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cadernos temáticos CRP SP
Psicologia e o resgate
da memória: diálogos
em construção
Conselheiras/os suplentes
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros
Ed Otsuka
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Mary Ueta
Maurício Marinho Iwai
Rodrigo Fernando Presotto
___________________________________________________________________________
C755q Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Psicologia e o resgate da memória: diálogos em construção.
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2019.
92 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 23)
ISBN: 978-85-60405-48-0
CDD 150.9
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.
7 Apresentação
Debates
Debates
Debates
Debates
Apresentação 7
Temáticos CRP SP
Psicologia e o resgate de memória, em especial à
ria, para preservá-la e compreendê-la como cons-
partir do trabalho com a clínica do testemunho e a
trução histórica, o GT História e Memória busca
contribuição de importantes pioneiras da Psicolo-
elucidar as relações da Psicologia com a socieda-
gia no estado de São Paulo.
de brasileira, no sentido de ampliar o campo de re-
O GT História e Memória foi constituído em flexão acerca da função da Psicologia, dos limites
construção
Cadernos
1999 e denominado Grupo de Trabalho Memória da e das potencialidades de sua atividade.
Psicologia – atualmente renomeado de “GT Histó-
Esperamos que os textos aqui contidos se-
ria e Memória” – no momento de sua constituição
É com muita alegria que iniciamos esse Ana Turriani, da psicóloga Maria Cristina Ocariz
primeiro ciclo de debates. A proposta é com- e do psicólogo Lúcio Costa, sobre suas atua-
partilhar e dialogar sobre experiências que têm ções e suas trajetórias profissionais.
em comum o eixo central de trabalhos voltados
e que priorizam um tema fundamental que é
a memória. O “GT História e Memória” tem o
foco na divulgação da construção da Psicolo-
gia, enquanto ciência e profissão por meio da
retomada da contribuição de seus personagens
pioneiros, campos, as grandes áreas, e atual-
mente estamos também nos debruçando sobre
a garantia de direitos.
Temáticos CRP SP
prisional, na Coordenação Nacional da Saúde Pri- talvez vivenciando o momento mais preocupante
sional do Ministério da Saúde onde pude contribuir dos últimos 30 anos.
com a formulação de uma portaria1 específica na
reinserção de pessoas com transtorno mental em
conflito com a lei, popularmente conhecida como
“estamos talvez vivenciando o
construção
“loucos infratores”. Foi a primeira portaria do Mi-
Cadernos
nistério da Saúde e primeira ação do Ministério da momento mais preocupante dos
Saúde destinada à essa população.
últimos 30 anos.“
judicial ou por determinação administrativa. Assim países da América aboliram a escravidão e o Bra-
como funciona no caso de hospitais psiquiátricos, sil por consequência teve que adotar essa prática.
o meu trabalho atualmente é inspecionar essas Não conhecemos isso, não conhecemos detalhes
instituições, entender os processos de violação e sobre os processos ditatoriais que vivemos. O úl-
timo durou 21 anos e simplesmente desconhece-
mos esse processo ditatorial civil-militar. Qualquer
1 Revogação da PORTARIA Nº 019/2006-GAB/SES e criação do tentativa de se falar em memória sobre esse perí-
o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator no Estado odo é atacada e hostilizada.
de Goiás – PAILI -
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“esse diálogo deve servir para
“O momento social que
nos fortalecermos. Talvez a
nós vivemos gera uma
tentativa seja de constatação
desorganização de todas as
sobre o momento, mas é uma
ordens enquanto sofrimento,
constatação que nos exige,
enquanto adoecimento e falar
inclusive, criar uma estrutura
sobre memória é fundamental
emocional. A primeira coisa
porque nos foi tirado o direito,
que essa onda de ataques
o nosso direito de ter memória,
faz é matar os nossos
a nossa memória foi roubada
desejos, em momentos como
literalmente. Vivemos em um país
nesses encontros, temos que
que tem 300 anos de escravidão
potencializar a nossa capacidade
e que não conhecemos sequer
de desejar, de ter outra
o que isso representou nesses
perspectiva, que não é essa em
300 anos, não temos lembranças
que nos encontramos. “
desse período no Brasil.“
O que se vê no processo de redemocrati-
A comissão nacional da verdade, por exemplo, zação do país é que ainda temos, pelo menos, do
levantou uma série de arquivos que hoje estão sob ponto de vista institucional superado a ditadura
o poder do governo federal, quer dizer, não sabemos militar no Brasil, mas não superamos o projeto de
se daqui um ano esses arquivos ainda existirão, são escravidão e esse processo de redemocratização,
poucos arquivos, mas arquivos que pincelam nossa portanto, tenha talvez suspendido algumas ações
história, que pincelam a nossa memória. institucionais antidemocráticas para alguns gru-
pos, mas o projeto de escravidão continua. Temos
Estamos na verdade no momento de mani- um projeto de assassinato das pessoas negras do
festação do nosso recalque. Agora explodiu e as nosso país, e isso não podemos perder do horizonte
coisas estão voltando ao cenário que se apresen- e para falar sobre qualquer processo de memória e
ta. Um cenário assustador e insistir nesses adjeti- de história, temos que falar sobre esse projeto de
vos sobre o cenário que nós vimos é importante, escravidão, desse projeto de assassinato da popu-
mas esse diálogo deve servir para nos fortalecer- lação negra que está em curso no nosso país desde
mos. Talvez a tentativa seja de constatação sobre sempre e desde que a escravidão foi abolida.
o momento, mas é uma constatação que nos exi-
ge, inclusive, criar uma estrutura emocional. A pri-
meira coisa que essa onda de ataques faz é matar
os nossos desejos, em momentos como nesses
“Não nos libertamos desse
encontros, temos que potencializar a nossa ca- projeto de escravidão, desse
pacidade de desejar, de ter outra perspectiva, que
não é essa em que nos encontramos.
projeto de violação a um
grupo e essa cultura de
Para falar da memória, a meu ver, e sem colo- que determinados corpos
car no grau do que significa mais ou menos impor-
tante, mas tão importante quanto, o projeto de es- são torturáveis tem como
cravidão que vivemos. Somos um país que nunca base essencial o projeto de
superou qualquer violação de direitos humanos, in-
clusive, para falar de ditadura militar, não podemos escravidão“
esquecer-nos de falar do processo escravagista.
Não nos libertamos desse projeto de escravidão,
desse projeto de violação a um grupo e essa cul-
Trouxe alguns números porque é importante
tura de que determinados corpos são torturáveis
começarmos a dimensionar e recuperar a memória
tem como base essencial o projeto de escravidão.
a partir deles. Se nós olharmos os nossos presí- estrutura do estado que tinha a finalidade de ma-
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dios, vamos identificar qual é a população que está tar pessoas continua existindo, importante regis-
presa: população negra, pobre e periférica. Em ou- trar isso. Tentam polarizar o nosso discurso nos
tra perspectiva existe o processo de assassinato colocando de maneira rasa e contra os policiais.
que vivemos do ponto de vista histórico. Para isso, É importante lembrarmos que a maioria é jovem,
apresento alguns dados: em 2015 fizemos um es- negro e periférico que tem sido usada pelo próprio
tudo na época que eu estava na Coordenação de estado para matar outro jovem, negro e periférico.
Temáticos CRP SP
do ponto de vista institucional sil foram 51 mil pessoas mortas, lembrando que a
taxa mundial é de seis pessoas para cada 100 mil
superado a ditadura militar no habitantes. No Brasil, por exemplo, em 2009 era de
Brasil, mas não superamos o 27 pessoas para cada 100 mil habitantes. Nesse
projeto de escravidão“ ano de 2018, o último dado que nós temos, é que
construção
60 mil pessoas morreram no país vítimas de vio-
Cadernos
lência, podemos colocar uma taxa de 30 pessoas
para cada 100 mil habitantes.
Temáticos CRP SP
nosso país, e uma informação interessante que ele
que passaram por situações trouxe é que a maioria das pessoas hoje presas
de terror, seja em função da por tráfico de drogas no país, não são presas fruto
ditadura militar, em função da inteligência da Polícia Federal ou Polícia Civil. As
pessoas são presas fruto da ronda ostensiva da
de grupo de extermínio ou de
construção
polícia militar na periferia.
Cadernos
perseguições nazistas“
Prende-se muito hoje nessa concepção de
desejo e intenção de voto. Falta compreensão das destinadas a tratamento de usuários de drogas,
pessoas, pois é em função desse pensamento que que na verdade cumprem um papel segregador
nos encontramos nesse cenário, e se não supera- dessa juventude negra e periférica.
mos a estrutura violenta do estado com processo
de redemocratização do país, qual seria o resulta-
do se não o que estamos vivendo? E a opção das
pessoas para determinadas figuras é que repre-
senta esse passado, e inclusive reafirma a lógica da
dora, a outra talvez, a depender da perspectiva de
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“A Segurança Pública funciona vocês. Um pensamento do Gramsci diz que “contra
o pessimismo da razão, o otimismo da prática”. Con-
com a finalidade de exterminar, tra pessimismo da razão, o otimismo da nossa prá-
dentro desse projeto racista tica. Nós podemos construir uma nova realidade.
de sociedade, isto é, se A outra frase, essa eu ouvi hoje e me empolgou é:
você não é subordinado à “Combinaram de nos matar, mas nós combinamos de
não morrer” da Conceição Evaristo. Temos que le-
máquina produtiva, você vai var em conta, porque temos que combinar a nossa
ser encaixotado nos presídios, resistência, combinar os nossos afetos, estamos
nos manicômios e agora na desafetados.
nova face dos manicômios,
as comunidades terapêuticas
destinadas a tratamento de
usuários de drogas, que na “Temos que levar em conta,
verdade cumprem um papel porque temos que combinar
segregador dessa juventude a nossa resistência, combinar
negra e periférica“ os nossos afetos, estamos
desafetados“
Arrisco atribuir que grande parte desses
problemas é em função da nossa ausência de
memória, de compreender o que foi a escravidão,
Há um pensamento do Zygmunt Bauman,
de compreender o que significam essas ditaduras
que é sobre atualidade “nós vivemos uma multidão
no nosso país, que não conseguimos sublimar. A
de solitários” e o avanço do processo do sistema
diferença da sublimação para o recalque é nítida:
capitalista visa isso, enquanto função é o indivíduo
você sublima e investe todo aquele seu desejo
acima de todos e a coletividade perde espaço. A
reprimido para produzir algo diferente, o recalque
troca de afeto, de olhar hoje é muito difícil, você
você guarda e aquilo vai se manifestar em algum
não para a sua rotina para conversar com alguém,
momento da sua vida de outra forma, é isso que
o diálogo e o encontro com o outro é a coisa mais
está acontecendo agora. Nós guardamos toda a
natural do mundo. Nós perdemos a capacidade de
nossa história, não a conhecemos, ela está se ma-
afeto e estamos criminalizando o afeto.
nifestando de novo em alguma medida.
Hoje, por exemplo, existe um legislador no
Congresso que diz quem que eu devo amar, como
se o amor não fosse algo de ordem subjetiva. Eu
“A diferença da sublimação para amo quem eu quiser, não é uma legislação que
vai dizer que você pode amar somente alguém do
o recalque é nítida: você sublima sexo oposto, isso é uma construção moral legiti-
e investe todo aquele seu mada em uma perspectiva de que a nossa memó-
desejo reprimido para produzir ria não consegue lembrar.
algo diferente, o recalque você
guarda e aquilo vai se manifestar
em algum momento da sua
vida de outra forma, é isso que “Eu amo quem eu quiser, não é
está acontecendo agora. Nós uma legislação que vai dizer que
guardamos toda a nossa história, você pode amar somente alguém
não a conhecemos, ela está do sexo oposto, isso é uma
se manifestando de novo em
construção moral legitimada em
alguma medida “
uma perspectiva de que a nossa
memória não consegue lembrar“
Uma frase que eu queria deixar, aliás, duas
frases. Porque uma eu tenho certeza que é anima-
Anna Lucia Marques Turriani Siqueira 15
Membro do Margens Clínicas desde sua fundação, dedica-se à
pesquisa de metodologias clínicas comunitárias voltadas para a
recuperação e construção de memória coletiva. Desse trabalho
desenvolve o projeto Cartografia das Memórias. Foi membro do Centro
de Atención Psicosocial a Víctimas de Violencia Política (CAPVVIPO)
da Escuela de Psicología de la Universidad de San Carlos de
Meu nome é Ana Turriani, membro do Cole- se processo eu parei na Guatemala e entrei em
tivo “Margens Clínicas2”, atuo desde 2012 na aten- contato com o livro “O assassinato do Monsenhor
ção psicossocial às vítimas de violência policial Gerard”, um livro de ficção que contava a história do
nas periferias de São Paulo e desde 2015 tive a Arcebispo Monsenhor Gerard que foi responsável
oportunidade de coordenar e participar de um dos pela primeira Comissão da Verdade da Guatemala.
Temáticos CRP SP
núcleos das Clínicas do Testemunho, o segundo
edital do primeiro projeto de reparação psíquica Não é exatamente uma Comissão da Verda-
do Estado, das vítimas da violência do Estado. Sou de porque a Guatemala nunca teve uma Comissão
psicanalista e psicóloga com ênfase no trabalho, da Verdade, ela teve um processo de recuperação
sobretudo na área da Psicologia Social. Concordo de memória. Gerard entendia como função a recu-
construção
com a análise do Lúcio, de que grande parte do mal peração da memória, mas muito atrelado à Igreja e
Cadernos
que estamos vivendo é pelo modo como aprende- o Estado cria logo depois outro processo de me-
mos a nos “desafetar” e é por isso que eu trabalho mória, voltado para a população como um todo e
com memória. Não estou aqui hoje representando não vinculado à Igreja. Dois dias depois da publica-
colocar uma mochila nas costas, ir embora para com o país que tem um vigésimo do tamanho do
a América Latina e “mochilar” na América Central. Brasil, a Guatemala é do tamanho do estado de
Vou do México até o Panamá em três meses. Nes- São Paulo, e teve 250.000 mil assassinatos e um
milhão e meio de vítimas indiretas.
2 Margens Clínicas, é um “coletivo formado por psicanalistas Fui para Guatemala estudar em 2007, e co-
e psicólogas, dedicado a pensar as interfaces do sofrimento
psíquico com as patologias do socia, elaborando, a partir da mecei a trabalhar com políticas de memória. Foi
escuta clínica, insumos para o enfrentamento à violência de essa descoberta de que o Brasil não se aliava à
Estado. ” https://www.margensclinicas.org/
uma espécie de memória latinoamericana, o que um evidente sinal de genocídio. Não é uma ques-
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escutávamos sobre o nosso passado era uma tão de comparar de 6.000, 4.000, 40.000, 80.000
história tomada como o mais terrível que existe, qual é o valor, mas o grau de perversidade em que
sem levar em consideração, inclusive, essa história está envolvido o ato do assassinato. Na Argenti-
inscrita em uma história maior que é a história da na, por exemplo, escondiam os corpos, lá o corpo
América Latina. O primeiro choque foi nunca ter ou-
era exposto, a vítima morta era colocada em praça
vido falar da relação da ditadura do Brasil com as
pública. Porque você não pode ser índio, você não
ditaduras da Argentina, México, Guatemala, Chile,
Uruguai e não saber que existiu um capital interna- merece a vida. Esse foi primeiro choque que me fez
cional durante a ditadura que fomentou todas as pensar pela primeira vez na memória, porque que
ditaduras da América Latina e que o Brasil recebeu eu não sabia dessas coisas.
75% de todo o financiamento dos Estados Unidos
e repassou para a ditadura se instaurar no Brasil. Em 2008, trabalhando na Guatemala e es-
tudando que a guerra tinha acabado em 1996, eu
Essa é também a razão pela qual morremos vivo o segundo susto quando chego para trabalhar
menos, porque a nossa força de inteligência foi no estágio na faculdade e a professora diz: “hoje
maior. Você não precisa matar direto, porque você vamos para o centro da cidade, porque chegou
consegue um sistema tão perverso de manipulação uma família de vítimas”. Nos assustamos porque
da memória que, através do suicídio, morre-se me- atendíamos às vítimas daquele conflito que tinha
nos pessoas pela mão do Estado porque se morre acabado em 1996 e era isso que nos dedicávamos
de outros modos, morre-se justamente criando cer- a fazer na Universidade. De repente estávamos
ta mitologia do narcotráfico, as próprias pessoas em 2007/2008 no centro da Guatemala, centro da
se matam e os grupos hegemônicos não precisam capital, a caminho de atender pessoas que eram
construir um mecanismo para matar, tal qual, na vítimas naquele momento, e descobrimos que os
Guatemala. assassinatos que teoricamente tinham acabado
ainda aconteciam nos interiores da Guatemala.
Trago essas duas cenas para elucidar o lugar de
onde comecei a me interessar e a trabalhar com
“Você não precisa matar a memória.
direto, porque você consegue
A maioria de nós psicólogas/os que conse-
um sistema tão perverso de gue ascender ao ensino superior, já faz parte de
manipulação da memória que um grupo cuja memória já está determinada em
através do suicídio, morre- certo lugar. Nossa memória não atravessa a ponte,
a nossa memória não escuta o que o frentista do
se menos pessoas pela mão posto de gasolina do Jardim Ângela fala; a nossa
do Estado porque se morre memória não escuta o que o lavrador do interior
de outros modos, morre-se de São Paulo fala; a nossa memória não escuta
o que a boia-fria quer dizer; a nossa memória não
justamente criando certa escuta o nordestino migrante, assim como não es-
mitologia do narcotráfico, as cuta as próprias empregadas domésticas; não es-
próprias pessoas se matam cuta as memórias das mulheres. Temos conversas
minimamente superficiais com elas. Não se trata
e os grupos hegemônicos de preocupação de classe, “está precisando de al-
não precisam construir um guma coisa? Eu te ajudo, dou um dinheiro a mais,
mecanismo para matar, tal qual, dou minhas roupas usadas, há solidariedade com a
pessoa, mas não tem uma escuta para ela. Eu não
na Guatemala“ sei da história dela, não sei de onde vem, eu não
sei. Eu não estou dizendo que somos muito impor-
tantes, eu vou fazer críticas muito duras e elas não
A ditadura Guatemalteca, que é a mais são individuais, não é uma crítica ao sujeito e não
perversa de todas, tinha fetos pendurados em ár- é esse o ponto.
vores, muitas mulheres foram assassinadas, estu-
pradas e depois seus úteros eram abertos a ma-
chadadas e os fetos pendurados em praças, como
“branco”, ocorre o oposto. Se não entendemos os
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marcadores subjetivos dessas palavras, também
“Nossa memória não atravessa como esses significantes se colocam na nossa
a ponte, a nossa memória não memória, tendemos a realizar um trabalho falho
de memorização, porque vai continuar um traba-
escuta o que o frentista do lho que só contará o que é bonito. Não queremos
posto de gasolina do Jardim falar da barbárie, contar da nossa responsabilida-
Temáticos CRP SP
coletiva, uma memória que
Temos que entender isso como parte de um
pode ser sustentada fora
processo histórico, entender que a nossa memória do “um a um”, o processo de
também está condicionada a lembrar, perceber e construção de memória precisa
construção
rememorar determinadas coisas porque nós tam-
Cadernos
bém fazemos parte desse universo. E se não tiver- ser um processo que passa pelo
mos humildade de reconhecer que também temos coletivo“
um ato falho, que temos os nossos microrracismos
Temáticos CRP SP
O que observamos na América Latina? No- acho que tínhamos que parar a matança e para
vamente essa dicotomia guatemalteca entre mili- isso, precisou aceitar que outra matança continu-
tares e a esquerda. Quando eu falei que a esquer- asse a acontecer; é muito triste reconhecer, mas a
da era branca, estou fazendo referência a todos os matança precisava parar, precisava da anistia.
nomes indígenas de outras populações e quando
construção
os acordos de paz começam a ser assinados, os Quando a anistia é assinada, aceitamos um
Cadernos
indígenas são deixados de lado, eles não faziam pacto de silenciamento. De acordo com a Lei de
parte da esquerda organizada. Em 1980, os guate- Anistia você não pode denunciar, se você aceitou a
anistia não se pode dizer que aquele que te tortu-
damente 240.000 indígenas foram assassinados, cordo talvez a Cristina possa auxiliar, mas eu tenho
não fizeram parte dos acordos de paz e não foram quase certeza pelo que eu leio dos depoimentos,
incluídos dentro do projeto de Anistia. E eu trago no Brasil você podia verbalizar o nome do seu tor-
isso, para também escutar que o nosso processo turador nos depoimentos da Comissão de Anistia,
de Anistia é muito recente e que as populações in- na Comissão da Verdade você podia dizer tal pes-
dígenas eram consideradas vítimas da ditadura, a soa me torturou. Na Guatemala você não podia
população negra assassinada durante a ditadura dizer o nome, ou seja, você tinha que falar sobre a
ainda não é considerada vítima. violência que sofreu, falar sobre a sua tortura, sem
poder acusar e nem nomear o torturador. . mim é muito difícil falar de memória da ditadura, de
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memória da violência policial, é a mesma violência
Olha a gravidade disso, se estamos pen- é uma violência que não respeita o corpo do outro,
sando no processo de recuperação de memória, é uma violência que atravessa o corpo do outro,
você pode contar que apanhou, mas não pode di- não falamos sobre isso. Nosso compromisso é
zer quem te bateu. Como é possível uma memória com a memória, precisamos de muito tempo para
nesse lugar? Acho que temos algumas falhas e que falar sobre todas as violências que estão atraves-
elas não são desse campo do “nós falhamos”; são sadas no nosso corpo, que é um país construído
da ordem dessa estrutura de entender que Bolso- em cima da violência sexual, por exemplo.
naro 2018 é um projeto, e está sendo construído
há muito tempo, que resistimos mas se temos Bol-
sonaro 2018 não é porque perdemos, é porque ga-
nhamos, porque diminuiu a violência, conseguimos
“Nosso compromisso é com
botar um freio, conseguimos sobreviver em 1985 e
depois de 1985! a memória, precisamos de
muito tempo para falar sobre
todas as violências que estão
“Não desistimos, lutamos e atravessadas no nosso corpo,
após a ditadura se instaurou que é um país construído em
um processo de transição cima da violência sexual, por
democrática que com todas as exemplo“
suas falhas foi o que podia ser,
dentro de todo esse passado Então recuperar a memória aqui, é onde eu
não revisto. Conseguimos ter acredito que a psicanálise faz um bom trabalho, ela
pode fazer um trabalho se ela estiver comprome-
um governo alinhado com as tida, porque permite que cheguemos nessa capa
perspectivas de esquerda, que tão profunda e tão dolorida da nossa memória.
conseguiu incluir dentro da Permite que cheguemos nos graus de violação de
um país colonizado que teve seus povos originá-
Universidade populações que rios dizimados durante a colonização, que tiveram
não estariam nela“ uma força de trabalho trazida obrigada de outro
continente igualmente violentada, explorada e
coisas das quais a gente nunca falou verdadeira-
Não desistimos, lutamos e após a ditadura mente. Não estou falando das pessoas que falam,
se instaurou um processo de transição democrá- estou falando de um processo coletivo, um projeto
tica que com todas as suas falhas foi o que podia social nacional de recuperação de matrizes.
ser, dentro de todo esse passado não revisto. Con-
seguimos ter um governo alinhado com as pers- Quando começamos a ter um governo que
pectivas de esquerda, que conseguiu incluir den- inclui na base curricular as questões afrodescen-
tro da Universidade populações que não estariam dentes é um trabalho de memória. Isso é memória;
nela. Isso tem transformado o ensino e o fato de a função de memória coletiva é você permitir que
os negros terem acessado o terceiro grau, trans- as pessoas se reconheçam nos seus marcos cons-
formou o campo da pesquisa, ainda não consegui- titutivos, você entender o seu cabelo desse jeito,
mos entender os efeitos disso, só vamos colher os porque ele tem uma história, tem um percurso, um
efeitos daqui alguns anos, se vivermos para isso, caminho. Quando começamos a dar esse passo
mas eu sou muito mais otimista. de poder falar sobre a sexualidade nas escolas, o
que recebemos em troca? Que se existe uma falta
Concordo com a frase de Conceição Evaristo de memória tão grande, é porque a gente também
“Eles decidiram que vão nos matar, mas a gente tem um recalque muito grande, não por acaso que
decidiu que vai viver” e estamos fazendo isso há a campanha do Bolsonaro é baseada profunda-
muito tempo. Quando falamos de memória, para mente em questões sexuais.
A maior parte de acesso das mulheres na
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periferia e nas cidades pequenas da campanha do
Bolsonaro tem a ver com o tal do “kit gay”, com “É um tema muito mais
mostrar as mulheres no largo da Batata na mani- complicado do que a maneira
festação maravilhosa do “Ele Não4” com atos obs-
cenos e sem blusa. Não sei se vocês sabem disso,
como estamos acostumados a
mas foram feitas imagens sobre essa manifesta- olhar para ele. Acabamos tendo
Temáticos CRP SP
É um tema muito mais complicado do que a
maneira como estamos acostumados a olhar para
ele. Acabamos tendo essa visão de que a memória
é simplesmente falar sobre algo, escrever isso, se
colocar, dizer o que aconteceu e eu acho que esta-
construção
mos muito aquém de conseguir de fato fazer um
Cadernos
trabalho de recuperação de memória, de quem so-
mos, de como somos violentados, de como somos
É uma responsabilidade muito grande tomar e Ana os quais venho trabalhando, faço um recorte
a palavra neste momento, e neste momento tão de 2012 em diante que foi a “Clínica do Testemu-
importante da história dos brasileiros. Sou argen- nho” na qual participamos de inúmeras questões.
tina e moro no Brasil, estou naturalizada brasileira
desde 1978. Formada em Psicologia, com forma- Quando começamos a trabalhar com a Clíni-
ção em Psicanálise e nesses anos participei a prin- ca do Testemunho, cujo objetivo era trabalhar com
cípio da luta antimanicomial. Nós psicólogas e psi- os afetados pela violência do Estado durante a Di-
canalistas tínhamos uma causa que era fechar os tadura de 1964 a 1985. Antes dos afetados pela
manicômios, tratar os loucos como seres humanos violência de Estado na Ditatura de 1964, temos
e conseguimos. a escravidão, acho que nisso estamos todos de
acordo, que o problema da escravidão do Brasil co-
Há diferenças nas ditaduras, entre os anos lonial, escravista, extrativista está na base de todo
de 1964 a 1985, que durou até 1988, nas primeiras desastre que acontece neste momento. É muito
eleições diretas, mas já em 1984 lutávamos pelas fácil dizer a “culpa é do PT”, o PT teve quatro man-
diretas. Acontece que saí do meu país em plena di- datos. São situações políticas para serem anali-
tadura, em pleno terrorismo de Estado e cheguei sadas, mas o que acontece hoje não é o retorno
no Brasil, que ainda estava na ditadura, mas esta- do recalcado, é algo para continuarmos pensando
vam construindo o Partido dos Trabalhadores com se estamos começando a viver alguma coisa que
uma proposta social que foi muito entusiasmante não tem outros fenômenos históricos, não só na
para uma exilada como eu. América Latina, na Europa, como genocídios, fas-
cismos, nazismos...
Temáticos CRP SP
“A psicanálise tem um mito, história que vamos construindo, tem uma história
oficial, mas tem uma outra história sendo constru-
Freud criou o mito da “horda
ída e nós não temos que abandoná-la.
primitiva”. É o mais primitivo no
nascimento da civilização da Em 2012, a Dilma criou a Comissão da Ver-
construção
dade a partir do Ministério da Justiça que anunciou
Cadernos
cultura humana, era um mito
alguns dados atuais que estão sendo trabalhados.
que tinha um pai “terrorífico”, Criou-se uma “Clínica de Reparação Psíquica” que é
digamos, um pai que detinha
curando outra desaparecida, grávida, foi falar com violências, mas aparecia a violência da atualidade.
o general do exército se tinha alguma possibilida-
de e ele falou: “Senhora não procure mais no Brasil, Tem uma socióloga que trabalha com crimi-
nalismo, a Vera Carlos Alberto que disse “a violência
na redemocratização depois dos anos 80, durante
5 Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um coronel do Exército Bra- a constituinte, aumentou”. A violência aumentou e
sileiro, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos é pior que na ditadura, porque tem o fenômeno da
atuantes na repressão política, durante o período da ditadura
militar no Brasil. violência, o extermínio do negro, que nasceu negro
e que foi explorado, teve uma Lei Áurea (1888), di-
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gamos abolicionista, sinistra! Primeiro se liberou a
Lei do Ventre Livre (1871) para a criança, então o “Então recordar para Freud,
pai tinha que dividir a comida com a criança, pois o é parar de repetir, recordar é
senhor, o escravista não dava comida para ela, de-
pois soltaram eles perdidos no mundo. Eu aprendi
lembrar e construir uma história,
há muitos anos que nos Estados Unidos se dava construir uma história subjetiva,
não sei quantos alqueires, uma mula, duas vacas, uma história social, uma história
alguma coisa da lei da abolição dava para o negro
para que pudesse se incorporar no sistema pro-
do país.“
dutivo. No Brasil ficaram perdidos a “Deus-dará”
e continuam neste lugar de vagabundos, de não Um texto de Freud de 1914 se chama “Recor-
trabalhadores, de pessoas que são a perdição do dar, repetir e elaborar”, que serviu como base para
Brasil, segundo a burguesia colonialista brasileira. trabalhar na Clínica do Testemunho. Pensávamos
que era o retorno do recalcado, hoje não é o re-
Só queria fazer um comentário, muito im- torno do recalcado, é algo muito mais grave, muito
portante, porque estudamos bastante a história, fora do simbólico, são palavras que estão come-
trabalhávamos em 2013 com grupos terapêuticos çando a ser pensadas. Então recordar para Freud,
para torturados, presos, afetados pela ditadura, é parar de repetir, recordar é lembrar e construir
mas também fazíamos oficinas para profissionais uma história, construir uma história subjetiva, uma
da saúde mental e da assistência social. Consegui- história social, uma história do país. Então este é
mos publicar três livros sobre este projeto da Clíni- um ponto. Em “O mal-estar da civilização” de 1930,
ca do Testemunho. Estes são os insumos: atendi- Freud desenvolve o mito da evolução, desde a na-
mento terapêutico, cursos de capacitação e oficina. tureza animal até ser um ser humano civilizado,
O acontecia? As angústias dos profissionais que por causa da educação, da repressão, dos instin-
trabalham com saúde mental na Zona Leste, onde tos mais baixos que o ser humano tem. Acontece
matavam dez adolescentes por dia, que perseguem que Freud diz: “tem uma maldade constitutiva do
os profissionais e os seus números e aprendi com humano que persegue o reencontro com a morte,
os profissionais e suas variáveis, mas por que não o ser humano não é um ser manso, não é amável,
coincidem com os dados das pesquisas? Porque os são capazes de defender, se atacando. Possui
profissionais têm medo e não dizem que esta pes- muita agressividade, o próximo é uma tentação
soa foi assassinada. Pode ser que o profissional para satisfazer nele sua agressividade, explorar
denuncie, mas se apaga em geral, pois os profissio- sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexu-
nais têm muito medo, muita angústia. almente sem seu consentimento, despossui-lo de
seu patrimônio, humilhá-lo, infringir dores, martiri-
Gostaria de abrir uma roda de conversa para zá-lo, assassiná-lo, o homem é o lobo do homem”.
saber o que vocês estão sentindo neste momen-
to, é como dizer: “Puxa vida, quais são as palavras, Freud fala que existe um fenômeno que ele
os emblemas, da Clínica do Testemunho: verdade, chama de sinistro, é essa hostilidade primária no
memória e justiça.” Então, como eu sou Argentina ser humano, não existe nada natural no amor ao
de nascimento, todo mundo fala: “Ah, mas na Ar- próximo, não existe amor ao próximo. A barbárie
gentina teve justiça.” Eu falo assim: “Tudo bem eu não se opõe a civilização, diz Freud, temos que
fico muito feliz que o General Videla que foi um sa- pensar a barbárie na civilização, eu não estou de
cana, que fez o Golpe de 1976, morreu na cadeia, acordo com Freud, porque acho que Bolsonaro e
mas não mudou a estrutura social”, porque hoje companhia não fazem parte da civilização, embo-
50% do povo argentino votou em Macri e tem uma ra façam quando a ação do terror real se produz
história, uma recuperação da história, uma história e o sujeito sabe, a pessoa sabe , denuncia e ele
verdadeira. faz fake news, quer dizer, notícias falsas, notícias
sobre nós; mas denunciamos, e o sujeito sabe,
O poder do capitalismo, o poder dos grandes o sujeito sabe e fica confrontado e isso paira na
capitais, o assunto das drogas e do tráfico tem dois horda primitiva. O Bolsonaro diz: “eu faço o que eu
níveis. O tráfico de drogas em nível da superestrutu- quero” e “Ustra estava certo temos que ser todos
ra, pois quem não mora no Brasil, não será tocado, torturadores”, a fantasia não funciona mais como
somente o pequeno tráfico, das crianças, dos jovens.
defesa, é angústia da vivência do sinistro, o sinis-
25
tro é o que estamos vivendo.
Cadernos
Psicologia e o resgate da memória: diálogos em
Cadernos Temáticos CRP SP Temáticos CRP SP
construção
26 Debates
Bruna Borba A partir de domingo (07/10/2018), mas tam-
É um dia muito importante. Na verdade é bém tenho uma sensação, se o cenário da civiliza-
fundamental e estou pensando para compartilhar ção se concretizar vamos para uma direção, se o
diante disso, ao mesmo tempo na potência de to- outro cenário se concretizar acho que iremos para
das as falas, de reafirmar o compromisso e para outro, mas acho que independentemente de qual
além de psicólogas/os como cidadãs e cidadãos, deles neste momento se concretizar, esses mo-
enfim, todos esses outros lugares que nós ocupa- mentos que estamos vivendo, essas cisões tem
mos que possamos não naturalizar essas violên- ficado fortemente marcadas. Os últimos tempos
cias todas, e se afetem realmente para resistir e exigem de nós um reposicionar, um pouco do que
pensar em mudanças possíveis. Fiquei muito feliz o Reginaldo trouxe. Gostaria de ouvir um pouco de
de podermos fazer esse debate hoje. vocês como pensar a Psicologia, como pensar ser
uma pessoa frente a estes reposicionamentos,
seja na manutenção da civilização, ou na busca
Reginaldo Branco por retomar a civilização. Citaram diversos exter-
Sou Reginaldo, conselheiro no CRP, coorde-
mínios, e outra questão que me assusta, estava
no a Comissão de Direitos Humanos. A memória é
trocando uma experiência com Lúcio, minhas ex-
importante para não repetir a história, mas esta-
periências que vivi agora, da violência que se apro-
mos presenciando uma repetição de uma história
xima diante de ser quem é, e uma das coisas que
dentro da Psicologia, porque temos a história de
tivemos nos últimos meses, e agora no mês de ou-
como a Psicologia funcionou também durante a
tubro, mais uma criança foi assassinada pelo pai
repressão ou durante as repressões. A Psicologia
porque ela parecia, na visão do pai, um menino gay,
com responsabilidade social, mas isso funciona em
homossexual.
certa parte, não funciona como um todo porque
vemos que existe uma parte da Psicologia que se
tornou conservadora. E o que podemos fazer com
essa Psicologia hoje em dia? Uma questão para
mim como psicólogo é como que nós prestamos “Toda vida vale a pena, uma
um serviço psicológico de qualidade, que é ético, única vida nos vale“
mas que ao mesmo tempo é um serviço ético-
político e um serviço técnico? Têm-se uma ala da
Psicologia que defende o contrário de Psicologia
Um menino de sete anos, nome dele é Kai-
ciência e profissão, a Psicologia não deveria se
que. O Kaique foi morto, tem vários outros Kaiques,
misturar com a política na defesa de direitos.
Eduardos, Yagos, enfim outras crianças. Toda vida
vale a pena, uma única vida nos vale. O que tenho
pensado é o quanto todas as vidas valem e muitos
discursos têm dito que várias vidas não valem, em
“A memória é importante para especial, a vida das crianças, e fico aterrorizado
não repetir a história“ por todas as violências que temos visto, as violên-
cias na direção das crianças, nas escolas, trabalho.
Temáticos CRP SP
do Ceará, falando assim: “Você perdeu a bíblia ou
teve a bíblia roubada. Então estamos devolvendo Fundamentos da Educação da Pontifícia Universi-
para você” e o Haddad agradece e comenta o que dade Católica de São Paulo - PUCSP. Entendo que
aconteceu. Ele tinha recebido a bíblia e deu para podemos afinar um pouco melhor nossa análise.
uma assessora, e essa pessoa deixou ao lado. A possibilidade de uma vitória do Bolsonaro não
significará o início de uma ditadura. Não podemos
construção
Uma pessoa ligada ao opositor, ao Bolsonaro,
Cadernos
rouba essa bíblia e joga essa bíblia no lixo, foto- nos esquecer de que a partir de 2016 já estamos
grafa aquilo e diz que foi o Haddad que fez. Quan- vivendo no estado de exceção. O golpe já foi dado e
do ouço isso, lembro de uma história, ou um mito, o Bolsonaro, previsível ou não, eu acredito que não
na Psicanálise, por uma questão de uma leitura de pos, a contribuição que tem vindo da psicanálise
garoto, eu lia muito sobre nazismo e é impressio- é certamente de extrema riqueza, temos aborda-
nante a quantidade de livros e textos que me vem gens diferentes com fundamentos teórico-meto-
à memória, e dois livros em especial um chama-se: dológicos epistemológicos diferentes, no entanto
“Diário de Victor Klemperer”, de um professor ju- este diálogo é necessário e me traz duas ques-
deu, de uma universidade alemã, ele recuperou os tões. Uma delas de uma dissertação de mestrado
diários dele de 1933 a 1941. Então lendo, você vê do Ricardo Franklin Ferreira que foi orientado pela
a perda de direitos, a perda no caso de trabalho, a Ronilda da USP, ele trabalhou com os “obreiros” e
fez um estudo com obreiros da Igreja Universal. no fascismo, mas são essas pessoas médias e eu
28
não sei, depois quero ver com alguém que entenda
Uma das questões que mais me chamaram melhor alemão qual é a palavra original que Reich
atenção é que trabalhou com narrativas de história usou, está mais perto do medíocre do que do mé-
de vida, e nessas narrativas, a narrativa é cindida dio, são elas que produzem partidos fascistas. O
“antes de entrar para a igreja” e “depois de ter en- “Coiso” [Bolsonaro] não é ele que produz isso nas
trado para igreja” e se percebe muito claramente pessoas, mas é esta sociedade gelatinosa que se
que aquela não é a memória dele, mas é uma me- expressa no plano do subjetivo, meu voto indivi-
mória que, até na época pensamos, é uma memó- dual é que produz essa condição. Nós temos um
ria “pós-posta”. Até entrar para igreja ele era pobre compromisso independentemente do resultado
miserável, drogado, alcoolizado, “tudo negativo” e dessa eleição, para que possamos estabelecer um
a vida dele começa a melhorar a partir do momen- diálogo. Contar com as nossas entidades para que
to que ele entra para igreja. Este processo é algo possam promover encontros para avançarmos.
que hoje temos que trabalhar nas nossas diversas
abordagens, estabelecer um diálogo para poder Sandro (áudio da intérprete de libras)
compreender isso. Por que digo isso? Porque para Meu nome é Sandro, sou surdo e faço Peda-
mim o problema não é o Bolsonaro (e há dias eu gogia. Já aconteceu muito comigo isso. Sou uma
não falo esse nome, está sendo até catártico falar, pessoa qualquer andando na rua, e eu sou negro
eu tenho acordado no meio da noite, mas eu sou e sou como todo mundo, mas sempre que estou
daquelas que estão adoecendo e meu problema andando na rua, às 3h da tarde, não estou falan-
não é ele ou a patologia dele. Ela é tão óbvia!) O do à noite, mas com uma mochila, roupa comum
caso dele é tão médio,tão medíocre! e a polícia olha para mim: “Esse negro vamos lá,
vamos parar ele” e vem com armas para cima de
Ele não me interessa, mas sim quem vota mim, sempre assim “Ah, é surdo vira aí na parede”,
nele, quem são as pessoas que votam nele, e por sempre me apalpando e olhando. “Você rouba?” e
que votam nele, por que uma mulher vota nele, eu digo “Não. Eu estou indo para casa da minha
por que pessoas LGBT+ votam nele? Por que os mãe”, pede meu RG, olha, só porque eu sou negro e
negros votam nele? Sobretudo as classes popu- eu chego na casa da minha mãe pensando “Porque
lares que votam nele, não é a camada dominante eu sou surdo, porque eu sou negro” como se eu
que de fato interessa, é quem financia e o coloca não fosse igual às outras pessoas, eu sei que eu
nessa posição. Serão justamente as pessoas que sou igual às outras pessoas.
estarão optando por aquilo que vai diametralmen-
te oposto aos interesses dela própria. Estas são Quando, o psicólogo Lúcio estava falando
as pessoas que eu acho que hoje estabelecem que tantas pessoas estão morrendo, e a escravi-
um compromisso nosso da Psicologia nas suas dão acabou, mas isso continua e é por causa da
diversas abordagens para tentarmos compreen- polícia, o preconceito está na polícia. As pessoas
der porque não basta lamentarmos, precisamos são iguais, mas a sociedade continua julgando, e
compreender como esse processo se dá e quais o preconceito está dentro das pessoas. E eu fiquei
são os determinantes que estão. Eu sou da Psi- pensando: “Ah é só o presidente que vai mudar
cologia sócio-histórica de base materialista histó- isso? Não.” Não é por conta do presidente apenas,
rico-dialética, mas retomei obras do Wilhelm Reich se é o Bolsonaro, se é o Haddad.
“Psicologia de massas do fascismo6” e o “Escuta Zé
Ninguém7”. São obras datadas, mas hoje nessas O preconceito continua desde criança, eu
releituras vejo essas obras de Reich e podemos tenho percebido nas escolas, eu como professor
considerá-las como um clássico, não pela impor- vejo as crianças negras lindas, surdas, o professor
tância que teve na época, mas pela perenidade da é branco, e fala “além de surdo é negro, deixa para
análise. O Reich mostra muito claramente que é o lá, não precisa aprender”. Ele não é menos do que
homem médio que produz o fascismo, não é o par- os outros não! O preconceito enquanto não acabar,
tido fascista que produz as pessoas que vão votar não vai adiantar, as pessoas vão continuar mor-
rendo e independente de quem ganhar, vejo isso
no Facebook, no Whatsapp continua aumentando.
6 REICH, Wilhelm; RUIZ, Raimundoytrad Martínez. Psicología de
masas del fascismo. México: Roca, 1973
7 REICH, Wilhelm. Escuta, Zé Ninguém!. Lisboa/Santos: Martins Acho ótimas essas discussões, é muito bom
Fontes, 1982
porque tem muitos pais e mães ignorando e vo- Eu atendo vítimas da periferia, eu atendo
29
cês estão lutando porque o nosso futuro será di- pessoas que têm os seus filhos assassinados
fícil, até mesmo depois dessa eleição. Eu espero pela polícia. O Bolsonaro não me assusta, só vai
que essa sociedade melhore e com o esforço de dar mais trabalho, vai ter mais gente para atender.
vocês, porque senão, no Brasil vai ser impossível. Talvez alguém tenha que atender a minha mãe, tal-
Percebo que vai ser muita confusão, eu não quero vez alguém tenha que atender o meu pai, porque
que as pessoas continuem pensando que uns são eu posso virar uma vítima. Posso ser assassinada
Temáticos CRP SP
Isso que acabamos de ver é um testemunho, para frente. Eu acho que a própria ideia de pensar
é o que faz a “Clínica do Testemunho”. É alguém em fundamentos diferentes da Psicologia, eu es-
falar genuinamente sobre a violência que vive, e tudo teoria crítica, vim da teoria crítica, psicanálise
alguém poder reconhecer essa violência, é o que veio depois. O que é ser sócio-histórico, o que é
chamo de “memória coletiva”. Para mim é genuina- ser psicanalista e entender que isso é parte de um
construção
projeto também, e se tem uma força que o capita-
Cadernos
mente uma experiência de memória coletiva e não
vai estar em livro nenhum, não vai entrar para me- lismo tem é de apreender para ele tudo que é bom.
mória histórica, mas a potência que tem na hora,
Temáticos CRP SP
de resistência foram derrotadas, e o pensamen-
to resistente também. Ao longo do século XX, no
“A ética é essa, a ética não entanto tendemos a ter acesso à história oficial, a
história do vencedor. Tanto é que muitos pensado-
é fixa, é uma perspectiva res contra hegemônicos foram esquecidos como
de mundo, os psicólogos Ulisses Pernambucano e Manuel Bonfim. Foram
construção
Cadernos
pensadores esquecidos e esse esquecimento, não
que atacam ou que não foi um esquecimento espontâneo, foram politi-
compreendem que a Psicologia camente esquecidos. Há uma determinação para
Sejam todos muito bem-vindos a essa tão lógicas, o CEDOC também é uma ferramenta de
importante atividade, que é o resultado de um pro- gestão, transparência e de democratização das
cesso de trabalho que não é de hoje, mas que é informações. O que produzimos está documenta-
fruto de muito esforço de conselheiros e de tra- do, guardado, organizado no CEDOC. É fundamen-
balhadores do CRP SP, de colaboradores que es- tal reiterar essa função política de transparência
tamos aqui hoje, no lançamento do Repositório e de democratização das informações que o CRP
Temáticos CRP SP
Digital. Quero agradecer ao Conselheiro Rodrigo SP produz. E se somos pioneiros, vamos qualificar
Toledo que é coordenador do GT junto de outros isso, continuar aprimorando.
conselheiros e conselheiras, Beatriz Brambilla, Iva-
ni Oliveira, o Edgar Rodrigues e também pessoas
que estão colaborando, a Bruna e a Mitsuko. Tam-
construção
bém agradecer ao Marcos que é o nosso trabalha-
Cadernos
dor responsável pelo CEDOC (Centro de Documen-
tação) e a todas as pessoas que já compuseram o
GT “História e Memória”.
Temáticos CRP SP
Outro critério para definição dos cinco nomes era essas informações para todas as psicólogas/os de
buscar alguém que ainda não tivesse sido home- São Paulo e quem sabe para todas as psicólogas/
nageada em outro campo da Psicologia. os do mundo; uma vez que está na internet o pio-
neirismo dessa atividade e deste material que es-
Chegamos a cinco nomes, depois de meses tará disponível no repositório.
construção
de desafio, e a definição foi: Ecléa Bosi, Iara Iavel-
Cadernos
berg, Fúlvia Rosemberg, Maria Nilde Mascellani e
Virgínia Bicudo. Abrimos em janeiro de 2018 a en-
Meu nome é Marcos Antonio Toledo, sou bi- trabalhamos de forma cooperativa com a BVS PSi
Temáticos CRP SP
Não esquecendo os colaboradores Sérgio penetração maior nesses ambientes acadêmicos
Valério Toledo Pinto e Adolfo Benevenuto e to- de interesse de formação no geral. Para além da
dos os demais. Também algumas ex-conselheiras categoria, várias pessoas dentre pesquisadores,
como Carmem Taverna e Fátima Nassif. Agrade- estudantes, professores e representantes de en-
cimento à colaboradora e psicóloga Mônica Aze- tidades sociais, entram em contato para visita e
construção
Cadernos
vedo e colaboradora e psicóloga Fernanda Waeny. consulta ao acervo.
Nós estivemos juntos nessa trajetória.
Sobre o Repositório Digital Fúlvia Rosem-
já concebidos de forma digital. Nosso espaço físico organização das informações no repositório, que
está localizado na Rua Oscar Freire 1800. são inteligentes e amigáveis ao usuário. Há outro
aspecto importante no que se refere a preser-
O acervo em momentos de exposição é uma vação digital e perenidade das informações. Por
rica oportunidade de interação com psicólogas/os exemplo, a questão de links “quebrados”, algo que
e alunos de Psicologia. Já expusemos na Semana incomoda o usuário em suas buscas, mas que não
da Luta Antimanicomial, na Semana Cultural da ocorrerá por meio de nossa escolha. O sistema é
Psicologia em Guarulhos por três anos seguidos e interoperável, há link permanente do conteúdo di-
gital. Destaco a questão da visibilidade do acervo
38
digital e a indexação via buscadores como Google.
Assim, democratizamos o acesso ao que o Conse-
lho Regional de São Paulo da 6ª Região produziu
em termos de conteúdo, de interesse histórico e
de memória para toda categoria. Desejamos tra-
balhar a memória com um diálogo dinâmico, com a
realidade visando à criação de novos conteúdos,
novos significados com um foco na transforma-
ção. Assim apresento o Repositório Digital Fúlvia
Rosemberg. É constituído por diversas comunida-
des virtuais que abrangem Ética, Direitos Huma-
nos, COREP, Fúlvia Rosemberg, Políticas Públicas,
Orientações, Eleições, Atas, História e Memória,
Dia da Psicóloga (o), Jornais e Páginas temáticas.
Agregamos neste repositório uma vasta gama
de conteúdos passíveis de serem utilizados pelo
usuário via download e de possibilidades de com-
partilhamento de informações e conhecimentos.
Convido a todos que utilizem e explorem esta no-
vidade que é pioneira na Psicologia de São Paulo e
do Brasil. Muito obrigado a todos.
“Assim, democratizamos o
acesso ao que o Conselho
Regional de São Paulo da 6ª
Região produziu em termos
de conteúdo, de interesse
histórico e de memória para toda
categoria. Desejamos trabalhar
a memória com um diálogo
dinâmico, com a realidade
visando à criação de novos
conteúdos, novos significados
com um foco na transformação.
Assim apresento o Repositório
Digital Fúlvia Rosemberg“
Rodrigo Toledo 39
Conselheiro do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP 06.
Temáticos CRP SP
esse agradecimento público, pelo seu trabalho e
por todo seu empenho. Uma pessoa empolgada e
que empolga a todos nós do GT para garantir que
este trabalho tenha este lindo resultado.
construção
Agradeço ao Marcos e a Luciana por esta-
Cadernos
rem conosco. Quero convidar a Júlia Rosemberg
para representar a Fúlvia e conversar conosco, e
também o Benedito Medrado, para falar sobre a
Meu nome é Júlia Rosemberg, sou filha da pessoas, era honesta demais para isso. Passados
Fúlvia e do Sérgio, e sou mãe da Antonia. Primeiro quatro anos de sua morte, me vejo nela de tantas e
queria agradecer ao Marcos, pela disponibilidade tantas maneiras e sinto uma tristeza profunda em
e carinho ao tratar deste repositório e dos mate- não poder compartilhar com ela o que eu andei e
riais, e ao Rodrigo por toda essa disponibilidade. ando fazendo, sentindo, pensando, vivendo. Uma
Estou um pouco nervosa e emocionada, óbvio. As tristeza em pensar que seus olhos não verão mais
demais pessoas que também tiveram empenho, o Cour Carrée8 em Paris, que não estará mais nos
que se empenharam a fazer isso. Agradecer muito aniversários do Jorge, Antônio e João. Que não mais
ao Benedito e ao Jorge que fizeram uma campanha fará seus garranchos que só a Márcia sabia decifrar,
árdua e ferrenha para que minha mãe ganhasse, e depois literalmente recortar os papéis, colar nas
foram muitas mensagens do Whatsapp e e-mail, tantas e tantas revisões de teses e dissertações.
correntes. Prometemos até uma prenda depois.
Muito obrigada mesmo. Não estará mais aqui para caminhar com as
sacolas do Pão de Açúcar penduradas no ombro.
Minha mãe era superlativa, depois de quatro Não fará mais o cuscuz, as comidas mexicanas, as
anos de sua morte consigo ver com muito mais ni- tahines. Ela mandou um grande recado à Celeste
tidez, a qualidade de sua interação com o mundo. quando eu dei a tahine para o Jorge Lira; não es-
Muitas delas, para o meu privilégio, heranças mi- tará mais para tantas e tantas outras coisas que
nhas. Minha mãe era uma mulher generosa, gene- viverei até o dia que me encontrar com ela mas ao
rosa em todos os sentidos que essa palavra possa mesmo tempo, depois de quatro anos, vejo o seu
carregar. Era generosa com os filhos, com os ne- legado. Suas linhas sendo tecidas e tecidas por
tos, generosa com a academia, com seus alunos nós: eu, André, Mari, Bruno, Sérgio, pelos alunos e
e alunas, com os negros, com os indígenas, com a alunas que vez ou outra encontro e que sempre
infância, com as crianças e com os bebês. Nos últi- são tão emocionados e carinhosos.
mos tempos, ela estava falando sobre a cidadania
dos bebês, não era isso? Minha mãe me ensinou
a olhar as nuances. Ela era uma mulher que via as
nuances mundanas, nuances sociais, nuances de
pensamento.
“Fúlvia Rosemberg deixa
um legado de caráter, de
metodologia de temas, de
“Ela não fazia questão de coragem acadêmica e de
agradar socialmente as pessoas, militância“
era honesta demais para isso“
Fúlvia Rosemberg deixa um legado de ca-
ráter, de metodologia de temas, de coragem aca-
Uma vez, ela sempre contava essa história, dêmica e de militância. Um legado que está sendo
André meu irmão mais velho, era pequeno, ele per- alastrado por todos e todas nós que um dia fomos
guntou a ela: “Qual era aquela cor?”, e apontava filhos e filhas de Fúlvia Rosemberg. No dia que mi-
para uma parede azul turquesa. Minha mãe ficou nha mãe morreu passei uma hora ao lado da sua
muito aflita em responder se era azul ou verde, cama me despedindo, e não sei muito bem por que
porque na perspectiva de suas nuances e sensibi- cantei entre lágrimas e soluços essa música que
lidades, ela com qualquer resposta fixaria na cabe- eu gostaria de colocar para vocês; nunca soube
ça do André para sempre a cor que tivesse deter- qual era a sua música preferida. Aliás, muitas coi-
minado. Pois é, minha mãe pensava interagir com o sas sobre ela não tive tempo de perguntar e me
mundo de uma maneira suprema, íntegra, sincera.
Ela não fazia questão de agradar socialmente as
8 Pátio principal do Palácio do Louvre em Paris.
arrependo demais das perguntas não feitas. Mas
41
também sei que se ela tivesse aqui ela me diria:
“Júlia minha filha, para tudo isso, não tenho uma
resposta, mas siga adiante simplesmente porque
não tem outro jeito”. Eu queria pedir para colocar
essa música:
Caetano Veloso
Temáticos CRP SP
Entre Petrolina e Juazeiro canta
construção
Cadernos
De onde o oculto do mistério se escondeu
Vai ser muito difícil. Eu nasci em Juazeiro, eu Aceitei o convite para escrever aquele texto,
acabei de chegar de lá. Atualmente, eu trabalho na e aceitei o convite para vir aqui conversar com vo-
Universidade Federal de Pernambuco, sou profes- cês a partir desse lugar da memória. Inclusive até
sor da universidade, do curso Psicologia. Mas eu escrevi com memórias a partir do lugar do afeto,
nasci nessa cidade exatamente onde circula esse porque o primeiro foi o texto que eu escrevi com o
rio e as coisas nunca são por acaso. Então vamos Jorge para revista, e como é que vou construir uma
lá. Eu fiz um texto também, porque quando eu re- apresentação, uma fala de uma história que é muito
cebi o convite, desde primeiro momento é sempre intensa que é a produção que a Fúlvia tem, ela não é
uma sensação estranha porque você não se acha só material, é uma produção de transformações de
merecedor do convite. Continuo não me achan- vida, de alguns de nós que fomos alunos ou orien-
do. Acho que teriam outras pessoas, talvez com tandos dela. Como bem Júlia falou, Fúlvia era super-
mais legitimidade para estar aqui do ponto de vis- lativa, ela tinha uma coisa realmente de “Ou me ame
ta da memória, das histórias oficiais, aquelas que ou me odeie, mas não me ignore”. Isso é uma coi-
se contam e que se escreve sobre. Mas acho que sa muito forte na construção. Quem a conhecia de
memória e história têm outros lugares também. E longe achava que ela era muito agressiva às vezes,
no segundo momento, o que me fez aceitar, ob- mas era uma forma inclusive de construir um lugar
viamente, depois de falar com a Júlia, para saber no mundo que era “Me respeite nas duas perguntas,
como é que tinha acontecido isso. me provoque também, e eu vou te respeitar”. Era um
jogo muito construído a partir da reciprocidade, é
Foi o mesmo movimento que me fez aceitar uma responsabilidade muito grande falar dessa tra-
o convite para escrever um pequeno texto publi- jetória aqui. Para mim ela é menos material e muito
cado na revista Todos Feministas que escrevi jun- mais de construções políticas.
to com Jorge, meu companheiro, logo depois do
falecimento da Fúlvia numa seção chamada In Saí buscando informações, textos que po-
memoriam. Eu estava com uma amiga e falando: deriam me ajudar, enfim, desde o currículo Lattes
“Olha fizeram esse convite para escrever esse tex- dela até outros textos de homenagem, e encon-
to, mas eu não sei, ainda não respondi, estou sem trei um texto. Uma das homenagens que foi feita
saber como é que eu respondo, porque é muito di- para ela, pelo Leandro Feitosa um ex-orientando
fícil você recusar um convite como esse, mas eu dela e professor, colega de trabalho da Fúlvia, que
não posso aceitar porque acho que teriam outras faleceu recentemente. Ele escreve muito bem em
pessoas poderiam fazer isso”. E essa minha amiga, seu depoimento publicado na revista Cadernos de
nossa amiga, Márcia Laranjeira, uma feminista que Pesquisa, momentos depois da morte da Fúlvia, ele
eu conheço há mais de 20 anos disse para mim: fala do sentimento de desconforto e instabilidade
“Não, mas tem formas de construir memórias que que fazia parte da postura pedagógica que a Fúl-
passam pelo afeto, então escreve pelas linhas do via imprimia em todos nós: desconforto e instabi-
afeto, porque memória é afeto entre outras coisas, lidade que alguns poderiam pensar como alguma
embora muitas vezes tendemos a ignorar os afe- coisa negativa, mas que como bem Leandro colo-
tos que constroem as memórias”. ca, são sentimentos que ela esperava que resul-
tassem em nós curiosidade, interesse, profundida-
de, ética, humildade, rigor acadêmico.
Temáticos CRP SP
possa nos ajudar a entender porque é justa e me-
Recordar é preciso recida essa homenagem que hoje se faz a Fúlvia,
eu resolvi trazer parte do Memorial preparado por
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamen-
Fúlvia para o concurso de professor associado
tos
do curso de Psicologia da PUC de São Paulo em
construção
A memória bravia lança o leme: 1993. Publicado recentemente no livro, organizado
Cadernos
pela Sandra Unbehaum pela Editora Cortez. Além
Recordar é preciso.
de conhecermos uma versão produzida por ela
Uma paixão profunda é a boia que me emerge. A Fúlvia inicia seu Memorial dizendo: “Duran-
te um seminário metodológico aqui na PUC, dedi-
Sei que o mistério subsiste além das águas.
quei algumas horas de trabalho com os alunos e
alunas para discutir um determinante geralmente
oculto na produção de conhecimento: as contin-
Tão bem acompanhado por essas duas, gências da vida profissional. Mostrei-lhes o univer-
Conceição Espanca e Conceição Evaristo, além so da atividade acadêmica descrevendo o mundo
do acalanto da poesia, busquei também fotos e concreto em que se move, quem faz pesquisa,
Cadernos Temáticos CRP SP
outras produções imagéticas que me acenaram e quem trabalha produzindo e divulgando conheci-
acenderam a saudade. Entre elas o registro de sua mento. Percebi ter sido para alguns uma experi-
viagem a Recife quando ela se hospedou conos- ência de perda da inocência. Como mestranda e
co, comigo e com Jorge, e fomos juntos na Praia doutoranda da PUC de São Paulo pude presenciar
de Calhetas, no Museu Francisco Brennand, e ela vários momentos como esse, que Fúlvia descreve
nos levou a conhecer a Praia de Baía da Traição. logo no início do seu Memorial, em que geralmente
Lembro como se fosse hoje, ela nos apontando oferece uma disciplina chamada Metodologia de
uma creche que tinha o nome de Curumim. Fúlvia Pesquisa que se convertia sob a batuta de Fúlvia
em rico momento para diálogo sobre atravessa- de que a clínica não era o meu caminho; a possibi-
44
mentos que nossa vida concreta, como ela costu- lidade de compreensão e de estímulo por parte do
mava referir, produzia em nossas experiências de Sérgio, [seu esposo à época] para que eu voltasse
pesquisa e vice-versa. sozinha para França e terminasse a tese; o de-
salento com o país durante o governo Médici; e a
nova partida; a necessidade de uma pesquisadora
que aceitasse baixo salário no mesmo laboratório
“dediquei algumas horas de Wallon para participar de uma pesquisa sobre
de trabalho com os alunos teatro com crianças; o fantasma de uma separa-
ção conjugal que me leva a pensar mais seriamen-
e alunas para discutir um te na sobrevivência autônoma em Paris, na Univer-
determinante geralmente oculto sidade precisando de uma jovem assistente. Um
na produção de conhecimento: encontro social com Ana Maria Poppovic que me
convida para trabalhar na Fundação Carlos Chagas
as contingências da vida e o desejo de um filho; a gravidez e a volta com
profissional“ bebê em 1974; um encontro com feministas de lá
e o Ano Internacional da Mulher em 1975, que abre
possibilidade de ação aqui no Brasil; a existência
Assim ela segue esse Memorial dizendo que: de um grupo de pesquisadoras inquietas na Fun-
“Revisando minha vida profissional nesse momen- dação Carlos Chagas; a necessidade de encontrar
to a época do concurso, a contingência voltou a uma solução de guarda para o André, primeiro filho,
chamar minha atenção, muito dos caminhos que numa conjuntura familiar complicada que me leva
segui, alguns decisivos, completamente documen- optar pela solução creche, e meu contato direto
tados no currículo e que marcaram minha produ- com essa instituição; a Fundação Ford que abre
ção foram orientados por determinações mais am- linha de financiamento sobre relações de gênero,
plas do que a minha vontade. No que fiz e deixei de o início da distensão política e a possibilidade de
fazer, sofri injunções concretas de ser mulher de trabalhar com temas “malditos”; de sair do tercei-
classe média e viver o mundo que vivi”. ro andar do prédio da fundação e participar como
pesquisadora de mobilização de mulheres; a fle-
Fúlvia fez uma graduação na Universidade xibilidade de uma instituição privada, a Fundação
de São Paulo entre 1961 e 1965. Vale lembrar que Carlos Chagas, que acolhe novos temas e novas
o curso de formação de Psicologia e a própria pro- práticas do pesquisador e pesquisadora; a incum-
fissão de psicólogo foram regulamentados no Brasil bência, quase imposição de coordenar o Jornal Mu-
somente em 27 de agosto de 1962. Ela já estava fa- lherio; o encontro profissional com a Maria Malta
zendo o curso, por isso ela diz que: “Fui aluna de um Campos, o interesse comum por creches; a conci-
curso de Psicologia em constituição, portanto, es- liação afetiva adulta com minha mãe que possibi-
timulante e aberto. O golpe militar e a desesperan- lita uma experiência de criar ficção em literatura
ça com o sonho da Universidade de Brasília, certa- infanto-juvenil; a Júlia que já está suficientemente
mente trabalharia numa perspectiva skinneriana. A crescida e pode me libertar para mais um emprego,
ida para um laboratório que fora dirigido por Wallon o de professora da pós-graduação em Psicologia
(Henri Paul Hyacinthe Wallon, 1879-1962), possível Social da PUC de São Paulo”.
por relações de amizade. Viver maio de 1968 em Pa-
ris, onde ela fez o doutoramento entre 1965 e 1969 Fala sobre o que também por contingências
e produziu a tese “A família e as relações familiares não fez, diz: “Eu recupero em minha trajetória tam-
e relações familiares em livros infantis abordando as- bém o que por continência deixei de lado e pode-
pectos relativos a estereótipos relações raciais, in- ria ter redundado em outro perfil profissional. Um
fância e literatura Infantil”. desejo inicial em trabalhar com Psicologia Animal,
abandonar o estágio no serviço de Irène Lezine
Algumas das incursões de Fúlvia que ela traz por di¬ficuldade de relacionamento humano (o que
de forma bastante sucinta do seu Memorial: “O fim me teria permitido um contato profissional maior
da bolsa de estudos com a tese pela metade. A com a questão da creche em 1970); deixar de lado
volta necessária e medo de um fracasso possível; um aprofundamento da abordagem estruturalista
o trabalho numa clínica psicológica para comprar (que me fascinava) por não ser privilegiada no la-
a passagem e acabar a tese, e a certeza posterior boratório de Wallon; abandonar o campo de estu-
dos sobre literatura infanto-juvenil por querelas de dade e do docente-pesquisador seguem proces-
45
capela (nunca tinha ouvido esta expressão, Fúlvia sos diversos.”
tinha suas expressões, que na verdade significam
controvérsias); a desistência de um projeto de Continua “fiquei tentada a enveredar para
criação de textos não sexistas por falta de finan- uma análise sobre a diversidade da estrutura do
ciamento (e hoje tão necessário); a impossibilida- poder dentro de ambas as instituições. Controlei
de de aprofundar o conhecimento sobre a vertente essa tentação. Necessito, porém mencionar um as-
Temáticos CRP SP
cendo. Mas percebo também uma colcha que foi livre e, na instituição de pesquisa, tem-se maior
sendo costurada, combinando textura e estampa- possibilidade de trabalhar em equipe.”
ria. Reconheço, sim, a figura de um tecido, minha
identidade profissional. Sou pesquisadora.” Essa é uma importante crítica que ela faz ao
universo acadêmico. Quem está dentro da Universi-
construção
Em seguida Fúlvia fala sobre essa identi- dade hoje, percebe muito bem o que ela está falan-
Cadernos
dade de pesquisadora e constitui, como tal, fora do. Para quem está pensando a construção de re-
da universidade: “Pode ser paradoxal que minha positório, esse tipo de abordagem é extremamente
que minha trajetória seja a certa ou a melhor. Ape- sível e necessária. A relação principal não se esta-
nas considero que, neste momento, é rica para a belece, obrigatoriamente, com a disciplina (ou com
Universidade, a convivência de docentes que or- teorias dela decorrentes), mas tende a se estabe-
ganizam e sistematizam conhecimentos através lecer com o tema, a questão, o problema. A linha de
de processos diversificados. Acrescento também pesquisa não antecede obrigatoriamente a pes-
que, para a pesquisadora, a experiência docente é quisa: é a partir dela que vai se construindo. Não
enriquecedora. Argumento apenas que a produção à toa ela usa a metáfora da colcha da forma como
de conhecimento de pesquisador fora da Universi- se costura. Nesse sentido Fúlvia possivelmente ja-
mais se define como psicóloga. Ao contrário ela cários, sociólogos, antropólogos, porque era pen-
46
nos convida a expandir os limites da definição da sar esse objeto plural a partir das suas diferentes
Psicologia seja como ciência, formação ou profis- dimensões, logo era necessário esse trabalho.
são. Ao mesmo tempo ela nos alerta que a univer-
sidade também pode ser um espaço de produção Acho importante que possamos resgatar
coletiva criativa, a partir de alguns ajustes. E diz: “É esse material para disponibilizar no repositório,
verdade. Na Universidade, também tem sido possí- mas também entender, é mais um motivo que jus-
vel trabalhar dessa forma (coletivamente), através tifica essa homenagem. Esse trabalho foi feito em
de núcleos e centros de pesquisas e estudos que parceria com Edith Piza e Teresa Montenegro. Para
vêm sendo criados, justamente, para responder a termos uma ideia de sua profícua produção, no ba-
esta necessidade: reunir docentes que comparti- lanço produzido por Leandro naquele trecho que
lham questões, problemas, temas que ultrapassam eu comentei com vocês que ele publicou no Ca-
o recorte disciplinar. São, por exemplo, os núcleos derno de Pesquisa, ele diz o seguinte: “Desde 1973
de estudos sobre a mulher (e relações de gênero); quando iniciou sua produção acadêmica em traba-
os núcleos de estudos afro-brasileiros; sobre a fa- lhos publicados em anais de eventos, resumos, ar-
mília; entre outros.” tigos completos, livros e capítulos, apresentações,
trabalhos técnicos, Fúlvia somou um total de 625
Fui buscar no currículo Lattes dela, obvia- referências. Isso pode ser traduzido em uma média
mente a gente, nossa vida cotidiana não nos per- de 15 indicadores de produção por ano, mais de
mite atualizar o currículo Lattes. Ela participou de, um por mês nos últimos 40 anos. Em paralelo, des-
pelo menos, 58 bancas de mestrados e 26 dou- de 1987 começaram suas orientações e participa-
torados e orientou pelo menos 42 dissertações e ções em banca que somaram 167. Uma média de 6
16 teses. Voltando ao Memorial, a Fúlvia também por ano, uma a cada 2 anos, nos últimos 27 anos”.
fala sobre como ela é reconhecida pela comu-
nidade acadêmica: “Sou vista pela comunidade Em seu Memorial, Fúlvia também faz alusão
acadêmica como “especialista” em alguns temas: às consequências não previstas, mas desejáveis
literatura infantil, criança/menor, mulher, creche, na sua experiência como pesquisadora também
negros e técnicas como análise de conteúdo, de fora da universidade. Ela diz: “Outra decorrência
dados demográficos, de pesquisa bibliográfica/ da liberdade disciplinar é de o pesquisador ser
documental”. muitas vezes chamado, ou se dispor a traba-
lhar sobre temas que ainda não se constituem
Foi com Fúlvia que eu tive as primeiras aulas em objeto de conhecimento acadêmico. Esse é
sobre revisão da literatura, entendendo não como um desafio muito grande. Nesses casos, o que
uma busca do que se produziu sobre, mas uma se tem diante de si são questões ou problemas
forma de construção do problema de pesquisa, que podem se transformar, pelo trabalho do pes-
e isso é o que eu tento inclusive trabalhar com quisador, em objeto de conhecimento. Questões
meus alunos hoje na universidade; e entre essas e problemas atuais, diretamente saídos da vida
pesquisas bibliográficas que ela produziu, é im- concreta, sem abstrações generalizantes. Essa
portante destacar o investimento na produção proximidade com o concreto, com o atual permitiu
de estados da arte tão raros hoje em dia. Porque que em minha vida profissional interagisse forte-
falamos de uma época em que não havia a pos- mente com esferas não acadêmicas, com minha
sibilidade de um Repositório Digital, as pesquisas vida diária, com o que estava vivendo na esfera
eram em ficha de biblioteca, você tem um negócio privada; com interlocutores muito diversificados.”
chamado COMUT [Comutação Bibliográfica] diz
que era a mágica para quem quer a possibilidade Novamente, mais um alerta para pensarmos
de pedir [um livro] de outra universidade para po- formas de construir divulgação e de divulgar co-
der ter acesso. nhecimentos. Pensando bastante na diversidade
dos interlocutores. Para mim, é nítido a vinculação
Ela coordenou junto com outras pesquisa- de Fúlvia com fundamentos da pesquisa feminis-
doras uma pesquisa sobre mulher e educação for- ta. Aquela que entende o privado como político e
mal no Brasil, esse material é trabalho da década a pesquisa como sempre contingencial abolindo,
de 1980, que é o estado da arte da bibliografia. portanto, qualquer ideia de neutralidade ou de
Era formado por uma equipe interdisciplinar que completude. Por isso ela diz: “Na vida privada, a
envolvia desde psicólogos, mas também bibliote- interação se deu nos dois sentidos: trazer para
casa reflexões e descobertas do trabalho e levar
47
para o trabalho, para a reflexão/produção de co-
nhecimentos, observações, emoções e experiên- “Fúlvia jamais seria uma
cias que vivi no privado. pesquisadora que se orgulharia
A contemporaneidade das questões com as de uma estante cheia de livros
quais trabalhei também abriu o campo dos inter- fechados, com pouco acesso,
Temáticos CRP SP
quantidade e diversidade de palestras, cursos,
interação com interlocutores variados incluiu tam-
conferências, assessorias, seminários dos quais
bém o diálogo, às vezes intempestivo, por vezes
participei, no currículo contei, foram 128 pelo me-
irritante, ou falação entre surdos, com o poder pú-
nos atividade dessa natureza, como ela diz: “ Isso
blico, concretizado diretamente através de asses-
não significa, a meu ver, uma voracidade curricular.
sorias ou da busca de conhecimentos suscetíveis
construção
“Essa diversidade pode refletir um componente
Cadernos
de serem absorvidos na elaboração e na implan-
da identidade da pesquisadora, que se construía
tação de políticas públicas.” Com isso, ela passa
no momento de mobilização e organização dos
a abordar sua experiência com análise do campo
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convidou a turma para ir à casa dela, e eu gosto,
Muito emocionada também com estes re- sempre gostei de cozinhar e ela me passou uma
latos todos, acho que está todo mundo bastante receita que está no meu caderno de receitas até
afetado. Eu acompanhei bastante a votação em hoje, que é “terrine de poulet” que ela aprendeu a
homenagem e quando a Fúlvia foi escolhida, fiquei fazer na França. E eu faço às vezes, e conto que
construção
muito feliz. Tive a oportunidade de ser orientada foi uma professora que me ensinou, tenho essa
Cadernos
por ela na graduação, ainda lá na PUC, por um bre- memória afetiva.
ve período. E foi superimportante, ela trouxe para
mim algo que ficou na minha vida e caminhou co- Em relação a ela, fazendo um link depois com
pos têm sido muito difíceis, em vários sentidos, em sas que eu coloquei, Fúlvia era muito avessa a
especial, o processo da gestão. E o que tem falta- este tipo de evento. Eu tenho muita dificuldade de
do é o afeto, as experiências de afeto. Quero dizer chorar em público, e o que aconteceu aqui é muito
que estar aqui hoje, estar aqui com vocês todas e diferente do que geralmente acontece em outros
trazendo estas experiências muito afetadas, com contextos. Eu acho que o compromisso de vocês
muita emoção, nos dá alento. Nos dá força para em homenagear a Fúlvia com esse repositório é
seguirmos nas lutas que temos vivido. Hoje é im- um compromisso muito além de uma imagem e
portante, é um momento dentro do processo de de um nome. É um compromisso com o modo de
produzir um conhecimento que era extremamente rantir a democratização e com todo rigor e afeto,
50
rigoroso do ponto de vista técnico, especialmente como disse Benedito. Compreendemos que é ne-
ela sempre fez uma diferenciação muito grande, cessário todos nós assumirmos a responsabilidade
que incomodava muitas pessoas, entre militância de ter um repositório denominado Fúlvia Rosem-
e produção acadêmica. Ela dizia: “Produção acadê- berg. Também quero informar que teremos os Fó-
mica deve ter horizonte político, não pode ter um runs sobre a História e Memória da Psicologia, cada
meio. Um método tem que respeitar determinadas um deles homenageando as seguintes pioneiras da
orientações, determinados acordos feitos a partir Psicologia: Ecléa Bosi, Maria Nilde Mascellani, Iara
da comunidade científica. Não posso simplesmen- Iavelberg e Virginia Bicudo. Novamente agradeço as
te inventar modo de fazer e ignorar a história que membras do GT História e Memória, a Júlia, ao Be-
os construiu”. A apresentação que vocês fizeram nedito, a Antônia, a todas e todos presentes.
foi muito boa porque mostra esse cuidado desde
o pensar numa base que tecnicamente é sólida,
porque permanece durante um tempo que corre o
risco exatamente do esquecimento digital, que é
quando se busca o link e não aparece mais. Acho
muito importante isso, tecnicamente, como acho “Produção acadêmica deve ter
importante também e reconheço logo na composi- horizonte político, não pode
ção daquelas comunidades quando vocês coloca- ter um meio. Um método tem
ram, que direitos humanos tem um lugar muito es-
pecial, a maioria está naquela categoria. Eu não sei que respeitar determinadas
se gênero, raça, idade, não deveria ter um desta- orientações, determinados
que maior pensando na composição. Na verdade, acordos feitos a partir da
desde quando vocês definiram as cinco pessoas
que se candidatariam, vocês já fizeram a partir de comunidade científica. Não posso
uma posição de reconhecer a invisibilidade de mui- simplesmente inventar modo de
tas mulheres quando se fala de história, de reco- fazer e ignorar a história que os
nhecimento. Então já é alguma coisa presente, não
só nas produções da Fúlvia, mas também na forma construiu“
de classificação. Eu sei que ainda o volume é pe-
queno, ainda dá para fazer ajustes deste tipo, por
isso que eu estou sugerindo, mas acho que isso é
para além dos afetos que nos conectam a Fúlvia,
uma forma de afeto, pensar também o cuidado com
a produção científica e a produção científica não é
aquela que produz a verdade, ela produz a dúvida.
Se conseguimos encontrar diálogos, interlocução a
partir desse repositório para alimentar e qualificar
essas dúvidas. Ela tinha pavor de perguntas que
não estavam muito bem fundamentadas. Para mim,
é uma coisa importante que eu aprendi na vida. Ja-
mais Fúlvia aprovaria que é simplesmente um nome
em uma imagem. É pensar de fato que esse reposi-
tório possa de algum modo prolongar, é assim que
nos tornamos imortais, não é na memória de quem
ou do que fizemos, mas nos efeitos que produzi-
mos, da forma como nos colocamos no mundo.
Rodrigo Toledo
É importante lembrar algo que a Luciana já
trouxe na fala inicial. A importância do repositório
digital. É uma importante ferramenta de gestão.
Entendemos que com esta ferramenta vamos ga-
Fórum sobre a História e Memória 51
da Psicologia: Psicologia e
Constituição de campos de atuação
Temáticos CRP SP
Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, com período sanduíche
na Università degli Studi di Torino - Itália. Graduada em Psicologia pela Universidade
Federal de Uberlândia e Mestre em Psicologia pela mesma instituição. Docente do
Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
construção
Cadernos
Gostaria de agradecer ao Conselho Re- Leny Sato quando tive a oportunidade de estudar
gional de Psicologia de São Paulo pelo convite, é com a professora Ecléa. Eu sigo a estrutura de in-
Temáticos CRP SP
objetivo era identificar as compreensões que as
Psicologia Social (que é um psicólogas/os organizacionais tinham a respeito
campo de fronteira com outras do adoecimento pelo trabalho e, a partir destas
compreensões, conhecer algum tipo de prática vol-
áreas do conhecimento), não tada para esta questão da saúde do trabalhador.
construção
lançamos mão de estratégias A estratégia metodológica que eu escolhi naquele
Cadernos
momento foi trabalhar com grupos de discussão
metodológicas que são sobre as práticas profissionais. Sou professora
originárias de outras áreas do efetiva da Universidade de Uberlândia há 11 anos
o objeto, por vezes, quando um aluno nos diz que vação ainda era pouco. Registrava manuscrito no
gostaria de fazer uma pesquisa com etnografia, meu diário de campo o que tinha me afetado no
primeiro é preciso saber o que você quer pesquisar grupo, os questionamentos, mas muitas vezes eu
para saber se a etnografia é uma estratégia ade- não tinha uma compreensão elaborada porque es-
quada. O método sempre será definido a partir do ses elementos eu não teria como acessar.
nosso objeto de investigação.
Continuo o trabalho com grupos formados
Outra questão posta pela professora é: por trabalhadores e trabalhadoras adoecidos pelo
trabalho. Os encontros aconteciam no Serviço- imediato, e sim verificar se apareceriam esponta-
54
Escola de Psicologia da Universidade Federal de neamente na saúde do trabalhador destes psicó-
Uberlândia (UFU) e a cada encontro realizava um logoos.
registro no diário de campo. O Diário de Campo é
importante, não apenas pelos exemplos ou pela No primeiro encontro apresentei a proposta
cronologia dos registros, mas o que suscitou para de trabalho do grupo e os participantes contaram
tecer as elaborações e tem sido um aprendizado um pouco sobre o que os levou até lá, quais as ex-
importante e fundamental para a minha atuação pectativas que tinham, e por fim era perguntado
profissional. sobre o que consideravam uma atividade perti-
nente ao trabalho do psicólogo organizacional e
qual tipo de atuação o psicólogo dentro das orga-
nizações poderia se dedicar. Não houve nenhuma
“O Diário de Campo é menção sobre a questão de saúde no trabalho.
importante não apenas pelos Quando tivemos o primeiro encontro perguntei o
que eles gostariam para o encontro seguinte, com-
exemplos ou pela cronologia dos binamos datas, horários e sequência do grupo. Os
registros, mas o que suscitou temas seriam decididos de acordo com o interes-
se dos participantes. Então uma das participantes
para tecer as elaborações e tem questionou se poderíamos falar sobe saúde do
sido um aprendizado importante trabalhador. Levei um susto porque eu não havia
falado sobre isso em momento algum. Qual foi o
e fundamental para a minha equívoco que havia cometido? Conto isso na tese.
atuação profissional“
Entreguei um termo de consentimento es-
clarecido, que é uma exigência do comitê de ética
e pesquisa, era necessário constar o objetivo da
Ecléa Bosi também orienta que as nossas pesquisa. Assinaram o termo de consentimento e
falhas devem ser explicitadas principalmente na qual era o objetivo do meu trabalho. Na verdade,
pesquisa, pois, quando vemos o resultado de uma eu poderia ter dito que o objetivo era discutir as
pesquisa publicada na forma de um artigo ou numa práticas, como de fato era, porém eu tinha escrito
apresentação como essa, são ocultados os pro- especificamente a questão de saúde no trabalho.
blemas e não aparecem os defeitos. Na prática sa- Foi um equívoco, entre outros que conto na tese,
bemos que não é assim, podemos contar os equí- que dão a dimensão de compartilhar não só os
vocos que cometemos, os enganos que ocorreram acertos, mas também os erros.
durante o processo de investigação, o que será útil
para os pesquisadores que virão depois de nós. Do ponto de vista da ética, a professora Ecléa
nos diz que a entrevista ideal é aquela que permi-
Dessa forma, segui os conselhos da profes- te formação de laços de amizade, tendo sempre na
sora e busquei contá-los a partir das dificuldades lembrança que a relação entre o sujeito pesquisa-
que tive durante a pesquisa, exatamente neste es- dor e sujeito pesquisado jamais deveria ser uma re-
pírito de poder compartilhar com os pesquisadores lação efêmera. Envolve responsabilidade pelo outro
para evitar que eles possam cometer os mesmos e deve durar tanto quanto dura uma amizade; um
equívocos. Quando convidei as pessoas para par- dos aprendizados mais significativos que tive, por-
ticiparem do primeiro encontro de psicólogas e que ele permite estar atenta às necessidades dos
psicólogos organizacionais, a minha ideia era dis- sujeitos que participam das minhas investigações.
cutir a prática de atuação destas/destes psicólo-
gas e psicólogos. O convite foi para um grupo de Como eu expliquei anteriormente, quando eu
discussão da prática e, se os participantes deste ofereço espaço ao grupo é um oferecimento real
grupo se sentissem confortáveis e concordassem, e legítimo para que aquele espaço seja utilizado
as discussões poderiam ser utilizadas na minha in- pelos participantes conforme queiram. Somente
vestigação de doutorado. em segundo plano estará a possibilidade daquele
material, seja material de pesquisa e investigação.
Caso eles não quisessem que as discussões Necessário estar o tempo todo, não só no nosso
se tornassem material de pesquisa eu continuaria fazer profissional, mas também no nosso fazer
a realizar o grupo. Como eu gostaria de investigar investigativo, nas nossas pesquisas no campo da
as questões sobre a saúde do trabalhador e como Psicologia.
elas apareciam no trabalho dos psicólogos orga-
nizacionais, eu não queria fazer essa pergunta de Outro aspecto que a professora coloca é
que não temos o direito de tratar um memorialista, Enfim, estava entrevistando essa psicóloga 55
serve para qualquer sujeito participante da nos- que trabalha no frigorífico e no momento em que
sa pesquisa, como se ele estivesse no banco dos começou a entrevista, eles estavam com quinze
réus. Nós temos de ser muito cuidadosos, porque por cento do quadro de trabalhadores afastados.
principalmente na área da Psicologia, por vezes fa- Pensei, eram aproximadamente 800 trabalhado-
zemos julgamento do outro. É a formação da leitu- res, só naquela unidade, que não trabalhavam. Um
ra de mundo que o outro possui, e temos que ser número altíssimo que me chocou. Então perguntei
muito cuidadosos. a ela, se isso não traz algum problema para eles,
Temáticos CRP SP
responsabilidade pelo outro a resposta foi pelo fato de as mulheres não po-
derem usar brinco, nem maquiagem e os homens
e deve durar tanto quanto terem de fazer a barba todos os dias. Quando eu
dura uma amizade; um dos ouço esta resposta, fiquei me perguntado se ela
realmente acreditava naquilo que estava falando,
aprendizados mais significativos
construção
e voltei para casa com aquela pergunta. Esse caso
Cadernos
que tive“ específico, não aparece na minha tese, porque eu
não queria expor de alguma forma a visão de uma
pessoa.
dos por sete, a quantidade de movimentos que ele algo que temos que entender é que tudo que dize-
faz a cada minuto é assombrosa. Multiplicando um mos nunca será produção apenas individual nossa.
minuto por 60 minutos, pela quantidade de horas, É fruto das circunstâncias nas quais somos for-
depois por oito horas da jornada de trabalho e te- mados. Os psicólogos organizacionais eram meu
remos uma ideia. objeto de estudo naquele momento e poderia ser
qualquer outra categoria dentro da Psicologia.
10 O documentário pode ser encontrado em : https://youtu.
Uma compreensão de mundo que vai sendo cons-
be/887vSqI35i8, Direção: Caio Cavechini e Carlos Juliano Bar- truída nas nossas relações sociais a partir das ex-
ros (2011)
pectativas de cada um que vão sendo colocadas. que vive cotidianamente sua vida para sobreviver.
56 Possivelmente, terão ideias e experiências diferen-
Falo com muita tranquilidade porque eu tra- tes sobre o mesmo período.
balhei oito anos como psicóloga organizacional
depois de me formar em Psicologia. Aquela psicó- Na minha pesquisa ficou válido da seguinte
loga, como qualquer outra psicóloga organizacio- forma, em um determinado momento em que es-
nal, que vai trabalhar na empresa, tem diante de tava com os grupos, nas entrevistas com os psicó-
si um conjunto de prescrições que já estão colo- logos eu tive a necessidade de ouvir o outro lado,
cadas para aquele cadastro, um mundo de solici- ouvir os trabalhadores adoecidos e quais eram as
tações que são esperadas. Não é simplesmente compreensões e percepções que eles tinham da
a pessoa chegar lá com mil ideias. Na Psicologia atuação dos psicólogos dentro da empresa após
Social, podemos compreender os comportamen- o adoecimento deles. Comecei simultaneamente
tos, práticas e as ações dos sujeitos a partir das a fazer grupos de escuta, eram grupos no Centro
perspectivas que são colocadas desde a formação de Referência de Saúde do Trabalhador na cidade
até o ingresso no mercado de trabalho. de Uberlândia, e depois um grupo de escuta e aco-
lhimento dos trabalhadores que tiveram interesse
Outro aspecto que a professora Ecléa acon- em relação ao que acontecia no Serviço-Escola de
selha é que o depoimento sempre tem de ser de- Psicologia da UFU; os relatos foram completamen-
volvido ao seu autor. Qualquer publicação, qual- te diferentes.
quer resultado de pesquisa, qualquer relatório de
pesquisa sempre será apresentado primeiro ao Os relatos das/os psicólogas/os organiza-
sujeito que participou da pesquisa. Ele tem o po- cionais não eram iguais aos dos trabalhadores
der de veto, de dizer que não concorda ou de dizer que vivenciavam e que de alguma forma adoece-
que não é bem assim do jeito que você pensou. Do ram pelo trabalho. A professora Ecléa diz que a
contrário seria autoritária e arbitrária, enquanto memória oral, para a qual há uma lateralidade em
investigadora, conversar com a pessoa e depois certas instituições faz entender pontos de vistas
produzir o que eu acho que implica naquilo que a contraditórios ou pelo menos distintos entre eles
pessoa disse, sem consultá-la, para saber o que e aí se encontra a sua maior riqueza. Um aspecto
realmente é pertinente. fundamental da minha pesquisa foi poder alimen-
tar as informações do grupo de psicólogas/os, a
partir do que eu ouvia do grupo de trabalhadores.
As/os psicólogas/os que participavam do grupo
“o depoimento sempre tem se surpreendiam, se sensibilizavam, se afetavam
de alguma forma com as informações trazidas do
de ser devolvido ao seu autor. outro grupo. Eram informações que realmente não
Qualquer publicação, qualquer passavam em momento algum pelo horizonte de
resultado de pesquisa, qualquer possibilidades com experiência profissional.
Compartilho com vocês um pouco do conhe- a grande criadora da “Universidade aberta para
cimento que eu tenho sobre a Ecléa Bosi e sobre os idosos” e já temos mais de 150.000 idosos
a Psicologia Social. Vemos pouco sobre Psicologia que passaram pela na Universidade de São Paulo
Social na faculdade, até tem uma disciplina para al- (USP). A grande chave do pensamento da Ecléa, é
guns. Talvez quando estamos atuando, tenhamos a troca de experiência entre a juventude e o nosso
a possibilidade de fazer um estágio ou outro, mas
passado vivo. Não damos valor ao nosso passado
hoje podemos ver a aplicabilidade desta Psicologia
vivo, ela fala bastante sobre isso.
acontecendo
“Eu não poderia ter passado por “No final da década de 1960 e
esta vida de maneira tão grata, início da década de 1970, há
com tanta satisfação, se não uma crise da Psicologia Social
tivesse conhecido a Ecléa, se no Brasil; todo momento de crise
não tivesse tido aula, trabalhado é o momento de repensar as
com ela“ várias condutas, é o momento
do surgimento de novos
Um documentário muito interessante que paradigmas“
fizeram em homenagem à Ecléa está no YouTube11
sobre os idosos da “Universidade Aberta”, ela foi
O surgimento da Psicologia Social no Brasil
é marcadamente influenciado pela produção teó-
rica e metodológica dos Estados Unidos. No final
11 Documentário pode ser encontrado em: https://youtu.be/alL-
By6bBHwM
da década de 1960 e início da década de 1970, há
uma crise da Psicologia Social no Brasil; todo mo- No Brasil a Silvia Lane foi responsável por
59
mento de crise é o momento de repensar as várias divulgar a Psicologia Social, não só nas universi-
condutas, é o momento do surgimento de novos dades, mas também indo até as comunidades e
paradigmas. Thomas Kuhn, que estuda o paradig- desta forma, trabalhar a Psicologia Comunitária. A
ma na ciência, diz que todo paradigma vem para própria Ecléa e ela tinham uma afinidade, não sei
substituir aquilo que não dá mais conta de respon- se uma afinidade pessoal, mas uma afinidade nas
der às necessidades da sociedade. Pega um pou- trocas de conhecimento e práticas.
Temáticos CRP SP
a necessidade de “produzir a nossa teoria”. Não é ca entender para transformar, colocar em prática
uma mera rejeição ao que vem de fora, mas produ- a verdadeira práxis, não só ele como o Karl Marx
zir teorias que deem conta de compreender nossa também, que é a práxis revolucionária. Entender
realidade e, não só compreender, transformá-la para agir e agir entendendo. A Ecléa faz muito
também. isso, tanto que a Universidade Aberta aos Idosos
construção
da USP (Programa Universidade Aberta à Terceira
Cadernos
Idade/USP) surge apoiada em uma necessidade
que ela apontou segundo seu livro Memória e so-
“Na década de 1970 os/as
ge, por exemplo, a Associação Brasileira de Psico- colho subjetividades, colho vontades e no final eu
logia Social (ABRAPSO) que vai pensar Psicologia mostro que poderíamos fazer algo para melhorar a
Social no Brasil, a ULAPSI (União de Entidades La- inserção de vocês no mercado de trabalho. Só que
tino Americanas) também para pensar a Psicologia eu não faço, porém, faço minha pesquisa, publico o
Social na América Latina e congressos no Peru, no livro. Algo poderia ser feito para a transformação,
Brasil e na América Central, em que as trocas de mas o que eu vou fazer com isso? A Ecléa fala que
conhecimento e produção puderam acontecer. é uma violência tremenda com o sujeito da pesqui-
sa, se eu percebo quais são as necessidades reais
daquele grupo, há possibilidade de transformação
60
e não faço nada. A partir dessa pesquisa com os
velhos que surge a ideia, na década de 1990 de
criar a Universidade Aberta.
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Unimep por 12 anos. Trabalhou como coordenadora de programas de arte e cultura
para unidades da Fundação CASA. Foi consultora do Ministério da Saúde, Ministério
da Justiça e Ministério do Desenvolvimento Social como formadora de coordenadores
de grupos e projetos com adolescentes e jovens. Entre 2009 e 2016 exerceu a
função de Superintendente no Arquivo Público e Histórico de Rio Claro, trabalhando
principalmente no foco da formulação de políticas públicas da memória da cidade e da
construção
história do presente, utilizando a metodologia da história oral, em especial relacionada
Cadernos
aos grupos excluídos da história oficial.
Sou Juliano Godoy, mestrando em História da floresta, não pegará bem” esse era o sistema da
Educação da UNIMEP – Piracicaba (Universidade sociedade Rioclarense nos anos 60, e por último,
Metodista de Piracicaba), orientando do Professor devido a muita articulação, abaixo-assinados, de-
Doutor Cesar Romeiro Amaral Vieira, bolsista CNPq. bates na Câmara Municipal de Rio Claro, mobiliza-
O professor Daniel Chiozzini foi um dos respon- ção da Associação de Pais do ginásio vocacional
sáveis por eu iniciar essa pesquisa no bate-papo
de Rio Claro, consegue-se a verba para construção
cultural em 2014, lá no arquivo, produção da disser-
do prédio definitivo. O definitivo durou apenas três
tação, tanto do texto de qualificação e defesa. A
apresentação do seu livro, de todo seu trabalho no anos, até a experiência ser silenciada por decreto
mestrado e doutorado sobre o tema do ginásio vo- terminando o ginásio vocacional.
cacional. Sou vizinho do ginásio vocacional, moro no
bairro Jardim Primavera, o prédio do vocacional de A professora Maria Nilde Mascellani, defen-
Rio Claro na escola Raul Fernandes, que hoje está deu do começo ao fim da sua carreira (de 1931 a
com um terço apenas em funcionamento, o restan- 1999) a integração entre as escolas e o território
te está totalmente abandonado e pior que aban- na educação inclusiva e participativa do aluno com
donado, deteriorando, as instalações de esportes, seu meio cultural e social. As obras de Paulo Frei-
laboratório, teatro. A situação que se encontra, do re retratam a questão de educação bancária, do
que foi projetado, de toda construção da escola, do
depósito de conteúdo. O aluno não está ali para
prédio, a luta pela construção daquele prédio do gi-
receber a presença e tem muito a contribuir, a
násio vocacional de Rio Claro, inclusive a professora
Maria Nilde esteve três vezes em Rio Claro para rei- participar. A educação pela experiência, pela par-
vindicar a construção deste prédio. ticipação, onde todos participam e todos se au-
toconhecem, todos se autoensinam, de modo que
O ginásio vocacional passou por três está- tanto o professor tem para ensinar para o aluno,
gios. Primeiramente, se instala no grupo escolar quanto o aluno tem para ensinar ao professor.
da Vila Operária, atual Escola Monsenhor Martins. Essa Educação traz um grande propósito das clas-
Localizada em um bairro quase central da cidade, ses experimentais de Socorro, cidade onde ela foi
tradicional, permanece ali dois anos e meio e de professora, coordenadora, e depois traz de uma
uma visita da professora Maria Nilde, procuram forma muito mais idealizada, com liberdade no Go-
na cidade vários prédios em que o vocacional de- verno do Estado de São Paulo, quando o professor
veria ser instalado. Chegam à conclusão que não Luciano era secretário da Educação para a instala-
poderia mais porque o ginásio vocacional dividia ção do ginásio vocacional.
as instalações com grupo escolar e havia conflitos
de horário e de metodologia de trabalho. Como é Os ginásios vocacionais foram uma experi-
escola, o ginásio vocacional tem tempo integral ência no estado de São Paulo de curta duração,
com sua própria estrutura, o seu próprio currículo mas com uma liberdade de trabalho, uma liberdade
e próprio modo de funcionar. Com a vinda da pro- de educação, na medida em que o órgão do giná-
fessora Maria Nilde para procurar esse prédio, vi- sio vocacional, o serviço de ensino vocacional, não
sitaram vários prédios públicos e particulares até tinha que passar pelas diretrizes básicas do siste-
encontrar o local mais adequado para a mudança ma do Governo de Estado da Educação. O ginásio
do ginásio vocacional de Rio Claro. O que marca a vocacional tinha uma liberdade de currículo e de
sua segunda fase é a transferência para o Horto trabalho, projetado pelas professoras Maria Nil-
Municipal no Casarão da Fazendinha. Os alunos de, Áurea Sigrist e por outros teóricos que tinham
do vocacional e os professores tiveram mais es- essa liberdade de trabalhar a educação no contex-
paço físico para suas atividades, para o estudo do to que estava inserida, sem seguir o currículo pa-
meio, para atividades supervisionadas. Todavia a drão que as outras unidades de ensino do estado
sociedade Rioclarense começou a criticar o motivo de São Paulo seguiam, visando o desenvolvimento
de ser tão afastado “por que longe de todo mun- de práticas pedagógicas até hoje consideradas
do? Meninos e meninas quase dentro do mato, na inovadoras.
Nos desdobramentos da história e da insti- gógica dos vocacionais construiu uma educação
63
tuição educativa, temos que considerar todos os interdisciplinar. Mas o que é essa interdisciplinari-
fatores que auxiliavam e deram suporte para ter a dade? Na visão vocacional era para além da sala
experiência educativa, os fatores que foram con- de aula, escrita e leitura, era feito além do corpo
trários para apreciarmos que aquela experiência docente dos professores e alunos participando e
era inovadora. As classes experimentais, foram o não uma coisa fixa com livros didáticos, materiais
embrião dos ginásios vocacionais, o projeto edu- pré-determinados. Através de pesquisa/análise de
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Paulo na década de 1960 e foram criadas seis uni- fessora Maria Nilde e de outros professores, e dois
dades São Paulo, Americana, Batatais, Rio Claro, anos para sua instalação depois de ser aprovado.
Barretos e São Caetano do Sul. Para além dessas
seis unidades existiam 18 projetos de lei de vários A maioria dos educadores que lecionaram
deputados do estado de São Paulo para instala- ou fizeram parte das gestões administrativas das
construção
ção de ginásios vocacionais em Pindamonhanga- classes experimentais de Socorro com a profes-
Cadernos
ba, Pirassununga, São Sebastião, Taubaté, Lorena, sora Maria Nilde trouxeram essa equipe para aju-
Jundiaí e mais outros projetos. Depois da crise do dar a organizar o serviço de ensino vocacional em
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de falar o que eu pensasse. Esta fraqueza eu tenho eu tenho e assumo até
e assumo até hoje. Não paro no caminho. Sento e
pego para pensar. Concordo perfeitamente com o
hoje. Não paro no caminho.
qualificativo que muitos me falam que sou diretiva. Sento e pego para pensar.
Eu vejo diretivo como uma meta a ser conseguida Concordo perfeitamente com
construção
e alcançada para melhoria da educação no cenário
Cadernos
nacional.” Essa foi a entrevista que ela fez para a
o qualificativo que muitos me
Sandra Maia e diz: “Nas coisas de cultura e educa- falam que sou diretiva. Eu vejo
diretivo como uma meta a ser
mos sendo vigiados?”. Em suma, a equipe inteira 1969 e nunca mais ele tocou no ginásio vocacional,
foi denunciada para Polícia Militar do Estado de nunca mais, de 1969 a 1973 que foi o último recor-
São Paulo e quase todos os membros do serviço te do jornal, eles tocaram nesse assunto. A mídia
vocacional foram denunciados como a Maria Nilde impressa, escrita e hoje virtual, os grupos que tem
Mascellani, Laura Cândida Sigrist, Darcy Passos, interesse, mostram o que eles querem mostrar.
Sebastiana Correa, entre outros.
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Sobre o vocacional, não há como dissociar centralizado.
de Maria Nilde. Quem era Maria Nilde? Como que
ela se envolve? Como é que ela cria, idealiza e im- Quer dizer, o Brasil, um país de dimensões
plementa os vocacionais? Ela começa atuar como continentais, não havia nenhum tipo de liberdade
professora primária em 1948, nos anos 50 ela vai para as escolas inovarem, em termos de currícu-
construção
Cadernos
cursar pedagogia na USP e em 1957 se torna pro- lo. Começamos nos anos 1950 o movimento para
fessora do curso normal no Instituto de Educação reformular esse ensino secundário, e outra ca-
na cidade de Socorro e também continua estudan- racterística importante, esse ensino secundário é
decretos são chamados de Reforma Capanema. lectuais que vinham desde os anos 30 fazendo a
Uma das características importantes dessa legis- crítica e a reflexão da educação brasileira e pro-
lação, no que diz respeito ao denominado ensino pondo algumas inovações.
secundário, corresponde ao que chamamos hoje
de Fundamental II e Médio, os alunos que termi- Esses intelectuais elaboram um documento,
o Manifesto da Escola Nova em 1932, e continuam
atuando nas décadas de 1940,1950, as quais terão
12 O documentário pode ser encontrado em : https://youtu.be/ algumas reformas, de alguns sistemas estaduais
gO-y-kwYhfE
ao longo desse período. Nos anos 50 tem a chega- Então, eles pegam o plano de desenvolvi-
68
da do Anísio Teixeira no alto escalão da educação mento local que o governo Carvalho Pinto naquela
brasileira, que passa a atuar no âmbito do Ministé- época, final dos anos 50, quem assume o Gover-
rio da Educação e assume a presidência do INEP no do Estado de São Paulo é um sujeito ligado ao
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa- partido Democrata Cristão, e faz um projeto de re-
cionais Anísio Teixeira) e da CAPES (Coordenação formulação de dinamização da economia dos mu-
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), nicípios. Havia um plano de desenvolvimento para
começa todo movimento de reforma da educação determinadas regiões do interior e eles pegam
nacional. esse plano que consistia basicamente em incen-
tivar a dinamização da produção agrícola porque
Uma das estratégias para tentar romper com era uma região praticamente de monocultura e de
essa legislação altamente prescritiva e centraliza- agricultura de subsistência e utilizam como mote
dora nas humanidades clássicas com um sistema do currículo. “Quem eram aqueles produtores lo-
de avaliação bastante tradicional, foi emitir uma cais? Qual era o perfil socioeconômico daquela
portaria, um decreto que ficou conhecido como região em Socorro na época? O que o governo al-
“Portaria das classes experimentais”, mas na ver- mejava?” Iniciam as viagens com os alunos, visitas
dade é um decreto que é publicado em 1959, que às propriedades para compreender a produção de
permitia que escolas públicas e particulares que subsistência e as grandes propriedades, enfim,
quisessem alterar o seu currículo, poderiam fazer começa um movimento de pensar outro currículo,
isso mediante autorização do MEC (Ministério da em 1959, em Socorro por iniciativa da Maria Nilde
Educação). São criadas uma série de escolas, prin- Mascellani, da Olga Bechara e da instituição dire-
cipalmente particulares, mas algumas públicas se tora do Instituto de Socorro.
valem dessa legislação para alterar o seu currículo,
é o caso da experiência de Socorro. A Maria Nil- Essa experiência é visitada pelo secretário
de Mascellani estava atuando como professora e de Educação, Luciano de Carvalho, que tinha vi-
como orientadora pedagógica em Socorro e atuou sitado outras escolas também experimentais no
nas classes experimentais da cidade que, contou período, e havia viajado para fora do país, conhe-
também com Olga Bechara como educadora. cia a chamada escola compreensiva em inglês, a
pedagogia da Escola de Sagres. Era um sujeito li-
Essa portaria das escolas experimentais gado ao meio empresarial, mas que almejava uma
permitia que a escola escolhesse algumas classes alteração radical na educação pública do Estado
e iniciasse esse movimento de reformulação não de São Paulo na época. Ele se encanta com a expe-
na escola inteira, mas com algumas classes e por riência de Socorro e decide ampliar para o Estado
isso era chamado “Classes experimentais”. Assim, como um todo, mas como que ele iria fazer isso?
a escola Narciso Pieoroni, de Socorro, inicialmen- Na época tínhamos um processo de reformulação
te coloca duas classes como experimentais e co- do chamado ensino industrial de São Paulo que
meça a inovar em termos de currículo, instaura um tinha uma rede de escolas equivalente ao ensino
processo de integração de disciplinas. Não havia técnico atual, chamadas “escolas de ensino indus-
ainda na época os termos interdisciplinaridade, trial e de economia doméstica”. Ele se aproveita
transdisciplinaridade; eles trabalhavam com a no- desse projeto de lei já tramitando na Assembleia
ção de integração de disciplinas. O que significa Legislativa e decide inserir naquele projeto (que ti-
um ensaio para que Maria Nilde Mascellani comece nha mais de 100 artigos), quatro artigos, nos quais
a desenvolver uma prática de integração de dis- cria o chamado “Serviço de ensino vocacional”.
ciplinas “estudo de meio”, que são viagens com
finalidade educacional, um currículo baseado em O que seria esse “Serviço de ensino vocacional”?
círculos concêntricos, algo que vem desde o século Um sistema educacional paralelo a toda a estrutura
XIX nessa ideia de currículo centrado primeiro nas burocrática da secretaria de Educação, quase como se
problemáticas locais, depois nas problemáticas da fosse um sistema público de ensino fora da estrutura
cidade, depois Estado, país, e mundo. Quer dizer, burocrática da secretaria. A supervisora de sistema de
isso é uma proposição que remonta o método de ensino responde diretamente para o gabinete do secre-
ensino intuitivo do século XIX, mas é algo que em tário e ele iria coordenar escolas ginasiais que buscariam
Socorro se aprimora de uma maneira muito parti- o que a princípio diz pouco a respeito do que foram efeti-
cular, utilizando também a integração da disciplina vamente os vocacionais, mas seria uma transição entre
“Estudo de meio”. o primário e o chamado ensino industrial.
Isso é o que diz a lei do ensino industrial e situação, ter alguém que não havia feito o curso
69
os seis artigos que tratam do vocacional. Só que de formação para assumir as turmas, mas era uma
valendo dessa estrutura burocrática, não é a Maria situação de exceção.
Nilde, ela assume posteriormente a coordenação
do SEV (Serviço de Ensino Vocacional) por indica- A Maria Nilde é uma figura-chave nesse pro-
ção do secretário que deu a ela, portanto, grande cesso, exatamente porque o secretário de Educa-
autonomia administrativa, grande autonomia de ção ao visitar as classes experimentais de Socor-
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tegração de disciplinas que já havia nas classes não vou arcar. Os professores estão selecionados,
experimentais, em Socorro, acabam sendo apro- os alunos estão aí, então às aulas vão começar. O
fundadas e, além disso, o currículo de cada uma secretário novo terá que arcar com ônus de fechar
dessas unidades levava em consideração as parti- as unidades e mandar aluno para casa, mandar o
cularidades das cidades, como já foi dito anterior- professor de volta, enfim vai ser um caos”. O secre-
construção
mente. Há outros elementos interessantes, como tário de Educação que substitui o Luciano de Car-
Cadernos
a participação da comunidade que era extrema- valho então recua e são criadas as três primeiras
mente intensa, mobilizava os pais e eles formavam unidades. Essas unidades vão ganhar notoriedade
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ria do vocacional não foi só perpassada por crises, uma postura condizente com as atitudes que eles
envolvendo crises externas, envolvendo o gover- deveriam inculcar nos alunos. Enfim, percebe-se
no. Tivemos alguns embates internos também, e que tem uma Maria Nilde em 1963 e outra em 1968.
Newton relatou duas crises importantes, ele co- Maria Nilde que tinha orientação política mais con-
meça como professor de estudos sociais e depois servadora a altura de 1963, antes do golpe militar,
construção
passa para coordenador da área de estudo sociais e segundo o relato do Newton, próxima de grupos
Cadernos
do SEV, porque tinha coordenações de área. radicais, digamos assim, que até depois partiram
para luta armada. Em si, Maria Nilde é uma figura
recrudescimento da Ditadura Militar e o Newton na obra do Paulo Freire. Inclusive, o Paulo Freire
relata, portanto, que em 1968 a Maria Nilde deci- aparece como referência em 1968 do vocacional
de demiti-lo. Ele e outros seis porque, ela, segundo e a proposição de formar o indivíduo consciente,
ele, se alinha a esse grupo mais novo que entrou de conscientizar o aluno é uma coisa que ganha
nas escolas a partir de 1965 e relatou outra crise relevo, é uma proposição, que tem relevo na docu-
também em 1963, houve uma greve de professores mentação, ou seja, fui mapeando no processo de
da rede pública do Estado de São Paulo, motivada pesquisa como é que esse currículo foi evoluindo e
entre outras questões por salário. Os professores como é que ele foi sendo alterado, como é que isso
esteve em consonância com o processo político vocacional em 1969, ela funda um escritório de as-
72
em curso no país. sessoria pedagógica, chamado Renove, que termi-
nado o vocacional, busca de alguma maneira conti-
Quando eu disse que tínhamos uma ditadu- nuar disseminando aquelas metodologias, aquelas
ra e um processo de recrudescimento, é compre- práticas e vai fundar esse escritório de assessoria
ensível que dentro da perspectiva de formar esse pedagógica a partir de 1971. Desfaz um estudo
cidadão crítico, participativo e democrático, tivés- do currículo, que é criado depois com a chamada
semos a proposta curricular de alguma maneira ra- lei 5692/71, essa legislação que a ditadura cria e
dicalizada ao longo do tempo. Depois a Olga tam- ela no Renove faz um estudo e crítica ao ensino de
bém no seu relato em relação a 1963 disse: “em Educação e Moral e Cívica.
1963 nós éramos católicas conservadoras, para
nós, greve era coisa de comunista, então não cabia Em 1974 acontece uma “batida” no Renove,
durar uma greve em 1963. ‘Ela falou hoje não, hoje é invadido pelos militares, apreendem esse do-
se alguém, uma assembleia decide fazer greve, eu cumento e em função disso, ela que já havia sido
sou a primeira a obedecer ao que a assembleia de- detida em 1969, é detida novamente e fica dois
cidiu, democraticamente.’” Mas na época não era meses presa. Essa prisão no DOPS, digamos que
assim, então vamos percebendo um amadureci- pode ser considerada a mais pesada, ela fica dois
mento político também desses sujeitos. meses presa e é processada por subversão. Sen-
do considerada uma figura articulada com o meio
Inclusive, da própria Maria Nilde, o que é ins- católico e como tinha uma relação muito forte com
tigante. São silenciadas e o que eu tenho procura- Dom Paulo Evaristo Arns, eles condenam a Maria
do reforçar na minha pesquisa é que isso não ma- Nilde, mas decidem suspender a pena com um ar-
cula, não deprecia a personalidade, a biografia da gumento meio esdrúxulo de que ela não havia di-
Maria Nilde, pelo contrário, por exemplo, a história vulgado aquele documento subversivo. Logo, ela
de Dom Paulo Evaristo Arns que foi uma figura cha- era culpada, mas a pena não seria aplicada, uma
ve na resistência. O Dom Paulo apoiou a Ditadura condenação esdrúxula da justiça militar, a época.
Militar e não só apoiou; Dom Paulo Evaristo Arns De qualquer forma é um episódio traumático por-
era Bispo em Petrópolis, se desloca de Petrópolis que ela fica dois meses presa na solitária, e relata
para o Rio de Janeiro para abençoar as tropas que em sua tese que eles colocam em sua cela um “me-
vinham de Juiz de Fora, do Mourão Filho, para dar o nor infrator”, visando coagi-la através da presença
golpe. Foi um apoiador declarado da Ditadura Mili- desse rapaz envolvido com crime de estupro.
tar, só que a partir do momento que temos o golpe,
nos meses seguintes já começamos um processo Enfim, depois ela até relata como se aproxi-
de cassações arbitrárias. Juscelino Kubitschek foi mou dele, que o rapaz não a agrediu, não fez qual-
cassado e o Senador eleito também. O Dom Pau- quer mal. Ela escreve um poema depois sobre esse
lo relata que a partir de junho de 1964, começa a episódio, essa relação deles, que o rapaz passou
fazer críticas à ditadura, porque a ditadura come- a vê-la quase como mãe. Depois nos anos 80, ela
çou a caçar indiscriminadamente os democratas funda uma organização chamada a Associação
declarados, como por exemplo, Juscelino entre ou- para Ensino Vocacional, que também visava pre-
tros. Dom Paulo também em 1966 começa a atuar servar a memória dos vocacionais e disseminar as
na Pastoral Carcerária e a presenciar os episódios práticas e metodologias desenvolvidas no âmbito
de tortura arbitrária que ocorrem no país, passan- das escolas e tem na tese de doutorado dela “Uma
do a fazer uma oposição à ditadura civil-militar e pedagogia para o trabalhador - o ensino vocacional
vira um dos grandes nomes da Resistência. como base para uma proposta pedagógica de ca-
pacitação profissional de trabalhadores desempre-
Então, como é que a gente entende a mudan- gados - Programa Integrar CNM-CUT13” um relato
ça na orientação política da Maria Nilde, quer dizer, do projeto que ela desenvolveu em parceria com a
ela como uma figura ligada ao meio católico, uma CUT (Central Única dos Trabalhadores) que é cha-
pessoa que não localizei para além das evidências, mado “O Programa.”
das memórias, de que ela apoiou o golpe. Embora
ela tenha negado isso, é possível, é compreensível A introdução dessa obra diz que os mais de
que ela tenha apoiado o golpe e que depois pas- 30 anos transcorridos entre o serviço de ensino
sa a ser uma crítica. A crítica do golpe da ditadura
civil-militar que Maria Nilde fez depois que acaba o 13 Pode ser encontrado em https://bdpi.usp.br/item/001054097
vocacional SEV e a coordenação pedagógica do seridos, por sindicatos de trabalhadores da CUT
73
Programa Integrar realizado pela Confederação de categorias diversas, metalúrgicos, químicos,
Nacional dos Metalúrgicos e CUT, expressam toda sapateiros, marceneiros, bancários, radialistas e
uma vida dedicada à democratização do ensino correios das cidades de Franca, Limeira, Rio Claro,
no país. No final da década de 1970, no bairro de Osasco, Carapicuíba e São Paulo.
São Mateus em São Paulo, através das relações
educacionais e do trabalho, o Renove, esse escri- Com apoio do então secretário do trabalho
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mente encontrou alguns alunos agora como diri- da iniciativa de âmbito nacional da CNM-CUT tam-
gentes do Centro de Educação, Estudos e Pesquisa bém na década de 1990, que permitiu a partir da
(CEP) e do Instituto de Estudos e Pesquisas (IEP) su- pedagogia que desenvolveu no ensino vocacional,
cedâneos da Escola Nova de Piratininga, uma inicia- estruturar um projeto de Educação dirigido aos tra-
tiva política de formação de quadros de trabalhado- balhadores naqueles tempos de predomínio liberal
construção
res, isto é, de formação de militantes politicamente e reestruturação produtiva feroz. Somente nos dois
Cadernos
preparados e profissionalmente capazes de atuar anos do governo Collor foram perdidos 25% dos
nos anos de repressão da Ditadura Militar. empregos industriais no Estado de São Paulo. No
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Estudantes). O programa apresenta os altos índi- Maria Teresa de Arruda Campos
ces de avaliação internacional, foram países que Você acha que com as universidades fede-
investiram na educação, um aspecto importante rais, institutos federais, houve uma tentativa de
de ser lembrado, que houve investimento na car- ampliação?
reira do professor, a carreira hoje nesses países é
construção
Cadernos
tão almejada quanto à carreira de médico. O vesti- Juliano Bernardino de Godoy
bular para ser professora é tão disputado quanto Existe um projeto de investimento na Educa-
o de medicina, porque a carreira é bem remunera- ção superior, a interiorização das universidades fe-
cou, a educação em consonância com projetos de do professor de Educação Básica, que “a dura pe-
desenvolvimento. Esses países tem essa noção e nas” foi implementada, mas foram iniciativas que
apresentam um projeto de desenvolvimento au- priorizaram o ensino superior. Havia um projeto de
tônomo; se formos voltar aos anos 50, as classes destaque, de ênfase de investimento na educação
experimentais são frutos de um projeto nacional- em consonância com um projeto de desenvolvi-
desenvolvimentista com seus matizes, com as
suas contradições, mas um projeto que começa
14 Programa “Ponte Para o Futuro”, proposto por Michel Temer
com Vargas e que depois encontra no Juscelino https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/uploa-
ds/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf
mento. Esse projeto pode ser caracterizado como projeto atual é um projeto neoliberal. De subordi-
76
um projeto Educacional Liberal que é para desen- nação, capitaneado por um grupo reacionário, não
volver economicamente países e até que ponto é é mais conservador é reacionário.
um projeto efetivamente emancipatório, digamos
assim, ou ele serve a interesses também de uma Participante
elite. Ainda que fosse um projeto liberal, dentro de Obrigado pelas suas contribuições. Achei fan-
um projeto liberal, você tem o Estado concedendo tástico este panorama histórico, rememorar, e me
e implementando as políticas educacionais. lembro do que trouxeram. Mesmo trabalhando, eu
trabalho em psicologia social, diálogo com famílias
Então INEP e CAPES foram instituições ca- que trazem esta questão da educação. “Que antes
pitaneadas pelo Anísio Texeira que tinham investi- até o quarto ano, era melhor” Por quê? Porque era
mento pesado em educação, nesse contexto, hoje transformador, tinha participação, de mudar a rea-
o que temos o Estado fazendo? Concebendo as lidade, de mudar os diálogos. Fui vendo o que tem
políticas, mas não implementa uma base curricular passado nas escolas de hoje, nas salas de aula,
comum, você tem a prefeitura, os Estados contra- professores sendo penalizados com violência, a
tando ONG’s que vão prestar assessoria para os questão da violação dos direitos, ou seja, direito a
professores implementarem. A secretaria do MEC, livre expressão. Essa lógica do portar e não ter mais
praticamente, a grande idealizadora da base, a Ma- cuidados, os alunos. Quais são os desafios que vo-
ria Helena Castro, concebe a base curricular comum, cês veem a frente? Que todos nós de uma forma ou
sai do MEC e vai trabalhar com o quê? Com asses- de outra teremos um desafio individual.
soria para implementar a base curricular comum.
Temáticos CRP SP
o primeiro passo é você mostrar de Educação, mesmo atuando em um programa de
pós-graduação, mas temos de nos propor, debru-
que já existiram experiências çar sobre a nossa educação e entender como foi a
históricas, interessantes e sua conformação histórica. Por onde começamos?
possíveis que podem referenciar Temos de ser instigantes, pois a realidade nos for-
construção
ça a ser este ser acomodado. Buscar ser esta pes-
Cadernos
a luta, digamos assim, o trabalho soa que instiga os outros, que incentiva a olhar, é
na atualidade. Aquele sujeito vai um pouco as alternativas que eu visualizei.
Como está hoje? Como foi o processo de criação? cação de Ensino Fundamental, Ensino Médio e En-
A Marta Suplicy não previa a criação daquilo, nas sino Superior. Há sempre uma vontade no Brasil de
propostas dela não falava do CEU. No entanto, foi destruir o que foi feito e isso é o grande problema
uma coisa que tomou uma proporção no decor- da educação no Brasil.
rer da gestão que não estava prevista. Na última
eleição para prefeito ela teve votação significativa Porque o partido A, ideologia do partido B... O
na periferia por causa do CEU, que foi uma política problema que se coloca, as bandeiras partidárias
educacional de ponta, de vanguarda. Os resulta- acima do bem comum na educação. Infelizmente,
nas vocacionais passou-se por isso, outras experi- alguém que consegue desenvolver algo, no caso
78
ências no CEU em São Paulo. Eu tive uma experiên- dos CEUs (Centro Educacional Unificado). Os CEUs
cia muito boa no vocacional no quinto e sexto ano. estão aí, foi feito uma mudança na Lei Orgânica
Na Escola Agrícola, um estudante da Escola Agríco- do município. Um plano municipal de educação,
la, e o que fizeram com a Escola Agrícola em nome ancorado de tal maneira na legislação que o Kas-
de um partido político foi muito complicado. Uma sab não conseguiu terminar, o Serra também não,
escola que era referência não só em nível de ensino, o Doria paralisou tudo, mesmo assim, você tem a
ensino básico de disciplinas, mas em nível das prá- permanência do CEU. Está sucateado, muitos dos
ticas agrícolas, o projeto que tinha aquela escola... projetos não vingaram nas unidades, especialmen-
te as mais periféricas, mas ele ainda existe. O que
Por causa de mudança de direção, não é que aconteceu com o CIEP (Centro Integrado de Edu-
quem estava no governo na época era bom ou cação Pública) do Brizola? Ganhou o nome de “Bri-
ruim, mas o que aconteceu com a escola foi total- zolão”, porque ganhou muito a marca do governo
mente desagradável. Eu estava lá como aluno, eu Brizola. Ficou sucateado, o projeto se perdeu e a
senti isso. Então o problema é esse no Brasil: a não tendência do CEU é essa, ainda que tenha sido um
continuidade de projetos que vão bem. Você pega projeto institucionalmente muito bem estabeleci-
os modelos europeus, você pega as experiências, do, mas concordo plenamente, a descontinuidade
há uma continuidade. Muda chanceler, muda pri- é um dos problemas estruturais de nossa educa-
meiro ministro, mas o projeto, política de Estado, ção. De maneira que nós não temos um sistema. O
está acima de interesses. professor Saviani diz que a característica do siste-
ma educacional brasileiro não é um sistema, dadas
Infelizmente, isso é em todo nível, partido A, as descontinuidades.
partido B, isso acontece. Há essa descontinuida-
de. Quer coisa absurda, você troca de gestão na
cidade, tem uma obra para terminar, uma pintura
de uma escola, não se termina esse trabalho na
escola porque é obra de outro partido. E a popula-
ção? E a educação? O prédio fica se deteriorando,
como por exemplo em Rio Claro, Piracicaba, Limei-
ra todas as regiões próximas, não há continuidade.
Enquanto houver esse pensamento simplista de
pensar apenas naquilo que está, a educação sim-
plesmente vai continuar desse jeito. Boas iniciati-
vas acontecem, projetos inovadores acontecem,
mas não há continuidade.
Daniel Chiozzini
Complementando sua fala, em situações de
um mesmo partido que está no poder. Se você tem
o Estado de São Paulo, o PSDB está no poder há
mais de vinte anos. Tive uma aluna que investigou
recentemente a política de educação integral de-
senvolvida pela Secretaria de Educação do Estado
de São Paulo, e é uma coisa simplesmente esqui-
zofrênica, muda o secretário, muda a política de
educação integral. Quando era o Gabriel Chalita
(2015) era uma coisa, depois entra outro secretário
é outra política e estes projetos coexistem. Hoje
você tem dois projetos coexistindo em política de
Educação Integral no Estado de São Paulo. Esqui-
zofrênica é a palavra, não é só a questão da tro-
ca de partido, em um mesmo partido você tem as
políticas concorrendo entre si, e quando você tem
A Psicologia e o Movimento 79
Estudantil: A História e as
Contribuições no Passado e no
Baseio minha fala no livro que se chama “Iara: Aprovada no vestibular, mostra-se uma inte-
Reportagem biográfica de Judith Lieblich Patarra”, lectual provocadora. Por que provocadora? Porque
Temáticos CRP SP
de 1992. Li este livro em 1992 e atualmente fiz uma ela questiona a Psicologia Experimental. Para ela,
releitura, é incrível quando fazemos uma releitura, naquele tempo, era o que nós tínhamos, só tinha
é outra dimensão. A Iara, filha de pais imigrantes Psicologia Experimental, não havia outras linhas.
judeus, avós que fugiram da I Guerra Mundial, tinha Estudei em 1970, um pouco depois dela, mas tam-
três irmãos, e com menos de 14 anos começou a bém na linha experimental. Ela já questionava o
construção
namorar. E aos dezesseis anos se casou em São por que se tinha que fazer conclusões para o ser
Cadernos
Paulo. Logo após o casamento, parou de estudar humano a partir dos estudos com os animais. Era
e retornou logo depois do fim dessa união, que uma pessoa superarticulada, começou a fazer vá-
não durou muito. Quando retornou aos estudos, rias interferências na própria classe. Então no per-
ções e pelas questões familiares. Começou a perce- para Iara, que começa a identificar a realidade que
ber coisas diferentes, pessoas que fumavam dentro estava acontecendo no país. Se hoje temos MBL
da classe, que tinham a forma de trajar diferente. (Movimento Brasil Livre), “Vem Pra Rua”, naquele
Nesta época ela estava se desinibindo, se despindo tempo havia grupo de estudantes paramilitares, e
dos padrões do colégio, padrões familiares. O livro esses estudantes, eram de várias frentes, como:
foi constituído por muitos depoimentos e muitos re- Frente da Juventude Democrática que era a favor
latos dos amigos e das pessoas que a conheceram, do Golpe, Movimento Anti Comunista e Comitê de
incluindo a família. Um deles dizia que ela conciliava Caça aos Comunistas (CCC) em todos os tempos
ternura, atitudes de vanguarda e era rebelde. teremos pessoas que vão perseguir a resistência
enquanto outros serão a resistência. entre os estudos teóricos, os conhecimentos e a
80 prática. A vida prática e a realidade social do país.
Os estudantes começam a fazer passeatas Principalmente, diz: “Uma Psicologia voltada aos
e o DOPS (Departamento de Ordem Política e So- problemas dos trabalhadores”. Introduziu na Psico-
cial), que na época era o grande centro de tortura logia essa preocupação social, essa interlocução.
de São Paulo, vai onde era a extensão da USP e Os professores não eram receptivos porque a Psi-
expulsam todos os estudantes das salas de aula, cologia era absolutamente fechada e seguia uma
destroem todas as instalações do grêmio, inclusi- cartilha e calendário dos Estados Unidos. Era uma
ve, prendem alguns deles. Tem início a grande per- Psicologia fechada e com poucas linhas, inclusive.
seguição da ditadura aos estudantes, destruindo Iara dizia: “Como entender a pessoa se não partir-
o grêmio e invadindo a USP. mos do global, da realidade em que ela vive?”.
Temáticos CRP SP
Em um treinamento no Vale do Ribeira, a Iara
quis ir neste treinamento no meio da selva, que
era um lugar inóspito. Havia muitos contrários à
ida dela. Iara tinha asma e o que ia fazer no meio
daquele pessoal, foi considerada um elo, porque
construção
a vida nesse lugar era mata fechada, eles faziam
Cadernos
um pequeno acampamento e foi ela quem trouxe a
humanidade para esse grupo. Fazia o trabalho de
atendimento, inclusive das pessoas que estavam
Em Bauru e no Brasil inteiro, os movimen- veio estudante do Ayrton Bush dormir no Stela e
tos sociais crescem e somem. Em 2013 temos um não eram escolas geograficamente perto, eram de
grande movimento nacional e em 2015 o movi- bairros totalmente diferentes.
mento dos estudantes. Eu brinco que sou filha de
2013, nasci bem prematura, mas nasci, e se forma O Stela, principalmente mais perto do Falcão,
pelo menos a galera do movimento, em 2015, mais
tínhamos um apoio maior, mais aceito socialmen-
precisamente em 2014. Quando os estudantes
te, estávamos tentando desconstruir a sociedade
do Stela15 falam “Está faltando muito professor”,
“O que é isso?” e temos alguns incentivos de ir à que estava a nossa volta. A vizinhança passava
secretaria. Acabam chamando umas escolas, o e perguntava “você sabe o que está acontecen-
Ayrton Busch16 que era o mais próximo e tínhamos do aqui?” e nós respondíamos “Está tudo bem”. A
conhecidos. E em 2015, os estudantes aderem ocupação marcou todo mundo que participou de
e apoiam a greve dos professores, que inicia em alguma forma. E tivémos em 2015 a vitória, mais
março, o movimento estudantil parte para apoiar de 600 escolas ocupadas em São Paulo, umas 300
e ir para rua também. Uma vez por semana tinha no Paraná. Saímos em um movimento estudan-
manifestação em apoio à greve dos professores, til enorme, mais de 1500 estudantes na rua, três,
a falta de concurso para professor, enfim, todos os quatro escolas juntas, andando pelas ruas.
problemas que a escola pública enfrenta.
Foi instituída em 2016 a PEC do Teto de Gas-
Na época o Geraldo Alckmin, governador, fala
tos19, e sentimos que o pensamento era diferente,
sobre a proposta de reorganização escolar, para
desocupam a escola Luiz Castanho e o Stela com
outubro mais precisamente, e no dia 17 de novem-
28 dias de ocupação, um número muito significati-
bro o Stela Machado é ocupado pelos estudantes.
vo, mas em 2016 tivemos o conflito com a polícia.
A escola de Bauru ocupada já estava com reper-
Eles trancaram os estudantes, não deixavam sair,
cussão estadual, e havia uma página que contava
ficavam pressionando, mas os estudantes só saí-
as escolas ocupadas em São Paulo e com o tempo
ram com os pais e no fim acabou em confusão com
aumentavam. Em Bauru não foi diferente, as es-
bomba e bala de borracha, mas sentimos um cará-
colas ocupadas eram o Stela, Ayrton Bush, Ferreira
ter bem diferente, o quanto a ordem de “não pode
de Meneses17 e o Luiz Castanho18. Não sabíamos
ocupar de novo” era real, e tínhamos que acabar.
muito de política.
Não foi uma derrota, porque ocupar uma escola
24 horas é algo muito forte, não é fácil, existe uma
Lembro-me de uma cena: estávamos na pra-
questão muito maior, mas quando voltamos das
ça, no Stela, um dia à noite todos conversando e
ocupações, tivemos represália total, inclusive com
um menino que estava na ocupação fala “mas o
alguns professores contra. No Stela conseguimos
que é esquerda? O que é comunismo?” Sabemos
fazer com que o grêmio não fosse mais o modelo
daquilo que aprendemos. O que é? Não sabemos.
que o Estado manda, e sim um modelo colegiado,
É muito forte para mim, sentamos em uma roda
mais humano, conseguimos separar uma sala que
e começamos a conversar, ninguém sabe direito,
era uma das nossas condições para desocupar,
mas estamos crescendo, e foi o que marcou muito,
uma sala do grêmio e total autonomia como grê-
o quanto a gente cresceu. É claro que fazer o go-
mio na escola.
vernador voltar atrás foi muito gratificante, mas a
marca foi do quanto crescemos na ocupação, hou-
Durante as ocupações, houve momentos de
ve um intercâmbio entre as escolas. Eu lembro que
descontração como comprar pizza com ajuda de
doações, também momentos como “todo mundo
colocar saia, os meninos também,”, até “quebran-
15 Escola Estadual Stela Machado
do” um pouco o machismo. Dividíamos as tarefas
16 Escola Estadual Prof° Ayrton Busch
Cadernos
Psicologia e o resgate da memória: diálogos em
Cadernos Temáticos CRP SP Temáticos CRP SP
construção
84 Sophia Miranda de Paula
Psicóloga pela UNESP-Bauru, Especialista em Psicologia e Educação com título obtido
pela Universidade Paulista - campus Vergueiro em 2018 e com mestrado em andamento
na PUC- campus Perdizes. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em
Psicologia Escolar, Psicologia Social e Psicologia Organizacional e do Trabalho.
Diversos colegas participaram dos mesmos pro- já mudou e você está em outro lugar. Então nesta
cessos que vou relatar aqui, contribuí para recons- época que antecedeu o processo de reorganiza-
truir esta história. Queria agradecer o convite do ção, existia uma proposta do Governo do Estado
CRP da Subsede de Bauru, é um prazer voltar aqui de São Paulo e uma contraposição, a exigência dos
para esta cidade. Especialmente à Maria Orlene movimentos de cotas. Cotas sempre foi uma luta
Daré e à Tania, muito solícitas e disponíveis para
histórica nossa. O governo do Estado propôs um
tirar muitas dúvidas, obrigada.
programa de ingresso ao ensino superior que era o
PIMESP (Programa de Inclusão com Mérito no Ensi-
Esse é um tema muito importante: Conhe-
no Superior Público Paulista), uma proposta absur-
cer um pouco da história da Iara, e ouvir sobre o
da de que os estudantes iriam passar por um curso
movimento estudantil aqui de Bauru, o movimento
técnico de dois anos, que geraria uma pontuação
secundarista. Ajuda no objetivo do GT, que é re-
da qual se poderia ingressar na universidade. O
construir a história da luta pelos direitos. Quero
título que você teria era um título de cidadania.
trazer um pouco de como cheguei aqui, na verda-
de é o que me foi pedido para falar, pois a atua-
Era tão sórdida a proposta que os estudan-
ção política reverbera nas nossas subjetividades
tes não eram considerados cidadãos. Você preci-
e o quanto não está dissociada da nossa atuação
saria fazer um curso de dois anos para ser con-
profissional. É especial estar aqui, pois foi onde
siderado cidadão brasileiro. Essa coisa esdrúxula,
iniciei minha carreira acadêmica e minha militância
dessa proposta do governo de São Paulo nos le-
política, vir a Bauru me faz lembrar do movimen-
vou a um debate mais profundo sobre as cotas.
to estudantil e da universidade. Um pouco do que
antecedeu este processo de 2015 que, na Unesp,
Os vários campi da Unesp se mobilizaram
o período é um pouco de 2010 a 2015, é o período
para debater se as cotas são uma parte do pro-
que estávamos lá. O processo da luta na universi-
cesso, da discussão no movimento estudantil que
dade traz muito esse debate sobre a nossa própria
é muito importante, lutamos e conseguimos barrar
formação e o nosso curso.
esse bimestre. Na Unesp, não sei se foi a primei-
ra das estaduais, mas concluiu as cotas uma pro-
Na Unesp o centro acadêmico da Psicologia
gressão de 50% das vagas. A USP foi sequente, a
é uma referência dentro da universidade e tam-
Unicamp, a Unifesp todas as universidades esta-
bém a luta que compõe os espaços conjuntos do
vam articuladas em torno deste debate. Tivemos
movimento. O que nos atinge diretamente, como
um grande levante de estudantes pelos campi, que
escola, como curso ou universidade, nos toca mais
se articularam a partir desta pauta específica, em
profundamente para que a gente pense sobre nos-
um processo de greve e ocupação.
sa formação “Qual é o caminho que vai ser percor-
rido?” Essa dimensão do imediato, o que nos toca
As ocupações das escolas foram capilari-
imediatamente, como é a falta de professor, é pa-
zadas no Estado e tinham várias trocas entre os
pel higiênico que não tem no banheiro, com a com-
campi. A Unesp é estruturada a partir desta capi-
plexidade da compreensão. Desde os professores,
larização pelo Estado e na verdade é uma estraté-
eu consigo pensar no investimento da universida-
gia, inclusive, de fortalecer a desorganização. Por-
de para a permanência estudantil, esse movimen-
que são pequenos campi com cursos específicos e
to, essa dialética que torna ícone o movimento.
não juntam muitos cursos de humanas. Acho que
os campi que tem mais cursos de humanas são
Neste período histórico bem curto, o movi-
os de Marília e Assis, mas tem campus como Ou-
mento é muito rápido, o da escola talvez mais pro-
rinhos que tinha dois cursos, ou apenas um. Essa
longado, mas começamos a atuar mais próximo do
estratégia que foi realizada durante o processo
Ensino Médio. Em três anos, sua vida já mudou e
da Ditadura, colocou como plano essa formação
você está em outro lugar. Em cinco anos, sua vida
da universidade. Este grupo que participou, dos porque isso faz parte de um projeto no Brasil como
85
Centros Acadêmicos, dos Diretórios Acadêmicos e um todo. A nossa formação política é intensa, é o
dos grupos como eram chamados CUBE (Conselho resultado da vivência. A vivência exigia essa ne-
das Entidades Universitárias de Bauru), da Unesp cessidade da formação, e a formação exigia que
de Bauru se reuniam semanalmente para debater ressignificássemos o que estávamos fazendo,
como isso reverbera em nós mesmos. porque mudava a nossa estratégia. Desafiou-nos
a pensar em estratégias de sobrevivência, segu-
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Para vocês entenderem a gravidade da per- “A nossa formação política
manência, esse campus da Unesp tem vagas de é intensa, é o resultado da
32 moradias para o maior campus da Unesp. Isso
é muito processo de exclusão do trabalhador na vivência. A vivência exigia essa
universidade pública. Não tem permanência e nos necessidade da formação,
construção
mobilizamos por isso, a favor das cotas, contra os e a formação exigia que
Cadernos
cortes na educação. Nos vinculamos com o espa-
ço de uma forma totalmente diferente. Apesar de ressignificássemos o que
estávamos fazendo, porque
do Estado. E isso nos fazia entender as várias de- temológicas, construímos nossa compreensão de
terminações da educação pública superior. homem, da realidade, das instituições, entendendo
que esse sujeito, nós aqui nos formamos a partir
A partir disso compreendemos que existia de uma relação dialética.
um projeto de educação que estava sendo imple-
mentado no Brasil, de uma educação neoliberal, a Internalizamos essa realidade e expressa-
educação como mercadoria. Não é estranho que a mos nas nossas relações, na nossa concepção de
universidade pública esteja na situação que está, mundo, na nossa ideologia, nas nossas condições
materiais. Em relação constante com o mundo ob-
86
jetivo, com o mundo coletivo, com o mundo social.
Atuamos com esse universo e essa nossa atuação “Entender que a realidade é
por meio do trabalho afeta a nossa própria cons- injusta, não requer que você
trução. Para mim é quase uma poesia falar nisso,
porque é bonito de pensar que nós construímos as
seja um revolucionário. É só você
nossas relações com o mundo, e não vem pronto ter um pouco de sensibilidade
e acabado, isso nos ajuda, pelo menos temos a para ver o que está em seu
perspectiva da transformação, se não pudésse-
mos nos transformar que tristeza seria a realidade.
entorno. (...) Não significa que
Essa relação dialética pela nossa atividade com a não exista uma compreensão
realidade é que vai construindo nossos registros. da desigualdade, mas o que
desencadeia um processo de
ressignificação e transformação
dos sentidos é essa nossa
“É bonito de pensar que nós relação com a atuação política
construímos as nossas relações profunda“.
com o mundo, e não vem pronto
e acabado, isso nos ajuda, pelo O engajamento dos projetos coletivos, como
menos temos a perspectiva projeto coletivo de sociedade, acredito em um pro-
da transformação, se não jeto revolucionário. Vinculo meu projeto de vida a
esse projeto coletivo. Entendo que minha atuação
pudéssemos nos transformar profissional poderia estar vinculada a esse projeto
que tristeza seria a realidade.“ coletivo de sociedade. Muitas decisões que faço
em minha vida estão mediadas por essa decisão
de que esse projeto coletivo faz sentido. Não dá
Então, o homem ascende desse ser ativo, so- para acreditar que em uma organização revolucio-
cial, histórico e vai construir a sua forma de pensar, nária só existe o “nós,” o “eu,” e esse eu, é fortale-
sentir, agir à sua consciência. Entendendo esses cido o tempo todo pela sociedade. O individualis-
pressupostos básicos, atuamos politicamente, a mo está colocado com pressuposto de um projeto
partir de uma atividade de ocupação, de discussão, de sociedade capitalista e criamos uma alternati-
de debate e essa atividade vai reverberar na nos- va para “eu” que pode ser coletivo, pode ser justo,
sa construção, ela vai ser internalizada na nossa pode ser revolucionário.
subjetividade construindo seus próprios registros.
Não tem como passarmos por essas experiências, Durante um estudo sobre o movimento se-
sem isso necessariamente, não nos colocar como cundarista, de ocupação, de ação, percebi como
militantes pela vida inteira. foi importante para os estudantes ressignificarem
o sentido da escola, o sentido pessoal da escola,
Cada um segue a sua desde que, no espaço como foi para nós a ocupação da Rua Campos
onde estiver, consiga contribuir de alguma forma Sales, em que os estudantes bloquearam o cruza-
e é natural que isso aconteça. Cada um vai seguir mento das ruas Castro Alves e Campos Sales du-
seu caminho, mas essa relação de atuação política rante duas horas. Autoquestionar através de outra
vai nos constituindo e o caminho que vamos per- lógica, isso altera nossa relação com o espaços:
correr não depende só de uma compreensão racio- como os estudantes terem que limpar, cozinhar,
nal da realidade. Entender que a realidade é injusta organizar, pensar na segurança, fez com que este
não requer que você seja um revolucionário. É só processo fosse uma vivência significativa e pudes-
você ter um pouco de sensibilidade para ver o que se ressignificar os sentidos que dão para aquele
está em seu entorno. Só que a ideologia dominan- espaço, para educação. Essa alteração profunda
te nos faz acreditar que as coisas são desta forma no cotidiano, muda essa relação com os espaços.
e não podem ser mudadas. Não significa que não
exista uma compreensão da desigualdade, mas o
que desencadeia um processo de ressignificação
e transformação dos sentidos é essa nossa rela-
ção com a atuação política profunda.
Debates quando questionado em relação às violências. Por
outro lado, os espaços das universidades, das es-
87
Giovana Moreira Sanches colas são de muita potência para a organização.
A transformação do espaço era muito espe- As federais estão se organizando, enfim será um
cial tanto que no Stela nós pintamos, fizemos vá- cenário de muita polarização, muitos destes gru-
rios desenhos. Enfim, a transformação do espaço é pos extremistas surgindo de forma mais aberta.
muito bacana, o quanto isso traz e volta para a es-
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guns estudantes foram doutrinados por determi-
nadas ideologias. Como vocês veem este cenário?
Maria Orlene Daré
Em que momento perdemos esse jovem que Fico um pouco preocupada, não só com a ca-
estava na ocupação e vota no Bolsonaro? O que tástrofe, com a tragédia. O que me preocupa tam-
construção
aconteceu? Cada um segue seu caminho. A ocu- bém não é o Bolsonaro, são os “Bolsonarinhos”.
Cadernos
pação não foi o suficiente? Será que erramos? Por Porque vão ter “Bolsonarinhos” na portaria do seu
outro lado, em toda história da esquerda existem prédio, porque a mídia vai ajudar perfeitamente,
altos e baixos. Acredito que a direita e o fascismo como na ditadura se fazia muito isso. Era assim,
Bolsonaro, e organizavam ações contra. Surgiram não sabemos o que fazer, as nossas estratégias
atos de fiscalização como o MBL (Movimento Bra- precisam mudar. O policial já estava preparado
sil Livre), páginas como a de uma deputada do PSL para levar a galera presa no ônibus, o governo
(Partido Social Liberal) que ensina os estudantes a aprendeu que não podem nos deixar livre. Teremos
gravarem os professores e o que fazer com as gra- de reinventar outra estratégia, acho que essa difi-
vações, mas acredito que eclodirá um pouco dessa culdade que estamos enfrentando é de se organi-
superfície mais autônoma. Como Bolsonaro falou: zar para pensar no novo.
“ Eu não me responsabilizo pelos meus eleitores”
88 Renan César Leite Costa O quanto para nós enquanto Psicologia, como nós
Essa ação que estávamos democraticamen- pensamos? Há efeitos terapêuticos? Que efeitos
te exercendo ficará mais complicada. A institucio- terapêuticos têm ou podem ter no engajamento,
nalidade vai dar à polícia esse papel de arrancar, no coletivo, no movimento social que tem a vivên-
levar, prender e os efeitos colaterais vem depois. cia e potência de transformação social. Será que
Isso é um pouco assustador de pensar, mas eu tem efeito? Segundo Boulos, ele fez uma pesquisa
queria voltar para a questão dos afetos. Acho que brilhante, quantitativa e qualitativa, trouxe clara-
este é um momento particular, importante. Reunir- mente a redução do sintoma depressivo em todos
mo-nos com os pares, e trocar angústias. Quem aqueles que participaram, e que estão engajados.
está atuando na clínica, vê que as pessoas estão Ele focalizou no Movimento dos Sem Teto, mas nós
com essas demandas de angústia e sofrimento, enquanto coletivo ou com nossa experiência de
incertezas com estas mudanças. Subjetivamente participação acreditamos em um efeito terapêuti-
não pode se deixar tragado por essa situação, en- co também? Queria dizer que, sem dúvida nenhu-
tão é importante isso. Portanto, vejo o momento ma, é superimportante o que você fala, porque a
da ocupação da Unesp com muito carinho por di- gente tem de resgatar a história e conhecer a his-
versas razões. Estava voltando para Bauru, acho tória, é nossa identidade. Além da Iara que foi as-
que peguei a ocupação no final. Eu havia termina- sassinada, nós temos ainda outros psicológas/os
do de trancar o mestrado e vim para Bauru, a ga- que foram assassinados, a Aurora Maria do Nas-
lera estava ocupando o Restaurante Universitário, cimento Furtado, Marilena Vilas Boas, Paulinho,
já tinha participado, do segundo ano até o último Felipe, Liliana Gomes Goldenberg, Idalício Soares,
ano, do Centro Acadêmico, Diretório Acadêmico José Dalvo Ribeiro Ribas, Luis Celso entre outros
de uma vivência, eu procurei ter o cuidado de ob- na Ditadura. A psicologia se aliou muito ao poder
servar. Primeiro foi muito legal, aquela galera que vigente da ditadura e fez uma aliança horrível por-
chegava nas rodas de discussões, completamente que ela se manteve neutra. E afirmou a Psicologia
imatura, ver que cresceu, era bacana de ver a orga- como uma ciência neutra, que não tinha nada a
nicidade que tiveram na ocupação. Não chegamos ver com o que estava acontecendo, negando as
a ter nenhum outro movimento que se comparou torturas, deu título de psicólogo para o Garrasta-
ao acontecido. Eu passei por isso, eu os vi passan- zu Médici (Presidente da ditadura de 1964, Emilio
do por isso, quem vive um movimento assim, co- Garrastazu Médici). A Psicologia nasceu da aliança
meça tomar conta da realidade e aquilo vai mexen- com a ditadura, e ganhou em termos de se oficia-
do com você. É um salto qualitativo de mudança lizar, porque ela tinha realmente muita compatibi-
muito importante. Não só o movimento estudantil, lidade com que estava acontecendo, não se opôs,
também a militância tem um pouco disso: sacode, aceitou o que estava acontecendo, estava compa-
dá uma “porrada” e você sai do lugar. É uma expe- tível. Depois, felizmente entrou no cumprimento e
riência bem forte que marca mesmo! se fez presente. Ainda nós temos chance, chance
em função desta história de conseguir, nos colo-
carmos politicamente, nos posicionar politicamen-
Maria Orlene Daré te enquanto Ciência e Profissão, enquanto projeto
A Iara nos dizia o significado que tem as re-
político. Acho que isso nós temos que garantir, são
lações afetivas e que elas não podem ser abando-
vocês que vão garantir.
nadas nunca. Ela não entendia “Que revolucionário
é esse que despreza as relações afetivas? O que
é isso?” Quando você despreza, está desprezando
toda sua vivência com o outro. A dissertação de
mestrado do Guilherme Boulos é sobre uma vincu-
lação entre os efeitos terapêuticos, que no caso
dele foi o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST), ele fez especificamente na dissertação
esse enfoque “Estudo sobre a variação de sinto-
mas depressivos relacionada à participação cole-
tiva em ocupações de sem-teto em São Paulo”20.