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cadernos temáticos CRP SP


Álcool e outras drogas:
subsídios para sustentação da política
antimanicomial e de redução de danos
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região - CRP 06

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cadernos temáticos CRP SP
Álcool e outras drogas:
subsídios para sustentação da política
antimanicomial e de redução de danos

CRP 06 · São Paulo · 2019 · 1ª Edição


Caderno Temático n° 30 – Álcool e outras drogas: subsídios para sustentação da política antimanicomial
e de redução de danos

XV Plenário (2016-2019)

Diretoria
Presidenta | Luciana Stoppa dos Santos
Vice-presidenta | Larissa Gomes Ornelas Pedott
Secretária | Suely Castaldi Ortiz da Silva
Tesoureiro | Guilherme Rodrigues Raggi Pereira

Conselheiras/os
Aristeu Bertelli da Silva (Afastado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Clarice Pimentel Paulon (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Ed Otsuka
Edgar Rodrigues
Evelyn Sayeg (Licenciada desde 20/10/2018 - PL 2051ª de 20/10/18)
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria das Graças Mazarin de Araújo
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Maurício Marinho Iwai (Licenciado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Mary Ueta
Monalisa Muniz Nascimento
Regiane Aparecida Piva
Reginaldo Branco da Silva
Rodrigo Fernando Presotto
Rodrigo Toledo
Vinicius Cesca de Lima (Licenciado desde 07/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)

Organização do caderno
Ed Otsuka, Annie Louise Saboya Prado e Fernanda Zanetti Cinalli Giovanetti | Núcleo de Saúde do CRP SP

Projeto gráfico e editoração


Paulo Mota | Relações Externas CRP SP

Fotos
iStock

___________________________________________________________________________
C755p Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência. Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2019.
52 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 29)

ISBN: 978-85-60405-53-4

1. Psicologia e Pessoas com Deficiência. 2. Direitos das Pessoas com


Deficiência. 3. Direitos Humanos. 4. Rede de Atendimento às Pessoas com
Deficiência. 5. Direitos às Acessibilidades de Pessoas com Deficiência. I. Título

CDD 157.8
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.

Essa iniciativa atende a vários objetivos. O primeiro deles é concretizar


um dos princípios que orientam as ações do CRP SP, o de produzir referências
para o exercício profissional de psicólogas/os; o segundo é o de identificar
áreas que mereçam atenção prioritária, em função de seu reconhecimento
social ou da necessidade de sua consolidação; o terceiro é o de, efetivamente,
ser um espaço para que a categoria apresente suas posições e questiona-
mentos acerca da atuação profissional, garantindo, assim, a construção co-
letiva de um projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como
ciência e como profissão.

Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de maneira


a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas pelo CRP SP, que
contaram com a experiência de pesquisadoras/es e especialistas da Psicolo-
gia para debater sobre assuntos ou temáticas variados na área. Reafirmamos
o debate permanente como princípio fundamental do processo de democrati-
zação, seja para consolidar diretrizes, seja para delinear ainda mais os cami-
nhos a serem trilhados no enfrentamento dos inúmeros desafios presentes
em nossa realidade, sempre compreendendo a constituição da singularidade
humana como um fenômeno complexo, multideterminado e historicamente
produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse sentido, um convite
à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida a psicólogas/os, bem
como aos diretamente envolvidos com cada temática, criando uma oportuni-
dade para a profícua discussão, em diferentes lugares e de diversas maneiras,
sobre a prática profissional da Psicologia.

Este é o 30º Caderno da série. Seu tema é: Álcool e outras drogas: subsí-
dios para sustentação da política antimanicomial e de redução de danos.

Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto, trazendo


para o espaço coletivo informações, críticas e proposições sobre temas rele-
vantes para a Psicologia e para a sociedade.

A divulgação deste material nas versões impressa e digital possibilita


ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão sobre o compro-
misso social de nossa profissão, reflexão para a qual convidamos a todas/os.

XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo


Os Cadernos já publicados podem ser consultados em www.crpsp.org.br:

1 – Psicologia e preconceito racial


2 – Profissionais frente a situações de tortura
3 – A Psicologia promovendo o ECA
4 – A inserção da Psicologia na saúde suplementar
5 – Cidadania ativa na prática
5 – Ciudadanía activa en la práctica
6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional
7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
8 – Dislexia: Subsídios para Políticas Públicas
9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio: impasses e alternativas
10 – Psicólogo Judiciário nas Questões de Família
11 – Psicologia e Diversidade Sexual
12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas
13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade
14 – Contra o genocídio da população negra: subsídios técnicos e teóricos para Psicologia
15 – Centros de Convivência e Cooperativa
16 – Psicologia e Segurança Pública
17 – Psicologia na Assistência Social e o enfrentamento da desigualdade social
18 – Psicologia do Esporte: contribuições para a atuação profissional
19 – Psicologia e Educação: desafios da inclusão
20 – Psicologia Organizacional e do Trabalho
21 – Psicologia em emergências e desastres
22 – A quem interessa a “Reforma” da Previdência?: articulações entre a psicologia e os direitos das trabalhadoras e trabalhadores
23 – Psicologia e o resgate da memória: diálogos em construção
24 – A potência da psicologia obstétrica na prática interdisciplinar: uma análise crítica da realidade brasileira
25 – Psicologia, laicidade do estado e o enfrentamento à intolerância religiosa
26 – Psicologia, exercício da maternidade e proteção social
27 – Nossa luta cria: enfrentar as desigualdades e defender a democracia é um dever ético para a Psicologia
28 – Psicologia e precarização do trabalho: subjetividade e resistência
29 – Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência
Sumário

07 Introdução
Núcleo de Saúde do CRP SP

09 Contexto social e histórico das drogas: múltiplos


usos, racismo e repressão do proibicionismo do Estado
Ed Carlos Farias
Ed Otsuka

19 Práticas em Redução de Danos


Annie Louise Saboya Prado
Ed Otsuka

25 Comunidades Terapêuticas: espaço árido para o cuidado


e fértil para violações de diretos humanos
Ed Otsuka
Annie Louise Saboya Prado

33 O Sintoma Social do uso de Álcool e outras Drogas e


as Pessoas em Situação de Rua
Juliana Leite Godoy Veneziani Silva
Fernanda Zanetti Cinalli Giovanetti
Evelyn Sayeg (Frente Estadual Antimanicomial)
Edvaldo Gonçalves de Souza (Movimento Nacional de População de Rua)
Anderson Miranda (Movimento Nacional de População de Rua)
37 Drogas e gênero: denúncias, construção de redes de
cuidado, afeto e redução de danos entre mulheres,
uma perspectiva feminista e antiproibicionista
Amanda Araújo Amorim (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas)
Gleica Rodrigues Tomasoni (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas)
Juliana Vicente de Freitas (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas)
Emanoela Priscila Toledo Arruda
Caroline Cusinato

45 Da situação irregular aos sujeitos de direitos: será


que avançamos na ausência de sentimento de uma
particularidade infantil quando tratamos do uso
de álcool e outras drogas na infância e juventude
brasileiras?
Cláudia Capelini Picirilli

53 Algumas considerações sobre as práticas


intersetoriais e a temática de álcool e outras drogas
Fernanda Zanetti Cinalli Giovanetti

59 Financiamento: pelo investimento em Infraestrutura e


incremento da rede
Fernanda Zanetti Cinalli Giovanetti
Rafael Cislinschi
Rodrigo Pressotto
Introdução 7

Núcleo de Saúde do CRP SP

de danos
Psicologia em emergências e desastres

antimanicomial
Psicologia
da política e desastres
e de redução
em emergências
O Caderno Temático Álcool e outras Drogas é uma de foi intransigente com a proposta de discus-

desastres
para sustentação
produção do Núcleo de Saúde do CRP, finalizando são destes textos-base com os atores sociais,

Cadernos Temáticos CRP SP

eCRP SP
um percurso de intensas discussões e debates so- movimentos e demais interessados em participar
bre a temática que envolveram os encontros deste da construção coletiva deste Caderno e, assim,

Temáticos
em emergências
Núcleo de 2016 a 2019. Neste período, observou- em 13/07/2019 foi realizado no auditório da sede
se cada vez mais a necessidade e urgência de se do CRP SP o evento “Construção Coletiva de Ca-

subsídios
tratar deste tema, levando-se em conta, especial- derno Temático sobre Álcool e outras Drogas:

Cadernos
mente, o cenário político atual, os retrocessos e cuidado e política”, sendo convidados para parti-
as retiradas de direitos básicos e humanos, que cipação diversos movimentos sociais e serviços

Psicologia
drogas:
incidem fortemente na política de saúde mental, envolvidos com a área AD e divulgado nas redes
álcool e outras drogas. Compreendeu-se a neces- sociais e site do Conselho. Entende-se que cons-

e outras
sidade de um posicionamento técnico, ético e po- ta aí exatamente a riqueza e a singularidade da
lítico que pudesse elucidar, em tempos nebulosos, construção deste Caderno Temático.
o papel da(o) psicóloga(o) diante da complexidade

CRP Álcool
da temática de álcool e outras drogas, ao mesmo Assim, o texto-base foi publicizado e todos

SP
tempo que pudesse se constituir como um posi- os presentes manifestaram interesse sobre os ca-
cionamento político, podendo auxiliar discussões pítulos ou temas que tivessem interesse em discu-

Temáticos
e sustentações nos serviços e espaços de con- tir e contribuir. Foram realizados pequenos grupos

SP
trole social tanto para psicólogas(os) quanto para de discussão para cada tema/capítulo no período

CadernosCRP
gestores, usuárias(os), pesquisadores, militantes, da manhã e no período da tarde foi realizada uma
Cadernos Temáticos
equipes multiprofissionais e instituições. plenária para a discussão geral dos temas e con-
tribuições finais para o texto.
Para tanto, o Núcleo de Saúde partiu de um
Buscou-se contemplar alguns temas e dis-
processo de elencar temas principais e realizou a
cussões principais e garantir minimamente sub-
construção de textos-base sobre cada temática
sídios para provocar, fomentar e sustentar cons-
que foi compreendida como relevante para uma
truções, saberes e práticas. Com a publicação
discussão ética e política. Esta construção se deu
deste Caderno, reafirma-se que o CRP SP, via Nú-
a partir de textos autorais, sustentados por re-
cleo de Saúde, não recua diante dos retrocessos
ferências bibliográficas e produções técnicas da
e pretende garantir um posicionamento político a
área, bem como do acúmulo de seus membros, do
favor das Políticas Públicas, congruentes com a
Núcleo de Saúde e do CRP SP.
Reforma Psiquiátrica Antimanicomial e Política de
Na busca para que a sustentação ética e de Redução de Danos, constituindo assim um impor-
dispositivos de controle social não estivessem tante material de sustentação e defesa intransi-
somente no conteúdo do texto, o Núcleo de Saú- gente de Direitos Humanos.
Contexto social e histórico das drogas: 9

múltiplos usos, racismo e repressão do


proibicionismo do Estado

de danos
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e de redução
Ed Carlos Farias

em emergências
Ed Otsuka

antimanicomial
Psicologia
da política
O uso de drogas sempre acompanhou a humani- também usos ritualísticos, como o da Ahyuhasca
dade, não por acaso, existem mais de 200 tipos de ou do veneno do sapo kampo, ambos advindos de
compostos orgânicos pelo mundo capazes de al- povos indígenas amazônicos, ou da jurema, de tra-

desastres
para sustentação
terar a percepção, sensação e humor. A busca por dição indígena do nordeste brasileiro.

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
alterações do estado de consciência é observada

eCRP
não somente em humanos, mas também no reino

Temáticos
em emergências
animal, por isso é considerada uma necessidade bá- “A importância histórica e
sica (Torcato, 2016). No entanto, é um tema bastan-
econômica das drogas no mundo

subsídios
te controverso, se, por um lado, os usos medicinais,
é inegável. No Brasil, um dos três

Cadernos
ritualísticos e recreativos das drogas são parte ine-
rente à humanidade, por outro, o uso problemático símbolos nacionais, segundo a

Psicologia
drogas:
de drogas é um fenômeno que desafia a atuação da
Constituição de 1988, é o Brasão de
Psicologia e outros campos do conhecimento e está
Armas. Nele podemos ver o ramo de

e outras
relacionada a situações de importante sofrimento.

Antes de afirmar o que a Psicologia tem a


duas plantas usadas com finalidade
psicoativa: o café e o fumo”

CRP Álcool
dizer sobre esse assunto, é imprescindível con-

SP
textualizar o tema das drogas. Os registros mais
antigos de uso de drogas datam de milênios. Uma

Temáticos
pesquisa recente comprovou que chineses fuma- A importância histórica e econômica das dro-
vam cannabis há 2,5 mil anos. Há provas de que a gas no mundo é inegável. No Brasil, um dos três sím-

SP
planta era cultivada muito antes disso, mas esse é bolos nacionais, segundo a Constituição de 1988, é o
CadernosCRP
o registro mais antigo de fumo para uso psicoativo Brasão de Armas. Nele podemos ver o ramo de duas Cadernos Temáticos
(Ren, Tang et al, 2019). A primeira referência no Oci- plantas usadas com finalidade psicoativa: o café e o
dente foi feita pelo filósofo Heródoto, que descre- fumo. O símbolo foi criado a pedido do primeiro pre-
veu que a sementes de canhâmo eram colocadas sidente, Deodoro da Fonseca, os ramos que já esta-
entre as pedras incandescentes de saunas em um vam na bandeira do Brasil Imperial se mantiveram no
rito funerário do povo Cita (Carneiro, 2002). Brasão da República devido à importância econômi-
ca que essas produções tiveram na história do país.
A relevância do uso de drogas pela huma-
nidade é comprovada não somente por esses A proibição do uso, produção e comércio
exemplos de usos milenares, mas também por de algum tipo de droga é algo relativamente re-
sua constância. Existem diversos usos de diferen- cente na história da humanidade, as primeiras
tes drogas nas mais distintas comunidades, por proibições se deram no século XIX. No Brasil, a
exemplo, a folha de coca entre os povos Quechua, primeira droga proibida foi a cannabis, em 1830,
ou Incas, da América do Sul, e o uso do mate, de pela Câmara do Rio de Janeiro. A proibição ti-
tradição guarani, incorporado à tradição gaúcha, nha caráter racista, pois a droga era conside-
ambos usados no cotidiano por essas culturas. Há rada um costume da população negra e proibir
o que a lei se referia como “pito de pango” era Dória se referia às nações africanas como
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uma das formas de criminalizar essa população. “selvagens”, associava a maconha com crimes
O branco que descumprisse tal lei pagaria uma e violência, a denominava “fumo d’Angola” e
multa, o negro seria preso por determinado pe- citava outras denominações como “liamba” e
ríodo (Henman, 2016). “pito de pango” (Dória, 2016, pág. 66). Defen-
dia a tese de que da mesma forma que o ópio
se espalhou pela Europa como uma espécie de
“A proibição tinha caráter racista, maldição pela Inglaterra ter subjugado os chi-
neses, a maconha se espalhou pelo Brasil como
pois a droga era considerada
castigo pela escravidão. Ele separava o Brasil
um costume da população negra entre uma camada que ele denominava como
e proibir o que a lei se referia educada e civilizada e uma camada mais bai-
xa, que ele descrevia ser composta por negros,
como ‘pito de pango’ era uma
mestiços e indígenas, nesta camada estariam
das formas de criminalizar essa as pessoas que ele acreditava serem viciadas
população” em maconha, seus estudos criminais se basea-
vam nas noções de Lombroso, ou seja, relacio-
nava características anatômicas étnicas a prá-
ticas criminais (Saad, 2013).
Juliana Borges (2017) aponta que o racis-
mo no primeiro código penal brasileiro, de 1830,
estava expresso de uma forma tão nítida que
as penalizações eram distintas para brancos e
“Ele separava o Brasil entre uma
negros, mesmo se o negro estivesse liberto. camada que ele denominava
como educada e civilizada e
“As penalizações eram distintas uma camada mais baixa, que
para brancos e negros, mesmo ele descrevia ser composta por
se o negro estivesse liberto” negros, mestiços e indígenas”

José Rodrigues Dória seria mais um aristo-


No entanto, o racismo por trás da proibi-
crata brasileiro, com noções racistas e higienis-
ção dessa e de outras drogas não se relacio-
tas, porém sua relevância para o tema se dá por
na somente a essa primeira proibição, ainda no
sua influência política no país. Em 1915, repre-
tempo em que negros eram legalmente escravi-
sentou o estado da Bahia no Segundo Congres-
zados no Brasil. Vale aqui destacar um persona-
so Científico Pan-Americano em Washington,
gem da história do Brasil, José Rodrigues Dória,
tendo corroborado os argumentos que seriam
que, entre outros cargos, foi presidente de Ser-
usados posteriormente para a proibição da dro-
gipe, deputado federal e catedrático de Medici-
ga a nível mundial. Suas noções conservadoras
na Legal na Faculdade de Medicina da Bahia, e
e naturalistas o levava a defender ainda que
viveu entre o final do séc. XIX e início do séc. XX
mulheres seriam menos inteligentes, propensas
(Saad, 2013).
a sentimentos irracionais e que sua capacida-
de se limitava à reprodução, e, com base nisso,
como deputado, se colocou contrário ao voto
“Dória se referia às nações feminino (Saad, 2013).
africanas como ‘selvagens’, As bases para a proibição de drogas já
associava a maconha com existiam no Brasil e no mundo, no entanto, a
crimes e violência, a denominava sustentação ideológica para a proibição legal
surge nos EUA, com o movimento proibicionista,
‘fumo d’Angola’ e citava outras que tinha como principal bandeira a proibição do
denominações como ‘liamba’ e uso, produção e distribuição de bebidas alcoóli-
‘pito de pango’” cas. Em 1920, ocorre a promulgação da Lei Seca,
que conferiu ao álcool o status de droga ilícita
naquele país. Entre 1920 e 1934 as consequên- maconha e os negros com a heroína. E então
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cias foram desastrosas: aumento da criminali- criminalizaríamos fortemente ambas, assim
dade, violência. A proibição fez que aumentasse poderíamos enfrentar essas comunidades [...]
o lucro sobre esse comércio, formando muitas nós poderíamos prender seus líderes. Invadir
das fortunas estadunidenses, como da família suas casas, interromper suas reuniões, e difa-
Kennedy. Se formaram problemas decorrentes má-los. (CNN, 2016)

de danos
do uso do álcool, que passou a ser produzido

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
A “Guerra às Drogas”, então, segundo Ehr-
sem qualquer controle, até que Roosevelt é elei-
lichman, foi conscientemente usada para re-
to tendo como uma de suas principais bandeiras

e de redução
primir e criminalizar os movimentos de contra-
a legalização do álcool (Carneiro, 2002).
cultura e promover o extermínio do movimento

em emergências
Em 1900, os EUA iniciam e lideram uma negro na luta por seus direitos.
campanha global pela supressão do ópio, em
Em 1998, a ONU ratificou as Convenções-

antimanicomial
que aconteceram diversas ações encabeçadas
Irmãs como também estabeleceu a meta de er-
pelos EUA com o intuito de influenciar a proi-
radicação do cultivo de plantas e vegetais para
bição das drogas na política externa. Até que,

Psicologia
a produção de drogas ilícitas. O plano de ação
em 1946, foi criada pela ONU a Comissão de
da UNGASS 1 estabelecia o ano de 2008 como
Narcóticos (CDN), com a atribuição de formular

da política
prazo para o alcance dessa meta e intitulava-se
políticas para o fortalecimento do sistema de
Um Mundo Livre de Drogas: Nós Podemos Fazê-
controle e repressão internacional às drogas.
lo. Em 2003, tanto a meta quanto o prazo para

desastres
As Convenções-Irmãs da ONU estabeleceram o

para sustentação
atingi-la foram reafirmados pela ONU. As ações
sistema internacional de combate das drogas,

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
de repressão à produção, comércio e consumo

eCRP
reafirmando o proibicionismo como a política a
de drogas ilícitas definitivamente não conti-
ser seguida por todas as nações. É importan-

Temáticos
em emergências
veram estes fenômenos em qualquer parte do
te ressaltar que as motivações dos EUA para
mundo. Ao contrário, observou-se o crescimen-
disseminar o proibicionismo sempre foram de

subsídios
to do tráfico de drogas e de sua repercussão na
ordem política, racial e econômica.
política e na economia mundial.

Cadernos
A criminalização do porte e do consumo

Psicologia
drogas:
“Poderíamos fazer o público de drogas ilícitas tem se revertido em sobrecar-
ga ao sistema de justiça, onerando-o tanto pela
associar os hippies com

e outras
lotação de unidades prisionais quanto pelo au-
a maconha e os negros mento de investimentos financeiros para a mi-
com a heroína. E então litarização das ações policiais de “combate” às

CRP Álcool
drogas. A criminalização dos usuários de dro-

SP
criminalizaríamos fortemente
gas repercute na garantia de direitos sociais e
ambas, assim poderíamos de cidadania, dentre os quais o de livre acesso

Temáticos
enfrentar essas comunidades” aos serviços de saúde e tratamento e mesmo o

SP
de fazer uso de drogas em condição não preju-

CadernosCRP
dicial ao indivíduo e à sociedade.
Cadernos Temáticos
Embora o cenário estivesse se cons-
truindo há décadas, nos anos 70, um dos pro-
tagonistas da efetivação do que passou a ser “A criminalização do porte e do
chamado “Guerra às Drogas”, foi o presidente consumo de drogas ilícitas tem
americano George Nixon (CARNEIRO, 2002). Em se revertido em sobrecarga ao
uma entrevista dada em março de 2016 à agên-
cia de notícias CNN John Ehrlichman, o chefe de sistema de justiça”
política doméstica do governo Nixon, faz a se-
guinte afirmação:

[...] nós sabíamos que não poderíamos tor-


nar ilegal ser contra a guerra (se referindo à 1 UNGASS é a sigla em inglês da Sessão Especial da Assem-
bleia Geral das Nações Unidas, que trata de temas sociais
Guerra do Vietnã) ou ser negro, mas podería-
relevantes, como saúde, trabalho, gênero e drogas. Fonte:
mos fazer o público associar os hippies com a <http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2016/12/Cartilha-
UNGASS.pdf>.
O mundo tem caminhado para uma com- A eficácia da RD se justifica por ser uma
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preensão de que a política repressiva punitiva estratégia que alcança também o usuário ativo
de “Guerra às Drogas” não tem tido bons resul- de drogas, não como um método paliativo que
tados. A recente reunião da Comissão Sobre objetiva prevenir doenças infectocontagiosas
Narcóticos, que ocorreu em março de 2019, em por meio da distribuição de seringas e agulhas
Viena, Áustria, aponta avanços nos países que descartáveis como forma de evitar contamina-
descriminalizaram o porte para uso pessoal e ções, mas como uma política que considera a
indica que isso ocorra nos demais países do pessoa que faz uso de drogas como membro de
mundo (ONU, 2019). No entanto, o Brasil segue uma comunidade, que se relaciona, trabalha, tem
caminhos distintos, por ser um dos únicos três necessidades outras de saúde e é dotada de di-
países da América do Sul que ainda crimina- reitos e deveres. Isso torna a RD uma política
lizam o porte de drogas para uso pessoal, ao comprometida com a Declaração Universal dos
lado do Suriname e da Guiana. Direitos Humanos, da Convenção sobre Biodi-
versidade, entre outros tratados internacionais.
Nesse contexto, a Política Nacional de
A RD segue nesse sentido e se mostra coerente
Drogas no Brasil retrocede ainda mais. Contra-
como uma política de Saúde Pública universal,
dizendo as recomendações da ONU, o Brasil
como prevê o SUS (Sistema Único de Saúde). Em
modificou, em 2019, a Política Nacional de Dro-
2019, a Comissão Sobre Narcóticos, reunida em
gas, reforçando a criminalização do usuário, o
Viena, apontou a RD como a política de drogas
que deve agravar ainda mais o encarceramento
alinhada aos Direitos Humanos (ONU, 2019).
em massa da população pobre, especialmente
de negras e negros.

“A RD segue nesse sentido


Uma alternativa ao proibicionismo:
a Redução de Danos
e se mostra coerente como
uma política de Saúde Pública
Na Europa, no século XX, surgem ideias que re-
agem a lógica proibicionista de um mundo sem universal, como prevê o SUS”
drogas. No Reino Unido, por exemplo, em 1926,
um grupo de médicos recomendou a prescri-
ção de drogas como a heroína e a cocaína para Com a epidemia da AIDS, na década de 1980,
pessoas que faziam uso abusivo, como forma a prescrição de drogas para dependentes ganhou
de controlar e reduzir esse uso. No entanto, foi novo impulso como estratégia de RD, além da tro-
somente na década de 60, em meio ao movi- ca de seringas usadas por seringas esterilizadas
mento de contracultura que, pela primeira vez, entre UDI (usuário de drogas injetáveis). A RD não
se estrutura um conjunto de ideias antiproibi- foi a política desejada por governantes a priori,
cionistas sob uma lógica que foi denominada surge por uma pressão das pessoas que faziam
Redução de Danos. A Redução de Danos (RD) se uso de drogas e somente foi aceita devido a inefi-
apresenta como uma postura ético-política que cácia comprovada na prática das estratégias puni-
leva em consideração essa relação intrínseca tivistas e proibicionistas e ganhou espaço porque
entre as drogas e a humanidade, em contrapo- obteve bons resultados. Foi a primeira estratégia
sição à proposta proibicionista ou de “Guerra às que obteve resultados satisfatórios na contenção
Drogas”, que idealizam ou prometem o fim das da contaminação por HIV entre UDI’s.
substâncias psicoativas ilícitas como solução.
Apesar da RD ter surgido no ambiente in-
ternacional a partir da década de 60 e se conso-
lidado na década de 80, no Brasil, as primeiras
“A Redução de Danos (RD) se estratégias de RD surgem somente entre o final
apresenta como uma postura da década de 80 e início de 90. Antes disso, o
ético-política que leva em país vivia uma ditadura civil-militar, politicamen-
te fechado, a repressão e a falta de investimen-
consideração essa relação to a pesquisas na área de saúde, além de uma
intrínseca entre as drogas e a forte migração para os grandes centros urba-
humanidade, em contraposição à nos que fez surgir as cidades segregadas so-
cialmente como conhecemos hoje.
proposta proibicionista”
Nesse contexto, em 1989, na cidade de crescimento de pesquisas e projeto na área fez
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Santos, inicia-se a distribuição e troca de se- surgir uma série de atores da RD e organiza-
ringas, voltada à UDI, e, segundo estimativas, a ções não governamentais interessados.
porcentagem de portadores do vírus HIV entre
essa população beirava os 70%, considerando
que se tratava de uma cidade portuária com “Entre os anos de 1994 e 1996,

de danos
grande circulação. No entanto, os trabalhado-
o Ministério da Saúde financiou

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
res foram acusados pelo Ministério Público de
estarem estimulando o uso de drogas e foram o maior estudo epidemiológico

e de redução
impedidos de continuar o projeto. sobre prevalência de HIV e

em emergências
Em 1991, cria-se o IEPAS (Instituto de Es- comportamento entre UDI, o que
tudos e Pesquisas em AIDS), para dar sequência viria a validar os projetos de RD

antimanicomial
ao trabalho na cidade de Santos. Ao observar
que os UDI tinham por costume limpar a seringa
que vinham surgindo no cenário
antes de compartilhá-la, desenvolve a estraté- nacional”

Psicologia
gia de distribuição de hipoclorito de sódio em
uma concentração de 5,25%, comprovadamen-

da política
A Associação Brasileira de Redução de Da-
te capaz de eliminar o vírus HIV (Ribeiro, 2013).
nos (ABORDA), nasce em 1997 como a primeira
associação de caráter nacional que é declara-

desastres
para sustentação
damente composta por usuários e ex-usuários
“No estado de São Paulo, o

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
de drogas e tem por objetivo lutar pelos direitos

eCRP
Programa de DST/AIDS cria um dos redutores de danos e usuários de drogas.

Temáticos
projeto de Redução de Danos

em emergências
No ano seguinte, São Paulo sedia a IX Confe-
rência internacional de RD. Durante a cerimônia
que, novamente, é impedido

subsídios
de abertura foi anunciada a sanção pelo gover-
de se efetivar devido a um no do Estado da lei estadual 9758/97, primeira

Cadernos
questionamento judicial” a regulamentar a troca de seringas. Após esse

Psicologia
drogas:
marco foram surgindo novas leis estaduais e
municipais que regulamentavam as estratégias
A Coordenação Nacional de DST/AIDS do de RD (RIBEIRO, 2013).

e outras
Ministério da Saúde, no mesmo ano, cria o Pro-
A RD já havia desenvolvido e adquirido no
jeto de Drogas, voltado aos UDI, em 10 esta-
Brasil características importantes, tais como:

CRP Álcool
dos com os maiores índices de contaminação
parceria entre governo e sociedade civil; desen-

SP
por HIV. No estado de São Paulo, o Programa de
volvimento de pesquisas a fim de levantar indi-
DST/AIDS cria um projeto de Redução de Danos
cadores; distribuição de preservativos, seringas

Temáticos
que, novamente, é impedido de se efetivar devi-
e agulhas descartáveis; formação de usuários
do a um questionamento judicial.

SP
para atuarem como multiplicadores; elabora-

CadernosCRP
Em 1995, a estratégia de compartilha- ção de materiais educativos junto aos usuários;
Cadernos Temáticos
mento de seringas ressurge na legalidade, im- ações de advocacy voltadas para profissionais
plementada pelo CETAD (Centro De Estudos da saúde, educação segurança e justiça; pro-
e Terapia do Abuso de Drogas) no estado da moção da participação dos usuários nos es-
Bahia, ligada à Faculdade de Medicina da UFBA paços de definição de políticas públicas; e a
(Universidade Federal da Bahia). Neste segundo construção de leis que viabilizem a RD (Doneda
momento, ganha credibilidade como uma polí- e Gandolfi, 2006).
tica incentivada pelo Ministério da Saúde, com
Tais características se devem aos avan-
apoio dos órgãos internacionais UNODC e do
ços da RD ao longo dos anos 90 e 2000 e foram
Banco Mundial.
de extrema importância para o que acontece-
Entre os anos de 1994 e 1996, o Ministério ria a seguir, é importante notar que até então
da Saúde financiou o maior estudo epidemioló- se tratava de uma política que não pretendia o
gico sobre prevalência de HIV e comportamento cuidado ao uso problemático, somente a partir
entre UDI, o que viria a validar os projetos de de 2003 houve significativa diversificação nas
RD que vinham surgindo no cenário nacional. O ofertas em saúde para usuários de drogas: “as
ações de RD deixam de ser uma estratégia ex- inauguramos um novo compromisso. Temos
14
clusiva dos Programas de DST/AIDS e se tornam claro que não basta racionalizar e modernizar
uma estratégia norteadora da Política do Minis- os serviços nos quais trabalhamos (Carta de
tério da Saúde para atenção integral a Usuários Bauru, 1987)
de Álcool e outras drogas e da política de Saúde
Mental” (Passos & Souza, 2011).
“Esse movimento trouxe
profissões como a Psicologia
“‘As ações de RD deixam de
para o centro das discussões
ser uma estratégia exclusiva
sobre as políticas públicas, fez
dos Programas de DST/AIDS
crescer não somente em número
e se tornam uma estratégia
de profissionais, mas também
norteadora da Política do
a nossa responsabilidade na
Ministério da Saúde para
produção e reprodução social”
atenção integral a Usuários
de Álcool e outras drogas e da
política de Saúde Mental’ (Passos A luta antimanicomial, portanto, não é so-
mente um movimento pelo fim dos manicômios,
& Souza, 2011)” mas sim uma postura ético-política frente à vio-
lência institucionalizada. Esse movimento trouxe
profissões como a Psicologia para o centro das
Essa ampliação da compreensão do que é discussões sobre as políticas públicas, fez cres-
RD representa um novo paradigma ético, clínico cer não somente em número de profissionais,
e político, em contraposição às concepções da mas também a nossa responsabilidade na pro-
“Guerra às Drogas” que marcam ainda de forma dução e reprodução social. Na Carta de Bauru há
majoritária, hoje mais do que nunca, as políticas conteúdo sobre o compromisso que as profis-
de drogas no Brasil, resquício ainda da ditadura sões que atuam na saúde mental devem assumir:
civil-militar brasileira e da nossa longa história
O manicômio é expressão de uma estrutura,
de racismo institucional. O avanço que a estraté-
presente nos diversos mecanismos de opres-
gia de RD pôde experimentar a partir de 2006 se
são desse tipo de sociedade. A opressão nas
deve também às importantes mudanças que a
fábricas, nas instituições de adolescentes,
política de Saúde Mental vinha experimentando
nos cárceres, a discriminação contra negros,
desde o fim da década de 90, impulsionadas por
homossexuais, índios, mulheres. (Carta de
movimentos sociais denominados de Luta Anti-
Bauru, 1987)
manicomial. O modelo asilar como forma de tra-
tamento à pessoa em sofrimento psíquico vinha A proibição das drogas, bem como todas
sendo questionado, e em seu lugar vinha sendo as políticas higienistas e punitivistas de Esta-
criado uma rede de serviços chamados substitu- do, tem suas bases numa história de racismo
tivos, de caráter territorial e pautado no cuidado institucional. Juliana Borges (2017) assinala que
em liberdade, expressos na política pública por se estima que cerca de 5 milhões de negras e
uma Reforma Psiquiátrica (MACRAE, 2012). negros foram sequestrados da África e escravi-
zados por séculos no Brasil.
Vale aqui destacar um trecho do primei-
ro manifesto antimanicomial brasileiro, a carta O embranquecimento foi uma das primei-
produzida em um encontro de trabalhadoras e ras políticas da República, não só não houve
trabalhadores da saúde mental na cidade de reparação histórica, mas nossas políticas públi-
Bauru em 1987: cas ainda se pautam numa lógica de extermí-
nio da população negra e da população pobre
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recu-
e periférica, o que se evidencia nos números de
sarmos o papel de agente da exclusão e da
homicídios e encarceramento em massa da po-
violência institucionalizadas, que desrespei-
breza, predominantemente de negras e negros.
tam os mínimos direitos da pessoa humana,
A “Guerra às Drogas” no Brasil se insere nesse
contexto e serve de argumento para práticas dessas pessoas. A abstinência de uma ou mais
15
racistas. São muitas estudiosas e estudiosos drogas, o uso moderado ou a troca de uma subs-
que têm produzido conhecimento e práticas de- tância de maior potencial de risco por uma de
coloniais, que procuram superar o racismo ins- menor, passa a ser uma escolha dessa pessoa.
titucional, a política de RD pode convergir com
essas noções, por usar estratégias de fortale- Marcos Históricos da Política de

de danos
cimento e evitar práticas institucionalizantes e
Drogas no Brasil

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
reprodutoras de violências.
• Na década de 1920, a legislação penal pro-

e de redução
punha a internação compulsória em estabe-
“O embranquecimento foi uma lecimento correcional adequado, por tempo

em emergências
indeterminado, dos denominados toxicô-
das primeiras políticas da manos.

antimanicomial
República, não só não houve
• Na década de 1930, foi promulgada a Lei de
reparação histórica, mas Fiscalização de Entorpecentes (Decreto-Lei

Psicologia
nossas políticas públicas ainda nº. 891/1938) que expressava claramente
se pautam numa lógica de o posicionamento proibicionista do Estado

da política
brasileiro em relação às drogas. O conteúdo
extermínio da população negra e deste decreto-lei, posteriormente incorpo-
da população pobre e periférica” rado ao artigo 281 do Código Penal de 1940,

desastres
para sustentação
criminalizava o porte de drogas ilícitas, in-

Cadernos Temáticos CRP SP

eCRP SP
dependentemente da quantidade apreen-
Por fim, é indispensável mencionar que dida e da intenção de consumo próprio ou

Temáticos
em emergências
as diferentes escolas da Psicologia convergem tráfico, sem distinção da penalização pre-
para uma compreensão quanto ao fenôme- vista para uma ou outra circunstância.

subsídios
no do uso abusivo ou problemático de drogas,
• Na década de 1970, as medidas de pre-

Cadernos
que esse é sintoma ou consequência de algum
venção e de repressão ao tráfico e uso de
sofrimento anterior. Nesse sentido, a abstinên-

Psicologia
drogas:
drogas ilícitas em concordância com as
cia como uma exigência, proposta pelo modelo
Convenções-Irmãs da ONU, realizadas em
proibicionista, é incoerente com a atuação da(o)
1961 e 1971.

e outras
profissional psicóloga(o), pois significa exigir
que a pessoa não produza sintoma antes mes- • Lei nº. 5.726/1971 - não faz qualquer re-
mo da oferta da escuta e do cuidado. ferência ao tratamento para a população

CRP Álcool
usuária de drogas.

SP
• Lei nº. 6.368/1976 - criação de serviços es-
“A Psicologia como ciência e

Temáticos
pecializados para a atenção ao uso preju-
profissão está em consonância dicial e dependência de drogas com impor-

SP
com as prerrogativas da política tância secundária às ações de saúde em
detrimento à repressão da oferta/demanda CadernosCRP
de RD e esta deve estar na de drogas.
Cadernos Temáticos

formação e nas práticas da • Serviços extra-hospitalares são criados so-


categoria” mente na segunda metade da década de
1980. Considerando-se a restrição do aces-
so ao sistema de saúde aos contribuintes
A Psicologia como ciência e profissão está
previdenciários, a internação em hospitais
em consonância com as prerrogativas da política
psiquiátricos tenha se constituído como
de RD e esta deve estar na formação e nas prá-
único recurso terapêutico.
ticas da categoria, pois compreende que o for-
talecimento através da escuta qualificada, o re- • Década de 1980 - instituído o Sistema Na-
estabelecimento de vínculos e a reestruturação cional de Prevenção, Fiscalização e Repres-
da rede e do ambiente onde a pessoa vive são são de Entorpecentes. Entre os objetivos
as formas de minimizar o sofrimento e dar fer- deste sistema, constava o de formular a Po-
ramentas para a melhoria da qualidade de vida lítica Nacional de Entorpecentes através do
Conselho Federal de Entorpecentes (CON- de ações de redução de danos em Centros
16
FEN), seu órgão central. de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas.

• CONFEN privilegia atividades de repressão. • 2006 - Lei nº. 11.343/2006 revoga a Lei nº.
No entanto, estabelece iniciativas e ressal- 10.409/2002 e a Lei nº. 6.368/1976, que in-
ta-se o apoio aos centros de referência em clui redução riscos e danos no seu texto.
tratamento, pesquisa e prevenção na área
• 2019 - Lei 13.840/2019 - acrescenta e alte-
de álcool e outras drogas, às comunidades
ra dispositivos à lei 11343/06, cria a “Nova
terapêuticas e aos programas de redução
Lei Anti Drogas”. Institui a autorização da
de danos voltados para a prevenção da
internação compulsória de pessoas em
transmissão do HIV/AIDS entre UDI.
sofrimento psíquico decorrente do uso e
• A Secretaria de Atenção à Saúde da pasta abuso de álcool e outras drogas, sem sua
editou em outubro de 2016 a portaria 1.482, autorização ou a de um juiz, retira a RD da
que determina a inclusão das comunidades política nacional e amplia investimentos em
terapêuticas no Cadastro Nacional de Esta- Comunidades Terapêuticas, apesar dos le-
belecimentos de Saúde (CNES). Não houve vantamentos realizados pelo MPF (Ministé-
qualquer discussão. rio Público Federal) e do CFP que apontam
graves violações de Direitos Humanos nes-
• Em 1998, o CONFEN foi extinto e transfor-
sas instituições;
mado em Conselho Nacional Antidrogas
(CONAD). O Sistema Nacional de Prevenção, • 2019 - a Comissão de Narcóticos da ONU,
Fiscalização e Repressão de Entorpecen- reunidos em Viena, aponta a descrimina-
tes foi transformado em Sistema Nacional lização das drogas como horizonte a ser
Antidrogas (SISNAD). Cria-se a Secretaria seguido, se afasta da abordagem punitiva
Nacional Antidrogas (SENAD), o órgão exe- e aponta que os países devem garantir o
cutivo do sistema. A proposição da Política acesso a serviços orientados pela Redução
Nacional Antidrogas deveria ser feita pela de Danos.
SENAD e aprovada, acompanhada e atua-
lizada pelo CONAD, órgão normativo e de
deliberação coletiva do sistema. A partici-
pação do Ministério da Saúde na constru-
ção desta política efetua-se pela sua repre-
sentação, por intermédio da Coordenação
de Saúde Mental e do órgão de Vigilância
Sanitária, no CONAD.

• 2003 - formulação da Política do Ministério da


Saúde para Atenção Integral a Usuários de
Álcool e outras Drogas. Afirma-se a respon-
sabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS).

• 2005 - Política Nacional sobre Drogas. O


enfoque da redução de danos aparece com
força ainda maior nessa nova versão do
texto da política. O Sistema Nacional Anti-
drogas passou a ser denominado Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas;
o Conselho Nacional Antidrogas, Conse-
lho Nacional de Políticas sobre Drogas; e a
Secretaria Nacional Antidrogas, Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas. Em 1º
de julho, é aprovada a Política Nacional de
Redução de Danos, Portaria n° 1.028, e em
4 de julho se aprova a portaria n° 1.059, que
destina incentivo financeiro para o fomento
Referências para-politicas-de-drogas-baseadas-em-direitos-
17
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BORGES, Juliana. A ideologia racista como mito fun-
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racista-como-mito-fundante-da-sociedade-brasi-

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Cadernos Temáticos CRP SP

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18
Práticas em Redução de Danos 19

Annie Louise Saboya Prado


Ed Otsuka

de danos
Psicologia em emergências e desastres

antimanicomial
Psicologia
da política e desastres
e de redução
em emergências
A Redução de Danos pode se inserir em diversos das possibilidades de cuidado, das singularidades
contextos e ocasiões dentro das práticas da Psi- e dos modos de estar no mundo proposta para a
cologia. Dentro da perspectiva de marcos legais, atuação em Redução de Danos se fundamenta

desastres
para sustentação
destacamos a dificuldade diante do cenário po- técnica e teoricamente e sempre deve estar em

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
lítico atual onde as portarias e legislações que consonância com o Código de Ética do Profissional

eCRP
tratam da temática das drogas e abarcavam a Psicólogo e na defesa dos Direitos Humanos.

Temáticos
em emergências
Redução de Danos como possibilidade de cuidado
Neste sentido, não é necessário, apesar de
estão sendo eliminadas ou modificadas na atual
desejável, que as políticas governamentais pau-

subsídios
Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, que dispõe
tem ou reconheçam a Redução de Danos para

Cadernos
sobre Sistema Nacional de Políticas Públicas so-
que profissionais se utilizem dessa ferramenta.
bre Drogas e as condições de atenção aos usu-
Além de ser uma ferramenta, a Redução de Danos

Psicologia
drogas:
ários ou dependentes de drogas e para tratar do
é também uma visão de mundo apoiada nos prin-
financiamento das políticas sobre drogas, não é
cípios éticos fundamentais de nossa profissão, é

e outras
encontrado sequer uma vez o termo Redução de
uma perspectiva de atuação ética e responsável.
Danos. Portanto, essa lei é pautada pela exigên-
Dentro do Código de Ética Profissional do Psicólo-
cia da abstinência, ignorando anos de trabalhos e

CRP Álcool
go, podemos destacar o Princípio Fundamental III:
pesquisas exitosas na área, assim como vozes de

SP
“O psicólogo atuará com responsabilidade social,
diversas trabalhadoras e usuárias dos serviços.
analisando crítica e historicamente a realidade po-

Temáticos
A abstinência, ao contrário do que proibicio- lítica, econômica, social e cultural”.
nistas costumam divulgar, não é excluída dentro

SP
das práticas de Redução de Danos, é sim uma das
“Além de ser uma ferramenta, CadernosCRP
possibilidades, podendo ser vista como um objeti- Cadernos Temáticos
vo ou não, sendo essa considerada dentro de uma
a Redução de Danos é também
ampla gama de possibilidades, onde são respeita-
das as singularidades e diferentes modos de estar uma visão de mundo apoiada nos
no mundo e assim de usar substâncias. A análise princípios éticos fundamentais
de nossa profissão, é uma
perspectiva de atuação ética e
“A abstinência, ao contrário do responsável”
que proibicionistas costumam
divulgar, não é excluída dentro
das práticas de Redução Considerando que o proibicionismo que
violenta pessoas, especialmente a população
de Danos, é sim uma das jovem, negra e periférica, é uma política que
possibilidades” tem se mostrado ineficaz na redução de oferta
e no uso de drogas, é imprescindível que a(o)
20
profissional psicóloga(o) paute sua atuação “A mídia e as políticas nacionais
nesta perspectiva de análise crítica. A pessoa
usuária de drogas está inserida em um contex-
e internacionais proibicionistas
to histórico e cultural e não deve ser destacada fazem assertivamente um bom
de sua realidade e ser colocada em serialidade serviço de desinformação que
simplesmente pelo uso de drogas.
nos atravessa cotidianamente”

“A pessoa usuária de drogas [...] abordagens padrão se repetem no cotidiano


está inserida em um contexto de trabalho, obrigando os sujeitos a se dobra-
rem a um processo de subjetivação que segrega
histórico e cultural e não deve os usuários de substâncias, infantiliza e culpa-
ser destacada de sua realidade biliza os indivíduos. A segregação está direta-
e ser colocada em serialidade mente ligada à culpabilização, ela é uma forma
de manter a ordem social segundo quadros de
simplesmente pelo uso de drogas” referência imaginários, funcionando de forma
manipulatória através do estabelecimento, mes-
A Redução de Danos considera a multiplici- mo que imaginário, de sistemas hierárquicos. (ES-
dade das subjetividades possíveis formadas por TAUBER; GUIMARÃES, 2017, p. 277).
conexões e contextos diversos dentro de nossa A Redução de Danos é uma tecnologia aces-
realidade e por isso não aceita uma única forma sível e descomplicada e talvez por isso não atenda
de cuidar e de orientar pessoas usuárias e profis- alguns interesses econômicos onde o foco não é
sionais que atuam na temática do uso de drogas. acolher e cuidar, mas sim lucrar. Quando a Psicologia
Uma das premissas básicas da RD é a “não está embasada em princípios éticos não é possível
centralidade na substância”, na análise da temáti- uma atuação que não esteja atenta aos princípios de
ca ou no atendimento às pessoas usuárias. Nesse equidade. É necessário que a atuação, assim esteja
sentido, podemos pensar comparativamente às intimamente ligada à pauta dos Direitos Humanos.
práticas e políticas voltadas para a abstinência em
relação às práticas de RD em que o
“Quando a Psicologia está
[...] usuário de drogas deixa de ser considerado
passivo diante do consumo e com capacidade
embasada em princípios éticos
para adotar formas de consumo menos prejudi- não é possível uma atuação que
ciais. A droga não é considerada o agente de- não esteja atenta aos princípios
terminante e a relação que se estabelece não é
necessariamente de dependência. Nesse sentido
de equidade”
a lógica se inverte, pois, se no primeiro caso as
ações e políticas se voltam para a substância,
aqui elas se voltam para o usuário, para orientá- Em se tratando especificamente do campo de
lo, informá-lo e criar condições para desenvolver atenção e cuidado em álcool e outras drogas, a
autonomia visando ao autocuidado. (CAMPOS; subcidadania e o sofrimento ético-político qua-
SANTOS; SOARES, 2010, p.8) lificam o debate na medida em que abre uma
interlocução necessária e importante com o cam-
Mesmo no contexto das políticas públicas, po dos Direitos Humanos, permitindo que trate-
CAPS AD e outros serviços que atendam o públi- mos de forma desigual os desiguais, ou seja, que
co de usuários de drogas a atenção para a práxis criemos narrativas, discursos e práticas que des-
da Psicologia deve ser diária. A mídia e as po- loquem “a substância”, “a droga” do centro das
líticas nacionais e internacionais proibicionistas discussões e possamos, de fato, discutir sobre
fazem assertivamente um bom serviço de desin- o uso problemático e abusivo de álcool e outras
formação que nos atravessa cotidianamente. É drogas pelas populações marginalizadas a partir
comum a reprodução de práticas manicomiais do núcleo central da questão; a naturalização e
dentro de serviços que deveriam se propor a perpetuação da desigualdade social, da miséria e
uma direção contrária. da exclusão entre nós. (SURJUS; SILVA, 2019, p.84)
serviços de forma intersetorial e sem a exigência
21
“A Redução de Danos implica na de abstinência. Programa este elaborado e exe-
cutado com a participação dos usuários, como
participação ativa das pessoas deve ser toda ação em RD1.
envolvidas no projeto de cuidado,
As ações de informar sobre os efeitos de
desde a sua elaboração e cada droga, formas de utilização, dicas de uso me-

de danos
durante todo o trajeto a ser

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
nos danoso e arriscado e sobre a associação en-
tre mais de um tipo de substância no mesmo uso,
percorrido”

e de redução
por meio de produção e distribuição de folhetos2,
promoção de discussões, rodas de conversa, tra-

em emergências
Nesse sentido, ampliamos as possibilida- balho em rede dentro das políticas públicas, ações
des de atuação em RD. Existe espaço nas polí- de matriciamento em saúde, ações e serviços nas

antimanicomial
ticas públicas, nos consultórios, nas instituições cenas de uso também são potentes possibilidades
de ensino, na educação popular e na militância. de práticas em Redução de Danos. Há interessan-
Criatividade, busca constante pelo aperfeiçoa- tes trabalhos em São Paulo de coletivos organiza-

Psicologia
mento profissional, aproximação de espaços que dos de ações em contexto de festas e em cenas
de uso, como O ResPire Redução de Danos e o cen-

da política
dão voz aos usuários de drogas são algumas ou-
tras chaves para a atuação. A Redução de Danos tro de convivência É de Lei.
implica na participação ativa das pessoas envol- Redutores de Danos podem ser todas(os)

desastres
vidas no projeto de cuidado, desde a sua elabora-

para sustentação
nós, psicólogas(os), professoras, trabalhadoras(es)

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
ção e durante todo o trajeto a ser percorrido. de serviços públicos, entre outras(os), porém é im-

eCRP
Encontramos trabalhos acadêmicos, refe- portante ressaltar, valorizar e incentivar a criação

Temáticos
em emergências
rências atuais, projetos e trabalhos exitosos em de cargos de Redutores de Danos nas esferas go-
RD por todo o mundo, seja no âmbito comunitá- vernamentais e comunitárias. Cargos estes já exis-

subsídios
rio ou estatal. É sabido de regulações sobre porte tentes, mas ainda incipientes, que não exijam for-
mação acadêmica e que possam ofertar à usuários

Cadernos
e uso de drogas, por exemplo, Portugal, Espanha,
Alemanha, Noruega ou Holanda permitem a redu- dos serviços a possibilidade de trabalhar com a te-

Psicologia
drogas:
ção de riscos sociais associadas ao proibicionismo mática, aparados por uma equipe multiprofissional.
e permitem menor estigmatização e, assim, maior

e outras
acesso aos tratamentos, quando necessário. Tra-
tamentos que possuem, por exemplo, salas de “Redutores de Danos podem ser
consumo de drogas ilícitas permitindo maior pos- todas(os) nós, psicólogas(os),

CRP Álcool
sibilidade de aproximação do usuário com o servi-
professoras, trabalhadoras(es)

SP
ço, que possui uma equipe que, além de auxiliar na
integridade física e diminuir risco de overdose, se de serviços públicos, entre

Temáticos
dispõe a auxiliar e orientar os usuários sem focar o outras(os), porém é importante
trabalho na exigência de abstinência.

SP
ressaltar, valorizar e incentivar
CadernosCRP
No Brasil, há décadas a Redução de Danos
a criação de cargos de Cadernos Temáticos
é um campo em disputa, com momentos de mais
avanços, outros de mais retrocessos. Já foi muito Redutores de Danos nas esferas
importante, e ainda é, a distribuição de insumos, governamentais e comunitárias”
como piteiras e protetor labial para usuários de
crack, visando minimizar os danos do uso e incen-
tivar o uso individual, diminuindo os riscos frente A inserção da Psicologia na Educação é
às ISTs/HIV/AIDS e Hepatites Virais. tema importante a considerar no que se relaciona
ao tema da RD como dispositivo de prevenção ao
A inserção do trabalho e geração de renda, uso prejudicial de drogas. A Psicologia inserida em
o acesso a moradia, o trabalho em rede, entre ou- diversos contextos pode, se não dentro da política
tros aspectos considerados seriamente pela RD
apontam para uma visão mais ampla de qual o
objeto estamos tratando. Por exemplo, o extinto 1 Confira: http://pbpd.org.br/publicacao/pesquisa-sobre-o-pro-
programa “Braços Abertos”, que propunha aces- grama-de-bracos-abertos/
so à geração de renda, aos hotéis sociais e aos 2 Confira: http://edelei.org/portfolio-type/publicacoes
de Educação, mas de forma intersetorial, investir Outros serviços que em sua origem e nature-
22
em ações dentro de uma lógica antiproibicionista za devem atuar na perspectiva da Reforma Psiqui-
e não repressiva levar o tema de drogas na escola, átrica e assim aliados à RD são os já mencionados
trazendo aspectos de forma não sensacionalista e CAPS AD, os outros tipos de CAPS e também os
descolada da realidade das crianças e adolescen- importantes serviços dos Consultórios na Rua e
tes. Ressaltando que ações de RD também podem de Rua, dispositivos que devem atuar de forma a
prever a ampliação do repertório de acesso à cul- aproximar e acolher pessoas em situação de rua,
tura e lazer com intuito em diminuir o interesse e o considerando os aspectos aqui mencionados de
uso precoce de crianças e adolescentes. marcadores sociais e sem a exigência da absti-
nência. Assim como as Unidades de Acolhimento
pertencentes também a Atenção Psicossocial e
“A Psicologia inserida em essenciais aos processos de cuidado ao usuário
de drogas em sofrimento e em fragilidade de vín-
diversos contextos pode, se não
culos familiares e comunitários.
dentro da política de Educação,
O trabalho intersetorial é imprescindível para
mas de forma intersetorial, um bom trabalho direcionado aos usuários de
investir em ações dentro de drogas, especialmente à população de rua. SUS
uma lógica antiproibicionista e e SUAS acabam por serem as maiores portas de
entrada de usuários e é necessário interlocução e
não repressiva levar o tema de canais de comunicação mais acessíveis. Entretan-
drogas na escola” to sabe-se da importância da comunicação e de
parcerias com outras políticas públicas como a de
Educação, Trabalho e Renda, Esporte e Lazer.
Vale apontar para coordenadoras e profes-
soras dos cursos de graduação em Psicologia e ao
próprio CRP a importância de fomentar o tema da “O trabalho intersetorial é
Reforma Psiquiátrica, práticas antimanicomiais e
imprescindível para um bom
Redução de Danos como parte da grade curricular.
trabalho direcionado aos usuários
Um importante dispositivo para as práticas
de Redução de Danos é a Atenção Psicossocial
de drogas, especialmente à
nos seus diversos níveis. A Atenção Básica pode população de rua”
atuar na prevenção ao uso prejudicial de drogas e
na atenção ao uso inicial ou menos danoso. Com
Todas essas formas de atuação em RD não
uma abordagem e acolhimento não repressivo e
visam apenas o cuidado integral individual e a di-
não moralista, este serviço pode aproximar usuá-
minuição do uso de drogas ou de danos à saúde
rios, orientar e fomentar autonomia frente ao uso
física e mental do sujeito. A crítica ao proibicionis-
de drogas. Uma das formas, mais recentemente,
mo e as formas perversas estruturais de nossa
utilizadas na Atenção Básica com foco não me-
sociedade nos apontam para que a atuação em
dicalizante para questões diversas e que podem
RD se paute também na redução de danos e ris-
ser interessantes aos usuários de drogas para
cos sociais. A estrutura racista e patriarcal afeta
amenizar possíveis sintomas que o façam usar
subjetividades de formas diferentes e precisa ser
drogas ou que possam surgir com a diminuição do
questionada junto ao proibicionismo. Questionar o
uso são as PICS (Práticas Integrativas e Comple-
modelo punitivista, o sistema de justiça desigual, o
mentares em Saúde) e outras atividades corpo-
modelo de política de drogas e o encarceramento
rais e criativas com esse foco não patologizante
em massa nos move para a responsabilidade de
e não medicalizante.
também reparar os prejuízos da repressão e da
“Guerra às Drogas”, que no fim se trata de guerra
contra pessoas e grupos específicos de pessoas.
“A Atenção Básica pode atuar
A estigmatização e a produção de subje-
na prevenção ao uso prejudicial tividades dependentes ocupa os espaços de ex-
de drogas e na atenção ao uso clusão, de restrição de liberdade e de “tratamen-
inicial ou menos danoso” tos” baseados exclusivamente na abstinência, na
Referências 23
“A estrutura racista e patriarcal CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução
afeta subjetividades de n° 010, de 21 de julho de 2005. Aprova o Código de
formas diferentes e precisa Ética Profissional do Psicólogo. Disponível em: <ht-
tps://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/
ser questionada junto ao

de danos
codigo-de-etica-psicologia.pdf>.
proibicionismo”

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
CAMPOS, Célia Maria Sivalli; SANTOS, Vilmar Eze-
quiel; SOARES, Cássia Baldini. Redução de danos:

e de redução
culpabilização do indivíduo e na centralidade na
análise das concepções que orientam as práticas
substância e seus supostos perigos. A Redução

em emergências
no Brasil. Rio de Janeiro: PhysisRevista de Saú-
de Danos, em contrapartida, é companheira e alia-
de Coletiva, 2010, 20 [ 3 ]: 995-1015. Disponível
da à Luta Antimanicomial, à Reforma Psiquiátrica

antimanicomial
em: <http://www.scielo.br/pdf/physis/v20n3/
e a seus princípios e assim defende o cuidado em
v20n3a16.pdf>.
liberdade, o respeito à liberdade religiosa, a diver-
sidade de formas de subjetivação e se aproxima ESTAUBER, Andressa; GUIMARÃES, Cristian Fa-

Psicologia
das lutas por moradia e pelo direito à terra, da luta biano. A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE DE-

da política
contra o extermínio da população negra e de peri- PENDENTE NOS CAPSad: problematizando as
feria, da luta antiproibicionista, da luta em defesa práticas de cuidado dos usuários de álcool e
das políticas públicas e das lutas das mulheres e outras drogas. in: Resistência, liberdade e sus-

desastres
população LGBTI. tentabilidade: movimentos rizomáticos de pro-

para sustentação
Cadernos Temáticos CRP SP

SP
dução de saúdes diversas, com pensamentos

eCRP
libertários. Brasil, Saúde em Redes. 2017; 3 (3)

Temáticos
:273-383. Disponível em: DOI: <http://dx.doi.

em emergências
org/10.18310/2446- 4813.v3np273-283>.

subsídios
SILVA, Patricia C; SURJUS, Luciana T. de Lima

Cadernos
(Orgs). Redução de Danos: Ampliação da vida e
materialização de direitos. São Paulo: UNIFESP,

Psicologia
drogas:
2019. Ebook disponível em: https://www.unifesp.
br/campus/san7/images/E-book-Reducao-Da-

e outras
nos-versao-final.pdf

Temáticos
CadernosCRP
Cadernos Temáticos SP CRP Álcool
SP
24
Comunidades Terapêuticas: espaço 25

árido para o cuidado e fértil para


violações de diretos humanos

de danos
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e de redução
Ed Otsuka

em emergências
Annie Louise Saboya Prado

antimanicomial
Psicologia
da política
Historicamente, as comunidades terapêuticas Frente ao interesse econômico privado e
(“therapeutic community”) surgiram na década de grupos religiosos representados pelas CTs,
de 1950, com o propósito de tratamento da neu- o SUS e a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial

desastres
para sustentação
rose de guerra em soldados ingleses. Passam a sofrem ataques, seja nas formas de financia-

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
se proliferar como instituição de tratamento a mento do sistema público, seja na lógica do cui-

eCRP
“toxicômanos”, na década de 1960. dado singular e integral, da política de redução

Temáticos
em emergências
de danos e da defesa dos direitos humanos.
Os centros de referência, na década de 80,
estavam focados na produção de conhecimen-

subsídios
to técnico-científico e formação de recursos
“Frente ao interesse econômico

Cadernos
humanos (universidades públicas), muitos apre-
privado e de grupos religiosos

Psicologia
drogas:
sentavam uma oferta restrita de tratamento à
população e funcionavam de forma pouco arti- representados pelas CTs, o
culada com o sistema público de saúde.
SUS e a Reforma Psiquiátrica

e outras
As comunidades terapêuticas (CTs), em Antimanicomial sofrem ataques”
sua maioria, instituições de natureza não go-

CRP Álcool
SP
vernamental, começaram a ser criadas no país
na década de 1970 e tiveram seu número ex- As CTs recebem recursos da Secretaria
pandido na década de 1990.

Temáticos
Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad),
subordinada ao Ministério da Justiça. Segundo
Na década de 60, nos EUA, as CTs são

SP
dados expostos no site do Ministério da Saú-
CadernosCRP
apresentadas ao mundo. E, seguindo o mesmo
de (2018), no ano de 2018, o Governo Federal
modelo de abstinência, no Brasil, a partir de Cadernos Temáticos
investirá R$ 87.000.000,00 para financiamento
meados da década de 70. Portanto, não é uma
de Comunidades Terapêuticas, dobrando o nú-
instituição recente, como alguns pensam, o que
mero de vagas para acolhimento aos pacientes
é justificado tendo em vista a proliferação des-
com dependência química. Com essa medida, a
sas por todo o país, como oferta de um suposto
expectativa é acolher mais de 20.000 pacientes
tratamento, especialmente, que acompanha o
em um ano. Enquanto o investimento em CAPS
agravamento da questão do consumo de crack
AD (álcool e drogas) somou apenas R$ 42 mi-
e do contexto político atual, em que o Estado é
lhões, em 2018, com 331 serviços dessa moda-
diminuído, assim como as políticas públicas, em
lidade, no Brasil.
detrimento dos interesses privados. A discus-
são sobre as CTs ganha maior visibilidade com De acordo com o site do Ministério da Saú-
os interesses econômicos envolvidos, disputas de, no início do ano de 2018, ocorreram também
políticas, regulamentação e a consequente le- mudanças nas diretrizes da Política Nacional
gitimação pelo CONAD (Conselho Nacional de sobre Drogas (Resolução CONAD nº 1/2018),
Políticas sobre Drogas). com o objetivo de promover ações que façam
frente às graves demandas sociais relaciona- é exigido na composição da equipe responsá-
26
das ao crescente uso de álcool e outras drogas vel pelo tratamento, apenas um profissional de
no país. Entre elas, o apoio aos pacientes e fa- saúde ou assistência social.
miliares em articulação com Grupos, Associa-
O lobby pela regulamentação da atividade
ções e Entidades da Sociedade Civil, incluindo
resultou no lançamento da Frente Parlamentar
as Comunidades Terapêuticas”. (BRASIL, 2018)
em Defesa das Comunidades Terapêuticas, em
A Secretaria de Atenção à Saúde da pas- 2015, e na consequente aprovação do marco
ta editou em outubro de 2016 a portaria 1.482, regulatório pelo CONAD.
que determina a inclusão das comunidades te-
rapêuticas no Cadastro Nacional de Estabeleci- Há uma constante movimentação em fa-
mentos de Saúde (CNES). Não houve qualquer vor das Comunidades Terapêuticas, por par-
discussão. A própria Confederação Nacional de te do Poder Legislativo. O Projeto de Lei (PL)
Comunidades Terapêuticas não reconhecia as 2083/2019 indica diretrizes para o atendimento
CTs como equipamento de saúde. das Comunidades Terapêuticas como Política
Pública permanente no Território Nacional, que
A portaria surge dois meses após a Justi- garante o cuidado de qualidade aos pacientes
ça acatar pedido do Ministério Público Federal e com dependência química, em regime de resi-
suspender os efeitos de uma resolução do CO- dência transitória, instituindo como a Rede de
NAD, também subordinado ao Ministério da Jus- Atenção Psicossocial no âmbito do Sistema
tiça. Publicada em agosto de 2015, a resolução Único de Saúde (SUS), na Política Nacional de
regulamentou o funcionamento das comunida- Assistência Social - PNAS e no Sistema Nacio-
des terapêuticas e as classificou como “equi- nal de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD.
pamentos de apoio” dos sistemas de saúde e
assistência social. De acordo com o Ministério Foi apensado ao PL 7704/2010, que altera
da Justiça e Segurança Pública (2019), existem a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que
atualmente mais de 1800 comunidades tera- dispõe sobre as condições para a promoção,
pêuticas, no Brasil. proteção e recuperação da saúde, a organiza-
ção e o funcionamento dos serviços correspon-
dentes e dá outras providências. Por sua vez, foi
apensada ao PL 6644/2009, que dispõe sobre
“Ao contrário do que é
a obrigação de o Sistema Único de Saúde dis-
preconizado na Lei 10.216/2001, por de unidades especializadas no tratamento,
segundo a regulamentação prevenção, pesquisa e combate à dependência
química. Todos os PLs estão apensados no PL
vigente acerca das CTs, é
5857/2009, que autoriza o Poder Executivo Fe-
exigido na composição da equipe deral, em articulação com os municípios sedes
responsável pelo tratamento, das regiões administrativas, a criar clínicas pú-
blicas para dependentes químicos de álcool e
apenas um profissional de saúde
drogas. Esta aguarda designação de relator na
ou assistência social” Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF)

Em 5 de junho de 2019 é sancionado o


Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 37, que
Segundo a Lei 10.216/2001, no artigo 4º, é
reconhece as Comunidades Terapêuticas como
vedada a internação de usuários em instituições
serviços públicos destinados ao tratamento de
com características asilares, isto é, aquelas que
pessoas com sofrimento psíquico decorrente
não assegurem aos pacientes os direitos enu-
do uso de álcool e outras drogas, bem como
merados na legislação e que são desprovidas de
legitima a internação compulsória como ins-
um tratamento que ofereça assistência integral
trumento de intervenção no tratamento do uso
à pessoa portadora de transtornos mentais. A
problemático de substâncias psicoativas.
assistência integral inclui serviços médicos, de
assistência social, psicológicos, ocupacionais, Atualmente, há uma nítida e manifesta
de lazer, e outros. Dessa forma, ao contrário do defesa às Comunidades Terapêuticas, por par-
que é preconizado na Lei 10.216/2001, segun- te do poder público. Ignora-se a atenção e cui-
do a regulamentação vigente acerca das CTs, dado integral, humanizado e em liberdade, em
27
“Ignora-se a atenção e cuidado “As entidades privadas se
integral, humanizado e em baseiam na lógica proibicionista,
liberdade, em serviços de base repressora e excludente, pela
territorial e comunitária, o que é qual o consumo de álcool e

de danos
preconizado pela Lei da Reforma outras drogas é considerado

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001) uma ‘falha de caráter’”

e de redução
e aportada por numerosos

em emergências
tadas, pela grande probabilidade de provocar a
estudos e pesquisas científicas” Síndrome de Abstinência, cuja possibilidade de
acometimento deve ser avaliada singularmente,

antimanicomial
serviços de base territorial e comunitária, o que o que, em geral, não é considerada nesse tipo
é preconizado pela Lei da Reforma Psiquiátrica de instituição, já que defendem a parada abrupta
(Lei nº 10.216/2001) e aportada por numerosos

Psicologia
do uso com a reclusão do sujeito e seu distan-
estudos e pesquisas científicas. A promoção de ciamento das substâncias e da comunidade.

da política
saúde e bem-estar fica subordinada à expan-
são desenfreada de instituições que não pos- As CTs não se utilizam das salas de de-
suem bases técnicas e éticas, que respondem sintoxicação ofertadas por serviços de urgên-

desastres
ao interesse privado e financeiro. cia e emergência, como os Unidades de Pronto

para sustentação
Atendimento (UPA), Pronto Atentimento (PA) e

Cadernos Temáticos CRP SP

eCRP SP
Pronto Socorros (PS), que possuem a função
de acompanhar o primeiro momento em que o
“Há uma nítida e manifesta

Temáticos
em emergências
sujeito cessa o uso da substância, quando é
defesa às Comunidades necessário um acompanhamento intensivo do

subsídios
Terapêuticas, por parte do poder sujeito que passa por uma agressiva mudança

Cadernos
orgânica e mental. A gravidade da imprudência
público”
é potencializada pela falta de qualificação de

Psicologia
drogas:
recursos humanos e emergenciais necessários
para contornar uma situação limite como essa.

e outras
Ademais, com o discurso de promoção de
tratamento, o que se revela é um cenário favo-
rável a violações de direitos e práticas de vio-

CRP Álcool
lência e silenciamento a pessoas já vulnerabi- “Nas CTs, são comuns práticas

SP
lizadas pelo uso de álcool e drogas decorrente
de danos históricos, sociais e políticos por par-
de violência, que podem ser
caracterizadas como tortura,

Temáticos
te do Estado e da sociedade em geral.
bem como: a privação de
SP
As entidades privadas se baseiam na lógi-
CadernosCRP
ca proibicionista, repressora e excludente, pela liberdade e exclusão do convívio Cadernos Temáticos
qual o consumo de álcool e outras drogas é con- social; a laborterapia que se
siderado uma “falha de caráter”. A imposição
moral e religiosa, encontra campo privilegiado, caracteriza nesses espaços
pautando as práticas e discursos, que caracte- como trabalho forçado; a
rizam tais instituições que defendem o discurso negação do direito à privacidade
da “abstinência”, que consiste na imediata para-
da do uso pelo corte abrupto de acesso às subs- e comunicação com o mundo
tâncias e, também, do acesso à sociedade, por externo a essas instituições;
meio do asilamento. punições; contenção física,
A abstinência não é negada na lógica de medicamentosa, mecânica e
Redução de Danos, mas deve ser considerada
singularmente. No caso das CTs, constitui como
espacial; violação de direitos de
base para o enfrentamento do tratamento, o que crianças e adolescentes; além da
consiste em ameaça à vida das pessoas sujei- imposição religiosa”
Nas CTs, são comuns práticas de violên- problemático, afirmando-o como único responsá-
28
cia, que podem ser caracterizadas como tortura, vel e culpado por seu sofrimento. O discurso des-
bem como: a privação de liberdade e exclusão do sas instituições defende que o uso problemático
convívio social; a laborterapia que se caracteriza de álcool e outras drogas diz respeito à uma “falha
nesses espaços como trabalho forçado; a nega- de caráter”, portanto é importante que o sujeito
ção do direito à privacidade e comunicação com trabalhe, “pegue na enxada”, se arrependa de seus
o mundo externo a essas instituições; punições; pecados e recupere sua moral.
contenção física, medicamentosa, mecânica e es-
Art. XXIII. Todo ser humano tem direito ao traba-
pacial; violação de direitos de crianças e adoles-
lho, à livre escolha de emprego, a condições jus-
centes; além da imposição religiosa.
tas e favoráveis de trabalho e à proteção contra
Em princípio, o tratamento oferecido pelas o desemprego. (ONU, 1948, p. 12)
CTs impõe a privação de liberdade, impedindo o
Vale ressaltar que tais práticas, além de ser-
convívio comunitário e familiar, favorecendo rup-
virem a uma lógica coercitiva, atendem também
turas de laços e vínculos institucionais e afeti-
a interesses financeiros, ao passo que alocam
vos. Com isso, o sujeito é expropriado do poder
a força de trabalho dos supostos atendidos em
de estabelecimento de relações sociais de acor-
funções de responsabilidade da instituição, como
do com sua singularidade. O sujeito é anulado e
zeladoria e manutenção do espaço (limpeza, carpi-
sua volição e desejo são obstruídos. Ele é inter-
nagem, entre outros). A prática é também utilizada
ditado como sujeito de direitos básicos, mesmo
como forma de punição para o controle e normati-
que não judicialmente.
zação de comportamentos.

Art. I. Todos os seres humanos nascem livres e Outro termo da díade que norteia a prática des-
iguais em dignidade e direitos. São dotados de sas instituições, o trabalho − forçado, não remu-
razão e consciência e devem agir em relação uns nerado, sem sentido e perspectiva −, recebe aqui,
aos outros com espírito de fraternidade. como nos hospícios, a mesma nomeação: labor-
terapia. Na prática, é nada mais nada menos que
Art. II. Todo ser humano tem capacidade para
a realização de tarefas cotidianas de manuten-
gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
ção da estrutura física da instituição, como lavar,
nesta Declaração, sem distinção de qualquer
passar, cozinhar, etc. O trabalho assume, nesta
espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião,
proposta de tratamento, a mesma adjetivação
opinião política ou de outra natureza, origem na-
dada pelo manicômio e pelas prisões, o caráter
cional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer
de puro imperativo moral. Trabalha-se para com-
outra condição.
bater o ócio, para limitar a liberdade e submeter
Art. III. Todo ser humano tem direito à vida, à li- à ordem. Mas, também, trabalha-se para gerar
berdade e à segurança pessoal. (ONU, 1948, p. 4) lucro para outrem, trabalha-se sem direito a re-
muneração ou a qualquer forma de proteção. A
laborterapia, neste caso, assume caráter análo-
“O discurso dessas instituições go ao trabalho escravo. Um modo de dispensar a
presença de trabalhadores − a suposta laborte-
defende que o uso problemático
rapia ressurge como conceito que justifica a utili-
de álcool e outras drogas diz zação de mão de obra não remunerada, tornando
respeito à uma ‘falha de caráter’, mais lucrativa a atividade institucional. (Conselho
Federal de Psicologia, 2011, p. 192)
portanto é importante que
o sujeito trabalhe, ‘pegue na As contenções do sujeito caracterizam a ló-
gica manicomial adotada, pelas quais os sujeitos
enxada’, se arrependa de seus são silenciados, imobilizados, anulados e invisibili-
pecados e recupere sua moral” zados. O sujeito é impedido de falar, sentir, pensar,
escolher. Há uma gama de formas de contenção:
física, que ocorre pela imobilização por meio da
A prática da laborterapia, comum a essas força física de agentes responsáveis pelo cuidado
instituições, serve à lógica punitivista, que des- dos atendidos; mecânica, realizada por meio de
considera os danos sofridos historicamente pelo instrumentos que impedem movimentos corporais,
sujeito, localizando apenas nele as origens do uso como cordas, faixas e outros; espacial, quando o
sujeito é confinado em espaço delimitado e com Art. 17. O direito ao respeito consiste na invio-
29
acesso restrito por portas e fechaduras; e medi- labilidade da integridade física, psíquica e moral
camentosa, pela qual a administração de medi- da criança e do adolescente, abrangendo a pre-
cações servem ao propósito de inibir funções da servação da imagem, da identidade, da autono-
pessoa, como a fala, o pensamento, o movimento mia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços
corporal ou qualquer forma de expressão do indi- e objetos pessoais.

de danos
víduo. De acordo com a Declaração Universal dos

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade
Direitos Humanos, em seu Artigo V (ONU, 1948, p.
da criança e do adolescente, pondo-os a sal-
5), “Ninguém será submetido à tortura nem a trata-

e de redução
vo de qualquer tratamento desumano, violen-
mento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”
to, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

em emergências
(BRASIL, 1990)

“As contenções do sujeito

antimanicomial
caracterizam a lógica manicomial “Em muitas comunidades
adotada, pelas quais os sujeitos terapêuticas, também é comum

Psicologia
são silenciados, imobilizados, a alocação de adolescentes

da política
anulados e invisibilizados. O no mesmo espaço em que
sujeito é impedido de falar, sentir, permanecem os adultos, o

desastres
pensar, escolher”

para sustentação
que desrespeita a garantia de

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
integridade física, psíquica e moral”

Temáticos
em emergências eCRP
Em muitas comunidades terapêuticas, tam-
bém é comum a alocação de adolescentes no

subsídios
Pode-se observar, também, a ocorrência de
mesmo espaço em que permanecem os adultos,
violações de ordem político-jurídicas, em forma de

Cadernos
o que desrespeita a garantia de integridade fí-
internações compulsórias e involuntárias que não
sica, psíquica e moral. Outrossim, o direito da

Psicologia
drogas:
respeitam os trâmites previstos em lei, como a exi-
criança e do adolescente é comumente violado
gência de laudo médico, esgotamento dos recur-
pela negação de acesso ao convívio familiar e co-
sos comunitários e territoriais anterior à indicação

e outras
munitário, à educação, ao lazer e esportes, entre
de internação, além de desligamento espontâneo
outros (BRASIL, 1990).
e termos de voluntariedade, em caso de interna-

CRP Álcool
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à ção voluntária. (BRASIL, 2001)

SP
liberdade, ao respeito e à dignidade como pesso-
Artigo VI. Todo ser humano tem o direito de ser,
as humanas em processo de desenvolvimento e
em todos os lugares, reconhecido como pessoa

Temáticos
como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais
perante a lei.
garantidos na Constituição e nas leis.

SP
Artigo VII. Todos são iguais perante a lei e têm
CadernosCRP
Art. 16. O direito à liberdade compreende os se-
direito, sem qualquer distinção, a igual proteção Cadernos Temáticos
guintes aspectos:
da lei. Todos têm direito a igual proteção con-
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e tra qualquer discriminação que viole a presente
espaços comunitários, ressalvadas as restri- Declaração e contra qualquer incitamento a tal
ções legais; discriminação.

II - opinião e expressão; Artigo. IX. Ninguém será arbitrariamente preso,


detido ou exilado. (ONU, 1948, p. 6-7)
III - crença e culto religioso;
Observa-se a violação da privacidade e impe-
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
dimento da comunicação com a família e a comu-
V - participar da vida familiar e comunitária, nidade. A violação de correspondências (eletrônica
sem discriminação; ou em papel) e monitoramento de conversas tele-
fônicas e presenciais são práticas comuns nesse
VI - participar da vida política, na forma da lei;
tipo de instituição. Com a justificativa de acessar
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação. conteúdos que sejam relevantes ao tratamento do
indivíduo em sofrimento, em verdade se trata de Percebe-se que a lógica fundante das co-
30
uma prática que viola o direito à sua intimidade, de munidades terapêuticas, que pauta suas práticas,
escolher quando e para quem expressar seus sen- está alicerçada no discurso religioso com base
timentos e afetos (positivos ou negativos), muitas moralista e culpabilizadora. É notória a recorrente
vezes nessa situação de asilamento, a única repre- violação do princípio da laicidade, pela qual deve-
sentação de sua singularidade. Trata-se, portanto se garantir que não haverá imposição de crenças,
de uma forma de silenciamento. práticas e cultos religiosos. No entanto, o que se
identifica é exatamente o oposto, por meios con-
tundentes ou outros mais sutis. Seja pela punição,
“Observa-se a violação da seja pela gratificação, seja pela exposição simbó-
lica, seja pelo funcionamento e organização insti-
privacidade e impedimento da tucional, seja pelo discurso terapêutico com base
comunicação com a família e em imposição de valores.
a comunidade. A violação de Art. XVII. Todo ser humano tem direito à liberda-
correspondências (eletrônica de de pensamento, consciência e religião; este
direito inclui a liberdade de mudar de religião ou
ou em papel) e monitoramento crença e a liberdade de manifestar essa religião
de conversas telefônicas e ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto
presenciais são práticas comuns e pela observância, em público ou em particular.
(ONU, 1948, p. 10)
nesse tipo de instituição”

Outra prática corriqueira nesses ambientes


“As comunidades terapêuticas
é o controle e impedimento de comunicação com
o mundo externo à comunidade terapêutica. Esse constituem espaços férteis
expediente serve, também, para evitar reclama- para a violação de direitos
ções e elucidação às famílias e à sociedade acerca
humanos, cuja lógica adotada
das práticas desenvolvidas nesses espaços. O in-
divíduo é posto em situação de isolamento social, vai na contramão da promoção
negando-lhe o direito de agir sobre sua realidade. do cuidado e acolhimento do
sofrimento e da singularidade do
“O indivíduo é posto em situação sujeito”
de isolamento social, negando-
lhe o direito de agir sobre sua Portanto, as comunidades terapêuticas
constituem espaços férteis para a violação de di-
realidade” reitos humanos, cuja lógica adotada vai na con-
tramão da promoção do cuidado e acolhimento do
sofrimento e da singularidade do sujeito. Em nome
Artigo XII. Ninguém será sujeito à interferência em de um discurso moralista, que “arrebata corações
sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em e mentes” em uma sociedade conservadora como
sua correspondência, nem a ataque à sua honra e a nossa, o que impera é a opressão, a repressão e
reputação. Todo ser humano tem direito à prote- a violação de direitos humanos.
ção da lei contra tais interferências ou ataques.
As comunidades terapêuticas servem ao
Artigo XIX. Todo ser humano tem direito à liberdade projeto “higienista” pela repressão, exclusão e si-
de opinião e expressão; este direito inclui a liberda-
de de, sem interferência, ter opiniões e de procurar,
receber e transmitir informações e idéias por quais-
quer meios e independentemente de fronteiras. “As comunidades terapêuticas
Artigo XX. 1. 1. Todo ser humano tem direito à li- servem ao projeto ‘higienista’
berdade de reunião e associação pacífica. (ONU, pela repressão, exclusão e
1948, p. 10-11) silenciamento”
lenciamento. O direito de volição é retirado pelas Referências 31
relações de poder, pautados na violência infringida
ao sujeito posto em lugar de objeto. As práticas, BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dis-
relações e discursos seguem a lógica manicomial, põe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescen-
constituindo, atualmente, a mais proeminente mo- te e dá outras providências. Brasília, 1990.
dalidade de manicômio. BRASIL. Ministério Da Justiça E Segurança Públi-

de danos
ca. Comunidades Terapêuticas. Disponível em:

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Nessas instituições, ignora-se a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), da qual o <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/politi-
cas-sobre-drogas/backup-senad/comunidades-

e de redução
Brasil é signatário, a Lei da Reforma Psiquiátrica
ou Lei 10.216 (2001), o Estatuto da Criança e do terapeuticas>. Acesso em: 20 de jun. de 2019.

em emergências
Adolescente (1990) e, especificamente no que BRASIL. Ministério da Saúde. Lei nº 10.216, de 06
concerne à prática da Psicologia, o Código de Éti- de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os

antimanicomial
ca Profissional do Psicólogo (2005). direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em
saúde mental. Brasília, 2001.

Psicologia
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS nº

da política
3088. Brasília, 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde. Projeto de Lei Com-

desastres
plementar nº 37. Brasília, 2019.

para sustentação
Cadernos Temáticos CRP SP

SP
BRASIL. Ministério Da Saúde. Política Nacional

eCRP
de Saúde Mental, álcool e outras drogas. Brasí-

Temáticos
em emergências
lia, 2017. Disponível em: <http://www.saude.gov.
br/politica-nacional-de-saude-mental-alcool-e-

subsídios
outras-drogas>. Acesso em: 19 de jun. de 2019.

Cadernos
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório
da 4º Inspeção Nacional de Direitos Humanos:

Psicologia
drogas:
locais de internação para usuários de drogas.
Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: Conse-

e outras
lho Federal de Psicologia, 2011. 200 p.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Huma-

CRP Álcool
nos. 1948. Disponível em <https://nacoesunidas.

SP
org/direitoshumanos/declaracao/>.

Temáticos
CadernosCRP
Cadernos Temáticos SP
32
O sintoma social do uso de álcool 33

e outras drogas e as pessoas em


situação de rua

de danos
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e de redução
Juliana Leite Godoy Veneziani Silva

em emergências
Fernanda Zanetti Cinalli Giovanetti

antimanicomial
Evelyn Sayeg (Frente Estadual Antimanicomial)
Edvaldo Gonçalves de Souza (Movimento Nacional de População de Rua)

Psicologia
Anderson Miranda (Movimento Nacional de População de Rua)

da política
Culturalmente, o uso de drogas e o morar na rua, po- tanto, com o Estado Mínimo, as políticas públicas
dem ser pensados como marcadores significativos são precarizadas ou inexistentes, tornando mais

desastres
para sustentação
de exclusão e marginalização social. É preciso pon- ainda vulnerável a sobrevivência na rua.

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
derar sobre qual o real papel que o Estado tem exer-

eCRP
Essa problemática, evidentemente, é uma
cido no cuidado com a população em situação de rua
condição de sintoma social produzido, portanto, so-

Temáticos
em emergências
que faz uso abusivo de álcool e outras drogas e os
cialmente. E, muito embora, haja uma tendência, na
atravessamentos políticos da “Guerra às Drogas”
perspectiva neoliberal, de individualizar os problemas

subsídios
que despontencializam as práticas de cuidado.
e compreender as dificuldades como relativas ao in-

Cadernos
divíduo - que poderia fazer algo para sair da situação
“precária” em que se encontra e não fez - um olhar

Psicologia
drogas:
“É preciso ponderar sobre qual atento e crítico a situação deixa evidente a comple-
o real papel que o Estado tem xidade da questão e o papel evidente e fundamental

e outras
do social, como produtor de sofrimentos e exclusões.
exercido no cuidado com a
população em situação de rua No decorrer das décadas essa população

CRP Álcool
tornou-se cada vez maior e mais heterogênea,
que faz uso abusivo de álcool e

SP
tendo em comum a falta de habitação, pobreza,
outras drogas” vínculos sociais fragilizados ou inexistentes que

Temáticos
buscam a rua como lugar de sustento e moradia,
tornando-se um problema social que demanda

SP
atenção e cuidados. O percurso traçado pela ação
CadernosCRP
Apesar de não existir dados oficiais que
datam o início da problemática da população em estatal foi o do modelo higienista, buscando solu- Cadernos Temáticos
situação de rua, entende-se que, mundialmente, ções rápidas de “limpeza” das ruas, contribuindo
se deu a partir da Revolução Industrial. Neste para o aumento da estigmatização, preconceitos,
período ocorre a transição do feudalismo para o estabelecendo relações supostas de causalidades
capitalismo e aqueles que não possuíam proprie- que se baseiam somente no senso comum, sem
dades privadas e condições para desenvolver um produzir leituras críticas acerca da problemática.
padrão de consumo foram descartados e passa-
A compreensão da massa da sociedade
ram a sobreviver na rua.
acerca da população em situação de rua aponta
O fundamento do pensamento liberal do séc. para uma visão de que são desprovidos de iden-
XVIII, XIX e neoliberalismo no séc. XX também po- tidade ou história de vida ou que, individualmente,
dem ser considerados outro agravante, por argu- são enfraquecidos e incapazes de empreender e
mentarem que políticas públicas tornavam a po- galgar um modo de vida diferente para si. Apesar
pulação dependente do Estado, e que o progresso de nos depararmos com essas pessoas na rua,
e prosperidade é fruto do trabalho individual. Por- elas, aos poucos, vão se constituindo como par-
te da “paisagem” urbana, se tornam invisíveis aos O fenômeno atual de envelhecimento da po-
34
olhos, à sociedade, banalizados como parte da fo- pulação geral acompanha as ruas, dessa forma, a
tografia local que não mais incomoda e nem causa situação de rua também apresenta peculiaridades
questionamentos. Ficam assim, marginalizados, relativas à faixa etária e histórico de vida e desses
estigmatizados, frequentemente associados à cri- aspectos articulados com o uso de drogas. Como
minalidade e à pobreza. exemplo, temos a condição de uso entre idosos que
se apresenta consideravelmente menor do que em
outras faixas etárias da população em situação de
“Para os usuários de drogas, a rua, ainda que existam diferenças entre os idosos da
rua e acolhidos. Estima-se que, entre os idosos aco-
rua é tanto um fator de risco
lhidos, praticamente não haja uso de drogas ilícitas e
quanto espaço de acolhimento que o consumo de álcool seja menor do que o encon-
e laço social, tanto excludente trado no conjunto dos acolhidos.
quanto inclusivo” Tabela 1 - Uso de álcool e drogas - idosos acolhidos e na rua

Uso de álcool e drogas Acolhidos Rua


Uso de substância psicoativa 37% 68%
Para os usuários de drogas, a rua é tanto
Uso de álcool 35% 62%
um fator de risco quanto espaço de acolhimento e
laço social, tanto excludente quanto inclusivo. Pois, Uso de drogas ilícitas 3% 10%
diante da marginalização social enfrentada, as si- Uso de crack 1% 8%
tuações de vida, vínculos familiares rompidos, fal- Uso de álcool e/ou drogas
62% 70%
ta de acesso a serviços, é nas ruas que é possível antes de ir para rua
encontrar um espaço de aceitação e acolhimento.
(FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS – FIPE, 2015)

“Nas ruas, as drogas podem se “Embora haja uma tendência no


tornar um fator importante para senso comum de compreender
o enfrentamento das diversas que nas ruas o uso maior de
situações adversas e violentas drogas é o de drogas ilícitas, o
que se impõem: a fome, o frio, uso predominante, é o álcool,
as situações abusivas que as independentemente da faixa etária”
pessoas em situação de rua têm
de conviver diariamente”
Embora haja uma tendência no senso co-
mum de compreender que nas ruas o uso maior de
No entanto, é uma falácia a crença de que drogas é o de drogas ilícitas, o uso predominante,
as drogas surgem no contexto da rua. O que é o álcool, independentemente da faixa etária. A
se tem é uma sociedade que passa histórica e partir da análise dos dados referentes ao período
socialmente pela condição de uso de drogas e, anterior à ida para as ruas, tem-se uma proporção
portanto, sabe-se que grande parte das pesso- significativa de usuários de álcool e/ou drogas an-
as que se encontram nas ruas tiveram acesso e tes da chegada às ruas.
fizeram uso de drogas quando ainda não esta-
A rua é um espaço identitário, sendo comum
vam nesta condição. O uso de drogas, portanto,
pessoas em situação de rua se agruparem e cria-
não é uma característica das ruas, mas, sendo
rem uma rede de sociabilidade e solidariedade com
um espaço da sociedade, o uso de drogas tam-
características culturais, organizacionais e linguís-
bém lá se apresenta. Nas ruas, as drogas podem
ticas próprias que se diferenciam das do município
se tornar um fator importante para o enfrenta-
em que estão inseridos.
mento das diversas situações adversas e vio-
lentas que se impõem: a fome, o frio, as situa- Por se tratar de um fenômeno multifacetado,
ções abusivas que as pessoas em situação de considerando que as pessoas são diferentes entre
rua têm de conviver diariamente. si, com trajetórias de vida diferentes, com fatores
“Ignora-se a atenção e cuidado
integral, humanizado e em O uso de drogas, em especial o álcool, existe
35
liberdade, em serviços de base também entre a população de rua e dada a com-
plexidade desta condição que demanda atenção
territorial e comunitária, o que é de diversos setores, tais políticas públicas são im-
preconizado pela Lei da Reforma portantes para atenção a esta problemática social
Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001) e e para o cuidado de pessoas em situação de rua e

de danos
uso abusivo de álcool e drogas. Essas políticas de-
aportada por numerosos estudos

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
vem estar articuladas com serviços de saúde que
e pesquisas científicas” tratam dos usuários de drogas, sustentados pela

e de redução
prática e Política de Redução de Danos1.

em emergências
diversos que contribuíram para a situação de vi-
Contudo, a necessidade de existência de po-
ver na rua, são necessárias estratégias de cuidado
líticas públicas que busquem para a população em
de forma integral e continuado. Este cuidado deve

antimanicomial
situação de rua a real participação social enquanto
considerar a singularidade e a complexidade de
cidadãos é um sinal da dificuldade que se tem nes-
cada pessoa, as demandas causadas pela vulne-
te sentido. É preciso ainda avançar nas Políticas

Psicologia
rabilidade, como uso de drogas, questões de saú-
de Saúde e Assistência Social e avançar para além
de física e mental e higiene.
destas: em outras áreas como Trabalho, Educação,

da política
Um caminho para trabalhar a complexidade Cultura, Lazer, Moradia, Esporte, entre outras.
desse fenômeno é através de políticas públicas que
É fundamental a compreensão tanto da pro-

desastres
reforcem o protagonismo dessa população, a partir

para sustentação
blemática da população em situação de rua quan-

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
de um olhar pela integralidade do sujeito, garantindo
to do uso de drogas como sintomas sociais e não

eCRP
a possibilidade de saída da condição de “elementos
características ou “patologias” individualizáveis,
numa paisagem” e da exclusão social para o de prota-

Temáticos
em emergências
que perversamente culpabilizam o indivíduo e im-
gonismo e alcance de lugar de sujeito no tecido social.
pedem - ou, ao menos, dificultam - sua emergência

subsídios
No Brasil, a redemocratização e a Constituição enquanto sujeito e cidadão.
Federal de 1988 lentamente impulsionam as discus-

Cadernos
sões acerca de políticas públicas sociais e aquelas
“É fundamental a compreensão

Psicologia
drogas:
direcionadas à população em situação de rua. Nos
anos 90, são iniciadas, nacionalmente, manifestações
tanto da problemática da população
sobre a temática de população de rua, dentre elas as

e outras
mais notórias são: Fórum Nacional de Estudos sobre em situação de rua quanto do uso
População de Rua (1993), O grito dos excluídos (1995), de drogas como sintomas sociais e

CRP Álcool
Seminários Nacionais e o 1o Congresso Nacional dos
não características ou ‘patologias’

SP
Catadores de Materiais Recicláveis (2001).
individualizáveis”
Em termos de políticas públicas, em 1993, foi

Temáticos
promulgada a Lei Orgânica de Assistência Social

SP
- LOAS, que dispõe sobre a organização da Assis- Referências
CadernosCRP
tência Social e dá outras providências e institui o
BRASIL. Lei nº 8.742 de 07 de dezembro de 1993. Cadernos Temáticos
CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social.
Dispõe sobre a organização da Assistência Social
Em 2005, é implantado o SUAS – Sistema Único de
e dá outras providências. Brasília, 1993.
Assistência Social e no SUS são implementadas
entre 2010 e 2012 uma Política de Atenção Básica FIPE, Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas.
à Saúde aprimorando o cuidado em saúde também Pesquisa censitária da população em situação de
para a população em situação de rua. rua, caracterização socioeconômica da população
adulta em situação de rua e relatório temático de
Em 2004, após a Barbárie ocorrida nos dias 19
identificação das necessidades desta população
a 22 de Agosto no Centro de São Paulo onde se rotu-
na cidade de São Paulo. São Paulo, 2015. Disponível
lou o “Massacre da Sé” e oito pessoas vieram a óbi-
em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secre-
to, se criou com a participação da População em Si-
tarias/upload/00-publicacao_de_editais/0005.pdf>.
tuação de Rua, o Movimento Nacional da População
de Rua e o Dia Luta Nacional de Luta da População
em Situação de Rua, que luta por políticas públicas 1 No capítulo II e no capítulo VII deste caderno, as temáticas de
Redução de Danos e Intersetorialidade são elaboradas com
intersetoriais com foco nesta população e realidade. mais detalhes
36
Drogas e gênero: denúncias, construção de redes de 37

cuidado, afeto e redução de danos entre mulheres,


uma perspectiva feminista e antiproibicionista

de danos
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Amanda Araújo Amorim (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas)

e de redução
Gleica Rodrigues Tomasoni (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas)

em emergências
Juliana Vicente de Freitas (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas)
Emanoela Priscila Toledo Arruda

antimanicomial
Caroline Cusinato

Psicologia
da política
As violências que sofri estão marcadas no meu dições de maior vulnerabilidade (mulheres negras,

desastres
para sustentação
corpo. Não tem como esquecer. (Ingrid- trecho pobres, periféricas, em situação de rua, prostitutas,

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
de relato colhido durante pesquisa de campo; mulheres trans e travestis), através de diversos me-

eCRP
MALHEIRO, 2019) canismos de controle nos corpos femininos. O cená-

Temáticos
rio agrava-se quando se trata do Estado Brasileiro,

em emergências
[...] tem uma violência que ninguém enxerga, acho
pois, este opera a partir do mandato da masculinida-
que porque é violência contra as mulheres e a gente

subsídios
de e “o uso do aparato repressivo e militar via uso da
mesmo depois fica acuada de denunciar. Vai denun-
violência contra mulheres é o método para reafirmar

Cadernos
ciar pra quem? Ai tem que ficar calada, você vê a
a sanha punitiva e a força de controle do Estado pa-
violência ali com a sua parceira e você não pode fa-

Psicologia
drogas:
triarcal e colonial” (MALHEIRO, p. 237, 2019).
zer nada, porque se você falar pode morrer também,
aí ninguém fala, tem esse silêncio... Isso me mata, eu

e outras
sofro com isso. (Dandara - trecho de relato colhido
durante pesquisa de campo; MALHEIRO, 2019)
“As políticas de Estado proibicionistas
exercem impacto diretamente

CRP Álcool
E o povo quando vê só faz maltratar a mulher, discri-
nas vidas das mulheres em suas

SP
minar mais. Você acha que ela não sente? Ela sente
tudo, e só faz se afundar mais. Cada vez mais ela pluralidades, principalmente aquelas

Temáticos
vai piorando, porque não tem ninguém por ela... Pra
em condições de maior vulnerabilidade
mim se eu tivesse um dia como ajudar elas, essas

SP
meninas, como eu, era de abrir um lugar que elas pu- (mulheres negras, pobres, periféricas,
dessem ir para se desabafar. Um lugar aberto para em situação de rua, prostitutas, CadernosCRP
Cadernos Temáticos
todas as mulheres [...] que realmente cuidasse e des-
mulheres trans e travestis)”
se atenção. (Maria - trecho de relato colhido durante
pesquisa de campo; MALHEIRO, 2019)
Alguns exemplos destes mecanismos volta-
Nossa sociedade é composta por diversos
dos para estas mulheres são: as internações em
modelos de controle estabelecidos por sistemas de
hospitais psiquiátricos, aumento do encarceramen-
opressão capitalista, racista e patriarcal, que acarre-
to, a perda dos filhos para o Estado em nome do ge-
tam em diversas desigualdades, entre elas, a de gêne-
nocídio da população negra e periférica, sequestro
ro, refletindo na vulnerabilização de alguns corpos em
de recém nascidos das mulheres usuárias que estão
detrimento de outros. Neste sentido, há especificida-
em situação de rua, culpabilização e criminalização
des no que diz respeito a temática drogas e gênero.
dos usos que expõem a situações de riscos, contro-
As políticas de Estado proibicionistas exercem le e regulação da reprodução das usuárias de dro-
impacto diretamente nas vidas das mulheres em gas, ofertas de cuidado que não dialogam com as
suas pluralidades, principalmente aquelas em con- necessidades das mulheres, entre outros.
Essas problemáticas serão exploradas em e feminina como resultado da anunciada intensifi-
38
uma perspectiva do feminismo interseccional e cação da “Guerra às Drogas” que representa uma
antiproibicionista, na defesa de uma política de abrangente e disfarçada estratégia de controle
drogas que dialogue com as especificidades das social racializado com forte criminalização da po-
mulheres em diferentes realidades e opressões. breza (ALEXANDER, 2010, apud MALHEIRO, 2019).
O patriarcado e o machismo, enquanto estruturas Os números evidenciam o caráter racista destas
opressoras dos corpos das mulheres, e a proble- prisões para permanência de um projeto estrutural
mática da “Guerra às Drogas”, matam, encarce- de exclusão, inferiorização e exploração, encarce-
ram e vulnerabilizam mulheres que têm cor, en- ramento em massa e genocídio dos corpos negros.
dereço, corpos e sexualidades que desviam das
normas sociais.
“A população carcerária que mais
sobe é a feminina, dentre elas,
“O patriarcado e o machismo,
58% estão presas por tráfico de
enquanto estruturas opressoras
drogas, 68% são negras, 35%
dos corpos das mulheres, e a
foram flagradas nas revistas dos
problemática da ‘Guerra às Drogas’,
presídios”
matam, encarceram e vulnerabilizam
mulheres que têm cor, endereço,
Quando se trata da discussão no âmbito do
corpos e sexualidades que desviam encarceramento feminino, os fatos são alarman-
das normas sociais” tes, visto que o aumento destas prisões foi de
700% nos últimos 10 anos. De acordo com uma
pesquisa realizada pelo ITTC - Instituto Terra, Tra-
balho e Cidadania (2012), a população carcerária
Encarceramento feminino
que mais sobe é a feminina, dentre elas, 58% estão
Muitas vezes é assim. Por isso que muitas mulhe- presas por tráfico de drogas, 68% são negras, 35%
res vão presas. Arruma o marido, o marido pede foram flagradas nas revistas dos presídios e ge-
pra levar droga na cadeia, pede pra fazer um ralmente as substâncias eram para ser entregues
avião, pede pra traficar, pra matar, pra roubar, por a companheiros, filhos ou familiares encarcerados.
amor. (Mônica - trecho de relato colhido durante Os números descritos apontam para uma expres-
pesquisa de campo; MALHEIRO, 2019) são social do fenômeno:
Eu tinha acabado de fumar tudo, peguei quatro Estas mulheres têm as mesmas características
e na mesma da hora pipoquei tudo, justamente sociais, em sua grande maioria são negras, po-
pra não deixar flagrante. Ai os homi me pega, não bre e chefes de família, e foram introduzidas ao
quer nem me ouvir e me leva como se eu fosse tráfico através de um referencial masculino. A
traficante. (Catarina -trecho de relato colhido du- pesquisa também aponta que o papel que a mu-
rante pesquisa de campo; MALHEIRO, 2019) lher exerce na cadeia produtiva do tráfico é sem-
pre uma função de maior vulnerabilidade (mula,
Nas últimas décadas, houve um aumento
aviãozinho etc).(FARIAS, p. 106, 2017)
dramático no encarceramento da população negra

Genocídio e feminicídio
O que acontece é isso, as mulheres morrem
“Os números evidenciam o assim... os caras são covarde só atacam quem
caráter racista destas prisões tá fraca. [...] Morre uma guarita, menos de uma
para permanência de um semana já tem outra pra substituir. (Dandara -
trecho de relato colhido durante pesquisa de
projeto estrutural de exclusão, campo; MALHEIRO, 2019)
inferiorização e exploração, A imagem do corpo dele estendido no chão
encarceramento em massa e todo ensanguentado não me sai da cabeça. Ele
genocídio dos corpos negros” foi morto com tiro nas costas. É certo isso? Ele
deveria no mínimo ter sido julgado, ia preso e Mulheres em situação de rua e direito à 39
depois saia. Essa imagem me destrói. (Berna-
maternidade violado
dete -trecho de relato colhido durante pesqui-
sa de campo; MALHEIRO, 2019) É só descobrirem que você está na rua e fuma
crack que querem tomar a sua criança. São várias
De acordo com dados do Ipea (2013), ocorre
histórias. As mulheres vão para a maternidade
um caso de feminicídio no Brasil a cada 90 minu-

de danos
para ter a criança e o juizado leva. Não quer dar

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
tos. É importante problematizar o perfil das mu-
um apoio, ou nem perguntam se você quer ficar
lheres que estão mais expostas a situações de
com a criança. Depois que tomaram o meu primeiro

e de redução
violência, que são mulheres negras, pobres, pe-
filho eu enlouqueci. Quando fiquei grávida, comecei
riféricas e transexuais. Segundo dados do Atlas
a me cuidar mais e eu juro que queria sair dessa

em emergências
da Violência (2019), entre 2007 e 2017, a taxa de
vida. Tentei abrigo, tentei - Minha Casa, Minha Vida
homicídios de mulheres não negras cresceu 4,5%
e nada. Ai, quando roubaram meu menino, eu me

antimanicomial
enquanto que o feminicídio de mulheres negras
joguei mesmo na pedra. Não queria ficar sã nem 1
aumentou em 29,9%.
minuto para não lembrar que tive o meu filho reti-

Psicologia
rado. Você vai na rua e conversa com outras mu-
lheres e a história só se repete. Quem consegue
“Segundo dados do Atlas da

da política
aguentar uma dor dessa sem surtar? Sem se jogar
Violência (2019), entre 2007 e 2017, a vero no crack?.(Joana - trecho de relato colhido
a taxa de homicídios de mulheres durante pesquisa de campo; MALHEIRO, 2019)

desastres
para sustentação
não negras cresceu 4,5% enquanto Tenho alguns filhos, mas não consegui criar ne-

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
nhum. (Angela - trecho de relato colhido durante

eCRP
que o feminicídio de mulheres pesquisa de campo; MALHEIRO, 2019)

Temáticos
negras aumentou em 29,9%”

em emergências
As razões que levam mulheres a condição de
situação de rua geralmente decorrem de violências

subsídios
Além das mulheres que morrem, vítimas do vividas no contexto doméstico e familiar, renda insufi-

Cadernos
machismo, racismo e também da “Guerra às Dro- ciente que garantam o sustento dos filhos, frágil rede

Psicologia
drogas:
gas”, há também as mulheres mães que perdem os de apoio e ruptura de vínculos sociais. Ao abordar a
filhos pela violência de Estado. Se o racismo, en- temática da maternidade destas mulheres, é possível
quanto engendramento social e político, embasa observar uma violação dos direitos via mecanismos

e outras
essa guerra, que é uma das principais ferramentas estatais de esterilização e o sequestro de suas filhas
para aniquilar sobretudo jovens negros periféricos e filhos. Verifica-se que, geralmente, as denúncias que

CRP Álcool
(RIBEIRO; OLIVEIRA, 2018), as mulheres mães des- justificam tais práticas são de caráter estigmatizan-

SP
sas vítimas estão desamparadas pelas ações de tes, culpabilizantes, preconceituosos e manicomiais.
reparação histórica do processo de escravização
O fenômeno do “crack baby” é denominado

Temáticos
que impacta até hoje a vida de pessoas negras.
por Reinarman e Levine (1997 apud Malheiro, 2019)
Das dores e das dificuldades dessas mulheres

SP
enquanto uma imagem midiática de bebês que são
mães, surgem movimentos como “Mães de Maio”,
CadernosCRP
gerados de um mesmo grupo demográfico e apre-
em SP, grupo que luta pelo combate aos crimes do
sentam problemas físicos e médicos ao nascer de- Cadernos Temáticos
Estado e que também é uma rede de afeto e cuida-
vido às questões de não acompanhamento de pré-
do entre pessoas que perderam familiares neste
natal, má nutrição, abuso e negligência por parte dos
contexto de guerra.
companheiros e uso intenso de drogas. Observa-se
que se trata de um fenômeno de caráter multidi-
mensional e que indica, entre outros fatores, a fragi-
lidade de proteção social para as mulheres usuárias
“As mulheres mães dessas de drogas, principalmente aquelas que são usuárias
com padrão abusivo, em situação de rua, em con-
vítimas estão desamparadas
dição de extrema pobreza, muitas vezes envolvidas
pelas ações de reparação em ocorrências policiais, desassistidas socioecono-
histórica do processo de micamente pelo Estado e sem vínculos institucio-
nais, portanto sem condições materiais para prover
escravização que impacta até
o mínimo necessário para si e seus filhos.
hoje a vida de pessoas negras”
40
“Ao abordar a temática da “A repetição desta violência
maternidade destas mulheres, é na história de suas gestações
possível observar uma violação repercute em uma morte
dos direitos via mecanismos subjetiva destas mulheres,
estatais de esterilização e o decorrente da separação dos
sequestro de suas filhas e filhos” filhos, que mesmo assim não
garante a proteção social
O apelo midiático construiu um consenso
de que as mulheres usuárias de drogas não são
necessária para as crianças”
capazes de exercer a maternidade. Desta forma,
acaba por puni-las ao estabelecer um controle Diante disso, é evidenciada a necessida-
estatal das famílias, sobretudo de pessoas ne- de de pactuar em vez de punir, ter programas de
gras, pobres e indesejadas, baseando-se em dis- cuidado e proteção social em que a usuária pos-
cursos meramente biológicos, em que o uso de sa ser atendida integralmente em sua demanda,
drogas é o principal fator que desencadeia tal si- dando condições materiais e subjetivas para a
tuação, adotando medidas de retirada das crian- promoção dos cuidados garantindo os direitos
ças recém-nascidas ainda na maternidade, sem o das mães e das crianças.
devido atendimento integral psicológico, social e Torna-se importante a implantação de servi-
institucional Mãe-Criança. (REINARMAN E LEVINE, ços especializados, com profissionais capacitados
1997 apud MALHEIRO, 2019). em Redução de Danos para a abordagem e para
o acompanhamento, acolhimento e intervenções
que minimizem as complicações clínicas e/ou obs-
“O apelo midiático construiu tétricas e promovam, assim, a redução de riscos e
um consenso de que as danos necessária para uma melhor qualidade de
vida dessa mulher, seus filhos, sua família.
mulheres usuárias de drogas
não são capazes de exercer a Diante disso, é imprescindível o papel do pro-
fissional capacitado para estabelecer/fortalecer a
maternidade” rotina de atendimento a essas mulheres usuárias
de substâncias psicoativas, identificando ques-
tões, tais quais as de gestantes, tendo um olhar
É possível observar que a repetição desta vio- sensível para todo o contexto que estas mulheres
lência na história de suas gestações repercute em estão inseridas. É preciso utilizar uma abordagem
uma morte subjetiva destas mulheres, decorrente aberta não julgadora, como propõe os princípios
da separação dos filhos, que mesmo assim não ga- da Redução de Danos, facilitando a divulgação
rante a proteção social necessária para as crianças, de informações e considerando a autopercepção
visto que as estas, além da vivência e do estigma contida nos relatos das mulheres, favorecendo a
social de crescerem no sistema de acolhimento pú- intervenção e criação de possibilidade de acesso a
blico, posteriormente reproduzem as trajetórias de serviços especializados, inclusive os de tratamen-
vidas, com os mesmos dilemas e problemas sociais to e alternativas de enfrentamento ao uso abusivo
de suas mães, com vidas marcadas pela miséria, fal- de substâncias psicoativas.
ta de oportunidades e desigualdades sociais fora do
sistema de acolhimento (GOMES, 2019).

Deste modo, é possível constatar que a cons-


trução da proteção social das crianças de modo a “É evidenciada a necessidade
evitar a violação de direitos está em dissonância de pactuar em vez de punir,
com a garantia dos direitos das mães e famílias. ter programas de cuidado
É urgente a necessidade de novas práticas, inter-
pretações e posicionamentos que não contrariem e proteção social em que a
nem a autonomia da mulher, nem a integridade, usuária possa ser atendida
dignidade, saúde e segurança da criança. integralmente em sua demanda”
É imprescindível fazer um recorte do porquê Por conta das diversas dimensões que
41
existe pouca aderência ao pré-natal, quando o tema atravessam o fenômeno, o cuidado, no contex-
é mulheres gestantes usuárias de substâncias psi- to do uso de substâncias psicoativas, deve ser
coativas. Um dos fatores é ausência de atendimen- composto de forma interprofissional e interseto-
to “in loco”, estudos realizados com mulheres usu- rial - saúde, segurança pública, sistemas jurídico,
árias de crack evidenciam que a discriminação e o educacional e de assistência social. (LEPPARD, A.

de danos
preconceito são vistos como barreiras para a procu- et al, DAVIS, JA., 2018). É preciso, portanto, defen-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
ra aos serviços de saúde. As gestantes usuárias de der e promover um trabalho em rede, sensibiliza-
drogas tendem a procurar o serviço de saúde mais ção mobilização e participação coletiva, integra-

e de redução
tarde ou não aderem aos cuidados necessários, lizada e comunitária.

em emergências
compartilhando da crença de que é necessário ces-
sar o uso da droga antes de procurar um profissio-
nal, pois acreditam que com a exposição poderão “O cuidado, no contexto do uso

antimanicomial
enfrentar problemas judiciais como a perda precoce
de substâncias psicoativas,
da guarda de seus filhos. (HOLZTRATTNER, 2010)
deve ser composto de forma

Psicologia
interprofissional e intersetorial

da política
“É preciso utilizar uma abordagem - saúde, segurança pública,
aberta não julgadora, como propõe sistemas jurídico, educacional e
os princípios da Redução de

desastres
de assistência social”

para sustentação
Cadernos Temáticos CRP SP

SP
Danos, facilitando a divulgação

eCRP
de informações e considerando a

Temáticos
em emergências
A redução de danos valoriza o respeito à li-
autopercepção contida nos relatos berdade individual na perspectiva da cidadania e
das mulheres”

subsídios
promoção dos direitos humanos, porém sua ex-
pansão e consolidação enfrentam o desconheci-

Cadernos
mento da proposta, a confusão entre prevenção e

Psicologia
drogas:
repressão, os julgamentos morais e a estigmatiza-
Para as autoras Raupp, Fefferman e Morais
ção do usuário de SPA, inclusive sob novas faces
(2011), muitas vezes os serviços de saúde contra-
da judicialização da saúde mental e da psiquiatri-

e outras
riam a lógica e assim muitos usuários desistem
zação da vida (MACHADO, BOARINI, 2013).
dos cuidados devido a ter que cumprir horários e
rotinas para serem atendidos, sendo isso algo de

CRP Álcool
grande dificuldade para esse público em específi-

SP
co devido às condições sociais de vida. As autoras
“Para mudar a perspectiva do
ainda pontuam que o preconceito que existe pelos cuidado a mulheres é essencial

Temáticos
profissionais de saúde e o fato destes compreen- compreender qual o papel que

SP
derem o uso de drogas com um viés moral, faz com
elas ocupam na sociedade,
CadernosCRP
que esses usuários tenham tratamento diferencia-
do dos demais, o que reforça a necessidade de que como são vistas, assim como Cadernos Temáticos

todos os níveis de atendimento estejam capacita- enfrentarmos e superarmos a


dos dentro das premissas da Redução de Danos.
naturalização das violências
diversas que elas são expostas”
“As gestantes usuárias de drogas
Para mudar a perspectiva do cuidado a mu-
tendem a procurar o serviço lheres é essencial compreender qual o papel que
de saúde mais tarde ou não elas ocupam na sociedade, como são vistas, as-
aderem aos cuidados necessários, sim como enfrentarmos e superarmos a natura-
lização das violências diversas que elas são ex-
compartilhando da crença de que é postas. Enquanto trabalhadoras da saúde mental
necessário cessar o uso da droga somos convocadas a estar atentas sobre as rela-
antes de procurar um profissional” ções que produzimos com as mulheres usuárias
dos serviços de saúde, o histórico de violência e Um exemplo da mobilização desta luta é a
42
aniquilação da subjetividade das mulheres, assim Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas
como os lugares ocupados pelas mulheres dentro (RENFA) que se configura enquanto movimento
dos serviços de saúde. social articulado desde 2014, fundado em 2016 no
I Encontro Nacional de Coletivos Antiproibicionis-
tas, em Recife, que em conjunto com outros movi-
“É preciso avançar em uma mentos propicia a difusão da luta antiproibicionis-
ta em espaços feministas e vice-versa.
perspectiva que rompa com um
‘cuidado’ que oprime, violenta, viola A RENFA é um movimento social que preconi-
za a luta feminista, antirracista, anticapitalista e no
e tem como proposta o modelo de combate a LGBTfobia, gordofobia e demais opres-
sociedade imposto pelo modo de sões que suprimem a liberdade, o bem viver e os di-
produção capitalista” reitos humanos da sociedade. A atuação da RENFA
tem como frente a luta pelo direitos das mulheres,
em especial as mulheres usuárias de drogas, mulhe-
É preciso avançar em uma perspectiva que res encarceradas, moradoras de rua, profissionais do
rompa com um “cuidado” que oprime, violenta, vio- sexo, e se articula em parcerias com movimentos de
la e tem como proposta o modelo de sociedade mulheres feministas e os movimentos sociais com
imposto pelo modo de produção capitalista, o qual vistas à consolidação de direitos sociais e alteração
Estado tem desempenhado, um modelo higienista, de modelos de controle estabelecidos pelos siste-
um modelo violador de direitos, em direção a um mas de opressão racista, patriarcal e capitalista.
cuidado libertário.

Feminismo antiproibicionista “A atuação da RENFA tem como


enquanto luta social, cuidado e frente a luta pelo direitos das
afetividade entre mulheres mulheres, em especial as mulheres
Na rua se você não saber viver ela, se você não usuárias de drogas, mulheres
sabe dar o limite você acaba se perdendo nela. encarceradas, moradoras de rua,
Hoje em dia eu vejo assim e falo assim: um monte
de menina nova, que eu conheço que chegou na profissionais do sexo, e se articula
rua há pouco tempo, tão tudo sofrendo covardia. em parcerias com movimentos
A gente podia se juntar e ensinar elas a se de- de mulheres feministas e os
fender. Como a gente teve quem ensinasse, elas
tem que ter também ne não? O que você acha? movimentos sociais”
(Luanda - trecho de relato colhido durante pes-
quisa de campo; MALHEIRO, 2019)
Somada às ações políticas a militância femi-
Antes eu me via e era vista como sacizeira, era
nista e antiproibicionista produz espaços de afeto,
discriminada. Com essa RENFA eu aprendi a me co-
acolhimento, cuidado em liberdade em uma pers-
locar, aprendi o meu valor. Agora eu sou feminista e
pectiva de autocuidado emancipatório alinhado
minha missão é lutar pela minha maloca, pelas mi-
com a redução de danos e a luta antimanicomial
nhas mulheres, para que elas não passem o que eu
como elucida Farias (2017):
passei na vida. (Chá Preta -trecho de relato colhido
durante pesquisa de campo; MALHEIRO, 2019) É nesse lugar que o movimento antimanicomial e o
feminismo antiproibicionista se encontram, já que o
A “Guerra às Drogas” e a proibição dos usos aparato manicomial é usado também para reprimir,
atingem por diferentes mecanismos de controle as normalizar e excluir as diferenças de gênero. Esse
vidas das mulheres. A partir dessa conjuntura his- potente encontro nos abre possibilidade de apro-
tórica e social e das especificidades de demandas fundar as experiências de cuidado produzidas pelas
coletivas e individuais os movimentos sociais se mulheres em seus territórios, uma experiência de
interseccionam e articulam suas pautas em dire- cuidado que não produz tutela e tem como meto-
ção a garantia de direitos das mulheres vulnerabi- dologia fortalecer o indivíduo para consolidação das
lizadas em diversas instâncias. liberdades individuais e coletivas. (FARIAS, 2017)
As iniquidades sociais afetam as vidas das HOLZTRATTNER, J. S. Crack, gestação, parto e
43
mulheres, e se faz urgente que as políticas públicas puerpério: Um estudo bibliográfico sobre a aten-
e lutas sociais assumam posicionamentos anti- ção à usuária. 58f. Dissertação (curso de enferma-
proibicionistas e que, a partir do princípio da inter- gem) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
setorialidade, promovam e garantam o protagonis- Porto Alegre, 2010.
mo das mulheres, em suas pluralidades, na luta por
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. Te-

de danos
seus direitos e no combate a todas as formas de

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
cer Justiça: presas e presos provisórios da cida-
dominação, violência, opressão e exploração.
de de São Paulo. São Paulo: ITTC, 2012.

e de redução
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA
“As iniquidades sociais afetam

em emergências
APLICADA; IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GE-
OGRAFIA E ESTATÍSTICA. Atlas da violência 2019.
as vidas das mulheres, e se / Organizadores: Instituto de Pesquisa Econômica

antimanicomial
faz urgente que as políticas Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
públicas e lutas sociais Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pes-

Psicologia
quisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Se-
assumam posicionamentos gurança Pública, 2019. (Disponível em: http://www.
antiproibicionistas”

da política
ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_
institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf)

desastres
_________ Violência contra a mulher: feminicí-

para sustentação
dios no Brasil. Brasília: Ipea; IBGE, 2013. Dispo-

Cadernos Temáticos CRP SP

eCRP SP
nível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/
stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_

Temáticos
em emergências
leilagarcia.pdf)

subsídios
LEPPARD. A, RAMSAY. M, DUNCAN. A, MALA-
CHOWSKI C, Davis JA. Interventions for women

Cadernos
with substance abuse issues: a scoping re-

Psicologia
drogas:
view. Am J Occup Ther. 2018;72(2):1-8.(Disponível
em: http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2018.022863.
PMid:29426381.)

e outras
MACHADO L.V, BOARINI M.L. Políticas sobre
drogas no Brasil: a estratégia de redução de

CRP Álcool
danos. Psicol. Cienc. Prof. 2013;33(3):580-95.

SP
(Disponível em: http://dx.doi. org/10.1590/S1414-
98932013000300006.)

Temáticos
Referências
MALHEIRO, L.S. B. Tornar-se usuária de crack: traje-

SP
BOARINI, M.L. Atenção à saúde mental: um outro tórias de vida, cultura de uso e política sobre drogas
olhar. In: BOARINI, M.L. (Org.). Desafios na atenção no centro de Salvador, Bahia. 2019. Tese de mestrado CadernosCRP
Cadernos Temáticos
à saúde mental. Maringá: Eduem, 2ª ed. 2011. (Programa de Pós-.Graduação em Antropologia)- Uni-
FARIAS, I. Nem loucas, nem criminosas: “A resistên- versidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
cia da luta feminista frente aos modelos de con- OLIVEIRA, Nathália e RIBEIRO, Eduardo. O Mas-
trole”. In : PEREIRA, M. O. ; PASSOS, R. G. Luta antima- sacre Negro Brasileiro na Guerra às Drogas.
nicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e SUR 28 - v.15 n.28 • 35 - 43 | 2018 (Disponível
classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de em: https://sur.conectas.org/wp-content/uploa-
Janeiro: EDITORA AUTOGRAFIA, 2017, p. 101-109. ds/2019/05/sur-28-portugues-nathalia-oliveira-
GOMES, J. D. G. O direito à família. A sociedade e-eduardo-ribeiro.pdf)
face à mãe e à criança em situação de rua. Jor- RAUPP, Luciane; FEFFERMAN, Marisa; MORAIS,
nal da Unicamp. (Disponível em: https://www. Maria de Lima Salum. A saúde pública e o aten-
unicamp.br/unicamp/index.php/ju/artigos/direi- dimento aos usuários de crack. In: Boarini, Maria
tos-humanos/o-direito-familia-sociedade-face- Lucia (Org.). Desafios na atenção à saúde mental.
mae-e-crianca-em-situacao-de-rua.) Maringá: Eduem. p.175-188. 2011.
44
Da situação irregular aos sujeitos 45

de direitos:

de danos
será que avançamos na ausência de sentimento de uma

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
particularidade infantil quando tratamos do uso de álcool

e de redução
e outras drogas na infância e juventude brasileiras?

em emergências
antimanicomial
Cláudia Capelini Picirilli

Psicologia
da política
Antes de iniciarmos este tema complexo e plural é décadas não é raro ouvirmos estes termos em pro-
importante localizarmos o leitor nos recortes etá- nunciamentos midiáticos ou mesmo por profissio-
rios em pauta. Não apenas por uma questão de nais vinculados ao Sistema de Garantia de Direitos

desastres
para sustentação
organização textual, mas especialmente porque (Poder Judiciário, Conselho Tutelar, rede de prote-

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
compreender o uso de álcool e outras drogas em ção, etc) e, também, por psicólogas e psicólogos.

eCRP
cada momento da vida humana é essencial para

Temáticos
As legislações que antecederam o ECA são

em emergências
a construção de estratégias de cuidado no campo
denominadas Código de Menores. O primeiro Có-
da Psicologia e da Saúde Coletiva.
digo data de 1926 e o segundo foi publicado em

subsídios
Segundo o Estatuto da Criança e do Ado- 1979. Em especial nesta última publicação, crian-

Cadernos
lescente (ECA) considera-se crianças os sujeitos ças e adolescentes que vivenciavam diversas for-
com até 12 anos incompletos e adolescentes os mas de violação de direitos eram consideradas em

Psicologia
drogas:
que contam com idade entre 12 anos e 18 anos situação irregular.
incompletos (BRASIL, 1990). Por sua vez, são con-

e outras
sideradas pessoas jovens aquelas cuja idade está Para os efeitos deste Código, considera-se em
entre 15 anos e 29 anos (BRASIL, 2013), de acordo situação irregular o menor: I - privado de con-

CRP Álcool
com o Estatuto da Juventude. dições essenciais à sua subsistência, saúde e

SP
instrução obrigatória, ainda que eventualmente,
em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais

Temáticos
“Palavras como ‘menor’ e ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos
pais ou responsável para provê-las; II - vítima de
‘delinquente’ permeavam os
SP
maus tratos ou castigos imoderados impostos
CadernosCRP
antigos textos legais entoando pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, Cadernos Temáticos
o lugar pejorativo ocupado em devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em
ambiente contrário aos bons costumes; b) explo-
tempos não tão distantes” ração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência le-
gal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
Estas duas legislações – o ECA e o Estatu-
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave
to da Juventude – são conquistas jurídicas extre-
inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de
mamente importantes. Isto porque as legislações
infração penal. (BRASIL, 1979, Art. 2º)
anteriores marginalizavam a infância e a adoles-
cência – a camada pobre desta população – e as Parece-nos que as violências perpetradas
remetiam ao lugar de objetos de intervenção do pelo Estado e pelos adultos eram consideradas
Estado. Palavras como “menor” e “delinquente” uma afronta ao bom funcionamento social e não
permeavam os antigos textos legais entoando o uma violação de direitos. Portanto, a compreen-
lugar pejorativo ocupado em tempos não tão dis- são de que crianças e adolescentes são sujeitos
tantes. Apesar dos avanços ocorridos nas últimas de direitos somente foi conquistada com a pro-
mulgação do ECA, em 1990. Esta é uma das ra- apontam que a sociedade passou a compreender
46
zões pelas quais os termos outrora citados pas- a infância como parte específica do desenvolvi-
sam a ser considerados pejorativos. mento humano, somente, no século XIX quando
“os higienistas perceberam que todo o sistema
familiar herdado da colônia tinha sido montado
“A compreensão de que crianças para satisfazer as exigências da propriedade e as
necessidades dos adultos” (COSTA, 1989, p. 169
e adolescentes são sujeitos de citado por RIBEIRO, 2006, p. 30).
direitos somente foi conquistada
com a promulgação do ECA, em
1990” “São os adultos, e suas múltiplas
formas de produção de vida,
quem ocupam as cenas dos
Respeitando a fase de desenvolvimento de
cada sujeito, o ECA desconstrói a tutela do Es-
palcos sociais – utilizando-se
tado e o poder do adulto – (pseudo)detentor do desta metáfora, a criança não
saber – e começa a construir o entendimento de passava de um simples figurante
que crianças e adolescentes são sujeitos com voz
e com vez, inseridos em histórias de vidas cons-
neste contexto”
truídas a partir de um tempo e de um espaço mui-
to particulares, devendo a família, a sociedade e
É a partir deste século que a medicina e a
o Estado lhes “assegurar, com absoluta priorida-
ciência ganham mais espaço, importância e po-
de, a efetivação dos direitos referentes à vida, à
der. Aliados a esse movimento está um passado
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
de incontáveis mortes prematuras, derivadas da
lazer, à profissionalização, à cultura, ao respeito,
falta de saneamento básico e de recursos de in-
à liberdade e à convivência familiar e comunitária”
tervenção em doenças como a varíola e o saram-
(BRASIL, 1990, Art. 4º).
po, por exemplo.
Igualmente, “o jovem tem direito à saúde e à
Com a chegada da República a medicina e o direi-
qualidade de vida, considerando suas especifici-
to lançaram luz sobre as crianças pobres. Dado o
dades na dimensão da prevenção, promoção, pro-
aumento da população de baixa renda, por conta
teção e recuperação da saúde de forma integral”
da imigração europeia e da libertação dos escra-
(BRASIL, 2013, Art. 19).
vos, as crianças abandonadas passaram a ser
Assim sendo, qual o lugar de cuidado para introduzidas em um discurso até, então, ocupa-
estes sujeitos quando falamos sobre o uso de ál- do pelas classes mais altas. A prática médica, na
cool e outras drogas? medida em que se tornava cada vez mais cientí-
fica, impunha normas de saúde em benefício da
sociedade, influenciadas pelo positivismo, pelo
Política de Saúde Mental Infanto- evolucionismo e pelo darwinismo. (RIBEIRO, 2006
Juvenil apud PICIRILLI, 2018, p. 58).

Historicamente a infância – e podemos incluir Entender, mesmo que brevemente, estes


também a adolescência – sofreu com a ausência processos históricos nos oferta condições para
de lugar no cerne da sociedade e das famílias. questionarmos: e hoje? Qual o lugar de cuida-
Partindo dos estudos protagonizados por Ariès do ofertado à infância e à adolescência? Qual o
(1973/1981), entendemos que desde os tempos olhar da sociedade brasileira sobre estes sujei-
mais remotos são os adultos, e suas múltiplas tos em pleno desenvolvimento biopsicossocial?
formas de produção de vida, quem ocupam as Superamos a ausência de sentimento desta
cenas dos palcos sociais – utilizando-se desta particularidade infantil tão estudada por Ariès
metáfora, a criança não passava de um simples fi- (1973/1981)? Será que, enquanto campo das po-
gurante neste contexto. Traduzindo na linguagem líticas públicas, temos conduzido cuidados que
do autor, não havia nos séculos passados um sen- questionam e enfrentam o modelo higienista e
timento de infância que ofertasse lugar às crian- moralista que fundaram a nossa sociedade e as
ças, consideradas pequenos adultos. Estudos práticas em saúde no Brasil? Pontos como es-
tes precisam de revisões recorrentes no cam- sistência Médica e Previdência Social (INAMPS)1. O
47
po da Psicologia, especialmente em tempos de direito à saúde como condição inerente à cidada-
retrocessos e de legitimação das violações de nia foi um dos eixos de trabalho da VIII CNS, assim
direitos, como os que temos presenciado mais como a reorganização do Sistema de Saúde e seu
recentemente no cenário nacional e em outros financiamento. Este direito foi então incluído na
países que alimentam sistemas multibilionários Promulgação da Carta Cidadã, ou seja, da Consti-

de danos
advindos dos lucros produzidos pelo adoecimen- tuição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e, dois anos

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
to populacional, sem que um cuidado moral e éti- depois, oficializada na publicação da Lei nº 8080
co fosse lançado à população, em especial, aos que instituiu o SUS (BRASIL, 1990b).

e de redução
mais pobres e socialmente vulneráveis. Havería-
O nascimento do SUS marca o início da cria-

em emergências
mos superado o modelo higienista?
ção de um sistema de saúde que buscará a cons-
trução de uma sociedade justa e igualitária – este

antimanicomial
era o mote do Movimento Sanitário2. Esta ainda é
“E hoje? Qual o lugar de a nossa razão de luta e resistências!
cuidado ofertado à infância

Psicologia
e à adolescência? Qual o
“O nascimento do SUS marca

da política
olhar da sociedade brasileira
o início da criação de um
sobre estes sujeitos em
sistema de saúde que buscará

desastres
pleno desenvolvimento

para sustentação
a construção de uma sociedade

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
biopsicossocial?”

eCRP
justa e igualitária”

Temáticos
em emergências
Este tema nos convida a amplos e constan-

subsídios
Contudo, foi na III Conferência Nacional de
tes diálogos. Não podemos nos furtar do incô-
Saúde Mental (CNSM), ocorrida em 2001, que a

Cadernos
modo que ele nos provoca. Contudo, como nosso
história da saúde mental infanto-juvenil começou
espaço é limitado cabe-nos deixar estas provo-

Psicologia
drogas:
a tomar novos rumos. Além de dar prioridade ao
cações para o leitor, sem estabelecer qualquer
tema, este espaço convocou
modelo de verdade, mas, apenas, apresentá-los

e outras
com propositura para o exercício constante da [...] o Estado brasileiro à tomada de responsabi-
reflexão crítica e científica. lidade pelo cuidado e tratamento de crianças e
adolescentes com problemas mentais, afirmando

CRP Álcool
Isto posto, vamos nos ater ao ponto que
a necessidade de esse cuidado ser pautado no

SP
nos encaminhou até aqui. O uso de álcool e ou-
reconhecimento delas como sujeitos psíquicos e
tras drogas, quer seja na infância ou em qual-
de direitos, ser exercido em dispositivos de base

Temáticos
quer etapa da vida humana, é considerada uma
questão de saúde e, ainda mais, de saúde men-

SP
tal. Qual o lugar de cuidado para as demandas
CadernosCRP
1 O Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência So-
desta natureza? cial (INAMPS) foi um regime previdenciário que se extinguiu
Cadernos Temáticos
em 1993, na gestão do Presidente Itamar Franco – que assu-
miu o cargo após o impeachment de Fernando Collor. Neste re-
Quando falamos em avanços e conquistas gime, somente os profissionais formais, ou seja, com registro
em carteira de trabalho, tinham acesso aos serviços públicos
no campo da política de saúde logo nos lembra- de saúde no país.
mos da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS),
2 O Movimento Sanitário Brasileiro iniciou-se na década de
realizada em 1986, afinal, foi neste espaço de 1970 a partir da sociedade civil organizada, dos trabalhado-
construção coletiva que os movimentos sociais, os res e pesquisadores que reivindicavam, entre outros pleitos, a
reorganização do Sistema de Saúde. Seu auge foi vivenciado
trabalhadores (incluindo psicólogas e psicólogos), no momento mais crítico e violento do Regime Militar, a vigên-
usuários e familiares introduziram o tema no diálo- cia do Ato Institucional nº 5 (AI-5). A partir da luta de brasilei-
ras e brasileiros a Reforma Sanitária conquista um sistema de
go com o Estado recém saído de um golpe militar
saúde com acesso universal, o Sistema Único de Saúde (SUS).
que durou 21 anos. Esta Conferência começou a Contudo, de acordo com Picirilli (2018, p. 20), “o Movimento da
desenhar o Sistema Único de Saúde (SUS) como Reforma Sanitária (MRS) não fez da criação do SUS um fim
em si mesmo. O SUS é parte da Reforma Sanitária, mas não o
um sistema universal – ou seja, de acesso a todos todo, porque o todo envolve a busca ininterrupta pela garan-
e não somente aos trabalhadores formais, como tia de direitos, entre eles, o direito à saúde – indissociável do
direito à cidadania – e o direito a uma sociedade justa. Logo,
era o antigo regime do Instituto Nacional de As- passamos a compreender que este processo não acabou”.
comunitária, calcado na lógica do território e da Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
48
operação em rede, e ter a inclusão social possível são equipamentos substitutivos ao modelo mani-
a cada um como o norte ético da ação de cuida- comial que passaram a ser implantados no Brasil
do. (COUTO, 2015, p. 22) a partir da aprovação da Lei 10.216/01. Esta lei, de
autoria do então Deputado Federal Paulo Delgado,
De acordo com Couto (2015) esta Conferên-
tramitou por mais de 20 anos no Congresso Na-
cia aprovou um encadeamento de orientações
cional e tem como inspiração o movimento da Psi-
elaboradas em um seminário nacional realizado
quiatria Democrática de Franco Basaglia3. A lógica
pouco tempo antes para abordar a temática. Este
de cuidado destes serviços é o tratamento aos
seminário contou com a presença de diversos
sujeitos em importante sofrimento psíquico – deri-
estados e setores públicos. As orientações apro-
vado ou não do uso de álcool e outras drogas. Um
vadas em Conferência deram origem aos prin-
cuidado territorial, de porta-aberta, em liberdade
cípios norteadores da Política de Saúde Mental
que oferte condições dignas de atendimento e tra-
Infanto-Juvenil, a saber: 1) criança e adolescen-
tamento em equipe interdisciplinar. Estes serviços,
te são sujeitos; 2) estes sujeitos devem receber
de acordo com a Portaria nº 336 (BRASIL, 2002)
acolhimento universal em quaisquer equipamen-
são divididos da seguinte forma:
tos públicos; 3) os encaminhamentos para os di-
versos serviços da rede de proteção devem ser CAPS I: apresenta capacidade operacional para
responsável; 4) é necessário um cuidado integral atendimento em municípios com população entre
que envolva a construção de rede intersetorial e 20.000 e 70.000 habitantes, com funcionamento
territorial; 5) é preciso compreender a noção de entre 8h00 e 18h00, de segunda à sexta-feira.
território como o espaço afetivo e vivencial de
CAPS II: apresenta capacidade operacional para
crianças e adolescentes (BRASIL, 2005).
atendimento em municípios com população entre
Executar estes princípios no cuidado de 70.000 e 200.000 habitantes, com funcionamento
crianças e adolescentes, incluindo os que envolvem entre 8h00 e 18h00, de segunda à sexta-feira.
questões relacionadas ao uso de álcool e outras
CAPS III: apresenta capacidade operacional para
drogas, é desenvolver uma práxis emancipadora e
atendimento em municípios com população aci-
combativa ao modelo de reparação e de “conser-
ma de 200.000 habitantes, com atendimento 24h
to” fortemente enraizados em nossa sociedade por
por dia, durante os sete dias da semana, de for-
conta de nossa história higienista e por conta das
ma ininterrupta. (BRASIL, 2002)
ações voltadas à infância em situação irregular.
Como esse cuidado acontece na prática? As modalidades previstas na legislação são
serviços de atendimento a crianças e adolescentes
Couto e Delgado (2015) afirmam que dois
em importante sofrimento psíquico (CAPSi ou CAP-
meses após a realização da III CNSM o Ministé-
Sij), adultos em sofrimento psíquico grave e persis-
rio da Saúde publicou a Portaria nº 336/2002 que
tente (CAPS) e adultos em sofrimento relacionado
contou com um capítulo destinado à criação dos
ao uso de álcool e outras drogas (CAPS AD).
Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis,
os CAPSi ou CAPSij. A criação destes dispositivos foi um avanço
imensurável à Política Nacional de Saúde Mental.
Os CAPS são o modelo de cuidado que não pode
ser preterido por nossos governantes. Eles são
“A lógica de cuidado destes uma conquista que aliou a luta da população, dos
serviços é o tratamento pesquisadores, dos familiares e dos trabalhado-
res e derivou de experiências internacionais exi-
aos sujeitos em importante tosas e congruentes com a Declaração Universal
sofrimento psíquico – derivado dos Direitos Humanos.
ou não do uso de álcool e outras
drogas. Um cuidado territorial, 3 De acordo com Picirilli (2018, p. 36), “o movimento da Psiquiatria
de porta-aberta, em liberdade Democrática de Basaglia implicou em criação de dispositivos
de cuidado como: os hospitais abertos, os centros de atenção
que oferte condições dignas de psicossocial (CAPS), as residências terapêuticas. Esses novos
dispositivos inspiraram a reforma psiquiátrica brasileira, que
atendimento e tratamento em teve início no final da década de 1970, com o Movimento de
Trabalhadores em Saúde Mental que denunciavam as violên-
equipe interdisciplinar” cias e as precárias condições dos manicômios no país”.
Todavia, no que se refere ao cuidado in- outras drogas também é fundamental. É no es-
49
fanto-junvenil, apesar do CAPSi constituir “a pri- paço do CAPS AD que os jovens com mais de
meira ação concreta oriunda da nova posição do 18 anos devem ser cuidados quando há o uso
Estado brasileiro frente às questões da saúde considerado nocivo de substâncias psicoativas,
mental de crianças e adolescentes”, de acordo lícitas ou ilícitas.
com Couto e Delgado (2015, p 34) ainda é bas-
E quando esta rede de cuidados falha? E

de danos
tante precário o número de serviços implantados

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
quando os municípios não investem na implan-
no país - quando compararmos com a implanta-
tação destes serviços? O resultado produz não
ção dos CAPS para adultos em um mesmo perío-

e de redução
somente violações de direitos como também
do. Ainda de acordo com estes autores, no Brasil
sofrimento ocupacional aos profissionais da

em emergências
havia somente 183 serviços no modelo de CAPSi
Psicologia e de outros núcleos de conhecimen-
no ano de 2013. Neste mesmo período, já haviam
to. Ficamos imóveis diante do crime organiza-
sido implantados aproximadamente 2000 CAPS

antimanicomial
do, seja ele vestido de Estado ou facções. Um
para adultos.
exemplo (entre muitos) são os adolescentes que
se envolvem com o tráfico de drogas – seja para

Psicologia
complementar a renda familiar e/ou inserir-se
“No Brasil havia somente em uma sociedade consumista, ou por quaisquer

da política
183 serviços no modelo de outras razões – e são ameaçados de morte. Ou
CAPSi no ano de 2013. Neste ainda, são abordados pela polícia e encaminha-

desastres
dos à Fundação CASA. Ficam privados de liber-

para sustentação
mesmo período, já haviam sido dade como se fossem eles os responsáveis pela

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
implantados aproximadamente

eCRP
indiscriminada e bilionária venda de substâncias
2000 CAPS para adultos” ilícitas pelas ruas das cidades.

Temáticos
em emergências
subsídios
Ampliar a rede de CAPSi é um dos grandes “E quando esta rede de cuidados

Cadernos
desafios que se inscrevem ao poder público. Mas,
falha? E quando os municípios
não é o único. Os enfrentamentos aos desmon-

Psicologia
drogas:
tes, o sucateamento das relações trabalhistas não investem na implantação
e o aumento indiscriminado no investimento às destes serviços? O resultado

e outras
chamadas Comunidades Terapêuticas são en-
produz não somente violações
frentamentos necessários à nossa categoria, ao
lado do Sindicato das Psicólogas e Psicólogos e de direitos como também

CRP Álcool
dos Conselhos Regionais. sofrimento ocupacional aos

SP
profissionais da Psicologia e de

Temáticos
“Os enfrentamentos aos outros núcleos de conhecimento”

SP
desmontes, o sucateamento das
relações trabalhistas e o aumento O combate às drogas na verdade é o com- CadernosCRP
Cadernos Temáticos
bate às populações mais pobres. A “Guerra às
indiscriminado no investimento Drogas” é uma guerra higienista, pois ela não se
às chamadas Comunidades ocupa dos grandes empresários do tráfico en-
Terapêuticas são enfrentamentos volvidos com a política e com o Estado que lhes
ofertam a proteção que os adolescentes amea-
necessários à nossa categoria, ao çados não poder contar.
lado do Sindicato das Psicólogas
e Psicólogos e dos Conselhos
Regionais”
“O combate às drogas na verdade
é o combate às populações mais
De igual modo, o fortalecimento da rede pobres. A ‘Guerra às Drogas’ é
de cuidados para adultos usuários de álcool e uma guerra higienista”
E como se não bastasse a violação vinda dentre outros desdobramentos cessa o fecha-
50
de quem tem a obrigação de nos proteger, ainda mento dos leitos psiquiátricos (BRASIL, 2017) –
convivemos com discursos de ódio produzidos mobilizando uma força centrípeta4 que demanda
por nosso próprio grupo de trabalho: psicólogas luta e resistências de todas e todos nós.
e psicólogos que em nome de suas crenças reli-
Não podemos reduzir fenômenos tão com-
giosas ou morais particulares remontam discur-
plexos a um olhar moralizante que criminaliza
sos dos tempos do Código de Menores.
sem questionar. Este tipo de alienação produz
um fazer iatrogênico por parte da Psicologia5. É
isso que desejamos para a nossa profissão? É
“Convivemos com discursos este lugar que pretendemos defender? A ética vai
de ódio produzidos por nosso muito além de um código normativo de condutas
próprio grupo de trabalho: profissionais. Ela diz de uma dimensão humana
que compreende o outro a partir de um proces-
psicólogas e psicólogos que em so sócio-histórico-cultural, a partir da experiên-
nome de suas crenças religiosas cia singular deste sujeito que não sou eu. É uma
ou morais particulares remontam árdua tarefa, sabemos bem, mas imprescindível
para conduzirmos uma ciência crítica e combati-
discursos dos tempos do Código va às violências autorizadas e (re)produzidas em
de Menores” nome da moral e dos bons costumes.

Não se trata, obviamente, de defender “É isso que desejamos para a


o uso e abuso de substâncias psicoativas por
crianças, adolescentes e jovens, mas sim de
nossa profissão? É este lugar
convidar-nos à uma reflexão mais ampla: do que que pretendemos defender?
falamos quando nossos argumentos caminham A ética vai muito além de um
no sentido de uma limpeza social? No mínimo,
pronunciamentos como os que temos presencia-
código normativo de condutas
do cedem à uma análise profunda e eticamente profissionais. Ela diz de
necessária sobre os fenômenos de que trata- uma dimensão humana que
mos. Será que estas manifestações apresentam
o mesmo fervor e entonação quando o assunto
compreende o outro a partir de um
é o uso indistinto de medicações autorizadas processo sócio-histórico-cultural,
pela medicina, e que entorpecem crianças, ado- a partir da experiência singular
lescentes e jovens que não se encaixam numa
sociedade desenhada pela burguesia?
deste sujeito que não sou eu”

“Do que falamos quando nossos Referências


argumentos caminham no AKIMOTO JUNIOR, Cláudio Kazuo; MORETTO,
Maria Lívia Tourinho. Reflexões acerca do po-
sentido de uma limpeza social?” tencial iatrogênico das psicoterapias no cam-
po da Saúde Mental. Rev. SBPH, Rio de Janeiro,
v. 19, n. 1, p. 76-102, jun. 2016. Disponível em
Considerações Finais <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
A construção deste Caderno Temático traz o arttext&pid=S1516-08582016000100006&lng=pt
desafio do enfrentamento aos desmontes vi- &nrm=iso>. Acesso em 28 jun. 2019.
venciados pelos usuários, familiares, trabalha-
dores e pesquisadores nos últimos tempos, com
4 “O termo centrípeta significa aquilo que aponta para o cen-
acento especial aos últimos anos – momento de tro” (JUNIOR, s/d).
enaltecimento das Comunidades Terapêuticas e
5 A possibilidade de danos ou prejuízos causados pelo trata-
dos retrocessos na Política de Saúde Mental – mento de saúde a um paciente é comumente referida pelo
a partir da publicação da Portaria nº 3588, que conceito de iatrogenia” (TAVARES, 2007 apud AKIMOTO JU-
NIOR; MORETTO, 2016, p. 78).
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/
51
família. Tradução de Dora Flaksman. 2. ed. Rio de pdf/2015/marco/10/Caminhos-para-uma-Poli-
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Psicologia em emergências e desastres

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antimanicomial
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República Federativa do Brasil de 1988. Dispo- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código
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Cadernos Temáticos CRP SP

eCRP SP
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Temáticos
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1990a. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do COUTO, Maria Cristina Ventura; DELGADO, Pe-

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htm. Acesso em 22 jun. 2019. são tardia, desafios atuais. Psicol. clin., Rio de

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drogas:
Janeiro, v. 27, n. 1, p. 17-40, July 2015. Disponível
_____. _____. _____. Lei nº 8.080 de 19 de setem-
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
bro de 1990b. Dispõe sobre as condições para a
arttext&pid=S0103-56652015000100017&lng=en

e outras
promoção, proteção e recuperação da saúde, a
&nrm=iso>. Acesso em 28 jun. 2019.
organização e o funcionamento dos serviços cor-
respondentes e dá outras providências. Disponível JÚNIOR, Joab Silas Da Silva. “O que é força centrí-

CRP Álcool
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SP
htm. Acesso em 28 jun. 2019. silescola.uol.com.br/o-que-e/fisica/o-que-e-forca-
centripeta.htm>. Acesso em 28 de junho de 2019.

Temáticos
_____. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro.
Portaria nº 336 de 19 de fevereiro de 2002. Es- PICIRILLI, Cláudia Capelini. No olho do furacão: a

SP
tabelece que os Centros de Atenção Psicossocial transição de um Ambulatório de Saúde Mental
poderão constituir-se nas seguintes modalidades Infanto-Juvenil para CAPsi, na perspectiva da so- CadernosCRP
Cadernos Temáticos
de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos cioanálise. Dissertação [mestrado profisisonal].
por ordem crescente de porte/complexidade e Faculdade de Ciências Médicas/ Universidade Es-
abrangência populacional, conforme disposto nes- tadual de Campinas (FCM/Unicamp). Campinas,
ta Portaria. Disponível em http://bvsms.saude.gov. SP: 2018. Disponível em http://repositorio.uni-
br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002. camp.br/jspui/handle/REPOSIP/331947. Acesso
html. Acesso em 28 jun. 2019 em 28 jun 2019.

_____. Ministério da Saúde. Secretaria de Aten- RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. História da saúde
ção à Saúde. Departamento de Ações Progra- mental infantil: a criança brasileira da Colônia à Re-
máticas Estratégicas. Caminhos para uma po- pública Velha. Psicol. estud., Maringá, v. 11, n. 1, p.
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Brasília/DF: Ministério da Saúde; 2005. Capítulo lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
2, Princípios para uma Política Nacional de Saú- 73722006000100004&lng=en&nrm=iso> Acesso
de Mental Infanto-Juvenil, p.11-4. Disponível em em 28 jun 2019.
Algumas considerações sobre as 53

práticas intersetoriais e a temática


de álcool e outras drogas

de danos
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e de redução
Fernanda Zanetti Cinalli Giovanetti

Psicologia
da política em emergências
antimanicomial
A complexidade da questão de álcool e outras dro- ário, com sua contribuição e no território. Pretende
gas (AD) demanda necessariamente a articulação ser assim, um cuidado sem violência, sem imposi-
de atores e diferentes setores para sua compre- ções e saindo da lógica centrada no poder médico

desastres
para sustentação
ensão e atuação em diversos níveis. Contudo, es- - ou qualquer outro poder institucionalizado, que

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
tamos diante de um momento no qual se faz cada implica que este é detentor de saber sobre algo do

eCRP
vez mais intensa a simplificação das coisas e, nes- sujeito em questão - quando na verdade, só pode

Temáticos
em emergências
te quesito, menos não é mais! saber algo sobre a suposta patologia generalizá-
vel para todos e, portanto, nada de sujeito algum.

subsídios
(Giovanetti, 2018).
“Na lógica do religiosismo e

Cadernos
do posicionamento ideológico,

Psicologia
drogas:
“Pretende ser assim, um cuidado
facilmente se cai numa perspectiva
sem violência, sem imposições e
moral, na qual não é possível se

e outras
saindo da lógica centrada no poder
construir um fazer e um modo de
médico - ou qualquer outro poder

CRP Álcool
compreensão conjuntos”
institucionalizado, que implica que

SP
este é detentor de saber sobre algo

Temáticos
A tentativa de lidar com uma questão com-
plexa através de um modo simplista, raso e ma-
do sujeito em questão”

SP
niqueísta tende a separar os extremos e impos-
CadernosCRP
sibilitar o diálogo. Na lógica do religiosismo e do
Neste sentido, a proposta antimanicomial, Cadernos Temáticos
posicionamento ideológico, facilmente se cai numa
quando realizada de modo pertinente, está com-
perspectiva moral, na qual não é possível se cons-
prometida com a ética, uma vez que comprometida
truir um fazer e um modo de compreensão conjun-
com uma política de liberdade para os sujeitos. (Im-
tos. Nesta lógica, discute-se para ver quem tem
bert, 2001). Por outro lado, a questão AD tende a
mais razão, ou, mais poder.
pender facilmente para o lado da moralidade, des-
No lidar cotidiano com as questões AD tais comprometendo-se com a ética e abandonando
aspectos ganham uma outra dimensão, à medida ou ignorando as discussões que a proposta anti-
que serviços envolvidos no cuidado com o mesmo manicomial traz e seu saber sobre isso construído
usuário não podem dialogar. Na perspectiva da pela história - história que passa por maus-tratos,
saúde mental antimanicomial seja com pessoas negligência e mortes. É nesse movimento também
que fazem uso de álcool e/ou drogas ou/e em so- que podemos observar uma tendência a dividir e
frimento psíquico, a via de cuidado é sempre pela distanciar a questão AD da saúde mental como se
priorização da lógica comunitária de atenção e do não fosse de sujeitos e condições de sofrimento
cuidado singularmente construído para cada usu- que estamos lidando; essa tendência indica uma
ênfase em seu componente concreto, a imagem processos psíquicos dos membros do grupo em
54
apavorante da questão num mundo moralista: o favor da sustentação da ligação comum e da união
álcool e as drogas - que ganham dimensão de su- entre seus membros. (Freud, 1921/2011)
jeito em detrimento do sujeito em si.
Neste mesmo sentido, temos que a mo-
ral exclui por completo o imprevisto, a desordem,
a possibilidade de criação - excluindo qualquer
“A questão AD tende a pender possibilidade, por exemplo, de construção de um
facilmente para o lado da projeto terapêutico singular (PTS), portanto. Pres-
moralidade, descomprometendo- supõe a repetição, uma vez que a moral pressupõe
prescrição. Prescrição de modos de vida e de ser,
se com a ética e abandonando em conformidade com regras e normas estabele-
ou ignorando as discussões que cidas - sejam elas evidentemente pronunciadas ou
a proposta antimanicomial traz e tácitas - contribuem para a moral, mas impedem o
surgimento do novo, impedindo o lugar da singu-
seu saber sobre isso construído laridade e da particularidade de cada um (Imbert,
pela história” 2001), mantendo todos como massa (Freud, 2011).

Em vez de servir à emancipação do indivíduo,


para libertá-lo do meio que o envolve, (a moral)
A perspectiva moral tem como objetivo a
tem como função essencial transformá-lo em
conformização e a “fabricação de ‘hábitos’, de
parte integrante de um todo e, por conseguinte,
‘bons hábitos’” (Imbert, 2001, p. 14), que garan-
retirar-lhe algo da liberdade de seus movimen-
tiria uma conduta aprovável e em conformidade
tos. (Durkheim apud Imbert, 2001, p. 22-23).
às regras. Não seria isso que, frequentemente no
contexto atual - quando se ignora a proposta anti-
manicomial - se espera de processos de atenção
e cuidado com pessoas que fazem uso de álcool
“A ética trata de uma
e/ou drogas? Que estes sujeitos entrem em con- perspectiva que não se coaduna
formidade com as regras e normas vigentes? Ou com a proposta de fabricação
melhor, não é este objetivo que se dá a ver quando
se favorece pacientes medicalizados e quando se
de hábitos, visto que abre
patologiza questões sociais? espaço à dimensão do desejo, da
singularidade e da criação”
“A perspectiva moral pressupõe
Por outro lado, a ética “desliga, desfaz os
uma espécie de ‘servidão’, hábitos, visa a existência fora dos moldes e das
de obediência servil e cega, marcas indeléveis” (Imbert, 2001, p. 15). A ética não
exigindo ordem e disciplina, com é a moral, não é seu inverso, não é uma contramo-
ral. A perspectiva moral não se sustenta diante de
a necessidade de que alguém uma interpelação ética, visto que esta rompe com
comande e que outros obedeçam o objetivo de conformização. A ética trata de uma
de modo absoluto” perspectiva que não se coaduna com a proposta
de fabricação de hábitos, visto que abre espaço à
dimensão do desejo, da singularidade e da criação.
A ética vinculada à constituição da lei simbólica,
A perspectiva moral pressupõe uma espécie
possibilita a separação e diferenciação entre os
de “servidão”, de obediência servil e cega, exigindo
homens, abrindo espaço para serem e viverem de
ordem e disciplina, com a necessidade de que al-
modo diferente, portanto, não submetidos a uma
guém comande e que outros obedeçam de modo
regra e prescrição de como ser e viver.
absoluto (Imbert, 2001) - não é à toa que a figu-
ra do militar ganha força no contexto atual. Esta As dificuldades de articulação intersetorial e
construção faz lembrar a Psicologia das Massas, de um fazer construído conjuntamente que partam
ideia na qual compreende-se que a submissão a da disposição para o diálogo e para o pensar junto
um líder ou ideia, acarreta uma precarização dos e que não sejam prescrições a partir de pressupos-
tos sobre a vida de outros, parece ser proveniente ponibilidade para que estes outros serviços ten-
55
dessa discussão, ao menos em partes. tassem ouvir e compreender sua condição atual e
sua real condição de cuidar de seu bebê e de si.
A relação do cotidiano dos serviços de saú-
de mental na relação com a Assistência Social,
Conselho Tutelar, Poder Judiciário e outros servi-
ços e setores é de muitas dificuldades. Frequen- “Em uma relação perversa

de danos
e violenta, as ações dos

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
temente é possível observar conduções de outros
setores que ignoram a perspectiva de cuidado e
serviços podem matar, se

e de redução
o projeto terapêutico singular estabelecido nos
CAPS, por exemplo. não fisicamente, psíquica e

em emergências
É bem verdade que encontramos parceiros
emocionalmente. Do alto do
intersetoriais, nos CRAS, CREAS, Conselho Tutelar, saber prescritivo sobre o outro,

antimanicomial
promotores e juízes etc. dispostos a dialogar e a nada de vida pode emergir”
construir propostas conjuntas de intervenção que

Psicologia
tenham como foco, de fato, o sujeito e suas esco-
lhas. Contudo, vemos, não raro, uma proposta - às Para finalizar estas vinhetas ilustrativas,

da política
vezes até conversada com o CAPS e outros ser- em uma última situação, uma usuária de saúde
viços - ser desfeita pela articulação perversa de mental teve seus filhos retirados pelo Conselho
outros serviços com outros setores. Tutelar em uma articulação feita de maneira en-

desastres
para sustentação
coberta entre o CREAS e promotoria, embora os

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
serviços de saúde mental reafirmassem sua dis-

eCRP
“A coordenação de saúde mental ponibilidade e condição para cuidar dos filhos. A

Temáticos
em emergências
usuária tentou arrumar sua casa, garantir todas
apontou a contrariedade à
as condições para ter seus filhos de volta. Quando
Lei 10.216/2001, a promotora

subsídios
procurou o CREAS lhe disseram que o prazo para
interrompe a questão, dizendo conseguir a guarda novamente tinha se esgotado

Cadernos
- o que, obviamente não era verdade. A usuária
que ali a lei era ela”

Psicologia
drogas:
entrou em uma depressão profunda e veio a fale-
cer tempos depois. Do alto de uma ideia precon-
cebida sem a possibilidade de colocá-la à prova

e outras
Numa dada situação, apesar do CAPS AD
diante da condição atual da usuária, seus filhos
ter articulado, proposto um cuidado e estabele-
não foram adotados por uma nova família e fica-
cer um PTS que determinava a necessidade de

CRP Álcool
ram abrigados por longos anos. Em uma relação
uma atenção comunitária, sem necessidade de

SP
perversa e violenta, as ações dos serviços podem
internação, o CREAS do município conversou di-
matar, se não fisicamente, psíquica e emocional-
retamente com o poder judiciário para que aque-

Temáticos
mente. Do alto do saber prescritivo sobre o outro,
le usuário fosse internado, compulsoriamente,
nada de vida pode emergir.

SP
contra sua vontade, contrariando não só os ser-

CadernosCRP
viços de saúde, mas também a Lei 10.216/2001. Muitos destes serviços estão vinculados à
Cadernos Temáticos
Quando na discussão, em outra situação, sobre a Política de Assistência Social, ao SUAS ou mes-
possibilidade de internação compulsória propos- mo ao Poder Judiciário, contudo, não é inerente
ta pela promotora atuante num dado município, a ao SUAS e às diretrizes do Poder Judiciário uma
coordenação de saúde mental apontou a contra- condução perversa e massificada que trata a
riedade à Lei 10.216/2001, a promotora interrom- todos como a partir de uma ideia de patologia
pe a questão, dizendo que ali a lei era ela. generalizada, sem considerar os sujeitos ali pre-
sentes: abstinência para todos, autoridade, dis-
Em uma terceira situação, uma gestante
ciplina e arbitrariedade. Para todos os usuários
acompanhada pela rede de serviços de saúde
de saúde mental essa discussão é relevante,
mental, devido a questão de uso de álcool e dro-
mais ainda para aqueles que fazem uso de álco-
gas, que vinha se engajando na relação com seu
ol e drogas, para as mulheres, especialmente as
bebê, na relação com a maternidade e sua gesta-
gestantes e em situação de rua.
ção, foi assediada pelas instituições: Hospital, As-
sistência Social e Conselho Tutelar para que seu A perspectiva prescritiva e generalizada de
bebê lhe fosse retirado, não havendo qualquer dis- que todos têm de viver numa casa e não na rua,
esquecendo - e não podendo ouvir - que muitas atualmente. E, mesmo na compreensão do uso de
56
pessoas em situação de rua não querem voltar álcool e outras drogas, como se todo uso fosse um
para uma casa, segundo este modelo padroniza- abuso ou uso prejudicial de drogas (querendo internar
do. Do alto dessa moral, justifica-se arbitrarieda- adolescentes por experimentar maconha, por exem-
des ignorando o sujeito, suas escolhas, vontades plo - com a justificativa de que esta é a droga de
e construções para sua vida. “porta de entrada para outras mais pesadas” - e se
esquecendo do álcool presente em casa, dos com-
Tais aspectos apontam num sentido de patologi-
primidos para dormir nas cabeceiras da cama ou em
zação das questões sociais, uma patologização
um “calmantezinho” para “acalmar os nervos”).
da vida. Num modelo prescritivo e moralista, de-
termina-se normalidades e anormalidades e cria-
se patologias. Esse processo de patologização
se refere a “toda forma discursiva geradora de
“Não é isso que se espera,
regras sociais e normas de conduta que são utili- por exemplo, das internações,
zadas para classificar, etiquetar e às vezes punir. especialmente as compulsórias?
Regras que determinam como os sujeitos devem
proceder a partir de parâmetros que, na maioria
Que alguém dê um remédio que
das vezes, não levam em conta a particularidade resolva - sem, muitas vezes,
(...) conduzindo a uma patologização da existên- nem se perguntar qual é o real
cia.” (Ceccarelli, 2010, p. 125)
problema? Que droga é essa
O sofrimento psíquico traz marcas da socie-
que alcança um lugar endeusado
dade e do momento sócio-histórico que o produziu,
contudo, isso é ignorado na medida em que as pa- como solução de todos os
tologias são perversamente individualizadas - como problemas na vida cotidiana?”
algo pertinente ao indivíduo e desligado do social - e
são maciçamente generalizadas, culminado numa
condição falsa de “muitos indivíduos não aptos para Paradoxalmente, esta mesma lógica garan-
viver neste mundo”, sendo que a questão deveria te um lugar especial para uma droga em especial,
ser deslocada para o social, para o que este mundo aquela financiada pelas indústrias farmacêuticas,
produz de sofrimentos, angústias e exclusões. legalmente prescritas por médicos: os psicotrópi-
cos. Não querendo nada saber no que do social
traz angústia, sofrimentos e exclusões, coloca-se
“O sofrimento psíquico traz o problema no indivíduo e dá-lhe um remédio. Não
é isso que se espera, por exemplo, das interna-
marcas da sociedade e do
ções, especialmente as compulsórias? Que alguém
momento sócio-histórico que dê um remédio que resolva - sem, muitas vezes,
o produziu, contudo, isso é nem se perguntar qual é o real problema? Que dro-
ga é essa que alcança um lugar endeusado como
ignorado na medida em que as
solução de todos os problemas na vida cotidiana?
patologias são perversamente
Morre um ente querido; sofre-se uma violên-
individualizadas” cia; fica-se triste por uma perda; sofre-se assédio
moral e, de repente, não podemos mais ficar tris-
tes ou teremos um diagnóstico de depressão - e
Este processo acontece relacionado a um
imediatamente uma prescrição de medicamentos.
momento histórico, social e econômico que passa
Patologização e medicalização da vida cotidiana.
pelas condições da pós-modernidade, pelo capita-
Temos que estar felizes apesar dos sofrimentos
lismo, individualismo e uma ideologia do discurso
que a vida impõe. Para o imperativo da felicidade:
científico, que ocupa o lugar que outrora a religião
droga - desde que prescrita por algum represen-
ocupou. A ideologia da racionalidade científica, se-
tante da racionalidade científica - nem que seja
gue a lógica da moral, da individualização de pato-
por internação compulsória.
logias e generalização das mesmas patologias para
todos, excluindo as singularidades - tal como vemos Cabe aqui uma ressalva: não há dificuldade
nos diagnósticos de TDAH - Transtorno de Déficit de em reconhecer a importância e os benefícios tanto
Atenção e Hiperatividade - cada vez “mais comuns” do conhecimento sobre as patologias e o desen-
diferente - e para acolher as diferenças. Para ouvir
57
“Nesta encruzilhada entre moral e digerir. Para respeitar. Para refletir sobre a posi-
ção que o outro coloca.
e ética; entre patologização/
medicalização da vida e
singularidade e entre felicidades “Não há atalho. Não há caminho

de danos
prescritas e possibilidades de simples. Construir práticas

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
construção singulares da vida intersetoriais não é fácil, é

e de redução
moram os desafios de fazer rede preciso muita disposição para

em emergências
e fazer uma prática intersetorial” ouvir e refletir”

antimanicomial
volvimento sobre drogas que possam ajudar as
pessoas que precisem deste suporte. O proble- Quando, em um encontro, cada um está ocu-
ma está na ideologia que garante à racionalidade pado em defender sua própria posição e ideia, não

Psicologia
científica - especialmente as neurociências nos há verdadeiramente disposição para o diálogo e
ficamos impossibilitados de construir, de fato, uma

da política
tempos atuais - e à medicalização um poder en-
deusado que impede a emergência do sujeito, que intersetorialidade. Intersetorialidade não simples-
fica encoberto por um corpo diagnosticado - pa- mente como junção de serviços e setores no mes-
mo espaço ou sobre fazeres distintos sobre um

desastres
tologizado e medicalizado. Muitas vezes um corpo

para sustentação
mesmo caso, mas como a construção respeitosa

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
que não lhe responde mais: que a violência conti-

eCRP
nue, já que não estamos sentindo mais nada! de um fazer conjunto e compartilhado, sustentado
dia a dia. Temos cá um desafio!

Temáticos
em emergências
Nesta encruzilhada entre moral e ética;
entre patologização/ medicalização da vida e

subsídios
singularidade e entre felicidades prescritas e
Referências

Cadernos
possibilidades de construção singulares da vida
moram os desafios de fazer rede e fazer uma BRASIL. Ministério da Saúde. Lei nº 10.216, de 06

Psicologia
drogas:
prática intersetorial. de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os
direitos das pessoas portadoras de transtornos
E não sejamos ingênuos, de nada adianta de-

e outras
mentais e redireciona o modelo assistencial em
fender o lado “correto”; defender o direito a voz do
saúde mental. Brasília, 2001.
usuário e calar-lhe a boca quando ele diz algo que

CRP Álcool
não desejamos ou violentamente e perversamen- CECCARELLI, Paulo Roberto. A patologização

SP
te articular conduções com outros serviços, já que da normalidade. Estud. psicanal., Belo Hori-
estamos “certos” porque defendemos uma deter- zonte, n. 33, p. 125-136, jul. 2010. Disponível em
minada proposta - mesmo que a antimanicomial. <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_

Temáticos
Palavras ao vento se não vierem acompanhadas arttext&pid=S0100-34372010000100013&lng=pt

SP
pela sustentação em ato de suas diretrizes. Sem &nrm=iso>. acessos em 14 jul. 2019.
CadernosCRP
possibilidade de realmente ouvir, acolher, pensar e
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise Cadernos Temáticos
refletir, caímos novamente na lógica da moral, da
do eu (1921). In: ______. Psicologia das massas e
prescrição e da patologização. Não há atalho. Não
análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradu-
há caminho simples. Construir práticas interseto-
ção Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
riais não é fácil, é preciso muita disposição para
das Letras, 2011.
ouvir e refletir, necessitando se dispor à aproxima-
ção não só com os serviços e setores, mas com GIOVANETTI, Fernanda Zanetti Cinalli. A negação
seu modo de compreensão sobre o cuidado e com da clínica na saúde mental: Impossibilidade para
o próprio usuário, que muito tem a dizer a respeito sustentação da proposta antimanicomial. 2018.
da sua condição e suas escolhas. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) -
Instituto de Psicologia, Universidade de São Pau-
Não bastam dois ou mais serviços ou se-
lo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/D.47.2018.tde-
tores encontrarem um horário na agenda - seja
23082018-155542.
pontualmente ou mesmo periodicamente - para
discutir um caso, uma situação, um território. Há de IMBERT, Francis. A questão da ética no campo
se ter disposição para o outro - necessariamente educativo. Petrópolis: Vozes, 2001.
58
Financiamento: pelo investimento 59

em infraestrutura e incremento
da rede

de danos
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e de redução
Fernanda Zanetti Cinalli Giovanetti

em emergências
Rafael Cislinschi

antimanicomial
Rodrigo Pressotto

Psicologia
da política
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi uma con- para o campo da saúde mental, que culminaram
quista para o povo brasileiro, garantindo o es- na promulgação da lei 10.216/2001 - importante
tabelecido na Constituição Federal: saúde como alicerce legal para as políticas de saúde mental

desastres
para sustentação
direito de todos os cidadãos e dever do Estado - a qual reiteramos e sustentamos aqui.

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
e estipulou responsabilidades específicas na

eCRP
gestão e financiamento da saúde para os três Antes ainda da lei, esses processos se ini-

Temáticos
em emergências
entes federados: União, estados e municípios, ciaram numa “realidade ainda pulverizada em
garantindo aos municípios um papel estratégi- municípios com maior capacidade de gestão que

subsídios
co na implementação de políticas de saúde. validavam o ainda germinativo novo modelo, aju-

Cadernos
dando a impulsionar as mudanças sistêmicas”.
O que se chamou de municipalização foi
(Trapé, Onocko-Campos, 2017, p. 2).
um importante processo nas décadas de im-

Psicologia
drogas:
plantação e fortalecimento do SUS no país, con- Com relação aos processos de cuidado
solidando novas formas de gestão, favorecendo com as pessoas que fazem uso de álcool e ou-

e outras
a abertura de novos equipamentos e serviços tras drogas, segundo registros históricos (Silva,
e fomentando a participação social, mediante, 2005), até o final da década de oitenta - século

CRP Álcool
especialmente, a consolidação de dispositivos vinte -, seguiu trajetória similar na maior par-

SP
previstos de controle social no âmbito do SUS te do país, ao tratamento destinado a pessoas
- ganho imensurável para o sistema: a partici- com sofrimento psíquico. Sendo assim, a ofer-

Temáticos
pação de todos. (Trapé, Onocko-Campos, 2017). ta de tratamento era baseada em atendimento
Com a municipalização, a gestão de serviços ambulatorial e na internação de longa duração

SP
de saúde passou a ficar mais próxima da po- nos grandes hospitais psiquiátricos/manicô-
CadernosCRP
pulação, sendo mais fácil e possível identificar mios que até então eram tidos com a referên- Cadernos Temáticos
necessidades específicas da população de uma cia para o tratamento dessa população mesmo
determinada região, promovendo serviços mais com baixa resolutividade e inúmeras denúncias
adequados frente a estas necessidades e par- de violação de direitos humanos das pessoas
ticularidades, bem como favorecendo a proxi- em internação.
midade da população aos gestores de serviços
Paralelamente ao processo histórico das
para que pudesse controlar, avaliar e monitorar
políticas públicas para essa população ou a au-
as ações e estratégias implementadas.
sência destas, as Comunidades Terapêuticas e
No contexto da saúde mental, o processo também as clínicas privadas de atendimento a
de municipalização, alavancou as possibilidades pessoas denominadas por elas de “dependen-
de criação, surgindo notáveis experiências ino- tes químicos” surgiram desde a segunda me-
vadoras. Paralelamente ocorreu um processo tade da década de 60 e em especial a década
de implantação de serviços substitutivos e co- de 70 no Brasil influenciadas por experiências
munitários de saúde e concomitante fechamen- internacionais, principalmente, pelo modelo dos
to de leitos hospitalares, grandes conquistas Estados Unidos (Silva, 2005).
propostas e programas governamentais sur-
60
“Como nos Hospitais giram indicando a criação de novos modelos
de serviço e propostas de tratamento voltado
Psiquiátricos, nas Comunidades a essa população. Muitos destes se tornaram
Terapêuticas e Clínicas, a partir referência para a política de drogas antimani-
de constatação de inúmeras comial. É nesse período que a política de redu-
ção de danos começa a ser difundida de forma
fiscalizações realizadas por parte ampliada no país, baseada nas experiências de
do Ministério Público, vigilâncias prevenção e combate as infecções sexualmente
sanitárias municipais, órgãos de transmissíveis (IST) e passa também a influen-
ciar as ações em saúde pública culminando com
profissão e entidades de combate a sua posterior incorporação à política de dro-
à violação de direitos humanos, gas. É nessa época também que os primeiros
muitas dessas instituições foram Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgem
e começam a se tornar o principal serviço subs-
identificadas como violadoras de titutivo ao hospital psiquiátrico no país.
direitos humanos, inviabilizando
Nos anos subsequentes observamos uma
qualquer abordagem terapêutica” mudança na política de financiamento do go-
verno federal que passa a aumentar o financia-
Essas instituições na maioria tinham suas mento e incentivo aos serviços substitutivos ao
ações desenvolvidas a partir de instituições fi- hospital psiquiátrico e dá continuidade, agora
lantrópicas e com o passar dos anos passaram em âmbito nacional, ao processo de fechamen-
a estabelecer convênios com os municípios e to de hospitais psiquiátricos por meio de me-
estados. Na prática, contudo, o que era oferta- didas objetivas de controle do número de lei-
do nos locais de tratamento para essa popula- tos hospitalares e pelo descredenciamento do
ção não era diferente do modelo de tratamento Sistema Único de Saúde (SUS) de instituições
desenvolvido nos manicômios, baseado na in- que não obtiveram aprovação no Programa Na-
ternação de longa duração, suspensão de liber- cional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psi-
dades individuais e ênfase exclusiva na absti- quiatria (PNASH).
nência total do uso de drogas.
Destaca-se o PNASH dentre os modelos
Como nos Hospitais Psiquiátricos, nas Co- de avaliação que foram implementados no SUS
munidades Terapêuticas e Clínicas, a partir de e no caso da saúde mental, que contribuiu para
constatação de inúmeras fiscalizações realiza- o fechamento de leitos em hospitais psiquiátri-
das por parte do Ministério Público, vigilâncias cos (os ditos também “manicômios” ou ainda
sanitárias municipais, órgãos de profissão e en- “hospitais especializados”) e no aprimoramento
tidades de combate à violação de direitos hu- da qualidade dos serviços oferecidos em hospi-
manos, muitas dessas instituições foram iden- tal geral quando a internação é necessária e se
tificadas como violadoras de direitos humanos, esgotou os recursos extra-hospitalares, con-
inviabilizando qualquer abordagem terapêutica. forme a Lei 10.216/2001.
Todavia, até os anos dois mil essas instituições
ocupavam papel periférico dentro das políticas “Nessa fase, ficou claro que o aumento de
públicas e ofertas de tratamento a pessoas financiamento e a destinação direta a serviços
usuárias de drogas no país. específicos de saúde mental foram elementos-
chave para iniciar a transição do modelo, va-
Nesse período não havia políticas de fi- lendo como estratégia de indução. Como efeito
nanciamento e programas com recursos espe- dessa política, houve alteração do número de
cíficos voltados a essa população em âmbito internações em relação à abertura de novos
nacional permanecendo restrito a iniciativas de serviços comunitários, com redução de 12,8%
municípios que assumiam a política sobre dro- frente ao crescimento de 99% de CAPS no
gas em sua plataforma de governo. período de 1997 a 2001”. (Trapé, Onocko-Cam-
No final da década de oitenta e no decor- pos, 2017, p. 2).
rer da década de noventa, como consequência A aprovação da lei 10.216, a regulamenta-
do processo de Reforma Psiquiátrica, novas ção de serviços e o incremento financeiro para
implantação de serviços fez muitos municípios pulação usuária de drogas nas comunidades
61
considerarem a implantação dos CAPS AD e es- como, por exemplo, as Unidades de Acolhimento
tratégias de cuidado territoriais (como profis- (UA) e o Consultório na Rua.
sionais de saúde mental na atenção básica, por
É evidente a relação ao longo da história
exemplo) o meio mais eficaz para estruturar sua
da saúde mental no âmbito do SUS, a intrínseca
rede de atenção à população usuária de drogas.
e próxima relação entre financiamento e sus-

de danos
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Desde a promulgação desta tão esperada tentação de um modelo de atenção à saúde.
Lei 10.216/2001 - após os longos 12 anos de tra- Contudo, já em 2016, Trapé e Onocko-Campos

e de redução
mitação no Congresso Nacional - houve no Brasil (2017) apontavam a insuficiência do financia-
um impulsionamento à implantação e manuten- mento em saúde, em especial em saúde men-

em emergências
ção dos serviços chamados substitutivos - por tal, e a necessidade de alterações também no
substituirem a lógica hospitalocêntrica/manico- processo de governança no âmbito do SUS

antimanicomial
mial pela lógica comunitária de atenção à saú- - com desafios para pensar gestões regionais
de - por meio do financiamento promovido pela de serviços de saúde e saúde mental e não so-
União. Houve então um crescimento real e signi- mente relativas ao âmbito municipal. Em 2019,

Psicologia
ficativo de serviços comunitários - em especial fica evidente as fragilidades nos processos de
CAPS - e um decréscimo considerável do finan- financiamento e da própria sustentação do SUS

da política
ciamento para leitos hospitalares, com redução e do modelo antimanicomial, aspecto ao qual
importante do número de leitos em hospitais devemos estar atentos.

desastres
psiquiátricos, mantendo-se referência de leitos

para sustentação
Para a compreensão da totalidade do pro-
em hospital geral - tal como preconiza o mode-

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
cesso de implementação de políticas públicas é

eCRP
lo de saúde mental da Reforma Psiquiátrica. “Foi
necessário acompanhar a forma do financiamen-
em 2006 que o valor repassado aos serviços

Temáticos
em emergências
to dos serviços ocorrem. Os serviços não são
comunitários superou o gasto em leitos hospita-
constituídos somente com boas ideias e boas in-
lares, seguindo padrões internacionais”. (Trapé,

subsídios
tenções e práticas, sendo o financiamento parte
Onocko-Campos, 2017, p. 3). Vale destacar:
fundamental da implementação e sustentação

Cadernos
Thornicroft e Tansela1 revisaram mais de três dos mesmos. No Estado de São Paulo é evidente

Psicologia
drogas:
mil artigos de 1980 a 2003 e constataram a inexistência de uma política de financiamento
que os melhores resultados nos modelos de continuada dos serviços por parte do Governo,
atenção à saúde mental estão em “modelos aumentando a necessidade de investimento dos

e outras
de atenção equilibrados”, com ampliação de municípios para a implementação de serviços e
serviços comunitários e com a internação, pre- prejudicando assim o avanço das políticas públi-

CRP Álcool
ferencialmente, realizada em hospitais gerais. cas em questão. (Bertolino; 2017)

SP
Os autores também indicam as diferenças
nos modelos a partir do financiamento, se-

Temáticos
parando os países com amplo investimento
na saúde mental e os que pouco investem e “O que demonstra o cerne da
SP
restringem as ofertas assistenciais. O foco
CadernosCRP
do financiamento aliado a ações de monito-
incoerência do processo de instituição
Cadernos Temáticos
ramento desses recursos, a partir das premis- do modelo psicossocial como a
sas discutidas, é estratégico para melhoria referência para o cuidado a população
da assistência em saúde mental, até mesmo
em países com poucos recursos assistenciais.
usuária de drogas, é que nunca se
(Trapé, Onocko-Campos, 2017, p. 3). conseguiu sequer que houvesse
Com a portaria 3088/2011 inserida no acordo entre os três entes da
contexto das políticas de saúde mental, álcool federação (governo federal, estados
e outras drogas do Ministério da Saúde obser- e municípios) na forma da destinação
vou-se a regulamentação de outros serviços
estratégicos para promoção ao cuidado da po- e priorização dos recursos financeiros
para implantação e custeio dos
1 Thornicroft G, Tansella M. Quais são os argumentos a favor da serviços e programas voltados para a
atenção comunitária à saúde mental? Pesq Prat Psicossoc.
2008;3(1):9-25. população usuária de drogas”
O que demonstra o cerne da incoerência do Considerando que não há financiamento
62
processo de instituição do modelo psicossocial ou custeio instituído pelo governo de Estado de
como a referência para o cuidado a população São Paulo para os serviços de saúde mental, a
usuária de drogas, é que nunca se conseguiu se- relação entre custo e custeio federal dos servi-
quer que houvesse acordo entre os três entes ços especializados - segundo as distinção dos
da federação (governo federal, estados e muni- serviços estabelecidos pela portaria 3088/2001
cípios) na forma da destinação e priorização dos - que estabelece a RAPS2 - é de um custeio de
recursos financeiros para implantação e custeio aproximadamente de 42,37% do custo médio
dos serviços e programas voltados para a popu- total dos serviços especializados da Política de
lação usuária de drogas. Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Dessa
forma, em média, levando-se em consideração
Dessa forma sempre houve desequilíbrio no a realidade pesquisada, um município arca com
percentual destinado por cada ente da federação 58,63% do custeio mensal e o o governo estadu-
para implantação e custeio dos serviços do Siste- al não contribuía com o custeio. (Bertolino, 2017)
ma Único de Saúde (SUS) para o atendimento a po-
pulação usuária de drogas é uma tônica na realida- Não bastasse isso, ainda existem situ-
de brasileira. O que representa situações em que ações como em estados e municípios em que
há enorme disparidade entre no valor investido há divergência na concepção dos programas
pelos municípios para manutenção de sua rede de voltados a atenção a usuários de drogas e com
serviços (em média entre 70% e 75% do valor to- muita frequência alimentam redes de serviços
tal), participação moderada do governo federal (em paralelos atuando nas mesmas cidades ou regi-
média entre 20% a 25% por cento do valor total) e ões, mas, operando com lógicas antagônicas de
em alguns estados, como o estado de São Paulo, cuidado e tratamento.
quase nenhuma participação do estado no custeio
da rede de serviços (menos de 3% do valor total).
“Por outro lado, o governo do estado
A título de exemplo, aqui utilizaremos o fi-
nanciamento da saúde mental de um município
financia serviços privados de saúde
do Estado de São Paulo. Em tese de doutorado que concorrem com o modelo da
apresentada em 2017 (Bertolino, 2017) fica evi- Saúde Mental antimanicomial,
dente que a Política de Financiamento aos ser-
viços de saúde mental foi contínua por parte do
como por exemplo, as Comunidades
Ministério da Saúde - segundo dados até 2016 Terapêuticas através do programa
-, porém é indicativo também que esse financia- ‘Recomeço’ ou o financiamento
mento é insuficiente, na medida em que a pesqui-
sa expressa a necessidade real de financiamento
superior à Autorização de Internação
dos serviços, ou seja, a pesquisa avalia detalha- Hospitalar (AIH) federal para leitos
damente as necessidades reais de custeio, im- em Hospitais Psiquiátricos”
plementação e manutenção dos serviços de saú-
de mental no município e os dados apontam para
a inexistência de repasse estadual, repasses fe-
Por outro lado, o governo do estado finan-
derais contínuos, mas insuficientes e a necessi-
cia serviços privados de saúde que concorrem
dade crescente do município disponibilizar cada
com o modelo da Saúde Mental antimanicomial,
vez mais recursos para a sustentação e custeio
como por exemplo, as Comunidades Terapêuti-
dos serviços de saúde mental. (Bertolino,2017)
cas através do programa “Recomeço” ou o finan-
Dessa forma, o estabelecido como respon- ciamento superior à Autorização de Internação
sabilidades especificas de cada um dos entes Hospitalar (AIH) federal para leitos em Hospitais
federados não se efetiva de forma justa, com o
Estado oferecendo aquém do que deveria - ou 2 Optamos por não utilizar o termo RAPS, por considerar a RAPS
não oferecendo recurso algum - e com os mu- como aquela que é pública, comunitária e territorial. Contudo,
foi incluído na RAPS (portaria 3088/2011) as comunidades
nicípios tendo que arcar com muito mais do que
terapêuticas e mais recentemente os hospitais psiquiátricos
o estabelecido como sua responsabilidade, one- e CAPS IV, com o quais não pactuamos, tomando-se pode
rando os municípios e dificultando implementa- decisão não mais utilizar o termo RAPS para se referir aos
equipamentos e serviços de saúde mental de base territorial,
ção de novas estratégias de interesse local. comunitária que atuam segundo a lógica antimanicomial.
Psiquiátricos, numa lógica que evidencia uma uma tendência de ampliação da terceirização
63
fomentação de políticas contrárias à Reforma do dever do Estado na oferta cuidados à sua
Psiquiátrica e à proposta antimanicomial. Caso população. (Bertolino; 2017).
o governo do estado de São Paulo custeasse
Enquanto o modelo preconizado deveria
mensalmente os serviços de saúde mental nos
ser a implantação de uma rede de serviços ar-
municípios em um valor igual ao do governo fe-
ticulada entre si que possuísse serviços de di-

de danos
deral - segundo dados de 2016 - seria mais vi-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
ferentes níveis e complexidades com ampliação
ável a implantação e manutenção dos serviços
dos cuidados a população usuária mais próxima
por municípios que tem uma arrecadação infe-

e de redução
de onde vivem, o estado de São Paulo em dife-
rior em comparação com municípios maiores
rentes gestões sustentou rede paralela às redes

em emergências
com maior arrecadação. (Bertolino, 2017).
municipais - tal como o exemplo do Programa
Dessa forma, os custeios vem possibili- “Recomeço”, com quase nenhuma interlocução

antimanicomial
tando a manutenção dos serviços em funcio- macro e micro regional e seguiu financiando
namento, contudo, a inclusão de financiamento hospitais psiquiátricos e investindo em serviços
estadual possibilitaria ao município uma melhor de internação de longa duração de perspectiva

Psicologia
qualificação do cuidado e da infraestrutura da asilar como as Comunidades Terapêuticas.
rede de saúde mental antimanicomial. Possibi-

da política
Por meio de convênios o Estado de São
litaria também aos demais entes da federação
Paulo em diferentes gestões sustentou nas
a fiscalização e a cobrança de investimento na
ultimas três décadas hospitais psiquiátricos,

desastres
saúde mental também por parte do município,

para sustentação
Comunidades Terapêuticas e “Clínicas de Recu-
fazendo-se jus à responsabilização dos três

Cadernos Temáticos CRP SP

SP
peração para Dependentes Químicos” e afins.

eCRP
entes federados. (Bertolino, 2017).
Criou programas de internação compulsória, que

Temáticos
rompe a lógica do cuidado comunitário, promo-

em emergências
vendo internações fora dos municípios de ori-
“Dessa forma, os custeios vem

subsídios
gem das pessoas em tratamento e, na maioria
possibilitando a manutenção das vezes, não buscavam referenciar as pesso-

Cadernos
as atendidas para serviços em que pudessem
dos serviços em funcionamento,

Psicologia
drogas:
dar continuidade ao seu tratamento em seus
contudo, a inclusão de municípios de origem. Dentro desses programas
financiamento estadual e serviços com muita frequência eram e são uti-

e outras
lizadas abordagens coercitivas que violam os
possibilitaria ao município uma
direitos daquele que supostamente visa tratar.
melhor qualificação do cuidado

CRP Álcool
Não se viu nesse período, portanto, nas

SP
e da infraestrutura da rede de ações do estado de São Paulo, a tentativa de
saúde mental antimanicomial” coordenação de ações e medidas de gestão em

Temáticos
conjunto com outros entes da federação para

SP
viabilizar projeto de política de cuidado comum
A questão se complexifica à medida em
CadernosCRP
para as pessoas usuárias de drogas. Pelo con-
que nos últimos anos, tanto a saúde mental Cadernos Temáticos
trário observaram-se programas conflitantes
quanto o próprio SUS tem sofrido ataques. Al-
com o que já vinha sendo desenvolvido em mui-
guns merecem destaque. Na promulgação da
tos municípios que investiam seus recursos para
portaria 3088/2011, que estabelece a organiza-
criar rede de serviços que promovesse o cuida-
ção da saúde mental num sistema de rede de
do de seus habitantes em seu próprio território.
saúde, criando a Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS), percebe-se um ataque à Reforma Psiqui-
átrica e à lógica antimanicomial, com a inclusão
das Comunidades Terapêuticas como pontos de
“O exemplo do estado de São
atenção desta rede, uma vez que são serviços Paulo corrobora com o histórico
regidos por uma lógica de privação de liberdade brasileiro forte presença interesses
e se constituem como verdadeiros manicômios
no contexto atual. (Giovanetti, 2018). A inclusão
privados e corporativistas na
desses serviços privados na RAPS , torna-se política de saúde mental, álcool e
ainda mais grave na medida em que indicam outras drogas”
O exemplo do estado de São Paulo corrobora mesmo município, quando recebe a oferta do ser-
64
com o histórico brasileiro forte presença interes- viço terceirizado e privado do Governo do Esta-
ses privados e corporativistas na política de saúde do de São Paulo, tem disponibilizado para si, em
mental, álcool e outras drogas. Pois, o que se vê geral, 10 vagas para atendimento - ou seja, se-
na prática é o empreendimento de esforços para riam “beneficiados” deste serviço o equivalente a
a manutenção de instituições que não buscam se 0,0004% da população deste referido município (!).
adequar ao modelo psicossocial em detrimento da
As críticas a este nosso argumento seria
destinação de recursos estaduais que são neces-
a seguinte: “atendemos, nas comunidades te-
sários para os municípios viabilizarem sua própria
rapêuticas, todos que nos são encaminhados”
rede de serviços, capaz de atender a população de
- certamente que o fazem, uma vez que há cri-
seu território ou região circunvizinha3.
térios rígidos para o recebimento de pacientes:
Nos últimos 20 anos o que também se não pode ter comorbidades psiquiátricas ou até
observou é um reflexo do atravessamento dos físicas, muitas não atendem fumantes, os ca-
interesses privados e corporativistas na políti- sos precisam ser de fácil adesão ao serviço etc.
ca de saúde mental e na política sobre drogas,
Na prática estes serviços ganham muito
pois, é fato que dentro da história da constru-
para atender os casos mais brandos e os CAPS
ção das políticas de saúde no Brasil a partici-
AD, por exemplo, acabam por ter um repasse
pação das entidades privadas contratadas pelo
muito, mas muito menor em proporção, para
poder público como prestadores de serviços ao
atender toda uma população municipal ou re-
invés da implantação de serviços próprios esta-
gional e ser referência para serviços da mesma
tais é extremamente significativa. Nesse senti-
abrangência. Atendem também os casos mais
do, grupos organizados de corporações profis-
graves e de difícil adesão ou com comorbidades
sionais e de empresas prestadoras de serviços
e, apesar disso, permanecem os CAPS AD sen-
de saúde custeadas por contratos com entes
do alvo de críticas para os defensores das Co-
públicos, interferem nos rumos da implantação
munidades Terapêuticas nessa lógica perversa
do SUS, legislando em causa própria, e dispu-
que escamoteia as reais condições e interesses
tando a prioridade na destinação dos recursos
escusos por trás desta perspectiva.
financeiros para sua sobrevivência ao invés de
pensar nas necessidades da população. Os CAPS AD estão inseridos numa condição
de precarização dos serviços de saúde, assim
Em termos de financiamento significa que
como das demais políticas públicas (assistência
recursos públicos estão sendo destinados para
social, trabalho e geração de renda, educação, en-
instituições privadas, favorecendo enriquecimen-
tre outras) evidente na realidade atual e de fácil
to de proprietários e gestores de serviços que
constatação. Nesses termos, é comum encontrar
além de privarem seus atendidos de liberdade e
serviços operando com “equipe mínima”, ou abai-
de direitos - em vários âmbitos: liberdade de ir e
xo da mínima, sobrecarregando trabalhadoras(es)
vir, liberdade de crença religiosa, liberdade de ex-
e dificultando a oferta de serviços, mas ainda as-
pressão, direito de acesso à comunidade e pes-
sim tendo que dar conta da sua região de abran-
soas significativas para sua vida etc. - ofertam
gência de vários mil habitantes.
um serviço de alcance pífio. Por exemplo, num
município de 250 mil habitantes, um CAPS AD é Mais recentemente, a partir da Nota Téc-
referência para toda a população municipal - por- nica 11/2019, o que já era trágico, ficou pior, e
tanto, 250 mil habitantes - e para os serviços par- é cada vez mais evidente o aceno do governo
ceiros no que se refere aos cuidados em saúde federal à velha lógica manicomial - embora insis-
relativos a uso e abuso de álcool e outras drogas tam de chamar de “Nova Política de Saúde Men-
nesse raio de abrangência - seja realizando aten- tal”. Na Nota Técnica - objeto de nota de repúdio
dimentos diretos, promovendo matriciamento e divulgada pelo CRP SP4 - há a inclusão dos hos-
discussão técnica na rede, orientações etc. Esse pitais psiquiátricos na rede de saúde mental -
um retrocesso imensurável, que contraria o mo-
vimento nas últimas décadas de fechamento de
3 Em situações em que existem consórcios entre municípios leitos em hospitais psiquiátricos - em manicô-
vizinhos, em geral de pequeno porte, de uma micro região do
estado com o intuito de criar serviços regionalizados para
atendimento a população de diferentes localidades, quando
estas individualmente não reúnem condições de sediar servi- 4 http://www.crpsp.org/site/fique-de-olho-interna.
ços de todas as complexidades. php?noticia=1468
mios, no bom português - e permanência de lei- Mental Antimanicomial e da Reforma Psiquiátri-
65
tos em hospitais gerais. Há fomento, por exem- ca no país, demonstrando objetivos contrários
plo, de serviços como os CAPS-IV, ambulatórios a esta lógica. Sinalizava-se em direção a uma
de saúde mental e à estratégia de ECT ou ele- política manicomial e em sua gestão foi criada a
troconvulsoterapia - o velho “eletrochoque” ain- “Frente Parlamentar Mista em Defesa da Nova
da que pintado com argumentos supostamente Política de Saúde Mental e da Assistência Hos-

de danos
científicos e por técnicas menos “chocantes”, pitalar Psiquiátrica” - trocando em miúdos, a ve-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
digamos assim, mas não menos desumanas. lha política manicomial e hospitalocêntrica, por
isso sendo chamada por alguns movimentos so-

e de redução
Com o financiamento e ampliação de re-
ciais de “Frente Parlamentar Pró-Manicomios”.
cursos destinados apenas às comunidades te-

em emergências
rapêuticas e aos Hospitais Psiquiátricos, fica Defendo a política pró-manicomios é pu-
evidente a intenção do governo federal de in- blicada a portaria 3588/2017 que altera a Rede

antimanicomial
vestir na internação em instituições de caráter de Atenção Psicossocial, estabelecendo o CAPS
asilar - contrariando a Lei 10.216/20001 e a IV como um novo serviço e uma política de fi-
Política de Saúde Mental Antimanicomial e Re- nanciamento para tal. Essa inclusão já prenun-

Psicologia
forma Psiquiátrica - em detrimento do cuidado ciava os retrocessos seguintes que culminou
ofertado nos serviços de atenção psicossocial. na Nota Técnica 11/2019, que reafirma as di-

da política
(Bertolino; Sayeg) Podemos entender ainda retrizes estabelecidas na portaria 3588/2017
que haverá uma tendência em transformar os e volta a defender e criar linhas de financia-
mento público para aquisição de equipamentos

desastres
serviços comunitários de saúde mental - espe-

para sustentação
cialmente os CAPS - em centros de encaminha- usados em procedimentos invasivos e severa-

Cadernos Temáticos CRP SP

eCRP SP
mento para instituições de privação de liberda- mente criticados por terem sido utilizados de
de. Essa tendência se mostra forte quando se forma indiscriminada como medida de punição

Temáticos
em emergências
analisa o programa “Recomeço” que têm nos a pessoas internadas, como os equipamentos
serviços públicos, seja o CRATOD ou o CAPS de eletroconvulsoterapia (ECT), promove o for-

subsídios
IV, seus pilares de triagem e encaminhamento talecimento dos hospitais psiquiátricos, comu-

Cadernos
para clínicas de recuperação, comunidades te- nidades terapêuticas, CAPS IV, ambulatório de
rapêuticas e hospitais psiquiátricos. (Bertolino; saude mental etc.

Psicologia
drogas:
Sayeg) Com o panorama político atual, percebe-
A retomada do modelo assistencial em
se uma sinalização no sentido de intensificação
saúde mental centrado no Hospital Psiquiátrico

e outras
de práticas de cunho religioso e pouco técni-
e na atenção ambulatorial a partir ações como
cas (Bertolino; Sayeg) - tal como se constituem
a portaria 3558/2017 em que reinsere os mani-
as Comunidades Terapêuticas em sua maioria

CRP Álcool
cômios de forma definitiva na rede assistencial
(Giovanetti, 2018) - que se somam aos os exem-

SP
de saúde mental por meio de ações concretas,
plos de enfraquecimento do Ministério da Saú-
como elevar o valor pago pelas autorizações
de, Educação e Direitos Humanos têm demons-

Temáticos
para internações hospitalares (AIHs), o que, na
trado, fragilizando mais o contexto de políticas
prática, serve como novo incentivo para rea-

SP
públicas. (Bertolino; Sayeg).
bertura e ampliação de leitos em hospitais em
Outro dado é a criação do Ministério da detrimento da implantação de novos serviços CadernosCRP
Cadernos Temáticos
Cidadania pelo Governo Federal neste ano com comunitários de saúde mental.
a diluição do Ministério da Cultura, juntamente
No âmbito nacional, juntamente com a
com o Ministério do Esporte e Ministério do De-
implantação de medidas pró-manicômios, util-
senvolvimento Social já anunciada no governo
zou-se a estratégia de “dividir para conquistar”,
de transição, sendo indicado o médico Osmar
fazendo a questão de drogas ficar dividida em
Terra como ministro da nova pasta. Neste novo
dois ministérios ao menos: o da saúde - que já
ministério foi estabelecida diversas Secreta-
era um foco dos movimentos sociais para a de-
rias, dentre elas a Secretaria de Cuidados e
fesa da Reforma Psiquiátrica - e a “Secretaria
Prevenção às Drogas.
de Cuidados e Prevenção às Drogas” do Minis-
Em 2016, a Coordenação de Saúde Mental, tério da Cidadania, na qual a Coordenação de
Álcool e outras Drogas foi alvo de mobilizações Saúde Mental poderia fazer muito mais a favor
e manifestações que solicitavam a articulação da sua política pró-manicômios por estar em
e sustentação da Política Nacional de Saúde uma pasta fora da Saúde e da Saúde Mental e
na qual articulou o fortalecimento da estratégia ficam com a maior parcela de responsabilidade
66
pró-manicômios e das Comunidades Terapêuti- na implantação direta dos serviços e seu finan-
cas, com o apoio da bancada evangélica. ciamento sem contar, contudo, com incentivo
semelhante dos outros níveis do poder executi-
Tal articulação culminou na promulgação
vo. É de suma importância salientar também que
da Lei 13.840/2019 que fortalece mais ainda a
quem sofre efetivamente o maior impacto desse
estratégia de Comunidades Terapêuticas, indi-
descompasso é a população, que permanece à
cando um repasse maior ainda de recursos pú-
mercê da definição de bases mais sólidas para
blicos para o poder privado, com concomitante e
estruturação da política assistencial.
proporcional desinvestimento no SUS ou em po-
líticas públicas de qualidade para a população.

Por último, mas não menos importante, te-


mos a Emenda Constitucional 95 (EC 95/2016)
“Como visto até aqui a política
- a emenda do teto dos gastos públicos, que de financiamento ao longo
Francisco Funcia (2018) - em apresentação oral dos últimos 18 anos, se
- propõe como um subfinanciamento que pro-
move o desfinanciamento do SUS e que, junta-
consideramos como marco a lei
mente com a EC 86/2015 e EC 93/2016, promo- 10216/2001, nunca se manteve
verá um grande prejuízo para a saúde no país. nas esferas estaduais e federal
A emenda constitucional 95/2016 limitou de forma integrada na busca
os gastos públicos com políticas sociais por
pela continuidade das diretrizes
vinte anos. Sob o aspecto financeiro impacta
o reajuste orçamentário dos gastos em saú- estipuladas, havendo até
de que estarão congelados pelos próximos 17 situações de enorme disparidade
anos, segundo o que preconiza a medida parla-
entre o defendido nacionalmente
mentar. Do ponto de vista prático, essa medida
condenou o SUS a parar de receber novos in- e o defendido nos estados”
vestimentos visando ampliação da assistência
em saúde oferecida à população.
No caso específico da população usuária
Nos cálculos de Funcia (2018) fica eviden-
de drogas que em geral visto por meio de valo-
te a insuficiência do financiamento para a ma-
res morais em vez do olhar de cuidado, devido
nutenção do SUS diante das necessidades da
muitos serem usuários de substâncias que não
população, que ficará desassistida. Trata-se de
são regulamentadas para o uso e consideradas
uma perda de bilhões para o SUS e para todo o
ilegais ficam expostos a toda sorte interpreta-
âmbito de políticas públicas. Contraditoriamen-
ções sobre a solução de seus problemas. Os
te, vemos serviços de saúde mental condizentes
meios de comunicação televisivos e impressos
com a Reforma Psiquiátrica, como os CAPS AD,
da grande imprensa comercial tem papel chave
desinvestidos e outros serviços pró-manico-
nesse contexto como difusores da cultura mani-
miais sendo investidos crescentemente. Trata-
comial, advogando pelo procedimento de inter-
se de inegável investimento na política pró-ma-
nação que, nas etapas da assistência em saú-
nicômios, que tem na Comunidade Terapêutica
de, é considerado último recurso de tratamento
seu representante mais evidente nos tempos
como a primeira medida a ser tomada. Essa in-
atuais e na questão de álcool e outras drogas.
formação propagada somada a forma como a
Como visto até aqui a política de financia- política de financiamento está estruturada gera
mento ao longo dos últimos 18 anos, se consi- um nicho de mercado que nos últimos anos tem
deramos como marco a lei 10216/2001, nunca sido ocupado pelas Comunidades Terapêuticas,
se manteve nas esferas estaduais e federal de Clínicas particulares para Dependência Quími-
forma integrada na busca pela continuidade das ca e Manicômios que se aproveitam de grande
diretrizes estipuladas, havendo até situações parte do financiamento público para perpetuar o
de enorme disparidade entre o defendido nacio- tratamento baseado exclusivamente na interna-
nalmente e o defendido nos estados. Neste sen- ção de longa duração desarticulada da rede de
tido, os maiores afetados são os municípios que serviços comunitários presentes nos municípios.
É de se esperar que diante dos retroces- Referências
sos, o financiamento público de serviços pau-
tados pela lógica da integralidade do cuidado, BERTOLINO NETO, Moacyr Miniussi. A implan-
equidade e universalidade fiquem ameaçados, tação da RAPS em um Município de Grande
como já vem ocorrendo. Para que o cuidado em Porte e poucos Recursos Financeiros. 2017.
álcool e outras drogas se mantenha erguido em Tese (Doutorado em Saúde, Ciclos de Vida
bases democráticas e comunitárias, é preciso se e Sociedade) - Faculdade de Saúde Pública,
aprofundar na compreensão do contexto macro Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
e micro político, movimentando a disputa relati- doi:10.11606/T.6.2017.tde-20092017-112652.
va à metodologia de cuidado. (Bertolino; Sayeg) Acesso em: 2019-07-21.

FUNCIA, Francisco. Emenda Constitucional 95


- do (sub)financiamento para o (des)financia-
“Para que o cuidado em álcool mento do SUS. Apresentação oral realizada em
e outras drogas se mantenha 10 de dezembro de 2018 para o Fórum dos Con-
selhos Atividade Fim Saúde (FCAFS). Sao Paulo-
erguido em bases democráticas SP, 2018.
e comunitárias, é preciso se
GIOVANETTI, Fernanda Zanetti Cinalli. A ne-
aprofundar na compreensão do gação da clínica na saúde mental: Impossi-
contexto macro e micro político, bilidade para sustentação da proposta an-
timanicomial. 2018. Dissertação (Mestrado
movimentando a disputa relativa
em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia,
à metodologia de cuidado” Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
doi:10.11606/D.47.2018.tde-23082018-155542.

Este Conselho de Psicologia, os movimen- Silva, Débora de Souza. Gênero e assistência


tos sociais em defesa da proposta Antimanico- as usuárias de álcool e outras drogas: trata-
mial e seus representantes reafirmam que se mento ou violência? /Débora de Souza Silva;
manterão firmes, de maneira intransigente, na Dissertação de Mestrado. Orientadora: Zélia Mi-
sustentação da lógica antimanicomial e dos Di- lanez de Lossio e Seiblitz. – Rio de Janeiro : PUC,
reitos Humanos. Que possamos estar atentos, Departamento de Serviço Social, 2005.
todos, aos processos de financiamento tam- TRAPÉ, Thiago Lavras, ONOCKO-CAMPOS, Ro-
bém, que, - às vezes, pouco interessam a alguns sana. Modelo de atenção à saúde mental do
-, mas que retratam e trazem indícios de mo- Brasil: análise do financiamento, governança e
vimentações e mudanças de lógicas e paradig- mecanismos de avaliação. Rev Saude Publica.
mas apontando no horizonte para onde de fato
a política atual pretende direcionar suas ações,
para que não estejamos desavisados e para
que possamos nos posicionar e resistir, garan-
tindo a sustentação dos pilares necessários
para a manutenção da proposta antimanicomial
e a garantia dos direitos humanos em todos os
seus aspectos, inclusive e, principalmente, na
Política de Álcool e outras Drogas.
Realização:

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