejam sempre em movimento provenham
do mundo off-line, esses estímulos seriam inúteis sem a
capacidade dos equipamentos eletrônicos de multiplicar
encontros entre indivíduos, tornando-os breves, superficiais
e sobretudo descartáveis. As relações virtuais contam com
teclas de “excluir” e “remover spams” que protegem contra as
consequências inconvenientes (e principalmente consumidoras
de tempo) da interação mais profunda.” (BAUMAN, 2011, p. 23)

As dinâmicas e os valores cultivados nos limites de uma família


devem ser considerados elementos fundamentais da constituição da
visão de mundo que os jovens desenvolverão, o que terá impacto
direto na forma como se relacionarão com o mundo, com a sociedade
e consigo mesmos. Ao se deparar com um mundo fragmentado, em
constante transformação, com valores confusos, desvalorização do
comprometimento com o outro e supervalorização do consumo,
a família pode assumir e encampar essa realidade. Caso realisso
aconteça, o ambiente que será oferecido aos jovens será semelhante
com o contexto social e cultural que o cerca. Essa realidade poderá ser
desfavorável para que ele construa referenciais sólidos e desenvolva um
sentido para sua vida saudável. Caso isso ocorra, diversos problemas
poderão surgir (SOUZA; CHAVES, 2017).
Zappe e Dapper (2017) destacam que as disfunções familiares não
determinam por si o comprometimento nocivo do desenvolvimento
dos jovens, porém, podem exercer forte influência sobre os rumos
que eles irão decidir seguir na vida. Diante isso, sublinham esses
autores que a família é essencial para o desenvolvimento saudável
dos jovens e que aspectos familiares podem ser fatores de risco e
também de proteção para eles, no sentido de evitar ou potencializar
comportamentos como o uso de drogas, de consumo excessivo de
bebidas alcoólicas e violência.
Os apontamentos feitos por Zappe e Dapper (2017) estão de
32 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes
O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência familiar

acordo com as observações de Flank (2005), para o qual, o fenômeno


de massa que caracteriza a juventude na contemporaneidade é o
vazio existencial desencadeado pela impossibilidade de se atender a
motivação primária do ser humano: a vontade de sentido. Assim, a
situação que se instala é a de um mal-estar na civilização entre muitos
jovens e que se manifesta através do tédio e da sensação de que a vida
não tem sentido. Em termos sociais, o que tem aparecido em grande
escala são os seguintes sintomas: drogadição, agressão e suicídio.
Abordando a questão e problemática do vazio existencial da
juventude do ponto de vista psicoterapêutico, Aquino et al. (2011)
relatam uma proposta de prevenção e atuação realizada com um
grupo de estudantes adolescentes em uma escola pública de Campina
Grande (PB), no ano de 2011, o qual teve como participantes 33
indivíduos matriculados no segundo ano do ensino médio, sendo 11
do sexo masculino e 22do sexo feminino, com idade média de 16,5
anos e amplitude de 14 a 18. Os participantes foram distribuídos de
forma aleatória em dois grupos: um grupo experimental e um grupo
controle. Para assegurar a cientificidade do experimento, além das
técnicas de entrevista e observação, os pesquisadores utilizaram um
instrumento denominado Teste de Propósito de Vida, cuja finalidade é
aferir o construto sentido de vida em suas graduações: o grau de vazio
existencial bem como o nível de realização de sentido na vida. Esse
teste foi originalmente desenvolvido pelos pesquisadores americanos
James C. Crumbaugh e Leonard T. Maholich no ano de 1964.
Os jovens do grupo experimental participaram de um programa de
intervenção denominado prevenção do vazio existencial, com o objetivo
de aumentar a sensação de sentido de vida. Conforme apontado
por esses pesquisadores, as intervenções psicoterapêuticas grupais
realizadas, tais como partilha, escuta, esclarecimentos, motivação,
ajuda mútua, mostraram-se eficazes. Os resultados foram levantados
através de testes psicológicos, observação e relatos dos participantes.
Constatou-se que o grupo terapêutico atuou destacadamente na
melhora e na promoção do desenvolvimento da sensação de sentido
de vida, uma vez que foi constatado um aumento do nível de realização
existencial bem como diminuição dos níveis de desespero e de vazio
existencial dos participantes do grupo experimental.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 33


Mirtes Leite Pereira

6. Considerações finais
Procurou-se apresentar, ao longo deste trabalho, a relação entre
a formação de sentido para a vida na juventude da atualidade, as
principais características do mundo em que vivemos que vimos estar
marcado pela liquidez de valores, consumismo e hedonismo e os valores
familiares, principalmente sob a perspectiva social e psicológica.
A família é ainda uma instituição muito importante para a educação, o
fornecimento de referenciais e o desenvolvimento de valores saudáveis
para a juventude. Quando as funções educacionais e referenciais da
família são abaladas, pode-se pensar que os jovens poderão sofrer
sérias consequências, manifestas em: drogadição, desmotivação, uso
excessivo de bebidas alcoólicas, violência e até mesmo suicídio. A esse
quadro chamamos vazio existencial da juventude.
A família não pode ser responsável integralmente pela realidade
bastante comum de vazio existencial da juventude, pois ela também
tem sido contaminada pelos valores de um mundo líquido, marcado
pela exaltação da imagem externa, pelo consumismo e pela relativização
dos valores, valores esses que, no entanto, devem ser repensados, pois
podem ter influência negativa na tarefa dos jovens em construir um
sentido para suas vidas (FLANK, 2005). Há diversas medidas que podem
ser tomadas, dentre elas: campanhas de conscientização, melhoria do
sistema educacional, oportunidades de emprego, lazer e esportes.
Como ciência que busca compreender, de diversas perspectivas,
o comportamento e as motivações humanas, a atuação da Psicologia
é indispensável para o esclarecimento das influências que o mundo
líquido atual exerce sobre as famílias e o modo como estas estão
influenciando, por sua vez, a juventude. O esclarecimento por
parte da Psicologia sobre essa situação deve ser acompanhado por
programas de orientação e intervenções que possam contribuir para
que os jovens sejam capazes de construírem sentidos saudáveis para
sua vida, principalmente com base no desenvolvimento de propósitos
e objetivos também saudáveis.
Os levantamentos realizados indicam que há poucos estudos
realizados e disponíveis sobre a problemática do sentido da vida entre
a juventude da atualidade. Há estudo que indica a eficiência de grupos
terapêuticos, que podem então ser considerados como importante
34 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes
O vazio existencial entre os jovens: um estudo sobre a influência familiar

ferramenta da Psicologia, para a prevenção do vazio existencial na


juventude e também para o aumento de sua sensação de sentido
da vida. Sendo assim, consideramos que é de grande importância
e urgência que mais estudos devam e possam ser realizados pela
Psicologia, envolvendo também outros profissionais, como sociólogos,
assistentes sociais, médicos, terapeutas educacionais e educadores
com a finalidade de prevenir e combater o vazio existencial dos jovens,
uma vez que essa questão tem fortes repercussões tanto individuais
como sociais e coletivas, conforme discutido no trabalho.

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Sobre a autora

Mirtes Leite Pereira


Estudante de graduação do 10º período de
Psicologia da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).
E-mail: mirtes-2010@hotmail.com

Orientadora: Alaíde de Souza

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 37


3

Estéticas da existência e
transformações no âmbito
das juventudes: cenas de
um estudo com jovens
vivendo com HIV/AIDS
Aesthetics of existence and
transformations in the framework of
youth: scenes of a study with young
people living with hiv/aids
Lara Brum de Calais
Juliana Perucchi

38 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

Resumo

Este capítulo discute estética, política e juventudes, articulando análi-


ses e sínteses que possam gerar pontos de inflexão para a abertura de
alternativas na concepção do dissenso como acontecimento com po-
tencial de fissura nas formas hegemonicamente instaladas dos modos
de se fazer política. A partilha do sensível como ferramenta conceitual
permite ao texto avançar nas reflexões acerca das juventudes e as pos-
sibilidades de transformação política. Isso, amparada em estudos da
Psicologia e Filosofia Política – especialmente nos aportes conceituais
de Jacques Rancière – que compreendem a dimensão estética como
um sistema que determina o que se faz sentir, à medida que incide um
recorte no espaço e dá ordem ao visível e ao invisível. Metodologica-
mente, as linhas que desenham o capítulo versam sobre três sínteses
que reúnem recortes de análises sobre as temáticas sinalizadas, cir-
cunscrevendo-as mais especificamente: na compreensão da dinâmica
da partilha sensível (1); no nó de instalação da cena polêmica dissensu-
al (2); nas fissuras na estética sensível (3). O texto analisa os modos de
se produzir política e as condições de possiblidade para que as juven-
tudes possam atuar na reinvenção de modelos políticos que operam
na sociedade, especialmente na configuração do que chamamos de
estética da juventude. O capítulo é oriundo de uma pesquisa de tese
de doutorado junto a jovens vivendo com HIV no Brasil, no entanto,
ao transcender tal estudo original, propõe analítica psicopolítica que
aponta para as possíveis brechas oportunizadas pela acontecimenta-
lidade dissensual, e para a abertura de um novo espaço na estética
sensível a partir do qual potencializam-se outras formas de vida.

Palavras-chave: Estética. Juventudes. Psicologia Política. HIV/Aids.

Abstract

This chapter discusses aesthetics, politics and youth, articulating


analyzes and syntheses that can generate inflection points for opening
alternatives in the conception of dissent how event with a potential
for cracking the hegemonically installed forms of ways of making po-

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 39


Lara Brum de Calais, Juliana Perucchi

litics. The notion of distribution of the sensible how conceptual tool


allows this text to advance reflections on youth and the possibilities for
political transformation. This, supported by studies of Psychology and
Political Philosophy - especially in the conceptual contributions of Ja-
cques Rancière - that understand the aesthetic dimension as a system
that determines what is felt, as it affects a cut in space and gives order
to the visible and the invisible.In the methodological aspect, the lines
that draw the chapter deal with three syntheses that bring together cli-
ppings of analysis on the themes identified, circumscribing them more
specifically: in understanding the dynamics of sensitive sharing (1); at
the installation node of the controversial dissensual scene (2); in the
cracks of sensitive aesthetics (3).The text analyzes the ways of produ-
cing politics and the conditions of possibility for youths to act in the
reinvention of political models that operate in society. It is a chapter
from a doctoral thesis research with young people living with HIV in
Brazil. however, in transcending such an original study, he proposes
psychopolitical analytics capable of understanding that in the possible
gaps made possible by dissensual events, and for opening a new space
in the sensitive aesthetic from which other forms of life are enhanced.

Keywords: Aesthetics. Youths. Political Psychology. HIV/Aids.

1. Introdução

As configurações sócio-histórico-culturais, aliadas a conjunturas


econômicas, há muito, incidem sobre os modos de se produzir ações
políticas e projetos de sociedade que se colocam em marcha sob a pro-
posição de discursos hegemônicos (PRADO, 2002; MACHADO, 2013;
RANCIÈRE, 2010a). Assim, também afetam a construção de contextos
múltiplos para a constituição de juventudes atravessadas pelas preca-
rizações da vida, pelas crises políticas, pelas fragilidades de políticas
públicas, entre outros fatores (CASSAB, 2007).
Considerando tais elementos de construção das realidades sociais,
mais especificamente no contexto brasileiro, o presente capítulo reali-
za um recorte temático na intenção de refinar a análise sobre os aspec-
tos estéticos da distribuição sensível, relacionando-os com a constitui-

40 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

ção das juventudes. Nesse sentido, o manuscrito parte das (ou situa-se
dentre as) problematizações sobre os modos de se produzir política e
as condições de possiblidade de que as juventudes possam atuar na
reinvenção de modelos políticos que operam a/na sociedade.
O intento abordado por esse capítulo tem como base inicial as aná-
lises realizadas em uma pesquisa de doutorado de uma das autoras,
trazendo recortes ilustrativos do campo de pesquisa junto a jovens vi-
vendo com HIV/Aids, especialmente aqueles/as que participam de co-
letivos e/ou movimentos sociais. Superando o próprio escopo da tese,
as discussões aqui ampliadas trazem reflexões sobre o tema para a plu-
ralidade das juventudes existentes. Assim, reúnem-se aqui temáticas
relacionadas à estética, política e juventudes, articulando análises e
sínteses que possam gerar pontos de inflexão para a abertura de alter-
nativas na concepção do dissenso como acontecimento com potencial
de fissura nas formas hegemonicamente instaladas dos modos de se
fazer política.
As problematizações apresentadas assumem posição crítica, circu-
lando entre os estudos da Psicologia Política, associados a leituras so-
bre processos de subjetivação e sociedade. Para tanto, as discussões
sobre estética e política se dão apoiadas, sobretudo, na perspectiva do
filósofo Jacques Rancière. Com isso, as linhas que desenham o capítu-
lo versam sobre três sínteses que reúnem recortes de análises sobre
as temáticas sinalizadas, circunscrevendo-as mais especificamente: na
compreensão da dinâmica da partilha sensível (1); no nó de instalação
da cena polêmica dissensual (2); nas fissuras na estética sensível (3).
Essas, atravessadas por discussões que compõem a existência das ju-
ventudes no cenário contemporâneo.

2. Estética, juventudes e política

Ao colocar as juventudes como foco deste trabalho, aproximamo-


-nos do referencial de autores e autoras que entendem a juventude
enquanto um campo múltiplo e atravessado por intervenções, es-
pecialmente em sua relação com o Estado (MATTOS; CASTRO, 2009;
MAYORGA; CASTRO; PRADO, 2012). Concepções de efemeridade, de
imaturidade, de ‘problema social’ ou de ‘potencial solução’, além de

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 41


Lara Brum de Calais, Juliana Perucchi

serem pouco úteis do ponto de vista analítico, contribuem para a legiti-


mação de processos de gestão que engendram um certo protagonismo
tutelado sobre a juventude (CALAIS; PERUCCHI, 2018). Ou seja, reifica-
-se uma manutenção da tutela adulta e da autorização para uma ges-
tão sobre a juventude, no âmbito da governamentalidade (FOUCAULT,
1998), sob agência do Estado.
Assim, diante do campo problemático das concepções histórico-po-
líticas sobre as juventudes, situaremos as discussões sob a perspectiva
da dimensão estética. A aposta, portanto, está na análise da composi-
ção da configuração sensível com potencial de transformação dos es-
paços e relações. Isto pois, a noção de estética empregada neste capí-
tulo sugere a análise da experiência sensível como aquela atravessada
tanto pela alocação dos corpos, quanto pelo acontecimento dos fatos,
distribuição das vozes legitimadas (ou não), conformação das partes e
modos de posicionamentos (RANCIÈRE, 1996a).
Afirmar a estética é, portanto, lançar atenção para o nível de orga-
nização espaço-temporal que engendra a experiência sensível, visível
e invisível. É reconhecer as nuances que compõem certo ordenamento
sensível sobre o mundo, instalando agenciamentos sobre os modos de
estar, circular, ter/ser parte da comunidade e ter/ser voz pulsante na
sociedade. Para Rancière (1996a; 2009), a estética trata de um sistema
que determina o que se faz sentir, à medida que incide um recorte no
espaço e dá ordem ao visível e ao invisível.
Portanto, a estética como um sistema sensível, configura a gestão
do comum compartilhado em sociedade (RANCIÈRE, 2009). Esse co-
mum configurado pela estética aponta para o agenciamento de luga-
res e jogos da política como experiência, em uma partilha do mundo
sensível que opera para hierarquizar a distribuição das partes de uma
comunidade, atribuindo valor a estas existências e à ocupação de lu-
gares (MACHADO, 2013). À esteira da conceituação proposta por Ran-
cière (2009, p.16), denomina-se então como partilha do sensível um
sistema de evidências da ordem do sensível e não apenas dos sentidos,
que revela a existência de “um comum”, mas também de lugares es-
pecíficos. Nas palavras do autor, "como o sistema das formas a priori
determinando o que se dá a sentir” (RANCIÈRE, 2009, p.16).
As relações entremeadas pelo nível estético de composição da vida,

42 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

são também atravessadas pelo eixo de desigualdade que impõe distin-


tas realidades e modos de subjetivação no contexto latino-americano
e brasileiro. As bases coloniais, racistas e patriarcais incidem também
sobre os modos a partir dos quais as distribuições do sensível se da-
rão. Ou seja, a distribuição desigual das partes da sociedade é também
organizada na esfera da estética do sensível, inferindo modos, formas,
divisões e organizações que orquestram e governam as condições de
possibilidade de existência (PELLEJERO, 2009).
Assim, a relação entre estética e política faz-se premente, tendo
em vista que as produções subjetivas e objetivas tecidas a partir das
dinâmicas perpetradas pelo histórico de desigualdade social, forjam
também processos de distribuição sobre as partes da sociedade, atra-
vessadas por lógicas excludentes, opressoras e colonizadoras sobre
os modos de existência. Pois, se a estética movimenta um recorte no
espaço e dá ordem ao visível e ao invisível, a política retrata o que
é visto e o que se diz sobre o que é visto, mas também sobre quem
tem as qualidades necessárias para ver e dizer no espaço, demarcando
a estreita relação entre estética e política (RANCIÈRE, 2009). Imbrica-
das, essas esferas (estética e política), formam análises promissoras ao
campo da Psicologia Política, apontando, por exemplo, relações entre
as formas políticas e modos de subjetivação.
Entender o funcionamento das lógicas que instauram a partilha do
sensível torna-se fundamental para que as temáticas que abalam o or-
denamento estético possam ser reconhecidas como tal e não como in-
cômodas relações que precisam ser neutralizadas (PELLEJERO, 2009).
Tal fato, aproxima as reflexões desse texto da noção de ‘estética da ju-
ventude’, pois problematiza a inclusão das discussões sobre os modos
e performances que se fazem incômodas em sociedade, ou mesmo
apresentam-se como indigestas, incontroláveis ou indesejáveis.
Compreender essa indesejabilidade – parte da reprodução do mo-
delo convencional adultocentrado – perante a pluralidade das exis-
tências e performances jovens aos moldes adultos, brancos e hete-
ronormativos da sociedade, impele a discussões sobre as condições
de possibilidade de ruptura com formatos hegemônicos e silenciado-
res de operação da política enquanto prática de construção da vida.
Neste sentido, o reconhecimento da dimensão estética e dos efeitos

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 43


Lara Brum de Calais, Juliana Perucchi

das performances jovens – especialmente quando entendidas como


uma certa subversão ao sistema de normas vigentes – pode funcionar
como caminhos de fissura a lógicas de dominação e colonização dos
corpos. Argumenta-se, portanto, que o “corpo performático” (RAN-
CIÈRE, 2010a, p.110) da comunidade seria reconfigurado a partir de
uma certa performatividade – no sentido butleriano (BUTLER, 2015),
como posicionamento de elegibilidade – pela estética da existência
das juventudes.
As experiências estéticas das juventudes, portanto, podem inferir
um potencial de reconfiguração metodológica e, também, epistemo-
lógica na ordem hegemonizada. Reorganizando, sob outras narrativas,
a distribuição do espaço sensível (PELLEJERO, 2009), especialmente de
circulação das juventudes nos contextos em que se pautam ações polí-
ticas. Pois o posicionamento não hegemônico pode acontecer enquan-
to “politicidade sensível” (RANCIÈRE, 2009, p.20), quando a estética
se faz política através da reconfiguração da partilha do comum, como
modo de (re)invenção sobre a vida e sobre sua distribuição de espaços.

3. Aspectos metodológicos

O desenho empregado para o desenvolvimento das ideias aqui


abordadas compreende um ensaio com base no caminho percorrido
durante a pesquisa de doutorado de uma das autoras, finalizada em
2018, cuja problemática de investigação ocasionou a aproximação
junto a jovens vivendo com HIV/Aids, que se organizavam – política e
coletivamente – para pautarem demandas relacionadas às suas expe-
riências, junto às instâncias governamentais (federais e estaduais). Por
meio do delineamento da Pesquisa Etnográfica (FONSECA, 1999) foi
possível acompanhar (entre 2014 e 2018) a experiência dos/as jovens
da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/Aids (RE-
NAJVHA), problematizando os modos de subjetivação atravessados
pelas dimensões de participação social e política e a insurgência dessa
rede enquanto sujeito político (RANCIÈRE, 2009).
Desta forma, o presente capítulo lança mão de fragmentos de aná-
lise do material de campo advindo da pesquisa anteriormente citada –
entendendo-os como recortes ilustrativos e disparadores de análises –

44 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

para problematizar as dimensões estéticas envolvidas na participação


social e política das juventudes. A partir desse material de pesquisa
etnográfica, foram juntadas três sínteses argumentativas, que circuns-
crevem pontos de inflexão para se pensar a atuação das juventudes no
campo político. Essas sínteses, emergem de análise anterior advinda
do processo etnográfico de pesquisa, porém, adquire refinamentos
nesse capítulo, sinalizando pontos específicos acerca do que chama-
mos aqui de “estética da juventude”. São elas: 1) as dinâmicas relacio-
nadas à partilha do sensível e a distribuição das partes dos espaços;
2) a instalação do acontecimento dissensual ou cena polêmica como
possibilidade de desestabilização da ordem; e 3) as produções advin-
das das fissuras na estética do sensível, dentre elas, a possibilidade da
estética da juventude.
Tal intento, aponta para os processos que ocasionariam a emergên-
cia de condições disruptivas com a estética de distribuição desigual das
partes da comunidade a partir da existência, circulação e participação
jovem nos espaços. Assim, expande as discussões para as distintas ju-
ventudes produzidas pelas realidades sociais e políticas contemporâ-
neas, especialmente em seu o nível estético.

4. Debates sobre dissensos, fissuras e a produção da estética da


juventude

No emaranhado das discussões sobre as configurações dos modos


de ser jovem na sociedade brasileira atual, as análises e as indagações
aqui realizadas concentram-se nas dinâmicas de ruptura na partilha do
sensível em seus formatos hegemônicos, oportunizada por modos que
escapam das normativas neutralizadoras e silenciadoras das diferen-
ças. Por isso, nesse capítulo as juventudes aparecem como um acon-
tecimento capaz de operar fissuras na dinâmica sensível dos espaços.
Modos de ser, estar, sentir jovem que – atravessados pelas diferenças
e marcas sociais de raça, classe, gênero, território, entre outras que en-
gendram formas desiguais e precarizadas de vida – abalam dinâmicas
anestesiadas pelo governamento ou policiamento (FOUCAULT, 1998;
RANCIÈRE, 1996b) que ensejam políticas de subjetivação para a manu-
tenção da ordem.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 45


Lara Brum de Calais, Juliana Perucchi

Considerando as linhas que desenham as discussões aqui levanta-


das, três sínteses que reúnem recortes de análises, serão trabalhadas
no sentido de guiar as problematizações. A primeira síntese refere-se
à compreensão da partilha do sensível (1), onde aponta-se, portanto,
para o reconhecimento dos espaços e dos modos como a distribuição
destes coloca em prática um certo ordenamento, orientando constru-
ções sobre a relação entre a estética e a política. Ou seja, “uma forma
de mapeamento do visível, uma cartografia do visível, do inteligível e
também do possível” (RANCIÈRE, 2010b, p. 87), perpetrada pelo regi-
me estético.
Considerando que na composição estética dos espaços, designam-
-se funções e lugares a partir de uma tarefa distributiva sobre as par-
tes da comunidade; estabelece-se uma dinâmica sensível de gestão
objetiva e subjetiva da organização espaço-temporal que autoriza ou
anula possibilidades de circulação, cria ou inibe condições de possibi-
lidades de existência, forja desaprovações ou recompensas sobre os
modos de estar nos contextos e territórios, entre outras relações que
podem potencializar agência ou tornar abjetas as experiências de vida
de determinados corpos nos espaços de sociabilidade, mas também,
de governamentalidade.
Nesta dinâmica, o regime estético de partilha sensível opera nuan-
ces de composição dos espaços que refletem intenções, jogos, forças e
fluxos das relações que ali se desdobrarão. Como exemplo, nas cenas
analisadas na referida pesquisa, os arranjos de circulação aconteciam
entre espaços políticos, acadêmicos e afetivos que se enfeixavam nos
encontros realizados pelas redes de jovens vivendo com HIV/Aids, pro-
duzindo relações que operavam a distribuição sensível e a circulação
dos corpos e vozes nos cenários de produção da participação política
da juventude. Assim, as temáticas sobre juventude, HIV/Aids, sexuali-
dades, prevenção, saúde, participação social, preconceitos, entre ou-
tras, transitavam entre espaços – objetivos ou subjetivos – que davam
condições de existência ou velavam/negavam suas possibilidades de
atuação.
Produziam-se, assim, a) espaços nos quais o tom e a dinâmica que
se faziam necessários eram de ordem e de “seriedade” para aquelas
discussões reconhecidas como da arena política; b) outros em que o

46 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

discurso acadêmico colocava a juventude em uma distribuição estética


de ouvinte/aprendiz; e c) aqueles nos quais as dimensões afetivas e
experiências da sexualidade, do erotismo ou mesmo aquelas ligadas à
emoção e aos sentimentos interpessoais, tornavam-se mais evidentes.
Tais linhas de formação espaço-temporais que incidem sobre as
dinâmicas relacionais funcionam, portanto, sob efeito de uma engen-
drada distribuição das posições e funções nos espaços (RANCIÈRE,
1996b), traduzindo representações e modelos vigentes na sociedade –
neste caso, um modelo adultocentrado de fazer política. Assim, as lógi-
cas de abafamento das existências que fariam emergir outras possíveis
articulações políticas são perpetradas, tendo em vista que esses outros
modos ocupariam o lugar do ‘dano’ que revelaria a contingência – e
possível falência – do regime de manutenção da ordem hegemônica
(RANCIÈRE, 1996b).
Um segundo aspecto das sínteses analíticas da pesquisa (2), con-
siste no nó de instalação da cena polêmica, como ponto de encontro
que afirma o dissenso como parte do acontecimento da política. A ins-
tauração do dissenso enquanto “cena polêmica” (RANCIÈRE, 2010a)
coloca em movimento uma verificação da distribuição das partes, pois
questiona as formas pelas quais determinadas posições e lugares fo-
ram cristalizados em seus matizes hegemônicos e hierarquizados.
Há nesse entremeio, forças que trabalham na manutenção das ló-
gicas e políticas de subjetivação que alimentam os modelos desejados
para a sociedade; assim como outras que projetam insurgências no
modo comum compartilhado. Há de se ressaltar, que a organização do
regime estético vigente, supostamente amparado em uma consensu-
alidade, apoia-se em sustentáculos racistas, burgueses, colonizados e
patriarcais históricos, que incidem processos de padronização e anula-
ção sobre o dano – como insurgência – ou dissenso.
Neste sentido, o que atravessa a suposta composição consensual
do comum enquanto cena polêmica dissensual, pode ser caracterizado
como dano, como objeto de exercício do controle, como alvo de abje-
ção e exclusão, objetiva e subjetiva. Nos recortes de cenas observados
na pesquisa que ilustra esse texto, uma parte das lógicas de apreen-
são sobre a juventude se debruçavam sobre um certo especialismo
construído em torno do ativismo do HIV/Aids. Tanto na esfera governa-

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 47


Lara Brum de Calais, Juliana Perucchi

mental, quanto na esfera interpessoal, reproduziam-se ideais sobre a


participação social e política jovem, a partir de um modelo adultocên-
trico de produção política. Como exemplos, narrativas de normatiza-
ção sobre as práticas e performances jovens, com base na imagem de
uma juventude saudável e ordeira, faziam-se presentes nos espaços; o
apagamento de subjetividades envolvidas na relação com o HIV, sob o
formato de uma homogeneização das experiências jovens; a (re)pro-
dução de uma ideia de desordem ou “imaturidade política” em torno
da ação política da juventude, dentre outros pontos que funcionavam
a serviço de uma manutenção consensual das estruturas de poder.
A tarefa de anulação do dissenso – muitas vezes operado pelos
modos jovens de atuar na construção política – também se concre-
tiza enquanto tarefa distributiva no espaço e tempo. Ou seja, infere
certa ordem distributiva sobre quem pode ocupar determinados es-
paços e sobre como conformam-se as legitimidades sobre as vozes e
corpos que circulam nos mesmos. Há o engessamento de um constan-
te “aprender como fazer” sob o manto do modelo adulto, no qual a
juventude situa-se referenciada a partir de uma certa “máscara”, como
argumentam Benjamin e Osborne (1997), forjada pelo uso da experi-
ência designada ao modelo adulto. A experiência como máscara é im-
penetrável, ou seja, ela vai sempre se manter como justificativa do que
já foi experienciado pelos adultos, em detrimento da experiência dos
jovens. No entanto, a crítica de Benjamin provoca no sentido de com-
preender que a experiência adulta constrói uma ilusão sobre o mundo,
produzindo certa autoridade que intimida a juventude. Essa máscara
opressora da experiência adulta limita, portanto, as possibilidades de
busca pelo novo da juventude (LIMA; BAPTISTA, 2013).
Neste panorama, os discursos homogeneizantes sobre as experiên-
cias das juventudes, assim como a captura da possibilidade de emer-
gência de uma outra forma política – que cria linhas de fuga para o
modelo adulto, branco, médio – operam para o ideário de uma supos-
ta igualdade. Contudo, tal processo se dá pela anulação de dissensos
e não por seu reconhecimento, indicando a existência da igualdade
como operador de manutenção da lógica consensual e não para a
abertura de espaço de dissenso, necessário para a existência da políti-
ca (RANCIÈRE, 2009).

48 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

Um terceiro e último aspecto a ser destacado nessas sínteses (3)


concerne às fissuras na estética do sensível. Tal articulação aproxima
as análises sobre como circular, ocupar, atuar e existir nos espaços,
implica em movimentar a estética sensível. Nesse sentido, recortare-
mos o foco para o possível abalo produzido na ordem naturalizada e
legitimada na comunidade – já indicado nas análises sobre o estabe-
lecimento do dissenso – que aqui serão abordadas como fissuras (ou
intervalos) que criam condições para outros fluxos e sentidos de exis-
tência política.
As possibilidades de ruptura estética acontecem em meio aos pro-
cessos que instauram lógicas de regulação da vida e impõem formas
e normas sobre a distribuição dos espaços sensíveis da comunidade.
Neste âmbito, o olhar sobre as juventudes em suas plurais condições
de existência faz-se necessário, pois estes e estas jovens constroem-
-se objetiva e subjetivamente em meio a forças que funcionam como
manutenção ou extermínio de suas vidas. Isso, associada a uma leitura
de que a distribuição desigual da estética do sensível aponta para a
construção de lugares distintos e com possibilidades de existência de-
siguais, envolvidos em uma teia complexa de marcadores sociais que
se desdobram em atos cotidianos de operacionalização da desigual-
dade. Nessa teia, marcadores de classe, raça/etnia, gênero, geração,
território, sexualidade, escolaridade, entre outros, movimentam me-
canismos que fazem da diferença, dispositivos de opressão e manu-
tenção de lógicas de assujeitamento (MACHADO, 2013; PRADO, 2002;
ZAMBONI, 2014). Forjam-se, portanto, desenhos precários e violentos
que fabricam hierarquias e invisibilidades, colocando determinados
corpos (jovens) com maiores ou menores condições de existência na
sociedade (BARROS; BENÍCIO, 2017).
Desta forma, a engrenagem que faz funcionar a gestão da partilha
do sensível e a distribuição (desigual) das partes é tomada como legí-
tima e incide processos de captura, à serviço da manutenção de uma
ordem ou de um modo de se fazer política vinculada a uma visão con-
sensual e objetiva. Contudo, é justamente na diferença que a juventu-
de implementa como acontecimento nos espaços, que se produziria
uma outra forma de fazer política.
Nos momentos de realização da pesquisa que ilustra esse texto,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 49


Lara Brum de Calais, Juliana Perucchi

os conflitos, brincadeiras, subversões e performances existentes no


processo político das Redes de jovens vivendo com HIV/Aids, por ve-
zes, foram compreendidos como equivocados, diante de um modelo
adulto-envelhecido supostamente correto de se pensar e praticar a
política. Contudo, argumenta-se que é justamente na inversão propos-
ta pela diferença anunciada pela estética da juventude, que segundo
Calais e Perucchi (2018, p. 121), podem se configurar “um outro modo
de ação, um modo que denuncia os agenciamentos e se recusa ao en-
quadramento”.
A compreensão da dinâmica da juventude em determinados espa-
ços provocaria, portanto, a interrupção de uma lógica desigual de dis-
tribuição dos lugares e partes da sociedade. Pois, há no reconhecimen-
to da constituição de uma fissura na estética sensível, um potencial de
inversão onde, o dano, que assumiria lugar de silenciamento e neutra-
lização, emerge como cena polêmica que instalaria o litígio necessá-
rio para a reconfiguração sensível (RANCIÈRE, 1996b). Para elucidar o
movimento proposto na analítica até aqui tratada, elaboramos abaixo
um diagrama que reúne as leituras e forças envolvidas no processo de
possível ruptura com modos hegemônicos de funcionamento estético,
para a abertura de fissuras a partir das quais possam emergir outros
fluxos e existências.

Diagrama 1 – Das condições de produção de fissuras na estética sensível

Fonte: Elaborado pelas autoras

50 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

Considerando o diagrama elaborado, a cena dissensual aparece


enquanto acontecimentalidade, ou seja, como ato em forma política
e condição de transformação, que enseja abalos em existências
cristalizadas das formas de vida (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Neste
sentido, em contraposição às forças hegemônicas de manutenção de
uma ordem consensual e neutralizante – de acordo com o projeto de
sociedade vigente – o dissenso enquanto acontecimento oportuniza
fissuras na estética do sensível, que aparece como um “entre” as forças
de composição da partilha. Desta forma, o abalo representado pelas
linhas em espiral, apontam as possibilidades de dobra e encontros
de conexão que criam condições de emergência de intervalos, a
partir dos quais outros fluxos de existências fazem-se possíveis. É
neste desdobrar de fluxos que se produz a dimensão estética da(s)
juventude(s), também enquanto ato possível, impermanente, potente
e desestabilizador de uma ordem hegemônica de manutenção das
formas políticas.
O nó na relação da partilha do sensível abre espaço para as inversões
no que já se encontra determinado e que, na realidade brasileira, instala-
se sob bases desiguais. Assim, a dimensão estética da(s) juventude(s)
pode atuar como ponto de inflexão ao instaurar a cena polêmica na
esfera política. Ocasionando que as ideias de excentricidade juvenil na
participação social e política, surjam também como possibilidades de
brechas na configuração estética sensível. Assim, pode-se romper ou,
pelo menos, desestabilizar projetos de silenciamento e invisibilidade
vigentes, ousando, a partir do abalo à estética sensível – como com
práticas artísticas, por exemplo – gerar incômodos e criar condições de
visibilidade e dizibilidade a vozes antes silenciadas ou, na relação com
Ranciére (1996b), de um entendimento que passa a ouvir como voz, o
que antes era ouvido somente como barulho.
Não à toa, as ações de silenciamento das juventudes se dão,
sobretudo, na inviabilização da circulação dos corpos, na violência
que retira corpos jovens – e, majoritariamente negros e periferizados
– dos espaços cuja distribuição sensível opera sob bases racistas,
capitalistas, patriarcais e, no caso brasileiro, com bases coloniais. Os
exemplos cotidianos fazem-se constrangedoramente presentes: nas
operações policiais em territórios de periferia; nas proibições da cultura

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 51


Lara Brum de Calais, Juliana Perucchi

jovem; na coerção e vigilância das circulações coletivas (tais como os


“rolezinhos”); no genocídio da população negra e jovem (INSTITUTO
DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2019); na despotencialização
das ações da juventude como modo de fazer política(o) (CALAIS;
PERUCCHI, 2018); entre outros.
Portanto, é preciso estarmos atentos e atentas aos acontecimentos
que irrompem a cena e dão condições de produção de outros fluxos de
existência. Pautar as ações que colocam em circulação o tratamento
do dano, a emergência da fissura em ato, sustentando as disputas em
torno de hierarquias naturalizadas. Reconhecer que o nó produzido
pela experiência estética jovem cria as condições para a existência da
política em uma forma reinventada, subvertendo visões que competem
no sentido de estratificar ou manter a desigual composição das partes.

5. Considerações finais

Para fins de conclusão, os fios de análise que foram levantados


ao longo da escrita, nos apresentam alguns caminhos analíticos que
versam sobre potenciais argumentos para as discussões no âmbito
da Psicologia Política. Isso pois, desde a compreensão da distribuição
espacial e circulação dos corpos, até a produção de outros fluxos
possíveis mediante a ordem consensual hegemônica, intentou-se
construir reflexões que acenassem para a produção de existências
menos desiguais e vidas mais vivíveis (BARROS; BENÍCIO, 2017).
Especialmente nos casos que envolvem as juventudes – e mais ainda,
jovens negros/as, pobres e periferizados – muitas vezes, a própria
existência implica em resistência aos modos violentos e precarizados
com que se conduzem as ações destinadas a esse público.
Dessa forma, entende-se que nas possíveis brechas oportunizadas
pela acontecimentalidade dissensual, abre-se um novo espaço na
estética sensível a partir do qual potencializam-se as situações nas
quais algum abalo produz outras formas de vida. A aposta por nós
apontada dirige-se à análise da estética da juventude – enquanto
campo, performance e existência – tanto como fluxo possível de abalo,
quanto de produção de um novo modo de ação política, advinda da
fissura nos processos cristalizados. Assim, os processos de ruptura

52 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Estéticas da existência e transformações no âmbito das juventudes: cenas de um estudo
com jovens vivendo com HIV/AIDS

dos atos dissensuais podem questionar a organização dada, abrindo


espaço para a emergência de um movimento que se fortaleça quando
na existência de um intervalo que flexiona as relações desiguais
estabelecidas. A estética da juventude aparece, portanto, como um
operador que se localiza como um “entre” produzido na dinâmica das
relações.
Em meio à maquinaria de produções objetivas e subjetivas,
identificar os pontos de fissura torna-se valioso para os estudos da
Psicologia Política, tendo em vista que coloca-se em questão uma
analítica que lança olhar sobre aquilo que se faz no intervalo. Ou,
como aponta Rancière (1998, p. 118), numa “falha: um ser-juntos
como ser-entre: entre os nomes, as identidades, as culturas”, existindo
justamente da brecha produzida. Considerando o panorama atual de
intensas recessões e cerceamento de direitos, avanço da austeridade
política e violência legitimada pelos atos do Estado, pensar as fissuras
nos modos de produção é alargar a visão para outros modos de vida
e, para além, nos questionarmos sobre quais condições criamos nas
tessituras do cotidiano, para a existência de outras formas políticas de
vida.

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ZAMBONI, Marcio. Marcadores sociais da diferença. Sociologia:


grandes temas do conhecimento (Especial Desigualdades). São Paulo,
v. 1, p. 14-18, 2014.

Sobre as autoras

Lara Brum de Calais


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
E-mail: laracalais@hotmail.com
lattes: http://lattes.cnpq.br/5129981138616402

Juliana Perucchi
Professora Associada II do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF)
E-mail: jperucchi@gmail.com
lattes: http://lattes.cnpq.br/9564862150352141

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 55


4

O (im)possível da
clínica frente ao real
da pandemia
The (im) possible in the
clinic against the real
of the pandemic

Gabriela Luanda Oliveira Carneiro


Gabriela Antunes Ferreira
Lívia Mara Campos Silva
Maíra Carolina Alves Santos
Orientadora: Profa. Dra. Cristiane de Freitas Cunha

56 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

Resumo

Ao considerar o cenário de pandemia de COVID-19, discute-se o lugar


ético e político do analista na instituição e na cidade, haja vista a
perspectiva da atenção à saúde de crianças e adolescentes. Para tanto,
foi apontada a intensificação da vulnerabilidade social desse público
no contexto de pandemia, no Brasil, e o uso da internet como recurso
na garantia de direitos em período de distanciamento social. Nesse
ínterim, apresenta-se o relato de experiência de ações desenvolvidas
pela equipe do Projeto de Extensão “A Janela da Escuta”, localizado no
ambulatório de Saúde do Adolescente da Faculdade de Medicina da
UFMG. Experimentando o possível circunstancial e desafiando o (im)
possível da clínica frente ao Real da pandemia, conclui-se acerca da
defesa da importância de os serviços pensarem suas práticas com o
objetivo de não utilizar uma lógica perversa em que se oferta o que é
inacessível.

Palavras-chave: Adolescente. Clínica. Pandemia. Psicanálise.

Abstract

Considering the COVID-19 pandemic scenario, we discuss the ethical


and political place of the analyst in the institution and in th city from
the perspective of health care for children and adolescents. In this
regard, we highlight the intensification of the social vulnerability
of said public in the context of a pandemic, in Brazil, and the use of
the internet as a resource in guaranteeing rights in a period of social
distancing. In this context, we present an experience report of actions
developed by the Extension Project team “A Janela da Escuta”, located
at the Adolescent Health Outpatient Clinic of the Medical School of
UFMG. Experiencing the circumstantial possible and challenging the
(im)possible of the clinic in face of the Real of the pandemic, we
conclude about the defense of the importance of the services thinking
about their practices in order not to use a perverse logic in which what
is inaccessible is offered.

Keywords: Adolescent. Clinic. Pandemic. Psychoanalysis.


Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 57
Gabriela Luanda Oliveira Carneiro, Gabriela Antunes Ferreira,
Lívia Mara Campos Silva, Maíra Carolina Alves Santos

1. Introdução

A pandemia de COVID-19 evidencia os efeitos obscenos de


um modo de sociedade que gira em torno do capital em um
processo de financeirização da saúde e dos direitos sociais. Mais
que a destinação do recurso público da saúde para o setor privado,
o que é visto nesse processo é uma lógica de investimentos
que preconiza a política econômica em detrimento da garantia
de direitos (COSTA, 2017; SESTELO, 2017; MAZERON, 2020).
À medida em que o vírus tem se alastrado, fazem-se necessárias
estratégias de controle da disseminação, dentre elas os protocolos de
biossegurança que incluem o distanciamento social. Se, por um lado,
essa medida apresenta-se como principal e mais eficaz recurso no
retardamento da propagação do vírus, por outro, acentua ainda mais as
desigualdades sociais em que vivemos (CADÓ, 2020; MARTINS, 2020).
Nesse sentido, o modo do exercício de direitos sociais como o
acesso à saúde, à educação e ao lazer, em um contexto de pandemia,
passa a ser predominantemente por meio de tecnologias digitais.
Assim, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2020),
são ainda mais acentuados os processos de exclusão, segregação e
não acessos especialmente a uma parcela da população: crianças
e adolescentes provenientes de famílias das classes econômicas D e
E que correspondem aos 4,8 milhões de crianças e de adolescentes
que vivem em domicílios sem acesso à internet no Brasil.
Nessa perspectiva, isso aponta para uma parte da população
que, quando acessa esses direitos, tal fato ocorre de modo precário,
contrariando o que preconiza a Constituição Federal de 1988 e
o Estatuto da Criança e do Adolescente que, em seu Art. 227,
reproduz exatamente o que determina a Constituição Cidadã.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) esclarece que:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,

58 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

exploração, violência, crueldade e opressão.” (Art. 227. ECA/90)

Desse modo, a interseccionalidade (ASSIS, 2019) que trata da forma


pela qual o racismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios
criam desigualdades básicas é um ponto de análise do impacto da
COVID-19. Conforme estudo desenvolvido pelo UNICEF, a partir de um
recorte etário, racial e de gênero, pode-se identificar que esse grupo já se
encontrava historicamente em um contexto de vulnerabilidade social.
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2020):

“Tais privações já atingem desproporcionalmente as crianças e os


adolescentes mais pobres e das regiões de maior vulnerabilidade.
Por isso, defendemos que todas as crianças e todos os
adolescentes que vivem em famílias que são beneficiárias do
programa de “auxílio emergencial”, do programa Bolsa Família
ou cuja renda mensal familiar per capita é inferior a R$178
mensais tenham acesso gratuito à internet.” (UNICEF, 2020)

Essa realidade que a pandemia impõe e o compromisso de


garantir o acesso à saúde como direito fundamental apresentam-
se como questões para a equipe do projeto de extensão da
Universidade Federal de Minas Gerais “A Janela da Escuta”. Nesse
sentido, a situação contemporânea provoca uma importante
discussão acerca das possibilidades de atenção à saúde.
Assim, o presente trabalho irá nortear suas considerações a partir de
algumas perguntas que surgiram em uma discussão entre profissionais
do projeto supracitado. A saber: os jovens atendidos possuem acesso
às Tecnologias da Informação? Quais as condições de conectividade
com a internet? Considerando que esse meio permitiria acesso à saúde,
como viabilizar tal recurso? Essa realidade gera outras questões: qual
deve ser a posição da equipe e da instituição frente à realidade do nosso
tempo? Como os serviços poderiam pensar suas práticas para não entrar
em uma lógica perversa em que se oferta o que não é possível acessar?
Logo, na tentativa de discutir tais questões, será apresentado
um relato de experiência, enquanto método de estudo
descritivo, das propostas de trabalho construídas pela equipe
do projeto. Considera-se, ainda, o que é dito pelos autores

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 59


Gabriela Luanda Oliveira Carneiro, Gabriela Antunes Ferreira,
Lívia Mara Campos Silva, Maíra Carolina Alves Santos

psicanalistas sobre a interface psicanálise, instituição e política.

2. O (im)possível da clínica

O projeto “A Janela da escuta”, localizado no Ambulatório de Saúde


do Adolescente da UFMG, consiste em um equipamento inserido
na lógica do Sistema Único de Saúde (SUS), em Belo Horizonte. Um
ambulatório enlaçado pela universidade e inserido no Observatório da
Criança e do Adolescente que pretende, a partir de uma orientação
psicanalítica, desconstruir o modelo institucional vigente e transgredir
os protocolos impostos, a fim de instaurar espaços de escuta livre para
adolescentes e jovens. Nesse viés, a proposta metodológica do projeto
preconiza que o adolescente é o especialista de si mesmo. Para tanto, os
adolescentes contam com um espaço de portas abertas, onde todos são
acolhidos por algum profissional da equipe. De maneira concomitante
e complementar aos atendimentos realizados no ambulatório, é
realizado o projeto “Arte na espera”, a qual objetiva promover um
acolhimento vivo dos adolescentes e de seus familiares, privilegiando
o convívio entre os pares e os profissionais, para que a espera seja
diferenciada de uma organização disciplinar (CUNHA et al. 2015).
As atividades do “Arte na espera” proporcionam um lugar para a
tessitura de saberes e constitui-se como mais uma alternativa para
a emergência de um novo saber advindo do adolescente. No “Arte
na espera”, o que se recolhe da arte, precede o saber clínico, sendo
que em alguns casos é o próprio adolescente o norteador de seu
caminho. Ademais, a articulação do trabalho desenvolvido no projeto
“A Janela da Escuta” é propiciada pela metodologia da “Construção
do Caso Clínico”. Segundo Viganó (2010), a aposta nessa metodologia
surge no contexto de mudanças históricas e culturais fomentadas
pelo movimento antipsiquiátrico dos anos 70 e apresenta-se como
um contraponto à supremacia de um saber médico e filosófico
sobre o sofrimento do paciente. Uma vez que objetiva colocar o
paciente como detentor de um saber sobre seu caso, converge
para a aposta da psicanálise que tem, desde o seu início, formulado
suas contribuições a partir do que emerge do campo, como uma
tentativa de aproximação entre clínica e teoria, e não o contrário.

60 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

A contribuição de cada ator – seja o paciente, os familiares ou os


profissionais da rede – é considerada, e o objetivo não é encontrar
um saber vertical, ligado às nomeações e aos protocolos, mas um
saber inédito que surge do caso. Logo, essa escuta da singularidade é
colocada como ponto central das construções e o caso é o que ensina
algo sobre o fazer da rede que se forma a partir dele (VIGANÓ, 2010).
Dessa maneira, é realizada a construção do caso clínico com os
profissionais que atendem o adolescente no ambulatório e com a rede
de atendimento junto às políticas públicas, tornando possível a escuta
singular dos impasses e das soluções que atravessam o caso. Por fim,
o enlace do ambulatório com a rede territorial fomenta que uma
janela para a escuta seja aberta, também, no território do adolescente.

3. O acesso às TICs na atenção à saúde de crianças e de


adolescentes durante a pandemia de COVID-19

As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) consistem em


todos os meios técnicos usados para tratar informação e auxiliar na
comunicação, incluindo o acesso à internet. Nesse ínterim, entende-se
como um conjunto de recursos tecnológicos integrados entre si que
proporcionam, por meio das funções de software e telecomunicações,
a automação e comunicação dos processos de negócios, da pesquisa
científica e de ensino e aprendizagem e que interferem e mediam
os processos informacionais e comunicativos dos seres (OLIVEIRA;
MOURA; SOUSA, 2015).
É necessário ressaltar que o acesso à internet é essencial ao
exercício da cidadania, tendo seu marco civil publicado por meio da Lei
nº 12.965, de 23 de abril de 2014, a qual disciplinou o uso da internet
no Brasil e estabeleceu diretrizes como a finalidade social e o direito de
acesso à internet para todos. Contudo, observa-se milhares de pessoas
ainda sem acesso à rede, implicando em desigualdade no exercício de
direitos.
De acordo com o UNICEF (2020):

“Os direitos humanos são exercidos cada vez mais online.


Isso é ainda mais certo para as crianças e adolescentes de

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 61


Gabriela Luanda Oliveira Carneiro, Gabriela Antunes Ferreira,
Lívia Mara Campos Silva, Maíra Carolina Alves Santos

hoje que crescem num mundo digital, onde a internet facilita


as oportunidades e capacidades de realizar os seus direitos.”
(UNICEF, 2020)

Conforme pesquisa recente do Centro de Estudo sobre as tecnologias


da Informação e da Comunicação TIC KIDS ONLINE – Brasil (CETIC,
2020), que analisou dados de outubro de 2019 até março de 2020,
58% das crianças e dos adolescentes acessa a internet exclusivamente
pelo celular. Esse número sobe para 73% quando se trata das classes
D e E, nas quais também é maior o acesso exclusivo através de rede
móvel em comparação a outras classes sociais.
Segundo Paloma Carmo (2020):

“[…] é importante considerar que o acesso à rede móvel


pelo celular não pode ser entendido de imediato como uma
apropriação da tecnologia, tampouco pode ser interpretado
como um sinal de que esses cidadãos tenham o domínio e
façam uso pleno da rede. (…) o preço da internet móvel é um
problema que gera desigualdade no uso e acesso da rede. Isso
porque o acesso pela internet por meio de dispositivos móveis
é limitado e os planos de internet populares no mercado,
acessíveis à maior parte dos usuários, não permitem o uso de
todos os recursos da rede pelo consumidor.” (CARMO, 2020, p.
26-27)

Diante do contexto pandêmico, essa desigualdade no acesso às


TIC’s e à internet tem implicações ainda maiores na atenção à saúde
de crianças e adolescentes. Por um lado, tal recurso viabiliza o acesso
à informação e material educativo no que diz respeito às medidas
de prevenção e de contaminação: cartilhas de saúde e orientações,
cuidados de higienização e outros protocolos de biossegurança.
Por outro, frente à medida de distanciamento social, tem sido
predominante na atenção à saúde mental: seja como garantia de
acesso ao lazer, à cultura, ao contato com familiares e também como
um dispositivo para o atendimento on-line.
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2020):

“Ter acesso à internet é fundamental para que crianças e

62 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

adolescentes possam exercer plenamente seus direitos.


Em tempos de coronavírus e isolamento social, a rede se
torna ainda mais importante para garantir a continuidade
da aprendizagem, manter contato com amigos e cuidar da
saúde mental, se proteger contra a violência e ter acesso a
informações “confiáveis”.” (UNICEF, 2020)

Como apontado pelo relatório da pesquisa “Juventudes e a


Pandemia por coronavírus”, realizado pelo Conselho Nacional de
Juventude em parceria com várias entidades e com a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, sete a
cada dez jovens dos 33.688 entrevistados em todo o país sentem
que a pandemia afetou suas vidas em vários aspectos, com maior
comprometimento do estado emocional. Fato que reforça a
importância de preconizar a atenção à saúde mental, frente aos
agravos causados pelas contingências da pandemia (CONJUVE,
2020). Nesse cenário, o uso das TIC's apresenta-se como recurso
necessário e é, inclusive, uma orientação do Conselho Federal de
Psicologia (2020), em confronto ao imperativo do distanciamento
social, a utilização do atendimento virtual como modalidade a ser
adotada baseando-se na Resolução nº 4, de 26 de março de 2020.

4. O lugar do analista e da instituição nesta pauta

Ao discorrer sobre essa pauta, haverá o desdobramento sobre


a interseção existente entre o lugar do analista e o da instituição.
Seguindo essa linha de pensamento, sempre ao se questionar sobre
instituições, é imperativo recorrer aos conceitos de público e privado
e, da mesma forma, segundo Laurent (1999) ao analista não caberia
à função de “tirar de alguém sua particularidade para misturá-lo com
todos no universal” (LAURENT, 1999, p. 09), mas escutar, transmitir e
transformar a particularidade de cada um em algo útil para todos.
Nesse sentido, é necessário um movimento dos analistas de uma
posição desidentificada para uma posição engajada aos interesses da
comunidade, orientando-se pela ética da psicanálise. Esse é o ponto
em que analista e instituição encontram-se na interseção entre o
público e o privado, o particular e o universal.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 63


Gabriela Luanda Oliveira Carneiro, Gabriela Antunes Ferreira,
Lívia Mara Campos Silva, Maíra Carolina Alves Santos

No livro As clínicas públicas de Freud, de Elizabeth Ann Danto (2019),


essas dimensões são resgatadas para colocar em evidência o impacto
do discurso de Freud, em 1918 e 1919, o qual influenciou os analistas
da primeira e segunda geração a envolverem-se fortemente na criação
de clínicas dos institutos de formação e nas instituições públicas e
privadas. Concernente aos impactos da Primeira Guerra Mundial, esse
recurso deveria estar disponível a todos. Assim, aos menos favorecidos
essa acessibilidade deveria ser garantida pelo Estado nas estruturas
públicas.
Ademais, cabe lembrar que, no contexto pós-guerra, a psicanálise
assumiu um lugar muito diferente na proposta política a partir do V
Congresso Internacional de Psicanálise, em Budapeste. Nesse momento,
Danto (2019) inclui que segundo Freud “a sobrevivência da psicanálise
dependia de sua inserção no tecido social” e, desse pronunciamento,
surgiram variadas clínicas públicas. Nesse momento, a psicanálise
passou também a ocupar-se de algumas questões presentes na arena
social, como reforma penal, direito ao voto feminino, igualdade de
gêneros e descriminalização da homossexualidade (DANTO, 2019).
Ainda nesse contexto, muitos analistas discutiram se o que
estavam fazendo era mesmo psicanálise. Para os mais conservadores,
a psicanálise havia afastado-se do seu escopo de trabalho, mas para
Freud era necessário um despertar para a “consciência da sociedade”.
Assim, a psicanálise deveria estar cada vez mais engendrada à
realidade social, envolvendo maior responsabilização e participação
dos profissionais com as demandas públicas (DANTO, 2019).
Embora, tal movimento supracitado tenha tido uma crescente, Eric
Laurent (1999) indica que os analistas assumiram, ao longo da história,
um papel de “intelectual crítico”. Dessa maneira, o intelectual crítico
era aquele que se mantinha em seu lugar, tranquilo, dedicando-se
somente a produzir o vazio. E essa era uma concepção da psicanálise
como prática da desidentificação. No social, o analista levava a
desidentificação a todas as partes, como denúncia da ordem do
mundo.
Nessa perspectiva, o autor Eric Laurent (1999) opõe-se
veementemente a tal posição e propõe que o papel histórico do
analista não seja o de apenas estar inserido nos serviços de saúde

64 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

mental como especialista de desidentificação, mas que passe à posição


de analista cidadão, a termo ao que isso significa. Logo, ser analista
cidadão significa “entender que há uma comunidade de interesses
entre o discurso analítico e a democracia e entendê-la de verdade!”
(LAURENT, 1999, p. 08). O autor propõe: “há que se passar do
analista fechado em sua reserva, crítico, a um analista que participa;
um analista sensível às formas de segregação; um analista capaz de
entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora” (LAURENT,
1999, p. 08). “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista
que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua
época” (LACAN, 1998, p. 321). O fato de que o psicanalista deve estar à
altura de seu tempo abarca a relação do analista com a cidade e sugere
repensar a inserção do psicanalista implicando-o em sua participação
na subjetividade de sua época.
Pode-se pensar também que, de um lado, temos o psicanalista
perguntando-se sobre o lugar que ocupa e sua prática na cidade, nas
instituições, e na clínica social, e, de outro, interrogando esses espaços
em sua estruturação e funcionamento nesse contexto de segregação
social e invisibilização dos sujeitos. Portanto, estar à altura de seu
tempo, significa ser o analista cidadão que interroga o Real, aqui
impresso na contingência da pandemia.
Conforme Éric Laurent (1999):

“Os analistas, junto com outros, devem incidir nessas questões,


tomar partido e, por meio de publicações, por meio de
intervenções, manifestar que querem um tipo determinado de
saúde mental. Não uma instituição utópica ou um lugar utópico,
mas precisamente formas compatíveis com o fato de que, se já
não há ideais, só resta o debate democrático.” (LAURENT, 1999,
p. 11)

Ademais, nada disso teria sentido se não pudéssemos, também,


pensar o momento sinistro, árduo e caótico que a sociedade atual
atravessa. No contexto político, sublinha-se a pandemia e a ausência
de direitos humanos desses jovens que acessam o “A Janela da Escuta”.
Quando Laurent (1999) defende essa ideia, reforça que o psicanalista
tem um papel, e ter um papel significa cumprir certas funções sociais

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 65


Gabriela Luanda Oliveira Carneiro, Gabriela Antunes Ferreira,
Lívia Mara Campos Silva, Maíra Carolina Alves Santos

e ser capaz de catalisar o acesso e cumprimento aos direitos humanos.


Assim, as formas desse engajamento são várias e o psicanalista deve
deixar a sua marca pragmática. “Os analistas não só devem escutar,
mas também precisam saber transmitir o que tem de humanidade, o
interesse que tem para todos a particularidade de cada um” (LAURENT,
1999, p. 10).

5. Insurgências da clínica frente ao real da pandemia

É certo que a presença da psicanálise, em locais diferentes do


setting tradicional, tem ampliado-se principalmente nas instituições.
Sustentar uma prática institucional, a partir das contribuições da
psicanálise, é acreditar em uma instituição que permite um espaço
para os que dela fazem parte serem reconhecidos de outras formas
e surgirem como sujeitos. Nesse sentido, é inevitável pensar o lado
político da psicanálise na pandemia, que exibe as desigualdades
econômicas e sociais, e em sua prática nas instituições.
No momento, há uma porta, um muro, uma barreira social, e é difícil
dimensionar as consequências do isolamento, que cresce na medida
em que a pandemia avança. O desafio das instituições, nesse tempo, é
resgatar a escuta como ferramenta temporal na qual os acontecimentos
nos convocam para um fazer criativo frente ao sofrimento e à miséria.
É necessário, pois, abrir as janelas da escuta e voltar os olhares para a
realidade social e, a partir dela, buscar soluções inventivas.
Já foi constatado que os jovens vulneráveis sofreram maiores
consequências da pandemia. Nesse ínterim, surge o questionamento
sobre a viabilidade do acolhimento dos jovens do “A Janela da Escuta”
sem a possibilidade de acesso às tecnologias da informação, pensando
inclusive que esses meios permitiriam o acesso à saúde. Foi necessário
questionar, também, os recursos clínicos disponíveis, o setting
terapêutico, os desafios e as possibilidades de arranjos da prática em
tal contexto.
Dessas constatações, surgiu um movimento ainda incipiente,
composto por profissionais do “A Janela da Escuta” que pretendem
apresentar sua reivindicação por intermédio de uma carta frente às
autoridades e ao Poder Público, pois partiu-se do pressuposto que

66 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

a garantia do direito à saúde é dever do Estado e que, portanto, a


acessibilidade como produtora de saúde também deve ser levantada
como uma grande pauta no cenário político.
Desse modo, o movimento denominado “Democratização do
acesso à internet” surge como uma tentativa de fazer frente ao “Real
da acessibilidade” precária ou inacessibilidade da população jovem
de Belo Horizonte aos meios de comunicação, pensando que, para os
atendimentos on-line, isso seria uma condicionalidade. A ideia é que
esse movimento tenha a representação das juventudes e que depois
de serem colocadas como pauta no cenário político, possa haver a
legitimação como pauta dos próprios jovens.
Ao entender que a continuidade da oferta de serviços de saúde
on-line é uma posição política frente aos efeitos da segregação pela
falta de acesso, a ferramenta internet foi mantida e tem sido utilizada
com adolescentes e familiares que possuem acesso ainda limitado.
Chamamos esse projeto de “A Janela da Escuta Virtual”, que conta
com um grupo de WhatsApp que representa um filtro das demandas
dos adolescentes. Desse grupo emergem discussões temáticas e
produções artísticas, nas quais os adolescentes podem se expressar e,
quando necessário, são atendidos individualmente em suas demandas.
Alguns deles já tinham uma referência e quando não têm, passam pelo
acolhimento também em modalidade on-line.
Outrossim, o grupo virtual de familiares também surgiu da
constatação de que a convivência e as demandas escolares atingem
também as famílias dos adolescentes. A família, especialmente
representada por mães, muitas vezes atravessava o lugar de escuta
dos filhos e apresentava-se no cenário como pano de fundo dos
atendimentos. Considerando essa questão, hoje, esse grupo também
tem sido facilitado por profissionais que mediam o campo das
ansiedades de seus integrantes e garantem, a eles, um espaço de escuta.
Como um desdobramento do “A Janela da Escuta Virtual”, na Pan-
demia, os profissionais de saúde na linha de frente do enfrentamen-
to à Covid-19, também passaram a ocupar um lugar de escuta. Para
tanto foi criado o “Projeto Efeitos”, formado por psicanalistas que já
atuavam no “Janela”, que se reuniram para prestar atendimentos com
a expectativa de sessões breves com efeitos terapêuticos rápidos.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 67


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Nessa proposta, conforme aponta Miquel Bassols no prefácio


do livro “Efeitos Terapêuticos rápidos em Psicanálise”, o tratamento
se verifica “como uma política do sintoma e se deduz do traço mais
particular do caso clínico” (BASSOLS, 2008, p. 9). O objetivo não se
inscreve em uma tentativa de “gestão do mal-estar do sujeito”,
em uma redução mercadológica da saúde, mas se afirma no que é
mais “particular do sintoma do sujeito, que só será analisável a par-
tir do detalhe clínico e jamais quantificável” (BASSOLS, 2008, p. 9).
Na mesma lógica, a parceria em interlocução com o “Projeto Efei-
tos” estendeu-se ao coletivo “Mulheres da Quebrada”1, que já discutia
a importância de se ofertar escuta para a comunidade, que relatava seu
sofrimento frente à pandemia. Atualmente, o projeto recebe encami-
nhamentos desse coletivo e de alguns equipamentos de saúde. O car-
taz que teve circulação nas mídias sociais mobilizou o atendimento de
profissionais de Belo Horizonte e de outros municípios de Minas Gerais.

6. Considerações finais

A pandemia de COVID – 19 colocou em perspectiva para a equipe


do projeto “A Janela da Escuta” vários impasses. Diante de um cenário
inédito, foi preciso uma reinvenção nas formas de oferta de acesso à
saúde dos jovens atendidos pelo projeto. Discussões e ações práticas
sobre a “democratização do acesso à internet” e sobre as formas pos-
síveis de atendimento dos jovens, diante do Real que se apresenta,
foram respostas da equipe de profissionais do projeto frente aos cres-
centes efeitos da segregação sobre estes jovens.
As insurgências clínicas apontam-nos existir uma relação direta en-
tre o acesso à tecnologia da informação e o exercício de direitos, nesse
caso, dando ênfase ao direito à saúde no contexto da pandemia. Nesse
sentido, o movimento de democratização do acesso à internet, ainda
que incipiente, é uma construção resultante de um fazer comprome-

1 O projeto "Mulheres da Quebrada" consiste em um coletivo de mulheres, moradoras do Aglomerado da


Serra, que se organizaram numa proposta de ações que tiveram início em 2019, promovendo o acolhimento
afetivo e o protagonismo feminino.

68 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

tido com o social. A escuta e seus efeitos, podem ser potencializados


na interlocução com outros atores, como a família, o território e as
políticas públicas.
Nesse ínterim, constatou-se que, na maioria das instituições, existe
uma grande expectativa de que a equipe responda aos impasses da
clínica. No entanto, esse trabalho circunscreve muito bem que o exer-
cício da profissão dos psicanalistas e dos outros profissionais da área
da saúde se aproxima do que Laurent conceitua como: o fazer dos
analistas cidadãos. Nesse sentido, o posicionamento ético expressa-se
a partir da interrogação do que emerge do Real e não nas respostas
imediatas.

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Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 69


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Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 71


Gabriela Luanda Oliveira Carneiro, Gabriela Antunes Ferreira,
Lívia Mara Campos Silva, Maíra Carolina Alves Santos

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e crianças vulneráveis é essencial na resposta à Covid-19. Brasília:
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com.br/pdf/Aconstrucaodocasoclinico.pdf. Acesso em: 10 ago 2020.

Sobre as autoras

Gabriela Luanda Oliveira Carneiro


Graduada em Psicologia pela (PUC MINAS)
Pós-graduanda em Saúde do Adolescente (UFMG).
Atua como psicóloga na Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.
E-mail: gabiluanda@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4256500900708662

Gabriela Antunes Ferreira


Graduada em Psicologia (UFMG).
Pós-graduanda em Saúde do Adolescente (UFMG).
Atua como analista de políticas públicas na Política de Assistência Social do
município de Belo Horizonte.
E-mail: brielaafs@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0434382609733491

Lívia Mara Campos Silva


Graduada em Psicologia (PUC Minas).
Pós-graduada em Estudos Psicanalíticos (UFMG).
Atua como psicóloga clínica em consultório particular.
E-mail: liviacampos.psicologa@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9770654661222117

72 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O (im)possível da clínica frente ao real da pandemia

Maíra Carolina Alves Santos


Graduada em Psicologia (FEAD-MG).
Pós-graduanda em Saúde do adolescente (UFMG).
Atua como Psicóloga clínica com experiência na política de Saúde Mental da
rede SUS/BH.
E-mail: mairasantos.psi@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6113003742922949

Orientadora: Profa. Dra. Cristiane de Freitas Cunha

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 73


5

A vida frente as
telas: configurações
da adolescência
e juventude na
virtualidade
The teenager in front of
the screen: the adolescence
configurations in the virtuality

Daniela Piroli Cabral

74 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

Resumo

A proposta do presente artigo é fazer uma análise dos processos con-


temporâneos de subjetivação e construção identitária na adolescência
a partir de uma releitura da obra de Aberastury e Knobel (1981), in-
cluindo-a no contexto da virtualidade e da tecnologia, especialmente à
luz da teoria de Le Breton (2017).
Os fenômenos relacionados à tecnologia e à virtualidade não faziam
parte da constituição identitária adolescente quando o conceito de
“síndrome normal da adolescência” foi preconizado pelos psicanalistas
durante os idos anos de 1980. Nessa perspectiva, algumas perguntas
às quais se buscou responder foram: 1) Quais fenômenos relacionados
à adolescência seriam considerados normais e quais deles seriam con-
siderados patológicos na atualidade?; 2) A virtualidade tem favorecido
o processo de individuação ou tem dificultado a transição da criança
para o mundo adulto?; 3) As telas funcionam mais como espelho que
refletem diversas imagens identificatórias para o adolescente ou mais
refletem um narcisismo exacerbado que aniquila o olhar do outro e a
alteridade, fundamentais para a construção identitária?; 4) Quais se-
riam, na atualidade, os critérios que marcam oficialmente o “fim” da
adolescência? Tais questões serão, portanto, abordadas neste artigo,
de forma a buscar certa elucidação sobre os aspectos da “síndrome
normal da adolescência” na pós-modernidade à luz dos fenômenos
virtuais.

Palavras-chave: Adolescência; Virtualidade; Identidade; Processos de


subjetivação.

Abstract

Propose oneself to make an analysis of the subject-activation and iden-


tity building in the adolescence in the present times, from the re-re-
ading of Aberastury and Knobel`s (1981) work, by including it in the
virtual and technological context, especially in the light of Le Breton`s
theory (2017).
The technology-and-virtuality-related phenomena were not part of

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 75


Daniela Piroli Cabral

the adolescent`s identity constitution when the “Adolescence Normal


Syndrome” concept was foreboded by psychoanalysts during the 80`s.
Under that perspective some of the questions sought to be answered
were: (1) what adolescence-related phenomena would be considered
normal and which of them would be considered as pathological in
the present time?; (2) has virtuality favored the individualization pro-
cess, or has it hampered the child`s transition to the adult world?; (3)
the screens work more like mirrors which reflect several identifiable
images for the adolescent, or reflect more the exacerbated narcissism,
which destroys the other one`s eyes, and the otherness, which are fou-
ndational for the identity building?; (4) which would be, in the current
time, the criteria which officially landmark the “end” of post- modern
adolescence? Such questions will be addressed in this article as a way
of searching some clarification on the Adolescence Normal Syndrome
in the post- modernity in the light of virtual phenomena.

Keywords: Adolescence; Virtuality; Identity; Subject-activation Proces-


ses.

1. Introdução: adolescência e virtualidade

Este artigo tem o principal objetivo de fazer uma análise dos


processos de subjetivação e construção identitária na adolescência da
atualidade, a partir de uma releitura da obra de Aberastury e Knobel
(1981), incluindo-a no contexto da virtualidade e da tecnologia, tal
como apresentado por Le Breton (2017).
É importante ressaltar que a adolescência não tem um caráter
naturalista, sendo sua classificação um fenômeno sociocultural e
historicamente novo, datando de cerca de 200 anos (ÁVILA, 2011).
Além disso, ao definirmos “adolescência” não estamos falando de
uma faixa etária predeterminada, uma vez que em psicanálise lida-
se com o sujeito do inconsciente e, portanto, sem idades (OLIVEIRA;
HANKE, 2017).
Trata-se, portanto, de referenciar a adolescência como sendo uma
resposta psicossocial à puberdade, momento da maturação biológica
na qual os caracteres sexuais secundários se impõem ao corpo infantil

76 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

(ABERASTURY; KNOBEL, 1981).


Passados quase 40 anos da publicação do livro Adolescência
normal, de Aberastury e Knobel, e da definição da “síndrome normal
da adolescência”, diversos são os questionamentos, aproximações e
atualizações possíveis no conceito de adolescência, como também na
relação desta com a virtualidade.
Os fenômenos relacionados à tecnologia e à virtualidade não
faziam parte do cotidiano das pessoas e se restringiam a campos muito
específicos quando o conceito de “normalidade” da adolescência foi
preconizado pelos psicanalistas durante os idos anos de 1980. Há
que se perguntar, assim, com relação à atualidade: quais fenômenos
relacionados à adolescência seriam considerados normais e quais
deles seriam considerados patológicos (e, consequentemente,
necessitariam de tratamento) dentro dos processos de luto pelo
corpo infantil, pelos pais infantis e pela identidade infantil? O acesso
à internet e a virtualidade têm favorecido tais processos ou, por outro
lado, têm dificultado a transição da criança para o mundo adulto? É
inegável que o contexto da virtualidade oferece para o adolescente,
seja através de jogos, blogs ou redes sociais, maior gama de meios
identificatórios do que há 40 anos. A virtualidade se somou aos
tradicionais meios identificatórios utilizados pelos adolescentes,
a saber: religião, literatura, música, filosofia e artes em geral. No
entanto, será que este acréscimo de referenciais identificatórios facilita
a emancipação adolescente rumo ao mundo adulto ou, pelo contrário,
tem funcionado mais como mecanismo de “tamponamento” dos
processos de luto infantis, que acabariam por manter o adolescente
em condição de dependência e ou de submissão? Nessa perspectiva,
as telas servem como espelhos que refletem diversas imagens
identificatórias, o que pode favorecer os processos de separação
e individuação ruma à consolidação de uma identidade adulta ou
podem refletir um narcisismo exacerbado que aniquila o olhar do
outro e a alteridade, fundamentais para a construção identitária.
Para além disso, é preciso questionar: o critério psicanalítico sobre
as capacidades de “amar e trabalhar” (FREUD, 1930/1976) como
referenciais identitários adultos sofreu modificações pelo contexto do
virtual? Quais seriam, então, na atualidade, os critérios que marcam

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oficialmente o “fim” da adolescência? A dificuldade de encarar o


“mundo presencial” (contraposição ao “mundo virtual”) e com ele se
relacionar reflete necessariamente uma estagnação o mundo infanto-
juvenil ou um quadro patológico? Essas questões serão abordadas
neste artigo, de forma a buscar certa elucidação sobre os aspectos da
“síndrome normal da adolescência” na contemporaneidade à luz dos
fenômenos virtuais.

2. Caracterização da “adolescência normal”

A entrada no mundo dos adultos é um momento desejado e ao


mesmo tempo temido. Para o adolescente, existe certa ambivalência
em se localizar no mundo dos adultos e, ao mesmo tempo, no mundo
infantil. Há o desejo de diferenciação e crescimento, mas também o
desejo de ser igual, de permanecer infantil e de pertencer à família
de origem. Para o jovem, a entrada no mundo dos adultos significa a
perda definitiva de sua condição de criança, o que muitas vezes torna
o processo da adolescência instável.
Em 1981, Aberastury e Knobel propuseram o conceito de
“adolescência normal” para dizer desta importante etapa de
desenvolvimento na vida do homem rumo à sua inserção no mundo
adulto que se daria através da elaboração dos seguintes lutos: luto
pelo corpo infantil, luto pela identidade infantil, luto pelos pais infantis.
Segundo os autores, a adolescência seria

“[...] um período de transição entre a puberdade e o estado


adulto do desenvolvimento e que nas diferentes sociedades
este período pode variar, como varia o reconhecimento da
condição adulto que se dá ao indivíduo. Entretanto, existe, como
base de todo este processo, uma circunstância especial, que é
a característica própria do processo adolescente em si, ou seja,
uma situação que obriga o indivíduo a reformular conceitos
que tem a respeito de si mesmo e que o leva a abandonar
sua autoimagem infantil e projetar-se no futuro de sua vida
adulta.” (ABERASTURY; KNOBEL, 1981, p. 26, grifo nosso)

A opção pela denominação de “síndrome normal da adolescência”

78 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

deve-se à caracterização de um estágio de desenvolvimento, normal e


necessário para a formação de uma identidade adulta, diferenciando-o
de um quadro psicopatológico que muitas vezes se confunde neste
momento da vida. Para Anna Freud (ABERASTURY; KNOBEL, 1981, p.
27) “(...) é muito difícil assinalar o limite entre o normal e patológico
na adolescência”, sendo que toda comoção deste período de vida deve
ser considerada normal.
Como se vê, é um período de muitas mudanças para a criança,
período de “(...) contradições, confuso, ambivalente, doloroso,
caracterizado por fricções com o meio familiar e social. Este quadro
é frequentemente confundido com crises e estados patológicos”
(ABERASTURY; KNOBEL, 1981, p. 13).
Neste processo que se inicia com a puberdade, quando as mudanças
físicas corporais se impõe à criança a partir do desenvolvimento dos
caracteres sexuais secundários, podemos elencar diversos sintomas
da “síndrome”, tais como: (1) busca de si mesmo e da identidade;
(2) tendência grupal; (3) necessidade de intelectualizar e fantasiar;
(4) crises religiosas; (5) deslocação temporal; (6) evolução sexual
manifesta; (7) atitude social reivindicatória com tendências antissociais;
(8) contradições sucessivas em todas as manifestações de conduta;
(9) separação progressiva dos pais; e, (10) constantes flutuações de
humor e do estado de ânimo (ABERASTURY; KNOBEL, 1981)
Na busca de si e na reformulação de sua identidade, são frequentes
as flutuações identitárias, já que, muitas vezes, o adolescente

“[...] se apresenta como vários personagens e, às vezes,


frente aos próprios pais, porém com mais frequência frente
a diferentes pessoas do mundo externo, que nos poderiam
dar dele versões totalmente contraditórias sobre sua
maturidade, sua bondade, sua capacidade, sua afetividade,
seu comportamento e, inclusive, num mesmo dia, sobre seu
aspecto físico. (...) Por isso o adolescente se apresenta como
vários personagens: é uma combinação instável de vários
corpos e identidades. Não pode, ainda, renunciar a aspectos de
si mesmo e não pode utilizar e sintetizar os que vai adquirindo,
e nessa dificuldade de adquirir uma identidade coerente reside
o principal obstáculo para resolver sua identidade sexual.”

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Daniela Piroli Cabral

(ABERASTURY; KNOBEL, 1981, p. 14-15, grifo nosso)

Em relação às mudanças corporais, o luto pelo corpo é duplo, pois


implica a renúncia de seu corpo de criança, com a consequente aceitação
da determinação sexual e também “do papel que terão que assumir,
não só na união com parceiro, mas na procriação”. (ABERASTURY,
KNOBEL; 1981, p. 14). A atualização do esquema corporal, que é a
representação mental que o sujeito tem com seu próprio corpo, vai
acontecendo paulatinamente com as transformações corporais e a
experimentação corporal viabilizada por tais mudanças. Nas palavras
de Aberastury e Knobel (1981, p. 31-32, grifo nosso):

“[...] o autoconceito vai se desenvolvendo à medida


que o sujeito vai mudando e vai se integrando com as
concepções que muitas pessoas, grupos e instituições
têm a respeito dele mesmo, e vai assimilando todos
os valores que constituem o ambiente social. (...) é
necessário integrar todo o passado, o experimentado,
o internalizado (e também o rejeitado), com as novas
exigências do meio e com as urgências instintivas. (...) O
adolescente precisa dar continuidade a tudo isto dentro
da personalidade, pelo que se estabelece uma busca de
um novo sentimento de continuidade e semelhança
consigo mesmo.”

Neste sentido, podem aparecer as identidades transitórias, as


identidades ocasionais e as identidades circunstanciais (ABERASTURY;
KNOBEL, 1981, p. 33), que podem levar o adolescente a experimentar
um verdadeiro sentimento de despersonalização.
A tendência grupal surge frente à busca por “uniformidade”,
que proporciona certa segurança e estima frente ao turbilhão de
metamorfoses. Além disso, o papel do grupo representa também uma
oposição às figuras parentais.

“Dessa maneira, o fenômeno grupal adquire uma importância


transcendental, já que se transfere ao grupo grande parte da
dependência que anteriormente se mantinha com a estrutura

80 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

familiar e com os pais especialmente. O grupo constitui


assim transição necessária no mundo externo para alcançar a
individualização adulta.” (ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p. 37)

A fantasia e a tendência à intelectualização levam à eclosão de


um grande potencial criativo. Elas funcionam como mecanismos
defensivos frente às renúncias que os lutos adolescentes impõem
(luto pelo corpo infantil, luto pelos pais infantis, luto pela identidade
infantil) e que lhes são tão dolorosas. A “fuga” para o mundo interior
leva a um certo “autismo positivo”, que permite o ajuste emocional do
adolescente (ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p. 39).

“O adolescente procura a solução teórica de todos os problemas


transcendentes e daqueles com os quais se enfrentará a curto
prazo: o amor, a liberdade, o matrimônio, a paternidade, a
educação, a filosofia, a religião. (...) Soluciona esta crise intensa
transitoriamente, fugindo do mundo exterior, procurando
refúgio na fantasia, no mundo interno, com um aumento
paralelo da onipotência narcisista e da sensação de prescindir
do externo. Deste modo cria para si uma nova plataforma de
lançamento desde a qual poderá iniciar conexões com novos
objetos do mundo externo e preparar a ação.” (ABERASTURY;
KNOBEL;1981, p.17- 18, grifo nosso)

As crises religiosas são comuns na fase adolescente, como


consequências dos questionamentos e flutuações identitários deste
período. Elas são “(...) tentativas de soluções da angústia que vive o ego
na busca de identificações positivas e do confronto com o fenômeno
da morte definitiva de uma parte do seu ego corporal” (ABERASTURY;
KNOBEL; 1981, p. 40).
A deslocalização temporal é uma tentativa adolescente de
manejar o tempo. É na adolescência que a dimensão temporal vai
adquirindo características discriminativas. Dessa forma, são comuns as
urgências enormes e as procrastinações irracionais que muitas vezes
desconcertam e irritam os adultos (ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p.
41).

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 81


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“Desta maneira considero que a percepção e a discriminação


do temporal seria uma das tarefas mais importantes da
adolescência (...). Isto é o que acho que permite sair da
modalidade de relação narcisista do adolescente e da
ambiguidade que caracteriza sua conduta. Quando este
pode reconhecer um passado e formular projetos de futuro
com capacidade de espera e elaboração no presente, supera
grande parte da problemática da adolescência.” (ABERASTURY;
KNOBEL; 1981, p. 44, grifo nosso)

Durante a evolução sexual, o adolescente precisa superar a


modalidade de autoerotismo infantil para assumir uma identidade
sexual adulta. Aberastury e Knobel (1981) apontam os fenômenos da
masturbação, do amor apaixonado, da curiosidade e da experimentação
sexual como atividades comuns e até necessárias rumo à evolução
sexual definitiva.

“As experiências homossexuais ocasionais dentre adolescentes


não devem ser consideradas patológicas, desde que tenham
esse aspecto temporário e de adaptação e não se cristalizem
como condutas definitivas.” (ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p.
49, grifo nosso)

Aqui, os autores dão margem ao entendimento de que


a experiência homossexual que não seja transitória e que se
perpetue na fase seguinte seja tratada como conduta desviante e
patológica, conceito que, obviamente, já foi superado nas concepções
contemporâneas, como se verá adiante.
Ao apresentarem atitudes sociais reivindicatórias, os adolescentes
afirmam sua própria hostilidade frente aos pais e ao mundo em
geral. Para os autores, a atitude social reivindicatória é praticamente
“imprescindível” no processo de evolução adolescente, pois, através
dela “(...) o indivíduo vai se desprendendo de situações infantis e
vendo, ao mesmo tempo, como é perigosa e indefinida a sua entrada
no mundo dos adultos” (ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p. 53). A atitude
social reivindicatória

82 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

“[...] se manifesta na sua desconfiança, na ideia de não ser


compreendido, na sua rejeição da realidade, situações que
podem ser ratificadas ou não pela própria realidade. (...) A
qualidade do processo de amadurecimento e crescimento
dos primeiros anos, a estabilidade nos afetos, a soma
de gratificações e frustrações e a adaptação gradativa às
exigências ambientais vão marcar a intensidade e a gravidade
destes conflitos. (...) A atitude do mundo externo será outra
vez decisiva para facilitar ou obstaculizar o crescimento.”
(ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p. 18, grifo nosso)

As contradições sucessivas nas condutas relacionam-se com


as constantes flutuações do humor de do estado de ânimo, sendo
expressões típicas deste período pois a conduta do adolescente está
dominada pela ação e também pelo acting-out. Neste momento,
o pensamento precisa tornar-se ação para poder ser controlado
(ABERASTURY; KNOBEL; 1981). Dessa forma, são comuns condutas
ambivalentes e certa instabilidade permanente do adolescente.

“As mudanças de humor são típicas da adolescência e é


preciso entendê-las sobre a base dos mecanismos de projeção
e de luto pela perda de objetos que já descrevi; ao falharem
estas tentativas de elaboração, tais mudanças de humor
podem aparecer como microcrises maníaco-depressivas.”
(ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p. 58)

Em relação à separação progressiva dos pais, os autores afirmam


que o adolescente reivindica três liberdades básicas aos seus pais: a
liberdade nas saídas e horários, a liberdade de defender uma ideologia
e liberdade de viver um amor e um trabalho. E, nesta perspectiva,

“[...] é preciso dar liberdade, e para isso existe dois caminhos: dar
uma liberdade sem limites, que é o mesmo que abandonar um
filho; ou dar uma liberdade com limites, que impõe cuidados,
cautela, observação, contato afetivo permanente, diálogo,
para ir seguindo passo a passo a evolução das necessidades e
das modificações do filho.” (ABERASTURY; KNOBEL; 1981, p. 22,
grifo nosso)

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Daniela Piroli Cabral

Os autores ressaltam o papel dos pais neste processo no sentido


de viverem os seus próprios lutos de pais de uma criança e na
continuidade de uma relação dialogal de escuta e de confiança que
tenha se iniciado em etapa anterior à adolescência. Nesta perspectiva,
nenhuma precipitação interna ou externa favorece o processo de
evolução do adolescente.

3. A tecnologia e virtualidade na pós-modernidade

A sociedade contemporânea vem privando os jovens de meios


adequados para finalizar a sua adolescência, “(...) conduzindo massas
de indivíduos a um eterno adolescer, em um usufruto permanente
da condição de não-responsabilidade, mas sem o direito essencial de
acesso à autonomia” (ÁVILA, 2011, p. 41). Nesta perspectiva, numa
sociedade que valoriza exacerbadamente a juventude e descarta a
velhice e tudo que remeta à passagem do tempo, não só os adolescentes
ficam com referenciais precários do mundo adulto para nele se inserir
com solidez, como, também, os próprios adultos ficam em condição
permanentemente “adolescida” ou “infantilizada”, por não aceitarem
o passar do tempo e a responsabilidade decorrente do crescer.
Nossa sociedade é considerada hipermoderna, regida pelos
paradigmas do hipertécnico, do hiper-individual e do hiperconsumo
(ÁVILA, 2010). Os impactos que a tecnologia e a virtualidade tiveram
na nossa realidade e em nosso cotidiano são inúmeros e inegáveis.

“De fato, as novas tecnologias da informação e da comunicação


provocam alterações profundas que já detectamos, de modo
que comprovamos como em nosso modo de vida abordamos
a satisfação de necessidades e desejos em formas novas,
visto que estes e aquelas também se modificaram ao longo do
desenvolvimento tecnológico e como as mudanças produzidas
atingem as estruturas e dinâmicas de nossa realidade social (em
suas dimensões econômica, política, ideológica, etc.).” (TAPIAS,
2006, p. 48, grifo nosso)

O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação

84 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

nos permitiram prescindir o espaço e do tempo. Elas “(...)


transformaram radicalmente o emprego do tempo, a vida cotidiana,
as modalidades de relação com os outros e a intimidade” (LE BRETON,
2017, p. 15), exercendo grande fascínio sobre os jovens e adolescentes,
que incorporam facilmente seu uso, transformando o “mundo virtual”
também em parte de seu “mundo real”.

“Para os jovens, o real e o virtual encontram-se; uma e


outra dimensão entrelaçam-se no curso de suas existências,
expandindo o espaço psíquico para o universo digital por
eles frequentado. Se as ferramentas oferecidas pela internet
são, para a maioria, formas de se diferenciarem, propícias
para a “construção de si”, no entanto, para outros - que estão
presos em suas fantasias, não se sentindo bem em suas vidas
e em busca de alternativas – elas exercem grande fascínio.” (LE
BRETON, 2017, p.15, grifo nosso)

Assim, os games, computadores, blogs e redes sociais permitem


a ampliação do repertório identificatório dos jovens, pois “(...)
fornecem o meio para o sujeito atravessar o espelho do laço social
para se reencontrar do outro lado, sem se constranger com a presença
daquele que está ao seu lado” (LE BRETON, 2017, p. 16). Para além
dos tradicionais meios que o adolescente contava como recursos
sublimatórios, de fantasia e de intelectualização (música, literatura,
artes, filosofia, sociologia, religião), a virtualidade trouxe um acréscimo
neste campo. Agora, a internet e o mundo virtual fornecem uma gama
enorme de possibilidades: jogos, blogs, redes sociais, entre outros.
No entanto, o risco é o uso exclusivo destes últimos e o consequente
abandono dos recursos sublimatórios “tradicionais”, usando a relação
com a tecnologia como uma fuga ou de maneira excessivamente
alienada e passiva.
Além disso, não podemos perder de vista a existência de um pano
de fundo no mundo virtual de uma crise de sentido permanente, do
qual os jovens internautas não passam ilesos.

“Como no “não lugar” do amplo espaço cibernético -


acrescentamos nós – é que se gera a difusa identidade

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compartilhada dos internautas, que experienciamos sempre


que circulamos por abertos espaços de trânsito, nos quais se
faz notar o peso dos excessos de um tempo saturado, que as
crises de nosso tempo convergem sobre uma ineludível crise
de sentido, que é o que se encontra no pano de fundo das
ambiguidades de nossa complexa realidade contemporânea.”
(TAPIAS, 2006, p. 62, grifo nosso)

O campo da socialização também foi fortemente marcado pelos


fenômenos da virtualidade:

“As redes sociais acompanham o adolescente em seu


processo de subjetivação (...). As redes sociais promovem
uma exposição de múltiplas identidades. Elas tornam-
se as principais ferramentas de socialização e de
experimentação para as novas gerações, um lugar de
confrontação da experiência íntima com a experiência
dos outros.” (LE BRETON, 2017, p.20)

Assim, é preciso lançar um olhar sobre a tendência do fenômeno


grupal que, aparentemente, se enfraquece no “presencial”, mas que
se fortifica no virtual. Deve-se tratar, novamente, de um processo de
agregação de repertório social e não de mera substituição do presencial
pelo virtual. Na socialização virtual, o jovem pode experimentar a
sensação de “uniformidade” e segurança com os pares, especialmente
na relação com as comunidades virtuais nas quais é possível estabelecer
identificações externas no processo de contraposição das figuras
parentais internalizadas. Novamente, o risco que se corre aqui é o
fenômeno da “bolharização”, em que só há trocas com os iguais, não
havendo espaço para a alteridade, para a diferença. A individualização
e o estabelecimento de uma identidade adulta só podem acontecer
frente ao confronto com a alteridade. A permanência na “bolha”
virtual reforça o estabelecimento de uma identidade ainda presa ao
narcisismo primário, que dificulta as manifestações de uma identidade
adulta saudável.
Também na perspectiva de Le Breton (2017), na necessidade de
fantasiar e intelectualizar, as telas funcionariam como um importante

86 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

campo subjetivo e identificatório.

“A tela favorece o jogo, a fantasia, na seriedade da existência.


(...) Quando se coloca em evidência, o jovem está em busca
da validação de seu ser, mas ele esquece que a privacidade,
ao ser desvelada, não mais lhe pertence. (...) O avatar ou a
história contada sobre si nas redes sociais, o story telling da
autopromoção, são as construções virtuais que tamponam as
faltas, unem os sonhos, corrigem insuficiências.” (LE BRETON,
2017, p. 18, grifo nosso)

Assim, há um campo fértil para a validação identitária dentro


de uma lógica de integrativa e de retroalimentação entre os meios
virtual e presencial. É necessário enfatizar também que houve um
enfraquecimento da diferenciação entre os âmbitos público e o privado,
com extrema exposição de informações íntimas num contexto público
ou facilmente “publicizável”. Daí vem o conceito de “extimidade”, para
dizer do paradoxo da exposição da intimidade nas vitrines das telas
interconectadas (SIBILIA, 2016, p. 48, grifo nosso):

“A privatização dos espaços públicos é outra face de uma


crescente publicização do provado, um solavanco cheio de
complexidades e até mesmo algumas contradições, mas que é
capaz de fazer tremer aquela diferenciação outrora tão clara
como primordial.”

Outras vezes, aparecem os “colapsos de contexto” (BOYD, 2015),


que dificultam ou impedem o reconhecimento de si por si mesmo e
também pelo outro.

“Um colapso do contexto acontece quando as pessoas são


obrigadas a lidar simultaneamente com contextos sociais
que não têm qualquer outra relação e estão enraizados em
normas diferentes e, aparentemente, exigem respostas sociais
diferentes. Por exemplo, algumas pessoas acham muito
embaraçoso darem de cara com um antigo professor do liceu
quando estão a beber com os amigos num bar. Estes colapsos
de contexto ocorrem com muito maior frequência com públicos

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 87


Daniela Piroli Cabral

em rede.” (BOYD, 2015, p. 49)

Além disso, o uso de nicknames e de identidade sem provas


de veracidade também dificulta o reconhecimento identitário: “O
indivíduo dilui-se numa multiplicidade de ramificações e de identidades
possíveis. O sujeito pós-moderno é fragmentário, capturado por um
fluxo de consumo e de signos que ele deixa transparecer sobre si, na
exterioridade, quando não há interioridade” (LE BRETON, 2017, p.22).
Em relação ao papel que a figura do ídolo tem para o adolescente,
hoje os novos heróis são “(...) ao mesmo tempo, reconhecidos em
sua banalidade e destacados magicamente pela mídia, sem que
nenhuma relação entre esses dois fatos possa ser estabelecida” (LE
BRETON, 2017, p.20). Assim, pode-se afirmar que estaria ocorrendo o
enfraquecimento da figura do ídolo como referencial de contrapartida
identitária.
Em relação à função do corpo e o estabelecimento das relações
amorosas na juventude contemporânea, fala-se da possibilidade da
“superação” do corpo.

“No cyberespaço, a ausência de rosto e de corpo autoriza tudo,


o indivíduo torna-se o que quer, no tempo que deseja. Assim,
este jovem dispõe de uma dezena de identidades virtuais para
escapar de sua existência real, e afirma, tranquilamente, que
recusa privilegiar sua identidade “com um corpo” que é, para
ele, insuportável (...) Desencarnado, ele fica indiferente ao que
acontece perto de si, impermeável ao seu entorno. Além da
tela e do controle que ele exerce sobre si, o resto do mundo lhe
parece insípido, vazio.” (LE BRETON, 2017, p. 25, grifo nosso)

Segundo Le Breton (2017, p. 26, grifo nosso),

“[...] as redes sociais, os mundos virtuais ou os videogames


autorizam uma multiplicação de si por meio do apagamento de
um corpo sexualizado, desconhecido, estranho e ameaçador
para muitos adolescentes (...) Para uns, ele (o corpo) é o lugar
de experimentação, de descoberta, uma mera ferramenta
de entretenimento, as, para outros, ele é um refúgio, um

88 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

confinamento decorrente do mundo circundante.”

Dessa forma, vê-se que o desenvolvimento do conceito de um


“novo” corpo que se apresenta de diversas formas que eximem
a presença dele, bem como propicia uma experimentação sexual
“asséptica”, sem o contato físico.

4. Considerações e (in)conclusões

Estamos vivendo em um contexto de vidas atravessadas pelas


tecnologias e indelevelmente marcadas pelas consequências delas em
nosso cotidiano. Por outro lado, vivemos ao mesmo tempo em que
tentamos entender as rápidas e constantes transformações pelas quais
passamos, individualmente e socialmente. Assim, precisamos falar,
com parcimônia de conclusões e relações, sobre os efeitos, positivos
ou negativos, da virtualidade e da adolescência. A única conclusão
possível aqui é a de que “verdadeira conclusão” só virá no a posteriori.
Tentaremos, apesar de tudo, fazer um esforço na construção de esboço
conclusivo e de considerações sobre o que foi exposto anteriormente.

“Será necessária uma perspectiva histórica mais ampla para que


a avaliação do novo seja mais ponderada, uma vez que haja mais
elementos de discernimento para distinguir o “radicalmente
novo” e, por isso revolucionário, e o “meramente novidadoso”.”
(TAPIAS, 2006, p. 49)

É inegável que não há mais uma separação clara entre o “mundo


real” e o “mundo virtual”. Os limites entre eles estão muito tênues,
com fronteiras um tanto quanto borradas. Os fenômenos virtuais
devem ser compreendidos como parte integrante e indissociável dos
processos de subjetivação relacionados à adolescência pós-moderna,
tendo impactos na construção de identidades e deixando marcas
indeléveis no futuro próximo.
Observamos que a obra de Aberastury e Knobel fornece uma base
teórica ainda sólida para pensarmos a adolescência pós-moderna,
especialmente em relação aos lutos infantis (corpo, pais e identidade).
Entretanto, os impactos da tecnologia levam à necessidade de uma
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 89
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certa atualização na síndrome normal da adolescência, especialmente


no que se refere à (2) tendência grupal, à (5) deslocalização temporal,
à (6) evolução sexual manifesta e (9) separação progressiva dos pais.
Em primeiro lugar, o papel do grupo de iguais na adolescência
atravessada pela virtualidade acabaria por ser contrário àquele
preconizado pelos autores. Em vez de ser um mecanismo de oposição
e contraponto aos pais infantis, o grupo virtual levaria para a tendência
de uniformidade excessiva e de “bolharização”.
Em segundo lugar, a nossa vivência de tempo e de espaço, adulta
e adolescente, é outra daquela descrita pelos autores. A possibilidade
de se acessar a qualquer momento “o tempo real”, de se estar em
vários “lugares” ao mesmo tempo, nos faz concluir que, atualmente,
todos nós, crianças, jovens e adultos, sofremos de certa deslocalização
temporal, sendo que as concepções de “passado”, “presente” e
‘futuro” estão mais fluidas ou se liquefizeram.
Em relação à evolução sexual manifesta, os autores tratam a
questão da definição sexual com certo moralismo, especialmente
quando tratam da experimentação homossexual. De 1980 para os
dias de hoje, o entendimento relacionado às questões de orientação
sexual avançou, no sentido de não patologizar comportamentos
homossexuais, mesmo quando são condutas não transitórias e que
continuem na fase de vida adulta.
Em relação à separação progressiva dos pais no sentido de
individualização da personalidade, cabe uma ressalva não em relação
ao processo evolutivo do adolescente em si, mas na forma como os
pais têm lidado, na sociedade atual, com seus filhos adolescentes. É
preciso que os pais vivam seus próprios lutos de pais infantis, aceitando
seu próprio envelhecimento, no sentido de facilitar o processo de
amadurecimento e independência do adolescente: “Os pais precisam
se desprender do filho criança e evoluir para uma relação com o filho
adulto, o que impõe muitas renúncias de sua parte” (ABERASTURY;
KNOBEL, 1981, p. 15). Como é possível vislumbrar o “fim” da
adolescência, já que os próprios pais estão inábeis em lidar com o fim
de sua própria adolescência? Os jovens que chegam à adolescência
hoje, o fazem num contexto de culto à juventude, num cenário que
rejeita a velhice e o passar do tempo, que é reforçado pelos próprios

90 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A vida frente as telas: configurações da adolescência e juventude na virtualidade

pais.
Finalmente, cabe dizer que, tanto em Aberastury e Knobel (1981),
quanto em Le Breton (2017), há uma certa cautela em patologizar
os fenômenos da adolescência. Apesar de toda marginalização e
inconformidade social, de toda turbulência e confusão do processo
e de toda provocação e transformação que a adolescência provoca
em seu meio, ela não é um processo necessariamente patológico,
não necessitando de tratamento. Assim como os psicanalistas
afirmaram há quase 40 anos ser difícil assinalar o limite entre o
normal e o patológico na adolescência, considerando toda a oscilação
e instabilidade deste período de vida como normal, Le Breton (2017)
considera que a patologização e a medicalização da adolescência
deve ser compreendida dentro do modelo de sociedade na qual nos
inserimos. Além disso, verifica-se na nossa sociedade, “(...) o aumento
do uso de vocabulário patologizante para evocar comportamentos
singulares” (LE BRETON, 2017, p. 29).

Referências

ABERASTURY, A.; KNOBEL, M. Adolescência normal: um enfoque


psicanalítico. Porto Alegre: Artmed, 1981.

AVILA, L. A. Adolescência sem fim. Vínculo, São Paulo, v. 8, n. 1,


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BOYD, D. É complicado: as vidas sociais dos adolescentes em rede.


Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2015.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Edição Standard das Obras


Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, Vol. XXI, 1976. p.
74-171. (Trabalho originalmente publicado em 1930)

LE BRETON, D. Adolescência e comunicação. In: LIMA, N. L. et al.


(orgs.). Juventude e cultura digital: diálogos interdisciplinares. Belo

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 91


Daniela Piroli Cabral

Horizonte: Artesã, 2017, p. 15-31.

OLIVEIRA, H.M; HANKE, B.C. Adolescer na contemporaneidade: uma


crise dentro da crise. Ágora, Rio de Janeiro, v. XX, n. 2, p. 295-310,
2017.

SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2016.

TAPIAS, J. A. Internautas e náufragos: a busca do sentido na cultura


digital. Edições Loyola: São Paulo, 2006.

Sobre a autora

Daniela Piroli Cabral


Psicóloga clínica e do trabalho, graduada em Psicologia pela PUC-MG e em
Terapia Ocupacional pela UFMG. Atualmente atua como psicóloga concursada
da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e também em consultório particular.
Colunista semanal em Psicologia do Blog Mirante, do Estado de Minas.
E-mail: contato@danielapiroli.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4161518626762717

92 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


6

Psicologia e juventudes:
entre concepções e
metodologias, a escuta
com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social
Psychology and youth(s): between
conceptions and methodologies,
listening with young people in contexts
of (post) social distance

Bruno Márcio de Castro Reis

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 93


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

Resumo

Este artigo visa discutir criticamente a relação da Psicologia com as


juventudes, na história e no tempo presente. Busca colaborar com a
compreensão das realidades juvenis, assim como refletir sobre práti-
cas de psicólogas (os) junto às juventudes, fomentando novas estra-
tégias metodológicas. Diante da suspensão de aulas presenciais, bem
como os impactos sociais, educacionais e psicológicos da pandemia
de Covid-19 e do distanciamento social, acreditamos que a Psicologia
pode contribuir no fortalecimento e articulação de processos colabo-
rativos e emancipatórios. Para tanto, estão entre as referências deste
estudo: Stengel e Dayrell (2017), Santos e Reis (2012), Pinto (2012),
Vieira (2019), Borges (2019), Silva Junior (2018), Barreto (2019), entre
outros. Ao final, esperamos contribuir para inspirar práticas psicosso-
ciais dialógicas, éticas e transformadoras, considerando saberes e po-
tencialidades das Psicologias e das juventudes.

Palavras-chave: Psicologia; Juventudes; Práticas Psicossociais;

Abstract

This article aims to critically discuss the relationship between psycho-


logy and youth(s), in the plural, in history, and in the present time. It
seeks to collaborate with the understanding of youth realities, as well
as to reflect on the practices of psychologists with young people, pro-
moting new methodological strategies. In light of the suspension of
in-person classes, as well as the social, educational, and psychological
impacts of the Covid-19 pandemic and the social distancing, we belie-
ve that psychology can contribute to the strengthening and articula-
tion of collaborative and emancipatory processes. To this end, some
of the references in this study are Stengel and Dayrell (2017), Santos
and Reis (2012), Pinto (2012), Vieira (2019), Borges (2019), Silva Junior
(2018), Barreto (2019), among others. Finally, we hope to contribute
to inspiring dialogic, ethical, and transformative psychosocial practi-
ces, considering the knowledge and potentialities of psychology and
youth(s).

94 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a escuta com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social

Keywords: Psychology; Youth(s); Psychosocial Practices.

1. Introdução

A inclusão de psicólogas (os) nas equipes de referência de políticas


públicas brasileiras tem garantido a presença de trabalhadoras(es)
da área em diversos serviços, programas e projetos públicos. Além
disso, psicólogas(os) estão presentes em ações do terceiro setor
tanto nas iniciativas integralmente privadas ou nos casos em que o
Estado transfere a execução de políticas públicas para organizações de
sociedade civil (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012). No campo
da educação, em 11 de dezembro de 2019, foi promulgada a Lei 13.935,
a qual prevê a prestação de serviços de Psicologia e serviço social na
rede pública de educação básica. Entendemos que leis como essa
ampliam oportunidades de trabalho de psicólogas(os) em diferentes
espaços.
Tal ampliação enseja reflexões sobre os desafios contemporâneos
relativos à pandemia e à história da Psicologia nas instituições.
Abordagens e práticas individualizantes, classificatórias e excludentes
marcaram a relação da Psicologia com a educação (ROCHA, 2008).
Igualmente importante é destacar que foi sobre corpos negros e pobres
que essas práticas pesaram, gerando interdições no acesso aos direitos
(CARNEIRO, 2005). Como orientadoras das práticas, as concepções
construídas sobre sujeitos com quem se atua exercem papel
fundamental nos diferentes contextos de trabalho de psicólogas(os).
Nesse sentido, retomar os modos como a categoria juventude vem
sendo abordada na Psicologia pode ser ferramenta para uma atuação
crítica e para subsidiar a construção de metodologias de trabalho com
jovens.
Este texto está dividido nas seguintes seções: uma em que
apresentamos e discutimos concepções, clássicas e atuais, de
juventudes no âmbito dos estudos em Psicologia. Em seguida tratamos
de diversidades e desigualdades de raça, classe e gênero como
dimensões inseparáveis da construção de uma Psicologia, como ciência
e profissão, mais justa e solidária. Na seguinte, discutimos questões
emergentes, em especial a educação no contexto pandêmico e o

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 95


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

desafio do retorno às aulas presenciais. E a última é um convite para


pensar estratégias metodológicas na interface da Psicologia com as
juventudes, em perspectiva transformadora. Desejamos que a leitura
inspire a busca por soluções e a coragem de exercer enfrentamentos
necessários.

2. Psicologia e juventudes: aproximações conceituais

As juventudes têm ocupado pouco os debates científicos e


profissionais na Psicologia. Debate ainda comumente ancorado ou
confundido à adolescência. Passaremos por tal ancoragem para
compreender concepções e fazeres “psi” sobre e com jovens. O
Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) é um marco importante para
entender o significativo espaço que a adolescência tem nas teorizações.
Conquista alcançada no reconhecimento de adolescentes como
sujeitos de direitos, o ECA rompeu com a primazia do termo menor
para fazer referência aos adolescentes das classes pobres (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2003), compostas em sua maioria por negros (IBGE,
2019).
Nas políticas públicas, são definidos públicos de referência por
marcos legais que estabelecem faixas etárias específicas. No Brasil,
como fruto de mobilizações, foi promulgado o Estatuto da Juventude
(EJ), Lei 12.852, de 2013, que estabelece a idade entre 15 e 29 anos
para a juventude. Já organismos internacionais têm definições diversas;
a Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, classifica como
jovens pessoas entre 15 e 24 anos de idade.
Há, então, para além do fator etário, muitos elementos a considerar
nas definições sobre juventudes. Para Bourdieu (1983), ao classificar
grupos sociais por idade, impõe-se limites e produz-se a ordem de
papéis que cada grupo deve ter em relação ao outro. A juventude não
é algo dado, mas uma construção, e como tal expressa significados
cultural e politicamente produzidos. Assim, divisões etárias traduzem
distribuição de poder nas relações, indicando (como na divisão racial,
de gênero e classes) lugares que cada grupo deve ocupar no trabalho,
educação, família, entre outros.

96 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a escuta com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social

“Estabelecer um conceito é ter uma compreensão generalizante,


ou seja, buscar uma única explicação para uma série de
coisas que se interrelacionam em movimento. Juventude,
ou juventudes, é um conceito em andamento, em constante
construção, posto que tanto os processos de reflexão como
os empíricos se dão em um contexto, no qual os discursos e
conteúdos são produzidos na teia de sentidos e significados
que as pessoas tramam, entretecem em meio ao vivido, em
um território sócio-histórico e cultural.” (TRANCOSO; OLIVEIRA,
2015, p.242)

O conceito de juventudes situa-se num campo de disputas, as quais


expressam diferentes concepções e projetos de sociedade (PINTO,
2012). Não há, portanto, neutralidade conceitual. Ao adotarmos
concepções de juventudes na Psicologia, estamos posicionando-nos
em um cenário epistêmico e político muito mais amplo, no qual nossa
prática reverbera.
Em estado da arte sobre adolescência e juventude em 41
programas de pós-graduação (PPG) de Psicologia, Stengel e Dayrell
(2017) analisaram pesquisas entre 2006 e 2011, em instituições
públicas e privadas. Constataram que tais categorias ocuparam 10%
da produção dos PPGs, número relativamente alto. A violência foi
o tema mais recorrente, desdobrando-se em subtemas como ato
infracional e medidas socioeducativas. As nomeações mais comuns
foram adolescentes e jovens em conflito com a lei ou delinquentes.
Notamos, assim, que anos após o lançamento do ECA e do EJ, persiste
a nomeação que reproduz estereótipos, evidenciando tendências
pouco críticas nos modos de perceber, classificar e atuar em Psicologia.
Trassi e Malvasi (2010), abordam o necessário rompimento da
associação juventude e violência. Refletem que é comum escutarmos
e reproduzirmos que “o mundo hoje é muito violento”, acionando
a associação da violência às juventudes. Problematizam, de modo
pontual, processos de criminalização, encarceramento, extermínio
e controle da circulação de segmentos juvenis pela cidade. Ajudam-
nos, assim, a compreender juventudes como categoria psicossocial
construída por fatores históricos, sociais, econômicos, culturais e,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 97


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

acrescentemos, políticos, raciais e de gênero.


Tais considerações promovem deslocamentos que aproximam
a Psicologia de múltiplas experiências e expressões juvenis. É
importante também colocarmo-nos na cena de pesquisa e atuação
com jovens, buscando perceber de que posição e a partir de quais
experiências olhamos, produzimos conhecimento e intervimos com
tais sujeitos. Embora Trassi e Malvasi (2010) defendam quebrar a
associação juventude e violência; de forma contraditória, acabam
por fortalecer essa ligação discursiva afirmando reiteradamente que
a baixa capacidade de consumo de bens materiais é que coloca jovens
pobres na rota do crime, do ato infracional e na mira da violência.
Na sua percepção, movidas(os) pela identificação com
símbolos dominantes de sucesso (consumo de bens materiais e
tráfico de drogas) jovens têm formado uma cultura guerreira, suicida
e violenta, sendo os pobres as maiores vítimas e autores da violência
(TRASSI; MALVASI, 2010). De que lugar social, racial e de gênero
fazem tais afirmações? Que outras parcelas das juventudes isentam
com base no determinismo social para o ilícito? “Ao se exporem nas
ruas portando substâncias ilícitas, os jovens que trabalham no tráfico
tornam-se os sujeitos privilegiados da violência policial.” (TRASSI;
MALVASI, 2010, p.73). Com que referências epistêmicas constroem
análises e argumentos num livro que propõem como instrumento
do compromisso social da Psicologia? Convocam majoritariamente
produções europeias para ler a realidade brasileira; enquanto aqui o
que mata não necessariamente é o envolvimento com o crime, mas
uma espécie de autorização para matar com base na cor da pele, classe,
local de moradia, gênero, orientação sexual, entre outros fatores que
se cruzam nas trajetórias juvenis.
Notemos o quanto a Psicologia precisa avançar em debates críticos
sobre juventudes. Embora haja esforços em conceituar juventudes
como categoria múltipla, encontramos contradições que contribuem
para o aprisionamento em lugares subalternos. Vê-se com recorrência,
em debates da Psicologia, as juventudes entendidas como sinônimo de
adolescência ou reduzida a momento de transição. A adolescência é
conceito oriundo de modelo médico-clínico, focado em processos que
se passam com o indivíduo, com pouca preocupação social (FONSECA,

98 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a escuta com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social

2003). Priorizar a compreensão do conceito de juventudes reflete


uma opção epistemológica de afastamento de uma clínica organicista,
pouco afeta às dimensões socioculturais (SANTOS; REIS, 2012). Além
da frequente menção à violência, referida anteriormente, Stengel e
Dayrell (2017) constataram que “desenvolvimento” foi o quinto tema
mais presente no estado da arte sobre adolescência e juventude na
Psicologia.
Entre teóricos da Psicologia do Desenvolvimento está Erik Erikson.
Partindo de bases psicanalíticas, ele considerou fatores sociais para
a identidade e propôs modelo de desenvolvimento psicossocial em
etapas. Definiu a adolescência como moratória e momento de confusão
de papéis (FONSECA, 2003) entre a criança passada e o adulto futuro.
Tal teorização tem sido revisitada na Psicologia, revelando um caráter
pretensamente universalista e a-histórico (MAYORGA, 2006). Não nos
parece, contudo, que seja capaz de abarcar a diversidade racial, de
gênero e classes (FONSECA, 2003), e tampouco as desigualdades e
resistências que daí emergem.

3. Realidades juvenis e desafios contemporâneos

“Quando descíamos o morro, lá na praça, rapazes alegres, bem


vestidos, brincavam, conversavam ao sol. Eram tidos como
sujeitos contestadores, estudantes, intelectuais. Os filhos de
Ana do Jacinto, jovens vagabundos, perturbadores, marginais.”
(EVARISTO, 2017, p.157)2

Em diálogo com referências da Psicologia social, sociologia e

2 Os filhos da personagem Ana do Jacinto são jovens moradores de uma favela destruída por política urbana
de desfavelamento na metrópole. Na sua escrevivência, escrita implicada com a vida e experiências da popu-
lação negra, sobretudo de mulheres negras, Conceição Evaristo faz-nos ver conexões entre sua literatura e sua
trajetória negra feminina. Ex-moradora da Favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, espaço removido para
construção de avenidas, ruas e do Mercado do Cruzeiro (ponto turístico da capital), a professora e escritora
mineira trabalhou como empregada doméstica durante sua juventude. Quando conseguiu formar-se no curso
normal, foi desencorajada por uma das patroas, a qual afirmou que pouco adiantaria para jovens mulheres
negras como ela estudarem, pois nunca conseguiriam ser indicadas para trabalho como professora. Conceição
Evaristo mudou-se para o Rio de Janeiro, foi aprovada em concurso de magistério, deu aulas, concluiu mestrado
e doutorado. O reconhecimento de sua escrita veio apenas quando já era idosa, o que nos ajuda a desconstruir
discursos de meritocracia e a enxergar interdições impostas pelo racismo associado ao sexismo.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 99


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

educação na América Latina, Vieira (2019) constata contradições


na definição de juventude, categoria que aparece ora como algo
desejável, ora como não ser no presente ou vir a ser cujo sentido é a
vida adulta. Trata-se de perspectiva linear, adultocêntrica, evolucionista
e maturacionista (PINTO, 2012; VIEIRA, 2019) que reforça tradicionais
concepções em Psicologia sobre adolescência. Em seu estudo Vieira
(2019) cita três vertentes de estudos que abordam jovens como atores
políticos, problema social ou cidadãos. Na vertente de atores políticos,
no Brasil, estão olhares sobre jovens que lutaram contra a ditadura
militar, em sua maioria brancos e de classe média. Tais estudos
deixaram de considerar as resistências de juventudes negras e pobres.
Estudos que enxergam jovens como problema social ganharam força
no Brasil na década de 1990, quando debates sobre vulnerabilidade,
risco social e violação de direitos intensificaram-se (VIEIRA, 2019).
Contudo, tais debates não rompem a associação discursiva de jovens
negros, pobres e periféricos à violência. Pesquisando trajetórias de
jovens na região metropolitana de Belo Horizonte, Reis (2018) constata
que morar na favela e ser negro têm considerável peso nas abordagens
policiais assim como observa as atividades culturais empreendidas por
jovens, no entanto, marginalizadas ou destituídas de reconhecimento
público como “cultura”. Problematização que aprimora olhares e
escutas com jovens.
Já a terceira vertente de estudos latinoamericanos trata jovens
como cidadãos, destacando a pluralidade de vozes, modos de existir,
culturas e resistências, além de valorizar saberes das(os) próprias(os)
jovens na produção de conhecimento. Vieira (2019) identifica nas
duas primeiras uma homogeneização: juventude numa perspectiva
de participação política plena ou num estereótipo de apatia e
criminalização. Assim, a última vertente de estudos parece ser a mais
próxima de uma orientação que possibilita entender a existência de
juventudes, no plural. Incluindo sua posição e experiência no campo
do ativismo juvenil e da pesquisa com jovens, Vieira (2019) convida-
nos a olhar para as juventudes como sujeitas que vivenciam múltiplas
características e relações complexas. “Afinal, a juventude não é um
conceito abstrato ou uma fase da vida e sim uma ação!” (MAYORGA,
2019, p. 11).

100 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a escuta com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social

Quando na Psicologia falamos em desigualdades e suas


implicações, têm sido comum o uso de teorias que destacam questões
socioeconômicas de classe social. Reconhecemos a importância dos
deslocamentos produzidos pela Psicologia social que construiu suas
bases em leituras marxistas e marxianas. Todavia, há outros marcadores
que compõem subjetividades e definem lugares na sociedade.
Guimarães (2017) observa como nas Américas práticas
de resistência têm constituído-se por referenciais eurocentrados,
impedindo que vejamos conflitos que estão para além da luta de
classes. No Brasil, processos de escravização e genocídio com base na
raça são marcas históricas. Essas reflexões convocam-nos à ruptura
de pactos coloniais de silenciamento e invisibilização de sujeitos
racializados, gendrados, de diferentes orientações sexuais. Silva Junior
(2018) identifica que jovens classificados como nem nem são, em sua
maioria, pobres e mulheres negras que têm filhos de até um ano.
A nomeação “nem nem” tem sido utilizada para jovens
que não estão vinculados formalmente à escola e ao trabalho;
desconsiderando outros espaços educacionais e atividades de trabalho
como o doméstico, informal ou ilegal. Assim, com base em estatísticas,
tem-se produzido discursos que colocam jovens pobres e negras(os)
como problema social, vulneráveis e em risco, sem considerar suas
trajetórias e experiências (SILVA JUNIOR, 2018).

“Antes de serem vistos/as como jovens que não estudam e


nem trabalham, os/as jovens pobres, pretos/as, periféricos/
as precisam ser compreendidos/as como distantes do acesso
a outros direitos sociais, como saúde, habitação, transporte
e mobilidade, cultura e arte, lazer e esporte, diversidade e
igualdade, comunicação e liberdade de expressão, participação
social e representação política. O/a jovem nomeado/a nem nem
é, portanto, um simulacro (Baudrillard,1992) dos/as jovens que
têm seus direitos negados cotidianamente, mas cuja imagem
como ociosos/a pode servir para perpetuar práticas de controle
e extermínio, como no caso do genocídio da juventude negra,
contra uma juventude reatualizada como classe perigosa.”
(SILVA JUNIOR, 2018, p. 146)

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 101


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

O genocídio do povo negro no Brasil é prática eficaz, insidiosa,


difusa e evasiva (NASCIMENTO, 2016) que atinge não somente o
corpo, mas nega perspectivas de vida, liberdade e acesso aos direitos.
Uma forma de tentar matar pode ser encontrada no impedimento da
realização de uma potência, como a de estudar, de circular pela cidade
e de receber atenção em saúde. Falar em juventudes implica, dessa
maneira, considerar não somente diferenças e multiplicidades, mas
hierarquizações sociais, raciais e de gênero (re)produzidas nas relações
de poder cotidianas, institucionais e no interior de ciências, como as
psicológicas.

“É necessário considerar o fator geracional com suas


problematizações, juntamente com outros elementos
analíticos, como as relações de gênero em uma sociedade
marcadamente patriarcal, as relações raciais e a forma pela qual
estes marcadores recaem especificamente sobre a juventude
(Margulis & Urresti, 1996). A juventude por si só não tem sido
uma condição que equipare os jovens, passando a referir-
se a situações específicas de exclusão e sofrimento (racismo,
sexismo, homofobia, dentre outras).” (PINTO, 2012, p.47)

Diante da complexidade de articulações entre elementos que


compõem as experiências juvenis, a desqualificação de algumas
juventudes e a romantização de outras, muitos estudos seguem
desracializados, sem gênero e sem classe (BORGES, 2013), sem
considerar impactos de seu cruzamento.

“Dificilmente veremos as jovens brancas da classe média sendo


apontadas como causadoras da violência, ou como aquelas que
são portadoras de uma sexualidade precoce. Da mesma forma,
quando estes autores que, geralmente são homens brancos
e não são pobres, estão falando de protagonismo juvenil, não
ouviremos falar sobre protagonismo das jovens indígenas. E
quando falam sobre juventude e sexualidade em seus aspectos
múltiplos provavelmente não estão falando sobre a sexualidade de
jovens deficientes. Assim, também quando a questão é juventude
e mercado de trabalho, as jovens travestis que trabalham na
prostituição não são consideradas.” (BORGES, 2013, p.49)

102 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a escuta com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social

Um dos desafios à atuação da Psicologia com jovens é romper


com concepções naturalizadas de inferiorização, as quais contribuem
para manter algumas juventudes na invisibilidade e em lugares
subalternizados. Tarefa complementada pela necessidade de escapar
aos olhares universalizantes, que buscam uma espécie de essência
juvenil (BORGES, 2013), sobretudo quando se trata de jovens brancos
(as) das classes médias. A seguir focalizaremos desafios emergentes
que, somados às questões estruturais, constituem questões à
Psicologia.

4. Entre diversidades e desigualdades: os jovens, a educação e


o futuro

São muitos os desafios que perpassam a realidade brasileira. A


escola tende a receber em seu interior conflitos e contradições da
própria sociedade (CORTI, 2009) e vê-se desafiada “a romper com
as estruturas que produzem e reproduzem esta desigualdade entre
os jovens de uma mesma geração”. (FRIGOTTO, 2009, p. 28). Em
análise perspicaz, Gaudêncio Frigotto cita ao menos duas formas de
diversidade. Uma “rica em possibilidades”, em capacidade criativa,
que é resultado de um contexto de igualdade de condições, e outra,
“pobre”, resultado da desigualdade de oportunidades e condições
(FRIGOTTO, 2009). Quando falamos em diversidade, o que estamos
concebendo ou classificando como diverso? Uma diferença produtiva,
rica em possibilidades? Ou uma diferença distintiva sustentada pela
desigualdade?
Compreendemos que as configurações sociais e políticas que
organizam e caracterizam a sociedade brasileira em seu conjunto,
se fazem sentir e perceber nas relações cotidianas e nos diferentes
aspectos da vida. Se reconhecermos que o Brasil é marcado por
profundas desigualdades que perpassam, sob diferentes aspectos
e formas, a realidade educacional, não nos causará surpresa que a
pandemia, com suspensão das aulas presenciais, tornou ainda mais
evidente, e discrepante, as desigualdades no país.
Se observarmos o acesso à equipamentos e à internet, requisitos
básicos para aulas remotas, percebemos o quão desafiador vem sendo

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 103


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

a continuidade de estudos. Problemas relacionados à infraestrutura e


cobertura de internet não são exclusivos do Brasil. A Organização das
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) alerta que o
hiato entre os que estão online e os que estão offline configura a nova
face de desigualdades no mundo. A exclusão do acesso à internet,
vem mostrando-se também uma questão de vida ou morte no cenário
pandêmico, por restringir o acesso à comunicação, ou à comunicação
confiável (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 2020).
Arruda (2020) apresenta uma análise a respeito do acesso à internet
no Brasil. O estudo considera pessoas acima de 10 de idade e classifica
seu público entre estudantes, estudantes de rede privada, estudantes
de rede pública e não estudantes. Além disso, leva em consideração a
região de residência dessas pessoas. Embora considere dados de 2018,
trata-se de uma análise produzida a partir das informações da Pesquisa
Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD). Arruda (2020) indica-nos
que em todas as regiões do Brasil o índice de estudantes de escolas
privadas que acessam a internet está acima de 90%, enquanto entre
estudantes da escola pública, apenas a região Sudeste apresenta índice
superior aos 90%, seguida pelas regiões Sul (89,3%) e Centro Oeste
(87,8%). Maior diferença se percebe nas regiões Nordeste (73,4%) e
Norte (65,4%) (ARRUDA, 2020). Vale destacar que a análise de acesso
à internet não revela necessariamente o nível de conhecimentos
tecnológicos, a qualidade do acesso e da conexão, aparelhos pelos
quais se faz acesso (celulares ou computadores), regularidade de
acesso (frequência) e tempo de permanência (duração do acesso).
Uma pesquisa realizada com estudantes de escola pública em
cidade de médio porte em Minas Gerais aponta que boa parte
de estudantes acessam a internet pelo celular. Em muitos casos o
aparelho é compartilhado com irmãos e outros familiares, em outros
casos são aparelhos emprestados pelo pais. Acessam a internet por
planos de pacote de dados limitados (ALMEIDA; NETTO; SOUZA, 2019).
Como, em condições tão desiguais, estudantes brasileiros vivenciam
o período de ensino remoto na educação básica? Enquanto escolas
particulares, não sem dificuldades e limites, tiveram poucos dias de
suspensão das aulas3 presenciais, as escolas públicas passaram alguns
meses sem elas. Mesmo retornando às aulas na modalidade remota

104 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a escuta com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social

são muitos os obstáculos a serem enfrentados pela comunidade


escolar em ambas as redes.
Sabemos que os desafios são enormes, pois o problema e sua
solução estão para além da escola. Ao se comparar os protocolos de
retorno às atividades presenciais, vê-se pontos comuns. A nota técnica
produzida pelo Todos pela Educação, uma organização da sociedade
civil, sem fins lucrativos, que atua no monitoramento de indicadores e
políticas educacionais, indica, baseado em experiências internacionais
de países que estão em outro estágio de enfrentamento da pandemia,
tendências e perspectivas para o retorno das aulas e, passados pouco
meses de sua redação, segue atual e relevante para o cenário nacional.
O que esta nota técnica nos aponta? Os desafios da pandemia só
poderão ser enfrentados pelas escolas com apoio e articulação de
outras áreas, ou seja, de forma intersetorial. Destaca em especial a
área da saúde e da assistência social. Aponta também que o retorno
às aulas exigirá planos de ações complexos e contextualizados
localmente. Considera que estamos em um cenário inédito e que o
retorno às aulas deve ocorrer gradualmente, atento à saúde física e
emocional de estudantes e profissionais da educação. A nota técnica
aponta ainda que estamos diante de uma oportunidade de instituir
importantes mudanças no sistema educacional, além dos aspectos da
nota aqui já destacados, retrata ainda o uso da tecnologia como aliada
nos processos educativos (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020).

5. Psicologia e juventudes: compromissos e caminhos de


atuação

Em um ambiente de desigualdades e injustiças, o compromisso


social da Psicologia, encarnado nas práticas profissionais, pode ser
catalisador de transformações pessoais e coletivas. É extensa a lista

3 Não desejamos generalizar e reconhecemos que muitas escolas particulares de médio e pequeno porte en-
frentaram muitas dificuldades, inclusive algumas encerrando suas atividades ou perdendo muitos alunos em
razão das dificuldades de se adequarem à realidade do ensino remoto. Neste momento do texto, nos referimos
especialmente às escolas particulares de médio e grande parte que, em comparação às particulares de peque-
no porte, e à rede pública, responderam bem mais rapidamente.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 105


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

de psicólogas(os) que compreendem que seu exercício profissional


é inevitavelmente também uma ação política, perspectiva da
qual compartilhamos. A postura crítica é fundamental, para nós
profissionais, por diferentes motivos. Nossas concepções e valores
incidem diretamente sobre nossos discursos e práticas, e no aspecto
da ação relaciona-se diretamente com nossas escolhas metodológicas,
objetivos, ações desenvolvidas e avaliações que delas fazemos.
Entendemos a escola como ambiente complexo em que parcela
expressiva de jovens se encontram. No que tange à experiência
educacional, além de impactos da pandemia sobre as aulas, há
questões relacionais, da dimensão cultural e afetiva, importantes
e igualmente formativas. Considerando ações no âmbito escolar,
sem querer formar um manual, mas apontar caminhos possíveis de
atuação, são importantes as estratégias de ação que se formem no
diálogo com jovens. É fundamental assegurar espaço seguro de escuta
e acolhimento, bem como garantir acolhimentos individuais e coletivos.
Na linha de ações coletivas, no que tange ao cuidado emocional
e a promoção da saúde, acreditamos que experiências como as
desenvolvidas por Adalberto Barreto (2019), pode inspirar práticas
potentes. Trata-se de uma ação de caráter sistêmico e integrativa, que
considera que sujeitos, problemas e crises só podem ser entendidos
na compreensão da rede complexa que os constitui (BARRETO, 2019).
É uma abordagem integrativa, pois aposta que todos os saberes são
importantes e devem ser valorizados na promoção da saúde e do bem-
estar. Nesse sentido, valoriza a cultura e os saberes de cada um; faz
circular o poder entre o grupo retirando-o da figura de um especialista,
líder ou autoridade (BARRETO, 2019).
Se bem reconstruída para o ambiente escolar, experiências coletivas
e comunitárias tais como as desenvolvidas por Barreto (2019) podem
abrir espaço de escuta, reconhecimento, partilha de dificuldades,
construção de soluções e fortalecimento de vínculos. Ao apostar
que “carência gera competência” (BARRETO, 2019, p.93) indica que
a comunidade tem força; que sistema, comunicação e cultura são
elementos fundamentais na compreensão do sofrimento de pessoas e
grupos (BARRETO, 2019). As juventudes têm protagonizado diferentes
experiências coletivo-políticas com as quais a Psicologia pode dialogar e

106 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia e juventudes: entre concepções e metodologias, a escuta com jovens em contextos de
(pós) distanciamento social

se inspirar. Isso tem potencial, inclusive, de evitar qualquer associação


à clínica individual ou à psicologização da proposta e das questões
institucionais.
As rodas de conversa como metodologia psicossocial participativa,
dialógica, afetiva e reflexiva (AFONSO; ABATE, 2008) podem se mostrar
como importantes dispositivos de expressão, cuidado e transformação.
Os temas podem ser escolhidos coletivamente, e a condução dos
encontros pode ser acompanhada por um profissional, mas, mais
interessante seria que cada encontro, ou roda, fosse conduzido por
diferente pessoa ou dupla, com participação ativa dos estudantes, de
forma a desenvolver habilidades, desafiar o grupo e fortalecer os laços
de compromisso e solidariedade.

6. No presente, construindo o futuro: a psicologia afetada pelas


juventudes

Vivemos momento importante na educação com as diretrizes


da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Cabe ressaltar que a
BNCC prevê habilidades e competências a serem desenvolvidas por
estudantes durante a educação básica, entre elas, as socioemocionais.
Sabemos que habilidades e competências não são desenvolvidas
de uma hora para outra, mas são resultado de ações planejadas,
articuladas e processos educativos com intencionalidade, que
produzem experiências com sentido e significado.
O contexto escolar resultante do distanciamento social, da BNCC
e da Lei 13.935/2019, torna-se espaço a ser construído, ocupado e
ressignificado por psicólogas(os) no Brasil. Trata-se de oportunidade de
participar de forma consistente da construção de uma educação menos
cognitivista e conteudista, e mais dialógica, empática, compreensiva e
afetiva. É preciso compreender e problematizar desafios dos universos
juvenis na realidade brasileira, do campo escolar e da formação
em Psicologia, aproximando psicólogas(os) de concepções críticas
sobre juventudes em meio ao cenário desafiador e em constante
transformação.
Outro caminho a ser trilhado diz respeito à atuação estratégica
junto às políticas públicas, atuando de forma a possibilitar ações e

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 107


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

políticas intersetoriais. A visão sistêmica permite compreender que os


fenômenos são complexos e a construção de suas soluções também o
devem ser. Promover a intersetorialidade é um desafio ao qual somos
chamadas(os) a responder.

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110 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


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Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 111


Bruno Márcio de Castro Reis, Karina Pereira dos Santos

Sobre os autores

Bruno Márcio de Castro Reis


Psicólogo e mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas, Atua como Orientador
Educacional em colégio da rede privada em Belo Horizonte. Integra o grupo
de pesquisa Psicologia Social, Trabalho, Política e Processos Psicossociais da
PUC Minas.
E-mail: bmarcio.reis@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8251041319174967

Karina Pereira dos Santos


Psicóloga pela PUC Minas, mestranda em Psicologia Social pela UFMG, atua
como Analista de Políticas Públicas na Prefeitura de Belo Horizonte. Integra o
Núcleo de Pesquisa, Ensino e Extensão Conexões de Saberes e o Programa de
Educação Tutorial (PET) Conexões de Saberes.
E-mail: karinasantospsi@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0998295256318641

112 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


7

Psicologia, adolescências,
juventudes e desigualdade
social: um diálogo necessário
para a visualização do
sujeito e da sua
subjetividade
Psychology, adolescence, youth and
social inequality: a necessary dialogue
for the realization of the subject
and its subjectivity
Núbia Vieira de Souza

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 113


Núbia Vieira de Souza

Resumo

O presente artigo apresenta problematizações que partem de um


olhar decolonial para a prática de psicólogos e psicólogas com sujeitos
adolescentes e jovens que são colocados à margem. As considerações
tecidas por meio de um breve histórico da concepção da Psicologia
como ciência e profissão serão utilizadas para contextualizar a prática
dos profissionais de Psicologia frente aos desafios do trabalho com
os adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social. De
igual modo foi realizado um desenho conceitual sobre adolescências e
juventudes que possibilita entender como as nuances históricas desses
conceitos, as distintas noções sobre o tema e o contexto social no qual
estes sujeitos estão inseridos podem fazer com a prática dos psicólogos
e psicólogas seja crítica e produza mudanças no tecido social. Para tal,
adotou-se como demarcação teórica as ideias de sociedade seletiva
e criminalização da pobreza, para que assim, a prática da Psicologia
possa avançar para uma postura crítica e atenta as vulnerabilidades
dos diferentes sujeitos.

Palavras-chave: Psicologia. Adolescências. Juventudes. Vulnerabilidade


social.

Abstract

This article presents problematizations arise from a decolonial look


at the practice of psychologists with subjects who are placed on the
sidelines, adolescents and young’s. The considerations made through
a brief history of the conception of psychology as a science and a
profession will be used to contextualize the practice of psychology
professionals in the face of the challenges of working with adolescents
and young’s in a situation of social vulnerability. Likewise, a conceptual
drawing on adolescence and youth was carried out, in order to
understand how the historical nuances of these concepts, the different
notions on the theme and the social context in which these subjects
are inserted can produce a critical practice by psychologists and make
changes in the social fabric. To this end, the ideas of selective society and

114 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

criminalization of poverty were adopted as a theoretical framework, so


that the practice of psychology can move towards a critical posture and
awareness of the vulnerabilities of different subjects.

Keywords: Psychology. Adolescence. Youth. Social vulnerability.

1. Introdução

Este trabalho apresenta aspectos teórico-conceituais das principais


categorias que contribuíram para a definição do campo de investigação
da dissertação de mestrado intitulada “SISTEMA SOCIOEDUCATIVO,
EJA E PRÁTICAS EM PSICOLOGIA: um estudo acerca da articulação
entre o normativo, o teórico e o realizado”. Essa pesquisa se propôs
à problematização entre o prescrito e o realizado pelas Equipes
Técnicas das Unidades Socioeducativas de privação de liberdade com
enfoque na prática do profissional da Psicologia, nos atendimentos
realizados junto a adolescentes que cumprem medida socioeducativa.
Como meio de produção de conhecimento foi abordado o olhar da
Epistemologia Qualitativa fundamentado no método construtivo-
interpretativo defendido por Fernando González Rey, a partir da leitura
de documentos (Planos Individuais de Atendimento (PIA) e Relatórios
de Desligamentos) e realização de grupo focal.
A apresentação de tais elementos, é demarcada por uma
contextualização política, econômica e social na tentativa de localização
do significado atribuído às temáticas abordadas, em contraponto a
matriz hegemônica de pensamento para produção de crítica a respeito
de atuações que reproduzem uma lógica determinante sobre os
sujeitos que se encontram à margem. A compreensão da origem do
significado atribuído a essas noções auxilia na percepção de como o
sentido remetido a elas afirmam um discurso uniforme, mas também
apresentam saídas de contraposição.
O resgate histórico de como a Psicologia constrói sua identidade
de atuação como ciência, principalmente a partir da delimitação do
tema de estudo e com o auxílio das instituições na sustentação da sua
atuação, me fez questionar a que de fato a ciência se propõe. Como
essa proposição de atuação apresenta crítica frente ao modelo ideal

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 115


Núbia Vieira de Souza

e limitado do que é adolescência e juventude em contraponto com as


possibilidades de reconhecer que existem várias formas de se perceber
os adolescentes e jovens situados no contexto histórico, político,
social e econômico que permeia a sua condição de vida em situações
de desigualdade e violência. Entretanto, diante dessas contradições
sociais é possível adotar posturas educativas de caráter libertador que
podem romper com práticas criminalizantes e segregativas.

2. Breve histórico da psicologia: a emergência de práticas


comprometidas em cenários de desigualdade social no Brasil

A configuração da Psicologia como ciência independente, no campo


das ciências sociais e humanas, diante do predomínio das ciências
naturais, e principalmente seu estabelecimento como profissão, data
de período relativamente recente na história do pensamento científico,
situando-se por volta de meados da segunda metade do século XIX.
Nesse sentido, para se afirmar enquanto ciência enfrentou desafios
epistemológicos difíceis para adquirir um estatuto acadêmico perante
um momento histórico que predominava o paradigma positivista aliado
às ciências naturais, já que só era objeto de ciência aquilo que fosse
observado diretamente, palpável, mensurável, previsível e descrito de
forma objetiva, isolada do contexto, num ambiente experimental.
Dentro dessa concepção, a objetividade era entendida com caráter
absoluto, sendo inerente à prática científica que necessitava de um
objeto de estudo que fosse concreto e observável, por meio de uma
observação isenta de sentimentos e emoções. Entretanto, numa
postura crítica diante desse paradigma clássico de compreender a
ciência, Ana Bock (2001), delimita o campo de atuação da Psicologia
da seguinte forma:

“Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas


expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis
(nossos sentimentos), as singulares (porque somos o que
somos) e as genéricas (porque somos todos assim) — é o
homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-
ação e tudo isso está sintetizado no termo subjetividade.”
(BOCK, 2001, p.23)

116 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

O termo subjetividade foi delimitado através dos processos


históricos, a partir das experiências dos homens nos contextos
sociais e nem sempre esteve presente nas discussões. Nesse aspecto,
Figueiredo (2008), resgata o histórico de que o início da experiência
da subjetividade privada decorre da falência do mundo medieval e
a abertura do Ocidente ao restante do mundo, lançando o homem
europeu numa condição de desamparo. A falta da ordem superior
determinante e o contato com outras culturas trazem uma sensação
de liberdade assim como de abertura para outros espaços, mas, ao
mesmo tempo, a perda de tal referência possibilita que o homem
constitua outros parâmetros de referências individuais para continuar
existindo e convivendo entre os demais.
Tal sensação de desamparo, ganha preenchimento à medida que o
sistema feudal entra em crise a partir da disseminação do liberalismo
(base da ideologia do modo de produção capitalista) pela classe
burguesa que se constituiu enquanto classe dominante. O liberalismo
então se apresenta como um contraponto aos valores feudais na
afirmação de que cada homem é livre e possui uma autonomia de
vida. A ênfase no individualismo, e num ambiente competitivo para
fomentar um mercado que se expandia, produziu a ideia de uma
liberdade individual a ser conquistada. Entretanto, essas visões
foram tomando tonalidades diferentes, como aconteceu nas lutas
da revolução francesa, em que essa ordem deveria ser medida pela
fraternidade entre os iguais como mediação da liberdade em busca
dos interesses individuais.
Mais uma vez, diante da sensação de desamparo causada pelo
processo das concepções de homem enquanto indivíduo livre em
oposição à massificação dos indivíduos ocasionada por uma ordem
superior dominante, imposta por uma razão supostamente absoluta
regida pelos donos do capital, a regulação de tamanha liberdade na
convivência de um espaço comum se torna ameaçada. Para Bock
(2001), a concepção positivista se apresenta como um regulador da
convivência dos seres humanos livres, fortalecendo o amadurecimento
das ideias liberais.
Tal efeito se materializa por meio do controle social evidenciado
principalmente pelas práticas das instituições que se tornaram

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 117


Núbia Vieira de Souza

presentes na sociedade moderna diante do desenvolvimento


tecnológico aplicado ao sistema de produção que se incorporou nas
escolas, fábricas, prisões, hospitais, equipamentos públicos, etc.; sem
esquecer as antigas instituições, como as igrejas. O caráter competitivo
e individualista das relações estabelecidas nesses contextos produziu
a ideia de uma liberdade individual meritocrática. Entretanto, é nesse
ponto que reside a crise de uma suposta subjetividade privatizada;
quando o homem se questiona em relação à sua efetiva liberdade
diante da presença marcante das determinações da disciplina imposta
pelas instituições que justificam sua existência principalmente pela
necessidade de organização das liberdades individuais.
Dessa forma, Figueiredo (2008), localiza na crise da subjetividade
privatizada a possibilidade de surgimento da aplicação da Psicologia
científica, num contexto controverso, pois nesse sentido, o contexto
da singularidade se torna presente quando nos questionamos quem
somos e o que nos torna único, qual meu objetivo de vida e na
perspectiva do ordenamento dessas singularidades. O Estado se vê no
lugar de regulador do sujeito, dentro desse processo de alienação, já
que se encontra individualizado para lidar com as diferenças, pois está
submetido aos meios de produção que se propõe a prepará-los para
o trabalho, através da sua padronização comportamental, de forma
normatizada. Nesse contexto, surge a demanda para uma Psicologia
aplicada aos campos da educação e do trabalho.
Como se observa de acordo com pontos levantados por Figueiredo
(2008), a Psicologia científica nasce em meio à concepção de um contexto
que enfatiza a noção de uma subjetividade privatizada, fortalecida
pelos pressupostos positivistas de linearidade e neutralidade. Contudo,
no decorrer da história, o pensamento psicológico vai se delimitando e
esse parâmetro isolacionista de compreender a subjetividade humana
se torna insustentável, apesar das resistências em permanecer nesse
parâmetro subjetivista.
A crítica produzida por Bock (2001) ao modelo positivista é
justamente de que nessa perspectiva, o objeto de estudo da Psicologia ao
se amparar numa concepção estática do mundo, que não compreende
o ser humano como um ser ativo que produz significados dentro de
uma singularidade social e histórica, não evidencia sua capacidade

118 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

produtora e auto produtora na realização das suas atividades. Esse


caráter objetivista de se referir aos fenômenos psicológicos como
apenas observáveis e quantificáveis, sem considerar dimensões
humanas que não são captáveis de forma direta, acaba contribuindo
para reforçar estereótipos e sistematizar comportamentos ditos aceitos
socialmente sem uma postura crítica frente a esses mecanismos.
Diante da dificuldade em delimitar um objeto para ciência psicológica,
conforme os parâmetros lineares e preditivos da ciência clássica, já que
os fenômenos psicológicos são diversos e de configurações distintas,
temos dentro da Psicologia posições filosóficas ou ideológicas que
orientam o cientista dentro de perspectivas que acabam reduzindo
seu contexto de pesquisa, tendo em vista pressupostos que eliminam
o imprevisível, o inesperado e o inusitado. Assim, nos deparamos com
práticas que visam à adaptação e à normatização do indivíduo; como
também construções teóricas que determinam visões naturalizantes
da constituição da subjetividade.
Nesse cenário epistemológico, a prática da Psicologia no Brasil,
ocorreu de forma semelhante. Pessotti, citado por Bock (1999), divide
a história das ideias psicológicas no Brasil em quatro períodos: pré-
institucional (até o século XVIII), período institucional (século XIX
e início do século XX), período universitário (a Psicologia começa a
aparecer como disciplina em cursos superiores) e período profissional
(após a regulamentação da profissão). Dentro de tal divisão, é possível
verificar como a Psicologia foi ao longo do desenvolvimento da
sociedade brasileira, respondendo à lógica dominante da época em
consonância com a manutenção do status quo da elite; conivente
com o controle social imposto pelos donos do capital e dos meios de
produção a partir de normatizações verticalizadas e enquadramento
das instituições. Podemos perceber também como a naturalização dos
fenômenos psicológicos, por meio de concepções essencialistas de
patologização e criminalização da pobreza foi se consolidando dentro
da Psicologia.
De acordo com Bock (1999), no momento do surgimento dos
primeiros cursos de Psicologia, as concepções individualizantes
conviveram com as concepções psicossociológicas; tendo sua aplicação
após a regulamentação da profissão em 1962. Em meio à ditadura

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 119


Núbia Vieira de Souza

militar imposta ao país, houve um grande crescimento das escolas


de Psicologia. Os cursos de ensino universitários se transformaram
em alternativa para a ascensão das camadas médias da população
à época; ou seja, essa movimentação contribuiu para a formação de
psicólogos elitizados no país com vistas a uma prática clínica desligada
do movimento histórico do país.
Segundo Gonçalves (2010), o golpe de 1964 que instala a Ditadura
Militar define as formas de desenvolvimento econômico e de realização
de políticas sociais (ou de não realização...), o que também vai
interferir nas características que vai ter a profissão em seu início. Tem-
se a valorização do profissional liberal a partir de um status conferido
através do título de curso superior, o qual, no campo profissional, abriu
campo para uma atuação na clínica particular, bem como na área da
saúde, educação, e trabalho no âmbito das empresas privadas.
Após o fim da Ditadura Militar, no ano de 1985, instala-se a retomada
do processo de democratização do país que culminou na promulgação
da nomeada constituição cidadã de 1988. Frente a esse episódio
histórico, resultante de lutas e movimentos sociais, a Psicologia crítica
se fortalece e ocupa espaços de atuação junto a grupos oprimidos e
marginalizados por meio da participação de práticas de resistência que
emergiam de distintos segmentos dessa população.
Tal implicação se tornou fundamental para a discussão e ruptura dos
processos de invisibilização de uma parcela da população considerada
minoria, mas que compõe a maioria da população brasileira como as
mulheres negras, os jovens negros, os idosos, a população carcerária, as
pessoas com deficiência, o público lésbico, gay, bissexual, transgênero,
queer e intersexual (LGBTQI), dentre outras que, na maioria dos casos,
se encontra abaixo da linha da pobreza. Todo esse cenário provocou
a Psicologia a se reposicionar frente às pautas das políticas públicas
e sociais, no que tange às práticas normatizantes e individualizadoras
que marcaram a sua trajetória histórica tradicional.
Essas breves considerações históricas, sociais e econômicas,
evidenciam que, mais uma vez, os profissionais da Psicologia necessitam
se posicionar frente ao agravamento dos quadros de violência e
desigualdade social no país, pois uma postura ilusória fundada na
neutralidade científica deslegitimaria sua ciência e sua profissão. O

120 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

esforço de produzir esse item buscou levantar esses desafios nos quais
me senti convocada a participar nos enfrentamentos das contradições
sociais que se colocam na prática social e acadêmica principalmente
no encontro com adolescentes e jovens em cumprimento de medida
socioeducativa de privação de liberdade.

3. Quanto às concepções de adolescências e juventudes

Diante das indagações anteriores, referentes à construção histórica


da Psicologia como ciência e profissão, me coloquei a pensar sobre
quais concepções teóricas acerca das adolescências e juventudes a
ciência psicológica vem produzindo no decorrer da sua história social e
política, levando em consideração seus pressupostos epistemológicos.
Em termos gerais, na literatura científica é possível encontrar
diversos conceitos acerca das adolescências e juventudes. Os conceitos
variam entre visões que acentuam um momento do desenvolvimento
humano no qual o adolescente representa uma fase da vida, geralmente
marcada por crises; ou até mesmo um “vir a ser”; que somente na
vida adulta vai atingir seu ápice de maturidade. Há, também, visões de
caráter romântico evidenciado por um período de experimentações,
de liberdade, e de vivência de um hedonismo exacerbado. Essas
concepções são fundadas em estereótipos que associam a noção de
adolescência a turbulências, crises, desequilíbrios, e descontrole,
as quais denotam um olhar negativo e patologizante relativo a esse
período da vida. Quanto à juventude, as noções são mais recentes, em
termos históricos, mas variam pouco em relação a esses pressupostos
estigmatizantes.
O mundo ocidental produziu concepções referentes às etapas
da vida humana de modo fragmentado, como se fossem períodos
estanques, sendo que a noção de infância se deu por volta do século
XVII conforme discute Ariès (2006). Para o autor, a adolescência
foi construída de forma muito recente com o marco da revolução
industrial, já a concepção de juventude foi marcada por intensas
mudanças a partir do século XX, sofrendo influências da organização
societária europeia. Essas demarcações históricas apontam que as

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 121


Núbia Vieira de Souza

infâncias, adolescências e juventudes são construções históricas e


sociais que, no mundo ocidental, foram produzidas por meio de um
olhar eurocêntrico. Diante disso, é necessário questionar qual o ponto
de partida para compreender esses ciclos da vida humana que não
acontecem de forma segmentada, mesmo que ocorram de maneira
distinta, na dialógica entre continuidade e descontinuidade.
No campo da Psicologia, no século XIX, as ideias sobre
desenvolvimento humano foram afetadas pela teoria evolucionista
defendida por Charles Darwin, num período muito próximo em que o
conhecimento psicológico emergiu como ciência. O aspecto normativo
da disciplina prescreveu um olhar único e descritivo que caracteriza
uma determinada fase do desenvolvimento, eliminando qualquer
possibilidade da apresentação de um estilo de vida distinto do modelo
preditivo imposto por uma normatividade. Este tipo de visão não
possibilita dialogar com as singularidades que caracterizam o sujeito
dentro da sua diferenciação histórico-cultural, tanto no âmbito pessoal
quanto social.
Frente a essas considerações, adotei a noção de adolescências
e juventudes calcada num sujeito que é produto e produtor da
sua própria história pessoal e social, de um modo recursivo. Sem
desconsiderar o aspecto biológico inerente à condição humana, mas
reconhecendo que as relações com as mudanças corporais assumem
configurações distintas nos territórios que constituem a subjetividade
do sujeito. Assim sendo, me questiono se as adolescências e as
juventudes estão dadas para todos da mesma forma dentro de um
conjunto social? Nessa relação dialética entre o sujeito que se encontra
inserido em um contexto social que o modifica e é modificado por ele,
torna-se relevante indagar as respostas singulares de constituição, de
consciência, e das atividades produzidas por esse sujeito.
Assim, considerarei a noção de sujeito social apresentada por Dayrell
(2003) que entende o jovem como um sujeito inserido em uma história,
que possui determinada origem familiar, que ocupa um determinado
lugar social e se encontra inserido em relações sociais, permeados por
um meio. Charlot citado por Dayrell (2003, p. 42), delimita a noção
de sujeito na qual é um ser humano que se encontra em um mundo
permeado por uma historicidade e é portador de desejos, é também

122 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

um ser social com uma determinada origem familiar, ocupando um


determinado lugar social e inserido em relações sociais. Os autores
consideram o sujeito como um ser ativo que age no e sobre o mundo,
interferindo e sofrendo interferências do meio e das relações sociais
nas quais estão inseridos. Desta forma, podemos afirmar que existem
várias adolescências e juventudes; que vão sendo construídos a partir
das singularidades de cada sujeito e do modo como esses sujeitos vão
dando significado à vida nos diferentes grupos sociais em que circula.
Dentro dessa perspectiva que compartilho, concebe-se os jovens
como seres humanos que amam, sofrem, e se divertem, bem como
produzem uma reflexão crítica acerca da sua condição e da sua
experiência de vida se posicionando diante dela. Acreditando que
nesse processo cada um deles vai se constituindo e sendo constituído
como sujeito, um ser singular que se apropria do social, transformando
as representações, aspirações e práticas, que interpreta e dá sentido
ao seu mundo e as relações que mantém (Dayrell, 2003).
A partir da construção dos significados singulares, e a tomada de
consciência do mundo ao seu redor, as especificidades que marcam a
vida de cada um, citada por Dayrell (2003), são circunscritas de modo
distinto em relação a outros contextos culturais, sociais e econômicos,
os quais são constituídos em territórios diferenciados. Sendo assim,
como em outras sociedades ocidentais como os países europeus, a
partir da revolução industrial e os modos de produção capitalista, no
desenvolvimento de contextos nos quais o reconhecimento do ser
humano passa a ser estabelecido pela sua força de trabalho e pelo
domínio dessa força de trabalho, tal condição social gera tensões que
são significadas de acordo com a peculiaridade histórico-cultural dos
sujeitos. No caso dos adolescentes e jovens, sua condição de morador
de uma região periférica da cidade, de cor parda ou preta, com baixa
escolaridade, produz modos distintos de significação da sua existência
em relação, por exemplo, a um adolescente ou jovem escolarizado,
branco, de classe média.
Nesse sentido, Dayrell também problematiza as várias maneiras de
se construir como sujeito ao se referir ao conceito de desumanização,
no qual o ser humano é “proibido de ser”, privado de desenvolver as
suas potencialidades, de viver a sua condição humana. Tal reflexão

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 123


Núbia Vieira de Souza

tem origem na sua pesquisa realizada com alguns adolescentes


moradores de periferia4, na qual Dayrell verifica que não se trata de
um entendimento de que eles não se construam como sujeitos, ou
o sejam pela metade, mas sim, que eles se constroem como tais na
especificidade dos recursos de que dispõem (Dayrell, 2003).
Nesta construção, os adolescentes e os jovens vão desenhando os
modos de ser colocando em xeque imagens ou conceitos que dizem de
certo modelo de adolescência ou juventude. Percebemos então como
ciclos de vida constituídos por sujeitos atuantes, que encontra meios
para responder ao sistema que os coloca à margem da sociedade.
Nesta medida, consideramos que o conceito de sujeito social indica
uma construção e não uma determinação, uma unicidade. Sendo
assim, tanto o jovem como o adolescente produzem novos significados
para o mundo ao seu redor, assim como se constitui e se institui nele,
transcendendo às imposições sociais que delimitam o que é aceito
ou não dentro de um modelo pré-estabelecido de adolescência e
juventude a partir de interesses marcados.
Tal perspectiva nos leva a questionar em que ponto o olhar sobre
a adolescência e a juventude é algo pré-estabelecido pelas teorias
desenvolvidas no sentido de dar continuidade a uma lógica societária
que criminaliza esses sujeitos pela determinação de características
que atendem a um modelo elitista de ser, baseado em pressupostos
eurocêntricos e coloniais, tão marcantes na ciência moderna ocidental.
Essa lógica ainda vigente contribui para a criminalização da
pobreza, já que adota critérios seletivos para classificar os que serão
condenados pelo sistema. Essas breves considerações evidenciam que
adolescências e juventudes são construções sociais produzidas em
contextos culturais distintos e em momentos históricos peculiares.
Um olhar homogeneizante e generalizado negligencia os diferentes
e contribui para rotulá-los como marginais, menor, desviantes,
turbulentos, desequilibrados, arruaceiros, e perturbadores da ordem,

4 Os dados empíricos utilizados são resultado da pesquisa da tese de doutorado intitulada: A música entra em
cena: o rap e o funk na socialização da juventude em Belo Horizonte, apresentada na Faculdade de Educação
da USP em julho de 2001.

124 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

dentre outros estigmas, como se observa em discursos conservadores.


Frente a isso, optei por retratar adolescências e juventudes no plural,
reconhecendo suas singularidades, mesmo sabendo que são ciclos
de vida distintos que apresentam uma marca biológica própria, como
acontece de maneira mais destacada na adolescência, mas que são
significadas de forma diversificada em contextos histórico-culturais
diferentes.
O próximo tópico, tratará do contexto produtor de adolescências e
juventudes situadas em cenários de violência, enfatizando o quadro de
desigualdade social no Brasil, para refutar posições individualizantes
que contribuem para criminalizar os pobres, já que ocultam a injustiça
econômica acentuada no país, a qual agride os direitos fundamentais
para uma vida digna entre a maioria da população do país.

4. Tramas da invisibilização da desigualdade social

A história colonial do Brasil, como das demais colônias, foi


marcada por processos escravocratas truculentos que marcaram a
nossa identidade até então, através de práticas racistas, patriarcais,
machistas, epistemicidas, e de imposição do cristianismo, que se
configuraram em quadros de violência expressos em todos os setores
da sociedade, até os dias atuais. Os efeitos da revolução industrial, a
qual exigiu que o país passasse de uma colônia agrícola para um país
industrializado, sendo organizado socialmente pela mão de obra que
sofreu transição da escravidão para a mão de obra assalariada, não
destituiu as relações de exploração do modelo colonial; pelo contrário,
apropriou das condições anteriores para pagar um preço mínimo ao
trabalho assalariado e informal, em nome do lucro, em alta escala, para
a produção fabril. Essa proposta mercantil frente a uma mão de obra
barata, deu continuidade às práticas coloniais para a manutenção dos
privilégios dos donos do capital econômico e dos meios de produção.
Junto a isso, disputas mercadológicas e territoriais do continente
europeu culminaram em duas guerras mundiais que afetaram a
economia internacional. Nos meados da década de 1940, após a II
Guerra Mundial, o Brasil, bem como outros países da América Latina,
se viu pressionado a recompor a economia dos países mais ricos, com

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 125


Núbia Vieira de Souza

a conivência das elites nacionais. O capital internacional se expandiu


pelo processo produtivo do país, aproveitando-se da riqueza natural
do território nacional, principalmente dos recursos minerais, e da
oferta de mão de obra a baixo custo. No entanto, a resistência dos
trabalhadores frente a esse quadro provocou a articulação de um
golpe civil/militar, no ano de 1964, organizado pela elite, pressionada
pelas forças estadunidenses, e apoiados pelo regime militar da época.
O período ditatorial durou vinte e um anos, sendo que, em 1985, após
várias lutas de movimentos sociais organizados por trabalhadores,
intelectuais, alguns setores da igreja, comunidades periféricas, e
campesinos, se instituiu uma abertura política para a instalação de um
governo democrático. Logo em seguida, foi promulgada a Constituição
Federal de 1988, fundamentada em vários princípios da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, a qual foi redigida após as atrocidades
da II Guerra Mundial, como o extermínio de judeus, homossexuais,
negros, e ciganos, dentre outras mazelas.
Porém, várias dessas passagens históricas foram ofuscadas por
narrativas e representações sociais que escamotearam o agravamento
da desigualdade social no país, já que alguns mitos e modelos relacionais
se preservaram por meio do controle das informações via instâncias
midiáticas, de setores de alguns governos mais conservadores, e dos
meios de produção, dentre outras estratégias de manutenção dos
privilégios de grupos elitistas. Sendo assim, o imaginário nacional
tornou-se povoado por mitos que consolidaram práticas assimétricas
na configuração da sociedade brasileira. Desse modo, Souza (2009)
propõe uma reflexão acerca da produção do “mito brasileiro” de uma
nação unida nas suas diferenças, em defesa de uma pátria amada. O
autor destaca que a produção de um “mito nacional”, se fez necessário
para a ocultação das desigualdades por uma espécie de “solidariedade
coletiva”, na qual o crescimento de um sentimento de pertencimento
coletivo fosse produto de uma mesma história fatalista da colonização
e que, consequentemente, traçou um mesmo destino que se tornou
naturalizado para todos e todas pertencentes a essa nação. Os efeitos
desse processo de identificação coletiva geraram configurações sutis
de uma idealização coletiva fundada num aprendizado compartilhado
no cotidiano dos brasileiros.

126 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

Tais interesses e valores que ultrapassam a esfera individual são


elementos dos processos históricos constituintes do entendimento dos
indivíduos a partir do que é ser um sujeito na esfera social. Dessa forma,
há uma espécie de hierarquização dos valores a serem elencados, que
desencadeia a preferência por um em detrimento do outro. Souza
(2009) produz uma reflexão no sentido de problematizar como os
fatores estruturantes e estruturais da configuração da sociedade
brasileira contribuíram para a constituição de um sentimento comum
aos sujeitos que permitisse o entendimento comunitário de nação a
partir do mito nacional. Um mito irrefutável, acima de todos, depois
de Deus.
Tais questões foram estabelecidas a partir da independência do
país, num momento que era necessário certo controle perante a
manutenção da unidade em um território extenso, com características
naturais distintas, onde a comunicação entre as regiões ocorria de
forma lenta e escassa. Fator preponderante na construção do mito
nacional foi a comunhão da língua em território tão vasto. Um país
recém “autônomo”, com uma quantidade de escravos e homens
libertos acostumados ao trabalho subalterno, analfabetos e oriundos
de matrizes culturais distintas, indígenas, africanas, e miscigenadas,
frente ao ideal civilizatório imposto pelo modelo europeu, para a
expansão do mercado industrial, o que produziu um sentimento
de inferioridade para aqueles se situavam fora dessa concepção
neocolonial.
Na constituição da sua autoestima, o país vai utilizando alguns
recursos para sustentar suas riquezas e possibilidades, por meio de
grande apego às riquezas e diversidades naturais que se consolidou
como um dos primeiros passos para marcar um lugar nesse mercado
no final do século XIX, num momento em que a natureza foi bastante
exaltada, como se fosse o único recurso de um povo rotulado como
primitivo. Outro ponto importante, nesse processo de constituição de
uma identidade coletiva idealizada, foi a glorificação da mestiçagem
naquela época, para dar uma resposta a algo que era considerado ruim
no cenário racista, ou seja, mistura de gente da raça branca e negra.
A noção de igualdade respaldada na ideia de que os privilégios
podem ser alcançados por todos por meio do esforço individual,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 127


Núbia Vieira de Souza

produziu a ilusão, em todas as classes sociais, de que o acesso aos


recursos para a conquista de mobilidade social está disponível a todos
sem exceção, tudo dependerá do mero esforço individual de cada
um, ou seja, aquele que não progrediu foi porque não se esforçou o
suficiente. Esse quadro gerou uma nítida separação entre sujeito e
sociedade. Souza (2009), ressalta que tal separação é indispensável
também para atribuição de culpa ao indivíduo fracassado que teve o
azar de nascer em uma família errada, que não se esforçou o suficiente
para alterar sua condição de vida e pela reprodução do ciclo de fracasso
entre seus membros.
O movimento de separação do sujeito em relação ao social,
associado à justificação de privilégios segmentados a classes sociais,
ganha campo fértil na disseminação da lógica do conceito do mito da
brasilidade, que segundo Souza (2009, p.47) “[...] o mito da brasilidade
tem a ver tanto com a construção de uma ficção de homogeneidade
e de unidade entre brasileiros tão desiguais quanto com ‘horror
ao conflito’”. O autor não desconsidera a importância de um
sentimento comum entre os indivíduos que os identifiquem enquanto
pertencentes a um mesmo grupo, mas considera que a manutenção
de tal identificação não deva se sujeitar ao não dito, à manutenção
de lógicas de exclusão implícitas a ideologias de controle social pela
competitividade e endeusamento do capital.

5. Considerações finais

Ao considerar adolescentes e jovens que se encontram à margem


como seres atuantes, capazes de produzir uma crítica do ambiente
ao seu redor e produzir uma mudança em seu meio, no que tange
à socioeducação, há a representação de um campo de tensões e
conflitos que colocam várias contradições sociais oriundas desse
cenário exposto acima, as quais constituem campo de reflexão para
a alteração de práticas opressivas, no trabalho com essa população.
Freire (2011) a partir do conceito de Pedagogia Libertadora traz à tona
a relação dialética que a educação necessita estabelecer com o meio
social partindo do próprio sujeito oprimido, diferentemente de uma
educação estabelecida para o sujeito, pois é o sujeito que dá sentido

128 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Psicologia, adolescências, juventudes e desigualdade social: um diálogo necessário para a visualização do
sujeito e da sua subjetividade

e significado para mundo, tendo em vista seu modo singular de


compreender a realidade a partir da sua história social e pessoal. Frente
a esses processos de ocultação dos sujeitos no processo socioeducativo
indaga-se: Como contribuir para desconstruir a invisibilização desses
sujeitos?
As reflexões propostas, remetem à importância de analisar o
trabalho com adolescentes e jovens que se encontram à margem
de forma ampliada, na qual a inserção dos atores que compõem a
rede de proteção social possa ofertar intervenções e garantias aos
direitos fundamentais de forma intersetorial e horizontalizada. É
importante ressaltar que a responsabilização dos sujeitos se dá no
compartilhamento de seus conflitos e de seus questionamentos, os
quais remetem para os contextos de desigualdade social e racial que
estão inseridos, por meio da problematização das relações opressivas
que entremeiam sua trajetória de vida. Ninguém se liberta sozinho,
mas em comunhão, no decorrer do seu percurso histórico. Com essa
ênfase, se quebra a dicotomia sujeito/sociedade, ao compreender a
responsabilidade como produto de relações compartilhadas, sem cair
em explicações meritocráticas que ocultam a desigualdade social.

Referências

ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. 2 ed. Rio de


Janeiro: LTC, 2006.

BOCK, Ana Mercês Bahia. Aventuras do Barão de Münchhausen na


Psicologia. São Paulo: EDUC; Cortez Editora, 1999.

BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Aria de Lourdes


Trassi. Psicologias, uma introdução ao estudo da Psicologia. 13 ed.
São Paulo: Saraiva, 1999, 3 tiragem – 2001.

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de


Educação, São Paulo, Nº 24. Set/Out/Nov/Dez 2003.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 129


Núbia Vieira de Souza

DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. Educação


e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002.

FIGUEIREDO, Luis Claudio Mendonça. Psicologia, uma (nova)


introdução: uma visão histórica da Psicologia como ciência. 3 ed. São
Paulo: EDUC, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50 ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 2011.

GONÇALVES, Maria da Graça M. Psicologia, subjetividade e políticas


públicas. São Paulo: Cortez, 2010. p.77 – 134.

SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2009.

Sobre a autora

Núbia Vieira de Souza


Graduada em Psicologia (FUMEC 2006); especialista em elaboração, gestão e
avaliação de projetos sociais (UFMG 2011); especialista em políticas públicas
e socioeducação (UNB 2018); mestre em educação e docência (UFMG 2020).
Trabalha como Analista Executivo de Defesa Social - Psicóloga na Subsecretaria
de Medidas socioeducativas da Secretaria de Estado de Segurança Pública e
Justiça de Minas Gerais.
E-mail: nvds_20@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5653846495341621

130 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


8

Produzindo
questionamentos sobre
o/a jovem chamado/a
‘‘nem nem’’ a partir de
pesquisas sobre juventude
e das experiências de
jovens pobres
Producing questions about the so-
called nem nem youngsters in researches
about youth considering Brazil poor
youngsters’ experience
Paulo Roberto da Silva Junior
Claudia Mayorga
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 131
Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

Resumo

As análises apresentadas partem de uma pesquisa de doutorado em


Psicologia Social que realizou uma análise lexical de universos semânticos
sobre os/as chamados/as jovens nem nem em 19 documentos da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), usando como apoio o
programa ALCESTE – Análise Lexical por Contexto de um Conjunto
de Textos, e uma pesquisa-intervenção com 14 jovens,moradores/as
de duas favelas de Belo Horizonte. Problematizamos as noções que
convidam a pensar os/as jovens ditos/as nem nem como sujeitos
vulneráveis e como grupo de risco, sendo que as respostas construídas
se direcionam ao investimento na subjetividade do/a jovem,
contribuindo para reatualizar o mito dos/as jovens pobres como classe
perigosa, sem, com isso, levar em consideração a reprodução social da
nossa desigualdade.

Palavras-chave: juventude pobre, jovens nem nem, educação,


trabalho, pesquisa-intervenção.

Abstract

The analyzes presented are based on a doctoral research in Social


Psychology that carried out a lexical analysis of semantic universes
about the so-called nem nem youngsters in 19 documents of the
International Work Organization/OIT, using as support the ALCESTE
program, and an intervention-research with fourteen young residents,
of two shantytowns in Belo Horizonte. We had problematized the
notions that consider the thought of nem nem youngsters as vulnerable
individuals and as a risk group, when the constructed answers are
directed to subjectivity investment of the youngster, contributing to
reenact the myth that poor youngsters are a dangerous class, not
considering social reproduction of inequality.

Key-words: poor youth, nem nem youngsters, education, work,


intervention-research.

132 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude
e das experiências de jovens pobres

Sobre juventude e os/as chamados/as jovens nem nem

Apresentamos neste texto algumas das análises resultantes de uma


pesquisa de doutorado em Psicologia Social, realizada entre 2014 e
2018, que buscou problematizar as noções sobre o/a chamado/a
jovem nem nem, jovens que não estudam nem trabalham, a partir de
pesquisas de juventude e das experiências de jovens pobres no Brasil,
e que se desenhou a partir do contato e do incômodo com várias
matérias jornalísticas durante o ano de 2013 e anos subsequentes,
que abordavam o tema da juventude nem nem como um grande
problema social no Brasil e no mundo. Estes incômodos se referiam
à forma espetacularizada, reducionista e preconceituosa com que as
experiências de jovens pobres longe da escola e do trabalho eram
retratadas na internet e em outros veículos de comunicação. Alguns
anos se passaram entre o início da pesquisa, em 2014, sua finalização,
em 2018, e a escrita deste texto, em 2020, e os/as chamados/as jovens
nem nem não deixaram de ser notícia durante todo esse tempo.
Pelo contrário, ano a ano eles/as estamparam as páginas dos jornais,
viraram personagem de uma novela da Rede Globo (Geração Brasil) e
permaneceram ocupando o lugar de problema social.
A noção da juventude como uma etapa transitória na vida, dentro
do marco das teorizações da sociologia da juventude, coexiste no
cotidiano com as concepções romântica, moratória e culturalista
sobre os/as jovens (DAYRELL, 2003), sendo importante destacar que
a forma como o/a jovem é socialmente compreendido/a influencia,
terminantemente, na formulação das políticas públicas, as quais
podem ser produtoras de novas representações numa relação de poder
dialética. Na relação entre jovens e adultos, as instituições família,
escola e mundo do trabalho podem ser pensadas, historicamente, como
lócus privilegiados para a reprodução da ordem social (SPÓSITO, 2005),
o controle e o ajustamento das experiências juvenis para o que tem
sido pautado como transição para a vida adulta. Tal noção de transição
se inscreve dentro de uma perspectiva estrutural-funcionalista da
juventude, no interior da qual esta se configura como uma etapa da
vida onde se dá a complementação da socialização primária, iniciada
na família, pela socialização secundária, marcada pela condução dos

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 133


Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

indivíduos aos valores, costumes e ritos das instituições sociais públicas


(GROPPO, 2017).
Apontamos que este debate sobre a transição para a vida adulta
se inscreve, portanto, num paradigma tradicional que compreende
infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice como etapas
que possuem suas determinações biopsicossociais e que devem
cumprir a objetivos específicos para a manutenção da ordem social.
A juventude, nessa perspectiva tradicional, se configura como um
período no qual se vivenciam experiências de saída do mundo familiar
e escolar primário, para a sua inserção na escolarização secundária e
no mundo do trabalho, estando as preocupações mais relacionadas
ao vir a ser do/a jovem do que às suas experiências como sujeito
social. Tal transição para a vida adulta seria marcada, dessa forma,
pelas experiências de terminar os estudos, inserir-se no mercado
de trabalho, constituir uma família e sustentar a própria autonomia.
Contudo, destacamos que estes processos, antes de sinalizarem o que
é ser adulto em nossa sociedade, representam, eles mesmos, aspectos
que denotam os modos de ser jovem (CARAMANO, et al., 2003;
ABRAMO, 2005). Mister desvincular a referência adultocêntrica que o
termo transição para a vida adulta comporta e que cria o lugar do não
adulto para os/as jovens (MAYORGA, 2006).
Se o ápice da escolarização, a entrada no mundo do trabalho, a
vivência da sexualidade e a saída da condição de filhos em direção
à constituição da própria família são marcadores considerados
importantes da transição para a vida adulta, alguns grupos juvenis
colocam em xeque esse modelo tradicional de transição (ITABORAÍ,
2015) e tem despertado a atenção da sociedade, sobretudo, quando
esses/as jovens deixam de ser vistos/as como sujeitos de direitos
para se transformarem em um problema social. A virtual crise das
instituições família, escola e trabalho nos instiga a pensar, desse
modo, quais as expectativas e caminhos de formação ética e moral
dos/as jovens têm sido estabelecidos para sua inserção na sociedade
dos adultos, bem como as análises produzidas quando alguns desses/
as jovens rompem com o que está planejado. Dentre outros grupos
possíveis, temos, assim, a geração canguru e a geração nem nem como
antagonismos das experiências juvenis construídas, diferencialmente,

134 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude
e das experiências de jovens pobres

a partir da interseccionalidade de raça, gênero, classe, geração,


território. As experiências juvenis contemporâneas não podem ser
analisadas, portanto, sem se compreender o entrelaçamento entre
essas categorias e seus efeitos de saber/poder que sustentam as
interações e as práticas sociais (MENEZES; COLAÇO; ADRIÃO, 2018).
Jovens que estão fora da escola e do mercado de trabalho, e
não participam de programas de treinamento para o trabalho, se
constituíram como um objeto de preocupação em países como
Inglaterra e Japão em meados da década de 1990, durante a crise
de reestruturação produtiva capitalista. A sigla em inglês “NEET”
(neither in employment nor in education or trainning) foi o conceito
compartilhado nesses países para nomear esta condição dos/as
jovens. No caso do Brasil, a expressão nem nem é derivada do conceito
ni ni – do espanhol ni estudan ni trabajan – socializado no contexto da
América Latina.
A partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD)5 de 2011 e usando como referência a população jovem de
19 a 24 anos, Monteiro (2013) apresenta que no Brasil a população
jovem era de 19 milhões de indivíduos, sendo os/as chamados/as
jovens nem nem 3,2 milhões, ou seja, 17% desse grupo. Destes/as
jovens considerados/as inativos/as, contavam-se 830 mil homens (25%
da população nem nem) e 2,4 milhões mulheres (75% da população
nem nem). Destas jovens na condição nomeada nem nem, 30% delas
não tinham filhos e 45% tinham pelo menos 1 filho. Em relação à
escolarização, 28% do grupo de jovens tinha o Ensino fundamental
incompleto, 22% o fundamental completo, 14% o médio incompleto,
17% o médio completo e 4% a educação superior. Em relação à renda,
55% dos/as jovens na dita condição nem nem moravam em domicílios
com renda mensal per capita de até R$ 330,00 reais. Ao contrário
disso, apenas 8% em domicílios cuja renda familiar era maior que R$
825,00 reais per capita. Desse modo, a condição considerada nem
nem é mais preponderante entre jovens com baixa escolaridade e
de baixa renda, especialmente entre mulheres com filho/a; ter um/a

5 O salário mínimo em 2011 foi fixado em R$ 545,00, de acordo com a Lei nº 12.382, de 2011.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 135


Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

filho/a de menos de 1 ano é o principal fator que explica por que as


mulheres, especialmente as mais pobres, estão na condição nem nem;
a inatividade tem crescido entre os homens e, especialmente, entre os
menos escolarizados.
Em alguns estudos (MONTEIRO, 2013; PARDO, 2012) as análises
apontam para preocupações que se reduzem ora a um viés
economicista, aludindo que estes/as jovens podem ajudar a elevar
as taxas de desemprego no Brasil e se tornarem dependentes do
governo, ora destacando o aumento da probabilidade desses/as jovens
fazerem uso abusivo de álcool e outras drogas, de envolverem-se na
criminalidade e das jovens engravidarem. Na mídia brasileira, várias
reportagens destacam a gravidez na adolescência como um fenômeno
recorrente entre as jovens nem nem, bem como o seu envolvimento
com jovens que, também, vivenciam a mesma situação de não estudar
e não trabalhar, sendo alguns deles envolvidos com o tráfico de drogas.
Reforçam-se, nesse sentido, os estereótipos que associam juventude,
pobreza, ociosidade, criminalidade e violência no caso dos jovens
(COIMBRA, 2001; GALINKIN; ALMEIDA; ANCHIETA, 2012).
Um ator importante na produção e publicização de pesquisas sobre
as relações entre juventude, trabalho e educação, com destaque
para situação dos/as chamados/as jovens nem nem, é a Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Essas publicações têm orientado
tanto o debate acadêmico brasileiro sobre este tema quanto as
notícias veiculadas na mídia, e algumas propostas de intervenção.
Duas publicações da OIT têm sido, frequentemente, referenciadas
tanto pelas matérias jornalísticas quanto pelos trabalhos acadêmicos
ao tratarem do tema dos/as designados/as jovens nem nem: o
documento Tendências Mundiais do Emprego Juvenil e o documento
Trabalho Decente e Juventude.
Não obstante a vasta produção de informações sobre a juventude
nomeada nem nem, destacamos algumas incertezas e dificuldades
que deveriam ser levadas em consideração na produção desses dados.
A primeira dificuldade consiste na definição da faixa etária dos ditos/
as jovens nem nem, o que faz variar sobremaneira o valor absoluto de
jovens considerados/as nesta situação. Os recortes utilizados variam
entre as pesquisas e os objetivos traçados por elas, no entanto, parece

136 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude
e das experiências de jovens pobres

haver um consenso entorno do recorte da faixa etária entre 18 e 29


anos, pois se pressupõe que até os 18 anos grande parte dos/as jovens
ainda se encontra no período final de sua formação escolar básica.
A segunda dificuldade consiste na definição do que é a chamada
experiência nem nem, ou seja, o que definimos como inatividade ou
ociosidade. O terceiro dilema consiste no elemento temporal: quanto
tempo o/a jovem deve estar nesta situação para que seja classificado
de tal forma? As pesquisas realizadas utilizam critérios de medição
que avaliam o comportamento dos sujeitos durante uma semana
em específico, o qual pode ser mudado na semana seguinte. Alguns
estudos mostram que esta condição é temporária (MENEZES FILHO;
CABANAS; KOMATSU, 2013). Por fim, o quarto dilema diz respeito à
tendência de considerar o grupo de jovens definidos/as nem nem
como homogêneo, uma vez que, em sua grande maioria, estes/as
jovens pertencem às classes pobres da sociedade brasileira, o que
pode conduzir a análises e proposição de alternativas que reduzem as
diferenças e ampliam os estereótipos e preconceitos.
Encontramos nesse campo uma escassez de trabalhos que convidam
os/as jovens chamados/as nem nem a falarem sobre suas experiências
longe do trabalho e do estudo. Tomando como referência uma revisão
bibliográfica entre os anos 2006 e 2017, com exceção do estudo
realizado por Paulino (2016), que inseriu 2 questões abertas em um
questionário de coleta de dados para os/as jovens falarem sobre suas
experiências de ociosidade, os demais estudos pautam-se em análises
quantitativas a partir de dados coletados pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) ou por instituições internacionais, como
a OIT.
Este é, portanto, o contexto no qual se desenvolvem nossas
reflexões: um conjunto de pesquisas e informes que apontam o
crescente número de jovens chamados nem nem no Brasil e em outros
países do mundo; uma repercussão espetacularizada desses dados pela
mídia; a constituição de um campo de intervenção social (TOMMASI,
2010), no qual diversos atores buscam intervir nas carências e na
violência em potencial desses/as jovens, especialmente os homens;
e um desconhecimento e desinteresse pelas experiências de vida e
práticas sociais de jovens moradores/as de periferia, os quais muitas

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 137


Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

vezes são nomeados/as nem nem, mas que constroem repertórios


de vida que podem tanto desconstruir esta noção inventada quanto
afirmá-la.
Se estão fora da escola, do trabalho, ociosos/as e propensos/
as ao envolvimento com a criminalidade e o tráfico de drogas, o
quanto valem suas vidas? São vidas passíveis de qual tipo de comoção
(BUTLER, 2015)? Desse modo, levantamos, também, reflexões sobre
as articulações entre a produção das crianças e jovens perigosos/as
no cenário brasileiro (COIMBRA; NASCIMENTO, 2009), os projetos de
eliminação voltados para os mesmos e a reatualização dessa noção
de classe perigosa, agora nomeada, talvez, como juventude nem nem.

Produzindo questionamentos sobre os/as jovens nem nem

Do ponto de vista metodológico, trabalhamos com uma análise


lexical de universos semânticos sobre os/as chamados/as jovens
nem nem em 19 (dezenove) documentos da OIT, usando como apoio
o programa ALCESTE - Análise Lexical por Contexto de um Conjunto
de Textos. Em seguida propusemos compreender as experiências de
quatorze jovens moradores/as de duas favelas de Belo Horizonte no
que elas referenciam e problematizam as inserções e ausências no
trabalho e na escola, através de uma pesquisa-intervenção, usando
como técnicas a entrevista e a roda de conversa. Assim, apostamos na
escolha desses procedimentos como forma de compreender as noções
compartilhadas sobre o/a chamado/a jovem nem nem, bem como
seus efeitos, e as experiências de vida de jovens pobres no que elas
referenciam e problematizam suas presenças/ausências no trabalho e
na escola.
Os/as jovens pobres e, dentre eles, o grupo que não trabalha,
não estuda e não procura emprego, são vistos como uma ameaça à
continuidade do social, seja pela sua compreensão como sujeitos
carentes tanto financeiramente quanto cognitiva e moralmente,
quanto pela probabilidade de se envolverem com a violência e a
criminalidade, uma vez que se encontram ociosos, mas inseridos em
um sistema social que os impele a desejar e consumir bens. O medo
da disrupção social, fortemente associada a esses/as jovens, tem

138 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude
e das experiências de jovens pobres

encaminhado várias políticas públicas com foco na inclusão social, no


protagonismo juvenil e no empreendedorismo, como forma de ativar
a criatividade dos/as jovens, o engajamento com sua comunidade e
a construção de saídas emancipatórias para si próprios/as, numa
perspectiva quase mágica. Mesmo que um campo de intervenção
social pautado na lógica da garantia dos direitos se forme no entorno
deles/as, o que vemos acontecer é esta perspectiva ser substituída por
uma reprodução da pobreza desses/as jovens e por um esvaziamento
da ação política. Tornam-se jovens de projetos, colecionadores de
cursos preparatórios, experientes em reprovação nas entrevistas para
emprego, cuja exclusão social garante a razão de existir e funcionar
de muitas ONGs, as quais atuam como uma extensão do Estado na
produção das intervenções.
Os documentos da OIT se colocam no lugar de produtores de
verdades, e as representações ao serem tomadas como verdades,
constroem explicações para o problema e prescrevem soluções
para ele. As noções compartilhadas nos documentos convidam-
nos a compreender esse grupo de jovens como vulneráveis ou em
risco, como sujeitos em desvantagem, mas cujas respostas devem
ser dar muito mais numa dimensão individual do que a partir de
um investimento nas macroestruturas e nos sistemas culturais. Elas
apontam a condição desigual vivenciada, especialmente, pelas jovens
e pelos/as jovens pobres e negro/as, contudo, não problematizam o
entrecruzamento entre as opressões que constroem lugares desiguais
para esses/as jovens. Investir na subjetividade, modelar o próprio self
para responder aos anseios apresentados pela sociedade, tornar-se
criativo e protagonista são alternativas que se desenham em meio a
propostas de criação de projetos sociais, políticas e outros tipos de
intervenções que se esvaem por falta de interesse político, recursos,
inadequação e não consecução dos objetivos pretendidos. O que essas
noções mascaram é a reprodução da nossa desigualdade a partir da
articulação entre as categorias sociais, deixando a dimensão individual
em evidência, enquanto vários/as jovens pobres vivenciam a exclusão
do acesso aos direitos sociais, dentre eles a educação e o trabalho, por
motivos construídos nas interações cotidianas desiguais e não como
resultado de uma escolha individual.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 139


Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

A aposta na pesquisa-intervenção como estratégia de interação


com os/as jovens possibilitou conhecer experiências que convidaram
a pensarmos a importância dos diferentes suportes na construção das
suas trajetórias. A vivência do preconceito contra origem, o racismo,
a divisão sexual desigual do trabalho e a reprodução da violência
de gênero aparecem como marcadores importantes que impedem
a presença desses/as jovens, por vezes, na escola e no mundo do
trabalho, problematizando, portanto, as noções que convidam a pensar
a condição chamada nem nem como uma escolha. A abordagem
psicossocial das experiências dos/as interlocutores possibilitou
compreender que estar fora desses espaços não é uma escolha para
eles/as, como é possível pensar para os/as jovens das classes abastadas.
O contexto atual convida esses/as jovens pobres para suportarem tudo
sozinhos, tornando a vida pesada, dentro de um modelo que propala a
meritocracia, o faça você mesmo, como condição emancipatória.
A socialização plural desses/as jovens dentro de um habitus
de classe que convida a pensar os sujeitos como desprovidos de
reconhecimento social, conduz a empecilhos em suas trajetórias,
mas não os impede de construir projetos de futuro e enfrentamentos
contra a falta de suportes em seu cotidiano. Os/as jovens mostraram
estratégias de resistência contra as violências e preconceitos na escola
e no trabalho, fazendo a escolha, em algumas situações, de não
permanecer nesses espaços para não sofrer, não adoecer ou para dar
continuidade a outros projetos. O peso da injustiça e de uma relação
desigual, que os coloca fora da escola ou do trabalho, não é capturado
pela visão reducionista dos estatísticos.
Com efeito, os dados mostram um cotidiano vivenciado por esses/
as jovens atravessado, em alguns casos e momentos, pela ausência
no trabalho e na escola, sem que vinculação às experiências que
espantam toda a sociedade: a gravidez na adolescência, o tráfico
de drogas e a criminalidade. Essas três realidades circundam suas
vidas, pois as quebradas onde moram oferecem convites e nelas
circulam sociabilidades de gênero que dificultam a autonomia das
jovens em relação a seu corpo e sua sexualidade. No entanto, esses/
as jovens tem construído formas de se socializar que rompem com a
noção de vulneráveis e propensos a determinados comportamentos

140 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude
e das experiências de jovens pobres

considerados de risco.
Como campo de intervenção social, os/as jovens pobres
participaram de ações voltadas para a profissionalização e a aquisição
de conhecimentos, reconhecem a importância delas em suas vidas, mas
frustram-se por elas não cumprirem o objetivo, seja pela precariedade
da formação, pela reprodução de trajetórias profissionais desvalorizadas
socialmente ou pelos impasses colocados pelo mundo do trabalho,
que repele os/as jovens a partir dos preconceitos contra o/a jovem
preto/a, pobre, periférico/a. Assim, as noções compartilhadas sobre
os/as jovens chamados/as nem nem parecem produzir estratégias
que reforçam a identidade que querem, pelo menos na letra do papel,
desconstruir.
Em relação aos direitos educação e trabalho, destacamos a
importância de ambos na construção da mudança social a partir do
aprendizado e da transmissão de conhecimentos, valores, ideologias e
atitudes capazes de produzir a autonomia e emancipação dos sujeitos,
e estes provocarem mudanças na sociedade.
As instituições educacionais permitem, assim, construção do
conhecimento, espaços de diálogo, troca de experiências, convivência
com a diversidade e produção de estratégias políticas para garantir o
acesso aos direitos sociais. O direito à escola não pode se resumir ao
debate do ensino propedêutico ou técnico, pois é um espaço coletivo,
de relação entre os sujeitos diversos, um lócus social onde se concretiza
a reprodução do velho e a construção no novo.
Em relação ao trabalho, temos vivenciado um contexto marcado
pela insegurança ocupacional dos indivíduos, reforçada pelo fim
da equiparação entre trabalho e emprego, por uma flexibilização
das leis trabalhistas que garante o lucro dos empresários através
da expansão da mais-valia e retira direitos dos/as trabalhadores/as.
A impossibilidade cada vez mais presente de construir biografias e
identidades centradas no trabalho protegido pelas leis trabalhistas
pode ser vista, nesse sentido, como um elemento que tem sustentado
o trabalho como um tema de debate, objeto de interesse e questão
de preocupação no nosso contexto social. Não seria diferente essa
preocupação por parte e para os/as jovens, especialmente os/as mais
pobres. O tema do trabalho encontra-se, assim, na pauta de interesses

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 141


Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

dos/as jovens, de suas famílias e dos atores sociais públicos e privados


que desenvolvem programas voltados para esse público. Em termos
de sentidos e significados, levamos em consideração que o trabalho,
remunerado, é revestido de valores pessoais e coletivos de obrigação
social (contribuir para o desenvolvimento da sociedade), dever moral
(sentir-se moralmente valorizado), satisfação pessoal (sustentar-
se tanto financeira quanto existencialmente) e integração social
(aprendizado de conhecimentos e valores sociais). Dessa forma, ele
não cumpre a função única e exclusiva de garantir o sustento financeiro
do indivíduo, mas de integrar e satisfazer o sujeito psicossocialmente.
Nesse sentido, defendemos a presença dos/as jovens pobres
na educação e no trabalho, pois as experiências aprendidas e
compartilhadas coletivamente nesses espaços podem contribuir
para trilhar outras trajetórias que venham romper com as profecias
estabelecidas socialmente para eles/as. Nossos questionamentos,
portanto, são à recorrente transposição do trabalho e da educação
como campos garantidores de direitos sociais para a função de
controle e normatização das experiências dos/as jovens para atender
os interesses das elites. Criticamos, assim, a utilização da educação e
do trabalho como antídotos contra uma virtual periculosidade dos/as
jovens pobres e a manutenção dos privilégios sociais.
É contra o trabalho da carência, da moral, do/a jovem pobre que
nos posicionamos ao levantarmos nossas críticas e desconfianças
acerca da construção de algumas noções sobre os/as chamados/as
jovens nem nem. O trabalho da carência aparece, assim, em alguns
projetos e programas de educação profissional a partir do privilégio do
que eles chamam de formação humana, a despeito de uma formação
técnica-profissional dos/as jovens, focando-se em ensinar a estes/as
formas de se comportar, agir, refletir e se relacionar de certos modos.
Ainda no exercício de articulação entre os universos semânticos/
noções sobre os/as chamados/as jovens nem nem e as experiências
compartilhadas pelos/as jovens na pesquisa-intervenção, queremos
destacar que os documentos apresentam situações que, em alguma
medida, são vivenciadas pelos/as jovens em suas vidas. Contudo, as
noções compartilhadas dissimulam as tramas cotidianas que constroem
os lugares de subordinação para os/as jovens, contribuindo para que

142 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude
e das experiências de jovens pobres

eles/as estejam ausentes da escola e do trabalho. Os documentos


destacam a presença marcante das jovens no contingente chamado
nem nem, estando ausente neles uma leitura que articule diferentes
dimensões para a compreensão da situação. Os constrangimentos
psicossociais, as opressões, que se tornam empecilhos para estudar
e trabalhar aparecem, portanto, no relato das jovens, como no caso
de uma das jovens que trabalhou cuidando de duas crianças pelo
valor mensal de R$ 250,00. Nesse sentido, as experiências dos/as
jovens contribuem para corporificar, a partir da articulação entre
as desigualdades de classe, raça, gênero e território, as noções
simplificadoras de algumas experiências, que conduzem a respostas
fáceis.
Também no campo das propostas apresentadas para resolução
do problema definido como nem nem, as experiências vivenciadas
pelos/as jovens interrogam as noções construídas. Diante das
intervenções apresentadas, como o fomento ao trabalho decente,
maior formação e qualificação; melhor inserção laboral e incentivo
ao empreendedorismo; orientação e indução ao trabalho, projeto
formativo e laboral; políticas, programas e projetos promovidos pelo
Estado, as experiências vivenciadas pelos/as jovens mostram que
para enfrentar o desemprego é necessário intervir nas instituições
empregadoras, em seus critérios seletivos e suas práticas de afirmação
da diversidade, pois, eles/as tem se tornado colecionadores de
diplomas de cursos de formação e educação profissional. Ao relatarem
o preconceito, a discriminação e as violências sofridas nos processos
seletivos e no cotidiano do trabalho, e no ambiente escolar, eles
problematizam as noções compartilhadas de que o investimento para
a resolução do problema deve centrar-se na dimensão individual.
O debate enfraquecido nos documentos da OIT sobre as
desigualdades de gênero e raça na construção das experiências dos/
as jovens contribuem, portanto, para o compartilhamento de noções
que apontam causas e soluções distorcidas da realidade de vida
apresentada pelos/as jovens com quem dialogamos sobre os diferentes
temas, dentre eles a relação com o trabalho e a educação.
Nesse cotidiano de opressões articuladas, a ausência na escola
e no mundo do trabalho, e suas consequências negativas para o

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 143


Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

futuro desses/as jovens, não são os únicos direitos negados (SILVA;


SILVA, 2011). O foco na regulação e moralização das experiências via
trabalho e educação, impede ver que esses/as jovens não tem direito
à educação, nem ao trabalho, nem à saúde, nem ao esporte, nem ao
lazer, nem à cultura, nem à mobilidade urbana, nem à habitação etc.
A condição chamada nem nem pode ser compreendia, portanto,
como um simulacro, uma cópia infiel da realidade e que distorce o real
(BAUDRILLARD, 1992). As noções compartilhadas pelos documentos
acerca da condição nem nem focam na ausência dos/as jovens no
trabalho e na educação, e os riscos apontados para a sociedade e o
desenvolvimento econômico do país, apostando na construção de
enfrentamentos a essa situação a partir da dimensão individual,
subjetiva e meritocrática. Elas invisibilizam e distorcem, portanto,
a articulação das opressões e a reprodução da desigualdade social,
que impedem os/as jovens pobres o acesso a vários direitos sociais,
dentre eles ao trabalho e à educação. Como simulação, essas noções
constroem um mundo de aparências, buscam confundir-se com a
realidade construída, a serviços da manutenção do sistema econômico
vigente.
A identidade nem nem pode ser entendida como uma estratégia
que convida a sociedade a pensar que a experiências desses/as jovens
se reduzem à ausência no trabalho e na escola, que estes são as únicas
respostas para a inclusão social, que basta investir na capacidade de
reinvenção e na aquisição de competências por parte desses/as jovens
para resolver o problema, encobrindo-se, nesse interim, os mecanismos
de reprodução da desigualdade e da exclusão desses/as jovens do
campo dos direitos sociais. Problematizamos, portanto, a construção
social do/a jovem nomeado/a nem nem como um simulacro, uma
distorção que invisibiliza os/as jovens pobres que tem seus direitos
negados cotidianamente, mas cuja imagem como ociosos/as pode
servir para perpetuar práticas de controle e extermínio, como no caso
do genocídio da juventude negra.
A partir do interesse e da expectativa de que essas análises possam
contribuir para transformar a vida dos/as jovens pobres marcados/
as pelas experiências de opressão, arriscamos pensar propostas
de intervenção, a serem assumidas inclusive por profissionais da

144 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Produzindo questionamentos sobre o/a jovem chamado/a ‘‘nem nem’’ a partir de pesquisas sobre juventude
e das experiências de jovens pobres

Psicologia, que contribuam para que as vidas precárias, como fruto


da desigualdade social, não se precarizem ainda mais diante da sua
captura e manipulação por identidades forjadas, como a nem nem.
Refletimos sobre a importância do fortalecimento da formação
continuada de professores/as e formadores/as, e outros atores da
comunidade escolar, para a diversidade, mas que essa diversidade não
seja discutida em sua perspectiva romântica, a qual não explicita as
relações de poder e as hierarquias entre os sujeitos. A diversidade dever
ser debatida, portanto, como a construção histórica, cultural e social
das diferenças (GOMES, 2007), as quais são forjadas para se afirmar
determinados lugares de poder para alguns e de subalternidade para
outros/as, ao realizar a transposição do diferente em desigual. O que
buscamos como horizonte político é a igualdade de direitos, a partir
do respeito e valorização da heterogeneidade das experiências sociais
de classe, raça, gênero e lugar de origem. Que os/as jovens possam
ter suas experiências respeitadas e valorizadas, e que isso contribua
para o seu aprendizado e socialização na escola. Que o enfrentamento
ao preconceito e à discriminação de classe, raça, gênero e território
contribua para a sua permanência nos espaços educacionais.
Ainda no âmbito educacional, que se produza o fortalecimento
do debate da igualdade de gênero. Consideramos importante a
realização e o fortalecimento de discussões sobre a construção
cultural do gênero, as desigualdades de gênero e a violência de
gênero, junto aos atores que fazem parte do cotidiano educacional.
Que o debate acerca da autonomia das jovens sobre o próprio corpo
e sexualidade, e uma divisão sexual do trabalho igualitária, amplie o
horizonte de possibilidades das jovens em suas formas de ser e estar
no mundo. Que os jovens sejam inseridos nesses debates, como atores
estratégicos na reconfiguração das relações de gênero, e que esses
debates interseccionem outras desigualdades para a compreensão das
experiências e trajetórias de vida dos sujeitos.
No campo da formação profissional, destacamos a construção de
percursos formativos que permitam aos/às jovens experimentarem
experiências profissionais diversas, e não circunscritas àquelas
socialmente desprivilegiadas na sociedade, para que se criem fissuras
nos ciclos de reprodução das desigualdades. Que outros mundos

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 145


Paulo Roberto da Silva Junior, Claudia Mayorga

profissionais, distantes do esvaziamento político do protagonismo


e empreendedorismo incentivado sem os devidos recursos, sejam
possibilitados.
Apontamos a importância do mesmo debate sobre diversidade
junto às empresas, de modo que pensem aspectos afirmativos para a
contratação de jovens pobres, pois a ausência dessa problematização
tende a perpetuar a lógica do/a jovem colecionador de cursos de
formação profissional, mas sem ocupação, diante do preconceito
e da discriminação contra seus marcadores de classe, raça, gênero,
sexualidade e território. É necessário, nesse sentido, pensar
mecanismos institucionais de inserção e fortalecimento desses/as
jovens no mercado de trabalho.
Por fim, propomos uma reflexão crítica dos projetos e programas
pautados na ocupação do tempo ocioso dos/as jovens pobres, que,
mesmo pautando-se no discurso vazio do direito ao esporte, lazer,
cultura, inclusão produtiva, mobilidade, empreendedorismo e
protagonismo juvenil, produzem uma inclusão perversa, a partir do
controle dos comportamentos dos/as jovens para fins determinados
socialmente. O esvaziamento político das propostas, a falta de
recursos, a ausência da participação dos/as jovens na construção,
são alguns dos mecanismos que contribuem, portanto, antes para a
uma cidadania tutelada do que uma transformação das condições de
opressão vivenciadas por eles/as.
Que a incorporação dessas sugestões nos espaços de decisão, nas
políticas públicas, nas instituições, seja uma das contribuições da nossa
pesquisa e bem como dos/as profissionais em Psicologia que atuam
junto à juventude pobre, os/as quais possam se pautar na produção
de saberes e no fomento a transformações, especialmente, na vida
daqueles/as jovens rotulados/as nem nem.

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Sobre os autores

Paulo Roberto da Silva Junior


Doutor em Psicologia Social pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG.
Professor da Faculdade Arnaldo. Brasil.
E-mail: paulosilva.junior@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8478540830247358

Claudia Mayorga
Doutora em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais/
UFMG e coordenadora do Núcleo Conexões de Saberes na UFMG. Brasil.
E-mail: claudiamayorga@ufmg.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8982681063835719

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 149


9

Grêmio Estudantil e
protagonismo juvenil:
ações diante dos
desafios
Student Council and youth
protagonism: actions in the
face of challenges

Gabriel Rodrigues Ramos


Leandra Kelly de Carvalho
Neyfsom Carlos Fernandes Matias
Orientador: Neyfsom Carlos Fernandes Matias

150 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

Resumo

O desenvolvimento do protagonismo juvenil no processo educativo


é fundamental para o exercício de liberdades civis; entretanto a
participação dos alunos através de instâncias como o Grêmio Estudantil
enfrenta obstáculos no sistema de ensino. Este trabalho relata uma
experiência de intervenção em um Grêmio Estudantil de uma escola
pública do interior de Minas Gerais. Foram realizadas duas etapas,
uma de diagnóstico e outra de intervenção. Em ambas, aconteceram
rodas de conversas, entrevistas, observações e levantamento de
informações por meio de questionários aplicados aos estudantes. No
decorrer do trabalho, o grupo passou a se organizar pelo bem coletivo,
desenvolvendo e concretizando projetos para a comunidade escolar e
se posicionando perante questões sociais que afetavam os discentes.
O estudo destaca a importância de conceber o Grêmio Estudantil como
um espaço de formação do protagonismo juvenil e de mobilização
social.

Palavras-chave: Grêmio Estudantil. Protagonismo juvenil. Juventude.

Abstract

The development of youth protagonism in the educational process is


fundamental to the exercise of civil liberties; however, the participation
of students through structures like the student council faces obstacles
in the education system. This paper describes an experience of
intervention in the student council of a public school in the inlands
of Minas Gerais. It was implemented in two phases, one of diagnosis
and another of intervention. In both, we conducted conversation
circles, interviews, observations and surveys of information through
questionnaires applied to the students. Throughout the work, the
group started to organize for the collective good, developing and
accomplishing projects for the school community and taking a stand
on social issues which affected the students. The study marks the
importance of conceiving the student council as space for the formation
of youth protagonism and of social mobilization.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 151


Gabriel Rodrigues Ramos, Leandra Kelly de Carvalho, Neyfsom Carlos Fernandes Matias

Keywords: Student council. Youth protagonism. Youth.

1. Introdução

A sociedade conta com diversas instituições que devem garantir


as liberdades civis, bem como estimular a participação social e
colaborar na busca de soluções para os problemas coletivos. As escolas
constituem-se como uma forma de organização social com capacidade
transformadora tanto nos locais onde estão inseridas quanto no
cenário nacional, principalmente a partir do desenvolvimento da
consciência crítica dos estudantes. Isso pode acontecer em diferentes
espaços e atividades escolares.
O Grêmio Estudantil apresenta-se como um desses contextos, com
papel importante na promoção do protagonismo juvenil. Porém essa
instância enfrenta diversos desafios no seu cotidiano, que vão desde a
falta de perspectiva dos estudantes relacionada a questões didáticas e
a como elas interferem no seu futuro até a necessidade de melhoria no
sistema de ensino (CASTELLI, 2015). Há indícios de que o desinteresse
dos discentes perante as adversidades é resultado da ausência de
estratégias públicas relacionadas aos seus anseios. Investigações de
questões existentes nas relações entre alunos, professores, gestores
e funcionários das escolas evidenciam um sistema engessado que
se distancia da realidade da juventude (DAYRELL; MARTINS, 2013).
Os alunos não são estimulados a se reconhecer como parte ativa do
microssistema escolar e a perceber que são capazes de imprimir nesse
espaço seus interesses. Esse panorama provoca no jovem a percepção
dos mecanismos das instituições de educação como opressores, e a
escola se torna um ambiente incompatível com seus desejos. Diante
desses aspectos, um dos maiores obstáculos do Grêmio é o de promover
o protagonismo juvenil, formando os jovens para se posicionarem não
só diante do sistema educacional, realizando e propondo mudanças,
mas também perante a sociedade (SCARIOT; LINHARES, 2014).
Promover o envolvimento e o posicionamento dos jovens, por
meio do Grêmio, é uma tarefa difícil porque muitos estudantes
estão distantes dos movimentos sociais e não se envolvem em ações
organizadas em prol de direitos e na luta por interesses coletivos. Além

152 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

disso, as secretarias de educação e a direção das escolas concebem


esse espaço como um setor que desenvolve tarefas operacionais,
como a organização de eventos e a elaboração de campanhas de
temas definidos por esses órgãos. Dessa forma, o Grêmio perde o seu
caráter emancipatório e se torna uma entidade pró-forma, ao invés de
favorecer a problematização das posturas das estruturas opressoras.
Ou seja, os indivíduos dominados procuram maneiras de suprir suas
carências sem se movimentar contra o sistema que mantém essas
iniquidades. Assim, o perfil pragmático definido pelo estado e pelos
gestores das escolas para as agremiações não tensiona as relações
sociais, mas sim naturaliza a submissão dos indivíduos ao sistema
alienante (GONZÁLEZ; MOURA, 2009).
A análise da educação brasileira revela que, para os grupos
privilegiados, o papel da escola é o de preparar para o mundo adulto
e, principalmente, para a entrada na universidade. Para as camadas
populares, a escola disciplina os jovens para ocupar posições inferiores
no mercado de trabalho. Ou seja, a escola funciona como uma
ferramenta de preservação e reprodução das desigualdades sociais
(PAULILO, 2017). Não por acaso, os alunos das instituições públicas se
afastam do ensino, pois esses contextos não atendem às suas ambições
(MELO; SALLES, 2020).
Ainda assim, alguns jovens se envolvem com grupos artísticos e
religiosos e protagonizam ações voltadas para a transformação social.
A partir das últimas décadas do século XX, nota-se uma tendência do
jovem brasileiro a agrupar-se com base em anseios individuais, ao invés
de aspirações coletivas (SOFIATI, 2008). Isso pode ser observado, por
exemplo, na década de 2010, na efervescência de pautas identitárias
como o feminismo, o movimento negro e o movimento Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais e Mais (LGBTQI+),
em que a juventude voltou a ser o centro dos debates sociais (SILVA
et al. 2018). No Brasil, no ano de 2016 encontra-se um dos maiores
movimentos nesse sentido que foi o de ocupações das escolas em São
Paulo pelos estudantes secundaristas, com uma pauta importante de
reivindicações contra a perda de direitos sociais (RIBEIRO; PAULINO,
2019). Tem-se então o fortalecimento do protagonismo juvenil, e é
evidenciada a importância de reinventar os movimentos estudantis

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 153


Gabriel Rodrigues Ramos, Leandra Kelly de Carvalho, Neyfsom Carlos Fernandes Matias

para que possam contemplar os ideais da juventude. Para tanto, é


necessário que os alunos enxerguem a escola como um espaço de
ação social para suas causas individuais e se identifiquem como um
grupo que possui interesses comuns. A participação em esferas como
o Grêmio estudantil possibilita aos alunos perceberem que a ocupação
de uma entidade escolar requer a representação de interesses da
maioria (BULHÕES et al. 2018). Ao mesmo tempo, os jovens conseguem
avançar em lutas de alguns grupos minoritários, dialogando com as
fragmentadas inclinações identitárias dessa geração, bem como
constroem conhecimentos importantes sobre a necessidade da
participação social (BOGHOSSIAN; MINAYO, 2009).
O protagonismo juvenil acontece quando o jovem se envolve em
tarefas, assumindo o papel de autor da sua história, promovendo
mudanças e buscando soluções para os problemas enfrentados pelos
grupos que frequenta. Desse modo, o jovem pode criar e participar
de espaços pelos quais realizará ações construtivas a favor da
sociedade, tomará posições críticas ao status quo e se solidarizará com
problemas coletivos (MOURA, 2010). Na escola, o desenvolvimento
do protagonismo juvenil implica a participação dos alunos no
processo educativo, ou seja, que suas atividades não se limitem a
assistir às aulas, mas que eles possam também elaborar iniciativas
que busquem transformar o ambiente escolar de acordo com suas
necessidades. É imprescindível o desenvolvimento de ações que
promovam posicionamentos críticos dos jovens em relação às práticas
que ocorrem na escola e à posição da instituição na malha social. O
corpo discente pode agir, assim, como um grupo que defenderá seus
interesses coletivamente (OLIVEIRA, 2011).
Para os alunos, a intervenção prática no contexto escolar é
gratificante e fortalece, para a comunidade, a noção de transformação
perceptível no cotidiano estudantil (BULHÕES, et al. 2018). Iniciativas
dos alunos, como campanhas sobre direitos sociais e elaboração de
eventos esportivos, estimulam a intervenção discente na escola e, ao
longo do tempo, consolidam a prática do protagonismo juvenil naquele
espaço. Através da agremiação, essa participação tem a oportunidade
de se tornar constante e organizada, considerando os interesses de
todo o corpo estudantil e dos funcionários da escola. O Grêmio, veículo

154 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

institucionalizado dentro da esfera escolar, pode cumprir o papel de


formador do protagonismo juvenil. Dito isso, este trabalho tem o
objetivo de relatar a experiência de uma intervenção realizada com um
grupo de estudantes, cujo objetivo foi o de reorganização do Grêmio
estudantil de uma escola pública. Especificamente, apresentamos o
desenvolvimento das ações e destacamos como o Grêmio estudantil
promove o protagonismo juvenil, a partir dos inúmeros desafios que
enfrentam para mobilizar os estudantes e atuar nas escolas.

2. Metodologia

O trabalho foi desenvolvido em uma escola pública de ensino


fundamental e médio, numa cidade do interior de Minas Gerais, e se
deu a partir da realização do programa de extensão “Roda Integral: um
espaço de diálogo, ideias e debates” que desenvolvia rodas de conversa
com os estudantes com o objetivo de promover debates sobre diferentes
assuntos. No decorrer das rodas, surgiram temas vinculados ao modo
como os alunos se relacionavam com a escola, com os educadores, e
os jovens expressaram insatisfação com o funcionamento do sistema
educacional, demonstrando desejo de mudança. Na instituição existia
um Grêmio Estudantil e os dois primeiros autores do artigo, que eram
estagiários no programa de extensão e estudantes de Psicologia, foram
procurados por seus integrantes, em busca de auxílio para a resolução
de problemas referentes ao funcionamento do grupo. A partir dessa
demanda, os estagiários desenvolveram junto com o professor
coordenador da Roda Integral uma estratégia de intervenção com o
intuito de colaborar na reestruturação do Grêmio.
De início, o trabalho surgiu com o intuito de investigar e agir
promovendo o protagonismo juvenil dos estudantes, entendendo
como elementos-chave a carência de autonomia, o distanciamento
e o baixo interesse dos alunos em relação ao processo educacional.
Os problemas de organização dos gremistas e a reputação do Grêmio
perante os demais discentes se tornaram outras questões de interesse.
Desse modo, o trabalho foi delimitado às dinâmicas da agremiação
envolvendo seus membros, os demais alunos, os professores e os
funcionários da instituição, com interesse no potencial transformador

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 155


Gabriel Rodrigues Ramos, Leandra Kelly de Carvalho, Neyfsom Carlos Fernandes Matias

da experiência gremista. Assim, planejamos as atividades em duas


etapas: a primeira foi de diagnóstico da situação do Grêmio, e a
segunda, de intervenção.
Na primeira fase, realizamos reuniões semanais com a gestão
do Grêmio, formada por quatro integrantes, a fim de levantar as
demandas dos participantes, as informações para subsidiar as ações
e as expectativas em relação ao trabalho. Realizamos três encontros
iniciais para saber como poderíamos ajudar na execução dos projetos
da equipe, quais eram os obstáculos da gestão e como poderia ser
reestruturada a agremiação. A partir disso, observamos que o grupo
havia enfrentado dificuldades de organização e comunicação cujas
raízes estavam na maneira como dividiam as tarefas e na pouca adesão
de discentes à equipe.
Na etapa de intervenção, promovemos reuniões e mobilizações
com os estudantes de toda a escola. Fizemos uma campanha para que
mais jovens participassem do Grêmio. Preparamos também um dia de
formação no qual aplicamos dinâmicas de grupos e um questionário, a
fim de avaliar as habilidades dos estudantes interessados em participar
do Grêmio, e demonstramos como as tarefas poderiam ser divididas. A
partir dessa etapa, acompanhamos as atividades por meio de reuniões
presenciais da gestão constituída após a reformulação do Grêmio. Ao
final, participaram dos trabalhos cerca de 20 estudantes do 9º ano do
ensino fundamental e dos 1º, 2º e 3º anos do ensino médio, além da
coordenadora pedagógica da escola. O trabalho aconteceu entre o
segundo semestre do ano de 2019 e primeiro de 2020. A partir de março
deste ano, as ações se desenvolveram por meio de ferramentas como
o Google Meet e o WhatsApp, devido à pandemia do novo coronavírus
(OLIVEIRA; GOMES; BARCELLOS, 2020). Nessa etapa, foram realizadas
dez reuniões presenciais e online. Além dessas estratégias, fizemos
ainda entrevistas, consultas aos relatos do desenvolvimento das rodas
de conversa do programa de extensão e observações no cotidiano da
escola.
Todas as etapas foram registradas em relatórios e questionários
elaborados para levantar dados para subsidiar o trabalho. Essas
informações e publicações veiculadas nas mídias sociais do Grêmio
compuseram o corpus de dados para a elaboração deste relato. Ao

156 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

longo de toda a intervenção, adotamos procedimentos éticos para


preservar o anonimato dos participantes, e eles foram informados de
que não eram obrigados a participar das atividades e que poderiam
se retirar a qualquer momento, de acordo com a Resolução n. 510 do
Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016). Além disso, contamos
com o consentimento da direção da escola. Para a apresentação deste
relato, utilizaremos nomes fictícios, a fim de proteger a identidade
dos envolvidos. Todos os trabalhos no campo foram realizados pelos
dois primeiros autores deste capítulo, que faziam parte do programa
de extensão, sob a supervisão do terceiro. Foram realizadas reuniões
semanais para discussão dos procedimentos que seriam adotados no
decorrer do trabalho.

3. Resultados e discussão

A história do Grêmio: O Grêmio Estudantil possui um histórico de


envolvimento bastante efetivo na criação de momentos e espaços
correspondentes aos interesses e às necessidades dos alunos e da
escola. No entanto, o grupo enfrentou uma série de conflitos antes de
iniciarmos as atividades e, de um total de 15 componentes, restaram
apenas quatro membros estudantes do 1º ano do Ensino Médio, que
encontravam dificuldades para desenvolver ações no contexto escolar.
Um dos maiores desafios do Grêmio era o de sensibilizar os jovens
de que era possível propor mudanças na organização educacional e
apresentar à direção demandas de ações em que eles tinham interesse.
No decorrer dos últimos anos, várias chapas começavam, mas
não terminavam a gestão, o que resultou numa descontinuidade das
ações que impediu o estabelecimento de uma cultura de atuação
juvenil na escola. A chapa à frente da organização contava com
participantes da gestão anterior, que vigorou durante o ano de 2018 e
que foi responsável por cativar muitos alunos e realizar vários eventos
e atividades bem-sucedidas na escola, como o promovido no dia da
mulher, com a intenção de conscientizar os alunos sobre a importância
da data, preparado para levar informação de forma lúdica aos jovens.
Os outros eventos, como a realização de um Correio Elegante no
Dia dos Namorados, tiveram como objetivo arrecadar fundos para o

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 157


Gabriel Rodrigues Ramos, Leandra Kelly de Carvalho, Neyfsom Carlos Fernandes Matias

caixa do Grêmio. Gradativamente, os membros adquiriram confiança


para assumir e coordenar programas mais elaborados, como a festa
junina da escola, que havia anos não acontecia e nem contava com
a participação da comunidade do entorno da instituição. Com isso,
o grupo passou a ser procurado pela direção para organizar eventos
oferecidos aos alunos, indício de que o corpo docente percebia a
aceitação, pelos alunos, das atividades planejadas pelos gremistas.
Porém, começou a conceber o Grêmio como uma instância que resolvia
problemas operacionais dentro da escola e não como um parceiro na
discussão de temas de interesse coletivos e elaboração de estratégias
relacionadas às questões do ensino (GONZÁLEZ; MOURA, 2009).
Observamos em algumas rodas de conversa que grande parte dos
estudantes sentia que seus pontos de vista não eram considerados pela
direção e pelos professores. Para esses adolescentes, a escola não era
um local onde conseguiam imprimir seus interesses e suas demandas,
mas sim uma instituição que, desde a infância, os havia condicionado
para uma relação passiva e impessoal com o ensino. Os estudantes
relataram a ausência de atividades escolares que fossem capazes de
engajá-los como comunidade e articular o conteúdo aprendido na sala
de aula com situações do cotidiano. Além disso, mencionaram a falta
de campeonatos esportivos e de outros eventos na escola, como a
tradicional festa junina ou uma feira de ciências. Havia uma insatisfação
com a abordagem tradicional de aulas apenas expositivas, limitadas
ao campo teórico, sem articulação com o cotidiano dos jovens. No
entanto, quando estimulávamos os estudantes a pensar soluções
para essas questões, eles demonstravam impotência, indicando que
isso não era possível. Essa reação é fruto de um sistema no qual a
concepção do papel do aluno está ligada a relações de poder e que
enfrenta uma crise de participação na dinâmica escolar (SPOSITO;
ALMEIDA; TARÁBOLA, 2020).
Nesse contexto, o Grêmio, como ferramenta que potencializa a
organização coletiva dos alunos, pode ser para os jovens um caminho
viável para a defesa de seus interesses e, principalmente, de estímulo
à participação social (CASTELLI, 2015). A perspectiva de transformação
do âmbito escolar e de protagonismo juvenil passa, dessa forma, a
ser mais concreta e a desafiar as noções de impotência observadas

158 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

anteriormente (SCARIOT; LINHARES, 2014). Entretanto, a agremiação


da escola enfrentava desafios de organização e de estruturação que
enfraqueciam suas ações, tanto que os outros alunos não percebiam
como o Grêmio poderia colaborar nas questões que os jovens
apontavam nas rodas. Emília, aluna do 2º ano do Ensino Médio,
destacou que não enxergava “o Grêmio tão presente na escola. Não
tinha interação com os alunos e não havia atividades legais”. De fato,
a equipe de gremistas da escola estava com dificuldades não só de
promover ações, mas também de mobilizar os seus colegas.
Esses obstáculos enfrentados pelo Grêmio eram, em grande
parte, sintomas da descrença dos jovens em relação à capacidade de
mudança dos elementos que criticavam na escola. Nas reuniões que
realizamos com a gestão, a quantidade de gremistas foi o fator mais
problematizado, pois a existência de apenas quatro membros ativos
limitava a esfera de ação do grupo e o tornava pouco visível diante da
comunidade. Os motivos desse baixo número de mais participantes
incluem o fato de os discentes em geral possuírem a perspectiva de
que a luta por melhorias no ambiente escolar não teria resultados
positivos, o que os afastava da agremiação. Além disso, é relevante
observar a evasão de jovens do Grêmio após conflitos internos
e, principalmente, pelas falhas de comunicação, dado que vários
membros saíam sem dar explicações. Nesse cenário, iniciamos os
processos com o objetivo de propor mudanças e elaborar estratégias
para que o Grêmio desenvolvesse seu trabalho.
As ações de intervenção no Grêmio Estudantil: O nosso objetivo era
transformar o Grêmio em uma equipe maior e atuante, que pudesse
propor mudanças na escola. Para tanto, foi necessário encarar as
principais dificuldades do grupo na sua configuração e desenvolver
estratégias para superá-las. Dessa forma, foi desenvolvida uma
atividade a fim de ampliar a adesão dos discentes ao Grêmio, sem
negligenciar a conscientização desses alunos sobre o papel de um
gremista e as responsabilidades implicadas por esse ofício. Além disso,
houve o processo de reestruturação das dinâmicas de poder dentro
do Grêmio, como estratégia de combate aos conflitos recorrentes
na organização interna da entidade, otimizando o funcionamento e
evitando a evasão dos estudantes.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 159


Gabriel Rodrigues Ramos, Leandra Kelly de Carvalho, Neyfsom Carlos Fernandes Matias

Fizemos uma campanha para atrair mais alunos para a agremiação.


Por meio das rodas de conversa, abordamos questões relacionadas à
autonomia dos jovens no ambiente escolar e introduzimos o Grêmio
como uma via para a transformação desse espaço. Esse momento
exigiu que a descrença dos alunos na capacidade de mudança do
panorama educacional fosse desafiada e, para tanto, trouxemos à tona
exemplos de conquistas dos Grêmios da escola e de outros lugares.
Também percebemos que os estudantes apresentavam diversos
anseios de mobilização coletiva a partir de suas demandas individuais.
O aluno Danilo, por exemplo, almejava a criação de um clube
para alunos LGBTQI+ da escola, que acolheria os estudantes cujas
identidades fugissem do padrão cis-heteronormativo e poderia iniciar
campanhas contra a LGBTQIfobia. Já para os jovens esportistas, a
organização de campeonatos de futebol e vôlei gerava entusiasmo
em termos de participação escolar. Para muitas alunas, o ímpeto
por mudança vinha da abordagem de questões de gênero, como a
realização de ações sobre relacionamento abusivo ou a demanda por
absorventes gratuitos no banheiro feminino. Essas demandas, embora
associadas a questões que tocavam alguns estudantes, apontam como
acontece a relação entre os anseios individuais com as causas coletivas
(BOGHOSSIAN; MINAYO, 2009). Ao mesmo tempo, revelam o quanto a
escola se distancia do que é importante para esses jovens.
A atuação do jovem no campo social é atravessada pela sua vivência
pessoal, por meio da qual ele é capaz de se identificar e se envolver
com os enfrentamentos coletivos. A partir daí, cresceu o interesse pelo
envolvimento ativo no cotidiano escolar. Diante disso, anunciamos o
projeto para todas as turmas secundaristas, visando instruir os alunos
sobre a conduta de um Grêmio e questionando-os sobre o que faziam
para transformar a escola em um âmbito mais positivo em suas vidas.
Assim, todos os alunos secundaristas foram convidados a adentrar o
Grêmio e a deixar, por meio dele, a sua marca na escola.
Reconhecendo que o êxito de uma agremiação não depende apenas
da participação de vários membros, mas de como ela é articulada, foi
preciso questionar a organização do Grêmio. Em discussão com os
gremistas, definimos uma estrutura de poder que consistia em cinco
diretorias focadas em aspectos diferentes das atividades do grupo:

160 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

a diretoria de comunicação, responsável pela articulação do grêmio


com o resto da escola e quaisquer outras entidades exteriores; a
diretoria de conexão, incumbida pela comunicação interna e pelo
aperfeiçoamento das relações interpessoais entre o grupo; a diretoria
de projetos, capaz de organizar eventos e atividades práticas variadas;
a diretoria financeira, que cuida do orçamento do grêmio; e a diretoria
de esportes, articuladora e realizadora dos eventos esportivos. Cada
diretoria era formada por vários assessores e um diretor, que teria a
posição de liderança e seria encarregado de representar e de coordenar
os jovens daquela divisão, ouvindo também suas demandas.
No intuito de reformular as relações de autoridade entre os
gremistas, propusemos uma estrutura horizontal de poder, ou seja,
a ausência de um presidente com jurisdição acima de todos os
outros. Assim, os cinco diretores teriam o mesmo papel de liderança,
autônomos na alçada de sua diretoria e formando um conselho que
decidiria sobre questões que dissessem respeito a todo o Grêmio.
O formato foi aceito pelos gremistas, porém ocorreu resistência por
parte da coordenação da escola, que afirmou que a regulamentação
estadual dos Grêmios exigia a eleição de um presidente que pudesse
representar a associação formalmente. Realizamos reuniões com ela
para discutir a questão e apresentarmos os porquês de tal organização,
porém, a proposta não foi aceita. Fizemos várias pesquisas e
solicitações à coordenação para ter acesso a essas normativas e, até
o final do trabalho, não conseguimos. Optamos pela manutenção
simbólica do cargo de presidente, mantendo na prática a distribuição
descentralizada de poder. Através desse modelo, buscamos aliviar as
tensões entre os jovens e introduzir nos participantes o princípio de
coletividade que está no cerne do protagonismo juvenil. A participação
estudantil dentro da instituição poderia, então, causar impactos
positivos na formação dos jovens e criar uma cultura de iniciativa
discente que pudesse mudar, a longo prazo, a realidade daquela escola.
Com a reorganização dos vínculos de poder do Grêmio definida, a
próxima etapa foi mapear as habilidades dos indivíduos interessados
em participar do grupo, a fim de ajudá-los a se organizar da forma
mais produtiva e satisfatória possível. Para tanto, realizamos o dia de
formação. Elaboramos exercícios com o intuito de explorar diferentes

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 161


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competências dos alunos, como criatividade, talento artístico,


capacidade de liderança, engajamento social, comunicação e trabalho
em grupo. Nos questionários aplicados, em adição aos aspectos sociais
e características dos alunos, conseguimos analisar também questões
práticas, como a disposição de tempo e de esforço que os jovens
planejavam investir no Grêmio. Participaram desse dia de formação não
apenas adolescentes e jovens que estavam adentrando a agremiação,
como também os membros já atuantes do grupo.
Com os resultados recolhidos nessas atividades, fizemos uma
leitura das informações, das expectativas dos jovens quanto ao Grêmio
e de suas áreas de especialidade. Baseando-nos nesses dados, nos
reunimos novamente com os alunos e propusemos a composição das
diretorias elaboradas. Mantivemos as escolhas dos jovens e, assim,
deliberamos a ocupação dos cargos que iriam compor a chapa gremista.
Nesse momento, a nova estrutura do Grêmio foi discutida por todos os
presentes, garantindo que as mudanças seriam expressões dos anseios
dos participantes.
A resposta dos alunos a esse processo foi extremamente positiva,
eles demonstraram empolgação com o futuro do Grêmio. Ao serem
questionados sobre a experiência com o projeto até então, relataram
uma nova visão sobre o papel desempenhado pelos jovens na escola.
Segundo os estudantes, o projeto com o Grêmio foi ensejo para novas
expectativas e alterou a relação deles com o âmbito educacional.
Com isso, observamos que essa instância tem potencial para formar
os jovens para a participação social e possibilitar a superação das
deficiências do sistema de ensino, diminuindo o distanciamento entre
a escola e o aluno.
As dificuldades que afetaram o ensino público no Brasil e em Minas
Gerais, no ano de 2020, interferiram no desenvolvimento do trabalho.
No início do ano letivo, os professores estavam em greve, seguindo
uma tendência da rede estadual. Os alunos praticamente não tiveram
aulas, e muitas atividades planejadas pelo Grêmio durante o período
de férias foram impossibilitadas. Antes do fim da greve, a pandemia
da COVID-19 impossibilitou as aulas presenciais. Nesse panorama,
os gremistas tiveram uma experiência sem precedentes, com a qual
buscaram manter suas ações online através das redes sociais do

162 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

Grêmio. A distância entre os membros e a falta de aulas alterou as


dinâmicas do grupo, mas diversos membros permaneceram agindo na
disseminação de informações e de variados conteúdos pela internet.
Durante o ano de 2020, os gremistas utilizaram o Instagram, o
WhatsApp e outras mídias digitais para informar os alunos sobre as
mudanças que ocorreriam durante a quarentena, um período de muita
incerteza para todos os estudantes e educadores. Como enfrentamento
aos prejuízos causados pela falta de aulas na preparação dos
secundaristas para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e os
vestibulares, foi realizado um projeto de compartilhamento de dicas
de estudos e de conteúdos informativos, como filmes, livros e séries
pelos canais digitais do Grêmio. Nesse período, a diretoria de conexão
teve uma atuação essencial para a manutenção do funcionamento do
grupo, garantindo a participação e a comunicação entre os jovens.
É relevante apontar que o envolvimento dos gremistas com questões
de cunho político e social revela o valor do Grêmio para a criação de
uma experiência coletiva de reivindicação de direitos, de análise crítica
da sociedade e, principalmente, de desenvolvimento do protagonismo
juvenil. Notavelmente, a equipe participou da campanha em prol do
adiamento do ENEM no ano de 2020, se articulando com grêmios
de outras cidades e mobilizando as pessoas a fim de pressionar os
senadores mineiros através das plataformas digitais. Em outra ocasião,
o grupo se posicionou em apoio aos professores na greve estadual,
veiculando nas suas redes sociais as pautas do movimento grevista.
Essa postura contra a falta de investimento na educação, a privatização
de estatais e outras políticas do governo de Minas Gerais surgiu à
medida que a equipe reconheceu o Grêmio como uma plataforma
de transformação coletiva. Essa tendência extrapola o projeto estatal
de uma agremiação dedicada à formação de indivíduos condizentes
com o sistema opressor, ao invés de movimentos emancipatórios
(GONZÁLEZ; MOURA, 2009), e caracteriza a experiência gremista como
uma possibilidade de expressão e desenvolvimento do protagonismo
juvenil.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 163


Gabriel Rodrigues Ramos, Leandra Kelly de Carvalho, Neyfsom Carlos Fernandes Matias

4. Considerações finais

O projeto desenvolvido com o Grêmio Estudantil promoveu


ações focadas no protagonismo juvenil. O envolvimento do grupo
de gremistas com questões além do âmbito individual mostrou a
percepção de coletividade proporcionada pelo envolvimento com
o Grêmio. Dessa forma, este trabalho demonstra que a organização
gremista é uma entidade que propicia o protagonismo juvenil como
vivência coletiva no contexto do ensino público. Esse conhecimento é
ampliado à medida que assinalamos os elementos que despertam ou
inibem o envolvimento dos jovens na transformação de seus contextos,
como a ligação com causas individuais ou identitárias e o afastamento
dos jovens da escola.
O contexto atípico causado pela pandemia da COVID-19 foi um
desafio para a execução do trabalho, impedindo o acompanhamento
presencial dos jovens e limitando a ação do Grêmio, principalmente de
setores como a diretoria de esportes. O desenvolvimento de pesquisas
e intervenções nos contextos gremistas deve considerar as novas
formas de comunicação e de organização utilizadas pelos jovens de
hoje. As reuniões online foram indispensáveis no cenário da pandemia,
e também eficientes, pois seu formato flexível é conveniente para o
cotidiano atarefado dos alunos. É importante considerar, porém, os
limites dessas plataformas digitais, devido à falta de acesso de parte
dos estudantes. Ainda assim, as redes sociais podem ser exploradas
como estratégia de minimização dos obstáculos de comunicação em
um Grêmio.
Para que o Grêmio se configure como um espaço emancipatório,
seria interessante que as escolas e o Estado aplicassem políticas
com foco no protagonismo juvenil, ao invés de apenas intervenções
imediatistas. A organização de eventos e campanhas para suprir
demandas da direção da escola não pode ser a única expressão do
Grêmio, pois ele deve ser uma oportunidade para o desenvolvimento
emancipatório dos alunos. Essa concepção pragmática do Grêmio
ficou clara quando propusemos uma divisão horizontal de poder na
agremiação e a escola mostrou resistência, indicando que, de acordo
com as regulamentações estaduais, a existência de um modelo

164 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Grêmio Estudantil e protagonismo juvenil: ações diante dos desafios

hierárquico com presidente era imprescindível. Por fim, sabemos


que a educação pública enfrenta inúmeros desafios e que a atuação
do Grêmio tem limitações. No entanto, ele se apresenta como uma
possibilidade de formação que, na maioria das vezes, a sala de aula
não contempla e que beneficia os estudantes, cuja autonomia pode
então ser articulada para a defesa de seus interesses coletivos.

Referências

BOGHOSSIAN, Cynthia Ozon; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Revisão


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Sobre os autores

Gabriel Rodrigues Ramos


Discente do curso de Psicologia na Universidade Federal de São João del Rei
(UFSJ)
E-mail: gabrramos99@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8467780668366195

Leandra Kelly de Carvalho


Discente do curso de Psicologia na Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ).
E-mail: leandrakellycarvalho@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5887078070076771

Neyfsom Carlos Fernandes Matias


Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), coordenador do Grupo
de Estudos Interdisciplinares Sobre Contextos de Desenvolvimento (GREISCO).
E-mail: neyfsom@ufsj.edu.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2838550783180899

Orientador: Neyfsom Carlos Fernandes Matias

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 167


10

A revolução é coletiva:
influência do coletivo
"Vozes da Rua" no
empoderamento e
protagonismo juvenil
The revolution is collective: the
influence of “Vozes Da Rua”
collective on empowerment and
youth protagonism
Izabella Figueira Carlos
João Paulo Soares Fernandes
Juliane Ramos de Souza
Paulo Martim Santos
Orientadoras: Adriana Woichinevski Viscardi,
Ana Luísa Marlière Casela
168 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes
A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

Resumo

A adolescência e juventude periféricas brasileiras sofrem


cotidianamente com a discriminação e violência advinda das
desigualdades raciais e sociais. Num contexto de extermínio de jovens
negros e com a realidade da escassez de políticas públicas efetivas
voltadas para esta população, faz-se urgente investigar e disseminar
estratégias e práticas alternativas para superar a invisibilidade social,
a violência e a exclusão. Tendo isso em vista, a pesquisa vigente
busca investigar como se dá a percepção do jovem negro de periferia
acerca do Coletivo “Vozes da Rua”, projeto sociocultural da periferia
de Juiz de Fora, MG, que promove temáticas sobre empoderamento
negro, protagonismo juvenil, abarca atividades culturais e embasa a
identidade negra no contexto sócio-histórico. A pesquisa contou com
uma entrevista estruturada com um dos membros mais antigos do
coletivo, e posteriormente foi realizado um grupo focal com 6 membros
do coletivo com idades a partir dos 18 anos. Foi feita uma análise
qualitativa de conteúdo do tipo temática. Com a coleta das informações
foi possível encontrar dados sobre a importância do Coletivo “Vozes da
Rua” para estes indivíduos se identificarem como protagonistas do seu
papel social, e para reconhecerem o empoderamento visto de forma
coletiva.

Palavras-chave: Periferia. Racismo. Empoderamento.

Abstract

Brazilian peripheral adolescence and youth suffer daily from


discrimination and violence arising from racial and social inequalities.
In a context of extermination of young black people and with the reality
of the scarcity of effective public policies aimed at this population,
is urgent to investigate and disseminate alternative strategies and
practices to overcome social invisibility, violence and exclusion.
With this in mind, the current research seeks to investigate how the
perception of young blacks from the periphery about the “Vozes da
Rua” Collective, a socio-cultural project in the periphery of Juiz de

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 169


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

Fora, MG, which promotes themes on black empowerment, youth


protagonism, encompasses activities and supports black identity in the
socio-historical context. The survey included a structured interview
with one of the oldest members of the collective, and subsequently
a focus group was held with 6 members of the collective aged 18 and
over. A qualitative analysis of thematic type content was carried out.
With the collection of information, it was possible to find data on the
importance of the “Vozes da Rua” Collective for these individuals to
identify themselves as protagonists of their social role, and to recognize
the empowerment seen collectively.

Keywords: Periphery. Racism. Empowerment.

1. Introdução

É importante ao psicólogo compreender o racismo com uma


visão ampla, complexa, estrutural, que engloba diferentes esferas da
sociedade, como cultura, economia, política, relações interpessoais e
intrapessoais. É uma relação de poder violenta, que norteia a sociedade,
na compreensão de que existem raças superiores a outras (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2017) o que legitimaria as diferenças sociais
a partir de supostas diferenças biológicas (ZAMORA, 2012).
No Brasil, o racismo é uma herança colonial escravocrata,
que afeta as subjetividades e a saúde mental de grande parte da
população. Neste sentido, Lucas Motta Veiga (2019, p. 244) convida
a uma “descolonização” da Psicologia, defendendo que, além de
espaços geográficos, se colonizam também “territórios existenciais,
o inconsciente”, produzindo “racismo, machismo, LGBTFobia” e
decorrentes violências que precisam ser combatidas pela Psicologia.
Apesar das artimanhas de invisibilidade que o racismo sofre no
Brasil, se escondendo em questões de classe, de vulnerabilidade e do
Estado, não há como negar que o racismo é estrutural, e que também
é ambíguo, pois ao negá-lo, se confirma (GOMES; LABORNE, 2018).
Uma forma de negar o racismo estrutural é vê-lo de forma individual,
coisa de acomodados, ou complexados, ficando na esfera individual o

170 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

que deveria ser visto como um problema coletivo, e assim, impedindo


discussões que visem seu combate (MADEIRA; GOMES, 2018).
Os dados estatísticos tangibilizam esta realidade. O Atlas da
Violência de 2018 registra o genocídio da população negra, a que mais
morre com a violência no Brasil, e a mais criminalizada. Segundo o
Atlas, negros e não negros vivem realidades tão distintas, que parecem
ser de países diferentes, com a taxa de homicídios de negros quase três
vezes superior a de não negros (16,0% contra 40,2%), e crescente. Os
jovens negros são o perfil que sofre mais homicídio no país, além de
ser a maior população prisional (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA
APLICADA, 2018). Soma-se a isto a questão econômica: dentre os
10% mais pobres no país, 76% são negros (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATISTICA, 2014).
Salles, Silva e Fonseca (2014) consideram a juventude como uma
etapa essencialmente significada por aspectos culturais e sociais. O
jovem pobre e morador de periferia passa diariamente por situações
de segregações, exclusão social e representações de periculosidade.
A periferia é vista como o lugar dos pobres, o “submundo”, onde
“trabalhadores” e “bandidos” vivem misturados, despertando piedade
e insegurança. Os estereótipos corporificam uma estética na qual a
cor da pele, vestimenta, vocabulário, círculo social, tornam-se critérios
para distinção social que afeta simbólica e materialmente o jovem
negro periférico (FELTRAN, 2010).
Desatendida pelo setor público, a comunidade procura maneiras
para suprir suas carências, e uma delas é o incentivo ao protagonismo
juvenil, ou seja, a participação ativa e realista de jovens em espaços
distintos, como escolas, comunidades e nas discussões sociais em
geral, como uma ferramenta de transformação. É compreendido como
uma integração entre jovens e adultos na promoção de autonomia,
de forma individual ou coletiva, voltada para problemáticas sociais
reais (BOGHOSSIAN; MINAYO, 2009). O interesse deste artigo é
compreender as repercussões que o Coletivo “Vozes da Rua” trazem
para o protagonismo juvenil e empoderamento do jovem negro de
periferia. Tomamos como referência o conceito de empoderamento
entendido não em sua concepção neoliberal, meritocrática, quando as
conquistas são relacionadas a benefícios individuais, ou um constructo

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 171


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

meramente psicológico (ligado a questões como autoestima,


autocontrole, eficácia), mas sim o conceito defendido por autores como
Joyce Berth (2019), Djamila Ribeiro (2018), que o entendem como um
conceito político, instrumento de conscientização e luta social para
emancipação de grupos minoritários. Neste sentido, entende-se que
o empoderamento individual só é possível com o empoderamento
do grupo, ou seja, se o benefício individual não é convertido para
benefício do grupo minoritário em que o sujeito está inserido, não há
que se falar em empoderamento.

1.1 O coletivo “Vozes da Rua”

O coletivo “Vozes da Rua” nasce no bairro Santa Cândida, Juiz de


Fora, MG, com uma história de engajamento social. Na década de
70 os moradores fundaram a SPM – Sociedade Pró-Melhoramento,
no intuito de resolver junto ao poder público a carência de recursos
básicos. Na década de 80, se engajaram na construção da Igreja do
bairro, e muitos se politizaram, com a leitura do evangelho sob uma
perspectiva marxista. Começaram a enxergar a necessidade de não
somente suprimentos básicos, mas também de outras formas de
melhoria da qualidade de vida, que pudessem estimular o pensamento
crítico e formas de disseminar a cultura.
Posteriormente, com o fechamento do SPM, a movimentação na
comunidade seguiu, de forma independente, nas casas dos próprios
moradores, promovendo cultura por meio de teatro, jornais e atividades
em geral. Em 1997 a rádio Mega FM foi criada para levar informação,
conscientização, e ser ponte para a fraternidade, contando com 300
pessoas em sua primeira reunião. A despeito de ter sido fechada
em 2003 pela Polícia Federal, a rádio funcionou de 1997 a 2007.
A partir deste marco, a concepção de que a mídia hegemônica não
representava a comunidade ficou bem estabelecida, e os moradores
foram criando projetos, que foram se metamorfoseando até a criação
do coletivo “Vozes da Rua”, em 2013.
O coletivo “Vozes da Rua” visa por meio de estudo sistemático,
trazer à tona questões voltadas para a identidade negra, feminismo
negro, empoderamento, cultura Hip-Hop, e poesias que contam suas

172 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

histórias enquanto residentes de periferias, baseados na literatura


marginal. O Coletivo realiza reuniões entre os membros, uma batalha
de poesias autorais chamada “Slam de Perifa”, eventos na periferia
e visitas às escolas públicas, além de serem frequentes em eventos
em Universidades e em rodas de discussões. Utilizam uma biblioteca
composta por um misto de livros doados e comprados (que versam
sobre filosofia, história, cultura Hip-Hop, conteúdos relacionados à
negritude, periferias, consciência, histórias de ancestralidade, cultura
africana, feminismo negro, entre outros), situada na casa de uma
moradora.

2. Métodos e procedimentos

O presente estudo consiste de uma pesquisa de campo exploratória


de metodologia qualitativa, por meio de visitas ao coletivo, para
melhor compreender as temáticas que abordam, bem como sua
estrutura; entrevista com o membro mais antigo do coletivo, para
contextualização sócio histórica do grupo; e realização de grupo focal
com os jovens do coletivo, onde foram abordadas temáticas que
perpassaram por racismo, desigualdade social, empoderamento, o
próprio coletivo “Vozes da Rua” e suas atividades.
Participou da entrevista estruturada o membro mais antigo
do Coletivo, do gênero feminino, 67 anos, e do grupo focal seis
participantes do Coletivo com idade superior aos 18 anos, sendo uma
do gênero feminino e cinco do gênero masculino. Todos são moradores
de regiões periféricas da cidade de Juiz de Fora- MG.
Após avaliação e aprovação do Comitê de Ética, a pesquisa
foi iniciada junto aos participantes, seguindo todas as etapas de
informações e questões éticas a serem abordadas. Após o registro, os
áudios foram transcritos na íntegra pelos pesquisadores para que fosse
realizada, posteriormente, a análise do conteúdo.

3. Análise de dados

Foi realizada uma análise qualitativa de conteúdo, do tipo


temática, usando como referencial teórico Laurence Bardin (2006).

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 173


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

Após gravação de áudio com autorização prévia dos participantes


envolvidos, os áudios foram transcritos e seu material foi explorado
através de leitura flutuante do conteúdo, quando foi possível definir as
categorias de análise: Aspectos raciais; Violência do Estado, Cultura Hip
Hop; Empoderamento; Comunicação Comunitária; Cultura africana.

4. Resultados

Para preservar a identidade dos participantes, eles foram numerados


em P (participante) 1 a P7, sendo P1 o membro mais antigo, e P2 a
P7 os participantes do grupo focal. Optamos por registrar “a voz” dos
entrevistados, transcrevendo algumas falas mais importantes.

4.1 Entrevista com o membro mais antigo do coletivo “Vozes da Rua”

Na entrevista estruturada foi possível conhecer um pouco mais


da história do bairro Santa Cândida, até chegar ao Coletivo “Vozes da
Rua”, assim como a história desta mulher negra de 67 anos, militante,
que tem grande significado e impacto em toda a história do Coletivo e
dos movimentos populares do bairro Santa Cândida desde a década de
70. Embora a concepção do grupo não admita hierarquia, é inegável o
papel de P1 como inspiração e influência para o grupo. Após concluir
o ensino fundamental em escola pública, P1 conseguiu uma bolsa de
estudos em um colégio particular, em troca de ajuda na limpeza da
instituição. Posteriormente, foi uma das poucas estudantes negras na
instituição em que se formou em Filosofia, tornando-se professora de
história no município.
Quanto à sua história de vida, P16 informou que só descobriu que era
negra já adulta: “Foi aos 27 anos que eu descobri que era negra, porque
a gente não tinha tempo de meditar, de pensar naquilo que a gente era!
Viver era urgente! E com 27 anos que eu fui descobrir que era negra e
eu fiquei chocada, e aí eu comecei a militar dentro do movimento (...)
Na minha juventude e infância minha mãe sempre falava: “Preto não

6 Dados da Entrevista. Pesquisa de Campo realizada com o Coletivo “Vozes da Rua” em 2019.

174 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

pode olhar na cara e no olho do branco, isso é falta de educação, e


falta de respeito”, “E preto só serve pra ser bucha de canhão”, e depois
que eu entrei no movimento negro eu falei assim: “Epa, não vai ser
mais assim daqui pra frente”. Percebe-se a importância da informação
no protagonismo do sujeito enquanto àquele que reconhece seu
espaço, sua fala e o seu papel. A consciência da própria negritude aos
27 anos nos lembra o clássico “Tornar-se Negro”, de Neusa Santos
Souza, que diz que uma das “formas de exercer autonomia é possuir
um discurso sobre si mesmo” (1983, p. 17), e para quem “[...] saber-se
negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade,
confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida
a expectativas alienadas”. Por outro lado, também é mudança, “a
experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em
suas potencialidades”.
Quanto ao objetivo do Coletivo, P1 informa ser “o mesmo da rádio:
levar informação”. Além disso, ao definir os membros do Coletivo, ela
ressalta a revolução:
“Eu acho que a gente é revolucionário! Sabe por quê? Porque encara
revolução como mudança, mudança radical das estruturas. (...) porque
normalmente a gente é muito individualista, então quando a gente
aprende a cooperar a gente tá fazendo revolução.” Nestas falas, pode-
se perceber o quanto a participante reforça a importância do papel
revolucionário dos participantes do coletivo quando se permitem
pensar, refletir e discutir em conjunto, por meio da cooperação.
Ao ser questionada sobre os desafios que o Coletivo “Vozes da
Rua” enfrenta, P1 relata que são antigos: lutar para representar e ter
conhecimento sobre a realidade e a atual conjuntura política local e
nacional; encontrar estratégias para enfrentar os atuais desacertos
que estão acontecendo no país; reivindicar por políticas públicas
para o bairro; buscar um espaço para o coletivo se reunir, uma vez
que se encontram na casa desta; lutar para se firmar dentro da
comunidade e em também das outras periferias da cidade; lutar
para sair da invisibilidade, para serem protagonistas das próprias
histórias, para mostrarem para o mundo que pensam e que não serão
manipulados. Cabe pontuar uma recusa explícita da entrevistada em
falar dos problemas da comunidade, o que pode ser compreendido

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 175


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

como resistência a uma possível perspectiva estereotipada sobre


os territórios periféricos, normalmente estigmatizante e negativa.
Consonante a esta postura, Takeiti e Vicentim (2019, p. 257) nomeiam
a periferia como “território existencial”, de ordem “geográfica, mas
também política, social, afetiva, histórica, cultural, de pertencimento
e reconhecimento”, um “território-vivo”, onde convivem pluralidades
e diferenças e onde são possíveis múltiplas subjetividades, muito além
das representações sociais comuns que oscilam entre vitimização e
criminalização.

4.2 Análise do grupo focal

4.2.1 Aspectos raciais

Dos seis participantes do grupo focal, apenas um não se identifica


como negro. Duas pessoas negras explicitaram a dificuldade de se
reconhecerem como negros em uma sociedade racista. “A gente vive
em um mundo muito preconceituoso e tal, onde eles põem o preto em
tudo, esculacha mesmo e tal, então assim: eu não me via. (...) antes
eu me olhava no espelho e não me aceitava como negro, tá ligado? ”
(P5)7; “Como eu tive mais contato com a parte branca da minha família,
infelizmente a parte branca que tem a ideia de que periferia só tem
bandido, e você não é negra, você é morena, não tem cabelo crespo,
seu cabelo é bom, e esses padrões de embranquecimento social, e
até eu me reconhecia como uma pessoa branca.” (P2)8. A P2 relatou
também que somente depois do contato com o Coletivo “Vozes da
Rua” foi que reconheceu sobre suas origens: “Foi ai que eu comecei a
reconhecer o meu espaço, o meu lugar de fala, o que eu tava fazendo e
foi aí que identifiquei, que na verdade nada daquilo que me disseram
era verdade, e que eu não tinha nada daquilo, que não era vergonha
ser da periferia, que não era vergonha ser preto.” A fala da P2 denota
o quanto é difícil a aceitação da cor da pele em uma sociedade em que

7 Dados da Entrevista. Pesquisa de Campo realizada com o Coletivo “Vozes da Rua” em 2019.
8
Dados da Entrevista. Pesquisa de Campo realizada com o Coletivo “Vozes da Rua” em 2019.

176 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

o racismo é tão enraizado.


Outro participante comentou da inacessibilidade de informação
para promoção de mudança: “Eu sabia que eu era preto, eu já via
algumas diferenças de tratamento. (...) Mas eu não sabia como que
eu podia usar isso pras pessoas não passarem o que eu passo.” (P7)9.
Este também comentou de como lida com comentários racistas que
são naturalizados na sociedade: “Igual uma vez eu disse assim pô:
Não queria aquela mancha branca no meu currículo! Aí o pessoal
ficou assim: “Mancha branca?” Aí eu perguntei por que tinha que ser
mancha negra? Porque sempre tem que ser algo que se remete ao
negro? Aí o pessoal já fica assim meio espantado, porque o pessoal
tá tão acostumado a falar de negro, fazer brincadeira em relação ao
negro, que a gente vira e fala para os próprios negros: Mano, vocês
tem que saber o que vocês falam, quando vocês fazem uma brincadeira
dessas, tão falando do próprio negro”. Esta consideração reforça que os
discursos racistas são repercutidos até mesmo entre negras e negros,
por falta de informação.

4.2.2 Violência Do Estado

Um dos participantes pontuou a dificuldade da periferia quando


o assunto é o cuidado que o Estado deve garantir: “Quando eu falo
da violência não é só a violência do jornal, da morte, mas também
a violência do Estado! A violência da saúde, a violência da educação,
sacou? Porque já era sucateado a rede estadual na minha época, coisa
da escola não ter vaso e os alunos usar o buraco. (...) Tipo, a rua não
era um lazer, lazer era descer pro centro aos finais de semana.” (P3)10;
o mesmo participante contou de uma experiência com um amigo
muito próximo, que reflete as questões de vulnerabilidade que muitos
jovens da periferia sofrem: “Então, o J é um moleque que a mãe dele
tinha morrido o pai dele meteu o pé, ele ficou com a tia, só que a tia era
usuária. Então ele era um moleque que literalmente tava largado e se

9 Dados da Entrevista. Pesquisa de Campo realizada com o Coletivo “Vozes da Rua” em 2019.
10 Dados da Entrevista. Pesquisa de Campo realizada com o Coletivo “Vozes da Rua” em 2019.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 177


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

ele não arrumasse o corre dele pra ganhar dinheiro ele ia passar fome.
Então, ele era um moleque que já 13 anos de idade ele já traficava. Ele
fazia pequenos tráficos pra poder comer. ” (P3) O P3 pontuou nesta
fala sobre o descaso que a periferia sofre, e as estratégias que pessoas
em situação de vulnerabilidade criam para sobreviver ao sistema.
Outro participante trouxe uma reflexão acerca da culpabilização
que o Estado designa para a periferia: “Outro dia eu estava assistindo
um clipe de um Mc e ele falava: “Na periferia conflito é claro que
tem, mas a demanda, de onde vem”? Tipo eles jogam para nós sabe,
mas a periferia não fabrica fuzil, não fabrica armamento. Esses dias
foi preso um policial com carro com 8 fuzil, 7 pistolas automáticas,
material que na comunidade não é fabricado. Aí a gente vê políticos aí
falando: “Vamos acabar com a violência, vamos acabar com o tráfico
de drogas!” Aí eles entram na comunidade dando tiro em todo mundo,
e fala que isso é acabar com a violência, sendo que os moleques do
morro só vendem o que eles entregam. (...)essa desigualdade aí que
a gente tem que combater, que a gente tem que espalhar, entende?
É uma demanda que tem que ser trabalhada pela sociedade”. (P7)
“Bezerra da Silva que fala “Ladrão é o pessoal de colarinho”, vai um
favelado roubar uma galinha mano, é cadeia na hora, entende?” (P5)
Com essas considerações é possível notar que os participantes têm
consciência de que a periferia é segregada pelo próprio Estado, que
violenta ainda mais a periferia. Ainda é possível ver que os mesmos
enxergam os agentes do Estado como parte do problema estrutural.

4.2.3 Cultura Hip-Hop

Esta categoria agrupou as percepções subjetivas e coletivas dos


participantes em relação à influência da cultura Hip-Hop como um
instrumento de promoção da informação e da identidade subjetiva,
coletiva e da periferia, além de ser um dos instrumentos mais utilizados
pelo Coletivo “Vozes da Rua” na disseminação da cultura. “Agora eu só
escrevo e ganho as batalhas de rap porque nós é foda e nós é preto.”
(P4); “Porque eu aprendi na cultura Hip-Hop, que é um bagulho de rua,
não é de condomínio não! Tem muito nego que quer fazer a cultura,
que é de condomínio, que não tem a vivência da rua! Isso já é errado

178 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

pra carai. ” (P4)11; “Eu cresci acreditando que as periferias, a favela, só


tinha coisa ruim. Aí quando eu vi o Rap, mano, eu falei: Caralho, eu
tava errado a minha vida inteira! ” (P6)12; “E eu ganhei consciência de
classe mesmo, com a cultura Hip-Hop. E eu fui deixando ela fluir na
minha vida, nas minhas poesias, no meu modo de vida, no meu modo
de pensar, no meu modo de ser alguém na vida.” (P6). “Mas o Hip-
Hop me ensinou lições de humildade. As pessoas não sabem o que é
humildade! Humildade não é você ter dinheiro e andar de chinelo. (...)
isso não é humildade! Humildade é você reconhecer sua pequenez!
Humildade é você reconhecer que você é pequeno, que você é nada,
que você é... diante das outras pessoas você vale tanto quanto. Você
não vale mais que ninguém!” (P6). “Não tem como você fazer qualquer
coisa em Santa Cândida a partir do Coletivo “Vozes da Rua” sem ter
Hip hop. O Hip-Hop foi os pilar aqui! Não tem como falar que vai ter
o evento sem ter Hip-Hop, de 80/90 para cá.” (P3) “A linguagem Hip-
Hop é uma linguagem que todo mundo se encanta, é linguagem que a
gente consegue passar igualdade. ” (P7)
A cultura Hip-Hop tem significado muito amplo para o Coletivo,
sendo instrumento que promove arte, empoderamento, protagonismo,
lições de humildade e o reconhecimento do seu espaço de fala. Mais
que arte, o Hip-Hop é considerado uma estratégia de enfrentamento
à violência. É tido como uma cultura de raízes africanas e jamaicanas,
relacionada em sua disseminação com direitos civis da população
negra, uma forma de protesto contra a violência da sociedade e do
Estado. Um dos elementos da cultura Hip-Hop é o conhecimento
sobre as raízes históricas da segregação cultural e física do povo negro
(IMBRIZI, et al. 2019).

4.2.4 O empoderamento é coletivo

Neste segmento foram agrupadas as considerações dos participantes


sobre como enxergam o empoderamento. “Pô mano, sei lá, eu me

11 Dados da Entrevista. Pesquisa de Campo realizada com o Coletivo “Vozes da Rua” em 2019.
12 Dados da Entrevista. Pesquisa de Campo realizada com o Coletivo “Vozes da Rua” em 2019.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 179


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

sinto empoderado coletivamente, certo? Porque o empoderamento


não é individual, ele é coletivo. Isso Joice Berth falou no livro.” (P5).
Após essa fala ouve um burburinho unânime em concordância.
“Eu me sinto empoderado quando o coletivo consegue um resultado.
Quando a gente tem retorno, quando o pessoal vem falar com a
gente! Aí eu me sinto empoderado! (...) eu me sinto protagonista da
história! E aí não eu! Eu sinto o Coletivo, nós enquanto coletivo, como
protagonistas da mudança! Então a gente não é só um protagonista
que tá dando a cara, é um protagonismo de quê? Um protagonismo de
estética? Só? De beleza? Ou de beleza do texto? Ou é um protagonismo
de mudança? De compromisso? Certo? Então eu acho que essa é a
minha visão! ” (P6).
As declarações acima mostram o quanto o empoderamento dentro
do Coletivo é um instrumento, não de um, mas de todos. Também, o
quanto suas atividades influenciam nesse processo. O protagonismo
vem da luta por mudanças.

4.2.5 A comunicação comunitária: o conhecimento gera revolução

Os participantes pontuaram que nos eventos e locais em que se


apresentam, é muito revigorante ver que as pessoas ali por vezes se
identificam com suas narrativas, “Porque a galera se identifica mano,
tem gente que até escreve alguma coisa ou outra (...) a gente passa no
colégio e tem alguém que escreve alguma coisa, e a gente tá recitando
alguma coisa que parece com aquilo, aí a pessoa fala “caramba, eu
também faço isso, e eles podem, eles estão fazendo!” (P2).
Um dos participantes também pontuou a importância da educação
popular: “O Coletivo tem sido, pra mim, uma forma de educação
popular! (...) porque o plano de educação popular foi abortado e ficou
abortado com Paulo Freire. Depois que exilaram Paulo Freire a gente
não conseguiu sair da alfabetização. Então por isso que você tem essa
quantidade enorme de analfabetos funcionais, e uma educação que
não funciona. Uma educação que só anda pra trás, em todos sentidos.
E não temos um projeto de educação popular ” (P6).
As falas apontam para o significado que os participantes dão
para as atividades que se propõem a fazer, como uma forma de

180 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

levar conhecimento aos que não tem acesso. Também consideram


a transmissão de informação utilizada por eles como uma forma de
educação popular.

4.2.6 Cultura africana

O Coletivo “Vozes da Rua” segue uma forma distinta de se organizar,


todos têm a mesma voz e importância, sem hierarquização. Essa forma
de gerir é inspirada pela cultura africana que não tem liderança.
“Então nós somos um coletivo origem Hip-Hop, da quebrada e que
luta contra a comunicação hegemônica, também contra a comunicação
elitista, a gente é anticapitalista então aqui não tem hierarquia, todo
mundo se respeita, tá ligado?” (P3); “E no meu caso hoje, atualmente,
que é minha família principal, que é o Coletivo “Vozes da Rua”. Aqui que
a gente senta, consegue discutir de forma construtiva. (...) aqui a gente
discute, briga e no final é resolvido coletivamente. Porque todo mundo
opina, todo mundo tá em voz igual.” (P7); “Essa decisão coletiva o fato
de (...) a responsabilidade lateralizada que a gente tem, (...) tudo que
é decidido em reunião, todo mundo tem total liberdade para falar: vou
vetar, quem é mais velho, quem é mais novo, quem é mais antigo. Aqui
não tem isso, tá ligado? Quem chega, chega somando, igual gota no
mar, você pega uma gota do rio de água doce e joga no mar, você não
sabe qual que é qual mais, não consegue mais identificar.” (P7); “E essa
é a ideia do Coletivo, sabe, um representa todo mundo e todo mundo
representa um. E aqui é assim um por todos e todos pela arte”. (P7).
Os relatos anteriores apontam para uma organização sem
hierarquia, onde todas as vozes são ouvidas, e que segundo eles,
funciona muito bem dentro do Coletivo. Consideram que todos têm
algo válido a acrescentar.

5. Discussão

Considerando que é possível observar de forma empírica os


estigmas e discriminações sofridos pelos jovens negros residentes da
periferia, advindos de muita desigualdade racial e social ao longo da
história, o grupo viu a necessidade de se investigar a percepção dos

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 181


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

jovens membros de um Coletivo que traz, através de arte, estudo e


oficinas, disseminação de conteúdos que envolvem protagonismo
e empoderamento para os mesmos, quando se deparam com uma
sociedade estruturalmente racista e segregada.
Primeiramente, durante a entrevista com a participante mais antigo
do Coletivo, foi possível observar que a estrutura física do Coletivo se
encontra em uma localidade que compactua com o conceito usado
neste trabalho para definir o que é periferia, visto que, dentro do
que foi possível investigar, o bairro Santa Cândida passou e passa por
dificuldades que por vezes marginalizam seus moradores (FELTRAN,
2010). Mediante o grupo focal foi possível perceber ainda que apesar
dos membros pertencerem a bairros diferentes, terem condições
diferentes e realidades diferentes, nota-se que as histórias se cruzam
quanto às vivências do racismo e as imposições da supremacia branca
sobre a sociedade (GLASS, 2012).
Na aplicação do instrumento de pesquisa observou-se que o
conceito de empoderamento e protagonismo é unânime entre os
participantes da pesquisa, o que tornou mais clara a compreensão
sobre de que forma o Coletivo provocou a construção deste conceito em
seus membros. No grupo focal foi possível ver que o Coletivo considera
muito importante a informação através da cultura, e a cultura Hip-Hop
é um dos precursores do movimento. Rosa e Vicentin (2010) destacam
que o Hip-Hop traz em sua essência o poder de desconstrução de
discursos hegemonizados que envolvem estes jovens nas armadilhas
das relações de poder e dominação. Quando estes jovens trazem
uma narrativa sobre suas próprias vivências, conseguem se afastar de
discursos da saúde e do campo jurídico que os estigmatizam quase
sempre como intratáveis, perigosos e irrecuperáveis.
De acordo com a fala dos participantes, todo o trabalho realizado
pelo Coletivo está apoiado na disseminação de informação, pois
segundo eles, a falta de acesso a esta seria a grande questão que
gerou e que contribui até hoje para a preservação deste quadro
de desigualdades que eles enfrentam através de seus estudos e
atividades. Logo, foi possível identificar o empoderamento provindo
da troca e disseminação de informações com as pessoas que não têm
acesso e por vezes nem mesmo consciência de quem são e do papel

182 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

que ocupam na sociedade. É possível perceber na fala dos integrantes


do grupo o quanto são informados, conscientes e politizados.
Takeiti e Vicentin (2019) trazem uma reflexão muito pertinente
acerca do que é este indivíduo que mora na favela, desconsiderando
toda a tentativa de rotulá-lo. Os autores pontuam a importância de
ver estes jovens como produtores coletivos e plurais no território
da periferia. São formas distintas de experenciar a vida, portanto
“fabricadores de multiplicidades”. Os autores ainda comentam sobre a
importância de atividades culturais como saraus, estudos relacionados
à literatura marginal e a cultura Hip hop em geral como um recurso
para se produzirem como sujeitos, e fugirem a qualquer tipo de
delimitação. E assim são os membros do Coletivo.
Por fim, foi possível responder ao problema de pesquisa que
motivou este trabalho, identificando que os membros do Coletivo
“Vozes da Rua” percebem que a influência que o Coletivo tem sobre
suas construções de empoderamento e protagonismo está apoiada
no sentimento de coletividade. Este é cultivado por meio da cultura
africana e cultura Hip-Hop, valorizando de forma igual o espaço de fala
e escuta de qualquer indivíduo. Os membros acreditam que seja esta
a melhor forma de disseminar informação e despertar nas pessoas
identificação, através de suas dinâmicas, assim como exemplificar que
um grupo, independente das diferenças pessoais que possam existir,
se articulam melhor quando se movimentam a partir das necessidades
que têm em comum (BOGHOSSIAN; MINAYO, 2009). Pode-se notar
no Coletivo o fenômeno já apontado por Imbrizi e outros (2019),
ditando um novo estilo de vida juvenil dentro das periferias: através
da coletividade ocorre o combate às vulnerabilidades e segregações
utilizando da arte, cultura Hip-Hop, que são diariamente silenciadas
pelas narrativas hegemônicas da cultura dominante.

6. Considerações finais

É oportuno destacar que devido à dificuldade de sincronização da


agenda do Coletivo com o cronograma de pesquisa, se fez inviável
adentrar em questões subjetivas, limitando o uso de instrumentos
de pesquisa que poderiam enriquecer o presente trabalho em seu

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 183


Izabella Figueira Carlos, João Paulo Soares Fernandes, Juliane Ramos de Souza, Paulo Martim Santos

aspecto mais estritamente psicológico.


É possível perceber que a estrutura do Coletivo se mostra eficiente
quanto à promoção de empoderamento e protagonismo juvenil,
promovendo conscientização, informação, reconhecimento, cultura
e movimento em direção a luta pelos direitos. Todos os membros
entrevistados têm um olhar favorável acerca das atividades feitas
por eles, apesar de, por vezes, esbarrarem em algumas dificuldades
externas, principalmente advindas das desigualdades sociais e raciais.
É importante ressaltar a relevância deste trabalho não só como
uma proposta de reflexão para os conhecimentos da Psicologia Social
e Comunitária, mas também para dar visibilidade ao projeto “Vozes da
Rua” e a estes atores da periferia da cidade de Juiz de Fora - MG, que
conseguiram desenvolver alternativas de empoderamento, a despeito
da falta de incentivos governamentais, e que refletem positivamente
sobre uma juventude que vem sendo marginalizada e estigmatizada
pela falta de acesso a oportunidades, e por todo tipo de violência.
Para finalizar, não podemos deixar de pontuar algo interessante a
respeito do título deste artigo, que se chamaria “A percepção do jovem
negro de periferia acerca da influência do coletivo ´Vozes da Rua´ no
empoderamento e protagonismo juvenil”. Ao final do trabalho, o
grupo de pesquisadores achou por bem submeter o título do relatório
da pesquisa à apreciação dos jovens. Eles pontuaram que ainda não
estava bom, e após discutirem, apontaram que precisava do adendo:
“A Revolução é coletiva”. O que os jovens nos mostraram é que, para
eles, a saída para o protagonismo que importa de fato, é ele ser
coletivo, para ser revolucionário. A ideia está presente também na fala
de P1: “então quando a gente aprende a cooperar a gente tá fazendo
revolução”.

Referências

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BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.

BOGHOSSIAN, Cynthia Ozon; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Revisão

184 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


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Sobre os autores

Izabella Figueira Carlos


Centro Universitário Estácio Juiz de Fora

João Paulo Soares Fernandes


Centro Universitário Estácio Juiz de Fora

186 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A revolução é coletiva: influência do coletivo "Vozes da Rua" no empoderamento e protagonismo juvenil

Juliane Ramos de Souza


Centro Universitário Estácio Juiz de Fora

Paulo Martim Santos


Centro Universitário Estácio Juiz de Fora

Orientadoras:

Adriana Woichinevski Viscardi


Psicóloga, Centro Universitário Estácio Juiz de Fora
Doutora e Mestre em Psicossociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Psicóloga pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Possui longa experiência em
Gestão Acadêmica no Ensino Superior. Vinculada ao Centro Universitário Estácio Juiz
de Fora, onde atua como Coordenadora do curso de Psicologia e é Professora Titular
nos cursos de Administração, Direito Psicologia.
E-mail: adrianawviscardi@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0175772408110997

Ana Luísa Marlière Casela


Psicóloga, Centro Universitário Estácio Juiz de Fora
Mestre e graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua
como Psicóloga Clínica sob a perspectiva da Terapia Cognitivo Comportamental.
Possui experiência na coordenação de Campo do Centro Regional de Referência Sobre
Drogas no território prioritário de Olavo Costa na cidade de Juiz de Fora (2015). Tem
experiência na coordenação de Tutores do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para
Educadores de Escolas Públicas promovido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas (SENAD), bem como na Avaliação de Cursos Educacionais à Distância. Atuou
como pesquisadora do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação
em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA).
E-mail: analuisacasela@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6647514129261015

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 187


11

Reflexões para uma


atuação transdisciplinar
em projetos
socioculturais
voltados à juventude
Reflection on transdisciplinary in
youth-oriented sociocultural projects

Violeta Vaz Penna


Orientadora: Marina Marcondes Machado

188 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

Resumo

Os projetos socioculturais, como um eixo de ação direcionado ao


público jovem, vêm ganhando visibilidade, principalmente, quando se
referem a atividades voltadas aos jovens que vivem em comunidades
populares. Este artigo pretende contribuir para a discussão desse
campo de atuação, por meio da análise das experiências vivenciadas
por jovens em oficinas de dança realizadas em projetos com objetivos
socioculturais. Com esse intuito apresentamos inicialmente uma
breve contextualização do cenário das políticas públicas e projetos
relacionados às juventudes. Posteriormente, discutimos alguns
conceitos e noções pertinentes da definição do termo juventude para,
em seguida, nos debruçarmos com mais detalhes na análise da narrativa
de um jovem, participante desses projetos, buscando compreender
suas experiências nesses espaços e como estas podem reforçar e/ou
promover o direito dos jovens, tornando possível um enfrentamento
da desigualdade de oportunidades e o exercício da cidadania.
Nesse processo, demarcamos a importância da reflexão da atuação
transdisciplinar nesse campo de modo a potencializar as possibilidades
de transformações das condições de vida das juventudes.

Palavras-chave: Juventude. Projetos socioculturais. Transdisciplinaridade.

Abstract

The visibility of socio-cultural projects for youth has increased in recent


years, as an important area that contributes to transforming the life of
youth living in popular communities. This article aims to collaborate
with the discussion about this area, analysing experiences of youth in
dance classes of social projects. For this purpose, we present a brief
context of public policies and youth-oriented projects. Subsequently,
we discussed some concepts and notions relevant to the definition
of the term youth, and then we analyze the narrative of a youth
participating in these projects, seeking to understand their experiences
in these spaces and how they can strengthen and/or promote rights of

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 189


Violeta Vaz Penna

young people, making it possible to face the inequality of opportunities


and the exercise of citizenship. In this process, we demarcate the
importance of reflecting on transdisciplinary action in this field in order
to enhance the possibilities of transformations in the living conditions
of youth.

Keywords: Youth. Sociocultural projects. Transdisciplinarity.

1. Introdução

Os projetos socioculturais destinados ao público jovem têm


ganhado visibilidade, principalmente, como ação voltada à educação
para a cidadania e para a inserção social. Esses projetos apresentam
uma grade de programação que associam a arte e cultura a uma
diversidade de outras atividades, como saúde, educação e formação
humana, na perspectiva de que essas ações, em conjunto, sejam
capazes de realizar transformações subjetivas e objetivas na vida dos
jovens.
Desde o ano de 2005, venho atuando em projetos socioculturais
e culturais voltados às juventudes periféricas com distintas funções,
seja como coordenadora técnica, professora de dança, na formulação
e elaboração desses projetos ou no atendimento e acompanhamento
de jovens. Nessas experiências pude discutir, avaliar e problematizar
a realização de oficinas de arte direcionadas aos jovens, a partir de
um percurso profissional que entrelaça Psicologia social, educação,
políticas públicas e sociais e arte. Considerando o caráter processual
e histórico da exclusão e a existência de múltiplos fatores das esferas
sociais, econômicas, subjetivas e políticas, tem sido constante, nesse
meu percurso, o questionamento do significado da arte para jovens,
como vivenciam suas experiências nos projetos, quais transformações
ocorrem nas suas condições de vida e como essas se realizam. Com o
intuito de aprofundar essa reflexão, realizei uma pesquisa de mestrado
em educação, entre os anos de 2009 a 2011, pela qual investiguei as
experiências dos jovens e dos professores em um projeto que articulava
as áreas cultural e social.

190 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

Os questionamentos sobre a ação dos projetos socioculturais não


finalizaram com a dissertação e, ainda hoje, a riqueza de dados dessa
pesquisa - as histórias de vida, seus pertencimentos sociais e culturais,
suas expectativas e sua disposição para uma experiência - continua me
suscitando questões sobre como jovens dialogam com as propostas
dos projetos, a partir da relação com os professores, coordenadores,
técnicos de assistência social, Psicologia e outros profissionais
envolvidos no processo.
Nesse sentido, retomo, neste artigo, as narrativas das experiências
investigadas no mestrado, a partir de um duplo lugar de formação e
atuação: na Psicologia social e na educação, com foco na formação
artística. Com esse intuito apresento inicialmente uma breve
contextualização das políticas e projetos no eixo cultural e social voltados
à juventude. Em seguida, analiso a narrativa de um jovem participante
de projetos socioculturais, identificando questões vivenciadas por
esse jovem, para refletir sobre a atuação profissional nesses projetos,
indicando a importância de um trabalho transdisciplinar.

2. Políticas públicas voltadas às juventudes: um breve cenário

Do ponto de vista das políticas públicas no Brasil, as juventudes


periféricas ganham visibilidade, principalmente a partir da década de
80, com o agravante quadro de desigualdade social que vive parcela
significativa dessa população, como baixa escolarização e renda
familiar, péssimas condições de moradia e saúde e pouco acesso a
bens culturais13. Diante desse quadro, os jovens tornam-se pauta
de políticas públicas que, segundo Sposito, Silva e Souza (2006), são
implementadas, na sua maioria, pelas secretarias ligadas à assistência
social, seguidas pela educação, cultura e esportes. Independente da
área, o eixo de atividade dos programas está voltado, principalmente,
à reinserção social e, em relação aos programas vinculados à área de
cultura, são majoritárias as propostas de cunho artístico.

13 Ver mais em: Abramovay (2006); Abramo e Venturi (2000); IBGE (2010, 2019).

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 191


Violeta Vaz Penna

Dados demonstram que as atividades de cultura vêm se destacando


no processo de visibilidade e ação com as juventudes. Segundo
Abramovay e Castro (2006):

“Nas últimas décadas, tem se tornado evidente o fato de que


as atividades de lazer e cultura vêm dividindo espaço com
instituições sociais clássicas, como a família e a escola, no
processo de formação das identidades juvenis. Muitas vezes,
são com as atividades culturais e recreativas que os jovens
conseguem expressar e vocalizar de maneira mais intensa
opiniões, aspirações, angústias e dilemas.” (ABRAMOVAY;
CASTRO, 2006, p.533)

No entanto, as potencialidades desses projetos convivem com uma


série de dificuldades de execução, como fragmentação e desarticulação
das atividades, além da pouca participação das e dos jovens. Para um
avanço mais efetivo nas ações e políticas, um dos eixos importantes
se configura, assim, na compreensão dos jovens a partir de diferentes
olhares e saberes, nos aproximando de seus modos de vida, o que
passa por incluí-los na discussão dessas ações.
Para Sposito, Silva e Souza (2006), uma questão fundamental é
o avanço em relação à participação na gestão e elaboração dessas
políticas. Alinhada com o pensamento das autoras considero que
a escuta das juventudes é um ponto fundamental para uma efetiva
participação, pois “fazer para” e “fazer com” altera a ação e os objetivos
do que se pretende desenvolver. Esse “fazer com” passa por uma
aproximação dos jovens, compreendendo-os no contexto específico
de suas realidades para saber ouvir as demandas e necessidades que
apresentam.

3. Entre teorias e práticas

Ao tratar da questão da juventude, um passo é nos perguntar: o que


é ser jovem? Para Dayrell (2003, 2005, 2016) e Sposito (2003, 2005) o
conceito de juventude é diverso, assim como as imagens existentes
na sociedade em relação as juventudes. São também múltiplos os
modos de viver esse tempo de vida. Essa diversidade se apresenta na

192 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

medida em que se entende esse tempo de vida como uma construção


histórico-social.
Segundo Dayrell (2003), diversos autores consideram que

“[...] a juventude aparece como uma categoria socialmente


destacada nas sociedades industriais modernas, resultado de
novas condições sociais, como as transformações na família, a
generalização do trabalho assalariado e o surgimento de novas
instituições, como a escola. Nesse processo, começou-se a
delinear a juventude como uma condição social, definida além
dos critérios de idade e/ou biológicos.” (DAYRELL, 2003, p.4)

A perspectiva de que esse conceito seja uma construção histórica,


implica reconhecer que essa é uma ideia em constante transformação,
que apresenta visões em contextos e tempos diferentes. No Brasil,
convivem visões da juventude como um período de transição entre a
infância e a vida adulta; um tempo de crise passageiro; uma condição
que se manifesta somente em atividades culturais; como momento de
vida de produtores de problemas ou vítimas de problemas do contexto
socioeconômico - noções enfatizadas quando se fala de jovens de
camadas populares e/ou como sujeitos de direitos. Essas visões
estão presentes na sociedade e nas ações e políticas direcionadas às
juventudes, determinando modos de realizar projetos, com propósitos
intervenção, proteção, promoção, socialização, correção, dentre
outros.
Definir, por outro lado, juventude como condição também social,
implica reconhecer que se os contextos são diversos e plurais, assim
como são as culturas das sociedades em que vivem os jovens, então
há múltiplas possibilidades e modos de ser e viver essa juventude.
Podemos dizer, assim, que há juventudes, uma palavra plural. Na linha
de pensamento que adoto a partir de meus estudos, trazida por Dayrell
(2016) e Pais (2009), as juventudes são compreendidas como condição
singular que se constituem na especificidade de contextos diversos.
São sujeitos de direitos, inseridos em um dado contexto histórico,
social e cultural, que provocam diferentes demandas e necessidades,
na busca da constituição e expressão de sua condição.
Para compreender o jovem é preciso pensá-lo em contextos
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 193
Violeta Vaz Penna

específicos. É com foco na compreensão dessa especificidade que, para


refletir sobre modos de ser jovem, descrevo a experiência de Bruno,
morador da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, participante de
projetos socioculturais. Para preservar a identidade e privacidade do
jovem entrevistado na pesquisa, o nome de Bruno é fictício.
Conheci Bruno, na pesquisa de mestrado, quando trabalhei com
entrevistas narrativas, com o intuito de aproximar-me das concepções
e significados que os jovens dão às suas experiências em diálogo com
suas realidades e contextos sociais. As entrevistas foram realizadas com
jovens que haviam participado de oficinas de dança, realizadas pela
Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, nos equipamentos
do Programa BH Cidadania14, no período de 2006 a 2008. Os critérios
de definição dos jovens entrevistados foram: participação nas oficinas
de dança do programa BH Cidadania, ter entre 15 e 18 anos durante o
período que participou dos projetos e, no mínimo, 50% de frequências
nas aulas.
Bruno é um jovem, pardo, morador de uma vila da região noroeste
de Belo Horizonte. Entrei em contato com ele por telefone, no ano de
2010, quando ele tinha 20 anos. Expliquei-lhe a pesquisa e o convidei
a participar. A entrevista15 foi agendada em um equipamento social
da região onde morava e teve a duração de duas horas. Iniciamos
a conversa na entrevista com o convite para que Bruno contasse
sua história com a dança, passando pelas experiências em projetos
socioculturais.
Bruno contou que começou a dançar aos 11 anos de idade, em um
projeto extracurricular realizado na escola onde estudava:

14 O programa BH Cidadania foi criado no ano de 2000 pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH). Em
2002, uma experiência-piloto foi implantada em áreas de grande vulnerabilidade social, localizadas nas noves
regiões administrativas da cidade, posteriormente se expandindo por várias vilas e favelas. O programa visava
promover a inclusão social da população residente nessas áreas, através de um trabalho intersetorial. A atu-
ação, de 2002 a 2008, da Fundação Municipal de Cultura (FMC) teve como objetivo contribuir para a inclusão
social das comunidades, ampliando seu acesso aos bens e manifestações culturais da cidade, através da reali-
zação de oficinas e mostras artístico-culturais
15 A entrevista realizada com Bruno foi gravada, em áudio, no dia 13 de novembro de 2010, na cidade de Belo
Horizonte e, posteriormente, transcrita na íntegra. As falas citadas do entrevistado referem-se a essa entrevista
e estão identificadas como transcrição de gravação de entrevista.

194 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

“Nossa, quando eu comecei a dançar foi na escola (...) num grupo


que foi feito só para os meninos que tinham...que exemplo, né,
que gostava só de brincar, era um castigo tinha que estudar e
fazer oficina de dança, era um castigo ir pra dança. Eu fui...eu...
nossa eu brincava demais, nossa, eu só sabia brincar, eu (não
zoava) tanto, mas nunca desrespeitei ninguém pessoal, eles
até gostavam que daí, eu não estudava, fazia tudo de qualquer
jeito assim, mas eu brincava com todo mundo graças a Deus
todo mundo me conhece. Daí...quando eu fui...deixa ver se eu
lembro, aí eu fui pros projetos que a Ângela me chamou e assim
a gente foi tomando gosto, nunca tinha dançado eu era duro, eu
era duro, eu tinha vergonha, eu era tímido, eu deixei toda essa
timidez por causa da dança, o meu corpo mudou, muita coisa
em mim mudou.” (transcrição de gravação de entrevista)

Inicialmente, para Bruno, participar do projeto de dança era


sinônimo de castigo da escola e ele, ao se reconhecer como um aluno
“que só sabia brincar” e não estudava, recebe o que parece considerar
um castigo merecido. No entanto, ao frequentar as atividades, foi
percebendo que a participação no projeto provocava mudanças na sua
vida. Bruno relatou um deslocamento da sua percepção de “projeto-
castigo”, para um “projeto educacional”, que lhe deu disciplina, “pois
na época só queria brincar”. Nesse primeiro projeto, Bruno ficou cinco
anos e “foi tomando gosto” pela dança.
Essa experiência foi relatada com entusiasmo e ela pareceu ter um
grande significado em sua vida. Uma das explicações de Bruno pelo
gosto pela dança apontou para o prazer corpóreo, experimentado nos
momentos em que dançava.

“[...] é uma coisa que é de Deuses e não tem explicação uma


coisa que só quem sente a adrenalina correr na veia mesmo,
que vai saber falar e quem tem a curiosidade de tentar, de
tentar praticar, tentar não, de gostar ter interesse de ver como é
que é e sentir. [Imagina] um botijão de gás, aqui ó, imagina você
contra o seu peito assim e o gás ligado, imagina isso aqui cheio
de gás, e se eu taca um fósforo aqui dentro, não vai explodir (...)
você não vai sentir dor porque vai ser tão rápido, agora imagina
se você fosse sentir dor, imagina que você não vai sentir dor,
se dentro dessa sala estoura um negócio assim e o fogo vim e
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 195
Violeta Vaz Penna

te queimar, né? Só coisa ruim não, tá amarrado... tá amarrado,


e que eu sinto esse calor, parece que o corpo tá queimando,
parece que dentro de mim o coração bate tão forte, parece que
eu tô explodindo por dentro, entende, entende o que eu tô
sentindo é uma coisa tipo te bombando, não é de nervosíssimo,
é de felicidade? [...]” (transcrição de gravação de entrevista)

Além do prazer em dançar, nesse projeto Bruno alcançou muito


reconhecimento dos outros e contou que tinha um lugar de destaque:
“quem dava entrevista era eu, quem ia fazer negócio de marketing era
eu”.
Contou também que o projeto da escola foi se transformando e que,
com o passar do tempo, foi formado um grupo de dança, que “passou
a ser só para os alunos bons, começou a mostrar, ter sucesso” e que
participou de vários festivais de dança competitivos em diferentes
cidades.
Após alguns anos foi despertado em Bruno o desejo da criação de
desenvolver suas próprias coreografias. Esse desejo, no entanto, não
foi acolhido na escola onde o projeto era desenvolvido, o que impôs
um impasse para Bruno: ficar no projeto e aceitar as suas normas de
funcionamento ou sair e buscar suas próprias formas de criação e de
organização.

“[...] nó fiquei cinco anos (no grupo lá), ali eu vi muita coisa
diferente, eu já via tanta coisa na televisão aquele programa
Raul Gil (aqueles grupos que ele chamava ali) eu ficava olhado
aquilo, eu ficava vendo, ia pra festival de dança, eu via muito
estilo diferente nossa (a gente já tava desgastado) eu queria mais
e nisso eu fui procurar mais, fui, mas na época o meu professor
ele não aceitou eu procurar mais, pegô e fez reunião com o
grupo todo e queria me tirar do grupo [...] isso porque...quis
sair pra outro rumo né, "ah o Bruno não pode ter outro grupo
ainda", sei que ele falou comigo que eu não tinha capacidade
de ir pra frente e nisso ai eu falei com ele "não, eu tenho, eu
acho que eu tenho" ainda falei brincando, acho que eu tenho.
Minha mente foi passando tanta coisa sabe, tanta dança que
eu via, eu precisava criar pra mim eu brincava lá em casa de
montar coreografia, montava algumas coisinhas simples e foi

196 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

dando certo.” (transcrição de gravação de entrevista)

Diante desse impasse, Bruno e mais quatro jovens decidiram sair


do grupo formado pelo projeto e montar um grupo próprio. O laço
de Bruno com a oficina e com o grupo da escola se desfez, pois as
expectativas que este tinha com a dança não eram condizentes com
as intenções daquele projeto. Bruno ensaiou experiências autônomas,
mas não foi reconhecido como capaz de ser criador de suas próprias
ideias. O novo grupo formado passou a ser para Bruno o seu espaço
de criação e sentido. Ele falou das vitórias e dificuldades desse grupo,
participação em espaços de competições de dança, assim como de um
reconhecimento na comunidade onde vivia.

“[...] dei aula nesse grupo sem saber nada, consegui montar
minha primeira coreografia nesse grupo, que era um grupo
que era de uma ONG nessa época.” (transcrição de gravação
de entrevista)

“[...] gente juntava, a gente, ah, vamos pro Festival, nós temos
uma tanto de dinheiro, deu um tanto da van e um tanto da
nossa inscrição, nós vamos, e pra gente comer.” (transcrição de
gravação de entrevista)

É no período desse grupo, entre os anos de 2006 e 2008, que


Bruno conheceu as oficinas do Espaço BH Cidadania, onde se inseriu
buscando novos conhecimentos. Nessas oficinas, Bruno encontrou o
apoio necessário para esse novo momento e relatou que isso ampliou
e deu mais visibilidade para sua dança.

“[...] aí certo tempo esse grupo vem ensaiar aqui no NAF, (...)
nisso tudo a gente vinha, dançava nas comemorações que tinha
aqui, na vila, o pessoal passou gostar muito da gente(...) fui
taxado como referência.” (transcrição de gravação de entrevista)

Bruno disse ter passado por muitas dificuldades, mas que encontrou
uma estrutura de grupo, acolhimento, reconhecimento e uma
continuidade das oficinas naqueles projetos dos quais que participou.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 197


Violeta Vaz Penna

A experiência de Bruno foi positiva para ele, uma experiência centrada


em valores como competição, talento, reconhecimento que, até
aquele momento, deram a ele um lugar de “referência” e “ícone” na
comunidade onde vivia.

“[...] aqui na vila eu sou um ícone na dança, graças a essa


experiência que eu tive, eu errei, inclusive muita coisa, eu errei
muito também, mas que eu aprendi errando também com
eles...eles me dando um toque “oh, Bruno, poxa melhora isso
pá”, entende, foi isso, esse aspecto. (transcrição de gravação de
entrevista).
(...) o quê que eu trouxe com isso, eu trouxe a bagagem que eu
tenho hoje de experiência, muitos meninos...muitos meninos
se espelham em mim até hoje aqui na vila eu sou um ícone.”
(transcrição de gravação de entrevista)

Retomando a narrativa de Bruno, é importante ressaltar que em


um primeiro momento ele tinha uma concepção de que participar
do projeto era um castigo e a própria relação dele com a escola era
uma relação conflituosa que se estendeu para a oficina de dança. Na
escola ele era visto como um aluno que “zoa” muito e, em função de
seu comportamento, recebeu como castigo, participar de um projeto
que oferecia aulas de dança. Até aquele momento, ele não se engajava
nas atividades propostas pela escola. Quando começou a participar da
oficina houve uma transformação. A oficina, que antes era castigo e
obrigação, foi ressignificada como lugar de reconhecimento, desejo e
prazer que reverbera em seu corpo e no seu lugar dentro do espaço
escolar. Essa transformação parece acontecer no olhar da própria
escola, quando Bruno disse que, após um período de projeto, este
passou a ser só para os alunos “bons”. Sua posição de um aluno que
merece castigo mudou para o de um bom aluno. A dança tornou-se
seu objeto de desejo, o que reverberou no próprio olhar da escola do
lugar que Bruno ocupava como transgressor. Sua identificação como
aluno bagunceiro foi se transformando para de um menino talentoso.
Essas transformações no modo de se ver e ser visto pelos outros
nos apontam para um papel importante dos projetos socioculturais, na
perspectiva da contribuição na construção das identidades dos jovens.

198 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

Para Dayrell (2016), uma dimensão importante de espaços e


tempos voltados às juventudes é fornecer elementos simbólicos para
a elaboração de uma identidade juvenil. Esses espaços possibilitam a
criação de relações de confiança e referências para a construção de
identidades individuais. O que é importante apontar da experiência
relatada é que, para além da relação com a oficina, essa é uma
experiência, pela qual Bruno (re)significa suas relações com o mundo e
consigo mesmo, porque nela se reconhece e é reconhecido.
Bruno, durante o projeto, se sentiu plenamente reconhecido pelo
olhar do outro, foi visto e passou a se ver como pessoa de destaque,
como pessoa que “tem um lugar no mundo”, como pessoa que
existe: Bruno existe no projeto, é referência, se sente alguém, alguém
como ele diz: repleto de gás, pronto para explodir. No projeto, Bruno
constituiu uma identidade, encontrou uma autorrealização. Como
aponta Dayrell, percebemos “que a realidade concreta na qual xs
jovens se constroem como sujeitos e principalmente a qualidade das
relações que vivenciam interfere diretamente na construção de suas
identidades” (DAYRELL, 2016, p. 263).
Essa identificação levou Bruno a ter lembranças desse momento
da sua história como parte significativa e importante para sua vida,
um lugar de conquistas e realizações. Bruno relatou, como apontado
nas falas da sua entrevista, ser uma pessoa de referência, uma pessoa
importante. Ele, desde que começou a dançar no grupo da escola,
sempre foi muito elogiado e considerado um jovem de talento. Todo
esse talento foi incentivado e reafirmado em todos os projetos pelos
quais passou. Desse incentivo Bruno teve a iniciativa de formar um
grupo próprio e começar a dar aulas de dança. Essa experiência guiou
sua vida e criou demandas e necessidades de realizar-se, que parecem
ter sido cumpridas.
No entanto, no momento em que entrevistei Bruno, ele não estava
inserido em nenhum projeto ou grupo e teve que parar de dançar para
trabalhar, pois a dança não lhe dava retorno financeiro e ele precisava
ajudar a família. Como Bruno não estava tendo muito tempo para
se dedicar à dança, suas falas na entrevista soavam uma vivência de
saudade do passado recente, da fama, do sucesso que alcançou e
que sonhava poder voltar a viver. Bruno passou a não se reconhecer

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 199


Violeta Vaz Penna

consigo mesmo naquele novo momento de sua vida e parece viver em


um passado não muito distante.
A situação atual de Bruno nos leva a refletir sobre nossas atuações
profissionais nos projetos, que apoiam, estimulam e reconhecem
certas formas de ser do jovem, mas que, por outro lado, podem não
colaborar com o real enfrentamento posterior da realidade onde esses
jovens vivem.
Viganó (2006), em um dos projetos que analisou em sua pesquisa,
percebe que, apesar da capacitação técnica, e do acesso ao mercado
de trabalho proporcionados aos integrantes que mais destacavam, este
não prepara a pessoa para o enfrentamento dos conflitos sociais ao
não possibilitar novas maneiras de se olhar e recriar a realidade. Isso
faz com que nesses projetos o culto ao estrelato aliene “o indivíduo
de suas verdadeiras potencialidades e necessidades e cria uma
perspectiva ilusória de sucesso, baseada em uma aprovação que segue
modelos preexistentes” (VIGANÓ, 2006, p. 59). Um processo que pode
produzir identificações estereotipadas e cristalizadas de si mesmo.
Bruno pode ter vivido esse tipo de situação apontado pela autora.
Ele teve sua identidade apresentada e confirmada com palavras como
“sucesso, talento”, que o representavam durante todo esse período e
que ele parece esperar que também sejam sua identidade amanhã.
Todo esse reconhecimento, segundo Lara e Junior (2017), faz parte do
desenvolvimento da identidade humana, mas “a ausência ou distorção
desse reconhecimento tem como consequência o aprisionamento à
“mesmice”, que impede a concretização do sentido emancipatório da
identidade”. (LARA; JUNIOR, 2017, p. 5).
É para esse risco que Viganó (2006) parece apontar em relação a
projetos que estimulam o culto do estrelato. Bruno busca suas referências
a partir daquilo que foi no passado e não encontra reconhecimento no
agora. Apesar disso, ele também não parece completamente estagnado
naquilo que foi, encontra-se entre uma situação e outra. Ao mesmo
tempo em que está colado na referência da identidade construída
no projeto, essa experiência é também um impulso para não desistir
de tentar, de se colocar enquanto ser que age e sonha com outras
possibilidades, buscando articular como se percebe e a sua realidade
atual com suas experiências nos projetos socioculturais.

200 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

4. Reflexões possíveis: por uma atuação transdisciplinar

Ao ter como foco experiências de jovens para compreender a


contribuição das oficinas de projetos socioculturais na transformação
de suas realidades, parto da perspectiva das juventudes como
produtoras de conhecimentos sobre si mesmas e como sujeitos
de direitos, que nos dizem da sua realidade e do modo como se
relacionam com o mundo, nos apontando para demandas e formas
de atuações específicas. Nesse sentido, busquei compreender a
experiência de Bruno como parte fundamental para refletir sobre a
atuação profissional em projetos socioculturais.
Avalio a importância de afirmar o papel das diferentes áreas de
atuação, reconhecendo os distintos saberes e conhecimentos, sejam
artísticos, sociais, psicológicos, percebendo, por outro lado, que a
interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade e transversalidade são
eixos fundamentais para atuação. No caso de projetos socioculturais,
que por sua própria natureza envolvem diferentes campos do
conhecimento, é preciso não polarizar as análises ou sobrepor saberes
no atendimento aos jovens nesses programas, mas pensar “tudo junto,
misturado”, assim como acontece na experiência de Bruno.
Para Edgar Morin (2007), uma justaposição de conhecimentos
não é suficiente para lidarmos com processos complexos e, quando
tratamos os problemas de modo isolado, esquecemos que “os grandes
problemas são transversais, multidimensionais...” (MORIN, 2007,
p.32). Não é possível separar a experiência de Bruno com a dança,
das vivências e transformações que acontecem no seu modo de
viver a juventude, no seu modo de se ver e ser visto no mundo, da
sua identidade. Ao falar de dança, Bruno está dizendo de sua relação
com o projeto e de questões pessoais, sociais, emocionais, relacionais
que podem apontar modos de atuação profissional colaborativa.
Dada a complexa situação dos problemas que envolve o direito de ser
jovem na periferia, não podemos cair na armadilha de que a arte, a
Psicologia, a assistência social ou a educação podem enfrentar esse
trabalho isoladamente.
É importante que os profissionais que atuam nesses espaços,
psicólogos, professores, artistas, coordenadores e, tantos outros,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 201


Violeta Vaz Penna

criem modos de articular e integrar os saberes, alinhado com o que


Morin (2003) aponta como um método transdisciplinar, afirmando o
caráter multidimensional da realidade e das experiências. Realizem
uma ação transdisciplinar que distingue cada área de conhecimento
para, ao mesmo tempo, fazê-las se comunicar entre si, ou seja,
separar e associar, de modo a considerar o contexto, as condições
culturais e sociais. Produzam um modo de trabalho transdisciplinar no
qual os conhecimentos são organizados e colocados em prática em
função da complexidade dos problemas. Construam um diálogo com
a diversidade de saberes, assim como são diversas as juventudes e
assim como são diversas as experiências singulares de cada jovem.
Nesses projetos socioculturais, o trabalho da Psicologia está
em diálogo e confronto, em separação e comunicação, com outros
profissionais e é preciso articular os diversos aspectos da vida do
jovem com diferentes enfoques de cidadania, subjetividade, inclusão,
arte, educação, cultura. Desse modo, os projetos podem reforçar
e promover o direito dos jovens de terem desejos e contribuir para
que possam alcançá-los, tornando possível um enfrentamento da
desigualdade de oportunidades e o exercício da cidadania.
A prática da Psicologia ou da arte ou da assistência social não é,
nesse contexto, “salvadora dos males do mundo”, mas cada uma tem
um papel importante nos projetos socioculturais. Não se pode nem
devemos caminhar sozinhos e sozinhas e assumir tal responsabilidade
profissional. É preciso atentar para os limites e possibilidades de cada
área, mas não desconsiderar que cada uma pode contribuir para a
reflexão dos jovens sobre suas vidas, incluindo, como fundamental, o
conhecimento do próprio jovem.
É importante, então, refletir melhor a relação entre objetivos
sociais e estéticos e as condições que devem existir nesses projetos,
a partir de uma atuação profissional que potencialize a possibilidade
das transformações desejadas, exigindo-nos o desafio de pensar uma
proposta integrada, a partir da própria experiência das juventudes. São
suas experiências que nos apontarão os caminhos dessa integração
entre as áreas. É desse modo que busco, enquanto psicóloga e artista,
contribuir na construção de ações, políticas, programas e projetos
que considerem demandas, expectativas e desejos, tempos e modos

202 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

de viver em realidades e contextos diversos. Além disso, trabalho


no sentido de possibilitar que nesse processo o conhecimento das
juventudes esteja efetivamente articulado pela reflexão e pela crítica
das condições de suas vidas, construindo de modo transdisciplinar
caminhos possíveis de transformação.

Referências

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uma pesquisa nacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
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Violeta Vaz Penna

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SPOSITO, Marília. P. et al. Um balanço preliminar de iniciativas públicas


voltadas para jovens em municípios de regiões metropolitanas. São

204 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Reflexões para uma atuação transdisciplinar em projetos socioculturais voltados à juventude

Paulo: USP, 2006. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/


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VIGANÓ, Suzana. As regras do jogo: a ação sociocultural em teatro e


o ideal democrático. São Paulo: Editora Hucitec, Edições Mandacaru,
2006.

Sobre a autora

Violeta Vaz Penna


Psicóloga, doutoranda em Artes (EBA-UFMG/MG). Mestre em Educação pela (UEMG/
MG) e especialista em gestão de políticas sociais (FJP/MG) e gestão de políticas
culturais (UG/Espanha). Graduada em Psicologia (UFMG/MG) com foco na área
social. Tem experiência na área social, com ênfase em projetos voltados à juventude
que envolvem cultura e educação. Email: violeta90@ufmg.br
E-mail: violeta90@ufmg.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3020983554148914

Orientadora: Marina Marcondes Machado

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 205


12

Os jovens e as medidas
socioeducativas: o funk
como ferramenta de
emancipação
The youngsters and the social-
educational measures: the funk
as a emancipation tool

Bernardo Ferreira Ricardo


Fernando Junio Cardoso Duarte
Cristina Campolina Vilas Boas
Orientadora: Cristina Campolina Vilas Boas

206 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

Resumo

O presente artigo discute o funk enquanto uma ferramenta de eman-


cipação utilizada pelo Laços, projeto de extensão universitária inter-
disciplinar do Direito e Psicologia da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC- MG). O projeto atua através de oficinas com
adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de meio
aberto, sendo frequentemente atravessadas pelo ritmo musical. Desta
forma, a partir de uma retomada histórica do funk, apropriamos do
uso deste na metodologia do projeto para desvelar o racismo e a cri-
minalização de seu público maior: os jovens negros que residem nas
periferias. A conclusão é de que a prática extensionista do Projeto La-
ços caminha em direção à afirmação da identidade positiva do jovem
beneficiário desta ação, como cidadão negro que resiste à segregação
e à invisibilidade social.

Palavras-chave: Funk. Medidas Socioeducativas. Adolescentes. Exten-


são universitária.

Abstract

The present article discusses the funk as a social emancipation tool,


used by Laços, an interdisciplinary university extension program be-
tween Pontifical Catholic University of Minas Gerais Psychology and
Law students. The project works through workshops with adoles-
cents in fulfillment of social-educational half open measures, being
frequently crossed by the musical rhythm. Therefore, starting by a
historical resumption of funk, we appropriated its use in the project
methodology to unveil the racism and the criminalization of its larger
audience: young periferic blacks. The conclusion is that the extension
practice Laces Project walks towards the affirmation of the positive
identity of the young beneficiary of this action, as a black citizen that
resists against segregation and social invisibility.

Keywords: Funk. Social-educational measures. Teenagers. University


extension.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 207


Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

1. Breve histórico do funk no Brasil

O funk brasileiro, como conhecido hoje, possui suas raízes no funky,


gênero musical surgido na década de 1960 nos Estados Unidos e que
possui uma grande importância para a história negra estadunidense.
O surgimento do funky está ligado ao gênero musical do soul, ritmo
vindo da junção do rhythm and blues, que foi de notória contribuição
para a história negra norte-americana e um símbolo para a consciência
negra. Com a perda de algumas características, esse gênero musical
passou a adotar ritmos mais marcantes com novos arranjos, gerando
mudanças em sua sonoridade, fazendo com que surgisse o funky,
termo que foi ressignificado, passando de um uso pejorativo para um
símbolo do orgulho negro. (DAYRELL, 2005)
O processo de chegada do funk ao Brasil ocorre na década de 1970
nas periferias urbanas, mais especificamente no “baile black”, lugar
responsável pelo lazer de jovens que frequentavam o ambiente para
curtir da black music estadunidense (VIANNA, 1987 apud DAYRELL,
2005, p. 47). Segundo Dayrell (2005, p.48),

“Os bailes eram frequentados por jovens da periferia, na sua


maioria negros. Havia espaços onde a entrada de um branco
era mal vista, sendo motivo de brigas. Havia uma identificação
da black music, ou “brown”, com a negritude e com um visual
black – especialmente calças bocas-de-sino, sapato plataforma,
o uso de suspensórios, blazer preto ou branco e chapéu – o que
marcava uma identidade negra positiva.”

O funk contemporâneo começou a tomar forma na década de 1990


nos bailes do Rio de Janeiro, sendo esse momento essencial para a
construção da nova identidade desse ritmo musical e, contudo, também
para o início do processo de criminalização desse gênero musical. Essa
tentativa de criminalização tem como motivo inicial os arrastões de
1992 nas praias cariocas, responsáveis por gerar consequências para
o funk, tendo como influência a grande repercussão das imagens
televisivas do fenômeno que acabaram alcançando e mobilizando
políticos, policiais e empresários (DAYRELL, 2005). Entretanto, esses
episódios foram investigados posteriormente e não houveram

208 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

verificações de ligação direta do Funk com os arrastões (FORNACIARI,


2011), demonstrando assim a estratégia da mídia de reaproveitar os
saberes de outras autoridades para legitimar sua fidedignidade nas
notícias e em suas veiculações (HENNIGEN, 2006).
Desde o surgimento do funk nos Estados Unidos até o seu processo
de chegada ao Brasil, nota-se que os ambientes e o público continuam
o mesmo, sendo esse público constituído principalmente por pessoas
negras e moradoras de periferia. Dessa forma, podemos entender a
tentativa de criminalização do Funk como um processo histórico que
se assemelha a tentativa racista de criminalização do Samba no Brasil,
que também se fez presente nos Estados Unidos no surgimento do
funky.
Desde a sua popularização no Brasil, o Funk pauta suas letras no
cotidiano da vida da favela, e o erotismo presente nas letras e ritmos é
marcante. Logo em sua popularização, o funk

“[...] foi duramente atacado e classificado pela crítica como


instrumento utilizado pelos grandes traficantes de drogas para
recrutarem jovens para a vida do crime e do vício. Isso se deu,
em parte, pela grande aceitação que o funk começou a ter entre
diferentes segmentos sociais da juventude da cidade, e também
porque ele, assim como outras manifestações artísticas de
caráter popular no Brasil, como por exemplo o samba, carregou
o estigma de manifestação cultural ligada às populações pobres
e de periferia.” (COUTINHO, 2015, p. 522)

Alguns obstáculos e dificuldades enfrentadas não conseguiram


parar a rápida ascensão do funk e dos bailes, que atualmente estão
intrinsecamente ligados à vida nas favelas. O mundo da cultura,
da qual o funk faz parte, é permeado pelo simbólico, e é visível a
apropriação dos jovens do simbolismo pautado na música como forma
de pertencimento e manifestação individual e coletiva. Conforme,
Dayrell (2001, p.1):

“Longe dos olhares dos pais, professores ou patrões, (os jovens)


assumem um papel de protagonistas, atuando de alguma forma
sobre o seu meio, construindo um determinado olhar sobre
si mesmos e sobre o mundo que os cerca. Nesse contexto, a
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 209
Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

música é a atividade que mais os envolve e os mobiliza. Muitos


deles deixam de ser simples fruidores e passam também a
ser produtores, formando grupos musicais das mais diversas
tendências, compondo, apresentando-se em festas e eventos,
criando novas formas de mobilizar os recursos culturais da
sociedade atual além da lógica estreita do mercado.”

Atualmente o funk movimenta altos valores na indústria da


música, sendo um dos exemplos atuais sobre a mobilização desses
recursos culturais, a página Kondzilla. O principal canal do YouTube
brasileiro, e o sexto com mais inscritos no mundo – passando de 36
milhões de inscritos, pertence a Kondzilla Filmes, produtora de clipes
em sua maioria, de funk. Além disso, os dados apresentados pela
Secretaria Nacional da Juventude, demonstram que hoje, mais de
20 milhões de jovens brasileiros fazem parte de movimentos ligados
ao funk, encontrando nessas organizações, referências de inclusão
sociocultural, uma vez que, o Brasil é marcado por processos de
segregação e violência (AGÊNCIA SENADO, 2017).

2. Cultura e criminalização

Em treze de setembro de dois mil e dezessete, sob o mandato do


presidente Michel Temer (Partido Movimento Democrático Brasileiro)
foi votada no senado a sugestão de criminalização do funk (SUG
17/2017), motivada por uma ideia legislativa colocada no portal
e-Cidadania pelo cidadão Marcelo Alonso, do Rio de Janeiro. Ele
afirma que o funk é um “crime de saúde pública” contra “crianças,
adolescentes e a família" e que assim deve ser considerado. A proposta
recebeu apoio de mais de 20 mil internautas e foi convertida na
Sugestão Legislativa (SUG) 17/2017 (AGÊNCIA SENADO, 2017).
Participaram da audiência três compositores de funk que expuseram
a realidade difícil em que viviam e as conquistas e possibilidades de
emancipação que o funk lhes possibilita. Também participou do debate,
o presidente do Conselho Nacional da Juventude, Anderson Pavin
Neto, que classificou a sugestão legislativa como “preconceituosa” e
afirmou que lhe parecia que o autor não vivia no Brasil. Para ele, o
funk surge como uma possibilidade de inclusão social e independência

210 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

para grande parte da juventude marginalizada. Vale ressaltar também


que, Marcelo Alonso, o autor da ideia legislativa, foi convidado para a
audiência mas não compareceu (AGÊNCIA SENADO, 2017).
A ideia legislativa supracitada, veio acompanhada de uma crítica
de seu autor que acusa o funk de ser uma “falsa cultura”, sendo assim,
a tentativa de criminalização do funk parte de um discurso que tenta
caracterizar o ritmo musical como uma manifestação ausente de
cultura ou de uma cultura inferior. Essas acusações se assemelham ao
movimento de criminalização e marginalização do Samba, ritmo vindo
do Lundu que se tornou patrimônio cultural do Brasil após sofrer um
período de perseguição no início do século XX (AMARAL; NAZÁRIO,
2017).
De acordo com Laraia (2001, p.99):

“Cada mudança, por menor que seja, representa o desenlace


de numerosos conflitos. Isto porque em cada momento as
sociedades humanas são palco do embate entre as tendências
conservadoras e as inovadoras. As primeiras pretendem
manter os hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos
mesmos uma legitimidade de ordem sobrenatural. As segundas
contestam a sua permanência e pretendem substitui-los por
novos procedimentos.”

A estigmatização do funk é resultado do embate entre os grupos


conservadores e os inovadores, uma vez que o ritmo musical se
caracteriza como essa força de resistência e inovação que perpassa sua
tentativa de marginalização desde o surgimento nos Estados Unidos.
O caráter inovador do funk é notado em sua versatilidade, expansão
e evolução, características que são observadas quando entende-se o
funk não como apenas um ritmo musical com batidas dançantes, mas
um movimento que atravessa décadas e fronteiras, se adaptando e
se reinventando. Dessa forma, podemos entender que a luta contra a
criminalização do funk ocorre devido ao fato de que,

“Num país como o nosso, onde as formas hierarquizantes de


classificação cultural sempre foram dominantes, onde a elite
sempre esteve disposta a autoflagelar-se dizendo que não

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 211


Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

temos uma cultura, nada mais saudável do que esse exercício


antropológico de descobrir que a fórmula negativa - esse dizer
que não temos cultura é, paradoxalmente, um modo de agir
cultural que deve ser visto, pesado e talvez substituído por
uma fórmula mais confiante no nosso futuro e nas nossas
potencialidades.” (DAMATTA, 1981, p.4)

A argumentação a favor da criminalização do funk tem


atravessamentos discursivos com teor classista e racista, tendo em
vista que seu entendimento de cultura tem uma ligação com o acesso
ao capital e com os interesses das classes que possuem mais acesso a
esse recurso. Uma parcela dos veículos de comunicação incorpora e
reproduz esse discurso ideológico sobre a cultura do funk, dessa forma,
esses veículos agem como um instrumento que ajuda a perpetuar
uma imagem e um pensamento negativo sobre o funk e as juventudes
inseridas nesse movimento. Entretanto, no contexto periférico,
os jovens se colocam no lugar de produtores culturais, sendo os
responsáveis por fomentar uma efervescência cultural, demonstrando
a inautenticidade de uma imagem socialmente construída que associa
esses indivíduos à violência e marginalidade (DAYRELL, 2002). Para
Palombini (2014),

“O modo de relacionamento do funk é de autonomia e desafio”,


e mais, “De meu ponto de vista — e exclusivamente dele —
falar em “resistência” seria dizer que a cultura afro-brasileira
é reativa. Prefiro entender o funk como uma cultura do gozo,
a “subversão pelo riso”, expressão que Rachel Soihet emprega
para o antigo carnaval carioca. Com tambor ou sem ele, o funk
carioca é uma estratégia de sobrevivência. Tanto mais o matam,
mais intensamente ele vive, tantas outras formas assume, tão
mais incômodas e provocativas. Ele se alimenta do genocídio
nosso de cada dia.”

Amaral e Nazário (2017, p.71-72), questionam o papel da mídia


neste processo, e o fato de

“Associar o funk à criminalidade, à violência e à imoralidade não


é mera coincidência, mas sim ampla estratégia nada latente do

212 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

processo de idiotização da população, no qual a mídia possui


grande protagonismo. Fomentar socialmente a ignorância
através dos rasteiros discursos do senso comum aliciadores do
ódio, através de notícias que teimam em vincular funkeiros ao
tráfico de drogas e como supostos agentes da apologia ao crime
ou ainda de estímulo à sexualidade precoce, é, além de criar a
própria imagem da devassidão e perigo ao “cidadão de bem”,
manipular o medo, gerir a paranoia social treinando os afetos
na direção de um contagioso analfabetismo político.”

Não interessa às classes dominantes a emancipação dos pobres,


visto que a exploração e a pouca capacitação facilitam o processo de
acúmulo de capital. A vida dos pobres não carece somente de recursos
materiais, mas também de simbólicos, e a criminalização do funk se
coloca como uma tentativa de cortar recursos simbólicos e culturais,
que funcionam como mecanismos de entendimento e de cerceamento
das transformações sociais que se mostram constantes e evidenciam
o funk como ato de resistência perante seguidas repressões. A partir
dessa tentativa de corte dos recursos simbólicos, Dayrell (2002, p.270),
afirma que:

“Podemos entender a postura desses jovens como uma recusa


das condições que a sociedade lhes oferece para sua inserção
social. Por intermédio da música, experimentam a possibilidade
de uma atividade com sentido e não querem aceitar a sujeição
às alternativas que lhes são postas. Dessa forma, o trabalho não
constitui fonte de expressividade. Reduz-se a uma obrigação
necessária para uma sobrevivência mínima, perdendo os
elementos de uma formação humana que derivavam de uma
cultura que se organizava em torno do trabalho.”

3. Metodologia

Naturalizam-se as relações entre o jovem e o ato infracional,


destacando-se a violência que é dada como própria do contexto de
opressão em que vive o adolescente, deixando pouco espaço para
crescimento fora dos limites da subjugação. O contexto não deve ser
ignorado, sendo uma situação concreta, mas considerar a opressão
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 213
Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

somente como tendo um fim em si mesma e não como uma vivência


que pode ser usada como motor para subjetivação, acabamos
desconsiderando a presença de vínculos e do afeto. E são os vínculos
criados que formam a essência do projeto, não coincidentemente
chamado de “Laços”.
O projeto Laços se caracteriza como um projeto de extensão
interdisciplinar realizado entre os discentes do curso de Psicologia e
Direito da PUC Minas/ unidade Coração Eucarístico. O projeto tem
como metodologia a elaboração e execução de oficinas para jovens
em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, sendo
essas medidas executadas pelos Centros de Referência Especializado
de Assistência Social (CREAS) da cidade de Belo Horizonte. O projeto é
um trabalho conjunto entre os discentes, os supervisores, sendo eles
docente do curso de Psicologia e Direito, além das assistentes sociais e
psicólogas dos CREAS de duas regionais de Belo Horizonte, responsáveis
pelo acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de medidas
socioeducativas.
Os extensionistas e os supervisores, se encontram semanalmente
após as oficinas para discutir as questões surgidas durante o encontro
com os jovens, como também para elaborar a oficina da semana
seguinte. A metodologia do projeto é compreendida como um método
de intervenção psicossocial, uma vez que as oficinas se caracterizam
como um trabalho estruturado com grupos, possuindo uma questão
central que é elaborada pelos seus integrantes, que estão inseridos em
um determinado contexto social. (AFONSO, 2006).
É importante relatar que que o projeto se encontra em uma
contínua construção, experimentando os limites e possibilidades de
cada eixo e oficina, sendo atualmente estruturado por quatro eixos
de formação, sendo eles: cultura, reflexivo, esportivo e territorial. De
acordo com Mendes (2018, p.136-137)

“O eixo cultural objetiva promover o direito à cultura que


é garantido às crianças e adolescentes pela Constituição
Federal, trazendo um ambiente mais lúdico e voltado
para o entretenimento, assim como as oficinas esportivas.
Conjuntamente, as reflexivas têm a função de construir críticas
a respeito das diversas situações de opressão e vulnerabilidade

214 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

vivenciadas pelos participantes do projeto, como o racismo,


machismo, lgbtfobia etc. Ressalta-se que os quatro eixos não
são práticas isoladas, mas sim norteadores da construção
metodológica do projeto.”

4. O funk nas oficinas do Projeto Laços

A partir de nossas reflexões sobre o compromisso ético social,


sobretudo o que diz das intervenções dos psicólogos, elaboramos as
oficinas e planejamos nossa atuação durante a execução das mesmas,
debruçando sobre o código de ética profissional do psicólogo, uma
vez que este instrumento nos orienta e nos fornece ferramentas
para intervenções de forma crítica. Sendo assim, nossas oficinas são
pautadas principalmente pelos princípios fundamentais do código
de ética profissional, embasando nosso trabalho na promoção da
liberdade, dignidade e integridade, apoiando-se assim na Declaração
Universal dos Direitos Humanos. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2005)
Em uma oficina do Projeto Laços realizada durante o primeiro
semestre de 2019 foi proposto o tema “funk” para discussão. Essa parte
específica da oficina consistia em desenhar ou escrever, em papéis
grandes fixados em uma parede, acerca do tema. Os adolescentes
prontamente se colocaram a desenhar, em conjunto, um baile funk.
Após desenharem o palco, onde um Mestre de cerimônias (MC)
cantava, se colocaram imediatamente a desenhar, no outro extremo
da folha, viaturas policiais e cenas de violência. Rindo, os jovens diziam
que o que mais recorrente em bailes funk era a violência e coerção
policial, independente do estado em que se encontra o baile, o que
reforça o fato de que o funk, como manifestação cultural da periferia,
sofre diversas repressões devido ao local que ele é exercido, o nível
socioeconômico dos frequentadores e ao racismo. O que não impede a
apropriação do mesmo pelos jovens como maneira de ressignificação
da cultura. De acordo com Reinaldo Matias Fleuri (2006, p.498):

“O racismo, sendo ideologia, busca legitimar estereótipos e


preconceitos. Estereótipo indica um modelo rígido a partir
do qual se interpreta o comportamento de um sujeito social,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 215


Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

sem se considerar o seu contexto e a sua intencionalidade. O


estereótipo representa uma imagem mental simplificadora de
determinadas categorias sociais. Funciona como um padrão de
significados utilizado por um grupo na qualificação do outro.
Constitui imagens que cumprem o papel de criar ou acentuar a
diversidade. O estereótipo resulta, pois, como um instrumento
dos grupos, construído para simplificar o processo das relações
entre eles e, nessa simplificação, justificar determinadas
atitudes e comportamentos pessoais e coletivos.”

Paulo Freire, patrono da educação brasileira e um dos maiores


contribuidores da pedagogia crítica, movimento que busca a
reivindicação da autonomia e considera o aprendizado como um
movimento libertador, constantemente reitera a importância do
compromisso como propulsor da mudança, afirmando que ela só pode
se dar no campo do concreto. O compromisso é a capacidade de reflexão
voltada para o próprio ser no mundo, somada a sua ação concreta, e
se dá no plano das relações. Vínculos e estruturas sociais são baseadas
no compromisso, ainda que muitas vezes de maneira superficial. Em
uma relação horizontal, baseada no compromisso e no concreto, quem
aprende ensina, quem ensina aprende e quem aprende, aprende a
ensinar. Expressões da subjetividade são importantes na formação e
evidenciação de vínculos, e nesse contexto podemos citar o funk como
manifestação cultural e individual de afetos e vivências.
Toda relação é permeada por valores, e a criação de vínculos
pressupõe uma troca de valores. Enriquez (2001, p.61), em “O vínculo
grupal”, afirma que um grupo “se constitui em torno de uma ação a
realizar, de um projeto ou de uma tarefa a cumprir. (...) O que parece,
no entanto, menos evidente são as implicações e as consequências de
tal axioma.” Axioma que, segundo a filósofa Maria de Arruda Aranha
(2007), é descrito como a teoria dos valores, em que um sujeito não
pode receber regras e normas de forma passiva, mas aceitá-las livre
e conscientemente. Valores que podem ser “subjetivos ou universais,
relativos ou absolutos”, o que abre caminho para várias interpretações
possíveis e maneiras diferentes de subjetivação de um mesmo
fenômeno.
Voltando ao plano da análise deste artigo, ocorre a mudança,

216 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

o funk extrapola as barreiras do gênero musical e atinge os sujeitos


como uma maneira de identificação cotidiana, mais que isso, como
ressaltado anteriormente, como uma forma de resistência, de existir.
As oficinas do Projeto Laços/PUC Minas possuem atravessamentos
por questões ligadas ao funk, sendo perceptível sua influência em boa
parte dos adolescentes que participam do projeto. É notável que os
jovens participantes das oficinas fazem parte do público maior do funk,
sendo em sua maioria jovens negros da periferia, atravessados pelo
cumprimento de medidas socioeducativas e questões presentes no
funk que os fazem se sentir representados. Os extensionistas, enquanto
jovens que também escutam funk e entendem a sua importância
simbólica e de significado, logo perceberam que o ritmo ao mesmo
tempo que gerava um constrangimento nos adolescentes, poderia
também, se tornar uma ferramenta para desvelar a opressão que eles
sofrem por serem jovens, negros, periféricos e funkeiros. As situações
de opressão relatadas principalmente nas oficinas reflexivas, ou nos
incômodos ao transitar pelo ambiente acadêmico, nos dão suporte
para a discussão de questões extremamente importantes no que diz a
realidade desse jovens, uma vez que nossa práxis se caracteriza como
uma reflexão e ação sobre o mundo para gerar mudanças (FREIRE,
1978).
O ritmo musical caracterizado pelo seu ritmo dançante, letras
que falam sobre a realidade de jovens periféricos e possibilitam
a expressão corporal pelo meio da dança, mais especificamente
pelo passinho, é um dos fatores que consegue unir os adolescentes
participantes do projeto por sua identificação com o estilo musical. A
possibilidade de expressão presente no funk é algo que atravessa cada
jovem participante de uma maneira diferente, sendo em alguns casos
algo que não agrada uma pequena parcela desses jovens e em outros
algo essencial em sua vida. Ao ter em vista os atravessamentos do
funk nesses adolescentes, podemos entender que o funk se manifesta
em seus momentos de lazer, expressividade, e muita das vezes como
forma de trabalho.
Ao longo da realização das oficinas, presenciamos jovens engajados
com o funk de diversas formas, seja por meio apenas da frequentação
dos bailes funk, como também por meio da dança, canto ou mixagem.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 217


Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

Além das oficinas, os jovens e as assistentes sociais relataram a demanda


da presença do funk no trajeto feito do CREAS até a Universidade, e o
cerceamento que essa demanda sofria. A alegação do motivo desse
cerceamento era o fato de que, as letras possuíam um teor machista
e de sexo explícito. Entretanto, os momentos de recusa do funk no
trajeto são uma perda de oportunidade para se trabalhar questões
importantes do cotidiano desses jovens, principalmente sobre as
questões da sexualidade e relações de gênero, pois como afirma Freire
(1978, p.33),

“A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela


contradição vivida na situação concreta, existencial, em que
se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas para
eles, ser homem, na contradição em que sempre estivera e cuja
superação não lhes está clara, é ser opressores.”

Foi possível observar durante as oficinas que os adolescentes que


participavam de atividades ligadas ao funk fizeram disso um motivo de
aproximação e troca de ideias. O funk era um assunto recorrente entre
eles e pudemos observar na maioria das vezes, que se tratava de um
assunto abordado com leveza e espontaneidade.
A presença do funk nas oficinas do Projeto de extensão Laços/PUC
Minas emergiu, por exemplo, em uma oficina no qual cada integrante
escolhia e reproduzia uma música que lhe agradasse, sendo o nome
dessa música escrita de forma anônima e entregue ao mediador,
responsável por reproduzir a música. A partir da reprodução, todos
os integrantes tinham o objetivo de descobrir quem selecionou cada
música e caso se sentisse confortável, poderia contar o motivo da
escolha. O ritmo mais reproduzido foi o funk, seguido pelo rap, que
também apareceu em diversos momentos em algumas oficinas.
Os impactos da estigmatização do funk se apresentaram em
diversos momentos das oficinas durante as falas dos adolescentes,
sendo mais frequente nas oficinas guiadas pelo eixo reflexivo. Em uma
oficina que se trabalhou com uma cartolina dividida em três frases,
sendo elas: “Como eu me vejo”, “Como os outros me veem” e “Como
gostaria de ser visto”, os adolescentes se dividiram em grupos com
o intuito de pensar nas questões escritas na cartolina. Ao finalizar a

218 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

atividade, os grupos expuseram suas reflexões acerca das frases em


uma roda, no qual pudemos notar inquietações sobre os estigmas
impostos a eles, sendo que boa parte das críticas foi direcionada a
imagem que a sociedade tem sobre os adolescentes envolvidos com
o tráfico, frequentadores de baile funk, moradores de periferia e com
pessoas negras.
Certas falas apontam para alguns momentos em que os adolescentes
se sentiam inibidos em falar sobre o funk pelo fato das letras conterem
frases com referências sexuais. Dessa forma, passamos a trazer o
funk para a oficina, entendendo que o ritmo seria um facilitador no
processo de criação de laços. O funk se apresenta enquanto uma
ferramenta que possibilita emancipação dos indivíduos, tanto os que
escutam, compõe ou produzem (GONÇALVES; SCHUMACHER, 2019),
desta maneira, o ritmo age trabalhando nas potencialidades que existe
em cada um e que muitas das vezes é reprimida pela estigmatização
do funk, fenômeno o trata como uma manifestação de baixa cultura,
conceito utilizado por DaMatta (1981) como antagônico ao de alta
cultura, que são usados para distinguir as formas de cultura e classificar
as culturas mais avançadas ou preferidas. Diante do explanado, a
relação da estigmatização e tentativa de criminalização do funk com as
desigualdades apontadas por Muniz (2016, p.458),

“A cultura pode sim gerar efeitos indiretos. Contudo,


considerando no Brasil as desigualdades relacionadas a área
geográfica, cor da pele, origem social, acesso e conhecimento do
sistema judiciário, não é surpreendente que certos indivíduos
sejam mais facilmente criminalizados por determinadas
condutas.”

As oficinas nas quais se aborda o funk se assemelham ao conceito de


Trabalhos educativos, utilizado por Freire (1978), sendo esse conceito
caracterizado por práticas realizadas com os oprimidos no processo de
sua organização. Seguindo o pensamento de Freire em Pedagogia do
Oprimido, entende-se os adolescentes em cumprimento de medidas
socioeducativas como oprimidos, uma vez que estes existem pois é
inegável a existência de uma relação de violência que conforma esses
sujeitos como violentados (FREIRE, 1978).
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 219
Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

Segundo Freire (1978, p.44):

“A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e


libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em
que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e
vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação;
o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta
pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia
dos homens em processo de permanente libertação.”

Os dois momentos da pedagogia do oprimido podem ser usados


como uma forma de se pensar o funk como ferramenta de reflexão
e transformação, pensando que no primeiro momento é a hora
dos adolescentes usarem o funk como ferramenta para expressar
suas vivências, inquietações, dores, alegrias, opressões, a fim de
transformar a realidade opressora na qual vivem. O segundo momento,
nomeado como pedagogia dos homens em processo de permanente
libertação, acontece quando a realidade opressora já foi transformada,
após um longo trabalho desde o primeiro momento, e que a partir
de agora o sujeito nomeado como oprimido se torna um homem,
não livre de opressões mas em uma etapa de maior conscientização.
Assim, o homem em processo de libertação das opressões vindas
da estigmatização do funk, consegue expulsar os mitos advindos da
estrutura opressora (FREIRE, 1978).
Segundo Laraia (2001, p.101),

“[...] cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender


esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as
gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma
forma que é fundamental para a humanidade a compreensão
das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário
saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo
sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem
para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo
novo do porvir.”

Sendo assim, as mudanças do sistema cultural podem servir


como uma força contrária ao movimento de criminalização do funk

220 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Os jovens e as medidas socioeducativas: o funk como ferramenta de emancipação

como pode servir como uma força de legitimação desse discurso que
não entende as diferenças culturais dentro de um mesmo sistema.

5. Considerações finais

Em conclusão, podemos relatar que as oficinas do Projeto Laços


têm como uma das potencialidades de sua prática, a desconstrução do
estigma criado sobre o funk, uma vez que os extensionista responsáveis
pela condução das oficinas, entendem a importância do ritmo musical
e de suas expressões para o público-alvo do projeto. Dessa forma, as
oficinas são pensadas de uma maneira que ressignifique aspectos que
são tratados de formas negativa pela sociedade e que de certa forma
são introjetadas pelos adolescentes participantes.
A metodologia utilizada facilita a comunicação dos adolescentes
com os extensionistas, fazendo com que se estabeleça uma relação
de confiança e um espaço agradável para que se discuta e reflita sobre
a importância do papel do Funk para esses jovens. Os extensionistas
responsáveis pela condução das oficinas se apropriam do Funk
enquanto um facilitador para o processo grupal, entendendo que o
ritmo serve como uma ferramenta para que se discuta questões que
perpassam as oficinas, como por exemplo: gênero, discriminação,
violência policial e drogas. Sendo assim, quando o Funk emerge nas
oficinas, nos apropriamos desse elemento tanto para a construção de
laços com os adolescentes, como também para utilizar seu potencial
emancipatório para desvelar as opressões que atravessam as vidas
desses jovens.

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6, n. 2, p. 447-467, ago 2016.

PALOMBINI, Carlos. Notas sobre o Funk. Proibidão, 2014. Disponível

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 223


Bernardo Ferreira Ricardo, Fernando Junio Cardoso Duarte Cristina, Campolina Vilas Boas

em <http://www.proibidao.org/notas-sobre-o-funk/>. Acesso em: 25


jul 2020.

Sobre os autores

Bernardo Ferreira Ricardo


6º período de Psicologia-PUC/Coração Eucarístico. Extensionista no Projeto Laços
(2019)
E-mail: bernardo.ricardo2006@gmail.com

Fernando Junio Cardoso Duarte


7º período de Psicologia-PUC/Coração Eucarístico. Extensionista voluntário no
Instituto Rondon Minas (2018) e no Projeto Laços (2019). Pesquisador de Iniciação
Cientifica e Tecnológica (2020-2021) com o tema "Envelhecimento e Memória:
história de idosos LGBTI+ de Belo Horizonte".
E-mail: fernando.junio.c.d@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3241748070341970

Cristina Campolina Vilas Boas


Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2002),
mestrado em Psicologia/Master 2 Psychanalyse - Université Paris 8 - Vincennes-
Saint-Denis (2006) e doutorado em Ciências da Saúde/Faculdade de Medicina pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2014). Atualmente é professor Adjunto I da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Integrou a equipe do Curso de
Capacitação/Extensão CRR Ateliê Intervalo de Redução de Danos da Faculdade
de Medicina/UFMG. Coordena o Projeto de Extensão Laços/PUC Minas/Coração
Eucarístico. Coordena o Curso de Pós-Graduação "Psicanálise: Clínica com Crianças
e Adolescentes"/IEC/PUC Minas. Em 2019/2020 está como parecerista da Psicologia
em Revista (Revista da Pós-Graduação da PUC Minas); da Revista Pretextos (Revista da
Graduação em Psicologia da PUC Minas), da Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais
(LAPIP/UFSJ) e da Revista Saúde em Debate (Revista do Centro Brasileiro de Estudos
de Saúde - CEBES).
E-mail: cristinacampvilasboas@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2521362959476155

Orientadora: Cristina Campolina Vilas Boas

224 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


13

Juventudes e acolhimento
institucional em
repúblicas: a Psicologia
no enfrentamento
das desigualdades
raciais e sociais
Youths and institutional shelter in
republics: Psychology in facing
racial and social inequalities

Marco Aurélio Saraiva Carvalho


Laura Cristina Eiras Coelho Soares

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 225


Marco Aurélio Saraiva Carvalho, Laura Cristina Eiras Coelho Soares

Resumo

O presente trabalho aborda o tema da Juventude acolhida em Repúblicas,


política endereçada aos jovens de 18 a 21 anos egressos do acolhimento
institucional. No levantamento sobre produções da Psicologia foi encontrada
escassez de material e, portanto, a discussão foi realizada a partir de uma
busca não sistematizada a respeito de assuntos que perpassam as práticas
de proteção integral endereçadas à juventude. Para tal, refletimos sobre
a complexidade do conceito de juventude e a centralidade do direito à
convivência familiar para nos questionarmos como as práticas de proteção
são endereçadas a essa juventude, tendo como horizonte o prolongamento
da pandemia e considerando os atravessamentos de raça e classe. Por fim,
o trabalho aponta para a necessidade de produções na temática, de forma a
fundamentar o fazer ético da Psicologia e a promoção de práticas construídas
em conjunto com essa população, como uma das formas de enfrentamento
das desigualdades racial e social.

Palavras chave: Juventude; Repúblicas; Acolhimento; Raça, Assistência Social.

Abstract

The present work is about the theme of Youth who lived in Republics, a policy
addressed to young people aged 18 to 21 years old who have come from
institutional care. In the survey on Psychology productions, a shortage of
material was found. Therefore, the discussion was carried out based on a non-
systematic search for regarding issues that pervade the integral protection
practices addressed to youth. We go through the complexity of the concept
of youth and the centrality of the right to family life in order to question how
protection practices are addressed to this youth, with the horizon of the
prolongation of the pandemic and considering the crossing of race and class.
Finally, the work points to the need for productions about the theme in order
to support the ethical practice of psychology and to promote practices built in
conjunction with this population, as one of the ways of facing racial and social
inequalities.

Keywords: Youth; Republics; Shelter; Race; Social Assistance.

226 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia no enfrentamento
das desigualdades raciais e sociais

1. Introdução

O tema da juventude suscita o debate a respeito da própria definição


desse conceito no que tange à qual população ele se refere. Segundo a
legislação brasileira, em específico o Estatuto da Juventude (EJ) definido na
Lei n° 12.852/2013 (BRASIL, 2013), é considerado como jovem a pessoa com
a idade entre 15 e 29 anos. Logo, as prerrogativas dessa lei se aplicam em
conjunto, em casos não conflitantes, aos adolescentes entre 15 a 18 anos
incompletos de idade, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
(BRASIL, 1990) se aplica aos sujeitos de até 18 anos incompletos.
Essa problemática, entretanto, não é puramente uma questão de faixa
etária e de garantia de direitos dependendo da normativa a ser aplicada, mas
diz respeito às diferentes concepções sociais de juventude e de adolescência
e seus desdobramentos nas diferentes políticas sociais. Negreiros, Gomes,
Colaço e Ximenes (2018) trouxeram uma discussão panorâmica sobre a
produção brasileira relacionada à juventude e à adolescência, indicando como
esses conceitos são pesquisados sob o viés de risco e de vulnerabilidade.
Junior e Colares (2019) sinalizaram que - antes da Emenda Constitucional 65
de 2010 (BRASIL, 2010) e promulgação do EJ em 2013 - a continuidade da
proteção integral endereçada à criança e ao adolescente não se aplicava para
a população jovem, salvo o sistema socioeducativo que poderia estender a
permanência do jovem até os 21 anos de idade.
Fernandes e Hellmann (2016) conceituam vulnerabilidade como uma
situação temporária provocada por dinâmicas sociais e territoriais que
produzem desigualdades. Nesse sentido, segundo as autoras, a situação de
risco é entendida como uma violação de direitos, sendo um reflexo da não
prevenção desse processo. A partir da noção de vulnerabilidade e constatada
uma situação de violação de direitos uma das medidas protetivas que podem
ser aplicadas, segundo o ECA (BRASIL, 1990), para crianças e adolescentes é
o acolhimento institucional, que tem por objetivo ser provisório e promover
a reinserção no convívio familiar por meio da superação da situação que
contribuiu para o acolhimento (BRASIL, 2009). Em relação a essa medida
protetiva, as discussões propostas por Martins e Mota (2019) em seu
levantamento bibliográfico de estudos sobre a percepção dos adolescentes
sobre o acolhimento institucional, indicaram que as longas permanências
podem contribuir para fragilização dos vínculos familiares. Esse quadro pode

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 227


Marco Aurélio Saraiva Carvalho, Laura Cristina Eiras Coelho Soares

culminar em desligamento institucional por maioridade sem a realização da


reinserção familiar.
Diante desse cenário, uma das alternativas preconizada pelas Orientações
Técnicas é a criação de Repúblicas de Acolhimento Institucional (BRASIL,
2009), que segundo o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo
SUAS) possui 40 unidades no país (BRASIL, 2019). Em 2018, em uma capital do
Sudeste Brasileiro, foi criada a instituição de acolhimento em Repúblicas, sendo
endereçadas a jovens de 18 a 21 anos, egressos do acolhimento institucional,
que não se reinseriram em suas famílias de origem e que possuem vínculos
familiares fragilizados e/ou inexistentes (BELO HORIZONTE, 2018).
Com o cenário atual da Pandemia pelo novo Coronavirus Sars-Cov-2,
o SUAS evidencia-se como uma das principais formas de enfrentamento
das desigualdades sociais (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2020a,
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-MG, 2020). Entretanto, a situação do
campo é preocupante, visto a dificuldade de isolamento social, principalmente
nas instituições de acolhimento, tanto de seus trabalhadores, quanto dos
acolhidos. Estudo conduzido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) demonstrou
o temor dos profissionais do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) diante
do risco do novo Coronavírus, tendo como agravante as orientações difusas das
instâncias federais e estaduais, bem como a inconsistência na disponibilização
de equipamentos de proteção, que possui variações de quantidade e de
acesso conforme as regiões do país (FGV, 2020). O investimento no campo
torna-se urgente e, portanto, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA) sugeriu, entre diversas recomendações, a suspensão
ou revogação da Emenda Constitucional 95/2016 (BRASIL, 2020). A referida
Emenda limita os gastos públicos e não permite a aplicação de recursos
orçamentários para a assistência social, verbas que são tão necessárias no
presente momento. Além disso, nessa conjuntura houve a limitação de
funcionamento de diversos equipamentos que irão impactar diretamente na
construção da autonomia desses jovens, tais como: a interrupção de cursos
de capacitação profissional e das possibilidades de inserção no mercado de
trabalho.
A partir das dificuldades elencadas no campo do acolhimento institucional
- agravadas pelo contexto de Pandemia - o presente estudo se insere como
forma de refletir sobre a juventude acolhida e os discursos que a permeiam,
relacionando-os às classes populares, à questão racial, bem como aos

228 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia no enfrentamento
das desigualdades raciais e sociais

desdobramentos na execução das políticas públicas. Para tal, torna-se


relevante situar que a dinâmica da desigualdade social do país é também de
âmbito racial, pois o racismo - além de dar embasamento aos mecanismos
de exclusão social (ALMEIDA, 2018; MBEMBE, 2018b) - modifica os discursos
endereçados aos jovens desdobrando-se em saberes e fazeres da Psicologia
atravessados por essas concepções (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2017). A Psicologia, enquanto ciência e profissão, precisa estar atenta aos
efeitos de suas práticas e construções teóricas, a fim de que estas não sirvam
para reafirmar processos de exclusão e de discriminação.

2. Caminhos e percalços metodológicos

No levantamento bibliográfico de estudos sobre o acolhimento em


Repúblicas, na plataforma Scielo.br, Portal Periódicos Capes, e na busca por
Teses e Dissertações na plataforma Domínio Público utilizou-se os descritores:
juventude, república, assistência social repúblicas, acolhimento institucional
e acolhimento em repúblicas. A respeito da política de acolhimento em
república foram encontradas quatro produções: os artigos de Junior e Colares
(2019) e Cassarino-Perez, Córdova, Montserrat e Sarriera (2018), a dissertação
de Ribeiro (2008) e a tese de Carvalho (2015).
Na Psicologia, Cassarino-Peres, et al. (2018) discorreu - em seu levantamento
bibliográfico sobre “(...) programas de intervenção para favorecer o processo
de emancipação de adolescentes” (p.1665) - a respeito da escassez de
publicações no Brasil no que tange a essa temática. De forma complementar,
Junior e Colares (2019), sob a perspectiva do Direito, indicaram que as políticas
de república não são realidade em muitos Estados e Municípios. Esse fato,
segundo os autores, constitui irregularidade quanto à promoção da garantia
do direito à proteção integral dos jovens egressos do acolhimento, cabendo
ajuizar ação civil pública de cumprimento da implantação desse serviço.
Na área do Serviço Social, o estudo de Ribeiro (2008) teve como foco a
história de vida de um acolhido que vivenciou diferentes instituições de
acolhimento, incluindo um projeto semelhante à república16 foi possível

16 Definiu-se a instituição com o uso da palavra projeto devido ao fato da dissertação ser anterior a promulgação
das normativas sobre os serviços de acolhimento (BRASIL, 2009).

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 229


Marco Aurélio Saraiva Carvalho, Laura Cristina Eiras Coelho Soares

observar diferença nas propostas das instituições, apontando possibilidades


para a construção de práticas de autonomia e para o trabalho de fortalecimento
de vínculos familiares fragilizados. Entretanto, na tese de Psicologia de
Carvalho (2015), que também analisou a história de vida de acolhidos que
viveram diferentes instituições - inclusive de acolhimento para jovens- não foi
observada essa diferença de propostas e a presença de alternância entre a
instituição e as trajetórias de situação de rua.
A escassez de produções do campo da Psicologia - apenas duas específicas
sobre essa política pública foram localizadas nas bases pesquisadas -
denota o silenciamento dessa atuação e desse público. Desta forma,
diante da reduzida produção acadêmica sobre o tema e visando subsidiar
teoricamente as reflexões propostas optou-se, metodologicamente, pela
busca não sistematizada de material a respeito de assuntos que perpassam
o debate sobre as repúblicas, a saber: juventude, política pública e racismo.
Para compreensão da possibilidade de construção do trabalho da Psicologia
nesse espaço optou-se pelo estudo da referência de atuação elaboradas pelo
Conselho Federal de Psicologia (CFP) a respeito da questão racial (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2017) e das resoluções e das notas sobre a atuação
no campo da assistência social (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2020a;
2020b; CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 2020).

3. A juventude na rede de proteção socioassitencial

O ECA define em seu artigo 101 que, em casos de violação de direitos das
crianças e adolescentes, deve-se aplicar medidas de proteção, dentre elas
destacamos o acolhimento institucional (BRASIL, 1990). Em 1993, temos a
criação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (BRASIL, 1993), buscando
inaugurar um novo momento da assistência social. Em 2004, com o intuito
de operacionalizar e padronizar nacionalmente a rede de proteção e de
garantia de direitos, temos a promulgação do Plano Nacional de Assistência
Social (PNAS). Esse Plano criou diretrizes nacionais e propôs a atuação
descentralizada, ou seja, a necessidade de atuar com as famílias a partir de
seus territórios e suas particularidades (BRASIL, 2004). Assim, a política de
assistência social foi dividida em dois níveis de atuação: a Proteção Social
Básica (PSB) e a Proteção Social Especializada (PSE).
A partir dessa organização o fluxo de atendimentos às famílias e seus

230 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia no enfrentamento
das desigualdades raciais e sociais

componentes se inicia com a PSB, visando a manutenção do convívio familiar e


a superação das condições de violação de direitos, tendo como equipamento
principal o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Caso esses
vínculos já estejam rompidos e as situações de risco estejam instauradas, o
trabalho se direciona para a PSE de média ou de alta complexidade. Nessa
última se insere tanto o acolhimento institucional de crianças e adolescentes,
quanto as repúblicas de acolhimento para jovens. Pensando na Proteção
Social de Alta Complexidade, que é o nosso foco de discussão, devemos citar
também as Orientações Técnicas para os serviços de acolhimento (BRASIL,
2009) que cria parâmetros nacionais para o funcionamento e organização de
tais instituições tendo como objetivo inicial a reinserção familiar. Além disso,
no que tange às Repúblicas, devem ter como guia para suas ações o Estatuto
da Juventude, que propõe a necessidade de produção da autonomia para
essa população (BRASIL, 2013).
A despeito da apresentação das normas que permeiam a atuação com a
população jovem no SUAS, nos interessa compreender quais são os discursos
sociais endereçados a essa população que acessa o SUAS, em específico
do acolhimento institucional. Para tal, optou-se por compreender como a
juventude vem sendo entendida em nossa sociedade. No campo da Sociologia,
juventude é um conceito recente, pois até meados da década de 20 e 30 do
século XX não havia a concepção de uma etapa transitória para a vida adulta,
seja esta a adolescência e/ou a juventude (KEHL,2004, GROPPO, 2000). Kehl
(2004) discorreu em seu texto sobre as transformações sociais ocorridas com
a ascensão do capitalismo e os movimentos de contracultura, e como esse
movimento cultural foi apropriado por esse sistema econômico. Segundo Kehl
(2004) tal sistema criou dois tipos de jovens: aqueles cujos comportamentos
são mal vistos pela sociedade, considerados rebeldes, que fazem uso de
substâncias e praticam violências; e a juventude que mantém alguns desses
comportamentos contra o sistema instituído e que se apropria dos bens de
consumo. Portanto, a visão positiva de juventude pode estar presente nos
aspectos identitários, estéticos e comportamentais, mas seu valor positivo
estaria atrelado ao fato de quem pode ou não consumir (KEHL, 2004, p. 102).
Entretanto, a partir de sua participação social houve também a inserção
no campo político, como apontaram Abramo e Branco (2005) em que a
juventude foi considerada como força motriz dos movimentos contrários ao
governo ditatorial brasileiro. Dessa forma, se torna pertinente o fato de que

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 231


Marco Aurélio Saraiva Carvalho, Laura Cristina Eiras Coelho Soares

houve a formação de uma nova maneira de ser e de agir, que necessitava ser
definida, sendo a Psicologia uma das áreas elencadas para estudar e definir
essa população (GROPPO, 2000).
A partir desse viés temos a elaboração de estudos da Psicologia voltados
para o desenvolvimento humano, que concebeu essa faixa etária enquanto
um período de transição para a vida adulta, criando assim o conceito de
adolescência, elencando as transformações dessa faixa etária, seus problemas
e quais as formas adequadas de enfrentá-los (NOVO; MENANDRO, 2000).
Contudo, essa abordagem criou critérios ambíguos para essa população,
pois ela é concebida sobre a problemática do conflito e a partir de uma
tentativa generalizante do que é ser adolescente, o que trouxe a esse grupo a
irresponsabilidade como característica. Essa mesma questão é observada na
pesquisa nacional de Abramo e Branco (2005), que criticou essa perspectiva
demonstrando como os jovens, a partir de suas próprias opiniões, estão
envolvidos com a transformação social, ao mesmo tempo que há uma visão
de outros grupos que evocam o viés da irresponsabilidade e de ser uma fase
de transição.
Em estudo sobre os discursos midiáticos relacionados à violência entre
jovens, tendo como fonte jornais de grande circulação na cidade de Brasília
e Pernambuco, Almeida, Almeida, Santos e Porto (2008) evidenciaram
mudanças no discurso, conforme o recorte de classe dessa população. Para
os jovens pertencente às classes médias, as matérias jornalísticas trouxeram
uma extensa história de forma a sensibilizar seus leitores e enumerar causas
da violência externas a quem as cometeu. Por outro lado, no caso dos jovens
de classes populares, sua história é apagada completamente e até mesmo
seus nomes, sendo citados como menores e localizados em uma dinâmica de
violência que tem por base explicativa a pobreza e a culpabilização individual
(ALMEIDA et al. 2008).
Ao levarmos esse debate para o campo das políticas públicas, em
específico para o acolhimento institucional, começamos a identificar questões
históricas relacionadas às classes populares, como o extenso relato de práticas
coercitivas e asilares, destinadas a uma população marcada pela pobreza e
predominantemente negra, desde o período Colonial até a Ditadura Militar
(PEREZ;PASSONE, 2000), e que ainda ressoa em práticas individualizantes e
preconceituosas nas políticas de acolhimento (ASSIS; FARIAS, 2013). Partindo-
se da noção de periculosidade, de delinquência e a promoção do constante

232 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia no enfrentamento
das desigualdades raciais e sociais

pânico social diante da violência urbana, justificaram-se intervenções de


afastamento do convívio social em prol de uma reeducação desses segmentos,
baseadas em uma noção europeia de família e de costumes (PEREZ; PASSONE,
2000). Coimbra (2000) analisou que a construção das “classes perigosas”
(COIMBRA, 2000, p. 59) foi possível a partir de um aparato de teorias
eugenistas que buscavam justificar as diferenças raciais. Para Zaffaroni (2005)
esse conceito possui sua origem em documentos policiais do século XIX,
que definiram determinados setores sociais como supostamente inclinados
à criminalidade. Para tal, se apropriaram de teorias criminais positivistas
como forma de justificar suas ações em prol da manutenção dos interesses
das classes dominantes. Coimbra (2000) sinaliza a associação entre pobreza
e criminalidade realizada nesses discursos discriminatórios que culminam na
defesa pelo combate e afastamento do convívio social dessas supostas classes
perigosas.
Entre olhares de recriminação e de criminalização, a situação de
fragilidade dessas famílias cujos filhos são acolhidos é ainda mais preocupante
quando vislumbramos que se trata de uma perpetuação das condições
de vulnerabilidade, que perpassam a história de tais famílias por gerações.
Esses grupos familiares apresentam em sua trajetória o acesso a instituições
de acolhimento como tentativa de superação dessa condição, como forma
de acesso a direitos e também buscando cuidados quando se encontram
dificuldades em fazê-los (FÁVERO; VITALE; BAPTISTA, 2008). Esse aspecto
nos direciona a um importante questionamento sobre os fatores que estão
relacionados com a permanência dos mesmos processos que eram utilizados
no período das instituições asilares e que também contribuem para a
manutenção da desigualdade.
Um dos pontos que podemos elencar é o trabalho institucional que precisa
se constituir em conjunto com aqueles que o acessam, como demonstrou o
estudo de Rizzini (2003) e de Carvalho (2015) por meio do estudo de histórias
de crianças, adolescentes e jovens com trajetórias de rua. Nos estudos citados,
a rua exerce a função de lazer, de composição de grupos, de acesso à renda
como forma de complemento familiar e também a bens de consumo (RIZZINI,
2003; CARVALHO, 2015). Além disso, Carvalho (2015) identificou que a forma
desvalorizada como os acolhidos são vistos pela sociedade contribui para as
evasões, que foram entendidas como estratégias indivíduas e grupais para
que essa desvalorização não se constituísse como a visão que eles possuem

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 233


Marco Aurélio Saraiva Carvalho, Laura Cristina Eiras Coelho Soares

de si mesmos, sendo a rua um ambiente de encontro. Esse entendimento


não se estende somente ao ambiente institucional, mas está presente tanto
na juventude enquanto categoria social - como mencionado anteriormente
(GROPPO, 2000; KEHL, 2004; NOVO e MENANDRO, 2000; ABRAMO e
BRANCO, 2005) - quanto na juventude pertencente às classes populares
quando esses discursos de mesclam a outros aspectos como os raciais.
Além de visões sociais envolvidas, que guiam as práticas assistenciais, há
outro debate que deve ser citado ao se falar sobre juventude e sua trajetória
pelo SUAS, inclusive para compreendermos o passado enquanto processo de
construção dessas visões. As práticas assistenciais possuem histórico de viés
assistencialista advindas do período colonial, destinadas à população pobre
e negra (PEREZ; PASSONE, 2000). Dessa forma, a desigualdade social no país
também está intrinsecamente relacionada com a questão racial e, portanto,
torna-se relevante essa reflexão para as/os psicólogas/os que irão atuar em
interface com a assistência social

4. Raça e racismo: uma discussão necessária para a Psicologia no


campo da juventude

Ao abordarmos sobre juventude mencionamos a problemática que


permeia o conceito e sua relação com as práticas voltadas a determinados
segmentos sociais. Ao pesquisar sobre a juventude negra brasileira, Santos,
Santos e Borges (2005) nos demonstraram que pobreza e discriminação racial
são inter-relações que devem ser consideradas. Uma das consequências da
racialização do ser humano, ou seja, da criação da concepção de humanidade a
partir da questão racial - que socialmente se distribui hierarquicamente - é não
problematizar o passado da raça enquanto tecnologia colonial de segregação
e do racismo como mecanismo de exclusão e extermínio, inviabilizando o
convívio social a partir das diferenças (MBEMBE, 2018a).
Almeida (2018) retrata a construção do conceito de racismo estrutural,
indicando que a questão racial ultrapassa as práticas comportamentais
discriminatórias, estando alicerçada em todos os pontos da sociedade
brasileira. O autor aponta como os negros não se fazem presentes em diversos
espaços, sejam esses físicos, sociais e econômicos, e como o próprio Estado
funciona a partir dessa exclusão. Por meio dessa estrutura, os negros ocupam
posições sociais hierarquicamente inferiores e promovem a manutenção

234 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia no enfrentamento
das desigualdades raciais e sociais

dos espaços de privilégio ocupado majoritariamente pela população


branca (ALMEIDA,2018). Contudo, a invisibilidade em vários setores pode
ser contrastada com a visibilidade nas políticas de assistência social de alta
complexidade, pois quando lançamos um olhar para o público presente nos
acolhimentos – institucional ou república - observamos a predominância
racial negra. Assim, nota-se que os espaços sociais também são delimitados
pela questão racial.
Schucman e Martins (2017) trouxeram um panorama de como a Psicologia
está produzindo pesquisas sobre raça e racismo e a necessidade, por exemplo,
de discutimos como a centralidade em uma cultura europeia e elitizada
produz um apagamento da história da população negra. Além disso, Mbembe
(2018b) parece reiterar que essa invisibilidade seletiva possui um propósito,
que é a eliminação de determinados segmentos sociais por meio de sua
desumanização, sua hierarquização e a instauração do medo da diferença.
Assim, seriam justificadas ações que podem ir desde a falta de cuidados e de
subsídios - que promovem um extermínio lento – até ações coercitivas que
visam a morte direta de determinadas populações.
A partir dessa realidade, o CFP (2017) propôs diversas formas de
enfrentamento à desigualdade racial a partir da identificação de como as
instituições podem se inserir nos debates acerca das políticas afirmativas, o
que pode ocorrer inclusive na contratação de profissionais e gestores. Além
disso, a inserção do questionário de identificação racial auxilia na construção
de um diagnóstico dos profissionais e de quem acessa os serviços por
exemplo da rede socioassistencial, fomentando ações que problematizem a
população negra e sua inserção/discriminação no contexto histórico e social
do país (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,2017). Com a recente situação
de Pandemia do Sar-Cov-2, as desigualdades vividas pela população podem
ser acentuadas. Essa preocupação se deve ao fato da impossibilidade de que
todas as ações do SUAS sejam remotas e que essa modalidade de atendimento
pode levar à violação de direitos, pois essa população não possui acesso à
inclusão digital (FIOCRUZ, 2020).
A reflexão sobre os resquícios históricos e os desafios nas práticas atuais
é de fundamental importância, pois nos alerta para a construção de práticas
e saberes que permeiam e legitimam a desigualdade social e racial. Essa
perspectiva é reafirmada pelo CFP (2017) ao frisar a importância de se abordar
a temática de modo transversal, o que permite uma postura crítica visando à

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 235


Marco Aurélio Saraiva Carvalho, Laura Cristina Eiras Coelho Soares

desconstrução de preconceitos a partir da ampla produção no campo.


Relacionando-se esse ponto ao nosso objeto central posto em discussão
- que é a juventude e sua relação com o acolhimento e questões raciais -
diversos relatos de experiência apontam que é possível construir políticas e
ações, em conjunto com essa população, desde que partam das suas histórias
de vida e de suas potencialidades (MOREIRA; CARELHOS, 2012; RIZZINI et al.,
2006). Na obra de Moreira e Carelhos (2012) foi enfatizado que as famílias não
devem ser vistas como receptáculo de ações e sim como parte ativa nesse
processo. Rizzini, Rizzini, Naif e Baptista (2006) dissertaram sobre as políticas
de acolhimento institucional para crianças e adolescentes destacando
as dificuldades enfrentadas no campo, desde as concepções pejorativas
endereçadas aos acolhidos e seus familiares, como a falta de articulação da
rede e a culpabilização individual pela situação vivida. Entretanto, ao trabalhar
em conjunto com os acolhidos e suas famílias, houve o fortalecimento
dessa rede, o que evitou o prolongamento do acolhimento e favoreceu a
manutenção dos vínculos familiares. Dessa forma, como apontaram Carvalho
(2015) e Ribeiro (2008), para a construção de uma atuação colaborativa e
transformadora do contexto vivido por quem acessa a rede socioassistencial,
exige-se compromisso social daqueles inseridos no campo e o trabalho em
conjunto com a população atendida.

5. Considerações finais

No debate sobre a concepção de juventude e seus atravessamentos


históricos e sociais, foi possível relacionar essa população com as desigualdades
sociais e raciais. Nesse campo notamos como a construção de juventude -
enquanto alheia à participação social e sem considerar questões de classe
e raciais– pode levar a concebê-la como irresponsável e perigosa. Esses
discursos fundamentam formas coercitivas e punitivas de tratamento desse
grupo social e apoiam ações violentas que podem gerar exclusão social e a
subtração da vida dessa população (NEGREIROS et al., 2018).
Quando se adentra ao estudo dessas concepções relacionadas à
população pertencente às classes populares constata-se também o fato
da predominância racial ser negra. Com isso tem-se a presença tanto
de discursos segregacionistas e excludentes da classe popular – que é
considerada como a causadora da violência (ALMEIDA, et al., 2008) – quanto

236 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia no enfrentamento
das desigualdades raciais e sociais

ações de encarceramento, coercitivas e punitivas que são, em predominância,


enderençadas à população negra (MBEMBE, 2018a; 2018b). Essas reflexões,
quando transpostas ao acolhimento institucional, auxiliam a conjecturar
sobre como estão relacionadas com a longa permanência dessa juventude
nessas instituições, tendo como consequência a fragilização desses vínculos
e a falta de produção de autonomia desses jovens (MARTINS; MOTA, 2019).
Dessa forma, refletir sobre a atuação do psicólogo, enquanto profissional
que compõe a equipe técnica dessas instituições (BRASIL, 2009) e a necessidade
de uma ampliação do posicionamento político desta categoria, significa
pensar que essa juventude deve ser considerada e problematizada para além
desses espaços institucionais (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2017).
Por fim, as instituições de acolhimento em repúblicas, criadas com o intuito
de atender a essa população, necessitam construir um trabalho em conjunto
com os acolhidos, o que pode permitir, inclusive, auxiliar o acolhido a retomar
seus vínculos familiares e/ou outros laços que se inserem em sua trajetória
de vida (RIBEIRO, 2008; CARVALHO, 2015). Contudo, novas investigações no
campo se fazem necessárias, visto a lacuna de estudos sobre essa política, suas
possibilidades e entraves. Esse conhecimento é relevante em termos éticos e
políticos do fazer psicológico para que se possa escapar de uma perspectiva
de atuação individualizante que, por vezes, parece desconsiderar o contexto
social e de exclusão vivenciados por essas crianças, adolescentes e jovens que
vivenciam o acolhimento institucional no decorrer de sua vida.
No contexto atual de pandemia essa vulnerabilidade apresenta mais riscos
a essa população, visto a necessidade de diversas medidas para a efetivação
da Proteção Integral (BRASIL, 2020; CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2020a, 2020b), a impossibilidade de atendimento remoto no SUAS, bem
como a difusa oferta de equipamentos de proteção individual em decorrência
da municipalização dessa política (FVG,2020; FIOCRUZ,2020). Nesse cenário,
a maior aproximação da categoria profissional com a Assistência Social deve
produzir estudos sobre a juventude enquanto usuária do SUAS e a efetivação
das políticas nacionais, bem como o enfrentamento das desigualdades sociais
e raciais vividas por essa população Diante do exposto, o saber psicológico
deve considerar que o olhar individual não pode ser visto como única resposta
nesse cenário de desigualdade social sob o risco de simplificarmos a solução
que remete à questões mais amplas de âmbito social, racial e de políticas
públicas.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 237


Marco Aurélio Saraiva Carvalho, Laura Cristina Eiras Coelho Soares

Agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior- CAPES pela Bolsa de Mestrado concedida ao primeiro autor.

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(vinte e um) anos, no Município de Belo Horizonte, visando oferecer
atendimento a adolescentes egressos do Acolhimento Institucional, definido
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242 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes e acolhimento institucional em repúblicas: a Psicologia no enfrentamento
das desigualdades raciais e sociais

Sobre os autores

Marco Aurélio Saraiva Carvalho


Mestrando em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG e Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- CAPES.
E-mail: aureliusds@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9922384065687311

Laura Cristina Eiras Coelho Soares


Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG e do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da UFMG.
E-mail: laurasoarespsi@yahoo.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8820390638683747

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 243


14

O racismo e o genocídio
da juventude negra
no Brasil: perspectivas
necropolíticas
Racism and the genocide of black in
Brazil: perspectives necropolitics

Thales Augusto da Silva Ferreira


Fídias Gomes Siqueira
Orientador: Fídias Gomes Siqueira

244 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

Resumo

O presente artigo propõe discutir o problema da violência que acomete


adolescentes e jovens negros no Brasil, apontando aspectos relativos
aos dados da criminalidade articulada à violência e a homicídios,
bem como discutindo os impactos da segregação e do racismo como
determinantes de uma política de morte em curso na sociedade
brasileira.

Palavras-chave: Adolescência. Juventude. Segregação. Racismo.


Homicídios.

Abstract

This article proposes to discuss the problem of violence that affects


black adolescents and young people in Brazil, pointing out aspects
relating to crime data linked to violence and homicides, as well as
discussing the impacts of segregation and racism as determinants of
an ongoing death policy in Brazilian society.

Keywords: Adolescence. Youth. Segregation. Racism. Homicide.

Epígrafe

Trechos do verso de Onni


[...] Enxuga as lágrimas, vai
Não temos tempo pra essas goteiras,
Vem que eu te mostro o multiverso
Somos meras marionetes
Pra quem vê nossas lágrimas
e diz não ter tempo pra essas bobeiras, veja
[...]Favela é uma fábrica de hinos
Nosso drama, matéria prima
[...] Me resta ter destreza
Pra quando morrer deixar a luz acesa
Bem mais que resgate
É deixar a velha chama acesa
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 245
Thales Augusto da Silva Ferreira, Fídias Gomes Siqueira

Trecho do verso de Guizo


[...] E ainda há quem diga que é vitimismo
Quando pomos em pauta o racismo
Perderam o propósito do batismo
que cês tinham feito

Refrão – Angola (2x)


O olho também fala, quando fala dá pra ver
Não compare a ninguém, nem deixe comparar você
Se a razão conhece a vontade, quem escolhe? (Yeah)

Trecho dos versos de Sant


Hoje, as montanhas se movem (Yeah)
Cachoeiras quando cílios chovem
[...] Quando vim à vida, vi que “puxa vida”, vale a pena lidar
com o que existe aqui, pois só existe aqui
até quando esse aqui for um próximo lugar
[...] Cortes cicatrizam, registram suas dores
Também as tenho, isso não as faz menores
Coube certo. Frequência tectônica nessas nuances oceânicas
Em nossas crises econômicas, ouvindo vozes que intencionam
Humanos com forças astronômicas pelo seu puro alinhamento orgânico
Explicações além da metafísica, pensamentos que antecipam a lógica
Canalizando outro poema épico, fonte de luz que não dimensionamos
[...] Reconhecimento, cada vez mais livre e cada vez mais negro
com o mundo nos ombros cada vez mais leve

Introdução

Ao apresentarmos esses fragmentos da música Ponto de Força


(2020)17 em um trabalho que pretende discutir a criminalização e o
genocídio da juventude negra brasileira, consideramos que esses
versos evidenciam a voz de muitos jovens, negros, pobres e residentes

17 Deixa-se aqui os agradecimentos aos envolvidos e à toda equipe de produção audiovisual; a música e seu
videoclipe completo podem ser encontrados neste link: https://www.youtube.com/watch?v=WN-FgwTkqhY

246 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

em habitações marginalizadas; mas, como a possibilidade de invenção


permeia a vida desses jovens, consideramos importante iniciar a
discussão apontando as relações de exclusão, segregação, racismo e
genocídio presentes em nossa sociedade. Entretanto, optamos por
apresentar reações e respostas daqueles que encontraram formas de
resistir ao violento processo de criminalização e extermínio de jovens
negros que se acentuou nos últimos anos em nossa sociedade.
Ao trazermos a discussão em torno da criminalização e extermínio
de jovens negros, favelados ou periféricos, precisamos ressaltar que
nos últimos anos a juventude negra tem aparecido nas crescentes
estatísticas de criminalidade violenta. Entretanto, embora essas
mortes se refiram a uma grande maioria de adolescentes e jovens que
se encontravam em situação de envolvimento com a criminalidade
violenta, precisamos enfatizar que pesa indistintamente sobre a
juventude negra processos de criminalização, segregação e racismo.
Desse modo, os versos acima não são apenas direcionados a jovens
negros favelados, mas de modo geral permitem abrir a discussão
sobre o problema da criminalização, do extermínio e do genocídio da
juventude negra brasileira. Nos versos de Onni (2020) encontramos
o retrato de um discurso e de uma perspectiva que incide sobre
essa parcela da população. Além do enfrentamento de condições
de vida resultantes de graves desigualdades sociais, econômicas e
educacionais, também enfrentam sucessivos e complexos processos
de violência que colocam a morte sempre em seu horizonte.
A essa situação de violência, precisamos destacar a evidência
acentuada do racismo no Brasil. O contexto da criminalização e do
extermínio da juventude negra não pode ser pensado fora do contexto
do racismo brasileiro, onde a cor da pele se torna um fator de risco
a mais para os jovens. Pode-se claramente perceber nas estatísticas
que, quando comparamos os dados, são os jovens negros aqueles
que mais são excluídos, discriminados, violentados, criminalizados,
encarcerados e mortos.
Assim, além das estatísticas que confirmam o constante aumento
das mortes de jovens negros no Brasil, traremos as contribuições
psicanalíticas que discutem as travessias das adolescências e juventudes

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 247


Thales Augusto da Silva Ferreira, Fídias Gomes Siqueira

permeadas por esse contexto de violência e criminalização, bem


como as contribuições de autores como Foucault (1975-1976/2010),
Agamben (2004;2010) e Mbembe (2018) que possibilitam discutir o
encadeamento de uma lógica estrutural de segregação, culminando na
constituição de populações matáveis e elimináveis.
Nesse sentido, ao abordarmos o problema da criminalização e do
genocídio da juventude negra no Brasil, enfatizamos as condições
de vida de adolescentes e jovens, mas concordando com Onni
(2020) quanto a não fortalecermos o preconceito que já perdura
sobre a população e a juventude negra periférica e favelada de que
se encontram em posição de vitimismo. Ao contrário, escolhemos
apresentar as respostas encontradas nesses versos como reação ao
discurso disruptivo do Estado que é produtor de violência, segregação
e participa da gestão dessas mortes como se elas fossem aleatórias e
escapassem ao controle estatal.
Quando o Estado produz violência e a combate como algo externo
e sem relação com a desigualdade que o aparelho estatal reproduz,
torna-se fundamental eleger um inimigo a combater. O combate desse
inimigo é observado na constituição do mal a ser eliminado. Isso é
o que podemos ler nas estatísticas de criminalidade violenta que
apresentaremos a seguir, juntamente com as contribuições dos autores
citados que fazem avançar a discussão em relação a esse mecanismo
silencioso e operante que elimina parte específica da população.
Entretanto, os versos de Ponto de Força (2020) apontam a leitura
e o movimento que vem de regiões periféricas e da juventude,
elaborando saídas diante de um horizonte mortífero. Se trataremos
de discutir a criminalização e o genocídio da juventude negra, também
pretendemos mostrar que isso não imobiliza e nem impede que se
inventem saídas diante da segregação, do racismo e da morte.
Dados da criminalização e dos homicídios da juventude negra no
Brasil
Ao iniciarmos esse trabalho apresentando os dados da
criminalidade violenta e de homicídios no Brasil (ATLAS DA VIOLÊNCIA,
2019), ressaltamos a evidência de um problema grave que permeia a
vida de uma parcela da população: os adolescentes e jovens negros.
Mas também precisamos destacar que essa mesma população faz

248 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

parte de um contingente populacional que, sob aspectos mais amplos,


confirmam a existência de uma lógica e de um problema mais grave: a
indicação de que uma parcela da população é considerada matável e/
ou eliminável.
Assim como os versos de Ponto de Força (2020) expressam
um contexto de preconceitos e racismos contra a favela e seus
moradores, consideramos que os dados de criminalidade violenta
confirmam a existência de mecanismos racistas que são determinados
e determinantes no processo de segregação, criminalização e morte
orientadas pelo fator distintivo da cor da pele.
Entretanto, dentro dessa parcela da população de adolescentes
e jovens negros, encontramos nesses dados aqueles que, por uma
acentuada condição de exclusão, segregação e racismo, somadas aos
contextos de envolvimento com a criminalidade e com o tráfico de
drogas, aparecem nas estatísticas de criminalidade violenta e morte.
Mesmo assim, os demais jovens, ainda que não tenham envolvimento
com a criminalidade, não escapam dos efeitos do racismo e dos riscos
de se depararem com situações de criminalização. Ressaltando que
a criminalização é pensada aqui como um processo que incide sobre
determinados grupos ou populações a fim de justificar sua exclusão,
segregação e eliminação, não necessitando de envolvimento em
situações criminais.
Nesse contexto, Malaguti (2019)18 destaca a hipocrisia da
preocupação e a necessidade de segurança pública, uma vez que a
violência desvelada é direcionada, em sua maioria, a determinada
parcela da população brasileira. Dessa forma, a autora confirma em
sua exposição as concepções sobre a tecnicidade de um contexto
de genocídio no país, uma vez que se considera a forma e o motivo
para matar um sujeito muito maior do que o próprio ato de matar. Da
mesma forma, consideramos que os versos de Ponto de Força (2020)

18 Evento ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O 4º Colóquio Internacional - Direito e
Psicanálise: Instituições e Poder, realizado no dia 22 de agosto de 2019, trouxe diversas perspectivas relacionando
a teoria psicanalítica lacaniana com os debates acerca da criminalidade e da criminalização da população bra-
sileira; enfoca-se, particularmente, a discussão tratada pela Dra. Vera Malaguti (UERJ - Universidade do Estado
do Rio de Janeiro) sobre Crime e Guerra no Brasil Contemporâneo.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 249


Thales Augusto da Silva Ferreira, Fídias Gomes Siqueira

refletem esse desprezo do Estado e evidenciam a conciliação entre


o que pensa uma parte da população que se identifica a esse ideal
nacionalista, colonizador e racista, tal como no verso em que Onni
(2020) nos afirma “Pra quem vê nossas lágrimas/ e diz não ter tempo
pra essas bobeiras”, e assim se constata a naturalização dessa violência
dirigida especialmente aos jovens negros.
Cabe destacar que a situação de criminalização, violência e
homicídios experimentados por adolescentes e jovens negros brasileiros
apontam um duplo viés: além de experimentarem a travessia de duas
etapas cruciais na vida, essa travessia é excepcionalmente marcada
pela violência. Desse modo, a análise de Waiselfisz (2012) aponta, a
partir dos dados do Mapa da Violência, a aproximação da juventude
com a violência.
Siqueira (2016), a partir da constatação acima, apresenta em seu
estudo a confirmação de que a adolescência era caracterizada como
transição e a juventude relacionada à transformação. Entretanto, essas
duas etapas na vida de um jovem negro são acrescidas de violência
subjetiva, além de violência letal e homicida que culmina em elevadas
taxas de mortalidade juvenil. Assim, adolescência e juventude se
tornam termos associados diretamente à violência no Brasil. Desse
modo, o Atlas da Violência demonstra a distribuição da violência
e dos homicídios. Tal como propõe Soares (2004): "como tudo no
Brasil, também a vitimização letal se distribui de forma desigual: são,
sobretudo os jovens pobres e negros, do sexo masculino entre 15 e 24
anos, que têm pago com a vida o preço de nossa insensatez coletiva".
Da mesma forma, para Waiselfisz (2012), são jovens negros, pobres
e moradores de periferia que constituem a parcela da população mais
atingida pela violência. Nesse caso, os estudos apontam que se esses
dados eram observados nas principais capitais da região Sudeste do
país, na atualidade observa-se a migração dos homicídios para as
principais capitais das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Além disso,
o Atlas da Violência (2019) chama atenção para a morte em excesso,
extrema, letal, evidente nas estatísticas e especificamente relacionada
à população jovem, do sexo masculino, negros, moradores de favelas
e periferias, com baixos níveis de escolaridade, muitas vezes não
inseridos no mercado de trabalho e postos justamente em cenários

250 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

de criminalidade violenta, especificamente o tráfico de drogas. O Atlas


da Violência (2019) aponta para o ano de 2017 a ocorrência de 65.602
homicídios no Brasil. Considerado o maior nível histórico de letalidade
violenta intencional, espalhada pelas unidades federativas, migrando
em algumas regiões, onde o aumento dos homicídios estaria ligado às
guerras entre facções do narcotráfico.
Os dados ainda permitem considerar que essa violência contra os
negros é expressão da desigualdade racial no Brasil, pois verifica-se
que em 2017 registrou-se que 75,5% das vítimas dos homicídios foram
indivíduos negros (somados pardos e pretos - IBGE19). Assim, a taxa
de homicídios foi de 43,1 mortes por 100 mil habitantes. Portanto,
é preciso considerar essa desigualdade da letalidade racial no Brasil,
uma vez que entre 2007 e 2017 houve um aumento de 33,1% na taxa
entre negros enquanto a de não negros cresceu 3,3%. Isso permite
afirmar que ser negro é por si mesmo um risco no Brasil.
Além disso, é preciso destacar a análise realizada a partir da
distinção por sexo/cor ou raça, onde as diferenças entre homicídios de
homens e mulheres negros e não negros também evidenciam os níveis
de letalidade para a população negra. Quando se compara a taxa de
homicídios de mulheres de 3,9 por 100 mil habitantes (2007) passando
para 4,7 por 100 mil em 2017, verifica-se também que morrem mais
mulheres negras em comparação a não negras.
Além do problema diretamente relacionado ao adolescente e jovem
negro brasileiro, encontramos na proposição de Waiselfisz (2012) a
constatação de que essa violência letal e extrema representa também
um modo característico de nossas relações sociais. Para o autor, além
de situar essa violência na faixa etária de 15 a 24 anos, os números
colocam o Brasil em situação de guerra, onde a violência homicida
aproxima a juventude intimamente à violência.
Dessa forma, o adolescente e o jovem negro experimentam
a fragilidade das políticas públicas que possam minimizar essa
discrepância, bem como percebe-se diante da ausência do Estado
que o discurso da meritocracia é distinto da proposição de invenções

19IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 251


Thales Augusto da Silva Ferreira, Fídias Gomes Siqueira

individuais ou coletivas que respondem às medidas segregadoras e


excludentes. Diante da dificuldade de incluir a pauta da juventude
na agenda política, na atualidade experimenta-se um esfacelamento
das políticas para adolescentes e jovens. Tal como afirma Siqueira
(2016), o Estado torna-se cada vez menos responsável pela garantia
da cidadania e dos direitos desses adolescentes e jovens, uma vez que
assistimos cada vez mais a retirada dessas garantias e desses direitos,
o que combina com a proposição de um Estado que se omite e ao
mesmo tempo executa e administra a gestão dessas mortes.
Assim, tais condições de segregação caminham no mesmo sentido
apontado por Soares (2004) quanto à invisibilidade e à indiferença
enquanto formas eficientes de eliminar alguém. Para o autor, a eficácia
dessa ação se dá na projeção de estigmas e preconceitos sobre uma
população ou indivíduo, ampliando as condições de risco e morte
e, no caso da juventude negra brasileira, a morte é antecipada pela
estigmatização que recai sobre sua vida com a retirada de diversas
possibilidades e como um aumento das barreiras que levam à
invisibilidade.
Decerto, encontramos um entrecruzamento de situações: o Estado
se retira, a sociedade estigmatiza, os adolescentes e jovens se veem
desamparados. Nesse sentido, a expansão do narcotráfico se torna
uma via de acesso a alguma visibilidade, a alguma condição de
existência. E se o jovem negro é o que mais morre no Brasil, o jovem
negro que vivem em regiões periféricas está mais suscetível à violência,
segregação, discriminação racial e de cor.
Para Siqueira (2016), há a prática de uma violência, intrínseca ao
Estado segregatório, direcionada à juventude e que orienta discursos
discriminatórios quanto a ela. Entretanto, quando se apresentam
dados e se fala em violência e taxas de homicídios, jamais se menciona
a violência produzida contra essa população. O efeito da criminalização
de determinada parcela da população faz com que pese sobre a
juventude apenas a ideia de ser uma parcela produtora de violência.
Esse é o grande desafio a ser compreendido também, pois não se trata
apenas de investigar a situação dos adolescentes e jovens envolvidos
em situações de criminalidade violenta e vitimização por homicídios,
mas compreender as motivações que associam a adolescência e

252 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

juventude em geral à violência, uma vez que enquanto categoria social,


a primeira sempre esteve associada a transição, enquanto a segunda
à mudança e à transformação: "[...] isso se verifica não somente em
relação ao lugar ocupado pelos adolescentes e jovens na sociedade,
mas também a uma inexistência de lugar para os mesmos." (SIQUEIRA,
2016, p. 16)
Essa modificação no mundo contemporâneo se acentua quando
a perspectiva é a vida da população jovem, sobretudo a juventude
negra; por isso não pode ser pensada fora da lógica da segregação e
da herança colonial e racista de nossa história. Nesse sentido, Siqueira
(2016) considera que a situação de adolescentes e jovens negros
brasileiros, cujos contextos de exclusão e segregação não se restringem
a aspectos socioeconômicos:

“[...] mas é preciso admitir que as barreiras da exclusão


exigem um exercício a mais na travessia. Se, por um lado, o
mercado opera pela lógica do “todos iguais”, sabe-se que tal
igualdade não implica a partilha desta cota de gozo, e não
sendo compartilhável, tal lógica encobre a exclusão de uma
considerável parcela da juventude.” (SIQUEIRA, 2016. p. 132)

Além desses aspectos, consideramos que a travessia da adolescência


e da juventude constituem momentos que remetem ao sujeito
situações de desamparo. Esse desamparo tende a ser mais realçado no
contexto em que o Estado parece mais rarefeito no tocante às garantias
de direitos e mais incisivo no tocante às políticas de criminalização,
encarceramento e morte. Considerando que a travessia da adolescência
e da juventude é um momento que coloca o sujeito confrontado com
o desamparo e com o traumático da existência, também apontamos a
dificuldade para todos os jovens nesse momento de elaboração de si
e do mundo. Entretanto, diante de contextos segregatórios e racistas
fortalecidos pelas políticas de Estado, a elaboração dessa etapa da vida
é dificultada pela violência mais real da morte.
O que se percebe nesse contexto vai de encontro ao que Alberti
(2010) propõe quanto à modificação do lugar da autoridade paterna
no século XX, destacando como o discurso da ciência passou a oferecer
referências e a capacidade educativa dos pais se tornou passível
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 253
Thales Augusto da Silva Ferreira, Fídias Gomes Siqueira

desse discurso. Como efeito, segundo a autora, os pais duvidam da


capacidade de barrar a submissão e o assujeitamento às imposições
desse Outro feroz.
Dessa forma, o que consideramos importante ressaltar é que o
contexto do desamparo e da segregação deixam o adolescente e o
jovem mais suscetíveis à incidência da lógica do mercado neoliberal. Ao
contrário de encontrarem nas figuras de referência um meio para que
essa travessia seja menos danosa, os efeitos da exclusão, da segregação
e do racismo aumentam as condições de risco e muitas vezes outra
figura vem preencher esse lugar totalizante: o narcotráfico. É aí que
percebemos um complicado esquema que engendra a maquinaria de
morte.
Assim, essa lógica se apresenta como uma condição naturalizada da
vida. Entretanto, ao sustentar as perspectivas da exclusão, segregação
e do racismo na articulação com os dados da mortalidade, precisamos
contextualizá-las à atual discussão sobre a necropolítica (Mbembe,
2018)20. Antes, porém, de finalizarmos essa sessão, precisamos
destacar a concepção discursiva que fortalece o estigma sobre a
adolescência e, na contramão dos discursos segregatórios, concordar
com Insua (2012):

“[...] o trabalho dos psicanalistas com adolescentes não deve


se restringir aos transtornos, mas ocupar-se da leitura das
manifestações desse tempo vital como expressão do sujeito.
Nomear como transtorno um modo de se haver com o real é uma
concepção moral. Para a autora, nosso tempo de efetividade,
utilidade e exacerbado pragmatismo, é também um tempo
paradoxal e extremamente moral quanto às manifestações
psíquicas dos jovens.” (INSUA, 2012. p. 121)

Se a adolescência é percebida como transtorno e a autora

20 Deixa-se aqui menção e agradecimento ao doutor, mestre e professor Fábio Roberto Rodrigues Belo (UFMG),
assim como ao restante da equipe orientada pelo mesmo nas reuniões do grupo Psicanálise e Política (Inicia-
ção Científica e Pós-Graduação); ademais, segue como sugestão complementar à discussão sua playlist do
Youtube do Grupo de estudos e leitura: Crítica da razão negra, do Achille Mbembe. https://www.fabiobelo.
com.br/?p=1193.

254 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

acima propõe um desvio dessa vertente discursiva no trabalho do


psicanalista, propomos considerar que a violência letal não pode ser
considerada um transtorno típico da adolescência e juventude, mas
como condições que atravessam a vida de alguns adolescentes a partir
de uma lógica social que produz e consente com a eliminação de uma
parcela da população, considerada eliminável.
O enraizamento de uma lógica estrutural de segregação e morte
no Brasil
É interessante conceber toda a discussão proposta anteriormente
neste artigo conforme alguns acréscimos advindos das colocações
de Kehl (2008), em que se denota o jovem brasileiro frente a “uma
sociedade que assiste sem se chocar, sem se mobilizar, ao extermínio
dos pobres – bandidos ou não – [...] autorizando o uso da violência
como modo de resolução de conflitos, à margem da lei” (trechos da
p. 204). Para além dessa autorização velada da violência, o sistema
governamental brasileiro utiliza-se dos recursos da mesma e de atitudes
que levam à morte e ao extermínio dessa parcela populacional. Fazer
frente a essas questões, exigindo um reposicionamento do governo,
transcende à necessidade de reconhecer essa própria violência
imposta e administrada pelo Estado.
Desse modo, em nossa sociedade toda essa discussão deve
considerar os resquícios da herança colonial e racista, pois estes efeitos
são combinados e encadeados à discussão sobre o poder disciplinar que
geria a vida tal como propõe Foucault (1975-1976/2010), bem como a
biopolítica proposta por Agamben (2010) e na atualidade se dirige a
uma gestão da morte pelo Estado, tal como propõe Mbembe (2018).
A combinação desses elementos encadeados permite a dominação, a
discriminação, a morte e a eliminação de grupos, e em especial, no
caso brasileiro, dos jovens negros de regiões periféricas cuja existência
muitas vezes só se evidencia nas estatísticas de criminalidade.
Inicialmente, trataremos da noção de biopoder foucaultiana
que parece comportar parte da explicação do funcionamento desse
discurso segregatório contemporâneo: o Estado funciona produzindo
divisões entre quem deve viver e quem deve morrer. Nessa divisão,
o poder se define em relação a um campo biológico, do qual toma
controle e no qual retroativamente se inscreve. Em suma, trata-se de

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 255


Thales Augusto da Silva Ferreira, Fídias Gomes Siqueira

uma distribuição da espécie em grupos e divisão da população em


subgrupos. Isso define o racismo em Foucault (1975-1976/2010): a
discriminação racial como um campo do pensamento que permite o
exercício do poder.
Seguindo essa proposição foucaultiana sobre os mecanismos do
biopoder na definição do funcionamento do Estado, sabe-se que “a
função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possível
a função assassina do Estado" (Foucault, 1975-1976/2010, p. 18). Para
Agamben (2010), a noção de biopoder é insuficiente para dar conta
das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte
e à potencialidade de matar executada pelo Estado.
Percebe-se que no discurso da modernidade se articulam razão e
teorias normativas; idealmente, a política e a economia são definidas
duplamente por [I] um projeto de autonomia e por [II] um acordo em
coletividade mediante comunicação e reconhecimento. Isto deveria
diferenciar as políticas do Estado daquelas adotadas em conflitos e
guerras; a preocupação reside justamente nesse ponto, conforme o
autor:

“Em particular, o desenvolvimento e o triunfo do capitalismo


não teriam sido possíveis, nesta perspectiva, sem o controle
disciplinar efetuado pelo novo biopoder, que criou para si, por
assim dizer, através de uma série de tecnologias apropriadas, os
“corpos dóceis" de que necessitava.” (AGAMBEN, 2010. p. 11)

A partir da contribuição de Agamben (2004) sobre a função do


estado de exceção, consideramos que seu funcionamento é crucial
quanto à segregação e ao racismo, pois os corpos são interpretados
sem seu estatuto político, tornando-se reduzidos a seu aspecto
biológico. Desse modo, trata-se de um contexto em que a biopolítica
favorece um sistema de experimentação em que há uma decisão em
fazer viver para deixar morrer. Esse será o aspecto que mudará com as
proposições de Mbembe (2018) e que verificamos nos dados do Atlas
da Violência (2019): a expressão dessa violência letal que resulta da
segregação e do racismo no Brasil aponta uma passagem para “formas
únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são
submetidas a condições que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-

256 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

vivos’” (MBEMBE, 2018, p. 17).


A partir disso, verificaremos como é importante a discussão de
Mbembe (2018) ao evidenciar no Estado contemporâneo uma prática
violenta e segregatória como forma original do direito tendo na exceção
o pilar da soberania. Assim, "a soberania é a capacidade de definir
quem importa e quem não importa, quem é 'descartável' e quem não
é". (p. 41). O que se verifica é que no contexto da segregação e do
racismo, as políticas de vigilância, controle e reclusão proporcionam
uma condição em que populações são isoladas, tal como propõe
Mbembe (2018) sobre a característica do mundo contemporâneo que
produz enclaves periféricos e comunidades passíveis de eliminação.
A necropolítica (Mbembe, 2018), como forma contemporânea de
subjugar a vida ao poder da morte, classificar pessoas e extrair
recursos, produz um imaginário cultural ligado à instituição de direitos
diferentes, categorias diferentes e diferentes fins no mesmo espaço
(conforme o exercício da soberania).

Considerações finais

É nessa medida em que o jovem negro periférico é afetado pelo


discurso segregatório do Estado e da sociedade brasileira. Os dados
de criminalidade e homicídios são utilizados como indicadores de
criminalização, mais do que de uma análise do verdadeiro problema:
a eliminação e o genocídio de uma parcela da nossa população. Tais
condições são reforçadas pela perspectiva da discriminação e do
preconceito a partir da cor da pele.
Assim, a delimitação de uma determinada população por aspectos
como idade, cor da pele, condição social e econômica é o método
que permite isolar, excluir, segregar e eliminar uma dada população
ou um dado conjunto de indivíduos considerado como matável. É
nessa medida que o refrão do artista Angola (2020) relaciona-se com a
temática do enviesamento da escolha do jovem (o negro, em especial)
no Brasil. Elucida-se, portanto, a continuidade da música que permeia
a temática central deste artigo, no que diz respeito ao refrão cantado
pelo artista Angola, que remete à estigmatização no Brasil, que se
reflete na forma do olhar para o sujeito estigmatizado, segundo Onni

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 257


Thales Augusto da Silva Ferreira, Fídias Gomes Siqueira

(2020): “Não compare a ninguém, nem deixe comparar você/ Se a


razão conhece a vontade, quem escolhe?”.
Frente a tais pontuações, assim como às colocações de Cerruti
(2018) em sua referência aos Racionais MC'S, é possível conceber
as produções artísticas do rap não somente como uma reação à
segregação, mas também como uma resposta gerada pelo próprio
sujeito frente ao desamparo causado pelo discurso colonial brasileiro.
O rap pode desempenhar “a função de articular o jovem ao laço social
via transmissão: um testemunho que se apresenta e procura dar voz
ao inaudito, criando um compromisso entre a memória do sujeito e
aquela a ser construída no espaço público" (CERRUTI, 2018, p. 206).
Desse modo, ao situarmos os problemas acima, consideramos
a importância de mais uma reafirmação de que a violência letal e a
criminalidade não são propriedades ou características da adolescência
e juventude (SIQUEIRA, 2016). É preciso ressaltar, antes de tudo, que
existem processos segregatórios em curso na nossa sociedade que de
forma mais direta tocam nas condições da adolescência e da juventude,
combinando fatores que se articulam a uma política de eliminação de
determinados grupos isolados. Assim, há uma ação do Estado que
não aparece claramente na produção dessa violência e na gestão
dessas mortes. Muitas vezes, pesa ainda mais sobre essa geração
de adolescentes e jovens negros a criminalização e os estigmas que
lhes tornam invisíveis no contexto social, só fazendo com que existam
enquanto número nas estatísticas de violência, criminalidade e morte.
Entretanto, torna-se fundamental compreender que o Estado participa
da gestão da vida e da morte de uma parcela da população; e, se o
racismo na perspectiva foucaultiana implica a morte de uns para que
outros possam viver, é na perspectiva da necropolítica proposta por
Mbembe (2018) que destaca-se o Estado como se fosse alheio a essas
mortes, quando na verdade participa da sua gestão.

Referências

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2004.

258 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O racismo e o genocídio da juventude negra no Brasil: perspectivas necropolíticas

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violência homicida no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2012; Brasília,
DF: Ministério da Justiça, 2012.

Sobre os autores

Thales Augusto da Silva Ferreira


Estudante de graduação em Psicologia na UFMG, voluntário de Iniciação Científica
no Núcleo PSILACS e voluntário de Iniciação Científica no grupo Psicanálise e Política.
E-mail: tasfacademico1998@gmail.com

Fídias Gomes Siqueira


Psicanalista. Doutorando em Psicologia (Teoria Psicanalítica), Mestre em Psicologia
(Teoria Psicanalítica) pela FAFICH/UFMG, Especialista em Segurança Pública e Justiça
Criminal pela EG/FJP, Graduação em Psicologia pela PUC Minas.
E-mail: fidias.siqueira@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6593784384852680

Orientador: Fídias Gomes Siqueira

260 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


15

A experiência de estágio
como espaço de apreensão
dos territórios e das
múltiplas realidades
sociais de jovens da
regional Barreiro
The internship experience as a space for
apprehending the territories and the
multiple social realities of young people
from the Barreiro region

Cérise Alvarenga
Luiz Felipe Viana Cardoso

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 261


Cérise Alvarenga, Luiz Felipe Viana Cardoso

Resumo

O presente artigo deriva da experiencia de estágio curricular


desenvolvido por estagiárias/os do curso de Psicologia do Centro
Universitário UNA, no contexto de intervenções psicossociais com
jovens de escolas públicas. O objetivo é compartilhar características
desta prática levando, também, ao leitor uma espécie de percurso
reflexivo advindo do trânsito dos estagiários nos espaços escolares,
assim como no território de entorno. O estágio foi realizado em duas
escolas públicas situadas em diferentes bairros da regional Barreiro. A
metodologia foi composta por observações, entrevistas e realização
de Rodas de Conversa. Como resultado foi possível conhecer e analisar
a dinâmica das relações sociais dos jovens com a comunidade escolar
e entorno, possibilitando apreender, de maneira crítica e reflexiva,
a pluralidade das condições sociais e históricas atravessadas pelos
processos de inclusão-exclusão e o acesso aos direitos em diferentes
territórios.

Palavras-chave: jovens, processos socioeducacionais, território,


escola, intervenção psicossocial.

Abstract

This article derives from the curricular internship experience developed


by interns from the Psychology course at Centro Universitário UNA,
in the context of psychosocial interventions with young people from
public schools. The objective is to share characteristics of this practice,
too, with the reader, a kind of reflective path arising from the trainees'
transit through school spaces, as well as in the surrounding territory.
The internship was carried out in two public schools located in different
neighborhoods of the Barreiro region. The methodology was founded
by, founded and carried out Rodas de Conversation. As a result, it was
possible to know and analyze the dynamics of the social relations of
young people with the school community and surroundings, making it
possible to apprehend, in a critical and reflective way, the plurality of
social and historical conditions crossed by the processes of inclusion-

262 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios e das múltiplas
realidades sociais de jovens da regional Barreiro

exclusion and access to rights in different territories.

Keywords: youth, socio-educational processes, territory, school,


psychosocial intervention.

Introdução

O presente artigo busca refletir sobre as múltiplas realidades de ser


jovem estudante do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas
em diferentes territórios. Tais reflexões emergiram das experiências
vivenciadas por estagiárias/os do curso de Psicologia do Centro
Universitário UNA, durante o Estágio Básico Projetos Socioeducacionais.
A proposta deste estágio é de oferecer ao estudante de Psicologia a
experiência de formação na construção de intervenções psicossociais
e socioeducacionais a respeito das demandas de um grupo no contexto
escolar. Neste texto apresentaremos reflexões tecidas a partir dos
percursos e resultados construídos nesse processo e das intervenções
realizadas pelas/os acadêmicas/os de Psicologia, orientadas/os por
nós professoras/es-supervisoras/es.
Para isso, partirmos das observações e intervenções realizadas
junto aos jovens de duas escolas inseridas em bairros distintos da
regional Barreiro, na cidade de Belo Horizonte. Uma das escolas
está localizada na região do Barreiro de Baixo, enquanto a outra está
inserida em uma região considerada periférica do bairro, a Vila Cemig.
Compreendemos que reconhecer estas diferenças, seus contextos
socioeconômicos e culturais diversos, aponta para a necessidade de
lançarmos o olhar para os marcadores sociais presentes na constituição
destas juventudes. Nos referimos ao termo juventudes e não apenas
juventude, por justamente entender que estas são plurais e diversas
como defende Dayrell (2007).
Ao propormos refletir sobre a relação entre Psicologia e Juventudes,
tomaremos como referencial teórico a Psicologia Social Crítica, a
partir de conceitualizações sobre as noções de território, das políticas
públicas, de diversidade, dos processos de subjetivação e dos Direitos
Humanos, reconhecendo também a necessidade de se olhar para

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 263


Cérise Alvarenga, Luiz Felipe Viana Cardoso

as questões da interseccionalidade que se fazem presentes nesse


universo.
Nosso objetivo é compreender como a Psicologia pode contribuir
para se pensar as questões das Juventudes, entendendo estas como
plurais e diversas. Logo, ao propor intervenções psicossociais para este
público é preciso considerar todas as questões engendradas nesse
contexto, em um caminho reflexivo que nos permita compreender
de quais juventudes buscamos falar. Para isso, faremos uma breve
conceitualização sobre a construção social da categoria juventude e do
jovem como sujeito de direitos, sobre os aspectos multiculturais e as
contribuições dos processos socioeducacionais construídos na relação
entre estagiárias/os de Psicologia e jovens estudantes de escolas
públicas como metodologia de intervenção para o empoderamento
desses jovens como atores na transformação das realidades e dos
contextos sociais.

Juventude(s): a construção social do jovem como sujeito de


direitos

A constituição da categoria juventude e as representações sociais


sobre o que é ser jovem, derivam de um processo histórico, social e
cultural no qual discursos e práticas foram e estão sendo construídas
e direcionadas aos jovens. É comum caracterizarmos a juventude
como uma fase de transição, um momento de preparação para a vida
adulta. Essa ideia da juventude como um vir-a-ser, fundamentada na
premissa de que o jovem não é maduro o suficiente para decidir sobre
seu destino, nem responsável para sustentar suas decisões, acaba
por determinar representações, práticas sociais e políticas públicas
direcionadas a esse público.
Dayrell (2003, p. 41), ao pensar o jovem como sujeito, atenta para
o fato de que a ideia da juventude em sua condição de transitoriedade
e dos jovens como um vir-a-ser que tem “... no futuro, na passagem
para a vida adulta, o sentido das suas ações no presente”, está em uma
série de imagens que interferem na nossa maneira de compreendê-
los. Como resultado, há uma tendência em negar o que ele vive no
tempo presente, desconsiderando as suas necessidades.

264 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios e das múltiplas
realidades sociais de jovens da regional Barreiro

Na perspectiva de compreender as concepções de diferentes


épocas sobre o jovem brasileiro, Gonzalez e Guareschi (2014) detectam
algumas concepções que foram constituídas e predominaram nas
últimas décadas que denotam modelos e expectativas e produzem
formas de ser e agir, a partir de interesses específicos no momento
histórico, cultural e social vigente.
Na década de 1960, o jovem era entendido como “o futuro do
amanhã”, sendo depositário dos projetos do “desenvolvimento e
progresso”. Após os episódios de 1968, a imagem predominante passou
a ser do revolucionário, militante, relacionada à noção de contracultura
e vanguarda, em uma perspectiva de contestação à ordem e recusa a
toda prática utilitária e autoritária. Na década de 1980, o jovem deixa
de ser o futuro do amanhã para ser o problema de hoje, discurso
que seria efeito da crise urbana do trabalho, além de associá-lo ao
movimento das “Diretas já” como se todos estivessem mobilizados
para as questões políticas e sociais da época. Em muitos discursos
políticos e acadêmicos, enfatiza-se a dimensão da transgressão, dos
excessos, dos conflitos e das explosões, situando a juventude como
foco de germinação de problemas sociais, de contestação da ordem
vigente e dos padrões familiares e culturais herdados. Na década
de 1990, alguns estudos identificaram a associação entre jovens e
violência, legitimados por instituições como a Organização Nações
Unidas (ONU) e a Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO), que passaram a ocupar-se em pensar as
formas de sociabilidade transgressora ou a vulnerabilidade do jovem
às múltiplas formas de violências. Para Gonzalez e Guareschi (2014), o
discurso de regulação social é bastante claro ao dizer que as pesquisas
buscam contribuir para a modelagem de políticas públicas para a
juventude, enfatizando a participação do jovem como produtor e
consumidor cultural. O jovem em situação de pobreza é o principal alvo
desses discursos que almejam a essencialização da condição juvenil.
Essas autoras apontam que o jovem foi, nesse processo histórico, se
constituindo foco da atenção e de atuação das instituições públicas e
privadas, sendo possível identificar que diferentes segmentos sociais,
como a escola, a academia, as redes institucionais, os legisladores,
os meios de comunicação e a opinião pública, se ocupam em pensar

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 265


Cérise Alvarenga, Luiz Felipe Viana Cardoso

condições sociais, econômicas e culturais e os processos de inclusão e


exclusão vivenciados pelos jovens brasileiros.
À medida que os discursos sobre a juventude foram se legitimando,
validaram-se também práticas sociais, inclusive as da Psicologia, na
prescrição legitimada de intervenções culminando na “produção”
desses sujeitos. Gonzalez e Guareschi (2014) alertam para a rígida
cronologização do curso da vida individual que tanto determina
e é determinada por um pensamento desenvolvimentista, o qual
estabelece características para cada etapa da vida. Essas autoras trazem
uma perspectiva crítica apontando a produção de uma juventude de
transição a ser controlada por meio de instituições preocupadas em
proteger e diagnosticar os indivíduos considerados não maduros e
portadores de fragilidades, concepção que contribui para a vigilância
e a regulação social desses indivíduos. Nesse sentido, as autoras
favorecem uma postura atenta aos profissionais da Psicologia, no
sentido de indagar as suas práticas e conhecimentos derivados delas,
questionando se elas operam no sentido de agenciar e disciplinarizar
os corpos jovens.
Dayrell et al. (2011), ao identificarem a juventude como uma
categoria plural e dinâmica, argumentam que talvez seja mais
pertinente pensar não em uma única juventude, mas, sim, em
jovens, como sujeitos que a experimentam e a sentem segundo
determinado contexto sociocultural no qual se inserem. Uma das
críticas apresentadas por esses autores é a constatação de que a
categoria juventude não se reduz a uma faixa etária, mas é construída
em contextos históricos, sociais e culturais distintos e, portanto, é
marcada pela diversidade nas condições sociais (origem de classe, por
exemplo), culturais (etnias, identidades religiosas, valores etc.), de
gêneros e até mesmo geográficas.
Conforme a Emenda nº 65, da Constituição Federal de 1988, é
considerado jovem o sujeito com idade entre 15 e 29 anos (BRASIL,
1988)21. A inserção da categoria juventude na constituição Federal

21 Essa Emenda alterou a denominação do Capítulo VII do Título VIII, modificando seu art. 227, para cuidar dos
interesses da juventude, entrando em vigor em 13 de julho de 2010.

266 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios e das múltiplas
realidades sociais de jovens da regional Barreiro

(1988), no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1990) e,


posteriormente, no Estatuto do Jovem (2011), resulta de um percurso
histórico no qual as diferentes condições de existência destes cidadãos
foram gradativamente visibilizadas, desvelando diferentes contextos,
necessidades e erigindo outra forma de entendimento: o jovem
enquanto sujeito de direitos. Entretanto, sabemos também que,
mesmo reconhecidos seus direitos, eles “sofrem com a insuficiência de
políticas públicas que garantam sua cidadania” (DAYRELL; CARRANO,
2014, p. 101). Tendo em vista a pluralidade da juventude brasileira
e a atenção que essa vem conquistando em estudos acadêmicos,
é importante reconhecer que as necessidades específicas e as
características que marcam a vida dos jovens brasileiros demandam
cada vez mais nosso olhar atento à diversidade dessas condições.
Assim, em nosso horizonte é necessário considerar: os jovens de
diferentes classes sociais, os que vivem nas cidades ou no campo,
os jovens brancos, negros e indígenas, os que estão na rede pública/
privada de ensino e jovens trabalhadores.
A pluralidade acima descrita precisa incidir sobre os fazeres e
saberes psis que, em suas propostas de compreensão e intervenção,
operando não apenas no sentido de identificar necessidades e
problemas possam construir espaços de escuta, de troca de ideias, de
invenção, de exercício de representatividade e de visibilidade para esta
condição plural. Nesse cenário, compreendemos que a escola pública
figura como espaço potencial para tal construção.

Juventudes, interseccionalidade e processos socioeducacionais

Ao propormos discutir sobre juventude é preciso compreendê-la


como diversa. Isso significa dizer que estamos olhando na verdade para
“juventudes”. Pluralizar o termo não se refere apenas a uma dimensão
cultural, na qual podemos apontar diferentes grupos e estilos (tribos)
de jovens, mas é atentar-se para as múltiplas formas de experiência
do que é ser jovem, ou seja, reconhecer também os atravessamentos
socioeconômicos e culturais. Nessa direção, Dayrell (2007) constrói o
conceito “condição juvenil” para se referir:

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 267


Cérise Alvarenga, Luiz Felipe Viana Cardoso

“[...] ao modo como uma sociedade constitui e atribui significado


a esse momento do ciclo da vida, no contexto de uma dimensão
histórico-geracional, mas também à sua situação, ou seja, o
modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes
referidos às diferenças sociais – classe, gênero, etnia etc.”
(DAYRELL, 2007, p. 1108)

A condição de ser jovem diz respeito as possibilidades de existência


frente a sua realidade social, econômica e cultural. Assim, se faz
necessário olhar para os determinantes que cercam a construção
dessas juventudes. Em um país como o Brasil, marcado por uma imensa
desigualdade social, ser jovem é uma experiência muito particular de
cada realidade. Logo, experimentar essa condição juventude em um
bairro de classe média alta é diferente de experimentá-la no contexto
de uma periferia, pois para Urresti (2011), nem todos os jovens
desfrutam das mesmas condições e vantagens sociais. Embora seja
possível afirmar que há questões as quais todos os jovens passam –
como aspectos do desenvolvimento biológico, cognitivo e psicossocial
– há também diferenças consubstanciais no que diz respeito à sua
vivência no território.
Assim, olhar para essa realidade de ser jovem é refletir também
sobre a interseccionalidade, conceito criado por Kimberlé Crenshaw
para se referir as sobreposições nas identidades sociais que se
articulam sob diferentes formas de opressão, tais como gênero, raça
e classe (AKOTIRENE, 2019). Deste modo, não é possível discutir
sobre juventude sem reconhecer o recorte de classe, gênero e raça,
marcadores que muitas vezes não são considerados no contexto
escolar.
A escola como instituição social também reproduz as lógicas do
sistema social no qual vivemos, negligenciando as multiplicidades do
“ser jovem”. Conforme Dayrell (2007), a escola vem se transformando
ao se tornar menos desigual, porém o autor afirma que ela ainda é
injusta, ao passo que falta a compreensão de que este jovem estudante
que a frequenta vive experiências sociais cada vez mais dinâmicas,
tendo consigo demandas próprias, enquanto sua escola continua
operando nas mesmas lógicas passadas. Esse apontamento nos faz
refletir sobre como as subjetividades vem sendo constituídas no espaço

268 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios e das múltiplas
realidades sociais de jovens da regional Barreiro

escolar e a necessidade de que os processos socioeducativos sejam


pensados a partir da realidade contemporânea dessas juventudes que
dele participam. Assim, para Dayrell (2007):

“A escola tem de se perguntar se ainda é válida uma proposta


educativa de massas, homogeneizante, com tempos e espaços
rígidos, numa lógica disciplinadora, em que a formação moral
predomina sobre a formação ética, em um contexto dinâmico,
marcado pela flexibilidade e fluidez, de individualização
crescente e de identidades plurais. Parece-nos que os jovens
alunos, nas formas em que vivem a experiência escolar, estão
dizendo que não querem tanto ser tratados como iguais, mas,
sim, reconhecidos nas suas especificidades, o que implica serem
reconhecidos como jovens, na sua diversidade, um momento
privilegiado de construção de identidades, de projetos de vida,
de experimentação e aprendizagem da autonomia.” (DAYRELL,
2007, p. 1125)

É nesse sentido que Dayrell (2007) levanta a questão se a escola


“faz” a juventude, visto que muitas vezes a condição juvenil não é
considerada em sua pluralidade. Contudo, a escola ainda é um espaço
de construção das cidadanias e da identidade do jovem. Na periferia,
permanecer na escola é um ato de resistência a um sistema que é
produtor de exclusão. Nesse sentido, precisamos pensar na escola
como sistema de produção de subjetividades que possam construir
novas saídas e possibilidades frente a uma sociedade injusta e
desigual. Logo, todo projeto socioeducacional deve se colocar contra a
hegemonia predominante.

Método e procedimentos

O “Estágio Básico: Projetos socioeducacionais” tem sido realizado


na regional Barreiro, desde 2018 e, por meio dele, as/os estudantes
de Psicologia têm entrado em contato com a realidade das escolas
públicas situadas no referido território. Um dos seus objetivos é
proporcionar aos estudantes oportunidades de analisar fenômenos no
contexto escolar, explicitando a dinâmica das interações entre os seus

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 269


Cérise Alvarenga, Luiz Felipe Viana Cardoso

agentes sociais e os desafios contemporâneos neste campo de atuação


profissional.
Além de compreender a dinâmica das interações, as/os estagiárias/
os de Psicologia têm a oportunidade de identificar demandas e planejar
intervenções participativas, como rodas de conversa, na perspectiva da
promoção dos Direitos Humanos. As Rodas de Conversa possibilitam
uma reflexão e participação social na medida em que articulam os
conhecimentos de grupos e de intervenção psicossocial (AFONSO;
ABADE, 2008). Deste modo, busca-se contribuir com a produção de
espaços de escuta e de diálogo com a comunidade escolar.
O público envolvido nas ações deste estágio foram jovens
estudantes do ensino fundamental e médio de escolas públicas da
Regional Barreiro. As intervenções foram conduzidas por estagiárias/
os do curso de Psicologia do Centro Universitário UNA.
Ao entrar no território e antes de iniciar as Rodas de Conversa, as/os
estagiárias/os de Psicologia realizaram primeiramente uma análise das
demandas. Essa etapa é necessária visto que ao utilizar metodologias
participativas para intervenções em projetos socioeducacionais é
preciso antes de propor qualquer intervenção, conhecer e levantar
as demandas locais, pois sem fazer isso corremos o risco de propor
atividades que não articulam com a realidade do território. Para Severo
(1993), a/o psicóloga/o ao entrar na instituição deve conhecê-la, se
apropriando do funcionamento e das questões que emergem neste
campo, para depois propor intervenções. Para isso, foram realizadas
entrevistas com a comunidade escolar a fim de conhecer a realidade
da escola e dos jovens que as frequentam.
Após a etapa da identificação das demandas, as/os estagiárias/os
propuseram Rodas de Conversa a partir dos temas que emergiram
durante as entrevistas. Os temas levantados: saúde mental, depressão,
prevenção ao suicídio, identidade, autoestima, valorização do jovem,
assédio sexual, bullying, perspectivas de projeto de vida profissional,
dentre outros. Cada Roda de Conversa teve duração de duas horas.
Após as intervenções, foram construídas devolutivas para a
comunidade escolar (estudantes e coordenação). Nesta etapa, mais
do que simplesmente “devolver” os resultados, foi proporcionado um
espaço de problematização para as questões levantadas, sem expor os

270 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios e das múltiplas
realidades sociais de jovens da regional Barreiro

conteúdos e pessoas envolvidas. Essa devolutiva foi importante não


só para as/os estagiárias/os encerrarem as atividades no campo, mas
também para ressignificarem junto à comunidade envolvida aspectos
trazidos a respeito das relações e sentidos tecidos no contexto escolar.
A última etapa das atividades do estágio constituiu na apresentação
dos resultados desse processo de intervenção em um seminário entre
docentes e discentes de Psicologia, a fim de partilhar e refletir sobre
as ações realizadas, a partir do eixo transversal das intervenções em
Direitos Humanos.

Resultados e discussão: do lugar em que se vive e a experiência


ou não de ser cidadão

A partir dos relatos em supervisão, dos relatórios e da socialização


de experiências, no transcorrer e ao final do semestre foi possível
identificar que, além de propiciar o exercício crítico de análise e
intervenção no/do cotidiano escolar, um dos aspectos destacados
pelos estudantes diz respeito a percepção das intensas desigualdades
sociais vividas por jovens do ensino médio e da educação de jovens e
adultos.
A experiência das/os estagiárias/os de Psicologia em escolas,
situadas em pontos geográficos distintos dessa regional, evidenciou as
intensas diferenças nas condições de existência dos jovens. A percepção
sobre determinados aspectos tais como, as condições de moradia, as
dificuldades relacionadas à mobilidade urbana, ao conhecimento/
desconhecimento de equipamentos públicos22 que atuam na promoção
de direitos dos jovens e a evasão escolar possibilitaram aos estagiários
confrontar-se com a discussão empreendida por Santos (2012), na qual
a geografia do território articula-se ao acesso ou não a determinados
serviços e direitos. Deste modo, ser ou não cidadão é uma experiência
que se constitui muito fortemente a partir do lugar em que se está,

22 Como Centro Referência da Juventude (CRJ); Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de
Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), Unidades Básicas de Saúde (UBS), Organizações Não
Governamentais (ONGs), dentre outras.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 271


Cérise Alvarenga, Luiz Felipe Viana Cardoso

mora ou vive, de sua localização em determinados pontos no território.


As experiências no estágio permitiram abrir discussões relacionadas
à própria história de alguns bairros que compõem a regional Barreiro.
Nesta história, o adensamento local durante a década de 1970, a
ocupação irregular experimentada na Vila Cemig , por exemplo,
reverbera ainda no tempo presente por meio das questões de moradia,
das dificuldades em termos de mobilidade urbana e das estatísticas
sobre as violências. Maciel et al. (2019), a partir de uma experiência
de intervenção psicossocial, também realizada na Vila Cemig, refletem
que apesar dos problemas sociais enfrentados pela comunidade, tais
como a violência e a desigualdade social, há também uma potente
participação social e resistência por parte de seus moradores e
lideranças, originárias das lutas já marcadas desde o início da ocupação.
Estas questões emergiram, por exemplo, em uma das cenas
mencionadas pelos estagiários derivadas da conversa com um dos
professores entrevistados, ele relata preocupação com o “estado
emocional” de um aluno que viu o pai ser assassinado a tiros, devido ao
acerto de contas no tráfico. Somado também ao relato de professores
que descrevem a perda dos próprios alunos para o contexto do tráfico.
Realidade entrelaçada à discussão realizada por Dayrell e Carrano
(2014) ao interrogarem “quem é o jovem que chega à escola”. Neste
texto, os autores apresentam dados relacionadas ao crescimento da
taxa de homicídios de jovens nos últimos anos. O tráfico e o consumo
de drogas despontam como fatores que contribuem fortemente
para arremessar os jovens num ciclo perverso de homicídios, seja
como agressores ou vítimas. Nesse contexto, os autores ressaltam
a importância de constituir um outro olhar para fenômenos como
a violência, homicídios, tráfico, letalidade dos jovens, gravidez na
adolescência, ultrapassando a perspectiva do jovem como “problema”
social e direcionando o olhar para esses “problemas” como legitima
expressão de demandas dos jovens anteriormente não atendidas.
Este novo olhar aponta na direção de reconhecermos a escassez de
políticas públicas direcionadas aos jovens, sinalizando a importância
da constituição de projetos, programas e de pesquisas que visibilizem
a pluralidade destas experiências dos jovens brasileiros.
No percurso do estágio, foi possível perceber que transitar por

272 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios e das múltiplas
realidades sociais de jovens da regional Barreiro

diferentes escolas, permitiu aos estagiários a apreensão das correlações


existentes entre o espaço em que se vive, os direitos que se acessa ou
não, indicando que tais aspectos precisam comparecer na formação
em Psicologia. E esta discussão possibilita compreender, por exemplo,
como a subjetividade de jovens que habitam alguns bairros da mesma
regional é atravessada por cenas e situações tão extremas, como as de
violência mencionadas acima e que muitas vezes são experimentadas
desde a infância. Nesse sentido, é interessante mencionar que não
raramente ouvirmos alguns jovens dizerem que precisam viver
intensamente cada momento, pois no dia seguinte não sabem se
estarão vivos. Tais experiencias, podem impactar, por exemplo, numa
relação temporal dos jovens marcada por uma urgência de vivenciar
intensamente o agora como uma espécie de resposta a possibilidade
de ter a vida interrompida a qualquer momento. Com isso, constata-
se uma ausência de perspectiva futura na qual o jovem acaba por não
desenhar um projeto de vida.
O estágio possibilitou espaço profícuo para mobilizar reflexões e
utilizar os fundamentos da Psicologia para construção de estratégias/
metodologias participativas para atuar com jovens em contextos
educativos na perspectiva dos direitos humanos, entrelaçando tal
discussão ao conceito de território e a discussão do que é ser ou
tornar-se cidadão. Deste modo, alargar discussões sobre os direitos
dos jovens, sobre a necessidade de desenvolver políticas específicas
para este público e a criação de espaços que possam contribuir
com a construção de outros percursos e projetos de vida tornam-
se imprescindíveis na formação das/os psicólogas/os. Isso caminha
na direção do que apontam Saadallah, Marra e Miranda (2019), de
que precisamos construir na Psicologia formas de fazer que sejam
descolonizadoras, de forma que a nossa atuação deva servir para
promover autonomia e escuta dos sujeitos, ao invés de uma posição
não crítica.
Nesse sentido, a apresentação de instituições e equipamentos
públicos, como CRAS, CRJ, ONGs, que atuam com jovens aprendizes ou
a ausência deles são pautas que precisam comparecer nos processos
formativos tanto dos estagiários de Psicologia quanto dos jovens
do Ensino Médio. Uma das pautas trazidas pelos jovens, durante as

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 273


Cérise Alvarenga, Luiz Felipe Viana Cardoso

intervenções, foi o sentimento de falta de motivação para conclusão


dos estudos, acompanhada da ausência de projetos de vida. Ao mesmo
tempo em que também trouxeram o desejo de que a escola realizasse
mais atividades e projetos interdisciplinares que permitissem aos
mesmos expressarem suas demandas.
Ao tomar esses dois pontos trazidos pelos jovens percebemos
que a escola necessita construir espaços de escuta e ressignificação
dos anseios de seus estudantes, no que se refere às demandas para
além da escolarização formal. São poucos os momentos de escuta
dos medos, inseguranças e dúvidas desses jovens, que se mostraram
extremamente desmotivados frente ao futuro ao não vislumbrarem
outras possibilidades. Logo, Dayrell (2007) tece interessantes
apontamentos ao dizer que a escola ainda não consegue promover
amplamente outras formas de socialização desses jovens.

Considerações finais

As intervenções por meio das Rodas de Conversa possibilitaram


identificar que os jovens estudantes das escolas públicas atuaram
como coprodutores das rodas, na medida em que trouxeram para elas
questionamentos sobre os contextos de vida, o território em que se
vive, os anseios e angústias relacionadas ao mundo profissional, os
medos e desafios relacionados ao planejamento e/ou consecução
dos projetos profissionais e de estudo e a preocupação com a saúde
mental. É importante destacar que as/os estagiárias/os de Psicologia
perceberam uma gradativa apropriação destes jovens ao espaço de
escuta e de diálogo constituído durante as intervenções, apreensão
essa que sinaliza a necessidade da continuidade dessa articulação
entre o contexto de formação em Psicologia e os espaços escolares.
No que se refere ao uso das metodologias participativas, acreditamos
que, ao se ter como objetivo uma intervenção psicossocial devemos
lançar mão cada vez mais dessas estratégias, pois como entendem
Maciel et al. (2019), o uso desse tipo de metodologia favorece a
participação social e o protagonismo dos envolvidos, tomando-os não
como “público” da intervenção, mas como sujeitos co-construtores do
processo de transformação social. Assim, buscamos construir junto as/

274 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


A experiência de estágio como espaço de apreensão dos territórios e das múltiplas
realidades sociais de jovens da regional Barreiro

os estagiárias/os uma forma de intervenção psicossocial que seja feita


COM e não PARA os jovens.
Por fim, ao olharmos para a categoria juventude, acreditamos que
o maior desafio de uma prática psicossocial e socioeducacional é de
possibilitar a esses jovens a expressão de si mesmos, de sua pluralidade
como parte desse território, reconhecendo-os como sujeitos cidadãos.

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Sobre os autores

Cérise Alvarenga
Psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutora pela Universidade
de São Paulo (USP). Professora do curso de Psicologia do Centro Universitário UNA.
Gestora em projetos e serviços nas áreas de Assistência social, Educação e Cultura.
E-mail: cericealvarenga@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2357764743125534

Luiz Felipe Viana Cardoso


Psicólogo e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei
(UFSJ). Professor do curso de Psicologia do Centro Universitário UNA. Conselheiro do
XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRPMG).
E-mail: luizfelipevcardoso@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8348646171677165

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 277


16

Juventudes do campo:
olhares a partir da
Psicologia
Rural youth: views from Psychology

Augusto César Cardoso Mendes


Luiz Paulo Ribeiro

278 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

Resumo

Historicamente, as populações campesinas brasileiras enfrentaram


e enfrentam diversos desafios e entraves para serem consideradas
como sujeitos de direitos. A população jovem não está isenta dessa
problemática e, com certa frequência, tem partido para as cidades, a fim
de encontrar outras oportunidades de vida, em busca, por exemplo, de
estudo e trabalho. Diante desse contexto, é apresentada uma revisão
bibliográfica para verificar o que tem sido discutido, recentemente,
sobre as interfaces entre as juventudes do campo e a Psicologia.
É possível dizer que a Psicologia, enquanto ciência e profissão,
tem desenvolvido em seus princípios, práticas e teorias, que estão
atreladas ao compromisso com a valorização dos povos campesinos,
de sua cultura e de suas particularidades. Diante disso, o artigo discute
algumas possibilidades de intervenção produzidas pela Psicologia
para responder e subsidiar as demandas oriundas das necessidades
que emergem dos anseios, perspectivas e desejos das juventudes
campesina. Para tanto, a discussão perpassou pontos referentes à luta
pela preservação da natureza, pela democratização do acesso à terra
via reforma agrária, pela educação do campo e, também, ao que tange
as discussões relacionadas à saúde mental dessa população. Como
resultado, verifica-se que, apesar de já existirem discussões e práticas
sendo desenvolvidas pela Psicologia, tanto no Brasil, como em outros
países da América Latina, com os jovens campesinos, ainda existem
desafios para transformar o território do campo em um espaço de
intervenção da Psicologia.

Palavras-chave: juventudes; campesinato; rural; Psicologia.

Abstract

Historically, Brazilian peasant populations have faced and face


several challenges and obstacles to be considered as subjects of
rights. The young population is not exempt from this problem and,
with certain frequency, has left for the cities, in order to find other

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 279


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

opportunities for life, in search, for example, of study and work. In


this context, a bibliographic review was made to verify what has been
discussed, recently, about the interface peasant youth/Psychology.
It is possible to say that Psychology, as a science and profession, has
developed in its principles, practices and theories that are linked
to the commitment to the valorization of peasant peoples, their
culture and their particularities. Therefore, this article discussed
some intervention possibilities produced by Psychology to answer
and subsidize the demands arising from the needs that emerge from
the desires, perspectives and desires of the peasant youth. For this
purpose, the discussion went through points related to the struggle
for the preservation of nature, for the democratization of access to
land through agrarian reform, for the education of the countryside
and, also, regarding the discussions related to the mental health of the
young people who lives in peasant territories. As a result, we found that
although there are already discussions and practices being developed
by Psychology, both in Brazil and in other Latin American countries,
about the young peasant, there are still challenges to transform the
territory of the countryside into an intervention space for Psychology.

Key-words: youth; peasantry; rural; Psychology.

Apresentação

Os espaços rurais e campesinos no Brasil são múltiplos, assim como


as pessoas que produzem vida, trabalho e sociabilidade nesses lugares.
Cuidar para que reconheçamos no campo os sujeitos de direitos com
seus modos de subjetivação, identidades e garantias fundamentais,
também é tarefa de uma Psicologia que tem como compromisso o
desenvolvimento de uma prática ética, política e social. Isso por que,
como afirma Bock (1999, p. 11), “o trabalho do psicólogo deve apontar
para a transformação social, para a mudança das condições de vida
da população brasileira”. Assim, pensamos que o profissional da
Psicologia deve refletir o seu tempo, de modo a se posicionar, sempre,
coerentemente para produzir intervenções que sejam construídas a

280 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

partir da realidade social, também, do(s) sujeito(s) campesino(s).


Nessa discussão, como pano de fundo contextual, paradoxalmente,
há tensões sobre dois modelos de desenvolvimento nos espaços rurais
no Brasil: o agronegócio e a agricultura familiar. Isso quer dizer que em
um mesmo espaço geográfico existem ocupações e significações do
viver diferentes, isto é, há territórios distintos. Fernandes (2006) aponta
que o território é um espaço que transcende o âmbito geográfico e
se instala no âmbito das relações políticas, por isso abrange espaços
políticos que são fomentados a partir de pensamentos, ideias,
epistemologias e ideologias. Sendo assim, desde já é necessário
compreender que o território do agronegócio é diferente do território
da agriculta familiar.
Isso pode ser verificado por meio das formas de ocupar e produzir
de cada um desses territórios; o rural como local de produção é aquele
que é representado pelo latifúndio e as produções em larga escala para
exportação (commodities). Entretanto, quando passamos a verificar o
campo como território de produção de vida, aproximamo-nos do que
os movimentos sociais campesinos e a agricultura familiar colocam
como pauta de luta: lugar de direito, subjetividades, resistência e
construção de vínculos sociais.
A partir do momento em que enxergamos o campo como um espaço
de vida, nós o (re)conhecemos como um lugar que possui histórias,
cultura, sociabilidades e modos de subjetivação. De certo, pensar o
campo a partir da Psicologia não é romantizar o campo, tampouco
atribuir a ele um bucolismo que não problematiza esse território. Ao
contrário, nesse caminho, pensamos que uma Psicologia que esteja
interessada em construir práticas e processos compromissados com
a ética e o social precisa estar envolvida com o território campesino,
bem como com suas tensões, problemáticas, potencialidades e
produção de subjetividades, uma vez que é justamente este hibridismo
o representante das diversidades desse território.
Como dito, as tensões derivadas das relações entre capital e trabalho,
agronegócio e agricultura familiar exercem impacto direto sobre a vida
dos sujeitos e coletividades que vivem no campo brasileiro. As investidas
na expansão das fronteiras agrícolas, bem como as propagandas
como agro é tec, agro é pop, somadas ao não entendimento quanto

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 281


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

à necessidade da reforma agrária e ao uso desregrado de agrotóxicos


são revezes num processo de luta para garantir direitos e uma vida
digna para os povos do campo. De alguma forma, isso também é
signatário de como os próprios sujeitos enxergam/sentem o campo,
isto é, ou o veem como um local de desenvolvimento ou como um
local de atraso. Se é visto como potencialidade, o campo se torna um
lugar de permanência, inclusive para os jovens, se é visto como lugar
de atraso e pobreza, há dependência, violência e um esvaziamento
nesse território (FERREIRA; BONFIM, 2013).
Dessa forma, este ensaio tem como objetivo trazer à cena as
demandas das populações campesinas, especificamente, as dos sujeitos
jovens, a partir dos olhares de uma Psicologia ética, política e social,
que tem escutado e agido diante do que é trazido e problematizado
a partir das demandas dos sujeitos e de seus contextos. Isso por que
acreditamos que continua sendo necessário, conforme Gonçalves
Filho (1998), transformar o que é paisagem, que por vezes passa
desapercebido em objeto de problematização, atuação e intervenção
dos profissionais da Psicologia.

Compromisso ético-político e juventudes no campo

Quando nos debruçamos sobre o conceito de juventude,


encontramos uma série de significações e sentidos diferentes para
representar essa ideia, contudo podemos nos basear em estudos
produzidos pelo Observatório da Juventude (OJ – FaE – UFMG), a partir
das contribuições de Dayrell (2016), para afirmar que essa nomeação
caracteriza uma categoria que é produzida socialmente e que é fruto
de uma construção histórica. Dessa forma,

“A entrada na juventude se faz pela fase da adolescência e é


marcada por transformações biológicas, psicológicas e de
inserção social. É nessa fase que fisicamente se adquire o poder
de procriar, em que a pessoa dá sinais de ter necessidade
de menos proteção por parte da família e começa a assumir
responsabilidades, a buscar a independência e a dar provas de
autossuficiência, entre outros sinais corporais, psicológicos e de
autonomização cultural.” (DAYRELL, 2016, p. 28)

282 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

Assim sendo, as juventudes que estão no campo fazem parte de


um contexto histórico construído socialmente e que é dotado de
concepções muito próprias e particulares ao território campesino.
Nesse caminho, Leão e Antunes-Rocha (2015) criticam a caracterização
estereotipada do que se entende por juventude do/no campo, isto é, a
viciosa imagem de sujeitos que tiveram pouco acesso à escolarização e
que adentraram no mundo do trabalho muito precocemente. Os autores
trabalham com uma ideia mais homogênea de juventude campesina,
isto é, entendem que essa população apresenta experiências e práticas
sociais multifacetadas. Eles compreendem que, apesar de existirem
diversas iniciativas sociais para que os jovens campesinos permaneçam
no campo, ainda assim, essa população tem vislumbrado vivências que
sejam alheias as suas localidades de origem, um dilema migratório que
está relacionado às limitações dessa população em acessar a educação
e o trabalho, bem como vinculado aos entraves referentes às questões
fundiárias.
Ferreira e Bomfim (2013) discutem a emigração dos jovens do
campo, especificamente da juventude nordestina, e concordam com
Leão e Antunes-Rocha (2015) no que tange aos vários motivos que
contribuem para que o jovem do campo busque na cidade uma opção
de vida. Todavia, apontam uma outra perspectiva: existe uma parcela
de jovens campesinos que viabiliza construir suas vidas no campo, algo
que surge do medo de desenvolver suas vivências longe do contexto
habitual. Dentre alguns motivos, cita-se o que o apego ao campo
(topofilia) – como espaço de produção de vida –, bem como o medo de
se afastar de suas famílias contribuem para que essa parcela de jovens
opte por continuar desenvolvendo suas vivências no campo.
Já é sabido, como referido acima, que o êxodo dos jovens do campo
é uma questão socialmente aguda, que é resultado de um processo e
não apenas de uma ação isolada de um percurso histórico e contextual.
Assim sendo, é importante verificar o que tem sido demandado pela
juventude do campo à Psicologia e como tal ciência-profissão tem
dado conta ou não disso. No entanto, para seguirmos esse caminho,
nos perguntamos: quem são estes jovens? Onde estão? Com que
trabalham? Com que vivem? Quais são seus sonhos, perspectivas e
desafios?

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 283


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

A princípio, dizemos que existem várias concepções de “campo”


e “rural” sendo discutidas na contemporaneidade (MARTINS et al.
2010). Contudo, dentro dessas compreensões acerca desse território,
precisamos compreender quem é o jovem que vive nessas localidades,
de modo que seja possível discutir o movimento que é feito por ele
durante a construção de suas vivências no campo.
Com vistas a tentar caracterizar a juventude campesina, recorremos
à Troian e Breitenbach (2018), os quais apontam que os jovens do
campo, em grande parte, têm migrado para o meio urbano em busca
de convívio social e remuneração maior. Esse grupo de jovens que
migram, em suma, é composto por jovens do sexo masculino. Por
outro lado, a iniciação no mundo do trabalho pode se dar de forma
tenra, além de serem, tradicionalmente, influenciados por uma forte
cultura patriarcal, que pode tencionar a autonomia social e econômica
desses sujeitos. Para Troian e Breitenbach (2018) os jovens do campo
idealizam a cultura do jovem urbano o que faz com que eles busquem
as cidades.
Esta busca pelas cidades, conforme Wollz e Ferreira (2013), pode
indicar que essa população tem migrado utopicamente, em busca de
melhores condições de vida, emprego e estudo. Essa situação pode ser
entendida como um reflexo das condições econômicas desfavoráveis
dos jovens rurais, haja vista que de acordo com os dados do Programa
Brasil sem miséria, de um total de 8,2 milhões de jovens que vivem no
campo, 2,3 milhões vivem em situação de miséria, sobrevivendo com
uma renda mensal de R$70,00 ou menos. Ainda é dito que a juventude
campesina é marcada por grandes desafios de acesso à educação e
à qualificação profissional, mesmo que existam iniciativas louváveis
neste âmbito. Esta afirmação confirma-se quando verificamos que
menos da metade dos jovens do campo, com idades entre 15 e 17 anos
estão cursando o ensino médio e somente 13% dos jovens com idades
entre 18 e 24 estão matriculados em instituições de ensino superior.
Além disso, é possível afirmar que a juventude do campo experimenta
um processo de “adultização” contínuo, em detrimento da precoce
inserção no mercado formal ou informal de trabalho.
É diante dessas inquietações, causadas pelo êxodo de jovens do
campo, que nos perguntamos o que a Psicologia tem feito para contribuir

284 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

com a produção de melhores condições de vida e desenvolvimento


para os jovens do campo quando decidem permanecer nos seus locais
de origem? Como o compromisso social da Psicologia também se
expressa nos contextos campesinos brasileiros? Cabe ressaltar que o
‘incentivo’ de permanecer no campo não pode ser, como no início do
século XX, signatário de uma postura de necessidade de enraizamento
dos povos do campo no campo, para que não deslocassem para as
cidades. Ao contrário, a postura que adotamos coaduna com a ideia
de que os jovens do campo podem ter perspectivas de vida, dentro
ou fora do campo, acessando direitos e podendo sonhar e concretizar
seus sonhos.
Dessa feita, encontramos novamente em Bock (1999) contribuições
importantes para problematizar isso. Segundo a autora, o profissional
da Psicologia precisa enxergar o homem como um sujeito que está
atrelado a um contexto social e histórico, isto é, este não pode ser
compreendido como um indivíduo isolado, que apresenta demandas
alheias ao que está em seu entorno. Sendo assim, é improvável
entender que é possível construir uma visão de homem, em que este
esteja “descolado” de sua realidade social e do contexto em que está
inserido, haja vista que esses dois componentes que cercam o sujeito
são cruciais para que o profissional de Psicologia consiga vislumbrar
possibilidades de atuação e cuidado para com ele.
Bock (1999) aponta que a Psicologia precisa desenvolver uma
identidade profissional que dialogue com as mudanças das realidades
sociais de nosso país - ressaltamos aqui, a realidade campesina-rural.
Isso porque, a prática de nossa profissão precisar apoiar-se nos eventos,
fatos e realidades que circundam nossa sociedade. Contudo, mesmo
que mais de vinte anos depois desse escrito de Bock (1999), ainda
é preciso ressaltar que não é mais possível pensar numa Psicologia
cristalizada, estacionária e que não passe por metamorfoses em seu
formato. Ao contrário, como apontado pela autora, nossa profissão
precisa estar em constante movimento, de modo que ela possa
construir sua identidade apoiada nos deslocamentos que ocorrem a
partir das mudanças e transformações sociais.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 285


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

Demandas da(s) juventude(s) camponesas(s)

O primeiro ponto da nossa discussão parte do envolvimento da


juventude camponesa com a preservação e o cuidado com a água e
com as florestas. De acordo com Castro (2017), eles têm construído
espaços de articulação política a partir de vinculações feitas com
os Movimentos Sociais do Campo, cobrando posicionamentos
políticos acerca do cuidado para com as florestas e as águas. Moura
e Ferrari (2016) apontam que o jovem do campo tem demandado e
se preocupado com a preservação do solo, da água, da flora nativa
e da fauna. Para os autores, o investimento em uma educação, que
conste em seu bojo conhecimentos científicos e saberes tradicionais,
tem possibilitado ao campesinato jovem produzir perspectivas que
apontem para o equilíbrio simbiótico entre os homens e a natureza.
Sendo assim, partindo da demanda da juventude campesina pela
preservação das florestas e o cuidado com a água, pode-se pensar
quais são as possibilidades construídas pela Psicologia para subsidiar e
fortalecer essa discussão.
O Conselho Federal de Psicologia (2019) preconiza que as práticas
profissionais dos psicólogos precisam considerar que os povos do
campo possuem uma grande aproximação e dedicação com a natureza.
Cabe ao profissional psicólogo a atenção em observar que os processos
subjetivos que constituem os sujeitos do campo – dentre eles, estão
também os jovens campesinos – são atravessados pelos sistemas de
dominação, violência e injustiça social a que estão submetidos. Dessa
forma, é possível entender que, para que o profissional de Psicologia
possa colaborar com os jovens do campo que têm se preocupado com
as questões referentes ao cuidado e a preservação das águas e das
florestas, é necessário

“[...] reconhecer os limites dos conhecimentos da Psicologia


para a atuação junto a esses povos [...] Estes limites são
apontados como possibilidades de invenção de práticas que
tenham na justaposição e trânsito de saberes e métodos para
construção de conhecimentos conjuntos, sem recair no risco
de novos colonialismos.” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2019, p. 81)

286 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

Assim, é essencial que o psicólogo trabalhe em articulação com as


redes comunitárias que compõem o território campesino, de modo a
fomentar discussões que favoreçam o desenvolvimento da vida dos
sujeitos do campo, sempre em observação ao espaço, cultura, história,
tradições e valores que fazem parte dessa população.
É nesse mesmo caminho que apontamos outra questão que tem
imergido a partir das narrativas da juventude do campo, ou seja,
o debate sobre a posse e uso da terra, o qual tem como pano de
fundo a Reforma Agrária. Cabe ressaltar que, conforme Kay (2003),
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um dos
movimentos sociais mais importantes da América Latina e também
o mais importante de luta pela Reforma Agrária do Brasil. Assim, por
meio da inserção nos movimentos sociais e sindicais de democratização
do acesso à terra, as juventudes campesinas têm se tornado aliadas
importantes para essa discussão.
De acordo com Martins (2008), os jovens que estão envolvidos com
as discussões inerentes à Reforma Agrária enxergam nos espaços rurais
um espaço de vida. A autora pontua que o processo de assentamento
rural proporciona ao jovem do campo o que ela chamou de “movimento
de tornar-se jovem rural” (MARTINS, 2008, p. 29). Esse processo pode
ser entendido por meio de um olhar atento sobre a construção histórica
acerca da realidade que tem sido desenvolvida no campo, em que o
campesinato, hierarquicamente, tem sido submetido a uma dinâmica
de exploração, subalternização e desvalorização. Sendo assim, quando
o jovem do campo se posiciona frente à luta pelo acesso à terra,
imediatamente, ele está insurgindo contra essa dinâmica hegemônica
relatada e tornando-se um jovem que se reconheceu dentro desse
contexto e, diante disso, compreendeu a necessidade de produzir para
o campo possibilidades de emancipação e avanço.
É notável que a Reforma Agrária, enquanto conjunto de políticas
públicas que viabilizam a democratização de acesso à terra, bem
como, de acesso às oportunidades outras que surgem a partir dessa
proposta, tem marcado as discussões sobre os territórios campesinos.
Todavia, os acampados e assentados da Reforma Agrária (nomeação
dada aos sujeitos que compõem as comunidades rurais localizadas
nas áreas de reforma agrária) têm resistido e produzido formas de

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 287


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

continuar desenvolvendo e avançando em suas propostas. No entanto,


as redes de relações sociais que se interessam pelos processos que
cercam os assentamentos é plural e bastante diversificada. Isso porque
estão presentes nesse contexto: as famílias assentadas, funcionários
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
outros representantes de diferentes órgãos públicos, militantes de
movimentos sociais, representantes da Igreja etc.
Assim, como já pontuado anteriormente, o campo da Reforma
Agrária também é palco de tensões, que exprimem um extenso rastro
de violência para com os sujeitos do campo. Ribeiro (2016) pontua como
o contexto de luta pela terra vem, ao longo dos anos, demonstrando
intensas investidas do capital, através de políticas de desenvolvimento
econômico rural, em detrimento dos povos que habitam nessa terra:
expropriações, negações de direitos, mortes, chacinas, preconceito e
desvalorização da cultura campesina assentada são apenas algumas
de tantas faces da violência às quais os jovens do campo, em luta pela
terra, também estão submetidos. Aqui, pensamos o acesso à terra como
direito e, tomando como referência o que foi relatado por Weisheimer
(2005), Martins (2008) e Ribeiro (2016), pode-se pensar em como a
Psicologia pode colaborar com os jovens rurais que estão presentes
nesse contexto. A princípio, deve-se entender que é premente que o
jovem campesino consiga desenvolver possibilidades de protagonismo
social, autonomia e emancipação dentro da sua terra (de sua família
ou de sua comunidade), de modo a irromper e insurgir contra as
práticas que estimulam a dependência e a submissão, historicamente,
vivenciadas pelas populações do campo.
Dessa feita, diz-se que o psicólogo pode colaborar junto aos jovens
do campo, auxiliando-os a refletir, analisar e tomar decisões próprias
sobre situações relacionadas à vida produtiva e organizativa nos
contextos de Reforma Agrária (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2013). O Conselho Federal de Psicologia (2013) descreve uma prática
bastante próxima dessa, realizada pela Universidade Federal da
Paraíba em parceria com o Movimento dos Trabalhadores sem Terra
(MST), a Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica da Paraíba (CPT)
e com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
A referida prática tinha como finalidade “acompanhar as famílias

288 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

assentadas na análise crítica do contexto em que viviam de tal forma


que elas pudessem, de forma independente, exercitar possibilidades
de autonomia em suas decisões relacionadas à vida produtiva e social
nos assentamentos” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p.
32). Estratégias de protagonismo social nas comunidades campesinas,
contendo princípios da Psicologia Social Comunitária (MONTERO, 2008;
2010; 2012) que já desenvolvem, há algum tempo, ações para garantir
a participação social e o acesso a direitos sociais. Estas são algumas
possibilidades para o profissional psicólogo atuar nesse contexto.
Entende-se que práticas como essas, desenvolvidas por meio
da Psicologia, podem contribuir para que os sujeitos do campo,
especialmente os jovens – que estão acostumados “a silenciar
suas opiniões, ideias, discordâncias, preocupações e expectativas”
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p. 34) – possam viabilizar
espaços de escuta e debate, visando à construção de decisões coletivas
acerca da comunidade e das situações que emergem dentro dela. A
escuta e o cuidado do profissional da Psicologia precisam adequar-se
à necessidade do jovem do campo de se orientar enquanto sujeito
de direitos, frente as suas necessidades e aspirações para o seu
desenvolvimento dentro e fora do assentamento.
Ainda, em se tratando das demandas que emergem das pretensões
e dos anseios das juventudes do campo, podemos citar uma importante
discussão que, factualmente, tem mobilizado a Psicologia, isto é, a
educação como um direito de todos.
Para discutir acerca desse tema, primeiramente, é necessário
compreender qual é o formato de educação que era ofertado no
campo, de modo que seja possível analisar os fins e os meios dessa
discussão. Historicamente, a educação rural é um modelo de oferta
de educação nos espaços rurais que, de certa forma, contribuía para
uma visão de campo como lugar atrasado, sem perspectiva e como
uma reprodução de práticas educativas urbano centradas. Entretanto,
ao perceberem que a pauta de suas discussões deveria ir além da luta
pela terra, alcançando a educação, que fosse pública e de qualidade,
com valorização dos princípios e práticas da educação popular e com
respeito aos modos de produção e reprodução da vida no campo, os
movimentos sociais e sindicais do campo encabeçaram uma luta para

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 289


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

que fosse desenvolvido, nas regiões rurais, um “modelo de educação


contra hegemônico ao modelo de educação convencional” (OLIVEIRA;
RABELLO; FELICIANO, 2014, p. 11). O nome Educação do Campo
emerge de um rompimento paradigmático, em que a observação e o
reconhecimento à realidade dos povos campesinos está presente na
proposta pedagógica ofertada, de modo que ela respeite e reconheça
a formação humana do sujeito do campo e colabore com a sua
dinâmica de trabalho-educação, consolidando assim, uma educação
emancipatória, em busca de direitos para os povos do campo (RIBEIRO,
2012).
Pode-se inferir que a Educação do Campo tem em suas bases os
ideais de emancipação e desenvolvimento social para as populações
campesinas, os quais contribuem para a legitimação dos “modos de
vida dos sujeitos pertencentes ao campo” (DUARTE; SANTOS, 2015,
p. 1). Sendo assim, infere-se que a luta vai além da terra, trata-se
de um ideal de sociedade, campo, educação e de escola, isto é, ela
reconhece o desenvolvimento de um novo projeto de campo, o qual
tenha em seu bojo, espaços para o desenvolvimento de uma educação
legitimamente representativa para os povos campesinos.
No entanto, alguns desafios têm surgido nesse contexto. O
fechamento das escolas do campo, devido a constante nucleação
desses espaços de aprendizagem (realocação dos alunos em escolas
maiores, após as menores serem desativadas) e a precarização do
transporte escolar têm sido questões desafiantes para garantir o acesso
e a permanência dos jovens nas escolas campesinas (RODRIGUES
et al., 2017). Esse problema torna-se ainda mais complexo em se
tratando do acesso dos alunos com deficiência às escolas do campo,
haja vista que, como afirma Caiado e Gonçalves (2014), a precariedade
dos transportes escolares atrapalham o acesso, a frequência e a
permanência dos alunos com deficiência às escolas do campo.
Diante disso, podemos afirmar que a Psicologia em se tratando
de sua atuação no âmbito educacional dos territórios campesinos
pode recorrer aos princípios da Educação Popular Freiriana para
desenvolver práticas e engendrar possibilidades de atuação. Moura
Junior, et al. (2019) valem-se dessa ideia para explicar que a Psicologia
pode construir seu espaço de atuação e intervenção tendo como base

290 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

os pressupostos da Psicologia comunitária, a qual está fortemente


alicerçada nas teorias freirianas sobre a conscientização das opressões
vivenciadas pelas populações que se encontram à margem da
sociedade.
Dessa feita, é importante que o profissional da Psicologia
compreenda que para auxiliar ao jovem campesino em suas demandas
por acesso à educação, é necessário que ele esteja interessado em
desenvolver uma prática com vistas em promover a emancipação dos
sujeitos educandos que estão no campo. Isto porque, subsidiado por
uma prática para a liberdade e para o reconhecimento das condições
de opressão e dominação em que esses sujeitos estão inseridos, o
psicólogo poderá contribuir para que a juventude campesina irrompa
com os entraves que dificultam essa população a acessar e reivindicar
seus direitos por uma educação de qualidade, que esteja de acordo com
a realidade de vida do campesinato. Alves e Souza (2016) coadunam
com essa ideia quando pontuam sobre a necessidade de o profissional
da Psicologia problematizar as práticas educativas existentes no campo,
de modo que seja possível sensibilizar os educadores envolvidos nesse
contexto e, a partir disso, estimulá-los para uma atuação docente mais
realista em relação ao território campesino, com vistas em transpassar
os limites impostos, historicamente, sobre a educação do/no campo.
Outra questão importante que precisa compor essa discussão
relaciona-se ao olhar da Psicologia frente à saúde mental das
populações jovens que vivem no campo. Costa-Neto e Dimeinstein
(2017) apontam que o cuidado em saúde mental para as populações
do campo deve observar que os sujeitos que vivem nessas localidades
apresentam dimensões do ser e do viver heterogêneas, e, por isso,
apresentam variadas dinâmicas e relações sociais, modos de produção
e aspectos culturais e tradicionais específicos. Os autores citam, ainda,
que o modelo socioeconômico hegemônico presente no campo,
bem como as formas propostas de trabalho têm desencadeado
nos sujeitos campesinos “morbidades do sistema osteomuscular,
transtornos mentais, bem como outras relacionadas ao uso crescente
de insumos químicos e inadequação de instrumentos de proteção que
causam acidentes e graves processos de intoxicação” (COSTA-NETO;
DIMEINSTEIN, 2007, p. 2)

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 291


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

Sendo assim, é possível perceber que existem demandas diversas


de atuação das(os) psicólogas(os) no campo. Para Costa-Neto e
Dimeinstein (2007), o profissional de Psicologia precisa respeitar os
saberes tradicionais dos povos campesinos relacionados à saúde,
de modo que possam construir uma atuação que reconheça a
subjetividade dessas populações. Os autores citam que a atenção
psicossocial é um importante meio para que se possa investir em
ações de promoção à saúde mental nesses territórios. Assim, é
possível que os profissionais da Psicologia colaborem com os jovens
do campo durante o desenvolvimento de suas iniciativas comunitárias,
subsidiando e contribuindo com reflexões e discussões pertinentes
que possam coadunar com o processo de cuidado e acompanhamento
psicossocial desses sujeitos.

Considerações Finais

Este ensaio buscou resgatar as aproximações da Psicologia com as


juventudes campesinas, tentando promover uma saída epistemológica
de um campo/rural como paisagem e pensando o campo/rural
como espaço de intervenção, a partir de uma Psicologia crítica e
comprometida com os sujeitos. Por vezes, passar de paisagem para
contexto de intervenção relaciona-se com valorizar os sujeitos e suas
demandas, isso já é um grande avanço, pensar identidades e modos
de subjetivação.
Se apresentamos e defendemos uma Psicologia que é subsidiada
pelo reconhecimento da realidade social em que os sujeitos estão
inseridos, então, defendemos a crítica e a observação aos modelos de
dominação e opressão a que estão submetidos os povos do campo.
De certo, a desvalorização e a exclusão histórica dessas populações
têm refletido na ausência de práticas e atuações mais específicas
dos profissionais da Psicologia para com o campesinato, contudo,
é justamente a partir dessas lacunas que precisamos desenvolver e
produzir possibilidades de intervenção.
De certo modo, pensar a atuação da Psicologia nesses contextos
também é pensar (a) as políticas públicas que dão conta das demandas
dos jovens do campo e, em decorrência disso (b), analisar a inserção

292 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventudes do campo: olhares a partir da Psicologia

dos profissionais de Psicologia nas políticas públicas que estão inseridas


nos contextos campesinos. Caberia de alguma forma, entretanto,
refletir a necessidade de vinculação do profissional de Psicologia no
contexto campesino para além do vínculo proporcionado pelo trabalho
no serviço público. Uma das ações colaterais disso seria o risco de
não promover adesões, utilizando práticas hegemônicas de dentro da
Psicologia, sem um cuidado de análise contextual. Precisamos lembrar
a própria história da recepção da Psicologia no Brasil, que se deu em
favorecimento às elites, mas que hoje, diferentemente, tem encontrado
no serviço público uma das várias possibilidades de alcançar sujeitos
que compõem as mais variadas camadas da sociedade. É necessário
continuar assegurando uma Psicologia acessível a todos, que encontra
na pluralidade e na diversidade a gêneses para sua prática.
Por sua vez, experiências de trabalho de psicólogos e psicólogas da
América Latina, principalmente na Argentina e México, com a Extensão
Rural têm se mostrado como possibilidades interessantes de pensar
outras formas de fazer Psicologia nos territórios campesinos. No Chile,
a inserção de profissionais da Psicologia, juntamente com assistentes
sociais, nas escolas rurais24 também tem trazido práticas exitosas que
podem ser inspiradoras para a Psicologia do Brasil. Essas experiências
dos países citados mostram possibilidades de atuação comprometidas
ético-politicamente com o contexto campesino, assim como insere os
profissionais de Psicologia em outros âmbitos.
Muito embora tenhamos levantado alguns eixos, pensando na
atuação dos profissionais de Psicologia junto aos jovens do campo,
entendemos que existem muitas outras práticas que, mesmo sendo,
transformadoras dos seus contextos, não chegam a publicização ou a
academia.
Temos, então, que nos esforçar para verificar que ainda há muito o
que reconhecer sobre a atuação da nossa profissão, assim como ainda

24 No Chile, as escolas rurais recebem uma subvenção para que se contratem profissionais diversos para atuar
nas escolas e garantir uma melhoria nos processos de ensino-aprendizagem. É comum que se contratem uma
dupla psicossocial, composta por profissionais de Psicologia e Assistência Social, ou outros profissionais da
área das Ciências Sociais e Humanidades.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 293


Augusto César Cardoso Mendes, Luiz Paulo Ribeiro

há demandas que precisam ser escutadas e pensadas, de modo que


possamos viabilizar saídas onde parece não haver portas. É o caso, por
exemplo, das relações de gênero no campo, do machismo estrutural
e da necessidade de promover uma discussão sobre a valorização
da mulher campesina. Outrossim, diante da estrutura patriarcal
emblemática, temos que ter estratégias em relação à população
campesina LGBTI.
De igual modo, urge atentar para a situação de jovens campesinos
que foram atingidos pelo rompimento das barragens como em Mariana
e Brumadinho. Por um lado, há o rompimento com o território e
os vínculos sociais, por outro há um extenso registro de violências
institucionais e coletivas contra os atingidos, isto é, existem grandes
demandas à Psicologia para o trabalho com esses jovens.
A Psicologia, nesse caso, não pode coadunar com a estigmatização
dos/das jovens do campo. Entendemos, na verdade, que precisamos
fazer um movimento contrário, de auxiliar nos processos de
valorização da identidade, cultura e alcance de direitos, assim como
no que tange ao fortalecimento das opções de trabalho, educação e
saúde para a juventude campesina. Cabe a nós o reconhecimento das
potencialidades, dos entraves e do que tem sido feito até aqui, para que,
a partir de uma revisão contextual ampla e crítica, possamos construir
uma Psicologia brasileira em acordo com os anseios e demandas que
emergem, também, das populações do campo.

Referências

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294 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


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fev de 2021.

Sobre os autores

Augusto César Cardoso Mendes


Graduando em Psicologia pela Faculdade Pitágoras de Betim/MG.
E-mail: gutocm8@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9202752066289866

Luiz Paulo Ribeiro


Psicólogo, graduado pela PUC Minas (2011), mestre em Promoção de Saúde
e Prevenção da Violência pela Faculdade de Medicina da UFMG (2013), doutor
em Educação: Conhecimento e Inclusão Social pela Faculdade de Educação da
UFMG (2016). Professor Adjunto A2 no Departamento de Ciências Aplicadas à
Educação da FaE-UFMG e Membro do Grupo Impulsor da Red Latinoamericana de
Psicología Rural. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4278-7871
E-mail: luizribeiro@live.com
Lattes : http://lattes.cnpq.br/4707346826137662

298 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


17

Posso me tatuar ou
devo ser pai e trabalhar?
Os significados das
tatuagens de jovens
moradores de periferias
e bairros populares
Can I get a tattoo? The meanings
of tattoos by young people living in
ghettos and popular neighborhoods

Fernanda de Paula Carvalho


Orientador: Adriano Roberto Afonso do Nascimento

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 299


Fernanda de Paula Carvalho

Resumo

O texto que segue tem como objetivo apresentar dados e reflexões


produzidas, a partir de um estudo exploratório que teve como objetivo
investigar os significados das tatuagens em corpos de jovens homens,
moradores de bairros populares, e a possível relação entre esses
significados e a construção de identidades masculinas. Utilizou-se na
coleta de dados duas fontes: a) dez entrevistas com jovens, homens,
de 18 a 28 anos, moradores de bairros de classes populares da cidade
de Belo Horizonte e Santa Luzia em Minas Gerais e; b) 63 fotografias de
tatuagens dos jovens entrevistados. Com o propósito de compreender
e analisar como são expressas as masculinidades desses jovens
partiu-se dos significados atribuídos por eles às suas tatuagens e da
análise das imagens. Concluiu-se que, para os jovens entrevistados,
ser um jovem homem tatuado, na sociedade que vivemos, com as
idades que têm, com as condições sociais que possuem, tanto afirma
situações que envolvem estereótipos e preconceitos relacionados às
masculinidades e às juventudes periféricas, como pode apresentar
novas possibilidades e expectativas para suas identidades masculinas
e juvenis, principalmente nos aspectos relacionados à inserção no
trabalho e à família. A tatuagem mostrou-se, também, como uma das
possibilidades de dizer quem são, de serem julgados, de discordar,
resistir ou simplesmente ser livre para expressar na pele novas
respostas; além de dizer o que pensam e o que desejam para o mundo
em que vivem.

Palavras-chave: Juventudes; masculinidades; tatuagens.

Abstract

The following text aims to present the data and reflections produced
from an exploratory study, which aimed to investigate the meanings of
tattoos young man´s bodies, residents of popular neighborhoods, and
the possible relationship between these meanings and the construction
of male identities. Two sources were used in the data collection: a) ten
interviews with young men, aged 18 to 28, living in neighborhoods of

300 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Posso me tatuar ou devo ser pai e trabalhar? Os significados das tatuagens de jovens
moradores de periferias e bairros populares

lower income classes in the cities of Belo Horizonte and Santa Luzia
in Minas Gerais and; b) 63 tattoos photographs of young people
interviewed. With the purpose of understanding and analyzing how
the masculinities of these young people are expressed, we started from
the meanings attributed by them to their tattoos and from the analysis
of images. It was concluded that, for the young people interviewed,
being a young tattooed man, in the society we live in, with the ages
they have, with the social conditions they have, both affirms situations
that involve stereotypes and prejudices related to masculinities and
ghetto youths, how you can present new possibilities and expectations
for your male and youth identities, especially in aspects related to
insertion in work and family. Tattooing has also shown itself as one of
the possibilities of saying who you are, of being judged, of disagreeing,
resisting or simply being free to express new answers on your skin, in
addition to saying what you think and what you want for the world
you live in.

Keywords: Youth; masculinities; tattoos.

1. Introdução

As tatuagens são marcas corporais, intencionais, coloridas ou


não, e de certa forma definitivas. Estão nos corpos, em todas as suas
partes; corpos que ocupam as ruas, a televisão, os palcos, os rolês,
os campos de futebol. Estão também nas universidades, nas escolas
particulares e nas baladas. São marcas que carregam histórias,
culturas, e também elementos pessoais, subjetivos; todos estes em
constante transformação. São também diversas as juventudes nas
cidades, que expressam os mais variados modos de ser e viver a
condição juvenil. Uma diversidade que também está nas expressões
das masculinidades compostas por práticas e símbolos que definem
características, comportamentos, ações e emoções a serem seguidos
pelo universo masculino.
Utilizar as tatuagens como estratégia de identificação de expressões
das masculinidades de jovens não foi aleatório. Sabe-se que os

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 301


Fernanda de Paula Carvalho

registros da utilização da tatuagem datam de períodos da antiguidade.


Tatuar o corpo é uma prática de diferentes períodos históricos e
contextos sociais, apresentando as mais variadas formas e sentidos
(MARQUES, 1997). Analisando os dias atuais, registra-se um aumento
significativo de corpos tatuados em todos os espaços das cidades,
porém, diferente de outros momentos históricos quando esta marca
corporal se associava a grupos marginalizados, hoje em dia vemos
homens, mulheres, adultos ou jovens de diferentes idades e contextos
sociais expondo suas marcas nos mais variados locais de seus corpos
(BRETON; FRAZÃO, 2004).
Portanto, diante a universalidade destes elementos, interessou-nos
para este estudo, especificamente unir e analisar as três categorias:
ser homem, jovem e morador de bairros populares. Parte-se,
portanto, de duas questões centrais: através das tatuagens é possível
investigar as expressões das masculinidades desses jovens? Caso sim,
será possível compreender como são expressas as construções de
suas masculinidades? Para isto, construiu-se um caminho teórico e
empírico, que articulou os temas: juventudes e masculinidades a partir
de um eixo principal: as tatuagens.
A questão motivadora da pesquisa consistiu em compreender se
através da descrição dos jovens sobre as suas tatuagens - significados
atribuídos, motivações, escolha das imagens e da parte do corpo -
poderíamos acessar elementos de expressão das suas masculinidades.
E, caso fossem identificados tais elementos, seguiríamos a análise
sobre como então essas masculinidades estariam expressas por esses
jovens através das suas tatuagens.
Neste texto apresentaremos de maneira breve o percurso teórico e
metodológico adotado na pesquisa assim como os resultados obtidos
a partir da análise das entrevistas realizadas com os jovens.

2. Desenvolvimento

A pesquisa teve como objetivo analisar elementos identitários


representados em 63 (sessenta e três) tatuagens de 10 (dez) jovens,
homens, moradores de bairros populares. Para isso realizou-se um
estudo exploratório a partir de entrevistas semiestruturadas e análise

302 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Posso me tatuar ou devo ser pai e trabalhar? Os significados das tatuagens de jovens
moradores de periferias e bairros populares

de fotografias das tatuagens que tiveram seus conteúdos analisados a


partir da teoria de análise de conteúdo (BARDIN, 1997), tendo como
referência para análise a Teoria de Identidade social (TAJFEL, 1972).
As entrevistas foram realizadas com dez jovens homens, com
idades entre 18 e 28 anos, moradores de bairros populares. O roteiro
semiestruturado conteve questões de identificação do jovem como
idade, local de moradia, estado civil, orientação religiosa, seguido pela
descrição das tatuagens a partir dos processos de escolha do desenho,
local do corpo, motivação e os significados atribuídos a elas. Ao final
das entrevistas, os jovens indicavam as tatuagens e autorizavam a
fotografia das mencionadas em suas falas.
O acesso aos jovens se deu por indicações, que tiveram início com
o encontro da pesquisadora com um jovem, morador de um bairro
popular, participante de um projeto social no qual a pesquisadora havia
trabalhado em anos anteriores. O jovem não participou da pesquisa
diretamente, mas indicou outros jovens para as entrevistas. A cada
entrevista, o jovem entrevistado indicava um outro jovem - técnica de
bola de neve, e, dessa forma foram realizadas as entrevistas. Quando
essa rede se esgotou, buscou-se indicações de jovens em uma escola
pública estadual, localizada no bairro Nova Vista, em Belo Horizonte/
Minas Gerais.
Um dos pontos de destaque deste trabalho foi a relação das
tatuagens aos processos que vão muito além de uma mera escolha de
um desenho, ou de uma prática de arte e adorno expressada através
da pele (PEREZ, 2006). Nesse sentido, referencia-se neste estudo
trabalhos que relacionam a prática de tatuar a processos identitários,
que, portanto, consideram a tatuagem como possibilidade de expressão
de identidades (OLIVEIRA, 2007; SABINO; LUZ, 2006; OSÓRIO, 2006;
FERREIRA, 2014). Nestas concepções, dificilmente se tatuaria algo com
o qual não se tem identificação ou que não faça sentido para si e para
os outros.
Discute-se, portanto, a tatuagem enquanto um componente
identitário com a característica específica de ser uma marca voluntária,
uma escolha. Portanto, nos parece ser possível analisar as tatuagens
como possíveis elementos significativos da expressão das identidades
individuais e/ou sociais, já que se usamos nossos corpos para nos

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 303


Fernanda de Paula Carvalho

apresentar, e, dificilmente, ou quase nunca, se tatuaria algo que não


faça sentido para si ou para algum grupo social de pertença. Dessa
forma, na construção das identidades juvenis, para além dos elementos
presentes na escolha por uma tatuagem, relacionam-se também,
neste estudo, uma outra categoria social que é o gênero e a construção
das masculinidades. Neste sentido, as tatuagens se apresentam tanto
como possibilidades de inscrição como também de leitura do gênero/
identidade em corpos masculinos juvenis.
A importância da discussão acadêmica e social da temática de
gênero no momento e no mundo atual é indiscutível. Para Grossi
(1995) foram discussões sobre gênero provocadas pelos estudos
feministas que permitiram transformações na vida das mulheres
e também dos homens, e a identidade masculina, que em tempos
anteriores seria algo definido, sem necessidade de reflexão ou
reconstrução, passa a ser questionado tornando-se também objeto
de análise. Apesar do conceito de masculinidade surgir dentro de
uma perspectiva heteronormativa de gênero, que essencializava
as diferenças (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013) e servia somente
para diferenciar os sexos, atualmente, discutimos tanto gênero como
masculinidade como campos de estudo que vão muito além desse
passado. As perspectivas sociais, históricas e culturais permitem novas
leituras e favorecem novos e consistentes estudos, já que conforme
afirma Connell (1997), cada cultura adota formas diferentes de
caracterizar o tipo de pessoa que se considera masculina, constituindo
diferenciações em relação a esse ser homem e suas práticas. Assim,
as masculinidades se constituem como espaços simbólicos, que
definem características, comportamentos, ações e emoções a serem
seguidos, podendo ser conceituado, a partir de Connell (1997), como
configurações de práticas. Sendo assim, teríamos diferentes definições
de masculinidade, como também são diversas as formas de caracterizar
o que é considerado masculino.
Dessa forma, é importante destacar a articulação sobre a dimensão
social das categorias analisadas - juventudes, masculinidades e
tatuagens. Todas são categorias sociais, portanto, que se configuram
a partir de elementos da ordem do “social”. São criações históricas,
e seus sentidos não podem ser entendidos a partir de dimensões

304 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Posso me tatuar ou devo ser pai e trabalhar? Os significados das tatuagens de jovens
moradores de periferias e bairros populares

universais (GROPPO, 2016). Neste sentido as tatuagens, as juventudes


e as masculinidades carregam dimensões históricas, sociais e culturais,
que se constituem como elementos identitários importantes para os
sujeitos e seus grupos nos mais variados contextos.
O processo de análise do conteúdo das entrevistas e das fotografias
permitiram a visualização geral do material - imagem e texto e a
identificação de pontos de encontro e divergência entre os conteúdos
tanto das entrevistas quanto das análises das imagens das tatuagens.
A partir do conteúdo das entrevistas identificou-se um conjunto geral
que expressou elementos constitutivos das identidades dos jovens
entrevistados. Este elemento central, que chamamos de “Eu sou”
, constituiu-se a partir de quatro perspectivas: “De onde venho”,
“Como me vejo”, “Onde estou”, “Com quem estou” e elementos
identificados como “Estéticos” que foram categorizados a partir das
seguintes características: (a) De onde venho: atribuição de significados
que expressam aspectos relacionados à família, pois foi significativo o
número de tatuagens com os nomes das mães, avós, filhas, e também
as que remetem a outros parentes como sobrinha, primo e avô, além
da própria palavra “família”; (b) Como me vejo: significados que fazem
referência ao modo como os jovens se sentem/percebem em relação
a si mesmos; (c) Onde estou: significados relacionados a “localização”
no mundo, expressando como os jovens se reconhecem a partir da
realidade em que vivem. Foram desenhos, frases que nos apresentam
as diferentes maneiras como os jovens se veem no mundo, ou veem
o mundo, e o que querem dizer sobre isso; (d) Com quem estou:
significados atribuídos pelos jovens às suas tatuagens relacionados ao
pertencimento a grupos musicais, de dança, a torcidas organizadas, a
grupos profissionais e religiosos; e por fim, (e) Estética: para além das
categorias anteriores foi possível perceber um conjunto de tatuagens
apresentadas pelos jovens a partir de uma outra referência: a estética.
Tatuagens significadas a partir da escolha de um determinado desenho
representado muitas vezes pela frase “vi, gostei e fiz”.

3. Conclusão

É importante destacar que as tatuagens apresentam uma

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 305


Fernanda de Paula Carvalho

diversidade de sentidos e significados que ao longo do tempo são


construídos e (re) construídos. Vê-se, portanto, que dentro dessa
variedade existem pontos de encontro, por exemplo, relacionados
a aspectos das identidades juvenis (OLIVEIRA, 2007). Em relação à
pesquisa em questão observou-se como os componentes identitários
fizeram-se presentes principalmente em relação aos significados
atribuídos aos jovens às suas tatuagens sendo expressos na busca pela
resposta à pergunta “Quem eu sou?”, tão significativa nos processos
de construção de identidade. Segundo Vala (1997), a Identidade Social
está associada às respostas para perguntas como “quem sou eu?” e “o
que significa pertencer a esse grupo?”. As respostas a essas perguntas,
emitidas em contextos de comunicação, possibilitam a criação e a
transmissão de valores, normas, símbolos e crenças, que permitem
a constituição de autoimagens que diferenciam os membros que
pertencem ou não aos grupos.
Quanto aos elementos constitutivos de suas masculinidades, viu-
se a partir das falas dos jovens, que as expectativas sobre o que é
“ser homem” por parte da sociedade se mostram contrastantes aos
que as tatuagens podem representar, também, para essa sociedade.
Portanto, ter o corpo tatuado pode expressar elementos contrários
ao equilíbrio, à responsabilidade com a família e, principalmente, com
o trabalho, que são expectativas tradicionalmente relacionadas aos
homens (PARKER, 1991), principalmente a eles jovens moradores de
periferias e bairros populares.
É certo também para estes jovens que o conteúdo discriminatório
que as tatuagens representavam historicamente ainda se faz presente
hoje em dia nas sociedades, entretanto associados somente a
determinados grupos sociais (nos quais eles se incluem). Nesse
sentido, os corpos de jovens de determinados territórios quando
tatuados adicionam elementos às representações sociais, expectativas
e percepções que já são historicamente carregadas de aspectos
negativos, em especial sobre determinadas juventudes. Nesse sentido,
as tatuagens são para esses jovens mais um elemento discriminatório,
que associados aos preconceitos quanto à raça/cor, ao local onde
moram e a condição econômica adicionam novas marcas em suas
identidades, a marca da discriminação – “são bandidos!”, além da

306 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Posso me tatuar ou devo ser pai e trabalhar? Os significados das tatuagens de jovens
moradores de periferias e bairros populares

restrição no acesso a determinados espaços, em especial, do trabalho.


Dessa forma, o trabalho apresentou pontos de interseção
interessantes na discussão que envolve juventudes, tatuagens e
masculinidades por destacar elementos significativos que dizem
respeito às experiências contemporâneas dos jovens, em especial,
moradores de bairros populares. Um desses pontos de destaque foi
a relação entre ser homem, jovem, tatuado e a inserção no mercado
de trabalho. Tal relação aparece de maneira clara na descrição dos
jovens entrevistados à medida que relatam a cobrança principalmente
após os 18 anos de se incluírem no mercado de trabalho, com o
principal argumento de “já serem homens“. Segundo Grossi (1995),
há tempos a inclusão pelo trabalho é tratada como alternativa
para o desenvolvimento da economia e, consequentemente, da
responsabilidade do homem perante a sua família e a sociedade.
Outro elemento é o consumo, uma das marcas da sociedade
contemporânea, que é alimentado cotidianamente pela ampliação de
acesso e pela diversidade dos produtos e mercadorias. Com o consumo
vem a necessidade do dinheiro, do trabalho, e o trabalho faz parte da
condição juvenil (LEÃO; CARMO, 2014). Por conseguinte, a busca pelo
emprego pela juventude pobre é a realidade e também a preocupação
para muitos jovens, principalmente homens que, por pressão social,
familiar ou pelo próprio desejo, buscam cotidianamente uma colocação
no mundo do trabalho.
A entrada no mundo do trabalho, ou a pressão para que isso
aconteça, mostra-se como um objetivo a ser alcançado, contudo, o
desejo de vivenciar a liberdade e criar novos estilos de vida também está
presente, e se constitui enquanto mais um elemento que fortalece a
cultura e a juventude de periferia (DIÓGENES, 2008). Um paradoxo que
esteve presente entre os jovens entrevistados quando contrapõem a
escolha pela tatuagem e a liberdade de “ser quem querem ser”. Tatuar
os seus corpos é um contraponto à responsabilidade “do homem”
representada pela busca de um trabalho ou uma renda para sustentar
suas famílias.
Além do trabalho, um outro elemento interessante de análise
que surgiu neste estudo na relação entre juventudes periféricas,
masculinidades, tatuagens foi o lugar da família para esses jovens.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 307


Fernanda de Paula Carvalho

A família esteve significativamente representada nas tatuagens dos


jovens entrevistados, tanto nas imagens quanto nos significados
atribuídos às tatuagens. Nomes das mães, dos filhos, sobrinhos e avós,
ou algum outro símbolo que homenagearia as suas famílias e que
expressaram, especialmente, duas condições: a de serem filhos e de
terem se tornado pais.
Entretanto, a família, assim como a dimensão do trabalho,
apresenta-se nas falas desses jovens em contraponto às convenções
históricas do que se “esperaria” do homem na nossa sociedade, pois
a partir das falas dos entrevistados, a relação com a família apresenta-
se não na reprodução do lugar do homem, pai, provedor, mas como
uma possibilidade de (re)construção dessas identidades masculinas
historicamente constituídas. O nome das suas mães, das filhas e filhos
tatuados nos corpos e os significados expressos na importância dessas
pessoas para as suas vidas dizem de uma relação que não se pauta no
distanciamento ou na não expressão do afeto característicos de um
“homem de tempos passados”, mas apresentaria novas possibilidades
de expressões de carinho e a expectativa de que esses jovens homens
possam ocupar novos lugares no desenvolvimento dos seus filhos, na
família, muito além da responsabilidade única do provento.
Dessa forma, as masculinidades fazem parte de um universo
dialético de construções e reconstruções constantes. Adicionadas a
elementos como identidades juvenis e tatuagens ampliam ainda mais
as possibilidades em seus sentidos e significados. Através das suas
tatuagens, os jovens nos permitiram acessar elementos que afirmam
práticas tradicionais vinculadas ao que é “ser homem”, contudo,
paralelamente reconstruíram alternativas de viver tais práticas. É,
portanto, igualmente possível compreender as novas potencialidades,
ou novas construções, ainda a serem conquistadas sobre o que se
espera do homem, jovem na nossa sociedade.
Entretanto, sabe-se que ao final de todo estudo sempre ficam
algumas questões. Para esse em questão é possível perguntarmos: será
que o jovem de classe média, branco, com o corpo tatuado, vivencia
esses mesmos desafios? As expectativas, imposições ou restrições em
relação ao trabalho se apresentariam da mesma forma nas descrições
desses jovens? Também as (re) construções nas práticas masculinas

308 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Posso me tatuar ou devo ser pai e trabalhar? Os significados das tatuagens de jovens
moradores de periferias e bairros populares

no ambiente privado, nas relações familiares, estão acontecendo em


outros grupos juvenis? Cientes do impossível que é esgotar o tema
neste trabalho, ficam essas questões para a reflexão e o desafio para
novos estudos.

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Sobre a autora

Fernanda de Paula Carvalho


Doutoranda em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais- Puc
Minas, mestra em Psicologia Social pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/
UFMG. Especialista em Políticas Públicas pelo Departamento de Ciência Política - DCP/
UFMG e graduada em Psicologia pela PUCMinas. Atualmente docente na Faculdade
Ciências da Vida em Sete Lagoas.
Email: nanda_depaula@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6218551924004418

Orientador: Adriano Roberto Afonso do Nascimento

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 311


18

Violência por parceiro


íntimo contra a
jovem da ralé: uma
construção social
Violence by an intimate partner
against the young woman
commoner: a social construction

Geisilane Nogueira da Silva

312 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

Resumo

Esse estudo tem por objetivo lançar luz sobre a violência contra mu-
lheres jovens praticadas por parceiro íntimo. Busca compreender as
diversas formas de juventudes, e, de modo especial, as experiências da
ralé brasileira, envolvendo as desigualdades sociais e a vulnerabilidade
em correlação com a violência. Para isso, utiliza-se a revisão bibliográ-
fica sobre os temas propostos. Percorre-se as características da juven-
tude brasileira em associação com a violência e suas consequências,
exibindo dados de documentos produzidos por instituições federais e
internacionais. Os dados também são comparados com os contextos
descritos no texto Ralé Brasileira de Jessé Souza. Conclui-se que, de
modo especial, as mulheres são mais afetadas pelas responsabilidades
da vida doméstica, bem como no contexto da vida amorosa, pelos inú-
meros desafetos vividos desde a infância. A violência e vulnerabilidade
atingem de modo ainda mais grave a mulher negra. A promoção da
igualdade de gênero e racial e a intolerância à violência podem ajudar
na prevenção da violência praticada por parceiro íntimo. A(o) psicoló-
ga(o) deve agir com uma escuta acolhedora, sem responsabilizar uni-
camente a jovem pela situação em que vive. É necessária uma abor-
dagem interdisciplinar e intersetorial, pois ações de responsabilização
individual não rompem com relações de poder. As notórias conquistas
através dos movimentos sociais revelam que ações que promovam um
feminismo plural podem ser o caminho para que se rompa a opressão.

Palavras-chave: Feminismo; Gênero; Juventude; Violência.

Abstract

This study aims throw light at the violence against young women prac-
ticed by an intimate partner. It seeks to understand the different forms
of youth, and, in a special way, the experiences of Brazilian commo-
ner, involving social inequalities and vulnerability in correlation with
violence. For this, a bibliographic review on the proposed themes is
used. It examines the characteristics of Brazilian youth in association

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 313


Geisilane Nogueira da Silva

with violence and its consequences, displaying data from documents


produced by federal and international institutions.The data are also
compared with the described contexts in the text Ralé Brasileira by
Jessé Souza. It is concluded that, in particular, women are most affec-
ted by the responsibilities of domestic life, as well in the context of
love life, by the countless disaffected experienced since childhood.
Violence and vulnerability affect even more severely a black woman.
Promoting gender and racial equality and intolerance to violence can
help prevent intimate partner violence. The psychologist must act with
a welcoming listening, without solely blaming the young woman for
the situation in which she lives. An interdisciplinary and intersectoral
approach is necessary, as actions of individual accountability do not
break with power relations. The notorious achievements through so-
cial movements reveal that actions that promote plural feminism can
be the way to break oppression.

Keywords: Feminism; Genre; Youth; Violence

1. Introdução

Para se pensar a violência contra mulher por parceiro íntimo na


juventude se faz necessário, inicialmente, refletir sobre o perfil dessa
fase do desenvolvimento humano. Esse é um trabalho complexo, pois
a juventude é representada em definições que a levam do singular ao
plural, da forma específica ao modo geral, da faixa etária ao modelo
classista-geracional, do número padrão às estatísticas (PEIXOTO et al.
2020).
O Marco Legal da Saúde de Adolescentes (BRASIL, 2007) traz a
visão da Organização Mundial da Saúde (OMS) que circunscreve a
adolescência pela faixa etária de 10 a 19 anos e considera a juventude
pela extensão dos 15 aos 24 anos. Há ainda uma divisão entre
adolescentes jovens, que compreende dos 15 aos 19 anos, e adultos
jovens, aqueles entre 20 e 24 anos. Há ainda uma classificação em três
divisões estabelecidas em 2005 pela Secretaria Nacional de Juventude
(SNJ) e o Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE). Entre 15 e 17

314 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

anos estariam compreendidos os jovem-adolescente, de 18 a 24 anos


o grupo definido como jovem-jovem e de 24 a 29 anos seriam os jovens
adultos (PEIXOTO et al. 2020).
Pelo Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013) que dispõe sobre os
direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas
de juventude e o Sistema Nacional de Juventude (SINAJUVE), são
consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos de idade.
Já segundo a lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 que dispõe sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os adolescentes são
as pessoas entre 12 e 18 anos incompletos (BRASIL, 1990). Há uma
interseção dos anos iniciais da faixa etária definida pelo Estatuto da
Juventude com os anos finais da adolescência segundo a vigência do
ECA. Na própria legislação do Estatuto da Juventude há uma ressalva
de que aos adolescentes com idade entre 15 e 18 anos aplica-se a Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990, ou seja, o ECA sendo que o estatuto
da Juventude atua de forma complementar.
A partir dessas mais variadas descrições, poderia se dizer que não
há um consenso sobre o que compreende a juventude e, ainda, que as
tentativas de definições se baseiam unicamente pela faixa etária. São
inúmeras as vivências dessa fase do desenvolvimento, que extrapolam
os critérios definidos pela faixa etária e que, por outro lado, são pouco
investigados. Alguns fatores, entre eles a pobreza, as desigualdades
sociais, a violência, a exclusão social e a vulnerabilidade, têm instigado
pesquisadores a explorar a juventude correlacionando-a com essas
facetas (MAIA et al. 2016). Será realizado um enfoque sobre a violência
contra a mulher provocada por parceiro íntimo, tendo em vista o
potencial fator de risco ao desenvolvimento das jovens.

2. Método

Este estudo objetiva lançar luz sobre a vivência de violência por


mulheres jovens brasileiras praticadas por parceiro íntimo. Para isso, foi
realizada revisão bibliográfica sobre os temas propostos. Inicialmente,
foi realizado um estudo sobre o tema juventude afim de caracterizar
esse público no contexto da sociedade brasileira. Em seguida, fez-
se considerações sobre a violência e suas consequências para os

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 315


Geisilane Nogueira da Silva

envolvidos. Ao longo do texto são exibidos dados sobre as temáticas


extraídos em documentos produzidos por instituição federais e
internacionais. Posteriormente, é realizada uma análise da juventude
feminina no Brasil considerando a obra Ralé Brasileira de Jessé Souza
(2009). Por fim, apresenta-se o feminismo e o empoderamento
feminino como saídas para essas situações. Considerou-se os múltiplos
fatores que envolvem a violência, bem como a relevância de seu estudo
em razão dos prejuízos causados aos sujeitos envolvidos.

3. As juventudes brasileiras

As Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de


Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde
(BRASIL, 2010) fazem um importante apontamento sobre a juventude
no contexto brasileiro. Considerando as dimensões continentais, a
formação histórica e social multicultural do país, é preciso enxergar
a vastidão da diversidade de modos de vida desses jovens a fim de se
enxergar as juventudes. Faz-se necessário um caminhar que transcenda
um conceito que se fundamente apenas na faixa etária, por outro
que seja capaz de admitir a amplitude de fatores que correlacionem
transformações biopsicossociais. (PEIXOTO et al. 2020). Isso implica
ampliar os conceitos para que possam compreender todas as formas de
juventude. Os termos adolescências e juventudes devem ser adotados
no plural por se reconhecer a imensa diversidade de experiências, as
condições sociais, as diferenças raciais, étnicas, religiosas, culturais,
as questões ligadas a gênero e a orientação sexual que compõem o
universo desses segmentos populacionais (BRASIL, 2010).
O Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013) consolida em lei os
direitos relacionados à cidadania, à participação social e política, à
representação juvenil, à educação, à profissionalização, ao trabalho e
à renda, à diversidade e à igualdade, à saúde, à cultura, à comunicação
e à liberdade de expressão, ao desporto e ao lazer, ao território e à
mobilidade, à sustentabilidade e ao meio ambiente, à segurança
pública e ao acesso à justiça. Porém, alguns dados sobre a juventude
brasileira mostram que o cumprimento de tais direitos não chega a
todos os jovens.

316 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

Apesar de as estatísticas não proporcionarem a compreensão


ampliada das vivências das juventudes, alguns indicadores sociais
podem demonstrar um recorte de traços da sociedade brasileira atual.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre as
condições de vida da população jovem, entre 15 a 29 anos de idade
são apontados em sínteses de indicadores sociais brasileiros. Em 2013,
essa população correspondia a 24,3% do total, e se faziam presentes
em 49,4% da soma de composições familiares residentes em domicílios
particulares. A renda mensal per capita nas famílias com ao menos
um jovem foi em média 36,3% inferior ao rendimento nas famílias
sem jovens e 22,4% inferior a produção per capita média do total das
famílias. Pode-se perceber que essas famílias são mais vulneráveis do
ponto de vista do rendimento mensal familiar per capita (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014).
Os dados sobre esses jovens revelam que aproximadamente 1
em cada 5 não frequentavam escola e nem trabalhavam na semana
de referência, no ano de 2013. As proporções foram de 10,2% entre
os jovens de 15 a 17, 24,0% entre aqueles com 18 a 24 anos, 21,8%
entre os com 25 a 29 anos de idade. Há uma ligeira maioria feminina
entre o total de jovens (50,1%), porém, merece destaque que, entre
os jovens que não trabalhavam nem estudavam, as mulheres eram
maioria (68,8%). Se comparado ao número total de jovens (56,1%),
entre os que não trabalhava ou estudava, os pretos e pardos tinham
maior participação (62,9%), e mesmo quando comparado a qualquer
outra categoria de atividade (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2014).
A responsabilidade de cuidar de afazeres domésticos é notada
de forma mais elevada entre aqueles que não trabalhavam nem
estudavam, especialmente para as mulheres. Foi apontado que o
número médio de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos
era de 13,1 horas para as mulheres que trabalhavam e estudavam e 28,0
horas para aquelas que não trabalhavam nem estudavam, enquanto
os homens correspondiam a 7,8 horas para os que trabalhavam e
estudavam e 11,4 horas para os que não trabalhavam ou estudavam
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014).

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 317


Geisilane Nogueira da Silva

4 Caracterização da violência e seus desdobramentos

As situações de violência são vivências que acarretam inúmeros


desdobramentos negativos para os sujeitos envolvidos, atingindo
diferentes extensões de suas vidas. Nessas situações, não é apenas a
pessoa agredida que sofre, mas também os membros da família que
convivem direta ou indiretamente com a violência. Segundo a Lei nº
11.340, de 7 de agosto de 2006 conhecida como lei Maria da Penha
(BRASIL, 2006), a violência doméstica e familiar contra a mulher pode
se manifestar de várias formas, podendo ser física (condutas que
ofendam a integridade corpórea); psicológica (danos emocionais, na
autoestima, no desenvolvimento; controle e degradação de ações,
comportamentos, crenças e decisões); sexual (comportamento
que vise a manutenção de relação sexual não desejada, motivação
à comercialização da sexualidade, impedição do uso de métodos
contraceptivos, limitação ou anulação do exercício de seus direitos
sexuais e reprodutivos, entre outras); patrimonial (retenção, subtração
ou destruição parcial ou total de seus objetos, recursos, direitos,
etc.) e moral (ações que configurem calúnia, difamação ou injúria).
Essas formas de violência possuem diferentes níveis de gravidade,
e, geralmente, os episódios são recorrentes, apesar de muitas vezes
serem encobertos ou silenciados.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (2015) uma em
cada três mulheres foi vítima de violência física ou sexual praticada
por parceiro íntimo em algum momento da vida. Como consequência,
esse tipo de violência é um importante fator de risco para infecções
sexualmente transmissíveis, dentre elas o HIV, gravidez indesejada e
outros problemas de saúde reprodutiva. Essas mulheres expostas a
violência cometida por parceiro íntimo têm duas vezes mais chances
de apresentar distúrbios relacionados a ingestão de álcool e de sofrer
depressão, e risco mais elevado de tentar suicídio se comparada a
mulheres que não foram expostas a esse tipo de violência.
Os atos de violência têm também custo econômico para os países,
apesar de não se saber em números exatos ou ser subestimada em
países em desenvolvimento. Sabe-se que existem custos diretos
como a necessidade de tratamento, a manutenção de serviços de

318 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

saúde mental e de cuidados emergenciais, como também o custeio


de respostas da justiça criminal. Outros custos indiretos também são
gerados. As vítimas de violência tendem a experimentar períodos de
desemprego, absenteísmo e a ter o desempenho no trabalho afetado
devido a problemas de saúde (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE,
2015).
Quando a violência ocorre na juventude, temos ainda mais fatores
preocupantes. Segundo a OMS (2015), a violência juvenil pode
resultar em sérios riscos. Para além de mortes e ferimentos, ela é
capaz de derivar em problemas de saúde mental e em aumento de
comportamentos de risco, entre eles o uso de drogas e bebidas
alcoólicas, tabagismo e sexo inseguro. Outro fator relevante é que os
perpetradores e vítimas de violência juvenil comumente trazem como
marca um longo histórico de implicação com violência, sendo que
muitos foram vítimas de maus-tratos na infância.

5. Constituição da violência na ralé brasileira

Faremos então uma contextualização do discutido até então com


a obra Ralé Brasileira de Jessé Souza (2009). O autor problematiza a
visão social do homem como homo economicus. Nesse conceito, todos
os seres humanos são vistos como racionais e dispõem das mesmas
capacidades e possibilidades comportamentais diante do cálculo da
possibilidade de existência na luta social por recursos escassos. Nessa
visão, o miserável e sua miséria são concebidos como acidentes e
basta uma ajuda governamental passageira para que se responsabilize
pelos próprios atos.
Segundo o autor, a família teria o papel de conectar o indivíduo
solto no mundo a alguma forma de comunidade social. Ele critica esse
esquecimento de que os valores familiares não são autênticos, e sim,
constituintes do mundo em que vivem. As famílias ensinam coisas da
realidade da classe à qual pertencem, e acabam se relacionando e
casando com indivíduos da mesma classe.
No capítulo intitulado A miséria do amor dos pobres, escrito por
Silva, Torres e Berg (SOUZA, 2009) é feita uma análise ainda mais
profunda sobre as relações femininas. O Brasil é visto como um

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 319


Geisilane Nogueira da Silva

país afetuoso, algo que faz da desigualdade e da pobreza questões


secundárias para que se tenha uma boa vida, visto que o brasileiro é
alguém inabalável em sua capacidade de amar e ser amado, mesmo
que privado de direitos fundamentais. Mas se a ralé brasileira não
experimenta o afeto e o carinho nem mesmo na infância, como seria
capaz de ofertar isso a outra pessoa ao crescer? Os autores apontam
que as mulheres são criadas para uma luta desesperada pelo amor
em um jogo contínuo de sedução e conquista no qual são sempre
objetos. Afirmam ainda sobre as condições e desafetos vividos desde
muito cedo para as mulheres da ralé ao apresentarem duas jovens que
vivenciam a condição de menina pobre despossuída de beleza segundo
o padrão imposto socialmente. Quando esse corpo se torna digno de
uma erotização, ele é usado para atrair o reconhecimento masculino.
Um cuidado especial é tomado pelas jovens de cabelos crespos para
que não apresentem um aspecto descuidado. É algo bem diferente do
privilégio vivido pelas meninas de classe média, lapidadas para uma
contemplação que não só compreende o uso sexual.
O texto aponta de forma quase poética as composições familiares
nesses contextos. Comumente se encontra uma mãe empregada
doméstica ou uma avó lavadeira, que ganham um salário mínimo ou
menos, e quando há um pai ou um avô, este vende algumas velharias que
complementam a renda familiar. Muitas vezes é dessa figura masculina
que se iniciam as marcas da violência. O pai, quando não está em algum
boteco bebendo, desde jovem espanca a mulher e os filhos. Muitas
vezes é buscado pela esposa nos bares, que incansavelmente se vê na
missão de sustentar seu casamento, já que é o que ouve nos encontros
promovidos pela igreja. A menina cresce vendo a mãe aguentar os
gritos, as brigas e os objetos sendo quebrados, logo os que tanto
lutou para comprar. Já a vida escolar, muitas vezes é acompanhada no
revezamento entre a mãe e a avó, pois o pai acha tudo uma bobagem,
inclusive as festinhas de dia dos pais. A jovem reproduz as brigas que
ouve em casa, xinga e desobedece aos professores que a desprezam e
a acham insuportável. Quando a mãe é chamada na escola, ao chegar
em casa agride violentamente a filha pelo mal comportamento escolar
(SOUZA, 2009).
Os autores apresentam uma casa que normalmente é construída

320 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

com um teto que deixa a chuva passar e com restos de tintas de outras
obras, conseguidos por parentes. E depois de todo esse contexto ainda
é incompreendido como essa pele é insensível aos toques mais suaves.
O início da vida sexual é exigido como prova de amor pelo parceiro.
Com um misto de culpa e medo por ter se entregado fácil demais, essa
jovem não sente que alguém possa lhe dar consolo. Como agravante
ainda pode descobrir que companheiro usa drogas, ou mesmo correr
uma gravidez indesejada, já que ninguém lhe deu orientações sobre
seu copo. A juventude lhe foi roubada, a antiga menina digna de
um corpo erotizado e cobiçado se transforma em uma jovem mãe,
descartada por seu companheiro e candidata ao abuso de todos os
homens. Ao invés de conversas sobre o corpo e sobre sexualidade
desde a tenra idade, as mães ensinam o jogo da dissimulação com
palavras e gestos, já que elas próprias nunca puderam relaxar e brincar
em sua própria vida sexual. Diferente das jovens de classe média que
possuem fontes de afeto tais como as amizades e o reconhecimento
social pelos estudos e trabalho, a esperança da jovem da ralé se dá na
vida sexual e na busca por um parceiro. O desvalor de ser mulher pobre
condensa-se como produto de dupla dominação: primeiramente de
gênero e depois de classe (SOUZA, 2009).

6. A via do feminismo

A Organização Mundial da Saúde (2015) indica como algumas das


formas de prevenção da violência praticada por parceiro íntimo a
promoção da igualdade de gênero e a criação de um ambiente de não
tolerância à violência. O movimento feminista provocou uma importante
aproximação do setor da saúde em relação à temática da violência,
que passaram a incluir em sua pauta de enfrentamento da violência
contra mulher um olhar para além das lesões e traumas. Também foi a
partir desses movimentos que as mulheres se emanciparam e tiveram
seus direitos sexuais e reprodutivos reconhecidos. O surgimento
da pílula anticoncepcional desassociou sexo e reprodução biológica
(BRANCAGLIONI, 2016).
Foi apenas no século XX que nasceram movimentos organizados

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 321


Geisilane Nogueira da Silva

de mulheres, marcados pela reivindicação de direitos políticos e civis,


como o direito ao voto e à educação e que contribuíram para a revisão
da Declaração dos direitos do Homem e Cidadão, que foi substituída
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada em 1948.
Por ainda vivenciarem condições precárias de vida e trabalho, uma
segunda onda desses movimentos feministas adentrou a academia,
primeiramente para descrever as relações entre os sexos, para
evidenciar as desigualdades entre homens e mulheres e, em seguida,
para compreender e demonstrar essas desigualdades (BRANCAGLIONI,
2016). De modo geral, na literatura, há diversas obras que reproduzem
o discurso de beleza, bondade, doçura, paciência e delicadeza como
recursos essencialmente femininos. Há uma tendência a educar os
meninos para que valorizem a agressividade, a força física, a ação,
a dominação e a satisfação de seus desejos. Já as meninas, são
comumente valorizadas pela dependência, delicadeza, sedução,
submissão, beleza, sentimentalismo, passividade e cuidado com os
outros (PARADA, 2009).
Como afirma Brancaglioni (2016), em outras épocas a subalternidade
feminina era justificada pelas diferenças biológicas entre os sexos. O
termo gênero foi utilizado como forma de resistência e transformação
social pelo movimento feminista para ressaltar que as desigualdades
entre os sexos possuem caráter histórico e social. Essas associações não
são naturais, são socialmente construídas e específicas a determinados
contextos históricos e culturais (SOUZA; RIBEIRO, 2020).
Especificamente no Brasil, o movimento feminista surgiu em
meados de 1970 como forma de denunciar a violência praticada contra
mulheres no contexto doméstico, momento em que encontrou um
terreno palpável para as reivindicações daquela época. Desde então,
termos como violência contra mulheres, violência doméstica, violência
familiar ou intrafamiliar, violência conjugal ou violência gênero foram
paulatinamente incorporadas ao vocabulário das reivindicações
feministas e das políticas públicas. Surgiram nas universidades imensos
e poderosos debates, destinados a conceituar cada uma dessas
expressões (ZIMERMAN, 2017).
Apesar de o foco desse estudo ser a violência, o machismo não
diz respeito somente aos atos de violência, em quaisquer sejam suas

322 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

formas, praticadas por homens direcionados às mulheres. Eles estão


relacionados aos elementos culturais, que perduram pelo processo de
socialização e que está para além da relação com o gênero. A partir
disso, pode-se dizer de uma cultura machista, com modos e padrões
comportamentais, que são reproduzidos pelos sujeitos que visam
subjugar, silenciar, ou impor condutas, norteadas pela ideia de que
o masculino é superior ao feminino (OLIVEIRA; LIMA; GOMES, 2018).
O feminismo deve ser entendido como um movimento plural, que
compreenda os diferentes contextos sociais, mesmo que mantendo
uma vertente em comum. Também deve ser um termo escrito no
plural, já que os feminismos têm suas diversas definições e reúne
mulheres de distintas situações econômicas, políticas e sociais (MATIA,
2018).
Ocorre no Brasil a naturalização e aceitação da violência através da
culpabilização da vítima, principalmente, as pertencentes as esferas
vulneráveis como mulheres, crianças e adolescentes, idosos, negros.
Assim, justifica-se que a estuprada foi quem provocou o estupro
pela forma como se vestia e o jovem é transformado em marginal,
delinquente, drogado ou traficante. A criação de proteção através
de leis ou mecanismos específicos de proteção como o Estatutos
da Criança e do Adolescente, da Juventude, a Lei Maria da Penha,
ações afirmativas, aponta com nitidez a existência de desigualdades
e vulnerabilidades. Haveria então, uma violência estrutural, silenciosa
e difusa, que é aceita e até necessária, variante de acordo com
determinados grupos sociais. Ela é admitida inclusive por profissionais
e instituições que teriam a obrigação e dever de proteger esses grupos
(WAISELFISZ, 2014).
Dentro dessas distinções sociais, é importante falar da mulher
jovem negra. Merece cuidado o cenário de violência no contexto da
sociedade brasileira, que esculpe a letalidade para a juventude negra
brasileira (JULIANO, 2020). Há um quadro de vulnerabilidade social
(carência ou ao acesso precário a direitos como saúde, alimentação,
moradia, educação, saneamento básico, previdência social, emprego,
entre outros), além do racismo e da violência que compromete
de forma ainda mais específica os jovens negros. Não só o Estado
brasileiro, como também organizações internacionais – entre elas a

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 323


Geisilane Nogueira da Silva

Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização Mundial


da Saúde (OMS) – têm denunciado o extermínio da juventude negra
brasileira (CORDEIRO; CORDEIRO, 2015).

7. Discussão

As políticas públicas formuladas para combater a violência de


gênero, embora fundamentais, não são unicamente capazes de fazer
com que a sociedade reflita e problematize acerca da violência contra
as mulheres (OLIVEIRA; LIMA; GOMES, 2018). Uma instituição de forma
isolada não é capaz de mudar toda uma sociedade, visto a complexidade
dos problemas sociais. Portanto, são necessárias atuações conjuntas.
A violência está determinada por fatores psicossociais, multicausais e
socioeconômicos, sendo necessária uma abordagem interdisciplinar e
intersetorial.
A lógica da responsabilização individual não rompe de forma única
com as relações de poder. Conforme apresentado pela obra de Jessé
Souza (2009) há determinantes sociais que moldam a vida de meninos
e meninas desde as experiências infantis e se torna improvável que
aqueles que vivem em um mundo de privação encontrem o amor
romântico. Os dados apontados pelo IBGE (2014) mostram que
as famílias com jovens têm uma renda mensal 36,3% inferior aos
de uma família sem jovens. Nota-se ainda que 1 em cada 5 jovens
não frequentam a escola nem trabalham, sendo que as mulheres
representam 68,8% desse público e ainda os pretos e pardos têm
maior participação no público total, quase 63%. Para as mulheres
eu não trabalham nem estudam, lhes restam 28 horas semanais de
dedicação nos afazeres domésticos. Essas jovens vivem necessidades
relacionadas à sua sobrevivência material e subjetiva muito maiores que
a vivência de um amor saudável, ainda que todas essas necessidades
sejam direitos supostamente garantidos por lei. Como seriam essas
jovens capazes de desenvolver autoconfiança se só aprenderam a usar
e serem usadas?
A violência provocada por parceiro íntimo traz consigo a marca
de ocorrer com alguém que preenche um lugar de referência para a
pessoa. Assim, sentimentos contraditórios como confiança e medo,

324 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

respeito e desprezo, amor e ódio, estão presentes concomitantemente


nessa relação. Caracteriza-se então por uma situação extremamente
delicada e que geralmente acontece inúmeras vezes. Na atuação
da(o) psicóloga(o) diante dessa situação é importante não fixar as
pessoas nos lugares de vítima e agressor, para que desse modo haja
uma abertura para que cada um tenha o seu lugar de palavra. Assim,
cria-se a oportunidade de refletir sobre sua existência e seus modos
de ser. A(o) profissional deve primordialmente acolher, escutar e criar
um vínculo com essas jovens que procuram por atendimento. Deve
entender que não é nesse primeiro contato que toda a situação de
violência será solucionada, mas essa postura inicial é relevante para a
possibilidade de mudança (RIBEIRO et al., 2015).
De forma ampliada, é preciso refletir sobre o potencial da
juventude feminina e negra para o desenvolvimento do país em todos
os seus aspectos. O extermínio da juventude feminina e negra revela
a crueldade do machismo e do racismo, presentes na sociedade
brasileira além de seu atraso, ao aniquilar violentamente parte de
seu potencial (CORDEIRO; CORDEIRO, 2015). Por isso, acredita-se na
necessidade urgente de estudos sobre gênero e violência de gênero
que sejam capazes de evidenciar essa problemática e promovam a
reflexão não só dos jovens como de toda a sociedade contemporânea,
seja nos espaços formais ou informais.

8. Considerações finais

As juventudes brasileiras se constituem de forma multicultural,


portanto, devem ser enxergadas em sua forma diversa de
apresentação. As situações de violência vividas por esse público,
sejam nas formas mais evidentes ou nas insidiosas, podem resultar
em agravantes ainda maiores para si e para o meio em que vivem.
Especialmente nas mulheres da ralé, as relações amorosas podem se
constituir como única forma de se conseguir afeto. Inúmeras vivências
são típicas dessa classe e merecem destaque a ausência moral afetiva
do pai, economia familiar com empregos precários, habitações com
conjunturas insuficientes para uma vivência digna, inexistência de
diálogos sobre o corpo, e, por fim, espancamento da mãe e de si

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 325


Geisilane Nogueira da Silva

mesma desde a infância. Portanto, com a privação familiar de afeto e


segurança desde criança, é comum que essa jovem visualize afeto em
caminhos fechados para a afetividade.
Dessa forma, diante da complexidade do fenômeno da violência,
ao envolver fatores subjetivos, familiares e sociais, somente a
responsabilização individual não é capaz de o resolver. Tendo em vista
os aspectos abordados faz-se necessário romper relações de poder
entre gêneros e classes, já que durante muito tempo as mulheres
foram privadas de liberdade, incluindo a sexual, o que contribui para
que ela permaneça em uma relação mesmo sendo vítima de violência.
Desse modo, a(o) psicóloga(o) que conduz um caso de violência deve
se tornar ponte, agindo com respeito ao tempo que o sujeito necessita
para compreender seu contexto e sua parcela de responsabilidade
diante da relação na qual se encontra. Porém, sabe-se da necessidade
de desconstrução de opressões entre classes e gêneros, algo que não
será resolvido unicamente nessa relação entre a pessoa violentada e
a(o) profissional. É preciso resgatar a autonomia e poder de mudança
dessas mulheres. Um feminismo plural, que compreenda os diferentes
contextos sociais, e o empoderamento feminino podem ser caminhos
de reflexão sobre a vivência dessas situações, já que os direitos das
mulheres existentes na contemporaneidade só foram conquistados
através dos movimentos sociais.
Assim, devem haver práticas institucionais e sociais de qualidade,
que sejam estimuladoras de indivíduos livres e que garantam a
possibilidade de crítica e a independência de opinião e de ação, para
que se rompa a naturalização e a aceitação da violência. O estudo da
perspectiva de gênero permite compreender os diversos processos
históricos e sociais pelos quais os seres humanos se constroem
e se distinguem como homens e mulheres, sendo potente para
a compreensão e diminuição da violência por parceiro íntimo na
juventude, por estudar as relações de poder estabelecidas entre os
sexos que foram construídas e determinadas historicamente. Portanto,
é preciso envolver sujeitos e coletivos, para que, de forma autônoma e
participativa, ajudem a construir ambientes saudáveis para a vivência
da juventude no país.

326 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Violência por parceiro íntimo contra a jovem da ralé: uma construção social

Referências

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Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
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Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 327


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Sobre a autora

Geisilane Nogueira da Silva


Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG
- Unidade Divinópolis. Atualmente é residente em Psicologia na Residência
Multiprofissional em Saúde do Adolescente pela Universidade Federal de São João
del-Rei. Tem experiência em Psicologia nas áreas: saúde do adolescente, trabalho
multiprofissional, saúde mental, saúde coletiva e política de assistência social.
E-mail: geisilanenogueira@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7291244307505557

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 329


19

Autolesão, violência
autoprovocada ou
automutilação em
jovens: qual a
nomenclatura
mais apropriada?
Self-injury, self-inflicted violence or
self-harm in young people: what is
the most appropriate nomenclature?

Evely Najjar Capdeville

330 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens: qual a nomenclatura mais apropriada?

Resumo

Este estudo faz uma revisão integrativa de literatura, utilizando os


descritores “autolesão”, “violência autoprovocada” e “automutilação”,
por meio de pesquisa em base de dados eletrônicos da biblioteca do
portal Periódicos Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de
Nível Superior (CAPES), em língua portuguesa e inglesa, entre os anos
de 2000 a 2019, tendo como referencial a Psicologia histórico-cultural.
Foram encontrados 181 artigos e selecionados 8 artigos (4%) com
abordagens teórico metodológicas diversas, dos quais 4 vinculados
ao termo “autolesão” e 4 ao termo “automutilação”. O critério de
inclusão foi artigos com abordagens ou discussões que consideram
fatores psicossociais, psicopedagógicos, sociofamiliares e culturais.
Dentre os aspectos psicossociais encontrados nos artigos selecionados
destaca-se: frustrações relativas ao universo de descobertas dos
jovens, isolamento social, crises familiares; dificuldades em lidar
com emoções fortes, raiva intensa, pressões externas e problemas
de relacionamento; dificuldade em estabelecer relações de amizade;
não saber expressar suas vontades e pensamentos; afirmação da
individualidade; sentimentos de estranheza e desalento. Diante da
diversidade de nomenclaturas e sentidos encontrados, sugere-se
o uso dos termos autolesão e/ou violência autoprovocada como
nomenclatura mais adequada.

Palavras-chave: Autolesão. Automutilação. Violência autoprovocada.


Juventude. Adolescência.

Abstract

This study makes an integrative literature review, using the descriptors


"self-harm", "self-inflicted violence" and "self-mutilation", through
research in the electronic database of the library of the portal
Periodicos Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível
Superior (CAPES), in Portuguese and English, between the years 2000
to 2019, having as reference the historical-cultural psychology. Were
found 181 articles and 8 articles (4%) were selected with different

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 331


Evely Najjar Capdeville

theoretical and methodological approaches, of which 4 linked to the


term “self-injury” and 4 to the term “self-mutilation”. The inclusion
criteria articles was approaches or discussions that considered
psychosocial, psychopedagogical, socio-family and cultural factors.
Among the psychosocial aspects found in the selected articles, the
following stand out: frustrations related to the universe of young
people's discoveries, social isolation, family crises; difficulties in
dealing with strong emotions, intense anger, external pressures and
relationship problems; difficulty in establishing friendly relationships;
not knowing how to express their wishes and thoughts; affirmation of
individuality; feelings of strangeness and discouragement. In view of
the diversity of nomenclatures and meanings found, and welcoming
the demand to reflect on the phenomenon, it is suggested that the
terms self-injury and / or self-harm be used as the most appropriate
nomenclature.

Keywords: Self-injury. Self-mutilation. Self-inflicted violence. Youth.


Adolescence.

Introdução

Dentre as formas de violência, identificadas pela literatura e


pesquisas, a prática de autolesão, também chamada violência
autoprovocada e/ou automutilação vem sendo identificada como um
fenômeno que merece atenção em relação à população jovem. Fala-
se, inclusive, em uma epidemia, dado o seu rápido avanço nos últimos
cinco anos, no Brasil, sinalizando uma tendência ao aumento dessa
prática entre jovens (IBGE, 2016).
Este artigo pretende discutir os termos encontrados na literatura
científica, apresentando uma proposta de nomenclatura, a partir dos
referenciais da Psicologia histórico-cultural e apresentar as legislações
criadas para monitorar a ocorrência do fenômeno, nos últimos anos.
Historicamente, os estudos relacionados ao tema se tornaram
mais visibilizados a partir de 2006, quando a política pública, atenta
em relação à vigilância aos agravos relacionados aos diversos tipos

332 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens: qual a nomenclatura mais apropriada?

de violência, implantou o Sistema de Vigilância de Violências e


Acidentes (VIVA) com o objetivo de coletar dados e gerar informações
para subsidiar ações de saúde pública direcionadas à prevenção de
violências e acidentes.
Entre 2009 e 2011, o número de casos identificados de violência
doméstica, sexual e outras violências interpessoais triplicou, levando à
publicação da Portaria do Ministério da Saúde - MS/GM nº 104, de 25
de janeiro de 2011, a qual universalizou a notificação de violências para
todos os serviços de saúde. Essa Portaria também incluiu a violência
autoprovocada na relação de doenças e agravos de notificação
compulsória, para registro no Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (SINAN) (BRASIL, 2013).
No ano de 2011, foram registradas 28.789 notificações de violências
contra jovens de 10 a 19 anos, sendo 10.077 do sexo masculino e 18.712
do sexo feminino. Conforme os boletins epidemiológicos de saúde,
dentre essas ocorrências, 13% dos casos foram relativos à autolesões,
também nomeados violência autoprovocada (BRASIL, 2016).
No Relatório Viva de 2013-2014, do total de casos de violência,
9,5% foram decorrentes de lesões autoprovocadas, sendo que 18,8%
dessas notificações ocorreram na faixa etária de 10 a 19 anos (BRASIL,
2017).
Em Belo Horizonte – Minas Gerais, segundo dados epidemiológicos
da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA-BH) (2018), a violência
autoprovocada foi identificada como a segunda maior causa de
violência entre jovens, correspondendo a 24% dos casos de violência
notificados, no período de 2007 a 2017, na faixa etária de 10 a 19
anos. Entre os casos notificados, nesse período, há predominância da
incidência entre jovens do sexo feminino.
A incidência da autolesão em estudantes da segunda etapa do ensino
fundamental, entre 12 e 17 anos, do sexo feminino, foi identificada
também por Reis (2018) no município de Teixeira de Freitas – Bahia.
Em 26 de abril de 2019, foi implementada a Lei nº 13.819 que institui
a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio.
Dentre outros aspectos, a referida Lei propõe prevenir a violência
autoprovocada, informar e sensibilizar a sociedade sobre o fenômeno,
promover a articulação intersetorial entre imprensa, saúde, educação,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 333


Evely Najjar Capdeville

tornando os casos suspeitos ou confirmados passíveis de notificação


compulsória, também, pelos estabelecimentos de ensino públicos e
privados.
Em complementação à Lei supracitada, em 5 de fevereiro de 2020,
foi publicado o Decreto 10.225 da Secretaria Geral da Presidência
da República, o qual institui o Comitê Gestor da Política Nacional de
Prevenção da Automutilação e do Suicídio, definindo suas funções,
regulamentando a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e
do Suicídio e estabelecendo normas relativas à notificação compulsória
de violência autoprovocada.
A partir dessa nova legislação será possível analisar de forma
comparativa e processual os dados referentes à incidência dos casos,
identificando inclusive, se houve aumento das ocorrências em função
da pandemia do Covid-19.
Entretanto, salientamos que há necessidade de usar nomenclatura
apropriada cuja categorização auxilie a produção de novas pesquisas
e estudos, bem como a criação de protocolos capazes de identificar
fatores de vulnerabilidades psicossociais, psicopedagógicos e
psicofamiliares que sejam identificados como relevantes para a
ocorrência do fenômeno, de forma a compreender o processo, a
interação de fatores que desencadeiam a prática de autolesão ou
violência autoprovocada e não apenas as ocorrências, pois estas
expressam dados quantitativos que capturam apenas o final de um
longo processo de conflito e sofrimento.

Referencial Teórico

Os termos “automutilação” e “autolesão” são amplamente


citados em contextos científicos e não científicos. Encontramos, no
senso comum, o uso do termo automutilação ou cutting, do verbo
“cortar”, em inglês, presente em sites, utilizado em novelas, séries de
televisão, blogs, redes sociais e também em desafios de jogos virtuais
(CAPDEVILLE, 2019).
Na literatura científica, vamos encontrar estudos que utilizam os
termos automutilação, autolesão e violência autoprovocada situando
o fenômeno como objeto de estudos para os campos da Psicologia,

334 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens: qual a nomenclatura mais apropriada?

Psiquiatria, Enfermagem, Ciências Sociais, dentre outros.


Alguns autores (REIS, 2018; TOSTES, 2017) explicam o fenômeno
sob os referenciais psicanalíticos, colocando-o como resultante de
padrões intrapsíquicos, lacunas na simbolização, transbordamentos
somáticos associados à transferência para o corpo, nos quais os cortes
na pele silenciam gritos que não “couberam” no psiquismo.
Outros autores (MALTA et al., 2014; CAPDEVILLE, 2019) identificam
vulnerabilidades e esgarçamentos nos laços sociais, culturais e
familiares que impactam na subjetividade de jovens e podem estar
associados ao fenômeno de autolesão ou automutilação.
Sinalizamos, assim, uma interface importante a ser investigada e
melhor analisada que está para além das questões clínicas, de saúde
mental e/ou epidemiológicas, e que se coloca como objeto de estudos
para a Psicologia, sob uma perspectiva psicossocial.
Considerando o referencial teórico da Psicologia histórico-cultural,
esse trabalho, portanto, busca entender o fenômeno da autolesão,
automutilação ou violência autoprovocada como processo que se
entrelaça ao desenvolvimento humano e, dessa forma, é resultante
de objetivações histórico-dialéticas que constituem as subjetividades,
em interface com a cultura. Entende-se que a inserção da (o) jovem
no contexto social se faz, assim, a partir das apropriações de suas
condições de vida materiais, objetivas, no tempo e no espaço, e a
partir da produção de novas objetivações.
Sob a matriz de pensamento histórico-cultural, parte-se do
pressuposto que o ser humano constitui-se, enquanto tal, na sua
relação com o outro social, sendo tanto produto quanto produtor
de relações culturais e históricas, que dialeticamente se constituem
em uma totalidade interrelacional entre aspectos individuais e
sociais. O processo do desenvolvimento humano e de constituição da
subjetividade é, portanto, cultural, mediado por interações mútuas,
que se fazem através de processos psicossociais e culturais, não sendo,
assim, um processo universal.
Bock (1999) entende por subjetividade a dimensão do sujeito que
o singulariza e individualiza e que se desenvolve na interface com
as vivências e experiências da vida social e cultural. A formação da
subjetividade é, então, constituída a partir de experiências pessoais,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 335


Evely Najjar Capdeville

escolares, histórias de vida, em diálogo com a cultura e a sociedade,


crenças e valores, por mediações interpsíquicas e intrapsíquicas, nas
quais são produzidos significados e sentidos.
Para além dos estudos que analisam o fenômeno de autolesão
baseados em aspectos intrapsíquicos, entende-se que abordagens
que colocam o foco na singularidade dos indivíduos, sem incorporar
a dimensão social, reforçam a responsabilização exclusiva desses.
Outras abordagens, ao colocar a questão no âmbito das “distorções”
ou “transtornos” mentais, terminam por reforçar uma compreensão
ancorada no modelo clínico psicopatológico.
A hipótese desse estudo se sustenta em uma concepção crítica,
psicossocial, histórica e cultural, que entende a prática de autolesão,
violência autoprovocada ou automutilação em jovens com seus
contornos e complexidades sociais. Dessa forma, sinalizamos para a
existência de uma lacuna epistemológica em relação à investigação do
fenômeno que, aprimorando o olhar para questões que ultrapassam os
limites da singularidade, evidenciem as mediações culturais e coletivas
que concorrem para a ocorrência do fenômeno.
Assim, tendo como referência o campo de estudos da Psicologia
histórico-cultural, esse trabalho visa sistematizar a produção
bibliográfica existente na literatura científica e construir referencias
para subsidiar estudos futuros sobre o tema, com o propósito de
sugerir utilização da nomenclatura mais apropriada para o campo da
Psicologia.

Metodologia

Este estudo é caracterizado como revisão integrativa de literatura,


no qual foi realizada pesquisa de busca dos descritores “autolesão”,
“violência autoprovocada” e “automutilação”, em base de dados
eletrônicos da biblioteca do portal Periódicos Coordenação de
Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES), em língua
portuguesa e inglesa, entre os anos de 2000 a 2019, com o objetivo
de identificar artigos que incluíssem elementos psicossociais e/ou
psicopedagógicos, históricos e culturais em suas discussões.
Foram encontrados 181 artigos e, dentre esses, 8 artigos (4%)

336 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens: qual a nomenclatura mais apropriada?

atendiam aos critérios para inclusão na amostra, que se constituiu


de textos publicados em português ou inglês, entre 2000 e 2019,
disponíveis publicamente ou através do portal Periódicos CAPES,
com abordagens ou discussões que incluíam fatores psicossociais,
psicopedagógicos, sociofamiliares e culturais.
Os critérios de exclusão foram: artigos de acesso pago; não
disponíveis no portal dos Periódicos CAPES ou em outro site de
acesso público e gratuito; artigos repetidos na busca com diferentes
descritores e temas incompatíveis com o objeto de estudo. Os temas
incompatíveis, embora estivessem relacionados com os descritores
utilizados para a busca, não diziam respeito ao objeto de estudo
especificado para a revisão, que é a correlação entre autolesão,
automutilação e/ou violência autoprovocada e fatores psicossociais e/
ou psicopedagógicos, sociofamiliares e culturais. Considerou-se tanto
estudos primários como de revisão de literatura.

Resultados

Dentre o total de 181 artigos encontrados, 118 artigos estão


vinculados ao descritor “automutilação”, 20 artigos associados ao
descritor “autolesão” e 43 artigos associados ao descritor “violência
autoprovocada”. A partir da leitura dos resumos desses artigos, foram
excluídos 173 artigos, baseado no critério de não correlação do
fenômeno de autolesão, violência autoprovocada e/ou automutilação
a fatores psicossociais e/ou psicopedagógicos, sociofamiliares e
culturais.
Entre os temas não inclusos estão associações dos descritores a
fatores físicos, genéticos, patológicos, sintomas, transtornos mentais
graves, transtornos graves de personalidade, uso de drogas, autismo,
dentre outros. Ou seja, foi adotado como critério de exclusão
artigos cuja abordagem não consideraram aspectos psicossociais,
psicopedagógicos, familiares, históricos e culturais.
Dentre o total de artigos excluídos, 114 eram relacionados ao
termo “automutilação” e foram excluídos por se tratar de artigos nos
quais o objeto de investigação está associado a transtornos mentais
graves, psicoses, esquizofrenias, síndromes, autismo, transexualismo,

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 337


Evely Najjar Capdeville

trangenitação, mutilação sexual, canibalismo, matricídio, uso de


adornos e tatuagens, ostomização, insensibilidade congênita, anorexia,
problemas metabólicos, oculares, queilite esfoliativa, automutilação
em animais e outros.
Em relação ao descritor “autolesão”, foram excluídos 16 artigos que
correlacionavam autolesão a mobilização precoce de pacientes, uso de
drogas, aborto, violência sexual, pesquisa de análise do comportamento,
neuroPsicologia, validação de autismo ou que abordavam outros
temas não vinculados à autolesão. Fez-se necessária, ainda, a distinção
de comportamentos autolesivos com intenção suicida em relação a
comportamentos de autolesão sem intencionalidade suicida, pois
esses últimos estão dentro dos critérios de inclusão do escopo desse
estudo.
Em relação ao descritor “violência autoprovocada”, foram
excluídos todos os 43 artigos, pois correlacionavam o termo violência
autoprovocada a tentativas de suicídio atendidas em serviços de
urgência e emergência, situações de violência contra a mulher,
pessoa idosa, crianças, adolescentes grávidas, e por entender haver
nesses casos ausência de tratamento do tema considerando os
aspectos processuais, bem como existência de recorte do fenômeno a
segmentos muito específicos.
É importante dizer que os estudos epidemiológicos trazem
dados extremamente importantes, pois evidenciam a amplitude do
fenômeno como uma questão de saúde pública a ser melhor e mais
profundamente investigada. Porém, tais artigos trazem informações
que dizem respeito à ocorrência quantitativa do fenômeno, nos
quais a violência autoprovocada ocorre em contexto de tentativa de
autoextermínio. E, assim, por estarem centrados na incidência do
fenômeno, não trazem dados sobre os processos que antecedem ou
estão nas origens da prática de violência autoprovocada e, assim,
não nos permitem compreender e agregar a dimensão processual e
psicossocial.
Dessa forma, este trabalho de revisão se debruçou efetivamente
sobre 8 artigos, a partir dos quais apresentaremos as questões
mais relevantes relacionadas à nomenclatura utilizada, os sentidos
empregados e a discussão de aspectos psicossociais, psicopedagógicos,

338 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens: qual a nomenclatura mais apropriada?

sociofamiliares e culturais associados ao fenômeno. Os artigos incluídos


no escopo desse estudo empregam abordagens teórico metodológicas
diversas, sendo 4 artigos vinculados ao termo “autolesão” e 4 artigos
que utilizam o termo “automutilação”.

Discussão

Dentre os artigos selecionados, vamos encontrar vinculação do


fenômeno de autolesão e/ou automutilação tanto ao período da
adolescência quanto ao período da juventude. Porém, optamos por
abordar o tema vinculado ao conceito de juventudes, pois o conceito
de adolescência, embora comum na literatura pesquisada, traz como
efeito a circunscrição do estudo ao período de 12 a 18 anos, conforme
caracterizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
(BRASIL, 1990). Isso implica, portanto, um reducionismo para fins de
compreensão do fenômeno, pois, embora o processo muitas vezes
inicie durante o período compreendido pela adolescência, tende a se
prolongar para além, na vida adulta.
O conceito de juventudes, por sua vez, abraça uma complexidade
que envolve a diversidade de trajetórias, situações sociais e culturais,
assim como o capital social e cultural, os sistemas de classe, raça,
gênero, sexualidade e remete ao reconhecimento de uma geração e
um período histórico, no qual se inscrevem diversidades, diferenças,
desigualdades, ambiências sociais e sistemas de identidades
(ABRAMOVAY, 2015).
Nessa direção, falamos da ocorrência do fenômeno em jovens,
pois entendemos que esse conceito permite pensar para além das
importantes transformações biológicas, cognitivas, emocionais e
sociais, e incorpora outras dimensões marcadas por referentes de
autonomia e independência em relação à família, bem como pela
experimentação de novos comportamentos e vivências. O conceito
de juventudes permite dialogar com as variáveis psicossociais que
potencializam a prática de autolesão, violência autoprovocada e/ou
automutilação.
Apresentaremos a seguir os principais dados encontrados nos 8
artigos selecionados no escopo deste estudo, iniciando pelos textos

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 339


Evely Najjar Capdeville

que estão vinculados ao descritor “autolesão”. Caldas, et al. (2009)


apresenta pesquisa com mulheres de um presídio feminino em Recife
– Pernambuco, com aplicação de dois questionários. O primeiro
questionário visou todas as detentas, para determinar a extensão do
comportamento autolesivo no presídio feminino e, a partir dele, foi
selecionada a amostra para aplicação do segundo questionário, com o
objetivo de aprofundar a investigação.
Os autores identificaram vários fatores correlacionados à autolesão:
alívio de sofrimento psíquico advindo do ambiente carcerário; raiva de
si ou de outros; uso de drogas; tentativas de manipulação para obter
vantagens no presídio e tentativas de comunicação e afirmação da
individualidade num ambiente coletivo. Do total de participantes, 79%
disseram ter se machucado por estar com raiva (de si ou de outros);
74% relataram que o fizeram para aliviar a dor ou sofrimento; e 74%
para não machucar outras pessoas.
As detentas que afirmam se machucar para obter vantagens
compõem 58% da amostra, havendo um leque de motivos na conduta
autolesiva que se tornam uma forma de comunicação dentro do
presídio. Apesar de apenas 37% terem informado pretender chamar
a atenção com o comportamento autolesivo, os pesquisadores
identificam uma relação desse comportamento com a questão
individualidade - coletividade.
O artigo de Guerreiro e Sampaio (2013) faz distinção entre
comportamentos autolesivos com intenção suicida e comportamentos
autolesivos sem intenção suicida, definindo esse último como destruição
do tecido corporal na ausência de intencionalidade de morrer e
comportamentos associados, tais como queimaduras, arranhões, etc.
De acordo com Sampaio, é sugerido que a intencionalidade possa ser
inferida a partir da maior ou menor rapidez do método utilizado e da
sua reversibilidade, para fins de diagnóstico diferencial.
Nobre-Lima, Castilho e Barreira (2017) apresentam um estudo
com adolescentes portugueses com comportamentos sem intenção
suicida no qual não foram encontradas diferenças em função do meio
ambiente de residência ou do nível socioeconômico. Em seu estudo,
observaram ainda que jovens do sexo feminino praticam mais autodano
e esta ocorrência predomina em estudantes do ensino secundário,

340 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens: qual a nomenclatura mais apropriada?

naqueles que estão no meio ou fim da adolescência e menos nos que


se encontram no início desta fase.
Sant’Ana (2019) discute que a autolesão em adolescentes precisa
ser compreendida a partir dos condicionantes histórico-sociais que
permeiam a experiência na sociedade atual e salienta a importância da
atuação do psicólogo escolar, considerando as conjunturas presentes
na atualidade e as finalidades transformadoras. Entende a autolesão
como fenômeno psicossocial que pode ocorrer em diversas faixas
etárias, contudo destaca que os estudos indicam maior frequência no
período da adolescência ou juventude.
Em relação aos artigos que empregam o termo “automutilação”,
vamos encontrar também 4 textos. Fortes e Macedo (2017) propõem
uma reflexão a partir da análise de algumas narrativas virtuais de blogs
de adolescentes, a partir dos testemunhos, defendendo a hipótese
de que o ato automutilatório resulta da precária interação do sujeito
com o outro, fruto de isolamento, do vazio afetivo, ausência de um
destinatário a quem dirigir a dor psíquica, desalento e experiência de
estranheza em relação ao próprio corpo que leva a um movimento de
descarga, ao não encontrar a rota da dimensão elaborativa da psique.
Entendem que o cortar-se se inscreve no registro da compulsão,
destacando o estremecimento da alteridade, a “vivência de
indiferença” e “ato-dor”. As autoras distinguem desamparo de
desalento, entendendo que o desamparo permite o exercício do apelo,
a demanda de algo ao outro e as trocas afetivas. O desalento, por sua
vez, é marcado pela aridez da presença do outro como suporte da vida
afetiva, conduzindo à vivência de indiferença.
Silva e Botti (2018) descrevem pesquisa exploratória, retrospectiva,
com abordagem quantitativa em redes sociais virtuais, com o objetivo
de caracterizar o perfil de participantes de um grupo de automutilação.
Identificaram maior frequência da prática no sexo feminino, entre
estudantes de instituições públicas, que cursam o ensino fundamental
e médio, na região Sudeste, em especial no Estado de São Paulo.
Silva e Dias (2019) realizaram revisão teórica sobre prováveis
causas da automutilação, situando-a como prática compensatória em
função da mudança no laço social da família aliada ao “não-lugar” do
adolescente na sociedade. Explicam que, ao se diferenciar da família

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 341


Evely Najjar Capdeville

e buscar lugares de pertencimento e de reconhecimento fora dela, o


jovem se sente sozinho, em um limbo que o predispõe a disfunções de
toda ordem, sem contornos para lhe servir de referência. Identificam
prejuízos na inscrição do significante nome-do-pai e a existência de
dinâmicas inapropriadas nas condutas paternas, as quais oscilam entre
a superproteção e a negligência, atuando como fatores intervenientes.
Mauer (2019) descreve cenários de casos clínicos, analisando-
os sob o efeito de desenraizamento, como produto da ruptura em
relação à comunidade social. Para a autora, a subjetividade não pode
ser reduzida ao individual e a vida psíquica não pode se resolver de
maneira intraindividual, pois o processo de individuação é sempre
social e coletivo. Destaca que os processos de subjetivação adolescente
devem ser pensados em seu devir e em seu co-devir com os demais,
sempre em situação e em relação a outros.
Dentre os aspectos psicossociais encontrados no conjunto dos
artigos selecionados destacamos: frustrações relativas ao universo
de descobertas dos jovens, isolamento social e decepções amorosas;
dificuldades por não saber lidar com emoções fortes, raiva intensa,
pressões externas e problemas de relacionamento; atritos com
familiares, dificuldade em estabelecer relações de amizade; não
saber expressar suas vontades e pensamentos; constrangimento em
situações de exposição; sentimentos de estranheza, desalento e uso
da autolesão como forma de estabelecer comunicação e afirmação da
individualidade.

Considerações Finais

Nosso desafio, nesse trabalho, visou discutir os termos autolesão,


automutilação e violência autoprovocada entre jovens, por meio de
revisão integrativa de literatura, com busca de artigos que, utilizando
esses descritores, incorporassem a discussão do fenômeno a partir de
fatores psicossociais.
Diante da diversidade de nomenclaturas e sentidos encontrados,
e acolhendo a demanda de refletir criticamente sobre o fenômeno,
a partir dos referenciais da Psicologia histórico-cultural, sugere-se
o uso dos termos autolesão e/ou violência autoprovocada como

342 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Autolesão, violência autoprovocada ou automutilação em jovens: qual a nomenclatura mais apropriada?

nomenclatura mais adequada, pios o fenômeno diz respeito a um ato


voluntário, consciente, no qual não há intenção de destruir, desfigurar
ou arrancar partes da estrutura corpórea do sujeito. Por essas razões,
não recomendamos a expressão “automutilação”.
Este estudo sinaliza para a relevância de conhecer o fenômeno, a
partir dos significados e experiências subjetivas dos jovens, indo além
de dados quantitativos já evidenciados em estudos epidemiológicos.
Entende-se que há uma dialética na construção da subjetividade de
jovens que perpassa condições objetivas, culturais e sociais, processos
de internalização, mediações interpsíquicas e intrapsíquicas, os quais
concorrem para a prática de autolesão.
No Brasil, estes estudos são uma lacuna ou ainda incipientes, havendo
necessidade de realizar pesquisas que identifiquem a ocorrência do
fenômeno em toda sua complexidade. Fazem-se necessários novos
estudos sobre esse fenômeno histórico-social, subjetivo e coletivo, com
a finalidade de compreender a complexa interação entre elementos
históricos, psicossociais, culturais, psicopedagógicos, sociofamiliares e
subjetivos na abordagem da questão.
Reduzir a questão da prática de autolesão e/ou violência
autoprovocada em jovens a aspectos intrapsíquicos dos indivíduos e em
suas dificuldades pessoais nos parece um equívoco. Urge compreender
o fenômeno em seus entrelaçamentos e interseccionalidades, com
olhar ampliado sobre visões de mundo, sociedade, escola, sujeito e
refletindo sobre o fenômeno em toda a sua complexidade.
Há uma carência de levantamento de dados brasileiros sobre
condutas autolesivas em jovens associadas a fatores psicossociais.
Assim, pretende-se que este estudo sirva como fonte de consulta
brasileira facilmente disponível para a realização de projetos
posteriores ou ampliados sobre o tema em questão.
É necessário salientar, ainda, a relevância de tomarmos a inclusão,
enquanto desafio necessário proposto pelas políticas públicas para
a juventude, bem como o cuidado com o desenvolvimento de laços
sociais na escola, na família, na sociedade como fator potencializador
do sentimento de pertencimento, entre jovens.
Por último, destacamos a importância de construir categorias de
análise para a elaboração de um protocolo de investigação preventivo

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 343


Evely Najjar Capdeville

para a ocorrência do fenômeno do autolesionismo, de forma a não


perder a relação entre o particular e o coletivo, a subjetividade e a
objetividade. Há necessidade de investigar o fenômeno de autolesão
e/ou violência autoprovocada, reconhecendo fatores psicossociais e
psicopedagógicos associados à sua prática, de forma a fomentar ações
de prevenção e promoção em saúde, dirigidas aos jovens.

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pessoas que se autolesionam. 2017. 138p. Dissertação de Mestrado
em Psicologia, PUC Campinas, Campinas, 2017.

Sobre a autora

Evely Najjar Capdeville


Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Graduada em Psicologia e Filosofia pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Escritora, Pesquisadora, Psicóloga Clínica e Escolar na
abordagem fenomenológico-existencial. Professora na Pós-graduação
em Psicologia Escolar e Educacional da Faculdade Arnaldo.
E-mail: evelyncap@hotmail.com
Lattes: https://lattes.cnpq.br/5272238613414116

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 347


20

O que nos contam


os jovens sobre suas
tentativas de suicídio?
What do young people tell us
about their suicide attempts?

Renata Fabiana Pegoraro


Bianca Rodrigues Freitas

348 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?

Resumo

No Brasil, é crescente o número de jovens que tentam suicídio. Trata-


se de um desafio para o cuidado das juventudes brasileiras e de um
importante problema de saúde pública. Nesse contexto, o objetivo
deste artigo é conhecer, segundo a ótica de jovens, os motivos que
os levaram a tentar suicídio. Participaram jovens de 15 a 24 anos,
com histórico de uma a quatro tentativas de suicídio, que estiveram
internados em leito psiquiátrico de hospital geral, no ano de 2019
ou 2020, e cederam entrevista audiogravada mediante roteiro
semiestruturado, sendo seguidos os preceitos éticos de respeito à
identidade e livre participação. Destaca-se, neste artigo, a categoria
de análise referente aos motivos para a tentativa de suicídio, a qual
será tomada como analisador dos modos de vida desses jovens. Os
resultados apontaram: (a) a pressão vivida pela carga de estudo,
trabalho, questões envolvendo a saúde; (b) os relacionamentos afetivos
no contexto familiar ou com namorados(as); (c) a rede de apoio frágil e
restrita, constituída por seleto grupo de amigos e alguns familiares. As
tentativas de suicídio aparecem como forma de encerrar uma situação
insuportável, representando uma saída, uma forma de encerrar a dor.
A maior parte dos jovens participantes já tinha realizado duas ou mais
tentativas, o que descortina a necessidade urgente do planejamento e
implementação de ações de prevenção e cuidado desse público.

Palavras-chave: Juventude. Tentativa de suicídio. Modos de vida.

Abstract

In Brazil, the number of young people attempting suicide is increasing.


It is a challenge for the care of Brazilian youth and an important public
health problem. In this context, the objective of this article is to know,
according to the perspective of young people, the reasons that led
them to attempt suicide. Young people aged 15 to 24 participated,
with a history of one to four suicide attempts, who were admitted to a
psychiatric bed in a general hospital in 2019 or 2020 and provided an

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 349


Renata Fabiana Pegoraro, Bianca Rodrigues Freitas

audio-recorded interview through a semi-structured script, following


the ethical precepts of respect to identity and free participation. In
this article, the category of analysis concerning the reasons for the
suicide attempt stands out, which will be taken as an analyzer of the
ways of life of these young people. The results showed (a) the pressure
experienced by the burden of study, work, health issues; (b) affective
relationships in the family context or with boyfriends; and (c) the
fragile and restricted support network made up of a select group of
friends and some family members. Suicide attempts appear as a way
to end an unbearable situation, representing a way out, a way to end
the pain. Most of the young participants had already carried out two or
more attempts, which reveals the urgent need to plan and implement
preventive and care actions for this public.

Keywords: Youth. Suicide attempt. Lifestyle.

1. Introdução

Juventude, jovens adultos, pós-adolescentes? Para Sandoval (2002


apud LEÓN, 2005), a juventude é tanto uma categoria etária quanto
uma etapa de amadurecimento nas esferas afetiva, intelectual, sexual
e física. Para Leon, a faixa de 15 a 29 anos tem sido usada para referir-se
à juventude. Esse autor defende, no entanto, o termo juventudes, por
sua capacidade para acolher as diferentes experiências na construção
das identidades dos jovens, considerando-se as diversas classes sociais
e os contextos culturais nos quais se inserem (LEÓN, 2005), chamando
atenção, portanto, para a juventude como categoria construída social e
historicamente. Além disso, a transição para a vida adulta não pode ser
assumida como linear e marcada pela inserção do indivíduo no mundo
do trabalho. São as incertezas e as imprevisibilidades que marcam as
juventudes, as quais Leon (2005), inspirado em Lopes (2002) e Pais
(2002), denomina como “trajetórias labirínticas, reversíveis, iô-iô”.
Para Krauskopf (2003 apud ABRAMO, 2005), coexistem diferentes
paradigmas sobre as juventudes no Brasil. A juventude pode ser
apontada como período preparatório para o ingresso no mundo
adulto, dedicado ao estudo e esportes. Uma outra visão volta-se
350 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes
O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?

para a “juventude problema”, mergulhada em vulnerabilidade, risco


e transgressão. Uma terceira possibilidade relaciona a juventude com
a posição estratégica para o seu desenvolvimento e o enfrentamento
da exclusão social. Por fim, a juventude na perspectiva cidadã, é
compreendida como constituída por sujeitos de direito e amparada
pela publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma leitura
crítica sobre todas essas compreensões a respeito das juventudes
aponta para a necessidade de se pensar nas singularidades das
diferentes condições juvenis existentes no Brasil, que em muito
extrapolam a dicotomia entre jovens que se preparam para o mundo do
trabalho e serão formuladores de políticas públicas, e aqueles que, por
serem oriundos das camadas mais pobres, são sempre demandantes
das políticas públicas. Quais elementos são constitutivos da condição
juvenil no Brasil no atual contexto histórico? O que singulariza essa
condição e quais desafios devemos enfrentar? (ABRAMO, 2005).
Certamente, um dos desafios postos para o cuidado das juventudes
brasileiras encontra-se como importante problema de saúde pública: o
crescimento dos índices de tentativas de suicídio entre pessoas jovens.
No ano de 2014, a faixa etária de 10 a 29 anos concentrou 50% de
todas as tentativas de suicídio registradas no país (BRASIL, 2014).
O que os suicídios e as tentativas de suicídio dizem sobre nossa
sociedade? Qual vida temos reproduzido? Qual vida valorizamos?
Quais condições de vida? Por que algumas pessoas buscam a morte?
O que esses indivíduos querem matar? Esses questionamentos, que
buscamos em Bom-Tempo (2019) e Marquetti (2019), tornam-se
ainda mais importantes quando adentramos o campo das juventudes.
Para buscar algumas respostas para essas questões, é necessário que
estejamos dispostos a ouvir os jovens.
Estudos que trazem a perspectiva dos jovens sobre o tema suicídio
(BENINCASA; REZENDE, 2006; SILVA; MADEIRA, 2014; TEIXEIRA,
2004) abordam o significado que a tentativa de se matar representa
na vida dos jovens e buscam compreender quais os fatores de risco
e de proteção existentes. As tentativas, de acordo com tais estudos,
aparecem em momentos de sofrimento intenso, de tristeza e angústia,
configurando situações nas quais não foi possível pensar alternativas
para solucionar problemas frequentemente relacionados às relações

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 351


Renata Fabiana Pegoraro, Bianca Rodrigues Freitas

socioafetivas dos jovens. Tendo em vista que não foram localizados


muitos estudos que ouviram a perspectiva dos jovens que tentaram
suicídio sobre esse acontecimento, entende-se a importância de dar
voz a esse público sobre as suas vivências. O sofrimento psíquico e a
juventude carregam ainda grande estigma, que coloca os sujeitos em
posição de quem não pode responder por si ou, quando respondem,
são vistos com descrédito e desconfiança. Dessa forma, estabeleceu-
se como objetivo deste artigo conhecer, segunda a ótica de jovens, os
motivos que os levaram a tentar suicídio.
Para tal, apresentamos os recortes de entrevistas efetuadas
com jovens em uma pesquisa de maior amplitude, a qual também
investigou o uso de recursos de saúde pelos participantes. Os jovens
que aceitaram participar da pesquisa tinham de 15 a 24 anos, de
uma a quatro tentativas de suicídio e estiveram internados em leito
psiquiátrico de hospital geral no ano de 2019 ou 2020. O convite
para participação foi efetuado durante o período de internação e a
primeira entrevista foi realizada nesse contexto, em sala reservada,
após obtenção do consentimento livre e esclarecido para aqueles com
18 anos ou mais. No caso de participantes com menos de 18 anos,
foram obtidos o assentimento e o consentimento livre e esclarecido
do familiar que os acompanhava durante a internação, sempre em
conformidade com o protocolo de pesquisa aprovado sob número
CAEE: 91225018.4.0000.5152. Após cada entrevista, os áudios foram
literalmente transcritos e foram efetuadas várias leituras de cada um
para a análise temática (CLARK, 2017). Destaca-se, neste artigo, a
categoria de análise referente aos motivos para a tentativa de suicídio,
que será tomada como analisador (LOURAU, 2004) dos modos de vida
desses jovens.

2. A pressão vivida: "Não estava dando mais para segurar a


onda"

Três jovens relataram que as tentativas de suicídio se deram em


momentos nos quais se sentiam muito pressionados por uma junção
de fatores. Afrodite, 16 anos, apontou o terceiro ano do ensino médio
e as exigências existentes nessa fase escolar e da vida, que envolvem a

352 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?

escolha profissional, a escolha da faculdade, os estudos direcionados ao


vestibular e a expectativa de ingresso na universidade pela aprovação
no vestibular/ Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), somados a
um cotidiano também dedicado ao trabalho em um comércio local.
Para ela, a tentativa de suicídio ocorreu em momento de “muita
pressão, muita coisa para fazer”. Ela conta que “estava esgotada,
cansada...” e, pelo que observava no colégio, os alunos do terceiro ano
apresentavam sentimentos e angústias semelhantes:

“Eu creio que se pegar vários estudantes agora do terceiro


colegial, eles têm essa mesma coisa que eu falo. É muita
pressão no terceiro colegial. Até os professores... os professores
mesmo fazem muita pressão... os pais falam que não, mas claro
que eles querem que a gente passe. Desejam isso.” (Afrodite,
entrevista 1)

Afrodite estuda pela manhã, tem meia hora de intervalo para o


almoço antes do trabalho, retorna para sua casa após as 20 horas e,
a partir desse horário, dedica-se ao cursinho online preparatório para
os processos seletivos das universidades. Acredita que é importante
ser aprovada “de primeira” e completa dizendo sobre a pressão: “isso
é normal, todo mundo tem medo de fracassar” (Afrodite, entrevista
1). Em sua fala, há uma urgência em ser aprovada “de primeira”, como
se depois fosse ser “tarde demais”, como um decreto de seu fracasso.
Os autores Netto e Souza (2015) associam tentativas de suicídio
às consequências do modo de vida capitalista, que é competitivo,
produtivista, individualista:

”Os jovens, então, são submetidos a uma “avalanche” de


exigências, mutáveis a cada dia, em uma velocidade espantosa,
que os seduz e lhes impede a reflexão crítica. Frente às
exigências crescentes e sem que a materialidade ofertada possa
dar-lhes suporte, cresce o sentido de inadequação.” (NETTO;
SOUZA, 2015, p. 186)

A instabilidade, a urgência de decisões, a imaturidade para as


escolhas, a pressão para o cumprimento de expectativas de si e de

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 353


Renata Fabiana Pegoraro, Bianca Rodrigues Freitas

outros e o constante medo do fracasso estão presentes nas falas de


Afrodite e também de Marcos. Aos 21 anos, Marcos relata a dificuldade
em lidar com as suas expectativas com relação a si e também com as
dos outros, em decorrência de seu histórico de destaque escolar desde
a infância. Ele sempre foi um aluno que escrevia muito bem, que se
sobressaía em redações, provas e simulados de vestibular, que passou
em primeiro no vestibular que escolheu. A internação de Marcos,
21 anos, ocorreu após uma segunda tentativa de suicídio, após uma
desilusão amorosa com uma pessoa com quem estava começando a se
relacionar. Essa desilusão ocorreu em um contexto que reunia pressão
oriunda de seu intenso ritmo de estudos na faculdade, em uma cidade
onde ele residia, mas com a qual não se identificava plenamente, após
uma delicada cirurgia pela qual passou sem o suporte familiar para o
período de recuperação:

“[...] essa questão de eu estar em um semestre muito difícil [na


faculdade] e também eu ter acabado de sair de uma cirurgia
[...] cujo pós-operatório é muito sofrido e estar sozinho nessa,
eu senti muito isso... Aí parece que juntou tudo, aí trouxe uma
angústia muito grande, sabe, aí a gente quer acabar com a
angústia e foi mais ou menos nesse sentido [que a tentativa de
suicídio ocorreu].” (Marcos, entrevista 1)

Se Afrodite esclareceu que não houve planejamento, Marcos


colocou algumas dúvidas sobre isso. A tentativa aparece como um
plano B, um backup, uma saída: “É, e aí eu acho que é isso, né?!
Um plano de saída que você deixa lá, como um plano de backup, e
é uma saída” (Marcos, entrevista 2). Na segunda entrevista, Marcos
traz que a tentativa se deu com a intenção de pôr fim à angústia que
estava sentindo e que realmente tinha a intenção de se matar, além
de existir algum planejamento, pois já havia pensado anteriormente
quais medicamentos eram necessários para concretizar o suicídio. Esse
“plano B” não se aproxima de um planejamento detalhado, de quem
imagina quando e como, cerca-se dos meios para a tentativa, deixa
bilhetes de despedida. Ainda que ele declare como plano, seus relatos
também mostram uma dose de impulsividade. Afrodite e Miguel (24
anos) trazem a impulsividade de forma bastante clara nas tentativas.

354 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?

Miguel, tal qual Afrodite, conta que a tentativa não foi planejada,
mas aconteceu num momento em que ele se sentia como panela de
pressão. A tentativa foi “de uma hora para outra” pois queria “colocar
um fim em tudo”. Esclarece que “Na hora, eu não estava pensando em
nada não... Só em suicidar mesmo”, diz que “a situação [emocional]
estava muito difícil, não estava dando mais para segurar a onda, não.
De tudo. Emocional” (Miguel, entrevista 2).
Braga e Dell’Aglio (2013) observaram que, geralmente, o tempo
de latência entre a tomada de decisão e a efetivação do ato não é
grande – tal qual ocorre com esses três jovens participantes desta
pesquisa. Avanci, Pedrão e Costa Júnior (2005) registram que a maior
frequência de tais tentativas acontece nas próprias residências dos
sujeitos – mais uma vez tal qual ocorreu com os jovens entrevistados.
A intencionalidade para a tentativa de suicídio (BOTEGA, 2015)
envolve ideias de morte, ideias de suicídio, tentativa prévia de suicídio
e plano suicida, ou seja, podem estar presentes no sujeito ideias sobre
a possibilidade, mas com rejeição de sua realização (ideias de morte),
ideias mais persistentes com vistas ao alívio de determinada situação
(ideias de suicídio – como o “plano B” de Marcos) até o plano para
o suicídio, que pode envolver o preparo (conhecer as formas e sua
efetividade), adquirir os meios e tomar providências, como deixar
cartas ou despedir-se de pessoas.
As tentativas de suicídio, sem “pensar em nada” mais, aparecem
como forma de encerrar uma situação insuportável, representando
uma saída, uma forma de encerrar a dor. A gota d’água – o fator
desencadeante, em linguagem médica (BOTEGA, 2015) – pode ser o
dia muito cansativo de Afrodite, o rompimento amoroso de Marcos
ou nem ser claramente identificado, como no relato de Miguel. Mas,
ao ouvir os relatos sobre seus modos de vida, identificamos situações
extenuantes: o “trabalho + estudo” de Afrodite e a pressão de “passar
de primeira”; a cidade nova em que Marcos morava, o curso que
lhe exige muita dedicação para ter um desempenho próximo ao da
turma, e não mais extremamente superior como ocorrera no ensino
fundamental e médio.
No mundo contemporâneo, a aceleração do cotidiano é perceptível
e, nesse contexto, espera-se que decisões como a escolha da carreira

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 355


Renata Fabiana Pegoraro, Bianca Rodrigues Freitas

e a aprovação no vestibular ocorram o quanto antes, num ambiente


que tem sido marcadamente mais exigente e menos acolhedor com os
jovens. A realização de diversas atividades relacionadas ao trabalho e
o pouco tempo destinado às relações afetivas íntimas são frequentes
entre jovens (PRIETO, 2016), como ocorre com Afrodite, que relata
abdicar de momentos de lazer, descanso e convívio interpessoal no
período de preparação para os processos seletivos, e também com
Marcos, que deixou amigos e familiares em outro município para se
dedicar à faculdade. Os jovens vivenciam a pressão de si mesmos e do
meio social e, muitas vezes, não têm preparo ou suporte algum para
lidar com as dificuldades que possam surgir (PRIETO, 2016).
Na literatura, é comum encontrarmos autores que relacionam
impulsividade como uma característica do adolescente, que tende
a agir em vez de dialogar. A impulsividade pode vir como resposta e
meio de dar vazão ao que se sente quando os jovens não encontram
outros recursos para fazê-lo e se deparam com a dificuldade para pedir
ajuda (PRIETO, 2016). Ainda que as tentativas de suicídio relatadas
pelos entrevistados se apresentem permeadas de impulsividade –
sem planejamento prévio detalhado -, faltariam a esses jovens outras
formas de enfrentar as situações angustiantes e as pressões vividas?
Afrodite e Marcos têm poucos amigos e preferem “resolver a seu
modo” diversas situações, garantindo certa independência também
frente aos vínculos familiares. Miguel tem se mantido afastado dos
amigos, e a mãe aparece como seu ponto de apoio mais evidente,
como será discutido mais à frente.

3. Os relacionamentos afetiivos: "Eu não queria que isso


acontecesse, mas vocês não me deixam escolha"

Os relacionamentos familiares de Rita (19 anos), as amizades virtuais


de Sandro (19 anos) e os relacionamentos de Hamilton (21 anos)
foram apontados, nas entrevistas, como disparadores das tentativas
de suicídio. Nesses relatos, o “acúmulo de situações” apontado pelos
outros jovens não estava presente. Foram os afetos que, mobilizados,
apareceram como precipitantes das tentativas. Sentir-se preterido
por um namorado, sentir-se injustiçada pela família, irritar-se com

356 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?

os amigos virtuais, estar mergulhado em um relacionamento não


saudável. Essas foram as experiências antes da tentativa de suicídio.
Rita, entrevistada após a quarta tentativa, sempre circulando por
serviços de emergência após ingestão de medicamentos, contou sobre
as diversas brigas com os pais e desapontamentos com o irmão mais
velho como as situações que precederam as tentativas de suicídio:

“Eu brigava bastante com meu pai e aquilo me machucava


bastante, e eu tinha brigado com a minha mãe nesse dia
também. E o meu irmão viu os remédios lá jogados. Minha
mãe não estava em casa, nem meu pai. E meu irmão tentou me
socorrer.” (Rita, entrevista 1)

Sandro também fez uma tentativa após uma briga. No seu caso,
com os amigos virtuais, com quem joga e assiste filmes e séries, após
ingestão de bebida alcóolica. Ele conta: “Eu tentei suicídio. Eu ia colocar
carvão no banheiro. Ia tentar pôr… fumaça. Tira o oxigênio do cérebro
e eu... Eu só peguei e fiz. Eu não estava pensando muito, eu só, eu só
agi por impulso. Estava muito triste. Aí eu tinha bebido. E eu fiz por
impulso” (Sandro, entrevista 1)
Os relacionamentos abusivos, como Hamilton classifica algumas
de suas relações afetivas, foram os eventos que o levaram a mais de
uma tentativa de suicídio: “Tive dois relacionamentos extremamente
abusivos [...] que me deixaram bastante magoado. Todos os términos
que eu tive, depois deles, eu tentei suicídio. Uma tentativa depois de
cada” (Hamilton, entrevista 1).
Aos 21, Hamilton já havia tentado suicídio quatro vezes, num
intervalo de setes anos:

“Aos 13 anos, eu tentei meu primeiro suicídio [...] no ensino


médio. Foi horrível. Sempre sofria muito bullying por ser calado,
estudioso, quieto, na minha e por não demonstrar nenhum tipo
de interação sexual, como se eu fosse assexuado. Na época, eu
também me sentia assim.” (Hamilton, entrevista 1)

Jucá e Vorcaro (2018) chamam atenção para dificuldades


apresentadas por muitos adolescentes assistidos na rede de saúde
mental para narrativizar seu sofrimento, isto é, colocá-lo em palavras. É
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 357
Renata Fabiana Pegoraro, Bianca Rodrigues Freitas

por meio de atos que muitos anunciam que algo em suas relações não
vai bem. Marcos, Miguel, Rita, Sandro e Hamilton tinham um histórico
de duas ou mais tentativas de suicídio. Para Botega (2014), ter uma
tentativa prévia deve funcionar como um alerta para o cuidado, sendo
importante estratégia para prevenção dos suicídios.

4. A rede de apoio fráfill e restrita: "Não é que eu seja sozinha,


mas eu não faço nenhum outro tipo de amizade"

Os entrevistados descreveram uma rede de apoio fragilizada e


disseram contar com poucas pessoas, além de não terem tantos
amigos. Rita havia perdido um grande amigo alguns meses antes da
entrevista. Ela conta que as perdas que teve na vida (uma tia que era
como segunda mãe e um avô, ainda na infância) nunca cessaram. Sobre
o amigo, eram parceiros de longas conversas e, após seu suicídio, Rita
perdeu seu confidente:

“Ele morreu esse ano. Ele se matou. E a gente teve momentos


incríveis juntos [...] Ele me dava bastante conselhos, a gente
sempre se encontrava depois da escola. Acho que isso eu nunca
vou esquecer: a gente debaixo de árvores, conversando sobre a
vida e seus mistérios.” (Rita, entrevista 1)

Hamilton trouxe em seu relato a forte presença da mãe, que lhe


dava suporte mesmo residindo em outro município, fazendo-se
presente quando necessário, ajudando-o a recomeçar a vida após o
término de um relacionamento, fazendo empréstimo para que ele
pudesse mobiliar seu apartamento. Além da mãe, uma amiga que
conheceu por intermédio de uma Organização não Governamental
(ONG) e uma prima que mora hoje no mesmo município são os seus
pontos de apoio.
Sandro tem amigos virtuais. O afastamento da escola, em função de
seu compromisso com o mundo dos games aos quais se dedica durante
todo o dia, fez com que sua vida fosse esvaziada de qualquer presença
física, restando-lhe apenas a mãe, que prepara suas refeições, as quais
muitas vezes ele faz no próprio quarto para não interromper os jogos.
Afrodite conta que sua mãe relaciona a tentativa de suicídio com o
358 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes
O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?

fato de ela “ser muito fechada”, do que ela discorda: “Eu tenho amigos,
não é que eu seja sozinha, mas é só os que tem. Eu não faço nenhum
outro tipo de amizade, eu não gosto de me envolver, relacionamento
é a última coisa que eu quero agora... eu prefiro me manter sozinha e
me virar sozinha...” (Afrodite, entrevista 1).
Sua dificuldade em confiar nas pessoas tem origem, segundo ela
conta, após a morte da avó e do momento em que o pai saiu de casa:
“desde meus oito anos de idade, quando eu perdi meu pai e minha avó
[...] eu sou assim. Então, eu não sei te falar quem é a outra Afrodite...
eu virei assim, me tornei isto” (Afrodite, entrevista 1). “Isto” refere-se
a alguém com dificuldade em confiar nas pessoas e deixar que elas se
aproximem, o que explica os poucos amigos e namoros.
Quanto à rede de suporte de Marcos no período em que a tentativa
ocorreu, ele diz que seus amigos estavam próximos, mas esperava o
suporte de uma pessoa específica, o que não ocorreu: “[...] A minha
família não estava próxima e, na época que eu fiz a cirurgia, eu ainda
estava com aquele rapaz e eu esperava um certo suporte dele que eu
não tive, e isso também foi uma coisa que pegou e também a família
estava longe...” (Marcos, entrevista 1).
Marcas da infância que ainda causam dor, rede de apoio frágil e
restrita, e situação de violência na trajetória de vida apontam para
uma condição de vulnerabilidade social desses jovens.
A rede de apoio destes, aparentemente, é pequena. Todos trazem
a dificuldade de encontrar alguém de confiança para conversar. Miguel
e Afrodite apontam a mãe como a principal e quase única referência,
enquanto Marcos relata a dificuldade de se expor até mesmo
para profissionais de saúde, por acreditar que suas falas seriam
desacreditadas. Em outro estudo, os jovens também se queixavam
da falta de oportunidade para refletir e conversar com pessoas de
confiança sobre as situações que vivenciavam no cotidiano e sobre
seus sentimentos. Queixavam-se sobre, muitas vezes, não serem
escutados, mesmo quando procuravam ajuda (BENINCASA; REZENDE,
2006). Teixeira (2004) aponta que o vínculo familiar e o escolar podem
ser tanto fatores de risco quanto fatores de proteção para os jovens.
Vínculos afetivos positivos e relacionamentos familiares podem ser
fatores protetivos, segundo Christante (2010). Os vínculos familiares

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 359


Renata Fabiana Pegoraro, Bianca Rodrigues Freitas

como fatores protetivos foram destacados em algumas entrevistas. Na


segunda entrevista, efetuada três meses após a primeira, tanto Marcos
quanto Miguel ainda conviviam com ideações suicidas. Miguel contou
o que o impedia de realizar uma nova tentativa:

“É quando está tudo muito... está tudo muito [faz gestos com
as mãos, se aproximando] ... fechando muito... me deixando
meio atribulado igual panela de pressão, aí eu penso, mas...
eu penso na minha mãe, na minha filha e eu não quero não.”
(Miguel, entrevista 2)

Miguel apontou que sua família era o ponto que o mantinha


vinculado à vida. Desenvolver laços sociais que se constituam de
forma a permitir trocas íntimas sobre sentimentos, angústias, sobre
as vivências cotidianas, possibilitam o sentimento de pertencimento e
se constituem enquanto suporte social, compondo a rede de apoio do
sujeito (PRIETO, 2016).
Marcos relatou que ainda tem o suicídio como possibilidade para
quando “as coisas apertam”, pois “toda vez que eu me sinto encurralado
eu penso nisso” (Marcos, entrevista 2). A fala de Marcos retoma a
ideia de que a tentativa de suicídio é uma alternativa conhecida pelo
jovem para lidar com os problemas com os quais se depara. Marcos e
Afrodite relataram que foi um somatório de fatores que os fez tentar
suicídio e em um momento que não parecia haver outra saída, sendo
o suicídio a própria saída, como Marcos diz. Teixeira (2004) corrobora
com essa informação ao dizer que o jovem que tenta suicídio não
necessariamente quer a morte, mas o fim do sofrimento e da angústia.
No estudo de Alves Junior, et al. (2016) com 1.132 adolescentes (14
a 19 anos) de escolas públicas de São José, Santa Catarina, um em
cada dez apresentaram pensamento e planejamento suicida e, em
menor proporção, tentativas de suicídio. Os autores alertam que não
dormir bem foi uma característica associada a jovens que tinham
pensamento, planejamento e tentavam o suicídio. Veras, Silva e Katz
(2017) constaram que adolescentes de até 19 anos tinham histórico de
mais de uma tentativa (dentre os 30 adolescentes que participaram do
estudo, oito tinham duas ou mais tentativas efetuadas).

360 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


O que nos contam os jovens sobre suas tentativas de suicídio?

5. Considerações finais

A presença de uma tentativa de suicídio marcando uma história de


vida de pessoas tão jovens, por si, já é um alerta para a necessidade
de implementação de ações de prevenção e cuidados. A ocorrência
de duas ou mais tentativas em curto espaço de tempo (dois ou três
anos da vida dos jovens) coloca a necessidade de articulações para
o cuidado com perspectiva intersetorial. Sabidamente, os jovens não
são os mais assíduos frequentadores de serviços de saúde, sendo
necessária, portanto, a construção de estratégias de oferta de cuidados
para além dos equipamentos de saúde. A frágil e restrita rede de apoio
impõe a dificuldade de buscar os pares para falar sobre as angústias e
dificuldades pelas quais atravessa o jovem.
Esta pesquisa pode, ao ouvir os jovens, conhecer os motivos que
os levaram à tentativa de suicídio. Destaca-se a relação entre seus
modos de vida (as angústias frente à construção de relacionamentos
afetivos; as brigas em família; a sobrecarga gerada pelo estudo e
conciliação com trabalho; a autocobrança por resultados acadêmicos)
e as tentativas, apostando na necessidade de construção de espaços
saudáveis que os acolham e permitam que reflitam sobre as decisões
tomadas em momentos em que a tentativa aparece como a única saída
para a dor. Ao ouvir esses jovens, a relação que a literatura, muitas
vezes, estabelece entre tentativa de suicídio e diagnóstico psiquiátrico
mostra-se frágil para explicar a escolha dessa forma de emudecer as
dores que insistem em existir. Há certa invisibilidade dessas juventudes
quando se discute a prevenção e o manejo de tentativas de suicídio.
A partir disso, sugerimos que outras pesquisas possam ser construídas
para ouvir esses jovens e que as equipes de saúde que desenvolvem
ações de prevenção e cuidado possam partilhar suas experiências,
escrevendo sobre elas, valorizando suas práticas e apontando os
caminhos já trilhados para o cuidado desses jovens.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 361


Renata Fabiana Pegoraro, Bianca Rodrigues Freitas

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28 ago. 2020.

Sobre as autoras

Renata Fabiana Pegoraro


Tem pós-doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP com apoio do CNPq, doutorado
e mestrado em Psicologia pela USP-Ribeirão, Especialização em Saúde Coletiva pela
UFSCar e é psicóloga pela USP-Ribeirão. É docente do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal de Uberlândia.
E-mail: rfpegoraro@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4823645280355146

Bianca Rodrigues Freitas


Concluiu Residência Multiprofissional em Atenção em Saúde Mental pela Universidade
Federal de Uberlândia e é psicóloga pela mesma instituição.
E-mail: biancarfreitas02@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5453210403820614

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 365


21

Juventude,
homossexualidade
e família: uma
experiência dentro
e fora do armário
Youth, homosexuality and family:
anexperience in and out of the closet

Eduarda Rocha Ribeiro


Pablo Henrique Fagundes de Almeida
Orientador: Rafael Prosdocimi Bacelar

366 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventude, homossexualidade e família: uma experiência dentro e fora do armário

Resumo
O artigo discute as questões da juventude e da diversidade sexual,
articulando-as com as concepções de família. Enfatizamos as tensões
em relação à afirmação da homossexualidade dos jovens no âmbito
familiar. A reflexão ganhou corpo por meio de relatos de experiências
de jovens homossexuais, que participam de um coletivo de graduandos
do curso de Psicologia. A revisão teórica se debruça sobre os aspectos
apontados por estes relatos, refletindo o processo vivido por jovens
homossexuais no contexto familiar. Assim, discutimos as dificuldades em
relacionamentos com os pais, preconceito, pressões internas e externas
além de invisibilidades durante a construção da subjetividade destes
jovens. Concluímos, segundo os aportes teóricos que fundamentam
esse artigo, que o jovem homossexual que encontra apoio familiar tem
melhores possibilidades de se constituir como protagonista de suas
vidas, lidando melhor com as dificuldades atreladas à experiência da
juventude homossexual no contexto brasileiro.

Palavras-chave: Juventude. Homossexualidade. Família.

Abstract

This article discusses the issues of you thand sexual diversity,


articulating them with the concept of family. We emphasize tensions
regarding the affirmation of homosexuality of Young people in the
family. This argument took shape through reports of experiences of
Young homosexuals, Who participate in a collective of undergraduate
students in the Psychology course. The theoretical review focuses on
the aspects pointed out by these reports, that allowed us to think
about the process experienced by young homosexuals in the family
context. Thus, we discussed the difficulties in relationships with
parents, prejudice, internal and external pressures and invisibilities
during the construction of the subjectivity of these Young people.
We conclude, according to the theoretical contributions that support
this article, that the Young homosexual Who finds family support has
better chances of becoming a protagonist of their lives, dealing better
Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 367
Eduarda Rocha Ribeiro, Pablo Henrique Fagundes de Almeida

with the difficulties linked to the experience of homosexual youth in


the Brazilian context.

Key words: Youth. Homossexuality. Family.

1. Introdução

Neste artigo refletimos acerca da relação de jovens homossexuais no


âmbito da convivência familiar. Destacamos o complexo processo vivido
por jovens em relação ao processo de afirmação da homossexualidade
no contexto das práticas e interações familiares. Esta temática emergiu
entre nós a partir da reflexão sobre alguns depoimentos de jovens que
fazem parte do Juventude Coletiva (JC), um coletivo de graduandos
do curso de Psicologia na região metropolitana de Belo Horizonte em
Minas Gerais. Tomando por base a experiência do coletivo, buscamos
investigar a relação do segmento “família” em torno de situações de
afirmação subjetiva, assim como aspectos adoecedores na construção
da identidade dos jovens, considerando as particularidades do
desenvolvimento subjetivo desta etapa da vida, a juventude.
Dois dos autores deste trabalho fazem parte do JC, coletivo que
tem como objetivo questionar as diferentes formas de opressão social,
assim como propor pautas e ações em torno de diferentes marcadores
identitários, tais como: comunidade de lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais
e aliados (LGBTQIA+), classe, negritude, ruralidade, dentre outros.
Além disso, uma das autoras deste artigo realizou no âmbito de uma
disciplina acadêmica, um levantamento sobre diferentes aspectos
da convivência familiar entre jovens homossexuais. Esta experiência
fomentou o interesse em aprofundar na compreensão da questão da
homofobia no contexto familiar.
Infelizmente o Brasil apresenta um cenário na qual as minorias
são continuamente oprimidas e subalternizadas, tornando-se
relevante esforços de compreensão e visibilização desses mecanismos
de subjugação, para que assim se possa ter maior capacidade de
intervenção social e ampliação de processos de democratização social

368 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventude, homossexualidade e família: uma experiência dentro e fora do armário

e expansão efetiva dos Direitos Humanos (PRADO; MACHADO, 2008).


Para dar concretude às nossas indagações e materialidade à
experiência da homofobia na família, pedimos a alguns dos participantes
do coletivo que contassem para nós suas histórias acerca da relação
com suas famílias, o que nos permitiu acessar os diferentes fatores
que incidem na trama da convivência familiar de jovens homossexuais.
Antes de apresentar e refletir sobre os depoimentos dos jovens, na
próxima seção discutimos alguns elementos fundamentais para pensar
as relações entre juventude, homossexualidade e convivência familiar.

2. Juventude, homossexualidade e família

Como primeiro segmento de acesso social ao mundo, a família é


responsável em grande parte por introduzir o indivíduo a um mundo de
valores e princípios (BERGER; LUCKMAN, 2004). É nos laços familiares
que damos início a nossa identidade e a nossa vida. Um ambiente
familiar saudável contribui para o fortalecimento e desenvolvimento
saudável dos jovens, aumentando a capacidade de comunicação,
realização pessoal e autonomia (PAPALIA; FELDMAN, 2013). Embora o
senso comum entenda a família por meio de relações de ascendência e
descendência, nas últimas décadas vemos emergir novas configurações
e arranjos familiares, incluindo aí laços de afetividade e não apenas
relações consangüíneas (HINTZ, 2007; LOBO, 2009; OLIVEIRA, 2009).
As famílias, mantidas por laços de consangüinidade e/ou afeto, são
espaços de construção da subjetividade, mas também são responsáveis
por muitos danos e aflições aos seus indivíduos. Os laços familiares
compostos por relações tóxicas e conflituosas podem gerar severos
prejuízos aos sujeitos, por meio de diferentes tipos e níveis de violência,
seja ela física, simbólica ou verbal. Assim, muitos estudos, como os de
Schulman (2010) e Barbero (2003), revelam os efeitos prejudiciais da
homofobia familiar que coloca em grande parte os adolescentes da
comunidade LGBTQIA+ em posição de inferioridade e “anormalidade”,
gerando danos subjetivos. São inúmeros os casos de violência familiar
quando há revelações de orientação sexual ou de gênero difusas da
heteronormatividade e/ou cis-generidade.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 369


Eduarda Rocha Ribeiro, Pablo Henrique Fagundes de Almeida

“O que faz as pessoas gays bodes expiatórios ideais em uma


família é que nela estão sozinhas. Muitas vezes, ninguém no
interior da família é como elas ou se identifica com elas. Elas
se tornam uma tela projetora, o terreno em que todos os
outros depositam suas deficiências e ressentimentos. Além
disso, ninguém está olhando. Ninguém de fora irá intervir,
porque há a percepção de que os assuntos de família são
privados e intocáveis. A estrutura familiar e sua intocabilidade
predominam. Então, porque a pessoa gay não tem apoio total
de sua família, ela por sua vez se torna o bode expiatório ideal.”
(SCHULMAN, 2010, p. 76)

A violência familiar se mostra uma ameaça concreta para a formação


do adolescente homossexual, em um espaço fundamental para a
construção da subjetividade. A homofobia encontra-se espraiada
no campo social, ocupando distintos segmentos sociais, mesclando
formas explícitas e implícitas de opressão, sendo por vezes aceita como
brincadeira, como parte de uma “cultura”, de uma religião, ou um modo
“legítimo” de se posicionar na sociedade, como nos lembram Guacira
Louro e Tomaz Tadeu (2003, p.19): “meninos e meninas aprendem,
também desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para
dirigirem àqueles e àquelas que não se ajustam aos padrões de gênero
e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem”.
Como efeito de uma cultura que aceita a homofobia como
“normal“, as violências que afetam jovens homossexuais muitas
vezes não percebidas ou nomeadas como violência, sendo assim, há
uma invisibilização da homofobia o que impede modos de luta e de
crítica (PRADO; MACHADO, 2008). A família, como parte da sociedade
mais ampla, recebe influência desta cultura da homofobia, tanto na
manutenção de práticas de violência, quanto na imposição do silêncio
acerca das demandas dos jovens homossexuais, como veremos
adiante. Assim, além dos xingamentos, desqualificações e agressões
físicas, os jovens lidam também com o vazio e o silenciamento imposto
por esta cultura homofóbica (SCHNEIDER, 2004).
Para compreender melhor os mecanismos homofóbicos no
ambiente familiar, assim como vislumbrar formas de apoio na
construção de uma subjetividade homoafetiva por parte de jovens

370 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventude, homossexualidade e família: uma experiência dentro e fora do armário

brasileiros, pedimos aos membros do Juventude Coletiva (JC) que


nos dessem depoimentos que tratassem da relação deles com suas
famílias. Na próxima seção vamos aprofundar em questões que nos
foram trazidas por esses depoimentos.

3. As histórias que os jovens contam

As histórias que nos foram contadas pelos jovens se baseiam em


aspectos vividos pelos integrantes homossexuais do Juventude Coletiva
(JC) na sua convivência com seus familiares. Nota-se que tais relatos
são marcados por violência, sentimentos de inadequação, medo e
preconceito etc. Além disso, é importante destacar também as falas
de jovens que relatam ter encontrado apoio familiar para a construção
de suas identidades enquanto homossexuais. Assim, quando pedimos
aos jovens que contassem como é e como foi sua convivência nas
famílias não direcionamos seus relatos, buscando a pluralidade das
experiências familiares, o que eles realmente viveram e vivem em
suas moradias. Para preservar a identidade e respeitar o sigilo desses
jovens, alteramos seus nomes nos trechos utilizados aqui25.

3.1 Jovens homossexuais e aceitação na família

A homossexualidade começa a ser discutida, na maioria das vezes,


na pré- adolescência, até mesmo antes do adolescente se identificar
como indivíduo homossexual (MARTINS; TRINDADE; ALMEIDA, 2003).
Essa fase é marcada por descobertas, não apenas internas, mas
também do mundo, e constantemente são acarretadas por pressões
familiares. Como relata Henrique, integrante do JC:

“Minha orientação sexual começou a ser discutida ainda muito


cedo por pressões da minha mãe. Na época, eu ainda estava na

25 Os depoimentos foram enviados para os autores do trabalho como gravações de áudio que foram posterior-
mente transcritas para este trabalho. Mantivemos a grafia respeitando a oralidade dos relatos. Os nomes dos
depoentes foram trocados para manter a confidencialidade dos mesmos.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 371


Eduarda Rocha Ribeiro, Pablo Henrique Fagundes de Almeida

pré-adolescência, e não havia me relacionado com alguém do


mesmo sexo. Foi um período de grandes descobertas do meu
corpo e de mim mesmo. Lembro de sentir uma atração muito
forte por meninos, mas não sabia dizer o que era todo aquele
sentimento, se era certo ou errado. Minha única certeza àquela
altura era da diferença em relação ao que os outros meninos
da minha idade gostavam de fazer e de que essa diferença
incomodava algumas pessoas. Aos 13-14 anos comecei a
notar um movimento novo na minha família. Meus pais
discutindo, meus irmãos tristes e uma estrutura inteira sendo
reconfigurada. Nesse momento, eu comecei a perceber que eu
não estava sozinho e que meus irmãos também compartilhavam
desses mesmos sentimentos. Eu costumo dizer que aos 15 anos
em uma conversa com eles me descobri enquanto sujeito gay.
Talvez sem o movimento que eles fizeram lá atrás, eu não teria
me assumido. Contar essa história hoje, é de muito orgulho
para mim. Meus irmãos e eu pertencemos a um movimento
de luta e resistência. Um movimento que vibra pelas pequenas
vitórias. Nossa caminhada enquanto homossexuais envolveu
e ainda envolve tempo e paciência. Minha mãe passou por
sessões de psicoterapia e hoje lida bem com nossa sexualidade.
Meu pai ainda carrega consigo um discurso heteronormativo
e patriarcal. Felizmente tenho o privilégio do apoio dos meus
irmãos e parentes no geral. Acredito que essas redes de apoio
foram muito importantes na minha experiência enquanto
sujeito homossexual26.

A fala de Henrique revela ao mesmo tempo situações muito


comuns na relação de um jovem homossexual com a família, suas
dúvidas, as dificuldades persistentes de um dos genitores, mas
também é carregada pela singularidade de encontros, possibilidade de
diálogo e construção de si, a partir do vínculo com seus irmãos. Além
disso, a busca da mãe por um horizonte de compreensão fortalece
possibilidades de aceitação e pertencimento. Outros relatos revelam

26
Relato enviado por Henrique para os autores deste artigo em agosto de 2020.

372 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventude, homossexualidade e família: uma experiência dentro e fora do armário

uma faceta diferente do processo de “sair do armário”, momento


sensível na experiência da maior parte dos jovens homossexuais
(BARBERO, 2003).

“Não tive muitas dificuldades com meus familiares, talvez por


não viver essa filosofia imposta de ter que se assumir. Não
acredito nisso e acho que essa “descoberta” deve vir com
naturalidade. Foi por esse processo que passei, meus familiares
sempre souberam e sempre disseram que iriam me apoiar no
que fosse, mesmo quando nem eu mesmo havia me descoberto
e me aceito. O único problema real para mim dentro da família
foi meu pai, que costumava me oprimir desde criança. Lembro
de um período na adolescência em que toda vez que nos
víamos era a mesma ladainha: “se for fazer isso (ficar com
homens), faça longe daqui. Não dê essa vergonha pro seu pai.
Imagina ter que sair e ser zoado por ter um filho assim!”. O
que me confortava era que não morávamos juntos, então não
tinha que ouvir isso sempre. Isso me machucava muito, porque,
apesar de tudo, eu ainda o amava e queria ser aceito por ele. Eu
sempre procurei pelo orgulho dele, mas nunca era reconhecido,
meus outros irmãos, heterossexuais, sempre eram tratados de
forma diferente e melhor. Hoje é completamente diferente. Ele
me mostrou que é possível que as pessoas mudem e aprendam
com seus erros. Temos uma relação ótima e isso me agrada
muito. O resto da minha família me respeita e aceita, apesar
de ainda existir um preconceito que é velado e, podemos dizer
que, estrutural. Minha mãe e minha irmã mais nova são um
apoio pra mim, me amam de todas as formas.” (Luiz, membro
do JC)27.

Em consonância com os relatos aqui apresentados, os estudos


sobre a história de vida de pessoas LBGTQI+ que focam na trama da
descoberta e afirmação da sexualidade, revelam que tal processo
acontece de forma conflituosa e conturbada, em que questões

27 Relato enviado por Luiz para os autores deste artigo em agosto de 2020.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 373


Eduarda Rocha Ribeiro, Pablo Henrique Fagundes de Almeida

subjetivas, como medos e frustrações muitas vezes não encontram


respaldo e suporte nas redes familiares (BALSAM; MOHR, 2007;
DETRIE; LEASE, 2007; ROSARIO, SCHRIMSHAW, HUNTER, 2011).

3.2 Assumir, ou não se assumir, uma nova maneira de ver a história

O medo da rejeição é constante aos jovens que optam em não


revelar a sua sexualidade nos laços familiares, o receio de quebrar as
expectativas e não ter a aceitação da família causa angústia a esses
jovens (MEYER, 2003). Nos próximos depoimentos, verifica-se que não
revelar a sua orientação sexual pode ser uma saída para diminuir as
dificuldades atreladas à identidade homossexual, assim tal escolha, a
recusa da identificação, revela um processo complexo de articulações
entre eu, meus desejos e os outros.
De acordo com o relato da Jessie, mesmo quando se opta em não
se assumir como indivíduo homossexual, ainda assim, a homofobia
se faz presente e a exclusão ou indiferença da família ocasiona não
apenas a tristeza, mas afeta diretamente a saúde mental de quem
sofre a homofobia.

“A homofobia era tão presente e real, que não consegui me


assumir, preferi me afastar por ter medo da rejeição, não
aceitação. Família muito religiosa e moralista, sinto que
quebrei todas as expectativas, por ter me relacionado com
outra mulher. Não me assumir como lésbica, e não pretendo.
Ninguém que é heterossexual se assume como hétero, por
que eu deveria fazer isso? Fico muito triste, porque sinto que
depois que “desconfiaram” da minha sexualidade, me tratam
diferente, não é como antes. Se sentir excluído pela própria
família machuca, não desejo nem para meu pior inimigo. As
piadinhas homofóbicas nos encontros de família são cruéis e
deviam ser desnaturalizadas, pela nossa saúde mental28."

David, também integrante do coletivo, complementa:

“Minha mãe faleceu durante minha infância, e assim morei


toda a minha vida com o meu pai. Ele sempre foi muito rígido,
mas sempre tivemos uma boa convivência. Nunca me assumir

374 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventude, homossexualidade e família: uma experiência dentro e fora do armário

como homossexual, vejo como algo particular, o mundo é muito


preconceituoso, sendo assim, prefiro me preservar. Percebo
que minha família, não toda, mas grande maioria, me trata
com falta de respeito, por pensarem que sou homossexual, por
isso não me exponho, tenho medo de sofrer ainda mais com o
preconceito29."

Diante disso, observa-se uma complexidade em relação a assumir


publicamente ou não a sexualidade, considerando a dimensão de
violência que afeta aqueles que explicitam o seu desejo. O jovem
homossexual por efeito dessa violência abre mão do seu próprio
desejo, apresenta atitudes de submissão e neste caminho não se
reconhece mais enquanto sujeito de si, vivendo mais na lógica de uma
determinação do outro, que não o aceita (MEYER, 2003).

3.3 Família, preconceito e homofobia

Muitas famílias acreditam que a homossexualidade pode ocorrer


por influência de outros indivíduos homossexuais, e isso faz com que
os jovens se sintam ainda mais excluídos. Camila, nos relata que o
processo de aceitação em sua família é muito difícil, mostrando como
a homofobia afeta não apenas o indivíduo, como também todo o
núcleo familiar.

“Eu sou lésbica e meu irmão mais novo homossexual, e para


minha família meu irmão teve minha “influência” para se tornar
gay. Minha mãe é a única que nos apoia em relação a nossa
sexualidade, mas o processo de aceitação que ela passou foi
muito complexo, pois a LGBTQI+fobia é tão desumana, que
não afeta apenas os membros, mas também os seus familiares
e amigos. Minha mãe teve que passar por sessões de terapia,
para conseguir encarar todo o preconceito e nos apoiar. O meu
pai, ao contrário da minha mãe, não tentou desconstruir as

28 Relato enviado por Jessie para os autores deste artigo em agosto de 2020.
29 Relato enviado por David para os autores deste artigo em agosto de 2020.

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 375


Eduarda Rocha Ribeiro, Pablo Henrique Fagundes de Almeida

ideologias homofóbicas, e sempre nos tratou com desprezo30."

No depoimento de Camila ressaltamos essa marca que a família coloca


nela, de ter sido responsável, em alguma medida, por “desencaminhar”
seu irmão. No texto da Resolução 001/99 do Conselho Federal de
Psicologia, que trata da proibição de qualquer tratamento psicológico
de reversão sexual, lemos: “a homossexualidade não constitui doença,
nem distúrbio, nem perversão” (CFP, 1999). Tal posição, de forma
sintética, questiona as diferentes matrizes discursivas que associam a
experiência homoafetiva à gramática do pecado, da insanidade e da
patologia, processo que circunda os discursos homofóbicos. Pedro,
discorre sobre esses quadros de preconceito trazendo o seguinte
depoimento:

“Comecei a sofrer homofobia nos laços familiares em formas


de xingamentos, sempre me tratavam com indiferença e
desrespeito. Depois foi cada vez mais aumentando, e um dia
meu “pai” me agrediu, relatando que eu estava me expondo
demais, agindo igual um "viadinho ", isso eu tinha 14 anos.
Minha mãe sempre tentava fazer com que meu pai parasse de
me bater, mas no final das contas sempre ficava do lado do meu
pai31."

Se a homofobia constitui uma violência aos jovens e também produz


efeitos negativos para a convivência familiar, a lógica da desconstrução
perpassa não apenas o indivíduo homossexual como todo o campo
familiar. Ou seja, para combater há de se abrir espaços de reflexão e
aceitação neste mesmo âmbito em que a violência se faz presente.
No entanto, muitas vezes não há espaço para desconstruir as normas
sociais e heteronormativas, que são a base das violências contra a
comunidade LGBTQIA+. Infelizmente é frequente os pais dos jovens
homossexuais buscarem razões para o “desvio” da sexualidade dos seus

30 Relato enviado por Camila para os autores deste artigo em agosto de 2020.
31 Relato enviado por Pedro para os autores deste artigo em agosto de 2020.

376 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes


Juventude, homossexualidade e família: uma experiência dentro e fora do armário

filhos, procurando formular explicações e atribuir culpa a terceiros,


ou até mesmo responsabilizando acontecimentos na infância para
a orientação homossexual. Acreditam também que não deram uma
educação de qualidade ao seu filho, de modo que em muitos casos se
responsabilizam pelo desejo que não aceitam em seus filhos ou filhas.
O que temos, portanto, é a dificuldade de questionar os discursos do
pecado, da patologia ou da insanidade atribuídos à homossexualidade.
O que vimos nos relatos e na literatura, é que a convivência nos
laços familiares é espaço para reiteradas tentativas de repressão nas
vivências homossexuais em nome de um ideal de sociedade e de
sujeito (MOTT, 2001). Faz com que ele ainda se sinta impotente diante
das violências prejudicando sua integridade psicológica, física, e o seu
bem-estar de forma exacerbada (MOTT, 2001).

4. Considerações finais

Nos depoimentos e na bibliografia utilizada como referência


para este artigo, observamos como a noção de que o desejo deve
ser modelado pela heterossexualidade, com a consequente visão
da homossexualidade como algo “errado”, modela grande parte das
experiências dos jovens no contexto familiar. Através da experiência,
os jovens homossexuais destacaram principalmente que lidam
cotidianamente com questões de desconforto, sentimento de
inadequação, medo e insegurança.
O artigo articulou aspectos da homofobia familiar apresentando
jovens lésbicas e gays inseridos em uma configuração familiar
arquitetada sobre o pilar da heteronormatividade, tendo em vista que
a exclusão dos jovens homossexuais na maior parte das vezes perpassa
por condições de maus tratos provenientes da figura paterna.
Também é importante salientar que frente aos atravessamentos
enfrentados pelas famílias na relação com a homossexualidade de
jovens, observamos movimentos de busca por psicoterapia ou outra
forma de ajuda de membros da família, para fomentar círculos mais
virtuosos na relação familiar.
Sendo assim, os enfrentamentos, dificuldades e necessidades
dos jovens homossexuais ainda demandam ações que envolvam os

Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) 377


Eduarda Rocha Ribeiro, Pablo Henrique Fagundes de Almeida

diferentes atores sociais, programas e políticas de cidadania e direitos


humanos que permitam aos jovens viverem mais plenamente sua
sexualidade sem a opressão de suas escolhas, seus desejos e suas
formas de viver.

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Sobre os autores

Eduarda Rocha Ribeiro


Graduanda do 2º período do curso de Psicologia na instituição UNA (Betim).
Dados profissionais: Fundadora do coletivo “Juventude Coletiva”, participou dos projetos de
extensão “Podium” e “Saúde, ambiente e ação” realizando orientação profissional e atuando
como multiplicadora em informações de saúde e qualidade de vida.
E-mail: eduardarochaheitor@gmail.com

Pablo Henrique Fagundes de Almeida


Graduando do 7º período do curso de Psicologia na instituição Faculdade Pitágoras
(Venda Nova).
Dados profissionais: Membro do coletivo “Juventude Coletiva”, realizou estágios
introdutórios de Psicologia Social e Políticas Públicas desenvolvendo observações
participantes, escuta ativa, fortalecimento de vínculos e criação de grupos. Voluntário
em ONGS e projetos sociais.
E-mail: pablofagun@gmail.com

Orientador: Rafael Prosdocimi Bacelar


Formação: Graduado em Psicologia pela UFMG; mestre e doutor em Psicologia pela
UFRJ.
Dados profissionais: Professor de Psicologia na Universidade FUMEC e Centro
Universitário UNA.
E-mail: rafaelpros@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4581317780756026

380 Comissão de Orientação em Psicologia e Juventudes

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